COMUNICAÇÃO ARGENTINA EM PAUTA Nos últimos quatros anos, a Argentina presenciou a maior discussão sobre sua comunicação na história. A partir da sanção de uma lei que regula os meios audiovisuais, os ânimos entre os meios se acirraram e até população passou a debater um dos assuntos mais importantes de uma democracia.
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA CENTRO DE COMUNICAÇÃO E EXPRESSÃO DEPARTAMENTO DE JORNALISMO Trabalho de Conclusão de Curso em Jornalismo Rafaella Sígolo Coury Orientação Rogério Christofoletti Fotos Rafaella Coury e Rodolfo Conceição Florianópolis, novembro de 2013
Os primeiros mil dias de uma lei controversa Quatro anos após a sanção da Lei de Serviços Audiovisuais, ela ainda é tema de discórdia entre intelectuais do ramo
O
professor e pesquisador de meios e do direito à comunicação Glenn Postolski esteve na luta por muitos anos e hoje está cansado. Sua rotina lecionando em duas universidades de Buenos Aires toma bastante tempo e impede que haja espaço para distrações. Ao sentar em um café ao lado da Universidad de Ciencias Empresariales y Sociales no intervalo entre duas aulas, aproveita a única hora da manhã na qual pode descansar e relaxar, e conta que, além do tempo nas classes, há anos faz parte de um grupo de militantes em faculdades, grêmios e no espaço político. Seu pedido era que algum governo tivesse a coragem de se posicionar sobre a legislação da comunicação na Argentina, gerando um debate que poderia dar lugar à sanção de uma nova lei, o que aconteceu há quatro anos. A Lei de Serviços Audiovisuais da Argentina, Lei Nº 26.522, foi assinada pelo governo de Cristina de Fernandez Kirchner em outubro de 2009, após várias modificações e longo debate por parte de intelectuais relacionados ao tema e profissionais da área. Desde sua implementação, esta regulamentação foi grande motivo de discórdia, seja entre o maior grupo de comunicação do país, o Clarín, e a própria presidente, seja entre analistas e estudiosos de comunicação. A atualização do marco legal de rádio e televisão argentino, que datava de 1980, período do segundo regime militar no país, era uma reivindicação de vários sindicatos de jornalistas e de alguns atores políticos, mas mesmo tendo sido planejada por alguns governos, nunca se concretizou. Até 2009, a lei existente havia sido modificada várias vezes, por diversos motivos, mas sempre sem uma discussão pública prévia, sendo apenas o resultado de um acordo entre empresários e políticos. Efetivamente, estava claro que o Congresso não tinha interesse em temas relacionados aos meios de comunicação, e normalmente eles eram arbitrariamente evitados. Postolski conta que a luta pelo interesse em uma nova regulamentação “foi um processo de muitos anos, que teve um ponto de mudança com a criação da Coalición por una Radiodifusión Democrática, - um espaço complexo, composto por professores universitários, estudiosos de comunicação, trabalhadores de rádios alternativas, entre outros - que decidiu quais deveriam ser os 21 pontos que uma nova lei deveria ter para ser realmente democrática”. O professor explica que a Coalición divulgou esses pontos amplamente
desde 2004, mas foi apenas em 2009, já no governo de Cristina, que obteve algum resultado. Após uma tensão política com o campo, “o governo tomou dimensão da importância que tem a dinâmica do sistema midiático na imposição dos relatos e das vozes, e retomou o que era defendido desde sempre, a fim de criar um projeto de lei que modificasse esse panorama”, explica Postolski. Um anteprojeto foi debatido em fóruns participativos de consulta pública, entre março e julho daquele ano, em 24 universidades públicas do país, nos quais teve várias emendas e modificações, culminando na lei de 2009. Ele conclui dizendo que “entre os 21 pontos, o primeiro anteprojeto de lei, e o projeto outorgado, o espírito se manteve: a profunda disputa em torno dos motivos da resistência dos grupos econômicos, já que o que a Coalición defende é a comunicação como direito humano e não como mercadoria”. Diversidade de opiniões Mesmo com grande apoio de pesquisadores e docentes, nem todos concordam com a criação da lei. Adriana Amado Suarez, doutora em Ciências Sociais e analista de meios de comunicação, opina que a lei “já nasceu velha, deveria ter sido criada no século passado, não corresponde às tecnologias atuais, e é totalmente abstrata”. Falando com um “portunhol” esforçado, entre goles de café do Starbucks, ela questiona o pouco tempo em que o projeto de lei foi realmente discutido com a sociedade, o que compromete, na sua opinião, sua legitimidade, e comenta que “não faz mais diferença discutir a lei após sua aprovação, principalmente por ela ter sido divulgada como uma grande promessa para o setor social”. Adriana sustenta que a aplicação da lei não é viável, pois necessita de um controle e uma fiscalização impossíveis. Ela conclui dizendo que “a Argentina precisa evoluir para aplicar com efetividade uma lei de comunicação como esta que, no papel, tem um ótimo conteúdo político, mas não tem nenhum jeito prático.” Por outro lado, é possível ter uma visão positiva da lei, independente de como será aplicada. O professor e pesquisador de políticas de comunicação, Santiago Marino, afirma que “o governo argentino estava em dívida com o
“Apesar de boa, a lei foi criada apenas por motivos de vingança”
país por não ter uma lei que regulasse os meios de comunicação audiovisuais sancionada após a ditadura”. Ele não duvida de que a intenção do governo Kirchner com a norma foi prejudicar o grupo Clarín, mas, mesmo com algumas falhas, ela tem pontos positivos, como o reconhecimento de três provedores fixos (governo, privado, e privado sem fins de lucro), e os limites à concentração midiática, à propriedade cruzada de meios e aos abusos de posição dominante, entre outros artigos que, para ele, indicam um início de democratização. O professor de jornalismo e democracia na Universidade Austral de Buenos Aires, Fernando Ruiz, concorda que, quando se analisa o texto, a lei é boa e é uma ótima ferramenta de descentralização dos meios tradicionais, além de evitar a configuração de grupos excessivamente grandes. Mas, para ele, “ela nasceu por um motivo de vingança, e está pensada para castigar principalmente um grande grupo de meios, influenciando na sua aplicação e fazendo ela perder parte da importância e da força”. Além disso, ele avalia que o governo de Cristina aprovou uma lei que pede a democratização dos meios quando os próprios meios do governo são controlados de acordo com seus interesses, sem a presença de vozes públicas que não são governamentais. Para ele, essa é a maior incoerência da legislação. O especialista em concentração de meios e políticas de comunicação Martín Becerra rechaça a crítica à norma como “velha e meramente teórica”. É fato que ela não abrange o contexto de convergência tecnológica que a Argentina vive neste momento, mas afirmar que os meios audiovisuais não são mais funcionais é um ato de impaciência ou ignorância, na sua opinião. Em um balanço dos quatro anos da sanção da norma, ele resume o que seu texto tem de caráter inclusivo, se comparada ao marco regulatório anterior: “ela compreende setores não lucrativos (como cooperativas, meios comunitários e alternativos) na gestão de licenças, estabelece limites à concentração da propriedade, exige pluralismo e diversidade das emissoras estatais, habilita a participação de minorias políticas e sociais nos novos organismos de aplicação e controle e dispõe cotas de conteúdo locais e independentes”. Por mais que no papel ela garanta uma maior democratização da comunicação, Becerra afirma que não há país no mundo que, até então, tenha conseguido aplicar uma regulamentação plena e eficaz de convergência, já que os meios estão em constante modificação. Isso faz com que o pesquisador pense que, se o objetivo da lei é maior inclusão, melhor acesso, diversidade e pluralismo, ela deverá passar por melhoras e atualizações, além de uma completa aplicação e fiscalização.
