A VIDA PÓS-APOCALÍPTICA DE CÉZAR

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A VIDA PÓS-APOCALÍPTICA DE

cezar TULIO CAIAFA 2


01 MORADA

Eu queria poder sorrir mais, de verdade. Queria poder gargalhar como as crianças na sua mais tenra idade gargalham, porém, quando tento, só sai um ruído rouco que é logo sugado pela atmosfera desesperada do lugar onde vivo. Por isso, não costumo rir muito. Não é que eu não aprecie os risos e sorrisos, é porque eu simplesmente não consigo fazê-los aparecer em meu rosto. E, também, não há muita coisa que nos leve a sorrir por aqui. Não nos dias de hoje. Não que o lugar que eu viva seja o pior do mundo. Não é isso, tanto que se não fosse por ele, o enorme estádio de futebol que vivemos que, antes de ser chamado de Morada – como é chamado agora

recebia

o

nome

de

Estádio

Morumbi,

todos

nós,

os

sobreviventes do Ataque Z, estaríamos mortos ou se arrastando pela cidade em ruínas à procura de cérebros para devorar. Morada não é a causa de nossa tristeza nem de longe. O que dá origem ao nosso sentimento de aprisionamento e nos faz sentir esse vazio enorme é o que nos cerca fora de Morada, o que nos espera fora dos portões. Mas, é claro como água limpa, que aqui não é nenhum céu. Vivemos com o pouco que conseguimos plantar e colher, e com os poucos remédios que conseguimos encontrar através das expedições suicidas

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para fora de Morada, e não tem nada de alegre nisso. Nada que te faça querer acordar no dia seguinte para ver a mesma coisa de sempre: os seres-humanos restantes no planeta Terra lutando para sobreviver à Grande Pandemia. Tal pandemia que nem sabemos de onde veio. Na verdade, eu não sei como toda essa história de mortos-vivos andando entre os humanos começou. Não sei de onde veio, nem como veio. O vírus pode ter vindo ao vento, pode ter sido depositado na água. Na escola improvisada que eu e todos os outros jovens da minha idade frequentamos a professora de História já deve ter falado sobre isso, porém eu nunca presto atenção no que ela diz. Nunca prestei. Há coisas piores fora daqui, do lugar seguro onde os sobreviventes,

me

incluindo,

vivem.

Coisas

que

merecem

mais

preocupação da nossa parte. Há coisas que podem te matar e comer seu cérebro em questão de segundos. Fora daqui, há zumbis. Por isso e por muito mais, eu não sorrio muito. Mas há sempre aquilo – ou alguém – que te faz esboçar uma sugestão de sorriso no rosto.

··· – Sente falta deles? – meu avô me pergunta com a voz entrecortada por um chiado profundo, seguido de tosses estridentes. Ele está deitado na cama que fica no canto escuro do cômodo que chamamos de casa, debaixo de uma janela-basculante, da mesma forma de sempre: com a barriga virada para cima e as mãos trançadas em cima do peito, como se estivesse esperando a chegada da Morte. Meu avô sofre do mal que, ultimamente, vem assombrando a vida da população de Morada: a infecção bacteriana crônica, que

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só perde, nos dias de hoje, para o Grande Vírus, que é capaz de te transformar numa coisa não muito civilizada.

Ele me faz a pergunta enquanto encaro o meu almoço, um prato de sopa de batata-doce que está posto à mesa, à minha frente, sem muita vontade de colocar aquilo pra dentro. Sei a quem ele se refere quando diz “eles”. Refere-se a meus pais, que há alguns anos atrás foram convocados para proteger os portões de Morada contra um ataque repentino de mortos-vivos. Eles, assim como os pais de muitas outras crianças, foram mortos, me deixando somente na companhia de meu avô, que na época havia descoberto que estava com a infecção bacteriana. Eu agradeço aos céus por meu avô, porque se não fosse por ele, eu seria como as outras crianças que ficaram órfãs e tiveram de ser levadas para A Casa dos Sem-Lar, que não é um lugar muito agradável pelo fato de que você deve dividir até mesmo suas roupas de baixo com seus colegas de cômodo. Mas, mesmo tendo a companhia do meu avô, não era isso que nos daria uma vida dali pra frente. Como ele havia contraído a doença e estava debilitado, eu fui obrigado a arrumar uma forma de nos alimentar. Com nove anos, eu estava à procura de um trabalho. Hoje posso dizer que, de acordo com a qualidade de vida dos outros cidadãos de Morada, a nossa é mediana. – Não, vovô – respondo. – Não há porque sentir falta deles e, além do mais, eu não tenho mais idade para isso. Ele me encara com seus olhos escuros como ébano, depois assente com a cabeça devagar. Ele percebe que eu ainda olho para ele.

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– Eu perguntei isso por que... – pausa para tossida, depois continua: – ...eu percebi seu olhar para o prato de sopa, e queria lhe dizer que ela não tem culpa de nada. Por um segundo, pensei que ela fosse saltar do prato e sair correndo.

Ele dá uma risadinha seguida de tosses, e eu consigo esboçar um sorriso. Meu avô é um dos únicos que conseguem realizar a proeza de me fazer sorrir. Nós ficamos nos observando por alguns segundos até ele falar novamente. – Cézar, venha cá – ele diz, me chamando para perto dele. – Isso, chegue mais perto. Depois que eu me abaixo e me sento ao pé da cama, ficando a centímetros dele, ele diz: – Eu quero que você realmente seja feliz, sabia? Não quero que você perca sua juventude tentando achar um jeito de me ajudar, querido. Eu sou um caso perdido. E você, tão jovem, tem uma aparência tão séria... Sei que nos dias de hoje é quase impossível se divertir, porém nós devemos ver também o lado bom das coisas da vida. E eu daria tudo do resto que tenho pra te ver sorrir pelo menos uma vez por... – ele começa a tossir incessantemente e eu preciso correr até a pia e encher um copo com água. Eu o sento na cama e ele bebe a água, mas logo depois vem outra sessão de tosses que o faz cuspi-la. Levanto seus braços, agoniado por não poder fazer nada mais eficaz. Ele somente me pede para que eu espere, enquanto tosse. Eu permaneço segurando seus braços para cima e espero. Aos poucos a tosse vai amenizando até que resta somente o ruído rouco

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da sua respiração. Sei que depois disso ele não consegue falar mais nada, portanto digo a ele: – Eu não vou te abandonar, vovô, nunca. Enquanto eu viver vou permanecer aqui, ajudando o senhor. Não vou te entregar assim, de bandeja, para a Morte. Não adianta o senhor dizer essas coisas pra mim, eu não vou deixar que você morra. Não tem mais nada que me faça ter vontade de viver nesse lugar além do senhor. O senhor é minha vida. Parece que depois de eu dizer isso uma nuvem de tristeza paira sobre seu rosto. Ele não reage nem responde, apenas se vira para o canto da cama. Fico com medo de ter dito algo de errado, e sei que disse. Mas essa é a verdade, querendo ele ou não. Ele é a minha vida e eu farei de tudo para preservar a vida dele o tempo que for possível.

··· Depois de terminar a sopa, coloco o prato na pia e me despeço do meu avô com um beijo na sua cabeça calva. Ele não reage, portanto presumo que dormiu. Saio de casa e caminho pela ruela estreita que é delimitada por barracões semelhantes ao nosso. O chão, que antes era gramado, agora é terra seca. Olho para longe, para o horizonte, enquanto caminho, mas não há para que olhar. Apenas para a arquibancada que cerca o campo, vazia, sem até mesmo os assentos, que foram retirados por nós e adaptados para cadeiras que usamos em nossas

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casas. Reflito sobre quantos outros campos de futebol semelhantes à Morada foram usados como abrigo para os sobreviventes. Sei que há mais outros campos que foram usados porque meu avô me contou sobre isso. Depois do Ataque Z, quando os mortos-vivos surtaram e atacaram, época que meu avô era ainda adolescente, os líderes armados

dos

Estados

viram

que

a

única

forma

de

salvar

os

sobreviventes não contaminados com o Grande Vírus era isolarem-se em locais que comportassem um grande número de pessoas. Os enormes estádios foram a primeira coisa que pensaram, e assim foi até os dias de hoje. Este é o nosso lugar seguro, nossa casa. Não temos mais nada fora daqui, o que há fora dos portões dos campos não nos pertence mais. Somos escravos das coisas que habitam fora daqui. Chego em poucos minutos ao centro de Morada, meu destino, e me dirijo à uma grande construção inacabada, a Casa dos Sem-Lar. Espero uns minutos encostado à parede, mas logo entro em estado de ansiedade, pois não sou uma pessoa que gosta muito da ideia de esperar os outros e odeio aqueles que marcam um horário e atrasam. Porém, Dani insiste em demorar sempre, portanto estou me acostumando com isso. Quando

eu

a

avisto

saindo

pela

porta,

não

dou

um

cumprimento civilizado, apenas solto: – Por que diabos você faz isso? – pergunto a ela. – Oi pra você também, sir Cézar, imperador de Morada – ela ri e em seguida me dá um soco no braço esquerdo. – O que você quis dizer com “isso”?

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– Com “isso” eu quis dizer “demorar” – eu esclareço carrancudo. – Você sabe que eu odeio esperar. – E desde quando eu ligo para o que você odeia ou deixa de odiar, garoto? – ela diz em meio aos risos. Enquanto ela ri, observo seu rosto, em especial seus olhos, que se comprimem enquanto sua risada encantadora soa. Seus cabelos estão soltos e caem como uma cascata de cachos negros que vão até a metade das costas. Ela é linda, mas esconde essa beleza agindo de um jeito meio durão demais. Lembro-me do dia que a conheci no Centro de Treinamento Intensivo. O jeito com que ela manuseia a katana me faz delirar, e eu ficava horas e horas a fio a observando treinar, até que um dia ela percebeu meu olhar vidrado e me chamou para conversar. Depois desse dia viramos grandes amigos, os quais amigos inseparáveis somos até hoje. – Estou dizendo, se o Sargento Ladeira nos der uma bronca eu nunca mais te faço companhia no caminho para o treino – eu digo, me pondo a andar, fazendo-a ser obrigada a me acompanhar. Eu sei, no fundo, que nunca teria coragem de deixar Dani, mas eu preciso impor respeito. Porém, com ela isso não funcionaria nem seu fosse um morto-vivo. Ela é o tipo de pessoa que não aceita ordens vindas de ninguém. Isso eu presumo que seja por causa do estilo de vida que ela levou após a morte dos pais dela, que morreram do mesmo jeito e no mesmo ano que os meus, e por ela ter sido obrigada a viver depois do incidente na Casa dos Sem-Lar e lutar para conseguir o que tem hoje. Acho que isso tudo a levou a ser assim. Mas uma coisa que eu admiro nela é que, mesmo tendo passado por tudo o

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que eu passei e ainda um pouco mais, ela acha mil motivos para sorrir. De onde ela os tira eu não sei. – O Sargento Ladeira é um babão, isso sim – ela cospe. – Nunca gostei dele e quando soube, há três anos, que era ele quem iria nos treinar até quando fizéssemos dezoito, eu quase arranquei os cabelos. Aquele velho resmungão... URGH! Eu entendo o porquê da antipatia que Dani sentia pelo Sargento Ladeira, só não consigo sentir o mesmo que ela. Ele é um homem carrancudo e exigente, mas também era para ser assim, pois o velho é o líder militar de Morada, é quem inspeciona as armas dos outros soldados e é quem treina os adolescentes de 13 a 17 anos para o Dia D, que ocorre semestralmente, e que consiste em sete jovens de entre 16 e 17 anos, dentre os que são treinados por Ladeira, que são sorteados para irem numa missão suicida em busca do que quer que eles peçam. Geralmente, eles pedem para que os jovens vão atrás de remédios ou de objetos de construção para que possam ser usados para a melhoria da vida dos cidadãos de Morada. Porém, a chance de voltar vivo de uma expedição dessas é quase que de zero por cento. Eu conheço várias famílias que perderam seus filhos nessas expedições. E, em muitas delas, nenhum dos jovens retorna, tornando a missão um verdadeiro fracasso. Por isso, a ideia de eles nos enviarem para fora dos portões e enfrentar os mortos-vivos me causa arrepios. Porém, se alguém é sorteado no Dia D, é obrigado a ir, porque se não for, recusando a convocação, é “deserdado”, que significa que você não é mais considerado cidadão de Morada, tendo que lutar mais ainda para poder sobreviver.

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– Cézar... – Dani me chama. Ela está do meu lado, e estamos andando, ainda a caminho do treino diário. – O que foi? – respondo, me virando para ela. – Você acha que nós vamos algum dia presenciar a descoberta da cura? – Ela pergunta séria. Eu respiro fundo. – Não seja boba, Dani. Isso de “cura” não existe. É esperança besta que as pessoas inventam. O mundo está ruim e só vai piorar. Só isso. Ela suspira, depois volta seu olhar para o horizonte. Depois de um tempo, se vira na minha direção novamente. – Eu gosto de ter esperança, sabe? É isso que me faz querer sorrir. Essa esperança é meio que algo a que se prender. É algo que te segura, algo que você almeja. E você, sir Cézar, acaba de me fazer ter um pouco menos de vontade de viver. Ela ri depois de dizer isso, o que mostra que não falava sério. Eu esboço um sorriso sem-graça. – Olha, estamos com sorte – ela diz, apontando para longe. Sigo seu dedo e vejo que ela aponta para o portão de entrada Centro de Treinamento Intensivo, o lugar para o qual estamos nos dirigindo. Entendo o porquê de ela ter dito que estávamos com sorte. Os

portões,

que

raramente

ficam

abertos,

estão

escancarados.

Corremos até eles antes que se fechem, e assim entramos no Centro. O Centro de Treinamento Intensivo é para onde os jovens de 13 a 17 anos são enviados diariamente até atingirem a maioridade. Lá

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nós aprendemos a fazer uso de armas variadas, sejam de fogo ou manuais. Temos que passar também por um duro treino físico. Isso tudo para que nós, o povo de Morada, estejamos prevenidos caso um ataque zumbi repentino aconteça e também para os jovens que forem sorteados no Dia D saibam pelo menos como atirar uma faca de uma forma que atinja o alvo e o debilite. Hoje, porém, é um dia atípico. Eu, Dani, e todos os sessenta e sete demais jovens estamos ajudando com os preparativos para o tão esperado – por quem eu não sei – Dia D deste semestre, que ocorrerá amanhã. Enquanto ajudo Dani a arrumar a mesa que está posta sobre o palanque, a mesa que será usada pelos líderes de Morada durante a execução do sorteio, eu tento saber o que será que eles pedirão para os jovens daquele semestre buscarem fora dos portões. – Você tem alguma ideia do pedido desse semestre? – sussurro a Dani. – Nem imagino o que seja. – Ela responde. – O que foi que eles pediram no semestre passado mesmo? – Foram sementes variadas – digo. – Os líderes deram um mapa da cidade para eles e circularam um lugar chamado Floricultura Central. Disseram que era lá que eles iriam encontrar as sementes. Lembro que na hora em que eles saíram pelo Portão Principal, uma horda de mortos-vivos os atacou e... – Por que você insiste em chamá-los de “mortos-vivos”? Que coisa mais cafona, Cézar! O nome certo é zumbi! Z-U-M-B-I!

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– Eu chamo as coisas pútridas do jeito que eu quiser, entendeu? – protesto. – Agora, onde eu estava? Ah, sim, no ataque dos zumbis ao grupo do semestre passado... – Não precisa continuar, eu me lembro muito bem dessa parte – ela diz. – Eles são atacados, dois dos sete morrem e os outros cinco conseguem fugir para a cidade. Porém, depois de dois meses, quem volta é só um deles, Marconi Bonini, com as sementes em mãos, porém muito ferido. – Ele agora é rico e mora na área nobre de Morada, só pra constar. – Sim, e foi mais que merecido – Dani acrescenta. Somos repreendidos pelo Sargento Ladeira que passava por ali enquanto falávamos. Para ele, se uma pessoa conversa não produz nada, então, na presença dele, devemos agir como surdos-mudos.

··· Depois de um dia inteiro trabalhando nos preparativos, todos somos levados para a Sala de Inscrição, onde assinamos nossos nomes nas listas para marcar presença e, excepcionalmente hoje, depositarmos nossos nomes na urna do sorteio de amanhã. Meu estômago treme um pouco antes de eu soltar o papel dentro da urna, talvez porque esse é meu primeiro semestre com dezesseis anos e, por consequência, minha primeira inscrição para o Dia D, porém, depois de solto o papel, certo alívio percorre meu corpo. Talvez por saber que as chances de eu ser sorteado são mínimas.

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Despeço-me de Dani com um beijo no rosto depois de deixá-la na porta da Casa dos Sem-Lar. Ela entra e então eu viro as costas e vou embora. Após adentrar o cômodo que eu e meu avô chamamos de casa, percebo que ele já dorme. Faço o mesmo, nem me importando em trocar a roupa. Assim que me deito, caio num sono profundo, pesado e sem sonhos.

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02 SURPRESA

Acordo assustado de meu sono inerte com meu avô tossindo sem

cessar,

uma

tosse

que

é

aguda

e

esforçada.

Levanto-me

rapidamente, corro até a pia e encho um copo com a água que escoa preguiçosamente do cano. Depois que encho o copo até a risca, apresso-me em atravessar o cômodo para dá-lo de beber. Assim que o ajudo, com certa dificuldade, a sentar-se na cama, entrego a água e ele a bebe por inteiro, em goles curtos. Enquanto ele a bebe, semi-acordado, sua tosse vai cessando e eu vou me acalmando aos poucos. Mesmo que esse ato já tenha se tornado rotina, eu ainda temo que um dia meu avô venha a tossir até a morte, assim como já vi acontecer a muitas outras pessoas daqui. A infecção bacteriana, além de te debilitar, abaixa sua imunidade, fazendo-o ficar à mercê de outras doenças, como gripes em geral, que foi o caso dele. Meu avô contraiu uma gripe fortíssima há oito meses e até hoje não se curou dela. Agora, além de estar apodrecendo de dentro para fora por causa da infecção, ele ainda sofre de gripe e, por consequência dela, sofre das tosses incessantes, as quais me põem esse medo. Mas, mesmo assim sendo, ainda tenho esperanças de que um dia ele se cure para que viva uma vida digna, depois de tanta luta contra a doença. Meu avô merece isso mais que tudo e todos.

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Depois que coloco o copo vazio na pia, reparo que ele me fita com os olhos brilhando. Sua tosse já passou por completo, deixando somente o ruído rouco que é emitido quando ele respira, e agora ele está completamente acordado e sentado na cama. Talvez aquilo que escorria de seus olhos fossem lágrimas ou então alguma secreção que deriva da gripe. Não sei dizer ao certo, portanto apenas caminho para perto dele e me sento no chão gelado ao lado da cama, como sempre faço, e deito minha cabeça em seu colo. Ouço, ao fazer isso, o ronco que seu pulmão emite, mesmo estando relativamente longe dele. Inspiro e expiro o cheiro reconfortador de ranço que impregna o cobertor ao qual ele está enrolado. O cheiro de seu ranço me reconforta, talvez porque eu o associe a esse cheiro. Não tinha outro cheiro, porém, para associar a meu avô, considerando que eu não me lembro de ele não cheirar a ranço. Desde que me entendo por gente ele cheira assim, e isso me reconforta. Sentir seu cheiro, sua presença. Sinto gotas de algo cair em minha cabeça e molhar meus cabelos. Elas caem como cascata e pingam como chuva. Seguido delas, ouço soluços que são, sem nenhum sucesso, forçados a parar pelo meu avô. Portanto concluo que minha tese “secreção derivada de gripe” não é válida. O que cai dos olhos do meu avô são lágrimas e, em conjunto com os soluços, formam seu choro. Fico assim por um bom tempo, ouvindo/sentindo seu choro. Não tenho reação quanto a isso. Depois de longos minutos, o choro cessa por completo e o silêncio domina. É ele quem o quebra. – Obrigado – ele sussurra com a voz embargada. – Obrigado, obrigado, obrigado... – ele continua a sussurrar enquanto me agarra

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em seus braços. Eu o abraço de volta, porém não consigo achar as palavras certas. – Não há o que agradecer a mim, vovô – consigo dizer. – Estou aqui para isso, mais nada. Sinto que ele volta a chorar e tento consolá-lo. – Não precisa ficar assim, vai ficar tudo bem. Eu vou conseguir te tirar disso e... – não termino, porque ele me interrompe: – Cézar, você acha mesmo que eu me importo comigo? – ele diz, agora olhando dentro dos meus olhos. – Eu só quero que você largue dessa ideia de me salvar – ele continua. – Não há possibilidade de isso acontecer. Quando ele pronuncia essas palavras, sou eu que começo a chorar. Não gosto quando as pessoas tiram de mim a esperança assim, sem dó. Abaixo a cabeça para que ele não veja as lágrimas escorrendo, porém ele a levanta segurando em meu queixo. Acaricia meu rosto e limpa as lágrimas que, mesmo com minha força para que elas não saiam, insistem em cair. – Cézar, querido – ele começa novamente, procurando agora as palavras certas. – Eu só quero te preparar para algo que está escrito que acontecerá. Eu vou morrer cedo. Por isso, pare de dizer que vai achar um jeito de me ajudar, porque você não vai. Abrace-me enquanto estou vivo, aproveite minha presença para que quando eu morra você não sinta minha falta.

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– Mas, vovô, é impossível – eu consigo balbuciar em meio ao choro. – Eu não imagino meu mundo sem o senhor, não há vida para mim se a sua vida se acabar... Ele me abraça depois que digo isso e em seguida fala: – Não diga isso, Cézar, por favor. Não sabe o quanto me entristece quando diz isso, quando eu descubro que sou o motivo da sua tristeza. Eu quero que você seja feliz, não quero que fique preso a uma coisa passageira como eu. Agora, me prometa uma coisa – ele desfaz o abraço e faz com que eu o encare novamente. – O quê? – eu pergunto, ainda chorando. – Quero que você me prometa que não irá derramar uma lágrima sequer quando eu morrer – ele diz seriamente. – Prometa isso, ande! Sei por que ele quer que eu prometa isso. Ele não quer ser responsável pela minha tristeza. Não quer sentir o peso de estar esquecendo-se de algo quando ele se for. Pensar na ideia de ele “se ir” me desespera, porém eu consigo fazer o que ele me pede. Consigo fazê-lo sorrir, mesmo que uma vez sequer. – Eu prometo, vovô – digo, com a voz firme, ignorando o soluço que se forma em minha garganta. – Eu prometo. Ele sorri e, mesmo que não seja um sorriso de completa alegria, eu me sinto bem. Nós nos abraçamos de um jeito desconfortável por um longo tempo, eu sentado no chão e ele sentado na cama, porém nem damos importância ao nosso conforto. O que eu queria mesmo era que aquele momento fosse eterno.

