Arquitetura da Alteridade - Trabalho Final de Graduação

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arquitetura da alteridade a ocupação vila nova palestina e os comuns urbanos em são paulo

rafael migliatti trabalho final de graduação


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Universidade de São Paulo Faculdade de Arquitetura e Urbanismo Trabalho Final de Graduação

Arquitetura da Alteridade: a ocupação Vila Nova Palestina e os comuns urbanos em São Paulo

Autor: Rafael Migliatti Orientador: Luiz Recamán São Paulo - 2021


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Agradecimentos:

À Alessandra, ao Arthur e Maurício, pelo carinho e incondicional apoio que recebi em toda minha vida, dos despertares aos adormeceres; À Isabela, por todo amor e companheirismo que sempre e tão bem partilhamos; Ao Henrique, Júlio, Lucas, Pedro e Renan, por uma amizade na qual os sonhos e as risadas são construídas coletivamente; Aos queridos amigos de FAU, por termos compartilhado um período tão alegre e transformador nesta faculdade; Ao Luiz, por ter orientado minhas veredas acadêmicas, fundamentais em minha formação enquanto cidadão; Ao MTST, por me acolher em sua luta por uma cidade digna.


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Resumo: Arquitetura da Alteridade é um trabalho de pesquisa acerca dos modos de produção contra hegemônicos do espaço urbano paulistano. Parto de uma compreensão de contexto, observando a atual estrutura de acumulação por espoliação - apresentada por David Harvey - em seu aspecto territorial na cidade de São Paulo. Em seguida, me debruço sobre os objetos principais da pesquisa: o livro Comum: ensaio sobre a revolução no século XXI, de Pierre Dardot e Christian Laval, e a ocupação do MTST Vila Nova Palestina, na Zona Sul da capital paulista. Em primeiro lugar, o livro apresenta o tema de um candente debate contemporâneo: os desequilíbrios socioespaciais do neoliberalismo e sua superação via organização comum da vida cotidiana. Trata-se de um marco teórico abrangente, e que procura compreender na ordem comunitária as formas de superação da estrutura predatória do capitalismo em sua atual face. Em segundo lugar, a ocupação do movimento de moradia MTST apresenta a experiência empírica de construção de cidade aos modos comunitários. Um movimento que procura exatamente construir uma possibilidade alternativa de vida por meio da luta na cidade e da produção urbana. Enquanto o livro Comum se lança como um ensaio teórico, a ocupação Vila Nova Palestina consiste de uma experiência prática: o trabalho procura, assim, comparar a teoria à prática, de modo a compreender melhor não apenas o estado da arte da produção urbana contra hegemônica, como também possibilitar que se esboçam novas questões em direção à uma cidade verdadeiramente democrática. Palavras-chave: MTST; Henri Lefebvre; comuns.


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Abstract: Architecture of Otherness is a research on the counter-hegemonic modes of production of São Paulo’s urban space. The work starts with a contextualization, observing the current accumulation by dispossession structure – presented by David Harvey – in it’s territorial aspect over that city. That comprehension enables an approximation on the two main objects of this research: the book Commons: An Essay on Revolution in the 21st Century, by Pierre Dardot and Christian Laval, and the MTST Vila Nova Palestina occupation, in the South Zone of paulista capital. First, the book presents a central theme in contemporary debates on the urbain: the social-spatial unbalances of neoliberalism and it’s overcoming by the order of the Commons in everyday life. This theoretical mark is confronted by the empirical experience of the housing movement MTST, as a communitary way of producing the cityscape. While the Commons ouvre is released as a theoretical essay, and the Vila Nova Palestina occupation establishes itself as a practical experience of the community as an anti-capitalist bastion, this research pretends to understand the limits and the contribution of both theory and practice. This way, not only it is built a better understanding on two protagonists of the current counter-hegemonic urban products, but also it enables us to point out new paths towards the right to the city. Keywords: MTST; Henri Lefebvre; commons.


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Sumário

1 - Introdução 1.1 - Temática 1.2 - Problemática 1.3 - Justificativa 1.4 - Referências 1.5 - Metodologia 1.6 - Objetos

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2 - Novas práticas de um velho imperialismo 2.1 - A diplomacia da despossessão 2.2 - Liberalismo e dependência 2.3 - Insurgências periféricas 2.4 - Mercado habitacional e espoliação urbana 2.5 - Terra, renda e a cidade do capital 2.6 - Renovação do problema: a terra como ativo financeiro 2.7 - Ordem dinâmica, produção rudimentar 2.8 - Entre gaiolas de ouro e caixotins humanos 2.9 - A contradição das pontes de prata

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3 - Limites da nova razão 3.1 - A produção do espaço comum 3.2 - Sobre a obra de Pierre Dardot e Christian Laval 3.3 - A práxis do koinónen 3.4 - Três lógicas socialistas 3.5 - Contra-hegemonia reposicionada 3.6 - A origem econômica dos comuns 3.7 - Duas estratégias emancipatórias 3.8 - Condições de desalienação e formação social do comum

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4 - Iluminações históricas a uma teoria revolucionária 4.1 - O comum e a luta de classes 4.2 - A práxis urbana do MTST

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4.3 - A arquitetura do poder popular 4.4 - A incrível cidade dos sem-teto 4.5 - Lugar: a condição periférica 4.6 - Programa: um condensador social popular 4.7 - Construção: tempo, trabalho e reprodução social 4.8 - A efemeridade da utopia

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5 - Conclusão

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6 - Bibliografia

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1 - Introdução

Tem certos dias em que eu penso em minha gente E sinto assim todo o meu peito se apertar Porque parece que acontece de repente Como um desejo de eu viver sem me notar Igual a como quando eu passo no subúrbio Eu muito bem, vindo de trem de algum lugar E aí me dá uma inveja dessa gente Que vai em frente sem nem ter com quem contar São casas simples com cadeiras na calçada E na fachada escrito em cima que é um lar Pela varanda, flores tristes e baldias Como a alegria que não tem onde encostar E aí me dá uma tristeza no meu peito Feito um despeito de eu não ter como lutar E eu que não creio, peço a Deus por minha gente É gente humilde, que vontade de chorar

Composta em meados do século XX pelo paulistano mestre violonista Aníbal Augusto Sardinha, o Garoto, a canção Gente Humilde receberia ainda os cuidados de Vinícius de Moraes e Chico Buarque antes de se tornar um clássico da música popular brasileira. Com extrema ternura, sua letra nos convida a compartilhar a posição dos compositores em um vagão de trem cujo trajeto cruza as margens de uma cidade que, mesmo sem nome, certamente abrigará alguém trajando as cores rubro-negras do Flamengo em uma tarde de domingo. Neste percurso, residentes desamparados mantêm-se impassíveis em meio ao pauperismo cotidiano; enquanto o observador, espantado e complacente à distância do comboio, compadece-se em desejos de que tamanha precariedade seja um


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dia superada. Tal confidência, feita em verso por Vinícius e Chico sobre a melodia de Garoto, nos apresenta um cenário onde a nítida mazela social é indissociável de seu caráter urbano. Como nos descrevem o poeta e seu compadre, a passagem pelo subúrbio revela a contradição intrínseca a uma região da cidade onde os despossuídos moradores devem buscar seus próprios meios para suprir as mais elementares demandas cotidianas. Deste ímpeto de sobrevivência, casas simples com cadeiras na calçada despontam sobre a austeridade das ruas - uma alegria que, não havendo onde se sustentar, mesmo assim ali está. Embora a ela não seja atribuído nome algum, a cidade retratada na canção Gente Humilde representa a delicada realidade dos centros urbanos brasileiros: onde a espoliação de recursos essenciais à vida cotidiana é tão estrutural quanto a emergência de modos contra-hegemônicos de produção para que tais demandas sejam supridas. Plano de fundo na composição do cenário descrito por Vinícius de Moraes e Chico Buarque, a cidade, por sua vez, é simultaneamente produtora e condicionada por tal penúria coletiva. Neste processo dialético, para além de construir o meio pelo qual forma-se o desamparo de minha gente, o espaço urbano é forjado e marcado por tamanha desarmonia. Se, por um lado, tal relação perpetua uma herança histórica predatória, as contradições e novas sociabilidades por ela criadas moldam o território com sua arquitetura da alteridade. Do próprio desequilíbrio e desarmonia, uma nova cidade floresce sobre as varandas: uma alternativa urbana que traz consigo uma alegria dessa vez amparada, segura e perene. Compartilhando o mesmo desejo de lutar confessado por Vinícius e Chico, dediquei este trabalho final de graduação a esta nova urbanidade possível. Tratando das contradições responsáveis e produzidas pelo espaço da economia política capitalista, me debrucei sobre sociabilidades e construções territoriais críticas à tal herança - tanto no plano teórico, quanto prático. Dessa forma, procurei contribuir ao debate sobre os caminhos que nos levariam a este horizonte de alteridade urbana, imortalizado pelo filósofo e sociólogo francês Henri Lefebvre sob o título de direito à cidade. 1.1 - Temática O conjunto de temas que compõem esta pesquisa é composto por três eixos


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estruturantes. O primeiro, permeando todas as discussões propostas neste trabalho, consiste na perspectiva lefebvriana sobre o direito à cidade. Com base em sua teoria da produção do espaço como síntese da dialética entre um corpo histórico-social e a cidade que o comporta, a busca pela superação das contradições que atravessam e constituem a vida cotidiana é indissociável da construção de uma nova urbanidade. Nesse sentido, a compreensão da sociabilidade forjada na economia política capitalista - sobretudo em sua face neoliberal - permite-nos aproximar as idiossincrasias deste modo de produção ao espaço a ele referente. O segundo tema da pesquisa, portanto, trata da hegemonia do mercado no devir urbano e seus desdobramentos na formação do desamparo contemporâneo. A emergência de meios não-capitalistas de enfrentamento a tais mazelas, por sua vez, é essencial para a própria sobrevivência da população mais pobre; que encontra em formas comunitárias de organização social o suporte para resistir em meio a completa espoliação de recursos básicos de vida. Dessa forma, o terceiro e último tema deste trabalho corresponde à proeminente metodologia de ordenação cotidiana para o enfrentamento de tal despossessão: os comuns. 1.2 - Problemática Com base na dialética lefebvriana, compreendendo a cidade como síntese da relação entre espaço e sociedade, aproximamo-nos do desamparo social tal qual tratado na canção Gente Humilde como a constituição da problemática urbana contemporânea. O conjunto de questões que compõem tal problemática é composto, em primeiro lugar, pelo caráter predominantemente espoliativo do capitalismo neoliberal. Com o protagonismo da acumulação por despossessão na formação de mercados, a comoditização de recursos essenciais à vida cotidiana impede que a parcela menos abastada da sociedade possa ter acesso a tais serviços e infraestruturas absolutamente elementares. Nesse sentido, a privatização de equipamentos como os de saúde, educação, transporte, a retirada de direitos trabalhistas e a financeirização da produção imobiliária são recorrentes na formação das políticas econômicas desde a década de 1970. Como resultado desta promíscua relação entre Estado e mercado, da classe subalterna são retirados os meios oficiais de reprodução da força de trabalho, resultando em uma configuração urbana que simultaneamente sustenta e reflete o cercamento da dignidade habitacional. A espoliação urbana, primeiro problema tratado nesta pesquisa, é compreendida por meio da análise dos desdobramentos da economia política neo-


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liberal na precariedade habitacional nas cidades contemporâneas. Um cenário que, apesar de suas singularidades, ocorre em todas as regiões onde o mercado capitalista é o modo hegemônico de produção. Da mesma forma, a emergência de métodos contra-hegemônicos de sociabilidade, como meio de suprir tal espoliação em uma reordenação comunitária, desponta sistematicamente nas populações fragilizadas por tais políticas - sobretudo nas economias periféricas, como o caso brasileiro. Dentre tais renovadas epistemologias cotidianas resultantes das contradições do capitalismo neoliberal, a categoria dos comuns ganha a atenção de teóricos e movimentos sociais críticos aos elementos que compõem a problemática urbana tal qual ela foi acima descrita. Neste meio de produção alternativo, a prevalência do indivíduo é suprassumida pela esfera do coletivo, e a competição de todos contra todos é substituída pela cooperação e solidariedade sob a égide do comum. Dessa forma, o segundo problema abordado pela pesquisa consiste no desafio de compreender de que modo esta nova epistemologia, essencialmente anticapitalista, se desdobra em uma alternativa à problemática urbana contemporânea. Em outras palavras, busco, neste trabalho final de graduação, responder à questão: qual o papel dos comuns na busca por direito à cidade? 1.3 - Justificativa Diante da problemática urbana que constitui o espaço social da economia política capitalista, a emergência da epistemologia dos comuns, enquanto modo de produção contra-hegemônico, desperta a atenção de importantes figuras no campo da teoria crítica - tal como David Harvey, Pierre Dardot e Christian Laval - como possível caminho de superação a tamanho impasse. A conflituosa relação produtiva que impera sobre o espaço das cidades neoliberais, por sua vez, complexifica-se quando observamos os centros urbanos na periferia do capitalismo - como a cidade de São Paulo, onde a particular dramaticidade de uma sociedade extremamente desigual marca o território com suas próprias contradições. Este trabalho, assim, se justifica como contribuição no acúmulo de experiências teóricas e práticas acerca da inserção dos comuns urbanos nas economias periféricas. 1.4 - Referências Esta pesquisa foi organizada com base em dois eixos referenciais. O primeiro,


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no campo da teoria, é composto pelo arcabouço bibliográfico que iluminou a compreensão sobre a problemática urbana capitalista e a emergência da epistemologia dos comuns - tanto na escala estrutural da economia global, quanto em suas idiossincrasias locais. Rompendo com tal subdivisão e permeando todas as discussões propostas neste trabalho, a relação entre as contradições do modo de produção capitalista e a vida cotidiana nas cidades contemporâneas é fundamentada com base no livro O direito à cidade (1968), de autoria de Henri Lefebvre. A análise da escala global da estrutura econômica capitalista e sua relação com a produção do espaço urbano tem como referências fundamentais as publicações The “new” imperialism: accumulation by dispossession (2004) e o livro O novo imperialismo (2003), do geógrafo britânico David Harvey; A cidade do capital (1978), de Henri Lefebvre; o livro III d`O Capital (1890), de Karl Marx; Henri Lefebvre on Space: Architecture, Urban Research, and the Production of Theory (2011), de Lukasz Stanek; e o artigo Considerações teóricas sobre a terra como puro ativo financeiro e o processo de financeirização (2019), de Mariana Fix e Leda Maria Paulani. Aproximando-nos da escala local de análise, o livro Imediato, global e total na produção do espaço: a financeirização da cidade de São Paulo no século XXI (2018), organizado por Paulo Cesar Xavier Pereira, contém os artigos utilizados na argumentação acerca da especificidade paulistana na acumulação por espoliação urbana. As publicações utilizadas na pesquisa foram: Produção imobiliária sob dominância financeira: algumas implicações para a esfera produtiva e a renda da terra (2018), de Fausto Moura Breda; Valorização do capital na produção imobiliária: distanciamento entre o preço da moradia e o do salário (2018), de Carlos Teixeira de Campos Júnior; Para uma discussão sobre o valor e o preço na produção imobiliária, de autoria do organizador; Do zoneamento às operações urbanas consorciadas: planejamento urbano e produção imobiliária na mercantilização do espaço em São Paulo (1970-2017) (2018), de Maria Beatriz Cruz Rufino; e Produção da habitação e espoliação na metrópole de São Paulo (1970-2010) (2018), de Lúcia Shimbo. Por fim, este conjunto bibliográfico é complementado pelos livros Guerra dos Lugares (2015) de Raquel Rolnik, Capital, Estado y Vivienda en America Latina (1987), de Emilio Pradilla Cobos, e o artigo Processos e problemas na urbanização da América Latina: teoria e história (2016), novamente de Pereira. A teoria dos comuns, por sua vez, é abordada em escala ampliada por meio da bibliografia publicada por Pierre Dardot e Christian Laval. Os livros A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal (2009) - que estuda a


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emergência dos comuns enquanto antítese da sociabilidade capitalista - e, sobretudo, Comum: ensaio sobre a revolução no século XXI (2014) - onde os autores apresentam uma formalização epistemológica da teoria dos comuns - são as referências bibliográficas fundamentais. Como complemento, foram utilizados os livros Cidades rebeldes (2012) de Harvey, O ponto zero da revolução (2019) de Silvia Federici e Cuando manda la asamblea: lo comunitario-popular en Bolivia: una mirada desde los sistemas comunitarios de agua de Cochabamba (2015) de Lucia Linsalata. Retornando à escala local, a teoria dos comuns foi cotejada com a revolucionária obra de Frantz Fanon, em seu livro Os condenados da Terra (1961), e aprofundada na análise empírica da atuação do MTST em solo paulistano, feita por Cristhiane Falchetti em sua tese de doutorado Ação coletiva e dinâmica urbana: o MTST e o conflito na produção da cidade (2019). Por fim, o segundo eixo referencial desta pesquisa advém de minha experiência de militância organizada pelo MTST. Desde o final do ano de 2019 e ao longo do ano de 2020, mesmo limitado pela reclusão imposta pela pandemia de Covid-19, participei da brigada de Arquitetura e Urbanismo do movimento, de modo a ter contato aprofundado com a metodologia e as formas de organização coletiva em suas ocupações - que serão tratadas nos itens subsequentes. Dessa forma, parte do conteúdo da pesquisa referente à escala local dos comuns é fruto de minha atuação enquanto membro do MTST. 1.5 - Metodologia Para além de estabelecer o horizonte de pesquisa, a dialética urbana lefebvriana foi tida como base metodológica deste trabalho. Como forma de compreender a totalidade dos elementos que compõem a vida cotidiana nas cidades, teoria e prática espacial se confrontam, de modo a iluminar seus próprios limites e contribuições. Em primeiro lugar, me debruço sobre as referências bibliográficas que estabelecem o panorama contemporâneo da problemática urbana. Para tanto, a recuperação textual sobre o impacto do modo de produção capitalista na materialidade das cidades - e, mais especificamente, no contexto latinoamericano de São Paulo - permite uma primeira aproximação ao conjunto de problemas que busco enfrentar na pesquisa. Trata-se, em suma, de uma introdução do arcabouço histórico e econômico dos objetos a serem analisados: uma contextualização desenvolvida ao longo do primeiro capítulo argumentativo.

Após a análise de contexto, o estudo dos objetos específicos desta pes-


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quisa, realizado nos capítulos argumentativos, retoma o caráter dialético entre teoria e prática da metodologia lefebvriana. Embora a primeira seja estudada de forma a compreender o caráter estrutural e essencialmente longue durée da problemática urbana, as respostas dadas por este escopo às questões imediatas da cidade é lacunar. Tal insuficiência é suprida pelo estudo de uma experiência prática em São Paulo, que emerge das contradições sociais do local e, portanto, é bem sucedida na pequena escala de ação. Não obstante as soluções dadas às questões de curta duração, o escopo da análise empírica não nos proporciona uma imagem clara acerca da relação entre suas idiossincrasias e a amplitude de um processo global tal qual a démarche da economia política capitalista. Dessa forma, a dialética entre teoria e prática tem como síntese um objeto que, apesar de inconcluso, permite-nos o esclarecimento de questões fundamentais na formação de um horizonte possível do direito à cidade. 1.6 - Objetos Assim como apresentado nas seções anteriores, a escolha dos objetos desta pesquisa advém das duas escalas de análise em que a problemática urbana foi estudada: a local e a global. Para tanto, o primeiro objeto consiste da face contemporânea do devir capitalista na formação do espaço material das cidades. Nesta etapa, busco me aprofundar na compreensão das articulações políticas que sustentam a hegemonia da acumulação por espoliação, como o fortalecimento das finanças, dos órgãos de comércio bilateral e das nações economicamente centrais na formação de mercados e composição de quadros governamentais. Em seguida, busco me aproximar das especificidades latinoamericanas deste cenário - onde a despossessão impacta com particular dramaticidade a população menos abastada que reside em seus centros urbanos. Neste caso, o objeto da pesquisa é a cidade de São Paulo: metrópole mais rica do Cone Sul, marcada pela extrema desigualdade social e alvo de políticas urbanas de financeirização da produção imobiliária desde a década de 1970. Ademais, a capital paulista é, também, a cidade onde cresci; onde construí meus afetos pessoais com esquinas, ruas e bairros; onde criei memórias de celebração e pesar; onde residem amigos e amores; onde me formo como arquiteto e urbanista; onde me reconheço como cidadão. É, portanto, a cidade que me abriga, e para além da congruência epistemológica para com a estrutura da pesquisa, a escolha deste objeto de estudo é uma retribuição às lembranças e ao carinho criado por São Paulo desde que aqui pisei.


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Retornando à escala ampliada de análise, a teoria dos comuns, enquanto possível meio de superação das contradições do capitalismo neoliberal, passa a ser objeto de estudo deste trabalho. Para tanto, me debruço sobre a bibliografia publicada por Pierre Dardot e Christian Laval, que não apenas esmiuçaram a composição social da governabilidade neoliberal, como também propuseram um vasto arcabouço epistemológico acerca dos comuns. Por fim, novamente aproximando-me das idiossincrasias locais deste modo de produção contra-hegemônico em São Paulo, tenho como objeto a ocupação Vila Nova Palestina, do MTST. Escolhida por sua histórica importância na atuação regional do movimento, a Vila Nova Palestina consiste de uma notável produção de alteridade urbana por parte dos sem-teto; onde a metodologia dos comuns pôde ser compreendida enquanto práxis material. Não menos importante na demarcação do objeto são os limites impostos pelo período de reclusão: tendo feito trabalho de campo nesta ocupação antes do recrudescimento da pandemia de covid-19 em São Paulo, pude ter contato com sua realidade cotidiana, seus espaços, moradores, edifícios, ruas e praças. Mesmo com esta experiência, busquei aprofundar o estudo com a análise da extensa contribuição acerca deste mesmo objeto apresentada na tese de doutorado de Cristhiane Falchetti. Dessa forma, concluo este trabalho final de graduação com o retorno à capital paulista: onde as atividades desenvolvidas pelo MTST operam sobre as contradições urbanas de São Paulo, e esclarecem possíveis modos de aproximarmo-nos de um horizonte latinoamericano de direito à cidade.


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2 - Novas práticas de um velho imperialismo

A incessante busca de iluminações teóricas a respeito dos meios de sobrevida do sistema capitalista - sustentado sobre uma base movediça de crises cíclicas e contradições permanentes - é indissociável, dentro da filosofia marxista, de uma análise geopolítica conjuntural. Dentro desta corrente, o geógrafo britânico David Harvey afirma que o instável equilíbrio da economia política capitalista tem sua fundação em uma conflituosa relação de dominação entre povos e nações. O imperialismo é tratado por este autor como um elemento constituinte, fundamental para as relações de produção e troca contemporânea, assim como para a manutenção de hegemonias historicamente consolidadas. Segundo Harvey, as tratativas de mercado na era do neoliberalismo inauguraram um modo particular de acumulação, cuja ordenação realiza-se em torno do cercamento e da pilhagem jurídica e financeira sobre bens públicos e comuns. Assim, diante deste cenário, cunha o conceito de acumulação por espoliação - ponto de partida da empreitada proposta por este estudo. O conceito de acumulação por espoliação (ou despossessão) é esmiuçado por David Harvey em dois trabalhos: o capítulo quatro do livro O Novo Imperialismo (2003), intitulado A acumulação via espoliação, e o artigo The “New” Imperialism: accumulation by dispossession (2004), publicado no jornal acadêmico Socialist Register. Baseado na teoria marxiana de queda da taxa de lucros, Harvey procura evidenciar uma necessidade intrínseca à estabilidade econômica capitalista de manter-se em perpétua ampliação, evitando assim crises de sobreacumulação. “Tais crises são registradas como a concentração de excedentes de capital e força de trabalho sem que haja nenhuma forma aparentemente lucrativa de aplicá-los em tarefas socialmente úteis”1. Para Harvey, as condições de sobreacumulação mobilizam instituições públicas e privadas intensamente desde a década de 1970, mantendo um curto e fugidio equilíbrio econômico por meio de regulações jurídicas e financeiras (como, por exemplo, as reformas estruturais endossadas pelo FMI). Tal movimento teria como objetivo prático a abertura 1 HARVEY, David. The “new” imperialism: accumulation by dispossession. Socialist Register, vol. 40, 2004, p. 63, tradução nossa.


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de novas oportunidades para o investimento de excedentes nas chamadas “ordenações espaço-temporais”: como a privatização de empresas públicas, parcerias público-privadas e terceirização de serviços como educação e saúde. Este açambarcamento de bens essenciais para a manutenção da vida, prejudicando em larga escala seu acesso por parte classe trabalhadora em prol do bom funcionamento do mercado e da manutenção de hegemonias econômicas. Marca do “novo imperialismo”, tal processo constitui o que chama de acumulação por espoliação. 2.1 - A diplomacia da despossessão O estabelecimento de tratativas de mercado que viabilizam a acumulação por espoliação seriam, assim, evidências de um subjugo geopolítico contemporâneo das regiões mais abastadas do globo sobre aquelas taxadas como subdesenvolvidas (essencialmente do Norte sobre o Sul global). Tal domínio, embora agravado no período neoliberal, seria, antes uma necessidade inerente ao próprio funcionamento do mercado capitalista. Como propõe Rosa Luxemburgo - ponto de partida da argumentação de Harvey - a acumulação de capital apresenta duplo aspecto: de um lado, fundamenta-se na produção e realização de mais-valia, na operação econômica de troca entre uma força de trabalho capitalizada e o subproduto do labor - a saber, a mercadoria excedente, posteriormente levada ao comércio. O segundo aspecto corresponde a um processo de violenta expansão do capitalismo; de forma que: “O outro aspecto da acumulação do capital se refere às relações entre o capitalismo e modos de produção não-capitalistas, que começam a surgir no cenário internacional. Seus métodos predominantes são a política colonial, um sistema internacional de empréstimos - uma política de esferas de interesse - e a guerra. Exibem-se abertamente a força, a fraude, a opressão, a pilhagem, sem nenhum esforço para ocultá-las, e é preciso esforço para discernir nesse emaranhado de violência política e lutas pelo poder as leis férreas do processo econômico” 2.

A acumulação de capitais, segundo Luxemburgo, seria fruto deste duplo processo: a produção e realização da mais-valia nos locais de trabalho e no mercado, combinada a concentração de espólios coloniais sobre sociedades na periferia do capital. Dessa forma, o período descrito por Marx como sendo de acumulação primitiva - de similar violência e pilhagem durante a fase constitu2 HARVEY, David. O novo imperialismo. São Paulo: Edições Loyola, 2005, p. 115. Ibid., p. 116-117.


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tiva do capitalismo enquanto modo de produção - seria, na realidade, um fato de ininterrupta duração. Esta perpétua acumulação primitiva observada pela filósofa polonesa teria o sentido prático de preparar o terreno para a formação de novos mercados, direcionando os excedentes de capital ocioso - que, caso contrário, seriam capazes de desestabilizar criticamente a economia capitalista. Rosa Luxemburgo, ao demonstrar a continuidade dos violentos processos de acumulação primitiva como um elemento regulador do capitalismo, constrói a mise-en-scene que será reconhecida por Harvey em sua teoria da acumulação por despossessão. Entretanto, há uma discordância teórica entre Luxemburgo e o geógrafo britânico sobre os meios e os fins de tal colonialismo: enquanto a primeira acredita que a crise que se está buscando evitar é a provocada pelo subconsumo, Harvey aponta ser, na realidade, um meio de solucionar os entraves provocados pela sobreacumulação. A problemática do subconsumo se constrói sobre a observação da contradição entre o trabalho assalariado e a aquisição de mercadorias: a formação de mais-valor impediria a classe proletária de ter acesso, pelo comércio formal, ao produto do próprio trabalho. O entrave provocado pelo excedente não consumido, para Luxemburgo, é solucionado pela troca com grupos sociais não capitalistas - a quem a recusa de tal cumplicidade cambial é absolutamente negada pelo uso imperioso das forças armadas (como no caso da guerra do ópio, na China, aponta Harvey). O geógrafo, porém, afirma que “o hiato que Luxemburgo julgava ver pode ser facilmente transposto pelo reivestimento, que gera sua própria demanda de bens de capital e outros insumos” 3. Em outras palavras, a teoria da crise estrutural como resultado do subconsumo é, para Harvey, pouco aceitável; uma vez que estes desajustes podem ser superados com a realocação de capitais em uma expansão geográfica de mercados e investimentos. Ao contrário do que aponta Luxemburgo - que uma crise por subconsumo exige o estabelecimento de relações comerciais entre sociedades capitalistas e não-capitalistas - Harvey entende que os desajustes estruturais da economia política contemporânea são solucionados a partir da capitalização do que estaria, até então, excluído do sistema. Afirma que “o ímpeto geral de toda lógica capitalista do poder não é que os territórios se mantenham afastados do desenvolvimento capitalista, mas que sejam continuamente abertos” 4. Segundo esta linha de pensamento, o ímpeto colonial de impedir o desenvolvimento de mercado aos moldes capitalistas em territórios dominados (como feito pela In3 Ibid., p. 116-117. 4 Ibid., p. 117.


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glaterra sobre a Índia no século XIX) teria sido um erro estratégico, pois impediria a realocação de excedentes produzidos nas metrópoles - centros de poder político e econômico. Tal realocação é fundamental para impedir um cenário de sobreacumulação - o que, como aponta o geógrafo britânico, seria extremamente danoso ao regime de mercado. A crise por sobreacumulação, defende Harvey, consistiria em uma contradição intrínseca à economia capitalista: o capital acumulado, quando é impedido de manter seus rumos de crescimento e geração de lucros, tende a se desvalorizar. Para evitar uma severa crise no sistema produtivo provocada pela queda da taxa de lucros, o capital sobreacumulado deve se mover, em busca de oportunidades de expansão. Esta solução consiste em dar os seguintes fins aos excedentes de capital: “(a) Deslocamento temporal por meio de investimentos em projetos capitalizados à longo prazo ou em despesas sociais (como educação e pesquisa) que adia a reentrada dos atuais valores excedentes de capital para sua plena circulação no futuro, (b) deslocamento espacial por meio da abertura de novos mercados, novos capacidades de produção e novos recursos, alternativas sociais e laborais alhures, ou (c) uma forma de combinação entre (a) e (b). A combinação de (a) e (b) é particularmente importante quando nos focamos sobre o capital fixo cravado no ambiente construído. Ele supre a necessidade física de infraestruturas de produção e consumo para perdurar ao longo do tempo e espaço (desde parques industriais, portos, aeroportos, sistemas de transporte e comunicação, até a provisão de água e esgoto, habitação, hospitais, escolas)”5.

A esta operação de transferência de capital sobreacumulado, por meio de negociatas de ordem jurídica, fiscal e econômica, dá-se o nome de ordenação espaço-temporal. Trata-se de um investimento cuja capacidade de mobilizar montantes expressivos de capital e trabalho não seria factível sem uma atuação incisiva por parte do Estado e de organizações financeiras. Tais instituições buscam fomentar o ambiente propício para que os investimentos feitos sob seus domínios sejam bem sucedidos; de forma que a geração de capital fictício a ser negociado ocorra sob condições absolutamente favoráveis às ordenações espaço-temporais. Assim, o capital sobreacumulado, direcionado a empreendimentos que variam “desde parques industriais, portos, aeroportos, sistemas de transporte e comunicação, até a provisão de água e esgoto, habitação, hospitais, escolas”, tem como contrapartida à quitação de débito a garantia de lucro ao investidor nesta empreitada econômica. Em caso de sucesso, o crédito con5 Harvey, 2004, p. 64.


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cedido é recuperado acrescido de juros. Entretanto, não sendo lucrativos os investimentos de ordenação espaço-temporal, a inexorável desvalorização deste capital fixo sobreacomulado dificulta em larga escala o pagamento das dívidas. Neste cenário, cabe ao Estado e às instituições bancárias arcar com os espólios financeiros de um investimento mal sucedido - cujo resultado potencialmente catastrófico pode ser observado no impacto da crise de 1973 na cidade de Nova Iorque, que em dois anos decretaria falência bancária 6. A desvalorização do capital fixo é, portanto, uma condição extremamente danosa à economia política capitalista. Sua notável fluidez - decorrente da financeirização das relações de produção contemporânea - direciona a válvula de escape contra os tensionamentos da sobreacumulação nas ordenações espaço-temporais. Tidas como momentâneas panaceias, o termo - do inglês “spatio-temporal ‘fix’” - apresenta uma duplicidade de significados: para além de ser uma “solução”, trata-se de uma “fixação”. Em outras palavras, as ordenações espaço-temporais operam a partir da mobilização de capitais até então ociosos por facilidades financeiras, com o objetivo de transformar fisicamente o ambiente construído, de forma que a organização espacial possa manter de modo eficiente os processos de acumulação. O cenário em que se encontra a disposição dos trabalhadores, das áreas de produção, os meios de distribuição, o acesso a matérias primas mais baratas e as relações de troca é reconstruído (o que David Harvey chama de “destruição criativa”), com o objetivo de reciclar novos capitais fixos sobreacumulados advindos de diversas regiões do globo. De um lado, os excedentes são direcionados a locais que oferecem oportunidades de valorização, e consequentemente, de lucro. De outro, os espaços que recebem este montante de capital devem conseguir arcar com os investimentos postos sobre seus territórios. Tal contrapartida pode ocorrer de diversas formas, desde a negociação por comódites mais baratas, até por créditos financeiros (como no caso do empréstimo japonês aos EUA nos anos 1990, com a contrapartida de que lá sejam consumidos produtos do país oriental). Como aponta Harvey, a produção (e reprodução) do espaço capitalista como forma de absorver o capital excedente é um investimento que tende a se tornar sobreacumulado apenas em longo prazo (sobretudo com infraestruturas essenciais como o sistema viário). Por outro lado, a magnitude de sua produção também implica em uma projeção de realização dos lucros distante do imediato. Balizados pelas alternativas dadas pelos territórios à necessidade capitalista de prosseguir 6 Ibid., p. 65.


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o movimento de acumulação, os investidores partem a buscar os cenários que apresentam melhores perspectivas de lucros e de segurança financeira. O resultado imediato deste fenômeno foi a instauração de uma competição feroz entre Estados e instituições privadas em busca de angariar investimentos, impedindo a desvalorização e a sobreacumulação de capitais. Tomando como exemplo o impacto da depressão econômica dos anos 1990 em Taiwan, Singapura, Tailândia e Indonésia, percebe-se que a diferença essencial entre os dois primeiros - que escaparam de uma crise sem severos efeitos colaterais - e os últimos - que entraram em grave crise econômica e política - decorre de suas estruturas financeiras nacionais. Para Harvey, este resultado é sintomático do peso que as instituições financeiras têm nas dinâmicas de mercado contemporâneo: o maior motor do “desenvolvimento desigual” e das relações de dominação colonial desde a crise do petróleo, em 1973. Neste ano, em decorrência dos conflitos no Oriente Médio e da reação da OPEP no envolvimento norte-americano na guerra do Yom Kippur, o governo Richard Nixon lança mão de uma política de desregulamentação financeira e elevação do preço da gasolina. Com efeito, além da grande mobilidade dada aos bancos estadunidenses de reciclar seus petro-dollars - comprometidos pela crise que se instaurava - a estratégia de Nixon levou a concentrar as atividades financeiras globais em território norte americano. Percebe-se que: “Um poderoso regime financeiro foi criado por Wall Street/ Tesouro Nacional dos Estados Unidos da América, com poderes de controle sobre instituições financeiras globais (como o FMI) e a capacidade de abrir ou quebrar muitas economias estrangeiras pelas práticas de manipulação do crédito e manejo de débito. Este regime monetário e financeiro foi usado, afirma Gowan, por sucessivos administradores estadunidenses ‘como um formidável instrumento de estado para alimentar tanto os processos de globalização quanto as transformações neoliberais a eles associados. O regime prospera por meio de crises. ‘O FMI cobre os riscos e garante que os bancos dos EUA não percam suas reservas (países os pagam como contrapartida dos ajustes estruturais, etc.) e a fuga de capitais de crises localizadas de outros lugares tem como consequência o fortalecimento de Wall Street…’. O resultado foi uma projeção da economia estadunidense em direção ao exterior (em aliança com outras sempre que possível), para forçar a abertura de mercados, particularmente para capital e outros fluxos financeiros (o que se tornou um pré-requisito para a participação no FMI), e impôs outras práticas neoliberais (culminando na criação da OMC) sobre a maior parcela do mundo” 7.

A hegemonia política e econômica norte-americana encontra, na aber-

7 Ibid., p. 70.


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tura de mercados nacionais para a circulação financeira de capitais, seu contemporâneo bastião. Sob o pretexto de estabelecer um regime comercial de livre competição, o domínio das economias de maior pujança se consolida em um cenário de suposta igualdade de oportunidades. Ao invés de uma pretendida diversidade de iniciativas competitivas, verifica-se a concentração de capitais nos monopólios e oligopólios mundiais, que operam sobre as dinâmicas de troca de forma imperiosa. A negação dos EUA em negociar a compra de comódites brasileiros, caso o país então presidido por Lula não seguisse a cartilha de livre comércio proposta pelo governo norte americano, é usado como exemplo por Harvey para evidenciar a dimensão da autoridade de potências econômicas em moldar e ditar as políticas de governos soberanos em nome da liberdade de trocas. Como bem salienta o autor, “comércio livre não significa comércio justo” 8 . Além do desequilíbrio provocado pela atuação dos monopólios e oligopólios, as contradições acerca da liberdade comercial são observadas em uma clara diferença entre o mercado de comódites e de capital. Apesar do capital financeiro, por seu caráter fictício, mobilizar com celeridade os fundos necessários para as ordenações espaço-temporais, ele sustenta uma estrutura de renda a partir de práticas improdutivas: como a valorização fictícia de empreendimentos, flutuações do valor cambial da moeda, etc. Como um cassino, o mercado financeiro, sob este viés, teria um fim em si mesmo, mobilizando atividades especulativas com o potencial de multiplicação de dinheiro: como as bolhas dot. com em 1990 e imobiliária em 2007, além dos chamados hedge funds. Entretanto, apesar de operar como um sistema de apostas, seu efeito prático supera as vontades mesquinhas de lucrar sobre um jogo financeiro: sob o jugo das bolsas de valores, esta prática promove uma profunda concentração da acumulação nos centros financeiros globais. Assim, a ordem do livre mercado neoliberal alimenta substancialmente o poderio geopolítico dos Estados em que se encontram as cidades das principais bolsas de valores do mundo: Londres, Tóquio, Frankfurt e, sobretudo, Nova Iorque. Concentrada a acumulação nos estandartes da atividade financeira global, a pujante participação de países como Inglaterra, Japão, Alemanha e EUA na economia internacional ocorre, com igual profundidade e promiscuidade, de modo geopolítico e institucional. Desde o ocaso do século XX, a presença incontornável do Fundo Monetário Internacional nas tratativas comerciais contemporâneas concentra nesta organização (e os bancos que a compõem) poderes de veto e manipulação de políticas nacionais ao redor do mundo, de modo que a fazer imperar os preceitos de livre comércio. Além do 8 Ibid., p. 71.


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FMI, instituições como o G7 e a OMC operam como órgãos de promoção da agenda neoliberal, apresentando a cartilha de governamentalidade que introduziria cada país na competição feroz entre economias mundiais. Por fim, como aponta Harvey, no caso de não cumprimento das demandas de abertura comercial, o discurso de “promoção da democracia” entra em cena como preâmbulo de uma liberdade de mercado pela força do exército (como no caso da ditadura de Pinochet, no Chile). 2.2 - Liberalismo e dependência Seja por meio de tratativas econômicas, seja via forças armadas, estamos diante de uma inexorável violação das soberanias nacionais: um processo de abertura de oportunidades para direcionar o capital sobreacumulado a retomar seu devir de contínua acumulação. Coagida por demandas dos grandes centros financeiros globais - intransigentes em sua obstinada missão de manter suas hegemonias econômicas e políticas - a parcela do globo tocada pelo regime capitalista de produção é obrigada a ceder. As demandas destes centros econômicos, intermediados por instituições financeiras, perpetram a colonização capitalista contemporânea legitimada por políticas públicas de resolução de mercado. Estabelece-se, assim, um massivo e sonoro açambarcamento do que até então era de pertencimento comum e Estatal, em um processo de formação de ordenações espaço-temporais e apropriação privada da vida cotidiana, intitulado por David Harvey como acumulação por espoliação. O método dialético marxiano iluminou, em suas obras, a impossibilidade de se estabelecer o equilíbrio social em um cenário de livre mercado. Formada pela pilhagem e distante da harmonia, a agenda liberal se sustenta sobre o crescimento de desigualdades e instabilidades econômicas. O cenário analisado por Marx é, para o geógrafo britânico, de extrema riqueza para a iluminação do contemporâneo processo de acumulação por espoliação. Segundo Pierre Dardot e Christian Laval - teóricos franceses comentadores de Harvey, e cuja obra será objeto de análise do presente estudo - “o estágio do capitalismo financeiro caracteriza-se exatamente pela necessidade desse novo processo de despossessão, no decorrer do qual o que até então conseguira escapar da dominação capitalista acaba sofrendo uma forma ou outra de colonização” 9.

9 DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. Comum: ensaio sobre a revolução no século XXI. São Paulo: Boitempo, 2014, p. 137.


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O contemporâneo movimento espoliativo de propriedades e domínios comunais pelo mercado, sintomático de uma subsunção jurídica do direito coletivo pelo direito privado, constitui-se como a marca do processo de acumulação na era do neoliberalismo. Neste sentido, promove-se uma espécie de cercamento sobre os mais diversos espectros da nossa subsistência, em um devir privado de mundo. A população camponesa, indígena ou de moradia informal, desterrada pela iniciativa privada, torna-se uma massa de “proletariado sem terra” em países como o México e o Brasil. As indústrias nacionais, infraestruturas urbanas básicas como o sistema de distribuição de água e tratamento de esgoto, além de recursos naturais, são comodificados e transformados em ativos de ações financeiras. Formas de produção e troca alternativa, como a dos chamados “povos testemunha” de Darcy Ribeiro, são substituídas pelo regime monetário capitalista. A agricultura familiar é absorvida pelo agronegócio latifundiário; os sistemas de crédito e dívidas nacionais é orquestrado com singular austeridade, “e a escravidão não desapareceu (particularmente no comércio sexual)”10. Efetivamente, a feitura da acumulação por espoliação depende de uma constante penetração das relações postas pelo sistema capitalista nos territórios e sociedades às margens deste modo de produção. As mais diferentes formas de propriedade, troca, produção e subsistência são, assim, transformadas e ressignificadas pela ordem neoliberal; um processo dialético de moldagem de culturas e formas de sociabilidade submetidas à divisão internacional do trabalho e aos ditames jurídicos do direito privado ocidental. Por meio deste rearranjo das estruturas sociais em nível global, voltado a incluí-las em um nexo de desigual concentração de capitais, coloca-se à disposição de negociações uma gama ampliada de investimentos financeiros em potencial. Segundo Harvey, “o sistema de crédito e o capital financeiro se tornaram, como Lenin, Hilferding e Luxemburgo observaram no começo do século XX, grandes trampolins de predação, fraude e roubo. A forte onda de financeirização, dominada pelo capital financeiro, que se estabeleceu a partir de 1973 foi em tudo espetacular pelo seu estilo especulativo predatório” 11. Um espetáculo segregacionista e caótico, a injunção privada sobre o que antes era de domínio público e coletivo resulta em uma imediata alta nos preços dos recursos cotidianos fundamentais. A valorização fictícia e a precificação especulativa sobre bens como luz elétrica, serviço de saúde e educação, mediado pelo interesse privado de investidores, torna-se cada vez menos factível para a parcela mais vulnerável da população. Ademais, mecanismos jurídicos como a criação dos direitos de propriedade intelectual, 10 Harvey, 2003, p. 121. 11 Ibid., p. 122.


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endossada pela OMC no chamado Acordo TRIPS, legitima a privatização de elementos comuns à vida cotidiana: como materiais genéticos, saberes medicinais populares e insumos agrícolas locais - alvos constantes de biopirataria por parte de multinacionais farmacêuticas e agrícolas. Tampouco escapam da rapina financeira as produções intelectuais, expressões culturais e históricas como a música popular, amplamente apropriada pela indústria fonográfica. Seja no espectro cultural, intelectual, subjetivo, seja no campo material, infraestrutural e de serviços coletivos, seja na mais essencial decodificação da vida pelas ciências biológicas, o capital financeiro encontra uma oportunidade de se multiplicar via acumulação por espoliação.

Para Harvey, neste processo, “A corporativização e privatização de bens até agora públicos (como as universidades), para não mencionar a onda de privatizações (da água e de utilidades públicas de todo gênero) que tem varrido o mundo, indicam uma nova onda de “expropriação de terras comuns”. Tal como no passado, o poder do Estado é com frequência usado para impor esses processos mesmo contrariando a vontade popular. A regressão dos estatutos regulatórios destinados a proteger o trabalho e o ambiente da degradação tem envolvido a perda de direitos. A devolução de direitos comuns de propriedade obtidos graças a anos de dura luta de classes (o direito a uma aposentadoria paga pelo Estado, ao bem-estar social, a um sistema nacional de cuidados médicos) ao domínio privado tem sido uma das mais flagrantes políticas de espoliação implantadas em nome da ortodoxia neoliberal” 12.

O desmonte do Estado como guardião de direitos coletivos, a expulsão de populações de suas terras e a privatização de recursos naturais são casos em que a característica essencial do capitalismo de manter-se em expansão tem como resultado imediato a produção de uma sociedade despossuída. A transformação de bens públicos e comuns em ativos financeiros ou comódites barateados, destinados ao mercado por preços irrisórios, torna factível a recepção de excedentes ociosos de capital. Dessa forma, a espoliação concede ao capital sobreacumulado uma nova oportunidade de valorização, tornando-se lucrativo novamente. Percebe-se o amálgama entre os processos de acumulação por despossessão como um bálsamo da contraditória sobreacumulação de capital. “Isso significa tomar, digamos, a terra, cercá-la e expulsar a população residente para criar um proletariado sem terra, transferindo então a terra para a corrente principal privatizada da acumulação do capital” 13. Trata-se de um movimento 12 Ibid., p. 123. 13 Ibid., p. 124.


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simultâneo: o processo de criar alternativas de mercado para disposição do capital excedente sobreacumulado - via ordenações espaço-temporais - é o mesmo que separa uma parcela da população de bens essenciais à vida (no caso, a terra). Para Harvey, sendo constantes os desequilíbrios econômicos provocados pela sobreacumulação de capitais desde a crise do petróleo, em 1973, a espoliação torna-se um processo recorrente na política institucional contemporânea; consistindo sobretudo na criação de ativos financeiros - em que pese os momentos históricos de abertura comercial da China e a queda da União Soviética como dois períodos de abundante disponibilização de ativos - a abertura comercial e o barateamento de comódites no mercado internacional. A agenda da economia política pautada na criação de oportunidades comerciais à destinação do capital sobreacumulado promove, pela a redução dos preços e desvalorização de ativos e commodities, os meios de tornar a acumulação por espoliação uma realidade factível. Neste cenário, as crises econômicas operam menos como um momento de abalo estrutural dos meios de produção e troca, e mais como um contexto de reajustes e de sobrevida ao mercado. O manejo destas crises torna-se central na agenda política de instituições internacionais estatais e bancárias - em que se pese a participação do FMI - sobretudo por meio do controle sobre o crédito financeiro e as taxas de juros. Imperando sobre a propriedade do capital correspondente à dívida pública, ativos são forçosamente desvalorizados em qualquer parte do mundo, de sorte que se lançam ao mercado financeiro como ordenações espaço temporais potencialmente lucrativas. Como observado no caso da crise asiática de 1997 e 1998, o abalo econômico provocado pelas crises financeiras tem na massiva transferência de propriedades em escala internacional seu grande legado. Entretanto, mesmo sendo produzida com significativo esmero pelos proprietários de capital, a eminente possibilidade de que a orquestração de crises fuja do planejado e desencadeie instabilidades políticas de grandes proporções nos territórios manejados torna-se, para Harvey, um dos principais objetivos da atuação do Estado e dos ajustes estruturais propostos pelo FMI: “A mistura de coerção e consentimento no âmbito dessas atividades de barganha varia consideravelmente, sendo contudo possível ver agora com mais clareza como a hegemonia é construída por meio de mecanismos financeiros de modo a beneficiar o hegemon e ao mesmo tempo deixar os Estados subalternos na via supostamente régia do desenvolvimento capitalista. O cordão umbilical que une a acumulação por espoliação e reprodução expandida são sustentadas pelo capital financeiro e pelas instituições de crédito, como sempre com o


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apoio dos poderes do Estado”14.

Como aponta Harvey, trata-se de uma estratégia de construção de mercado cuja presença inestimável de um Estado forte é indispensável para se consolidar. Tomando como exemplo o caso da abertura comercial chinesa, a privatização e o desmonte de empresas pertencentes ao município de Xangai que além de criar um enorme exército de trabalhadores de reserva - que joga o preço médio da mão-de-obra para baixo - teve como resultado o fim da obrigatoriedade de pagamento de contrapartidas relacionadas ao bem estar de seus empregados, como aposentadoria. Em nome de ampliar a competitividade e as taxas de lucro, estas empresas chinesas proporcionaram uma queda significativa na qualidade de vida de seus trabalhadores. Entretanto, justifica-se tal política espoliativa como um “custo necessário de uma ruptura bem-sucedida rumo ao desenvolvimento capitalista”, o que certamente acalenta os ânimos menos exaltados. Efetivamente, tal política de abertura comercial pode ocorrer tanto pela intenção de desenvolvimento do país, quanto de forma forçosa pelas instituições internacionais de crédito. De fato, seguindo a segunda linha, Harvey aponta um processo em vigor de crescente desindustrialização nos países de tradição fabril, com a contrapartida de tornar vulneráveis às flutuações especulativas do capital financeiro os países de industrialização incipiente. Trata-se do caso do México nos anos 1980, que além de ter sido forçado pela política neoliberal dos EUA a retirar direitos das populações autóctones - garantidas pela constituição de 1917, que estabelecia as comunidades auto suficientes do ejido - para que pudesse receber o bailout das contas nacionais, teve sua atividade comercial com os norte americanos regulada pelo acordo de livre mercado NAFTA. As exigências propostas pelos EUA teriam efeitos dramáticos para a economia e a estabilidade social mexicana: com a abertura comercial, a entrada do milho norte americano, subsidiado em cerca de 20% e com preços mais competitivos de mercado, derrubou a agropecuária do país latino. Como resultado, o êxodo rural e o inchaço urbano de cidades já superpopulosas, com déficit habitacional, infraestrutural e empregatício. Por outro lado, estas reformas estruturais foram marcadas por movimentos de resistência expressivos em tamanho e simbologia: além da forte luta contra a desregulamentação do ejido e a proteção do direitos indígenas, soma-se a insurgência zapatista em Chiapas, no mesmo momento em que passa a vigorar o acordo do NAFTA, em 1994.

14 Ibid., p. 126.


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2.3 - Insurgências periféricas “Pobrezinho de México, tão longe de Deus e tão perto dos Estados Unidos”, diz o ditado popular recuperado por Eduardo Galeano 15. O caso dos ajustes estruturais promovidos no México são sintomáticos dos efeitos sociais provocados pela acumulação por espoliação. A criação de oportunidades lucrativas ao investimentos de capitais excedentes às custas da desvalorização de ativos fundamentais à vida cotidiana, sobretudo no sul global, muitas vezes acompanhados por uma reação popular de combate a esse desmonte do aparato público e comunitário. A proteção e a recuperação destes bens comuns torna-se um elemento de congregação e de uma mobilização social que ganha protagonismo na contemporânea luta contra as predações promovidas pela acumulação capitalista. As formas atuações e os objeto de reivindicação destes movimentos sociais variam de acordo com os impactos da espoliação na vida cotidiana: como a luta por moradia, mobilidade urbana, movimento feminista, negro e ambientalista. Trata-se, portanto, de uma mudança paradigmática nos modos de organização dos movimentos socialistas: historicamente concentrados nas penúrias proletárias envolvendo o trabalho, são hoje marcados por uma singular pluralidade de objetivos e participantes. Para Harvey, a concentração das reivindicações sociais sobre a exploração realizada por meio do labor seria um erro estratégico, uma vez que a acumulação dentro dos ambientes de produção e via espoliação são processos concomitantes: “se as duas formas de luta se acham organicamente ligadas no âmbito da geografia histórica do capitalismo, a esquerda não apenas se privava de poder como também prejudicava suas capacidades analíticas e programáticas ao ignorar por completo um dos lados dessa dualidade”. Tal erro se mostra de forma prática com a derrocada dos movimentos proletários ao redor do mundo pós crise de 1973. Neste período, o crescimento do mercado financeiro ampliou a ortodoxia da divisão internacional do trabalho, o que gerou uma supressão violenta de movimentos revolucionários anti imperialistas, como no caso do golpe militar no Chile de Salvador Allende (movimentos estes vistos também no caso brasileiro pré 1964, como aponta Roberto Schwarz)16. Em suma, os movimentos proletários de reivindicação contra a exploração sobre a reprodução expandida do capital não souberam se adequar às demandas estratégicas de luta contra a acumulação por espoliação. Enquanto a forma de acumulação principal era a reprodução expandida, o movimento 15 GALEANO, Eduardo. As veias abertas da América Latina. Porto Alegre: L&PM, 1971, p. 174. 16 SCHWARTZ, R.(1970). Cultura e política 1964-1969. In: ________. (Org.). O pai de família e outros estudos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978, p. 65.


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socialista se adequou ao objeto de reivindicação; entretanto, após 1973, com a guinada à acumulação por espoliação, uma nova forma de organização antiimperialista foi exigida. Para Samir Amin, observando a consolidação dos processos de despossessão, dramáticos sobretudo no Sul global, afirma que “o desenvolvimento desigual imanente à expansão capitalista trouxe à pauta da história outro tipo de revolução, a dos povos (ou seja, não de classes específicas) da periferia”17. Uma luta anticapitalista própria, flexível, fruto das vicissitudes do modo de acumulação contemporâneo, com métodos de reivindicação que acompanhem os meios e os objetos espoliados. Dessa forma, a coexistência das formas de reivindicação social e de construção do poder popular preponderantes a partir de 1973, voltadas ao processo de espoliação, e as anteriores a 1973 enfrentando a reprodução ampliada, consiste em um ponto fundamental da argumentação de Harvey. Para ele, a acumulação capitalista “tem de fato um caráter dual” 18, de forma que não ocorre exclusivamente por meio dos processos espoliativos, e tampouco pela reprodução ampliada. São dois processos imediatos e “organicamente ligados”. A alçada da acumulação por espoliação como protagonista na atividade capitalista contemporânea não deve desconsiderar os entraves da reprodução expandida, pois trata-se de um processo ainda presente e fundamental para a própria solidez do sistema capitalista. Trata-se, sobretudo, de reconhecer o processo histórico de formação das particularidades sociais de cada território, em que pese o resultado prático dos simultâneos meios de acumulação e reprodução do sistema capitalista na vida cotidiana. Ao ambiente de pilhagem e de direitos e de propriedades promovido pela agenda neoliberal, acompanhada pela exploração no ambiente de trabalho, se sucede, portanto, uma resposta social que considera o processo histórico de forma dialética e progressiva. Uma estratégia importantíssima, pois evidencia a capacidade criativa e disruptiva das organizações não-capitalistas sobre o cenário da acumulação capitalista contemporânea. A acumulação por espoliação, apesar de ser o meio predominante de expansão capitalista contemporânea, não ocorre de forma isolada da reprodução ampliada, e o reconhecimento dos efeitos históricos, geográficos e sociais deste processo espoliativo é de fundamental importância para que se possa vislumbrar uma alternativa prática ao modo de produção do capital. Como aponta Harvey:

17 Harvey, 2003, p. 141, tradução nossa. 18 Ibid., p. 144, tradução nossa.


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“A unidade que começa a emergir na união destes diferentes vetores da luta de classes são vitais para alimentá-la, pois é por meio destas lutas que podemos definir as direções de uma forma de globalização completamente diferente, que seja antiimperialista e dê ênfase aos objetivos humanitários de bem estar alinhados a formas criativas de desenvolvimento, ao invés de promover a glorificação do poder do dinheiro, das bolsas de valores e da incessante acumulação de capital a qualquer custo ao longo dos mais variados espaços da economia global, que sempre termina em uma pujante concentração em poucos espaços de riqueza extraordinária. O momento pode ser cheio de volatilidades e incertezas; mas isto significa que é, também, o momento do inesperado, e cheio de potencial” 19.

2.4 - Mercado habitacional e espoliação urbana O processo descrito por David Harvey como acumulação por espoliação - que caracteriza o cenário da economia política neoliberal - tem como desdobramento da manutenção dos meios de produção capitalista uma sistemática segregação social. Tamanha segregação, do ponto de vista urbano, se desenvolve sob múltiplos aspectos: acesso a serviços e infraestruturas básicas como distribuição de água e tratamento de esgoto, transporte público, sistema de saúde e educação. Entretanto, o impacto da despossessão contemporânea se mostra de forma especialmente candente quando observados os meios de acesso à terra e a moradia no território urbano. A alocação de excedentes, via mercado financeiro, na produção habitacional contemporânea constitui uma importante estratégia de reciclagem do capital sobreacumulado. Para tanto, a transformação da moradia em Ativo em uma sociedade de proprietários constitui o adágio da política pública sobre as cidades nas últimas décadas. Cerne do plano de governo de Margaret Thatcher e Ronald Reagan nos anos 1970, posteriormente endossado pelo Banco Mundial em seu relatório Housing: Enabling Markets to Work, de 1993, a orientação da produção habitacional pelo mercado anda em paralelo com a construção do credo popular de que a estabilidade e a boa vida seriam uma consequência da compra da casa própria20. A extensão do domínio das finanças e do peso do Banco Mundial para determinar as condições de participação no comércio contemporâneo (sobretudo nos parâmetros a serem cumpridos para validar o recebimento de crédito) se desdobram em novos requisitos a serem cumpridos pelos Estados quanto à viabilização da moradia. Assumir a habitação como uma mercadoria torna-se a 19 Harvey, 2004, p. 83. 20 ROLNIK, Raquel. Guerra dos lugares: a colonização da terra e da moradia na era das finanças. São Paulo: Boitempo, 2015, p. 31.