Aplicação arbitrária A promessa de democratização da comunicação ficou para depois, já que diminuir o poder da oposição é mais importante
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sanção da Lei de Serviços Audiovisuais foi uma das maiores conquistas da democracia dos últimos anos, na visão de muitos. Sindicalistas, acadêmicos, estudantes e minorias políticas e sociais comemoraram o que seria um importante passo para a liberdade de expressão e para a pluralidade. A expectativa era que a regulamentação acabaria com algumas injustiças e abriria espaço para novas vozes. Mas, para a decepção de muitos, dois meses depois da aprovação da norma, o maior grupo de comunicação da Argentina, o Clarín, entrou na justiça contra a sua total aplicação, alegando que alguns artigos eram inconstitucionais por estarem relacionados à propriedade privada. Assim, a briga que já existia entre o conglomerado e o governo Kirchner se acirrou e a presidente, em vez de se preocupar em aplicar todos os 166 artigos da lei, apenas se concentrou em fazer com que o opositor perdesse parte do seu poder ao ter que retirar investimentos e ceder licenças. O especialista em concentração de meios e políticas de comunicação Martín Becerra fez uma relação do número de pontos da lei que não foram ou estão parcialmente aplicados até o aniversário de quatro anos de sua sanção, chegando em 22 artigos ou capítulos. Além disso, para que a lei seja completamente aplicada, os artigos devem estar regulamentados. Pouco mais de 50% deles ainda não foram regulamentados pelo Poder Executivo argentino e alguns que estão sendo cumpridos o fazem sem uma correta regulamentação. Dentre os quatro artigos questionados pelo Grupo Clarín, por exemplo, dois já estão regulamentados, mas nenhum é aplicado. Por mais que eles estejam suspensos para este grupo devido ao processo judicial, outros grupos midiáticos já deveriam ter se adequado a eles, mas não o fazem e nem há uma fiscalização exigindo que isso aconteça. De forma resumida, “ao governo importou mais desgastar o poder do Grupo Clarín do que desconcentrar e manejar, da mesma forma, outros grupos de comunicação que também são grandes conglomerados. Assim, não aprovou os planos de adequação destas empresas que estão abertamente violentando algumas disposições da nova lei”, explica o jornalista e escritor argentino Eduardo Blaustein. Para ele, isso se deve à ineficiência do governo e ao fato de que os outros grupos não são considerados uma ameaça tanto quanto o Clarín. A opinião de Becerra é similar: “aparentemente, até agora a presidente decidiu concentrar sua atenção somente no seu oponente máximo, implicando na subordinação de todo o resto da lei. Também acredito que o governo tenha dificuldades administrativas, pois a nova norma implica uma mudança muito grande no âmbito audiovisual da Argentina e começá-la não é simples. Assim, é mais fácil para o governo jogar a culpa de todos os problemas que existem no opositor antes de começar a se mexer, que seria algo muito trabalhoso, para fazer a lei se cumprir”. O especialista explicita um paradoxo da lei, no qual o governo acusa o Clarín de desobediência ao não cumprir os quatro artigos, mas também não cumpre a exigência de organizar concursos públicos para outorgar licenças de televisão, não preparou um plano técnico de frequências para
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possibilitar a reserva dos 33% do espectro para organizações sem fins de lucro, obstruiu a competição no mercado de televisão por cabo por anos, não cumpre o capítulo da lei referente a meios públicos, entre outros. A criação e aplicação do artigo 89 da lei, que garante 33% do espectro radioelétrico, tanto de televisão quanto de rádio, para organizações sem fins de lucro, é a mais comentada. Ele determina que o espectro seja dividido em três partes iguais, sendo 33% do espaço para o Estado, 33% para empresas privadas e outros 33% para entidades ou pessoas físicas sem fins de lucro, garantindo assim uma maior pluralidade de vozes, diferentemente da regulamentação anterior. Logo após gravar seu programa semanal “El juego en que andamos”, que é transmitido aos sábados e, naquela semana, trataria da segurança nas cidades argentinas, o locutor da Rádio Nacional Eduardo Anguita afirma que a norma é um pequeno avanço no sistema de rádios. Ele defende que “a possibilidade de minorias transmitirem seu ponto de vista é fundamental e faria bem a toda a sociedade. Mesmo que nunca chegue a ter audiência, a possibilidade de falar, e a
Para o jornalista José Crettaz, basicamente, falta um capítulo na lei. A lei confunde voz com propriedade. possibilidade da população escolher ouvir, deve ser um direito e deve ser aplicado. A lógica da comunicação não pode mais ser da audiência, como estamos acostumados, e sim, a da pluralidade de vozes”. Apesar de ser um avanço, o jornalista e professor de gestão de meios José Crettaz, afirma, como Becerra, que falta um plano técnico que analise o tamanho do espectro, quem o está ocupando, quem deveria ocupá-lo, e como regular este processo. Ele explica que “sem este plano, não há como abrir concursos para novas licenças e, consequentemente, reservar um terço do espectro para as minorias.” Ele avalia o panorama atual radioelétrico como caótico e exemplifica ao contar que “na cidade de Buenos Aires existem até 20 emissoras transmitindo na mesma frequência. E não há um plano para solucionar isso, o que torna a divisão dos 33% para organizações sem fins de lucro inaplicável”. Outro problema com esse espaço garantido para entidades sem fins de lucro é a falta de garantia monetária para eles, ou seja, o capital necessário para se manter no ar. Crettaz conta que “antes da lei, as organizações sem fins de lucro que tinham interesse em transmitir por rádio ou televisão já o faziam, mas sem uma proteção legal (de certa forma, ilegalmente), apenas com um recurso judicial provisório que as protegiam e permitiam que continuassem funcionando (lá, isso se chama “Recurso de amparo”)”. Agora, a lei gerou uma série de burocracias para que haja licenciatários para canais de televisão e frequências de rádio, o que limita o acesso e coloca transmissões já existentes em debilidade.
Edi Zunino, editor chefe da revista argentina Notícias, afirma que mesmo que as minorias tenham direito a ter uma licença própria, muitas vezes isso não é interessante, devido à necessidade de capital para sobreviver. No mundo midiático, este capital provém principalmente de publicidade, seja de empresas privadas ou do próprio Estado. Para que uma empresa queira investir em um canal, ela precisa da garantia de um retorno, de que alcançará um grande público, ou seja, depende da audiência. Assim, os canais de minorias não são tentadores para os anunciantes privados, que possuem um orçamento é finito, e as audiências dos meios audiovisuais não pagam. A atuação do Estado, neste caso, em vez de ajudar e financiar estas minorias, é comprar os meios que não se seguram sozinhos, adquirindo novos aliados. A divisão das licenças nesses três terços ajudou a lei ser aprovada, a ser votada de forma positiva mesmo para os opositores de Cristina. E essa promessa gera falsas expectativas, que depois se tornarão frustrações. E a frustração gera inimigos. Crettaz acrescenta que a lei está completamente desconectada da realidade de mercado atual do país, e dá um exemplo: a Autoridad Federal de Servicios de Comunicación Audiovisual (AFSCA) lançou um concurso para criar 220 novos canais de televisão digital, que fracassou. Metade dos canais seria para associações comunitárias e entidades sem donos e sem esperanças de lucro, e a outra metade, comerciais. Não se sabe quantos interessados se apresentaram ao concurso, mas não passou de 50. O principal motivo disso é a falta de viabilidade econômica, pois não há uma lei que garanta isso, e fica a questão de como esses meios irão se sustentar. Para o jorna-
lista, basicamente, falta um capítulo na lei. A lei confunde voz com propriedade. Outros problemas de aplicação da lei estão principalmente concentrados na autoridade fiscalizadora, a AFSCA. A lei determina que um representante designado pela oposição a integre, o que não acontece. Além disso, o artigo que indica as funções da AFSCA também não é aplicado. Já o órgão que deveria avaliar o desempenho da Autoridade, velar pelo cumprimento das funções públicas dos meios estatais, entre outras funções, também não atua conforme a lei, pois o oficialismo no Congresso é muito expressivo e as forças de oposição não são suficientemente ativas. Isso além dos artigos que determinam as ações do governo que fariam a lei se aplicar ou, ainda mais, regulam os canais estatais, e não são cumpridos. O Título III, por exemplo, determina quem pode ser prestador de serviços audiovisuais e quais são as condições de admissão, mas o governo admite, quando não encoraja, planos de adequação de grandes grupos e empresários amigos que não se encaixam nos requisitos da lei. O governo também não realizou concursos públicos para novas licenças de rádio e televisão, como manda o artigo 32, mas permitiu um regime de exceções, outorgando licenças experimentais a empresas e organizações, sem que outros atores sociais ou empresariais interessados pudessem concorrer em igualdade de condições. E, o mais grave, o Título VII regula os serviços de radiodifusão do Estado, e determina que eles devem promover o pluralismo político, social, cultural, religioso, etc., e é visivelmente descumprido.