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··· Conversamos por toda a manhã, meu avô várias vezes parando de falar sem mais nem menos e me observando com um olhar vago. Às vezes, enquanto fazia isso, ele pronunciava um “você não sabe o quanto eu te amo” e eu respondia “eu sei, eu também te amo muito”. Algum tempo depois, antes de eu aquecer a água para que as batatas que nos serviriam como almoço pudessem ser cozidas, meu avô diz subitamente, como se tivesse descoberto que sabia pensar: – Espere um segundo – ele fala. – Você não deveria ter ido à escola mais cedo? Eu sorrio. O bom, velho e esquecido vovô... – A escola está fechada hoje, vovô. Não se lembra de que hoje é Dia D? – Ah, claro – ele diz, como se tudo fizesse sentido agora. – E você está ansioso? – ele pergunta porque sabe que é a primeira vez que participarei do sorteio. – Não, nem um pouco. Antes de colocar o papel com meu nome na urna me deu um friozinho na barriga, mas não estou mais tão assim. Ele me observa. – E não está com medo de ser sorteado? – ele indaga. Eu penso na resposta que darei. “Eu estou com medo?” pergunto a mim mesmo.

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– Não – respondo. – Não há porque ter medo, vovô. Não há chance alguma de eu ser sorteado. Ele continua a me observar, pensativo. Por fim, diz: – Está certo, você tem razão.

··· Assim que termino de comer e recolho o prato vazio do meu avô, ouço alguém bater à porta incessantemente. Jogo os pratos na pia e corro até a porta para encontrar, depois de abri-la, ninguém mais ninguém menos que Dani. Ela me encara incrédula. – Você ainda está com a roupa de ontem? – ela solta quase que berrando, olhando-me de cima a baixo. – Sim – respondo, não entendo a causa daquilo tudo. – E daí? – E daí que nós temos de chegar cedo hoje ao Centro, senão o Sargento Ladeira come nosso... – Ok, eu já entendi, não precisa continuar – eu a interrompo antes que meu avô a ouça. – Espere só um segundo. Eu entro, fecho a porta e ouço-a dizendo que um segundo já passou, enquanto troco de roupa rapidamente. Termino de me vestir, me despeço de meu avô e abro a porta para sair. Antes que eu ponha meu pé fora do cômodo ele me chama. – Cézar – ele diz, e eu me viro. Ele hesita e me encara por longos segundos, mas solta por fim: – Boa sorte. – Obrigado, vovô – eu digo antes sair e fechar a porta atrás de mim.

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··· No caminho para o Centro de Treinamento Intensivo, Dani ressalta o quanto está ansiosa para seu primeiro sorteio no Dia D e eu ressalto minha indiferença quanto àquilo tudo. – E eu estou mais ansiosa ainda para saber o que eles pedirão – ela diz, pela milésima vez. –

Eu já

entendi, Dani

respondo. Ela

me

olha com as

sobrancelhas erguidas. – Pelo jeito você acordou com o pé esquerdo, não é? – ela pergunta. – Não acordei com o pé esquerdo. É que eu não aguento mais você repetindo que está ansiosa para o que vai acontecer hoje. Ela revira os olhos. Depois de uns segundos caminhando calada, ela me pergunta como meu avô está, se ele está melhor, e eu simplesmente digo que ele está na mesma, mas que eu sei que ele conseguirá sair dessa. – Eu sei pelo que você passa – ela conta. – Eu vejo o quanto as enfermeiras da Casa sofrem por causa da Jamie Ranevuë, uma menininha de oito anos que perdeu primeiro os pais para aquele ataque zumbi repentino que os nossos pais também se foram, depois perdeu o irmão, Hector, para o Dia D e ainda, pra ferrar mais a história, foi infectada com a mesma bactéria que seu avô está infectado...

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Reconheço o nome da garota. Dani já falou dela uma vez, mas não me lembro de quando. Ela já havia contado toda a história de Jamie para mim, porém não me lembro da parte do seu irmão. – O que houve com o irmão dela? – procuro saber. – Ah, ele foi sorteado no Dia D a dois anos, eu acho, porém não retornou mais da missão, como acontece com muita gente. Presumiram que ele tinha morrido. – Minha nossa... – é o que consigo dizer, devido à minha surpresa quanto ao tamanho da sorte de Jamie. – Por isso eu digo – ela fala – que você deve sorrir mais, porque existem pessoas que estão muito piores que você. Eu vi pessoas assim hoje de manhã, quando ajudei as enfermeiras a levarem a Jamie à Sessão Hospitalar. Pessoas que estão entrando em estado de decomposição mesmo estando vivas... – Ok, Dani, eu entendi. Vou tentar sorrir mais, prometo. Ela sorri. Vira a cabeça para o lado e olha para o horizonte. – Olha – ela fala, ainda olhando para o horizonte, e eu sei que ela fala comigo. – Eu refleti sobre aquilo que você me disse ontem e, realmente, é uma esperança boba minha. Agora, me escute, não quero ver você assim, todo pra baixo, triste. – Ela para de andar e entra na minha frente, me forçando a fazer o mesmo. Dani põe as mãos nas minhas bochechas e nivela nossos olhos para que eles estejam no mesmo patamar. E então continua: – Mesmo se o pior acontecer, eu não quero te ver assim. Você deve entender que a vida é isso mesmo, Cézar. A vida é um grande jogo de perdas e ganhos, e nós não devemos nos render às perdas

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porque elas podem se tornar nossa prisão. Você tem de se acostumar com isso, ok? – Ok – respondo vagamente. Ela caminha na minha direção e me abraça forte. Eu retribuo o abraço e afundo meu rosto em seus cabelos, aspirando o cheiro deles. Depois do abraço, ela me põe à sua frente. Vejo que ela chora e movimento minhas mãos na direção de seu rosto, no intuito de limpar as lágrimas que escorrem, porém ela recua. Eu faço o mesmo e observo ela limpar seu próprio rosto. Enquanto limpa, diz: – Prometa que vai aceitar o fato de que seu avô pode morrer a qualquer momento. Eu a encaro, o rosto queimando, fazendo força para não abrir a boca e chorar. – Você precisa fazer isso, Cézar – ela fala em tom de súplica. – Prometa isso pra mim, anda! – Eu... – começo a falar, com a voz embargada. Pigarreio e tento novamente. – Eu prometo Dani. Vou tentar aceitar isso. Não aguento segurar mais e deixo as lágrimas rolarem. Ela me abraça novamente e nós ficamos estáticos por um tempo. Ela quebra a estática. – Muito bem, agora vamos – ela diz, me pondo a caminhar junto dela. – Chega de choro. Eu faço que sim com a cabeça e limpo as lágrimas, respirando fundo. E assim, abraçados, caminhamos em direção ao Centro de Treinamento Intensivo.

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··· – Ainda estamos com sorte, olha – Dani diz ao ver o portão do Centro aberto, assim como ontem. – Acho que o nome disso não é “sorte” – eu digo – e, sim, “Dia D”. – Nem me fale, não sabe o quanto estou ansio... – ela para de falar assim que vê o olhar que jogo para ela. Ela ri. – Não sabe o quanto estou A-N-S-I-O-S-A! – ela soletra em meio aos risos, jogando as letras na minha cara. – Meu Deus, qual a idade desse ser mesmo? – eu pergunto irônico. – Quatro anos? Será mesmo que ela vai participar do sorteio sem atrapalhar as pessoas de ouvirem o Sargento Ladeira falar os nomes dos escolhidos? – Engraçadinho – ela fala. Entramos pelo portão e nos dirigimos diretamente para as cadeiras que estão posicionadas em frente ao palanque, onde estão sentados à mesa – que foi arrumada por mim e por Dani – os líderes de Morada, tanto do Conselho quanto dos Armados. No meio da mesa está o governador de Morada, Augusto Tameirão, e na extremidade direita está o Sargento Ladeira. Eles são os únicos dos que estão sentados à mesa que conheço, portanto nem me preocupo em reparar nos outros. Os outros meninos e meninas da minha idade, que ocupam as primeiras sete fileiras de cadeiras, estão em um verdadeiro alvoroço. Eles apontam para a urna de vidro que está posta no centro do palanque enquanto conversam. É difícil achar um lugar vago, mas

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depois de muito procurar, eu e Dani conseguimos nos sentar na terceira fileira. E bem em tempo, porque assim que sentamos Augusto Tameirão se levanta de seu lugar e toma o microfone. – Bem vindos, jovens, a mais um Dia D – ele começa. Todos se levantam e aplaudem. Eu os imito. Depois que as palmas cessam, ele continua. – Escolhemos vocês por sua força e coragem, e todos sabem que sem vocês, os jovens, não haveria mais vida em Morada. Porém, presumo que queiram saber o porquê disso tudo. Deixe que eu conte a vocês. Há muito tempo, depois do grande Ataque Z que devastou o mundo inteiro, e depois de os governadores dos Estados tomarem a decisão de fazer dos estádios de futebol seu abrigo, eles viram que não

tinha

como

conseguir

comida

ou

o

que

quer

que

eles

precisassem sem que arriscassem a vida se aventurando além do Grande

Portão.

Nós

estaríamos

perdidos

se

meu

pai,

Reinaldo

Tameirão, não tivesse proposto que, em todo semestre, um dia seria marcado como o Dia D, no qual sete jovens seriam sorteados para irem à cidade em busca daquilo que mais estivesse em falta no estádio. O jeito como ele falava era como se toda a ida à cidade fossem somente flores. Como se os que fossem sorteados não tivessem de enfrentar a causa da destruição do planeta ou, para ser mais exato, a causa de estarmos ali, a causa daquele maldito Dia D. Como se os mortos-vivos que estivessem à espera deles fossem inofensivos. – É claro que sabemos o que nos espera do lado de fora do estádio – ele diz, como se respondesse ao meu pensamento. – As primeiras expedições foram um completo fracasso, portanto os líderes

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decidiram criar uma academia especial onde os jovens pudessem ser treinados especialmente para matar os mortos-vivos. Viro-me para Dani com um olhar que diz: “Viu? Não sou só eu que me dirijo aos seres pútridos como ‘mortos-vivos’”. – Tivemos também de estipular a idade dos escolhidos, e decidimos que eles seriam colhidos na flor da idade, entre dezesseis e dezessete anos. Olho em volta e reparo no número de jovens que estão sentados prestando atenção às palavras de Augusto. Juro que ele diz algo mais, porém perco a linha da atenção. Quando volto a mim, ele já está passando a palavra ao Sargento Ladeira para que ele inicie a cerimônia do sorteio. – Desejo boa sorte a todos, e que os sete escolhidos vejam a ida à cidade como um ato de coragem e honra. Augusto se senta à mesa e o Sargento Ladeira toma o microfone. – Bom – Ladeira começa –, sem mais delongas, vamos à cerimônia. Peço para que os donos dos nomes que eu ler se posicionem ao meu lado direito. Ele caminha até a urna e para à esquerda dela. Enfia a mão dentro e dela retira o primeiro papel. Ele o abre e o lê em voz alta. – Marcos Costa Siqueira. Olho em volta para ver o rosto do escolhido. O vejo se levantar desengonçadamente, talvez por causa do susto. Ele é alto e moreno, e não me lembro de ter me esbarrado nele durante o treinamento. Na

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verdade, ele podia muito bem nunca ter estado lá, porque não consigo me lembrar de sua fisionomia. Ele

se

posiciona

ao lado do Sargento Ladeira e

ele

prosseguimento ao processo. Tira mais um papel da urna, o abre e o lê em voz alta. – Anna Carolina Fontes. Olho para os cantos do Centro de Treinamento à procura dela, porque sei que é lá onde a encontrarei. Assim que a acho, isolada, vejo-a esboçar um sorriso triunfante. Talvez ela leve essa história de “honra” um pouco a sério demais. Ela ajeita seu rabo de cavalo e caminha ao palanque. Depois que ela se posiciona, Ladeira continua sorteando os jovens. Ele retira o terceiro papelzinho, o abre e o lê em voz alta. – Danielle Cardoso. Tremo ao ouvir o nome de Dani, e por um segundo penso ter ouvido errado. Porém, quando olho na direção dela, Dani também está pasma. Ela volta a si e se levanta, caminhando em direção ao palanque. Minha visão, depois disso, se foca nela e em mais nada. Ladeira, porém, não me acompanha, apenas continua a recitar os nomes que, para mim, são somente nomes sem donos porque nem reparo no rosto deles. Apenas fito a Dani, que encara o chão com um olhar fixo. Depois dela, Ladeira chama mais dois garotos que meu cérebro inconveniente se recusa a processar quem são. Ele apenas processa a garota que é sorteada antes do último escolhido. Ladeira enfia a mão na urna, retira o sexto papelzinho, o abre e o lê em voz baixa. Arregala os olhos e prende a respiração, numa expressão de puro terror. Olha para os lados, como se procurasse a quem recorrer,

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mas todos esperam apenas que ele diga o nome do sorteado. E é o que ele faz. – Clara Elisa Ladeira. Reconheço primeiro o sobrenome dela, mas depois que a filha do Sargento Ladeira sobe o palanque e se posiciona ao lado dos outros meu cérebro processa sua fisionomia. Lembro-me de já tê-la visto cuidando dos doentes na vez em que algumas pessoas me ajudaram a levar meu avô à Sessão Hospitalar às pressas devido a uma crise de dores abdominais. O jeito com que ela sorria para eles e dizia que tudo iria ficar bem me fez sorrir naquele dia. Hoje, ao lado dos outros escolhidos, a filha do Sargento Ladeira não parecia tão otimista assim. O Sargento se recompõe e retira o último papelzinho da urna. Ele o abre e o lê em voz alta, dando fim ao sorteio. E o nome do último sorteado é um pouco familiar demais para mim. Assim que ele o pronuncia, sinto um arrepio percorrer minha espinha. – E o nome do último sorteado é... Cézar Fernandes. Perco o ar, me esqueço de como se respira. Forço para que meus pés saiam do lugar, porém é inútil. Com muito esforço consigo me dirigir ao palanque. Espremo-me entre Dani e o garoto que meu cérebro

não

processou.

Eu

e

Dani

nos

entreolhamos

dirigimos nosso olhar para os que nos assistem. – Estamos ferrados – Dani sussurra. – Sim – eu concordo. – Muito ferrados. – Redondamente ferrados.

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e

depois


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03 DESAPARECIDO

– Acho que nossa sorte excedeu de uma hora para outra – diz Dani, sem se virar para mim. Estamos numa saleta pouco iluminada que fica ao lado do Centro de Treinamento Intensivo, sentados em cadeiras que estão caindo aos pedaços, junto dos outros cinco “buscadores”, como o Sargento Ladeira nos chamou quando nos levara para lá. Após o sorteio e minha completa desorientação, Ladeira havia nos conduzido àquela saleta, onde estamos agora, e dito que voltaria logo. Não sei onde ele foi, mas o lugar é longe, porque seu “logo” nunca chega. Não respondo à afirmação de Dani, não por descaso nem ignorância. Eu simplesmente não consigo formular uma resposta. Depois de, há uma hora, processar meu nome dito por Ladeira em alto e bom som, meu cérebro parara de trabalhar e entrara em um completo estado de estática. Eu não consigo parar de pensar no que acontecerá depois que eu sair da saleta, depois que eu sair de Morada. Estarei à mercê das coisas de que tenho mais medo mundo. E em pior lençol estará quem eu amo. Minha mente está vazia e ao mesmo tempo cheia, mas mesmo assim sendo, não consigo parar de pensar em meu avô, em como ele sobreviverá sem mim. Quem o

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levará

à

Área

Hospitalar

quando

for

preciso?

Afinal,

quem

se

preocupará com uma pessoa que espera a morte com um sorriso no rosto? Pensar nisso me dói, e Dani percebe que estou chorando. Ela, que está sentada na cadeira ao meu lado, avança e me abraça apertado. Ficamos assim por um bom tempo. – Cézar, por favor – ela fala, acariciando meus cabelos –, nós temos de ser fortes. Eu sei que é amedrontador, sei que foi de repente e que nós não esperávamos por isso. Também sei exatamente o que se passa pela sua cabeça, porque é o que também se passa pela minha. Mas nós não podemos nos render a isso, não podemos... – Você não sabe de nada, Dani – eu digo entre dentes. – Não faz nem ideia do que eu estou sentindo, então não me venha com essa de que está compartilhando da mesma dor que eu. Ela recua, parando de acariciar meus cabelos e se distanciando um pouco de mim. – Está errado, Cézar – ela sussurra depois de um tempo. Olho para ela e vejo que ela fita o chão. – Quando eu partir na missão, assim como você, também estarei deixando alguém com quem me importo muito para trás, você sabe disso melhor que ninguém. Porém não posso fazer mais nada quanto a isso... Ela começa a falar mais algo, porém para, como se tivesse desistido. Eu paro e penso, então descubro que sei realmente do que ela fala. Lembro-me de como ela falara mais cedo de Jamie Ranevuë, a “garota sortuda”, que perdeu os pais e o irmão e contraiu a superbactéria. Ela falara dela de um jeito doído, como se a doença de Jamie afetasse-a também. Tudo isso porque há dois anos Dani se

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oferecera para ajudar as enfermeiras da Casa dos Sem-Lar a cuidar de Jamie e, nesse meio tempo, ela havia criado um laço bem forte com a garota. Querendo ou não, Dani agora tinha um sentimento de ser responsável por ela. E, depois que eu penso melhor, parece que, ao contrário do que eu achei, compartilhamos da mesma dor afinal. Ou quase isso. Eu encaro o chão, assim como ela está fazendo. Fecho os olhos e respiro fundo, mandando mais oxigênio para o cérebro na tentativa de que ele funcione como deveria. Recordo-me de quando Dani me contou

sobre

Jamie

pela

primeira

vez.

Ela

havia

me

contado

vagamente, sem muitos detalhes, em um dia chuvoso agora perdido no tempo, e havia chorado muito. Na época, eu não dei muita importância. Agora penso que realmente preciso pensar um pouco mais antes de falar. – Perdão – é o que consigo balbuciar. – Eu havia me esquecido de Jamie... – Tudo bem, Cézar – é o que ela responde, mas vejo que nada está bem. Permanecemos na mesma posição inerte até que eu decido observar os outros buscadores. Levanto a cabeça devagar e perpetuo meu olhar sobre cada um. Primeiro meu olhar passa pelo moreno alto, Marcos, o primeiro a ser sorteado. Sua expressão é indecifrável, não expressa nada. Totalmente vago ao momento. Movo meus olhos em direção à filha do Sargento Ladeira, Clara, que está sentada a quatro palmos de distância de Marcos. Na verdade, eu e Dani somos os únicos da saleta que estamos próximos um do outro. Os outros estão distantes de nós e de uns dos outros. Continuo observando Clara, que há poucos minutos estava chorando. Deduzo isso por

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causa do seu rosto, que está inchado e vermelho como um pimentão. Seus cabelos cor de mel, que caem em ondas até seus cotovelos, estão arrumados em uma trança, que ela desfaz e faz novamente de um jeito ansioso. Lembro-me vagamente da vez que a vi cuidando das crianças na Área Hospitalar. Ela não está mais com o sorriso daquele dia no rosto. Avanço com o olhar para a pessoa que está ao lado de Clara. Ele é um dos dois garotos dos quais eu não conheço e que, no decorrer do susto ao ouvir o nome de Dani, não consegui processar seu nome dito por Ladeira. Ele é extremamente alto, o mais alto da sala, e pode ser facilmente dado como mais velho. Seu cabelo é um conjunto de cachos bem definidos que descem até sua nuca oleosa. Na verdade, toda sua pele facial parda é oleosa, e em algumas partes do seu rosto a acne predomina. Observo sua expressão de ansiedade, o cenho franzido e os pés batendo na cadeira. Viro-me devagar para Dani. – Você, hm... – eu procuro as palavras. – Você sabe o nome dele? – sussurro a pergunta a ela acenando de leve em direção ao garoto alto de cabelos cacheados. Ela faz que sim com a cabeça. – O nome dele é Matheus – ela responde. Eu sorrio e nós trocamos olhares. Por fim, Dani sussurra ao meu ouvido: – Ele é estranho, não é? Eu concordo e nós reprimimos o riso. Continuo a observar as pessoas da saleta agora com Dani a me acompanhar e vejo, no canto da sala, isolada dos demais, Anna Carolina. Ela está escornada na cadeira com os braços cruzados e com um sorrisinho torto triunfante – não sei o que ela triunfa – e quase malvado estampado no rosto.

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Seus cabelos negros estão presos em um rabo de cavalo comum, como ela sempre está. Percebo que ela também estuda os outros buscadores e nossos olhares se cruzam por um momento. Ela sustenta o olhar e levanta uma sobrancelha, como se estivesse me desafiando. Eu abaixo os olhos e o triunfo domina seu sorrisinho. Não sei se é imaginação minha, mas eu penso tê-la ouvido sussurrar entre dentes a palavra “fraco”. O último a ser perpetuado pelo meu olhar é o garoto que está a cinco palmos de distância de mim. Ele é o segundo que eu não havia processado o nome. Tem a mesma altura que eu, com poucos milímetros a mais, e tem a pele branca como leite. Quando olho em sua direção, percebo que ele olha para Dani de um jeito estranho, quase feroz, e que seus olhos verde-oliva brilham. Eu olho para ela também e percebo que ela nota o olhar que ele joga para ela. E ela simplesmente cora e encolhe os ombros. Sinto uma coisa estranha dentro de mim enquanto os dois trocam olhares e não entendo o que é isso, portanto apenas ignoro. Mais tarde perguntarei a ela o que significa. Todos pulam da cadeira quando da porta irrompe o Sargento Ladeira com o governador Augusto Tameirão logo atrás dele. Estamos quase dormindo quando Ladeira a abre de supetão e entra se posicionando à direita do governador de Morada, que fica à nossa frente. Augusto sorri e corre o olhar pela sala, visualizando cada rosto. Junta as mãos e entrelaça os dedos. – Primeiramente – ele começa – quero dizer que estou muito feliz. Como eu disse lá fora, se não fossem por vocês, tanto os novos

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quanto os velhos buscadores, a raça humana já estaria extinta. Vocês são nossa esperança, nossa salvação. Nós nos entreolhamos e, talvez, compartilhamos do mesmo pensamento por um segundo. – Eu vim – continua Augusto – para ressaltar qual será o Alvo de vocês na expedição desse semestre, novos buscadores. Estive conversando

com

os

responsáveis

pela

medicação

do

povo

de

Morada. Eles me disseram que os surtos da superbactéria estão afetando a população de tão rápido modo que, em três anos, eles presumem que todos estarão contaminados com ela. Então, de que adianta nos escondermos do Grande Vírus se aqui dentro nós temos nossa própria “Grande Bactéria”? – ele movimenta dois dedos das duas mãos, fazendo as aspas com eles. – Perguntei aos medicadores se tinha algo, qualquer coisa, que curasse ou pelo menos amenizasse a transmissão, e adivinhem a resposta que eles me deram! Ele para e espera que nós digamos algo, porém ninguém diz nada. – Ninguém chuta a cura para a infecção bacteriana? – ele pergunta. A filha do Sargento Ladeira, Clara, levanta a mão direita timidamente. Augusto aponta para ela. – Bem... – ela começa. Sua voz é aguda e firme. – Se é uma infecção bacteriana, o remédio que pode ser usado contra ela é o antibiótico produzido a partir do fungo Penicilium chrysogenum – ela faz uma pausa, depois continua: – Que é mais conhecido pelo nome de penici...

