Parte ii

Page 1

OBRIGADO

A OLHAR PELA JANELA

JOSÉ SERRA POEMAS 2014—2015

Parte II v2.indd 1

09/10/15 10:29


Parte II v2.indd 2

09/10/15 10:29


Índice

PRIMEIRO TEMPO Devaneio de Abril.......................................................4

Prefiro pátria, meu amor, às rosas.................................5

A traça (ou Dúvidas)...................................................6

Vento das sensações.....................................................8

Currículo...................................................................10

Noite dos tormentos..................................................11

Metafísica em cima da mesa......................................12

Ensaio sobre os estudos.............................................13

Fui à minha escola antiga..........................................14

Alta madrugada manienta.........................................15

À varanda..................................................................16

Vinte e oito, Outubro, Outono, estou bem................17

DITOSOS TEMPOS Ter, ver, ver, ter...........................................................21 Pedaços de papel........................................................22 Mulher I....................................................................23 Mulher II..................................................................23

Parte II v2.indd 3

09/10/15 10:29


Mulher III.................................................................24

O tempo fugidio nem tudo curou..............................25

Definição de vida ou coisa parecida...........................26 Sentimentos de culpa.................................................27

ENTRE OUTROS TEMPOS Método, ciência, fé.....................................................31

Vinte e dois de Abril.................................................32

Envelheceremos.........................................................33 Hipótese....................................................................34

Quando me mandam pôr o termómetro...................35

Em dia de concerto...................................................36

Tratado geral sobre a expectativa...............................38 O serviço privado do tabaco......................................39

Vinte e quatro de Abril.............................................40

Vinte e quatro de Abril II.........................................40

Quatro de Maio.........................................................41

Oito de Maio.............................................................41

Take Five...................................................................42 Vinte e sete de Maio.................................................44

Sara...........................................................................46

Devaneio de Janeiro..................................................47

Parte II v2.indd 4

09/10/15 10:29


II

Parte II v2.indd 1

09/10/15 10:29


por favor alguém que venha tirar a morte da minha cabeça e os escombros alguém que os levante sou sem ombros cresce-me o vazio tirem-me a morte de cima de mim puxem-na se houver tempo operaram-me porque eu nem era para escrever este mundo meu deus eu nem era para estar aqui

2

Parte II v2.indd 2

09/10/15 10:29


PRIMEIRO TEMPO

3

Parte II v2.indd 3

09/10/15 10:29


Devaneio de Abril Estar poeta implica deitar-me na noite calma, esperando com todos os sonhos todos os problemas do mundo. NĂŁo se ĂŠ poeta; estĂĄ-se mais ou menos conforme a natureza dos dias.

4

Parte II v2.indd 4

09/10/15 10:29


Prefiro pátria, meu amor, às rosas Prefiro pátria, meu amor, às rosas, e antes a virtude e a glória amo que flores de qualquer tipo. Que importa esse nascer do sol sempre, se ele é um objecto garantido e a derrota e a vitória não? Se das estações que nos significam, eu sou o Outono e o Inverno de todas elas como uma constatação forte do fim? Se a nação tem o desígnio de não cair, sendo a humanidade uma débil e espinhosa rosa à mão de Deméter? Se, ao menos, na pátria as coisas vão e vêm e que os homens só a certeza de Hades esperam? E as emoções e as razões humanas, aumentar-me-ão elas de algo que não um sofrimento lúcido? Sobejamente nada sobra na hora enferma em que para o destino de Narciso Cronos me sorve.