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premissa hegemônica de governo, de forma que caberia às instituições nacionais operar como um facilitador deste consumo. A garantia de legislação urbanística e capacidade industrial de construção civil; a provisão de créditos hipotecários acessíveis, subsídios tanto ao construtor quanto ao consumidor e a definição da propriedade privada na habitação se tornam os elementos padrão da política pública relativa ao morar nas cidades contemporâneas21. Aplicadas no Brasil sobretudo na transição entre as décadas de 1990 e 200022, tais critérios tiveram um efeito global de aumento do preço da moradia, acarretando no endividamento de famílias e na consolidação de um cenário de espoliação urbana em que o acesso ao sonho da casa própria se torna uma realidade distante. A espoliação urbana, fruto da construção da moradia enquanto uma ordenação espaço-temporal, é um dos reflexos do modo neoliberal de acumulação como apresentado por David Harvey. Entretanto, cabe ressaltar a peculiaridade da mercadoria habitação no que ela trás de processo espoliativo. Como aponta Mariana Fix e Leda Maria Paulani, “a singularidade desse mercado está [...] em reunir numa única atividade produtiva as três formas sob as quais a mais-valia aparece: o lucro (valor excedente produzido no canteiro de obras), o juro (parcela do valor excedente que remunera quem fornece o funding, ou seja, os recursos monetários, para a produção) e a renda (sobrevalor futuro capitalizado embutido no preço da terra)”23. Dessa forma, a política de provisão da moradia por meio do seu consumo enquanto objeto de mercado traz consigo não apenas as formas de produção e distribuição da mais-valia relativas a exploração do trabalho e a valorização do capital. Acrescenta-se o fator do acesso à terra como outra camada de elevação no preço do produto final: a renda, um “tributo pelo direito de habitar a terra”24, fruto do exercício de um direito de propriedade privada, é cobrada sobre a aquisição da moradia sem, contudo, significar uma valorização real do produto. Trata-se de um meio especialmente eficaz de dar vazão ao capital sobreacumulado, elevando significativamente as taxas de lucro do empreendimento por meio da garantia legal da renda capitalizada; como uma face da mesma moeda que sustenta a provisão habitacional via aquisição da propriedade privada. Assim, apesar de consistir de uma teoria ainda em desenvolvimento, o problema conceitual da renda, sobretudo aquela presente na 21 Ibid., p. 37. 22 BREDA, Fausto Moura. Produção imobiliária sob dominância financeira: algumas implicações para a esfera produtiva e a renda da terra. In: PEREIRA, P.C.X. (Org.). Imediato, global e total na produção do espaço: a financeirização da cidade de São Paulo no século XXI. São Paulo: FAUUSP, 2018. p. 15. 23 FIX, Mariana; PAULANI, Leda Maria. Considerações teóricas sobre a terra como puro ativo financeiro e o processo de financeirização. Revista de Economia Política, vol. 39, 2009, p. 639. 24 MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política - Livro 3. São Paulo: Abril Cultural, 1890, p. 888.


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construção civil urbana, com o que temos em mãos, permite uma iluminação mais aprofundada do cenário espoliativo em nossas cidades. 2.5 - Terra, renda e a cidade do capital Como apresentado por Marx no livro III d’O Capital, o domínio monopolista sobre a moderna propriedade privada da terra configura a raison d’être de uma classe específica dentro da fórmula trinitária do modo de produção capitalista. Se o proletário tem como contrapartida da venda de sua força de trabalho o recebimento de salário e o capitalista recebe o lucro e os juros sobre seus capitais, os proprietários participam da cadeia de produção global de mercadorias como os detentores dos direitos de uso e exploração da terra, aos quais são remunerados por meio da renda. Um agente absolutamente passivo, limitado “a explorar o progresso do desenvolvimento social para o qual em nada contribui e no qual nada arrisca”25. Segundo este contrato social, tudo que repousa sobre o solo em que se delimita a propriedade é de domínio de seu proprietário: todo capital fixo natural e construído, “como todos os edifícios industriais, ferrovias, armazéns, estabelecimentos fabris, docas, etc”26. Fruto do direito de propriedade privada, cabe ao proprietário cobrar uma taxa sobre qualquer atividade que necessite do espaço que a ele pertence, como uma contrapartida desta concessão. Como aponta Marx, não obstante o monopólio sobre a propriedade da terra fundamentar o recebimento da renda, esta se produz por meio de uma dupla relação jurídica e prática: “Cabe aí considerar dois aspectos: a exploração da terra com o fim de reprodução ou de extração, e o espaço, elemento necessário a toda produção e a toda atividade humana. E a propriedade fundiária cobra seu tributo nos dois domínios”27.

Dessa forma, um único monopólio da terra se desdobra em um duplo domínio sobre a cadeia produtiva que nela se realiza: de um lado as atividades que dependem de qualidades intrínsecas do solo (como produção agrícola e extrativista), de outro, pelo fato da terra se tornar um bem imobiliário e, portanto, demandar uma contrapartida monetária pelo seu uso. Tais meios de se apropriar da terra resultam na cobrança das rendas fundiárias, extrativas e imobiliárias: exploração do solo, extração de materiais e acesso à propriedade. A diferença 25 Ibid., p. 888. 26 Ibid., p. 888. 27 Ibid., p. 888.


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entre as qualidades proporcionadas pelo terreno trazem como decorrência imediata uma renda diferencial: a fertilidade do solo, a proximidade com locais de venda, meios de transporte ou qualquer outro capital fixo que aumente a taxa de lucro do capitalista resulta em uma compensação financeira ao proprietário pelas vantagens que suas terras proporcionam ao produtor. Por se tratar de uma delimitação privada de um pedaço do globo terrestre, a propriedade da terra consiste, por si só, de um monopólio. Independentemente das qualidades presentes no solo ou em sua localização, sua proximidade ou não com centros urbanos ou com compradores dos produtos que ali são produzidos, a renda (portanto o capital cobrado para utilização do espaço na empreitada manufatureira) constitui-se em decorrência desta concentração monopolista da propriedade. O preço do produto final comercializado, por sua vez, também reflete tal condição, gerando o chamado preço de monopólio. Desse modo, cabe a distinção entre os dois momentos: quando o preço de monopólio gera a renda, e quando a renda gera o preço de monopólio. A renda define o preço de monopólio quando, por haver no processo produtivo o intermédio de uma propriedade monopolista, cobra-se um montante superior ao custo médio de produção de mercadorias “em virtude de a propriedade fundiária impedir aplicação do capital em terras incultas, se este não lhe pagar renda”28. A renda se dilui, assim, no montante total de produtos comercializados. Por outro lado, o monopólio de um produto cujos compradores estão dispostos a desembolsar uma quantia maior de dinheiro para a sua aquisição (como por exemplo os vinhos de alta qualidade, como aponta Marx)29 tem como consequência a formação de preços significativamente elevados, superiores à média de mercado. A venda destas mercadorias a preços singulares resulta na formação da renda. Embora não exista uma regra geral em que se pode definir quando são os preços monopolistas formados pela existência de renda, e ao contrário, o momento que a renda é fruto da presença de preços de monopólio - variando, portanto, de caso a caso - Marx afirma que a participação do proprietário de terras no processo produtivo de mercadorias faz-se sentir no custo a elas atribuído. Trata-se de um montante de capital arrecadado pelo detentor dos direitos de posse da terra, pagos por toda a sociedade em que o regime capitalista foi instaurado.

O pagamento da renda ao proprietário de terras corresponde a um

28 Ibid., p. 890. 29 Ibid., p. 890.


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direito a ele garantido pela sua posse, fomentando uma acumulação passiva de capitais pela sua parte. O industrial, agente produtivo que detém os meios de produção alocados sobre a terra, deve ajustar sua projeção de lucros para que seja repassado o montante de capital correspondente à renda ao dono de terras; sem que, entretanto, reduza a taxa de lucro médio que lhe cabe. Deste modo, há de se projetar um lucro extraordinário: “Onde quer que os recursos naturais possam ser objeto de monopólio e assegurar ao industrial que os explora um lucro suplementar - trata-se de quedas d’água, minas de ricos veios, águas piscosas ou terrenos para construir bem situados - apodera-se desse lucro suplementar, na forma de renda, subtraindo-o do capital ativo, aquele que detém o privilégio de dono desses recursos em virtude de título de propriedade sobre uma parcela do globo terrestre”30.

A propriedade privada da terra constitui, portanto, uma forma contratual sob a qual se demanda o pagamento da renda por parte do capitalista interessado em utilizar determinada parcela do globo à produção de mercadorias. Para tanto, o chamado “lucro suplementar” é subtraído do “capital ativo” deste industrial, o qual, para que não veja suas taxas de lucro diminuírem, lança mão de um aumento nos preços finais da mercadoria (preços monopolistas) e na intensidade da exploração da força de trabalho, aumentando a quantia de mais-valia produzida. Como visto nas discussões acerca da produção ampliada das condições capitalistas de vida cotidiana proposto por David Harvey - recuperando os escritos de Marx e Rosa Luxemburgo - a ampliação da criação da mais-valia implica em uma realização e distribuição das formas de convívio capitalista de forma contraditória. Deste modo, faz-se necessário o emprego de modos de vida fora daquele mediado pelas relações hegemônicas do capital. Uma contradição sine qua non deste modo de produção, e que encontra agravamento na formação do sobrelucro destinado a renda. A própria existência de uma renda aparenta ser uma contradição deste modo de produção, já que exige do capitalista despender parte de seu lucro a um agente produtivo passivo, cuja renda é resguardada pelo direito de propriedade sobre a terra. Como aponta Henri Lefebvre 31, as revoluções burguesas dos séculos XVIII e XIX tiveram, dentre suas bandeiras, àquela que pregava o fim da propriedade fundiária; realizando uma espécie de reforma agrária durante a revolução francesa - que não passou de um confisco de terras da nobreza, repartindo-a entre integrantes da classe insurgente. Sua consolidação enquanto 30 Ibid., p. 887. 31 LEFEBVRE, Henri. A cidade do capital. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 1978, p. 163.


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mercadoria é parte do mesmo processo de formação da burguesia enquanto classe dominante, de forma que a transformação das estruturas políticas pós revolução se desdobraram em uma alteração do próprio território social disputado - como no caso da capital francesa em que “a especulação fundiária, tanto quanto as preocupações militares, orientaram a transformação de Paris pelo barão Haussmann”32. Ao longo do século XX, a propriedade da terra assume papel decisivo nas relações cotidianas de troca, de forma que o espaço construído - sobretudo nos meios urbanos onde as atividades de mercado ocorrem com maior intensidade - adapta-se ao seu destino enquanto um bem de consumo. Neste cenário, o parcelamento do solo em lotes fragmentados demarca espacialmente a geometria da terra posta à venda, de modo que a própria volumetria dos edifícios urbanos reflete a expressiva segmentação territorial. A construção do espaço urbano sob a égide do modo de produção capitalista - e sua capacidade global de transformação dos mais essenciais elementos da vida cotidiana em mercadorias - pavimenta a consolidação do ramo imobiliário como meio hegemônico de lapidação material das cidades contemporâneas. Tamanha reordenação comodificada do meio urbano - mesmo que tardiamente33 - se mostra como uma atividade produtiva extremamente lucrativa, atraindo um massivo embarque de agentes industriais, financeiros e comerciais no mercado imobiliário. Nestes empreendimentos, o movimento tendencial de queda na taxa de lucros sobre investimentos capitais é contornado, uma vez que o monopólio da terra - parte fundamental da mercadoria imobiliária - impacta em uma alteração significativa no preço final comercializado. Como apresentado por Marx na discussão supracitada, a propriedade privada do solo impõe uma cobrança pelo seu usufruto na forma de renda. Invariavelmente, quando se trata da comercialização da terra, tal cobrança recai sobre a formação de preços nos produtos da construção civil, de forma que “as rendas fundiárias (a renda I dada pelas melhores terras - as mais próximas dos mercados urbanos - e a renda II, renda técnica obtida pelos investimentos de capitais na produção agrícola) não cessam de aumentar, em benefício dos capitalistas, em função do crescimento das cidades”34. Assim, a propriedade imobiliária, ao exigir a cobrança de uma renda pelo seu caráter monopolista, constitui-se como um elemento crucial nos processos de acumulação contemporânea.

32 Ibid., p. 163. 33 Ibid., p. 163-164 34 Ibid., p. 164.


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Apesar de se reconhecer na moderna propriedade privada da terra este objeto incontornável nos processos de produção e reprodução dos modos de vida capitalista, a teoria que ilumina os meandros internos desta forma econômica e contratual de ordenação espacial ainda preserva lacunas importantes. Sobretudo quando observa-se a propriedade de terra urbana partindo da epistemologia que compreende a renda sobre a agricultura, os índices e parâmetros de análise acerca da formação da renda e da captação de mais valia socialmente produzida são pouco palpáveis - quando não são insuficientes. Entretanto, ainda que haja uma diferença nos processos materiais de produção de mercadorias e, portanto, a disparidade na formação da renda dos terrenos para construção na cidade com relação aos terrenos da agricultura, ainda se mantém a renda diferencial por situação (tipo I), a pela presença de equipamentos (tipo II) e a renda absoluta, “pretendida por todo proprietário, pelo fato de ser proprietário e que serve de base à especulação”35. Dessa forma, por mais que seja uma disciplina cuja especificidade da construção civil na formação da renda urbana se mantém de forma obscurecida, verifica-se o impacto da propriedade imobiliária na apropriação da mais-valia socialmente produzida. O empreendimento da construção civil nas cidades contemporâneas, por meio do monopólio da terra e via mercado imobiliário, constitui-se como um negócio extremamente lucrativo ao multiplicar investimentos por via da renda, de modo a se tornar uma importante alternativa de reciclagem de capitais sobreacumulados. 2.6 - Renovação do problema: a terra como ativo financeiro Mesmo inacabada, a teoria relativa à importância da renda da terra nos processos de acumulação contemporâneos são objeto de estudos de uma vasta gama de economistas, sociólogos e urbanistas. No artigo Considerações teóricas sobre a terra como puro ativo financeiro e o processo de financeirização, de Mariana Fix e Leda Maria Paulani, as autoras demonstram os caminhos que levam a transformação da propriedade da terra em ativos financeiros por via da renda capitalizada. Por si só, a terra, como aponta Marx36, exerce um papel primordial de suporte e de base para qualquer atividade de subsistência, e sobre seu uso cobra-se uma taxa de capital denominada renda. A transformação deste elemento essencial da vida cotidiana - que garante as condições de produção e reprodução das estruturas sociais - em mercadoria não ocorre sem suas especificidades. Em primeiro lugar, segundo as autoras, por exercer uma função crucial como base sobre a qual se 35 Ibid., p. 167. 36 Marx, 1890, p. 887.


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desenvolvem as sociabilidades capitalistas, a propriedade imobiliária seria o que Marx denomina como “fundo de consumo”: “bens de maior durabilidade que no entanto não funcionam como capital, mas simplesmente garantem a reprodução material da vida social, a dos trabalhadores em particular”37. Em segundo lugar, por se tratar de um bem finito, impossível de ser reproduzido e dado pela natureza, não se encontra em seu processo de constituição enquanto mercadoria o trabalho humano de formação do valor. Um objeto comercializado cuja formação do preço não depende da transformação material de insumos em produtos finais ao longo de determinado período de tempo - processo este que configura a formação do valor. Ao contrário, a terra nos é dada antes de qualquer atividade laboral - e até da própria existência humana - de modo que sua transmutação à ordem do capital como um elemento passível de troca - por via da renda - faz com que se torne uma mercadoria fictícia. Como desdobramento das condições da moderna propriedade privada, a terra se transforma em uma mercadoria (fictícia) cujo preço é a renda. Para além de uma taxa imposta pelo proprietário sobre o uso de seu terreno para que ali se possa habitar ou trabalhar, a projeção da renda futura em um custo pré determinado permite a precificação da propriedade de terra. A capitalização da renda opera, assim, de modo a permitir uma apropriação da mercadoria terra como um capital fictício. Tais capitais, ao contrário das mercadorias cujo valor é produzido pelo trabalho ao longo do tempo, apresentam uma forma específica e abstrata de valorização; como apontam Fix e Paulani: “Em primeiro lugar, ele herda de sua figura originária, o capital portador de juros, a capacidade de transformar o movimento da valorização numa coisa, colapsando o tempo e plasmando a valorização nessa coisa. Em segundo lugar, não é o valor monetário inicial posto em movimento que engendra, através da produção, o valor excedente e o constitui como capital, mas o contrário, é o valor excedente pressuposto num determinado período de tempo que, trazido de frente para trás pela taxa de juros, gera seu valor e garante sua posição como capital. Em terceiro lugar, por consequência, o capital fictício nunca abandona a figura de capital monetário: como não precisa passar pelo calvário da produção, tampouco precisa abandonar a forma monetária. Ele cresce magicamente com o tempo, por força de algum tipo de ‘aplicação financeira’”38.

Segundo as autoras, a terra, apesar de uma mercadoria fictícia, não poderia se resumir a um capital fictício. Isto se deve a três fatores: seu caráter essencialmente físico e material; a relação imediata no processo produtivo de 37 Fix e Paulani, 2019, p. 643. 38 Ibid., p. 644.


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mercadorias, como um suporte cuja taxa de usufruto configura a renda; e pelo fato de que, mesmo sendo seu preço de comercialização correspondente à renda capitalizada, a terra não pode ser destituída de seu papel como “meio de produção, como condição objetiva do processo de trabalho ou como elemento do fundo de consumo”. Entretanto, recuperando os escritos de David Harvey, Fix e Paulani apontam na tendência de se tratar a terra como ativo financeiro “a chave para o modo e o mecanismo de transição para a forma puramente capitalista da propriedade privada da terra”39. O fato de ao proprietário ser garantido seu direito de recebimento da renda sobre as atividades econômicas envolvendo sua propriedade; o que, sendo o comércio da terra determinado pela formação do preço pela renda capitalizada, insere esta propriedade dentro do âmbito comercial do capital fictício portador de juros, como um “ativo puramente financeiro”. Para as autoras, a terra, enquanto ativo financeiro em estado puro, tem na capitalização da renda o elemento primordial de sua constituição enquanto mercadoria - superando, assim, o seu aspecto material, seu valor de uso propriamente dito. “Assim, a terra transforma-se de ativo real em ativo financeiro, de elemento necessariamente constituinte do capital produtivo em capital fictício”40. Dessa forma, segundo Fix e Paulani, a precificação da propriedade imobiliária a partir da renda capitalizada consiste de um processo que trata de forma similar a terra e o capital como portador de juros. Tanto a capacidade de produzir mais valor por meio da circulação - no caso do capital - quanto a possibilidade de captar parte do excedente socialmente produzido por via da renda - no caso da propriedade da terra - fazem com que ambas mercadorias constituam seu preço de aquisição por uma projeção futura de mais valor. A terra, assim tratada como capital fictício, torna-se um ativo de grande interesse financeiro, uma vez que o alargamento da renda esperada corresponde à multiplicação do montante de capital investido inicialmente. À formação de valor no trabalho material de produção de edificações soma-se à renda capitalizada e transformada em ativo, em que pese o caráter dialético de formação dos elevados preços monopolistas e o impacto fetichista da mercadoria nos olhos de um comprador disposto a consumir um produto superfaturado. Trata-se do que Pereira chama de “composição orgânica do capital na construção”41: definição esta que “permite entender (1) porque a construção deixa de encontrar 39 Ibid., p. 645. 40 Ibid., p. 645. 41 PEREIRA, Paulo Cesar Xavier. Para uma discussão sobre o valor e o preço na produção imobiliária. In: PEREIRA, P.C.X. (Org.), 2018. p.66.


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na propriedade da terra um obstáculo e passa a instrumentalizar, cada vez mais, essa propriedade como uma vantagem para reprodução do capital e (2) porque a renda capitalizada não eleva os preços de mercado dos imóveis, mas é ela (a renda) que depende dessa elevação (do preço) no mercado para aumentar”42. O caráter orgânico do capital na construção cerca de complexidades a formação de preços a partir da renda capitalizada. A relação entre o mais valor e os capitais constantes e variáveis no processo de produção e circulação de mercadorias ocorre de forma peculiar no caso do ramo imobiliário - cujo produto final é acrescido de um preço acima da média como forma de arcar com os custos da renda. Como apresenta Pereira43, o sobrevalor monopolista imposto sobre o produto imobiliário não apresenta obstáculos a sua formação enquanto mercadoria: ao contrário, trata-se de uma condição particular deste meio de reprodução capitalista. Tamanha peculiaridade é observada nos mecanismos de regulação de preços do produto imobiliário comercializado: pautados menos pelos processos de formação de valor, a mercadoria arquitetônica da construção civil tem o seu preço médio acima do padrão como um reflexo do caráter monopolista da propriedade. Tal fenômeno é recuperado por Marx no capítulo 46 do tomo III de O Capital, na fala do empresário Edward Capps. Para manter uma taxa elevada de retorno de investimentos, o investidor teve de ampliar sua produção “de três ou quatro casas” - que permitiam manter seus trabalhadores empregados - para uma escala multiplicada, “construindo cem ou duzentas casas”. Segundo o britânico, “nenhum construtor pode hoje ir para frente se não construir para especular e em grande escala. É extremamente reduzido o lucro que tira da própria construção; seu ganho principal advém da elevação da renda fundiária”44. Os baixos lucros de um custoso investimento não seriam justificados, portanto, sem o excepcional potencial desta fetichizada mercadoria monopolista de captar a mais valia socialmente produzida. A renda capitalizada, cobrada no momento de aquisição da terra, é repassada ao consumidor final do imóvel tanto na compra definitiva, quanto via aluguel, de modo com que arque com os custos do investimento inicial da empresa construtora. Esta última espera não apenas um retorno lucrativo do capital empreendido na provisão de edifícios para moradia, comércio, serviços, etc., como também dispor-se da capacidade de continuar o processo de aquisição de lotes e transformá-los em novas mer42 Ibid., p. 66. 43 Ibid., p. 66. 44 Marx, 1890, p. 889.


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cadorias urbanas. Invariavelmente, a capitalização da renda e sua transformação em ativo financeiro permite não apenas angariar um maior aporte de investimentos para novos empreendimentos imobiliários, como também multiplica o número de proprietários de capital envolvidos (acionistas). Portanto, a forma de ativo fictício e como um capital portador de juros, a construção urbana tanto ganha em celeridade (na aquisição de verba para compra de novos terrenos) quanto em preço final de consumo (sobretudo por meio da elevação da renda capitalizada). 2.7 - Ordem dinâmica, produção rudimentar O cenário brasileiro desta produção imobiliária financeirizada é objeto de estudo de uma vasta gama de urbanistas e economistas contemporâneos. Dentre eles, Fausto Breda, em seu artigo Produção imobiliária sob dominância financeira: algumas implicações para a esfera produtiva e a renda da terra, permite estabelecer uma aproximação inicial das implicações nacionais desta instrumentalização financeira na construção do espaço urbano. Segundo o autor, o significativo aumento da participação de investidores na aquisição de ativos de incorporadoras no Brasil no primeiro quartel do século XXI é um fenômeno cuja origem pode ser traçada em uma larga emissão de ativos imobiliários na Bolsa de Valores. Com uma arrecadação de R$12 bilhões até abril de 2008 em IPOs45 , as incorporadoras nacionais tiveram uma capitalização extraordinária de sua capacidade produtiva - cuja participação estrangeira na aquisição de suas ações chegou a 75% no mesmo ano46. Um ramo empresarial que permaneceu de pequeno porte ao longo do século XX, completamente transformado e reestruturado pelo mercado financeiro: entre compras e fusões de incorporadoras, logrou-se de atualizar um negócio familiar à escala financeira global altamente competitiva e lucrativa. A participação financeira no ramo imobiliário sustenta um processo de capitalização massiva dos empreendimentos urbanos tanto para o construtor, quanto para o consumidor final, que depende de créditos bancários para arcar com os altos preços da habitação47. As principais vias de valorização imobiliária pelo mercado financeiro são os fundos de pensão, fundos mútuos e private equity, cujo retorno do investimento a baixíssimos custos é fruto do caráter oligopolista do mercado de capitais. Tamanho controle “em bloco” dos ativos imobi45 Initial Public Offering: do inglês, Oferta Pública Inicial. 46 Breda, 2018, p. 17. 47 Rolnik, 2015, p. 38.


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liários garante a estes grandes investidores a capacidade de orientar o preço de suas ações, “inflando ou esvaziando as bolsas de valores de mercados emergentes”; buscando, dessa forma, que a valorização dos empreendimentos propicie a venda altamente lucrativa de seus ativos. Segundo Breda, “essa dinâmica do mercado de capitais, ao adentrar no circuito imobiliário, implica a imposição de metas de valorização acionária sobre a produção do espaço urbano no qual o valor de uso da cidade fica subordinado”48. A busca pela multiplicação de capitais via mercado financeiro tem, portanto, uma influência significativa nos processos de planejamento e construção urbana contemporânea. Para observar este fenômeno, o autor apresenta uma análise sobre a quantidade de incorporadoras presentes na Ibovespa, assim como o volume de suas ações imobiliárias em comparação com o total de ativos negociados na bolsa de valores de São Paulo. Por um lado, a crise de 2008 teve um impacto negativo no número de empresas listadas; com uma leve recuperação nos anos seguintes, mas com preços reduzidos. Por outro, o volume de ações comercializadas cresceu significativamente, com um pico em 2012: “neste período, a PDG chegou a negociar R$4,1 bilhões em um mês, a MRV R$1,8 bilhões, a Cyrela R$1,5 bilhões, a Gafisa R$1,1 bilhões e a Rossi R$1 bilhão”49 . Apesar da queda no número de ações dispostas no mercado, a possibilidade de um futuro crescimento do setor mobilizou uma capitalização massiva do setor. Circunscrita por suspeitas de utilização de informações privilegiadas acerca dos planos urbanísticos, uma “situação de euforia” fora criada por incorporadoras, angariando investimentos “para depois aplicar táticas de reversão e ganho rápido”. Dessa forma, a criação de tendências no mercado de capitais se mostra como uma ferramenta de domínio das instituições credoras sobre a produção imobiliária, envolvendo tanto as políticas públicas de planejamento urbano, quanto as incorporadoras altamente capitalizadas. Trata-se, portanto, de um processo de valorização do capital por meio da construção civil. Por sua vez, o trabalho na construção civil nas economias localizadas na periferia do capital mundial não ocorre sem suas especificidades. Apesar da moderna estrutura gerencial contemporânea - necessária para inserir as empresas do ramo da construção imobiliária no competitivo circuito mundial de acumulação de capitais - a grande massa de mão-de-obra empregada no setor é colocada sobre condições absolutamente extenuantes e degradantes de um arcaico trabalho. A baixíssima remuneração pelo ato de construir impede o próprio 48 Breda, 2018, p. 19. 49 Ibid., p. 21.


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trabalhador de contemplar o acesso à moradia como uma condição propiciada pela sua profissão. Como aponta Breda, “essas determinações reforçam a estrutura de: a) superexploração e baixa qualificação da força de trabalho; b) permanência de estrutura manufatureira original como camada interna do processo técnico com componentes industriais e baixa composição orgânica de capital no canteiro de obras50; e c) reforço do controle heterônomo do canteiro de obras via substituição da cultura construtiva pelo poder de mando do topo da pirâmide organizacional da divisão do trabalho - a predominância das representações do espaço, do desenho e do projeto”51.

Antes de representar um caráter atrasado da construção civil no Brasil, trata-se da especificidade em que a produção imobiliária opera nos países periféricos, que se dispõe sobre um trabalho quase artesanal e extremamente mal remunerado para aumentar a taxa de lucro. Trata-se, sobretudo, de um amálgama entre uma organização da produção realizada de forma dinâmica e altamente técnica - condições dadas como pré-requisitos para o recebimento de investimentos financeiros - e uma forma canteiro rudimentar, pouco mecanizada e super exploratória. Marca-se, assim, a “modernização conservadora do capitalismo dependente do Brasil” em concreto e aço, de modo que a superexploração do trabalho na construção civil brasileira é uma condição da própria posição que o país ocupa na divisão internacional do trabalho. A alta precariedade em que se encontra a mão-de-obra mais elementar da construção se dá, de início, na própria forma contratual das relações de trabalho: ao largo da CLT, a alta informalidade empregatícia e o contrato de subempreiteiras por parte de grandes imobiliárias para execução de obras - terceirização de serviços que expurga o contratante de arcar com garantias trabalhistas do operário. Trata-se de uma situação dramática, em que as péssimas condições de trabalho e a baixa remuneração no serviço de canteiro levou a construtoras como a PDG, Tenda e MRV a entrarem na chamada “Lista Suja”: hall de empresas acusadas a contratar seus trabalhadores em condições análogas a escravidão52. A subempreitada é, segundo Breda, um 50 As referências utilizadas por Breda na construção de seu argumento são: LEFEBVRE, Henri. A produção do espaço. Tradução de Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (do original: La production de l’espace. 4e éd. Paris. Éditions Anthropos, 2000) 2006; FERRO, Sérgio. Arquitetura e trabalho livre. São Paulo: Cosacnaify, 2006. 51 Breda, 2018, p. 23. 52 Ibid., p. 26.


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mecanismo de barateamento de obra com resultados expressivos no lucro final da empresa contratante, possibilitando reduzir entre 10 e 15% dos custos com a força de trabalho quando comparado com a manutenção de uma equipe própria - sem contar com os encargos trabalhistas e uma queda de produtividade inicial prevista na ordem de 20 a 30%. Além de recorrer à subempreiteiras terceirizadas para reduzir os custos e arcar com as responsabilidades de uma precarização extrema no trabalho de canteiro, o contrato da própria força de trabalho é uma alternativa usual às imobiliárias, apresentando a vantagem de manter um monopólio verticalizado do processo produtivo. Invariavelmente da forma contratual, o fato de produzir-se uma mercadoria fixa no espaço dependendo de uma cadeia produtiva móvel exige a completa adaptabilidade operacional e gerencial das empresas no ramo da construção civil. Para viabilizar o empreendimento imobiliário e atender às demandas de multiplicação de capitais projetados aos seus acionistas, estas companhias devem se dispor da possibilidade de atuação na mais variada gama de lugares na cidade, relações contratuais e qualidade técnica da mão-de-obra, e a capacidade de relacionar-se com facilidade com poderes públicos locais. Neste cenário de adaptabilidade e competitividade, a força de trabalho monopolizada pela empresa tem seus vínculos empregatícios pautados na flexibilização de cargos, na compensação por produtividade e na redução irrestrita de gastos (um adágio popular da relação contratual neoliberal). A precarização das relações de trabalho em obra - seja via subempreitada, seja via verticalização da produção - constitui uma parte fundamental da completa reformulação estrutural das imobiliárias brasileiras contemporâneas, de modo que possam atender às demandas e as vicissitudes da participação de credores e acionistas no processo de produção do espaço urbano financeirizado. A reestruturação da organização da produção imobiliária dentro da realidade atrelada ao mercado financeiro afeta não apenas a força do trabalho (ainda mais explorada e com seus direitos flexibilizados) como também propiciou um ambiente de massiva capitalização às incorporadoras por instrumentalizar a propriedade da terra como um capital portador de juros. Com a vinculação ao mercado internacional de capital - cuja velocidade na efetivação de transações e recuperação dos ativos são duas de suas condições de existência - a moderna propriedade privada da terra permite aos seus proprietários uma expansão do montante total de capitais recuperados em seus investimentos. A tradicional captação da mais-valia produzida no ambiente de trabalho (valorização e lucro) e global (renda) é intensificada, de modo com que possa ser reinvestido em no-


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vos empreendimentos - em um processo cíclico de construção de mercadorias e concentração de capitais. Como aponta Breda53, a grande quantidade de capital oriundo do mercado financeiro e da exploração presente na própria transformação da terra enquanto mercadoria, é rapidamente destinado à promoção de novos empreendimentos imobiliários. A extensa acumulação de capitais, seja de origem financeira, seja via renda e lucro (que se tornam indiscriminados dentro da valorização acionária da propriedade da terra), sustentam as bases de grandes incorporadoras para a compra de novos lotes urbanos para construção. Segundo o autor, “isso possibilitou às grandes incorporadoras a formação de bancos de terrenos (landbanks) de cifras bilionárias e elevados potenciais construtivos. O sinal dado para os investidores institucionais das grandes empresas incorporadoras de capital aberto é o de que a existência de um amplo banco de terrenos possibilitaria a manutenção de um fluxo contínuo de lançamentos imobiliários e uma espiral de valorização acionária”54. Dessa forma, a união do capital produtivo, da moderna propriedade privada de terra e da atuação do mercado financeiro estabeleceram um cenário de crescente concentração de terras nas cidades brasileiras. Os juros sobre o capital acionário, aplicado de forma cíclica e sistêmica ao empreendimento imobiliário, reflete a maneira pela qual a acumulação por espoliação opera simultaneamente sobre a produção e a busca de moradia nas cidades. Como apontou David Harvey, estas ordenações espaço-temporais são resultado não apenas da necessidade dos proprietários de capitais sobreacumulados em destinar seus excedentes para uma revalorização: são também fruto de uma política pública de alinhamento econômico às formas neoliberais de produção de riqueza. A atuação dos Estados é, como apresentou o teórico britânico, crucial para que a precarização nas condições da vida cotidiana contemporânea abram espaço à reciclagem de capitais em escala internacional. No caso da atual problemática habitacional - onde o acesso ao lar torna-se um desafio diário - não seria diferente. O aumento vertiginoso do preço dos imóveis - em decorrência da participação de instituições de crédito e a securitização de ativos hipotecários e da própria capitalização de imobiliárias por hedge funds e private equities - em relação aos salários não se trata de um fenômeno exclusivo do Brasil, e tampouco de países periféricos em geral. Como aponta Raquel Rolnik55, a política de provisão habitacional via mercado promovida na Inglaterra nas últimas décadas impactou em um crescimento radical das disparidades entre 53 Ibid., p. 33. 54 Ibid., p. 33. 55 Rolnik, 2015, p. 47.


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a remuneração dos trabalhadores e o custo da moradia. Segundo a autora, “de 1997 a 2012, o preço médio dos imóveis na Inglaterra subiu 200%, enquanto um salário médio para trabalho em tempo integral subiu apenas 55%”56. No caso brasileiro - e em São Paulo, mais especificamente - nos cinco anos que sucederam a bolha imobiliária de 2008, enquanto o preço médio do metro quadrado na capital paulista cresceu 70% (de R$2.569,31 para R$4.372,47) o salário mínimo teve uma alta de apenas 21%, passando de R$587,07 para R$715,0057. Maior polo econômico do Cone Sul e centro financeiro nacional, observa-se na cidade de São Paulo um excelente objeto de estudo dos impactos socioespaciais de uma política de Estado que alinha a política habitacional ao mercado de capitais. 2.8 - Entre gaiolas de ouro e caixotins humanos Objeto derradeiro na aproximação contextual acerca da problemática posta sobre a despossessão urbana contemporânea, a cidade de São Paulo tem, em sua história recente, importantes marcos legais e institucionais que vinculam a atuação do Estado nos processos de acumulação por espoliação. Trata-se de um breve estudo de caso de uma cidade marcada pelas vicissitudes de ser um preponderante polo econômico no sul global, onde a concentração de renda e a pujança capitalista convivem em permanente conflito com a pobreza estrutural; e no que diz respeito ao acesso à terra na capital paulista, tamanha contradição é reforçada em sua gravidade e intensidade. A transformação do pauperismo coletivo em oportunidade de lucro é um mote inadmitido na política habitacional em São Paulo desde a década de 1970, quando passa a prevalecer a preferência estatal por mecanismos de financiamento sobre a compra da moradia. O estímulo de um fetichista sonho da casa própria, nos últimos 50 anos desta demanda na cidade, foram preponderantes sobre alternativas mais inclusivas para a solução da questão habitacional, pautadas pela produção pública de moradia e pela sua garantia como direito de cada cidadão defendida pelo Estado. Ao contrário, o caminho percorrido em direção ao acesso à moradia ganha percalços quando o endividamento crônico da população paulistana e os pressupostos econômicos colocados pelo mecanismos de crédito se mostram incapazes de garantir à população mais pobre os mesmos direitos habitacionais 56 Ibid., p. 47. 57 CAMPOS JUNIOR, Carlos Teixeira de. Valorização do capital na produção imobiliária: distanciamento entre o preço da moradia e o do salário. In: PEREIRA, P.C.X. (Org.), 2018. p. 41.


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oferecidos a parte mais rica dos moradores da cidade. Por outro lado, o crescimento das incorporadoras e construtoras de capital aberto a partir da década de 1970 é o outro lado da moeda da política pública paulistana, que estimula a entrada de capitais em escala global sobre o solo urbano, e cuja instrumentalização enquanto propriedade privada permite a supracitada multiplicação de capitais via renda da terra. Diante da valorização da propriedade e das empresas envolvidas na produção e venda da moradia - com o consequente aumento do preço desta mercadoria - a população mais pobre na cidade tem no trinômio “loteamento clandestino / casa própria / autoconstrução” como base objetiva do acesso habitacional58. Mesmo sendo uma solução doméstica a um problema estrutural, o produto final, a terra ocupada de forma clandestina e posteriormente reconhecida como legítima propriedade privada, insere novas parcelas do solo urbano dentro da lógica de mercado, uma vez que se torna propensa a se tornar reserva de valor para futuras capitalizações. Trata-se, portanto, de uma maiúscula contradição que compõe o déficit habitacional da cidade de São Paulo, onde populações estruturalmente marginalizadas recorrem à auto provisão da moradia própria por não serem atendidas pelas políticas públicas, ao mesmo tempo em que se colocam sobre uma mercadoria que potencialmente trará a espoliação urbana deste mesmo grupo social. A chancela estatal sobre tal programa de acumulação por despossessão é, portanto, discorrido nesta pesquisa com base na autora Beatriz Rufino, que se debruça sobre a reorganização financeira da política urbana em São Paulo desde os anos 1970. Finalmente, as alternativas práticas que emergem deste cenário espoliativo concluem a narrativa aqui conduzida, tendo como referência os autores Carlos Teixeira Campos Júnior, Lúcia Shimbo e Paulo Cesar Xavier Pereira. Em primeiro lugar, a relação umbilical entre o desenvolvimento de um mercado imobiliário financeirizado e as políticas públicas de ordenação urbana na capital paulista é esmiuçado por Beatriz Rufino, em sua publicação intitulada Do Zoneamento às Operações Urbanas Consorciadas: planejamento urbano e produção imobiliária na mercantilização do espaço em São Paulo (1970 - 2017). No artigo, Rufino parte da observação da maneira pela qual o planejamento urbano seria tratado pela opinião pública como a panaceia aos desequilíbrios e conflitos da cidade - supostamente criados por um crescimento populacional descontrolado, fruto da consolidação de São Paulo como uma metrópole industrial repleta de opor58 MAUTNER, Yvonne. A periferia como fronteira da expansão do capital. In: CSABA, D.; SCHIEFFER, S. (orgs.). O processo de urbanização no Brasil. São Paulo: EDUSP, FUPAM, 1999, apud SHIMBO, Lucia. Produção da habitação e espoliação na metrópole de São Paulo (1970-2010). In: PEREIRA, P.C.X. (Org.), 2018, p.114.


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tunidades de trabalho e evoluções econômicas pessoais. A década de 1970 marca um momento em que os instrumentos de planejamento da cidade ganham força enquanto uma política de Estado, em uma cartografia de desenvolvimento estratégico do território. Para tanto, articula-se a criação de uma legislação de regulamentação urbana por meio do Zoneamento aos modos de produção do espaço da cidade via mercado, sobretudo valendo-se dos mecanismos de crédito e participação financeira do Banco Nacional da Habitação (BNH) e o Sistema Financeiro de Habitação (SFH). Assim, já em 1972, o governo municipal de São Paulo promulga um projeto de zoneamento completo da cidade, com o objetivo de estabelecer os parâmetros de parcelamento, uso e ocupação do solo urbano. De acordo com Rufino, “o zoneamento ao incidir fortemente nas condições de rentabilidade do setor imobiliário, por definir os parâmetros de uso e ocupação para as novas construções, será objeto de grande interesse do setor imobiliário, que passava nesse momento [em 1972] por importantes transformações”59. Em um contexto turbulento, onde os conflitos no Oriente Médio e a crise do petróleo se desdobraram em desequilíbrios econômicos estruturais marcados pela redução nas taxas de lucro e o aumento do desemprego. Neste cenário, a reordenação da produção imobiliária segundo os ditames do mercado de capitais se apresentou como uma alternativa animadora para a recuperação de rendas perdidas. A ordenação e a qualificação do espaço urbano em zonas preparadas para receber investimentos, somadas à atuação do BNH em aumentar a circulação de capitais envolvendo a moradia popular, produziu um ambiente de aquecimento da indústria da construção civil. Com o financiamento da produção e do consumo de moradias aliado ao zoneamento como atração de investimentos, surgem as primeiras grandes construtoras. Desse modo, a provisão de moradias acessíveis, que atenderiam ao déficit habitacional pelas disponibilidades de mercado, são endossadas como programa de Estado nos anos 1970. Assim, em um desvalorizado setor habitacional, a criação de um ambiente propício para o investimento financeiro no ramo da construção civil pertence ao hall de políticas públicas definidas por Harvey como de “destruição criativa” para a reciclagem de capitais sobreacumulados alhures. Por sua vez, o zoneamento exerceu um importante papel na transformação do setor imobiliário em um negócio extremamente lucrativo. Um dos efeitos imediatos deste instrumento sobre o modus operandi das incorpora59 RUFINO, Maria Beatriz Cruz. Do zoneamento às operações urbanas consorciadas: planejamento urbano e produção imobiliária na mercantilização do espaço em São Paulo (1970-2017). In: PEREIRA, P.C.X. (Org.), 2018. p.90.


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doras ocorreu como uma reação aos baixos coeficientes de aproveitamento exigidos pelos parâmetros de zoneamento. Por limitar o número de unidades produzidas e entregues ao mercado, estas empresas lançaram-se na busca de melhores oportunidades de lucro no território, fato este que “reforçou a procura de terrenos maiores e impulsionou a concepção de um produto imobiliário novo, o condomínio murado com áreas livres mais amplas”60. Estas ilhas urbanas fortificadas, dotadas de uma vasta gama de serviços intramuros e símbolos de um higienismo urbano popularizado entre a população abastada, se tornaram imagens recorrentes de uma nova realidade no mercado de habitações. Tais empreendimentos ainda permitiram uma capitalização de pontos da cidade distantes do centro, fato este que, independentemente do preço dos lotes, resultou em uma invariável formação de lucros extraordinários às empresas responsáveis pela sua construção e comercialização. Como aponta Rufino, recuperando um estudo feito por Rodrigo Lefèvre observando 6 empreendimentos habitacionais da mesma construtora em SP no ano de 1978, apesar do preço de compra dos terrenos variar de Cr$400,00 a Cr$5.200,00 por m2, o preço de venda se manteve na faixa de Cr$5.111,13 a Cr$5.601,95 por m2 61. Além de expandir as áreas de interesse financeiro, o próprio zoneamento permitiria ainda, em seu artigo 24, o aumento do coeficiente de aproveitamento nos casos de redução das taxas de ocupação, intensificando a construção em grandes terrenos nas periferias da cidade. A oportunidade de ampliar a produtividade da construção civil em grandes glebas, proporcionada por este ambiente de incentivos fiscais e legais promovido pelo Estado via zoneamento, tem seu reflexo em uma variação no preço da moradia. Ao invés de reduzir - resultado que esperaria após essa sucessão de vantagens às imobiliárias - observou-se um aumento de 32% no preço da habitação entre os anos de 1975 e 1977 em São Paulo. Mesmo nas duas décadas seguintes, em que se pese os efeitos de uma economia em recessão, com queda na produtividade e alta inflação, a terra mantém seus altos custos: um reflexo da sua condição de reserva de valor. Garantida pelos novos parâmetros de distribuição do capital sobre o espaço da cidade, a possibilidade de transformação da terra (até mesmo as mais afastadas dos centros de concentração de empregos, comércio, serviço, etc.) em grandes empreendimentos imobiliários traz consigo um crescimento vertiginoso do preço deste bem essencial à reprodução da vida e cujo efeito espoliativo não pode ser ignorado. A cidade de São Paulo, desde a década de 1970, passa por uma constante ascendência em seu déficit habitacional, com um expressivo 60 Rufino, 2018, p. 94. 61 Ibid., p. 92.


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crescimento da população em situação de moradia precária. Segundo a autora, o crescimento da população em favelas na cidade, que em 1973 era de 72 mil habitantes - correspondendo a 1,1% do total de paulistanos - chega no ano 2000 em 1,16 milhões - cerca de 11,12% da população naquele ano62. Tamanho crescimento da precariedade habitacional persistiu ao largo das propostas de reordenação urbana promovidas pelos instrumentos de zoneamento. Ao invés de considerar as formas de produção não mercantis da cidade - postas em prática como resposta ao efeito espoliativo da mercantilização da terra - a política estatal do zoneamento procurou criar condições objetivas de uma reprodução do capital por meio da compra e venda de terra para construção. Áreas públicas ou de domínio coletivo são, assim, destinadas à privatização, em uma proposta de “valorização diferencial da metrópole”. Dessa forma, verifica-se que o controle sobre a produção urbana proposto pelo zoneamento em São Paulo não pretende equalizar os desequilíbrios de um crescimento desordenado anterior; trata-se, antes, de um instrumento de valorização do capital atrelado à propriedade da terra enquanto um ativo financeiro. Como aponta Rufino: “O zoneamento apresenta-se como elemento de ordenação da cidade, mas não é. Ele é apenas uma projeção, que passa a ser moldada e apropriada, a partir das diferenças de captura de renda na cidade, aprofundando-as. Por isso mesmo se torna um grande objeto de interesse daqueles envolvidos na produção do espaço. Ao definir regras para toda a cidade, permite que aqueles responsáveis pelas formas de produção mais sofisticadas sob o ponto de vista do capital (a produção de mercado) calculem as diferentes possibilidades de rentabilidade da produção do espaço. Ele não faz sentido, por isso mesmo não é aplicado, em espaços onde a moradia não é produzida como mercadoria. Isto é, em uma grande parte do território onde se produziu o chamado padrão periférico de urbanização. A expansão das relações capitalistas na produção do espaço, ao ampliar a diferenciação espacial e aprofundar as desigualdades, pressionará a renovação do planejamento sem superar seu enlace com o imobiliário, que se renovará em novas formas”63.

Distante de responder aos problemas infraestruturais mais básicos da cidade, o zoneamento consiste de uma política pública elitista de valorização de capitais e propriedades imobiliárias, em que até mesmo nas regiões mais precárias se propõem formas de provisão habitacional via mercado (como no caso da criação de Zonas Especiais de Interesse Social - ZEIS). Por sua vez, o zoneamento não se trata de uma política isolada de tornar o solo urbano atrativo ao investimento financeiro. Neste sentido, destaca-se o papel ativo dos Planos Diretores Estratégicos em São Paulo. Em primeiro lugar, a exigência de maiores 62 Ibid., p. 96. 63 Ibid., p. 96.


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atenções sobre a insegurança na posse da terra - intensificada pela voracidade imobiliária de uma política habitacional financeirizada - por parte da sociedade civil teve como contrapartida a elaboração de instrumentos alternativos de ordenação da produção urbana. A regulamentação da função social da propriedade no Estatuto da Cidade de 2001 foi um passo importante no estabelecimento de marcos legais que pressionam os proprietários de terra a utilizá-la de modo com que se cumpra algum papel relevante na sociedade, impedindo a especulação e a precificação espoliativa do solo urbano. Entretanto, a instituição do PDE de 2002 na capital paulista subverte esta proposta: antes de um mecanismo de proteção contra a atividade predatória da disputa da terra pelo mercado, o plano procurou tratar da função social da propriedade sob o viés econômico, de modo a assimilar “funcionalidade” à “produtividade”. Para tanto, relaciona esse mecanismo legal a instrumentos urbanísticos que flexibilizam as regulações impostas sobre a produção imobiliária - garantindo vantagens fiscais e maior celeridade na viabilização de empreendimentos urbanos - cenário propício ao investimento privado na construção civil e para o crescimento das incorporadoras na cidade. Dentre estes incentivos à capitalização imobiliária presentes no Plano Diretor, destacam-se desde 2002 os chamados CEPAC: certificado de potencial adicional de construção. Presentes em aproximadamente 20% dos lotes da cidade64, os CEPAC são títulos emitidos pela prefeitura municipal na bolsa de valores, com o intuito de comercializar um aumento potencial de áreas construídas diante do limite imposto pelos parâmetros de construção do PDE e das Operações Urbanas Consorciadas. Invariavelmente, o resultado destes mecanismos de valorização financeira da propriedade da terra promovidos pelo PDE acabam em elevar o preço da moradia urbana e aumentar a espoliação; o que leva a compreender o atual papel do planejamento urbano como sendo menos uma solução aos desequilíbrios urbanos, e mais o de criar oportunidades de concentração e centralização de capitais valorizados pela edificação do espaço. Dentro deste cenário, se a provisão habitacional pelo mercado consolida-se como a forma hegemônica de acesso à moradia formal em São Paulo, o Estado exerce papel fundamental na concentração de capitais em incorporadoras ao direcionar a política pública de modo a favorecer as empresas que se enveredam no empreendimento imobiliário. Tamanha hegemonia é o que se observa no crescimento das incorporadoras e a concentração de empreendimentos imobiliários nestas empresas no 64 Ibid., p. 99.


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período entre 2000 e 2013. A disponibilização de financiamentos e subsídios estatais às imobiliárias de capital aberto, além da promoção do ambiente propício à valorização de ativos via financeirização imobiliária, sustenta um reforço na pujança da ação privada na provisão habitacional na capital paulista. Como aponta Rufino, o número de moradias lançadas na região metropolitana nos anos de 2000 a 2006 elevou-se em 85% entre 2007 a 2013; passando de 336.827 para 577.315 unidades habitacionais nos respectivos períodos. Na mesma divisão temporal, percebe-se a concentração da provisão habitacional pelas 23 grandes imobiliárias da região: no primeiro período, correspondiam a 25% dos empreendimentos e 37% das unidades; no segundo, o número salta para 41% dos empreendimentos e 57% das unidades. Assim, não apenas o número de unidades disponibilizadas pelo mercado cresceu, como o preço da moradia se elevou, em que pese o papel crucial perpetrado pelos mecanismos de regulação da produção imobiliária dispostos nas Macroáreas de Estruturação Metropolitana e nas Operações Urbanas Consorciadas para a formação de VGVs altíssimos65. O entrelaçamento entre mercado de financeiro e as políticas de provisão habitacional cobram, assim, o seu preço: a concentração de capitais nas grandes empresas, assim como o crescimento no preço da moradia são resultados de um cálculo minucioso de valorização de ações e contrapartidas aos investidores. A possibilidade de multiplicação de capitais via construção civil prática essa endossada pelo Estado com a viabilização de instrumentos como as CEPACS - cria um ambiente de efervescência financeira e otimismo econômico cuja possibilidade de perpetuar essa valorização acionária resulta no aumento do próprio preço da terra urbana. Na acirrada disputa sobre essa mercadoria, considera-se nos cálculos de viabilidade econômica não apenas a valorização da terra via construção e das vantagens legais e fiscais lançadas pelo Estado, como também da própria disponibilização de infraestruturas básicas de produção e circulação de capitais com maior eficiência. Neste ponto, as Operações Urbanas têm papel decisivo, pois possibilitam o repasse de investimentos altíssimos à construção de infraestrutura por meio da Outorga Onerosa. Com um total arrecadado chegou a marca de R$6,3 bilhões em 19 anos de existência, a Operação Urbana capacita o Estado a construção do ambiente da cidade cuja transformação é propícia ao recebimento de maiores investimentos - como no caso da Faria Lima e Águas Espraiadas, que concentram 89% deste valor. Como aponta Rufino, “acelera-se nesse contexto o ciclo de valorização imobiliária pela crescente coordenação entre a intensificação da construção de edifícios e a re65 Ibid., p. 102.


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novação das infraestruturas. Como parte dessa racionalidade, a infraestrutura passa a ser primordialmente concebida como paisagem a serviço da ampliação do preço das edificações. Torna-se assim um importante meio de capitalização suplementar às propriedades”66. Dessa forma, fundamenta-se uma política urbana na cidade de São Paulo que procura responder à escassez de moradia e de recursos urbanos por meio de uma aproximação para com o mercado financeiro; o que objetivamente acaba por fortalecer crescimento do preço da terra e acirrar os desequilíbrios urbanos envolvendo a habitação. A propriedade da terra urbana, enquanto ativo financeiro, além de ser o mote da reestruturação econômica nacional em um período de crise econômica nos anos 1970, encontrou nas políticas urbanas paulistanas (sobretudo no PDE e Zoneamento) os meios de multiplicação de capitais nela investidos. Aos moldes de como demonstraram Fix, Paulani e Breda, a construção e a valorização (real e fictícia) da propriedade levam a um inevitável crescimento de preço da vida na cidade; se desdobrando consequentemente em uma incompatibilidade da relação entre a remuneração da mão-de-obra e o preço da moradia. Na construção de um cenário de inacessibilidade à habitação pela força de trabalho no ramo da construção civil (sem que esta condição seja restrita a estes trabalhadores, mas sim um fato que condiz à uma parcela absolutamente expressiva de trabalhadores paulistanos) se observa a relação umbilical entre a acumulação por espoliação e a política de Estado em São Paulo diante do déficit habitacional contemporâneo na cidade. Por um lado, se os resultados práticos promovidos pela readequação da política de Estado acerca da questão habitacional em São Paulo em torno de uma estrutura financeirizada de produção e acesso da moradia na cidade ampliaram a arrecadação das empresas de incorporação e construção civil; por outro, o consumidor final - aquele que depende de uma atuação assertiva por parte do poder público para manter um teto sobre sua cabeça - não compartilhou dos mesmos louros e vantagens dessa nova proposta. Como bem trata Lucia Shimbo, em seu artigo Produção da habitação e espoliação na metrópole de São Paulo (1970 - 2010), a observação crua dos dados referentes à moradia na capital paulista permitem aferir um aumento da provisão habitacional: até a década de 1970, a quantidade de pessoas por domicílios correspondia a 3,2 entre os 40% mais pobres na cidade; número este reduzido para 2,2 no ano de 2010. Além de observar o crescimento no número de pessoas que alcançam o sonho da casa 66 Ibid., p. 104.


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própria, a autora aponta que a presença de instalações sanitárias nas moradias (indicador de possível precariedade habitacional) apresenta um movimento similar, de modo que sua ausência passa de 20% em 1991 à 5% em 2010 dentre os 40% mais pobres67. Cabe ressaltar que os números que apresentam um cenário de cauteloso otimismo são compostos, no caso do acesso à moradia, pela aquisição da casa própria pelas vias do mercado, da provisão pública e da construção doméstica (autoconstrução), o que, assim como o crescimento na disponibilidade de infraestrutura de saneamento básico, não esclarece a abrangência e a qualidade do serviço prestado. Como apontado anteriormente no estudo de Rufino, a participação privada na provisão habitacional ganha inédito protagonismo; perspectiva confirmada por Shimbo ao analisar o impacto dos mecanismos de crédito sobre, por um lado, a vida cotidiana dos novos compradores de moradias na cidade de São Paulo, e por outro, as incorporadoras e construtoras contratadas. Segundo Shimbo, as garantias postas aos investidores no empreendimento da construção civil por instrumentos públicos de financiamento mobilizaram uma quantidade maiúscula de capitais nos últimos 20 anos. Destacam-se o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) e o Sistema Brasileiro de Poupança e Empréstimo (SBPE), que empregam R$2 bilhões em contratos habitacionais em 2002, e em 2014 já ultrapassavam a marca de R$41 bilhões e R$112 bilhões pelo FGTS e SBPE, respectivamente. Acompanhando os resultados práticos desses instrumentos estatais de financiamento no preço do produto imobiliário, observa-se o crescimento do valor financeiro da propriedade imobiliária, em um crescimento abrupto da disparidade entre o IVGR (Índice de Valores de Garantia de Imóveis Residenciais) ao INCC (Índice Nacional de Custos de Construção). Tal movimento de capitais apresentou um crescimento de cinquenta vezes na arrecadação de empresas como MRV, que passou de R$14 milhões em 2004 a R$720 milhões em 2014. Ao mesmo tempo, o endividamento das famílias paulistanas para arcar com os custos de aquisição de uma moradia cada vez mais cara acompanharam tamanha capitalização do investimento imobiliário. Para Shimbo, a reestruturação financeira como base da política pública habitacional foi capaz de aquecer o mercado da construção civil, permitindo a compra e a geração de empregos; entretanto, as restrições impostas pelas instituições credoras para a concessão de crédito apresentou impeditivos incontornáveis à população com renda mais baixa. Por não se enquadrarem nos parâmetros estabelecidos para participar deste jogo financeiro, a população mais pobre na cidade perpetua a 67 Shimbo, 2018, p. 117.


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tríade que, segundo a autora, marca a história da conquista habitacional dos despossuídos urbanos: “loteamento clandestino / casa própria / autoconstrução”68 Shimbo aponta que, referindo-se a pesquisa de Mautner, essa tríade ocorre em três fases: “Na primeira, a terra é transformada em propriedade por meio do trabalho, nos loteamentos irregulares, e a casa é produzida por meio de ‘trabalho puro’ individual e familiar, por vezes, comunitário; a demanda da população por infraestrutura, acarreta na segunda camada realizada pelo ‘trabalho coletivo’ contratado e remunerado pelo Estado, por meio da regularização da terra (em grande parte dos casos) e da produção pública de infraestrutura. A terceira se dá justamente com a entrada do capital sobre a terra urbanizada, legalizada e infraestruturada, constituindo-se em porções definitivas com valor de troca (propriedades), quando essas áreas se transformam propriamente em ‘espaço urbano’”69. Dessa forma, os meios de acesso à moradia pela população mais pobre na cidade de São Paulo são também aqueles que, paulatinamente, transformam a terra em uma reserva de valor futuramente apropriada dentro da lógica de reprodução do capital excedente. O que mal ou bem se apresenta como solução da inacessibilidade sobre a habitação, é também a marca de uma estrutural e cíclica manutenção da espoliação com o crescimento nas disparidades entre os preços da mão-de-obra (salário) e da moradia comercializada. A terra, valorizada pelo investimento imobiliário financeirizado e pela valorização fictícia como proposta urbanística, não apenas se torna inacessível à compra por parte da população mais pobre, como também se torna um direito negado à força. A execução de dívidas hipotecárias, além da perpétua condição da construção doméstica às margens da legalidade fazem valer as vontades de um capital sobreacumulado que não abre espaço para empecilhos em seu caminho em violentas reintegrações de posse70. Soma-se, portanto, à conflituosa forma de produção do território na periferia do capital, a manutenção dos baixos salários, que fecham o ciclo da espoliação urbana. Como aponta a autora, “a construção da casa própria pelo trabalhador (autoconstrução) era o expediente que atendia, por um lado, a sua sobrevivência na cidade e, por outro, a manutenção dos

68 MAUTNER, Yvonne. A periferia como fronteira da expansão do capital. In: CSABA, D.; SCHIEFFER, S. (orgs.). O processo de urbanização no Brasil. São Paulo: EDUSP, FUPAM, 1999, apud. SHIMBO, Lucia. Produção da habitação e espoliação na metrópole de São Paulo (1970-2010). In: PEREIRA, P.C.X. (Org.), 2018, p.114. 69 Shimbo, 2018, p. 120-121. 70 Rolnik, 2015, p. 169.