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– Isso mesmo, garota! – Augusto berra, interrompendo-a. Ele tapa a boca com ambas as mãos e quase salta de entusiasmo. Olho para Clara com os olhos arregalados. Como ela pode saber disso tudo?

Talvez

ajudar

na

Área

Hospitalar

tenha

apurado

os

conhecimentos dela... Não sei dizer. – É uma pena que você tenha partir na expedição, mocinha. – Augusto fala depois de se recuperar dos saltinhos. – Seria tão útil... – Ele olha pensativo para Clara e diz isso como se não houvesse chance de nós voltarmos vivos da missão, e parece que todos entendem exatamente isso. Olho para Clara e vejo que ela cora. Depois perpetuo meu olhar em Ladeira, que outrora sorria de orgulho da

filha,

mas

que

agora

encara

o

governador

com

um

olhar

assustado. – Amanhã – ele diz, agora se dirigindo a todos nós –, antes de partirem, cada um de vocês receberá uma mochila com suprimentos e armas necessários para sua sobrevivência. E também receberão um mapa da cidade semelhante a esse – ele tira um mapa colorido do bolso, que tem como título: Principais Pontos Turísticos de São Paulo. Ele aponta para o canto inferior do mapa e pergunta: – Estão vendo essa parte em azul? Sim, onde se lê “Estádio Cícero Pompeu de Toledo, o Morumbi”. Aqui, no canto inferior, estamos nós. Vocês terão de partir daqui – ele tira o dedo da parte azul – e ir até aqui – ele aponta para o canto superior direito do mapa, que está em vermelho. Onde está marcado, lê-se: Centro Farmacêutico de São Paulo. – Na distância gráfica, parece ser perto, mas não se deixem enganar, meus caros novos buscadores. O que vocês encontrarão no caminho fará a viagem parecer eterna.

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Ele faz uma pausa e nos encara. Meu coração acelera. Só de pensar em sair de Morada, meu lugar seguro, me faz ter palpitações. – Deixarei que o Sargento Ladeira termine minha fala, ele sabe melhor que ninguém como se aventurar fora daqui. O Sargento estufa o peito. Augusto continua: – Desejo a vocês, novos buscadores, toda a sorte do mundo. Espero que vocês sejam bem sucedidos na sua expedição. Depois de dizer isso, Augusto Tameirão sai da saleta, deixandonos na companhia do nada bem-humorado Sargento Ladeira.

··· O Sargento Ladeira nos libera depois de cinco horas da sua palestra que tinha somente dois tópicos; primeiro: dizer-nos, nos minuciosos detalhes, o que devíamos pegar ao adentrarmos o Centro Farmacêutico, ou seja, o nosso Alvo, que seria o máximo de frascos de

penicilina

que

conseguíssemos

adquirir

enfiando

dentro

das

mochilas que eles nos entregarão amanhã antes de partirmos. Ele tenta

nos

explicar

o

método

como

os

médicos

de

Morada

manipulariam a penicilina nos pacientes infectados com a bactéria, mas eu não tive nenhuma vontade de prestar atenção nessa parte da explicação. Eu não sou médico e não vou aplicar injeção de penicilina em ninguém e, além do mais, minha mente estava ocupada com uma coisa mais importante que isso.

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No segundo tópico – o mais importante, em minha opinião – o Sargento ressalta trilhões de vezes que o que enfrentaremos fora dos portões é letal, como se já não soubéssemos disso. Ele exemplifica mil e uma formas de “matar” um morto-vivo e fala sobre o tempo que o vírus leva para tomar conta do corpo de um humano, caso um de nós tenha contato com ele. Dá exemplos das formas que podemos contrair o vírus: bebendo água contaminada (por isso nos darão água tratada daqui para levarmos conosco), entrando em contato com a secreção pegajosa que os zumbis expelem (que algum dia foi seu sangue), e a forma mais comum de sermos contaminados que é sendo mordido por um deles. Depois ele dá mais mil e uma maneiras de sairmos vitoriosos num embate contra os mortos-vivos, sendo a maneira mais eficaz de derrotá-los acertando algo na cabeça deles, fazendo com que seus miolos sejam esmiuçados. Anna Carolina ri quando o Sargento Ladeira se embola falando a palavra “esmiuçados” e ele a olha com uma expressão não muito amigável, fazendo-a parar de imediato. Quando ele volta a falar e tira seus olhos dela, ela levanta o dedo médio e o roda no ar, apontando na direção de Ladeira. Eu praguejo, porque quero muito que o Sargento Ladeira a pegue fazendo isso, porém ele continua falando e não se vira para Anna. Não me lembro de mais nenhuma palavra do Sargento Ladeira depois disso. Apenas me dou conta de que a palestra realmente termina quando Dani se levanta da cadeira e me cutuca. Saindo da saleta, posso ver que Dani e o garoto de olhos verdes se entreolham do mesmo jeito de antes novamente. Ignoro a cena. Ladeira acompanha todos nós até o portão do Centro de Treinamento Intensivo e nós seguimos rumos diferentes. Pelo canto do

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olho posso ver que Clara ficou ao lado de Ladeira no portão. Ele a abraça e ela enrijece, não devolvendo o abraço.

··· – Então... Amanhã é o dia – Dani diz enquanto caminhamos lado a lado. A frase soa um pouco forçada. Não digo nada, o silêncio predomina. Escutamos apenas nossos próprios passos. – Presumo que você não tenha prestado atenção no que o Ladeira disse –

ela tenta novamente estabelecer uma linha de

conversa. – Temos que estar no Centro de Treinamento depois do almoço para poderem nos preparar com os suprimentos, conversar mais com a gente, essas coisas... – Eu não vou partir na missão, Dani – interrompo-a. Ela se surpreende. – Como não vai? – ela me pergunta. Eu não respondo, portanto ela para de andar e segura meu braço, forçando-me a fazer o mesmo. – Me explica isso direito, Cézar – ela quer saber. – O que você vai aprontar? – Nada – respondo. – Não vou aprontar nada, Dani. Apenas não vou ir à expedição. Ela me encara incrédula.

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– Você sabe o quanto isso é perigoso pra você? Eles vão te deserdar, Cézar! Olho para a grande arquibancada. – Não me importo. Ela balança a cabeça em negativa e dispara a andar em minha frente. Eu a sigo. – Olha – eu digo enquanto tento alcançá-la –, eu simplesmente não posso fazer isso. Meu avô não vai ter ninguém que lute por ele se eu partir... Ela para de andar novamente. Vira-se e me encara. Vejo que chora. – Eu preciso te contar uma coisa que não consigo mais guardar pra mim – ela respira fundo. – Hoje mais cedo, quando ajudei as enfermeiras a levarem a Jamie à Área Hospitalar, eu ouvi a conversa de dois soldados que guardam as proximidades da Área... Ela para e comprime os lábios, balançando a cabeça. – Continua, ora! – Insisto. – O que você ouviu? Ela continua

balançando a

cabeça em

negativa, como se

desistisse de algo. Por fim, diz: – Não. – Não o que? – quase grito. – Não é nada, Cézar. Você não precisa saber disso.

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Ela começa a andar novamente. Eu a sigo e puxo seu braço. – Agora você vai me dizer! O que houve? Continuamos a andar, comigo agarrado em seu braço. – Cézar, não se preocupe. Não é nada demais, é coisa da minha cabeça. Nem devia ter tocado nesse assunto com você... Solto seu braço e paro, deixando-a seguir sozinha. Não insisto mais que isso, porque sei que quando Dani diz não é realmente um não.

··· Não nos falamos durante o resto da caminhada. Ao chegarmos à entrada da Casa dos Sem-Lar, Dani se senta num dos degraus mal acabados e eu a imito. Eu enfio a mão nos bolsos e ela abraça as pernas, trazendo-as para junto de seu peito. – O que foi aquilo na sala do Ladeira? – pergunto a ela, tentando quebrar o clima ruim que predomina. – E “aquilo” seria o quê? – ela diz. – Aquela troca de olhares entre você e aquele garoto de olhos verdes que estava do meu lado. – Ah. Isso. – Sim, exatamente isso.

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Ela sorri e olha de um jeito sonhador para o horizonte. – Não sabe o que significa flertar, Cézar? Eu coro. Sei muito bem o que significa flertar. – Ah – respondo. – Então era isso. Ela dá um risinho tímido. Ficamos segundos sem que qualquer um diga qualquer coisa. – Prometa que vai repensar essa sua ideia de não partir na expedição, ok? – ela me pede. Faço que sim com a cabeça. Estou prometendo tanta coisa pra tanta gente nesses dias... – E você...? – eu pergunto. – Tem certeza de que não tem de me contar aquilo? – Certeza absoluta – ela responde. – Não quero que mais nada imprudente se passe pela sua cabeça. Comprimo os lábios e assento com a cabeça. Novamente ficamos em silêncio. Vejo que o sol se põe no horizonte e que as ruelas começam a se iluminar com a parca luz que a nós é oferecida. Tenho que ir embora para dar algo de comer a meu avô, que a essa hora já deve estar preocupado com minha demora. – Eu tenho que ir, Dani – digo, me virando para ela. – Ia te perguntar isso agora – ela responde, também se virando para mim. – Ia te perguntar se havia se tornado um sem-teto.

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Nós rimos, ainda olhando um para o outro. Aos poucos o riso vai se acabando, mas eu continuo olhando seus olhos, agora mais profundamente. Posso quase me ver refletido no âmbar-escurecido deles. E é assim, olhando um para o outro, que nós nos beijamos. Depois do beijo, nós nos levantamos e nos abraçamos como despedida. – Até amanhã, Cézar – ela diz. Eu apenas sorrio. Se tentasse dizer algo, não sairia nada. Estou tremendamente estranho. E é uma estranheza boa. E,

assim,

aos

pulos

impossíveis

de

serem

contidos,

me

movimento ao cômodo que eu e meu avô chamamos de casa.

··· Adentro o cômodo com os dentes à mostra, num sorriso quase medonho. Fecho a porta às minhas costas e meu sorriso desaparece quando percebo que ele está vazio. A cama de meu avô está vazia. – Vovô? – eu chamo. Ninguém responde. – Vovô? – eu chamo novamente, agora gritando. Ninguém responde novamente e meu coração acelera. Corro e me abaixo, procurando-o debaixo da cama, o único lugar de todo o recinto onde meu avô poderia caber se quisesse se esconder. Mas por que ele iria querer isso? Não o encontro debaixo da cama e me desespero. Passo a mão pelos

cabelos,

totalmente

perdido.

Observo

sua

cama.

Ela

está

remexida, os lençóis embolados junto com a coberta que tem cheiro

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de ranço, porém não há nenhuma pista do lugar para o qual ele foi. Na verdade, na situação em que ele se encontra não teria como ele ter saído da cama sem a ajuda de alguém. Ele não foi a lugar nenhum. Foi levado por alguém. Minha respiração se entrecorta e mil coisas se passam pela minha cabeça, porém nenhuma delas faz sentido. Corro até a porta e, quando vou abri-la, vejo que há um papel pregado no topo dela. Arranco-o e guardo o papel no bolso. Então abro a porta e corro para a noite recém-chegada, em direção à Casa dos Sem-Lar. Quando chego, subo a escadaria de pedra da entrada pulando dois degraus a cada

passo.

Bato

à

porta

insistentemente,

e

quem

a

abre

é

exatamente a pessoa que espero que a abra. – Acho que você realmente virou um sem-teto, Cézar – Dani diz rindo ao abrir a porta. Ela para de rir quando vê minha expressão de terror estampada no rosto. – O que foi? O que aconteceu? Está branco como um osso... – Dani – eu digo ofegando. – Meu avô desapareceu.

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04 DESPEDIDA

Depois que eu falo, Dani me encara estupefata. Seus olhos se arregalam e sua boca vira um “O”. Por segundos ela fica mais sem reação que eu, mas depois que se lembra de que estou aqui ela dá sinal de vida. – Acalme-se, Cézar, respire fundo – Dani fala, colocando as mãos em minhas costas e ajudando-me a me sentar na escadaria de entrada da Casa. Ela parece mais apavorada que eu, ela é quem precisa respirar fundo, mas tenta esconder isso. Assim que ela também se senta ao meu lado, pede para que eu esclareça o acontecido. As palavras fogem de mim, não consigo pôr mais nada para fora. Por fim, tento balbuciar algo. – Depois que eu saí daqui... – começo. – Quando cheguei a minha casa, eu... – não consigo terminar a frase. Minha garganta se fecha por completo, me impedindo de fazê-lo. Dani tampa a boca com ambas as mãos e abaixa a cabeça. – Não pode ser verdade... – a ouço balbuciar. – Não acredito... – sussurra ela para si mesma. Olho-a desconfiado.

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– O que houve Dani? – pergunto. – Você sabe de algo? – Cézar, eu... – ela diz, balançando a cabeça em negativa, como alguém que não quer acreditar no que se passa pela sua própria cabeça. – Eu... – ela retoma. – Eu não queria te contar porque eu não sabia se era verdade... E também estava com medo de você fazer alguma loucura e... – O que você ia me contar, Dani? – quero saber. Ela respira fundo. E então começa.

··· Assim que ela termina, o desespero e a raiva tomam conta de mim. Não quero sentir raiva de Dani, mas ela vem de um jeito que não consigo controlar. Ela sabia de tudo e não me contou na hora que deveria ter contado. – Eu não acredito nisso... – digo, depois de um tempo em silêncio. Ela baixa a cabeça envergonhada. – Cézar, – ela diz, ainda com a cabeça baixa – me perdoa, por favor. Eu pensei no que era melhor pra você, eu estava com medo! – Traidora! – grito. – Você não entende que pra mim não importa EU?! – Eu sei... – ela começa a chorar. – Me desculpa, por favor... – Isso não importa – digo frio. – Preciso encontrar meu avô.

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Viro as costas e saio correndo, deixando-a sozinha na noite escura, à porta da Casa dos Sem-Lar. Mesmo de longe, ainda ouço seu soluço. Não volto atrás.

··· Enquanto

corro,

percebo

que

choro,

porque

as

lágrimas

embaçam minha visão. Por conta disso, tropeço em uma pedra, o que me faz ir ao chão. Tento proteger meu rosto colocando as mãos à frente, mas isso só piora a situação. No fim, estou com o nariz, as mãos e os antebraços parcialmente ralados. Levanto-me de um jeito desajeitado, mas escorrego novamente. Decido me sentar e me acalmar. As palavras de Dani ainda ecoam em minha cabeça... “Cézar, eu precisava ter certeza disso antes de te falar. Mas agora

acho

que

aconteceu...

Hoje

mais

cedo

eu

ajudei

as

enfermeiras a levarem a Jamie à Área Hospitalar para a consulta semanal

dela,

para

fazerem

as

medicações

dela.

Enquanto

eu

esperava as enfermeiras voltarem para podermos levar Jamie de volta à Casa, ouvi a conversa de dois soldados que guardavam a entrada da Área Hospitalar. Eles não perceberam minha presença e, no começo, não entendi direto o que eles diziam. Eles falavam que em algum momento iriam ter de ‘sacrificar os já contaminados para o bem maior do resto da população sã’. As palavras deles não tinham nenhum sentido para mim. Eles continuavam a discussão, e em algum momento ouvi um deles dizer: ‘Não podemos continuar alimentando esses sacos mortos, precisamos nos livrar deles, como o governador disse para fazermos’. E o outro respondia: ‘O que nos resta é arranjar algum pretexto para tirar os doentes de suas casas e trazê-los para

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cá sem que desconfiem de algo. E no dia seguinte voltamos com a notícia de que eles não suportaram o ‘tratamento’ e vieram a falecer’. Os dois se abraçaram e riram, chamando um ao outro de “gênio”. Até mesmo comentaram sobre uma possível subida em seu cargo. Quando as enfermeiras chegaram, fui obrigada a deixar a Área e ajudá-las a levarem Jamie à Casa. No caminho, pensei no que ouvi e, quando a ficha caiu e eu entendi sobre o quê e sobre quem eles falavam, fiquei desnorteada. Não quis demonstrar isso no sorteio, mas acho que você percebeu... Ah, Cézar, eu só sei que se isso realmente aconteceu eu nunca vou me perdoar...” No momento em que Dani me contou, ignorei o que ela acrescentou

no

final,

chorando

convulsivamente.

Mas

agora

o

acréscimo dela ciranda minha mente... “Desde que cheguei do Centro não encontrei Jamie na Casa. Estou com medo de procurá-la agora, porque sei que não aguentaria pensar na possibilidade de ela... de ela não estar mais aqui. De ela ter sido levada ou sei lá...”. Removo de uma vez por todas o fato de que Dani também sofre da minha mente. Ela não tem o direito de sofrer por isso. Se ela tivesse me contado, talvez pudéssemos arranjar um jeito de reverter à situação. Sinto o peso do papel que estava grudado na porta de casa em meu bolso de trás. Tiro-o de lá e o desdobro. Observo por um tempo a caligrafia de quem escreveu no papel. É um bilhete formal com o carimbo do governador e do diretor dos medicadores de Morada. Leio o bilhete, que diz de um jeito curto e grosso: “A pessoa moradora desse lar que está, nas devidas circunstâncias, contaminada com a

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bactéria que assola a saúde do povo de Morada, foi removida e transferida para a Área Hospitalar, para a aplicação de um novo tratamento deveras eficaz. Ressaltamos que após a conclusão o tratamento, será comunicado o retorno do paciente a seu devido lar. Atenciosamente, Augusto Tameirão (governador de Morada) e Paolo Levedo (diretor da Área Hospitalar de Morada)”. Meu estômago revira várias vezes, e ponho o que resta dentro de mim para fora. Então o que Dani ouviu é verdade. Devido aos gastos que os doentes dão, os líderes precisavam achar uma forma de amenizá-los ou, até mesmo, cortá-los cem por cento. Eles devem ter

ouvido

a

proposta

daqueles

dois

soldados

e

de

imediato

concordado. Eles usariam como pretexto o “novo tratamento” e levariam todos os doentes de Morada para a Área Hospitalar e lá os abateriam... Começo a ficar tonto e minha respiração se torna pesada. Preciso fazer algo, mas não consigo pensar no que fazer. Sei onde meu

avô

está.

O

bilhete

deixado

pelo

próprio

governador

diz

exatamente a localização dele. Mas eu simplesmente não consigo me pôr de pé. Se eu me levantar, cairei novamente, tenho certeza disso. Minha cabeça gira, minha visão embaça, meu rosto queima. Será de raiva? Remorso? Não consigo decidir, porque a única coisa que tenho certeza é de que preciso encontrar meu avô. Com muito custo me ponho de pé. As pernas bambeiam, mas eu consigo me manter assim sem cair. Quando sinto que estou pronto, me ponho a correr pelo campo, esbarrando nas construções baixas que os moradores fizeram há muito tempo. Por minutos que parecem horas, eu corro por toda a Morada, forçando a memória e

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tentando voltar à última vez que levei meu avô à Área Hospitalar. Não me lembro do caminho certo, portanto corro sem rumo. Por fim, depois de quase vinte minutos à procura, dou de cara com o cercado de arame que circunda a entrada da Área Hospitalar. A entrada é, basicamente, um conjunto de várias delimitações de espaços que são usados como “quartos” de um hospital. Esses espaços, os “quartos”, são delimitados, separados e divididos por espessas paredes de lona preta. É ali, na entrada, para onde os casos menos graves são levados. Amplio minha visão e olho para trás das delimitações da entrada. Há um portãozinho que leva para dentro do que antes foram os vestiários e os banheiros do estádio, como meu avô me contou na vez que ele foi trago com a ajuda de outras pessoas, quando já voltávamos para casa. Lá dentro é para onde os casos mais graves são levados. E foi para onde um dia meu avô fora levado. E talvez esteja lá agora. Chego a essa conclusão porque não há nenhum sinal de vida nas delimitações de lona, fora do portãozinho que leva aos casos mais graves, que está sendo guardado por dois soldados assustados. Todos os casos não graves devem ter sido dispensados ou colocados para dentro, não sei dizer... Só sei que não há nenhum “quarto” ocupado por nenhum paciente. Também não vejo nenhum movimento da parte dos médicos que ocupam a Área. Para um lugar movimentado, aquilo era realmente estranho. Caminho em volta do cercado de arame que delimita a entrada da Área Hospitalar. Calculo meus passos. Para chegar à área dos casos graves, primeiro eu tenho de passar pelo cercado de arame, depois pelas delimitações de lona e em seguida fazer algo para chamar a atenção dos soldados. Assim, depois de o portãozinho ser desobstruído, posso entrar por ele e encontrar meu avô. Tirando da

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minha cabeça a ideia de que ele pode estar em qualquer lugar lá dentro. Respiro fundo e me agacho, segurando no arame e usando-o de apoio. Preciso me acalmar e encontrar uma forma de chegar até a área dos casos graves... Mas como? Sento-me e encaro o solo, que algum dia foi grama, mas que hoje é terra gasta. Percebo e acho engraçado o jeito como o arame termina sem encostar por completo no solo, deixando uma pequena abertura de três dedos entre os dois. Ouço passos miúdos e olho para o lugar de onde eles vêm. Ouço guinchos também miúdos e vejo o pequeno roedor passar correndo ao meu lado. Ele se encolhe e passa pela pequena abertura de uma vez só, apenas usando as patas traseiras para empurrar a terra do seu caminho. Vejo-o desaparecer entre as delimitações de lona e então minha mente se ilumina. Começo a cavar um buraco entre o arame e o solo, grande o suficiente para que eu possa passar por ele. Quando meus dedos começam a sangrar e minhas unhas são pura terra, decido que está bom. Antes de passar para o outro lado, pego três pedras que estão espalhadas

e

as

guardo

no

bolso.

