Imaginários emergentes: práticas urbanas alternativas em São Paulo

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Imaginรกrios emergentes Prรกticas urbanas alternativas em Sรฃo Paulo



Imaginários emergentes Práticas urbanas alternativas em São Paulo

Raísa Drumond de Abreu Negrão aluna

Jorge Bassani orientador

tfg fau usp junho 2014



A imaginação é o principal detector de mudança. (Aldo Van Eyck)



09 Apresentação 19 Substrato / A dimensão da cidade 33 Contexto / Imaginários construídos 61 Tempo / A euforia da cidade 89 Lugar / São Paulo 107 Prática / Coletivos Basurama Contrafilé Muda_

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Análise / Evidências coletivas

144 Bibliografia




A Cidade é Para Brincar Virada Cultural, São Paulo, 2013


Apresentação

A escolha dos caminhos para chegar ao trabalho final de graduação se justifica a partir de uma inquietação pessoal a respeito dos modos de se construir cidade e a consequente relação com a apropriação do espaço público por seus habitantes. De modo experimental, busco nesta análise a elaboração de um olhar para as realidades emergentes sobre o território da cidade. Frutos de ações e processos humanos, políticos e comuns – portanto, coletivos – que sinalizam a importância de interferências críticas sobre o modo como estão sendo produzidas. Por serem neste trabalho denominadas realidades ou situações emergentes, o olhar sobre elas aqui exposto não se configura como um estudo finalizado e completo, mas uma compreensão inicial, construção de ideias a respeito de ações coletivas e comuns na cidade contemporânea. Inicio, então, com as justificativas que pautaram a escolha desse caminho de trabalho e apresento de alguns dos questionamentos que me instigaram a esse olhar para a metrópole. A falta de apropriação de espaços livres e lugares de coexistência de qualidade, e a percepção de que parece não existir, junto às políticas de construção da cidade, a prática de desenho urbano com foco na escala humana são fatos que dão força à minha vontade de entender outras realidades da metrópole. A ideia de planejamento urbano baseado no âmbito da lei, no âmbito do capital e do monopólio de interesses privados contrapõe-se ao desenho de cidade na dimensão pública – comum e coletiva. Neste contexto, como é possível intervir e criar imaginários mais agradáveis e alternativos para a cidade, com foco na dimensão social de apropriação de seus espaços, com toda a densidade que a ela se refere?


Para balizar esse questionamento, tomo como domínio a metrópole de São Paulo. Embora tenha sido cenário de análise de muitos trabalhos ao longo da minha presente graduação, a intenção de abordá-la como objeto de estudo neste momento é o de tentar identificar, na sua construção, as transformações vividas na última década, por meio de um olhar mais atento às realidades do espaço público que se consolida. É evidente o surgimento de uma rede de ações alternativas colaborativas com foco na produção de novas experiências para apropriação da cidade. São tentativas de criação de imagens simbólicas, artísticas e criativas em múltiplas escalas que convidam os habitantes a se apropriarem de novos projetos de cidade. São iniciativas de baixo para cima com foco em acontecimentos e experiência coletiva de cidade, que surgem a partir de determinadas situações locais, onde a disputa pelo espaço público se evidencia, se encontra, se confronta e se sobrepõe às realidades e dimensões socio-espaciais existentes na cidade. Coletivos artísticos, festivais de bairro, intervenções urbanas em lugares e fronteiras parecem surgir e coexistir numa tentativa de (re)experimentar e (re)codificar a cidade, tornando visíveis as disputas pelos espaços públicos. Por acreditar que esse movimento coletivo que se forma na metrópole sinaliza a importância de interferências para criação de imaginários e novos projetos de cidade, o trabalho se desenvolverá no sentido de compreender essa rede de intervenções urbanas colaborativas em São Paulo, avaliar o porque de sua importância para a discussão contemporânea dos espaços na cidade e perceber de que forma elas podem transformar as realidades sociais pré-existentes onde elas acontecem. Sob essa perspectiva traduzo a seguinte questão: as transformações no espaço urbano quando provocadas pelos novos atores que operam de 12


forma alternativa às políticas públicas, podem, como resultado, exaltar apreensões sócio-espaciais da cidade? Para auxiliar na compreensão dessa questão, tomo como premissas alguns pontos que julgo importantes, sem a pretensão final de evidenciá-los como um único ponto de vista de análise no estudo exposto: Qual o papel das ações urbanas emergentes na construção de imagens simbólicas e transformações espaciais para a cidade de São Paulo? Quais são os microatores envolvidos nessas ações e qual as transformações e imaginários criados sobre e para os lugares de ação? A partir da criação de novas imagens, de que forma a apropriação coletiva e reinterpretação de espaços existentes corroboram de que forma para discussão da importância dos espaços públicos comuns para a cidade?

Em meio aos imaginários emergentes na metrópole de São Paulo, o objetivo desse trabalho final de graduação é analisar essas questões, tomando como referência, em primeiro lugar, a lógica de surgimento dessas ações e o significado de sua existência para a dimensão social de apreensão do espaço público urbano. E em segundo, de que forma essas ações podem andar em paralelo com a discussão pública da construção de novos projetos para a cidade existente. Tais questões serão aqui discutidas portanto como um fenômeno micropolítico, na medida em que correspondem a um trabalho de elaboração da experiência de embate pela construção de espaços públicos na cidade. O desenvolvimento dessa análise se dará a partir de capítulos abaixo. 13


Em SUBSTRATO / A dimensão da cidade, me aproximo da cidade contemporânea apontando sua dimensão social, as políticas locais de produção de espaços públicos, tratando de suas generalidades e problemáticas comuns a partir da leitura de autores importantes que balizam essa discussão atualmente. Em CONTEXTO / Imaginários construídos, busco primeiramente uma reflexão histórica acerca de intervenções sobre o território urbano e a relação entre arte e cidade. Em seguida, me aproximo ao pensamento socioespacial chegando à discussão das territorialidades urbanas transformadas pelas pessoas que nelas atuam, numa tentativa de compreender a potências das ações sobre corpos e espaço. No capítulo TEMPO / A euforia da cidade, justifico a escolha do tema de análise, os imaginários emergentes da cidade, frente a contemporaneidade de eventos no espaço urbano ativadas por grupos e coletivos. Apresento um panorama extraterritorial de intervenções urbanas, pessoas nas ruas, imagens, símbolos, ações. Para LUGAR / São Paulo, apresento o território a partir de um olhar atual sobre os acontedimentos na metrópole paulistana, compreendendo ações e ventos relevantes, políticas de gestão urbana atuais, plataformas e pessoas. Em PRÁTICAS/ Coletivos foco na prática de 3 coletivos atuantes na cidade – Basurama, Contrafilé e Muda_coletivo –, levanto suas experiências identificando seus alcances e recortes de atuação, para compreensão da importância de sua ação. Concluo com respostas às questões iniciais, validando a importância dessa discussão em ANÁLISE / Evidências coletivas . 14



Piscina no Minhoc達o Angela Leon, 2014


A questão do tipo de cidade que desejamos é inseparável da questão do tipo de pessoa que desejamos nos tornar. A liberdade de fazer e refazer a nós mesmos e a nossas cidades dessa maneira é, sustento, um dos mais preciosos de todos os direitos humanos. (David Harvey)