5

Parte II v2.indd 5

09/10/15 10:29


A traça (ou Dúvidas) Estava eu muito sóbrio e paciente até que avisto uma mariposa, esvoaçando. É uma traça e eu estou só. Uma traça... uma traça vem fazer-me companhia como se eu fosse a roupa velha esquecida no armário antigo. Poisa aquele corpo feio sem cautela, sem receio ou medo para com a minha possível vontade de a destruir como se esmagam os bichos, comprimindo-os com o dedo, suprimindo-os com a alma, e suprimindo o Criador e o Equilíbrio e outras mentiras que tentam ordenar o caos que somos (e penso isto como sendo um remendo do buraco irreal que a traça veio fazer-me no linho despedaçado pelo tempo, e que se tornou num trapo recozido sem saber porquê – foi para vestir o infante? Não, não foi, Foi para servir como mortalha ao extinguido? Não, certamente impossível...).

6

Parte II v2.indd 6

09/10/15 10:29


Esta traça ensina-me que parte da vida é a voar sem nexo, como ela, alada. Bate com as asas no tampo da mesa e revê a sua existência estúpida quando tenta novamente o sentido das voltas em círculos inúteis no ar. A traça... mando-a embora, ou deixo-a ficar? Voto-a ao desprezo dos seres distantes, ou reclamo-a como parte da entropia do Universo? Antes que a dúvida se desfaça, vai a traça embora, farta de mim.

7

Parte II v2.indd 7

09/10/15 10:29


Vento das sensações Agora faço poesias surdas,
 neste momento igualmente silencioso,
 fúnebre, na maneira como contemplo a luminosidade estéril do Sol,
 e ausente, na virtude distante de uma Lua vagamente cheia.
 Vejo os rapazes, vejo as raparigas –
 reparo na sua juventude verdadeira, porque vivida.
 Quando reparo em mim,
 reparo numa morte antecipada,
 numa certa hipótese corrente aos vinte e poucos anos de idade.
 Vejo-me inútil, lentamente acedendo às propostas do mundo,
 vejo o que realmente sou, que é isso,
 e não o que tento ser, que não pode ser o que realmente seja,
 porque isso é uma mentira que prego aos existentes,
 e é um recado, como cumprimento, um olá talvez,
 aos já defuntos. Que virtudes espalho?
 As que são o espelho do que não fiz?
 Quem apregoa mais do que eu, como sermão debilmente dito,
 quem, afinal, fez nesta vida tanto de inconcebível como aquilo que eu concebi erroneamente fazer?
 Vou à procura desse outro mundo, 
 nesta poesia austera, nestes versos frios e invernosos

8

Parte II v2.indd 8

09/10/15 10:29


como a gabardina velha que ostenta o símbolo de uma marca do que já foi,
 e protege, sem sucesso, evidentemente sem sucesso,
 o abrigado enganado e molhado
 e tolhido pelo vento das sensações
 da chuva das emoções sem sentido. Toda esta poesia é lenta e triste e velha
 e é isso tudo porque eu permiti que assim fosse,
 igual ao ser: lento, triste, velho.
 Nada tem havido em mim que valha a pena,
 as pessoas — conhecidos, amigos — para que me procuram?
 Fracos consolos em mesas de café? 
 Estúpidas conversas à míngua do tempo que não passou ainda?
 E eu, para que os procuro? 
 Para a satisfação estranha do mundo real e que não satisfaz verdadeiramente?
 Porque se realmente estiver com eles o que importa é que no momento a seguir — e que torna tudo o que passou antes num devaneio incrível de uma mente isoladíssima – não volto a pensar neles,
 penso no que falhei, no que não serei,
 em tudo o que vem como um vento velho,
 afinal, no vento das sensações.

9

Parte II v2.indd 9

09/10/15 10:29


Currículo Estava a fazer um currículo, e até que o preenchia com competência, organização, método, até que vejo o que querem de mim, e aí percebo que quando me pedem as competências, esse nível tão abstracto de algo que já se fez, eu noto que pouquíssimo fiz, e deixo o espaço em branco. Não tenho currículo e faço por ser competente nisso, ao longo dos anos.