Passo

pela

abertura

com

dificuldade e arranho minhas costas num pedaço de arame solto. Assim que já estou dentro da área dos casos não graves, passo pelas delimitações de lona usando a escuridão do lugar como minha camuflagem. Não quero que os soldados que guardam o portãozinho me vejam. Quando já estou próximo o suficiente dos soldados para que eu realize o próximo passo, vejo um deles falar algo em seu walkie-talkie. Ele faz uma cara feia para o outro e então entra pelo portãozinho,

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deixando o outro sozinho. Aproveito a oportunidade. Tiro as pedras que peguei do outro lado do bolso e miro em uma placa de metal que está do lado extremo da área dos casos não graves. Minha mão treme muito, por isso, quando atiro, erro o alvo. Tenho apenas duas pedras agora. Miro com a segunda e atiro. O ato causa barulho e o soldado o nota, mas o ignora. Tenho apenas uma pedra agora e não faço ideia de como vou tirá-lo dali se meu plano der errado. Sem permanecer nesse pensamento, atiro a terceira pedra, com mais força dessa vez, e o estrondo causado consegue levar o soldado até lá. Enquanto ele corre para ver o que causou o barulho, eu corro para o portãozinho. Avanço com força contra ele, que não abre de primeira. Forço meu corpo contra ele mais uma vez, e o soldado nota minha presença. – Ei, você! – ele berra. – Não está autorizado a entrar aí! Ignoro suas palavras e ele corre em minha direção. Forço uma terceira vez e o portãozinho se abre. Caio para dentro de um corredor pouco iluminado. Levanto-me e empurro o portão, fechando-o com um estrondo enorme. Ouço o soldado pedir reforços em seu walkie-talkie, mas não espero para ver os reforços chegarem. Preciso encontrar meu avô. Corro enlouquecidamente pelos corredores, não fazendo ideia de onde ir. Ouço passos de pessoas que correm, e presumo que sejam os reforços. Corro na direção contrária, fugindo deles. Até que ouço, além de seus passos, vozes vindas de um corredor próximo, talvez. As vozes são calmas. Sigo em frente, agora caminhando devagar, mas logo começo a correr novamente porque ouço os soldados, vindo dessa vez em maior número. Estou correndo quando chego ao fim do

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corredor e dou de cara com uma porta vai-e-vem. Ela se abre sem nem ranger e me joga para dentro de uma sala ampla. Ela é toda de azulejos brancos, mas o que mais me chama atenção é o que há dentro dela. Espalhados por toda a sala há corpos de pessoas, tanto crianças quanto jovens e até mesmo alguns idosos, que não sei distinguir se estão vivos ou mortos. Prefiro dizer desacordados. Algumas dessas pessoas estão em macas, mas a maioria está no chão. Eles têm a pele pálida, e podem ser dados facilmente como mortos. Eu mesmo diria que eles estão mortos se não tivesse convivido todo esse tempo com meu avô, que muitas vezes achei que estava morto. Porém, essa “cara de morto” é só mais um indício de que uma pessoa está contaminada com a superbactéria. Só depois percebo a presença de três homens e uma mulher, além dos que estão deitados pela sala. Eles estão vestidos com jalecos brancos e carregam uma seringa em cada mão. Eles notam minha entrada e arregalam os olhos, parando imediatamente o que faziam. Ficam como estátuas e atônitos por um bom tempo, sem nenhuma reação. – Continue, Marta – diz um dos homens de branco, se dirigindo a mulher. – Ignore-o. Ela acorda do transe que causei. Vejo-a caminhar entre os corpos timidamente e injetar o líquido da seringa em cada corpo pelo qual passa. Ela treme enquanto faz isso. Os outros dois homens seguem seu exemplo, e o que disse para que a mulher continuasse caminha em minha direção. – O que é isso? – grito. – O que vocês estão fazendo com eles?

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O homem não responde minha pergunta. Avança para mais perto de mim e eu corro para longe dele. Ele aproveita da situação e fecha a porta por onde eu entrei. Não a tranca nem nada, apenas a encosta. Como é uma porta vai-e-vem, qualquer empurrão a abre. Ele continua me perseguindo e eu continuo me esquivando. Ele pede ajuda para um dos outros dois homens, que para no momento em que iria injetar o líquido da seringa em um homem velho e calvo, que dormia calmamente numa das poucas macas. Assusto-me por reconhecer e saber que o velho dormia. Olho novamente para ele e reconheço sua fisionomia. É ele, o próprio! Sei como meu avô dorme. Baixo completamente a guarda e caminho até meu avô. Os homens avançam furiosamente em minha direção, mas isso não me desperta, continuo a caminhar em direção a ele. Sei que estou sorrindo. Sei que choro. Mas quando os homens me alcançam e agarram cada braço meu, me puxando para longe dele, percebo que minha chance de salvá-lo está se esvaindo. Não deixo isso acontecer. Uso todas as minhas forças para sair da garra que as mãos dos homens se tornaram em meu corpo. Arranho-os, os chuto e grito, cuspindo insanamente. – Vovô! – eu berro, e minha garganta arde devido à força do grito. – Vovô! Vovô! Na verdade, não sei por que continuo a gritar. Ele não acorda, nem reage aos gritos. Mas mesmo assim continuo. Os dois homens não conseguem me conter e pedem para que o outro que resta os ajude.

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– Marta, ande logo, termine com isso enquanto cuidamos desse garoto! – um dos que me seguram ordena. – Mas antes, peça para que mandem soldados para cá! Ande, injete no resto, o efeito do sonífero vai passar daqui a poucos minutos! – Chefe... – ouço Marta chamá-lo. – Acho que é tarde para dizer isso... Ela aponta para uma garotinha que está deitada no chão, no canto da sala, e então reconheço Jamie Ranevuë. Ela, que há poucos minutos estava “dormindo” como outros pacientes, começa a se mexer. Primeiro pisca os olhos, depois move a perna e os braços. Observo em volta e vejo que algumas pessoas, os que não receberam a injeção de Marta, também começam a mexer seus membros timidamente. Por último, olho para meu avô. Vejo seus olhos piscarem e meu rosto se ilumina. Diferentemente dos médicos. Eles se encaram uns aos outros e depois encaram o que parece ser o chefe. – Não importa! – ele diz. – Injete neles vivos, Marta! Ela o encara, horrorizada, mas novamente obedece sem chiar. Aproveito que os homens que me agarram afrouxaram o aperto devido ao despertar dos seus pacientes e puxo meus braços, me libertando deles. Corro até meu avô e passo a mão em sua cabeça calva. Ele tosse. – Estou aqui, vovô... – digo, em meio às lágrimas que escorrem sem cessar. –

Cézar...

ele

começa

a

dizer,

mas

um

barulho

surdo

interrompe sua fala. Na verdade, o barulho interrompe tudo, toda a

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cena.

Viro-me

para

a

porta

vai-e-vem

e

vejo

cinco

soldados

adentrarem a sala. Assim que um deles me avista, percebo que é o que eu fechei para o lado de fora minutos atrás. Ele aponta para mim. – Peguem aquele pivete! – ele cospe. Fico sem reação. Não há como fugir. Estou cercado. Viro-me para meu avô e olho em seus olhos, ausentes, quase alheios à situação. A única coisa que consigo dizer a ele antes que quatro dos cinco soldados me agarrem pelos membros é: – Tudo vai ficar bem, vovô. E ele me responde, num sussurro que somente eu prestei a atenção necessária para poder ouvir: – Adeus, Cézar. Eu te amo. Os soldados então me agarram pelas costas e tentam me arrastar para fora da sala. Não entendo o porquê do adeus de meu avô. Debato-me ao máximo, machuco dois deles com chutes nas suas partes de baixo e mordo o nariz de um terceiro. Pelo canto do olho posso ver que os médicos continuam seu trabalho, de uma forma corrida. Grito quando vejo que, depois de injetarem o líquido da seringa em Jamie, ela se debate no chão, mas logo depois para por completo e encara o teto com os olhos vidrados, não mais presente. Morta. Choro convulsivamente e perco a linha. O soldado consegue me controlar e, como última cena, eu vejo Marta, a médica assustada e trêmula, avançar até onde meu avô está deitado. Ela enche a

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seringa com o líquido novamente e então o injeta sem dó em seu pescoço. – Não! – eu grito, em plenos pulmões. Minha garganta arde, mas não dou importância à dor. – Não, meu avô não, pelo amor de Deus, não! Mexo-me

com

tamanha

força

que

consigo

me

libertar

do

soldado. Em vão, porque assim que me movo em direção à maca de meu avô, que se debate convulsivamente, o quinto soldado segura meus dois braços. Tento me mexer, mas dói. Sei que ele torce o meu braço esquerdo, porque um choque percorre todo meu corpo a partir dali. E então sinto uma pancada na nuca e caio inconsciente. E, antes de a escuridão me engolir por completo, juro por Deus que vi meu avô se levantar da maca e me abraçar. Depois ele se foi. Levando toda a luz junto de si. Deixando-me só com a escuridão. Deixando-me para sempre.

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05 VERDADE

A forte luz branca ofusca minha visão acidentada quando abro os olhos, vagarosamente. Ela, juntamente das dores – emocionais e físicas –, é a única coisa que meu cérebro processa no instante em que acordo. Quero que tudo aquilo seja apenas mais um pesadelo que me aterrorizou nessa noite, mas a luz denuncia tudo. Será que estou morto? Não sei dizer... Não sinto meu corpo, e a única coisa da qual tenho certeza e de que não estou em casa. Em casa, não sou acordado pela luz artificial, nem por luz alguma. Em casa, sou acordado pelas incessantes tosses do meu avô. Porém, dessa vez ele não tossiu. Não sei onde estou, e agora tenho certeza de que não morri, porque esse inferno parece muito mais claro que o inferno que um dia imaginei. Pisco os olhos com força, apertando as pálpebras contra os globos oculares. Minha visão, então, é tomada por pontos pretos que aparecem e desaparecem numa dança doentia. Até que eles param e, aos poucos, me acostumo com a forte luz, até que ela se torna fraca a meu ver. E então percebo onde estou. Estou num quarto pequeno, com o chão e as paredes revestidas de azulejos brancos, no estilo da sala em que presenciei meu avô sendo...

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“Não ouse pensar nisso, Cézar!” minha consciência me alerta e eu obedeço. Tento mover meu corpo, porém, quando o faço, percebo que estou amarrado no local que estou deitado. Preso por correias de couro a uma maca. Tento, sem sucesso, libertar meus braços e pernas das correias que estão bem amarradas. Quando mexo meu braço esquerdo, tremo de dor. Não me lembro de tê-lo machucado. Não tenho força suficiente para terminar, então desisto na primeira tentativa. Deito minha cabeça e endireito o corpo, encarando o teto. Como pude deixá-lo partir assim? O sentimento de culpa me inunda e as lágrimas escorrem como cascata. Sinto que vou explodir a qualquer instante. O que eu mais temia aconteceu e eu não fiz nada para impedir... Minha respiração se entrecorta. Não tenho mais controle sobre ela. Não tenho controle de mais nada. Busco de toda forma não pensar no acontecido, que é o que minha consciência se empenha em me advertir, porém não consigo não pensar nele nesse momento. As lembranças vêm como enxurrada e me arrastam junto delas. Elas lavam todo resquício de sanidade que ainda existe em mim e me deixam estático. A única coisa que sei fazer perante tudo é chorar copiosamente. Porque as lembranças levaram meu cérebro junto delas também. Meu corpo grita de dor junto da minha alma. As dores físicas que não senti antes devido à adrenalina que corria solta por minhas

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veias começam a se mostrar quando me atino. O arranhão em minhas costas causado pelo arame solto da grade de proteção da Área Hospitalar arde e lateja intensamente. Meu braço esquerdo está inchado e pulsa freneticamente, causando espasmos que percorrem todo meu corpo moído. Só então eu me recordo do último soldado que me agarrou pelo braço que agora dói, torcendo-o, na tentativa de me afastar de meu avô. Como isso não me deteve naquela hora, ele me apagou com uma pancada na nuca, que agora pulsa continua e dolorosamente. Uma dor aguda e intensa que me enlouquece. Ouço passos vindo de trás da porta e, imediatamente, limpo meu rosto nos ombros, tirando todo o resquício do choro. Fecho os olhos, fingindo que durmo, e no mesmo instante a porta se abre. Luto para não abrir os olhos, os aperto firmemente, e aguço minha audição. Ouço passos vacilantes que pertencem a uma só pessoa adentrarem o espaço, então a porta é fechada em suas costas. Endureço o corpo, porque ouço os passos, ainda vacilantes, sendo encaminhados na minha direção. A pessoa para e posso tanto ouvir como sentir sua respiração. Está a poucos centímetros de mim, e parece que me observa. Fica assim por um bom tempo. E então a ouço pronunciar algo em sua voz feminina e trêmula, o que me surpreende: – Não posso deixá-los acabarem com você, mais um não... Não

reconheço

sua

voz

de

imediato,

mas,

após

longos

segundos, me vem à mente a mulher que estava na sala em que encontrei meu avô. A médica medrosa e trêmula que obedecia como um cãozinho às ordens do que parecia ser o chefe. A mulher que matou meu avô. Era ela que estava ali, me encarando.

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Preciso me controlar e me forçar a pensar antes de fazer qualquer coisa. Não há muito que eu possa fazer, e qualquer movimento errôneo meu pode me denunciar. Não posso correr o risco, portanto, continuo no meu estado “adormecido”. A mulher anda pelo quarto e, pelo que ouço, ela anda em círculos contínuos, como se não soubesse o que fazer a seguir. Tento de toda forma lembrar o nome dela, dito algumas vezes pelo seu chefe. Seria Maria? Mônica? Madalena? Márcia?... – Marta! – ouço alguém gritar. A voz, que é masculina, vem do corredor, do outro lado da porta. – Marta! – o homem berra novamente e eu também reconheço sua voz. É, também, a voz de um dos médicos da sala onde os contaminados estavam. Parece que Marta não quer que ele saiba onde ela está, porque ela para de andar e fica estática em seu lugar, sem responder ao chamado dele. Repentinamente, a porta da sala se abre e alguém, que presumo ser quem procura Marta, entra. Ele fecha a porta atrás de si e solta de imediato: – Por que ainda está aqui? Já finalizou com ele? Um arrepio percorre meu corpo, fazendo-me tremer. – Acabo de chegar aqui, Silva – Marta responde, e então para. Ela respira fundo, e solta o ar pela boca com um ruído. – Não sei se posso fazer isso. – Como não sabe se pode? – ele parece nervoso. – São ordens explícitas do chefe Levedo, não pode desacatá-las! Esse moleque viu coisa demais...

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– Eu não me voluntariei para fazer isso, Silva! – a voz de Marta treme. – Matar pessoas inocentes e que não podem se defender só porque estão contaminadas? Você acha isso certo? Ele não responde e fica durante poucos segundos calado, como se refletisse sobre algo. Após os segundos de reflexão solta: – Fizemos isso para o bem maior do resto da população! E se você não pode continuar porque acha que é errado, eu mesmo faço. Menos um não fará diferença alguma. Ouço-o tirar algo do bolso e caminhar em minha direção. Meu coração palpita e meu sangue pulsa quente em minhas veias. Estou perdido. – Silva, por favor – Marta implora. – Você não precisa fazer isso, sabe que não precisa! Você também não se voluntariou para isso, não se lembra? Ela consegue fazê-lo estacionar. – Não podemos continuar com isso! – ela continua. – Por favor, vamos deixá-lo ir embora. – Mas e se ele nos denunciar à população? – ele pergunta a ela. – E se chegar ao ouvido do chefe Levedo que nós deixamos esse moleque escapar? O que nós fazemos com o que ele sabe? – Você acha que alguém vai acreditar no que ele falar? – Marta responde. – Ele não tem mais ninguém, já olhei na ficha do velho. Ele era avô dele. O menino não tem mais ninguém, então não acho que seja perigoso...

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Silva vacila. Ouço-o bufar antes de dizer: – Se eu me ferrar, juro que não hesito em acabar com você. – Não vai precisar acabar comigo – Marta retruca. – Seu você se ferrar, eu também me ferro. Estamos juntos nessa. – Não estou junto de ninguém – ele diz entre dentes. Então o ouço caminhar a passos largos até à porta e abri-la. – E acho melhor você se apressar com isso – ele acrescenta. – A reunião final com o chefe Levedo e o governador Tameirão começa em quinze minutos. Então ele sai, batendo a porta com força e deixando-nos sós. Porém, após longos minutos, tenho a sensação de que estou sozinho novamente, porque não ouço mais Marta. A sensação perdura e começo a me desesperar. Tenho certeza de que não ouvi a porta se abrir em minuto algum. Algo está errado, mas não ouso abrir os olhos nem me mover. Ainda estou adormecido. Subitamente, sinto mãos geladas tocarem meus braços, que estão amarrados à maca pelas correias de couro. Tento não reagir ao toque delas, porém quem me toca percebe que tremi e para o que faz. – Pode abrir os olhos – Marta diz. – Sei que está acordado, não adianta fingir. Não a obedeço. Continuo em meu estado adormecido. Então sinto seus dedos contornarem meu braço esquerdo e o apertar aos poucos. Uma dor lancinante percorre o lado esquerdo do meu corpo

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e não consigo continuar fingindo meu estado adormecido. Solto um berro. – Pare! Ela tira as mãos de mim e sorri. Faço uma careta de dor. – Eu sabia que não estava desacordado – ela diz, enquanto examina de um jeito peculiar a correia de couro que me prende à maca. – O efeito do supetão do soldado não dura tanto tempo assim. Não respondo nem demonstro nada. Ela ainda é responsável pela morte do meu avô, isso nunca mudará. Ela tira um canivete do bolso do jaleco branco e começa a cortar as correias de couro. Primeiro liberta meu braço esquerdo, seguido do direito. Depois solta minhas pernas e, por fim, corta a parte da correia que prende meu tronco à maca. Não movo um músculo enquanto ela realiza a libertação nem depois que ela termina. Após ela tirar as correias de mim por completo, ela joga os restos dela no canto da sala, guarda o canivete no bolso e cruza os braços enquanto me encara. Ela olha dentro dos meus olhos e eu sustento seu olhar, deixando claro que não gosto dela. Ela desvia o olhar e encara a parede. – Olhe – ela começa –, eu não queria isso... A única coisa que posso dizer é me desculpe... Eu... Eu sinto muito... Não respondo, porque não acho que ela se parece arrependida. Viro o rosto para o lado contrário ao dela e um soluço seguido de uma queda de lágrimas irrompe de dentro de mim. Choro por um bom tempo, tentando a todo instante tomar controle da situação,

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porém não consigo me controlar. Só paro de chorar quando ouço que Marta também chora. Isso me surpreende de tal jeito que os soluços cessam sem que eu nem precise me esforçar muito para fazê-lo. – Eu não queria... – ela insiste em se explicar enquanto geme em lamúria. – Fui forçada a fazer isso... Eu... Eu juro que não tive escolha... Por favor, me perdoe, por favor... Enquanto implora por meu perdão ela se ajoelha aos pés da maca. Estou atônito. Não sei o que fazer. Sento-me na maca e a encaro. A sensação é estranha, mas sinto que meu ódio por ela está se esvaindo... – Eu... – consigo dizer. – Eu te perdoo. E, vendo que não surtiu tanto efeito, tento falar mais algo. – A culpa não foi sua... Foi minha, quero dizer, mas não digo. Depois que eu falo, ela se acalma, porém de pouco em pouco. Ela respira fundo algumas vezes, e eu a observo. Após longos segundos,

ela

limpa

as

lágrimas,

pigarreia

e

se

levanta

desajeitadamente. Depois que se põe de pé, levemente recomposta, pede para que eu finja que estou adormecido novamente. Não entendo o motivo, então ela me explica seu plano. Quando ela termina, já estou de olhos fechados, controlando a respiração e simulando que estou adormecido. Sinto a maca sendo empurrada por trás e ouço a porta se abrir à frente. Sei que já passei pela porta e que já estou sendo empurrado pelo corredor porque a ouço se fechando atrás de Marta. Ela empurra a maca devagar e posso ouvir

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sua respiração pesada. O corredor é extremamente silencioso e frio, e tal frieza me causa arrepios na espinha. Luto constantemente comigo mesmo para que meus olhos não se abram, e tento me manter o mais rígido possível, contudo, tremo quando ouço passos de alguém que vêm na mesma direção que a nossa, porém em sentido oposto. Os passos vêm de longe e são divagantes, mas Marta não dá meiavolta, como eu espero que ela faça. Ela continua indo na direção deles, e eles continuam vindo à nossa. Quando sei que estamos a poucos metros de distância da pessoa que é dona dos passos, me enrijeço por completo e aperto as pálpebras contra os globos oculares como nunca fiz antes. Sinto Marta empurrar a maca um pouco mais rápido, e presumo que ela já saiba o que fazer. Os passos, agora, estão a poucos centímetros de nós, pelo que ouço. Sinto Marta diminuir a velocidade.

– Bom dia – ouço-a dizer, enquanto passa pela pessoa.

– Bom dia, Marta, e... – o homem para de andar e Marta também para a maca. Meu rosto queima, porque sei que ele olha para mim. Devo estar mesmo parecendo um morto, porque quando ele continua, diz: – ...bom trabalho. – Obrigada – Marta responde, e logo volta a empurrar a maca. – Vejo você na reunião, tenho que terminar com isto.