Cartaz feito a pedido da Coalisión por una Radiodifusión Democrática, que traz os nomes dos principais jornais impressos do grupo
A lei enfrenta a justiça O questionamento da constitucionalidade de quatro artigos pelo grupo Clarín originou um dos julgamentos mais extensos, controversos e comentados do país
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ram 10 horas da manhã de uma quarta-feira e a movimentação no sentido da Diagonal Norte, na área central de Buenos Aires, estava intensa. Estudantes, sindicalistas e cidadãos comuns atenderam ao chamado da direção do curso de Ciências da Comunicação da Universidad de Buenos Aires junto à Coalición por una Radiodifusión Democrática, “Pela Democracia e Liberdade de Expressão”, e foram assistir à transmissão ao vivo da audiência pública que determinaria se os artigos 41, 45, 48 e 161 da Lei de Serviços Audiovisuais eram constitucionais ou não. No dia 28 de agosto de 2013, centenas de pessoas se reuniram na frente da Corte Suprema de Justiça, nos Tribunales, para apoiar uma causa que consideravam justa. Era o governo, representado pelo Poder Executivo, contra o grupo Clarín, que entrou com o julgamento dos artigos pouco tempo depois que a lei foi assinada, em outubro de 2009. Para muitos, a real batalha era entre a democracia e o monopólio, respectivamente. Durante dois dias, das 10h às 16h, os chamados “amigos do tribunal” apresentaram argumentos a favor e contra a constitucionalidade dos artigos, através de apresentações teóricas e técnicas exibindo diferentes visões sobre a liberdade de expressão. Em nome do grupo, defendia-se que os limites à propriedade e as obrigações de adequação da norma para a empresa afetam esta liberdade. Já a favor do Poder Executivo, ou, do povo, foi defendido que a posição dominante da
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empresa multimidiática habilita práticas de competição desleal e afeta a pluralidade de vozes e a liberdade de expressão dos cidadãos. À Corte coube a tarefa de analisar o que era exposto e fazer perguntas, quando necessário. O apoio da população ao evento foi massivo, chegando a lotar a praça e impedir uma circulação livre e sem obstáculos. A organização da mobilização providenciou dois telões nos quais a audiência foi transmitida ao vivo e, enquanto tivesse alguém falando na Corte, havia muita gente prestando atenção na rua. Quando o que era escutado agradava, haviam palmas, gritos de apoio, sorrisos, comemorações. Normalmente, isso acontecia quando a fala era daqueles a favor da completa aplicação da lei, e da constitucionalidade dos artigos em questão. Quando os escolhidos pelo grupo Clarín falavam, grande parte do público se dispersava, começava a conversar e, os poucos que ainda prestavam atenção, vaiavam, soltavam expressões de desagrado, e riam sarcasticamente do que ouviam. Ficava extremamente claro o apoio geral dos presentes a favor da diminuição do poder do conglomerado. Entrevistas ao vivo Como parte do evento, na praça foram montadas tendas onde aconteciam mesas de discussão sobre o tema tratado na audiência, as concentrações de mídia e a pluralidade de vozes. Muitas delas, inclusive, foram organizadas pela Autoridad Federal de Servicios de Comunicación Audiovisual
Estudantes de jornalismo entrevistaram importantes nomes sobre o tema da Lei de Serviços Audiovisuais para uma rádio da AFSCA, durante a audiência pública
(AFSCA), que distribuiu panfletos explicando os pontos práticos da lei e comemorando sua concessão. Em uma destas tendas, Nestor Buzzo, representante da Coalisión por una Radiodifusión Democrática, demonstrou seu contentamento com o número de pessoas que estavam ali naquele dia: “pelo menos, podemos ver que começou o debate sobre os problemas de comunicação na Argentina”. Como muitos outros, reclamou das decisões tomadas pelo Poder Judicial que, segundo ele, “são o motivo pelo qual a lei ainda não foi totalmente aplicada”. Outras vozes falaram de como a concentração de meios vai contra a liberdade de expressão e o direito à comunicação, que a lei garante os direitos da sociedade, e comentaram a diferença entre liberdade de imprensa e de informação. Muitos chegaram a criticar a autoridade fiscalizadora, que, sozinha, se tornou uma fonte de poder, e a atuação de Cristina, que separou a lei (boa para democratização) da sua aplicação (boa para o governo). O consenso era de que a presidente se esquece dos pontos da lei se concentra apenas em diminuir o poder do grupo Clarín. As atrações na praça também incluíam pequenos estúdios improvisados de televisão e de rádio, nos quais personalidades referências no tema, como jornalistas e analistas de mídia, eram entrevistadas. Em outra tenda montada pela AFSCA, estudantes de comu- Flyer distribuído pela Coalisión, chamando todos para a discussão aberta sobre o dia 7 de dezembro nicação transmitiam, ao vivo, um programa de rádio com entrevistas sobre o caso. Nela, Luis D’elía, locutor da Radio Cooperativa, expôs que “o Clarín é um estado dentro do estado argentino. Enquanto houver monopólio, haverá ditadura.” canal de televisão e o principal operador de televisão a cabo, através Ele também criticou a atuação do poder judiciário, que se deixa in- da Cablevisión. No evento “EL 7D, todos dentro de la ley democrática!”, que fluenciar pelo poder econômico de uma grande empresa. Já Sandra aconteceu no auditório Néstor Kirchner e teve o acompanhamento Russo, jornalista, editora e escritora, ao ser entrevistada, opinou que “não há uma ditadura, pois todos podem falar. O que há é uma de uma rádio aberta, a primeira mesa tratou do que a Lei de Meios vontade de que todos se calem, e haja só uma escolha de como se havia feito até então. Nela, a diretora da Rádio Nacional de Córdoba Maru Cisneros explicou que os meios comunitários precisam informar, o que é ruim”. A audiência do dia 28 de agosto foi um dos momentos finais do de parte do espaço privado para poder transmitir, que o dever das julgamento da constitucionalidade dos artigos questionados pelo rádios nacionais é ter 80% de produção própria e local, e que isso grupo Clarín em 2009. Depois de quatro anos, no dia 29 de outu- “garantiria uma identidade pluricultural”. Além disso, ela defendeu bro de 2013, a Corte Suprema de Justiça declarou a Lei de Serviços que a Rádio Nacional é um “meio público que, acima de tudo, Audiovisuais constitucional em sua totalidade, para grande alívio defende o interesse da população”. Na mesma mesa, Miguel Rojo, da população argentina. Os juízes que votaram positivamente de- da Superintendencia de Riesgos del Trabajo, afirmou que a lei “é uma fendem que “a lei é coerente com os direitos do consumidor” e que forma contundente de demonstrar que existe um compromisso “não tem como provar que haja uma real afetação na liberdade de com a comunicação, com a pluralidade de vozes e com o públiexpressão”, assim como disseram que sua total aplicação não coloca co.” Mário Farias, membro da Coalición e da Rádio Sur, encerrou a em risco a sustentabilidade do grupo opositor, por mais que ela mesa dizendo que a lei de meios “permite distribuir licenças, para diminuir a hegemonia dos grandes grupos e para construir um país diminua sua rentabilidade. de todos.” Na segunda mesa, “Até o 7D!”, Cecília Merchan, ex-deputada A discussão Paralelamente a toda a análise que aconteceu na Corte Suprema de estadual, defende a ideia de que a “comunicação não é uma merJustiça durante estes quatro anos, a população também encontrou cadoria, é um direito” e que, para isso, não podem existir monopómaneiras de discutir o que estava acontecendo. A nova regulamen- lios não só econômicos, como também culturais. Para ela, a lei foi tação, sua aplicação, o monopólio e a democratização da comuni- criada para multiplicar vozes e ampliou o sentido de liberdade de cação, entre outros, passaram a ser o tema de debates e palestras expressão. Durante todo o evento, os pontos da lei que tratam dos por todo o país. No dia 7 de novembro de 2012, exatamente um trabalhadores da mídia, de sua capacitação e dos seus direitos foram mês antes do prazo máximo que o Clarín tinha para se adequar à muito enfatizados. Um produtor da rádio mais antiga do interior lei (antes de entrar novamente com um recurso que impediu que a argentino, a LV2, se manifestou durante a primeira mesa e falou da data se cumprisse), a Coalisión por una Radiodifusión Democrática esperança que seus colegas têm na lei, pois 51 deles trabalham sem organizou um dia de discussões abertas ao público, em Córdoba, receber salários desde 2011, e acreditam que agora este panorama cuja temática seria a situação da lei no estado e nos meios públi- deve mudar. Rojo finaliza dizendo que a luta dos grêmios não pode cos, privados, cooperativos e comunitários. Além de falar sobre a ser esquecida dentre todas estas lutas e que a lei garante novos posposição hegemônica que o maior conglomerado do país exerce no tos de trabalho, sem esquecer dos já existentes. O dia de discussões terminou após mais perguntas sobre o que estado, por ser proprietário de dois jornais locais, uma rádio, um aconteceria no dia 7 de dezembro. As mudanças previstas, a diferença que faria, a evolução que esta data significaria para a democratização da comunicação. Afinal, aparentemente todos acreditavam que era só isso que faltava para que exista uma real pluralidade de vozes. A conversa dos que estavam presentes, ao sair, era ansiosa, de expectativas, e de confiança de que as coisas seriam diferentes dali a um mês.