Minhoc達o, Tarde de domingo, 2013


Substrato A dimensão da cidade

Inicio este trabalho me aproximando da cidade contemporânea e seus acontecimentos mais recentes, a partir de algumas leituras específicas e percepções pessoais de realidades urbanas vividas. O que pretendo trazer aqui é uma introdução ao entendimento pessoal da dimensão social, humana e coletiva de grandes centros urbanos na atualidade. Especificamente, tratarei de suas generalidades e problemáticas comuns essencialmente conectadas à relação entre espaço público e seus habitantes, que trazem como consequências realidades emergentes e construções coletivas de novos olhares para a cidade. Ao longo dos 6 anos vividos na FAU, pude iniciar o entendimento da dinâmica do que é viver cidade e experienciá-la. Essa relação estrita entre cotidiano e experiência de cidade, somado ao interesse sobre ela, gosto de dizer, foi imposta a mim quando da mudança para a cidade de São Paulo, no momento de meu ingresso na universidade, em 2008. Como nova moradora daquele território, antes para mim desconhecido e com o qual não tinha nenhum tipo de relação afetiva ou histórica pois vim de Curitiba, onde morei até 2007, fui estimulada decodificá-lo. As situações com as quais me deparei fizeram crescer esse interesse por entender o – na época para mim tão gigantesco – território da cidade com toda sua complexidade. As ações cotidianas que travei para atravessá-la e apreendê-la – o caminhar, o cruzar a ponte, o esperar o ônibus, aguardar o congestionamento, o observar outras paisagens, apreender outros símbolos, presenciar outras belezas –, de modo subjetivo, somaram-se e construíram minha experiência corporal sobre esse território. A experiência do corpo sobre a cidade é um processo de contínua mudança de percepção. Essa possibilidade de mudança é que instiga minha curiosidade de refletir sobre o urbano de São Paulo. Complementar à necessidade pessoal de entender a cidade, o conta-


to com a pesquisa colaborativa sobre arquitetura, educação e cidades vivida no grupo de extensão universitária, entre 2009 e 2010, junto a outros colegas do curso de Arquitetura e Urbanismo foi essencial para me aproximar de outras realidades que não àquelas impostas pelas minhas necessidades. A experiência de partipação em algumas atividades do epa! – espaço, projeto e ação1, entre rodas de discussões com a temática urbana e as ações propositivas junto aos movimentos sociais e grupos organizados, permitiu aproximações com realidades da cidade antes ilegíveis por mim. Conheci mais de perto a Baixada do Glicério e lá aprendi com a Cooperativa de Catadores, que funciona sob o viaduto da Radial Leste-Oeste, os complexos processos urbanos pelos quais passam cotidianamente. Por uma demanda local, travamos um trabalho conjunto de readequação física de seu espaço com o objetivo de legitimar juridicamente seu funcionamento. As conversas, os encontros, frutos dessa experimentação coletiva, transformaram com intensidade a maneira como leio a cidade hoje. Paralelamente à essa experiência, o intercâmbio acadêmico que realizei entre 2011 e 2012, proporcionou-me leituras de outras paisagens urbanas. As reflexões adicionadas no momento da troca de experiências em um território estrangeiro e, também, o lugar que Barcelona ocupa como referência da discussão urbanística contemporanea, possibilitaram a ampliação dessa vontade de compreender e atuar sobre as cidades. O ambiente acadêmico somou-se às experiências na cidade, instigando a discussão sobre processos sócio-espaciais e resistências urbanas presentes naquele momento. Meu olhar encontrou acontecimentos coletivos nas manifestações contra o turismo midiático, nas ocupações artísticas e de moradia em galpões e prédios abandonados, nos movimentos de bairro e lutas contra gentrificação de áreas 22


de interesse privado, nos movimentos pró-autonomia da Catalunya, em protestos na rua em prol de uma democracia participativa - que se consolidou como o movimento dos indignados, ou 15-M como ficou mais conhecido - nas discussão de gênero nas aulas de arquitetura, nos coletivos de ação urbana que discutiam a importância de ocupação dos espaços da cidade e propunham novos projetos alternativos para esse fim. No entanto, quase que em uma hipsnose, mantive o olhar direcionado para dimensão cidadã e humana desses acontecimentos, percebendo a importância deles para os habitantes da cidade, pessoas que ocupam, lutam e se apropriam daquilo que é de interesse público. Saindo da experiência pessoal, para a análise aqui exposta, busquei referências que pudessem dar respaldo teórico a esse entendimento de cidade. Apoiei-me em algumas leituras críticas de arquitetos, filósofos, sociólogos e urbanistas feitas ao longo da pesquisa e nos demais estudos que fizeram parte da minha experiência na graduação. Essas leituras foram necessárias principalmente para adentrar no problema de como cada coletivo de ação urbana, a partir de seus trabalhos, opera em diferentes escalas, ou seja, interagindo e intervindo em várias dimensões da cidade. Nesse contexto foi fundamental entrar em contato com a discussão que se está dando no campo da sociologia, da antropologia e da geografia urbana, de como pensar a cidade hoje, a partir da construção de novas categorias, novos objetos de pesquisa e novas perguntas, em relação aos quais os postos de observação são delineados como campo empíricos e não mais formais. Para dar suporte ao entendimentos dos acontecimentos e fenômenos urbanos recentes localizados nas cidades complexas – aquelas caracterizadas por alta demografia, infraestruturas maciças para deslocamentos, arquiteturas densas, funções econômicas regionais, frag23

1 O epa! surgiu em 2009 a partir de uma iniciativa de um grupo de estudantes de arquitetura e urbanismo da graduação e pós-graduação da USP e tinha como proposta afirmar a centralidade da ação direta, junto aos movimentos sociais, às comunidades organizadas, na ação política, como melhor meio para alcançar transformações sociais profundas e relevantes. (Texto de apresentação) Realizava discussões a partir de leituras teóricas sobre espaço público outras questões concretas da cidade, com foco na intervenção coletiva e ação participativa.



mentações territoriais ao mesmo tempo que redes de todos os tipos ­– apoiei-me em textos de da professora filósofa Otília Arantes, que fornecem chaves de leituras e instrumentos para se discutir o papel do urbanismo e dos novos atores, a crise da forma urbana e as grandes transformações nas cidades a partir de eventos e redes2. Busquei compreender o pensamento crítico de David Harvey, geógrafo marxista que discute a produção cultural e tendências da política e sociedade pós-modernas com as exigências econômicas decorrentes dos ciclos de expansão e crise do capitalismo e suas relações com a urbanização de cidade. Sua discussão mais recente, se apoia nos fenômenos urbanos de massa, como respostas ao auge das políticas neoliberais dos anos 1990, e postula a importância de recuperação do direito à cidade para frear o processo de desigualde econômica e territorial 3. Aproximei-me da perspectiva de Saskia Sassen, socióloga holandesa que identifica os fenômenos da globalização sobre a urbanização. Embora generalistas, encontro argumentos seus que identificam as resistências urbanas nas metrópoles e os múltiplos significados dos espaços encontrados nelas hoje 4. Analisei o poscionamento de Jordi Borja, que assim como Sassen, identifica a crise das políticas locais de reprodução dos espaços públicos e sentido público do território das cidades 5. A partir dessas leituras, entendo que estamos em meio há uma crise das políticas locais de reprodução social quando falamos dessas cidades complexas e do urbanismo que nelas se constrói. Nunca a segregação social no espaço e a disputa de território da cidade há sido tão grande. Para esses autores, nossa época revisa a razão de ser cidade, pois a correlação entre o território da metrópole e o território de organização da produção social se forma com base em políticas inseridas em uma economia capitalista e esses estão, portanto, sujeitos à lógica do lucro. 25