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– Até logo – ele responde, e sinto-o passar por mim. Ouço seus passos sumirem atrás de nós e relaxo. Ouço Marta bufar também, eliminando a tensão. Seguimos em direção à saída/entrada sem enfrentar nenhum problema. Quando Marta para a maca e me cutuca três vezes, sei que chegou a hora, como o combinado de seu plano. Espero cinco segundos e abro os olhos. Visualizo o espaço em volta. Estou novamente no corredor que dá acesso ao portãozinho pelo qual adentrei o meu pior pesadelo. Agora, estou prestes a sair dele. Porém, acho que, mesmo que eu saia, ele nunca acabará. Marta pigarreia como quem diz que não é hora para pensar nisso. Sei que ela nem mesmo sabe o que se passa pela minha cabeça, e quer mesmo é que eu a libere disso tudo, mas ignoro o fato. Bloqueio o pensamento, levanto-me de um pulo só e corro até o fim do corredor estreito, em direção ao portãozinho. Uso toda minha força restante para puxá-lo com meu braço bom, e ele se escancara de uma única vez. A luz do sol, que se levanta preguiçosamente, bate em meu rosto, me fazendo comprimir os olhos. Antes de fechar o portão atrás de mim, eu olho para trás, à procura de Marta e a maca, mas as duas já desapareceram. Bato o portãozinho de ferro com força e corro para longe. Aqui fora não há um soldado sequer, o que me permite correr até o portão principal da Área Hospitalar. Porém, quando chego até ele, percebo que está trancado a correntes e cadeados. Lembro-me do buraco cavado por mim na lateral da cerca de arame farpado e me dirijo até lá, esperando que ele esteja como deixei. Passo com muita dificuldade pelo buraco, que parece estar mais estreito que na noite passada, cuidando para que os ferros soltos da cerca não me perfurem como antes aconteceu. Quando

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termino de passar meu corpo pelo buraco, tento me levantar, porém escorrego devido à barra da minha calça que fica presa à farpa do arame. Quando vou ao chão, devido ao meu reflexo, uso meu braço esquerdo – que está terrivelmente inchado e dolorido – como apoio, e grito de dor quando ele bloqueia parte da minha queda ao chão. Permaneço assim, deitado e gemendo, por um bom tempo. Não me recupero por completo, mas quando a dor ameniza – o que leva considerável tempo –, eu consigo me levantar e andar vagarosamente para longe dali. Enquanto ando, os pensamentos cheios de pesar voltam e inundam meu ser novamente, me levando a derramar as mesmas lágrimas de antes. As mesmas lágrimas de sempre. Quando volto a mim, estou parado em frente à porta do barracão de um cômodo só que eu e meu avô chamamos de casa. A porta está entreaberta, devido à corrida do dia anterior não pensei em fechá-la. Não persisto em me preocupar com isso ou com o que pode ter acontecido com meus pertences lá dentro. Talvez porque eu não tenha nada. Abro a porta do barracão e entro. Fecho a porta atrás de mim e encaro a cama de meu avô. Assusto-me quando vejo que ela está ocupada, mas o susto passa quando visualizo os cachos negros da pessoa que a ocupa. Ela está enrolada na coberta que cheira ao ranço de meu avô, e dorme como um anjo. Assim que eu penso em caminhar em sua direção, ela abre os olhos. Percebendo minha presença,

Dani

senta-se

desajeitadamente

na

cama

e

solta,

disfarçando um bocejo: – Me desculpa... – ela tenta arrumar os cachos rebeldes e se desenrola do cobertor. Quando se levanta, corre e pula em meus

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ombros, me apertando. – Que bom que voltou! Eu te procurei por toda parte, estava tão preocupada... Me perdoa, por favor... Eu gemo de dor, porque em meio ao abraço, ela aperta meu braço ferido. Ela desfaz o aperto e me mede de cima a baixo com os olhos. Põe as mãos na boca, em sinal de incredulidade. – Cézar... – ela fala. – Onde você esteve e o que houve com seu braço? Eu olho em seus olhos e, vendo meu estado de completa exaustão e dor, tanto física quanto emocional, Dani entende onde estive e o que vi. Lágrimas escorrem pelo seu rosto e ela se senta na cama. – Então era verdade... A culpa é minha... – ela diz, abaixando a cabeça e apoiando-a nos joelhos. – A culpa é toda minha! Se eu não tivesse pensado só em mim, nada disso teria acontecido! É tudo culpa minha! Pobre Jamie, pobre vovô... É tudo minha culpa! E, vendo-a chorar copiosamente, caminho em sua direção e me ajoelho a seus pés. Levanto sua cabeça, olho em seus olhos e, impedindo-me a mim mesmo de chorar, digo: – Dani, me escute: a culpa não é sua! Você não tem culpa de nada! Você fez o que achou melhor, não é culpada por isso... Ela continua a soluçar. –

Olhe

para

mim,

ande

peço,

e

ela

abre

os

olhos

lacrimejantes e me encara com dificuldade. – Eu sei quem são os

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culpados, e eles não se parecem nem um pouco com você, você não é culpada de nada! Ela não para de sussurrar “me perdoe, Cézar, me perdoe” um segundo sequer. – Eu que devo pedir perdão a você, Dani – respondo. – Eu não devia de forma alguma ter dito aquelas coisas a você... Sou eu quem deve pedir perdão... Me perdoe por tudo aquilo, está bem? Eu disse tudo da boca pra fora, me perdoe... Ela faz que sim com a cabeça e engole em seco. Eu avanço e a abraço apertado, ignorando as dores físicas que o abraço causa. E ela retribui meu abraço, afundando seu rosto em meu ombro moído. Como eu pude em algum momento sentir ódio dela? Ela, que faz com que eu me sinta completo nesse momento de tamanha tristeza... Junto de seu abraço eu quase me sinto feliz de novo. Junto de seu abraço, agora, minha vontade de chorar está se desintegrando, quero sorrir... Quero sorrir, porém não posso. Não posso sorrir... Junto de seu abraço sinto algo dentro de mim se mover. – Nunca mais repita isso – ela sussurra em meu ombro. Ainda estamos abraçados e seu choro, que há poucos segundos era convulsivo, agora está mais ameno. – O quê? – pergunto. – Nunca mais faça isso de novo... Nunca mais saia correndo por aí, sem dizer nada, me deixando preocupada... Se fizer isso de novo, juro que acabo com você!

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– Não vou fazer mais – digo. – Eu prometo. – Não – ela fala. – Não prometa. Porque você descumpriu tudo o que prometeu nesses dias... E eu realmente descumpri tudo. Tinha prometido a meu avô que não sofreria e/ou choraria quando o pior acontecesse, e fiz tudo isso. Tinha prometido a Dani que iria aceitar a morte iminente de meu avô e, de certa forma, não aceitei. – É, você tem razão – respondo, ainda abraçado a ela. – Eu não prometo, então. Ela ri dolorosamente e me aperta contra seu peito. Sinto sua respiração pesada em meu pescoço e quase não há mais resquício de seu choro. E, enquanto ela está ali comigo, enquanto ela me abraça, posso dizer que meu pesadelo ameniza. Ele não acaba, e isso é certo, mas sinto que ele se torna mais brando, menos terrível. Agradeço a quem estiver me ouvindo por ela existir, e sussurro em meu pensamento, sem que ela ouça: – Eu te amo, Dani.

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06 SAÍDA

– Acho que tem, sim, uma vantagem em ser escolhido no Dia D – Dani diz, enquanto devora um prato da sopa de batata doce de dois dias atrás. Levanto os olhos do bilhete desgastado e amassado, que estudo com certo desgosto. Estamos sentados à mesa de madeira que fica no centro do cômodo que eu chamo de casa. Enquanto ela come, tenta de toda forma possível trazer à tona o assunto da expedição. Sem sucesso, porque minha resposta às suas palavras são somente chiados e monossílabos. Ela pensa que não, mas posso ver o tom de preocupação em sua voz. Por fim, decido dar atenção ao que ela diz. – Qual a vantagem, então? – pergunto. – Bem... – ela responde. – Se você é escolhido, e se voltar vivo da missão, nunca mais precisará frequentar a escola... Isso é uma vantagem, eu acho. Realmente é uma vantagem. Mas não justifica nada. – Aonde quer chegar com isso? – eu digo, pousando os braços cruzados à mesa. Ela suspira e faz uma cara de piedade.

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– Eu quero que você vá à expedição como todos fazem... – ela diz por fim. – Eu não sei, nem quero imaginar, o que eles farão se você recusar a convocação... Pode ser morto por desonra, ou sei lá... O que ela fala é realmente a verdade. Mas, mais uma vez, não justifica coisa alguma. Ela continua a falar, usando o que restou de seus argumentos para me convencer. – Pense no seu avô, Cézar. Amasso o bilhete novamente em minhas mãos. Encaro-a. – O que meu avô tem a ver com isso? – indago. Ela responde, com certo cuidado: – Ele, com toda certeza, diria a você que fosse à missão, se soubesse que você cogita não ir. Pense nas outras pessoas que também sofrem da mesma doença que seu avô sofria... – Todos eles estão mortos – a frieza domina minha voz. – E você acha que os matando o problema se resolve? – ela fala, e eu tremo. – Não entendi... – digo. – Eu não sei muito sobre doenças, mas sei que não se derrota uma bactéria como essa simplesmente matando os doentes... Se fosse, eles não estariam nos mandando à expedição com o Alvo: penicilina. Estremeço. De alguma forma, ela tem razão, como sempre. Demonstro desinteresse e desamasso o bilhete, voltando a estudá-lo. Ela bufa e volta a comer. Por longos minutos, o silêncio predomina, e só ouço o barulho da colher raspando o fundo da tigela.

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O que Dani disse começa, então, a martelar em minha cabeça. O que meu avô diria de minha atitude? O que ele pensaria disso? Eu sei a resposta, mas não penso nela. Ainda dói pensar nele, e imaginar sua voz me dando uma bronca me causa arrepios. Dani termina de comer e leva a tigela a pia. Depois de lavá-la, ela limpa as mãos na calça e se volta para mim. – Você tem mesmo certeza da sua escolha? – ela pergunta. Não respondo, e isso a deixa um pouco irritada, percebo. Ela bufa como sempre faz perante situações como essa, e caminha até a porta. Ela a abre e hesita. – Eu preciso ir, então – ela diz, de costas para mim. – O Ladeira pediu para que chegássemos após o almoço, para que pudéssemos ser preparados para a saída, à noite... Ela funga, e isso é um indício de que chora. – Bem... – ela diz, depois de um tempo. – Não posso me atrasar. Adeus, Cézar. Espero que não te castiguem tão severamente... Ela sai pela porta e a fecha atrás de si. Quando ouço o barulho da porta se fechando, caio, finalmente, na real. Não posso deixá-la partir sem mim. E também não posso desperdiçar a chance de – de alguma forma – vingar meu avô. Na verdade, não vingar, mas vale-lo. Fazer sua morte valer alguma coisa. Levanto-me aos tropeços da cadeira e corro até a porta. Irrompo para o dia mormacento e grito a plenos pulmões o nome dela. Ela ouve meu berro e se vira. – Eu mudei de ideia – continuo a berrar. – Vou partir contigo.

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Ela sorri e corre em minha direção de braços abertos.

··· Escuto as batidas na porta e

percebo que Dani já

está

impaciente com minha demora, mas não me atrevo a andar mais rápido. Esta pode ser minha última vez no cômodo que eu costumo chamar de casa, e não quero ir embora sem me despedir pelo menos umas mil vezes de cada móvel. São poucos, então não demoro tanto tempo assim. Borrifo um pouco de água no corpo e retiro a camada de suor que reveste minha pele. Limpo o sangue seco das minhas costas e tiro do corpo o máximo de sujeira que consigo, mas ainda assim algumas manchas insistem em ficar. Retiro com cuidado a roupa esfolada do corpo, para que não esbarre em meu braço. Este, lateja de leve, não tão freneticamente como antes. Mas ainda dói. Ponho a roupa mais limpa que encontro e, depois que termino o trabalho por completo, antes de sair, caminho até a cama de meu avô. Seu cobertor rançoso se encontra embolado no canto da cama, do jeito que Dani deixou. Deito-me e me enrolo nele, aspirando seu cheiro.

As

lágrimas,

então,

inundam

meus

olhos

e

caem

com

cachoeira. Não há como não chorar quando penso nele, no quão bom ele fora para mim... E eu, com meu egoísmo, recusando a chance de, se tivermos sorte, buscar o que pode curar quem estiver na mesma situação dele... Peço perdão a ele. Simplesmente porque acho que falhei. Não fui bom o bastante para poder salvá-lo.

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Um calafrio percorre o meu corpo enquanto soluço e percebo sua presença. Ele está ali, posso jurar. Sinto-o me abraçando e me dizendo que tudo ficará bem e que não tenho culpa do acontecido. O que aconteceu tinha de acontecer, porque tudo tem seu porque, nada é por acaso, é o que ele diz. Peço para que ele fique, mas ele não me ouve. Apenas continua repetindo a mesma coisa, talvez para que eu memorize de vez aquilo. De repente, ele vai desaparecendo... Indo embora aos poucos, sua voz se tornando mais branda... Até que some por completo, ao som das batidas incessantes de Dani à porta. Limpo as lágrimas e me sento à cama. Tenho um alvo agora. Uma missão à frente. Não posso falhar. Enrolo o cobertor de meu avô e o carrego comigo até a porta. Antes de fechá-la às minhas costas, dou uma última olhada em volta do cômodo. Avisto-o deitado à cama e sorrio em forma de despedida. – Adeus – sussurro, e fecho a porta atrás de mim, levando seu cobertor.

··· – Chegamos cedo demais – Dani conclui quando avistamos o portão do Centro de Treinamento Intensivo. Ele está fechado e há duas pessoas do lado de fora, que reconheço como sendo dois dos sete buscadores: Matheus e o garoto de olhos verdes que encarou Dani no dia anterior. Para mim, parece que isso aconteceu há anos, mas é somente uma impressão. Assim que chegamos perto deles o suficiente para que seja civilizado da nossa parte cumprimentá-los, Matheus faz isso antes de todos:

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– Olá – ele diz com um sorriso amarelo, e estende a mão para mim. Aperto sua mão sem jeito e ele a dirige à Dani. Ela também a aperta e sorri. Dani cumprimenta o garoto de olhos verdes com um sorriso e ele a responde também com um sorriso. Não faço o mesmo. Depois de minutos calados de uma forma incômoda, finalmente um de nós abre a boca. – Caramba! –

Matheus exclama. – O

senhor Ladeira está

demorando hoje, não é? Fazemos que sim com a cabeça. O jeito que ele fala me deixa um pouco intrigado, porque ele não desfaz o sorriso do rosto quando diz isso. Na verdade, Matheus não desfaz o sorriso amarelo nem quando termina de falar. – Talvez seja porque as fraldas geriátricas dele acabaram ou algo parecido – responde o garoto de olhos verdes. Dani e Matheus riem de uma forma insana, mas eu não vejo graça no que ele diz. Na verdade, não entendo o que ele quer dizer com “fraldas geriátricas”, mas apenas finjo que não vi graça na piadinha infame. – Vai ver ele perdeu a hora e só... – digo, para acabar com os risos. – Ou aconteceu algo... – Eu sei... – o garoto de olhos verdes diz, ainda rindo. – Só quis tirar o clima pesado do ar... Reviro os olhos.

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– Tanto faz – é o que respondo. Passam-se instantes, e o garoto de olhos verdes tenta puxar assunto comigo. – Por que você está agarrado a esse cobertor? – ele faz a pergunta de um jeito que, pra mim, soou bem insolente. – Isso não é da sua conta – cuspo. Depois disso, o silêncio incômodo retorna. É quebrado quando avistamos de longe o Sargento Ladeira, seguido de sua filha – e agora buscadora – Clara. – Até que enfim – o garoto de olhos verdes sussurra ao mesmo tempo em que Dani diz. Vejo que ela cora e ele dá um sorriso um tanto cafajeste. Bufo. O Sargento Ladeira nos cumprimenta e sua filha o imita. Pede perdão pela demora, dizendo que estava em reunião com Augusto Tameirão. Estremeço ao ouvir o nome do governador de Morada. Ladeira, então, abre os portões e meu estômago embrulha enquanto adentramos o Centro. Daqui a segundos estaremos saindo de Morada, nosso único lugar seguro. Por uma boa razão, isso é claro, mas isso não nos fará correr menos risco. Somos levados até a saleta do Sargento Ladeira e esperamos o restante dos buscadores chegarem. Um a um, eles chegam. Primeiro Anna, – que ri quando entra e me vê abraçado ao cobertor de meu avô–, depois Marcos. Eles se sentam e então Ladeira começa a conversar conosco. Vem com a mesma conversa de sempre, que estamos fazendo isso para o bem maior da população e que devemos ser gratos por estarmos nessa jornada. Depois nos dá as últimas instruções e então sou surpreendido. – Bem – ele fala quando termina o extenso discurso –, trouxe aqui para contar um pouco da experiência de sair de Morada o único

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sobrevivente da expedição do semestre passado, Marconi Bonini. Pode vir, Marco. Quando Ladeira chama, entra pela porta um garoto parrudo de um metro e noventa de altura, com um olhar vidrado, seus olhos rodeados de olheiras. Ele veste uma regata branca junto de uma calça militar e dá pra ver as altas queloides que se expõem em seus braços nus e musculosos. Estremeço. Já ouvira falar de Marconi, inclusive havia conversado com Dani sobre ele há três ou quatro dias atrás. Só não o imaginava assim. Ladeira pede para que ele nos diga qual é a melhor arma a ser usada contra um morto-vivo. Marconi diz que as armas de longa distância são as mais aconselháveis, mas, quando essas não estão em nosso alcance, podemos usar as espadas ou katanas. Nunca, em hipótese alguma, usar facas em um embate. Retenho as dicas de Marconi muito bem. Ele vai embora, deixando os comentários dos outros buscadores entre si para trás. Depois que ele sai, somos levados por Ladeira para fora de sua saleta. Ele pede para que formemos uma única fila. Pede para que um ajudante distribua as mochilas com os suprimentos e os recita em voz alta. Não presto atenção no que ele diz, estou tonto e amedrontado. Pego a minha mochila e guardo o cobertor de meu avô, no qual estive grudado todo esse tempo, dentro dela. Depois, ajeito-a as costas de um jeito bem apertado. Depois que Ladeira termina de falar o que estamos carregando na mochila, ele nos encaminha para o portão principal de Morada. O portão muito bem vedado e protegido, que duas vezes por ano é aberto para despejar jovens à morte certa. Ninguém diz nada, todos estão concentrados no que encontrarão fora do Grande Portão Principal. Ladeira diz, enquanto caminha conosco,

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que antes de sairmos eles entregarão as armas a nós. Ele diz que ganharemos as armas com as quais temos mais afinidade, de acordo com suas observações. Não consigo imaginar a arma que ganharei, porque não tenho afinidade nem mesmo com um pedaço de pau, quem dirá com uma metralhadora, ou sei lá. Assim que chegamos ao Grande Portão Principal de Morada, meu coração palpita. Estou suando feito um porco e hiper ventilando desde que pus os pés para fora do Centro de Treinamento Intensivo. Quero muito saber o que há fora daqui, mas ao lembrar o que me espera, a vontade é de sair correndo e desistir da missão. Sei que todos estão assim, porque é inevitável não estar assim, então não me dou ao luxo de sair correndo. Ladeira pede para que paremos. Paro e avisto um grupo pequeno de pessoas caminharem na nossa direção. Percebo que são os familiares dos buscadores. De alguns, na verdade. A mãe assustada de Marcos o aperta num abraço forçado. Os pais de Matheus choram e ele os conforta. O Sargento Ladeira abraça Clara, mas ela não retribui o abraço. Um jovem, que penso ser seu irmão, dá tapinhas encorajadores nas costas do garoto de olhos verdes. Por fim, Dani, Anna e eu somos os únicos que estão sós. Anna encara a cena com um ar de desgosto. O que me resta é abraçar Dani e impedi-la de chorar. Mas quem acaba chorando sou eu, então dá na mesma. Ladeira, então, diz que o tempo acabou e

que devemos

continuar. Percebo que a noite já caiu. A lua brilha de um jeito singular lá em cima. Como se soubesse que precisaremos da sua luz dali pra frente. Depois que todos os parentes vão embora, Ladeira e seus ajudantes distribuem as armas. Marcos recebe uma metralhadora e

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uma caixa com munição extra. Ele guarda a munição na mochila. Anna e Dani recebem uma katana cada uma e um saco de granadas militares. Ao ver Dani empunhando a katana, meu coração bate mais forte e o terror ameniza um pouco, porque sei o estrago que Dani pode causar usando aquela arma. Matheus e João recebem escopetas e uma caixa com munições extras, cada um. E para mim e Clara é oferecido um saco de granadas e uma pistola para cada um, junto de uma caixa com munição extra. Guardo a caixa de munição na mochila e a prendo forte às costas novamente. Empunho a pistola e sinto que estou pronto. Mas o que acontece dali pra frente é muito rápido e meus sentido não conseguem acompanhar. Um segundo depois de todos estarem prontos, minha mente entra em estado estático e só acorda depois de o Grande Portão Principal de Morada ser fechado às nossas costas. Na verdade, o que realmente me acorda do transe é o grito de terror de Clara. Ela grita para que eu corra. Viro-me e fixo meu olhar no ser que corre em minha direção e um cheiro pútrido queima em minhas narinas. O morto-vivo corre sem freio em minha direção, mas não sei se corro ou se fico, para que ele acabe com isso tudo de uma vez.

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07 VIVO

Antes que eu possa reagir, a cabeça do morto-vivo que vinha em minha direção rola pelo chão, decepada pela katana de Anna, que me encara com um sorriso diabólico no rosto. Ela acabou de salvar a minha vida. Ela desvia, por fim, o olhar de mim, não me dando tempo para agradecer. Corre em direção a outro morto-vivo que está atrás de Clara. Ela grita e dá tiros para todos os lados, mas nenhum deles acerta o zumbi. Anna, em um movimento rápido, decepa em um único golpe o braço esquerdo do ser, que desaba no chão guinchando e expelindo um líquido preto pela ferida. – Lembrem-se do que o Ladeira disse – grita Dani, em algum lugar atrás de mim, ao som de sua katana cortando o ar. – Não deixem o sangue deles entrar em contato com a pele! Sinto um arrepio subir pela minha espinha. Sei muito bem o que acontece se o sangue deles entrar em contato com a nossa pele, caso

exista

alguma

ferida

aberta

nela.

Se

o

sangue

deles,

contaminado, entrar em contato com o nosso sangue são, nós seremos um deles.

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Olho em volta. Clara está tão apavorada quanto eu, estática e de olhos arregalados, a pistola pendendo na mão direita, inutilizada. Observa atentamente a situação, assim como eu, que não conseguiria mover um músculo nem se eu quisesse. Respiro com dificuldade, o cheiro pútrido impregnado nas minhas narinas. Conto quantos deles nos atacam. Ao todo são doze. Quatro já se estendem pelo chão, deixando-nos com oito. Ouço um tiro bem atrás de mim, tão perto que faz meus ouvidos zumbirem. Viro-me e encaro o garoto de olhos verdes, que não sustenta meu olhar. Ele apenas encara o corpo, agora inanimado, do morto-vivo que ele acaba de matar. Agora são sete, penso. Um para cada um. Ouço um grito estridente e reconheço sua dona. É Clara, que novamente está sendo perseguida por um deles. Anna está ocupada, junto de Marcos. Ela tenta afugentar dois zumbis para que Marcos possa acertá-los com sua metralhadora, mas estes são muito mais rápidos e ágeis que os outros. Procuro Dani e a encontro junto de Matheus, levantando-o do chão. Quando ele se levanta, percebo que manca. Deve ter torcido o pé na correria. Assim que ele se estabiliza, mira em um dos zumbis que persegue o garoto de olhos verdes. Ele dispara e a bala acerta em cheio a cabeça do morto-vivo, que despenca no chão, levantando poeira. Ainda há um zumbi atrás do garoto de olhos verdes, que atira cegamente. Dani corre em direção a ele, disposta a ajudá-lo. Bufo e vejo que Clara ainda foge do zumbi, correndo de um lado ao outro, com a pistola já descarregada. Não me resta opção senão ajudá-la. Ando até ela, procurando não fazer barulho, mas, mesmo assim, o morto-vivo percebe minha presença. Por um segundo ele hesita, confuso se corre atrás de mim ou se continua

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atrás de Clara. Porém eu pareço ser mais apetitoso, porque ele cambaleia e se arrasta na minha direção. Meu coração dispara. Ver a criatura cuspindo e rangendo os dentes, cada vez mais perto de mim, me faz entrar em estado de choque. Mas preciso fazer algo. Preciso me mover. Sem pensar, levanto minha pistola e aponto para o monstro, apertando os olhos e disparando. Abro os olhos e o vejo estatelado no chão, o furo da bala em sua testa. Eu o derrubei. Eu consegui. Não sei por quanto tempo permaneço encarando o corpo sem vida do zumbi, mas quando Dani encosta a mão em meu ombro, eu pulo e enrijeço. – Está tudo bem, Cézar – ela diz, levando as mãos ao alto, como se rendesse. – Já acabou. Acabamos com todos. Eu assinto de leve. Um mal estar que eu não tinha notado antes por causa do choque de adrenalina toma conta de mim. Olho em volta. Todos ainda estão perplexos, balançando a cabeça e ofegando. Dani me puxa em direção ao garoto de olhos verdes e Matheus, que estão sentados no chão. Quando chego perto deles vejo que o garoto de olhos verdes ajuda Matheus com seu pé machucado. Ele retira, devagar, a bota de seu pé. Matheus se contorce de dor. – Desculpe – diz o garoto de olhos verdes. – Tudo bem – Matheus responde. – Pelo menos não fui devorado por nenhum deles. Ele ri de sua própria piada, mas ninguém o acompanha, fazendo seu riso sumir aos poucos. Quando o garoto de olhos verdes remove

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a bota por completo, observo que o calcanhar de Matheus está inchado e roxo, e a unha do seu dedão está estilhaçada e empapada de sangue. O garoto de olhos verdes torce o nariz e Dani desvia o olhar. Eu continuo encarando o pé por um longo tempo, e ninguém diz nada. Ouço passos caminhando em nossa direção. Assim que chega perto o bastante para que possamos ouvir, Marcos diz: – Já recarregamos as nossas armas – ele se refere a ele e Clara. – A coisinha ali não sabia nem diferenciar o cano da pistola com a entrada das balas – Anna diz debochada. Ela aponta para Clara, que franze o cenho e murmura algo, depois se aproxima de Matheus. – O que houve com ele? – ela pergunta. – Parece que ele quebrou o pé – o garoto de olhos verdes responde. Ela balança a cabeça. – Se ele tivesse fraturado o pé não conseguiria mexer os dedos – ela aponta para os dedos inquietos do pé de Matheus. Anna revira os olhos e bufa, mas Clara a ignora e continua: – Ele deve ter só torcido o calcanhar. – O que vamos fazer com ele, então? – Anna pergunta. Todos a encaram, exceto Marcos, que assente. – Eu tenho um kit de primeiros socorros na mochila – Clara diz. – Posso ajudá-lo. Ela tira a mochila das costas e a abre. De dentro dela sai uma caixinha de plástico branca com uma cruz vermelha no centro.