Centenas de cidadãos argentinos saíram às ruas para defender uma ideia de democracia e liberdade de expressão
Uma legislação na boca do povo Nunca antes na história argentina uma discussão sobre comunicação atingiu a população como a destes quatro anos
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o dia 8 de novembro de 2012, milhares de argentinos se reuniram em pontos centrais de importantes cidades para fazer mais um cacerolazo, expressão utilizada para nomear as manifestações públicas que acontecem no país. Alguns portando panelas - chamadas cacerolas, por isso o nome da mobilização - e colheres, material suficiente para fazer bastante barulho, outros levando bandeiras, cartazes e faixas com suas opiniões escritas, homens e mulheres de várias idades estavam reunidos para se fazer ouvir. Entre suas reclamações estavam a inflação, a injustiça, a mentira, a situação da previdência social. Em um momento da noite, tudo parou e eles cantaram o hino nacional, para mostrar que o que estavam fazendo ali era por amor pelo país. Esta foi uma demonstração de como o povo argentino é politizado e faz questão de expressar publicamente seu apoio ou crítica ao que acontece por lá, principalmente se relacionado a alguma atuação do governo. Por mais que os cacerolazos aconteçam com certa frequência desde a volta à democracia, em 1983, a novidade dos últimos anos é a discussão e opinião sobre a comunicação e a liberdade de expressão na Argentina, assunto que antes se resumia a um grupo bem menos expressivo. O jornalista Eduardo Blaustein afirma que “temas como práticas de jornalismo e poder midiático eram normalmente discutidos pela academia, por jornalistas inquietos, por políticos que foram envolvidos em situações relacionadas à comunicação, e por pessoas muito politizadas, ou seja, minorias. Panorama que hoje está diferente e se expandiu, o que muito é saudável.” Um ponto positivo da criação da lei e de toda a movimentação consequente dos julgamentos criados pelo grupo Clarín, e que é consenso entre quase todos seus apoiadores e críticos, é o fato de colocar o debate sobre a imprensa,
sobre a comunicação como direito, e sobre a concentração de meios no assunto diário de vários argentinos. Pessoas que nunca se interessaram por tal tema passaram a ir às ruas defendendo maior democratização e pluralidade de vozes. Para Blaustein, isso representa um ciclo de vitalidade democrática muito importante e muito próprio do clima vivido em muitos países sul-americanos. Ele afirma, contente, que “esta discussão transcende o tema comunicacional, pois muitas coisas também passam a ser publicamente discutidas, como os meios, as concentrações, as práticas jornalistas, entre outros”. De acordo com o especialista em meios de comunicação Martín Becerra, “nunca antes a sociedade tinha discutido tanto, e tão intensamente, os interesses e a regulamentação dos meios”. Já para o locutor da Rádio Nacional Eduardo Anguita, a sanção desta lei foi um grande avanço no debate público e no âmbito cultural. “Simplesmente o fato de os direitos que o público e os emissores têm estarem na discussão diária da população já foi extraordinário”, celebra, satisfeito. Além disso, ele acredita que independente de como acabasse o julgamento sobre os quatro artigos questionados pelo Clarín, a lei continuaria vigente e não haveria um vencedor e um perdedor nesta disputa, já que o importante terá sido a percepção, para os grandes grupos econômicos, de que a população tem sua voz. “O debate já está incrustado no povo e não sairá de pauta”, conclui. Há um consenso de que as mudanças provocadas na população após a aprovação da Lei de Serviços Audiovisuais e a disputa clara entre o grupo Clarín e o governo permanecerão mesmo depois que a poeira abaixar. Além de brigar por direitos políticos e mais justiça e clareza do governo, as pessoas agora brigarão por acreditar em uma comunicação mais justa e plural. Edi Zunino, editor chefe da revista argentina Notícias, crê que toda essa discussão causada pela lei vai dei-
Quatro anos de julgamento A Lei de Serviços de Comunicação Audiovisual foi sancionada pelo governo de Cristina Kirchner no dia 10 de outubro de 2009. Antes da aprovação, o grupo Clarín tomou todas as providências possíveis para impedir que acontecesse, e, como não teve sucesso, iniciou um longo processo judicial questionando a constitucionalidade de quatro artigos (41, 45, 48 e 161), dentre todos os aprovados, como explicam os dados a seguir. - Logo em 16 de dezembro de 2009, o juiz Edmundo Carbone aprovou uma medida cautelar impedindo a aplicação da lei, a pedido do conglomerado. Os artigos 41 e 161 foram suspensos. O governo apelou. - Em 14 de maio de 2010, a Sala I da Câmara Civil e Comercial Federal confirmou a suspensão do artigo 161, mas reativou o 41, ao que o governo novamente apelou, e o caso passou aos cuidados da Corte Suprema de Justiça, que tinha 36 meses para dar a decisão definitiva. - Neste meio tempo, ainda em dezembro de 2009, uma juíza de Mendonça aprovou uma cautelar que suspendeu a aplicação total da lei no país inteiro, com a justificativa de irregularidades regulamentárias na sanção feita pelo Congresso. Em junho de 2010, a Corte Suprema revogou esta medida e a lei voltou a estar vigente. - Em 22 de maio de 2012, a Corte estabeleceu o dia 7 de dezembro como prazo final da cautelar de Carbone, o que significaria a total aplicação do artigo 161. Um dia antes da data limite, a Sala I da Câmara Civil e Comercial Federal estendeu a medida a favor do grupo Clarín. - No dia 11 de dezembro de 2011, começou o movimento que colocou em debate a necessidade de reformar o poder judicial, após o comunicado “Uma justiça legítima”, que dizia que “a independência do poder judicial não deve estar limitada à relação que existe entre os poderes do estado”. - Entre dezembro de 2012 e abril de 2013, os artigos 45, 48 e 161 foram declarados constitucionais e inconstitucionais várias vezes, e revezadamente. Até que em 29 de outubro de 2013, a lei foi declarada constitucional em sua totalidade, com quatro votos a favor e três contra. P 8 • Novembro de 2013
xar um sedimento muito positivo. Ela explica que aconteceu uma significativa mudança, pois “hoje as audiências sabem mais do seu poder e passaram a opinar no que querem ver, ler e ouvir, e no quanto querem pagar por isso. As audiências demandam qualidade, custo acessível, inovação”. Assim, haverá uma cobrança maior do público, o que talvez possa causar também uma mudança em como a comunicação é feita no país. A lei da democracia O Decreto-Lei 22.285, anterior à nova norma, foi sancionado O apoio popular à audiência pública foi massivo. A praça dos Tribunales ficou cheia de bandeiras, em setembro de 1980, pela seque cobriram o céu e demonstravam mais uma vez a paixãao do argentino pelo seu país gunda ditadura militar argentina e regulava a rádio e a televisão do Universidade Austral de Buenos Aires um processo de conscientização do país. O professor Fernando Ruiz explica que “como também ocorria em acredita que “o debate político, sem governo e até dos meios de comunicaoutros países da região, os militares dúvida, é uma boa consequência da ção: “foi aí que passou a existir a noção tinham uma visão autoritária e cen- lei”. Mas isso não garante nada, na sua de que os meios também podiam ser tralista dos meios, que ia ao encontro visão. Para ele “a principal falência que questionados pela cidadania”. Até este da concepção que existia então sobre tem a democracia latino-americana é a momento, os meios não falavam de a segurança nacional”. Assim, existia qualidade do Estado. As leis são boas, si, não se autorreferenciavam de uma simultaneamente um inimigo externo as constituições são perfeitas, mas isso maneira crítica; a crítica estava coloe interno, e os meios deveriam estar in- não é vigente se não se tem um Estado cada nos outros, mas a partir daí, pela tegrados às estruturas de defesa do país que faça cumprir o que está nelas. E vontade política do governo e por sua para combatê-los. Ruiz ainda comenta se você tem um Estado de baixa qua- estratégia de disputa com o grupo Claque, no caso argentino, além de tudo, lidade, você tem uma brecha enorme rín, os meios começaram a ser também o acesso às licenças era limitado para entre qualquer regulamentação e a re- objeto de críticas. Postolski afirma que as empresas comerciais, o