Portefólio de psicologia e desenvolvimento

Portefólio de Psicologia e Desenvolvimento José Rafael Soares PG28234 Ano lectivo 2015/2016

O nome não tem metáfora por isso sou José como o avô Xavier médico macaense de estirpe digníssima Rafael como mais ninguém talvez um tio de barbas ruivas Soares como mandam as leis do casamento

perguntem ao outro como ele me descreve e ouvirão incorrigível irascível tolerante bom

filho de mãe Maria e de pai Miguel cheio de irmãos Miguel, Guilherme, Ana e Maria gosto de coisas difíceis corpos difíceis

não sei se o homem feliz sabe que é feliz ou se alguma vez procurou saber satisfaço-me com coisas breves realizo-me com coisas boas

1

necessito de pensar e de coisas fúteis

o medo também tem versos o maior medo tem poemas este veio no vinte e nove de agosto A morte passa nos corredores deambula em macas metálicas baralha-se no tossir cavernoso a morte vem ventilada presa à cama do que está para morrer a unidade dos cuidados intermédios é um suplício o pior dos hospícios intermédios é a morte a dizer que vem a meio do caminho encontro num cadeirão o meu pai faço-lhe continência (mais tarde liga-lhe o comandante creio que ele não viu agora a morte mais perto do que no Rio Cacheu mas esteve um arrasador sol a fazer lembrar um final africano já lhe defino vícios como a um idoso se faz e nesse momento vem-me a vergonha humilde de filho tira os óculos põe os óculos alisa o pouco cabelo para trás pergunta por novidades mas sobretudo é o jeito de ele tirar os jornais do saco que me faz jorrar religiões inteiras) um dia escrevi que íamos envelhecer que é como quem diz morreremos.

2

gostava de ver as cidades milenares e outros séculos

gosto de (recupero um exercício da aula) gosto de gostar gosto de responder gosto de dizer a verdade gosto de tudo o que já foi dito e gosto de muita outra coisa

gosto de vestir o calor de uma roupa e basta

residente em Braga cidade burra

3

I

Entra-se no consultório pelas seis da tarde, hora de Portugal continental. A poltrona é dura, imensamente preta. Recebe-me um homem alto, firme.

- Então, como se sente?

- Bem doutor, melhor do que ontem.

Cumprimento-o com mãos frias e suadas. Tem-nas bojudas e à temperatura média, e absorve as minhas num contacto lento, energicamente balançando a musculatura manual. Encaminha-se para uma escrivaninha altiva, de quatro pés fortes sobre o chão incrivelmente luzidio. Acende um cigarro e vasculha numa enorme massa branca de papel.

- Tomou o medicamento?

- Tomei, sim.

Velho hábito dos psicólogos o de procurar coisas nos rascunhos enquanto perguntam aleatoriamente algo que se relacione com a profissão.

- Chove muito lá fora, não chove? O tempo está cada vez mais estranho.

- Pois é doutor, está mesmo. É o penico do céu, não é?

Quando finalmente encontra a folha desejada, faz sinal com a mão para que me deite, enquanto se senta ali à beira. A poltrona incomoda-me as costas, relembrame de uma terceira noite mal dormida em tantos dias.

- O seu processo está concluído. Gostava de lhe fazer algumas perguntas, no entanto.

- Perguntas sobre alguma coisa em específico, doutor?

- Não se preocupe, está tudo bem consigo, é um rapaz saudável. Só tenho uma dúvida em relação ao que disse há umas sessões atrás.

- O quê?

- O futuro.

- Não estou a ver.

- Disse que o futuro o atormenta porque só o passado é certo.

- Ah, sim, disse.

- Mas o que quer com isso dizer?

- O passado tem as respostas todas, não é? O futuro é um grande conjunto de perguntas.

4

- E isso incomoda-o?

- Prefiro uma ideia de vida estável.

Por esta altura já o doutor estava bem instalado, com os dedos finos tocando uns nos outros e com leves rugas na testa definida. Fez sinal com o beiço para que continuasse o pensamento. Numa mão segurava um cinzeiro pesadíssimo, cinzentão, com quatro faces. Um poliedro de cinzas.

- É isso, acho que sou uma pessoa à procura de um bem-estar estável.

- Prefere, procura, mas não obtém?

- Creio que sou de ziguezagues, sabe como é.

- Não, não sei.

- Ó doutor, é como se tivesse um peso a puxar sinuoso para um lado e depois para o outro. Como aquela frase de William James que me deu para ler.

- Os seus desejos dirigem-se a coisas incompatíveis?

- Estava lá escrito.

Puxou a cadeira para ficar colado a mim, cruzou as pernas e voltou aquela expressão rija. Levou os nós dos dedos aos lábios e logo voltou ao questionamento.