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– Mas você sabe usar isso? – Dani pergunta, mas eu já sei a resposta. Clara ajudava as enfermeiras da Área Hospitalar a cuidarem das crianças doentes e machucadas quando nós estávamos em Morada. É claro que ela sabe usar isso. Como resposta à pergunta de Dani, Clara desenrola um pedaço de gaze e a encharca com um óleo marrom e fedorento. Coloca sobre o inchaço no calcanhar de Matheus e massageia de leve. Ele arqueja e tenta retirar o pé. – Quanto mais rápido eu fizer isso, mais rápido o inchaço e a dor vão embora – fala Clara. Matheus assente, e ela continua. Retira um pedaço de faixa do kit de primeiros-socorros e começa a desenrolá-la. – Essa lesão é antiga – fala Matheus, rangendo os dentes, enquanto Clara passa a faixa em seu calcanhar. – Estava quase curada por completo, mas então nós fomos obrigados a correr e eu, sem querer, pus força demais e meu pé não suportou... – Eu imaginei que já estivesse machucado – Clara responde. Ela termina o trabalho, guarda o kit na mochila e se afasta de nós. Ajudo Matheus a se levantar e ele apoia o braço em meus ombros. Ele me agradece com um sorriso, e seguimos em frente.

··· Estou carregando Matheus às minhas costas há quase uma hora e quase não sinto mais minhas pernas. Estamos em uma rua larga, cheia de casas grandes e luxuosas que foram bonitas algum dia. Sob a luz da lua que se levanta cada

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vez mais, tudo se torna sombrio. A escuridão nos engole cada vez mais, mas mesmo assim ainda consigo imaginar esse mundo antes do Vírus. Hoje ele está destruído, as casas luxuosas caindo aos pedaços, como se o Vírus também tivesse tomado conta delas. Na verdade, é como se o Vírus tivesse tomado conta de todo o cenário do mundo fora dos portões de Morada. Os céus estão cinzentos, como se estivessem prontos para derramar chuva, mas não chove. O mundo aqui fora é tão silencioso que consigo ouvir a respiração de Anna, que está a metros de distância de mim, à frente do grupo. Ela e Marcos, que está ao seu lado, estão nos guiando. Cada um segura um mapa fornecido pelo Sargento Ladeira, indicando para onde devemos ir. Não me sinto muito bem em pensar que estou sendo guiado por uma pessoa como Anna. Ela é hostil e sem coração, e não há como manter um diálogo decente com ela. Sei disso porque convivi com ela desde que entrei para o Centro de Treinamento Intensivo. Não sei como Marcos está conseguindo lidar com ela sem discutir ou ser socado. Lembro-me de que toda vez que algum instrutor a repreendia, ela partia para a agressão verbal. Depois para a física. Penso até que ela esteja aqui como uma punição, por tudo o que aprontou em seu tempo no Centro. Mas parece que ela não está encarando isso como tal coisa. O sorriso diabólico de satisfação que ela me lançou quando salvou minha vida decepando a cabeça daquele zumbi não pareceu nada triste com a expedição. E ela salvou minha vida. Tento afastar esse pensamento, porque não suporto pensar que devo algo a ela. Olho em volta. Vejo que Marcos e Anna, que estão relativamente longe de nós, debatem sobre algo. Apontam para o

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mapa e depois para o caminho, e desenham algo no ar com os dedos. Desvio meu olhar deles e observo Clara. Ela anda sozinha, vacilante, olhando para os lados de um jeito quase compulsivo. Deve estar com medo. Eu estou com medo. Saí do meu único lugar seguro, onde sempre pensei – ou pelo menos achei – que estava protegido, e agora estou aqui, à mercê de seres letais que querem me devorar... Pela primeira vez desde que saí sinto saudade de casa. Talvez eu ainda não tenha sentido porque não deu tempo de sentir, e na hora do ataque não era o momento oportuno. Mas agora sinto um vazio enorme dentro de mim. O mesmo vazio que senti quando fui sorteado para sair de Morada e deixar meu avô. O mesmo vazio que senti quando vi meu avô morrer diante dos meus olhos e não pude fazer nada. O mesmo vazio que estou sentindo nesse momento, quando vejo Dani tão perto do garoto de olhos verdes. Os dois riem e trocam olhares. Acho que Matheus percebe que eu estou olhando os dois demais. – Eles são namorados ou algo assim? – ele pergunta, se referindo a Dani e ao garoto de olhos verdes. Endireito meu corpo, ajeitando o braço dele em meus ombros, e paro de olhar para eles. – Não sei – é o que respondo. – Eu não sei de mais nada. – Eu te entendo – diz ele. Matheus suspira e observa o horizonte. A noite já caiu por completo e a temperatura baixou um pouco, mas não tanto para que seja preciso se agasalhar.

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– Pelo que eu vi você tem uma família – digo. – Então acho que você não me entende. Ele abre a boca para dizer algo, mas se interrompe. Talvez fosse me perguntar o que houve com a minha família, mas desistiu por achar imprudente fazer isso. Também não conto a ele sobre o acontecido. Minhas pernas doem e eu arfo. Minha blusa está empapada de suor e minha garganta está seca. Preciso de água e descanso, mas não me atrevo a pedir para que eles parem. Matheus geme ao meu lado. Presumo que seja pela dor no pé machucado. Ou talvez seu outro pé também esteja doendo, por estar sustentando todo o seu peso, quando este devia estar sendo divido em dois. Acho que Dani percebe que estou com dificuldade em continuar, porque ela vem em direção a mim e pergunta se preciso de ajuda. – Não, está tudo bem – respondo. – Eu aguento mais um pouco. – Não seja bobo, Cézar – ela me repreende. – Eu te ajudo. Ela levanta, então, o outro braço de Matheus e, quando vai colocá-lo sobre seus ombros, o garoto de olhos verdes se aproxima e intervém. – Não posso ver você fazer isso e ficar de mãos abanando – ele diz sorrindo para ela e ela encolhe os ombros, abobada. Ele avança e toca a mão dela de leve, passando os braços de Matheus para os seus ombros. Tento não fazer contato visual com ele e percebo que Dani não desgruda os olhos dos dele. Ignoro a cena e

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todo o resto, apenas focando em observar o mundo novo que se expande à minha volta.

··· Quando decidimos parar e montar acampamento para podermos descansar, minha cabeça lateja de dor e os músculos da minha perna formigam. Posicionamos as mochilas na calçada e visualizamos uma casa que parece estar vazia. Marcos arromba o portão com a metralhadora e depois Anna se junta a ele para que, juntos, eles possam derrubar a porta aos chutes. Assim que a porta cai, pegamos nossas mochilas de volta e entramos por ela. Anna, Marcos, Dani e o garoto de olhos verdes vasculham a casa rapidamente enquanto Clara, Matheus e eu esperamos no andar de baixo. – Nenhum sinal dos cabeças-de-bagre desgraçados – Anna diz quando volta. – Vamos passar a noite aqui e, quando amanhecer, vamos partir novamente. Marcos, vede a entrada da casa com a porta. Não quero que meu sono seja interrompido por zumbis. Marcos assente e faz o que ela pediu. Depois, os dois sobem as escadas e não retornam mais, o que significa que dormirão lá em cima. Percebo que Dani e o garoto de olhos verdes não retornaram para dar a notícia de que a casa estava limpa, permaneceram lá em cima. Uma raiva que eu não sei explicar ferve dentro de mim. Tento fazer parar, mas é quase impossível de controlar.

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– Vai dormir agora, C...? – Matheus pergunta, e então solta uma risadinha. – Qual seu nome mesmo? – É Cézar – respondo. Ele está escornado em um dos sofás da sala de estar, com os olhos fechados. Clara está sentada no sofá ao lado do dele, olhando a janela pela fresta da cortina. – Não estou com sono – é o que respondo. Minto, é claro. – Pois eu estou – ele boceja. – Hoje foi difícil. E estranho. E novo. Há muitas formas de descrever o dia de hoje, mas a forma que mais abrange é... – Nojento – murmura Clara, tão baixo que penso que foi coisa da minha cabeça. – Exatamente – concorda Matheus. – Hoje foi, definitivamente, o dia mais nojento da minha vida. Ele ri, mostrando os dentes. Não consigo reprimir um sorriso que se forma em meu rosto, e Clara também esboça um sorriso semgraça. Ficamos em silêncio por um tempo, até que eu me aproximo deles e me sento no enorme tapete que cobre a sala de estar bem abaixo do sofá onde Clara está sentada. – Acho que alguém cedeu ao cansaço – Matheus diz, sem olhar para mim. Eu rio. A certa altura, quando penso que Matheus e Clara já dormiram, me deito no tapete felpudo e me forço a fazer o mesmo, mas não consigo pregar os olhos. Fico apenas encarando o vazio e pensando em Morada, nas vidas que foram sacrificadas pelo tal “bem maior”...

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Clara se levanta, de repente, do sofá, e eu permaneço onde estou. Ela passa por cima de mim sem fazer barulho e caminha pela casa, observando a decoração. Ele se detém em um amontoado de porta-retratos em cima de uma mesa. Pega um deles e o estuda minuciosamente. Sento-me no chão devagar, para que ela não me ouça levantar. – Também está sem sono? – pergunto, depois de um tempo apenas observando-a. Ela treme e deixa o porta-retratos cair no chão. – Você me assustou, droga! – Desculpe – digo. Ela solta o ar pela boca, fazendo um barulho engraçado. – Tudo bem... – ela responde. – É difícil não se assustar depois de hoje... Eu assinto, mas não sei se ela vê, por causa da escuridão. – Eu não consegui pregar o olho – ela diz, enquanto caminha para o sofá novamente. – Nem eu – respondo. – Mas também acho que não quero pregar o olho. Não sei se os cabeças-de-bagre, como a Anna diz, sabem arrombar portas. Ela ri. – Não gosto dela – ela confessa, e eu sei de quem fala. – Eu também não – concordo. – E gosto menos ainda da ideia de ela ser a líder. – Quem disse que ela é a líder? – ela questiona. – Ela que se auto-intitulou líder. Ninguém a pôs no comando.

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– É, você tem razão. Mas diga isso a ela. Clara bufa e passa os dedos pelos cabelos, desfazendo a trança ensebada por causa do suor. – Nós deveríamos estar unidos, mas ela não facilita... – ela reflete e eu faço que sim com a cabeça. Matheus começa a chutar o ar e a falar coisas que não fazem sentido e eu o cutuco com pé. Ele se levanta de uma vez, ensopado de suor. Diz que teve um pesadelo. Zumbis estavam comendo seu pé, que agora dói incessantemente. Clara o assegura que o óleo fará efeito daqui a algumas horas. – Ah, moça... – ele procura as palavras certas. – Eu... Eu não sei como te agradecer por aquilo... Sem você, acho que a Anna tinha obrigado a todos me deixarem pra trás. Nós rimos. – Meu nome é Clara – ela diz. – E eu só espero que tenha valido mesmo a pena salvar você. – Mas você só enfaixou a perna dele – eu digo sarcástico. – Qualquer um faz isso. Ela me olha com falsa incredulidade, como se eu a tivesse desafiado. – Vá dormir, garoto, sua hora já passou – ela ironiza. Nossos risos aumentam cada vez mais. Nunca ri como estou rindo agora, e a sensação é boa. Os músculos da minha face se contraindo, o tronco enrijecendo e relaxando quando respiro para pegar ar e rir mais. Matheus empolga e resolve contar “piadas

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infames”, como ele diz. Não entendo a maioria delas, mas rio da risada de Clara, que contagia qualquer um. Enquanto estou aqui, junto deles,

rindo

como

nunca

ri

antes,

quase

me

esqueço

das

responsabilidades, do mundo lá fora, do Vírus, da saudade de meu avô, e da tristeza que me acompanha desde que nasci. Nunca senti isso antes... Sinto-me vivo.

··· Depois que Matheus esgota todo o seu repertório de piadas infames, ele decide voltar a dormir. Também decido que está na hora de tentar pregar os olhos de novo. Deito-me no tapete felpudo e tiro da mochila o cobertor de meu avô, que eu trouxe junto de mim. Enrolo-me nele e aspiro o cheiro de ranço que faz com que eu me lembre dele. Retenho as lágrimas, mas elas vencem, como sempre. – Você está chorando? – Clara pergunta, deitada em no sofá, acima de mim. – Não – digo, com a voz embargada. Fungo e limpo as lágrimas, mesmo sabendo que

ela não consegue

me

ver por causa da

escuridão. – O que você achou naqueles porta-retratos em cima da mesa? – pergunto, para tirar qualquer coisa que esteja pensando sobre mim de sua cabeça.

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– Ah... – ela começa. – Eram fotos de família, pelo que pareciam. As pessoas que foram algum dia os donos dessa casa... E que agora devem estar vagando por aí comendo cérebros ou mortos. Estremeço, porque o que ela diz é realmente a verdade. – Eu só queria... – ela vacila nas palavras, talvez porque começa a chorar. – Eu só queria achar um jeito de fazer isso tudo parar... Porque nós vamos algum dia acabar não existindo mais. Vamos nos extinguir... Eu tenho medo disso... Eu tenho medo... Ela não diz mais nada depois disso. Ouço seu choro e forço para não acompanhá-la. – Eu costumava não acreditar que algum dia seria possível eles descobrirem uma cura – digo, quando seu choro se torna quase inaudível, me lembrando de Dani insistindo que existia uma cura há alguns dias atrás. – Mas, depois do que eu vi hoje, não vai ter uma noite que eu não reze para que eles achem uma cura logo. Ouço-a suspirar. – Meu pai também acha que quem acredita na cura e dá sua vida para encontrá-la é fraco – ela fala. – Ele me chamava de fraca, assim como minha mãe. Tudo o que aprendi foi com ela, inclusive o amor à vida. Por isso não suporto ver os outros sofrendo... Lembro-me de quando o pai de Clara se aproximava dela e ela não demonstrava sentimento algum por ele. Se meu pai também dissesse que o que eu acredito é uma fraqueza eu faria o mesmo. Se eu tivesse um pai, na verdade.

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Não sei o que dizer para confortá-la. Nunca confortei ninguém, na verdade. O confortado da história sempre era eu, e era Dani quem fazia isso. Acho que preciso começar a praticar o ato desde já. – Você deve esquecer isso agora, Clara... – digo. Você pode se sair melhor, digo a mim mesmo. Tento novamente: – Deve focar na missão e retornar viva e com a penicilina em mãos, mostrando para ele que você não é fraca... O único fraco aqui é ele, que manda jovens à morte certa a cada seis meses ao invés de ir por conta própria. Não

é

um

dos

melhores

aconselhamentos,

mas

estou

começando agora. – Posso chegar lá com a penicilina e tudo mais, mas do que vai adiantar? – ela pergunta. – Meu sonho é ter recursos para encontrar a cura para o Grande Vírus. Que eu nem sei o que é... Ela chuta o ar. Não sei o que dizer, então permaneço em silêncio. Por fim, ela chega a uma conclusão. – Mas de uma coisa você tem razão. Eu tenho que mostrar a meu pai que não sou fraca. Que nem tudo se resolve com a força bruta. Que em vez de treinar jovens a matar os mortos-vivos, deveriam estar dando aulas sobre parasitologia e genética a eles. Você tem razão, você tem razão... Ela murmura mais alguma coisa que não ouço. Talvez esteja falando consigo mesma. Minutos depois, ouço que sua respiração se torna cada vez mais branda. Reflito sobre o dia. Meu primeiro dia fora de Morada. Matei um zumbi, me cansei bastante, odiei Anna com todas as minhas forças, conheci o mundo novo e fiz dois amigos. Esse dia ficará marcado na

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minha memória para sempre. Foi o dia em que me senti vivo, mesmo com tudo o que está acontecendo. Deixo, então, que o cheiro do ranço de meu avô me traga as lembranças boas de Morada e da minha antiga vida e caio num sono pesado e sem sonhos.

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08 PROBLEMA

Sou acordado pelos cutucões incessantes e dolorosos de Anna pouco antes de os raios solares darem a luz da sua graça no horizonte. Seus dedos grossos e ásperos afundam em minhas costas, me forçando a ficar de pé antes que ela apele para os pontapés. Enquanto se senta no sofá, Matheus coça a barbicha rala e passa a mão de leve no rosto. Parece que Anna o acordou de uma forma não tão mais gentil que como fez comigo. Clara se espreguiça devagar e boceja, olhando para mim. – Bom dia, meninos, e... – ela diz, ainda bocejando. – Cézar, seu rosto está sujo. Passo a mão em volta dos lábios rapidamente, removendo a casquinha que se formou nos cantos da boca durante a noite. Murmuro um “obrigado” e ela sorri. – Parece que além de falar dormindo, alguém baba enquanto dorme – diz Matheus. – Eu não falo quando estou dormindo –

retruco, mesmo

sabendo que é impossível eu conhecer realmente a verdade.

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– Estou dizendo que você fala – ele ri. – Mas se não quiser acreditar, tudo bem... Ah, e você pode me explicar o que a Dani te fez para que você a chame tanto durante a noite? Meu rosto queima enquanto ele me imita e eu desvio o olhar dele, porque sei que estou vermelho. – Não deve ser da sua conta, Matheus, deixe-o quieto – Clara intervém, meio sorrindo, meio irritada por ter sido acordada, e Matheus simplesmente ri. – Eu só estou brincando, pessoal, calma – diz ele. – Quero dizer... Eu não estava brincando quando disse que o Cézar não parava de chamar o nome “Dani” à noite, mas acho que vocês entenderam. Levanto-me do chão e me afasto deles, mas consigo ver pelo canto do olho que Clara dá um cutucão com seu ombro na costela de Matheus. Não sei muito bem para onde estou indo, apenas quero me afastar de Matheus antes que eu o ofenda ou algo assim. Ninguém tem culpa dos meus problemas. Sem prestar atenção em meu andar, chego a um cômodo da casa que parece ter sido algum dia a cozinha. Nunca vi uma casa tão bem dividida assim antes, e não me acostumaria nunca em ter que me mover tanto para chegar aos outros cômodos, a ponto de subir escadas para fazer isso. Detenho-me quando vejo que Dani está andando de um lado para o outro no cômodo, à procura de algo. Penso em dar meia volta e sair, mas não consigo me mover. Ela percebe minha presença e se vira, e é tarde demais.

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– Cézar, hmm... Oi – ela parece sem jeito. Peguei-a de surpresa. – Pelo visto você já está... de pé. – É, acho que sim – digo, assentindo com todo o corpo e me preparando para virar e sair. – Não, espera – ela fala quase hesitante. – Me ajuda a procurar comida? Não consigo dizer não, então simplesmente suspiro e me junto a ela. Ao ouvir a palavra “comida” meu estômago é acordado e ruge como um filhote de leão dentro de mim. Não comi desde que saí do Centro de Treinamento. Mas então me vêm à mente que em nossas mochilas há comida enlatada suficiente para uma semana. Então porque Dani está tão preocupada em achar comida aqui? – Por que nós simplesmente não comemos a comida que o Ladeira nos forneceu? – eu pergunto sem olhar diretamente a ela, enquanto reviro um armário de panelas velhas. – Não é óbvio? – ela pergunta. Eu faço que não com a cabeça. Ela bufa. – Nós decidimos que vamos poupar o máximo de comida possível para usarmos na volta. – Ah – digo. Agora sim faz sentido. – Nós queremos que a viagem de volta seja mais rápida que a de ida – ela me explica. Assinto de leve, mas não sei se ela vê. Ficamos em silêncio por um tempo. Encontro no fundo de um armário duas latas de milho e uma lata de pêssego, e ponho em cima da pia. Dani encontra outra lata de pêssego e uma de feijão cozido, mas é só isso.

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– Não é possível que em uma casa deste tamanho tenha só isso de comida – Dani murmura mais para si mesma do que para mim. – Talvez seja porque outros buscadores já passaram por aqui antes – proponho indiferente e ela concorda. – Que má sorte a nossa – ela diz. Eu não a respondo, apenas me viro e caminho em direção à porta. – Ei, Cézar – ela me chama novamente. – Por que você está me evitando tanto essa manhã? Na verdade, por que tem me evitado tanto desde que saímos de Morada? Minhas costas formigam. Não tem como escapar dela agora. Preciso contar o que estou sentindo, antes que eu morra com isso entalado na garganta. Decido conta-la o que me aflige. – Eu... – não começo bem. – Bom, eu não... não acho que o que você está fazendo seja certo... – O que eu estou fazendo de errado, Cézar? – ela quer saber. – Não é o que você está fazendo... É a forma como você está agindo... – eu tropeço nas palavras. – Você e aquele garoto... Bem... Você nem o conhece... Não pode agir como uma apaixonadinha por um garoto que você conheceu há dois ou três dias... – Do que você está falando? – ela me encara incrédula. – Do garoto de olhos verdes que vem flertando contigo desde que saímos de Morada. Na verdade, até antes disso – falo, como que revelando a maior verdade da história.