que reservava alidade”. Ruiz acredita que uma nova “isso se deveu a 30 anos de uma produa elas apenas uma função de operador norma que seja mais justa e igualitá- ção muito crítica dos meios em outros ria é fundamental, mas que este é só âmbitos, e o debate começado por eles subsidiário ao Estado. Na audiência de 28 de agosto de o primeiro passo. Há a necessidade de se espalhou por toda a sociedade. Ante2013, a maior defesa da população alguém que tenha a força, a disposição riormente, essa discussão já existia em que estava na praça afirmava que esta e o compromisso em fazê-la se aplicar. um circuito de comunicação alternativa, nos meios gráficos mais políticos, é a lei da democracia. Esta também é Isso seria realmente democrático. O pesquisador de imprensa Glenn entre outros, e agora está muito mais a propaganda que o governo de Cristina Kirchner e a Autoridad Federal de Postolski faz uma relação entre os abrangente”. O professor conclui dizendo que Servicios de Comunicación Audiovisual meios de comunicação pós-ditadura e (AFSCA) fazem, para aumentar ainda a política que, ao seu ver, um dia cul- “por mais que o Clarín ainda seja o mais a importância da regulamentação. minariam nesta nova regulamentação. jornal mais vendido e tenha o canal Já o jornalista Eduardo Blaustein acre- Ele explica que “nos anos posteriores mais visto, as pessoas, hoje, têm outra dita que “a declaração governamental ao regime militar, a imprensa funcio- perspectiva e outra interpretação do de que ‘a lei é do povo’ é liberal, insti- nou como um meio muito potente que estão lendo ou vendo. Sem dúvitucionalista, clássica e até um pouco es- de legitimação. Passaram a ser mui- da aconteceu uma quebra nos padrões, túpida, pois se foi aprovada pelo Con- to críticos com a política, mas nunca pois agora não há mais suspeitas de que gresso, que representa a população, autocríticos, nunca fazendo referên- um meio pode construir algum aconteesta é uma consequência lógica”. Para cia a seu próprio papel institucional. cimento, ou descrever algo de alguma ele, é fato que a lei é mais abrangente Durante toda a década de 80 e 90, os forma específica, de acordo com seus por não ter sido aprovada somente por meios hierarquizaram sua legitimidade interesses, e tentar manipular a populaoficialistas, mas muito do que é dito dentro do estado, e eram vistos como ção”. Esta mudança pôde ser confirmaserve apenas como propaganda. Já so- um lugar no qual, diante da carência da na audiência pública de agosto, pois bre a declaração de que a lei de meios de respostas da justiça, do estado e de o povo gritava por justiça, e ali isso sigé popular, Blaustein dá mais crédito, outros, a demanda era atendida ao ter nificava querer que o maior grupo de pois toda a sociedade está raivosamen- informação suficiente à disposição. comunicação do país diminuísse seu te demonstrando sua alegria de uma Assim, os jornalistas e os meios de co- alcance. Isso, na visão de quem estava maneira nova, e toda essa situação tem municação exerceram um papel social lá, permitiria que outras vozes fossem ouvidas, que outras pessoas tivessem o mobilizado muita gente em manifesta- muito importante nesta época”. A grande mudança, para ele, veio direito de se expressar, e que a real deções e em fóruns de discussão. O professor Fernando Ruiz da após a crise de 2001, quando houve mocracia entrasse em vigência.
Empresa jornalística ou jornalismo empresarial? Maior conglomerado de comunicação argentino deixa dúvidas se seu compromisso com o lucro é maior do que com a verdade
O
jornalista e subeditor de economia da revista argentina Perfil Rodolfo Barros participou do 1º Seminário Brasil-Argentina de Pesquisa e Investigação em Jornalismo, em Florianópolis, em 2011 e falou sobre o que faz um bom jornalista, resultando no texto “Cómo navegar extensos mares de un centímetro de profundidad”. Já na entrevista, ao ser perguntado sobre a presença do bom jornalismo na Argentina, ele se encostou na cadeira de sua baia na redação, colocou as mãos no rosto, e pensou. Para começar, explica que sua definição preferida sobre o jornalismo é “contar o que alguém não quer que seja contado, não quer que os outros se interem”. Para ele, fazer notícia é divulgar algo que algum poder, seja privado ou público, preferia que ficasse em sigilo. Barros acredita que na Argentina há jornalistas que seguem essa definição.O que influencia na capacidade da população se informar é a diferença entre os jornalistas e a imprensa em si. Ele explica: “nem os meios públicos, nem a maioria dos meios privados, têm o nível de qualidade desejável para que alguém possa se informar de maneira fácil e rápida, ainda mais que é difícil encontrar um meio plural, atualmente. Os meios públicos, que deveriam sê-lo, e os grandes grupos, que hoje estão em uma disputa com o governo, às vezes passam a atuar como agentes políticos, contaminando o serviço prestado”. Para resumir, sua visão é que, na situação atual, os meios de comunicação são entendidos como companhias, como empresas. Muitos grupos de comunicação argentinos foram criados justamente para melhorar a situação de outros investimentos de empresários, e nem todos eles cumprem com a separação ideal entre seus negócios e a imprensa. O grupo Clarín, por exemplo, tem interesses em outras áreas e uma posição político-histórica de peso sobre o exercício de poder. O professor e pesquisador de políticas de comunicação Santiago Marino complementa: “não há como evitar que os meios de comunicação funcionem com interesses políticos, sociais ou econômicos. O que o Estado precisa garantir é que estes interesses estejam representados de maneiras diversas. Temos
que ter múltiplos interesses”. Sua opinião sobre o grupo Clarín é crítica: “não se pode dizer que exista um monopólio, mas uma altíssima concentração, que permite falar de abuso de posição dominante.” Ele explica: “o grupo tem concentração econômica, com uma estrutura de propriedade muito densa, e horizontal, ou seja, domínio de muitos meios no mesmo suporte. Um exemplo é a imprensa gráfica, com os jornais Clarín, La Razón e Olé, em Buenos Aires, e os principais de outras províncias, como em Córdoba e Mendonça. Na televisão aberta, possui 10 canais no interior, além do canal mais visto do país, o Canal 13, com sede na capital. Já nas rádios, tem uma AM e uma rede de FMs que retransmitem o que se produz em Buenos Aires. Além disso, possui concentração vertical, ao concentrar as instâncias de produção e distribuição, em muitas áreas. É o dono majoritário da única empresa fornecedora de papel, e controla a distribuição, além de consumir o produto. Na televisão por cabo, tem muito mais licenças do que permitia a norma anterior, por exemplo, e tem muitos sinais, inclusive o mais visto (Canal TN). E, além disso, tem o abuso de posição dominante porque durante muito tempo possuiu o principal conteúdo da televisão por cabo, o futebol, e o vendia - ou não - aos seus concorrentes, de acordo com seus interesses. Tudo isso combinado com uma política de preços predatórios, fazendo com que a concorrência não possa competir, e fique mais fácil de comprar”. E esta situação, ele conclui, acontece desde 1991, inclusive com o apoio de presidentes como Carlos Menem, Eduardo Dualde e o próprio Néstor Kirchner, que, por exemplo, permitiu a fusão das empresas de televisão por cabo Cablevisión e Multicanal, garantindo ao grupo grande parte do seu conglomerado. Sobre o domínio da empresa, também é muito comum dizer que há uma hegemonia, afirmação que o especialista em concentração de meios e políticas de comunicação Martín Becerra desmente: “se fosse assim, a justiça não teria declarado a constitucionalidade da lei, já que o conceito de hegemonia implica tomar conta de todos os poderes, de certa forma”. Na Argentina, pode-se dizer que os três poderes do Estado têm dado péssimas notícias ao grupo nos últimos anos, impedindo que ele seja hegemônico. Becerra resume: “é um conglomerado que exerce posição dominante em um mercado muito importante, o de televisão por cabo, além de controlar a provisão de papel, possuir o principal jornal e também contar com muitas empresas jornalísticas importantes como parceiras”. Efetivamente, é um dos geradores da pauta diária e um dos grupos que pressionaram distintos governos na história, mas não é o único. É provavelmente o mais importante, mas não é o único.