- Gosta de ler?

- Gosto.

- E por que é que lê?

- Para conhecer mais sobre o mundo e sobre o homem.

- Mas podia conhecer mais o mundo e o homem a viajar ou a trabalhar.

- A viagem é veloz e o trabalho faz homens cansados. A ideia de leitura aproxima-me da acalmia.

- Como um meio ou como um fim?

- Como um meio, creio.

- Escrever a própria história é um meio para se conhecer melhor?

- O quê? Um testamento? Ou um diário?

- Ao gosto do freguês.

- Depende do que o freguês quer. Eu tenho um diário.

- Escreve todos os dias?

- Sim. - E ajuda-o a conhecer melhor?

5

- Apenas registamos continuamente pedaços da realidade vivida. Nunca saberemos se estamos a conhecer-nos mais ou melhor. O doutor tem um diário?

- Não.

- Devia ter. Torna-se viciante.

- Lê muito?

- Menos do que o que escrevo.

- Mas é mais feliz lendo?

- Não sei. Posso dizer-lhe uma coisa, doutor? Acho que vocês insistem demasiado na questão da felicidade. A certa altura nós ficamos constrangidos por não sabermos bem o que queremos para sermos felizes.

- Está constrangido?

Algum silêncio na sala. Havia um pequeno relógio pendurado na única parede sem estantes de livros e um mapa, poucos metros à esquerda, com as capitais europeias. A secretária de pinho estava repleta de pequenos adereços, e a estatueta de um cão sobressaía do monte de folhas.

- Não estou constrangido. É um desabafo. A nova sociedade capitalista vive com uma ideia de felicidade forçada, sempre com novos meios de consumo à sua frente, sempre com novas formulações de vida a aparecerem-lhe como vitais e redentoras. Regra geral, os grandes leitores são felizes porque se abstêm de muitos outros vícios civilizacionais, vícios esses que o catapultariam para um estado efusivo.

As pessoas mais felizes passam mais tempo distraídas.

- Nova sociedade capitalista?

- Sim, parece-me que é nova. Não havia o ditame low-cost a gerir o orçamento individual e as selfies a povoarem o nosso imaginário.

- E, portanto, é mais feliz a ler do que com outras coisas.

- Sim, atalhe-se assim, sim.

- E acha que quem gosta de ler está mais preparado para escolher a vida que desejou?

- A vida do grande leitor contrasta com a do pragmático que corre e alcança o sonho.

- Não se pode ser grande leitor e pragmático ao mesmo tempo?

- Olhe, não sei. Pode?

- Não sei. Acha-se pragmático?

6

- Não. Sou um teórico. Permite-me dizer palavrões, doutor?

- Sim. - Sou um teórico de merda.

Soltou um gargalhada lenta enquanto pousava o cinzeiro no chão. O relógio marcava alguns minutos para lá das seis e meia.

II - Porque é que diz isso?

- Porque é a verdade. Devia ser mais prático.

- E porque não o é?

- Sei lá. Coisas incompatíveis.

O homem via agora a folha do meu processo.

- Acha que tem que ver com a formação em História?

- Talvez.

- Fugiu de Engenharia Biológica.

Franzi o sobrolho.

- Não fugi, doutor.

- O que se passou, então?

- Olhe, a matemática era um duplo esforço para a minha cabeça. Não via coisas para retirar para a vida concreta. Depois, tinha que gastar muito mais tempo para essa disciplina do que para outras. Já sabe, a matemática e o português precisam de maior atenção do que biologia ou filosofia, por exemplo.

- E queria dar mais atenção à biologia ou à filosofia?

- Não sei, na altura nem pensava nisso, não é? Era mais um aluno pressionado pelas metas a atingir. Mas visto à distância, sim, queria dar mais atenção a outras matérias. Há pouca liberdade para o estudante do secundário.

- Se mandasse no país, acabava com a avaliação?

- A avaliação faz todo o sentido no sistema de civilização que temos.

- Não parece gostar desse sistema.

- Não acho eficiente. Deixa muita gente de fora.

Inspirou fundo.

7

- E para o estudante do ensino superior, há liberdade?

- Há demasiada.

- Há?

- Há. A universidade está a tornar-se uma treta, doutor, um rodopio de alunos a serem certificados. Saem com mais informações, com um maior conhecimento quanto aos métodos e às abordagens científicas, mas com algumas lacunas impensáveis. Tenho colegas que não sabem escrever português, acha isto tolerável?

- No seu curso, não.