10

Parte II v2.indd 10

09/10/15 10:29


Noite dos tormentos Esta é mais uma noite em que eu não sei o que fazer. Nem consigo prever as horas concedidas ao sono, nem consigo prever o que vou fazer amanhã, esta é mais uma noite em que penso e digo: já vou tarde para tanta coisa (como este sono que promete vir e não vem), tarde como qualquer atraso que pediu perdão mas se atrasou no vagar de muita promessa. Esta noite é um tormento, um delicado tormento, um dedicado tormento da minha autoria com especial dedicatória a mim mesmo.

11

Parte II v2.indd 11

09/10/15 10:29


Metafísica em cima da mesa Fui ao café para escrever coisas tristes com a esperança que voltassem num dia seguinte não tão triste. Mas encontrei velhos amigos e sentei-me com eles. São rapazes sem metafísica. Não compreendem a companhia de um caderno, de um livro que se leva para a mesa, de um jornal que se deseja folhear. Não compreendem o que bebo e porque o faço. Passei toda a noite desconfortável sentado sem metafísica em cima da mesa.

12

Parte II v2.indd 12

09/10/15 10:29


Ensaio sobre os estudos Provei não ter provado nada aos que me ensinaram a ambição, e aos demais e também aos da frincha (sim, os que empurram sempre o portão para que passe e caminhe com ilusórias facilidades). À porta encostada não dificultei nem chamei ninguém. Segui num passo lento. Ao meu intento saudaram-me, e, numa estranha sensação, sem ter provado nada, sem ter querido nada, acenaram enquanto a longa via se fazia, um adeus que caiu breve, um adeus ao de leve, e atrás uma sombra que eu, desejado, fingira.

13

Parte II v2.indd 13

09/10/15 10:29


Fui à minha escola antiga Fui à minha escola antiga. Sentei-me lá ao pé, cansado, molhado, e pedi um café. Olhei-a com meio sorriso mal olhado. Nem criança fui ao vê-la agora. Não, agora sou o homem do café — o do café, logicamente — que atenta em tudo com uma distância necessária: uma certa maneira de ver o mundo, uma astuta repugnância do que fui outrora por não ter cumprido nada do que prometi então, um caminho mais calmo para a certeza de todos os homens, sem a emoção exagerada que nos desvirtua da morte. Prefiro isto, olhar tudo como se fosse uma simples memória mas suficientemente pequena para não causar aflição desnecessária, suficientemente ausente para não comprometer a razão e o ser que afinal sou, um velho mascarado de novo num fraque roto na algibeira onde guardei sonhos, mas deixei cair realidades ao ritmo de um passo idoso naquela calçada menos suja que eu e menos gasta do que o meu pensar. Acabei o café, apaguei o cigarro, e os meninos ainda não tinham saído.

14

Parte II v2.indd 14

09/10/15 10:29


Alta madrugada manienta Abro a portada de madeira, empurro a janela num suspiro ardente de quem quer ver o firmamento. Pudera eu tê-lo em mim como tenho o barulho dos primeiros automóveis e do inicial chilreio votado à madrugada terminante (pudera eu ter o horizonte, como tenho as estrelas distantes que não possuo, pontos enfermos fugindo). Julgo saber que afasto o madeiramento para poder desejar o intangível da realidade medonha.

15

Parte II v2.indd 15

09/10/15 10:29


À varanda Escrevo porque vejo os outros, sinto-os. Não criei mister ou função nova, a minha vida é uma orientação velha num corpo recente que a doutrina não tomou. Tenho comichão dessas impotências todas de que remeti aos literatos a incumbência de me influírem. Mas — uns passos para trás faz um frio outoniço — a chuva traz dúvidas. Levo ainda com umas gotas suaves. O cigarro que é a esperança de todo o mundo não se apaga. Lembrei-me: os carros e as pessoas desviam-se da berma da estrada para não me molhar — eu agradeço altero a rota mas piso o buraco — volto para casa humidamente parecido com o nevoeiro.