Como toda grande empresa de meios, o grupo Clarín é um ator político, então não é independente
Um dos muitos cartazes contra o grupo Clarín na audiência pública
Jornalismo? Ao ser perguntado sobre o que pensa do grupo Clarín, o jornalista e escritor argentino Eduardo Blaustein me pede para esperar um pouco, porque para falar deste assunto precisa tomar alguns goles de café. Após respirar fundo e acender um novo cigarro, conta que desde a fundação do grupo, em 1945, seus diretores foram empresários muito hábeis. Astutos e terrivelmente cruéis, desde o início conseguiram arrancar coisas dos governos, seja com pressão, com chan-
tagens ou através de troca de favores, sendo beneficiados em muitas transações. Para ele, então, “o conglomerado tem uma astúcia em dobro, que se deve temer e respeitar, mas também criticar”. É uma astúcia empresarial e jornalística, por construir um tipo de linguagem que quase se constitui na representação da classe média urbana. “A empresa soube ler muito bem as mensagens e os rumores do povo argentino. Sua destreza jornalística e empresária deve ser respeitada”, afirma. Além de ter um bom relacionamento com a sociedade, o grupo tem sido muito hábil para se relacionar com governos e para apertar, seduzir e arrancar certos benefícios de empresários. Paradoxalmente, sempre que tiveram a oportunidade se autodenominaram independentes, o que, na opinião de Blaustein, é uma lógica terrivelmente perversa. “Os últimos grandes pecados do grupo, com os quais eu sou duríssimo, é o controle terrorista da empresa Papel Prensa, o processo de privatização dos canais de televisão e das rádios, e a fomentação de uma cultura antipolítica e populista, através de muita demagogia, divulgando notícias ruins e culpando o governo, culminando em situações como ‘nós somos jornalistas independentes, a sociedade é boa, apenas a política é má’ que, para mim, são tóxicas culturalmente, pois não ajudam a construir uma melhor democracia e uma melhor discussão” critica severamente o escritor. A expressão monopólio, quando referente ao Clarín, foi muito utilizada pelo kirchnerismo para simplificar, de uma forma militante e pedagógica, mas o correto seria dizer grupo concentrado, com abuso de posição dominante, como concorda Blaustein. “Além das empresas de entretenimento, o conglomerado também tem interesse na indústria agrícola, entre outras, fazendo com que a classificação como jornalismo independente seja falsa, afinal, é um ator econômico muito pesado. Uma boa definição para casos assim é ‘como toda grande empresa de meios, é um ator político’, ou seja, não é e nem faz jornalismo independente”. Também sobre suas decisões editoriais, Blaustein é direto: “normalmente reclamam da censura na TV Pública, mas o Clarín tem feito uma censura estrutural espantosa desde sempre. Há uma grande pressão interna, desde que iniciou esta disputa com o governo, para que todos seus jornalistas sejam sempre contrários à presidente, o que é uma manipulação”. O grupo exige de seus empregados que tudo seja negativo quando o assunto é o governo, escondendo as boas notícias nas últimas páginas, quando estas aparecem. Na Argentina frequentemente é divulgado que certos governos que possuem interesses são violentos, totalitários e demagógicos, mas, por mais que eles realmente possuam alguns destes traços, esta é apenas uma construção cultural dos meios, a fim de influenciar sua audiência e garantir maior poder. A doutora em Ciências Sociais e analista de meios de comunicação Adriana Amado Suarez acredita que o grupo Clarín é mau para o jornalismo, e o que é feito por ele não demonstra preocupação com a verdade. “É sensacionalista, frívolo, uma espécie de infotainment, com informações que apenas pretendem entreter. Mas eles se apresentam como o grande jornal da Argentina, o que, para mim, é uma besteira”, opina Adriana. Toda esta crítica, por outro lado, é referente ao conteúdo. Ela enfatiza que se for feito um teste de qualidade, se constatará que não é um bom jornalismo. Em uma entrevista descontraída no Starbucks, ela explica que, no fim das contas, o grupo é uma empresa tão ruim como qualquer outra, inclusive por possuir corrupção. E independente de quão ruim ela possa ser, a pior parte é que foi o governo quem a deixou crescer e adquirir este tamanho. Assim, a crítica deveria ser dupla: para o governo que deu a permissão e para o grupo, pelo que ele se tornou. “O Clarín é mau, e faz mal para a comunicação argentina. O próprio CEO do grupo se chama Magneto, que é nome de vilão”, finaliza, rindo, ao fazer uma das poucas piadas possíveis nesta situação.
O que diziam os artigos questionados? Dois meses após a Lei de Serviços Audiovisuais ser aprovada, o grupo Clarín entrou na justiça com um pedido de inconstitucionalidade de quatro artigos, que determinam o seguinte: - Artigo 41 - trata da transferência de licenças, e afirma que elas e as autorizações de serviços de comunicação audiovisuais são intransferíveis, exceto em casos excepcionais. A realização de transferências sem a prévia aprovação da autoridade fiscalizadora resultará no vencimento automático da licença, sem possibilidade de recurso. - Artigo 45 - a fim de garantir os princípios de pluralidade, diversidade e respeito pela produção local, estabelece limitações à concentração de licenças. Permite, em ordem nacional: • uma licença de serviço de comunicação audiovisual pelo suporte de satélite, o que exclui a possibilidade de titulação de qualquer outro serviço deste tipo; • até 10 licenças de serviços de comunicação audiovisual através de radiodifusão sonora, televisiva aberta e/ou televisiva por assinatura, com utilização do espectro radioelétrico; • até 24 licenças para a exploração de serviços de radiodifusão por assinatura com vínculos físicos em diferentes locais. Os alcances territoriais e de população serão determinados pela autoridade fiscalizadora; E em ordem local: • uma frequência de radiodifusão sonora AM; • uma frequência de radiodifusão sonora FM, ou até duas licenças, quando existirem mais de oito licenças na área primária do serviço; • uma frequência de radiodifusão televisiva por assinatura, desde que o solicitante não seja titular de uma licença de televisão aberta; • uma licença de radiodifusão televisiva aberta, desde o que solicitante não seja titular de uma licença de televisão por assinatura. Em nenhum caso a soma do total de licenças cedidas para uma mesma área de serviço ou para um conjunto que se sobressaia de modo majoritário poderá exceder o número três. - Artigo 48 - Vai contra práticas indevidas de concentração, impede a integração vertical ou horizontal de atividades ligadas, ou não, à comunicação social. Este artigo defende a desmonopolização e a defesa da concorrência. - Artigo 161 - Trata da adequação à lei. Determina que os donos de licenças que não estavam de acordo com os artigos na data da aprovação da lei deverão se ajustar às suas disposições em um prazo máximo de um ano, desde que a autoridade reguladora estabeleça os mecanismos de transição. Vencido o prazo, serão aplicadas medidas que correspondam a cada caso de não cumprimento. Esta é a única situação que permite a transferência de licenças.
Interesses presidenciais O governo dos Kirchner, que deveria ser o maior exemplo de democratização, desrespeita a lei de acordo com seus interesses
E
duardo Anguita foi, durante muitos anos, o apresentador principal de um programa diário na parte da manhã da programação da Rádio Nacional. “Como sempre tive uma visão autônoma do jornalismo, não alinhada com o governo ou com algum coletivo político, acredito que a missão do jornalista é indagar, questionar, colocar tudo em dúvida e não se contentar apenas com um lado, e sim, tentar conhecer todos eles”, ele conta. Por ter esta visão, o locutor frequentemente debatia o tema dos rombos político e econômico na Argentina, principalmente nos últimos anos. Depois de uma série de dificuldades no seu programa em 2012, ele decidiu informar as autoridades da rádio que seu ciclo ali havia chegado ao fim. Os contratos da Rádio Nacional são anuais e vencem em dezembro, sem uma garantia de renovação. “Mas todos sabem que, se não são muito oficialistas, correm o risco de não ter o contrato renovado. Quando anunciei que sairia, ninguém me pediu para ficar. Minha sugestão foi recebida com silêncio, apenas. Não é que eu não tivesse uma boa relação com as autoridades da rádio, nunca fui diretamente pressionado, nem nada. Mas sabemos que é uma rádio que depende administrativamente do governo, de tal modo que não é apenas o que pensa, diz ou executa a diretora da rádio, e sim, a presidente do país”, explica, contrariado. Pouco tempo depois, o chamaram para comandar um programa semanal nas tardes de sábado, o que, na sua opinião, é um ótimo horário, mas absolutamente marginal. “O mantenho por ter muito carinho pela Rádio. Esta situação é uma demonstração clara de como é a realidade. As coisas só mudarão com melhores normas e resultados. Não podemos dizer que a rádio e a televisão estatais possuem uma pluralidade de vozes ideal”, lamenta o locutor.