2 ARANTES, 1998 3 HARVEY, 1992, 2012 4 SASSEN, 2005 5 BORJA, 2004



Campinho Ivan Souto, 2013

Essa política, que organiza o território e os investimentos para seu desenvolvimento, ou seja, que é responsável pela produção do espaço da cidade, falha ao responder às necessidades coletivas importantes para o bem comum, no sentido da maioria da população que nelas vive. As realidades consequentes dessa lógica se materializam em um mal estar urbano, caracterizado pela perda de identidade local e das referências coletivas e uma ausência de representação política do comum pelas instituições que atuam sobre o território. Em resumo, esses comportamentos econômicos e políticos consolidam uma gestão privada do uso do território das cidades e um consequente a esvaziamento do sentido público dos espaços urbanos. Arrisco dizer que no Brasil a relação patrimonialista da gestão das cidades e a frágil atuação das instituições públicas concorrem para tal esvaziamento. O público6 – no sentido do comum, do coletivo, para todos – parece não existir no território da cidade, pois os usos e contra-usos que nele se estruturam evidenciam a predominância dos interesses privados. Essa ausência do sentido público transparece na cidade que se coloca como o centro, se não território principal, das relações econômicas do país. São Paulo, que tem sua mancha urbana de quase 20 mihões de habitantes será apresentada aqui, portanto, como objeto de estudo, pois se insere nessa lógica das cidades complexas acima retratadas. O que explicito são observações empíricas, primeiro enquanto cidadã habitante da capital paulista, como aluna, com base na compreensão do pensamento crítico exposto nas aulas de planejamento urbano da FAU e finalmente como futura arquiteta urbanista, cuja vontade é aprendê-la e apreendê-la melhor 7. O planejamento urbano praticado no município, ao longo da história, parece concentrar os recursos financeiros para infraestruturas urba27

6 Usarei sempre a palavra público no sentido de bem comum e propriedade coletiva, numa tentativwa de fugir do público como propriedade do Estado, instutuição ou poder que governa as cidades. 7 Csaba Deák, Caio Prado Jr., Ermínia Maricato, entre outros autores foram apresentados nas disciplinas de planejamento ao longo dos semestres cursados na FAUUSP, sob perspectivas históricas, marxistas, de produção do espaço urbano das cidades no Brasil e tenho suas leituras como base teórica inicial mais importante do meu entender da produção dos espaços da cidade.


nas e atividades econômicas de forma desigual sobre o território. Não houve urbanismo de fato, apenas ideias de projeto de cidade baseadas nas leis vinculadas a interesses privados. Como resultado, a cidade se caracteriza por um desequilíbrio estrutural entre lugar de trabalho e moradia, com pouca variação de usos e atividades, frente a sua dimensão demográfica e territorial, e insignificância de existência de espaços formais de convivência e experiência coletiva. Caminhando junto com essa prática de planejamento, o que mais levanta questionamentos para minha análise é a ausência de lugares de coexistência que revelam as disputas do território urbano e as subjetividades e não engessam a cidade e seus habitantes nas suas individualidades. Mesmo com sua extensão e fragmentação territorial, São Paulo não consegue responder as necessidades da cidadania que permitem a construção de cartografias subjetivas, aquelas que ignoram as maciças infraestruturas presentes e suas lógicas apenas utilitárias por meio de formas outras: do caminhar livremente, do sentar, do brincar, do contemplar e se apropriar do espaço da cidade. Na nossa cidade, pouco se resiste a essas lógicas e dinâmicas preexistentes. Quase não se observa o outro, há pouca sensibilidade no sentido de convivência urbana e da interioridade da cidade. E é essa angústia que me faz olhar para ela de forma mais otimista e alternativa, numa tentativa de extrair de seu território e seus habitantes, as experiências outras que nela acontecem diariamente e que caminham como respiro ao planejamento urbano consolidado. Com essa hipótese, parto da premissa que uma reativação do valor do espaço público recupera as possibilidade de se fazer presente na cidade e de alguma forma reconectar-se a ela em seu significado inicial.

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Parque Augusta Daniel Rocha, 2014

Para compreensão do significado desse espaço público, plataforma da experiência coletiva e, ao mesmo tempo, motivo das ações que pretendo analisar, me aproximei um pouco da teoria que o define reconhecendo a importância da compreensão do seu conceito inicial e puro. Para isso, selecionei algumas leituras que fazem definições clássicas desde Henri Lefèvre8 em O Direito à Cidade, John Gullick que faz uma leitura desse mesmo autor9, chegando na pesquisa de Hannah Arendt e Jürgen Habermas sobre ação e política10, e uma referência da relação espaço público e território em Milton Santos 11. A reflexão do espaço público elaborada por esses autores, embora com suas diferenças, é aproximada nesta apresentação com a definição de alguns pontos. Primeiramente, considero que todo espaço livre urbano é público e nele podem ser instituídos, ou não, práticas sociais que venham a caracterizar a dimensão propriamente coletiva e política dos espaços públicos. Sugiro, numa dimensão mais antropológica, que um espaço urbano somente se constitui em um espaço público quando nele se conjugam certas configurações espaciais e um conjunto de ações. Quando estas atribuem sentido de lugar e pertencimento a determinados espaços urbanos, e igualmente, os espaços congregam sentidos para as ações, os espaços urbanos podem se constituir como espaços públicos. Gosto desse posicionamento, pois ele ultrapassa a ideia de que espaço público é somente o espaço urbano aberto. Ela agrega valor social e humano ao território quando o entendemos a partir das interfaces de sua espacialidade, ou seja, dos usos e ações que lhe atribuem sentidos. Por agregar tal valor, outro entendimento que faz uma defesa dessa mesma ideia é a de que o espaço público é o campo de disputa: é a espacialidade onde as diferenças se publicizam e se confrontam politicamente. Portanto, a partir do momento que pensa30