- Em nenhum curso deveria ser tolerável, mas numa ciência social ou humana ainda menos. Mas enfim, esta libertinagem, que é a liberdade transformada, depois tem consequências graves. Pessoas que emigram, trabalhos que não correspondem à expectativa, jovens em depressão...

- Tudo em volta da felicidade pessoal.

- Ou da sobrevivência.

O homem pegara no cinzeiro e acendera outro cigarro.

- Sobreviver para depois ser feliz, que lhe parece?

- Parece-me pouco.

- Pouco?

- Sim, apostar tanto em nós mesmos para partir em busca da sobrevivência é voltar ao darwinismo nas megapólis.

- Ou que buscam por novos desafios.

- É diferente.

- É?

- É.

Voltei-me para ele. Estava a olhar para o tecto, com o fumo a fazer ondas e círculos à volta daquela imagem austera.

- O doutor acha que eu podia emigrar e procurar novos desafios, destabilizar a minha vida e ir à procura da felicidade, é isso?

Os seus olhos viraram-se para mim e soltaram um ligeiro sorriso na boca.

- Não acho nada.

- Parece-me que acha isso.

- Eu só lhe coloco questões. Quer um chá?

8

III - Obrigado.

Era um chá preto, frio. Dei dois goles.

- Açúcar?

- Não, obrigado.

- Não põe açúcar no chá?

- Raramente.

O homem acabava de pôr duas grossas colheres da especiaria.

- O que é que lia quando era criança?

- O Wally. Conhece?

- Não.

- É uma personagem de fascículo. Pintaram-no de camisola vermelha e branca e jeans. Os fascículos estavam relacionados ou com países ou com zonas geográficas.

Aprendia-se imenso, e, aos seis anos, não havia melhor para conhecer o mundo.

- E livros?

- Não lia. Com muito esforço li um livro de aventuras de autoria inglesa, não me recordo do nome, mas foi o primeiro que li até ao fim.

- Mais nada?

- Livros de quadradinhos contam?

- Nem por isso.

- Então mais nada.

- E na adolescência?

- Na adolescência já conhecia o fenómeno Harry Potter. Li o Código da Vinci.

Lia policiais, Conan Doyle e o seu inesquecível Sherlock Holmes.

- Policiais e ficção.

- Sim, e pouco mais do que isso. As referências não abundavam. Tinha muitas dificuldades em concentrar-me.

- Porquê?

- É a época das hormonas, não é? Também havia a febre dos videojogos, à qual não fugi.

- Vi na ficha que jogou o World of Warcraft.

9

- Sim. - Conte-me mais sobre isso.

- É um jogo engraçado. Perde-se muito tempo com ele, sabe? É uma droga virtual.

- Como é que se joga?

- Cria-se um avatar e vai-se descobrindo o universo que uma série de idiotas criaram.

- Idiotas?

- Gente com muitas ideias.

Sorri e acabei o chá. Pousei a chávena no chão. Via uns quatro cigarros acabados no cinzeiro feio.

- Mas não era o único a jogá-lo.

- Não, era eu e mais uns quantos milhões à volta daquilo.

- É gregário?

- É mágico e gregário. Mas o agrupamento por vezes é fictício, há pessoas que jogam aquilo para serem as melhores e nunca perdem a componente individualista.

- Pagava para jogar?

- Paguei. Se quer jogar tem de pagar. O capitalismo não acabou na internet.

- E mudou algum comportamento enquanto foi jogador?

- Sim, aquelas coisas aparentemente superficiais. Chegava mais tarde à mesa, não ia à primeira vez que me chamavam para a cama, tinha ainda menos vontade para fazer trabalhos de casa. Mas depois passou rápido. O pior aconteceu a outros jogadores.

- O quê?

- Mudaram muito a sua raiz comportamental. Transformam as relações sociais, mudam a perspectiva do ser em relação ao mundo. São actores de um cenário de circo, circo virtual, percebe? Hoje em dia um jogo pode ser visto por milhares de pessoas na internet, em tempo real, com manobras de marketing gigantes por detrás.

Acho que isto passa despercebido.

- O psiquismo do individuo altera-se?

O doutor estava claramente interessado.

- Sim, creio que sim. Muitos dos jogadores impõem àquelas horas despendidas a jogar uma concentração e uma dedicação incríveis. Há toda uma economia que se

10

mobiliza para o jogo: um computador, um rato, um teclado, uns auscultadores, um monitor. Acho que tudo altera os eixos morais e éticos do indivíduo, nem que seja por passar anos debaixo daquilo, às vezes sem noção do que se passa lá fora.

- Anos?

- Conheço pessoas que acordaram tarde, sim.

Deu o último gole na bebida, e ficou calado por mais algum tempo.

- Mais chá?

- Não, obrigado.