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baixos salários pagos pelas empresas aos trabalhadores”71. Tamanha correlação entre a remuneração reduzida e a participação da população de menor renda no déficit habitacional é objeto de estudo de Carlos Teixeira de Campos Júnior, em seu artigo “Valorização do capital na produção imobiliária: distanciamento entre o preço da moradia e o do salário”. Segundo o autor, a demanda por moradia na cidade de São Paulo, que na década de 1970 - início da política pública de provisão habitacional financeirizada - era composta por 55% de famílias com arrecadação mensal de até quatro salários mínimos, chegam em 2018 - ano de publicação do artigo - a 80% composta por até três salários mínimos72. Ou seja, a política habitacional paulistana, pautada na compra da casa própria, estimulada pela euforia de uma reestruturação econômica financeira, deixa imaculada a parcela mais pobre dos moradores da cidade. O caso do emblemático programa Minha Casa Minha Vida é didático para compreender a preferência no atendimento às demandas por moradia dos grupos acessíveis ao mercado financeiro. Como aponta Shimbo73, o levantamento da produção habitacional promovida pelo MCMV na Região Metropolitana de São Paulo entre 2009 e 2013 demonstra uma vasta preferência no atendimento às demandas da faixa 3 dos empreendimentos (correspondente a famílias com renda de até R$7000,00 - aproximadamente 7 salários mínimos): correspondendo a 2,2% do déficit habitacional total da RMSP, o número de unidades contratadas no período de quatro anos equivale à 192,7% da demanda total. Por outro lado, as unidades disponibilizadas à faixa 1 (com renda familiar de até R$1.800,00), que corresponde a 75,5% do déficit total, somam apenas apenas 7% das unidades contratadas. Dessa forma, diante de uma política de Estado de provisão habitacional que ignora a necessidade básica de moradia da população mais pobre em prol da participação no movimento internacional de reciclagem de capitais sobreacumulados via produção imobiliária, a construção doméstica se mostra como a única solução para os trabalhadores aos quais são negados os créditos para compra da casa própria. Como aponta Shimbo, entre os anos de 2000 e 2010, enquanto a aquisição de unidades habitacionais pelas vias do mercado e Estado corresponde a 9,6% e 33,9%, respectivamente, à autoconstrução cabia a vasta maioria das moradias adquiridas no período: um total de 615.000, correspondendo a 56,4%74.

71 Shimbo, 2018, p. 121. 72 Campos Junior, 2018, p. 43. 73 Shimbo, 2018, p. 127. 74 Ibid., p. 127.


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Em meio a esta incompatibilidade entre a realidade econômica da população mais pobre na cidade e a política de acesso à moradia via mercado financeiro, a solução para a questão habitacional em São Paulo se constrói ao largo do mercado e do próprio Estado. A despossessão urbana, modus operandi da reestruturação imobiliária pós anos 1970 e que obriga a produção doméstica de casas para sustentar a reprodução da vida cotidiana na cidade, segundo Pereira75 , não se trata de uma exclusividade da urbanização contemporânea. Ao contrário, trata-se de uma condição imanente ao desenvolvimento capitalista na capital paulista ao longo dos últimos dois séculos. Em seu artigo Processos e problemas na urbanização da América Latina: teoria e história, o autor aponta que esta construção da moradia popular por meio de relações produtivas não capitalistas é uma característica própria da história das cidades latino americanas; onde a instrumentalização da terra enquanto mercadoria e o pagamento de baixos salários operam conjuntamente para garantir o ramo imobiliário o seu papel ativo na acumulação de capitais. Observando a história do acesso ao solo urbano na capital paulista pelas camadas mais carentes, a partir da Lei de Terras de 1850 e a abolição da escravatura em 1888, “a propriedade da riqueza nova passava a ser representada pela renda territorial capitalizada, pelas fazendas e engenhos que se tornavam as mais importantes indústrias de exportação, tendendo a romper com o que era, até então no Brasil, a maior representação de riqueza: a renda capitalizada da propriedade de escravos”76. A reorientação das atenções da classe dominante paulistana sobre a capacidade de capitalização sobre o rendimento da terra urbana no final do século XIX constituiu o que o autor chama de uma revolução imobiliária na cidade de São Paulo. Já na primavera do século XX, a captação de excedentes e a lucratividade da construção e comercialização de unidades habitacionais filtrou o acesso à moradia na cidade pelo crivo da renda familiar, cuja abissal desigualdade separou as altas classes em caríssimos “gaiolas de ouro”, e as baixas em “caixotins humanos” encortiçados. Frente a um vigoroso aumento no preço da terra urbana, em meio ao aquecimento do mercado imobiliário, coube a população mais pobre recorrer a alternativas não comerciais de construção da moradia para que pudessem habitar na capital paulista. Recorrente em toda a América Latina, a construção doméstica do espaço pela população de maior carência - ordenada por relações não mercantis de produção - convivendo conflituosamente com o aproveitamento da terra como fonte de renda pela classe dominante, caracteriza o que o autor chama de 75 PEREIRA, P.C.X. Processos e problemas na urbanização da América Latina: teoria e história. Territórios, vol. 34, 2016, p. 40. 76 Ibid., p. 45.


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urbanização dependente: a relação entre formas capitalistas e não capitalistas de produção da cidade latinoamericana. Segundo Pereira, trata-se de uma combinação que permite a superexploração da mão-de-obra sem, contudo, inviabilizar suas formas de subsistência. Para tanto, em algum nível, faz-se necessário impor limites às relações de produção capitalista; de modo que a manutenção de elementos não mercantilizados na reprodução da força de trabalho permite perpetuar uma condição cuja remuneração é incongruente com o custo de vida mercantil. Em outras palavras, dentro da urbanização dependente, tolera-se a existência de relações de produção não capitalistas, para que o próprio capital possa se reproduzir no território. Tal relação se reflete em uma forma urbana em que a construção do espaço hegemônico e doméstico convive em eterno conflito: não apenas por tornar concreta uma relação exploratória na própria produção e reprodução da vida cotidiana, mas por se tratar de um atrito estrutural da questão habitacional na era do capitalismo. Trata-se, portanto, da contradição essencial que reside na transformação de um elemento fundamental à vida em mercadoria: a terra. Como aponta Pereira: “Poderia dizer que o capitalismo histórico, que tinha sido forjado na sua origem com a utilização de métodos não capitalistas, atualmente não dispensa o convívio com essas relações de apropriação e captura típicas da acumulação primitiva para manter sua reprodução social com maior intensidade e desigualdade. Por isso, a mescla predatória dessas relações persiste no espaço latino-americano apesar da reprodução expansiva do capital mundial manifestar-se com uma hierarquia especificamente capitalista que se apoia na homogeneização das relações sociais (Lefebvre, 1980). Verifica-se, portanto, a permanência de uma produção capitalista de relações não capitalistas que faz conviver a reconfiguração da cidade contemporânea com a reestruturação da construção imobiliária (e de infraestruturas) como produção de espaços metropolitanos extremamente desiguais)”77.

Desta forma, a cidade de São Paulo tem sua urbanização marcada, como uma sina em sua história, pela convivência conflituosa entre formas de produção capitalistas e não capitalistas do ambiente urbano latinoamericano. A espoliação coletiva à terra na cidade, presente desde o início do século XX, ilustra o retrato apontado por David Harvey, em que a perpétua despossessão de elementos fundamentais à manutenção da vida cotidiana é uma condição sine qua non da sobrevida capitalista. Entretanto, como apontado pelos estudos de Breda, Rufino, Campos Junior e Shimbo, a reestruturação da economia política imobiliária em torno dos parâmetros financeiros amplia o abismo que separa as formas de acesso mercantilizadas da moradia em relação a sua produção não hegemônica. Recorrente na história da cidade, o cerceamento do direito 77 Ibid., p. 54.


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fundamental à habitação que ganha, desde 1970, o impulso financeiro e estatal, assume a forma urbana do conflito. Pautado em uma fluida relação entre legalidade e ilegalidade, entre permanência física e a incerteza de uma cidade em que “tudo o que era sólido desmancha no ar; tudo o que era sagrado é profanado, e os homens são obrigados a encarar com olhos desiludidos seu lugar no mundo e suas relações recíprocas”78, faz-se valer, em São Paulo, o império das relações geopolíticas de dominação e acumulação por despossessão. 2.9 - A contradição das pontes de prata Ao observarmos a contraditória e conflituosa produção do espaço urbano paulistano, marcado pela desigual disponibilidade de meios para que se desenvolva plenamente a vida individual e coletiva, compreende-se que trata-se de uma relação indissociável do papel que este território exerce na estrutura global de reprodução do capital. A perenidade da crise habitacional em São Paulo ao longo dos últimos dois séculos acompanha o desenvolvimento da cidade enquanto um polo econômico na periferia do capital. Entretanto, a partir dos anos 1970, com a reestruturação da economia política local que seguisse os parâmetros neoliberais - que ganhavam corpo na década, encabeçados sobretudo pelos governos Reagan e Thatcher - o solo urbano assume papel de destaque em um programa de valorização acionária da propriedade da terra. Trata-se de uma política pública que insere a construção civil, a produção e venda de edifícios na cidade, em um circuito financeiro global de investimentos. Para tanto, o crescimento no preço da moradia - produto final entregue aos concidadãos paulistanos - é condição fundamental da acumulação contemporânea, de forma a atender às expectativas de lucro em um mercado de capitais altamente competitivo. Neste cenário, a espoliação da população mais pobre sobre a terra urbana é consequência incontornável: uma expulsão ora física (por meio da aplicação de reintegrações de posse, aproveitando de uma condição de semi legalidade da moradia informal, ou execuções hipotecárias de dívidas contraídas) ora implícita na alta dos preços de aluguéis e terrenos, tornando a aquisição de novas casas pelo mercado uma tarefa impossível. Tamanha alta de preços da terra é sustentada por uma política institucional de incentivo ao empreendimento privado como forma hegemônica de produção do espaço, alimentada pela entrada incisiva do interesse financeiro na edificação urbana. Entre a elaboração de 78 MARX, Karl, ENGELS, Friedrich. Manifesto do partido comunista. Porto Alegre: L&PM, 1848, p. 78.


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planos de zoneamento e ordenação da cidade, o estímulo à construção de torres muradas de grande suntuosidade, simultaneamente aos barracos improvisados e auto construídos, são frutos de uma contraditória política oficial que alimenta a morfologia urbana da acumulação por despossessão. Conceito central na crítica da economia política proposta pelo geógrafo marxista David Harvey, a acumulação por despossessão - ou espoliação - consiste na criação de condições de estabilidade e crescimento das relações capitalistas de produção por meio de práticas de pilhagem e retirada de direitos sobre parte da população. Partindo de uma recuperação da teoria marxiana da acumulação primitiva e da leitura de Rosa Luxemburgo sobre a continuação deste processo inicial de roubo e violência para a consolidação das bases necessárias para a perenidade capitalista, o autor britânico sustenta que a longevidade deste modo de produção não seria possível sem a superexploração de relações de vida não-capitalistas. Segundo Harvey, existe um limite em que a acumulação pelo mercado formal ocorre naturalmente, sem interferências estruturais: uma espécie de autossabotagem do próprio sistema, quando o capital acumulado em demasia passa a se desvalorizar, de modo que ele precisa se mover em busca de novos empreendimentos para voltar a tornar-se lucrativo. Tal contraditória condição de desvalorização do capital é extremamente danosa para a estabilidade do sistema em escala global, resultando em profundas crises de sobreacumulação - tais como as vivenciadas em 1973, 1997 na Ásia e em 2008, na quebra do mercado imobiliário norte-americano. Para evitar esta danosa estagnação e tornar o capital acumulado lucrativo novamente, são criadas oportunidades de crescimento em inéditos empreendimentos. Sobretudo a partir da década de 1970, em meio aos conflitos no oriente médio e a crise do petróleo, a reorientação da economia política hegemônica - capitaneada por países como Estados Unidos e Inglaterra - em prol da fluidez e da velocidade de circulação de capitais no mercado financeiro, buscou-se instituir condições em que a sobreacumulação fosse rapidamente dispersada em novas fronteiras. A criação das chamadas ordenações espaço temporais - transformação territorial com o objetivo de criar oportunidades de acomodação de capitais - torna-se mote oficial da política institucional: primeiro nos países centrais, e em seguida na periferia do capital - seja via ajustes estruturais exigidos pelo FMI e Banco Mundial, seja imposto pelo coturno, como no caso da violenta ditadura de Pinochet, no Chile. Fazendo da chamada “destruição criativa” uma condição necessária para reprodução do capital contemporâneo, são recorrentes e repetidos à exaustão os casos de privatização de empresas estatais, a retirada e o


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desmonte de serviços e infraestruturas públicas com a subsequente investida do capital privado na prestação dos das mesmas atividades, além da flexibilização de legislações de proteção de direitos fundamentais - como salário mínimo, seguro desemprego e aposentadoria garantida. Assim, o capital sobreacumulado é absorvido na participação de investidores em objetos elementares da vida coletiva transformados em ativos financeiros; abrangendo desde o saneamento básico, distribuição de água, transporte e locomoção urbana, hospitais, postos de saúde, provisão habitacional, até a gestão de áreas de preservação ambiental, da estrutura de energia e a construção de estradas e aeroportos. Invariavelmente, a participação ativa do mercado e do interesse privado nos serviços e infraestruturas mais elementares da vida cotidiana resultam em uma cobrança condizente com as expectativas de lucro do investidor. O aumento de preço ou a cobrança de encargos por atividades até então gratuitas, a perda de segurança trabalhista e o desmonte de estados de bem estar são reflexos imediatos da política de destruição criativa neoliberal, que estabelece um ambiente de competição de todos contra todos. Em uma disputa entre cidades, estados e países para oferecer as condições mais favoráveis ao recebimento de investimentos financeiros e capitalizar a produção local, direitos são cortados e as famílias mais pobres são espoliadas no acesso aos meios de reprodução da vida mediados pelo mercado. Trata-se, em outras palavras, de uma condição imposta pelas centralidades do capital sobre territórios que permitiriam reciclar os montantes sobreacumulados; um ato que desafia lutas e conquistas históricas no campo social, atropela culturas tradicionais e impõe uma quebra de soberania sobre os interesses verdadeiramente nacionais em nome de um equilíbrio capitalista mantido a duras penas. Para Harvey, tamanha pilhagem e dominação compõem o cenário do imperialismo contemporâneo. A estrutura de acumulação por espoliação descrita por David Harvey, onde imperam relações de dominação geopolíticas contemporâneas mediadas pela organização financeira de mercado, é sentida de forma aguda no acesso à moradia urbana quando se observa a instrumentalização da propriedade privada da terra enquanto um ativo imobiliário. A possibilidade de retenção da mais valia global por meio da renda torna a posse da moderna propriedade da terra um trunfo, uma vez que garante ao seu detentor o direito de uma capitalização sem correr risco algum no processo de produção de mercadorias. Apenas pelo fato de ser proprietário, a este agente é dada a jurisprudência de cobrar por qualquer atividade que se desenvolva sobre seus domínios territoriais. Dessa forma, parte do lucro obtido pelo capitalista é convertido no pagamento de renda ao pro-


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prietário de terras onde ocorre a feitura dos produtos comercializados. Estes, por sua vez, têm um aumento de preço como forma de arcar com tal acordo, formando aquilo que Marx chama de “preço de monopólio”. Sendo a renda o princípio do preço monopolista, ou o oposto, quando o preço de monopólio gera a renda, não há uma regra que defina a ordem entre o fator de sobrelucro aplicado à mercadoria e o direito de todo proprietário de capturar parte da mais valia socialmente produzida; fazendo-se necessária uma análise caso a caso para compreender especificamente o movimento em questão. Independentemente da ordem, a cobrança de uma taxa pelo usufruto da terra sobre a sociedade, fato que se apresenta como um entrave para o desenvolvimento capitalista, acaba por ser um potente motor da acumulação: por se comportar como uma mercadoria, a propriedade do solo é comercializada sem, entretanto, ter passado por processos de formação de valor. Dessa forma, seu preço de comercialização é fruto não da soma entre a mais valia local e o lucro previsto (como no caso de mercadorias manufaturadas), mas sim da sua renda capitalizada: uma projeção futura de arrecadação concentrada em um montante final. Por ser independente de um processo físico de formação de valor, a renda capitalizada permite uma projeção variada de arrecadações futuras: depende menos de transformações imediatas de matérias primas em mercadorias e mais de uma expectativa de possíveis cobranças, que variam de acordo com o contexto fiscal, econômico, legislativo e político de cada região. Tal projeção - que de forma pouco clara se atribui o nome de especulação - faz com que a moderna propriedade privada da terra opere como um capital portador de juros, de modo que sua comercialização não encontra lastro em processos produtivos, mas sim na cobrança pelo uso e pela possibilidade de capitais que esta mercadoria permitirá circular. Assim, dentro da lógica financeira de mercado, o enquadramento da propriedade da terra como uma ativo garantiria o direito de apropriação da renda esperada por parte de investidores interessados. Neste sentido, as condições de promoção da renda mais elásticas são fundamentais: na competição do mercado globalizado, os incentivos destinados a alargar tal projeção assumem grande importância, de modo que a participação financeira no mercado seja atrativa ao ente privado que participa das ações de empresas como construtoras e imobiliárias. Políticas públicas como de transporte, embelezamento de cidades, vantagens fiscais e planos de reordenação territorial que facilitem a circulação de capitais se tornam trunfos ao investidor, ao qual é concedido uma oportunidade de renda diferencial extremamente vantajosa, ampliando a projeção da renda capitalizada em um cenário que estimule o fetiche sobre o solo urbano comodificado.


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Como desdobramento dessa busca pela renda diferencial no mercado de terras financeirizado, um campo abstrato onde a formação do preço é fruto da renda capitalizada, o resultado prático é de um súbito aumento dos custos envolvendo a moradia urbana. Apesar de ter seu preço definido em um campo imaterial em que se projetam rendas futuras, a propriedade da terra, enquanto mercadoria, se mostra como um elemento que potencializa a despossessão material de famílias nas cidades contemporâneas. Tamanha capacidade de multiplicação de investimentos proporcionada pela renda faz da instrumentalização financeira da propriedade do solo urbano um agente impossível de ser ignorado na compreensão do atual contexto de espoliação urbana - sobretudo quando estabelecemos o enfoque sobre a habitação. Como aponta Marx, é por meio do aproveitamento da renda diferencial que o proprietário de imobiliárias e construtoras viabilizam sua empreitada e angariam seus lucros - sendo mais relevante que a própria absorção de mais valor da mercadoria final. Trata-se, portanto, de uma compreensão basilar na aproximação urbana acerca do problema da acumulação por espoliação proposta por David Harvey. Os incentivos à renda diferencial urbana partem da prerrogativa de criar condições necessárias para que investimentos sobre o território sejam viáveis, apresentando perspectivas seguras de um retorno lucrativo sobre a compra de ativos imobiliários. Para tanto, assumem um papel de suma importância os planos urbanísticos, que apresentam o planejamento de desenvolvimento das cidades em um determinado período de tempo: formada pela projeção futura da renda capitalizada, essa ação do Estado é absolutamente determinante na elasticidade do preço da terra. Sendo a década de 1970 um aposto temporal apontado por Harvey em que a economia global é reordenada sobre marcos regulatórios financeiros, autores como Rufino, Breda e Campos Junior apontam no simultâneo movimento perpetrado pela política pública paulistana no sentido de alinhar o planejamento da cidade ao novo cenário do mercado. Neste período, a elaboração das primeiras Leis de Zoneamento - sob o pretexto de ordenar um crescimento descontrolado de uma cidade que se industrializava, tornando-se destino de migrantes à procura de oportunidade de emprego - apresentam o movimento estatal em busca de disponibilizar oportunidades de empreendimentos imobiliários como ordenações espaço temporais. Uma política elitista, cujo impacto sobre o preço da moradia em São Paulo auxiliou o crescimento da precariedade habitacional na cidade; que, por outro lado, facilitou a capitalização do solo urbano ao disponibilizar o arcabouço jurídico e fiscal necessário para formação da renda diferencial urbana. Além do zoneamento, os plano diretores são importantes marcos legais na política de financeirização da produção do


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espaço urbano paulistano, oferecendo oportunidades de remodelação do território seguras à investidores por meio de incentivos fiscais como os CEPAC, além de operações urbanas altamente transformadoras (como o caso da Águas Espraiadas). Dessa forma, a política urbana em São Paulo se adequaria, nos anos 1970, a uma reestruturação financeirizada da economia global, de modo a dar o suporte necessário para a recuperação de capitais sobreacumulados em uma renda da terra potencializada. Por sua vez, além de garantir aos investidores a possibilidade de multiplicar o valor acionário da propriedade do solo urbano, a velocidade e a facilidade de capitalização do empreendimento imobiliário, quando promovido por empresas de capital aberto, permite ainda que sejam compradas parcelas de terra maiores e com maior celeridade. Apesar de ser um investimento de alto custo, às construtoras e imobiliárias é dado a oportunidade de formação de bancos de terra (landbanks): um estoque de propriedades urbanas reservadas para que constantemente sejam colocados novos edifícios em circulação no mercado, reduzindo ou extinguindo o hiato entre a produção de unidades habitacionais. Trata-se de uma condição extremamente favorável à empresa e a seus acionistas, que observam seus investimentos tendo retornos lucrativos rapidamente. Essa concentração de terras nas mãos de poucas empresas apresenta um segundo nível de acumulação por espoliação, onde não apenas há um aumento no preço da moradia, como também as oportunidades de aquisição para além do mercado imobiliário hegemônico tornam-se cada vez mais escassas. A elaboração do relatório Housing: Enabling Markets to Work, pelo Banco Mundial em 1993, é sintomática do papel assumido pela moradia na organização neoliberal da economia política. Nela, habitação e mercado caminham unidas, de modo que a concentração de esforços públicos de fomento ao acesso à moradia pela compra ou aluguel é acompanhada de proporcional concentração de terras nas mãos de empresas privadas de capital aberto. O que é problemático em países centrais da economia capitalista ganha tons de dramaticidade nas nações periféricas, onde a desigualdade social é componente estrutural da morfologia urbana. Em todo o globo, observou-se um crescimento no preço da moradia em graus mais elevados do que o salário médio; o caso da cidade de São Paulo não é diferente, mas há aqui uma especificidade no que diz respeito à espoliação urbana via construção civil. Fruto de um amálgama entre, de um lado, uma organização extremamente tecnológica e moderna de capitalização e gestão do empreendimento, e de outro um meio de trabalho tão rudimentar


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como é o canteiro de obras, onde a mão de obra é extremamente explorada, o empreendimento imobiliário na capital paulista é viabilizado sobre a manutenção de salários irrisórios ao operário - condição essa que por vezes fora enquadrada como análoga a escravidão. Assim, esta ampliação da mais valia na construção civil empurra para cima os lucros de acionistas e investidores, ao mesmo tempo em que reduz as possibilidades de um operário ter acesso ao próprio produto de seu trabalho. Ao assumir uma política pública de provisão habitacional via mercado, o Estado exclui da conta a parcela da população ao qual são negados créditos bancários e meios materiais de aquisição de uma casa pelas vias formais e hegemônicas. Cabe ressaltar que, neste cenário, não é apenas o preço da moradia que cresce: como aponta Harvey, o desmonte de serviços públicos e comunitários como meio de viabilizar ordenações espaço temporais ocorre nos mais diversos aspectos da vida urbana, abrangendo desde o transporte, saneamento, a saúde, educação, até a moradia. Esta, por seu caráter elementar, e por depender da permanência sobre a terra urbana, entra em conflito com o anseio de resolução da sobreacumulação por via da renda. Dessa forma, a solução histórica ao problema habitacional em São Paulo é irredutível a uma provisão pelo mercado, e tampouco a participação estatal foi suficiente para garantir moradia formal a toda população. Operando no limiar entre legalidade e ilegalidade - aproveitado pelo poder público tanto como panaceia momentânea do déficit, quanto como objeto de necessária intervenção para oportunos empreendimentos - a parcela mais pobre na capital paulistana tem seu direito à moradia formal negado pela estrutura de acumulação por espoliação, de modo que a casa própria, para mais da metade dos cidadãos, só é alcançada por meio organização comunitária e doméstica. A acumulação por espoliação urbana em São Paulo, que produz a dependência de uma ordem não capitalista para manter as condições de vida da população mais pobre, também depende de subjugar essas comunidades e formas de subsistência às margens do mercado para que possam existir. Como nos mostra Pereira, terra, enquanto mercadoria, nunca fora acessível às classes subalternas na capital paulista - que foram obrigadas, desde o início do século XX, a se valer de métodos não capitalistas de aquisição da moradia para que pudessem encontrar seu espaço de morada. Entretanto, a volatilidade de um capitalismo predatório instaurado a partir da década de 1970 eleva os níveis de precariedade urbana a um ponto singular no cenário global. Trata-se, portanto, menos de uma gestão equivocada de um poder público que pouco compreendeu


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a realidade social do povo ao qual representa, ou uma resposta de insuficiente brio ao avanço das condições capitalistas de reprodução cotidiana: consiste em assumir o papel dado à metrópole latinoamericana em uma divisão internacional do trabalho que cria o pauperismo como necessidade de sobrevida. Como conta Eduardo Galeano em Veias abertas da América Latina79, a exploração espanhola na região da Bolívia retirara tanto metal precioso que alguns escritores locais sustentam que seria possível construir uma ponte de prata que uniria diretamente as minas de Potosí ao palácio real na Espanha. Uma história fantasiosa, mas que ilustra o caminho tomado pelas riquezas aqui produzidas, e que à duras penas é apropriada por proprietários nos centros globais da economia. A participação de capital estrangeiro na produção imobiliária em São Paulo, chegando à 75%, é significativa na compreensão de que as imaginadas pontes de prata ainda existem, e estão impregnadas no solo da capital paulista, em ordenações espaço temporais que fazem a sua parte para amenizar crises de sobreacumulação estruturais em nível global. Face neoliberal do imperialismo, como aponta David Harvey, este cenário não se constrói sem criar suas próprias contradições, onde soluções não capitalistas para os entraves do desenvolvimento pleno da vida cotidiana questionam, também, a própria estrutura de despossessão. Movimentos sociais que apresentam uma resposta aos tradicionais entraves e questões de exploração no trabalho em comunhão com a contestação da espoliação cotidiana são, como apresenta o geógrafo britânico, uma necessidade essencial de conquista para a soberania popular. Segundo Harvey, trata-se de uma solução que estabeleça a ordem do comum:

“O desmonte dos marcos e controles regulatórios que buscavam, por mais inadequados que fossem, refrear a propensão às práticas predatórias de acumulação, desencadeou a lógica ‘après moi le déluge’ da acumulação e especulação financeira desenfreada que hoje se transformou em um verdadeiro dilúvio de destruição criativa, inclusive aquela moldada pela urbanização capitalista. Esse dano só pode ser contido e revertido pela socialização da produção excedente e pelo estabelecimento de um novo comum de riqueza ao alcance de todos. É nesse contexto que a retomada de uma retórica e de uma teoria dos comuns adquire importância ainda maior. Se os bens públicos oferecidos pelo Estado diminuem ou se transformam em mero instrumento para a acumulação privada (como vem acontecendo com a educação), e se o Estado deixa de oferecê-los, então só há uma resposta possível, que é as populações se auto-organizarem para oferecerem-se seus próprios comuns [...]. O reconhecimento político de que os comuns podem ser produzidos, protegidos e usados para

79 Galeano, 1971, p. 79.


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o benefício social transforma-se em um modelo para resistir ao poder capitalista e repensar a política de uma transição anticapitalista”80.

80 HARVEY, D. Cidades Rebeldes: do direito à cidade à revolução urbana. São Paulo: Martins Fontes, 2012, p. 167.


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Aproximando-nos da problemática da acumulação por espoliação sob a perspectiva da produção e do planejamento espacial, observamos o contexto sobre o qual se constrói parte significativa das lutas e das reivindicações contemporâneas. Tanto dentro quanto fora da cidade, a relação entre modelo excludente de produção e de apropriação de riquezas - onde a subsistência depende de uma constante competição de todos contra todos - e a ordenação do território obriga parcelas da população mundial a se valerem da organização coletiva como forma de suprir uma demanda cujo fornecimento é monopólio do mercado. Se de um lado há o fortalecimento de laços comunitários na reivindicação de serviços, infraestruturas e, em último caso, uma morfologia urbana que contemple a totalidade dos entes sociais, é em razão de que há, por outro lado, uma prática de cercamento acerca do território e dos meios de vida singulares que compõem o espectro social de modo geral. Neste aspecto, é importante que se observe que a despossessão na cidade neoliberal, em seu complexo financeiro imobiliário, emerge não apenas de modo material, expulsando e impedindo o acesso a terra e aos meios necessários para reprodução da vida, como também imaterial: transforma os modos de sociabilização, de representação e expressão culturais em signos e significados universais, inespecíficos e, sobretudo, palatáveis ao olhar do mercado. Trata-se, portanto, em tornar a cidade atrativa não apenas ao investimento, como ao consumo e a circulação de capitais sobre um território revirado, reformado e lapidado sob os mesmos parâmetros excludentes que expulsam populações tradicionais e pobres de sua histórica morada. Diante desta imposição de meios de sociabilização renovados sobre espaços mercantilizados, Raquel Rolnik observa: “é a linguagem dos contratos, aliada à linguagem dos produtos imobiliários da ‘laje corporativa’, do shopping center e do centro cultural pós-moderno, que, sobre uma terra esquadrinhada pelo registro universal da propriedade, permite a entrada segura do capital especulativo internacional. Tanto faz se estamos em Dubai, Astana, Joanesburgo, Mumbai ou Rio de Janeiro: falamos a mesma língua, nos identificamos na mesma paisagem, estamos pisando o mesmo chão abstrato, abstraído - e subtraído - do território vivido por quem estava ali. Nada de puxadores de tuk-tuk passeando no meio de vacas, nada de vendedores


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ambulantes oferecendo comidas ‘exóticas’, nada de modos de vida e de ser particulares: não é por acaso que os processos de despossessão são também máquinas de aniquilamento, material e simbólico, de modos de vida”1.

A espoliação urbana contemporânea, portanto, não é apenas física e material, expulsando pessoas de suas terras por uma violência de mercado: é também abstrata, cultural, simbólica e epistemológica. Um projeto higienista de cidade, que não apenas alimenta o estigma sobre grupos sociais e formas de produção do espaço, como também procura extirpar-los do ambiente para sustentar a capitalização e a valorização do produto imobiliário. Analisando as reformas urbanas de preparo para a recepção dos megaeventos esportivos internacionais no Rio de Janeiro - a Copa do Mundo de Futebol de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016 - Rolnik aponta uma série de medidas de criminalização da pobreza e epistemicídios urbanos - como os anteriormente citados. Tratou-se de uma operação em conjunto com a atuação do complexo imobiliário financeiro de transformação territorial do morro da Providência, onde casas populares e moradores antigos do bairro foram retirados para dar espaço a construção de um teleférico, com acesso direto a um miradouro até então inexistente, e cujo objeto de contemplação - o Porto Maravilha - foi grande mote de mobilização na campanha de capitalização de uma região mais abastada da cidade. Neste processo, a cidade de São Paulo não passou impune, promovendo um cenário semelhante em Itaquera, com a construção do estádio sede da Copa na capital paulista; o que, por sua vez, fora acompanhado de reações populares contra os despejos e aumento de preço da terra no bairro de população majoritariamente pobre. Encabeçada pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), a ocupação Copa do Povo, situada em terreno próximo do estádio-sede, com o intuito de pressionar o poder público para garantir a segurança habitacional em meio a um processo de despossessão, foi um marco urbano de resistência e luta comunitária, aponta Rolnik. Em meio a tentativa de planificação e padronização de espaços e epistemologias, tendo como parâmetro a adequação aos gostos e linguagens internacionais de mercado, há uma reação organizativa popular como forma de enfrentar os meios de acumulação por espoliação no território. Contra o domínio de uma práxis privativa neoliberal, procuram estabelecer, assim, sua exata contraconduta. Diante dos processos de espoliação urbana, a organização em contraconduta se mostra um artifício importante de reivindicação e resistência, assim como a possibilidade de construção de uma realidade ordenada para além da 1 Rolnik, 2015, p. 245.


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privação e da competição predatória. Para Dardot e Laval2, esta mentalidade estruturada sobre o individualismo, o império da propriedade privada e a intensa competitividade compõem o arsenal epistemológico da práxis neoliberal; onde a política de Estado, o sistema de justiça e as demais condições materiais da sociedade capitalista são unificadas dentro de uma conduta hegemônica. A esta forma de agir no mundo, os autores chamam de “governamentalidade do neoliberalismo”, onde há uma adaptação intrínseca, desde legislações, morfologias urbanas, políticas públicas, até os próprios meios de construção e interação social à lógica da concorrência generalizada. Por outro lado, contra esta forma predatória e impositiva de sociabilidade neoliberal, a resposta popular deve ser pautada pelo exato oposto: uma contraconduta baseada no coletivo, na comunhão democrática de responsabilidades e direitos. Para Dardot e Laval, “a ideia de ‘contraconduta apresenta a vantagem, portanto, de significar diretamente uma ‘luta contra os procedimentos postos em ação para conduzir os outros’, ao contrário do termo ‘inconduta’, que se refere apenas ao sentido passivo da palavra. Pela contraconduta, tenta-se tanto escapar da conduta dos outros como definir para si mesmo a maneira de se conduzir com relação aos outros”3. “Porque, se é verdade que a relação consigo da empresa de si determina imediata e diretamente certo tipo de relação com os outros (a concorrência generalizada), inversamente a recusa de funcionar como uma empresa de si, que é distanciamento de si mesmo e recusa do total autoengajamento na corrida ao bom desempenho, na prática só pode valer se forem estabelecidas, como relação aos outros, relações de cooperação, compartilhamento e comunhão”4.

Dardot e Laval apontam, portanto, que a condução (mais ou menos forçada, mais ou menos violenta) à planificação epistemológica de construção da vida cotidiana pelos meios capitalistas neoliberais de competição generalizada entre indivíduos, demanda uma práxis de contraconduta, onde impera a relação solidária de coletivização das relações de produção e reprodução dos meios de vida. Esta reflexão conclui o ensaio dos pensadores franceses acerca da razão neoliberal de ordem social: A nova razão do mundo, livro que este aborda de forma histórica a relação entre os meios materiais em que se escora o capitalismo contemporâneo e as formas de sociabilidade que ele produz e exige. Publicado pela primeira vez em 2009, a obra oferece uma leitura acerca de dilemas enfrentados no cenário de acumulação por espoliação em que nos 2 DARDOT, Pierre, LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2009, p. 378. 3 Dardot e Laval, 2009, p. 400. 4 Ibid., p. 400-401.


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encontramos, suas implicações organizativas e psicossociais, e aponta, em suas últimas linhas, para uma solução que renderia, posteriormente, um novo livro por parte da dupla: os commons. Segundo os autores, “as práticas de comunização do saber, de assistência mútua, de trabalhos cooperativos podem indicar os traços de outra razão do mundo. Não saberíamos designar melhor essa razão alternativa senão pela razão do comum”5. A forma comum (ou common, como é tratado em parte da bibliografia de base), apresentada por Dardot e Laval como o meio material de construção de uma sociabilidades alternativas ao capitalismo - especialmente em sua face neoliberal - aparece com proeminência no debate acadêmico desde o último quartel do século XX. Mais recentemente, nos últimos trinta anos, há o aparecimento de movimentos sociais de contestação à ordem dominante, questionando sobretudo a estrutura de acumulação por espoliação, e cuja forma de organização se dá por meio da ordem do comum. O debate acerca dos commons, enquanto forma de organização coletiva e popular, uma contraconduta em relação à sociabilidade neoliberal, assume foco das atenções deste trabalho: de um lado, observamos conflitos urbanos que entram em ebulição dentro de um cenário de despossessão estrutural; de outro, o nascimento prático e conceitual de uma epistemologia da construção coletiva da vida que enfrenta os meios de subsistência pautados pelo mercado. Aos comuns, Dardot e Laval reservaram uma nova publicação, cujo subtítulo ensaio sobre a revolução no século XXI procura explorar teoricamente a dimensão estruturalmente transformadora desta práxis comunitária. Para tanto, propõem uma retomada histórica do surgimento dos comuns enquanto categoria social, tanto do ponto de vista prático como acadêmico. Como bem apontam os autores, trata-se de um tema abordado por diversos aspectos, estudados sobre uma vasta gama de pontos de vista e espectros da economia política. Desde um novo meio de garantir sobrevida ao capitalismo, observado pelo neomalthusiano Eric Hardin na década de 1960, perspectiva posteriormente atualizado criticamente por Elinor Ostrom, fato lhe rendeu o prêmio Nobel de economia no início do novo milênio; até mesmo, por outro lado, como a forma mais próxima de tornar real um ideal socialista abalado após a extinção da União Soviética. Autores chave do marxismo contemporâneo, como Silvia Federici e David Harvey, cada um a seu modo, também abordam a temática dos comuns e seu potencial revolucionário, apresentando contribuições importantíssimas acerca 5 Ibid., p. 402.


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deste tema: a primeira reconhecendo os comuns como um meio de resistência à espoliação intrínseca ao capital, e o segundo por tratar do aspecto urbano desta forma comunitária de produção. Assim, mesmo sendo uma temática com possibilidade de ser desenvolvida como meios de manter a ordem de dominação vigente, os comuns constituem um elemento central no debate de contestação à estrutura espoliativa neoliberal, presente no âmago de movimentos sociais de reivindicação tratados nesta seção do estudo. 3.1 - A produção do espaço comum Para compreender a emergência da categoria social dos comuns, estudadas e esmiuçadas historicamente por Pierre Dardot e Christian Laval, proponho, neste segundo capítulo da pesquisa, a análise do levantamento das origens do comum e sua diversa forma de efetivação prática, por meio da leitura crítica do livro Comum: ensaio sobre a revolução no século XXI, citado anteriormente. No próximo capítulo, me debruçarei sobre a atuação territorial do MTST: movimento que se vale de práticas comunitárias como meio de enfrentamento da estrutura espoliativa na cidade de São Paulo. Tratarei, portanto, de ordenar este trabalho por meio da dialética entre teoria e prática, de modo a iluminar caminhos e contradições da forma comum cotejada com a experiência empírica da ocupação urbana na capital paulista. A candência da temática dos comuns surge não apenas pelo apetite privatista do capitalismo contemporâneo direcionado ao açambarcamento de domínios comunitários como novas fronteiras de acumulação - como o conhecimento popular, os recursos naturais, os bens imprescindíveis à vida -, mas também por apresentar justamente a contraconduta coletiva de enfrentamento a governamentalidade neoliberal. Para tanto, movimentos sociais urbanos encontram na lógica comunitária o seu respaldo e seu meio de reivindicação: como no caso das ocupações urbanas do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto e sua luta no campo do direito à cidade em São Paulo. Apesar de resguardar suas especificidades, há na forma comum que compõe as lutas urbanas um caráter de construção coletiva de um “aqui e agora”, de um “presente particular e determinado”6 pela somatória de esforços em ressonante reciprocidade. Como afirma Lucia Linsalata acerca do domínio comunitária da água em Cochabamba, na Bolívia, “ao produzir essa forma de viver e organizar a vida social, produz e re6 LINSALATA, Lucia. Cuando manda la asamblea: lo comunitario-popular en Bolivia: una mirada desde los sistemas comunitarios de agua de Cochabamba. Bolívia: SOCEE, 2015, p. 76, tradução nossa.


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produz algo comum; algo que não tem relação apenas com os serviços a serem cumpridos ou com os deleites que se conquistam, mas também com os vínculos, as articulações, os significados simbólicos, os sentidos, as relações sociais, os usos do tempo e do espaço que são postos em jogo e, por vezes, produzidos a partir e através de estes esforços coletivos”7. Trata-se, portanto, de uma conduta coletiva que produz não apenas as condições materiais de superação de uma realidade espoliativa dentro da estrutura capitalista, mas também na consolidação de espaços, signos e significados comuns. Dessa forma, há na práxis do comum um caráter dual, que ao mesmo tempo produz sociabilidades e formas espaciais: significados e significantes da ordem comunitária. De modo dialético, relacionam-se o corpo social do comum e o espaço que o suporta. Tal relação, para Silke Kapp8 , caracteriza a formação da categoria “grupos sócio-espaciais”: onde um coletivo, ao longo do tempo, atua de forma autônoma sobre o espaço, de modo que a ele transforma, assim como por ele é transformado. Nesse sentido, ao tratar dos grupos sócio-espaciais, Kapp aproxima-se de uma perspectiva essencialmente lefebvriana acerca da sociologia urbana, onde a formação de um espaço vivido, percebido e concebido opera dialeticamente com relação ao coletivo que historicamente ali habita, tal como sintetiza Stanek9. No caso dos comuns, como apontado anteriormente, há uma particular formação de espaços de representação, de práticas espaciais e representações de espaço nesta ordem autogestionária, que responde às contradições da cidade de modo não apenas programático, mas também (e principalmente) territorial. É pela construção de novos espaços e de novas propostas de cidade que os comuns urbanos assumem papel fundamental dentro de uma condição crítica em que se encontram as cidades contemporâneas. Se partimos, na seção anterior, de uma análise de contexto econômico e histórico da espoliação urbana em São Paulo, sobretudo no que diz respeito ao acesso à terra, é pelo fato de que as contradições postas pela estrutura de acumulação por despossessão fundamenta o plano de fundo de um desequilíbrio espacial na cidade. Tais problemas da economia política capitalista e seu reflexo material na precarização da vida na metrópole paulistana é fruto de uma correspondência imediata entre as contradições que ocorrem no espaço e as contradi7 Linsalata, 2015, p. 76, tradução nossa. 8 KAPP, Silke. Grupos sócio-espaciais ou a quem serve a assessoria técnica. Rev. Bras. Estud. Urbanos Reg., São Paulo, vol. 20, 2018, p. 232. 9 STANEK, Lukasz. Henri Lefebvre on Space: Architecture, Urban Research, and the Production of Theory. Minnesota: University of Minnesota Press, 2011, p. 129, tradução nossa.


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ções do espaço. Para Lefebvre, “as contradições do espaço fazem operativas as contradições sociais”10 . Tais contradições espaciais “‘expressam’ conflitos entre interesses e forças sócio-políticas”, de modo que “é somente no espaço que tais conflitos são efetivamente atuantes, e é tal condição que os torna contradições do espaço”11. Dessa forma, a predatória política pública de acumulação por espoliação urbana em São Paulo, fortalecida no ambiente neoliberal, mas consolidada historicamente como política oficial ao longo do século XX, não apenas cria um território fragmentado e conflituoso, como também é alimentada por esta forma espacial. A necessidade da construção de bairros e moradias precárias, onde a violência, a vulnerabilidade e a transitoriedade é intrínseca aos símbolos e significados do espaço, é objetivamente uma condição da manutenção da forma social contraditória na qual se posiciona a população urbana na periferia do capital. Neste sentido, o comum, enquanto práxis de grupos sócio-espaciais críticos a estrutura espoliativa contemporânea, apresenta um contraponto ao mesmo tempo programático, morfológico e simbólico do ponto de vista da produção do espaço na cidade. Assim, há no comum não apenas uma proposta de contraconduta sobre os meios de sociabilidade e governamentalidade neoliberais, como também um meio de construção de cidade que sustenta a disputa por uma sociedade verdadeiramente democrática. 3.2 - Sobre a obra de Pierre Dardot e Christian Laval Enunciado na conclusão do livro A nova razão do mundo, a recuperação teórica e o panorama histórico acerca dos comuns é desenvolvida por Dardot e Laval como modo de alimentar o arcabouço prático e conceitual de uma ordem que, a partir da década de 1990, ganha corpo no debate crítico ao modo de produção capitalista, sobretudo no contexto do neoliberalismo contemporâneo. Para tanto, a dupla publica, cinco anos após o ensaio sobre a sociedade neoliberal, um profundo estudo sobre as origens e as formas de organização dos commons, que acreditam ser “a razão alternativa”12 para além do regime predatório em que hoje nos encontramos. Assim, o livro Comum: ensaio sobre a revolução no século XXI é publicado de modo a elucidar as bases epistemológicas de uma práxis 10 LEFEBVRE, Henri. The production of space. Oxford: Blackwell, 1991, p. 365, apud. Stanek, 2011, p. 180, tradução nossa. 11 Lefebvre, 1991, apud. Stanek, 2011, p. 180, tradução nossa. 12 Dardot e Laval, 2009, p. 402.


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coletiva pautada na comunização das relações sociais e dos meios de produção. A obra é dividida em três eixos principais: o primeiro, apresenta as origens do comum no debate contemporâneo. Parte de uma análise histórica no campo do direito romano, observando, em uma estrutura onde impera o pêndulo entre o público e o privado, a existência de uma gama de objetos jurídicos que não se adequam ao domínio do Estado, e tampouco de um indivíduo em particular: são, por excelência, comuns. Esta ordenação social pautada na ordem do coletivo é recuperada não apenas no aspecto da estrutura legal a qual faz referência, mas também como o arcabouço epistemológico que ela dispõe sobre a práxis do comum. Neste sentido, os autores inserem o debate da forma comunitária dos commons no contexto das experiências socialistas. Desde a formulação de uma ordem cooperativista dentro da religião católica, até a produção teórica do socialismo científico e os Estados socialistas, os autores retomam criticamente tais experiências até a derradeira década de 1990, que marca não apenas o fim da URSS, como também o fortalecimento do neoliberalismo enquanto forma hegemônica do capitalismo. Neste cenário, os Dardot e Laval observam o surgimento do comum como um meio de resposta aos desequilíbrios contemporâneos, apontando os marcos práticos e teóricos desta retomada. Por fim, estabelecem um panorama da economia política dos comuns dentro do domínio dos meios de produção e reprodução da vida cotidiana pautados pelo mercado. Portanto, a primeira seção do livro busca responder às questões de quais são as origens dos comuns, o que são, qual a relevância deste debate dentro das experiências socialistas e como ele se insere no contexto do capitalismo contemporâneo. O segundo eixo do livro tem o propósito de esmiuçar possíveis formas de composição jurídica e institucional do comum. Para tanto, partem novamente de uma leitura do direito romano, observando criticamente os meios de produção desta forma jurídica: por quem ela é feita e para quais objetos é aplicada. Tratam dos limites de uma estrutura legal pautada na propriedade - seja ela privada ou pública - de elementos “inapropriáveis” - a saber, os comuns - e reconhecem o entrave teórico posto sobre o direito romano no que diz respeito à participação coletiva no processo de formação dos regimentos sociais. O processo comum de formação de leis e jurisprudências é abordado tomando como objeto a Common Law britânica - que, por sua vez, não responde integralmente à busca por representatividade no processo participativo do aparato jurídico. Por fim, os dois últimos capítulos abordam a práxis do comum e suas formas institucionais, concluindo o estudo sobre os meios materiais de constituição da


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ordem comunitária enquanto projeto de enfrentamento da governamentalidade neoliberal. O último eixo do livro corresponde a nove proposições políticas do comum, que levam em conta os meios jurídicos e institucionais esmiuçados na seção anterior. Por ser uma especulação acerca das possibilidades revolucionárias do comum, colocando-se como um projeto utópico de organização social em nível global, tamanha distância entre a experiência empírica e a proposição política não contribui para o estabelecimento de relações entre teoria e prática - objetivo final deste trabalho. Por outro lado, as duas primeiras seções do livro compõem, cada uma a seu modo, contribuições fundamentais para a pesquisa. A primeira pela sua contextualização histórica dos comuns no debate sobre o desequilíbrio social na era do neoliberalismo; a segunda, pela leitura da estrutura do comum, estabelecendo as bases conceituais para compreensão das possíveis formas de organização comunitária de contraconduta à governamentalidade neoliberal. Dessa forma, abordo a primeira seção como meio de apresentar a teoria dos comuns: o estado da arte desta categoria comunitária, tão candente no debate prático e acadêmico contemporâneo. Em seguida, passo à segunda parte do livro, onde cotejo a práxis jurídica e instituinte do comum, segundo Dardot e Laval, com a experiência da ocupação Vila Nova Palestina, do MTST, que insere os commons na produção urbana da contestação e da luta por moradia na cidade de São Paulo - e que será apresentada com maior esmero adiante neste trabalho. 3.3 - A práxis do koinónen Como forma de introduzir-nos ao estado da arte acerca dos commons, os autores buscam a origem etimológica do termo “comum”; informação esta que direciona a compreensão da práxis estudada per se. Partindo das línguas indo-europeias, designa-se munus a relação social de simultânea dívida e dádiva: “designa o que deve ser ativamente cumprido - um culto, uma função, uma tarefa, uma obra, um cargo - e o que é dado em forma de presentes e recompensas”13 . Antes de qualquer atribuição que carrega a conotação de “reciprocidade” - mutuum, em latim, que é derivado de munus - o termo expressa um pacto coletivo da recompensa pelos atos prestados em uma comunidade: “É o que se encontra tanto na designação latina do espetáculo público dos gladiadores (gladiatorum munus) como no termo que exprime a estrutura política de uma cidade 13 Id., 2014, p. 24


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(municipium) formada pelos cidadãos do município (munícipes). É compreensível então que immunitas remete à dispensa de encargo ou imposto e possa ocasionalmente referir-se, no plano moral, à conduta daquele que, por egoísmo, tenta fugir de seus deveres para com os outros. É compreensível, sobretudo, que os termos communis, commune, communia, ou communio, todos formados a partir da mesma articulação de cum e munus, queiram designar não apenas o que é ‘posto em comum’, mas também, e principalmente os que têm ‘encargos em comum’. Portanto, o comum, o commune latino, implica sempre certa obrigação de reciprocidade ligada ao exercício de responsabilidades públicas”14.

Assim, o termo comum, em sua etimologia latina, expressa o princípio da coobrigação aos indivíduos que executam a mesma atividade: a coletivização das dívidas, assim como das dádivas àqueles que se dispõem a executar as mesmas tarefas. Trata-se, portanto, de um fenômeno social pautado no agir comum, e que corresponde à obrigação coletiva de contraprestações àqueles que participam ativamente das cotidianas responsabilidades sociais. Esta compreensão de origem latina aproxima-se da terminologia grega - sobretudo no léxico aristotélico - koinón (comum) e koinónen (pôr em comum). Segundo o filósofo, é somente pelo ato de pôr em comum as deliberações da vida política é que se alcança os meios verdadeiramente justos de construção social. A instituição do koinón estrutura-se sobre a comunhão de “palavras e pensamentos”15, de modo que se construa coletivamente regras, signos e significados sociais sob o preceito da reciprocidade entre todos os integrantes do comum. Para Dardot e Laval, este é um fundamento “matricial” de uma teoria revolucionária dos commons, uma vez que “ela faz daquela prática a própria condição do comum, em suas dimensões afetivas e normativas”. Se a origem na terminologia dos comuns nos oferece um caminho a percorrer entre os conceitos de commune latino e a koinón aristotélica, por outro lado apresenta impasses e desvios semânticos relacionados a imprecisões discursivas que apontam direções estrategicamente pouco pertinentes. Para Dardot e Laval, trata-se de uma incongruência que reside no uso indiscriminado dos termos comum, bem comum e bens comuns, equivocadamente tratados como sinônimos por grande parte da literatura e dos estudos acerca deste tema. Segundo os autores, a noção de um bem comum remonta a tradição da igreja católica e do Estado soberano ocidental de um “princípio de ação e conduta de todos os que têm corpos e almas sob sua responsabilidade”16. Tomando como base uma leitura rousseauniana de bem comum como a vontade geral da população, ao 14 Ibid., p. 25. 15 Ibid., p. 26. 16 Ibid., p. 27.


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poder superior do Estado é entregue o dever público de garantir esta somatória das necessidades e interesses individuais. Trata-se de uma “doutrina da soberania, que transforma o Estado em detentor do monopólio da vontade comum”, onde se faz presente a “substituição da utilidade comum pela utilidade pública, no sentido estatal da expressão”17. De modo semelhante, a espiritualização do bem comum por parte da religião católica garantiu à igreja um poder político respaldado na crença de seus súditos na instituição que carregaria os saberes e as normas de conduta idealizadas por Deus. Tanto via religião, quanto pelo poder público, a construção de uma estrutura social altamente hierarquizada de submissão ao divino o u ao chefe de estado pelo monopólio do bem comum é, para Dardot e Laval, “ponto fundamental na história política ocidental”18. A relação entre Estado e Igreja católica - face institucionalizada da religião - diante do monopólio do bem comum é marcada por promiscuidades, embates e alianças, e pouco nos interessa entrar nas miudezas históricas destes dois baluartes da civilização ocidental. Entretanto, é crucial observar que tanto o domínio público estatal, quanto religioso e espiritual das vontades coletivas de uma sociedade, utilizam-se da noção de bem comum como sustentação ética e política de manutenção de poder. Segundo Dardot e Laval, o amálgama dos termos bem comum e comum encobre o fato de que, enquanto o primeiro consiste de uma concepção que reflete os interesses gerais de uma sociedade, o segundo é, essencialmente, uma atividade humana normativa e produtiva. Portanto, enquanto a noção de bem comum teológica e pública é carregada de uma finalidade moral que sustenta uma soberania institucional, o termo comum é, essencialmente, uma práxis que envolve e constrói a vida cotidiana. O segundo ponto de esclarecimento proposto por Dardot e Laval sobre a literatura e a epistemologia dos commons trata da diferença entre os termos comum e bens comuns - no plural. Para os autores, a origem jurídica e econômica desta concepção carrega o sentido de “objeto apropriável” aos comuns, e remonta à estrutura do direito romano. Como apontado nas chamadas Institutas de Gaio, o direito romano é estruturado, em sua base, na distinção entre direito divino e direito humano. De um lado, o primeiro é composto pelos objetos sacros (destinados aos deuses celestiais), religiosos (destinados às deidades domésticas) e santos (espaços urbanos). Por outro lado, o direito humano é dividido entre as coisas públicas (inapropriáveis e não comercializáveis) e privadas (apropriáveis e comercializáveis). De acordo com o documento, tanto as 17 Ibid., p. 31. 18 Ibid., p. 31.


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coisas públicas quanto aquelas pertencentes ao direito divino são compreendidas como res nullius in bonis: “coisas pertencentes a um patrimônio que não é de ninguém”19. Não são lugares ou objetos naturalmente inapropriáveis: pelo contrário, foram tornados assim por um ato legislativo que garante seu uso irrestrito aos homens ou aos deuses. Às coisas naturalmente inapropriáveis - seja pelo fato de ser um recurso em extrema abundância, seja por ser de caráter inapreensível, impossível de ser delimitado - é dada a forma jurídica de res communis. Dessa forma, Dardot e Laval procuram demonstrar como as coisas comuns são inapropriáveis por natureza: não sendo consideradas uma categoria jurídica, é impossível, dentro desta estrutura legal, que se exerça qualquer tipo de apropriação regulamentada destes bens. O conceito jurídico de res communis no direito romano configura todas as coisas naturalmente inapropriáveis, seja pela abundância, seja pela incomensurabilidade, e todos os bens são por ele reconhecidos como resultado de uma análise de caso específico. Inexiste, portanto, um padrão predefinido na formulação da estrutura legal que fundamenta a nomeação legal dos bens comuns. De acordo com os autores, trata-se de uma demonstração da enorme dificuldade de se definir, no direito, a procedência dos recursos naturais antes da própria ratificação da forma jurídica romana: “É difícil entender como a noção de uma coisa que seria por natureza inapropriável (res communis) poderia ter se constituído como categoria plenamente jurídica nesse contexto, uma vez que todas as coisas reconhecidas por esse direito são, na realidade, construídas por ele em relação a um caso ou processo. Trata-se de uma noção concebida como ‘uma espécie de receptáculo’ que agrupa todas as coisas cuja inapropriabilidade se fundamenta em sua própria natureza. O que ela evidencia, mais uma vez, ‘é a constância das dificuldades para qualificar juridicamente as entidades naturais que preexistem ao direito’”20.

Tamanha dificuldade de compreensão sobre o que constituem os bens comuns (res communis) sugere uma conveniência em superar este conceito jurídico em prol da noção de uma irrestrita inapropriabilidade dentro do direito. Diferentemente das coisas públicas, ratificadas no direito romano como inapropriáveis e de administração do Estado (res nullius in bonis), às coisas comuns não são dispostas proteções legais contra seu consumo exagerado ou exploração indevida. Deste modo, a noção de bens comuns corresponde a uma compreensão turva, do ponto de vista prático e jurídico, acerca dos elementos da vida fora da esfera do Estado e do privado, e tampouco sendo englobado dentro 19 Ibid., p. 37. 20 Ibid., p. 40.


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do direito divino. A ausência de uma pessoa jurídica ao qual o res communis faz referência impacta no fato de que os bens comuns sejam, sobretudo, elementos reconhecidamente importantes para a manutenção da vida cotidiana, mas que fogem de qualquer controle sobre seu domínio. Em último caso, a própria aplicação da noção de “patrimônio da humanidade” sobre os objetos comuns exige que a humanidade enquanto tal seja uma pessoa jurídica, o que é uma absoluta incongruência, impossibilidade dentro da estrutura do direito romano. Desta forma, conclui-se que tanto a noção de bens comuns - herdada do direito romano, corresponde aos elementos (res) pré jurídicos fora da esfera do Estado e da apropriação privada e aos quais o direito divino não faz referência - quanto o bem comum - conceito ético político da vontade geral de uma sociedade, ancoragem da soberania ao qual se estabelecem os poderes religiosos e estatais - correspondem ao que se compreende como o comum propriamente dito. Trata-se de um preâmbulo que resguarda sua devida importância, uma vez que estes termos são amplamente utilizados como sinônimos no debate contemporâneo acerca da temática dos commons enquanto contraconduta ao caráter neoliberal do modo de produção capitalista. Distinto de um anseio coletivo ou um patrimônio pré jurídico de imprescindível relevância na vida cotidiana, os comuns correspondem, como aponta a filósofa Judith Revel, ao fundamento sobre o qual se estabelecem as comunidades e a noção de copertencimento21. Construção histórica baseada na reciprocidade, na coletivização de tarefas, responsabilidades, simbolismos, significados e ambientes, o comum não apenas se distancia de elementos materiais definidos pela lei ou de valores atribuídos a uma sociedade, como também de uma ordem indireta em que se estabelece a relação interpessoal. Baseada em uma noção kantiana de senso comum, onde imperam as capacidades individuais de se desprender das formas particulares de juízo para apreender as perspectivas e julgamentos universais e coletivos, há na compreensão universalizante e abstrata do comum um entrave à sua plena realização. Não obstante a leitura proposta por Kant, onde o senso comum é a capacidade social e política de formação de uma moral coletiva, ela se coloca em um plano deslocado da dimensão do agir cotidiano. Como aponta Arendt, “Kant diz como levar os outros em consideração; não diz como associar-se aos outros para agir”22. Diametralmente oposta à posição kantiana de construção da universalidade dentro do comum, Hegel estabelece uma divisão entre o comum e o 21 Ibid., p. 44. 22 Ibid., p. 47.