mos a cidade ou seu espaço público como “campo problemático”, onde se operam situações de disputa, é possível lançar um olhar reflexivo para entender como ela aparece efetivamente nas práticas que serão aqui apresentadas . Arendt e Habermas fazem refrência a esta construção da subjetividade sobre os espaços do mundo contemporâneo e à política entendida como ação em liberdade sobre o mesmo. Ambos apresentam uma teoria da ação humana subjetiva sobre o espaço público, quando indicam o significado da ação política instantânea: política como acontecimento e como interrupção de processos automáticos. Esse entendimento é muito importante para compreender o grau de influência das ações que serão analisadas neste trabalho, já que temos os espaços da cidade compreendidos como “espaços por excelência de experiência, reflexão, ação e de percepção de si e do outro; espaço no qual a invenção de uma outra forma de estar no mundo, de conviver, de construir os próprios valores e critérios de beleza e riqueza se torna viável” 12. Os movimentos sociais urbanos de retomada do espaço público das cidades desenvolvidos recentemente à nível mundial recordam a ideia já planteada por Lefèbvre nos anos 1960. O direito à cidade está cada dia mais em discussão nas metrópoles e o espaço público, como explicitado pela escolha das leituras, reaparece com a força de sua denominação, onde se estabelece o conflito em sua dimensão social. Olhando para a realidade da cidade hoje, ocupar, tensionar, e resistir parecem ações mais presentes no cotidiano das cidades. Sua repetição demonstra que as práticas sociais ligadas à apropriação dos espaços na cidade podem levantar questionamentos que batem de frente com o status quo da construção do espaço urbano e procuram discutí-lo na dimensão pública de sua espacialidade. 31

8 LEFÈBVRE, 1998 9 GULLICK, 1998 10 ARENDT, 1987 HABERMAS, 1996 11 SANTOS,1996 12 JACQUES, 2008




Novo espaço público Targ Weglowy Square, Polônia GDYBY group, 2013


Contexto Imaginários construídos

Aqui apresento o contexto da discussão do trabalho, por meio de aproximações. A cidade é feita por pessoas e para pessoas, para que atuem coletivamente e transversalmente nas suas individualidades e diferenças. É a criação humana por excelência, sendo um conjunto de territórios onde há encontro entre essas pessoas para a o compartilhamento, troca e disputa: de valores humanos, culturais e econômicos, de experiências, objetos e criatividades. O espaço público de uma cidade é o palco catalisador dessas atividades, portanto, é o território máximo de expressão da coletividade e do comum, de percepção de si e do outro, da diversidade e da riqueza da mistura. Como exposto pelos autores lidos, os espaços públicos se configuram como a espacialidade onde as diferenças se publicizam e se confrontam, lugares em que podemos atuar de forma coletiva e individual ao mesmo tempo. Quando essa espacialidade não é possível, quando a dimensão humana da troca, da disputa e do encontro não está estabelecida em determinado território, a cidade perde e seus habitantes, por sua vez, também perdem. Esse é o ponto de partida para a discussão de outros imaginários possíveis para a cidade. Tendo como cenário essa cidade com dimensão humana quase ausente, sem escala, sem lugares de partilha e troca, em que seus habitantes não se apropriam efetivamente de seus espaços comuns, tento buscar referências históricas de trabalhos de ação e pesquisa crítica que envolvem arte, urbanismo e arquitetura e se aproximam criticamente dessa relação necessária da cidade com seus habitantes. Desde a reflexão e crise do discurso do movimento moderno, muito se escreve a respeito da relação da cidade e seus habitantes. A densidade e quantidade de trabalhos críticos a respeito disso, que envolveram diversas disciplinas durante e depois dos anos 1960, demonstram


Pessoas na Sombra Sérgio Jatobá, 2009


a inquietação de entender como nos relacionamos com o território em que vivemos. Não tenho a intenção de me debruçar sobre episódios históricos neste estudo, mas é valido ressaltar que no âmbito da arquitetura e urbanismo algumas dessas discussões se iniciaram nas manifestações logo do início do declínio do discurso do movimento moderno. Arquitetos, urbanistas e outras pesquisadores de outras disciplinas passaram a se envolver em uma reflexão que ia além dos preceitos limitadores e regras do modernismo ditado pelos congressos internacionais de arquitetura e pela própria lógica econômica da época. Isso de alguma forma dava o passo inicial para entendimento das necessidades das cidades e suas realidades daquele momento. O Team X13 se posicionou com suas insatisfações com os resultados dos Congrès Internationaux d’Architecture Moderne (CIAM), que aconteceu pela última vez em 1959, e foi o principal grupo que deu início às revisões críticas neste sentido. Seu posicionamento tomaria o lugar do antigo pensamento racionalista e funcionalista para propor algo novo. A nova arquitetura deveria ser modular, aberta à participação e deveria estruturar práticas criativas. Questionava-se, portanto, essencialmente a ausência da dimensão humana nos espaços da cidade moderna e ensaiava-se a importância de abertura de possibilidades de intervenção coletiva nos processos de decisão sobre arquitetura e cidade por seus habitantes, num entendimento sobre a responsabilidade social daqueles que a concebem para aqueles que a utilizam. O holandês Aldo van Eyck, um dos integrantes do Team X, com seus projetos de playgrounds em Amsterdã – entre 1947 até 1978 – , argumentou em nome de uma arquitetura posta à disposição da atividade humana e que promovesse uma interação social. Desenhou com esse objetivo um glossário simples para definir cada parte presente nos 37

13 Entre o grupo de arquitetos do Team X estiveram Jaap Bakema, Georges Candilis, Aldo van Eyck, Giancarlo De Carlo, Alison e Peter Smithson e Shadrach Woods.


playgrounds: uma caixa de areia circunscrita por uma borda de concreto, blocos arredondados, uma estrutura de barras curvas, árvores e bancos. Ainda assim, a estandardização não pretendia repetir a monotonia dos blocos funcionalistas modernos. Pelo contrário, tratava-se de uma forma de ação tática na cidade existente como encontrada (as found) que tirava partido de terrenos que ofereciam a chance de uma função temporária. Os playgrounds não eram apenas objetos a serem escalados, mas um lugar de encontros, para perceber o próprio cotidiano de forma nova, repropor a relação com a vizinhança, a partir de uma natureza intersticial comum. Seus espaços foram criados pela circunstância, apropriação e utilização temporárias, por instantes e situações, um conceito que tangencia a Teoria dos Momentos, de Henri Lefebvre, na qual a cidade é definida como uma estrutura aberta a diferentes temporalidades que constantemente estabelecem novos códigos no espaço físico. Essa noção de cidade como estrutura aberta indica uma rede de terrenos a serem reprogramados, mudando sua vocação no mesmo instante e adicionando significado com base no conceito de lugar14. A produção crítica coletiva que se desdobrou a partir desse momento de revisão do movimento moderno foi muito intensa, e é algo que me chama atenção já que o objeto do trabalho é essa forma de produção coletiva que repensa a cidade e a recodifica. Ou seja, a discussão não é nada recente se enxergamos o grande número de manifestos, intervenções e publicações com o tema da revisão das cidades e como nos apropriamos delas dos anos 1960-1970. Se falarmos no âmbito das artes visuais, outros grupos nesta mesma época atuaram na interface entre espaço público e privado e tiveram a 38

14 Ver artigo de Marcos L. Rosa Revisitando os playgrounds de Aldo van Eyck, 1947 | 2011 (2013), que foi convidado para compor a exposição Playgrounds: Reinventar la Plaza, no Museu de Arte Reina Sofia, em Madrid entre 30/04 a 22/09/2014.