IV O relógio mostrava sete e um quarto, e de uma pequena janela, a única, via-se a noite e os inícios do luar. Quando se recompôs com mais chá, o inquisidor sentou-se inclinado para mim.

- Olhe lá, não parece afectado por ter perdido esse tempo todo.

- Também aprendi. Treinei o inglês. No século vinte e um, é impossível um jovem não jogar um jogo daqueles. E se não jogou, fica a perder. É uma experiência interessante.

- E nessa altura, havia alguma leitura de cabeceira?

- Sim, no final do secundário comecei a ler coisas a sério. Fernando Pessoa, Saramago. Os autores do livro de português.

- De quem gostou mais?

- Idolatrei Pessoa demasiado tempo. Achei que depois dele nada de melhor havia, como se a literatura tivesse acabado.

- Porquê?

- Põem Pessoa à frente de um miúdo com dúvidas...

- Que dúvidas?

- Existenciais, profissionais, de todo o tipo.

- Porque diz por demasiado tempo?

- Torna-nos infantis idolatrar alguém tão cedo. Há gente que ainda o idolatra.

Há gente que não leu um poema completo sequer, e que depois parafraseia-o para se distinguir. Fico logo com urticária.

Riu-se.

11

- Não gosta da distinção?

- Não. Não gosto da distinção estúpida. Alguém que pega numa frase que não é sua para defender uma ideia parva e púbere merece-me a urticária.

Voltou a rir-se. Acendia outro cigarro.

- Você parece-me ficar com urticária muito facilmente.

- É verdade. Mas naquele tempo eu não tinha razões para isso. Nem tinha a consciência de ser leitor.

- Então?

- O problema esteve na universidade, num campo de conhecimento aberto, em turmas grandes. Comecei a perceber que a distinção é manietada pela essência tribal do homem.

- Explique-se.

- Olhe, pessoas que esperavam pelo professor para fazerem perguntas parvas, por exemplo. Sabe porque é que o fazem? Porque estupidamente acham que estão a ganhar o crédito da diligência. Como numa tribo, em que o mais novo quer mostrar-se útil ao ancião para ver se sobe na hierarquia.

- Mas se for melhor nos estudos passa ao lado disso.

- Teoricamente.

- Teoricamente?

- Sim, eu posso ser melhor nos estudos e não ter esse reconhecimento na nota.

- Sente necessidade de ser reconhecido?

- Como o comum dos mortais.

- O comum dos mortais sente isso?

- Sente, deve sentir. Mas não é da distinção que não gosto, é de certos tipos de distinção desonestos.

Vai ao bolso buscar qualquer coisa.

- Fuma?

- Fumo.

- Quer um cigarro?

- Não, obrigado.

- Acabou de rejeitar uma oportunidade de se distinguir.

Soltei uma gargalhada. Afinal o cigarro era para ele. Meteu-o na boca sorridente. Quando parecia estar prestes a acendê-lo, tirou-o e guardou-o.

12

- Mas fiquei sem perceber uma coisa.

- Qual?

- Afinal, que livros quer ler?

- Todos os que me faltam. Como aquela frase do Almada Negreiros, da...

- Está a citar.

Interrompeu-me com sucesso. Eu acabava de citar. Enquanto pensei no que dizer, o gajo ia à folha ler qualquer coisa.

- Então devo ficar com urticária de mim mesmo.

- Estava a meter-me consigo. Sabe que nem sempre somos justos para com os outros. Pelo que me parece, você teve mais oportunidades para aceder a um tipo de conhecimento do que a maioria.

- Sim, tem razão. Mas eu prefiro criticar para subir a parada.

- É legítimo. Quanto tempo despende a perder-se com um bom livro?

- O tempo que ele precisar.

- E a fazer trabalhos manuais?

- Menos do que o que gostaria.

- Costuma fazer palavras cruzadas?

- Sempre que posso.

- E pelos vistos, tem diário.

- Tenho, sim.

- Quando começou?

- Quatro de Abril de dois mil e quinze.

- Reflecte muito sobre o seu futuro?

- Demasiado.

- E a ouvir música?

- Pouco para a música clássica, muito para outros estilos.

- Faz desporto?

Já me tinha perguntado estas coisas há semanas.

- Não, estou lesionado.

- Gosta mais do ar livre.

- Sim. - E pensa muito sobre as grandes questões da vida.

- Exacto.

13

- Tem interesse em escrever uma carta ou uma estória?

- Escrevo cartas de mês a mês e estórias tenho-as escrito.

- Lá por casa é marceneiro?

- Não. A minha mãe acha que pode arranjar qualquer coisa, portanto não é preciso.

- Tenta resolver problemas cientificamente?

- Quando dá.

- E ajuda outras pessoas?