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universal: entre a esfera que envolve o coletivo e a que compõe a humanidade. Segundo o filósofo alemão, base do materialismo histórico dialético marxiano, o universal é composto por algo que nos define enquanto humanidade, um elemento essencialmente interno ao indivíduo; por outro lado, o que nos é comum é fruto de uma realidade exterior, física, material e acidental. Na esteira do hegelianismo, para Dardot e Laval, o comum não deve ser compreendido como condições morais, abstratas e universais, como as apresentadas por Kant, mas sim como uma relação prática e material de co-atividade: uma verdadeira construção coletiva da realidade. Assim, para a dupla francesa, define-se o comum como uma práxis coletiva, pautada na reciprocidade, na co-responsabilidade e na comunização democrática dos meios materiais de construção da vida cotidiana. 3.4 - Três lógicas socialistas A proposta de uma construção de espaço e uma sociedade do comum - pautada na reciprocidade e na co-atividade - ganha força dentro de um contexto em que não apenas a face neoliberal do capitalismo avança em seu projeto espoliativo e predatório, como também golpeia-se profundamente as utopias desenvolvidas pelas experiências socialistas que até então conhecíamos. A década de 1990 carrega, em uma mão, o sepultamento de dois grandes processos revolucionários que permitiram o vislumbre de uma organização social para além da economia política do capital - a saber a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas e a Iugoslávia -, enquanto a outra, de punho cerrado, golpeia direitos civis e a frágil democracia liberal em prol do desenvolvimento econômico em nova e inexorável marcha. Neste ambiente em que projetos de contestação ao modo de produção capitalista exigem ser criticamente revisitados e reformulados, os comuns surgem no debate acadêmico e empírico como a alternativa contemporânea à vida contraditória sob o modo de produção capitalista. O comum insere-se, assim, em uma linhagem de epistemologias socialistas que buscam reestruturar a sociedade em busca de uma democracia de fato. A contextualização da epistemologia do comum, como contraconduta diante da governamentalidade neoliberal, e buscando a aproximação do real dentro da utopia, é posta por Pierre Dardot e Christian Laval ao cabo da recuperação histórica das experiências que marcaram as lutas e filosofias do movimento socialista. Como apontam os autores, “só haverá um novo pensamento possível do futuro se nos permitirmos reexaminar o que foram as grandes formas do co-


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munismo”23. Esta reaproximação crítica é objeto do segundo capítulo do livro, que apresenta três principais correntes na qual o comunismo fora compreendido: a comunidade de vida - compreendida de modo distinto pelo viés platônico e cristão; o socialismo científico marxiano, ordem definida “pela capacidade de auto-organização, pelo dinamismo de suas forças imanentes, pelas faculdades e energias de seus membros, que existem coordenar-se de forma democrática para desenvolver-se plenamente em seu gênero”24; e, por último, o comunismo soviético de Estado, implantado com base no ideal do centralismo democrático da organização partidária leninista, onde impera a voz de comando do partido. Constituem-se, assim, três escalas de organização comunista: a comunidade, a sociedade e o Estado; uma divisão que, para além do posicionamento histórico dos comuns nas formações e filosofias socialistas, aponta as principais características de uma luta com imensas particularidades em suas reivindicações e proposições. Partindo da filosofia clássica, Dardot e Laval procuram observar aquela que consideram a fonte primária do pensamento comunista: A República de Platão. Nesta obra fundamental e basilar da teoria política que trata da ordem democrática, Platão discute os princípios básicos do que acredita ser a forma ideal de organização social, a qual somente será alcançada pelo amálgama entre a comunidade política e a “comunidade de corpo e alma”25 dos homens. A relação entre espaço construído e estrutura social, de acordo com a filosofia platônica, compreende a forma da cidade como uma unidade coesa entre as atividades materiais e imateriais de seus habitantes; de modo que suas partes elementares - como casas, praças, edifícios representativos, monumentos, etc. - reflitam e sejam refletidas em sua totalidade urbana. Partindo deste princípio organizativo, propõe a comunidade de bens como forma regimentar ideal no qual se estabelecem os laços interpessoais. Fundamento onipresente na construção coletiva da cidade, antes de apresentar como base jurídica de apropriação em negação ou oposição direta à propriedade privada, a comunidade de bens é, para Platão, uma condição moral para a constituição ideal de cidadãos em uma sociedade verdadeiramente democrática. A coesão entre espaço e sociedade presente na ordem comunitária, fundamento do comum e ponto de partida da argumentação de Dardot e Laval, é tratada, portanto, como um meio de formação de individualidades idealizado 23 Ibid., p. 66. 24 Ibid., p. 66. 25 Ibid., p. 69.


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por Platão. Não obstante seu caráter basilar na procura de um horizonte socialista de democracia, a comunidade de bens platônica fora objeto de variadas interpretações ao longo dos séculos, sobretudo no que diz respeito à relação entre o campo moral e espiritual do homem e a apropriação do espaço. Destaca-se, dentro deste arcabouço referencial, a compreensão posta pela religião católica sobre a posição da comunidade na origem de uma sociedade igualitária. Como apontado no capítulo 33 dos Atos dos Apóstolos26, o catolicismo prega por uma abordagem sobre as posses dentro da comunidade de forma distinta do idealismo platônico. Diferentemente da ideia de que a comunidade de bens deve refletir o todo de um grupo social, ou seja, que os bens sejam subordinados ao grupo como um todo, a filosofia católica prega que se impeça qualquer tipo de apropriação privada do que deve, em suma, pertencer à todos os participantes da comunidade. Enquanto, de um lado, a sociedade platônica proposta em A República exige que o cidadão expanda os domínios de seus saberes, buscando o conhecimento verdadeiro dentro da participação política comunitária; de outro, a comunidade monástica católica obriga que as vontades particulares sejam subordinadas ao mestre: o pastor ou representante dos maiores postos na hierarquia clerical. Em suma, mesmo que haja divergência entre a filosofia platônica e católica quanto à apropriação dos bens - onde o domínio sobre os objetos cotidianos é posta entre Deus e o homem - ambas as leituras compreendem, na estrutura comunitária de sociedade, os meios de plena elevação e desenvolvimento espiritual e intelectual. É pela relação dialética presente na participação “de corpo e alma” na construção coletiva, mútua e cooperativa da comunidade e a formação moral individual, tanto Platão quanto os cânones do catolicismo encontram, na ordem comunitária, os meios de construção de uma sociedade ideal. A imagem utópica de uma comunidade de bens, como construção teórica que viabiliza os meios materiais de uma moral individual e coletiva ideal, fora, portanto, objeto de inabalável estima da ciência política ao longo dos séculos que enlaçam a urdidura d’A República, a constituição da hegemonia espiritual da religião católica sobre a civilização ocidental e o contemporâneo debate sobre os comuns. Ao longo deste vasto período, entretanto, esta busca prática e intelectual deixa de ter sua ancoragem em uma moral idealizada, de modo que as reivindicações socialistas passam a tomar como objetivo angariar formas econômicas, de produção, de consumo e de bem estar. Como observam Dardot e Laval, “a eterna aspiração à comunidade de bens será realizada com muito mais 26 Apud. ibidem, p. 73.


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facilidade pelos efeitos do ‘progresso industrial’ do que nos tempos antigos, quando estava em jogo apenas o sacrifício da riqueza pessoal”27. Estaria no desenvolvimento dos meios de produção proporcionados pela indústria, portanto, os meios de acesso e construção de uma comunidade de bens imaginada por tantos autores referenciais à teoria política comunista. Neste ponto, o resgate histórico promovido pelos autores encontra-se com as perspectivas revolucionárias desenvolvidas ao longo do século XIX pelos filósofos do socialismo científico, que encontram nas próprias contradições da economia capitalista os meios de construção de uma comunidade livre de uma crônica exploração entre classes. Nesta segunda escala em que se estruturam as experiências socialistas a saber, a escala da sociedade per se - a teoria comunista é moldada pela candência insurgente de Karl Marx e Friedrich Engels. Revolucionária por natureza, a proposição comunista destes autores busca a construção de uma sociedade onde as relações de exploração e opressão de classe, assim como a alienação individual e coletiva acerca das amarras e contradições da vida cotidiana sejam extirpadas, completamente demolidas. Tomando como base a filosofia materialista histórica dialética, tamanha superação seria resultado das próprias contradições sociais consolidadas ao longo do tempo; mesmo que sejam aplicados os meios de sociabilidade do modo de produção capitalista com preeminência global, sua suprassunção dependeria de uma resposta formulada com base nas especificidades locais de cada civilização por ela lapidada e usurpada. Dessa forma, insuficiente seria fundamentar apenas uma estratégia prática que garanta maiores possibilidades de crescimento individual e de desenvolvimento coletivo da produção e reprodução da vida cotidiana: é pela singularidade histórica de um povo que se pode vislumbrar os meios “devolver aos membros da sociedade o domínio total de sua ação, possibilitando assim o advento de uma sociedade livre de qualquer obstáculo interno, uma sociedade ‘em ato’, segundo a expressão que Proudhon toma de empréstimo a Saint-Simon”28. Para a construção deste projeto revolucionário, a classe proletária assume papel central: seria ela que, livre das amarras da dominação e da alienação coletiva, passa para o papel de administração das forças produtivas em suas necessidades e da construção da verdadeira autonomia coletiva. Como apontam Dardot e Laval: 27 Dardot e Laval, 2014, p. 77. 28 Ibid., p. 79.


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“A revolução marcaria a passagem de uma sociedade regida por relações políticas de obediência para uma sociedade inteiramente dedicada à atividade administrativa, atividade voltada para as coisas, na qual as relações de dominação não poderiam intervir. A classe dos industriários, ou proletários, anteriormente dominada pelo poder da política ou do capital, realizaria um movimento de reapropriação que a tornaria dona de si mesma e de seu agir. Ela substituiria a autonomização das instituições pela dinâmica de suas forças e pela imediatidade de suas necessidades”29.

Essencialmente revolucionária, a práxis comunista proposta por Marx e Engels, portanto, busca a remodelação completa das relações sociais, tomando como base e estopim a superação das contradições postas historicamente pelo regime capitalista. Segundo os autores alemães, a organização das forças de trabalho permite com que, de um lado, o indivíduo proletário participe de uma constante e intensa integração intraclasse; e de outro, que esta classe tenha o domínio sobre os meios materiais de reprodução e produção da vida cotidiana. Por fim, destaca-se o papel crucial do campo tecnológico e do maquinário para a construção de uma autonomia no desenvolvimento intelectual individual e coletivo. Baseada na ciência social do materialismo histórico dialético, que ao mesmo tempo apresenta as “armas da crítica” do pensamento marxiano sobre a economia política capitalista os meios práticos de proposição de uma nova sociedade, Dardot e Laval intitulam como associação de produtores este importante marco nas experiências de socialistas. Dentro da vasta linhagem histórica das imagens e experiências de sociedades idealmente estruturadas e operantes, é inegável o peso do legado da teoria política marxiana na consolidação de uma práxis revolucionária que efetivamente aproxima utopias socialistas de sua forma real e verdadeiramente material. A construção desta nova sociedade, cujo movimento de superação de suas contradições internas, fruto das mesmas incongruências criadas e solidificadas no âmago das classes dominadas e dominantes, tem sua metodologia desenvolvida pela corrente marxista da filosofia desde meados do século XIX. Desde então, colhe inúmeros frutos de contribuições práticas e intelectuais; e neste hall de epistemologias socialistas que iluminam o que até então estaria obscurecido nesta insurgente perspectiva, é resguardada a devida importância ao trabalho de Lênin na construção da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Erguida sobre a ideia antiimperialista da proposta centralista democrática de Lênin, a URSS fora, sobretudo na primeira metade do século XX, a grande esperança 29 Ibid., p. 79.


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de um modo de produção alternativo ao capitalismo, e baseado nos preceitos e ideais socialistas. Assim, a terceira e última experiência socialista observada por Dardot e Laval trata do socialismo de Estado, liderado pelo projeto político soviético. Em primeiro lugar, os autores tecem uma linha crítica a esta organização que não cabe neste espaço, uma vez que apresentam argumentos amplamente contestados por uma extensa bibliografia, a iniciar pelo livro O marxismo ocidental, de Domenico Losurdo30. De todo modo, a derradeira escala tratada nesta etapa do livro trata da contextualização do debate dos comuns em sua relação com a ordem institucional nacional, fazendo-se pertinente sua inserção dentro da recuperação histórica proposta. Retomando a aproximação sobre o socialismo em sua forma estatal, os autores apontam, dentro da URSS, a existência de uma ordem baseada na subordinação do trabalho da classe operária ao Estado; este, por sua vez, domina os meios de produção coletivos da vida cotidiana. Constituiu-se, assim, um controle dos comuns pelo mecanismo jurídico da propriedade estatal onipresente. Apesar de apresentarem descrenças para com a presença do Estado na organização dos comuns, consideram a forma institucional alcançada pela revolução húngara como um excelente referencial de autonomia política comunitária. Estruturada em conselhos operários, a revolta teria tido três grandes méritos. Em primeiro lugar, permitiu estabelecer um organismo político de participação democrática e direta. Em segundo, ultrapassou os limites dos ambientes de trabalho, fundamentando “coletividades concretas”. Por último, ao estabelecer regras de autogestão, promoveu o combate às normas de conduta padronizada de trabalho. Nestes conselhos não seriam acatadas ordens políticas sem a participação geral e coletiva nos processos deliberativos, de modo que somente a atividade comunitária sustentaria um regime de coobrigações nas tarefas da vida cotidiana. Portanto, a junta insurgente proposta na Hungria em 1956 carregou princípios extremamente caros à construção dos comuns, proporcionando a institucionalização momentânea da autogestão com base nos princípios socialistas. Dessa forma, desde as experiências revolucionárias na Hungria e URSS no século XX à publicação de A República de Platão, Dardot e Laval apresentaram, neste capítulo, três lógicas socialistas fundamentais. A primeira, chamada comunidade dos bens, pressupõe uma união social baseada na igualdade e no fim da propriedade. A segunda, da associação de produtores - ou comunismo 30 LOSURDO, Domenico. O marxismo ocidental: como nasceu, como morreu, como pode renascer. São Paulo: Boitempo, 2017.


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científico, de acordo com a teoria marxiana - parte da coordenação de atividades apartadas e diversas a partir do princípio de justiça social. Trata-se de um modelo que ordena o comum por meio do modo de produção socialista. Tal organização é o resultado de um movimento de superação comum das relações capitalistas a partir de uma condição social formada por esse mesmo modo de produção. Por último, a forma do Estado burocrático centraliza e ordena a vida cotidiana, amputando a autonomia da coordenação coletiva. Para Dardot e Laval, ao contrário das correntes apresentadas, o comum não deve ser um modo de produção realizado na esfera do estado Estado, tampouco deve ser por ele controlado; imposto por um ente fora do grupo ao qual ele diz respeito. Ao contrário, como observado no caso da experiência húngara, a autonomia gestionária do comum exige a co-participação e co-obrigação dos indivíduos que o compõem. Cabe reconhecer na práxis dos comuns a herança das três lógicas analisadas: a ordem comunitária como unidade soberana; a procura de alternativas práticas e jurídicas que substituam o domínio privado sobre a organização comum; a base materialista histórica dialética, que permite fundamentar metodologicamente a suprassunção do modo de produção capitalista por meio de idiossincrasias espaço-temporais; e a autonomia como preceito básico de organização, aplicada tanto à escala local quanto à nacional. Assim, a importância da contextualização histórica do comum no arcabouço teórico e prático de experiências socialistas, antes de uma recuperação romantizada e leviana de uma estrutura social do passado, trata o comum como uma resposta a dilemas e contradições contemporâneas. 3.5 - Contra-hegemonia reposicionada Com o arrefecimento do poder de contestação dos movimentos socialistas e o avanço da economia política neoliberal como modo de produção hegemônico em escala global, a década de 1990 viu emergir, na forma do comum, uma bandeira de insurgência contra a atual fase do capitalismo, além de uma proposição de uma nova sociabilidade. Neste decênio, a precarização dos meios de reprodução social pelas vias do mercado - já brevemente debatida na seção anterior deste trabalho - promove uma incipiente movimentação pelo rearranjo programático de grupos políticos locais e internacionais no sentido de enfrentar o contemporâneo problema da predação capitalista sobre a sociedade e seu espaço. Diante de um fortalecimento e a ampliação jurídica dos direitos de propriedade privada, tomou-se como ponto basilar a necessidade de construção de uma nova ordem mundial sob preceitos diferentes da concorrência, do lucro e


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da superexploração dos recursos comuns, como água, comida, cultura, saúde, educação e a biodiversidade. Mesmo que de modo amplo e pouco unificado no que diz respeito aos métodos de organização, e por mais diversa que seja a definição e a luta dos comuns, a exigência de um novo meio de produção com base na organização comunitária que seja sustentável tanto do ponto de vista do meio ambiente como das estruturas sociais é tida como objetivo central de uma incipiente epistemologia contra-hegemônica. Neste sentido, há o reconhecimento compartilhado entre os movimentos estruturados em torno dos comuns de que a forma jurídica constituída sobre a balança do direito público e privado - herança do direito romano - mais do que insuficiente para a garantir estabilidades sociais e ambientais, é pelas suas vias que são tecidas e legitimadas as contemporâneas pilhagens dos elementos básicos à manutenção da vida cotidiana. Tais apropriações - contempladas pela explanação de Harvey acerca das ordenações espaço-temporais - colocam o embate no plano jurídico em um patamar de centralidade dentro do debate proposto pelos movimentos dos comuns. Ao contrário do senso comum que trata da economia política neoliberal como a redução dos gastos públicos, a desidratação do Estado e o retorno ao laissez-faire, Dardot e Laval apontam que esta doutrina tem em sua raiz o princípio resoluto de um “Estado forte, guardião do direito privado”31. Segundo os autores, a concepção liberal de Estado de direito proposta pelo filósofo Friedrich Hayek, base do pensamento neoliberal, exige que “as regras do direito privado devem prevalecer universalmente, inclusive para as ‘organizações’ que dependem não da ordem espontânea do mercado, mas do Estado”32. Assim, a atuação central do poder público como verdadeiro porta bandeira da ampliação do direito privado - aplicado à própria atuação do Estado - sobre as dinâmicas econômicas da acumulação por espoliação coloca em descrédito o amplamente defendido papel da instituição soberana nacional na defesa dos direitos civis e na contenção de degradações sociais e naturais. Em um cenário onde a promíscua relação entre Estado, mercado e direito privado promove um ambiente de crescente insegurança sobre as mais básicas capacidades de reprodução da vida, os comuns surgem não apenas como o meio contemporâneo de contestação à ordem capitalista, mas também pela solidificação de relações comunitárias e democráticas de proteção e equilíbrio social. Em meio ao inexorável avanço de uma economia política privatista, reco31 Dardot e Laval, 2009, p. 158. 32 Ibid., p. 172.


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nhece-se a insuficiência de uma defesa da atual forma institucional dos Estados nacionais como forma de garantia de direitos básicos de vida. Como apontam Dardot e Laval, não foram poucas as áreas “nos países capitalistas do “centro” ou da “periferia” que abriram ao capital campos de atividade econômica e esferas sociais que estavam fora do domínio direto deste desde o fim do século XIX: cessão de companhias ferroviárias públicas, de empresas estatais de exploração de carvão, siderurgia, estaleiros, produção e distribuição de água, gás e eletricidade, correios, telefonia e televisão; privatização parcial dos mecanismos de assistência social, aposentadoria, ensino superior, educação e saúde; introdução de mecanismos de concorrência e critérios de rentabilidade no conjunto dos serviços públicos”33. O inevitável impacto do avanço predatório do capital privado sobre a soberania de povos e nações, assim como sobre a própria sociabilidade cotidiana foi expressivo: “Em cerca de trinta anos, as desigualdades se aprofundaram, o patrimônio dos mais ricos cresceu vertiginosamente, a especulação imobiliária acelerou a segregação urbana. As formas de integração das classes populares na sociedade nacional foram alteradas, as organizações operárias e os partidos de esquerda perderam a função mediadora, e os dispositivos de redistribuição de renda não desapareceram, mas sua capacidade de integração sofreu diminuição notável. Em resumo, a sociedade se polarizou, fragmentou e despolitizou”34.

Como imediato contraponto à fragmentação e despolitização da vida cotidiana, o movimento dos comuns busca, na ordem comunitária, a construção de uma sociabilidade solidária e cooperativa, onde a formação política é tão objetivamente necessária como a provisão de recursos básicos de subsistência. Na esteira das experiências socialistas supracitadas, sobretudo de base marxiana, a busca por um ideal utópico de sociedade opera de forma dialética com as vicissitudes de nosso tempo, de modo que tamanho isolamento individual e coletivo promovido por uma política de competição e privatização massiva, não apenas é contraproducente para a execução desse ideal, como é um entrave a ser superado. A multifacetada apropriação privada promovida pelo capitalismo neoliberal tem apresentado um aumento vertiginoso da desigualdade e exclusão, a aceleração de desastres ambientais, mercantilização da cultura e comunicação, além de promover a atomização social em indivíduos desconectados e alienados de seus papéis em uma estrutura de exploração de gênero, classe e raça. Neste sentido, para os autores, há na crítica ao Estado - enquanto instituição que executa em escala nacional as necessidades de mercado - e na estrutura jurídica do 33 Dardot e Laval, 2014, p. 104. 34 Ibid., p. 104-105.


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herdada do direito romano - ordenado pela dicotomia entre público e privado - os elementos fundantes de uma organização essencialmente dados pela sociedade civil e em oposição às necessidades do mercado capitalista. Assim, a temática dos comuns surge não apenas como crítica ao poder estatal centralizado e a apropriação privada de recursos essenciais à vida cotidiana na era neoliberal, mas também para demonstrar uma forma social alternativa, cuja práxis emancipatória reside na articulação sob a égide do campo comunitário de ação. Com a derrubada da União Soviética, a abertura comercial da China e a simbólica queda do muro de Berlim, as economias políticas nacionais lograram, no ocaso do século XX, uma inédita sintonia com base em um pujante programa neoliberal e suas instituições chave, como a OMC, FMI e o Banco Mundial. De um lado, a escala global e absolutamente hegemônica na qual atingiu a atual face do capitalismo nos anos 1990 coloca a pauta do “Estado forte, guardião do direito privado” como agenda de governo tanto em países centrais, quanto periféricos; tanto de modo complacente, como por intervenções diretas de agências como o Fundo Monetário Internacional e o exército norte americano. Do outro lado, os efeitos locais e específicos desta política de despossessão em cada região do globo começam a ser perceptíveis e contestadas. Historicamente afetada pela geopolítica do imperialismo, pela posição de subalternidade nas relações de produção capitalista e perpétuo desmonte das formas tradicionais e ancestrais de vida, assim como por ter sofrido demasiadamente cedo os impactos dos ajustes estruturais propostos pelo FMI, a América Latina consagra-se como um território onde a ordem comunitária é tida como a solução em face da apropriação desenfreada. Neste caso, como aponta Dardot e Laval, a insurgência contra a privatização da água possibilitou a formação de práticas e estruturas de autogoverno que, mesmo não sendo novas e duradouras, possibilitaram a participação direta dos usuários da água no processo de gestão e deliberação em formas comunitárias democráticas35. Outra singular experiência latinoamericana de articulação pelo comum é a do movimento zapatista, no México, “uma vez que se caracteriza em especial pelo elo estreito que procura estabelecer, na teoria e na prática, entre a defesa das comunidades indígenas de Chiapas, vítimas de expropriação e exploração, e a ‘luta a favor da humanidade contra o neoliberalismo’”36.

Como veremos adiante no caso da ocupação Vila Nova Palestina, mas que já é enfatizado por Dardot e Laval nos exemplos de Cochabamba e no 35 Ibid., p. 116. 36 Ibid., p. 115.


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movimento zapatista, há, no âmago das contemporâneas experiências dos comuns, uma abordagem multiescalar de problemas. De um lado, a conjuntura local - com o desmonte da política de proteção aos povos indígenas no México, privatização da água na Bolívia e espoliação da moradia no Brasil - onde os efeitos do avanço dos direitos de propriedade privada afetam o cotidiano de forma imediata e palpável. De outro, o alinhamento das economia políticas nacionais em torno do projeto neoliberal nos anos 1990, consolidando uma orientação privatista na agenda internacional. Tanto os desequilíbrios sócio espaciais - presenciados e vividos na esfera local - quanto a uníssona posição de instituições soberanas na geografia deliberativa no que tange o futuro das nações são objeto de crítica e contestação do movimento dos comuns. Dessa forma, as atuais organizações coletivas sob preceitos comunitários que compõem o arcabouço epistemológico dos comuns estruturam-se em dois eixos principais. Em primeiro lugar, a compreensão da correlação imediata entre a governabilidade do capitalismo neoliberal - implementada e operante em escala global - e as condições materiais de pauperismo e espoliação cotidiana. Em segundo, o confronto ao promíscuo elo entre Estado e mercado, sustentado juridicamente pela herança romana do direito público e privado, e que não apenas legitima o processo de apropriação dos recursos essenciais para a vida desde água, terra, biodiversidade, até a cultura e os saberes populares. Em suma, os comuns inserem-se no leque de experiências socialistas apresentando como resposta às atuais contradições do modo de produção capitalista um meio comunitário da produção de espaços e sociabilidades. Coloca-se como uma forma não-capitalista que não apenas questiona a dicotomia entre público e privado, como também é, ele próprio, sua alternativa e superação. 3.6 - A origem econômica dos comuns Enquanto a economia e filosofia política clássica trata a oposição entre mercado e Estado, entre público e privado, como elemento basilar para o bom funcionamento da sociedade, a filosofia política e econômica dos comuns procura demonstrar que existe uma forma de organização alternativa factível para além desta dicotomia. Tamanho contraponto fora esmiuçado pela primeira vez ainda distante de qualquer perspectiva socialista, como forma de atualizar reconhecidos desequilíbrios do modo de produção capitalista pela vencedora do prêmio Nobel de economia de 2009, a estadunidense Elinor Ostrom. No ano de 1990, a autora apresenta seu estudo intitulado “Governando os Comuns: a evolução


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das instituições para a ação coletiva”, onde defende que os commons são os recursos naturalmente compartilhados, essenciais para o pleno desenvolvimento da vida cotidiana, e são geridos de forma mais eficiente por comunidades e por coletivos do que pelo mercado ou pelo Estado. Seguindo a linha traçada por Ostrom, do mesmo modo que certos bens são por natureza públicos e privados, haveria um grupo de bens que são naturalmente comuns, sendo melhor geridos na ação coletiva. Embora a pesquisa da norte-americana encontre seu limite na análise de um fenômeno essencialmente interno ao modo de produção capitalista, buscando mais alimentar sua sobrevida ao incluir os comuns dentro da contraditória estrutura do capital do que propriamente tomá-los como fundamento de uma nova sociabilidade, Dardot e Laval reconhecem a importância da contribuição teórica de Ostrom como uma pedra basilar na constituição prática e epistemológica de uma experiência contra-hegemônica dos comuns37. Sendo assim, a instituição dos comum, pela forma comunitária, proporcionaria uma administração mais eficiente e sustentável de recursos em pequena escala, em adição à apropriação estatal e de mercado, colocando-se como um terceiro meio de garantia jurídica de apropriação: aos comuns (instituição) confere a gestão dos bens comuns (propriedade). Como visto anteriormente, o termo bens comuns faz referência a uma condição jurídica e econômica de um elemento passível de ser apropriado e cuja finalidade é de fundamental importância a uma comunidade. Entretanto, esta categoria é descartada pela economia clássica, estruturada sobre a dualidade entre bens públicos e privados. Estes, por sua vez, são determinados de acordo com suas características naturais de exclusividade e rivalidade. Trata-se por exclusivo quando o proprietário de um bem exerce seu direito de alienação e concede acesso apenas àqueles indivíduos que estão dispostos a pagar pelo preço exigido. Por rival, entende-se que a aquisição deste bem implica na diminuição do montante total disponível à sociedade, de modo que o consumo de um indivíduo impede o acesso deste mesmo bem a outrem. Em contrapartida, “um bem não exclusivo é um bem que não pode ser reservado por seu detentor aos que estão dispostos a pagar por ele; um bem não rival é um bem ou um serviço que pode ser consumido ou utilizado por um grande número de pessoas sem custo suplementar de produção, porque o consumo de uma não diminui a quantidade disponível para outras” 38.

Diante desta categorização, Elinor Ostrom aponta que, enquanto bens

37 Ibid., p. 147. 38 Ibid., p. 149.


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privados são essencialmente exclusivos e rivais, e bens públicos são não exclusivos e não rivais, há ainda mais dois tipos de bens: exclusivos e não rivais, chamados de “bens de clube” - como o caso de rodovias onde são instalados pedágios -; e os não exclusivos e rivais, aos quais denomina “bens comuns”, como regiões de pesca e irrigação. Os bens que compõem esta última categoria são compreendidos pela economista como “fundo de recursos comuns” (CPR) e cuja exploração desmesurada - “se todos tentarem maximizar sua utilidade pessoal” - pode acarretar em sua dramática extinção. A pesquisa de Ostrom demonstra que estes recursos podem ser administrados pelo Estado, entretanto, são geridos de modo mais eficiente e sustentável em organizações comunitárias. Dessa forma, aponta na instituição dos comuns, baseadas nos preceitos de autogestão e na epistemologia dos saberes ancestrais e locais, como forma de alinhar as relações de produção capitalistas a uma urgente busca por equilíbrio ambiental. Assim, a “abertura teórica” proporcionada pelo trabalho de Elinor Ostrom não apenas coloca os comuns em uma posição absolutamente central no contemporâneo debate sobre sustentabilidade social, ambiental e econômica. Ao fazê-lo, a economista norte-americana apresenta um contundente contraponto à compreensão de que os comuns seriam objeto de trágico fim, disseminada pelo ecologista Garrett Hardin. Segundo o ecologista neomalthusiano, autor do artigo A tragédia dos Comuns (1968), a liberdade concedida ao ímpeto maximizador da produtividade de um homem economicamente racional levaria, na exploração dos comuns, a um inexorável esgotamento dos recursos naturais. Segundo Dardot e Laval, trata-se de uma teoria baseada na concepção comportamental de um homem econômico, “que não pode ou não quer levar em consideração os efeitos da exploração descontrolada de um recurso comum”39. Em sua fábula dos pastores racionais, Hardin demonstra metaforicamente sua preocupação apontando que ao maximizar livremente a utilidade de seus rebanhos, acabam por consumir a vegetação, a água e os alimentos necessários para a vida de toda uma sociedade. Entretanto, como apontam os autores, a concepção de comuns de Hardin corresponde a uma união indistinta de dois conceitos do direito romano: res communis - o que é inapropriável, como o mar - e res nullius - o que não tem dono, mas pode ser apropriado, como os peixes pescados. Tratar-se-ia, portanto, de um equivocado amálgama entre um objeto jurídico dado pela natureza e a práxis do comum, denominada por ele como de livre exploração. 39 Ibid., p. 153.


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Mesmo apresentando uma pouco desenvolvida leitura e definição semântica sobre os comuns, a teoria da tragédia dos recursos naturais posta por Hardin fora amplamente utilizada por uma literatura neoliberal em defesa da propriedade privada e contra a administração pública e comunitária. Com base nas inquietações formuladas pelo ecologista, levantou-se a crença, sobretudo dentro do pensamento econômico hegemônico, que a ineficiência do Estado, da gestão coletiva e dos serviços sociais seria resultado da sua complacência com os chamados “carona”: indivíduos que se aproveitam de uma conjuntura onde a competição deixa de ser o princípio comportamental regulador para obter vantagens sem que hajam contrapartidas ou pagamentos. Segundo esta corrente, a propriedade privada evitaria que a sociedade arque com o prejuízo coletivo proporcionado pela imodesta intransigência de indivíduos carona para com normas comunitárias, resultando em um possível perecimento de recursos comuns. Assim, como apontam Dardot e Laval, a teoria de Hardin sobre os comuns é tida como referência bibliográfica de suma importância na defesa do direito privados: ao contrário do Estado e das comunidades, que compartilhariam o ônus social e ambiental de decisões particulares equivocadas, a apropriação privada garantiria a “internalização das externalidades”, onde tanto o prejuízo quanto o gozo são arcados e desfrutados de modo exclusivo. Tendo em mãos o legado da economia política dos comuns posta por Hardin, tecido de modo confuso, misturando recursos naturais a serem explorados livremente e uma forma de autogestão coletiva, a grande contribuição da pesquisa de Ostrom foi demonstrar não apenas o equívoco do autor em suas construções conceituais acerca do comum, como também reconhecer o papel regulatório na organização comunitária. Em seu estudo, a economista reafirma a distinção entre bens comuns e o comum enquanto uma relação interpessoal, cuja geração coletiva e normativa de mecanismos legais possibilita a garantia no controle de terras, recursos e propriedades sob a égide da comunidade. Assim, o argumento neoliberal formulado sobre a tragédia dos comuns que reforça a necessidade de ampliação do direito privado é confrontado pelo estudo de Ostrom, que demonstra a capacidade de controle sobre os bens comuns por parte de uma comunidade com autonomia em sua atividade política e legislativa. Não obstante a abertura de um amplo “espaço para a diversidade e a dinâmica das instituições”40, o que o trabalho de Ostrom “visa mostrar, sobretudo, é a necessidade de regulamentar certo número de questões fundamen40 Ibid., p. 159.


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tais para que um sistema de exploração se torne perene”41. Para tanto, parte do princípio de que, por ser constituída de coprodutores que estabelecem coletivamente regras de convivência, a economia política dos comuns aborda uma dimensão essencialmente inexistente na economia hegemônica: a relação entre normas de reciprocidade e a participação direta nos processos deliberativos cotidianos. Assim, a construção coletiva de regras em uma comunidade apresenta as demandas de uma realidade próxima, imediata, no pleito decisório das normas sociais; de modo que o comum não apenas proporciona a possibilidade de uma gestão mais consciente, solidária e coerente para com as vicissitudes locais, como também desincentiva o comportamento de tipo “carona”, apontado por Hardin. Se há uma ressalva posta por Ostrom é a de que, apesar de eficiente, a estrutura política e econômica dos comuns pode encontrar sérias dificuldades para se estabelecer. Por depender da organização coletiva direta e recíproca, a instituição dos commons pode esbarrar em barreiras comunicativas, de confiança, de estratégias a serem tomadas ou futuros a serem planejados; assim como a conflitante presença do interesse particular que leva a indivíduos em situação de poder a manipular ou se aproveitar dos processos deliberativos em benefício próprio. Portanto, é uma estrutura política que demanda compromisso coletivo a ser cumprido. A construção de uma doutrina que exige tamanho comprometimento coletivo é formulada por Ostrom sob o preceito de que os homens racionais, no exercício de suas faculdades, são os indivíduos mais capazes de desenvolver um sistema de leis e normas de convivência mais adequado às vicissitudes cotidianas. Para tanto, retoma a tese da “eficiência adaptativa”, presente na construção teórica do pensamento neoliberal posto por Friedrich Hayek 42, o qual propõe que as instituições devem sempre se remodelar de acordo com a ocasião para que possam sobreviver. Como apontado anteriormente, é inegável o peso da contribuição de Ostrom no reposicionamento da economia política dos comuns como protagonista de um novo e democrático projeto de sociabilidade; entretanto, antes de apresentar um contraponto ao modo de produção capitalista, a autora insere a instituição dos comuns dentro da atual estrutura de mercado. Para tanto, os commons, enquanto “capital social”, por meio de sua estrutura de participação e deliberação direta, exercem o papel de gestão e dos bens comuns na atual divisão do trabalho. Não questiona a necessidade da propriedade pública e privada; tampouco as regulamentações de mercado neoliberais, onde imperam as relações de concorrência de todos contra todos. Antes, 41 Ibid., p. 159. 42 Apud. ibidem, p. 162.


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insere os comuns nesta lógica, onde a capacidade de adaptação desta instituição fluida e participativa determina uma resposta efetiva às demandas da economia hegemônica. Dessa forma, apesar de reconhecer os méritos da pesquisa de Ostrom em demonstrar o potencial dos comuns em protagonizar a construção de sociabilidades democráticas e sustentáveis, Dardot e Laval apontam problemas fundamentais que distanciam o estudo da economista dos objetivos revolucionários da dupla francesa. Em primeiro lugar, estruturados sobre a administração dos bens não exclusivos e rivais, os commons seriam inseridos dentro do arcabouço jurídico do direito romano como uma terceira instituição reguladora da apropriação: em conjunto, portanto, com o direito público e privado. Partindo da própria promiscuidade entre Estado e mercado na manutenção da economia política capitalista, o alinhamento da teoria dos comuns, proposto pela economista, para com as considerações e fundamentos que dicotomizam o direito público e privado limitam sua capacidade de crítica às instituições reguladoras contemporâneas. Em decorrência deste ponto, e em segundo lugar, Ostrom não tem como pretensão fazer dos comuns um princípio ordenador da sociedade. Ao inserir a instituição dos comuns dentro da estrutura de mercado capitalista, sua ordenação política de autogestão passa a se relacionar com as demandas da economia global, minando o exercício de verdadeira autonomia de interesses e necessidades da comunidade. Baseada em preceitos da economia padrão e na teoria dos jogos, a leitura de Ostrom desconsidera relações de dominação brutalmente construídas ao longo do tempo. Deixa de analisar como as relações de poder foram historicamente capazes de destruir a soberania e a epistemologia dos comuns que ela se propôs a descrever. A impossibilidade de cogitar a sustentação de uma formação social autônoma, que respeite saberes ancestrais locais, que seja orientada de forma soberana pela comunidade advém não apenas de limites na própria concepção de comuns posto por Ostrom - que se limita a analisar comunidades de cerca de cem habitantes, distanciando-se de uma estrutura em larga escala - como também de sua posição complacente para com a forma capitalista: um meio de dá-lo sobrevida vociferado como panaceia. Embora a relevância da teoria dos comuns de Ostrom seja central na formulação de uma perspectiva organizativa pautada pelas necessidades imediatas da vida cotidiana em uma estrutura comunitária de democracia direta, a construção teórica da economista é limitada quando tomada como referência na proposição de uma práxis contra-hegemônica. Além de posicionar os comuns como um elemento de importante papel na regulação do sistema capitalista, sua


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análise se restringe a uma pesquisa empírica de comuns naturais, como comunidades de agricultura, manejo de recursos hídricos, etc., o que proporciona uma leitura estreita sobre a relação dos comuns existentes com a economia de mercado. Se há uma explanação acerca dos commons como instituições de significativa eficiência no que se refere a uma exploração sustentável dos recursos naturais dentro do modo de produção capitalista, Ostrom deixa de abordar, em seu recorte aqueles que se estruturam sobre um projeto de contestação da ordem dominante sem, entretanto, ignorarem as pautas ambientais. Como apontado anteriormente, a luta dos comuns é concentrada em uma compreensão multiescalar dos impactos do capitalismo neoliberal na vida cotidiana: tanto na construção e na atuação de instituições bilaterais de comércio e regulação econômica a nível mundial, como a precarização imediata dos recursos básicos do dia-a-dia - e a pauta ambiental é presente nas duas esferas. Entretanto, para além de uma preocupação com o meio ambiente, o comum é tido como o meio de atuação sobre a espoliação de recursos essenciais para a reprodução da vida. As ordenações espaço-temporais, apresentadas por Harvey como objeto crucial na estabilidade do sistema financeiro de mercado, exige da população mais pobre a organizar-se de modos distintos da ortodoxia capitalista para sobreviver. Trata-se de um fenômeno observado com clareza na capitalização e valorização imobiliária, onde a moradia passa a ser uma mercadoria cada vez mais inacessível, de modo que a parcela da sociedade mais afetada pela elevação da vida na cidade encontre, na forma comunitária, a solução de um problema imposto pela conjuntura do capital. Deste modo, os comuns nascidos do pauperismo conjuntural, ao mesmo tempo que constituem sociabilidades solidárias e cooperativas - antagônicas ao pregado pelo idealismo neoliberal - exercem o papel de suprir uma demanda cuja urgência é forjada na acumulação por espoliação. 3.7 - Duas estratégias emancipatórias A exploração do comum pelo capital - fenômeno que apropria o trabalho e as formas de subsistência comunitárias em prol da economia de mercado - alimenta a dialética primária entre a atividade produtiva, a estrutura de reprodução social e a articulação coletiva, em um contexto de espoliação dos meios hegemônicos de manutenção da vida, apontam estratégias e práticas organizativas necessárias de contestação e superação da penúria cotidiana. Se há a subsunção das relações materiais às necessidades imediatas da economia capitalista, o reconhecimento das contradições que envolvem a posição dos comuns na divisão social do trabalho é parte do processo de desalienação, assim como da pavimentação de um


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objetivo emancipatório. Para que se compreenda o balanço entre, de um lado, os mecanismos jurídicos e econômicos que dão legitimidade à apropriação dos comuns pelo capital e, de outro, a construção de uma sociabilidade cooperativa e politicamente fortalecida nos ambientes de trabalho e em comunidades, Dardot e Laval partem de um cotejamento entre os escritos de Proudhon e Marx43 . Enquanto o francês propõe que a força comunitária é preexistente e externa às relações capitalistas, o alemão aponta o contrário: é a economia de mercado que cria imaginários coletivos e relações interpessoais de acordo com sua necessidade; e embora a teoria de Marx seja mais lapidada, as reflexões postas por Proudhon são de suma importância no percurso narrativo posto por Dardot e Laval. Como apontam os autores, Proudhon compreende os laços que moldam a organização da sociedade sob o crivo do mesmo princípio em que se desenvolve a exploração: a “força coletiva”. Diferentemente das capacidades individuais, compostas pelas faculdades físicas e mentais particulares de cada pessoa, a força coletiva é resultado da ação conjunta de pluralidades pelo mesma finalidade. Sendo a sociedade uma “força imanente que procede da pluralidade de seres sociais igualmente plurais, ou seja, o emprego da força da união como tal, que é superior à soma das unidades individuais”44, tamanho vigor é fruto imediato da ordenação social e da divisão do trabalho. Quanto maior for a eficiência na construção de laços interpessoais de reciprocidade e coatividade nas tarefas cotidianas, mais elevadas são as capacidades coletivas de produção. Assim, toda força individual é multiplicada na união de esforços coordenados, tanto na escala dos ambientes voltados a atividade manufatureira ou fabril - o que Proudhon denomina como “cooperação simultânea” -, quanto no âmbito geral da distribuição de funções em uma comunidade - compreendida como “comutação entre produtores independentes”. Ambos os processos ocorrem simultaneamente, proporcionando a formação de riqueza como resultado da força coletiva coordenada. O labor individual atomizado é, portanto, inconcebível: “a partir do momento em que o homem trabalha, a sociedade está nele. [...] Na sociedade trabalhadora, [...] não há trabalhadores, há um trabalhador, único, 43 As obras utilizadas por Dardot e Laval foram: MARX, Karl, Engels, Friedrich. A sagrada família. São Paulo, Boitempo, 2016; id. Manifesto do Partido Comunista. São Paulo, Boitempo, 2010; MARX, Karl. O capital, Livro I. São Paulo, Boitempo, 2013; id. Grundrisse. São Paulo, Boitempo, 2011; id. O 18 de brumário de Luís Bonaparte. São Paulo, Boitempo, 2011; PROUDHON, Pierre-Joseph. La Solution du problème social. Paris: Lacroix, 1868; id. Qu’est-ce que la propriété? Premier Mémoire, em Oeuvres complètes. Paris: Marcel Rivière, 1924; id. De la création de l’ordre dans l’humanité, em ibid.; id. Systèmes des contradictions économiques ou Philosophie de la misère, em ibid.; id. La Capacité politique des classes ouvrières, em ibid.; id. Les Confessions d’un révolutionnaire, em ibid.; id. De la justice dans la Révolution et dans l’Église. Paris, Fayard, 1989, t. I; id. “Carnets, 11 mars 1846. Paris, Marcel Rivière, 1960-1974. t. II. 44 Dardot e Laval, 2014, p. 217.


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diversificado ao infinito”45. Sendo tamanha ampliação das capacidades produtivas um efeito espontaneamente criado pelas dinâmicas sociais cotidianas, para Proudhon, nem o Estado, e tampouco um indivíduo em particular podem criar ou induzir a força coletiva. Em uma espécie de simbiose natural que emerge de um corpo social ativo, que molda a si mesma simultaneamente à labuta por seus insumos diários, a sociedade é, ao mesmo tempo, produtora e produzida. “O trabalho é a força plástica da sociedade”46, de modo que os contemporâneos meios de subsistência são incontornáveis heranças históricas de uma construção coletiva de sociabilidades, símbolos e territórios ao longo do tempo. Dessa forma, até mesmo os maiores feitos de grandes mestres e intelectuais de nossa civilização são resultado da força coletiva historicamente constituída: um “capital acumulado”, transmitido socialmente no decorrer de gerações - não sendo, portanto, restritos a méritos individuais. Sendo a força coletiva o produto histórico de um trabalho organizado que multiplica as potências individuais, é de grande conveniência à economia política capitalista tirar proveito das vantagens deste fenômeno próprio da vida em sociedade. Segundo o autor, “sendo a força coletiva de cem trabalhadores incomparavelmente maior que a de um trabalhador elevado a cem, essa força não era paga pelo salário de cem indivíduos; por conseguinte, [...] haveria um erro de conta entre operários e patrões”47. Salvaguardados por um sistema jurídico que garante o direito sobre a mercadoria produzida aos seus proprietários, a contrapartida salarial dada ao trabalhador não corresponde ao que fora realmente manufaturado com este ímpeto adicional observado por Proudhon. Ao contrário, esta riqueza suplementar decorrente da força coletiva corresponde uma parcela do trabalho não paga ao operário, e que será apropriado pelo detentor de seus direitos de posse, desde o dono de uma fábrica, até o próprio Estado. Em oposição a apropriação pública ou privada dos lucros socialmente produzidos, a filosofia proudhoniana ancora-se em uma concepção de justiça que garanta ao trabalhador o direito sobre os feitos proporcionados pela força coletiva. Trata-se, essencialmente, de uma questão jurídica: em uma estrutura legal concebida por um seleto colegiado, os interesses populares e das classes subalternas permanecem em segundo plano quando comparada à manutenção 45 Ibid., p. 221. 46 Ibid., p. 221. 47 Ibid., p. 223.


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do poder de proprietários. Sendo um marco regulatório das relações sociais, para Proudhon: “A justiça real nunca será a lei produzida pelo legislador soberano; ela só pode derivar das maneiras concretas e variadas de estabelecer o equilíbrio entre as partes, fixar contratualmente suas relações e assegurar a equidade das trocas conforme o ‘valor verdadeiro’ dos bens e dos serviços. A justiça é imanente à atividade econômica e social, o direito econômico ou social é precisamente o que dá forma às relações entre os indivíduos.”48.

A elaboração de uma forma jurídica monopolizada pela classe dominante, centralizada na figura de legisladores soberanos, e aplicada a toda a sociedade, não apenas permite a exploração do trabalho coletivo de forma rentista sob o exercício dos direitos de propriedade, como também impede a auto regulação democrática das dinâmicas sociais. Para Proudhon, seria apenas por meio da participação direta de produtores e trabalhadores nos espaços de idealização e ratificação de leis que estes teriam garantidos os seus direitos contra a expropriação de sua força coletiva. Portanto, o comum dos operários é, de acordo com o filósofo francês, um desdobramento imanente à sociabilidade na divisão do trabalho, ao qual são alienados por um elemento normativo externo: a saber, a justiça. Como apontam Dardot e Laval, o fenômeno da força coletiva, açambarcada juridicamente, como apresentado por Proudhon - apesar de apresentar uma teoria economicamente contraditória, igualando como sinônimos a renda e o lucro obtido no trabalho e comercialização de mercadorias, posteriormente refutada pela literatura marxiana - influenciou Marx em grande medida em sua leitura sobre os mecanismos de dominação no capitalismo. Para ele, o capital seria igualmente um produto social, criado e posto em movimento pela atividade coletiva coordenada de “todos os membros da sociedade”. Antes de um “poder pessoal”, o capital tratar-se-ia de um “poder social”49, cujo papel de comando na ordenação da vida cotidiana permite planejar as dinâmicas de sociabilidade de acordo com os critérios e as demandas imediatas deste modo de produção. Orientando as atividades cotidianas, ao capitalista é concedido a possibilidade de recolher os frutos do trabalho social, como apresentou Proudhon: “o capitalista paga o valor de cem forças de trabalho autônomas, mas não paga a força de trabalho combinada das cem”. Entretanto, há um significativo ponto ruptura entre as visões de Proudhon e Marx: enquanto o primeiro 48 Ibid., p. 224. 49 Ibid., p. 227.


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afirma que a cooperação nos processos produtivos de uma sociedade é um dado natural da convivência - de modo que o capitalista reconhece apenas o valor do trabalho individual, capturando o valor excedente por meio dos direitos de propriedade a ele garantido -, para Marx é o próprio capitalismo que orienta a produção, de forma que os trabalhadores cooperem entre si em função das necessidades do capital. Ao invés de promover o roubo sobre uma relação produtiva pré existente, o capitalismo organiza de forma sistemática seus trabalhadores para que a tecnologia e a cooperação mútua sirvam de base para o aumento de sua exploração. Dessa forma, a confluência de esforços laborais, desde o despertar pela manhã, o caminhar dos dias organizados em horários e espaços de trabalho, lazer, moradia e trânsito - eternizados em documento pela Carta de Atenas -, permeados pela divisão sexual, racial e classista do trabalho, ao descanso em noites de sono, para depois, em repetição ad nauseam, partir do mesmo princípio: organizada pelo capital, a vida cotidiana sublima as “cem forças de trabalho individuais”, transformando-a em uma única força social comercializada como um produto, cujo proprietário deixa de ser o próprio trabalhador, e passa a ser monopolizada pelo capitalista. Contraditório por excelência, o predomínio dos interesses das classes dominantes na reprodução social dentro do capitalismo - correspondendo aos proprietários e capitalistas na fórmula trinitária marxiana - é marcado por um caráter técnico e científico da aplicação das dinâmicas intrínsecas da economia de mercado no desenrolar das vicissitudes cotidianas. A extração de mais-valor, distribuído sob as formas de renda e lucro, é calculada em meio à competição desenfreada por aumento de acumulação e produtividade - o que, por si, cria condições de aversão da classe trabalhadora sobre o pacto social na qual se insere. Dessa forma, a orientação das atividades cotidianas pelo capital coloca sobre o ser social as mesmas demandas exigidas em um sistema predatório por natureza: elevação da produção de valor na forma mercadoria e crescimento da captura da mais valia pelos direitos de propriedade. Acerca da temática da teoria do valor, cabe aqui um breve adendo: David Harvey, em seu artigo a recusa de Marx da teoria do valor50 , esmiúça os limites encontrado pelo jurista e economista alemão na forma valor-trabalho, uma vez que ela não leva em consideração o trabalho reprodutivo nos cálculos de custos e preços que envolvem a força de trabalho, os meios de produção e a mercadoria a ser comercializada. Para Harvey, assim como apontou Marx, a teoria do valor é composta por uma

50 HARVEY, David. A recusa de Marx da teoria do valor. Trad.: Carine Botelho Previatti. Geousp – Espaço e Tempo (Online), v. 22, n. 1, 2018, p. 257-264.


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“métrica instável e em constante mudança, sendo empurrada para cá e para lá pela anarquia das trocas no mercado, pelas transformações revolucionárias das tecnologias e formas organizacionais, pelas novas práticas de reprodução social e massivas transformações nas vontades, necessidades e desejos de toda uma população, expressas pelas culturas da vida cotidiana” 51.

Em suma, como aponta o geógrafo britânico, a síntese feita por Marx da teoria do valor herdado de Ricardo consiste de uma abertura conceitual acerca da exploração do trabalho sob as relações de produção capitalista. Aponto esta breve digressão pois, como recuperam Dardot e Laval, a leitura marxiana acerca da produção das próprias estruturas de dominação cotidiana pelo capital é sustentada por dois incontornáveis pilares da teoria do valor: o controle sobre o tempo e o conhecimento. A valorização da matéria prima, transformada em mercadoria, assim como a valorização da mais-valia é fruto da relação dialética entre a força de trabalho e os meios de produção. A força de trabalho, mão-de-obra que, por sua vez, também é transformada em mercadoria, aplica seu conhecimento técnico em determinado período de tempo de trabalho, conferindo ao produto seu valor. Qualquer redução no tempo de trabalho necessário para a produção do mesmo conteúdo exigiria ou o emprego de maior mão de obra - fato que acompanha a redução salarial por serviço prestado - ou uma mudança nos meios de produção utilizados; o que, por sua vez, é objeto de estudo e foco de atuação da ciência sob a égide do capitalismo, que busca a tradução de saberes técnicos em equipamentos capazes de elevar a produtividade. Constituições elementares da estrutura social, tempo de trabalho e conhecimento são, pois, duas importantes chaves sob a qual opera a aplicação dos interesses do modo de produção capitalista na relação cotidiana da vida social. Recuperam Dardot e Laval que, como contradição interna ao próprio sistema, Marx argumenta, em Grundrisse, que o controle da cooperação e da tecnologia pelo capitalismo garantiria ao trabalhador um aumento de seu tempo livre, já que sua produtividade seria suprida por equipamentos cada vez mais sofisticados e eficientes. Por sua vez, a classe trabalhadora desfrutaria de uma oportunidade única de liberdade para o desenvolvimento intelectual necessário ao fortalecimento de seu papel na luta de classes. Entretanto, como apontam os autores, o aumento de tempo disponibilizado pela coordenação social e do desenvolvimento científico teve como resultado o crescimento da carga de trabalho e da exploração social, e não a liberdade individual necessária para 51 Harvey, 2018, p. 263.


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desalienação, como apontava Marx. Baseados na crítica dos teóricos Michael Hardt e Antonio Negri, divergem da previsão marxiana ao apontar a capacidade libertadora do conhecimento socialmente produzido, uma vez que, orientado de acordo com as necessidades da economia de mercado, não se concentra na libertadora formação intelectual do trabalhador, mas sim em capital fixo. Assim, a ciência e a tecnologia, aplicadas à maquinaria, introduzem um nível de conhecimento técnico sobre o processo produtivo que não apenas atomiza a classe operária pela especificidade dos saberes envolvidos no trabalho, como distanciam-nos de qualquer objetivo revolucionário. Objetivamente organizada por uma metodologia tecnocrata, a atividade produtiva e reprodutiva em sociedade desenvolve-se com base nas demandas da economia política capitalista, de forma que o produto coletivo desta ordenação - de um lado, material: desde a concepção de máquinas fabris, até a disposição de moradia, transportes e equipamentos urbanos na cidade; de outro, imaterial: a cultura, a ideologia - não passam incólumes às insustentáveis pretensões deste modo de produção. Se há críticas à tentativa de previsão marxiana de libertação da classe trabalhadora por meio da liberdade proporcionada pelo conhecimento em sua forma de tecnologia produtiva - apontada por Dardot e Laval como o verdadeiro comum do capitalismo -, as contradições postas sobre a classe trabalhadora na exploração da mão-de-obra e na captura de mais-valor global são igualmente frutíferas no que tange a produção de conhecimentos e visões de mundo. A clareza de uma percepção sobre as estruturas sociais que sustentam a propagação de uma epistemologia da dominação em todas as classes é, pois, um advento da própria comunhão de informações. Como aponta Marx52 , o elemento mais importante da produção de riqueza capitalista é menos o controle sobre o tempo de trabalho e o conhecimento: trata-se da mais profunda e íntima apropriação da força produtiva, da compreensão individual enquanto ser social com direitos e deveres estabelecidos. Sobre este fundamento que deve-se orientar a atividade de desalienação. Trata-se de um movimento que, embora a subsunção real do conhecimento pela economia de mercado tenha derrubado um vislumbre de que o desenvolvimento intelectual seja um desdobramento natural do progresso tecnológico, utiliza-se das próprias ferramentas dadas pelo capital para questioná-lo. Assim, diante da expropriação das formas tradicionais e orgânicas de produção de conhecimento e de individualidades pelo capitalismo; e em meio ao direcio52 Dardot e Laval, 2014, p. 235.


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namento do trabalho intelectual como forma de perpetuar a exploração cotidiana, é fundamental que a teoria dos comuns permite compreender a maneira como a humanidade desenvolveu historicamente suas ideias, invenções, territórios, epistemologias e meios de sociabilidade. Dessa forma, partindo deste modelo teórico que se debruça sobre os movimentos políticos e práticas coletivas estruturadas sob a os princípios de reciprocidade e coatividade, pode-se conceber uma experiência socialista que garanta a desalienação, a autonomia e soberania à práxis cotidiana. 3.8 - Condições de desalienação e formação social do comum Em meio ao recrudescimento da economia política neoliberal e a derrocada de perspectivas que reposicionam novos projetos de sociedade para além do capitalismo em um horizonte prático de ação, os comuns surgem como prática organizativa capaz de reformular contraposições e horizontes emancipatórios. A ressignificação dos commons pela obra de Elinor Ostrom - que até a década de 1990, baseados na tragédia do comuns de Hardin, foram tidos como fonte de justificativas ao fortalecimento do direito privado - trouxe renovado fôlego a busca por alternativas à apropriação do trabalho socialmente produzido, além do consumo insustentável dos recursos necessários à manutenção da vida. Como aponta Ostrom, há nas formações sociais tradicionais e pré-capitalistas, regidas e autorreguladas na ordem comunitária, os meios normativos de manejo sustentável dos chamados bens comuns. O comum responderia, assim, a instituição responsável por esta autogestão dos recursos não exclusivos e rivais, em conjunto com o Estado e o mercado, cuja função seria a de fornecer os bens públicos e privados. Apesar de ser uma importante contribuição na construção de um devir mundo que aproxima a realidade da contemporâneas utopias, a teoria de Ostrom mantém os comuns dentro de um projeto econômico essencialmente capitalista, uma vez que atribui a esta organização coletiva da vida cotidiana demandas da sociedade de mercado que limitam a liberdade deliberativa deste governo em pequena escala. Entretanto, a abertura teórica proporcionada pela pesquisa da economista norte-americana é crucial na elaboração de um arcabouço epistemológico contra hegemônico, sobretudo por demonstrar a efetividade de regime pautado na reciprocidade e na coatividade em um contexto social onde se reconhece a insustentabilidade do atual modo de produção.