A lógica desta disputa é uma lógica de poder. Todo meio de comunicação é visto como recurso de poder para a política Desde o início do governo dos Kirchner, eles adquiriram a consciência de que o poder midiático em geral é seu adversário e, por isso, construíram sua própria comunicação, de uma maneira muito desorganizada e sem qualidade, na opinião do jornalista e escritor argentino Eduardo Blaustein. Para isso, utilizam o canal estatal de televisão (a TV Pública), a Rádio Nacional e, através de boas relações com alguns grupos de comunicação, também utilizam meios privados. Para o jornalista, a vontade do governo de armar a sua própria comunicação é legítima, de maneira a não se conformar com a oposição vinda da imprensa em geral. Mas sobre os meios governamentais, ele afirma que “se o grupo Clarín não possui um monopólio, o governo muito menos, afinal a audiência do Canal Estatal, por exemplo, é baixíssima, assim como quase todas as vendas das empresas aliadas”. Assim, a afirmação geral de que “o governo quer substituir um monopólio privado por um monopólio estatal” é mentira, pois ele não tem este poder. Sobre um dos meios que o governo utiliza, a TV Pública, o editor chefe da revista argentina Notícias Edi Zunino afirma que sua programação, hoje, é a de melhor qualidade nestes 30 anos de democracia. “Há produtos de bom nível, a
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qualidade da transmissão é superior, há uma estrutura muito madura em quesitos estéticos e técnicos, e a produção está muito sofisticada”, ele opina. Sobre a programação, o professor e pesquisador de meios e do direito à comunicação Glenn Postolski fala de um programa muito específico e comentado, o 678, que critica os meios de comunicação diariamente no canal estatal. “Ele pode ser muito criticado, mas fez temas passarem da análise intelectual de artigos e de encontros de profissionais de comunicação à discussão por pessoas comuns, em situações do dia a dia. Claro que tudo o que faz é de maneira televisiva, sem nenhuma pretensão acadêmica, sendo sensacionalista e visando a audiência. Por mais que o faça de maneira parcial, popularizou o debate da lei, por exemplo, o que é louvável”, reconhece o professor. Também sobre a programação da TV Pública, o jornalista e professor de gestão de meios José Crettaz critica a utilização da transmissão dos jogos de futebol nacionais como forma de propaganda. Desde 1992, o grupo Clarín e a empresa Torneos y Competencias detinham os direitos através de um contrato de exclusividade com a Asociación del Fútbol Argentino (AFA), que duraria até 2014. Para superar uma crise causada por dívidas dos clubes, no início de 2009, a Asociación tentou renegociar o contrato pedindo a triplicação de seu valor já que, na mesma época, recebeu uma proposta do canal estatal. Os grupos recusaram a proposta e a AFA, consequentemente, renegociou as transmissões com o canal do governo. Após este novo contrato, o governo lançou a campanha Fútbol para todos, já que os direitos de transmissão passaram para um canal que levaria o esporte gratuitamente para todo o país. Esta política se aproxima com a conhecida como “pão e circo”, na qual o governo gasta muito com entretenimento e se vangloria da “democratização de um bem cultural”, como afirmou o senador peronista Daniel Filmus em uma coletiva de imprensa. Além disso, em vez de lucrar com venda de publicidade, os jogos são utilizados como forma de propaganda, afirma Crettaz, pois antes, durante e depois das partidas há a veiculação de mensagens partidárias, não só governamentais, como campanhas de vacinação ou difusão de obras, mas diretamente de propaganda, com difamação e ataques a opositores políticos, e até a jornalistas, em muitos casos. O professor comenta que este é um caso único no mundo, no qual o governo possui os direitos de transmissão televisiva de futebol e os utiliza apenas de acordo com seus interesses. Controle indireto Existe um comentário geral de que o governo argentino censura tanto os meios oficialistas quanto os opositores. É verdade que há uma pressão através da distribuição de publicidade oficial e da falta de acesso à informação pública, mas não podemos dizer que realmente há censura. O especialista em concentração de meios e políticas de comunicação Martín Becerra explica que, para ele, esta prática do governo contradiz os melhores padrões da liberdade de expressão e dos direitos humanos. O governo tem uma responsabilidade pela causa defendida na lei, mas os grupos concentrados que resistem, logicamente, a qualquer regulação que diminua sua posição no mercado também têm. Então, entre alguns que não querem cumprir a lei e o governo que faz uma aplicação desproporcional da política de meios, existe um cenário que não é de censura, mas de restrições a uma agenda ampla de liberdade de expressão.
Becerra afirma que “o governo contradiz o artigo da lei que diz que os meios de difusão estatais devem ser públicos e não-governamentais, e devem estimular a pluralidade política, social, religiosa e étnica. A Cristina, longe de fazer isso, utiliza seus meios como um dispositivo de propaganda governamental”. Esta decisão gera desinteresse nas audiências massivas, mesmo que também exista um grupo menor muito fiel a esse tipo de mensagem, “que é uma mensagem de fé política ao governo”, explica o pesquisador. Resumindo, o uso dos meios governamentais subestima a capacidade intelectual da audiência ao impedir que ela forme seus próprios critérios através do contraste de diferentes mensagens. Por mais que o governo consiga ter uma minoria muito mobilizada e atenta às suas mensagens, também há uma audiência massiva que não compactua com o uso exagerado dos meios estatais, fazendo com que essa autopropaganda excessiva possa ser contraproducente. No início de setembro de 2013, o jornalista e professor de gestão de meios José Crettaz acusou o governo de Cristina de ser imparcial na distribuição de pauta oficial em uma nota no jornal La Nación. Depois de extensa investigação, ele conseguiu provar que cinco empresas midiáticas (Veintitrés, Telefé, Uno Medios, Página/12 e Albavisión) receberam mais de 41% dos $1833,6 milhões investidos em propaganda, entre o segundo semestre de 2009 e o primeiro semestre de 2012. Com a exceção de duas, estas empresas têm níveis baixíssimos de audiência ou circulação, e todas elas têm políticas editoriais alinhadas ao governo. O grupo Clarín é o sexto no ranking, mas praticamente não recebe publicidade oficial desde 2011. Esta repartição arbitrária foi denunciada e condenada várias vezes pela justiça. Edi Zunino, editor chefe da revista argentina Notícias, comenta que os Kirchner foram os que mais fortemente manejaram o prêmio e o castigo a partir da publicidade oficial. Ele conta que “a diretoria da revista entrou na justiça por ter sido discriminada pelo Estado, que não havia colocado nenhum anúncio até 2012. Só em 2013, após a Corte Suprema de Justiça afirmar mais uma vez que o governo deveria começar a cumprir, eles começaram a modificar sua estratégia, mas, ainda assim, não de maneira equitativa”. Supõe-se que a finalidade da publicidade oficial não é financiar meios de comunicação e sim, publicitar os atos do governo de maneira que alcance as audiências mais massivas possíveis, o que não acontece. Para muitos, a Lei de Serviços Audiovisuais soa como uma intenção governamental de destruir um grande conglomerado opositor que saiu do controle, a partir da criação de outro, de amigos do governo. Zunino explica: “enquanto a lei não se aplicou devido ao julgamento dos artigos questionados pelo grupo Clarín, o governo atuou como sempre, promovendo os meios privados aliados, fazendo com que eles comprassem outros meios, e até chegando ao despropósito de comprarem produtoras, a fim de tirar determinados condutores do ar”. Assim, este financiamento amigo também pode acabar sendo visto como um possível novo problema, pois se os meios financiados não cumprem com uma visão específica, existe uma ameaça de retirada dos investimentos, deixando-os à sua própria sorte, o que é uma maneira indireta de censura, como acredita Zunino. A máxima dos administradores do Estado é “se eu te pago, eu escolho”. Em cidades menores, a relação dos governantes com os meios de comunicação é muito estreita, quase de apropriação e de violação. “Se não me servem, não dou um peso e acabou”, exemplifica Zunino, fazendo com que os meios de comunicação do interior estejam sempre à beira de fechar.