- Sou bem educado, mas não faço voluntariados.

- Acredita no aperfeiçoamento pessoal?

- Detesto a falácia do empreendedorismo.

- Canta?

- Mal. - Toca?

- Pouco.

V Foi buscar o cigarro guardado à algibeira e logo se pôs a desfrutar dele.

- Conte-me mais sobre a falácia do empreendedorismo.

- Já ouviu os novos paladinos do empreendedorismo? Põem-se a defender aquilo com um palavreado bélico, parece que o mercado de trabalho é um mercado de carnes com cada um a tentar vender a sua. Olhe, esses paladinos são filhos de um regime de competição absurdo.

- Absurdo?

- Sim, traz resultados para alguns sistemas de ensino, mas na vida civil este regime é oneroso, pesa mais na balança sobre o fenómeno humano da cooperação.

Estes pregadores querem um mundo a absorver os mais competentes de certas áreas, mas precisamos de uma corrente holística para tirarmos a humanidade e cada homem do poço.

- Escreveu isso há tempos, num exercício. Chamou-lhe de neo-fascismo, não foi?

14

- Sim. Mas o neo-fascismo é uma coisa que eu nem sei se existe. Quanto ao mercado de trabalho, há uma gestão empresarial do medo, e eu defendi nesse exercício que isso está a contaminar o discurso dos jovens.

- Está?

- Está. Fale com qualquer engenheiro com vinte e poucos anos. Poucos são os que não vergam a cabeça.

- É revolucionário, portanto?

- Não se trata de ser revolucionário, doutor. Trata-se somente de ver o que as várias dimensões do real nos dizem.

- E o empreendedorismo diz-lhe que há um novo fascismo?

- Diz-me que pode alterar o bacilo fascista, como uma estirpe totalmente nova da acção. A adaptação à empresa reformatará o indivíduo no caminho do sucesso.

- Não estará a exagerar?

- Sim. Mas o papel do crítico é exagerar o que lhe parece mal. Olhe, como disse o poeta Heine quando viu Londres industrial do século dezanove.

- O que é que disse?

- Exaggerated London. Numa expressão resumia as vicissitudes de um sistema urbano como o londrino.

- Então quando usa aquela expressão, pretende resumir.

- Mais ou menos isso, sim.

- Heine é literatura de adulto.

- Deve ser. Nunca o li. Ouvi a expressão há tempos, num texto sobre a civilização industrial.

- Que literaturas mantém para si como sendo de maioridade?

- Sou-lhe honesto, doutor: não faço a mínima ideia.

- Certamente não lê ainda “Uma Aventura”.

- Não, não leio, mas posso chamar infantil a alguém que leia “Uma Aventura”?

- Não pode?

- Se ele ler só esse tipo de livro, sim, mas há combinações interessantes. Eu mantenho leituras que me instruem e que não são dignas ao olho adulto. Olhe, estou com um livro que foi do meu sétimo ano, sobre invenções tecnológicas.

- E o que tem na mesinha de cabeceira agora?

15

- Muitos livros, doutor. Não leio os livros todos de uma vez, por isso vou acumulando-os em pilha.

- Quais?

- Estou para acabar um livro sobre a felicidade, “Nova Teoria da Felicidade”.

Um bom guia para se perceber como nos nossos tempos isso a que chamamos de felicidade está cada vez mais desligada do sentido original. Tenho “The Hobbit” por ler, do senhor Tolkien. Um de Dostoiévski que não comecei. Uns ensaios em inglês de David Hume, numa edição bonita da Oxford. “O Tambor de Lata”, de Gunter Grass, grosso mas barato. E estou a começar pela enésima vez “Memórias de Adriano”, de Yourcenar. Há também dois livrinhos de Fernando Pessoa. Um tratado de Montesquieu. “O Estrangeiro” de Camus. “Todos os nomes”, de Saramago. E o aquele que eu não consigo acabar porque leio-o lentamente, sobre Fernão Magalhães, de Zweig. Olhe, o mais velhinho é mesmo uma obra de memórias de Albert Speer, o nazi. Como vê, uma pilha diferente, complicada.

- Diferente, sim. Complicada?

- Sim, a natureza de cada um é tão diferente que as leituras se tornam mesmo lentas. Ainda para mais, estou a ler em diferentes línguas.

- Gostaria de ser poliglota, escreveu aqui num exercício.

- Sim. Mas são coisas impossíveis.

VI - Falemos então de uma coisa possível e existente.

- Diga lá.

- O que significa para si chamar-se Rafael?

- Absolutamente nada.

- Escreveu aqui “Conheces o nome que te deram. Não conheces o nome que tens”.

- É a epígrafe inicial de um dos livros de Saramago.