Para Dardot e Laval, teóricos franceses que se propõem a debater o


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comum como um projeto revolucionário, é insuficiente que se limite sua atuação dentro da dicotomia entre público e privado: antes, há de se superá-la. Tanto o Estado - instituição representante da vontade pública, objeto de reivindicação dos movimentos anti-neoliberais - quanto o mercado são encarados, pela tradição marxista na qual se inserem os autores, como participantes aliados no mesmo processo de acumulação por espoliação. A entrada dos comuns como uma terceira entidade na produção de mercadorias e reprodução da vida social, de modo a regular e aperfeiçoar a economia política capitalista, assim como propõe Ostrom, subjuga as necessidades da comunidade em prol das vontades privadas postas ao mercado. Como aponta Harvey, a acumulação por despossessão depende exatamente do domínio de sociabilidades externas ao hegemônico cotidiano da civilização ocidental como meio de sustentar a expropriação de terras, recursos naturais, conhecimento, etc. Neste sentido, enquanto os comuns de Ostrom participam da divisão internacional do trabalho como organizações de falsa autonomia, e que garantem a continuidade de uma relação de produção insustentável; os comuns de Dardot e Laval são uma proposta de assumir a koinón aristotélico - o governo da reciprocidade, da cooperação e da coatividade - enquanto práxis que se insere na longa esteira das experiências socialistas. Para tanto, sustentam que, enquanto o regime do capital - sobretudo em sua face neoliberal - é constituído por uma organização material de condutas cotidianas onde imperam o direito privado, a competição desenfreada e a renovada austeridade envolvendo programas de distribuição de renda e reparação histórica; há na ordenação da vida cotidiana sob a égide da contraconduta da comunidade os meios de provisão de recursos expropriados, de democracia direta e de desalienação estrutural. Como apontam Dardot e Laval, a previsão marxiana de que o desenvolvimento tecnológico abriria espaço para que o trabalhador possa formar-se enquanto cidadão crítico revolucionário se mostrou equivocada; porém, o fato de que as contradições de uma sociedade orientada pelas normas tecnocráticas do capital geram as próprias armas com as quais a classe historicamente oprimida confronta os símbolos, os significados e os significantes de sua exploração é a força motriz da compreensão emancipatória dos comuns. Dessa forma, a noção multiescalar do problema estrutural fruto da sociabilidade capitalista mobiliza a articulação popular dos commons por pautas orientadas tanto no âmbito das relações globais de troca desigual, mediadas por instituições de acordos bilaterais como FMI; como no impacto local, na cobrança de taxas inacessíveis pelo acesso a recursos como água, energia elétrica, educação e saúde além das execuções hipotecárias e altas do preço da terra que afastam a população do mercado formal de moradia.


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Segundo os autores, a estratégia da contraconduta dos comuns, em contrapartida à ordenação cotidiana do capital em sua face neoliberal, traria per se uma mudança multiescalar da divisão do trabalho, da prática normativa predominante e dos meios de reprodução social voltados à ordem comunitária: o comum, portanto, como um princípio totalizante. Entretanto, o livro - cujo subtítulo é ensaio sobre a revolução no século XXI - deixa lacunas importantes no que se refere à praticidade desta proposta. Trata-se, essencialmente, de uma utopia, onde a frágil relação com as vicissitudes reais e materiais de uma espoliação e exploração cotidiana, com suas especificidades geopolíticas, distancia a ideia dos comuns enquanto um ponto de chegada. Ao contrário da experiência soviética, construída sobre a filosofia materialista histórica dialética, especialmente em seu princípio leninista, trazida como pedra fundamental, Dardot e Laval propõem um fim sem demonstrar qualquer preocupação com os meios: por onde começar? Neste sentido, a leitura de Comuns não fornece qualquer tipo de proximidade com o real, com as condições materiais da vida cotidiana, com as contradições e virtudes de um espaço e de um povo cuja singularidade traz consigo - há séculos impregnada e mesmo assim contemporânea - o despojamento e a humilhação colonial. Por outro lado, a recuperação histórica dos comuns, assim como sua inserção dentro de um contexto de reinvenção de metodologias efetivamente contra-hegemônicas de ordenação social, permite-nos dar um passo atrás, entendendo o comum não como um fim, mas como um meio. Neste sentido, a obra dos autores ganha nova dimensão: sendo os comuns organizações que, pela forma comunitária da autogestão, supre as demandas de uma realidade pautada na espoliação e expropriação, pode ela criar as condições de desalienação e formação social tal qual apontava Marx? Em outras palavras, quais são os meios pelos quais a vida cotidiana do comum responde às especificidades históricas e materiais que demandam, ao mesmo tempo, a provisão de recursos básicos de vida e a compreensão multiescalar das estruturas de exploração? Para tanto, na segunda etapa do livro, Dardot e Laval se propõem a discutir possíveis relações normativas, jurídicas e institucionais do comum: uma abertura teórica proporciona uma aproximação inicial ao comum enquanto práxis cotidiana de sobre a acumulação por espoliação. Por outro lado, uma aproximação à experiência empírica de uma organização social nascida da despossessão urbana, cuja metodologia de ação e contestação é a da autogestão comunitária permite-nos iluminar lacunas conceituais que somente a relação direta entre as contradições singulares de um espaço e as respostas sociais a elas atribuídas permitem fornecer. Partindo da lefebvriana compreensão de que contradições desenvolvidas em determinado


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espaço tornam-se contradições do espaço em si 53 , a pesquisa buscará compreender a relação dialética entre teoria dos comuns e suas práticas espaciais, observando, de um lado, os insumos bibliográficos proporcionados pela segunda seção do livro de Dardot e Laval e, de outro, a atividade sobre o território do grupo sócio-espacial da ocupação Vila Nova Palestina, do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto, em São Paulo. Dessa forma, busca-se não apenas contribuir ao desenvolvimento da proposta dos comuns enquanto meios práticos de contestação e construção de sociabilidades contra hegemônicas, como também compreender de que modo a ocupação responde às vicissitudes locais na qual se insere, dialeticamente produzindo uma urbanidade particular que sustenta as condições espaciais necessárias para a realização da práxis do comum.

53 Stanek, 2011, p. 180.


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4 - Iluminações históricas a uma teoria revolucionária

Como tratado na seção anterior, o livro Comum: ensaio sobre a revolução no século XXI, objeto central deste trabalho de final de graduação por fornecer o arcabouço teórico de uma forma comunitária de articulação social e produção de espaço contra hegemônico, é dividido em três partes. A apuração histórica e conceitual acerca da temática do comum, demonstrando as origens tanto romanas quanto aristotélicas do termo, e sua inserção contextual em um ambiente de enfrentamento da economia política capitalista contemporânea é o ponto de partida da narrativa proposta por Dardot e Laval. Em uma leitura crítica da obra de Ostrom, sobretudo no fato da economista não ter se desprendido totalmente de uma epistemologia capitalista de organização da produção, os autores posicionam os comuns em meio a uma herança histórica das experiências socialistas - tanto do ponto de vista teórico quanto prático, na formação de pautas e meios de ação. Ainda na conclusão do ensaio sobre a sociedade neoliberal, a dupla francesa reconhece que, em meio às idiossincrasias contemporâneas de uma economia essencialmente predatória, a conduta dos commons permite-nos vislumbrar uma alternativa factível ao atual modo de produção. Acreditam que, ao contrário de uma sociabilidade pautada pela soberania do direito privado, da competição de todos contra todos e da completa inconsequência social e ambiental, a insurgência de um modo cooperativo e autogerido de organização da vida cotidiana, onde imperam os preceitos de reciprocidade e co-atividade indicaria o revolucionário caminho da superação do capitalismo pela forma comum. Para tanto, as duas partes que se seguem àquela que fora esmiuçada na seção anterior deste trabalho consistem em desenvolver teoricamente este horizonte: a segunda, tratando dos meios pelos quais se estruturam esta sociabilidade do comum em oposição às relações capitalistas de convivência - tanto em seu ponto normativo quanto institucional -; e o terceiro, uma série de nove “proposições políticas”1 , apresentam a conclusão de Dardot e Laval sobre como deve operar o comum em uma reordenação das dinâmicas sociais em escala global. Assim, os autores acreditam que, como um objetivo final a ser buscado, deve-se instituir “comuns mundiais”, organizados de modo federativo como forma de 1 Dardot e Laval, 2014, p. 482.


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alcançar a verdadeira democracia social. Retomando o debate posto por Harvey acerca das novas práticas do imperialismo, a necessidade de uma reorientação dos movimentos operários que por um longo período de tempo pautou sua agenda exclusivamente no tensionamento da reprodução ampliada das relações capitalistas de produção, e adicionar como princípio de mobilização um posicionamento contrário aos meios em que operam a acumulação por espoliação - consiste de uma urgência de nossos tempos. Deste modo, a defesa dos interesses da classe proletária articula as escalas em que se desenvolvem a exploração e a expropriação cotidiana: de um lado, global - onde impera a divisão internacional do trabalho, a promiscuidade cultural e a formação institucional que chancelam violentamente a supremacia do direito privado e da civilização ocidental. Por outro lado, local, de modo que o “desenvolvimento desigual e combinado”, como aponta Trotsky2, cuja irregularidade no desenrolar da economia política capitalista em produzir suas sociabilidades e contradições corresponde à especificidade histórica de cada país, cidade e grupo social. Se a teoria dos comuns de Dardot e Laval insere as experiências de organização comunitária anticapitalistas nesta ambivalência de escalas e ordens de reivindicação, a preferência por uma concepção exclusivamente totalizante afasta-nos de um entendimento prático e propriamente transformador desta proposta. Entender o princípio dos comuns como um ponto de chegada, um objetivo a ser alcançado de reformulação completa das sociabilidades por uma contraconduta anticapitalista não responde às vicissitudes históricas em que afloram, em meio às contradições diárias, as singularidades de objetivos, métodos e reivindicações. Em outras palavras, por maior que seja a importância da obra Comum na construção de novas utopias socialistas, há uma considerável lacuna teórica entre o horizonte proposto pelos autores e a realidade das lutas cotidianas das organizações comuns. 4.1 - O comum e a luta de classes Para Dardot e Laval, os comuns são, acima de tudo, um princípio político3 . Desenvolvem esta percepção no terceiro setor do livro Comum, onde apontam: “Os movimentos e as lutas que reivindicam o comum, e que vimos surgir em diferentes 2 Teoria desenvolvida por Leon Trotsky e esmiuçada por Michel Löwy em A teoria do desenvolvimento desigual e combinado. Actuel Marx, vol. 18, 1995, p. 73. 3 Dardot e Laval, 2014, p. 481.


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partes do mundo neste início do século XXI, são, a nosso ver, prefigurações das novas instituições – pela tendência a querer unir forma e conteúdo, meios e objetivo, por desconfiar da delegação a partidos e da representação parlamentar. É incontestável que essa busca de formas de autogoverno é difícil e tateante. Mas a originalidade histórica dessas mobilizações contra as transformações neoliberais das universidades, contra a privatização da água, contra o domínio dos oligopólios e dos Estados sobre a internet, ou contra a apropriação dos espaços públicos pelos poderes privados e estatais, deve-se, sem dúvida alguma, à exigência prática que se impõe aos participantes desses movimentos de não mais separar o ideal democrático que eles perseguem das formas institucionais que eles adotam. [...] O que há de novo nessas insurreições democráticas e nesses movimentos sociais não é, como disseram alguns, a acepção universal de “democracia de mercado”, e sim a recusa em empregar meios tirânicos para atingir fins emancipadores. Mas tudo isso ainda precisa ser inventado ou reinventado. As mobilizações e as insurreições contra as ditaduras e o capitalismo neoliberal somente terão alcance histórico duradouro se redundarem na invenção de novas instituições, como aconteceu no fim do século XIX e início do XX. Esse é o desafio capital, na história contemporânea, da práxis instituinte em grande escala”4.

A argumentação dos autores segue apresentando suas nove proposições políticas: “uma política que faça do comum o princípio de transformação do social (proposição 1) para depois afirmarmos a oposição entre o novo direito de uso e o direito de propriedade (proposição 2). Em seguida, estabeleceremos que o comum é o princípio da emancipação do trabalho (proposição 3), e que a empresa comum (proposição 4) e a associação (proposição 5) devem predominar na esfera da economia. Afirmaremos a necessidade de refundar a democracia social (proposição 6) e transformar os serviços públicos em verdadeiras instituições do comum (proposição 7). Por último, estabeleceremos a necessidade de instituir comuns mundiais (proposição 8) e, para que isso aconteça, de inventar uma federação dos comuns (proposição 9)”5. Assim tomado como um princípio geral de reordenação político, institucional, normativo e econômico, Dardot e Laval propõem uma perspectiva abrangente sobre o comum, inspirada nos movimentos de contestação ao Estado capitalista e ao mercado, assim como as organizações comunitárias que sobrevivem em meio à exploração cotidiana. Embora não seja o escopo deste trabalho debater as especificidades das proposições políticas da dupla francesa, é fundamental reconhecer os entraves desta perspectiva totalizante na compreensão do comum enquanto uma ordem socioespacial que não apenas permite a sobrevivência de populações espoliadas, como também promova a desalienação e a formação coletiva de indivíduos críticos à estrutura exploratória em que estamos inseridos. 4 Ibid., p. 481. 5 Ibid., p. 483.


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Em seu livro Cidades Rebeldes, David Harvey6 apresenta semelhante preocupação: para o britânico, acreditar no virtuosismo da forma autogerida como princípio de geral reordenação social seria algo de grande ingenuidade7 . Contrário a uma herança essencialmente anarquista e autonomista de parte do pensamento socialista, aponta: “existe uma vaga e ingênua esperança de que os grupos sociais que organizam satisfatoriamente suas relações com os comuns locais farão a coisa certa ou convergirão para algumas práticas intergrupais satisfatórias por meio da negociação e da interação. Para que isso aconteça, os grupos locais não devem ser perturbados por quaisquer efeitos externos que suas ações possam exercer sobre o resto do mundo, e devem abrir mão das vantagens decorrentes, democraticamente distribuídas dentro do grupo social, a fim de resgatar ou complementar o bem-estar dos que lhe são próximos (para não falar dos distantes), aos quais, como resultado de más decisões ou de má-sorte, estejam mergulhados em fome e miséria”8.

Se é verdade que a proposta de Dardot e Laval sobre a instituição global dos comuns é engendrada sobre a transformação do comportamento coletivo por meio da ação cooperativa, a tomada do comum enquanto um princípio político que por si só possibilitar-nos-ia virar a página desta sociabilidade predatória do capital seria algo sui generis, com escassos precedentes históricos. Dessa forma, completa Harvey, “não há absolutamente nada que impeça a escalada das desigualdades sociais entre comunidades”, sendo esta forma descentralizada de poder algo “perfeitamente de acordo com o projeto neoliberal de não apenas proteger, como também privilegiar as estruturas de poder de classe”9. Embora o arco narrativo de Dardot e Laval deposite nos comuns a esperança de que a construção de um governo comunitário per se promoveria o abandono da extrema competitividade em prol da cooperação, e o império do direito privado pela soberania da deliberação coletiva, é pouco crível que somente a funcionalidade da forma comum seja suficiente para alcançar o almejado estado de emancipação coletiva. Ao contrário, como aponta Frantz Fanon, em seu livro Os condenados da Terra10, em um contexto de luta anticolonial na África, qualquer movimento emancipatório anticapitalista só será bem sucedido com um intenso trabalho de politização e articulação popular das massas por parte de suas lideranças11 . Uma “necessidade histórica”, que, por sua vez, conta 6 Harvey, 2012 7 Ibid., p. 162. 8 Ibid., p. 163. 9 Ibid., p. 163. 10 FANON, Frantz. Os condenados da Terra. Juiz de Fora: Editora UFJF, 1961. 11 Fanon, 1961, p. 161.


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com o engajamento profundo de dirigentes e intelectuais nas idiossincrasias históricas da sociedade em mobilização - o “mergulho nas entranhas do seu povo”12 - e o compromisso de transformação material da vida cotidiana de modo a dissolver os meios de manutenção de uma economia política sistematicamente opressora. Com um programa político e organizativo visando a conscientização das massas, orienta-se a luta coletiva da própria população oprimida. Constrói-se uma estratégia emancipatória verdadeiramente autêntica, orquestrada pela militância, e que reconhece na história de dominação do povo os meios incontornáveis de contestação da ordem hegemônica. Coloca-se em prática, assim, o processo de desalienação popular com base na superação de incongruências nas quais se fundamentam as relações sociais capitalistas, conjuntamente ao esclarecimento dos meios efetivos de transformação da realidade material. Trata-se, para Fanon, de uma “política de responsáveis, de dirigentes inseridos na história, que assumem com seus músculos e com seus cérebros a direção da luta de libertação. Essa política é nacional, revolucionária, social. Essa nova realidade que o colonizado vai agora conhecer só existe pela ação. É a luta que, ao fazer explodir a antiga realidade colonial, revela facetas desconhecidas, faz surgirem significações novas e põe o dedo nas contradições camufladas por essa realidade. O povo que luta, o povo que, graças à luta, dispõe dessa nova realidade e a conhece, avança, libertado do colonialismo, prevenido antecipadamente contra todas as tentativas de mistificação, contra todos os hinos à nação”13.

Dessa forma, diferentemente do que apresentam Dardot e Laval, Fanon entende que a superação da sociabilidade capitalista (e imperialista) depende da construção de uma agenda popular combativa. Para tanto, a atividade de desalienação coletiva depende não apenas da demonstração de que outro mundo é possível, como também do por quê ele é necessário. Desnudados os laços coloniais que persistem sobre grupos sócio-espaciais subjugados, tal percepção floresce cristalina como um objetivo inevitável. Como apontou Harvey anteriormente, não há nada que garanta que o sistema comunitário, por si só, garanta estabilidade entre os comuns. Tampouco pode-se esperar que as conclusões e deliberações coletivas resultem em caminhos sustentáveis e razoáveis. A continuidade da desigual distribuição de infortúnios e privilégios - de modo a perpetuar a atual disparidade no inter12 Ibid., p. 244. 13 Ibid., p. 171.


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câmbio cultural, material e intelectual entre sociedades e grupos historicamente dominadores de um lado e, de outro, aqueles colocados em uma condição de inferioridade, envoltos em um exotismo e misticismo discriminatório - é perfeitamente concebível dentro de uma ordem política comunitária. Dessa forma, a compreensão do comum como uma estrutura institucional potencialmente emancipatória, ambientalmente e socialmente sustentável, como proposto por Dardot e Laval, perde de vista a imediaticidade de tais transformações no imaginário coletivo, na divisão internacional do trabalho e na organização material da atividade produtiva e reprodutiva em sociedade, que confere graus diferentes de liberdade e autonomia de acordo com parâmetros de etnia, gênero, sexualidade e classe. Ainda assim, em meio a um contexto onde o capital amplia seu domínio na mercantilização dos elementos básicos de subsistência, na redução de direitos fundamentais pelo Estado e no acirramento da competição como um adágio contemporâneo, o comum apresenta-se como uma importante forma de organização e articulação do trabalho e das reivindicações populares. Em outras palavras, se o caminho pelo qual percorrem Dardot e Laval apresenta uma conclusão duvidosa sobre o comum, não se pode deixar de reconhecer o papel crucial desta forma comunitária nas atividades de contestação à promíscua relação entre poder público e mercado na precarização da vida cotidiana. Se é pouco crível que os commons, enquanto princípio político, sejam por si só o ponto de chegada na procura de um horizonte alternativo ao capitalismo, os movimentos sociais que se utilizam da cooperação e da co-atividade para promover o processo de desalienação, tal qual escrevera Fanon, permitem-nos observar os comuns sob um diferente prisma. Ao invés de uma sociabilidade a se alcançar, as atuais lutas de ordem comunitária permitem-nos vislumbrar o comum como um meio de promover e fortalecer a luta de classes. Desse modo, a autogestão comum da vida cotidiana não se encerra em seu aspecto formal: ao contrário, confere-a o conteúdo necessário para a superação de uma construção social de contradições históricas. O comum, enquanto epistemologia da luta de classes contemporânea é, portanto, não apenas o meio pelo qual se organizam lutas populares contra os processos de acumulação por espoliação e da reprodução ampliada do capital, como também exerce papel formativo de militantes anticapitalistas. A tomada da força comunitária como elemento organizativo de um processo de desalienação popular, com a implementação de um programa político de reconhecimento e enfrentamento das contradições historicamente consolidadas, permite que


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se observe o comum não como um fim, mas como um método. Neste sentido, a obra de Dardot e Laval pode ser encarada sob uma nova perspectiva: embora a terceira seção do livro não encontre eco dentro deste trabalho, o apanhado contextual feito na primeira parte, seguida pelo balanço sobre a sociabilidade criadora de práticas normativas e institucionais do comum permite-nos compreender a dimensão desta práxis em sua pertinência como meio de articulação contra hegemônica contemporânea. Para tanto, busco, nesta seção do trabalho, me debruçar sobre uma experiência prática de organização coletiva, cuja transformação da vida cotidiana na luta anticapitalista decorre de um processo de desalienação dentro das atividades de cooperação e reciprocidade: o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST). 4.2 - A práxis urbana do MTST Importante fonte de organização popular nas disputas políticas pelo campo progressista em cenário nacional desde a virada do século, conquistando protagonismo como agente contra hegemônico da produção do espaço urbano brasileiro, o MTST é uma incontornável referência dentre as mobilizações comunitárias nascidas da espoliação e exploração neoliberal. Sua inserção dentre as experiências de organização social do comum fundamenta-se por bases tanto epistemológicas quanto programáticas. De um lado, suas pautas direcionam a luta por moradia digna na cidade à crítica ao Estado capitalista e ao mercado enquanto atores aliados na precarização da classe subalterna, adotando medidas favoráveis à acumulação por espoliação. De outro, a metodologia de reivindicação pelo direito de habitar dignamente, tal qual o koinónen aristotélico, põem em comum as demandas e os objetivos do movimento; de modo que a deliberação coletiva, em um regime de reciprocidade e co-atividade, definem as estratégias de ação e os objetos a serem pleiteados. Atuando desta forma, o movimento demonstra a dimensão imediata do comum enquanto um meio de galgar conquistas contra os interesses das classes privilegiadas: por meio da articulação coletiva, do fortalecimento dos laços e comunitários, da atuação multiescalar (do bairro à política institucionalizada em nível nacional), da desalienação acerca das contradições da economia política capitalista que subjazem os problemas cotidianos, e na conscientização de que somente a classe trabalhadora pode responder às demandas que a ela pertencem. Trata-se, portanto, da utilização do comum como um meio de fortalecimento dos trabalhadores na luta de classes e da criação do poder popular.


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Fundado em 1997 pelos integrantes do Movimento dos Sem Terra (MST) com o objetivo de estender as reivindicações populares no campo para dentro do ambiente urbano, o MTST faz parte de uma linhagem de lutas progressistas e da esquerda organizada que protagonizaram o período de redemocratização. Como aponta Cristhiane Falchetti14 , em sua extensa e detalhada documentação acerca da história do movimento, nas décadas de 1970 e 1980, as lutas contra a ditadura - em seus efeitos sociais e econômicos - fizeram aflorar novos e importantes agentes políticos, onde se destacam a atuação de bairro por parte Comunidade Eclesiais de Base (CEB), articuladas tanto com as ligas camponesas (que resultam no MST) quanto com o Novo Sindicalismo (que resultaria na CUT). Com a fundação do PT em 1980, centraliza-se a luta por direitos destes setores na atuação política militante. No chamado “campo democrático-popular”, liderado pelo partido, as questões essencialmente urbanas, como carência de moradias, de infraestruturas essenciais e de serviços públicos originaram o Movimento de Reforma Urbana, ordenado pelo “reconhecimento dos direitos dos posseiros, luta contra a especulação imobiliária e democratização do processo decisório sobre as políticas urbanas”15 . Finalmente, a presença das pautas urbanas conquistaram lastro institucional com a retomada da democracia e a urdidura da Constituição Cidadã de 1988, tanto em seu capítulo sobre política urbana participativa, quanto nos artigos 181 e 182, que reconhecem a função social da propriedade. Já na passagem para a Nova República, na década de 1990, a adoção de medidas neoliberais na economia política nacional pelos governos de Fernando Collor e Fernando Henrique Cardoso resultou em uma ampliação significativa do déficit habitacional, tornando-se objeto direto de contestação por parte do campo democrático-popular. Assim, o surgimento dos movimentos de sem-teto em torno do PT buscou responder ao avanço da espoliação urbana e estrutural - tratada na primeira seção deste trabalho. Foram dois os principais eixos pelos quais se organizou a luta habitacional no estado de São Paulo: de um lado, do Movimento de Reforma Urbana, estruturou-se a União dos Movimentos de Moradia (UMM); de outro, o MST, que ganha luz própria como protagonista das reivindicações urbanas para além do campo democrático-popular. Da jornada de ocupações promovida pela UMM no centro da capital paulista em 1991 surgem a maioria dos movimentos sem-teto da cidade: Movimento de Moradia do Centro (MMC), Movimento dos Sem-Teto do Centro (MSTC), Movimen14 FALCHETTI, Cristhiane. Ação coletiva e dinâmica urbana: o MTST e o conflito na produção da cidade. Tese de doutorado em Sociologia: FFLCH-USP, 2019. 15 Falchetti, 2019, p. 77.


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to de Moradia da Região Central (MMRC), Fórum de Cortiços e Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto da Região Central (MTSTRC); divergindo entre si sobretudo em suas metodologias, pautas e formas de ação. Por sua vez, o MST, com o objetivo de inserir-se nas reivindicações urbanas para contemplar necessidades de sua base, durante a Marcha Nacional por Emprego, Justiça e Reforma Agrária, em 1997, cria sua organização de atuação na cidade: o MTST16. O protagonismo da problemática urbana no desenvolvimento da economia política neoliberal, com suas profundas contradições, impele a organização do MST a atuar contra a espoliação habitacional enfrentada na cidade pela classe trabalhadora. A começar pela denominação sem-teto, como aponta Falchetti17 , “utilizada até então para se referir aos moradores de rua (parcela da população excluída das relações de trabalho e desorganizada politicamente), [...] indica uma nova condição da luta por moradia, à medida que denomina outra situação social e outra parcela da população, resultante de novos processos sociais. Nesse sentido, uma das características marcantes do MTST, que o diferencia de vários outros movimentos de sem-teto, é a manutenção da figura do trabalhador, herdada do ciclo político da democratização”18. Assim, o movimento orienta suas ações em torno do sujeito de classe (trabalhador) e não mais o objeto pleiteado (moradia). Trata-se de uma importante ressignificação de objetivos e epistemologias de reivindicação, uma vez que não se trata apenas de atender aos direitos de moradia, reduzido à concessão de um lar às famílias mobilizadas, como também a garantia de “moradia digna”, onde a qualidade habitacional é fruto tanto da salubridade da edificação, quanto da sua inserção na rede de infraestrutura, serviços e sociabilidades urbanas. Dessa forma, o MTST impele uma luta pelo direito de “pertencimento à cidade”19, que reconhece o recrudescimento da política neoliberal e a espoliação classista como parte do mesmo fenômeno urbano. Para o MST, a decisão de articular um movimento de atuação direcionada à problemática urbana respondia a dois fatores cruciais na mesma medida. De um lado, há a necessidade de ampliar a base mobilizada nas reivindicações por reforma agrária, de modo que a cidade se constitui como um importante palco de disputa simbólica e territorial. De outro, há uma significativa mudança no perfil da base que compõe o movimento, que passa a ser cada vez mais 16 Ibid., p. 81. 17 Ibid., p. 82. 18 Ibid., p. 82 19 Ibid., p. 83


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urbana. Dessa forma, a entrada no espaço da cidade por parte do MTST busca ampliar as pautas tradicionais que compõem a luta por direitos no campo, acrescidas agora da inserção das demandas de trabalhadores na cidade. Em primeiro momento, as mesmas estratégias, objetivos e métodos de organização aplicadas nas disputas agrárias compuseram o lado urbano do movimento: buscando a ocupação de “latifúndios urbanos”, exigia-se o cumprimento da função social da propriedade, contra a especulação imobiliária. No início dos anos 2000, as primeiras experiências do MTST em acampamentos da região metropolitana de São Paulo foram duramente reprimidas pela polícia militar e guarda civil, com violentos e humilhantes despejos em Osasco, São Bernardo do Campo e Guarulhos. A entrada no espaço urbano mostrou particularidades que em relação a atuação no campo: loteamento em propriedades menores, disputa quadra a quadra pelo domínio territorial com igrejas, tráfico e milícias, inédita truculência policial, celeridade na expedição de reintegrações de posse, concentração do poder político e intensa capitalização do solo em um aquecido mercado de terras. A necessidade de adaptação ao novo contexto foi incontornável para a permanência do movimento nas tratativas envolvendo o contexto urbano, fazendo com que o MTST desenvolvesse uma práxis de reivindicação da população sem-teto sobre as idiossincrasias da cidade, afastando-se das práticas herdadas do MST e do campo democrático-popular. Como aponta Falchetti: “A produção do espaço urbano envolve atributos distintos daqueles do meio rural. Na cidade, a localização, a infraestrutura e o padrão da habitação são centrais e tornam a prática da moradia indissociável do caráter urbano da vida. Portanto, a luta não poderia se limitar à disputa do terreno, sob pena de reproduzir o padrão de urbanização precário e segregado. Some-se a isso que, como vimos, a maior regulamentação do solo urbano, os mecanismos jurídicos de defesa da propriedade e as técnicas de controle territorial se tornavam mais intensas. Isso tudo conduziu à reformulação dos métodos do MTST, refletindo-se especialmente nos propósitos e formato das ocupações urbanas.”20.

Dessa forma, o MTST busca reestruturar-se, adotando estratégias operativas adequadas ao contexto urbano de sua luta, agindo criticamente sobre problemas organizativos do MST e do campo democrático-popular. Enquanto se observava um distanciamento entre os movimentos progressistas em torno do PT e a base popular, o MTST buscou orientar suas ações para o trabalho de formação de base e de militantes. Fiel à recentralização em torno do sujei20 Ibid., p. 89


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to sem-teto, o movimento deixa de ter como o objetivo principal a conquista da terra, e passa a organizar-se para a construção de laços comunitários e da consciência de classe. Nesse sentido, compreende-se que a luta por moradia é essencialmente diferente da luta por terra: “é a terra em função da moradia e não o oposto”21. Tal reformulação dos métodos de organização tiveram implicações programáticas e espaciais importantes no principal meio de atuação do movimento: as ocupações. Assumindo o objetivo de formação de uma consciência coletiva de luta anticapitalista e recentralizando a vida cotidiana em relações comunitárias, as ocupações passam a se constituir em caráter temporário, desenvolvendo um laço interpessoal que, por outro lado, seria duradouro. Internamente, a arquitetura dos acampamentos privilegiava os espaços comunitários em detrimento da divisão de unidades particulares - sendo terminantemente proibida a apropriação privada da terra por parte dos acampados. Constitui-se, assim, um espaço do encontro, da troca e da coletivização total de tarefas: desde a proteção, a preparação de refeições, até a organização de passeatas e protestos. A experiência na construção de vínculos comunitários, objetivo central do MTST, tem significativo aprimoramento na ocupação João Cândido22 , entre os municípios de São Paulo e Itapecerica da Serra. Datado de 2007, o acampamento propiciou a organização de núcleos comunitários, baseados nos bairros de origem de seus ocupantes, com coordenadores locais, e que proporcionaram prolongar a articulação construída dentro do assentamento mesmo depois de conquistada a moradia. Formou-se, assim, uma base permanente de luta: fruto das relações engendradas no acampamento, a consolidação de uma base ativa vinculada ao movimento permitiu expandir seu alcance espaço-temporal às lideranças locais e a organização de reivindicações por melhores condições de moradia na escala dos bairros pós-ocupação. Em um contexto de desarticulação dos vínculos comunitários nos grandes centros urbanos, é significativa a edificação de uma contra-conduta que não apenas recupera tal relação cooperativa e solidária, como também - e por meio dela - promove uma profunda politização popular. Trata-se de uma verdadeira construção coletiva de uma identidade dentro do MTST, fruto de uma operação dialética entre os preceitos de soberania e desalienação no movimento, 21 Ibid., p. 90. 22 Ibid., p. 93.


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às necessidades imediatas e experiências acumuladas pela base e do constante diálogo com coletivos periféricos, étnicos e de gênero. Nesta proposta de atuação, “a forma-ocupação se tornou central na sua construção e atuação, como forma de ação coletiva confrontativa, e como potencial de politização, resultando em base social e formação de novos militantes”23. Assim, MTST logra não apenas recentralizar a vida cotidiana escala comunitária, como também construir a consciência de que somente os trabalhadores pode responder às demandas de sua classe - o poder popular, cláusula pétrea do movimento -, pleiteando a disponibilização de recursos públicos para a disponibilização de moradia digna, infraestrutura e serviços urbanos. Consolidando uma sólida metodologia de ação e objetivos próprios em suas ocupações e coordenações de bairro, já no início da década de 2010, o movimento galga incontestável proeminência no cenário político nacional. Assume papel de protagonismo nas lutas urbanas por seu papel decisivo em dois simbólicos momentos históricos. O primeiro caso foi a série de mobilizações contra a Copa do mundo de futebol da FIFA de 2014 no Brasil: em meio a um dispêndio financeiro estupendo em estádios e obras de infraestrutura e serviço - exigências da organização para este evento - o direcionamento dos fundos públicos fora em grande medida direcionado a uma capitalização e valorização especulativa da terra nas cidades sede. Não apenas consumiu-se um dinheiro pleiteado para atender as demandas da população espoliada nos grandes centros urbanos, o evento também proporcionou um significativo processo de especulação imobiliária em regiões chave para o acontecimento da Copa. Em São Paulo, o MTST protagoniza a luta popular contra tamanha inversão de prioridades, afrontando a mercantilização do espaço e exigindo que sejam atendidas as demandas da classe trabalhadora. Assim chamada de Copa do Povo, ocupa um terreno de proporções expressivas próximo ao estádio de Itaquera, que não apenas rivaliza - simbólica e efetivamente - com a especulação imobiliária, como também torna-se um polo organizativo de atos, protestos e manifestações em parceria com outros movimentos sociais. Tamanha articulação engendrada na ocupação seria fonte primária para o estopim do segundo levante urbano em questão: as jornadas de Junho de 2013. Nela, o MTST fora um dos pilares de uma manifestação pautada na “construção em rede, formato horizontal, núcleo organizativo nas ocupações, caminhadas pela cidade, intervenções artísticas, lugares estratégicos e simbólicos da ação, simultaneidade das ações e fluidez de sua composição. Esse repertório circulou nos protestos que correram o mundo 23 Ibid., p. 94-95


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na última década”24 . Participando dos protestos contra o aumento da tarifa no transporte público paulistano organizando a população periférica - por meio do grupo Periferia Ativa - o movimento dos sem-teto concluiria o ano de 2013 extremamente fortalecido: resultando não apenas em um ganho político, como na conquista territorial na cidade. Assim, logrou-se estabelecer três ocupações em São Paulo: além da Copa do Povo, são elas a Faixa de Gaza e a Vila Nova Palestina - esta última reunindo oito mil famílias. As três ocupações, que simbolizam a ascensão do MTST como movimento de grande relevância nas disputas urbanas em São Paulo, não apenas significam o fortalecimento político, como também constituem uma nova relação do movimento com a produção territorial na cidade. Nesse sentido, uma luta que era, simultaneamente, herança do período de redemocratização e contra a economia neoliberal e suas novas articulações urbanas. Dessa forma, o lançamento do programa federal Minha Casa Minha Vida (MCMV), em 2009, em uma verdadeira união de interesses das centrais sindicais e das grandes empreiteiras com a proposta de proporcionar moradias acessíveis, passa a ser objeto de reivindicação do movimento dos sem-teto. Programa que representa a contradição no crescimento econômico durante o governo petista - marcado pela adoção de políticas de mercado neoliberal na estrutura econômica nacional, o fortalecimento do comércio de commodities e do sistema financeiro, aliado a uma política de distribuição de renda, aumento de salários e aquecimento do consumo interno - o MCMV pavimenta um caminho concreto para alcançar objetivos centrais do movimento em meio à disputa por recursos públicos. Assim, a escala nacional tomada pelo MTST permitiu que o movimento lutasse pelo repasse dos fundos destinados à moradia, mesmo atuando por fora do campo democrático-popular, onde pesa a pressão de seus atos, manifestações e ocupações. Não sem suas contradições, a criação da categoria MCMV-E (Entidades), que permitiu aos movimentos sociais pleitear de forma autônoma os recursos do programa habitacional, atendia diretamente as demandas das bases. Sendo a moradia qualificada o principal motivo de ingresso no Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto, a garantia de uma habitação digna por meio da aquisição de fundos públicos direcionados às organizações sociais tornou-se uma via de acesso ao objetivo imediato das famílias que recorriam ao movimento como única solução. Dessa forma, conquistando projeção nacional de grande porte 24 Ibid., p. 101.


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em 2013 e com um programa público de moradia popular voltado às demandas colocadas diretamente por movimentos sociais, o MTST alia suas pautas de formação de uma base politizada sob vínculos comunitários dentro das ocupações, com laços duradouros e essencialmente anticapitalista, à oportunidade de garantir o direito de habitar a cidade proporcionada pela modalidade MCMV-E. Como efeito, o crescimento do movimento foi ainda mais expressivo, alcançando 33 ocupações no estado de São Paulo no ano de 2018. Ampliou seu campo de atuação, passando a disputa institucional ao lançar o candidato Guilherme Boulos, coordenador nacional do MTST, à disputa pela presidência da república nas eleições do mesmo ano; concorrendo ao cargo de prefeito do município de São Paulo em 2020. Também participaram do pleito à vereança paulistana a chapa Juntas, composta pelas lideranças Jussara, Tuca e Débora, mulheres negras, formadas em ocupações do Movimento, buscando levar sua visão interseccional à câmara municipal. Destaca-se ainda a formação da Frente Povo Sem Medo, fonte de articulação popular acerca de pautas de governo, e a liderança na Frente Resistência Urbana, composta por uma miríade de movimentos que buscam uma reforma urbana anticapitalista. Finalmente, o protagonismo do MTST nas disputas territoriais, sobretudo na capital paulista, permite vislumbrar uma nova maneira de tratar as contradições históricas de uma sociedade forjada pela espoliação do direito de pertencer a uma comunidade urbana. Como aponta Falchetti: “Colocar as cidades no centro dos conflitos traz para as lutas sociais outro paradigma espaço-temporal, que conecta o local ao global e coloca em órbita movimentos, ativistas e coletivos do mundo todo. As lutas por moradia, terra urbana e transporte público poderiam ser vocalizadas a partir de direitos específicos, mas, ao serem vinculadas ao direito à cidade, os movimentos sociais deixam de compreendê-las como questões isoladas a serem negociadas em secretarias e ministérios específicos dos poderes institucionais e passam a reivindicar a cidade como um comum”25

4.3 - A arquitetura do poder popular A trajetória de adaptação da luta popular herdada do MST ao cenário urbano, na figura singular do MTST, leva a busca por simultaneamente atender às demandas de moradia digna da base, estabelecer uma sociabilidade comunitária 25 Ibid., p. 123.


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anticapitalista e cravar-se como um movimento de proeminência no cenário político nacional, desenvolve, a sua maneira, uma epistemologia de luta de classes pela forma comum. Tal especificidade é desenvolvida pela dialética entre as particularidades espaço-temporais de uma população oprimida, a programa de desalienação no cerne do movimento - assim como observara Fanon como sendo um predicado indissociável das lutas emancipatórias - e o léxico da autogestão e ação direta. Em primeiro lugar, a questão da localidade é tratada na própria definição do MTST: como aponta em sua Cartilha de Princípios26 , trata-se de um movimento territorial. Em suma, o levantamento de pautas e a execução de atos, reivindicações e ocupações são planejados e organizados nos bairros e regiões que abrigam a base do movimento: a periferia da cidade. Enquanto o crescimento do emprego informal dificulta a articulação sindical das lutas da classe trabalhadora, a luta é reorientada, e passa a se firmar no local onde consolidaram as contradições urbanas e sociais enfrentadas pelos sem-teto. Assim, seguindo a compreensão lefebvriana de que os problemas do espaço são decorrentes de problemas desenvolvidos no espaço, a luta por direitos na periferia é tratada pela população mobilizada nos locais onde surge a demanda: na casa, nos bairros, nas ruas e nos ambientes de trabalho. Se o território é a plataforma de mobilização de um grupo sócio-espacial periférico, com autoridade e pleno conhecimento das necessidades da região, e que não apenas é a base do movimento, como também é o sujeito de classe que enfrenta diariamente as contradições do modo de produção excludente, o arranjo programático do MTST (segundo elemento da dialética supracitada) opera na transformação destas experiências da vida cotidiana em objeto de desalienação e instrumento de reivindicação. Para o movimento, a luta contra os interesses de acumulação e reprodução do sistema capitalista é o eixo central que articula suas decisões e ações. Nesse sentido, a aliança entre mercado e Estado, que promove o distanciamento da classe trabalhadora dos meios materiais de construir e deliberar sobre suas próprias necessidades e desejos. O privilégio de habitar com dignidade a cidade é reservado a uma classe minoritária, e é sobre tal disparidade que o MTST busca a conquista de soberania dos sem-teto. Trata-se da criação do poder popular: a compreensão de que somente os trabalhadores são capazes de responder às suas demandas. Como registrado na Cartilha de Princípios, “na prática, isso significa estimular e valorizar as iniciativas autônomas, construir formas de organização e decisão coletiva, lutar por nossas reivindicações e direitos; enfim, não esperar nada de ninguém a não ser de nós 26 MOVIMENTO DOS TRABALHADORES SEM-TETO. Cartilha de princípios. 2013.


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mesmos”27 - sendo este, portanto, o principal objetivo do MTST. Enquanto a construção do poder popular, objetivo central do movimento, meio objetivo para que a classe trabalhadora possa decidir autonomamente os caminhos pelos quais envereda no território, e com isso produza uma cidade condizente com sua jornada, a bandeira mais alta que carrega consigo é a da luta por direitos. É ela que expressa as necessidades imediatas do movimento e de sua base, sintetizada pela demanda por moradia digna. Como dito anteriormente, a busca por pedaço de terra na cidade resolve um grande problema da população sem-teto, mas ela, por si só, não garante que se possa usufruir de todos os recursos urbanos indispensáveis à vida cotidiana. À luta pelo direito de morar, portanto, incluem-se o direito por educação - disponibilidade de escolas infantis, ensino médio e fundamental nos bairros -, por melhores condições de emprego e renda - exigindo direitos trabalhistas, previdenciários, até a disponibilização de creches -, por saúde - construção de hospitais, postos de saúde, infraestruturas de saneamento básico -, por transporte adequado - novas linhas de ônibus -, etc. Desta bandeira por moradia digna, com tudo o que envolve, segue a proposta do movimento: uma reforma urbana, que mude o caráter mercantil da cidade, e permita a soberania do poder popular na produção do espaço. Em meio a espoliação da população mais pobre sobre os recursos e espaços da cidade, empurrada das regiões centrais em direção à periferia por uma intensa capitalização da terra, da degradação das condições de trabalho e do aumento do custo para usufruto das infraestruturas e serviços privatizados, a compreensão do movimento é que apenas uma radical reforma urbana solucionaria essa insustentável permanência da classe trabalhadora nos rincões mais profundos da desigualdade territorial. Para tanto, duas são as formas de atuação do MTST: a ação direta e a luta institucional. Esta última é composta por negociação de projetos com o Estado, a participação de integrantes do movimento em audiências públicas, como na formação de planos diretores, a integração em conselhos populares e até a disputa em eleições nos âmbitos municipais, estaduais e federais. Por sua vez, a atividade direta do MTST é dividida em dois eixos: de um lado, as pressões populares em marchas, protestos, bloqueios de ruas e avenidas, exigindo contrapartidas do poder público. De outro, as ocupações urbanas, consideradas pelo movimento como sua principal forma de ação: “com elas pressionamos diretamente os proprietários e o Estado, denunciamos o problema social da moradia e construímos um processo de organização au27 Ibid., p, 3.


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tônoma dos trabalhadores [...] Entendemos também que as ocupações de terrenos nas periferias devem ser potencializadas como uma porta para o trabalho comunitário nos bairros próximos. Não podem ser uma ilha de lutadores; mas devem avançar para uma integração com as demandas dos trabalhadores que não participam diretamente dos acampamentos, ampliando nossa referência”28. Atuando sobre lotes abandonados, com dívidas em impostos por vezes superiores ao próprio valor venal do imóvel, ou com infrações diretas à legislação urbana e ambiental (portanto, somente em propriedades desocupadas, esquecidas pelo poder público e mantidas como forma especulativa de multiplicação da renda), as ocupações são o centro vivo do movimento. Dessa forma, trata-se do lugar onde o programa de desalienação popular, da formação de militantes e da consciência de classe é aplicado, orquestrados pelas relações de cooperação, co-atividade e reciprocidade - tal qual a forma do comum - em aliança com organizações sindicais e coletivos periféricos, étnicos, de gênero e lgbtqi+. Chega-se, assim, ao terceiro elemento do tripé que sustenta a construção de um comum da luta de classes: a organização do MTST. De acordo com a cartilha do movimento, são seis os princípios organizativos que compõem o léxico comunitário de sua mobilização29. “Unidade na ação e liberdade na discussão”: é fundamental que todos os militantes e atuantes do MTST expressem suas opiniões e crenças tanto nas assembleias e instâncias deliberativas, quanto nas atividades cotidianas menos específicas; entretanto, uma vez que a decisão é coletivamente tomada (tanto via voto, quanto por consenso), ela deve ser acatada por todos do movimento. “Decisão coletiva e responsabilidade individual”: todas as decisões que envolvem os passos a serem tomados pelo movimento, em maior ou menor escala, são tomadas de forma coletiva; divididas as tarefas, cada um tem o dever de segui-la e prestar contas ao movimento. “Só decide quem atua”: é imprescindível que todo militante deve assumir algum cargo em coletivos, brigadas ou setores, sendo efetivamente atuante no dia-a-dia. “Disciplina militante e valores socialistas”: embora a liberdade na expressão de crenças e opiniões seja um princípio basilar do movimento, é importante que não hajam desvios de conduta que reproduzam relações sociais e “as ideologias que combatemos: opressões, discriminações (a mulheres, negros, homossexuais) e valores individuais”. “Transparência nas relações”: para evitar que sejam criadas vertentes internas que atrapalhem a unicidade nas tomadas de decisão do movimento e para respeitar as diferenças de opinião, as posições divergentes devem ser tratadas sempre de forma clara e transparente (tanto para com a base, quanto 28 Ibid., p. 5. 29 Ibid., p. 7.


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nas assembleias e instâncias deliberativas). “Construção do poder popular”: por fim, este princípio é entendido pelo binômio da autonomia e formação política. A primeira, compreende-se que as decisões do MTST devem ser tomadas pelo MTST, sem a interferência de interesses externos do movimento; e a segunda, entende-se como primordial a formação política de militantes na base para que assumam responsabilidades coletivas, consciência de classe e posições nas atividades de decisão e na estrutura do movimento30 . Assim, o MTST torna-se efetivamente “conduzido pelos trabalhadores” em um “esforço organizativo para preparar cada vez mais trabalhadores para dirigirem a organização”31. Cabe ressaltar que estes são pilares que sustentam a atuação do movimento; não são, portanto, normas: de modo que as regras são decididas em comunidade. Dessa forma, a união dos princípios do movimento em uma articulação territorial da luta anti capitalista, engendra uma organização coletiva de desalienação política e social: um comum de classe, permeado por relações interseccionais. Tal direcionamento se traduz na composição estrutural do MTST em três coletivos: político (composto pela coordenação nacional e estadual, onde são traçados as linhas de atuação em cada escala de governo e do território), organizativo (dividido em setores, executam as decisões e tarefas de base para a construção do movimento), e territoriais (formado pelas coordenações de acampamento, pelos núcleos e coordenações regionais, são os meios de articulação do movimento no espaço da cidade, levantando demandas e meios de atuação nos bairros, nas casas e nas ruas). Desta forma tripartite, compreende-se uma estrutura hierarquizada em instâncias regionais, estaduais e nacionais. A primeira é composta pelos coordenadores dos grupos, dos núcleos (correspondendo a um representante a cada cinco membros) e das referências comunitárias, (que elegem um por comunidade). A coordenação regional leva ao nível estadual um representante onde o movimento constrói uma ocupação, e onde logra-se estabelecer mais, são levados dois militantes, cargos renovados a cada quatro meses. A estes, são somados um representante de cada setor, renovados a cada ano. Por fim, de acordo com a situação do movimento em cada estado, de um a três representantes são levados ao nível da coordenação nacional, com rotação anual dos cargos. No nível mais imediato e corriqueiro, o militante do MTST atua em coletivos (como o coletivo negro, o lgbtqi+ e o feminista) e nos sete setores do 30 Ibid., p. 7. 31 Ibid., p. 7.


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movimento que seguem. Formação política: que atua na proposição de debates e atividades coletivas entorno de fatos e textos que alimentem a consciência de classe e a construção de um imaginário coletivo voltado ao senso de comunidade. Articulação: estabelece as relações e mediações entre o movimento, seus aliados e o Estado; organização: opera na manutenção do bom funcionamento da ocupação; segurança: promove o árduo trabalho de autodefesa nas ocupações, organizando rondas noturnas e vigílias constantes. Autosustentação: propõe métodos de financiamento dos atos, ocupações e até de novas moradias; podendo atuar conjuntamente com o setor de finanças, cujo objetivo é organizar os recursos financeiros do movimento. Por fim, o setor de comunicação e simbolismo é responsável pela divulgação das atividades em rede, e pela construção de uma identidade coletiva do MTST. Trata-se, em suma, de uma ordenação unitária e uníssona de uma atuação que procura responder às idiossincrasias dos grupos sócio-espaciais que compõem a base32. Esta relação umbilical entre o MTST, suas coordenações, setores e bases, que promove a construção coletiva da reivindicação por melhores condições de vida na cidade, como dito anteriormente, produz um espaço que, mesmo temporário, permite aliar articulação popular, formação política e o fortalecimento de laços comunitários: as ocupações. Principal forma de organização do movimento, as ocupações são erguidas e consolidadas com intenso trabalho militante: desde a mobilização inicial, a escolha e entrada no lote, o levantamento de barracos, a organização de assembleias e a contínua luta por permanência faz da ocupação um espaço sui generis; onde o comum da classe trabalhadora não apenas constrói sociabilidades e visões de mundo anticapitalistas, como também lapida e edifica o território de luta. Como grafado na Cartilha de Princípios, trata-se de “fazer da ocupação muito mais que uma luta por moradia, mas sim uma ferramenta para o acúmulo de forças do MTST rumo a nossos objetivos”33 . Nesse sentido, as pretensões imediatas do movimento ao construir uma ocupação são: formar militantes; reestruturar a vida cotidiana de forma a fortalecer as soluções e atividades coletivas (tanto para alcançar os objetivos do movimento, quanto para que se prevaleçam locais de comunhão, como cozinhas, praças e bibliotecas); criação de laços com o território, potencializando a dimensão do espaço enquanto meio de articulação da luta; e a formação de referências nas comunidades - pois mesmo sendo a ocupação uma urbanidade temporal, a busca pela construção do poder popular é permanente, e perdura mesmo depois de conquistada a moradia digna. Tais objetivos e metodologias 32 Ibid., p. 10. 33 Ibid., p. 11.


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de ação ilustram, nas ocupações urbanas do MTST, a dimensão pela qual os comuns atuam na formação individual e coletiva da contraconduta anticapitalista, na criação de novas sociabilidades desalienadas e na conquista de autonomia e soberania popular. Trata-se, portanto, do comum que se compreende não como um princípio ordenador da sociedade, mas como um meio de luta. Como apontam Dardot e Laval34 em seu apanhado histórico, estudado no capítulo anterior, no mesmo período em que se viu o recrudescimento da economia política neoliberal, a forma do comum tem sido usada para ordenar reivindicações, construir novas governabilidades de recursos e tecer sociabilidades anticapitalistas. O caso do MTST - e especialmente em seu maior foco de ação, o município de São Paulo - reforça o caráter transformador desta epistemologia comunitária: onde se implementam relações solidárias e cooperativas em meio à luta por direitos, cada vez mais cerceados pela sistêmica espoliação da população sem-teto na cidade. Para tanto, compreende-se que a luta anticapitalista promovida pelo movimento ocorre em ao menos cinco pontos fundamentais. Em primeiro lugar, a ocupação de uma propriedade de terra abandonada e irregular, utilizada para fins especulativos - um ativo imobiliário, como aponta Fix e Paulani35 - toma posse de uma mercadoria elementar ao crescimento de preço da moradia e à despossessão da classe trabalhadora. Em segundo lugar, a renda capitalizada, paga ao proprietário como forma de aquisição da escritura da terra, é arcada pelo Estado, e não pelo sujeito que conquista a moradia pela mobilização comunitária (o que, embora não resolva a correlação de forças na fórmula trinitária marxiana, reforça o caráter de luta de classes da ocupação). Em terceiro lugar, as atividades de formação exercidas na ocupação - demonstrando os direitos constitucionais dos acampados, quais são as origens da luta, o porquê ela é necessária - esclarece a validade do movimento dos trabalhadores sem-teto como forma de conquista da dignidade habitacional. Em quarto, a articulação umbilical do MTST com coletivos e pautas de combate ao machismo, homofobia e racismo (tão caros à divisão do trabalho pelo regime do capital). Por último, o quinto ponto consiste na formação de uma sociabilidade cooperativa, construída nas atividades cotidianas da ocupação: nas cozinhas comunitárias, atividades deliberativas, na segurança dos acampados e edificação dos espaços. Nesse sentido, o estabelecimento de laços que perduram para além do limite temporal dos assentamentos é fruto de um trabalho de base que alia a construção de consciência de classe ao entendimento de que a luta anticapitalista é territorial - exigindo, portanto, a formação de lideranças comunitárias em 34 Dardot e Laval, 2014. 35 Fix e Paulani, op. cit., p. 639.


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bairros, que perpetuam a articulação comum no período pós ocupação. Trata-se, em suma, de um movimento que se posiciona à contrapelo dos processos de espoliação cotidiana, ocupando terrenos abandonados e destinados à especulação e exigindo do Estado sua contrapartida na garantia do direito à moradia. A construção de uma identidade de classe, da desalienação sobre o trabalho e as contradições cotidianas, e do poder popular são bandeiras e objetivos articulados e conquistados pela via do comum. Entretanto, como aponta uma coordenadora do movimento em um atividade de formação ministrada no dia 13 de setembro de 2020, a atuação do MTST é “insuficiente para construir uma transformação” completa da sociedade; o que reforça a posição de que o comum, enquanto princípio político, é capaz de promover tamanha revolução, como acreditam Dardot e Laval. A interpretação dos comuns enquanto meios de organização da luta popular, por outro lado, reconhecendo os limites práticos do que se pode conquistar, encontra nas ocupações do MTST a possibilidade de desenvolver um embrião de militância que, este sim, detém as vias de edificar uma nova sociedade. Assim, é pela compreensão do comum como um meio, e não um fim, que se entende a inserção da ocupação no fortalecimento da classe trabalhadora; onde sua epistemologia territorializada de desalienação simultaneamente produz um espaço. A dimensão espacial da ocupação é, portanto, o ponto fundamental da questão do comum enquanto um meio de articulação de classe e desalienação popular. A dialética lefebvriana da correlação entre espaço e grupo social leva-nos a compreender os processos envolvidos na edificação, construção e formação social dentro das ocupações como um condensador social. Proposto por uma geração de arquitetos soviéticos que participaram do nascimento do Estado revolucionário, durante os anos de 1925 e 1932, os condensadores sociais foram projetados para gestionar a sociedade do futuro: “Como condensadores elétricos que transformam a natureza dos fluidos, os arquitetos propuseram “condensadores sociais” para reverter o homem egoísta da sociedade capitalista em um homem completo, o militante consciente do socialismo”36.

Assim como há no MTST a compreensão de que sua atuação, territorializada por natureza, não é suficiente para uma mudança completa da sociedade, a concepção dos condensadores sociais traz consigo a crença enfática da 36 KOPP, Anatole. Town and Revolution: soviet architecture and city planning 1917-1935. New York: George


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“decisiva importância de uma transformação socialista das bases econômicas da sociedade”. Entretanto, como afirma Anatole Kopp, em seu livro Town and Revolution37 “é invariavelmente verdadeira a crença destes arquitetos de que a transformação social não é uma via de mão única e que o ambiente participa neste processo, que a arquitetura e o planejamento urbano tem influência formativa e educacional”38. Dessa forma, tanto os assentamentos do movimento, quanto o projeto revolucionário dos condensadores sociais atuam nesta dialética relação entre corpo social e espaço da vida cotidiana; de onde tem-se a ebulição de uma nova sociabilidade de militância “consciente do socialismo”. Assim como houve um projeto arquitetônico e urbanístico que traduziu a intenção gestacional desta sociabilidade em espaço nos condensadores sociais soviéticos, o comum da classe trabalhadora sem-teto produz suas próprias edificações, espaços de significação comunitária, que induzem o despertar do poder popular. Portanto, nesta etapa final do trabalho, passando por um estudo inicial da economia política neoliberal e suas implicações na consolidação do problema da espoliação urbana, seguido da análise bibliográfica dos comuns enquanto experiências de contemporânea articulação anticapitalista, busco compreender qual é o espaço que simultaneamente produz a luta comum dos sem-teto, e que por ela é produzida. Para tanto, me debruço sobre uma das maiores, mais significativas e duradouras ocupações do MTST: a Vila Nova Palestina. 4.4 - A incrível cidade dos sem-teto Em primeiro lugar, a escolha da ocupação Vila Nova Palestina como objeto empírico da análise posta sobre a relação entre espaço e sociedade, postos em movimento pelo objetivo de construir o poder popular, se deve a três motivos essenciais: sua história e escala, e o respeito à saúde pública em meio à crise sanitária provocada pelo coronavírus. Parto da trajetória histórica do assentamento como fator inicial: enquanto as ocupações do MTST costumam ser estabelecidas e desmontadas em um período que gira em torno de um ano, a Vila Nova Palestina fora erigida em 2013 na Zona Sul da capital paulista, e perdura - até 2020, ano da redação deste trabalho - como um importante centro de formação política do movimento na região. No tempo de sua duração, logrou significativas conquistas tanto no plano da legislação urbana, quanto da construção de Braziller Inc., 1970, p. 115, tradução nossa. 37 Kopp, 1970. 38 Ibid., p. 115-116.