16

Parte II v2.indd 16

09/10/15 10:29


Vinte e oito, Outubro, Outono, estou bem A minha vida? Relativo esforço físico, para lá do devido, absoluto esforço mental, para lá do esperado, encontro-me cansado no preciso momento onde encontro a indefinição da vida, sem defeitos e sem virtudes, aparentemente inócuo todo o meu ser a todos os outros homens, aí, onde a constatação de estar vivendo é igualmente a constatação de não ter vivido. Qualquer infância, se a houve, deixei-a, e hoje penso: sei que a emoção é uma traição imperceptível à razão e que a minha vida — a minha vida —, é um conjunto fechado de soluções sem sentido, numa matemática ignorante e em filosofias longas que me ditam um sem número incrível de falácias brutas, à espera de uma memória que à hora da morte as registe como tão somente a minha vida, sem perguntas e sem respostas, só um registo pobre mas contente de que tudo isso foi, porque tem sido, a minha vida. 17

Parte II v2.indd 17

09/10/15 10:29


Parte II v2.indd 18

09/10/15 10:29


DITOSOS TEMPOS

19

Parte II v2.indd 19

09/10/15 10:29


agora é simples pensa-se no que aconteceu e diz-se já passou afinal não era amor eram quatro da manhã fiquei preso ao ponteiro e quando caí já nem era Verão (o teu nome estava escrito de norte a sul mas o teu nome fez-me perder a bússola)

20

Parte II v2.indd 20

09/10/15 10:29


Ter, ver, ver, ter Eu ainda te vejo. não te vendo, farejo, e o aroma ainda é bom depois de todo o som que ainda ecoa. dia após dia doía eu via e sabia mas o que eu mesmo queria era ter-te onde eu nunca te teria.

21

Parte II v2.indd 21

09/10/15 10:29


Pedaços de papel Tinha aqui um roteiro com o nome da tua cidade. o que farei com ele, agora que tu não me serves? O que farei com este pedaço de papel ausente e incrivelmente concreto agora que tu não passas de uma abstracção da alma e do espírito, agora que tu és um passado inerte e o papel é um presente elegantemente morto? O que farei com este esboço, deitá-lo ao chão com uma pujança de desastrado? Talvez faça com isto aquilo que fiz a outros rascunhos, amassá-lo-ei, desvirtuando-lhe a vida, rasgá-lo-ei, retirando-lhe propriedade e existência, e soltá-lo-ei, oferecendo-o como amostra de ti e de mim ao escombro da cidade velha, esperando, como tenho feito sempre, que da ruína se erga uma cidade nova, um novo caminho talvez,

22

Parte II v2.indd 22

09/10/15 10:29


uma nova hipótese de mapa e território num novo pedaço de papel, um esquecimento da saudade antiga em uma quantidade incrível de desperdiçados bocados da folha que vinha com o teu nome e contigo e com memórias de outros caminhos e de outros roteiros. Talvez não passem de pedaços de papel, mas vou deitá-los como se fosses tu, como se fosse eu?, certamente como sendo pedaços de papel que já não me servem.

23

Parte II v2.indd 23

09/10/15 10:29


Mulher I Mulher, dá-me o teu egoísmo, o teu não-querer, essa mais que forte ausência de vontade, que o Sol e a Lua ofertam à sombra a luz que enternece a distância e amolece a alma.

Mulher II Mulher, sorri comigo e sorri também por mim. Deixa-me sentir ser alvo de algo, ainda que provavelmente nada sintas, ainda que certamente mintas.

24

Parte II v2.indd 24

09/10/15 10:29


Mulher III Mulher, desabotoa-te como se isto fosse uma ordem tomada por ti de maneira voluntรกria. Como se realmente quisesses.

25

Parte II v2.indd 25

09/10/15 10:29


O tempo fugidio nem tudo curou O tempo fugidio nem tudo curou. correu; morreu? morou.