- Então não conhece o nome que tem?

- Só conheço o nome que me deram.

- Mas gosta do seu nome?

- O doutor gosta do seu nome?

16

- Gosto.

- O que é gostar do seu nome?

- É gostar do nome que me deram.

Rimo-nos os dois. O homem estava completamente relaxado sobre o cadeirão onde se sentava há uma ou duas horas.

- Bom, lembra-se daqueles postais que lhe dei?

- Sim. - Na altura escolheu um assunto publicitário. Porquê?

- Olhe doutor, quando olhei para o postal, rejeitei-o, como se dissesse que matéria volátil não é admissível em estampa. Mas prontamente voltei atrás, e este recuo faz sempre parte do processo de adoração. Gostei das figuras que fazem lembrar uma sociedade de outros tempos.

- E no outro postal?

- No outro postal aliciou-me a provocação de ver chover em sentido contrário, uma desordem da natureza das coisas.

- Gosta da desordem?

- Gosto do desafio à ordem.

O doutor mexeu-se, acertou as pernas e aproximou-se.

- O primeiro postal diz-me que você não sabe o que quer, o segundo diz-me que quer o que não existe.

- Parecem-me extrapolações, doutor.

- Evidências de psicólogo.

Acendeu mais um cigarro. Perdi a conta aos fumados.

VII - Via desenhos de animação em criança?

- Sim. Havia o Canal Panda, devorava-o. Agora parece-me que a programação é mais agressiva.

- Ainda vê?

Soltou um sorriso calmo. Olhei-o como se pedisse compreensão.

- Tenho cinco sobrinhos, é impossível não ver.

- E eles, vêem muita televisão?

17

- Sim. - Mais do que você quando era criança?

- Ela por ela.

- E eles gostam?

- Sim, agora têm acesso ao Cartoon Network, outro canal poderoso com muitas animações diferentes. Mas também se alheiam nos tablets, sabe? Passam muito tempo naquilo, mas os pais também não arranjam melhor forma de os anestesiar.

- E precisam?

- Doutor, cinco crianças com fome ou com vontade de brincar são um inferno.

- E como é que podemos anestesiá-los de outra maneira?

- Voltemos às velhas tradições, o contar uma estória, o brincar no jardim ou ao ar livre.

- Essa brincadeira e o jogo digital são incompatíveis?

- Não, mas o ambiente digital tende a absorver o resto. Como aquela coisa do jogo de computador que há pouco falámos, lembra-se?

- E como contaria uma estória aos seus sobrinhos?

- É difícil, porque o seu imaginário já foi contaminado com imagens digitais que eu desconheço, e quando estamos à procura de construir aquela tensão que é inerente a uma boa estória, não vamos ao encontro do que eles desejam. Sempre que quero que eles estejam atentos, tento incutir mistério. Mistério e moral.

- Moral?

- Eles estão na idade do absurdo, ou em que muitas das imagens são desconstruídas com recurso ao absurdo, e eu tento não fugir a isso, mas contando alguma coisa com uma moral.

- Conte-me alguma coisa com uma moral.

- Dois amigos juntam-se para brincar. O primeiro rouba uma maçã ao segundo, e ri-se muito com isso, e provoca várias graças sobre o caso. Não posso deixar que no final o ladrão passe impune.

- É um reflexo dos seus valores pessoais?

- Também dos meus valores, mas sobretudo de valores familiares e civilizacionais.

- Quais são os seus valores?

- Não sei.

18

- Faça um esforço.

- Ó doutor, isto pode soar a banal.

- Todos somos um bocado banais. Olhe, eu sou corajoso. O senhor também?

- Duvido.

- Mas parece-me honesto.

- Sim, acho que sim.

- Prossiga.

- Honesto, sim. Sou amigo. Sou um gajo bom.

- Bom? - Bom. Sem maldade.

- Todos somos um bocado maus.

Olhou para o relógio e mostrou-se surpreso. Havia razões para isso. Oito e meia da noite, um breu lá fora e um frio talvez.

VIII - Já estamos para lá da hora, tem mais algum tempo?

- Tenho doutor.

- É pontual?

- Não.

- Aceleremos isto. Só tenho mais algumas perguntas. Está confortável?

- Sim. Mentia eu, enquanto sentia a perna a sair da dormência e um cheiro a tabaco impenetrado na roupa. Doía-me o pescoço.

- Fale-me sobre as suas qualidades e os seus defeitos.

- O doutor insiste nessa auto-avaliação que eu não sei fazer.

- Diga umas coisas sobre si, eu logo digo se teve ou não sucesso.

- Olhe, sou extrovertido, afável, responsável quanto baste, instável emocionalmente e tenho o espírito aberto na medida do possível.