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novos laços comunitários e sociabilidades anticapitalistas, elevando acampados a participar desde importantes postos de coordenação no movimento, até o pleito da vereança municipal nas eleições de 2020. O segundo motivo é pela proporção espacial tomada pela ocupação: “a incrível cidade dos sem-teto”39 , como indica o título de uma matéria jornalística sobre o assentamento, fora erguida com todo o léxico urbano ressignificado pela luta por moradia digna. Assim, suas ruas primárias e secundárias, casas, edifícios de representação e serviços comunitários foram postas à luz de acordo com as idiossincrasias vividas pelo MTST. Dessa forma, permite ampliar a compreensão da produção do espaço como elemento socialmente transformador não apenas na escala do edifício, mas da cidade. Por último, em decorrência da pandemia de covid-19, enfrentada nacionalmente com relapso e inconsequência arrebatadoras, o trabalho de campo nesta pesquisa fora profundamente limitado. Entretanto, por atividades presenciais de formação que exerci em minha participação na brigada de arquitetura e urbanismo do MTST, pude fazer registros e estudos anteriores à pandemia, de modo que o prejuízo na aquisição de conteúdos e materiais de base para análise, no caso da Vila Nova Palestina, foi largamente minorado. Do ponto de vista metodológico, a análise da ocupação segue o princípio de atuação territorial do movimento dos trabalhadores sem-teto. Como dito anteriormente, o MTST busca se alocar nos locais onde as contradições da vida cotidiana de sua base emergem e se desenvolvem; de modo a transformar, pelas propostas de ação política, transformar tanto o espaço quanto o grupo social que ali vive. Nesse sentido, a relação entre, de um lado, as pautas e formas de organização deste comum da classe trabalhadora e, de outro, o local, com suas particularidades geomorfológicas, sociais, infra estruturais, além da disponibilidade de moradia, serviços públicos e empregos, promovem uma resposta invariavelmente singular do movimento às condições dadas. Trata-se de um movimento dialético sustentado pelo tripé “lugar”, “programa” e “construção”, que mutuamente se influenciam em direção à criação de um espaço condizente com o conflito entre o ambiente em que se insere o MTST e seu movimento transformador. Tal metodologia fora desenvolvida conjuntamente pelos integrantes do laboratório de projetos da FAU-USP - do qual fiz parte durante os anos de 2017 e 2018 -, sob orientação do professor Alexandre Delijaicov, e que estrutura a análise de um objeto arquitetônico e urbanístico por meio desta divisão tripartite. O lugar confere a base espaço-temporal sobre a qual um corpo 39 HARARI, Isabel e OLIVEIRA, Roberto. Nova Palestina, a incrível cidade dos sem-teto. Outras Palavras, publicado 18/02/2014. Disponível em: https://outraspalavras.net/cidadesemtranse/nova-palestina-a-incrivel-cidade-dos-sem-teto/


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social está inserido; o programa é constituído pelo reconhecimento das práticas que compõem a vida cotidiana no local, em um amálgama entre as preexistências e o projeto do movimento; e a construção representa a resposta material, essencialmente arquitetônica, do processo de formação do poder popular. Sendo assim, a análise da Vila Nova Palestina é estruturada sobre três pontos: lugar, programa e construção. No primeiro, trato do arco histórico da ocupação, assim como sua inserção na cidade e no bairro - tanto do ponto de vista normativo e legal, quanto em relação às demandas sociais consolidadas. No segundo, trato da relação entre as bandeiras, objetivos e princípios do movimento e sua relação com a formação de laços cotidianos dentro da ocupação, em meio à articulação política e normativa para a conquista da moradia digna. No terceiro, abordo a edificação dos ambientes no assentamento, onde tanto o processo quanto o resultado final da construção respondem às dinâmicas do MTST no espaço: delimitando tempo de obra e de ocupação, métodos de produção coletiva, materiais a serem usados; em suma, a arquitetura na escala da rua, da casa e dos edifícios comunitários, lapidados pela identidade do movimento. Por fim, ao longo da argumentação posta nos subcapítulos a seguir, tanto o lugar, programa e construção da Vila Nova Palestina são cotejados aos preceitos apresentados por Dardot e Laval na segunda parte do livro, onde tratam dos meios de desenvolvimento da sociabilidade do comum. Ilumina-se, assim, a base teórica dos autores acerca da temática proposta, observando suas limitações e virtudes em três eixos: apropriação do espaço, relações normativas e institucionalização do comum. 4.5 - Lugar: a condição periférica Ao alto de uma colina, afunilada entre às margens da represa Guarapiranga e o limite municipal da capital paulista com Itapecerica da Serra, em um lote de aproximadamente um milhão de metros quadrados, fundou-se aquela que é uma das maiores ocupações urbanas da América Latina. A Vila Nova Palestina - nome que remete ao ambiente de abundantes conflitos em que se insere, assim como é a antiga e distante terra do povo palestino - ocupa um verdadeiro latifúndio urbano, no exato cruzamento da rua Clamecy e a estrada do M’Boi Mirim, no Fundão do Jardim Ângela. Foi ali que, no dia 28 de novembro de 2013, cerca de oito mil famílias filiadas ao MTST levantaram este imenso acampamento, em uma demonstração da força conquistada pelo movimento após a efervescência política e popular daquele ano. Em uma propriedade de terra


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abandonada, intocada havia meio século por seu proprietário Roberto Roschel, e seguindo o princípio político de atuação territorial, a ocupação desenvolve suas pautas e objetos de reivindicação de acordo com as demandas do lugar onde reside a classe trabalhadora mobilizada. Tais pautas, em decorrência de sua inserção no contexto urbano da periferia paulistana, e especialmente na Zona Sul, incorporam a atuação dos sem-teto em um território onde a urgência das lutas por moradia digna divide espaço com a necessidade de preservação ambiental. O fator ambiental neste ponto da cidade apresenta dois pontos relevantes para a consolidação da ocupação. Por um lado, a região em que se insere a Vila Nova Palestina é regulada pela lei de proteção aos mananciais, de 1976, que busca restringir processos de urbanização como forma de reduzir os impactos ambientais sobre os corpos d’água paulistas - sobretudo as represas Billings e Guarapiranga. De outro, por meio do decreto de utilidade pública 51.591, expedido em 29 de junho de 2010, o então prefeito Gilberto Kassab (DEM) destina o lote da ocupação a tornar-se um parque, haja vista a vastidão de áreas arborizadas neste imenso terreno. Por sua vez, até a data da ocupação, nenhuma medida havia sido tomada para a implementação deste parte40 ; e após três anos abandonado, o terreno teve suas clareiras ocupadas pelo MTST. O posicionamento dos acampados no lote é um fato de suma importância, tendo em vista que não houve nenhum desmatamento ou alteração substancial no terreno durante o processo de ocupação - o que, caso contrário, traria problemas não apenas do ponto de vista ambiental, quanto no processo litigioso da busca por moradia, como veremos adiante. Em todo caso, tanto pela decisão municipal de transformar a propriedade em um parque, quanto pela legislação de proteção ao meio ambiente, a sobreposição das problemáticas que envolvem os processos de urbanização periférica na cidade de São Paulo - sobre os quais atuam o MTST - e a condição de fragilidade dos biomas locais compõem a particularidade deste lugar. Assim, simultaneamente, a escassez dos atributos urbanísticos essenciais para que se possa habitar com dignidade, e as características legais e geomorfológicas do território compuseram a base que sustenta a produção do espaço da Nova Palestina no Jardim Ângela. A complexa relação entre a precariedade habitacional e a fragilidade ambiental é, portanto, o ponto de partida para uma compreensão das idiossincrasias locais sobre a qual opera a atividade do MTST. Antigo território dos 40 COELHO, Rafael Julio. Produção do espaço urbano e resistências: A ocupação Vila Nova Palestina. Trabalho de Conclusão de Curso em Geografia - USP, 2017, p. 18.


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índios Guaianazes, o Jardim Ângela é um distrito da subprefeitura do M’Boi Mirim (da língua tupi “rio pequeno das cobras”), da qual também faz parte o distrito do Jardim São Luís. Trata-se de uma subprefeitura de 62,1 km2, com aproximadamente 563.305 habitantes, de acordo com pesquisa feita pelo IBGE, em 2010. Trata-se de uma região cuja ocupação deu-se majoritariamente entre 1950 e 1985, com o desmembramento de sítios e chácaras de imigrantes alemães e italianos, que no início do século 20 construíram ali suas casas de veraneio. O caráter bucólico da então chamada riviera paulista passa a ser transformado por um incipiente processo de urbanização, abrigando a construção de vilas operárias de migrantes do interior do estado de São Paulo e de outras regiões do Brasil, cujo auge foi na década de 1960, e que ali se assentaram para trabalhar nas indústrias que se instalavam em Santo Amaro41. Os conflitos entre as características naturais do lugar e os processos de povoamento (tanto os iniciados a busca por trabalho nas indústrias de distritos próximos, quanto pela atual procura por moradia na metrópole), antes de serem mediados por legislações e propostas de alocação de novos parques, fora posto pelo próprio relevo da região. Extremamente acidentado, apresenta condições geomorfológicas desfavoráveis à urbanização, tendo nos altos espigões e ao longo dos vales, este terreno escarpado recebeu as principais vias de trânsito na região. Dentre elas, a estrada do M’Boi Mirim, que une os distritos do Jardim Ângela e Jardim São Luís e direciona o caminho ao centro da cidade, é o endereço da Vila Nova Palestina. De princípio, a ocupação do MTST se desenvolve em um ponto da cidade historicamente habitado pela classe trabalhadora, onde a construção do lugar enfrentou os entraves postos por um relevo de difícil domínio, e fora tratado com prioridade secundária no que diz respeito ao cuidado do poder público para com os moradores da região. Um fato que se reflete nos dados socioespaciais da subprefeitura, apresentando condições críticas à moradia digna, desde a deficitária disponibilização de infraestruturas urbanas essenciais e de serviços públicos, até o levantamento de renda média familiar, taxa de escolaridade e segurança42. A precariedade habitacional no Jardim Ângela desenvolve-se, assim, trazendo o conflito de classes a uma região de suma relevância ambiental. Distrito marcado sobre a sub-bacia do rio Embu Mirim, vertente da represa Guarapiranga, apresenta uma infraestrutura de drenagem e esgoto absolutamente de41 PREFEITURA DE SÃO PAULO. Caderno de Propostas dos Planos Regionais das Subprefeituras Quadro Analítico: M’Boi Mirim. Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano. 2016, p. 5. 42 Ibid., p. 8.


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Mapa 1: Localização da ocupação no município.

1

Legenda

(Mapa elaborado pelo autor. Fonte dos arquivos shapefile: GeoSampa e CESAD-USP)

Ocupação Vila Nova Palestina Mancha urbana RMSP São Paulo: limite municipal 1

Represa Guarapiranga

5

10

20km


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ficitárias, em uma ocupação territorial densa, ao largo dos interesses de mercado - majoritariamente composta, portanto, de soluções espaciais autoconstruídas. Um problema historicamente consolidado pela inatividade do poder público na garantia de direitos fundamentais aos moradores da região, reconhecido na elaboração do Plano Diretor Estratégico de São Paulo, em 2014 (mapa 2). Aproximamo-nos à subprefeitura do M’Boi Mirim, predominantemente identificada como macrozona de proteção e recuperação ambiental devido a fragilidade do meio ambiente local. Majoritariamente demarcado como macroárea de redução da vulnerabilidade urbana e recuperação ambiental, que tem como princípio o estabelecimento de diretrizes públicas para resolução dos problemas de saneamento, moradia, serviços, emprego, mobilidade, equipamentos urbanos, e do meio ambiente, o distrito do Jardim Ângela é um ponto reconhecidamente sensível no que diz respeito à relação entre a fragilidade dos biomas locais e a vulnerabilidade social. Além da questão ambiental, como visto no mapa 02, a região está distante das principais vias de transporte sobre trilhos, de modo que a implementação de corredores de ônibus Guarapiranga / M’Boi Mirim (passando pela ocupação) e Itapecerica / João Dias / Centro é tida como a solução imediata ao problema de mobilidade urbana - sobretudo no que se refere à conexão com as regiões centrais da cidade. Por sua vez, a Lei de Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo (LPUOS), sancionada em 23 de março de 2016, demarca 29% do território da subprefeitura como zonas de precariedade habitacional (Zonas Especiais de Interesse Social - ZEIS), que reconhece a problemática da moradia como elemento candente neste ponto da cidade. Ademais, a busca normativa por soluções urbanas está presente na Lei Estadual No 12.233/062 e o Decreto No 51.686/07:

“Tais legislações têm por objetivos: gestão participativa e descentralizada e integração entre governo e sociedade civil; integração de programas e políticas para habitação, transporte, saneamento ambiental, infraestrutura e manejo de recursos naturais e geração de renda; condições e instrumentos para ampliação da produção de água com ações de preservação, recuperação e conservação dos mananciais da bacia hidrográfica do Guarapiranga; estabelecimento de meta de qualidade da água com definição da carga de fósforo total a ser atingida; disciplinar uso e ocupação do solo; disciplinar o desenvolvimento socioeconômico para proteção e recuperação do manancial; diretrizes e parâmetros para leis municipais de uso e ocupação e parcelamento do solo; disciplinar e orientar a expansão urbana para fora das áreas de produção hídrica e preservação dos recursos naturais e educação ambiental”43.

Assim, o Estado estabelece o compromisso legal de garantir os recur-

43 Ibid., p. 8.


Iluminações históricas a uma teoria revolucionária - 137

Mapa 2: Ocupação, Macroáreas e transporte ferroviário

Campo Limpo

Santo Amaro M’Boi Mirim

Jd. São Luis Jd. Ângela

Capela do Socorro

Parelheiros

Legenda

(Mapa elaborado pelo autor. Fonte dos arquivos shapefile: GeoSampa, Portal Brasileiro de Dados Abertos e CESAD-USP)

Ocupação Vila Nova Palestina

Macroárea de Estruturação Metropolitana

Mancha urbana RMSP

Macroárea de Qualificação da Urbanização

São Paulo: limite municipal

Macroárea de Redução da Vulnerabilidade Urbana

Limite Subprefeitura

Macroárea de Redução da Vulnerabilidade Urbana e Recuperação Ambiental

Limite Distrito

Macroárea de Controle e Qualificação Urbana e Ambiental

Represa Guarapiranga

Macroárea de Contenção Urbana e Uso Sustentável

Rodoanel

Macroárea de Preservação de Ecossistemas Naturais

Linhas de Trem e Metrô

Área de Proteção e Recuperação de Mananciais

1

2,5

5km


138 - Arquitetura da Alteridade

sos urbanos básicos, essenciais à moradia digna e, em tese, permite a inserção de movimentos como o MTST no levantamento dos problemas regionais e na proposição de soluções. Este arranjo legal fora apresentado no Caderno de Propostas do Plano Regional da Subprefeitura do M’Boi Mirim para a melhoria da região44 - um projeto que analisa as idiossincrasias locais e propõe meios de reverter o desequilíbrio urbano na subprefeitura dentro dos meandros institucionais. Embora não solucione imediatamente o conjunto das demandas sociais no local, este arcabouço legal representa um canal de reivindicações pelas quais o movimento dos trabalhadores sem-teto opera e direciona sua atuação - como veremos adiante. Em uma aproximação aos dados demográficos do distrito no qual se localiza a Vila Nova Palestina, o Jardim Ângela registrou 295.434 habitantes no censo realizado pelo IBGE em 2010, tendo crescido a uma taxa de 1,65% em uma década (acima do registrado no município, que fora equivalente a 0,8% no mesmo período), com uma densidade populacional de 113,9 hab/ha, e de perfil predominantemente jovem - igualmente acima da média da cidade de São Paulo. Sob o aspecto da segurança, o distrito apresenta índices preocupantes, com alta taxa de violência, medida pelo número de homicídios por 100 mil habitantes: enquanto a cidade registra uma média de 14,17, este valor no Jardim Ângela alcança 22,7. “Este quadro se reflete no Índice Paulista de Vulnerabilidade Social – IPVS. Destacamos que 53,3% da população do Jardim Ângela está inserida nos grupos de maior vulnerabilidade, enquanto no Jardim São Luís esse percentual diminui para 19,0% da população”45. Outro significativo fator socioespacial que demonstra a precariedade habitacional na região são os dados relativos ao emprego e ao trabalho: a pouca disponibilidade de oportunidades no distrito alia-se à baixa remuneração, de modo que 79% dos trabalhadores ganham entre 1 a 3 salários mínimos (que em 2012, período utilizado na redação do Caderno, era de R$622,00). Aliado ao fato de que apenas 13% dos trabalhadores possuem ensino superior completo, a população residente neste distrito enfrenta uma posição extremamente precarizada na divisão do trabalho dentro da cidade de São Paulo, restrita à organizar sua vida cotidiana com base em uma renda domiciliar média de R$556,0046. A luta dos sem-teto no Jardim Ângela se insere, portanto, em um território historicamente construído em meio a espoliação de recursos fundamentais 44 Ibid. 45 Ibid., p. 8. 46 Ibid., p. 9.


Iluminações históricas a uma teoria revolucionária - 139

ao habitat na cidade. Mesmo com o baixo IDH na região e o compromisso legal firmado pelo Estado de garantir os meios necessários ao pleno desenvolvimento da vida cotidiana, os processos de precarização de recursos urbanos permanecem constantes. Entre os anos de 2010 e 2013, observou-se uma redução nos leitos do SUS no distrito, que passaram de 0,94 para 0,64 por mil habitantes; ainda no início da década, a disponibilidade de unidades de educação infantil e ensino médio operaram com 44,5% e 91,5% das demandas. Na escala da subprefeitura, além da baixa capacidade de atendimento socioassistencial (10,7% da necessidade), as 3 unidades CEU disponíveis na região (Casablanca no Jardim São Luís; Guarapiranga e Vila do Sol no Jardim Ângela) fornecerem equipamentos de cultura como biblioteca, teatro e cinema, o acesso a estes pontos é extremamente deficitário. Como aponta o Caderno de Propostas da Subprefeitura, “o CEU Casa Blanca atende basicamente a população do Campo Limpo, devido ao acesso ruim tanto para quem mora no distrito do Jardim Ângela quanto para quem mora no São Luís. O CEU Guarapiranga também não é de fácil acesso, devido à localização e às poucas opções de transporte público. O CEU Vila do Sol fica no extremo sul do distrito do Jardim Ângela, cerca de 1 hora da subprefeitura. Sendo assim, estes CEUs não são suficientes para atender a demanda de educação e nem para suprir a carência de espaços públicos de lazer e cultura, quase inexistentes na região”47. A luta por moradia digna na região, para além da demanda habitacional propriamente dita (cuja inadequação atinge a casa dos 14%), agrega-se à busca por infraestrutura sanitária (tanto de saneamento básico, com 21% das casas sem conexão com rede de esgoto; quanto de saúde pública), da disponibilização do ensino infantil, médio e superior, de postos de trabalho e de equipamentos de lazer e cultura (tendo em vista que 55,8% da população residente no Jardim Ângela está distante desta categoria de serviço público). Por fim, os dados fornecidos pela subprefeitura apontam em uma expressiva preponderância do transporte coletivo (54,4%) e peatonal (34%) como principais meios de locomoção dos moradores. A compreensão da disponibilização de meios de transporte, sobreposta ao déficit de empregos na região, permite-nos observar um expressivo dispêndio em horas no dia durante a locomoção entre casa e trabalho por parte do trabalhador: haja vista que 57% dos moradores do Jardim Ângela realizam esta migração pendular interdistrital diariamente, em percursos de longa duração.

47 Ibid., p. 9.


140 - Arquitetura da Alteridade

Assim, os dados apresentados no Caderno de Propostas Do Plano Regional da Subprefeitura do M’Boi Mirim permitem-nos concluir que os índices de vulnerabilidade social compõem um quadro de profunda precariedade no acesso aos recursos que garantem dignidade habitacional. Tamanha ausência de meios materiais ao exercício da plena moradia na cidade é observado desde a deficitária infraestrutura de saneamento básico - essencialmente conflitante com a própria estrutura normativa de regulação e preservação ambiental -; os dados de segurança pública, que sinalizam alta taxa de violência; a insuficiente disponibilidade de serviços e equipamentos urbanos, como educação, cultura, lazer, saúde; até a própria relação entre casa e trabalho, que leva grande parte da população da região a uma longa migração pendular diária em busca de empregos e salários suficientes para as despesas diárias. É neste contexto em que se insere a atuação do MTST na região; que busca, por meio de uma reorientação da vida cotidiana e das reivindicações em torno da atividade comunitária na ocupação Vila Nova Palestina, construir os meios materiais de transformação deste cenário. Pela proposta e exercício do poder popular no movimento, a transformação da infraestrutura das mentalidades coletivas acerca de um necessário contraponto à sociabilidade capitalista e a mercantilização do território é fruto de um processo que responde às idiossincrasias locais de urbanidade periférica. Portanto, a construção do comum de classe dos trabalhadores sem-teto na região do Jardim Ângela, onde a questão ambiental é tão candente e a defesa dos direitos de propriedade da terra por parte do poder público não perde em intensidade, orienta as bandeiras de luta tanto no campo legislativo, quanto político. Os embates legais iniciam-se poucas semanas após a entrada das oito mil famílias de trabalhadores sem-teto no lote de um milhão de metros quadrados no Fundão do Jardim Ângela. Com auxílio da subprefeitura do M’Boi Mirim, o proprietário expediu o pedido de reintegração de posse na justiça - audiência por sua vez postergada pelo juiz encarregado do caso. A determinação de desapropriação do terreno, feita pelo então prefeito Gilberto Kassab (DEM) com o intuito de transformá-lo em um parque, levanta a possibilidade de uso de 10% da área para a construção de moradias populares. Entretanto, a quantia não atenderia às demandas da região, e a morosidade do poder público na realização de seus planos tornava a propriedade ociosa em um ponto da cidade que requer urgência na provisão de recursos urbanos. Dessa forma, exigindo o cumprimento da função social da propriedade e respeitando a legislação ambiental vigente, a ocupação Nova Palestina emerge como meio de alimentar a construção do poder popular na região, e exigir a contrapartida estatal para com as demandas por moradia digna. Trata-se de um modo de ação que se vale do arcabouço


Iluminações históricas a uma teoria revolucionária - 141

legislativo hegemônico como forma de defesa dos direitos dos trabalhadores, como aponta Falchetti: “O MTST ocupou a porção de terra onde não havia cobertura vegetal, baseado nos preceitos da Constituição de 1988, que estabelece, em seu artigo 5o, a coincidência entre o direito fundamental da propriedade e o interesse coletivo, dispondo do conceito de função social da propriedade, segundo o qual a propriedade – urbana ou rural – deve ser usada em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental”48.

Mesmo exigindo um direito garantido pela Constituição de 1988, o início da história da ocupação foi marcado com pedidos de reintegração de posse e tentativas de desmonte do acampamento que se construiu. Ainda em janeiro do ano seguinte, dois meses após a entrada no terreno, o então prefeito Fernando Haddad (PT, de mandato entre 2013 e 2016) reitera a necessidade de remoção e desmonte da Vila Nova Palestina, de modo que se mantivessem os planos da gestão anterior de que o lote fosse integrado à rede de parques municipais. Segundo Haddad, mesmo que a região abrigasse um dos maiores parques da cidade, o contraditório argumento utilizado para reforçar a retirada do acampamento do MTST era de que ali não haviam áreas verdes suficientes49 . A fala do ex-prefeito fora ainda acompanhada de uma campanha de difamação à ocupação, alegando que os acampados degradariam o meio ambiente. Como resposta imediata, no dia 8 de janeiro de 2014, o MTST mobilizou cerca de 6 mil pessoas em uma caminhada de protesto direcionada à subprefeitura do M’Boi Mirim, acompanhada do travamento de pistas na Marginal Pinheiros, exigindo que se reconhecessem os direitos de moradia pleiteados na ocupação50 . A decisão anterior fora preservada, com a justificativa de que seguia as diretrizes estabelecidas no plano diretor municipal. Por sua vez, em uma luta ainda dentro do campo jurídico, a demanda do movimento destinou-se à modificação da categoria estabelecida ao lote na LPUOS para ZEIS, o que permitiria elevar para 30% da área à construção de habitações populares. Esta alternativa, além de contemplar as necessidades postas pelo movimento, agradava o proprietário do terreno, que passaria a poder vender sua propriedade ao Estado pelo preço total de mercado, evitando uma desapropriação que, em decorrência das legislações ambientais, lhe renderia uma capitalização abaixo do valor venal. Da sua parte, o MTST angariou o repasse de recursos do programa MCMV-E assegurado pela Caixa Econômica Federal - ainda aos moldes do zoneamento anterior, com 48 Falchetti, 2019, p. 127-128. 49 ibid., p. 128. 50 Ibid., p. 128.


142 - Arquitetura da Alteridade

apenas 10% destinados à moradia - e logrou a assinatura de um termo de compromisso entre o proprietário e o movimento, que garantiria a permanência da ocupação. Em novo protesto protagonizado pela coordenação da Vila Nova Palestina, no dia 22 de janeiro do mesmo ano, endereçado desta vez ao Palácio dos Bandeirantes, sede do Governo do Estado de São Paulo, no bairro do Morumbi, cerca de 15 mil manifestantes do MTST, vindos de 8 ocupações na região sul da cidade e de outros municípios vizinhos, realizaram nova pressão ao poder público para que se atendessem às demandas do movimento. Além da pressão pela mudança na lei de zoneamento, a luta orientou-se para que se aumentasse o repasse habitacional na verba pública estadual, e para que fossem ampliadas as áreas úteis das unidades de moradia populares construídas - que até então era de 39 m2. Em reunião com o então governador Geraldo Alckmin (PSDB) e seu secretariado, os acampados da Nova Palestina conquistaram o aval do governo à realização do levantamento topográfico da ocupação, de modo a viabilizar obras futuras. Ademais, a manifestação coordenada pelo MTST conquistaria ainda o repasse de 700 unidades habitacionais para a ocupação Chico Mendes, em Taboão da Serra, e a construção de 1.300 unidades em Embu das Artes51. Respondendo em atos e protestos nas ruas da cidade, no dia 26 de março daquele mesmo ano, manifestantes do MTST se concentraram no Largo da Batata e rumaram em direção a avenida Rebouças, causando expressivo congestionamento em uma das artérias da capital paulista, e mobilizando Fernando Haddad para encontrar-se com as lideranças do movimento para avançar com as demandas da Nova Palestina. Neste dia, após os atos do movimento, o prefeito aceitou alterar a LPUOS, com a contrapartida de esta alteração estivesse no escopo do Plano Diretor Estratégico (PDE), que passava por processos de tramitação na câmara municipal. Dessa forma, Haddad conquista o apoio do MTST para a aprovação do novo Plano Diretor, fato que coloca o movimento como agente crucial para o andamento das políticas urbanas do ex-prefeito. Para pressionar a decisão favorável dos parlamentares municipais sobre o projeto de lei em questão, o MTST realizou acampamentos em frente a Câmara, além de uma nova ocupação (Copa do Povo, tratada anteriormente). Enfim, após uma série de negociações e pequenas alterações no plano original, o PDE fora aprovado em junho de 2014, e a Vila Nova Palestina conquista seu novo zoneamento (mapa 3). 51 Coelho, 2017, p. 20.


Iluminações históricas a uma teoria revolucionária - 143

Como prometido por Haddad, a aprovação do novo PDE em 2014 foi acompanhada da alteração no zoneamento proposto pelo MTST, de modo que o terreno ocupado no Jardim Ângela passou a ser 30% demarcado como ZEIS 4. Assim, 3 mil unidades habitacionais seriam construídas em cerca de 300 mil m2 da antiga propriedade, que seria transferida ao movimento, para posteriormente ser loteado e repassado aos acampados. Com esta decisão, ainda foi mantida a intenção de construir um parque municipal na região, de modo que 70% do antigo lote ainda foi destinado à tornar-se uma área de preservação. Em seguida, a Vila Nova Palestina consegue o licenciamento ambiental emitido pela CETESB; recebe o parecer técnico de que o fornecimento de água e esgoto por parte da SABESP e energia elétrica, pela antiga Eletropaulo, seriam concedidos conforme os lotes fossem finais desmembrados e a aprovação da prefeitura fosse assinada; mas a ocupação aparentava ter seu feliz desfecho em vias de se concretizar52. Entretanto, a política de austeridade orçamentária no segundo mandato do governo Dilma Rousseff (PT), com cortes de gastos no setor de moradia, afetou em grande medida o repasse de verbas ao programa Minha Casa Minha Vida; de modo que a Vila Nova Palestina, mesmo tendo a compra do terreno firmada pela Caixa e o projeto habitacional aprovado, teve o andamento do planejamento congelado. Os resultados da decisão federal, por sua vez, não afetaram apenas as demandas da ocupação na Zona Sul paulistana, gerando mobilizações massivas coordenadas em diversos estados brasileiros contra a decisão contrária às necessidades dos sem-teto: “no dia 23 de setembro de 2015, o MTST ocupou, simultaneamente, sedes do Ministério da Fazenda em São Paulo, Brasília, Boa Vista e Belo Horizonte, fez um ato na porta do órgão no Rio de Janeiro e bloqueou parte da rodovia Anhanguera, em São Paulo”53 . A pressão surtiu efeito, e em maio de 2016, em seu último dia de governo antes de ser deposta pelo golpe parlamentar perpetrado naquele ano, Rousseff anuncia a contratação de 11.250 unidades habitacionais para moradia popular, incluindo os moradores da Vila Nova Palestina em seu ato derradeiro na presidência da república. A ascensão do vice-presidente Michel Temer ao cargo de chefe de governo brasileiro trouxe novos capítulos ao tortuoso percurso da luta dos trabalhadores sem-teto por moradia: ainda no início de seu mandato, revoga a medida final de Dilma Rousseff, como forma de acatar a sua economia política 52 Falchetti, 2019, p. 132. 53 Ibid., p. 133.


144 - Arquitetura da Alteridade

Mapa 3: Ocupação e LPUOS

Legenda

(Mapa elaborado pelo autor. Fonte dos arquivos shapefile: GeoSampa)

Ocupação Vila Nova Palestina

ZEIS 1

São Paulo: limite municipal

ZEIS 4

Represa Guarapiranga

ZC

ZPDS

ZEUP

ZM

ZOEl

ZEP ZEPAM

0,25

0,5

1km


Iluminações históricas a uma teoria revolucionária - 145

de austeridade. Como forma de resposta à decisão presidencial, no dia 22 de maio de 2016, cerca de 30 mil manifestantes do movimento dos sem-teto partem do Largo da Batata em direção à residência de Temer, onde são duramente retalhados pela polícia militar. Em seguida, um novo revés: a aquisição do Clube Náutico Guarapiranga pela gestão municipal de Fernando Haddad, meio encontrado para “acalmar ambientalistas” sobre a urbanização da região, destinou verba pública à compra de um novo terreno de 300 mil m2, enquanto os acampados da Vila Nova Palestina ainda esperavam pela liberação de recursos federais. Ademais, a emenda constitucional número 241, promulgada em 2017 pelo presidente da república, conhecida como PEC do fim do mundo por decretar o congelamento nos ajustes de gastos públicos por um período de vinte anos, suspende a faixa 1 do programa MCMV - a qual comportava a modalidade Entidades -, fato que agregou maiores incertezas sobre o acampamento do MTST na Zona Sul. A somatória desses fatores gerou novas mobilizações por parte do movimento na Avenida Paulista, com acampamentos de trabalhadores sem-teto em frente ao escritório da presidência da república. Embora tenha sido acordada a saída dos manifestantes, a resolução dos empasses relativos à moradia na Nova Palestina não se resolveram na época. Como aponta Falchetti, “seis anos depois de iniciada, a ocupação Nova Palestina encontra-se enredada nas teias do aparato jurídico-institucional, sem nenhuma definição quanto a seu futuro”54. Ainda no final do ano de 2020, completos sete anos de ocupação, nenhuma moradia fora construída pelo poder público; o que, por sua vez, não descarta ou diminui as conquistas do movimento para a melhoria das condições habitacionais no lugar em que se instalou. Enquanto cerca de 2 mil acampados esperam a viabilização das obras por parte do governo, é notório o sucesso do MTST e da ocupação Vila Nova Palestina tanto na criação de uma centralidade contra-hegemônica, que atua com protagonismo na mobilização popular na luta por direitos, quanto no reconhecimento legal das demandas da região. A dimensão normativa das conquistas são observadas na alteração da LPUOS, reconhecendo o terreno onde se localiza a ocupação como ZEIS 4; na assinatura da concessão de uso por parte do proprietário da terra; e, por fim, por contemplar as demandas fundamentais dos acampados no Caderno de Propostas da Subprefeitura do M’Boi Mirim, datado de dezembro de 2016. Nele, o documento reconhece as necessidades locais levantadas pelo MTST, e se compromete não apenas a cumprir com a construção de 3 mil unidades habitacionais aos acampados, como também de suprir as demandas levantadas anteriormente. As54 Ibid., p. 136.


146 - Arquitetura da Alteridade

sim, tem como objetivo reverter a escassez de equipamentos e serviços públicos de saúde, educação e cultura; introduzir a infraestrutura de drenagem, de coleta de esgoto e distribuição de água; proporcionar coleta de lixo, qualificar as áreas livres, melhorar o transporte público e acessibilidade urbana, elevar a segurança pública e realizar a regularização fundiária55. Embora não seja uma conquista final - material, propriamente dita - e a região do Fundão do Jardim Ângela, a atuação do MTST na Vila Nova Palestina construiu meios legais de reivindicação sobre problemas urbanos que compuseram as entranhas da história do bairro. Dessa forma, o comum da classe trabalhadora sem-teto, por meio das idiossincrasias locais, logra fomentar a construção coletiva de instrumentos comunitários de reivindicações locais, pavimentando o caminho para a realização do grande objetivo do movimento: a estruturação do poder popular. Em suma, a dimensão do lugar na atuação dos trabalhadores sem-teto na Vila Nova Palestina é constituída por uma sobreposição de camadas em que ocorre a atividade cotidiana da luta de classes por meio da forma comum. De início, tomando como princípio a tese lefebvriana da correlação imediata entre espaço e sociedade, onde as contradições do espaço são frutos de relações sociais contraditórias dadas no espaço, a precariedade historicamente produzida na região do Jardim Ângela é objeto de transformação quando a sociabilidade que a mantém é posta em xeque. A compreensão dos problemas postos sobre um ponto da cidade de posição periférica na divisão local do trabalho é construída, na ocupação, por um trabalho coletivo de esclarecimento de origens e atuação comum como forma de reivindicação de direitos fundamentais. A desalienação parte, portanto, do processo de luta comum sobre as demandas locais contra uma urbanidade esfacelada pela sua posição secundária na ordem de prioridades públicas. Ademais, a relação entre a legislação hegemônica, da escala estatal e aliada a interesses de mercado, e a epistemologia normativa comum operam conjuntamente, em um amálgama contraditório de interesses sobrepostos. A atuação no acampamento, que realiza seu trabalho de base e efetivamente exige a alteração da LPUOS no lote ocupado para ZEIS, assim como o repasse de verbas à construção habitacional, toma como princípio que a legislação hegemônica é um caminho pela qual se pode pleitear efetivamente os recursos buscados para com o poder público. Do outro lado, o Estado e o mercado, quando não reprimem as conquistas populares pelo poder da soberania deliberativa dos cargos representativos que ocupam prefeitos, governadores e presidentes da república, utilizam-se da necessidade imediata dos acampados para galgar apoio 55 PREFEITURA DE SÃO PAULO. Caderno de Propostas dos Planos Regionais das Subprefeituras Perímetros de Ação: M’Boi Mirim. Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano. 2016, p. 21.


Iluminações históricas a uma teoria revolucionária - 147

Mapa 4: Lote Vila Nova Palestina ESCADARIA

R

C

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C

C

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ESCADARIA

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1

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Legenda

RI

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(Mapa elaborado pelo autor. Fonte dos arquivos shapefile: GeoSampa, CESAD-USP)

C

EM

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R

EM

BU

EM

Ocupação Vila Nova Palestina

RIO

R

BU

Corpos d’Água MI

R

RI

M

Construções Ocupação C

BU

EM

1 Estrada do M’Boi Mirim 2 Rua Clamecy RIO

BU

EM

R

R

100

200

500m


148 - Arquitetura da Alteridade

a seus projetos (como visto no caso do ex-prefeito Fernando Haddad). E, por sua vez, o território construído dentro da ocupação insere as práticas e preceitos do movimento dentro do arcabouço legal hegemônico, de modo que o “Estado forte, guardião do direito privado” é confrontado por uma produção do espaço pautado pelas as leis do comum da classe trabalhadora sem-teto. 4.6 - Programa: um condensador social popular “As pessoas quando vem para uma ocupação do MTST - e aí falando um pouquinho da minha própria história - a gente vem em busca da moradia, e a gente começa a entender quais são os outros direitos que são negados: que a moradia é um direito constitucional, que a terra tem que cumprir sua função social. E aí a gente começa a debater sobre outras coisas, a saúde, a educação, o feminismo, o racismo, e é dessa forma que a gente se reconhece dentro desse espaço”56.

Sintetizado pelo depoimento de Jussara Basso, coordenadora da Vila Nova Palestina, o programa que orienta a produção do espaço na ocupação corresponde a um amálgama de dois pilares da luta anticapitalista: a busca por moradia digna e o combate às formas de opressão socialmente estruturais. A despossessão de direitos urbanos, elemento indissociável da acumulação de capital - sobretudo no contexto neoliberal - é inicialmente contestada reivindicando o objeto imediato de precarização da vida cotidiana da classe trabalhadora: a casa. Entretanto, a luta coletiva organizada na ocupação do MTST proporciona a formação de compreensões interseccionais do problema posto sobre os sem-teto. Relações desiguais de gênero, raça e sexualidade - além da classe - são compreendidas, dentro da ocupação, como parte da condição de exploração e espoliação diária; de modo que a conquista de dignidade habitacional não pode ser circunscrita à garantia de um teto: antes, ela depende da superação de tais desigualdades. Assim, na direção do que apontara Fanon em Condenados da Terra57, as atividades desenvolvidas na Vila Nova Palestina tem como programa a suprassunção de sociabilidades historicamente constituídas em relações de opressão, transformando-as em uma democracia de igualdades entre os acampados. Tal qual um condensador social soviético, a aplicação dos princípios do movimento dos trabalhadores sem-teto na articulação da vida cotidiana dos acampados permite que se crie novos laços sociais, tensionamentos políticos e 56 MÍDIA NINJA. Ocupação Vila nova Palestina / Jussara Basso. Publicado em 30 de julho de 2020. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=4FgVuJgm8nQ 57 Fanon, 1961.


Iluminações históricas a uma teoria revolucionária - 149

imaginários coletivos críticos aos herdados da sociabilidade capitalista. Na ocupação, a cooperação, a reciprocidade, e a participação nas atividades deliberativas são os meios pelos quais se norteia a execução dos princípios do movimento - os quais, por sua vez, são alcançados somente pelo espaço da ocupação, construído coletivamente. Esta dialética de politização da vida cotidiana constitui o programa da Vila Nova Palestina: de um lado, os princípios trazidos pelo MTST são confrontados com as idiossincrasias sociais do lugar na produção territorial do comum da classe trabalhadora sem-teto. Não há uma ordenação espacial pré concebida sobre a ocupação: ela é, antes, fruto de um processo histórico onde se confrontam as demandas da base social com os preceitos e formas de organização do movimento. A definição dos usos e práticas que se desenrolam no - e por meio do espaço é, portanto, resultado da história da integração entre acampados em busca de moradia e a organização do MTST. Esmiuçadas por Cristhiane Falchetti em seu trabalho de doutorado, o programa da Vila Nova Palestina é um objeto cuja determinação a priori é feita em linhas gerais pelas bandeiras e formas de atuação do movimento. Por sua vez, as construções programáticas específicas da ocupação variam de acordo com o contexto, tanto em relação ao processo de aquisição de moradias junto ao Estado, quanto ao cenário político em que se insere a organização dos sem-teto - em suas escalas municipal, estadual e nacional. Dessa forma, proponho a leitura das práticas espaciais da luta dos trabalhadores do MTST na Vila Nova Palestina - postas a luz pelo trabalho de Falchetti - com a finalidade de compreender os meios pelos quais a práxis do comum, encarada como um meio de conquista de direitos, estrutura os objetivos de construção do poder popular nesta ocupação localizada no Jardim Ângela. Como apontam Pierre Dardot e Christian Laval no texto introdutório à segunda seção do livro tratado neste trabalho, a instituição dos comuns em meio à forma capitalista de sustentação da vida cotidiana pode ocorrer de duas formas. De um lado, o comum pode surgir como uma sociabilidade de sobrevivência por parte da classe trabalhadora, espoliada e explorada pela economia política hegemônica. De outro, pode pautar o questionamento e a proposição de alternativas à soberania do direito privado - tão cara ao nexo neoliberal entre o público e o mercado -, reestruturando a vida cotidiana em torno dos comuns58. No caso da ocupação Vila Nova Palestina, estas duas dimensões coexistem e se retroalimentam: há, portanto, tanto o caráter do comum enquanto meio de 58 Dardot e Laval, 2014, p. 243.


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amparar famílias em condição de extrema precariedade, quanto a reivindicação pelo reconhecimento da jurisprudência posta por este comum da classe trabalhadora sem-teto. De início, tal relação se observa na escolha semântica que define a produção deste espaço singular na cidade, em uma distinção terminológica entre ocupação de invasão. Usada como forma de deslegitimar as ações do movimento, o termo invasão carrega a conotação de infração à legalidade, aproximando-se do discurso jurídico punitivista ao ser enquadrado como crime por supostamente ferir o direito de soberania à propriedade privada. Por sua vez, a ocupação traduz-se pelo ato de produzir coletivamente o espaço comum; a edificação de uma urbanidade singular, que proporciona a articulação política popular em meio ao processo litigioso sobre a terra enquanto mercadoria. Por estar atrelado à conquista da moradia digna (objetivo imediato da base social do movimento), este balanço entre a criação dos meios de subsistência à classe trabalhadora sem-teto e a construção de um espaço da politização da vida cotidiana produz programações territoriais condizentes com o andamento das negociações para com o Estado. A relação entre o MTST e o poder público, onde o movimento transmite às instâncias de governo a demanda de moradias dignas, por sua vez, estabelece-se sobre a estrutura legal da legislação hegemônica: tanto pela reivindicação de um direito garantido pela constituição de 1988 por parte dos acampados, quanto da defesa do direito privado, por parte do Estado. Para tanto, o reconhecimento da legitimidade da luta dos sem-teto sobre um terreno há anos ocioso, que não cumpria - e nem haveria a previsão de cumprir - com a função social da propriedade, foi o primeiro programa geral da ocupação. Resistir à reintegração de posse e a retirada da população acampada, enquanto congregava os participantes no projeto de construção de poder popular: este foi o primeiro objetivo do comum do MTST no Jardim Ângela. Na noite que se deu a entrada no terreno abandonado, no dia 29 de novembro de 2013, entre militantes, coordenadores e a base social do movimento contavam-se cerca de dois mil acampados. A notícia do surgimento da ocupação em um terreno de um milhão de metros quadrados, com a intenção de pleitear a construção de novas moradias junto ao poder público, espalhou-se neste distrito na zona sul paulistana com imensa velocidade, e logo este número de moradores elevou-se a marca de oito mil famílias. A Vila Nova Palestina inicia sua operação com um número proporcionalmente reduzido de militantes e coordenadores do MTST, quando comparado à base social ali presente; que, por sua vez, compõe um quadro de baixa politização, sendo tarefa dos representantes do movimento estruturar o processo de construção comum da desalienação e reivindicação


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popular. Para tanto, a ocupação é organizada em coletivos autogeridos, onde são escolhidos democraticamente representantes locais, e delegadas tarefas que dizem respeito tanto ao grupo reduzido desta divisão inicial, quanto à manutenção da Nova Palestina como um todo. Tratam-se de atividades essenciais para a sobrevivência inicial do movimento no território, tratando de necessidades internas ao lote (como segurança, alimentação, organização das famílias no terreno e a disciplinarização dos acampados em torno do projeto comum), quanto externas (relação com a imprensa, mediações com o poder público e a instalação de infraestruturas essenciais, como energia, água e esgoto). Cada grupo tem seu programa inicial definido por um barracão de congregação, um banheiro comunitário e uma cozinha coletiva, além dos barracos simbólicos, demarcadores da presença das famílias no espaço da ocupação. Assim, dada a escala do lote e do assentamento que se iniciava, foram estipulados 116 grupos coordenados, unidos por ruas e avenidas próprias, e dando à Vila Nova Palestina uma feição essencialmente urbana. Como aponta Falchetti, “os pioneiros reconhecem seu feito heroico: ‘quando nós começamos aqui não tinha nada, só barro e água, e para ‘puxar’ água foi uma luta’, conta Jonas, que apresenta a ocupação. ‘Aqui é a Paulista’, a via central, ‘ali a Brigadeiro’, aponta à esquerda, ‘lá a Faria Lima’. Ele ri e se diverte com a cidade (re)inventada. Dona Maria indica o espaço coletivo onde ocorrem as reuniões e confraternizações, ‘ali é o MASP’”59. Assim, a consolidação da ocupação no território tensiona os direitos de apropriação hegemônicos por meio da forma comum: seu contraponto. Enquanto a jurisprudência propriedade - tanto pública como privada - se coloca como mediadora entre os homens e seus objetos - concedendo ou não o domínio a determinado bem - o comum, ao contrário, como apontam Dardot e Laval, estabelece a assiduidade nas atividades comunitárias como parâmetro de acesso aos objetos cotidianos60. Os autores tomam como base a interpretação do filósofo Pierre Aubenque acerca da definição do koinónen aristotélico, onde a sustentação dos laços coletivos no comum forma-se sobre a soberania da comunicação e reciprocidade nas atividades cotidianas. Tal participação coletiva é o que permite ao indivíduo fazer parte de um grupo social, constituindo assim sua comunidade. Da mesma forma, na Vila Nova Palestina, os acampados assumem responsabilidades, direta ou indiretamente relativas à luta por moradia, e que garantem seu pertencimento naquele espaço. Trata-se essencialmente do fundamento pelo qual se vincula as famílias da ocupação à habitação pleiteada com o poder público: quanto maior a participação nas atividades do movimento 59 Falchetti, 2019, p. 243. 60 Dardot e Laval, 2014, p. 245.


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e maior o comprometimento com a causa coletiva, igualmente cresce a posição dos acampados e residentes na ordem de prioridade na conquista da moradia. Um objetivo alcançado, portanto, por meio do ato de pôr em comum as demandas do movimento e dos trabalhadores sem-teto no processo de resistência às tentativas de reintegração de posse, da consolidação da luta por moradia e da construção do poder popular. Para os autores do ensaio sobre a revolução no século XXI, o ato de pôr em comum - que corresponde à contínua atividade de comunicação e coletivização das vicissitudes cotidianas, baseada no princípio de reciprocidade - é a pedra fundamental da instituição do comum - que não apenas é inapropriável, como opera em uma esfera exterior à da propriedade hegemônica. Esta alternativa à apropriação tanto pública quanto privada, posta nos comuns por meio do sentido de igualdade em tomar parte no koinónen aristotélico, é tida por Dardot e Laval como a base da transformação política dos integrantes dos comuns, uma vez que orienta um novo regime da vida cotidiana voltada ao coletivo. No caso da Nova Palestina, esta contraposição à apropriação monopolista da terra por parte do Estado e mercado se desdobra em um comum de dimensão urbana, e cuja prática de pôr em comum as atividades da ocupação compõem a articulação programática da luta e da desalienação popular. Para tanto, demarcou-se territorialmente o espaço de ação coletiva com base nos grupos, criados no momento de entrada de militantes, coordenadores e da base social no terreno, e posteriormente ampliado para adequar os novos ingressantes ao movimento. Os grupos (G’s), subdivisões internas do assentamento, são formados de acordo com o local onde as famílias se posicionam no lote ocupado, de modo a proporcionar uma participação direta nas atividades locais (tanto da ocupação em si, como do próprio G). Cada grupo é equipado com um banheiro coletivo, os barracos simbólicos, cozinhas coletivas, um barracão de congregação, como dito anteriormente, acrescido de algumas moradias provisórias, no caso de acampados que decidem morar na ocupação. Com a consolidação da Nova Palestina no território, há uma concentração de grupos nas áreas lindeiras ao portão de entrada - acesso único à ocupação, no cruzamento da rua Clamecy, com a estrada do M’Boi Mirim - onde também opera o setor de segurança, que controla a entrada de pessoas. Cruzando o eixo maior do assentamento, a rua principal da Nova Palestina é ramificada na distribuição dos grupos neste acidentado terreno; sendo, porém, a principal via de acesso à praça e ao barracão central. Tratam-se de dois espaços extremamente significativos para a população da Nova Palestina, uma vez que, além das atividades do grupo que ali reside,


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Mapa 5: Disposição territorial da Vila Nova Palestina C

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Legenda

(Mapa elaborado pelo autor. Fonte dos arquivos shapefile: Google Maps, CESAD-USP)

Limite do lote

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abriga as principais cerimônias da ocupação - tanto deliberativas, quanto de celebração e confraternização. Ademais, a construção de hortas (tanto atrás do barraco central como na região sul da ocupação) e de espaços atividades laborais cotidianas não específicos (como reparo de automóveis e consertos em geral) surgem como forma de atender a necessidades imediatas da base social. Aprofundando-nos no programa inicial da Nova Palestina, há uma importante distinção, no que se refere ao uso e à produção do espaço, entre as famílias acampadas e as residentes - representadas pelos barracos simbólicos e as moradias provisórias, respectivamente. Por ser um espaço de articulação da reivindicação habitacional, apesar de abrigar algumas famílias, nem todas as pessoas que estão acampadas na ocupação residem no terreno. Trata-se de uma ressalva que nos faz retornar a própria definição de classe trabalhadora sem-teto: composta pela exploração e espoliação cotidiana pela economia política capitalista aplicada à dimensão do lar - cenário descrito na primeira seção deste trabalho. Como esclarece Guilherme Boulos, coordenador nacional do MTST em seu livro Por quê ocupamos, “os sem-teto são todos aqueles que são afetados pelo problema da moradia, seja pela falta dela ou por morarem nas condições mais precárias. São aqueles trabalhadores a quem o capitalismo atacou de modo brutal, com suas armas mais afiadas: desemprego, baixos salários, trabalho informal, super-exploração”61. De acordo com o levantamento feito por Falchetti na Vila Nova Palestina, nos primeiros anos da ocupação, 35% da base social era residente das moradias provisórias, enquanto 48% das pessoas moravam de aluguel, 7% em habitações irregulares e 10% de favor62 . Portanto, nem toda casa edificada na ocupação é uma residência: enquanto a moradia temporária oferece abrigo às famílias que decidem morar na Nova Palestina - por motivos particulares e dos mais diversos -, os barracos simbólicos são destituídos de infraestruturas necessárias para servir de abrigo, mas representam os acampados que participam da luta pela habitação, mas que residem em outro local. Tratam-se, sobretudo, de construções representativas do ato de ocupar e reivindicar o direito por moradia digna: tanto a moradia provisória, que garante um teto à uma parcela significativa da base social mobilizada, quanto o barraco simbólico, demarcador espacial da presença de famílias de sem-teto no território. Neste sentido, a diferenciação entre a ocupação e a invasão ocorre pelo fato de a primeira ser uma produção de espaço como parte de um processo de reivindicação habitacional e construção do poder popular. Enquanto invasão 61 BOULOS, Guilherme. Por que ocupamos?. São Paulo: Grupo Editorial Scortecci, 2012, p. 50-51. 62 Falchetti, 2019, p. 306


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carrega a conotação da tomada de posse de algo que pertence a outrem (no caso, da terra), a prática de ocupar consiste no ato de transformar o espaço e a sociedade que ali habita: um processo formativo de uma realidade centrada na comunidade como meio de alcançar a moradia digna. O tensionamento dos termos é intencional por parte da organização do MTST, de modo que ao entrar no terreno e aceitar o regimento do movimento, as famílias passem a pôr em comum as responsabilidades e deveres do grupo. Um processo de criação de novas sociabilidades voltadas ao comum, estruturadas sob os preceitos do movimento, onde o choque entre a noção de invadir e ocupar reposiciona a dimensão do sujeito na cidade: do individual - herdado da predatória relação interpessoal capitalista - ao coletivo. Como aponta o depoimento de um dos acampados da Vila Nova Palestina, “O meu pensamento, era: vamos pegar terra mesmo, é pra mim, pronto e acabou. Existe um pré-egoísmo, porque você quer só para você. Se entra eu, você e ele, eu vou querer o pedaço maior independente do que você pegou. Assim que você entra, você acha que vai pegar o maior e pronto. Mesmo sem ter a condição de construir, seu pensamento já lhe traz essa visão. Um castelo pronto que não existe, na verdade”63.

A apropriação individual e privada do espaço, preexistente no imaginário e nas formas de sociabilidade hegemônicas, é substituída pela apropriação e construção coletiva do espaço, fruto dos princípios regimentais do MTST. Assim, todo cercamento do espaço que não está vinculado ou mediado pelo movimento é terminantemente proibido: em meio ao processo de consolidação da ocupação, é recorrente a entrada de oportunistas, que buscam tomar para si parcelas de terra do lote em disputa. Chamados de andorinhas pelos participantes do movimento, são retirados por não integrar à forma comum de luta por moradia, condição primeira para a integração no território ocupado. Por sua vez, como aponta Falchetti em seu trabalho de doutorado, fora diminuto o número de andorinhas, de modo que a maior parte das famílias aderiu a proposta do MTST, onde a moradia será conquistada pela luta coletiva. Tal aceitação dos acampados e moradores à proposta do movimento é o estopim do processo de legitimação da reivindicação por moradia por meio da ocupação; entretanto, é no dia-a-dia que os novos laços deste projeto de poder popular são efetivamente solidificados. O trabalho de base, encabeçado pela militância, coordenação e os setores de organização e formação, esclarece quais são os direitos constitucionais de cada um na ocupação, demonstra o porque ela é um ato não apenas justo, como necessário. Como aponta H., militante do setor de formação do 63 Ibid., p. 245.


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movimento: “Então uma pessoa entra no movimento por causa da moradia, o mundo inteiro está dizendo para ela que aquilo é coisa de vagabundo: ela vai para a padaria e vão dizer que é coisa de vagabundo. [...] A introdução do setor de formação sempre para quem entra é a história de uma pessoa que a gente dá o nome de Dona Carmelita. A Dona Carmelita é uma senhora que sempre pagou aluguel, tem filhos, sempre teve dificuldade de pagar aluguel, e passa pela ocupação todos os dias. Ela acha, dentro dela, que aquilo não está certo, mas tem algum momento que ela vai de curiosa, e resolve ver o que tem ali. Ela precisa também, ela tem o aluguel e tem que decidir se compra o leite para os filhos ou se vai pagar o aluguel - e ela entra naquela ocupação. Quando ela entra ali, ela vê uma coisa que ela não esperava: ela vê que tem gente que logo se oferece para ajudar ela a construir o barraco, tem gente que compra mais pão para poder dar para outras pessoas, e isso começa a chocar com a concepção de mundo que ela tem. E ela vai a padaria e falam ‘você que sempre foi tão certa e agora está metida com esse bando de vagabundo’, e o que a gente tenta processar e o setor de formação está o tempo inteiro fazendo é criar uma mentalidade que contrapõe esta de o mundo inteiro falando, o mundo capitalista inteiro afirmando para ela - seja televisão, seja as propagandas, seja o que as pessoas dizem - que aquilo é errado [...], de que a luta não é justa, de que não deve ocupar o que é dos outros, tomar o que é dos outros. Então é nessa mudança de concepção, de que tem um mundo de luta, de reivindicações e de direitos que ela tem para conquistar ali naquele momento que ela tem que ver que é justo”64.

Para tanto, são organizadas as atividades cotidianas com o objetivo da conquista por moradia - o que, por sua vez, mantém a propriedade como horizonte, objetivo final a ser alcançado, fato que reposiciona a concepção do comum como um meio, não como um fim, como tratado no início desta seção. A ocupação é a forma de organização da luta por moradia e construção do poder popular, respondendo às demandas da base social por meio da criação de uma nova infraestrutura de mentalidades centrada no coletivo. Embora busque uma forma hegemônica de apropriação do espaço, é pela metodologia comum que se constrói um projeto emancipatório a longo prazo na ocupação: fortalecendo a classe trabalhadora na luta de classes cotidiana, o esclarecimento de direitos constitucionais é aliado à desalienação popular de que a exploração e espoliação cotidiana é essencialmente intrínseco à economia política capitalista. Estabelece-se, assim, a compreensão efetiva do porque a conquista da moradia pelas vias do mercado é uma contradição de um modo de produção baseado na dominação de classes65, e de que a forma comum da ocupação é um meio 64 Entrevista feita pelo autor com integrante do setor de formação do MTST no dia 18 de novembro de 2020. 65 ENGELS, Friedrich. Sobre a questão da moradia. São Paulo: Boitempo, 2015, p. 38.


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de alcançar aquilo que nem o Estado, e tampouco o mercado conseguem ou desejam garantir. O dispêndio que separa o início da ocupação do esperado momento em que são entregues as chaves das novas residências da base social mobilizada é, portanto, um período onde a formação coletiva de uma sociabilidade anticapitalista viabiliza o objetivo das famílias que recorrem ao MTST para conquistar sua casa. Segundo Falchetti, “nesse intervalo em que se processa a luta pela viabilização das moradias junto ao Estado, o coletivo se organiza para garantir o que é necessário e possível para a sua sobrevivência e para a permanência da ocupação. Trata-se de um momento instituinte entre os integrantes da ocupação, em que é construída uma organização interna, definida uma normatividade e tecidos vínculos de solidariedade”66.

Tais atividades se desenvolvem nas áreas coletivas da ocupação, que recebem atenção prioritária na disponibilização de infraestruturas como água, luz e esgoto - fato que impele a população mobilizada a realizar suas tarefas nestas áreas. Assim, na fase inicial da Vila Nova Palestina, as cozinhas coletivas de cada grupo e o barracão central eram os únicos pontos que recebiam a distribuição de água e energia elétrica, assim como a instalação dos banheiros coletivos; de modo a compartilhar a necessidade de cuidado das infraestruturas essenciais à vida cotidiana, transformando o barracão e a cozinha nos principais locais de congregação da ocupação. O conjunto urbano que compõe o barracão e a praça central merece especial atenção quanto a sua relevância programática para os objetivos do movimento: trata-se do lugar onde ocorrem as reuniões, assembleias, festas e eventos na Nova Palestina. “É o lugar do encontro, como se fosse a centralidade da cidade”, como afirma Falchetti67. De início, as assembleias são diárias, e conforme a ocupação consolida-se no território e a iminência de despejo dos acampados e residentes é reduzida, passam a ser semanais ou quinzenais. Nelas, são discutidos os processos da luta por moradia, o andamento das negociações com o Estado, as demandas da ocupação (como reparos nos barracos, formação de serviços comunitários de educação e cuidado infantil, instalação de infraestruturas básicas, etc.) e a organização para atos e manifestações (como forma de pressão tanto de questões referentes ao movimento, pressionando pela libe66 Falchetti, 2014, p. 247. 67 Ibid., p. 247.