26

Parte II v2.indd 26

09/10/15 10:29


Definição de vida ou coisa parecida A vida é justamente isto, um rodopio de coisas a acontecer sem prévias virtudes, sem nenhum aviso de hipotética mágoa ou cansaço. A vida é um conjunto de causas para puxar de um cigarro e morrer cada vez mais depressa, cada vez mais lentamente.

27

Parte II v2.indd 27

09/10/15 10:29


Sentimentos de culpa Um certo sentimento de culpa intrínseco ou alheio ou uma dor de cabeça que me avisa da lentidão do tempo ou uma dor de costas que assegura a permanência da postura corcunda para o mundo ou uma dor de peito que me diz que a amo ou um sentimento semelhante e que já não posso amá-la ou senti-la igualmente ou uma dor de alma que me garante que as coisas já passaram e que voltar atrás é uma ilusão dos vencidos e que olhar para o passado é a razão de ser da decadência dos homens amantes e que escrever sobre isto é coisa nenhuma e que pensar em mostrar isto é coisa nenhuma também e que pensar em ter escrito isto tudo a pensar nela é sinal de coração enfermo e que agora a quero esquecer para lembrar devidamente e não consigo e não posso e nem sei se quero sou um guarda-chuva que já serviu e que agora rompeu um falhanço de mim mesmo a água entra a mágoa encharca.

Parte II v2.indd 28

09/10/15 10:29


ENTRE OUTROS TEMPOS

29

Parte II v2.indd 29

09/10/15 10:29


mas enquanto aqui se está enquanto aqui estamos dá a mão à vida e ata-lhe a ossatura do teu inferno rompe-se-te a costura do corpo mas é a estoicidade possível mascara-te sê como Diógenes

Parte II v2.indd 30

09/10/15 10:29


Método, ciência, fé exemplifiquemos eu crio um método (acabo de criar um método) agora que é meu tenho que ter uma ciência claro (já tenho uma ciência) só me falta uma coisa é ela que cria tudo é ela a deusa-mor da existência (sem ela não existes talvez existas pouco) a fé (mas eu não creio nela meu deus eu não acredito nela) a ciência é possível (o método é necessário para que a ciência seja possível mas para acreditares nisto tudo podes começar a rezar reza ó cálculo legitimado ó critério e rigor de fonte ó imperativo categórico ó sei lá que coisa existente por verificar et cetera) mas só a humanidade sem ciência é certa só a humanidade. 31

Parte II v2.indd 31

09/10/15 10:29


Vinte e dois de Abril todo o trabalho é difícil aquele escreve aquele professa o que escreve aquele torna único verosímil o que já escreveu e disse os outros levantam pedras ou chegam a casa bêbados com cansaço nos bolsos os outros é que sabem mas são aqueles os que escrevem.

32

Parte II v2.indd 32

09/10/15 10:29


Envelheceremos vamos envelhecer vamos vamos envelhecer olha ali aquela velha de cabelos brancos não é essa é a outra vês vamos envelhecer como ela se calhar com menos cabelos mas com o mesmo branco pérola é tudo uma questão de tempo e de mais ou menos cabelos.

33

Parte II v2.indd 33

09/10/15 10:29


Hipótese (tenho dificuldade em respirar e trago um Lautrec no peito difícil) a hipótese não existe é ela mesma nula no acto de existir como sendo hipótese coisa tão pequena por chegar por desvendar ou saber não importa a Hipótese nem a hipótese de importar hipoteticamente a hipótese fez mal ao homem dá-lhe o que ele procura sempre (que é o que mal existe e mal se sabe) e no final do dia vai para casa com dúvidas na algibeira e terá tabaco nela e quanto gastou nos copos gelados a hipótese trouxe tudo menos a certeza mas realça ao lente a coragem de estar persistindo e ao comum a pedagogia de errar que é a pior das misérias mas hipoteticamente digamos é a miséria que queremos ofertar ao outro tudo hipóteses deixamos só hipóteses.