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– Você está falando do João? – Não sei se esse é o nome dele – respondo amargo. – O nome dele é João. – Tanto faz, eu não me importo. Ela abre a boca e começa a falar algo, mas se detém. Olha em volta, franze o cenho e pondera sobre o assunto. Até que chega a uma conclusão. – Cézar, você... – ela diz, em meio a um riso nervoso. – Eu não acredito... Cézar, você está com ciúmes do João? Meu rosto queima e eu solto o ar da boca numa forma de impaciência, o que a faz excluir a ideia de que eu esteja interessado nele. Até que ela entende, enfim, que é nela, na verdade, em quem estou interessado. Ela olha para o chão, morde o lábio e passa a mão pela nuca, sem jeito. – Você gosta mesmo de mim? – ela pergunta depois de um tempo, na mesma posição, sem olhar para mim. – Não é óbvio? – pergunto. Ela suspira e move o olhar em minha direção. Eu o sustento. – Eu sinto muito, Cézar... – ela começa. – Eu sinto muito, mas eu não gosto de você... Sinto um mal estar subindo pelo meu corpo, mas não esboço qualquer reação em meu rosto. Ou pelo menos penso que não esboço.

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– Quero dizer – ela tenta consertar –, eu não gosto de você desse jeito. O que eu sinto por você é algo totalmente diferente do que eu estou começando a sentir pelo João... Eu me sinto atraída por ele... Mas você... O que eu sinto por você é totalmente fraterno. Eu amo você, sim, Cézar, mas te amo como amigo. Agora, não seja tão bobo a ponto de confundir as coisas... Estou perplexo... Não sei o que dizer. Na verdade, não acho que tenho muito a dizer. Apenas balanço a cabeça em negativa, não querendo ter ouvido tudo isso. Mas então uma lembrança me vem à tona. O beijo que ela me deu na escadaria da Casa dos Sem-Lar. Será que aquilo foi verdade ou só um sonho que eu tive? – O que significou aquele beijo que você me deu quando soube que eu cogitava não partir na missão, então? – pergunto. Ela simplesmente suspira. – Eu precisava fazer aquilo... – ela responde. – Sabia que se você achasse que eu estava interessada em você, você resolveria partir conosco. Eu sempre soube, no fundo, que você gostava de mim. Ela solta o ar acumulado pela boca. – Me desculpe se acha que te usei... Mas eu não conseguiria pensar que você estaria sofrendo em Morada... – É o que ela diz, mas eu já não a ouço mais. Viro as costas e retorno à sala de estar, onde Matheus e Clara estão à minha espera.

··· 103


– Se você vier falar para mim que um cisco caiu em seu olho, eu juro que uso o bisturi do kit de primeiros socorros em você – Clara diz, enquanto comemos um pouco de feijão cozido com pêssegos. – Me fala por que você está chorando... – ela pede. – Tem a ver com sua família? Com a Dani? – Não é nada, eu estou bem – digo, fungando. Clara bufa e Matheus troca o braço de apoio. Estamos sentados no tapete felpudo no qual eu dormi na noite anterior. A cada colherada que levo na boca, o gosto amargo da comida me faz torcer o nariz. – Acho que não foi uma boa ideia comer a comida passada da validade – diz Matheus, se referindo aos enlatados que eu e Dani achamos no armário da casa. – Acho que “passada da validade” é apelido para essa comida – Clara fala. – Nas latas, a data de validade era de três anos atrás. Matheus ri, mas não entendo onde ele viu graça. – Eu só não protestei – continua Clara, depois que os risos de Matheus cessam – para não me envolver em problemas com a “chefa”. Ela se refere à Anna, que come na cozinha, junto do restante dos buscadores. Eles discutem a nossa rota de busca em voz alta. Matheus revira os olhos e eu gemo. Por fim, quando não suporto mais o gosto da comida em minha boca, eu afasto o prato para longe de mim.

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– Também desistiu de comer essa porcaria? – ouço uma voz falar atrás de mim. Viro-me e me deparo com o garoto de olhos verdes. João. Eu faço que sim com a cabeça e ele sorri um sorriso que, na minha opinião, parece um tanto debochado. – Nós vamos partir daqui a alguns minutos – ele volta a falar. – Estejam prontos e com as armas carregadas. Nós três concordamos em uníssono e ele se afasta. Levanto-me do chão, enrolo o cobertor de meu avô e o enfio dentro da mochila. Assim que preencho a carga da minha pistola, estou pronto para sair. Quando estamos passando pela porta, Matheus me pergunta: – Não deveríamos deixar a casa como encontramos? Sua pergunta soa alta demais e não sou eu quem a responde. – Não seja idiota, seu... idiota – Anna cospe. – Os cabeças-debagre não vão nos achar por causa de uns pratos sujos. O cérebro deles não funciona como o nosso. – Mas eu só achei que... – Matheus começa, mas eu o cutuco com o cotovelo antes que continue a falar e balanço a cabeça. Não vale a pena discutir com Anna. Quando todos já estão fora da casa, João veda a entrada com a porta, e partimos em linha reta, em direção ao nosso destino.

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Quanto

tempo

nós

gastaremos

para

chegar

ao

Centro

Farmacêutico? – pergunto a Clara quando já andamos o que me parecem horas. Ela está ofegante, com a testa molhada de suor e os cabelos grudados no rosto. Demora um pouco para me responder. – Acho que me lembro do meu pai dizendo que a viagem duraria de quatro a cinco dias se não houvesse nenhum atraso – ela para pra respirar. – É isso mesmo, não é, Matheus? Matheus não demonstra cansaço algum, ao contrário de nós. Os outros estão à frente, como sempre, e Dani está agarrada ao braço de João. Tento não imaginar o que eles fizeram no andar de cima da casa na noite passada, quando eu ainda tinha esperanças de que Dani sentia, sim, algo por mim. – É isso mesmo – Matheus concorda com Clara. Depois que ela recupera o fôlego, voltamos a andar. Os outros estão bastante distantes de nós. – Devemos acelerar para acompanhá-los? – Matheus pergunta, e a resposta é dada por nós três, em uníssono, depois que nos encararmos por longos segundos. – Nãaaaao! – E então caímos no riso. Anna e Marcos viram o pescoço para trás, curiosos, e reviram os olhos, voltando ao que estavam conversando. – Já disse que eu não gosto dela? – Clara pergunta sarcástica, e nós rimos. Dobramos uma esquina à esquerda. O sol está a pino e queima minha pele.

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De repente, ouço um barulho, como se algo estivesse nos seguindo, aos tropeços. Viro-me, sacando a arma, sabendo o que encontrarei em seguida, mas não há nada atrás de nós. Respiro fundo. – O que foi, Cézar? – Clara me pergunta. – Que bicho te mordeu, garoto? – Acho que a pergunta certa, Clara – Matheus diz, com um sorriso de deboche no rosto – é “Que zumbi te mordeu?”. – Vocês não ouviram o barulho? – digo. Eles balançam a cabeça. Olho novamente em volta. – Deve ter sido coisa da minha cabeça – concluo. Eles riem. – Acho que a comida estragada foi parar no cérebro dele – Clara sussurra para Matheus, alto o bastante para que eu também ouça. Empurro-a para cima dele. Percebo

que

os

outros

buscadores

sumiram

de

vista,

dobraram a próxima esquina. E, de súbito, ouço o barulho estranho novamente. Só que dessa vez, junto dele, ouço também o ranger de dentes e um som gutural, como uma risada diabólica abafada. Acho que Clara e Matheus também ouvem dessa vez, porque se viram no exato momento em que o morto-vivo se choca contra minhas costas, me derrubando no chão. Meu queixo atinge em cheio o asfalto duro e tudo fica escuro.

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09 MORTO

No começo, não sei se é verdade ou se estou apenas em mais um daqueles sonhos tão reais que te fazem duvidar das coisas. Abro os olhos. Estou deitado a céu aberto em um gramado que possui um verde tão vivo que parece artificial, mas, de alguma forma, sinto que não é. O céu possui um azul estranhamente limpo, como nunca esteve antes. Pelo menos, nunca o vi dessa forma. Nunca pensei que fosse possível estar dessa forma, possuir esta cor, este aspecto limpo, vivo. – Cézar – ouço uma voz me chamar. Levanto-me rapidamente e me sento na grama, procurando o dono da voz. – Cézar, seu dorminhoco! – a voz me chama de novo. A voz dela. Reconheço a voz de Dani, mas não a encontro em lugar nenhum. – Onde você está? -– pergunto, gritando para o nada. – Atrás de você, bobinho – ela diz aos risos. Levanto-me da grama e limpo as mãos sujas de barro nas calças, enquanto me viro. E lá está ela, pendurada em cima de uma árvore que não estava ali antes.

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Ela acena para mim, me chamando para perto dela. Quando chego perto o bastante, ela pede para que eu a ajude a descer e eu a ajudo, segurando suas mãos e sustentando seu peso. Quando ela pousa no chão, pula em meu pescoço, me puxando para um abraço. Eu o retribuo, porque parece bom demais para ser verdade. – Eu morri? – pergunto com o rosto ainda enterrado em seus cachos negros. Ela não me responde, apenas me aperta mais para junto de si, e sussurra em meu ouvido, como se me contasse um segredo: – Eu te amo. Ficamos assim por muito tempo – tanto tempo que perco a noção de mim mesmo –, agarrados um ao outro, suas palavras preenchendo-me por completo. Horas, dias, semanas, meses. Podem ter sido anos, até. Mas não me importo, não me importo, não me importo. Ela me ama. Eu a amo. Sinto, então, um arrepio repentino, que me faz retornar do estado estático. Não posso ter morrido. Não posso ter abandonado a missão sem tê-la concluído. Não posso ter morrido e deixado para trás a chance de salvar as pessoas que se encontravam na mesma situação de meu avô. Não posso ter ido embora do mundo real sem ter vingado a morte dele. Ele não pode ter morrido em vão, não pode. Ele não morreu em vão. Afasto-me do abraço de Dani e ela franze a expressão quando o faço.

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– O que foi? – ela pergunta, com certo tom de preocupação na voz. – Eu tenho que ir – é o que digo. As lágrimas inundam meus olhos enquanto reflito por um segundo. Se eu ficasse ali com aquela Dani, a Dani que diz que me ama, eu poderia ser feliz. Poderia recomeçar naquele mundo de cores vivas. – Me desculpe, Dani – minha voz é quase inaudível. – Mas não posso ficar com você. Eu tenho coisas a fazer... E você não me ama da mesma forma que eu te amo... Me desculpe. Sua expressão murcha e se torna uma careta de dor. Ela olha para o chão e fixa seu olhar nele por um longo tempo. Murmura milhões de “nãos” para sim mesma, enquanto balança a cabeça em negativa. Até que para de repente, e diz, com os olhos ainda fixos abaixo: – Ele está acordando. Mas sua voz não soa como sua. Confuso, balanço a cabeça, e minha visão começa a se encher de pontos pretos que vêm e vão, piscando. Uma dor excruciante explode em minha cabeça, e eu não a suporto. Desabo no chão, deixando a Dani que me ama para sempre.

··· – Ele está acordando! – Matheus grita e sua voz ecoa pelo ambiente em que estamos. Ecoa pelos meus ouvidos, fazendo com que a dor da minha cabeça piore.

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Meus olhos demoram a abrir, mas os forço até que consigo enxergar onde estou. Estou deitado em um sofá que cheira a mofo no que parece ser a recepção de algum estabelecimento. Não há janelas e há pouca incidência de luz, e eu demoro acostumar minha visão ao escuro. Não deve haver mais eletricidade nesta parte da cidade em ruínas. Se é que estamos nela, ainda. Fixo

meu

olhar

nos

quatro

corpos

que

caminham

apressadamente em minha direção. Não os distingo a princípio, mas, quando atingem certa distância, consigo reconhecer Matheus, vindo à frente, Clara, às suas costas, e Dani e João, logo atrás. Enrubesço. Dani está com a expressão ansiosa e preocupada. Ela está preocupada comigo. Tento me levantar e, assim que me ergo e me sento, sinto-me tonto. Clara aperta o passo, agora correndo. – Não, não, não! – ela me repreende. Aproxima-se de mim e pousa as mãos em meu peito, me forçando a deitar novamente. – Você precisa descansar mais, Cézar, não está completamente bom para se levantar. Eu gemo em resposta, mas não protesto. Estar deitado é realmente melhor do que estar sentado. Quem dirá em pé. Dani e João me observam de longe, de braços dados, e trocam olhares, às vezes até palavras, sussurros. Fazem isso por um bom tempo, até que se torna incômodo. Eu os encaro e bufo, franzindo o cenho, e parece que eles entendem o recado. Dani se vira e caminha para longe, mas João permanece. – Ele precisa de mais quanto tempo? – João pergunta a Clara.

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– Bem – ela começa a dizer, enquanto me analisa com os olhos. – Agora que ele acordou, acho que só mais um dia e ele já está pronto para ir. – Mais um dia? – ele parece irritado. Mas o que ele quer dizer com mais um dia? Por quanto tempo será que eu dormi? – Você disso isso dois dias atrás, Clara! – ele continua. – Já perdemos tempo demais! – Então você quer que eu o deixe aqui e morra pra que vocês simplesmente ganhem mais tempo? – ela responde. – Não estou dizendo isso... – ele hesita. Por fim, diz: – Eu só quero que faça mais rápido sua mágica, assim podemos chegar mais rápido a nosso Alvo e voltarmos a Morada antes que algo pior aconteça com mais alguém. Clara solta uma risada forçada, debochada. – Não é mágica – ela diz. – E eu vou demorar a agir o tempo que eu precisar. As coisas não funcionam assim. João balança a cabeça e murmura algo que meus ouvidos não alcançam. Vira as costas batendo os pés com força no chão e saindo do meu campo de visão Quando ele está longe, Matheus começa a rir. Clara passa as mãos nos cabelos e bufa. – Que garoto idiota – diz ela. Matheus concorda e continua a rir. Esboço um sorriso, mas, quando o faço, sinto uma pontada de dor no queixo e tremo. – Ai – gemo, e isso chama a atenção de Clara.

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Ela se aproxima e se senta no chão embaixo de mim, pousando sua cabeça no sofá, ao meu lado. Então, as palavras de João voltam em minha cabeça como um turbilhão e me incomodam. O jeito como ele disse tudo deu a entender que sou uma pedra no caminho deles no momento. E não discordo dele. Estou atrasando a expedição. E o jeito como ele me olhou também era estranho. O que me faz pensar uma coisa: será que Dani contou a ele sobre nossa conversa na cozinha da casa abandonada? Decido parar de pensar em Dani e em tudo, porque minha cabeça começa a doer. Parece que Clara percebe minha careta de dor. – O queixo está doendo muito? – ela pergunta, mas não sei por que ela faz referência ao meu queixo, sendo que é minha cabeça que dói. Entretanto, me lembro de que quando caí, meu queixo acertou em cheio o asfalto. Então a dor deve vir dele, mas dá a impressão de que a cabeça é o que dói. Levanto a mão para levá-la ao queixo a fim de sentir como o local está, mas Clara me detém, dando um tapinha nela. – Está ficando maluco? – ela me repreende. – Quer estragar minha obra de arte? – Obra de... – digo, não abrindo muito a boca. – Arte? – Sim, ora – ela responde, como se fosse a coisa mais óbvia do mundo. – Demorei horas para dar esses pontos e, mesmo assim, só parou de sangrar ontem. Se estragar minha obra, eu mato você! Pontos. Eu precisei de pontos. Tremo.

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– Você está com frio? – Matheus pergunta, e eu me surpreendo. Ele ainda está ali. – Não... – digo. – Estou bem. Quero dizer... Eu estou mesmo bem? – Acho que é você que devia me dizer isso, meu caro – Matheus responde irônico e Clara ri. – Não, eu quis dizer... Eu estou inteiro? – pergunto. – Além do queixo, machuquei outra coisa? – Não, Cézar, pode ficar tranquilo – Clara responde. – Você caiu no chão quando o zumbi te atingiu e logo ficou inconsciente. Depois que o Matheus atirou no zumbi, eu virei seu corpo e vi seu rosto cheio de sangue e me apavorei. Pensei que o pior tinha acontecido... Ela treme e põe a língua para fora, fazendo uma careta. – O quê? – pergunto. – Que você tivesse sido mordido – é Matheus que me responde. Não consigo pensar sobre o assunto. Cérebros não devem ser nada bons, definitivamente. – Mas então a gente te trouxe pra cá e estamos seguros, e você... Bem, você está vivo. Então acho que, sim, você está bem. – Por quanto tempo eu dormi? – quero saber. As palavras de João ainda ecoam em minha cabeça. – Hoje seria seu quarto dia dormindo – ela diz com cuidado. – Mas fico muito feliz que tenha acordado. A Anna estava ficando impaciente.

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Quatro dias. Eu dormi por quatro dias. Um atraso de quatro dias. João estava certo em estar irritado. Clara percebe que estou sem jeito. – Cézar, não fique assim... – fala ela, numa tentativa falha de me acalmar. – Não teria como sairmos de qualquer forma. Entramos aqui porque não conseguimos acabar com todos os zumbis que vieram depois do que te atacou. Eles ficaram uns dois dias tentando entrar, mas parece que na noite passada desistiram. Não se culpe então, ok? Assinto de leve com a cabeça, mas ainda não estou convencido.

··· Mais tarde, já consigo me levantar. Os analgésicos que Clara me dera mais cedo já começam a fazer efeito e quase não sinto mais a dor. Decido, então, caminhar pelo galpão que é, na verdade, a recepção de uma academia de musculação, um pouco parecida com o Centro de Treinamento Intensivo de Morada, mas menor e sem as armas penduradas pelas paredes. Menos hostil e mais sofisticado. Acabo me cansando de dar voltas em círculos e me sento perto dos outros buscadores, que estão dispostos pelo chão em um círculo, comendo barras de cereal e bebendo latinhas de algo que não veio conosco. Assim que me sento ao lado de Matheus, ele me oferece uma lata da bebida que eles estão saboreando com diferentes reações. – Bebe isso – ele diz animado. – É a melhor bebida do mundo!

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Demoro um pouco a abrir a lata, mas, quando consigo, levo-a até meus lábios e deixo o líquido escorrer para dentro da minha boca. Uma sensação de efervescência borbulha em minha língua, e chega a arder quando desce pela minha garganta. No começo, o gosto é doce, mas no fim amarga, como se no meio de sua composição tivesse limão. – Onde vocês encontraram isso? – pergunto a ele. – Dani e João encontraram uma máquina cheia disso logo ali – ele aponta para um dos cantos do prédio e, atrás de uma bancada, está uma máquina retangular encostada na parede, com a vitrine de vidro quebrada. – E não foi só isso que eles acharam nela – diz Matheus, tirando um embrulho retangular do bolso. Ele o abre, e dentro dele há tabletes de uma coisa marrom e cheirosa. – O nome disso é chocolate – ele diz, e seus olhos brilham. Quebra um pedaço do tablete e me entrega. – Prove. O tablete derrete em minha boca assim que o coloco para dentro. O gosto doce do chocolate, como Matheus disse, me dá uma sensação maravilhosa e meu estômago pede mais, instantaneamente. Percebo que não comi nada desde a comida passada da validade, então peço mais do chocolate a Matheus. Quando o dele acaba, vamos até a máquina e buscamos mais. Comemos até que nos sentimos completamente satisfeitos. Depois nos sentamos novamente à roda dos buscadores, onde todos conversam sobre

amenidades.

Coisas comuns. Isolados do grupo, Anna e Marcos discutem algo. Algumas vezes Anna ri e soca o ombro de Marcos, e eu me surpreendo. Nunca a vi

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rir. Nunca a vi alegre, na verdade, mas parece que Marcos consegue fazê-la sorrir. Mais perto de mim e Matheus, Clara está conversando com Dani. As duas riem como amigas de infância, e isso me incomoda um pouco. Percebo que o braço de João está enroscado na lateral do corpo de Dani, os dois tão próximos que quase respiram o mesmo ar. Desvio o olhar. – Desde quando as duas são amigas de jardim? – pergunto a Matheus, quase sussurrando. Ele abre um sorriso. – Você dormiu por um tempo, meu caro, lembre-se disso. – Ele para e, como eu não digo nada, ele continua: – Não tínhamos muito que fazer enquanto esperávamos você acordar, então nós ficamos simplesmente conversando. Comendo chocolate. Rindo. Conhecendonos uns aos outros. Quero dizer, quem se abriu mais foi Dani. João só a acompanha onde quer que ela vá, mas nunca diz nada. E Anna e Marcos não conversam comigo ou Clara, só ficam juntos e, quando interagem, o fazem apenas com Dani ou João. Então, quando eu digo “conhecendo-os”, quer dizer “conhecendo a Dani” – ele solta um riso. – Ela até que é legal. Mas ainda quero saber por que você a chama tanto nos seus sonhos... Essa noite você me acordou chamando o nome dela, por isso eu chamei os outros. Só que dessa vez você se despediu dela... Acho que ele percebe que estou desconfortável, porque para e pergunta se eu quero continuar a falar sobre o assunto. Eu balanço a cabeça em negativa. – Depois... – é o que eu digo. Ele assente e se junta à conversa de Clara, Dani e João, me abandonando.

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Não fico muito tempo lá. Depois de uns minutos, me levanto e retorno à sala de recepção. No caminho até ela, me deparo com um enorme espelho rachado e, ao lado dele, o cartaz de um homem tremendamente musculoso e quase nu se exibindo. Desvio o olhar do cartaz, corado, e o fixo em meu reflexo. Estou um trapo. Preciso de um banho imediatamente, e de roupas novas. Está encardida a camisa que uso e os joelhos da calça rasgados. Meus cotovelos estão ralados e os meus cabelos pretos e oleosos estão colados na minha testa. Ao redor dos meus olhos castanhos e redondos há olheiras profundas – ou será sujeira? Reparo também na linha que a sutura de Clara

desenha

na

parte

inferior

do

meu

queixo,

perfeitamente

costurado. Uma obra de arte verdadeira. A linha de sutura deve ter uns quatro ou cinco centímetros. Como uma pancada no asfalto pode causar um corte desses? Estremeço, porque para um corte desses ser causado, o impacto deve ser enorme, e só de me lembrar do corpo do zumbi se chocando contra o meu corpo calafrios percorrem minha espinha. Meu queixo volta a latejar, então decido não olhar mais para o espelho. Quando volto à sala de recepção, a passos arrastados, tomo mais analgésicos e deito-me novamente no sofá. Assim que eles começam a fazer efeito, meus olhos pesam e sou levado daqui.

··· – Cézar? – Matheus me chama, enquanto chacoalha meu ombro. Meus olhos se abrem devagar, enquanto retorno a mim. – Quem morreu? – pergunto, com a voz rouca e embargada, ainda acordando.