- Muito bem, prossiga.

- Recebi uma educação liberal cuja tendência passiva se revelou anglófila nos pensares, atlântica nos viveres e mediterrânica nos comeres. Tenho por virtude o

19

respeito ao outro e por defeito o respeito ao outro que não me respeita. Sou ateu por convicção, mas a ter religião seria a de uma de muitos deuses.

- E politicamente?

- Creio que algo próximo do socialismo é o melhor dos males e que o capitalismo tem escrito uma história opaca a ocidente.

- Muito bem. Mais.

- Sei adorar cães. Sei amar. Sei gostar.

- Concretize.

- Em quê?

- Imagine-se num monólogo.

- A falar sobre quê?

- Livros, carros, música.

- Ao gosto do freguês?

O psicólogo riu-se e acenou.

- Olhe, escrever amassa-me o tempo em algo útil, e a leitura lentamente a esse caminho leva. Prefiro os estóicos. O meu maior vício talvez seja o café, não o estar sentado a bebê-lo, mas o estar sentado a conversá-lo, em dedicado acto de amizade inconsiderada. O livro mais importante da humanidade é o dicionário. Ditar defeitos ou valores pessoais torna-se-me impossível sem este discorrer de ideias. E assim desapareço: tenho como defeito falar demais e como valor uma espécie de natural bom humor. Rir é a razão porque viemos à terra. A carrinha Mercedes-Benz de noventa e oito, motor dois ponto zero de cento e vinte cavalos cavalos, é a razão pela qual se transfigurou o penedo em roda. A língua italiana é a razão por que escutamos e a voz de Lauryn Hill ou de Frank Sinatra talvez seja o universo a dizer que existimos. O local mais bonito que eu vi foi talvez o Alentejo da segunda vez o atravessei. Mas gosto ainda muito de ver Esposende. Paris é uma cidade lindíssima, mas é demasiado pesada, por isso diria que a cidade que mais gostei de visitar foi Turim, que é como se fosse uma Paris mais pequena. Aprendo a gostar da minha cidade todos os dias, mas para isso preciso das pessoas. Há demasiado cristão nestas terras. Há muita corrupção, desde o mais jovem ao mais experiente: o mais jovem copia nos testes desde o básico e o mais experiente falsifica facturas, quando não rouba ou comete crimes ditos de colarinho branco. Adoro política, no seu sentido mais ascético. O amor da minha vida é os meus quatro irmãos e os meus pais, mais

20

uns quantos que a esse número possamos adicionar. Idolatro o futebol enquanto desporto, não enquanto indústria. Não sei escrever sobre defeitos ou valores sem antes fazer a minha própria hagiografia flácida. Sou um gajo bom. Basta.

- Óptimo.

Ele tinha tirado uma série de notas.

- Quais são as palavras da sua vida?

- Não tenho.

- “Não” e “tenho”?

- Bom, a ter de escolher, escolheria todas as que conheço. Mas sublinharia “pai” e “mãe” e os nomes dos meus irmãos. Doutor, porquê este tipo de perguntas?

- São pontas soltas do seu processos. Graças a elas não volta a vir aqui.

Demos uma grande gargalhada. Ele levantou-se, pousou as coisas na escrivaninha e esticou-se como só à preguiça se lhe deve.

- Sabe o que o senhor foi no passado?

- Sei. - Sabe o que é, agora?

- Tento saber.

- E sabe o que será, no futuro?

Fez sinal para que me levantasse. Ergui-me como se tivesse saído de uma cápsula fechada, de uma ampola. Fiquei uns segundos a mirar o relógio, que apontava para as nove. Via-se claramente a lua e o luar entrava pela pequena janela do gabinete, mostrando aos objectos sem vida a vida da fumarada.

- Sabe?

- Desculpe doutor. Não, não sei.

- Ninguém sabe, não é?

- Pois, penso que ninguém sabe.

Estendeu-me a mão e cumprimentou-me, em jeito de despedida.

- Qualquer coisa, disponha.

- Obrigado doutor.

Quando me preparava para abrir a porta, eis que ouvi a sua voz.

- E quanto às coisas impossíveis, veja lá se isso não o põe infeliz.

21

IX A aprendizagem provém, tantas vezes, de momentos que relegamos para segundo plano. Não há paciência para imaginarmos que todo o conhecimento teria que ser bebido sentado na secretária, com os pés direitos e a coluna recta. A última lição recebi-a na caixa do correio, passadas umas semanas. Era do doutor.

- Caro Rafael, Espero que esteja tudo bem consigo. Sei que lhe causei algum enfado na sua última consulta, e estas letras servem, antes de tudo, para me desculpar.