34

Parte II v2.indd 34

09/10/15 10:29


Quando me mandam pôr o termómetro não preciso do termómetro para saber a minha temperatura
 nem do mercúrio para saber de minha índole para líquido vermelho 
 chega-me o sangue
 não preciso que o inanimado verifique o animado
 não preciso de escalas o que é isso de escalas
 os números não dizem nada sobre mim nem sobre o meu eu interior basta-me a mão tua à testa 
 ou os lábios outros
 ou até um olhar arguto de pai ou de mãe mas não me recomendem o termómetro que eu sou humano o terno comprimento tem termo comigo não o cumprimento não estou doente e se estiver lá saberei lá se saberá mas não me mandem pôr o termómetro (o digital da ponta metálica irrita o enfermo quando apita e faz um frio desagradável como se estivéssemos a morrer
 e afinal fossem só uns trinta e oito poucos).

35

Parte II v2.indd 35

09/10/15 10:29


Em dia de concerto acordo finalmente existente autónomo (escrevo ainda de pé com a mesmíssima força com que irrompi da cama
 e estou fumando com segurança bruta
 até inclinado sob esta força olímpica do hoje)
 fui potente pude disse não
 enquanto punha a vestimenta do ocaso e apertava firmemente os óculos de sol
 e atrelava o cão à minha mão com um domínio claro e austero
 (sim demos um passeio
 uma rapariga saúda o animal
 sorrio para ela e pisco-lhe o olho mandão e soberano claro que não falámos)
 a casa está igual a si
 o dia é uma realidade ritual

36

Parte II v2.indd 36

09/10/15 10:29


quiseram o vento e o sol retirar este Deus dolente aquele outro homem doente o suporte em que escrevo abana com o movimento olímpico da tinta já o disse nem tenho frio nem tenho fome
 nem estou bêbado 
 nem tenho inveja daquela multidão que se está certamente divertindo
 dei o meu bilhete para o concerto de hoje com um desprezo alegre à alegria alheio
 como se virasse as costas gigantescas ao tempo
 como se estas costas fossem já as sombras do demónio ido ouvi há pouco a palavra cicuta
 e brincarei com a magia própria da potestade no panteão
 dizendo que cicuta foi a cerveja que tanto tomei esse copo flácido de plástico popular
 que agora seguro imponente
 segredando silenciosamente como se Sócrates estivesse para morrer
 escuta cicuta és uma filha da puta.

37

Parte II v2.indd 37

09/10/15 10:29


Tratado geral sobre a expectativa quem inventou a palavra expectativa isso é esperança mas em perspectiva respectivamente é um nada que à cobrança mente.

38

Parte II v2.indd 38

09/10/15 10:29


O serviço privado do tabaco é para isto que o tabaco me serve o sentimento de realização inútil que é leva-lo à boca como se estivesse a fazer grande coisa decentemente.

39

Parte II v2.indd 39

09/10/15 10:29


Vinte e quatro de Abril claro que não sou irremediavelmente bem-disposto está enganado quem o acha ou sente se me pareço com isso estranhamente reguila aos vinte e três anos de maturidade é porque assim tem que ser para ver se sorriem mais largamente para desembrulhar a risada desse rosto sisudo porque de cinzento já se se mascarou o céu.

Vinte e quatro de Abril II somos seres muito diferentes tu vais ser bom o melhor eu poderei ser também bom o melhor e dos respectivos impérios imperadores nos tornaremos tu serás por todos adorado e empregado eu serei somente o que lê ou escreve ou comenta ou observa ou ou infinitamente ou aquele a quem perguntam e para que é que isso afinal serve.

40

Parte II v2.indd 40

09/10/15 10:29


Quatro de Maio a inveja não é minha foste tu que ma deste é uma sensação mesquinha ou um pensamento agreste é como se eu dissesse isso é meu e tu provares por lei fundamental da humilhação que isso é teu e que o mundo é cão.