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– Ninguém, por enquanto – ele diz. – Você está bem? Acha que consegue partir? Não sei se dizer que estou bem seria o mais sensato a se fazer, porque eu não estou completamente sarado. Ainda sou movido a analgésicos. E Clara disse que não posso correr ainda, senão os pontos estouram e o sangramento retorna. – Não sei – é o que digo, sentando-me no sofá. Ele se senta ao meu lado, inquieto. – Por que está me perguntando isso? – quero saber. – Anna quer ir embora – responde ele, roendo as unhas. – Disse que se não formos todos agora, você sarado ou não, vai levar Marcos, Dani e João junto dela, e deixar Clara e eu “cuidando” de você. – Ele faz as aspas com os dedos. – Por isso vim saber se você está bem... Dou um suspiro de perplexidade, mas não culpo Anna. Sou eu quem está atrasando a expedição. Levanto-me do sofá, coloco os analgésicos no bolso dianteiro da calça e agarro minha mochila, que está jogada no canto da parede. Coloco-a nas costas e suspiro. Eu estou bem. Eu posso fazer isso. Não vai ser uma dor de cabeça idiota que vai me fazer desistir ou perder a chance de salvar a população de Morada da infecção bacteriana. Eu vou conseguir. – Estou pronto – digo a Matheus e ele abre um sorriso. – Vou avisar os outros – Matheus diz. Ele se vira, e corre em direção aos outros buscadores e eu o sigo. Logo que todos sabem

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que já estou bem e pronto, Clara faz um check-up em mim e então nos preparamos para sair. Depois que todos já estão com as armas carregadas e em punhos, e as mochilas nas costas, nos aproximamos da porta de saída, que está vedada por um dos equipamentos de ginástica da academia. João, Matheus e Marcos arrastam o equipamento juntos, desobstruindo a passagem. Anna e Dani dão chutes contínuos e a porta de ferro se abre, revelando a rua, escura por causa da noite, e molhada, por causa da chuva que cai intensamente. – Não devíamos esperar a chuva passar? – Matheus pergunta para todos. – Largue de ser marica, garoto! – Anna cospe. – Não podemos perder tempo. Matheus balbucia mais alguma coisa, mas não ouço. Estou atento a meus passos cuidadosos enquanto saímos do prédio. Assim que pisamos no asfalto, a chuva ensopando-me da cabeça aos pés, sinto o cheiro de carne em decomposição dos mortos-vivos, pútrido e nauseante, invadindo as minhas narinas e as queimando. Mesmo na chuva, o seu cheiro é forte. Olho em volta, mas não os encontro em lugar nenhum. Então, ouço Clara berrar. Não consigo ouvi-la. Mas parece que os outros entendem o que ela diz, porque todos começam a correr depois do seu grito. Olho novamente para trás, e detenho meu olhar no fim da rua, quase a quarenta metros de distância. Correndo aos cambaleios, uma horda de quase trinta zumbis se aproxima. E estes vêm mais rápido do que nunca.

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Arquejo e corro, tentando alcançar os outros que estão longe de mim. Minha cabeça explode em dor e meu queixo lateja. Corro o que parece ser uma eternidade. Minhas pernas começam a doer e meus pulmões ardem. Mas eles ainda estão atrás de nós. Estão se aproximando cada vez mais... – Virem na próxima rua, à direita! -– Anna grita ofegante e quase

não

a

ouço.

Relâmpagos

estouram,

lançando

sua

luz

e

tornando a rua cada vez mais sinistra, e a chuva chicoteia meu rosto com uma força anormal. Minha mochila e minhas roupas estão pesadas e é cada vez mais difícil correr. Estou atrás de todos e, consequentemente, mais perto dos zumbis. Mas não posso desistir. Não posso, não posso, não posso. Anna e Marcos dobram a direita e somem da minha visão. Em seguida, Dani e João fazem o mesmo. Segundos depois de Matheus e Clara virarem a esquina, eu também o faço. Mas damos de cara com algo que não pensávamos que estaria ali. Sete metros à nossa frente há um muro de tijolos vermelhos, que transforma a rua em uma rua sem-saída. Anna arqueja e solta um palavrão, e Clara grita que eles estão chegando. Estou atônito. Nunca conseguiríamos matar quase trinta zumbis com as armas que temos. Nem que fôssemos os mais habilidosos do mundo, não temos munição suficiente. Vamos morrer todos de uma vez. – Gente! – Dani grita, chamando nossa atenção. – O muro não é tão pequeno, dá pra escalar se tentarmos. Vamos!

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Ela tem razão. O muro deve ter uns seis ou sete metros de altura, e tem falhas por todos os seus tijolos. Dá para subir. Todos nós assentimos e corremos em direção ao muro, e Anna é a primeira a tentar escalar. Sobe até a metade dele, então escorrega, mas não cai. Está nervosa. Ou talvez a chuva não esteja ajudando. O cheiro pútrido dos zumbis se aproxima, queimando minhas narinas. Já posso ouvir o arrastar de seus pés. Anna consegue escalar o muro por completo. Assim que chega ao topo, pula para o outro lado. Jogamos as mochilas e as armas para o lado de lá do muro, por cima. Dani e Marcos, então, escalam o muro ao mesmo tempo. O cheiro se aproxima mais. E agora posso ouvir seus gemidos e gritos desesperados por nossa carne. Antes mesmo de Dani e Marcos pularem para o outro lado do muro, Matheus e Clara já o escalam. Eles sobem desengonçadamente, aos arquejos, um tendo que ajudar o outro durante a subida. E antes de os dois desaparecerem por completo, eu mesmo já estou agarrado ao muro de tijolos vermelhos, usando suas falhas como apoio para meus pés e mãos, me erguendo aos poucos. João está um pouco acima de mim, quase no topo. Piso em falso e quase despenco muro abaixo. Olho por cima dos ombros, e meus músculos paralisam. A horda de zumbis dobra a esquina e corre estateladamente na direção do muro. Na nossa direção. Tento escalar o muro mais rápido, mas isso só faz com que eu escorregue mais vezes, indo cada vez mais abaixo.

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E eles estão se aproximando... Cada vez mais próximos... Arquejo quando sinto algo agarrar meu pé, me fazendo quase perder o equilíbrio. Olho para baixo e vejo o monstro dilacerado com meu pé preso em suas mãos, me puxando para baixo. Grito, pedindo ajuda para João, enquanto tento escalar o muro desesperadamente.

Minhas

mãos

estão

raladas

e

minhas

unhas

sangram, mas não paro. Ele olha para baixo, e sinto uma pontada de esperança. Mas ele apenas sorri maliciosamente e diz: – Você é um peso morto. Então continua

a escalar. Gemo quando

sinto

mais

mãos

puxarem meu pé. Eles estão conseguindo, estou caindo... Não deixo João subir nem mais um centímetro. Agarro seu pé com todas as minhas forças, assim como os zumbis fazem comigo. Puxo-o, usando-o de apoio, e ele resiste, o que me dá estabilidade. Dou um puxão mais forte e consigo me libertar do domo mortal que as mãos dos mortos-vivos impunham a meu pé, e escalo rapidamente, impedindo-os de me pegarem novamente. João perde o equilíbrio e escorrega, por causa de meu puxão. Tento agarrá-lo pela gola da camisa, mas é tarde demais. Os zumbis agarram suas duas pernas e cravam os dentes nelas, rasgando o tecido de sua calça e puxando sua pele junto dela. João grita de dor e suas unhas cravam em meus braços. Seus olhos verdes imploram para que eu suporte seu peso, para que eu o agarre. Tento puxá-lo, mas não sou forte o bastante.

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Deixo-o cair. Deixo-o cair e um mar de mortos-vivos o afoga. Deixo-o cair e sua vida se esvai, seus gritos se abafam. Deixo-o cair e seus olhos verdes são a última coisa que vejo, no meio dos sibilos guturais que os mortos-vivos emitem. E eu o deixo cair. Não suporto assisti-lo sendo esquartejado e devorado pelos zumbis. Não suporto. Uso, então, o que resta de mim para escalar o muro de tijolos vermelhos, aos trancos, e, quando chego ao topo, o que eu mais quero é esquecer tudo aquilo. Mas ele está morto. João está morto. Eu o matei. Pulo do muro em direção aos outros buscadores de braços abertos.

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10 PERDA

Cruzo os braços na frente do rosto, na tentativa vã de amenizar a queda, mas isso só faz com que tudo seja mais doloroso.

Atinjo o chão com força, caindo de bruços sobre uma superfície molhada e barrenta que, graças aos céus, não é o asfalto duro que eu esperava, mas que ainda assim me machuca. Quase todo o ar dos meus pulmões é expulso pra fora, e eu gemo de dor. Sinto algo quente escorrer pelo meu queixo e o cheiro do sangue é inalado por minhas narinas. Com toda a correria, a sutura de Clara – sua obra de arte – deve ter arrebentado, e agora estou com a ferida do queixo aberta novamente. É a explicação mais lógica. Mas isto nem se compara ao dano que eu causei antes de pular do muro. Ainda posso ver seus olhos verdes arregalados olhando para mim, implorando pela minha ajuda. Eu o matei. Permaneço deitado no chão barrento, em posição fetal, com as gotas da chuva batendo no meu rosto furiosamente. Estou encharcado e, à medida que o tempo passa, é como se eu me fundisse à

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superfície pegajosa, como se estivéssemos nos tornando um só. Agora a dor da queda se torna mais evidente e meus músculos latejam incessantemente. Sinto as mãos de alguém que não distingo me puxarem para cima, desfazendo a fusão entre o chão e eu. Ela me ergue pelo braço e me põe de pé. Assim que me estabilizo, visualizo o rosto de quem me levantou. Dani me encara, seu pavor quase exalando. – Cézar – ela diz, com a voz trêmula. Quase não a ouço, por conta dos trovões. – Cadê o João? Minha respiração trava e sinto o gosto da bile subindo pela garganta. O que eu digo a ela? – Eu... – começo, mas não continuo. Não consigo. Meu rosto queima e sinto as lágrimas inundarem meus olhos. Expiro com força e tento reprimir o choro com uma careta, mas acho que minha expressão denuncia tudo, porque agora é Dani que está prestes a chorar. Ela me encara com os olhos estatelados e o resquício de cor que ela tinha se esvai de seu rosto. Vejo pelo canto do olho que Anna e Marcos, com uma expressão perplexa, se aproximam de Dani. – O que você fez com ele? – ela pergunta incrédula, a acidez em sua voz atingindo-me em cheio. – Não, Dani, por favor – digo em tom de súplica, as lágrimas quentes escorrem pelo meu rosto sem cessar e se misturam às gotas da chuva. – Eu não queria fazer isso, por favor... Ele estava em minhas mãos num segundo e no outro eles conseguiram puxá-lo, eu não pude evitar, eu tentei, eu tentei, me desculpe...

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Ela aperta os olhos e cobre a boca com as mãos. Solta um ruído áspero que soa quase como uma tossida, enquanto balança a cabeça em negativa, como se quisesse apagar da mente o acontecido. Enquanto escorrem, suas lágrimas desenham um caminho pelo seu rosto sujo e ela as limpa furiosamente com as costas das mãos, desfazendo o desenho. Ela consegue controlar os soluços e se aproxima de mim devagar. – Ele bem que me disse – ela morde o lábio inferior, fazendo-o parar de tremer. – Disse que você o olhava estranho, que você não era confiável... Disse muitas coisas, e eu sempre discordava dele... Te defendia... Como eu pude ser tão tapada? – Dani, por favor, me escuta – eu caminho em sua direção e toco seu braço, mas ela se empertiga e soca minha mão com força, me fazendo recuar. Ela nunca agiu dessa forma comigo. – Não toque em mim! – ela engasga, apontando o dedo indicador em meu rosto. – Assassino! Você fez isso com ele porque estava morto de ciúme! Mas, se pensou que me teria dessa forma, está muito enganado! – ela cospe as palavras cada vez com mais fúria. – Fraco! Assassino! Não sei o que fazer. Estou estático. Meus sentimentos estão travados. Não choro. Não imploro para que ela me escute. Não me movo. Não respiro. Apenas encaro o vazio, com a boca aberta. Anna a puxa para longe de mim. Saio de minha estática. A chuva está amena, mas não parou por completo. Olho em volta, e percebo que estamos no que parece ser o quintal de uma residência. Fixo meu olhar na varanda coberta da casa e, sentada no

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chão, vejo que Clara enfaixa o pé esquerdo de Matheus, que aperta os olhos e geme. Caminho em direção a eles, não porque eles estão ali, mas porque quero me proteger da chuva embaixo da telha. Não digo nada quando me aproximo deles, apenas me sento ao lado de Clara com as pernas cruzadas e a observo enfaixar o pé de Matheus. Seus dedos finos são ágeis e não erram. Quando ela termina, se vira para mim e encara o meu queixo. – Santo Deus – exclama ela, os olhos castanhos arregalados. – Isso está pior do que eu imaginei! Ela guarda as faixas de gaze na caixinha de plástico branca e pega uma agulha com um líquido transparente dentro. Sussurra algo que não ouço para Matheus e ele move as mãos pela montanha de mochilas que está no canto e pega uma delas, posicionando-a no chão como um travesseiro. – Deite-se – diz Clara, dando tapinhas na mochila. Eu a obedeço sem hesitar. Depois que me deito, posicionando a cabeça em cima da mochila, ela pede para que eu feche os olhos e incline a cabeça para trás. – Segure e lanterna aqui para mim, Matheus – ela pede. Matheus bufa, mas obedece. Sinto o calor da luz da lanterna sendo jogado em meu rosto e então tremo com a picada da agulha em minha bochecha. – Ai – murmuro. Matheus contém um riso. Segundos depois, não consigo mais mover os músculos do meu rosto. Estão completamente inertes, adormecidos, como se eu não fosse mais dono deles.

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Tento falar algo, mas meus lábios recusam a se mover. O mesmo acontece quando tento abrir os olhos. Uma agonia nasce dentro de mim, mas me controlo, porque me lembro de que é Clara que está cuidando de mim. Ela sabe o que está fazendo. Sinto seus dedos finos e ágeis tocarem meu queixo, mas não há dor quando ela o faz. Essa deve ser a finalidade do líquido, penso, enquanto noto a antiga sutura sendo removida da superfície carnuda do meu queixo. Novamente

sem dor.

Depois, sinto

a agulha

furar

minha carne

padronizada e periodicamente. Clara está reconstituindo sua obra de arte.

Pouco tempo se passa até que ela termine a costura. Dez minutos, talvez. Ela põe uma camada fina de algodão por cima e a cobre com gaze e esparadrapo. Quase não ouço mais o barulho da chuva. Quando finaliza, ela pede para que eu me levante, mas que permaneça sentado. Sento-me, um pouco tonto, mas logo alcanço a estabilidade. Aos poucos, meu rosto volta a ser meu e eu consigo controla-lo. Abro os olhos. A chuva parou por completo, e o que ouço é só o gotejar da água acumulada nas calhas as casa. Tirando isso, o mundo está afundado na escuridão da noite e tremendamente silencioso, como era de se esperar. Longe de nós, mas perto do muro que pulamos, estão Marcos, Anna e Dani, que está com o rosto enterrado nas mãos. Anna está olhando para ela coçando a cabeça, e posso ver que está impaciente. Pelo movimento de suas mãos, vejo que Marcos tenta consolar Dani

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de alguma forma, mas sei que nunca vai funcionar. Dani não é o tipo de pessoa que gosta de ser consolada. – Estou com pena dela – Matheus diz, por fim. Eu suspiro, e ele olha para mim. – Mas de uma coisa eu sei – ele completa. – Você não teve nada a ver com a morte do João, Cézar. – Eu poderia tê-lo segurando por mais tempo... – tento retrucar, mas Clara me interrompe. – Matheus tem razão, Cézar – fala ela, guardando a caixa de primeiros-socorros na mochila e devolvendo-a ao monte. – Você não pode se culpar por isso... Viemos para cá sabendo dos perigos. Isso poderia acontecer a qualquer momento com qualquer um de nós. Então por que logo comigo? Por que logo quando eu estava subindo? Por que não fui o primeiro a escalar? Maldita sorte, maldita sina, maldito destino, malditos, malditos. Suspiro e afundo o rosto nos joelhos. – Eu não queria fazer a Dani se sentir assim – digo. – Juro que não queria. Eu estava com... ciúme – torço o nariz ao assumir isso –, mas nunca teria coragem de fazer uma coisa dessas. Não depois de ver o quão feliz ela estava com João... Eu não queria que a Dani me odiasse, eu... Minha voz some, e eu tenho que engolir para não chorar. – Venha cá – Clara diz, pousando minha cabeça em suas pernas dobradas. Ela tira meus cabelos ensebados da testa e os alisa suavemente e, pelo incrível que pareça, isso me acalma. Não faz com que a culpa atordoante suma, porém me sinto um pouco melhor.

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– Quer me contar sobre a Dani? – pergunta ela, sem parar de mexer em meus cabelos. – Talvez isso te ajude. O Matheus não se importa de te ouvir também, não é, Matheus? – Ah, claro – Matheus responde irônico. Clara o cutuca com o cotovelo e sorri. Meneio a cabeça devagar, em concordância, e tomo um pouco de ar pela boca. Então começo. Conto como a conheci, o que parece ter sido há milênios. Um dia comum no Centro de Treinamento Intensivo, como qualquer outro dia de treino. Eu estava tentando atirar facas, sem sucesso. Até que a vi

esmiuçando os sacos de

areia com a

katana de

um jeito

incrivelmente lindo. Ela percebeu meu olhar vidrado e veio em minha direção. Apresentou-se e, depois disso, nos tornamos amigos. Conto a Clara sobre como fiquei apavorado quando ouvi o nome dela sendo sorteado no Dia D, e como fiquei, em partes, aliviado por também ter sido sorteado. Falo também sobre como me senti quando vi João flertando com ela pela primeira vez. Conto sobre nosso beijo, e como fiquei feliz por pensar que tinha alguma chance com ela, mas omito o fato de meu avô ter sido morto por médicos de Morada. Lembrar-me dele ainda me faz chorar. Conto a ela também sobre a conversa que tivemos na cozinha da casa abandonada, e como isto me fez ficar confuso em relação aos meus sentimentos por ela. Enquanto falo, minha voz fica cada vez mais embargada. E quanto mais eu falo sobre ela, menos como antes eu me sinto. Não sei se consigo sentir mais o que eu sentia por ela duas semanas atrás.

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Quando termino, contando sobre como ela agiu quando pulei do muro sem João, as lágrimas já escorrem pelas minhas bochechas. Olho para cima, para os rostos de Matheus e Clara. Matheus está com uma expressão pensativa, enquanto que a de Clara está impassível. – Eu já sabia de tudo isso – ela diz, por fim. – Quero dizer, quase tudo. Eu franzo o cenho e me levanto de seu colo, sentando-me de frente para ela. – Como? – pergunto, vasculhando pela mente alguém que saiba da minha história com Dani. A única pessoa que sabe de algo é meu avô, porém ele não sabe de tudo o que aconteceu e nem está mais aqui. – Quem te contou? – Há uns dois ou três dias, – Clara responde – quando você estava dormindo por causa daquele zumbi que te atacou, eu conversei com a Dani. Conversamos um dia inteirinho sobre você. Ela me contou tudo isso que você me contou, só que no ponto de vista dela, obviamente. Por isso pedi pra você falar sobre ela. Queria saber sob seu ponto de vista. Mais calmo, expiro. – E... O que ela disse? – pergunto. – Digo... O que ela disse sobre mim? – Nada demais – Matheus responde por Clara. Olho para ele, ultrajado. Ele também sabe?

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– Desculpe – ele deve ter percebido minha expressão, porque encolhe os ombros. – É que a Clara esqueceu-se de dizer que eu também estava na conversa. – Ah, e o Matheus estava na conversa – Clara diz, como se estivesse lembrando só agora. Matheus solta um risinho abafado. – O que quer dizer “nada demais”? – pergunto. – Vocês não responderam a minha pergunta. – Bem... – Clara começa. – A Dani não demonstrou sentir o mesmo que você sente, ou sentia, tanto faz, por ela quando ela conversou com a gente. E eu sou ótima em detectar isso nas pessoas, quando elas amam umas às outras – ela faz uma pausa. – A Dani gosta muito de você. Mas não daquele jeito. Ela dá um sorriso sem graça e eu só assinto. Tudo o que ela disse eu já sabia. Mas, não sei, ouvir agora da boca dela faz com que pareça mais real. – Agora, Cézar... – Matheus começa. – Acho que Dani precisa de espaço e tempo para assimilar tudo. E tenho certeza que, como sua amiga, ela vai acreditar em você, assim como nós acreditamos. Ela só está com a cabeça quente, precisava de alguém para culpar. Já passei por isso uma vez... – Você?! – Clara pergunta sarcasticamente. Eu sorrio. – Digamos que eu também já passei por algumas tragédias amorosas – é o que ele responde, com um sorriso torto. Mas seus olhos não sorriem junto dele dessa vez. Avisto Anna, Marcos e Dani caminhando em nossa direção. Quando eles já estão perto o bastante, Marcos pergunta se achamos

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melhor passar a noite na casa, e dizemos que sim de pronto. Ele saca, então, a escopeta que pertencia a João e dá um tiro na maçaneta, estilhaçando-a e abrindo a porta. Colocamos as mochilas nas costas, adentramos a casa e a revistamos. Nada

de

zumbis,

porém Anna diz

que

tem

a leve

impressão de que alguém dormiu em uma cama do andar de cima recentemente. Ignoramos o comentário dela. Não pode ser um mortovivo, porque mortos-vivos não dormem. Eu acho que não, pelo menos. Antes de todos irem se deitar, Dani e Marcos vedam a porta por dentro e Anna comunica que sairemos assim que o sol se levantar, ou seja, daqui a algumas horas. Por isso, ela chamou nossa parada de “descanso”. Depois que Matheus, Clara e eu comemos alguns tabletes do chocolate que eu trouxe comigo da academia de musculação, nos deitamos nos sofás da sala de estar, e nos preparamos para dormir. – Que noite, não? – Matheus fala em meio a um bocejo e Clara geme um sim preguiçoso como resposta, sua cara afundada em uma almofada. – Espero que não se repita – digo, mas Matheus já não está mais ali para me responder, já posso ouvir seu ronco leve. Decido me forçar a dormir também. Porém, quando estou prestes a cair no sono, fixo meu olhar na janela de vidro da sala de estar. Ela não é tão grande, e seus vidros estão sujos e embaçados de poeira. Vejo algo se mover, mas meus olhos estão cada vez mais pesados, estou cada vez mais leve... Antes de eu cair no sono por completo, vejo a silhueta de um ser que me observa pela janela, parado como uma estátua. A lua, que

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está quase sumindo, ilumina seus cabelos. Não sei se isso é um sonho ou se é verdade, mas posso jurar que seus cabelos são vermelhos intensos, como fogo vívido. Seus cabelos pegam fogo. Seus cabelos são o fogo. E é com esse delírio que eu me dirijo à inconsciência.

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