Infográfico divulgado pelo jornalista José Crettaz, comprovando a divisão arbitrária da pauta oficial entre 2009 e 2012
Interesses próprios Até então, o governo de Cristina não demonstrou compromisso com uma real democratização da comunicação como pede a lei. A única mudança vista foi uma vocação que nunca existiu na história da Argentina, de transgredir a regulamentação anterior questionando a concentração da propriedade e impulsionando uma regulação muito respeitosa com a liberdade de expressão. Infelizmente, ao mesmo tempo, ele apresenta práticas que o distanciam de uma agenda de ampliação da liberdade de expressão, em muitos casos inclusive desobedecendo a norma que impulsionou. Para Zunino, existem duas loucuras em disputa na briga entre o governo e os grandes grupos. “Mas uma é pior, por ser o Estado da nação argentina, aquele que maneja os recursos econômicos, o dinheiro público, a autoridade, a possibilidade de reagir, de intervir e de decretar que algo pode ou não ser feito. O que, claro, não converte o Clarín em um santo”, explica. Para o professor de jornalismo e democracia na Universidade Austral de Buenos Aires, Fernando Ruiz, “no fundo, a lógica desta disputa é uma lógica de poder. Poder puro. Os meios são recurso de poder para a política, na concepção deste e de outros governos. E não existe um respeito doutrinário pelo funcionamento dos meios, eles são percebidos como fatores de poder na Argentina, ou seja, ou se combatem, ou se cooptam, procuram dominar e controlar. Ou ficam do lado do governo, ou são opositores”. Como estamos em um contexto democrático, ainda existe um respeito pela autonomia de cada grupo, mas se há a possibilidade de corrompê-los e fazê-los mudar de lado, será feito. O professor é ainda mais objetivo: “é como se fosse um outro partido político. Esta P 14 • Novembro de 2013
é a lógica da Argentina, e não a da pluralidade de vozes”. Muitas pessoas, hoje, clamam por este direito, mas quase nunca o pedem também para os meios estatais, que também deveriam ser abertos e ser o modelo a ser seguido. Ruiz explica: “efetivamente, se os meios estatais não são abertos, para que os queremos? Já temos os outros meios, afinal. Para que vamos gastar mais dinheiro com um meio que não vai ser a impressão da sociedade? Se vai funcionar como mais uma voz influenciada por interesses próprios, convém mais gastar este dinheiro com os meios privados e ainda escolher o que ver ou ouvir. Neste panorama, para que queremos os meios públicos?” Na visão do jornalista e escritor argentino Eduardo Blaustein, há dois lados paralelos na relação do governo com a lei: “de um lado, há quem quer esta lei porque efetivamente quer que o Clarín, entre outros grandes grupos, tenha menos poder, seja menos dominante, e se desprenda de algumas de suas licenças, para que o poder midiático seja mais equilibrado, o que é saudável. Mas, além disso, também há o interesse particular do governo em causar um dano econômico ao grupo, para deter seu poder”. Existe um interesse próprio, quase empresarial, nesta disputa. De acordo com o jornalista José Crettaz, a vontade que o governo tem demonstrado não é para democratizar, e sim, concentrar, para que se escute apenas sua voz. Pro bem ou pro mal, atuando como queira, este governo sancionou a lei. Por mais que ela seja para benefício próprio, ela está aí e, quem sabe, depois venha outro governo que a aplicará melhor, de maneira realmente mais democrática. Pelo menos, é o que Eduardo Blaustein gosta de acreditar.
A problemática argentina A discussão sobre a comunicação no país também colocou em destaque as falhas da imprensa e dos jornalistas
O
escritor e jornalista Eduardo Blaustein nasceu na Argentina, mas teve que se exilar em Barcelona durante o regime militar. Desde então, passou a observar melhor a situação do país, principalmente por possuir uma visão externa, e sempre considerou a tradição jornalística do país muito rica, diversa e potente. Mas analisa o momento atual como estranho e cheio de paradoxos. “Afinal, por mais que estejamos comemorando quão saudável é esta discussão, a situação de enfrentamento de interesses provocou um empobrecimento do jornalismo, já que, no geral, ou você está de um lado ou do outro”, ele explica. O que existe no momento é uma polarização do jornalismo, no qual os aliados do governo censuram toda crítica a ele e insultam o Clarín, e os que estão do outro lado fazem o inverso. “O que temos é um momento de branco e preto, no qual o jornalismo é aplicado como uma arma de combate muito visceral. As coisas mais interessantes estão circulando principalmente através das pessoas que possuem um pouco de autonomia em blogs, por exemplo”, opina o escritor. Os pesquisadores acreditam que a Lei de Serviços Audiovisuais solucione o panorama de empobrecimento do jornalismo, além de garantir pelo menos o início de uma real democratização da comunicação. Mas até agora, a norma não se aplicou. A esperança geral é que, após a determinação da sua constitucionalidade pela corte, ela passe a ser totalmente cumprida. O especialista em concentração de meios e políticas de comunicação Martín Becerra diz que “é claro que ela não é perfeita e precisa de melhorias, mas eu espero que exista uma etapa na qual as condições do exercício da liberdade de expressão e do direito à comunicação se ampliem e melhorem. Para isso, será necessário que o governo mude sua política de meios e comece a respeitar a lei, e que exista um marco de forças políticas que incluam o oficialismo e também as forças da oposição. O que é possível, desde que respeitem a norma e a sentença da corte”. Além da lei, para realmente acontecer uma melhoria na liberdade de expressão, é necessário ter em consideração a convergência entre internet, telecomunicações e meios audiovisuais. “Também deveria haver uma revisão de certos pontos muito rígidos e inflexíveis da lei, como o da concentração de meios, que impede que um operador de cabo tenha mais de um sinal de transmissão, as cotas de produção própria no interior do país que, devido ao tamanho de algumas localidades, são impossíveis de cumprir, os mecanismos nos quais a lei proíbe a transferência de licenças que são difíceis de respeitar no mercado audiovisual”, opina Becerra. O desejo geral é que tudo isso repercuta em um sistema de meios mais diverso, seja na quantidade de proprietários ou na diversidade de organizações que participam, com maior produção e valorização no interior do país. Solução? Na opinião do editor-chefe da revista argentina Notícias Edi Zunino, “para haver pluralidade, há que encontrar consensos. E isso é o mais difícil de tudo. É preciso induzir as empresas privadas a não serem puramente escravas do mercado, e serem permeáveis às problemáticas sociais, o que é tão utópico quanto a divisão do espaço radioelétrico em três partes. Talvez com modificações legislativas o Estado tenha que impor maior variedade, e promover a integração social. Se o Estado não faz, quem faria?” O professor de jornalismo e democracia na Universidade Austral de Buenos Aires, Fernando Ruiz, define a democratização através de três indicadores: a pluralidade, a institucionalização da crítica e um embase informativo comum.
A situação de enfrentamento de interesses provocou um empobrecimento do jornalismo, já que ou se está de um lado ou do outro Para ele, a pluralidade deve ser federal, social e ideológica. “Quando digo pluralidade social, digo de cima para baixo, de baixo para cima. Os meios na Argentina são muito classe média, muito. Não há setor popular nos meios. Oficialista ou de oposição, não há expressão popular. Já no ponto de vista da pluralidade federal, a Argentina é um desastre, pois está tudo centralizado em Buenos Aires. Minha campanha, absurda, é que a TV Pública saia de Buenos Aires e vá a uma província menor, mais real, menos bonita e utópica”, ele explica. Com institucionalização da critica ele fala do direito dos meios de criticarem a todos os poderes, sejam públicos ou privados. Para Ruiz, se desde meios relevantes, não marginais, se possa criticar todos os poderes, desde o governo aos poderes religiosos e empresariais, teremos um alto grau de democratização. E quanto à existência de um embase informativo comum, ele afirma que devemos ter um jornalismo profissional. “É muito difícil existir democratização sem jornalismo profissional. Uma sociedade de propagandistas é uma sociedade bruta. Precisamos de jornalistas profissionais que sejam confiáveis e que falem acima de suas opiniões pessoais. É disso que a Argentina precisa para democratizar a comunicação”, na sua opinião. A modificação da mentalidade argentina já aconteceu nestes últimos quatro anos. Não tem como voltar atrás, pois hoje a ideia de que a concentração de um grupo de comunicação não é boa está revelada e espalhada. E, ainda mais, está claro que não é que não seja boa apenas para o governo, e sim, não é boa para o público. O jornalista e escritor Eduardo Blaustein afirma que, no fim das contas, “a lei foi valiosa pelo debate que causou. Em 20 ou 30 anos, todos se lembrarão da discussão sobre ela, pois foi muito extensa e intensa, o que já é saudável. Para mim, aparentemente, este é o governo que mais tem uma vontade democratizadora em relação à comunicação. Então se este não for o primeiro passo, não haverá nenhum em um futuro próximo”. O medo dele e de muitos outros pesquisadores de comunicação argentinos é que, se não for agora, vai ser complicado que a ideia de democratização se concretize mais pra frente, e a luta teria que começar do zero, mais uma vez.