Oito de Maio dia tarde que hei-de fazer que hei-de fazer camisa vermelha por dentro das calças estou jacobino soberano superlativo mas este dia é um daqueles que só chega para estar à espera do próximo sem utopias morno gray que venha sábado. 41

Parte II v2.indd 41

09/10/15 10:29


Take Five venho para casa sozinho com a sensação de ser um hábito já que interessa o resto do tempo todo (acordei tarde com dificuldade mole e potência torpe demorei-me no arranjo do corpo que este sábado é quase um domingo italiano adolescente foi este cansaço distinto que me pôs na rua vim beber a um sítio onde as pessoas são estupidamente alegres onde os odores das coisas extravasam sempre onde as conversas ruidosas não prestam e quando voltei não estava rejuvenescido atirei-me logo para o meio lógico onde vai toda a gente mas donde essa mesma gente trará outra gente como companhia do momento e eu volto na minha carruagem a minha alma tem vagões por preencher e no fumo negro da hulha esvai-se a esperança em nuvens gordas e preso ao carril vai o coração voraz não deixo ninguém entrar a arrogância grita que o comboio não pára na plataforma quando cai em si

42

Parte II v2.indd 42

09/10/15 10:29


volta os braços a tentar agarrar o passado mas é uma miragem e a carruagem já passou e ninguém mais entrou) ouço Dave Brubeck até à exaustão claro que estou sozinho seguramente os músicos têm paciência para os poetas tornou-se um hábito já.

43

Parte II v2.indd 43

09/10/15 10:29


Vinte e sete de Maio procrastinação acto de limpar o escritório com a leviandade do escritor acto de ir às aulas para logo depois lhes dizer não e acabar por ficar a conversar com conhecidos por conhecer enquanto a cerveja nos embriaga acto de chegar a casa com dois livros de Schumpeter acto de adjunto de abanar a cabeça ao pensar no que tenho por ler (olho para trás e penso nisso miseravelmente, a prateleira cheia) acto de ter o jantar feito e comê-lo quente acto de não levantar a mesa acto adjunto de ordenar que se levante a mesa acto de cair no sofá com sono silencioso acto de acordar com um diletante desejo de ir à rua (vou à rua)

44

Parte II v2.indd 44

09/10/15 10:29


acto de beber uma cerveja preta acto de beber um gin acto de fumar acto de perder tempo a observar, desta vez sem caderno ou lapiseira acto de regressar por volta das duas com uma certa vitória nos lábios por ser sido só isto, este par de horas acto de ver um jogo da copa dos libertadores (river plate contra cruzeiro de belo horizonte, river passou) acto de fazer uma torrada e beber um copo de leite magro frio acto de me deitar na cama escrevendo estes discernimentos acto de nem ler página alguma procrastinação acto de muita coisa e desse bastante a negação.

45

Parte II v2.indd 45

09/10/15 10:29


Sara só consigo pensar em ti sara somente sara na minha mente mal sei quem tu és e acontece este mal-estar bom de dançares as cores múltiplas em passos singulares dentro da minha cabeça isto é um início perigoso mas deixemos os riscos a quem os deseja deixemos dança à vontade.

46

Parte II v2.indd 46

09/10/15 10:29


Devaneio de Janeiro estou como se à saída de um comboio estivesse vejo a confusão de uma estação de comboios acerto a hora pelo relógio bojudo enorme certíssimo (os ponteiros são a prontidão e os números dizem-te existes) saio calmamente de tudo como se a humanidade fosse dois degraus de metal velho.

47

Parte II v2.indd 47

09/10/15 10:29


(franze o sobrolho respira estás a arfar podes chamar à realidade puta mas ela não se vai vestir melhor podes gritar-lhe foge mas é bom que lhe dês o teu braço antes que tropeces)

48

Parte II v2.indd 48

09/10/15 10:29


Parte II v2.indd 49

09/10/15 10:29


A OLHAR PELA JANELA

Parte II v2.indd 50

09/10/15 10:29


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.