Playgrounds em Amsterdam Aldo Van Eyck


cidade como plataforma de suas experiências e manifestos. Esses grupos repensaram territorialidades, tanto urbanas quanto dos grandes espaços abertos naturais, entendendo a necessidade de uma intervenção crítica e coletiva sobre aquilo que estava sendo imposto nos territórios comuns. Alguns desses grupos – Situacionistas, Fluxus, Land Art, TA Z, Paisagistas contemporâneos – souberam traduzir essa inquietação por meio de ações em situações e manifestos que influenciaram outros artistas e pensadores espalhados pelo mundo a partir daquele momento. Os Situacionistas, em torno de Guy Debord, caminhavam pela cidade e construíam mapas psicogeográficos a partir de certos procedimentos preestabelecidos e das percepções sensoriais dos espaços. A tese central situacionista era a de que, por meio da construção de situações se chegaria à transformação revolucionária da vida cotidiana, o que se assemelhava muito à tese defendida por Lefèbvre. Muito claras são suas convicções a respeito do urbanismo moderno, quando explicavam de que a própria sociedade deveria mudar a arquitetura e o urbanismo e não o inverso. Enquanto Le Corbusier antes discursava que a arquitetura poderia evitar a revolução, eles, em outra época, queriam provocar a revolução, e pretendiam usar a arquitetura e o ambiente urbano por si mesmo para induzir à participação, para contribuir nessa revolução da vida cotidiana contra a alienação e a passividade da sociedade. O grupo neodadaísta Fluxus por exemplo, também propôs experiências semelhantes, sendo a época dos happenings no espaço público em Nova York nos anos 1970: eles exploravam as ruas, as esquinas para suas apresentações e eventos. Os landartistas, por sua vez, tanto manipulavam a paisagem materialmente, quando tinham um envolvimento físico com a natureza, ou realizavam uma investigação do meio 40


Fin de Copenhague, Guy Debord e Asger Jรถrn, 1959/ Transitional Elements, Bakema/ Mapa psicogeogrรกfico, Guy Debord, 1960/ Clip Stamp and Fold (1960-1970)


ambiente como ecossistema e realidade político-social. Com a deriva, esses grupos tornaram as perambulações sem objetivo, o movimento como percepção e produção do espaço, um método urbano. Aprendeu-se intensamente com o movimento Situacionista e outros que caminhavam nesta mesma direção sobre a experiência da cidade e passou-se a entendê-la como produto desta experiência, como espaço vivido que expressa o processo ativo de experimentar o espaço e produzi-lo simultaneamente. Em geral a prática artística no mundo ocidental, a partir deste momento, constituiu muitas respostas aos questionamentos a respeito do sentido das cidades – performances públicas e instalações efêmeras ou tipos de esculturas públicas mais duradouras, fossem elas site-specific, arte atrelada à comunidade, ou esculturas nômades que circularam por diversas localidades. A navegação aconteceu por múltiplas formas de conhecimento, que foram além da arquitetura e do urbanismo, e tentou-se de alguma forma instaurar esse olhar e introduzir a possiblidade de uma prática arquitetônica sem forma, estrutura pura ou utilidade. Como pude ver, vários artistas trabalharam no espaço público de uma forma crítica ou com um questionamento teórico. O denominador comum entre esses artistas e suas ações urbanas seria o fato de que eles viam a cidade como campo de investigações e novas possibilidades sensitivas, e estes acabavam assim mostrando outras maneiras de se analisar e estudar o espaço urbano através de suas obras e experiências.

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Gordon Matta Clark, Splitting 1973 / Daniel Buren, 1969 / Barbara Kruger, 1980


No Brasil, Hélio Oiticica, junto com Lygia Clark e Ligia Pape, pode ser considerado um dos mais inquietos dos seguidores de Flávio de Carvalho, que nos anos 1930 já mantinha uma relação entre arte e vida urbana que muito se aproximava do surrealismo parisiense com suas Experiências. O trabalho chamado Delirium Ambulatorium, por exemplo muito se aproxima dos textos dos Situacionistas do anos 1960. Essa relação com a rua e as coisas da rua é ressaltada em cada trabalho seu. A partir de 1964, com a aproximação da favela da Mangueira no Rio de Janeiro, Oiticica passa a desenvolver os Parangolés – capas, tendas e estandartes, que vão incorporar literalmente as três influências da favela que acabava de descobrir: a influência da idéia do corpo e do samba, uma vez que os Parangolés eram para ser vestidos, usados e, de preferência, o participante devia dançar com eles; a influência da idéia de coletividade anônima, incorporada na comunidade da Mangueira, e a ideia de participação do espectador encontrou aí toda sua força. Parangolé é a antiarte por excelência; inclusive pretendo estender o sentido de “apropriação” às coisas do mundo com que deparo nas ruas, terrenos baldios, campos, o mundo ambiente enfim – coisas que não seriam transportáveis mas para às quais eu chamaria o público à participação –, seria isso um golpe fatal ao conceito de museu, galeria de arte, etc. e ao próprio conceito de “exposição”. Museu é o mundo, é a experiência cotidiana.

Em São Paulo, essas experiências ecoaram também e consolidaram algumas ações através de grupos de artistas no fim dos anos 1970. Em um contexto de retomada cívica de um espaço que havia sido restrito para a manifestação popular e da reativação dos congressos estudantis 44


ParangolĂŠs, Helio Oiticica, Rio de Janeiro, 1973


após o auge da ditadura militar, experiências coletivas denunciavam o afastamento do ambiente público da cidade e instauravam a ideia de ação urbana. Os coletivos 3nós3, formado por Judilson Jr. Mario Ramiro e Rafael França (1979-1982) e Manga Rosa (1978-1982) formado entre outros por Nelson Brissac e Jorge Bassani, estavam presentes nesse ambiente que na época participava do que era chamado de arte marginal ou arte alternativa. Eles buscavam reabrir esse espaço antes oculto por meio de uma expressão não linear, não lógica e não verbal para um movimento que estava eclodindo na própria sociedade. Existia de certa forma uma ideia de urbanismo, fugindo da arte de estátuas e esculturas, para chegar quase numa arte de guerrilha, preocupado em agir sobre o espaço da cidade. e proporcionar os encontros necessários para revolução. Os encaminhamentos das ações dos grupos não tinham pauta formalizada com teorias e as intervenções não eram necessariamente objetivas, eram apenas estruturadas numa reflexão contra a operação limitante e moderna da cidade na época. Buscava-se uma reinterpretação do papel da ação do arquiteto quando ele fugia do trabalho sobre um lote circunscrito e passava a trabalhar na rua – espaço não circunscrito – ultrapassando os códigos de funcionamento e reconhecimento do espaço existente na cidade. Um dos projetos, o Arte ao ar Livre se concretizou através da Mostra Permanente de Arte (em) Out Door em São Paulo, realizada a partir de agosto de 1981. Um painel afixado na Rua da Consolação, em frente à Praça Roosevelt, veiculando trabalhos de artistas convidados pelo grupo Manga Rosa se consolidava como arte independente no lugar da propaganda. O tema da Mostra logicamente era a atuação no espaço público e a abertura da possibilidade de ocupar e encontrar-se uns aos outros tendo ele como palco principal. 46