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ração de verbas públicas para concessão das moradias pleiteadas, quanto como forma de posicionamento relativas ao contexto político institucional). Indiretamente, as assembleias e reuniões tem como objetivo manter ativo o dia-a-dia na ocupação, aquecendo o comprometimento e a assiduidade da base social na luta por moradia; evitando desgastes e enfraquecimento da energia comunitária. Embora a participação nestes eventos não sejam obrigatórios, em cada reunião são passadas listas de presença, e conforme haja maior compromisso das famílias residentes e acampadas na luta coletiva, maior é sua prioridade na entrega das moradias definitivas, como dito anteriormente. Os trâmites com a política institucional são colocados à base social pelos coordenadores e militantes da ocupação, de modo que haja uma decisão coletiva sobre os caminhos tomados no processo de reivindicação e pressão pela moradia digna junto ao poder público. Assim, a lógica de mercantilização da terra, endossada pela política hegemônica, é confrontada em um processo simultâneo de desalienação e criação de contraconduta na ocupação Nova Palestina. Dessa forma, o barracão e a praça central compõem a espinha dorsal das atividades de organização para a luta por moradia digna, abrigando as instâncias deliberativas que dizem respeito à Nova Palestina como um todo, além de ser o ponto de encontro para eventos de formação, serviços comunitários e lazer dos ocupantes. No mesmo espaço das reuniões e assembleias, o edifício comporta uma biblioteca com espaço de leitura e aprendizado para os acampados e moradores da ocupação. Internamente, este edifício ainda conta com uma cozinha comunitária e dois banheiros, concentrando infra estruturas básicas do grupo e tornando-se o lugar de encontro “mais movimentado da ocupação”. As cozinhas coletivas, por sua vez, são construídas para suprir as demandas e preparar as refeições de cada grupo. Assim, cada G possui sua própria cozinha, cuja responsabilidade de administrar os mantimentos e manter o bom funcionamento deste equipamento comum é o coordenador eleito do grupo, que divide e delega tarefas aos demais acampados e residentes. Cada integrante contribui com dinheiro ou com alimentos, caso haja disponibilidade, de modo a auxiliar a produção coletiva das refeições. A estrutura da vida cotidiana centrada no comum, proposta e executada pelo MTST na ocupação, por sua vez, insere-se em um território de larga diversidade e amplas disputas entre agentes e formas de produção do espaço. A forte influência de igrejas evangélicas, do tráfico, da polícia, dos coletivos culturais e lideranças locais independentes na dinâmica regional exige um cuidadoso preparo organizativo do movimento para com estes atores. Para tanto, a con-


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solidação da ocupação no território depende de um minucioso “mapeamento de sua topografia social”, como aponta Falchetti68. “Isso não implica apenas na manutenção do terreno, mas, principalmente, a construção de uma social interna”69 , completa a autora. Neste sentido, a atuação do setor de segurança exerce o papel de mediação entre, de um lado, a manutenção das práticas internas à Vila Nova Palestina e dos objetivos do movimento e, de outro, as relações de poder que compõem as relações sociais externas à ocupação. Dessa forma, busca-se afastar qualquer possibilidade de conflito entre os agentes locais que possam corromper o andamento da luta dos sem-teto por moradia digna - o que passa pela aplicação irrestrita de princípios do movimento, que são conflitantes com interesses externos, dentro da ocupação: proibição do uso de drogas e a não mercantilização das atividades comunitárias. Igualmente parte da divisão coletiva de tarefas dentro da ocupação, o programa de segurança da Vila Nova Palestina, como forma de garantir a coesão do movimento em um lote de 300.000 m2, estrutura-se por meio de uma patrulha comunitária interna. Para tanto, são feitas trilhas noturnas diariamente pelos homens e mulheres da ocupação, que rondam todo o terreno como proteção a qualquer tipo de ocorrência com o potencial de deslegitimar o movimento - como a posse ou uso de drogas. Em meio a uma sobreposição de normativas territoriais, a segurança dos acampados e moradores é fruto de um “acordo tácito”70 entre estas duas formas de ordenação urbana: o tráfico extremamente influente na região - e a ocupação. Como aponta uma moradora da Nova Palestina em entrevista à Falchetti, “cada quebrada tem uma disciplina. A disciplina de dentro da ocupação é uma, e a dali de fora é outra”71. Inserida em um ambiente altamente conflituoso, a proibição sobre a monetização das relações comunitárias, assim como do uso e porte de drogas (lícitas ou ilícitas) na ocupação consiste não apenas de uma lealdade do movimento para com seu preceito de coesão interna da comunidade, como também trata-se de uma importante medida de segurança da ocupação. Assim, qualquer envolvimento com o tráfico, ou a criação de um ambiente que crie a possibilidade de deslegitimação do movimento por parte do poder público é visto como inadmissível pela coordenação do MTST; e as trilhas noturnas são o meio pelo qual certifica-se de que tais ocorrências não são encontradas dentro dos limites da ocupação.

68 Ibid., p. 252. 69 Ibid., p. 252. 70 Ibid., p. 250. 71 Ibid., p. 250.


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A preocupação com a aplicação rígida deste regimento na Nova Palestina por parte do setor de segurança, para além de evitar o envolvimento dos moradores e acampados com conflitos entre agentes externos à ocupação, trata de desidratar a associação feita pela polícia e pela opinião pública entre a atividade coletiva com o crime, e do trabalhador com o criminoso. Especialmente no início da ocupação, são recorrentes as invasões policiais no território do movimento, com a justificativa da busca por drogas ou suspeitos de banditismo. Por sua vez, este imaginário carregado de preconceito é confrontado por um rigoroso controle das ações internas à ocupação pelo setor de segurança, e na constante demonstração das intenções do movimento. Como revela uma das moradoras da ocupação, o respeito pela luta ali construída é transmitido aos agentes externos, fato que não apenas auxilia a minar a associação entre a luta por moradia e o vandalismo, como torna a Vila Nova Palestina um ponto de segurança em meio a um território em conflito. Segundo a moradora Cleusa “Aqui dentro, nós botamos a polícia para correr. O MTST não dá ousadia para a polícia. O movimento respeita o espaço deles, se eles respeitarem o nosso também. Quando apontam uma arma para nós, o coletivo cai em cima. No bairro, a polícia entra e já dá pontapé, como fizeram com a minha prima. Entraram na casa dela e pegaram ela de calcinha e sutiã. Colocaram a arma nela e disseram: ‘veste a roupa, vagabunda’. Eu vi tudo aquilo do meu barraquinho. Não podia fazer nada, só chorar. Aqui, nós perguntamos: quem vocês estão procurando? Sempre respondem que estão atrás de bandidos. Pois eles não estão aqui”72.

A moradora conclui, enfim, com a convicção - construída coletivamente - de que “quem está aqui são famílias e trabalhadores que lutam por uma vida digna. Ultimamente, eu não tenho falado nem uma moradia digna, pois trata-se de uma vida mesmo”73. O delicado trabalho de construir um meio de desalienação, de produção de novas sociabilidades e da reivindicação de direitos da classe trabalhadora sem-teto depende, portanto, do comprometimento coletivo dos integrantes da ocupação em ater-se ao léxico normativo instituído pelo movimento. Este, por sua vez, consolida-se no território compreendendo e respeitando as dinâmicas de poder locais; sem, entretanto, abrir mão dos seus objetivos e epistemologias de atuação. A dialética entre o projeto posto pelo MTST e as idiossincrasias locais tem como resultado aquilo que Dardot e Laval apontam como lex loci e práxis loci. Segundo os autores, baseados na teoria do historiador britânico Edward 72 Ibid., p. 251-252. 73 Ibid., p. 252.


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Thompson74 , os costumes que compõem a vida cotidiana são a consolidação das leis e regimentos sociais do lugar - o que chama de lex loci. Esta, por sua vez, determina quais práticas são adequadas às vicissitudes locais - compreendidas pelo termo práxis loci. Sendo a práxis loci - que no caso da Nova Palestina é o que orienta a luta por moradia e é efetivamente o que se traduz em poder popular - essencialmente atrelada a lex loci, a estrutura normativa do comum seria a própria alma mater desta organização comunitária da sociedade. O que, segundo Dardot e Laval se traduz na construção coletiva de leis - fruto do que chamam de “razão artificial”, em oposição à “razão natural” de um legislador soberano - que adequam a necessidade objetiva dos integrantes à realidade material em que estão inseridos75. No caso do comum da ocupação, as práticas sociais instituídas na Vila Nova Palestina são fruto da dialética entre o léxico normativo do MTST e as condições sócio-espaciais que compõem o Fundão do Jardim Ângela. A práxis loci do pôr em comum as atividades cotidianas - que sustenta a luta popular e os objetivos do movimento no território - é uma resposta da interação entre os agentes políticos mobilizados sobre a problemática da urbanidade periférica. Por sua vez, a construção coletiva dos regimentos em assembleias realizadas nos barracões não altera os preceitos que compõem a estrutura operativa do movimento, e a “razão artificial” observada por Dardot e Laval, na ocupação, responde a regras impostas que - tal como reportado por Fanon - são necessárias para toda luta emancipatória. Não obstante, a consolidação de um lex loci próprio da Nova Palestina, como apontado anteriormente, é resultado de um cuidadoso trabalho de “mapeamento de topografias sociais” em um território lapidado pelo conflito e pela contradição; e para tanto, a experiência e os aprendizados históricos das lideranças do movimento são de fundamental importância. A figura dos líderes da Nova Palestina na produção de uma práxis loci do pôr em comum emergem assim que o movimento adentra no território e a ocupação inicia seu processo de enraizamento. Com a formação dos primeiros grupos entre acampados e residentes das moradias provisórias, os integrantes que apresentam maior engajamento na causa popular e com facilidade comunicativa são eleitos como coordenadores locais. Eleitos democraticamente, aos coordenadores não são exigidas experiências prévias em movimentos sociais, mas se sobressaem aqueles com maior conhecimento do bairro, disposição a assumir cargos de responsabilidade e que deem o exemplo de comportamento 74 Dardot e Laval, 2014, p. 329. 75 Ibid., p. 306.


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aos demais integrantes da ocupação. No caso da Vila Nova Palestina, coordenadora geral da ocupação - a qual Falchetti apresenta pelas iniciais J.B. - tornou-se uma das lideranças mais importantes do movimento, atuando principalmente nas ocupações paulistanas, mas exercendo influência em atividades do MTST em outros estados do território nacional. Apesar de ser uma importante personagem do campo da comunicação e das mídias do movimento, prefere realizar o trabalho de base e a coordenação do movimento “onde ela sempre esteve: a periferia, as ruas, as casas. Lugares onde a política é invisível”76. Ocupando um cargo que exige não apenas o comprometimento pessoal com a luta popular, como também dar o exemplo comportamental aos demais integrantes do movimento, compreender o papel de liderança de J.B. na coordenação da Vila Nova Palestina é reconhecer a história que a forjou enquanto referência comunitária. Mulher negra e periférica, sua entrada no MTST deu-se em meio às reivindicações por moradia na cidade vizinha de Embu das Artes, na ocupação Novo Pinheirinho, em 2012, onde teve seu primeiro contato com as práticas e os objetivos do movimento. Mesmo, em primeiro momento, tendo recusado assumir o cargo de coordenadora quando eleita na ocupação, decide entrar nas instâncias organizativas do movimento, com a expectativa política de dedicar-se ao trabalho de base. Para tanto, constrói a formação de uma perspectiva interseccional do problema da moradia na cidade de São Paulo (tratando, portanto, sob uma perspectiva de gênero, raça, sexualidade e classe), além de ensinar os direitos constitucionais garantidos aos acampados e moradores da Nova Palestina. Para ela, somente a militância organizada é capaz de reformular sociabilidades opressoras, assim como a própria estrutura que as mantém: desde a violência institucional aplicada pela polícia, até a estruturalidade do machismo e racismo na vida cotidiana, especialmente no contexto urbano da periferia paulistana. Dessa forma, procura tensionar as experiências coletivas trazendo a sua própria vivência como fonte de amparo e desalienação popular no ambiente da ocupação. Como ressalta Falchetti77, um dos episódios mais marcantes para a consolidação de J.B. enquanto liderança do MTST foi sua prisão, quando foi detida pela polícia por participar de uma manifestação organizada pelo movimento. “Episódio mais tenebroso” de sua formação política, “ali sentiu no corpo as marcas de ser mulher, negra e periférica e se viu despida de sua dignidade: ‘lutar por direitos e ao mesmo tempo ser tratada como criminosa e chamada de va76 Falchetti, 2014, p. 253. 77 Ibid.


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gabunda…’”78. Tamanha violência tivera como reação a imediata solidariedade de seus companheiros de luta, e o endurecimento e o “embrutecimento” de sua posição política pessoal. Segundo Falchetti, baseada no conceito de “circuito de afetos” de Vladimir Safatle79, trata-se de uma resposta de congregação e libertação coletiva fruto do desamparo: “O medo da morte, de perder os bens, a privacidade, em última análise, ‘do desrespeito à integridade de meus predicados’ estrutura os vínculos sociais, quando, numa sociedade, elege-se como sujeito o indivíduo, que é o proprietário de todos esses predicados. Nesse sentido, poderia ser um ganho, porém, tomar não o medo [...] mas o desamparo como a principal paixão política. [...] A exemplo do que se vê em J.B., a experiência do desamparo pode mesmo encaminhar as pessoas na contramão do individualismo neoliberal e produzir subjetividades vinculadas ao coletivo”80.

Assim, segundo Falchetti81, a força recebida por J.B., assim como sua consequente resposta de enrijecimento na luta coletiva, são frutos de uma condição de estrito desamparo: o catalisador político sobre a população sistematicamente oprimida. A violência policial, com requintes racistas e sexistas, foi respondida com o fortalecimento dos laços afetivos construídos de forma comum na ocupação, e terminou por fortalecer o desejo de lutar pelos direitos aos quais foram espoliados à classe trabalhadora. O ato de pôr em comum, construído na ocupação pela política do MTST, não se resume, portanto, a uma divisão de tarefas e atividades cotidianas. Antes, é a solidificação de um vínculo social de pertencimento à uma comunidade de militância e amparo organizado. De modo semelhante, outros coordenadores são formados por sua experiência territorial mediada pela sociabilidade construída na ocupação, e pela dedicação ao trabalho de base. Além de J.B., Marcos e Jair são duas lideranças do movimento na região, fundamentais para a construção da práxis loci do comum da luta de classes. A atuação no campo da medicina, participando do conselho de saúde em diversas instâncias políticas, aliando o trabalho no campo institucional ao voluntário, faz de Jair, coordenador da Vila Nova Palestina, um importante agente nas reivindicações postas pela ocupação. Marcos, por sua vez, assume seu papel na coordenação praticando uma atividade política mais autônoma e orgânica. Procura, em sua relação com a base social do MTST, tensionar e explicitar as responsabilidades das instâncias políticas hegemônicas: construir na população mobilizada a compreensão de que, pelo fato de os representantes de governo 78 Ibid., p. 255. 79 Apud. ibidem, p. 256. 80 Ibid., p. 256. 81 Ibid., p. 256.


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exercerem um cargo público, cabe a eles a garantia dos direitos de cada cidadão. Assim, enquanto Jair utiliza seus conhecimentos técnicos e políticos no campo da saúde para prestar apoio às necessidades médicas à população no território, Marcos realiza um trabalho de base elucidativo e didático, amparando a compreensão coletiva dos direitos habitacionais que possuem. Cada um à sua maneira, fortalecem os laços de apoio postos em comum na ocupação, onde a liderança que exercem é fruto do compromisso demonstrado com a luta coletiva. Os coordenadores do movimento são, portanto, integrantes da base social que demonstram maior engajamento político, e que decidem assumir cargos representativos e organizativos no MTST. Atuam territorialmente em conjunto com os militantes, sem, entretanto, confundir as responsabilidades de cada um nas atividades do movimento. Em relato concedido à Falchetti, Marcos afirma que participa de todas as atividades que se espera de um militante, “mas eu não me aceito com tal. Eu me sinto preso. Se eu disser que sou um militante, eu estou preso àquilo e eu sou livre. Tem pessoas que militam e acham que tem que fazer só pelo movimento e eu não sou isso. Eu faço meus trabalhos lá no bairro, eu faço os meus trabalhos aqui, eu faço as minhas coisas e tenho a minha vida. Tem gente que se fecha. Quando você diz ‘eu sou militante’, o MTST não tem culpa disso. Você larga trabalho, larga sua vida e vai viver o movimento. Na hora que você precisa, o movimento não tem condições de te ajudar, porque foi você que escolheu esse caminho, não foi forçado a fazer nada”82. Ao trabalho de coordenação, cabe a efetivação dos objetivos do movimento por meio do compromisso em atividades práticas de mediação política, organização territorial e trabalho de base. Trata-se da responsabilidade de manter o movimento coeso, repassando informações e deliberações de instâncias superiores do MTST aos acampados e moradores das ocupações, certificar-se do bom funcionamento das cozinhas coletivas do grupo que o elegeu, ministrar as reuniões e assembleias de cada núcleo, articular os atos políticos planejados e mediar a resolução de conflitos postos sobre seu grupo - exercendo sempre papel de referência aos demais integrantes do movimento. O militante, por sua vez, é marcado pelo envolvimento profundo de todas as esferas da vida nas tarefas de luta política. A militância, neste sentido, é uma ação voluntária de enlaçar a ação política, as práticas solidárias e o próprio devir na vida cotidiana. Este apoio ao projeto social do MTST é igualmente construído na ocupação, em conjunto com a base social coordenada. Trata-se 82 Ibid., p. 259.


Iluminações históricas a uma teoria revolucionária - 165

de uma relação entre estratos sociais por vezes radicalmente distintos, a qual promove uma compreensão sobre o problema da moradia sob óticas singulares, mas sempre com o alinhamento metodológico proposto pelo movimento, onde o objetivo da conquista de dignidade habitacional é fruto da ação coletiva. Como aponta a autora, “nem sempre os militantes pleiteiam uma moradia, mas lutam pela causa; alguns são originários das classes médias e possuem Ensino Superior. Já a chamada ‘base social’ está no movimento por causa da moradia. São famílias de trabalhadores urbanos muito pobres, a maior parte deles tem baixa escolaridade e nenhuma experiência de organização política”83. No caso da Vila Nova Palestina, a base é composta em sua maioria por adultos entre 31 e 50 anos (58%), seguidos por adultos entre 51 e 60 anos (20%) e idosos com mais de 60 anos (14%). Com expressiva população migrante de outras regiões do país (72%), a maior parte se identifica de etnia negra ou parda (80%). Por fim, os dados econômicos remetem ao perfil mais vulnerável do distrito: 97,5% possui renda até 3 salários mínimos, sendo preponderante a parcela que declara entre 1 e 2 salários mínimos. A atividade de militância e coordenação do movimento produzem, em conjunto com a base do movimento, o espaço comum das reivindicações e das transformações de sociabilidade na ocupação Vila Nova Palestina. Entretanto, a proposição desta epistemologia comunitária de contraposição à problemática da urbanização periférica capitalista não está alheia a contradições que permeiam a vida cotidiana dos integrantes do movimento. O caso do “B.O. dos coordenadores”, como nos conta Falchetti, é emblemático a esse respeito: o conflituoso e turbulento amálgama entre o estrito interesse individual e a construção coletiva da luta pela esfera do comum. Trata-se de um evento ocorrido no início da ocupação, quando os 116 grupos iniciais foram instituídos com pessoas que pouco se conheciam, e coordenadores exigiam contrapartidas financeiras para permitir a participação de acampados e residentes em atividades do movimento (critério este que define a entrada das famílias na lista de espera por habitação pelo MTST). Um caso de corrupção, abuso de poder e clientelismo dentro da ocupação que reflete práticas corriqueiras nas relações de poder e sociabilidades cotidianas. Entretanto, reforça a autora, a existência de práticas antagônicas aos interesses e preceitos do movimento na consolidação das ocupações não é um fato inesperado; tampouco corrompe com a legitimidade das dinâmicas sociais ali formadas. Antes, demonstra a necessidade do compromisso coletivo com a causa posta pelo MTST - o que se estende à não aceitação das práticas que prio83 Ibid., p. 269.


166 - Arquitetura da Alteridade

rizam o individual antes do comum. Desse modo, os coordenadores envolvidos no episódio foram expulsos do movimento, reforçando a política de alinhamento prático e discursivo com o que fora posto pela comunidade mobilizada: “Viver junto envolve pactuar uma organização mínima e enfrentar conflitos que atravessam a experiência vivida. Nisso consiste o processo de politização forjado pela ocupação. Ao discutir o acontecido e buscar uma solução conjunta, o coletivo colocou em perspectiva as práticas de corrupção, cuja sobrevivência se dá pela invisibilidade social. Construir uma esfera pública e pactuar valores éticos que protejam o coletivo implica modificar entendimentos e comportamentos”84.

A monetização das relações comunitárias no episódio “B.O. dos coordenadores”, ferindo um dos princípios do movimento, impeliu a resolução interna de um problema constitutivo da própria sociabilidade capitalista. Da mesma forma, relações de opressão de gênero, sexualidade e raça, herdados dos laços sociais historicamente construídos, são combatidos dentro da ocupação durante a solidária atividade de pôr em comum a vida cotidiana. A formação de novos laços de afeto e aceitação das diversidades sociais é feita tanto pela quebra de divisões de tarefas e desígnios cotidianos por padrões pré concebidos (como a divisão do trabalho do cuidado, das atividades produtivas delegadas ao homem e reprodutivas à mulher), por rodas de discussão que problematizam as sociabilidades forjadas em situação de opressão, até a demonstração de imediata recusa à atos que ferem com respeito ao coletivo - quando integrantes são expulsos, como no caso de corrupção da coordenação. Assim, o respeito à pluralidade, fundamento da práxis comunitária posta na ocupação, constitui um dos pilares sob os quais se desenvolve a luta comum por moradia. Trata-se de uma ordem de fatores que, por sua vez, antagoniza com aquela posta por Dardot e Laval em seu ensaio sobre a revolução no século XXI. Segundo os autores, o comum é uma ordem social na qual não há conflito de sujeitos - o coletivo e o privado, o certo e o errado - mas sim uma completa negação da figura do sujeito. A comunhão de atividades e responsabilidades seria fruto, assim, da noção de “ser-em-comum”, onde a condição de “ser” individual é invariavelmente atrelado à vivência coletiva no devir mundo. Assim, “ser-com” implicaria que a comunidade não se trata do compartilhamento de uma propriedade, mas sim de uma condição, uma realidade, um dever. Tratar-se-ia de um comum original, onde o “ser-com” é, fundamentalmente, a finitude do estar na terra, que congrega e consuma uma comunidade. Consiste 84 Ibid., p. 265-266.


Iluminações históricas a uma teoria revolucionária - 167

de uma comunidade da ausência, onde a morte é o único elemento que nos torna seres em comum. Reconhecem, por sua vez, que a pluralidade é uma exigência prática do ser em comum. Entretanto, para os autores, ela não é política: a pluralidade só é possível por meio da política; é precedida por ela. Portanto, não existiria práxis política do comum, e sim a práxis política que permitiria a existência do comum85. Como afirma Gilles Deleuze, “antes do ser, há a política”86 . Assim, para Dardot e Laval, a instituição do comum viria como um resultado da “ação comum”: o modo pelo qual agimos em coobrigação e reciprocidade com o intuito de sustentar esta ordem comunitária da realidade. Entretanto, o entendimento posto pelos autores sobre o comum como um fim a ser alcançado, e não como um meio de organização imediata da vida cotidiana, difere do que se observa na Vila Nova Palestina no fato de que é a existência de pluralidade social que justifica e embasa a atividade política na ocupação. Nesse sentido, o comum é a metodologia pela qual corpos singulares são postos em contato para forjar uma sociabilidade de respeito à diversidade - a qual não se encontra nas relações pessoais constituídas dentro da economia política capitalista. A pluralidade, portanto, é anterior à política; e em meio a opressão estrutural de gênero, raça, classe e sexualidade, é a epistemologia do pôr em comum - construída pelo MTST nas ocupações - que sustenta a possibilidade de coexistência entre indivíduos diversos. Dessa forma, ao contrário do que fora escrito por Dardot e Laval, o comum da classe trabalhadora sem-teto depende da figura do sujeito plural para a própria existência da política organizada. Como aponta a coordenadora geral da ocupação Nova Palestina, J.B.: “O preconceito racial, a ideia de você buscar emprego e você ter capacidade de desenvolver uma determinada função e não ser aceito pela cor da sua pele, que eu passei inúmeras vezes por isso, né?... A condição de trabalho precária e, enfim, eu acho que é isso que me fez me engajar mesmo na militância, estar aqui. Só a luta vai mudar tudo isso, né? A violência, a forma opressora da PM na periferia, a forma que o meu irmão foi tratado como bandido, tendo sido assassinado e, tudo isso, me fez mudar... não sei... mudar não, eu acho que ser eu mesma, não deixar que me mudassem”87.

A práxis coletiva da luta instituída na ocupação é, portanto, fruto da necessidade do reconhecimento de direitos essenciais que, centrados na figura da dignidade habitacional, incorporam a demanda histórica por respeito à 85 Dardot e Laval, 2014, p. 296. 86 Ibid., p. 296. 87 Falchetti, 2014, p. 254.


168 - Arquitetura da Alteridade

diversidade social. Para tanto, a interação política no comum parte do sujeito singular, que põe em comum a sua própria existência no território e exige reconhecimento de seus direitos e sua dignidade. Trata-se de uma construção normativa dada durante as atividades cotidianas na Vila Nova Palestina, que se intensifica na ocupação a partir do ano de 2016. Após o golpe parlamentar perpetrado naquele ano, com a revogação do decreto presidencial que previa a construção das moradias pleiteadas pelo MTST - ainda nas primeiras semanas do governo Temer - e com a mudança na postura do Estado para com o movimento, o caráter da ocupação fora reformulado, de modo a responder ao contexto político nacional. Sem a perspectiva de contrapartida estatal à compra do terreno e à provisão das habitações pleiteadas, a composição programática da ocupação como um espaço de organização das atividades comuns, portanto separado da moradia propriamente dita, é alterada com o aval das coordenações estaduais e nacionais do movimento, de modo a incentivar a permanência dos acampados no território. Os barracos simbólicos, outrora restrito a uma demarcação espacial presença das famílias na luta coletiva, passam por uma transformação estrutural, de modo a adequá-los à função de abrigo fixo. Com isso, o contingente populacional que residia na Nova Palestina cresce exponencialmente, e o local que era destinado à construção comum de uma sociabilidade essencialmente anticapitalista passa a ser, também, o da moradia. Neste amálgama entre o comum da luta de classes e da habitação, a lógica programática que privilegiava os espaços coletivos é alterada, de modo a adequar às demandas postas pela fixação da moradia na ocupação. Assim, as novas casas passaram a receber as infraestruturas que se concentravam nos edifícios comunitários: água, energia e esgoto, com banheiro e cozinha dentro da própria residência. As alterações, por sua vez, reduziram as chances de reintegração de posse, de modo que o grande desafio inaugurado fora o de impedir a desarticulação do movimento na Nova Palestina. Perdido o horizonte que orientava a luta por moradia, a ocupação teve de ser rearticulada para resistir no território, mantendo os moradores ativos e dando o respaldo necessário para a luta em longo prazo que perduraria. Trata-se da rearticulação do comum pela necessidade de sobrevivência de seus integrantes, o que, com a transformação dos barracos simbólicos em pequenas casas, resultou no esvaziamento das cozinhas e banheiros coletivos. Houve a redução no número de grupos, somando um total de três (mapas 6, 7, 8 e 9) - que mantiveram o programa essencial, composto pelo barracão, a cozinha e o banheiro comunitário - de modo que as atividades cotidianas foram centralizadas nas novas casas, com menos encontros e mais privacidade aos moradores.


Iluminações históricas a uma teoria revolucionária - 169 C

F

C C

Mapa 6: Disposição dos Grupos (Gs) da Vila Nova Palestina C

C

1

2 C

C

3

Legenda

(Mapa elaborado pelo autor. Fonte dos arquivos shapefile: GeoSampa, CESAD-USP)

Limite do lote 1 Grupo 1 2 Grupo 2 3 Grupo 3

50

100

250m


170 - Arquitetura da Alteridade

Mapa 7: Implantação G1 C

C

B

P

Legenda

(Mapa elaborado pelo autor. Fonte dos arquivos shapefile: Google Maps, CESAD-USP)

Limite do lote B Barracão Central da Ocupação + cozinha comunitária P Praça Central da Ocupação

25

50

100m


Iluminações históricas a uma teoria revolucionária - 171

Mapa 8: Implantação G2

P

B

Legenda

(Mapa elaborado pelo autor. Fonte dos arquivos shapefile: Google Maps, CESAD-USP)

Limite do lote B Barracão + cozinha comunitária P Praça

25

50

100m


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Mapa 9: Implantação G3

Legenda

(Mapa elaborado pelo autor. Fonte dos arquivos shapefile: Google Maps, CESAD-USP)

Limite do lote Não foi possível identificar o Barracão, a cozinha comunitária e a praça do G3

25

50

100m


Iluminações históricas a uma teoria revolucionária - 173

A ocupação passa a ser o palco onde se põe em comum as necessidades imediatas dos moradores: uma vez que o objetivo que animava a vida cotidiana da Nova Palestina fora envolto em incertezas, as demandas da classe trabalhadora que ali habita ganharam centralidade no dia-a-dia do movimento ali instaurado. Para tanto, uma nova relação de autoridade teve de ser desenvolvida pela coordenação - sobretudo por parte de J.B. -, mobilizando os acampados de modo a acomodar algum conforto à condição irresoluta dos desamparados moradores. Nesse sentido, segundo a autora e retomando Safatle88, o desamparo, “ao contrário do medo ou da esperança, é desprovido de expectativas, opera em outra temporalidade, expressa na indeterminação provocada pela avaliação da inadequação entre a força que se tem e a situação enfrentada”89 . Assim, mesmo com o fortalecimento da esfera individual, as atividades na ocupação mantém o princípio político de proporcionar o “encontro com o outro”90. Tal mudança no feitio programático da ocupação, que passou a abrigar tanto o campo individual quanto coletivo da vida social dos acampados, teve como resultado o fortalecimento dos laços de cooperação e confiança entre os moradores, além da centralização da vida cotidiana sobre as demandas do coletivo. Como aponta Jozy, residente da Nova Palestina: “Hoje, com as cozinhas unificadas, se você faz um almoço, um evento comunitário ou qualquer outra coisa nas cozinhas, todo mundo se agrupa e você vê quem é quem. Eu acho que ficou melhor, nesse sentido. No dia a dia, o evento é uma peça fundamental. Na presença, e no entra e sai, nós conhecemos algumas pessoas, principalmente, as pessoas de luta e frequentes. Sempre perguntam alguma coisa, se nós estamos sabendo de algum informe, o horário que vai acontecer algum encontro, o que vai fazendo criar aquele elo”91.

Segundo a autora, trata-se de uma relação construída tanto no dia-a-dia, quanto em eventos específicos; onde, no primeiro, os vínculos cotidianos do comum são fortalecidos, e no segundo estabelece-se uma quebra na rotina: um momento de reflexão e compartilhamento de experiências que formam a contraconduta posta em prática na Nova Palestina Como bem frisa a autora, a própria ocupação exerce o papel do espaço da alteridade: “é uma intervenção no ordenamento urbano que instaura uma situação extraordinária. Significar politicamente essa situação é a possibilidade dada na construção desse espaço

88 Ibid., p. 274. 89 Ibid., p. 274. 90 Ibid., p. 274. 91 Ibid., p. 274.


174 - Arquitetura da Alteridade

vivido”92. No âmbito do dia-a-dia, a ressignificação da ocupação como o lugar de sobrevivência e abrigo da classe trabalhadora sem-teto igualmente reposicionou as cozinhas coletivas remanescentes no centro da vida cotidiana na Nova Palestina. Com cerca de 60 residentes responsáveis pelo preparo das refeições coletivas de cada grupo, a proposta programática das cozinhas é a de fortalecer os laços de cooperação e solidariedade sobre a feitura das atividades economicamente reprodutivas referentes à política do comum. O ponto crucial deste processo é a quebra dos marcadores de gênero na divisão do trabalho de cuidado. Delegado à mulher dentro da família nuclear capitalista, na ocupação, é dever do homem também participar das tarefas reprodutivas; fato que, nas cozinhas, se reflete em uma divisão estritamente igual do trabalho: tanto no preparo das refeições, quanto na limpeza dos utensílios usados. Trata-se de uma dinâmica que, por sua vez, reflete o papel de protagonismo assumido pelas mulheres do MTST na formação de uma nova sociabilidade comum. Compondo a maior parte da base social do movimento, as mulheres, segundo Silvia Federici93, historicamente “comandam o esforço de coletivizar o trabalho reprodutivo como uma maneira de economizar no custo da reprodução e de proteger umas às outras da pobreza, da violência de Estado e da violência dos homens”94. Assim, a construção de laços de cooperação e reciprocidade nas atividades de caráter doméstico invariavelmente alinha-se a uma tradicional luta feminista pela instituição e defesa do comum - que, na ocupação, não se restringe a permitir a execução das atividades reprodutivas, mas torna-se ele próprio a práxis de superação do subjugo do gênero feminino pelo masculino. O protagonismo das mulheres na organização do dia-a-dia da Vila Nova Palestina norteia, assim, o projeto político de desalienação popular pela vivência coletiva no território. Para tanto, a politização de demandas históricas da luta feminista fora construída na ocupação com o compartilhamento de experiências individuais e a busca coletiva por soluções. A produção das refeições e o cuidado com as cozinhas comunitárias foi um ponto crucial, e que exigiu o comprometimento de todos os integrantes dos grupos acampados para sua resolução de modo igualitário. Entretanto, o objetivo da superação das desiguais relações de gênero trouxe consigo outras necessidades que não se limitam 92 Ibid., p. 275. 93 FEDERICI, Silvia. O ponto zero da revolução: trabalho doméstico, reprodução e luta feminista. São Paulo: Editora Elefante, 2019. 94 Federici, 2019, p. 315.


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ao conteúdo programático designado à cozinha coletiva. Demandas como a assistência no trabalho de cuidado às mães que, pela ausência de creches ou o abandono dos pais, necessitam de auxílio para a criação de seus filhos; a limpeza das áreas comuns; e o amparo emocional para reconhecimento e superação de traumas decorrentes de relacionamentos abusivos e da misoginia cotidiana são postos em comum na ocupação. Como efeito, a coletivização das responsabilidades postas pelo pensamento feminista solidifica a formação de laços de pertencimento territorial; onde a compreensão da importância do coletivo na construção de uma sociabilidade que garanta uma vida digna a todos os integrantes do movimento aumenta significativamente o impeto coletivo nas participações comunitárias. Assim, a “luta para ser o que sou”, da qual fala a coordenadora J.B., torna-se, na Vila Nova Palestina, indissociável da luta pela construção do sujeito coletivo da ocupação. Como aponta Falchetti, “Ao reposicionar o trabalho dedicado à reprodução da vida, o espaço da ocupação traz consigo tudo aquilo que fica isolado na vida privada ou doméstica: violência sexista, problemas com o álcool e drogas, sofrimento, desemprego. Percebidas de modo vinculado, as relações sociais são postas no terreno da política. Assim, em meio a conflitos, acertos e recomeços, as relações vão se constituindo. Lidar com esses problemas pela via do acolhimento em lugar da exclusão, buscar juntos as soluções e construir pactos de confiança são apostas em outro modo de conviver”95.

Nesse sentido, quando, a partir de 2016, a ocupação deixa de ser um espaço voltado sobretudo à organização das reivindicações por moradia digna e passa a ser, ela própria, a casa da base mobilizada, e as necessidades individuais adentram em um território construído pela centralidade na dimensão coletiva, a perspectiva feminista sobre trabalho reprodutivo na organização do comum torna-se a pedra fundamental da Vila Nova Palestina. Como aponta Federici: “Se a casa é o oikos sobre o qual a economia é construída, então são as mulheres, historicamente trabalhadoras e prisioneiras da casa, que precisam assumir a iniciativa de retomar a casa como um centro da vida coletiva, atravessado por múltiplas pessoas e formas de cooperação, oferecendo segurança sem isolamento ou fixação, permitindo o compartilhamento e a circulação de posses comunitárias e, acima de tudo, oferecendo uma base para formas coletivas de produção”96.

Na mesma medida que o tensionamento de relações de gênero é elemento constitutivo da ocupação, as questões que envolvem a diversidade sexual 95 Falchetti, 2019, p. 280-281. 96 Federici, 2019, p. 322.


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são tratadas com prioridade por parte dos moradores. Assim, a construção de um ambiente que comporte a pluralidade de sujeitos é fruto de uma política de respeito à dignidade e aceitação das diferenças que, assim como nos condensadores sociais, é fruto de uma ressignificação territorial da vida cotidiana. Por sua vez, os eventos pontuais ministrados nos barracões e nas praças da ocupação promovem uma aproximação desta sociabilidade proposta sob a matriz da festa, e da celebração. A mobilização da base social vincula-se, assim, a debates e expressões artísticas e culturais politizadas pela ótica da comunidade. Com a participação de coletivos lgbtqi+, feministas, e negros, a conscientização popular decorre da multiplicidade de vozes postas em dialogo em eventos que são verdadeiras odes à constituição comunitária da sociedade que ali se fomenta. Por fim, a própria militância participa de eventos pontuais na ocupação, onde os setores e brigadas auxiliam na melhoria da vida cotidiana em questões especializadas: arquitetura e urbanismo, horta, cursinho popular, alfabetização, saúde e comunicação. Assim, o evento pontual, em conjunto com as atividades diárias, estabelecem as bases pelas quais entende-se a definição programática da Vila Nova Palestina, como uma leitura histórica da dialética entre as práticas instituídas no espaço e aquelas que emergem do território per se. Organizada pela metodologia do comum, a formação de uma sociabilidade crítica à economia política capitalista na ocupação urbana do MTST, assim como os sindicatos e demais formas cooperativas de reivindicação de direitos da classe trabalhadora, faz dela o que Marx intitula de “escola do socialismo”97. Segundo o preceito basilar do materialismo histórico dialético marxiano, sendo o campo da ideologia, do espírito, e do psíquico humano um fruto imediato das condições materiais da vida cotidiana, qualquer transformação social efetiva - tanto no âmbito individual, quanto coletivo - depende de uma reformulação das relações materiais praticadas. Nesse sentido, a práxis é o meio pela qual pode-se construir uma condição objetiva de solidez ética, amplitude intelectual e beleza vital - objetivos fundamentais do socialismo. Assim, a construção física e institucional de um espaço que estabeleça a reordenação da práxis cotidiana - como é o caso da ocupação Nova Palestina - é o meio pelo qual pode-se vislumbrar um horizonte de superação das contradições históricas que permeiam a sociabilidade capitalista.

O resgate histórico das atividades desenvolvidas na ocupação, que si-

97 Apud. Dardot e Laval, p. 420.


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multaneamente sustentam a luta por moradia digna e possibilitam a construção de novos laços sociais de cooperação e solidariedade, ilumina a problemática normativa dos comuns, apresentada por Dardot e Laval. Para eles, a transformação, nos comuns, das práticas e sociabilidades herdadas da vida cotidiana dentro da economia política capitalista não ocorre naturalmente. Como no caso do “B.O. dos coordenadores”, a renovação dos costumes são fruto direto da aplicação de regras e premissas que, ao mesmo tempo, afastam e tornam inadmissíveis antigas práticas sociais, e instituem o arcabouço normativo de uma práxis essencialmente anticapitalista. Este fenômeno, para os autores, consiste da compreensão da instituição como o conjunto de regras sobre um coletivo; que, por sua vez, aplica-se ao comum pelo poder coercitivo de seu ato instituinte - o que, na ocupação, representa a entrada do MTST no lote abandonado. Por sua vez, apesar de exercer um papel ativo na representação de um corpo social, as instituições são, per se, dotadas de uma inércia estrutural potencialmente retrógrada - tendo em vista o objetivo de amparar transformações na prática cotidiana. Se há a necessidade que a instituição defenda princípios e normas fundamentais com solidez, é igualmente fundamental que ela não perca sua conexão intrínseca à vida cotidiana, em seu caráter prático e mutável; sem que esta dinâmica anule os fundamentos instituídos, e tampouco pereça por uma inércia estrutural desmesurada. A contraditória relação entre o núcleo duro da instituição e sua relativa fluidez prática é, por sua vez, tratada por Sartre98 como uma condição da ordem social que precede a sua consolidação como o agente histórico da classe social. Para ele, os coletivos humanos passam por um processo de complexificação de suas relações interpessoais, conforme transitam do que chama de “conjunto prático-inertes”, posteriormente estruturados em ”grupos” - onde encontram-se as instituições - até sua passagem às “classes sociais”99 . Em primeiro lugar, os conjuntos prático-inertes são compostos por elementos “seriais” e “coletivos”, de modo que o serial é compreendido como uma totalidade de unidades sociais isoladas - o que Dardot e Laval chamam de “pluralidade de solidões”: “por exemplo, os usuários de uma linha de ônibus à espera do mesmo veículo, que só se distingue dos outros por um número”100 . Por outro lado, o “coletivo” sartriano - do mesmo modo que os grupos sócio-espaciais tratados anteriormente - consiste da relação dialética entre um corpo social e o espaços construído que os abriga: como os operários da mesma fábrica na cidade, em que a multiplici98 Apud. ibidem, p. 437. 99 Ibid., p. 437. 100 Ibid., p. 437.


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dade de indivíduos encontram, na materialidade do lugar, o elemento de união e exterioridade coletiva. Em segundo lugar, os grupos, segundo Sartre101, são definidos pela efetivação de uma práxis socialmente unificada: com uma finalidade comum, o grupo busca a superação da fragilidade e do isolamento social imposto pela condição de serialidade. Trata-se, portanto, de uma reação e uma resposta à realidade prático-inerte. A história desta categoria social é marcada por uma evolução constante dos níveis de organização: uma construção dialética em via de mão única, do simples ao complexo. Dentro do estágio dos grupos sociais, o filósofo francês categoriza o sucessivo desenvolvimento partindo do “grupo em fusão”, ao “grupo organizado”, até o “grupo-instituição”. O primeiro se orienta a partir de uma práxis comum, mas sem a representatividade organizacional estabelecida; o segundo, passa a apresentar uma estrutura definida em divisões de trabalho e “aparatos especializados” de controle da práxis comum. A passagem para o grupo-instituição, entretanto, é um evento de maior complexidade e pouco esclarecido: para Sartre, trata-se do resultado das contradições internas do grupo, que exigem a solidificação coercitiva da práxis comum em instituições que estabeleçam a mediação das interações dentro da comunidade. A institucionalização depende, portanto, de um compromisso coletivo, uma hierarquização e um juramento às instituições. Trata-se de uma maneira de proteção do coletivo contra a própria inércia por meio de uma ficção, uma “inércia jurada”, nas palavras de Dardot e Laval102. Assim, é a partir do legítimo e juramentado uso da força que a autoridade consagra a soberania de grupo institucionalizado. Do mesmo modo, o alinhamento de uma práxis territorial na ocupação Vila Nova Palestina, entre seus integrantes, depende do simultâneo processo de formação da práxis loci e a soberania da instituição coletiva, respaldada em uma construção da luta sobre a necessidade essencial da moradia digna. A condição histórica da classe trabalhadora sem-teto na periferia da cidade de São Paulo, fruto do legado material da exploração e espoliação cotidiana, é, portanto, o elemento fundamental que precede e justifica a formação institucional da ocupação do MTST no Jardim Ângela. Trata-se de uma perspectiva apresentada pelo filósofo Cornelius Castoriadis, o qual aponta que, antes de um elemento hermético e imóvel, a instituição se mostra como o resultado de uma práxis criativa de uma sociedade103 . Nesse sentido, observa-se que a transformação de 101 Ibid., p. 437 102 Ibid., p. 438. 103 Ibid., p. 446.


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sociabilidades dentro da Nova Palestina é um processo simultâneo à produção coletiva de seu lex loci: onde as regras do MTST são adequadas ao comum, sem que, por sua vez, se abra mão dos objetivos centrais do movimento: aliar a conquista da dignidade habitacional à desalienação da base social e à construção do poder popular. Uma atividade criativa, na qual essa “sociedade instituída” na ocupação - fruto de uma “sociedade instituinte” formada pelo movimento - organiza-se de modo a fortalecer o trabalhador sem-teto na luta de classes cotidiana. Este, por sua vez, reconhece na forma comum um meio de articulação coletiva mais adequada não apenas às suas demandas essenciais cotidianas (tanto as imediatas, como segurança e alimentação, quanto as de longo prazo, como a moradia), mas também um espaço social moralmente superior ao da sociedade capitalista. Desse modo, a ocupação torna-se o local onde a formação coletiva da consciência de classe é fruto da mesma práxis da luta por moradia digna e pelo poder popular, de modo a propagar a metodologia comum de articulação proletária nos bairros e distritos onde o MTST pôde se instituir. A práxis coletiva da luta dos sem-teto organizada na Vila Nova Palestina, assim, assume o papel criativo de uma metodologia da autonomia, onde a classe historicamente explorada e espoliada constrói materialmente os meios de fortalecer-se. Neste ponto, a definição semântica do termo “criação”, proposta pelo filósofo Cornelius Castoriadis, é retomada por Dardot e Laval como um importante elemento de esclarecimento sobre a transformação de sociabilidades no comum. Para Castoriadis104, o termo “criação” significa a invenção de uma nova forma, uma eidos própria que define um objeto antes indefinido, sendo, portanto, um ato ex nihilo: como a roda que gira em torno do próprio eixo, invenção revolucionária que não procurava imitar nenhum objeto já existente. A criação ex nihilo (a partir do nada) não deve ser entendida como cum nihilo: sem meios, em tábula rasa. Toda criação é um processo histórico, e ocorre sobre e pela materialidade da vida cotidiana. Como apontam os autores franceses, dentro do debate sobre os comuns, o fundamental na definição de Castoriadis105 sobre o termo “criação” é que a preexistência do instituído sobre a instituição, apesar de condicioná-la, não a determina. Nesse sentido, Dardot e Laval propõem a concepção semântica de criação ex aliquo: a partir de algo. Trata-se de uma “criação condicionada” por condições preexistentes, que, apesar de serem a base sob o qual se formula o ato criativo, não representam a causa pelo qual ocorre a criação. Trata-se do sentido de “emergência” proposto por Castoriadis: apesar da condição preexistente dar forma ao objeto que “emerge”, ela não é 104 Ibid., p. 458. 105 Ibid., p. 458.


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necessariamente a causa desta criação. Assim, segundo ele, as formas não são causadas por nada: elas, antes, são fruto das condições materiais106. O amálgama entre a práxis e a criação-instituição, relacionadas no processo de formação das reivindicações e da sociabilidade anticapitalista na ocupação, para Dardot e Laval, levanta duas questões fundamentais. Em primeiro lugar, como a instituição, objeto fruto de um ato criativo de um coletivo, “que no fundo é inconsciente”, torna-se uma práxis “isto é, tornar-se consciente de si mesma, não como todo, mas apenas como parte desse todo”107. Em segundo, como a instituição, que não trata necessariamente sobre o ideal de autonomia, pode ser estruturada a partir deste fundamento tão caro à práxis? Sendo o poder instituinte de uma sociedade um ato criador a partir do existente - por mais radical e disruptivo que seja, é sempre fruto de um processo histórico - os autores afirmam que a instituição da autonomia, além de não ser uma criação ex nihilo, tampouco é a condução de uma sociedade inconsciente rumo ao esclarecimento. A instituição da autonomia política - criação-instituição fruto de uma práxis consciente - ocorre a partir de condições construídas ao longo do tempo: herdadas do passado, em uma constituição essencialmente ex aliquo sobre o que já encontra-se instituído. Por sua vez, este fazer autônomo, limitado às condições materiais historicamente consolidadas, não reduziria a capacidade criativa de uma nova realidade: pelo contrário, é somente pelo contexto espaço-temporal que tal criação é possível. Isto se deve ao fato de que as condições encontradas pelo homem não estabelecem com ele uma relação de neutralidade e passividade: quando se atua sobre o real, o resultado é uma alteração das condições anteriores, de forma que se produza uma nova condição, inédita na história. Assim, a criação ex aliquo de uma nova sociabilidade na instituição territorial do MTST na Vila Nova Palestina é fruto da dialética relação entre o programa constituinte do movimento e as demandas dos seus integrantes, com a consolidação de uma práxis loci essencialmente emancipatória. Nesse sentido, como aponta Marx em sua terceira tese sobre Feuerbach108 , a ação de transformação das circunstâncias materiais e a “autotransformação-alteração” do homem por meio da “práxis revolucionária” são eventos com espaços-tempo “coincidentes”. A simultânea construção de uma nova condição pelos homens e a automodificação destes indivíduos em prol da transformação exterior somente tomam forma quando são parte de um mesmo processo, de modo que a 106 Ibid., p. 460 107 Ibid., p. 461. 108 MARX, Karl, ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo, 1845, p.533.


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práxis consiste da autoprodução de sujeitos ao longo de um ato revolucionário. Em linhas gerais, a práxis, segundo a teoria marxiana, é uma ordem de ação condicionada ao lugar: sobre e a partir de uma realidade dada - transformando tanto as bases que orientam as relações interpessoais, quanto os próprios indivíduos, na posição de sujeitos políticos. A dimensão histórica das condições materiais, por sua vez, torna-se evidente quando se observa as instituições: tanto em suas mudanças internas, quanto nos processos que levam à criação de novas instituições. Assim, com base na correlação imediata entre a práxis revolucionária e a instituição, enquanto elemento de representação popular e de defesa das normas coletivas, Dardot e Laval defendem a tese de que “a práxis emancipadora é práxis instituinte ou atividade consciente de instituição”109. Para os autores, a práxis instituinte possui duas funções principais. A primeira consiste em dar concretude a novas instituições, formando um sistema de regras de acordo com a atividade instituinte emancipatória. A segunda função, por sua vez, “é fazer vir à tona a necessidade absoluta de uma atividade instituinte contínua, para além do limiar do ato inaugural, portanto à maneira de uma ‘instituição continuada’. Como viram muito bem Sartre e Castoriadis, cada um a sua maneira, todo instituído, uma vez posto, tende a autonomizar-se em relação ao ato que o pôs, em virtude de uma inércia própria contra a qual é preciso lutar incessantemente. Portanto, a práxis instituinte é ao mesmo tempo a atividade que estabelece um novo sistema de regras e a atividade que tenta reiniciar permanentemente esse estabelecimento para evitar a paralisação do instituinte no instituído”110.

As instituições, portanto, não estão fadadas a passar obrigatoriamente da efervescência à estagnação; contanto que os sujeitos instituintes não desvinculem da finalidade de suas atividades as relações sociais que as produziram coletivamente: as construções de imaginário e subjetividades sociais, os meios que galgaram a formação institucional e os valores que orientam a prática do fazer em conjunto. Nesse sentido, a práxis é a autoprodução do sujeito político a partir da contínua produção coletiva de regras e leis, mantida na instituição de modo a perpetuar as intenções do coletivo. Do mesmo modo, quando observamos a ocupação do MTST no Jardim Ângela, é fulcral, para que se alcancem os objetivos do movimento, a manutenção das atividades deliberativas e formativas onde se põe em comum demandas históricas dos grupos que compõem o movimento - como as reivindicações no campo das relações de classe, gênero, 109 Ibid., p. 466. 110 Ibid., p. 471.


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etnia e sexualidade. Uma instituição em perpétuo desenvolvimento, a ocupação é composta um espaço de transformação de sociabilidades ao longo da práxis cooperativa e solidária, rompendo com um sistema de produção e reprodução da vida cotidiana herdado da economia política capitalista, expondo e enfrentando suas contradições. Tal posicionamento alinha-se, em parte, à máxima de Dardot e Laval, exposta nas linhas finais da segunda seção do livro que trata de um ensaio sobre a revolução no século XXI, onde “a única práxis instituinte emancipadora é aquela que faz do comum a nova significação do imaginário social”111 . No entanto, a Vila Nova Palestina nos mostra que o comum, antes de uma instituição final, é o meio pelo qual constrói-se um “imaginário social” que não perpetue os problemas históricos da sociedade capitalista na periferia de São Paulo. Trata-se, portanto, da metodologia pela qual aplica-se o programa de desalienação coletiva e formação do sujeito político - ministrado sobretudo pela coordenação e militância do MTST -, da luta pela dignidade habitacional, e da emergência do objetivo final do movimento - a construção do poder popular em uma práxis criadora dentro dos espaços comunitários da ocupação. 4.7 - Construção: tempo, trabalho e reprodução social Último vértice da tríade espaço-temporal que estruturou a análise da ocupação Vila Nova Palestina, a Construção - produção material do lugar de organização e desenvolvimento da luta dos sem-teto por moradia digna - resulta, assim como o Programa, da síntese entre as propostas e formas de ação do MTST e as idiossincrasias do Lugar. Em uma região da cidade de São Paulo onde a complexa precariedade habitacional é sustentada pela escassez de infraestrutura básica e serviços urbanos, pelos baixos salários - fruto da posição da população brasileira periférica na divisão internacional do trabalho -, pelo reduzido índice de escolaridade e pela alta taxa de violência - onde o tráfico de drogas e a truculência policial são a linha de frente da necropolítica do poder na região -, a construção de uma prática espacial de cooperativa e solidária constitui a démarche do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto. As demandas inerentes à vida cotidiana da classe trabalhadora são enfrentadas, no movimento, alinhando o objetivo imediato que impele a mobilização da base social - a conquista da moradia - com a formação ex aliquo de consciência de classe - desde o reconhecimento de direitos civis garantidos aos trabalhadores, até a compreensão sobre o funcionamento da economia política capitalista e seus desdobramentos urbanos. Trata-se, es111 Ibid., p. 478.


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sencialmente, de consolidar uma nova relação material de subsistência, onde a ordem do coletivo baliza a práxis de um novo grupo socioespacial, gestado na ocupação. A retomada do termo cunhado por Silke Kapp112 é proposital: a especificidade do grupo socioespacial da Vila Nova Palestina, de acordo com a perspectiva posta pela autora, é fruto da dialética entre a sociabilidade cotidiana e a produção do espaço que a comporta. Nesse sentido, a luta por dignidade habitacional e pela emergência do poder popular é igualmente causa e resultado de um esforço coletivo de construção territorial - tanto no aspecto programático, quanto na materialização real dos edifícios que o compõem. O ato de pôr em comum as proposições que constituem a própria razão de ser do MTST - a defesa dos direitos dos trabalhadores, unidas sob a bandeira da luta por moradia digna, e a crítica à relações de opressão presentes na sociedade capitalista - simultaneamente proporciona e é condicionado, assim, a um meio de produção do espaço baseado na sociabilidade do comum. Deste modo, é notório que, estabelecendo a imediata relação entre a reivindicação pelo reconhecimento das necessidades essenciais dos trabalhadores e uma concepção urbana posta em comum por uma nova sociabilidade cooperativa e anticapitalista, recupera-se um dos fundamentos primordiais do direito à cidade, segundo o sociólogo francês Henri Lefebvre: o direito à obra113. O direito à cidade, termo utilizado à exaustão na literatura e organizações políticas combativas ao urbanismo capitalista como base das mais diversas reivindicações - a ponto de beirar o esvaziamento semântico -, para Lefebvre, traduz uma condição revolucionária onde a cidade, simultaneamente cria e progenitora de uma sociedade explorada e espoliada, passa a refletir a imagem de uma civilização verdadeiramente democrática. Sob o conceito de direito à cidade, estão não apenas o pleno acesso e usufruto de infraestruturas e serviços urbanos, de dignidade habitacional e de uma divisão do trabalho onde a exploração de classes teria sido superada, mas também da igualdade em se tomar parte da produção do espaço urbano - tanto em seu aspecto material, quanto simbólico. Uma cidade que não se utilize de uma força de trabalho remunerada em escalas miseráveis para erigir seus edifícios, pavimentar suas ruas, iluminar seus postes e, em seguida, expulsar estes mesmos trabalhadores dos locais que por suas mãos foram construídos. Ao contrário, o direito à cidade traduz-se em uma releitura urbana do adágio socialista “se a classe trabalhadora tudo produz, 112 Kapp, op. cit. 113 LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. São Paulo: Centauro Editora, 1968, p. 105.


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a ela tudo pertence”, onde a crítica à alienação do trabalho se expande em uma perspectiva essencialmente territorial. Nesse sentido, a participação na atividade criadora de um espaço representativo de sua própria classe, essencialmente inalienável, consiste em uma necessidade fundamental da vida urbana pela qual defende Lefebvre em seu livro. Trata-se, segundo o autor, do direito à obra: capacidade coletiva de criação do espaço e seus símbolos, da infraestrutura das mentalidades e do lúdico. Em suma, uma “necessidade da cidade e da vida urbana”114, onde uma sociabilidade democrática reflete-se na arquitetura do lugar, do programa e da construção. Do mesmo modo, a luta por direito à cidade circunscreve a práxis criadora da alteridade urbana na Vila Nova Palestina, sustentando uma vida cotidiana crítica à alienação e exploração de classes, na feitura de um lugar de encontro, da comunhão de atividades e saberes, de modo a superar problemas históricos da sociedade capitalista na periferia paulistana. Na ocupação, o direito à obra constitui o fundamento de produção do espaço, em direta e imediata contraposição à mercantilização da cidade, da divisão do trabalho na economia de mercado e da composição ideológica burguesa liberal. Esta, por sua vez, fruto de um humanismo clássico absolutamente falido - um “cadáver mumificado, embalsamado”, que “pesa bastante e não cheira bem”115 - a cidade do capital é tensionada na prática criativa proposta pelo Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto. Como resultado, almeja-se alcançar uma nova metodologia de concepção do espaço da cidade: um “novo humanismo”, que expurgue a espoliação e exploração que envolve a socialização da sociedade. O humanismo da sociedade urbana - condensado no caráter disciplinar da ciência da cidade -, clamado por Lefebvre em O Direito à Cidade, seria fruto de uma sociabilidade da reciprocidade e cooperação na qual a cidade é suporte, mediadora e obra final de seus cidadãos. “O socialismo? Sem dúvida, é disso que se trata”116, e nesta escola do socialismo - a ocupação Vila Nova Palestina - o ensaio deste novo humanismo citadino ganha caráter material na coletiva e democrática construção de sua urbanidade. Recuperando a máxima lefebvriana de que a cidade é o laboratório do homem117, a experiência prática da ocupação no tensionamento da problemática urbana da economia política capitalista, por meio da práxis revolucionária do 114 Lefebvre, 1968, p. 105 115 Ibid., p. 107. 116 Ibid., p. 126. 117 Ibid., p. 07.


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direito à cidade, aproxima-se das teses fundantes do humanismo urbano propostas pelo sociólogo francês em seu livro-manifesto: a transdução, a utopia experimental e a força política dos trabalhadores. A metodologia científica da transdução, em primeiro lugar, trata da concepção da cidade como fruto de um processo dialético entre o teórico e o real, e cuja síntese resulta em um espaço possível. A proposição, em seguida, transforma-se em prática, tensionando as contradições da cidade e buscando a construção de um novo espaço, baseado na práxis da alteridade urbana: uma utopia experimental. Não obstante resguardar-se como bastião de um novo humanismo, segundo Lefebvre, a ciência da cidade, mesmo quando cotejada com as demais ciências parcelares na direção de estabelecer modelos e práxis urbanas baseadas na dialética entre o campo teórico e o empírico, nunca abrange toda a complexidade prático-sensível da cidade como “ato e obra”118. Segundo o autor, a consideração das vicissitudes territoriais, dos conhecimentos e saber historicamente produzidos na cidade, são essenciais de modo a desenvolver uma práxis singular, adequada ao contexto histórico do lugar. Tal estratégia é basilar para o programa de reforma urbana lefebvriano: uma pauta revolucionária, fruto da vivência cotidiana acerca da problemática urbana da economia política capitalista. Procura-se, assim, objetivamente conquistar a feitura da cidade como obra, a construção de novas sociabilidades anticapitalistas e a superação das relações materiais de dominação. Para tanto, a classe trabalhadora, como sujeito histórico revolucionário, é o pilar da construção coletiva do direito à cidade: “A estratégia urbana baseada na ciência da cidade tem necessidade de um suporte social e de forças políticas para se tornar atuante. Ela não age por si mesma. Não pode deixar de se apoiar na presença e na ação da classe operária, a única capaz de pôr fim a uma segregação dirigida essencialmente contra ela. Apenas esta classe, enquanto classe, pode contribuir decisivamente para a reconstrução da centralidade destruída pela estratégia de segregação e reencontrada na forma ameaçadora dos ‘centros de decisão’. Isto não quer dizer que a classe operária fará sozinha a sociedade urbana, mas que sem ela nada é possível. A integração sem ela não tem sentido, e a desintegração continuará, sob a máscara e a nostalgia da integração. Existe aí não apenas uma opção, mas também um horizonte que se abre ou que se fecha. Quando a classe operária se cala, quando ela não age e quando não pode realizar aquilo que a teoria define como sendo sua ‘missão histórica’, é então que faltam o ‘sujeito’ e o ‘objeto’”119.