Passámos tempo a mais ali, você sempre na mesma posição e eu sempre a fumar. Mas não conseguia não o ouvir. É sempre bom quando falámos com o passado. Só ele é certo, sabe? Envio-lhe em anexo aquela actividade que fez.

Via agora uma página com vinte e quatro quadrados que eu preenchera logo nas primeiras sessões. O objectivo passava por colocar uma referência em cada quadrado, sendo que a cada figura correspondia um ano de vida. Assim sendo, o primeiro quadrado, correspondente ao da minha data de nascimento, mil novecentos e noventa e um, escrevi “Mãe”. No segundo, “Pai”. “Dão-me a camisola do Romário”, “Pelas fotografias sou ruivo”, “Estamos na casa antiga de Gualtar”, “Viemos para a casa nova de Gualtar”, “Quarto”. Com oito anos, “Casa povoada de irmãos”.

“Salsicha de peru com couve branca” com nove, “Caril e ensopado de borrego” com dez. Aos onze anos já recebera os primeiros discos, e escrevi “Gorillaz e Carl Orff”.

“As tardes de Lamaçães sem fim” correspondia àqueles doze anos febris. “Camões” porque me lembro dos Lusíadas. No ano seguinte morria o meu “Avô das Picas”.

“Amo-te” disse ao meu primeiro amor. No outro quadradinho aparecia “Shine on You Crazy Diamond”, a minha música favorita dos Pink Floyd, banda que descobri com dezasseis anos. Aos dezassete, “Caderno de Couro” agregava uma fase muito estranha da minha vida, em que pela primeira vez senti uma necessidade escatológica de escrever. Depois, “História”, pela mudança, “Caderno Preto”, fiel ao meu lado, “Muro de Merlim”, um pequeno blog que mantive pela amizade. “À procura da perfeita repetição”, som de Sam the Kid e “Miles Davis”. O quadrado mais importante da minha vida é aquele em que escrevi “Cento e vinte e quatro, Rue de la Faisanderie, septième étage, porte dix”, a minha residência quando vivi em Paris com quase vinte e três anos. “Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou”, verso inolvidável de

22

Álvaro de Campos, que fazia emergir em mim todas as dúvidas que a cidade francesa ressuscitara. O último preenchimento, que equivalia a dois mil e quinze, dizia “Não posso adiar o amor para outro século”, que é um verso também de António Ramos Rosa.

No final da página, um pequeno post scriptum dizia: Um abraço, Doutor SOARES. A carta caiu-me das mãos em jeito de consciência. Doutor...Soares? Peguei no carro e dirigi-me ao consultório, no casco histórico da urbe. Ameaçava chover.

Apressei-me a chegar à soleira do prédio, onde uma tabuleta avisava da sua demolição dali a cinco dias. Nas campainhas não havia sinal do gabinete. Um aviso, colado numa parede contígua à porta, apontava para o mau tempo. Uma senhora viume a rebuscar o chão à procura de lucidez, e enquanto se preparava para sair do prédio, abriu a porta e chutou: - Meu senhor, não sei o que busca, mas é bom que o faça antes do temporal.

- Obrigado minha senhora, mas ajude-me, estou à procura do Doutor Soares, sabe dele?

- Quem?

- Doutor Soares. Psicólogo com gabinete do quarto andar.

- O prédio só tem três andares.

Olhei para o lado e as campainhas confirmavam o que havia dito.

- Mas eu tenho a certeza, era no quarto andar.

- Então era de outro prédio. E este já vai ser reduzido a cinzas.

- Não, era este mesmo.

- Meu senhor, não lhe consigo ajudar, quer entrar para ver com os seus olhos?

- Quero.

Subi as escadas desconfiado, à procura de alguma coisa que pudesse dizer-me que eu estava, afinal, certo. Eu sei que o doutor existia. Mas não havia lanço de escada para lá do terceiro andar. Desci abatido. A senhora, que esperava à porta enquanto assistia aos rodopios do vento lá fora, apenas me seguiu com o olhar.

- Obrigado.

- De nada, meu senhor. Veja lá se isso não o põe infeliz.

Enquanto ouvia isso e sentia a porta a fechar, a ventania atirou-me um maço de tabaco para os pés, da marca Future Brands Co. Olhei para trás, à procura da velha que dissera uma frase tão sensível ao meu ouvido, mas dela não havia já sinal.

23

Começavam a chover cântaros do céu. Peguei naquele maço sem vida para o deitar ao lixo, e, quando o virei, li: Only your present is right. Don’t ask the future what you’ll be. Ask yourself what you want to be in the future. Smoke Future Brand. Era, afinal, a marca preferida do doutor.

24