Mostra Permanente de Arte (em) Outdoor Torquato Neto, MangaRosa S達o Paulo, 1981


Infelizmente, com o tempo, esses grupos de São Paulo, passaram a participar do circuito de arte formal, e de alguma forma perdeu-se seu sentido inicial de questionamento das realidades urbanas. Em uma primeira conclusão histórica, acredito que a não intencionalidade dos flaneurs que vagavam por Paris na virada do século e depois, na sua metade, as críticas ao urbanismo moderno através dos manifestos artísticos e intervenções urbanísticas anti-Carta de Atenas que buscavam uma leitura mais profunda da relação cidade e seus habitantes, assim como as experiências artísticas trazidas para o Brasil neste mesmo contexto, reaparecem meio século mais tarde, com a pauta de reinvenção dos lugares cidade. Vários são os veios atrelados a essas discusões passadas por trás do atual interesse em caminhar pela cidade, reconhecer seus espaços e apropriar-se deles. Essas experiências coletivas se atualizam hoje na ação de coletivos que tentam pensar os espaços de ação pública criticamente e entendem que o fazem novamente como um manifesto frente ao esvaziamento do sentido público das cidades. Certamente, em ambos os tempos – entre1960-1970 e hoje – o cenário que propicia esses questionamentos e que resultam em intervenções e experiências críticas, situativas e resitentes, é o próprio urbano com suas mudanças socias, econômicas e territorias que instigam uma reflexão para a revisão do que é ser cidade.

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Fungindo um pouco dos fatos e inflexões importantes acontecidas sobre a cidade ao longo da história, procurei entender sociologicamente quais são os significados dessas ações urbanas sobre nós mesmos, habitantes do território urbano. A pesquisa a respeito de arte e intervenções na cidade felizmente me aproximou do esclarecido trabalho de Paola Jacques Berengstein, sobre corpografias, errâncias e microresistências urbanas. A arquiteta urbanista e professora traça um caminho teórico a respeito da relação de nossos corpos com o território em que vivemos, como uma maneira de entender de que forma nos relacionamos involuntariamente com ele. Gostaria aqui de me debruçar um pouco sobre esse trabalho juntando também outras referências que seguem o mesmo caminho e que se justificam pelo estudo das práticas urbanas alternativas. Paola Jacques retoma um discurso muito próximo do qual nos quis traduzir o manifesto situacionista. Para a autora, a cidade é lida pelo corpo e de forma interativa o corpo interpreta-a e sintetiza essa interação se autodefinindo, num processo involuntário. Sua tese defende que a experiência urbana, em suas diversas escalas de lugar e de tempo, fica inscrita no próprio corpo daquele que a experimenta. A reflexão urbanística que se configura nesta tese, que Jacques chama de corpografia urbana, pode ser justificada quando discutimos as maneiras de nos apropriarmos do território da cidade. Esse apropriar-se - verbo que tanto usamos para designar o uso efetivo de um lugar - se traduz como a experiência corporal sobre ele. Ao dizer-lo, sugerimos maneiras e desejos de apreender o território por meio de experiências mais interessantes, mais comuns e mais convidativas de interação com outros corpos no espaço urbano cotidiano.

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corpo e cidade


Biblio Ciudad Cidade do Mexico, 2014


Para que esses desejos se efetivem, concordo com a autora de que é necessária uma compreensão inicial acerca das pré-existências corporais resultantes da experiência no espaço existente. Ou seja, entender como lemos a cidade hoje e como isso é gravado em nossos corpos, subjetivamente. Um convidativo estímulo que ela propõe para esse entendimento, é a prática de errâncias. A experiência urbana mobilizadora de percepções corporais mais complexas poderia ser estimulada por uma prática de errâncias pela cidade que, por sua vez, resultaria em corpografias urbanas equivalentemente mais complexas15.

Neste sentido, compreendo que as errâncias mais comuns são aquelas praticadas diariamente, na experiência cotidiana de cidade. Essas errâncias se increvem no corpo, que responde e transforma a cidade subejtivamente. Para explicar facilmente, me apoio no que fala Michel de Certeau, em seu livro A invenção do cotidiano. Aqueles que experimentam a cidade, que a vivenciam embaixo como ele diz, se referindo ao contrário da visão do alto, dos urbanistas, são o que ele chama de praticantes ordinários das cidades. De Certeau mostra que há um conhecimento de espaço próprio desses praticantes. Ou seja, uma corpografia própria que ele relaciona com um saber subjetivo, lúdico, amoroso. Jacques retoma essa ideia, valorizando essa experiência ordinária e entendendo-a como importante para legitimar aquilo que está imposto no desenho da cidade, aquilo que foi projetado, nas suas reinvenções subjetivas.

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15 JACQUES, Corpografias urbanas, 2008



The event of a thread Instalação no Park Avenue Armory, NY Ann Hamilton, 2012

São as apropriações e improvisações dos espaços que legitimam ou não aquilo que foi projetado, ou seja, são essas experiências do espaço pelos habitantes, passantes ou errantes que reinventam esses espaços no seu cotidiano. Para os errantes – praticantes voluntários de errâncias – são sobretudo as vivências e ações que contam, as apropriações feitas a posteriori, com seus desvios e atalhos, e estas não precisam necessariamente ser vistas (como ocorre com a imagem ou cenário espetacular), mas sim experimentadas, com os outros sentidos corporais. Os praticantes da cidade, como os errantes, realmente experimentam os espaços quando os percorrem e, assim, lhe dão “corpo” pela simples ação de percorrê-los15.

Por outro lado, de maneira mais ativa, a autora fala da possibilidade de ação política crítica e uma resistência pensada – e não uma errância – para ressaltar a coexistência de diferenças no espaço público. Ela chama essa possiblilidade de micropoderes sensíveis. É aí que vem o link para as práticas urbanas alternativas na cidade, das quais falo neste trabalho. Se é possível ler e agir sobre a cidade ordinariamente, também é possível construir experiências sobre ela voluntariamente e que transformem o pré-existente. São ações táticas, que tem o objetivo de ocupar o espaço comum da cidade para construir e propor outras experiências sensíveis. Essas ações, podem ser realizadas em diversos lugares. A escolha é situativa pois responde à uma determinada situação ambiental ou política de um território. Sobre o espaço urbano, podem ser, por exemplo, lugares vagos ou espaços subutilizados, onde há ausência do comum e do sentido coletivo da cidade.

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15 JACQUES, Corpografias urbanas, 2008



Zona de Interferência: a cerca do espaço. Corpocidade, Salvador, 2008

A socióloga Joana Zatz, participante de um coletivo atuante da cidade de São Paulo, do qual falarei oportunadamente, colabora para esse entendimento da ação do corpo sobre a cidade, com o seguinte, Quando o corpo se propõe, seja pela presença ou pela ausência, a fazer uma interveção no espaço urbano, aparece alim na produção tática da imagem, a escala humana tentando inventar uma outra forma de experenciar o espaço. Essa tentativa de invenção de espaço, que é em si um espaço de anúncio, talvez seja exatamente o que dá, a imagem produzida, a sua potência de circulação e reverberação em outros corpos e outras ações, portanto a sua potência estético política16.