A dialética entre o conhecimento científico na proposição programática e os saberes historicamente e territorialmente constituídos, no que se refere 118 Ibid., p. 112. 119 Ibid., p. 113.


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à vida cotidiana da classe trabalhadora, trata-se de uma metodologia compartilhada tanto pela visão lefebvriana do direito à cidade quanto da práxis instituída pelo MTST. Observa-se tal proximidade, de um lado, na epistemologia de produção do espaço - síntese entre o cabedal de práticas do grupo socioespacial e as ciências urbanas que pautam as reivindicações pleiteadas na ocupação -, e de outro, na proposição das estratégias de atuação sobre o território, tanto pelo movimento, quanto pelo sociólogo francês. Para tal, ambos propõem o alinhamento de um “programa político de reforma urbana”120 - raison d’être do MTST - à “projetos urbanísticos” adequados às idiossincrasias do espaço-tempo da cidade - o que, no caso do movimento social observado nesta pesquisa, são as ocupações. Neste sentido, a atuação sobre a vida cotidiana da classe trabalhadora na periferia de São Paulo, ao transformar a sociabilidade no grupo, altera o próprio conteúdo prático-sensível da cidade por meio da atividade política coletiva: a realização urbana do comum, com formas e espaços “não impostos, não aceitos por uma resignação passiva, mas metamorfoseados em obra”121 . O direito à cidade, como direito à vida urbana e base da luta por direitos posta na ocupação, ganha materialidade e imagem, por sua vez, no direito à obra. A classe trabalhadora, trazendo consigo a comunhão de todos os interesses da sociedade na luta contra a exploração e espoliação cotidiana, é a única capaz, como apontou Lefebvre, de dar concretude à perspectiva de uma cidade como obra de uma sociedade verdadeiramente democrática. A urbanidade da ocupação é, portanto, um vislumbre premeditado deste horizonte. Portanto, a construção da Vila Nova Palestina, último ponto de análise da ocupação neste trabalho, consiste no exercício do direito à cidade como obra da classe proletária. Um meio de produção da cidade instituída na práxis comunitária: ao mesmo tempo em que possibilita o fortalecimento dos trabalhadores na luta de classes, faz da ocupação o lugar da convivência heterogênea, circunscrita pelo objetivo coletivo que reivindica a moradia digna e a formação do poder popular. Nesta escola do socialismo, a posição de seus integrantes na divisão do trabalho da economia política hegemônica é determinante para a própria constituição da práxis loci de edificação do espaço. A venda da própria força de trabalho como meio de subsistência, como aponta Marx em sua fórmula trinitária, não apenas estabelece a posição da classe operária no mercado capitalista, como estabelece os parâmetros de uma metodologia construtiva em que a ocupação 120 Ibid., p. 114 121 Ibid., p. 116.


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fortaleça os trabalhadores na reivindicação de suas demandas. Dessa forma, a estratégia utilizada pelo MTST para erigir a Nova Palestina baseia-se essencialmente na vida cotidiana proletária para dar concretude à disputa territorial posta pelo movimento no Jardim Ângela. Para compreender tais processos, divido a construção da ocupação em três critérios analíticos, fruto das vicissitudes da luta por dignidade habitacional até aqui estudada: tempo, método construtivo e seus materiais. Em primeiro lugar, a ocupação, “projeto urbanístico” e arquitetônico construído como meio de requisitar contrapartidas a uma demanda histórica da classe trabalhadora - a moradia digna - é, como dito anteriormente, um espaço efêmero: selado o acordo com o Estado, que se disponibiliza a arcar com a compra da propriedade da terra e viabilizar a edificação das habitações pleiteadas, cumpre-se o objetivo imediato do movimento e sua base social. Nesse momento, uma vez alcançado seu propósito com o encaminhamento das novas moradias, a ocupação é desmontada: as famílias residentes no território são provisoriamente realocadas, e os barracões, as cozinhas e os banheiros coletivos, além dos barracos simbólicos, abrem espaço para o canteiro de obras que se instalará no local. Há, portanto um nítido limite temporal que inscreve a existência da ocupação, definido pelo processo litigioso sobre a propriedade, que envolve a formação política da base social, a organização coletiva das reivindicações, a negociação com o poder público, a aquisição do terreno e o início da construção das habitações definitivas. Por ser um meio de conquista de um direito constitucional - a moradia -, uma forma de pressão junto ao Estado para que se cumpra a função social da propriedade e que se garanta a dignidade habitacional de uma parcela da população estruturalmente e territorialmente espoliada, à ocupação atrela-se finitude de acordo com o desfecho dos objetivos da classe trabalhadora - que, por sua vez, é aquela que dispõe de sua força de trabalho para edificar este espaço efêmero. Edificada por autoconstrução - ou, em outras palavras, construção familiar - é premissa do movimento que o processo de produção do espaço deve competir o mínimo possível com as atividades cotidianas de subsistência do proletariado - sendo, portanto, compatível com suas jornadas de trabalho. Dessa forma, a construção coletiva da ocupação - lugar de organização de reivindicações e da transformação de sociabilidades - deve não apenas respeitar o limite cronológico de sua inserção territorial, como também ocorrer no menor tempo possível. Por um lado, sua inserção no processo litigioso de aquisição da propriedade e viabilização da obra e, por outro, sua adequação à vida cotidiana


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dos trabalhadores define, assim, o primeiro parâmetro do processo construtivo da ocupação: o tempo. O aspecto temporal que baliza a construção da ocupação pode ser lido por dois prismas: o jurídico e o de classe. O primeiro, referente ao trâmite judicial envolvendo a negociação e disputa com o poder público pelo reconhecimento das demandas postas pelo movimento no Jardim Ângela, define o período completo de funcionamento da ocupação. Estipula, de acordo com o andamento do processo litigioso, o início e encerramento da experiência urbana da ocupação - quantifica, portanto, o aspecto global do tempo em que se constrói esta obra proletária. O segundo, por sua vez, determina uma produção do espaço de acordo com o objetivo de fortalecer os trabalhadores no desenrolar da luta pelo reconhecimento de seus direitos. Para tanto, a construção da Nova Palestina tem de inserir na vida cotidiana da base social do movimento de modo harmônico com as atividades de subsistência - sobretudo com a participação no chamado mercado de trabalho. Dessa forma, define-se o segundo aspecto do tempo de construção: a quantificação específica, que responde às vicissitudes de classe. Tanto o tempo jurídico quanto o tempo proletário definem, cada um a seu modo, estratégias urbanas e práticas construtivas para a produção do espaço da ocupação, bem como a conclamação do direito à obra em meio a formação do poder popular. Observando cada um destes dois aspectos separadamente, parto da temporalidade judicial da construção: caracterizado pelo período que comporta a entrada do MTST no terreno (no caso da Nova Palestina, a noite do dia 29 de novembro de 2013) até o encerramento do processo litigioso de transferência do direito de propriedade aos integrantes do movimento e se inicie a edificação das moradias definitivas (tramitação esta que, como visto no estudo do Lugar, ainda não se encerrou). Trata-se, portanto, da demarcação cronológica que estipula o início da formação de quadros políticos regionais, da mobilização da base social e da produção de um espaço de desalienação e fortalecimento da sociabilidade do comum, delimitado pelo processo de negociação política sobre a conversão da propriedade privada da terra. Até que se conclua a disputa legal pela transferência de posse, todo o desenvolvimento programático e a construção do espaço da ocupação são realizados sobre uma propriedade que pertence a outrem - fato que, mesmo com o descumprimento da função social da propriedade por parte de seu signatário, exige do movimento especial zelo para com a manutenção das condições e características físicas detalhadas na escritura do terreno. Tal preservação substancial do conteúdo estipulado no


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documento de apropriação, por parte do MTST, por sua vez, garante o próprio reconhecimento estatal da legitimidade da reivindicação e o sucesso das negociações de compra e transferência da terra. Como dito anteriormente, nenhuma oportunidade de desarticulação da luta popular é aceitável dentro do movimento, e o que vale para a proibição do uso de drogas (tanto lícitas quanto ilícitas), igualmente impera sobre o respeito à propriedade privada enquanto se transcorre as negociações de contrapartidas para com o poder público. Dessa forma, a temporalidade jurídica da ocupação define o primeiro aspecto construtivo deste espaço do comum da classe trabalhadora: todas edificações devem se adequar ao terreno de modo a se adequar às condições físicas do lote, de modo que não se realize nenhuma alteração que contradiga as características materiais discriminadas em sua escritura. Por estar inserida em um processo litigioso sobre a transferência da propriedade ainda sem desfecho, a Vila Nova Palestina foi edificada integralmente com estruturas leves, que não necessitam de alterações no terreno para se sustentar. Para tanto, em um lote marcado pela topografia irregular - característico desta região da cidade - buscou-se assentar os programas comunitários em platôs preexistentes à ocupação, de modo que as novas ruas e avenidas, via de regra, acompanham e contornam as regiões de maior declividade. O princípio de não macular o terreno, por sua vez, implica na escolha de materiais e métodos construtivos específicos, que serão vistos adiante, e nem mesmo o plantio de árvores é permitido pela condição judicial do terreno. Dessa forma, a produção do espaço da ocupação, para que seja instalada esta centralidade urbana de formação popular, é concebida como uma estratégia proletária para a defesa de seus interesses frente ao Estado e à ação predatória do mercado de terras. A temporalidade da vida cotidiana dos trabalhadores, por sua vez, baliza a produção do espaço da ocupação sobre a precariedade habitacional da classe proletária; considerando tanto a urgência da demanda por moradia digna, quanto as longas e extenuantes jornadas de trabalho. Nesse sentido, a autoconstrução, método utilizado para edificar a arquitetura da Vila Nova Palestina, é tratada de maneira crítica por parte do movimento, expondo o conflito entre o tempo destinado ao labor remunerado e a produção material da ocupação. Embora tenha sido fetichizada como resposta epistemológica ao problema do déficit habitacional na periferia do capital por parte da academia, de arquitetos e urbanistas engajados com a causa social, a autoconstrução, segundo o pesquisador colombiano Emilio Pradilla Cobos, é uma “solução reacionária” à pro-


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blemática da moradia popular122. A questão central, como aponta o autor, reside na relação entre a teoria marxista do valor - fruto do tempo de trabalho - e a inserção da classe operária na fórmula trinitária. Uma vez que o recebimento do salário representa a contrapartida do capitalista ao proletariado pela venda de sua força de trabalho, o valor desta mercadoria comercializada - a própria força de trabalho - corresponde ao tempo de reprodução das capacidades produtivas por parte do trabalhador. Em outras palavras, trata-se do valor referente aos meios de subsistência do proletariado, de modo a mantê-lo ativo: desde a alimentação, o lazer, o transporte, até, finalmente, a habitação. “A moradia tem”, segundo Cobos, “o caráter de suporte material de uma parte considerável das atividades de consumo necessárias à reprodução da força de trabalho e, portanto, forma uma parte substancial de seu valor, o qual deve ser coberto em termos monetários pelo salário que o patrão paga a seu assalariado em condições normais de exploração”123. Como tratado no primeiro capítulo deste estudo, a produção de valor sobre a propriedade privada da terra é essencialmente incompatível com a remuneração concedida a parte significativa dos trabalhadores; dando à habitação o contraditório caráter de um bem fundamental para a reprodução da força de trabalho e, simultaneamente, uma mercadoria inacessível aos padrões salariais concedidos ao proletariado. A ausência de programas estatais que operem no sentido de garantir este direito evidencia, por sua vez, a chancela pública deste processo de espoliação urbana. Tal negligência governamental, em comum acordo com os interesses privados de acumulação capitalista, faz da autoconstrução - onde cada trabalhador é responsável com a produção de sua própria casa - a alternativa de primeira ordem para, simultaneamente, mitigar o déficit habitacional e manter a precarização da vida cotidiana do assalariado. Diante da relação umbilical entre a reprodução dos meios de subsistência e a moradia, o trabalhador, além de arcar com o custeio da materiais construtivos e do terreno (mesmo que comercializado clandestinamente), depende, pela autoconstrução, da disponibilização de sua mão de obra para edificar sua própria moradia: um dispêndio produtivo cujo efeito é a redução do valor da força de trabalho. Com este significativo alargamento da jornada laboral, tempo este, por sua vez, não reconhecido pelo capitalista em acréscimos salariais, resulta-se em uma proporcional elevação da mais valia relativa (fruto da exploração direta do trabalhador). 122 COBOS, Emilio Pradilla. Capital, Estado y Vivienda en America Latina. México: Fontamara, 1987, p. 171, tradução nossa. 123 Cobos, 1987, p. 166, tradução nossa.


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Assim, conclui Cobos: “A autoconstrução, cujo surgimento é determinado pelo processo de pauperização pior remunerados e pouco sindicalizados da classe trabalhadora e do exército industrial de reserva, não apenas gera nova pauperização para eles, como também para o conjunto dos trabalhadores, já que afeta também, forçando seu declínio, o valor da força de trabalho e os níveis salariais de outros estratos da classe trabalhadora e, por extensão, do conjunto dos assalariados”124.

Assim, a autoconstrução, como meio de edificação da moradia no caso de abandono do Estado, e de uma concepção de cidade como mercadoria, não apenas é insuficiente como solução à problemática do déficit habitacional e da pauperização da classe trabalhadora: antes, ela os agrava e complexifica. Por parte do MTST, há o reconhecimento da contradição entre, de um lado, a imediata necessidade proletária da conquista da moradia - a contrapelo dos interesses do Estado e do mercado - e, de outro, o aumento da exploração capitalista da força de trabalho durante a autoconstrução da ocupação. Dessa forma, a estratégia adotada pelo movimento é a de reduzir o impacto das obras sobre a subsistência dos acampados por meio de uma organização coletiva da produção que torna este processo extremamente veloz. Trata-se de um critério que, por sua vez, se desdobra na escolha dos materiais e de uma metodologia construtiva que opere no mesmo sentido de não tornar a ocupação um empecilho na vida cotidiana da classe trabalhadora, como veremos adiante. De modo a antecipar o quanto antes as atividades reivindicativas postas em prática na Vila Nova Palestina, a construção dos espaços que recebem os programas comunitários da ocupação ocorre durante a noite de entrada no terreno - no ato instituinte do comum, recuperando a terminologia de Dardot e Laval. Os barracões, as cozinhas e os banheiros coletivos foram erguidos por militantes, coordenadores e a base social mobilizada ao longo da madrugada do dia 29 de novembro de 2013, de modo que, logo pela manhã, deu-se andamento à agenda de luta por moradia digna e formação do poder popular. Os barracos simbólicos, apesar de serem responsabilidade de cada família de acampados, obedecem o mesmo princípio de exigirem pouco tempo de construção para serem erigidos: em média, devido a enorme simplicidade arquitetônica, em apenas duas horas, cada unidade é posta à prumo por seus representantes. As moradias provisórias, por outro lado, não são padronizadas, de modo que seu tempo de construção varia de acordo com a capacidade das famílias residentes. Porém, 124 Ibid., p. 169, tradução nossa.


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coerente com a sociabilidade cooperativa formada na Nova Palestina, demais integrantes da ocupação auxiliam o processo de edificação destas habitações de modo a reduzir o impacto individual deste trabalho. Deste modo, o fortalecimento dos laços solidários no comum, proposto pelo MTST em seu território de ação, fruto da consciência de classe, impera sobre a redução do tempo de trabalho na reprodução dos insumos de subsistência e na edificação da luta coletiva - tanto pela divisão de tarefas, quanto pela escolha de materiais e métodos construtivos que viabilizem este objetivo. Assim, a temporalidade da vida cotidiana - mantendo o valor da força de trabalho e permitindo a construção da luta popular sem prejuízo à subsistência da classe proletária - em conjunto com o tempo jurídico da ocupação - que estabelece a finitude de estruturas que se adequem à propriedade da terra tal qual ela foi escriturada - compõem os dois parâmetros temporais da arquitetura da construção da Vila Nova Palestina. Para tanto, envolta pelas idiossincrasias de um processo litigioso sobre a propriedade privada e pelo objetivo de fortalecer os trabalhadores na busca por dignidade habitacional, a ocupação foi edificada coletivamente com base métodos construtivos de rápida montagem, e com materiais em sua maioria oriundos de doações, ou mesmo encontrados na rua, de modo a baratear o custo das obras. Como aponta Falchetti: “Toda a infraestrutura da ocupação é construída pelos próprios ocupantes. Há sempre pedreiros, mestre de obra, eletricistas, encanadores, gente que sabe fazer e que partilha saberes e mão de obra. Por meio dessas trocas, técnicas e soluções práticas vão se propagando e se aperfeiçoando entre eles. Quando surge uma nova ocupação, integrantes de outras ajudam na montagem dos barracos, na organização dos grupos, na construção dos espaços comuns. Os serviços de água e luz são feitos clandestinamente, e a mobília é recolhida de descartes e doações. Nada é comercializado ou monetizado. A arrecadação de fundos destinados a necessidades de manutenção da ocupação é feita por meio de eventos e outras formas colaborativas. Assim, o fazer junto das instalações, do provimento dos serviços, da garantia das necessidades imediatas e do aprendizado com o outro são estimulados”125

A comunhão de saberes e a divisão interna do trabalho necessário para a edificação da Vila Nova Palestina é, portanto, parte do processo de formação de sociabilidades de cooperação, de modo que o ato de construir este comum seja alinhado à necessidade imediata dos sem-teto: a moradia. Nesse sentido, a seleção de materiais e a organização metodológica do processo de edificação compõem parte da estratégia urbana de fortalecimento dos trabalhadores na 125 Falchetti, 2019, p. 247.


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Imagem 1: posicionamento dos pontaletes de eucalipto - início da construção dos barracões, casas provisórias e cozinhas coletivas. Imagem produzida pelo autor.

Imagem 2: com os pilares posicionados, são instalados os travamentos de madeira, as vigas e, finalmente, o telhado. Imagem produzida pelo autor.


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Imagem 3: o posicionamento do telhado garante segurança aos trabalhadores contra o sol e a chuva, de modo que a instalação das paredes, janelas e portas, além da infraestrutura hidráulica e elétrica, conclui a construção dos barracões, casas e cozinhas. Imagem produzida pelo autor.

Imagem 4: espaços comunitários, construídos coletivamente, recebem as atividades que fortalecem o comum. Imagem produzida pelo autor.


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luta de classes. Respeitando a temporalidade jurídica da ocupação, o uso de estruturas de alvenaria e concreto - tradicionais na autoconstrução - são proibidos; em seu lugar, pilares e vigas feitos de pontaletes de eucalipto, de aproximadamente 10cm de diâmetro, sustentam as casas, barracos, cozinhas e banheiros coletivos, que compartilham o mesmo método construtivo. Travamentos horizontais, feitos com ripas de madeira, dão o suporte para as fenestrações e aumentam a sustentação dos pilares. Estes, enterrados a cerca de 50 centímetros de profundidade, a fundação de uma estrutura facilmente desmontável, e cujas alterações nas características físicas da propriedade são mínimas (imagens 1, 2, 3 e 4). A instalação da estrutura de eucalipto é a primeira etapa na construção dos barracões, cozinhas e banheiros coletivos e moradias provisórias, e tão logo se conclui, telhas de fibrocimento são pregadas na cobertura, de modo a proteger o trabalhador da chuva e do sol na construção que se segue. Os fechamentos laterais são feitos com placas de madeirite, recorrentemente sobrepostas por lonas estendidas em toda a lateral e, por vezes, na cobertura. Desse modo, mesmo que precariamente, busca-se isolar a construção da infiltração de água: problema recorrente e precariamente resolvido nos edifícios da ocupação. A infraestrutura de esgoto é contemplada pelo uso de fossas sépticas compartilhadas em uma proporção de um sistema de coleta a cada três casas - o que, aliado à necessidade de adequar-se à declividade do terreno, por vezes resulta na elevação das moradias em pequenos pilotis. Todo abastecimento de água e energia elétrica na ocupação é fruto da distribuição pública, retirada da rua por meio da instalação de uma rede de encanamentos e postes dentro da Vila Nova Palestina - o que, por sua vez dá luz à dimensão urbana deste território do MTST: onde todos os edifícios são conectados por ruas e avenidas de terra batida, com traçados anteriores à própria chegada do movimento126 , e com iluminação fornecida pela rede de postes instalados em todo o acampamento. Cabe ressaltar que, a grosso modo, esta metodologia padroniza os meios de edificar a ocupação, mas a adequação à topografia e às condições dadas do terreno são preponderantes no estabelecimento da geometria final das construções. O uso e o programa definido para cada ponto da ocupação traz consigo uma demanda por determinada área: o que, mesmo não havendo a exatidão da equivalência de construções industrializadas, permite estipular a dimensão dos edifícios. Em primeiro lugar, por se tratar de um processo de autoconstru126 Coelho, 2017, p. 15.


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Imagem 5: o barracão, a casa provisória e o barraco simbólico. Imagem produzida pelo autor.

ção, a escala humana é o parâmetro que define o limite de altura das edificações. Se não há uma cota precisa e padronizada, a cobertura dos barracões, cozinhas, banheiros e moradias não ultrapassa o limiar alcançado pela combinação de recursos que se tem em mãos: como escadas articuladas e pequenas estruturas improvisadas. Portanto, mesmo com a indefinição da altura dos edifícios, o processo construtivo revela que a escala do corpo humano impera sobre os volumes urbanos na cidade dos sem-teto. Por sua vez, cada programa traz consigo uma demanda por áreas específicas, que, mesmo não seguindo padronizações preestabelecidas, contém certa consistência quando comparamos caso a caso. Assim, os barracões, construídos com cozinhas e banheiros coletivos, possuem uma dimensão de cerca de 10 x 20m; e as moradias provisórias, 4 x 6m. Novamente, tais medidas variam de acordo com a topografia, de modo a respeitar as características físicas do lote. Os barracos simbólicos (imagem 6), por outro lado, diferem completamente da metodologia construtiva e da escolha de material dos edifícios anteriores: uma estrutura de bambu de 2 x 2m, com pilares demarcando o perímetro deste volume. Travamentos horizontais do mesmo material proporcionam a estabilidade da construção e permitem a instalação de portas e janelas; e por fim, uma camada de lona é pregada sobre o pequeno edifício, onde indica-se a qual grupo e família pertence cada barraco. Trata-se, como visto na análise programática da ocupação, de um elemento arquitetônico impróprio para moradia. Sua função é estritamente simbólica: a demarcação territorial do compromisso de cada família para com a luta coletiva por moradia digna e pela formação do poder popular. A metodologia construtiva e os materiais que compõem a arquitetura da Vila Nova Palestina, assim, são fruto do planejamento urbano do MTST, que proporciona edificar o espaço da luta popular em um curto período de tempo e sem gastos excessivos. O processo de autoconstrução organizado na ocupação é, por si só, reflexo do propósito essencial do movimento: fortalecer a classe trabalhadora diante da exploração e espoliação oriunda da economia política


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Imagem 6: construção do barraco simbólico. Imagem produzida pelo autor.

capitalista. O uso de materiais baratos, com custo mínimo - quando não, nulo à base social, coordenação e militância do movimento, em uma edificação que se adequa ao lote tal qual ele se apresenta, e erigida por meio de uma divisão do trabalho que põem em comum os esforços físicos e os conhecimentos técnicos construtivos: trata-se da práxis urbana como obra proletária. Nesta nova concepção de cidade, onde o território, enquanto mercadoria, é transformado em produto do comum, a busca por direito à moradia digna é essencialmente imbricada dentro da reivindicação por direito à cidade. O poder popular, termo de ordem usado pelo movimento, mas cujo significado alinha-se à teorização lefebvriana do urbano como ato e obra, para além da bandeira central que constitui a razão de ser do MTST, é experimentado na vida cotidiana da ocupação. Como o lugar de ensaio do direito à cidade, a edificação do lugar é fruto da estratégia organizativa de classe aplicada à forma espacial do comum, de modo que simultaneamente à materialidade da ocupação, constrói-se uma nova simbologia territorial avessa àquela herdada da sociabilidade capitalista. Para tanto, a forma comum, aliada ao programa de transformação da infraestrutura das mentalidades (aos moldes da literatura fanoniana), desdobra-se em uma composição estética própria de uma luta por emancipação social: marcado por bandeiras do movimento, cartazes de lideranças revolucionárias do campo da esquerda, materiais de manifestação, e informações que esclarecem a estrutura de dominação em que se insere a classe trabalhadora. Dados sobre a violência policial sobre a população negra, o número de mortes de pessoas lgbtqi+ por dia no Brasil e a radical desigualdade de remuneração entre homens e mulheres são alguns dos temas tratados nos singelos cartazes que perfilam as paredes de madeirite e lona, sob as telhas brasilit da ocupação. Assim, construiu-se, na Vila Nova Palestina, e por meio desta experiência urbana, a arquitetura da alteridade: um condensador social que reflete às idiossincrasias da periferia paulistana, obra imediata da classe trabalhadora na crítica à cidade do capital.


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4.8 - A efemeridade da utopia Aproximando-nos da problemática urbana da economia política capitalista com base na epistemologia crítica dos comuns, a relação entre a vida cotidiana da cidade de São Paulo e a contraconduta decupada por Pierre Dardot e Christian Laval ocorre não sem seus entraves. Se, por um lado, a formação de um cabedal teórico com base no Ensaio sobre a revolução no século XXI fundamentou a ótica que reconhece as contradições da predatória sociabilidade neoliberal, por outro, sua inserção no campo da prática, onde imperam as especificidades histórico-espaciais, é essencialmente lacunar. De que modo os comuns, como um princípio de governabilidade simultaneamente cooperativa e desalienante, operam sobre a vasta pluralidade de costumes e culturas já existentes? Como se coloca nas singulares formas de desenvolvimento desigual e combinado do capitalismo, considerando a posição de cada grupo sócio-espacial na divisão internacional do trabalho e as relações de dominação que com ela se formam? Tratando o comum como um princípio de ação totalizante, a construção teórica de Dardot e Laval deixa de alcançar a complexidade presente no contato com as imediatas disputas urbanas contemporâneas. Assim, diante desta proposta de leitura dos comuns como uma finalidade, um objetivo a ser alcançado cujo conteúdo turvo não esclarece o aspecto real de sua feitura, o estudo empírico nos permite uma segunda compreensão semântica do termo extensamente tratado pelos autores franceses. Embasado pela ótica fanoniana da construção de movimentos de contestação à ordem dominante sob a especificidade histórica e social de um povo, o tensionamento do caráter abrangente da teoria dos comuns de Dardot e Laval pela prática comunitária das reivindicações urbanas em São Paulo sustentou uma reinterpretação do termo, inserindo-o no campo prático sensível. Antes de tratar-se de um fim, os comuns foram, neste capítulo, entendidos como um meio: forma pela qual os trabalhadores paulistanos organizam-se na luta de classes contemporânea. Nesse sentido, o estudo do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto procurou aproximar a práxis do koinónen à luta contra os efeitos da economia política capitalista na cidade - sobretudo em seu aspecto espoliativo. Como visto anteriormente, a designação do movimento como um organismo político de trabalhadores sem-teto - centralizado, portanto na figura do sujeito ativo: o trabalhador - define as pretensões do movimento com base nas demandas da classe que o constitui. Tal atuação ganha materialidade por meio das ocupações, principal forma de atuação do MTST, onde a produção urbana do comum insere-se territorialmente no esforço coletivo pelo reconhecimento de


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demandas proletárias na cidade: a dignidade habitacional e a realização do poder popular. Com estrutura hierarquizada por meio de processos deliberativos de democracia direta, o MTST opera como uma instituição de classe interseccional, onde as demandas dos trabalhadores - sobretudo referentes ao déficit habitacional - são postas em comum aos integrantes das ocupações. A luta coletiva é ali organizada, de modo que a moradia digna é conquistada por meio da pressão comunitária sobre o Estado. Para tanto, os integrantes são formados de modo a reconhecer quais direitos constitucionais lhes estão sendo furtados e por qual motivo; a compreender os impactos da atual divisão do trabalho em suas vidas cotidianas; e a vislumbrar na relação cooperativa uma alternativa à incessante competição imposta pelo mercado. Trata-se, em suma, de um espaço de aprendizagem, onde a sociabilidade herdada da economia política capitalista é criticada em meio ao processo de requisição de dignidade habitacional. Tal procedimento representa uma iluminação à lacuna teórica das obras de Dardot e Laval: não obstante a preservação da proposta de desalienação social, o comum, no caso do objeto empírico desta pesquisa, é essencialmente um meio de amparo aos trabalhadores na luta de classes. Um local temporário de organização e articulação popular, cuja duração é estipulada pelo processo litigioso de disputa pela aquisição da terra e da contrapartida do Estado para com a construção de novas moradias pleiteadas pelo movimento. A superação de relações opressivas pertence, na mesma medida, ao programa de articulação para a conquista do objetivo imediato dos sem-teto: um amálgama entre projetos de longo e curto prazo. Dessa forma, emergindo em meio à problemática urbana, a ocupação torna-se uma experiência prática de alternativa à cidade mercadoria em São Paulo. Para compreender as especificidades da produção do espaço do comum, como forma de organização dos trabalhadores em meio a luta de classes urbana, me debrucei neste capítulo sobre o estudo de caso da maior ocupação urbana de São Paulo: a Vila Nova Palestina. Tratada em matérias jornalísticas como a cidade dos sem-teto, a escala da ocupação, assim como seu largo tempo de consolidação, fazem dela um marco dos trabalhadores sem-teto na cidade e uma centralidade para a articulação do MTST - o que qualifica sua relevância como objeto empírico desta pesquisa. Para tanto, a análise seguiu os preceitos da tríade histórico-espacial desenvolvida no Laboratório de Projetos da FAU-USP: lugar, programa e construção.


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Iniciando pelo estudo do lugar, a ocupação Vila Nova Palestina foi instituída em 2013 no distrito do Jardim Ângela, zona sul de São Paulo. Chamada popularmente de Riviera Paulista em meados do século XX - em decorrência da bela paisagem formada pela combinação do relevo escarpado da Serra do Mar e as águas da Represa Guarapiranga, em meio a uma então incólume região de Mata Atlântica - a preservação ambiental da região é, atualmente, pauta crucial nas disputas políticas locais. O agora frágil ecossistema divide espaço com uma ocupação territorial extremamente precarizada na cidade, com infraestruturas e serviços urbanos radicalmente insuficientes. Trata-se, essencialmente, de um distrito marcado por altos índices de violência, pelo elevado déficit habitacional; com uma população de baixíssima renda média e escolarização, escassa infraestrutura de transporte público, água e esgoto; ao mesmo tempo em que se insere em uma zona de preservação de mananciais, com alta demanda pela proteção da vegetação natural. Dessa forma, a complexidade sócio-ambiental da região situada no limite da mancha urbana metropolitana em São Paulo, compõe o mise-en-scène da Vila Nova Palestina. O balanço entre a pauta ambiental e a necessidade imediata dos trabalhadores sem-teto é dada desde o primeiro momento na ocupação, pois o movimento se insere em uma gleba destinada pela prefeitura a compor parte da rede de parques municipais. O MTST, por sua vez, procurou respeitar a fragilidade do ecossistema local, pois além de ter se assentado apenas na área descoberta do lote, os planos de ali criar um novo parque, desde a assinatura do decreto público em 2010, nunca haviam saído do papel. Apesar do reconhecimento do direito dos ocupantes após longos anos de negociação, com a mudança da designação do lote na LPUOS para ZEIS 4 e a ratificação do compromisso federal no governo de Dilma Rousseff em arcar com os custos da empreitada, o cenário político após o golpe parlamentar de 2016 não apenas impediu a conclusão do processo litigioso sobre a propriedade, como implodiu qualquer perspectiva de negociação favorável ao movimento para com o poder público. Assim, desde 29 de novembro de 2013, data em que foi instituída a ocupação, a ausência de resoluções à emergente necessidade da base social do MTST transformou este comum da classe trabalhadora, da população periférica, negra, lgbtqi+ e das mulheres, a princípio destinado à breve dissolução, em um perene marcador urbano do movimento. Como forma de adequar as reivindicações por dignidade habitacional à uma região da cidade extremamente sensível à pauta ambiental, o programa da ocupação - segundo ponto de análise - foi estruturado de modo a manter-se


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coeso em meio a um processo litigioso ainda sem definição. Tal adaptabilidade é fruto da dialética entre a proposta urbana do MTST - baseada na construção do poder popular - e as idiossincrasias sócio-políticas locais onde se insere a ocupação. Seguindo os princípios do movimento, as reivindicações e atividades cotidianas na Vila Nova Palestina são coletivamente organizadas e postas em prática em seus espaços comunitários: barracões, praça central e cozinhas coletivas, que compõem o programa básico de cada grupo deliberativo interno (Gs). Sendo o local transitório de articulação da luta popular, evita-se transformar a ocupação em um espaço de moradia: embora alguns residentes ali se assentem em casas provisórias, a maior parte das famílias acampadas se deslocam à Nova Palestina para participar das atividades programadas, e são representadas territorialmente pelos barracos simbólicos. Assim, cria-se um espaço de alteridade urbano centralizado na ordem do coletivo, onde as práticas cotidianas do comum sustentam a sobrevivência do movimento contra possíveis despejos, ações da polícia e do tráfico local, além de possíveis perdas de coerência para com os princípios do MTST. Para tanto, qualquer prática que possivelmente sabotaria os objetivos ali pleiteados são estritamente proibidos - como o uso de drogas lícitas e ilícitas e a formação de relações comerciais de troca sobre a terra e as atividades coletivas. Em oposição à sociabilidade herdada economia política capitalista, a vida cotidiana na ocupação é pautada pela práxis do pôr em comum as demandas do grupo: desde a segurança, a educação de crianças e adolescentes, o preparo de alimentos, até a participação em assembleias, nas deliberações diretas que envolvem o andamento das negociações e a organização do grupo para atos políticos na cidade. Assim, por meio de reuniões, debates, da articulação popular de reivindicações e da própria produção do espaço da Nova Palestina, propõe-se fazer da ocupação o lugar da construção coletiva da consciência de classe. Apesar de ser concebida como uma urbanidade efêmera, após o distanciamento de qualquer horizonte para a conclusão das negociações sobre a terra e a construção de novas moradias para com o poder público em decorrência do golpe de 2016, a ocupação se ajusta ao contexto de instabilidade política solidificando suas raízes no território. Para tanto, permite-se que os acampados que desejarem residir na Vila Nova Palestina construam suas habitações provisórias no terreno, de modo a manter o grupo coeso mesmo com a perda de qualquer previsão quanto ao desfecho das reivindicações. Tal movimento transformou a ocupação em um local que une a organização das pautas coletivas com a esfera íntima do lar: um amálgama entre as necessidades individuais e comunitárias,


202 - Arquitetura da Alteridade

fato que solidificou os laços de solidariedade e cooperação ali edificados. Nesse sentido, a dimensão doméstica ganha protagonismo junto às demandas relativas ao trabalho, permitindo o aprofundamento de debates sobre a superação de relações opressivas envolvendo gênero, raça e sexualidade por meio da participação ativa do sujeito na práxis do comum: a mulher, o negro e a população lgbtqi+. Assim, a interseccionalidade que marca a démarche de uma nova sociabilidade na Nova Palestina insere-se na dialética entre o programa inicial do movimento e as condições materiais da luta pela criação ex aliquo do poder popular. Tais preceitos, por sua vez, são levados adiante no processo de produção arquitetônica da ocupação: a construção - terceiro e último ponto de análise proposto neste trabalho - de um espaço comum como obra do grupo sócio-espacial que ali habita. Nesse sentido, a retomada do direito à obra - elemento fundamental do direito à cidade, segundo Henri Lefebvre - é ponto constitutivo da própria experiência urbana da Vila Nova Palestina: a práxis diária dos trabalhadores como fonte de lapidação coletiva do espaço, permite-nos observar a formação territorial pautada pela crítica à segregação generalizada da sociedade - contradição esta que fundamenta a problemática urbana, segundo Lefebvre127. Sendo os trabalhadores aqueles que, segundo o sociólogo francês, são a base do salto epistemológico inerente ao direito à cidade, as demandas da vida cotidiana desta classe pautam os parâmetros pelos quais materializa-se a ocupação no campo prático-sensível. Para tanto, em primeiro lugar, tratamos do tempo jurídico: por estar em um processo litigioso, a ocupação é edificada de modo a não alterar as características físicas da propriedade definidas na escritura. Evita-se, assim, criar maiores entraves para a conclusão das negociações de compra e venda da terra. Em segundo lugar, o tempo de classe é compreendido como a relação da posição dos trabalhadores na fórmula trinitária marxiana e o dispêndio laboral empregado na edificação da ocupação. Uma vez que a autoconstrução - método construtivo empregado para a edificação de moradias a menores custos, empregado também nas ocupações do MTST - impacta no alargamento do tempo de trabalho não pago ao proletariado - e, portanto, aumentam a exploração da mão-de-obra - as edificações da Vila Nova Palestina tem como característica a rapidez construtiva; reduzindo a carga de trabalho adicional e permitindo o imediato início das atividades de reivindicação. Como elemento de organização e fortalecimento de classe em meio à problemática ur127 Lefebvre, 1968, p. 116.


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bana neoliberal, minimiza-se a mais valia global retirada da reprodução da força de trabalho, fato que implica não apenas na velocidade construtiva e no ajuste ao terreno, como também na escolha de materiais baratos e na coletivização da produção do espaço. Assim, a ocupação Vila Nova Palestina constitui-se como a arquitetura da alteridade da ordem comum em meio a luta de classes na cidade de São Paulo: uma organização comunitária de enfrentamento à espoliação urbana, baseada na prática do poder popular. Retomemos, agora, a proposição teórica inicial: o comum, ao contrário do que acreditam Dardot e Laval, tratar-se-ia, no caso da Vila Nova Palestina, de um meio de organização dos trabalhadores na luta de classes urbana em São Paulo. Embora a produção de um espaço reivindicativo permita vislumbrar, em primeiro momento, uma imagem de cidade onde a acumulação por espoliação e a exploração da força de trabalho não imperem sobre o território construído, o caráter temporário da ocupação traz consigo um fator limitante à extensão de seu impacto sobre uma perspectiva de resolução da problemática urbana tratada neste trabalho. Concluído o trâmite político que permitirá a edificação de novas moradias no terreno, as obras serão realizadas por uma construtora contratada, supervisionada pelo movimento e que aceite empregar a mão-de-obra local seja de residentes da ocupação, seja de conterrâneos da região. Dessa forma, o objetivo principal da base social mobilizada, pleiteado durante os anos de atividade no território, depende, para que se torne real, de uma relação produtiva baseada na superexploração da força de trabalho como forma de garantir a lucratividade do empreendimento, por parte da empresa a qual se encarrega a empreitada. Por mais que se crie uma experiência de alteridade urbana na atividade do comum, os objetivos materiais a serem conquistados somente são alcançados dentro de uma relação capitalista de produção de cidade. Findada a estrutura urbana do comum, embora uma significativa parcela das relações sociais ali fomentadas mantenham sua firmeza, retorna-se ao regime da moderna propriedade privada da terra - e, portanto, à cidade como mercadoria. A experiência do direito à cidade na Vila Nova Palestina é, portanto, efêmera - o que, de modo algum, reduz os méritos do movimento em propor e construir, de fato, uma urbanidade do comum a contrapelo dos interesses de mercado. Como um meio de organização de classe, a ocupação cumpre seu papel em permitir contornar os entraves cotidianos que impedem o acesso à moradia popular dentro da economia política capitalista, e proporciona a desalienação coletiva por meio da vida cotidiana no comum. Entretanto, o alcance transformativo desta experiência é limitado pelo próprio caráter temporário que


204 - Arquitetura da Alteridade

constitui sua razão de ser - um fato reconhecido pelo próprio movimento, e que impõe ao MTST suas próprias contradições internas. Assim, não obstante o fato de que a ocupação não é construída com a pretensão de mostrar-se como solução à cidade enquanto mercadoria, sua urbanidade ilumina possíveis caminhos a se percorrer na proposição de um espaço prático-sensível cooperativo e solidário - conferindo-lhe imensa relevância à incessante busca de superação da problemática urbana na economia política capitalista.


Conclusão - 205

5 - Conclusão

Alicerce e instigante objeto de todas as discussões propostas neste trabalho, a cidade é, segundo o filósofo e sociólogo francês Henri Lefebvre1 , simultaneamente o produto e o artífice da vida cotidiana. A práxis urbana, nesse sentido, não apenas é fruto das condições materiais herdadas do capitalismo enquanto economia política dominante, como também proporciona a própria manutenção da primazia do mercado sobre demais princípios e elementos definidores da sociabilidade hodierna. Apesar de exigir maiores aprofundamentos, dada a magnitude de sua complexidade, a contribuição teórica de Lefebvre torna indissociável dos estudos sobre o devir do modo de produção capitalista a compreensão de seu caráter urbano. Em uma economia onde inexoravelmente tudo é impelido a tornar-se mercadoria, a cidade não seria diferente; sendo ela sujeito ativo na organização do espaço com base na racionalidade inerente à acumulação de capitais: balizando a formação de mercados, a divisão de trabalho, a concentração recursos e protagonizando a démarche política contemporânea. Dessa forma, a violenta imposição multiescalar de trocas desiguais não apenas define a problemática da economia hegemônica, como também ilumina o conjunto de contradições que compõem o território urbano. Nesse sentido, a leitura lefebvriana sobre a cidade e suas contradições traz consigo a proposição de possíveis caminhos para superá-las. A ciência urbana, formulação disciplinar proposta por Lefebvre, baseia-se na dialética entre teoria e prática, reconhecendo as contribuições e limites de cada um destes pólos epistemológicos em uma metodologia analítica que contemple a magnitude da questão. Da mesma forma, procurando me debruçar sobre as idiossincrasias da problemática urbana em São Paulo - um objeto de pesquisa de enorme relevância dado o seu papel de centralidade econômica na periferia do capitalismo, mas de não menos importante valor simbólico, por ser a cidade que me abriga - desenvolvi esta pesquisa me amparando em dois pilares fundamentais. No campo da teoria, a compreensão da epistemologia dos comuns, de acordo com a leitura proporcionada por Pierre Dardot e Christian Laval, forneceu-nos arcabouço 1 Lefebvre, 1968.


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econômico e político crítico ao modo de produção neoliberal em seu aspecto estrutural. Tratou, essencialmente, de apresentar uma práxis cotidiana que emerge da contradições globais do capitalismo em sua face contemporânea; e não apenas permite ao grupo socioespacial subalterno um meio de sobrevivência, como também fundamenta a construção de uma sociabilidade contra-hegemônica revolucionária. Tamanho embasamento teórico, por sua vez, é confrontado à experiência empírica de um movimento que enfrenta as idiossincrasias imediatas do modo espoliativo em que o capitalismo neoliberal foi enraizado em São Paulo: a ocupação Vila Nova Palestina. Perpetrada pelo Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST), este enclave urbano da classe trabalhadora opera de modo a ordenar a vida cotidiana de uma parcela da população que depende da luta comum para conquistar a dignidade habitacional. Assim, com base na dialética lefebvriana, por meio da síntese do confronto entre a especificidade empírica da Nova Palestina e a amplitude da teoria revolucionária de Dardot e Laval, procurei responder a pergunta que sustenta esta pesquisa: qual o papel dos comuns na busca por direito à cidade? Para tanto, sendo os comuns uma teoria crítica do campo das ciência sociais que compreende uma práxis cotidiana, o estabelecimento de um ponto de contato para com a noção lefebvriana de direito à cidade decorre da solução de dois problemas fundamentais: qual a estratégia urbana do comum? Qual urbanidade é por ele criada? Para solucionar tais questões, o estudo da problemática urbana em São Paulo proporcionou apresentar o cenário material sobre o qual fora inserida a teoria dos comuns. Com base na recuperação histórica das políticas públicas que pautaram a produção territorial da cidade desde a década de 1970 - momento de ascensão da pauta neoliberal nas economias globais -, o caráter físico da acumulação por espoliação torna-se a nova imagem do progresso paulistano. A feição contemporânea da promíscua relação entre Estado e mercado, do compromisso governamental em cumprir o papel da nação na divisão internacional do trabalho e impedir o florescimento de potenciais crises de sobreacumulação, tem na exploração econômica da propriedade da terra um de seus maiores bastiões. A retenção da renda capitalizada, elemento que proporciona a valorização de capitais com base na fetichização da cidade enquanto mercadoria, torna-se, assim, valoroso artifício de um planejamento territorial refém de interesses estritamente comerciais. Como efeito, a espoliação de recursos essenciais à vida cotidiana - característica intrínseca ao capitalismo, e exacerbada em sua faceta neoliberal - ganha caráter material na imagem da cidade; de modo que o acesso à moradia, por parte da classe subalterna, seja incontornavelmente dependente da atuação de formas não capitalistas de sociabilidade.


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Como apresentado por Dardot e Laval, os comuns operam exatamente no sentido de proporcionar, à população espoliada pela economia política neoliberal, o acesso à bens essenciais que foram apropriados como mercadorias tornando-se inacessíveis a parcela menos abastada da sociedade. Nesse sentido, diante da adoção de uma política urbana essencialmente atrelada ao mercado, que consequentemente resulta na despossessão da terra e da moradia na cidade, a organização de comuns direcionados à demanda habitacional em São Paulo emergiram como solução paliativa deste problema contemporâneo. Por sua vez, o fato de nesta ordem comunitária a vida cotidiana ser reorganizada sob os princípios de coparticipação e corresponsabilidade, em um sistema deliberativo de democracia direta em pequena escala, faz dos comuns, segundo os autores, não apenas uma forma de suprir as necessidades imediatas criadas pelos processos espoliativos, como também um elemento social de politização contra-hegemônico. Para tanto, a práxis do koinónen aristotélico, que determina o ato de pôr em comum as atividades da vida cotidiana nos comuns, segundo a proposição de Dardot e Laval, reorienta a dinâmica interna de seus integrantes, de modo que a sociabilidade neoliberal da exacerbada competição de todos contra todos (que, em última instância, sustenta a despossessão estrutural) é suprassumida pela relação cooperativa construída nos comuns. Tamanho contraponto, para os autores, é fundamental na própria consideração de um horizonte de superação do capitalismo, enquanto modo de produção cuja governabilidade depende de uma conduta coletiva centralizada no egocentrismo do indivíduo e na predatória e irrestrita competitividade. Assim, diante desta alteridade socioespacial combativa, Dardot e Laval apresentam-nos sua tese: a instituição do princípio dos comuns como fundamento das relações humanas contemporâneas. A contribuição dos autores acerca da teoria dos comuns - epistemologia comunitária que não apenas sustentaria a sobrevivência da população espoliada de recursos cotidianos, como também a criação ex aliquo de uma sociabilidade cooperativa, solidária e essencialmente anticapitalista - proporciona a iluminação do caráter estrutural e econômico da problemática urbana e suas possíveis soluções. Segundo esta análise, ao imperativo da acumulação por espoliação sobre as cidades contemporâneas, a reação popular organizada em grupos socioespaciais autogeridos emerge de uma necessidade imediata pela provisão de recursos básicos à reprodução da vida coletiva; e como uma práxis crítica à soberania do indivíduo e da economia de mercado, os comuns determinam a cristalização de relações materiais antagônicas ao fomentado nas cidades capitalistas. A compreensão do caráter socioeconômico da teoria de Dardot e Laval é, portanto, um passo fundamental na aproximação de uma superação da proble-


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mática urbana capitalista sob a chave do direito à cidade lefebvriano: enquanto práxis cotidiana inserida no território, a produção de uma nova sociabilidade dos comuns é indissociável da sua alteridade urbana. Diante da pergunta que norteou esta pesquisa, a análise do objeto teórico - a epistemologia dos comuns, tal qual proposta por Pierre Dardot e Christian Laval - com base na leitura da problemática urbana sob seu prisma estrutural, apesar de revelar a emergência de uma conduta contrária ao mercado e essencialmente antagônica ao próprio devir neoliberal, não nos fornece o arcabouço instrumental que considere o desenvolvimento desigual e combinado da economia política capitalista. Observando as idiossincrasias locais deste modo de produção - e, portanto, da própria cidade - em São Paulo, o modo pelo qual a contraconduta dos comuns opera sobre as contradições cotidianas de uma metrópole na periferia do capital é incerto. Nesse sentido, apesar de permitir-nos uma aproximação teórica ao ideal lefebvriano de direito à cidade, os comuns, tal como foram representados por Dardot e Laval, não alcançam as características materiais da démarche urbana; e enquanto princípio, a práxis do koinónen é uma forma cujo conteúdo não supera, necessariamente, as relações assimétricas de interação entre grupos socioespaciais. Como visto em Fanon, a práxis revolucionária é indissociável do contexto histórico e político do lugar onde ela se insere, e portanto depende de um profundo enraizamento nas entranhas de seu povo. Assim, a instituição do princípio dos comuns, enquanto finalidade da atividade contestatória, é limitada pelo seu próprio caráter formalista: uma sociabilidade de cooperações genéricas, que não oferece soluções a problemas historicamente constituídos, como as relações de colonialidade e desigualdades de gênero, raça, sexualidade, cultura e classe. O reconhecimento de tamanha insuficiência, fruto do arcabouço teórico de Fanon e Harvey, permitiu-nos um redirecionamento teórico da epistemologia dos comuns, tratando-a não como um princípio, mas como um meio: uma forma de ordenação da vida cotidiana cujo conteúdo contra-hegemônico é estipulado por um programa que emerge das especificidades histórico-espaciais de seus integrantes. Para aprofundarmo-nos nesta hipótese, o estudo do objeto empírico da pesquisa foi fundamental: organização comunitária da classe trabalhadora, a ocupação Vila Nova Palestina, do MTST, atua sobre a espoliação da moradia em São Paulo como um meio de suprir a demanda imediata dos sem-teto em um contínuo processo de desalienação coletiva. Fundado na esteira dos movimentos que compuseram o campo democrático popular, inicialmente como uma extensão urbana do MST, mas logo conquistando autonomia e de-


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senvolvendo sua própria metodologia operativa, o Movimento de Trabalhadores Sem-Teto enfrenta a espoliação habitacional contemporânea com base em uma estratégia política de defesa dos trabalhadores nas cidades brasileiras. Para tanto, a despossessão da moradia e de recursos urbanos ao proletariado paulistano, condição implícita na posição exercida pela economia nacional na divisão internacional do trabalho, é enfrentada pelo movimento em duas frentes. De um lado, cobra-se do Estado a atenção para com os direitos constitucionais relacionados à habitação de cada cidadão, reconhecendo a função social da propriedade em terrenos ociosos e destinando recursos públicos para atender a imediaticidade da demanda por novas moradias. De outro, procura-se estabelecer a organização autogerida dos trabalhadores, onde haja autonomia deliberativa no encaminhamento de pautas e bandeiras políticas que representem os interesses de classe e, em última instância, fundamentar a construção do poder popular. A urgência da primeira, e a cadência inerente ao caráter estrutural da segunda correspondem a duas escalas de atuação do movimento, e cuja origem remete ao comum pelo qual ele se sustenta: a ocupação. Assim, diferentemente dos comuns tal qual foram propostos por Dardot e Laval, as ocupações do MTST são, essencialmente, meios de fortalecimento dos trabalhadores na luta de classes cotidiana. Nelas, a construção do poder popular, objetivo de longo prazo que corresponde à condição de autonomia dos trabalhadores e a superação da relação de trocas desiguais imposta pela economia política capitalista, ocorre de modo simultâneo à organização coletiva da cobrança para com o poder público para que sejam atendidas as demandas habitacionais. Apesar de concomitantes, a exigência de novas moradias é o motivo primordial que impele à população desamparada pela estrutura espoliativa neoliberal a integrar a base social do movimento. Para suprir esta demanda e impelir a formação coletiva de uma consciência desalienada de classe - pressuposto da solidez do poder popular - as atividades cotidianas de reivindicação são imbricadas ao processo de transformação de sociabilidades na ocupação. Assim como um condensador social soviético, a ocupação constitui-se como o local de transformação de hábitos e costumes, de imaginários coletivos e de laços sociais, substituindo a herança de uma predatória sociabilidade capitalista pela cooperação e solidariedade do comum. Seu posicionamento no território da cidade, por sua vez, condiciona a formação de um programa que orienta a disputa por novas moradias de acordo com o contexto - a práxis loci -, de modo que a singularidade do grupo socioespacial que a compõe resulte, por extensão, na edificação de uma urbanidade contra-hegemônica sobre tais especificidades.


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Dessa forma, retornamos à compreensão lefebvriana sobre a dialética entre espaço e práxis cotidiana: inseridos na cidade, os comuns do MTST, enquanto produtos do espaço, são definidos pelas idiossincrasias do lugar; e como agentes de produção territorial, alteram a urbanidade paulistana em sua prática de militância. Como síntese deste processo e estudo de caso desta pesquisa, a Vila Nova Palestina, construída na zona sul de São Paulo, permitiu-nos observar de que modo o comum, enquanto meio de organização da classe trabalhadora, simultaneamente transforma e é condicionado pelo espaço da cidade. Primeiro, observamos a influência do lugar na determinação das atividades cotidianas na ocupação: instalada em uma região onde a extremamente sensível pauta ambiental divide espaço com a completa pauperização de recursos urbanos (como disponibilização de infraestrutura de água, esgoto, de equipamentos de cultura, educação, segurança, do déficit habitacional e da ausência de empregos), sua população busca alternativas para além do Estado ou mercado para suprir demandas cotidianas básicas. Assim, a entrada do MTST em uma gleba de delicado contexto urbano demandou do movimento uma atenção especial para com as legislações de proteção ambiental de um lado e, de outro, a relação com demais agentes autônomos de ordenação coletiva (como o tráfico e a polícia militar). Tal consideração resultou em uma composição programática que permitisse a manutenção da luta neste ponto da cidade. Neste segundo quesito, observamos o amálgama entre a epistemologia do comum e as idiossincrasias da vida cotidiana da classe trabalhadora na periferia paulistana: de um lado, a coletivização das tarefas e responsabilidades na ocupação e a supressão de relações comerciais sobre a posse da terra e demais funções comunitárias, que centralizam o dia-a-dia dos acampados na figura do coletivo; e de outro, a formação política por meio do ensinamento dos direitos constitucionais pleiteados, da legitimidade das reivindicações, e da redefinição das atividades cotidianas como forma de superar a divisão de trabalhos com base no gênero, raça e sexualidade. Por fim, a materialidade da ocupação responde à urgência do problema habitacional para o qual ela se propõe a enfrentar, respeitando a efemeridade imposta pelos processos de negociação para com o Estado e a celeridade construtiva inerente à própria reprodução da força de trabalho. Dessa forma, a Vila Nova Palestina permite-nos compreender o modo pelo qual o comum opera na aproximação empírica ao direito à cidade: enquanto meio de organização da classe trabalhadora, a ocupação é uma autêntica obra proletária, onde a suprassunção das contradições sociais na periferia paulistana


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deixa suas marcas em uma nova urbanidade e uma nova arquitetura. Não obstante a contribuição da análise empírica às lacunas teóricas de Dardot e Laval, o caráter efêmero da ocupação, enquanto estratégia de construção do direito à cidade, impõe seu limite sobre a abrangência desta experiência na solução da problemática urbana aqui analisada. Nesse sentido, observamos que o emprego do comum como um meio de organização, mesmo que proporcione maior coerência prática e teórica de uma proposta contra-hegemônica factível com as singularidades históricas e territoriais do grupo que o compõem, apresenta pouco alcance de longue durée. No caso da ocupação, tal perspectiva de longo prazo é composta pelo horizonte de construção do poder popular, mas é fato assumido pelo MTST que a luta por este novo cenário não se resume à experiência urbana da ocupação. Antes, ela depende de organizações críticas ao modo de produção capitalista em outras esferas além da luta por dignidade habitacional - mesmo que, por ela, seja experimentado uma vida cotidiana onde tais problemas sejam tratados e diretamente superados. Uma vez assumido o compromisso público para com o movimento e a ocupação desvanecer, relações comerciais entre antigos acampados podem se reatar, a terra retorna a seu caráter de mercadoria e a própria construção de novas moradias ocorre sob relações capitalistas de produção. Dessa forma, é insuficiente resumir a perspectiva de superação das contradições urbanas à curta duração desta escola do socialismo que são as ocupações do MTST: apesar de nos permitirem a aproximação prática e material ao direito à cidade, tamanho objetivo demanda esforços para além do comum. *** Retornemos à pergunta inicial que norteou o desenvolvimento desta pesquisa: qual o papel dos comuns na contemporânea busca por direito à cidade? Enquanto teoria, os comuns emergem da acumulação por espoliação como um meio de suprir demandas imediatas da população despossuída e, simultaneamente, constrói sociabilidades antagônicas àquelas que mantêm o equilíbrio do modo de produção neoliberal. Sua inserção na problemática urbana fornece-nos uma alternativa de enfrentamento à pauperização da vida cotidiana nas cidades contemporâneas, ao mesmo tempo em que forma um novo grupo sócio-espacial solidário e cooperativo onde antes imperava a competitividade e a predação. Enquanto prática, o comum estrutura-se sobre as idiossincrasias histórico-espaciais da luta de classes como forma de amparar a classe trabalhadora na busca por direitos urbanos. Além de suprir demandas imediatas, a experiência material


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dos comuns permitiu-nos um vislumbre de uma cidade como obra de um processo de desalienação entranhado nas raízes da contraditória sociedade paulistana. A ausência de especificidades locais do materialismo histórico-dialético na teoria de Dardot e Laval, e a fragilidade de uma urbanidade efêmera na ocupação Vila Nova Palestina impõem os limites à completude do comum enquanto epistemologia revolucionária. Entretanto, é inegável que aproximamo-nos da construção de uma ciência urbana que comporte a complexidade das relações materiais da vida cotidiana, e direcione-nos à realização efetiva do direito à cidade.


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Imagem da capa e quarta capa: edição minha sobre foto de Victor Santos, disponível em: https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Movimentos-Sociais/Cidade-sem-teto/2/30279, acessado em 21/2/2021


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