As ações, se efetivadas pela proposição dos micropoderes sensíveis, e os lugares, se apropriados por esses corpos, transformam o espaço urbano fisicamente e sensorialmente, no sentido de abertura de possbilidade de novas experiências. Ao mesmo tempo, a imagem produzida taticamente pela ação possibilita a difusão da experiência sensível para outros corpos, evidenciando uma potência política de transformação da cidade. É dessa maneira a ação dos corpos sobre o território pode funcionar como prática crítica que permite captar algo além do que aquilo que se vê representado na cidade existente. Coloca-se a intervenção urbana como promotora da explicitação dos conflitos escondidos, que podem ser de diversas escalas – do habitar, do encontro, do circular, do brincar –, e como potencializadora das tensões desses espaços.

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16 MUSSI, 2012, p.192



A cidade pode ser julgada e entendida apenas em relação àquilo que eu, você, nós e (para que não nos esqueçamos) “eles” desejamos. Se a cidade não se encontra alinhada a esses direitos, então ela precisa ser mudada. O direito à cidade “não pode ser concebido como um simples direito de visita ou retorno às cidades tradicionais”. Ao contrário, “ele pode apenas ser formulado como um renovado e transformado direito à vida urbana”. A liberdade da cidade é, portanto, muito mais que um direito de acesso àquilo que já existe: é o direito de mudar a cidade de acordo com o desejo de nossos corações. (David Harvey)






Banquete, Belo Horizonte Coletivo Ambulantes, 2006 Banho na Esplanada dos MinistĂŠrios Sergio JatobĂĄ, 2008


Tempo A euforia da cidade

Aqui apresento o tempo no qual se insere a discussão deste trabalho. Sinto que foi uma leitura do momento das cidades as quais olhei, li ou vivi nos últimos cinco anos e que me colocaram mais perto da euforia da cidade contemporânea. Euforia porque elas parecem agir em busca de um grito próprio, em busca do momento de respirar diante daquilo que lhe foi imposto e moldado durante tanto tempo. Uma euforia que tenta reativar as possibilidades de atuação do corpo sobre a cidade – que tanto defende Jacques – e nos sugere a importância de batalhas decisivas que a molde novamente sob uma perpectiva do bem comum e se distancie da dimensão privada que hoje lhe é atribuída. Sem pretensões de indentificar correlações exatas e quase como que em um flaneur por entre elas, olhei para São Paulo, Barcelona, Belo Horizonte, Ciudad de México, Madrid, Nova York, Recife e deixei que esse olhar me conduzisse para a reflexão que aqui proponho como essencial: a revisão do apoderamento dos espaços públicos das cidades. É inegável que, se personificássemos esses espaços, veríamos que eles estão em um momento de transição e de respocionamento frente as pessoas que deles se utilizam. Vejo uma crescente retomada da discussão com foco na importância do interesse comum sobre os espaços das cidades. Os eventos autônomos, as intervenções urbanas, a multidão que neles aparece são retratos dessa reflexão, e desse tempo-momento, que na maioria das vezes se consolidam em práticas que constroem e reconstroem os espaços da cidade. Talvez, o que impulsione esses fenômenos seja a abertura de novas possibilidades de disputas e atuação frente a situação social, política e econômica dessas cidades tomadas em foco. Seria mesmo interessante entender o contexto econômico local e global, para dar respaldo



Isla Ciudad Noche Blanca, Madrid EXYZT, 2010

correto ao tempo dessas ações. Mas o objetivo aqui não é esse. O que apresento é este panorama inicial, um extrato frente a dimensão coletiva e territorial global desses trabalhos e que resulta na compilação de alguns dos exemplos da produçao simbólica que vem contextualizando e tomando forma no âmbito das cidades. São objetos, experiências, publicações e ações táticas e culturais que chamam a atenção para relevância das práticas que discutem o território simbólico da cidade, criando uma multiplicidade de formas, representações, soluções criativas e performáticas e que, evidenciando situações e espaços, constroem outros lugares. Ainda aqui, pretendo dar corpo conceitual para as questões que permeiam o tempo – euforia – dos lugares, coletivos e cidades expostos, entendendo como acontecem e são expressas essas práticas como resistências e reflexões, no contexto específico e complexo dos espaços públicos da cidade. Nesta perspectiva evidencio em que sentido estas experiências em suas potências, podem ser traduzidas em novas construções dos espaços da cidade e de que forma esse grupos de ação colaborativa se consolidam como novos atores na construção da cidade: como se desenvolvem essas estruturas de trabalho horizontais, as interações possíveis em rede e surgimento de plataformas de trabalho, temas que são determinantes para criação desse cenário. Penso na contextualizaçao dessas ações e este pensamento me conduz às referências que vivenciei no período de intercâmbio em Barcelona17. Na Espanha, o que impulsiona uma rede de colaboração com esse âmbito de construir outros lugares possíveis na cidade é justamente o cenário econômico local. O exemplo da crise econômica permitiu que arquitetos, técnicos, cenógrafos, urbanistas, discutam a cidade sem que estejam formalmente trabalhando sobre elas. 65

17 Intercâmbio acadêmico realizado na ETSAB/UPC, Barcelona, entre 2011 e 2012


Os coletivos que hoje atuam no país se expandiram com a mesma força com que a crise econômica foi minando o exercício convencional da profissão dos arquitetos, contaminando as aspirações de uma geração que encontra no plural, o veículo para transformar a sociedade. A incerteza e a falta de referências no panorama atual parecem ter criado uma mudança desde a última década que poderia constituir-se como um novo paradigma na forma de entender a arquitetura, supondo uma abertura até outras discplinas que vão além da construção e composição arquitetônica. Organizados horizontalmente, os coletivos formam um universo espontâneo que congrega aspirações e sensibilidades muito diferentes, mas que mantém sempre uma pauta comum, o território público da cidade. Essa perspectiva foi evidenciada no recente número publicado da revista Arquitectura Viva – Colectivos Españoles. Novas formas de trabajo: redes e plataformas, (n.145, 2012). Embora situe o olhar aos coletivos essencialmente formados por arquitetos, sua discusão corrobora efetivamente para a difusão de uma nova maneira de se trabalhar no campo do desenho e projeto de cidade. O editorial faz uma seleção de 48 grupos que trabalham distribuidos por todo território do país. Entre eles, podemos citar a relevância do trabalho dos coletivos Todo por la Praxis, Vivero de Iniciativas Ciudadanas, Arquiteturas Colectivas, Basurama, Recetas Urbanas, Paisaje Transversal. A atuação desses grupos nos aproxima da discussão da eficácia do papel do arquiteto na construção real das cidades que havia se deslocado do centro do debate arquitetônico há muito tempo. É um protagonismo inegável para a realidade espanhola, principalmente nas grandes cidades como Barcelona, Madrid, Sevilla e Valencia. Eles são vistos como uma alternativa ao trabalho da arquitetura e, na verdade, representam 66


Plaza, Valencia, 2010 / Le Tunnel, Sain Jean en Royan, 2011 / Alameda de Hercules, Sevilla, 2012 / Pintemos MĂŠxico, Morelia, 2014


muitas alternativas que podem coexistir entre si. E é isso mesmo que defendem, uma extensão de seu significado para outras disciplinas. Na sua produção, há interesse pela teoria e pesquisa sobre a construção do urbano comum, assim como há preocupação com a difusão desse conhecimento coletivo por meio da criação de manuais e ferramentas que possibilitem modos de intervir sobre a cidade. Embora pareça haver um distaciamento político, na perspectiva de transformar temporariamente a atmosfera de um território, dão-lhe um uso alternativo, aumentando sua capacidade de criação um espaço comum, potencializando a discussão crítica frente a determinada situação. El colectivo se contrapone diluyendo la autoría y, por tanto, las lógicas mercantiles. La identidad múltiple es un estrategia de combate frente al concepto decimonónico de la autoría pero, a su vez, permite la apropiación por parte de cualquier individuo. El individuo se suma a la colectividad como sujeto de una masa crítica sin prescindir de su autonomía.18

Esse trecho foi retirado de um blog e traduz a inquietação política e o sentido do trabalho de suas ações, tendo como ponto de importância máxima o fato de serem plurais em sua genesis. A reflexão sobre a própria estrutura interna parece permanecer nas dinâmicas de trabalho. O que é ressaltado para esse plural, é que o trabalho em grupo transforma capacidades pessoais em uma entidade de ordem superior que é capaz de trabalhar mais e melhor, mas que em sua essência reconhece e respeita a necessidade de cada um dos atores. Por isso a organização interna é necessariamente transversal, pois vai além da soma de forças e alcança a multiplicação das mesmas. E essa hibridização de capacidades individuais, com a mescla de áreas e profissões, parece ser de vital 68

18 ¿Matar al movimiento? Artigo escrito pelo coletivo espanhol Todo por la praxis, em função da publicação da AV 145, 2012.


importância para consolidação de modelos emergentes de trabalho que estão surgindo. O fenômeno dos coletivos que se pode observar na Espanha tem ainda uma potência evolutiva que está apoiada no trabalho em rede, que passa pela conexão e comunicação digital, e está consolidada essencialmente por uma construção de redes físicas de contato, de esforços de corpos trabalhando em conjundo e troca de criatividades intelectuais. Ou seja, a rede está construída não por fios que se entrelaçam, mas sim por nós que garantem sua estabilidade. E esses nós, no caso, são as pessoas, que atuam, se envolvem, trocam, difundem e participam. Podem ser traduzidos como um ecosistema de pessoas que se reconhecem e trocam informações em função de algum tema ou ação, potencializando inteligências coletivas. Se observa, no entanto, a necessidade de estabelecer espaços físicos para que esses encontros onde a rede está estabelecida de fato aconteçam. E é aí que muitas vezes entram as intervenções sobre o território da cidade. Há uma multiplicação de espaços temporais que são necessariamente posicionados em espaços públicos existentes ou outros antes não utilizados que servem de plataforma física para essas rede, onde acontece o encontro, a troca e a elaboração de novas exeperiências urbanas. Hoje, é possível encontrar muitos termos que tentam traduzir um pouco da euforia das cidades e a vontade de ocupação coletiva de seus espaços. Organizações, grupos de pesquisa, e coletivos – ou mesmo amadores, no sentido de amantes das cidades – se propõem a pesquisar e a discutir sobre o espaço urbano e sua relação com as pessoas na cidade contemporânea. E surgem termos que renovam palavras antigas e dão potência a seus significados: Shareable City, Urban Commons, Open Source Urbanism, P2P (peer-to-peer) Urbanism, Microur69


Red de conexiones entre colectivos Revista Arquitetura Viva 145, 2012





Páginas web de coletivos e plataformas de discussão urbana. Acessados em 2014.

banism, Placemaking. Não tentarei explicá-los aqui, mas gosto de crer que a existência desses neologismos traz um panorama interessante das possiblidades alternativas que estão na pauta da discussão sobre intervenção nos espaços da cidade pelas pessoas. Ou seja, tentando fugir da espetacularização que se produz com tais termos e publicações, o que gostaria de justificar é que essa tentativa de reinventar a produção do espaço da cidade por arquitetos ou por habitantes que atuam em diferentes esferas, não é apenas uma questão de aderir a modismos. É antes dar licença ao saudável surgimento de uma cultura da horizontalidade e da desierarquização das ações sobre aquilo que é público. Retomanda a análise inicial, aponto referências de ações e processos de criação e pesquisa nas cidades brasileiras, similares aos vistos em outros países e nos quais há reinterpretação de espaços públicos. Em Salvador, por exemplo, muitos são os grupos de ação urbana que transformam o espaço coletivo e chamam a atenção para o sensível de cada lugar da cidade. Coordenado por Paola Jacques desde 2008, o projeto Corpocidade: debates em estética urbana, compreende o papel da arte como criadora de novas formas de partilha da experiência urbana, como estratégia de redesenho das suas condições participativas no processo de formulação da vida pública e comum na cidade. Grupos que englobam diferentes disciplinas derivam do projeto e atuam sobre a cidade, agindo sobre o espaços inutilizados, captando pré-existências, criando novos lugares em comunidades, catalogando intervenções e praticando o comum de forma tática. Em Belo Horizonte, essas práticas se intensificaram nos últimos anos como uma resposta para as arbitrariedades do Estado - como a lei de limitação de uso da Praça da Estação, que proibia a realização de even74


tos espontâneos e gratuitos. Estas práticas foram se fortalecendo e ganharam adeptos de diversas áreas, o que fortaleceu a autonomia dos atores e a criação de redes. Atualmente a cidade passa por uma efervescência cultural e, a cada dia, novos projetos comuns são construídos. A vontade de atuação no espaço público da cidade, no entanto, já vinha se consolidando um pouco tempo antes. Em 2005, Louise Ganz em colaboração com Breno Silva e como uma ação coletiva de artistas e arquitetos, criou uma plataforma de projetos para lugares desocupados da cidade. Chamada Lotes Vagos: ação coletiva de ocupação urbana experimental, a iniciativa visava transformar os lotes privados da cidade em espaços públicos de uso coletivo, durante um determinado período. Os lotes eram emprestados pelos seus proprietários e usados por vizinhos, moradores e pedestres até que fossem solicitados novamente. A ação teve como objetivo realçar uma rede de espaços vazios que se configuravam como potenciais para uso e invenção coletiva, problematizando justamente a ausência de espaços comuns na cidade, evidenciando o modo como nos relacionamos uns com os outros, o ócio e a estética. Ao mesmo tempo em que propunham a ocupação, não tinham intenção de eliminar esse caráter de abandono, de memória vegetal, topográfica e arqueológica do lugar. A ideia era que permanecesse um certo caráter de espaço vago mesmo, para que não virassem um empreendimento. Em 2008, a iniciativa foi expandida para a cidade de Fortaleza onde outro grupo tomou a frente das apropriações de lotes vazios da cidade. Um desdobramento mais recente dessas ações deu origem ao a.e.t. [ativador de espacialidades temporárias] que funciona como uma plataforma colaborativa e de negociação entre pessoas que desejam emprestar temporariamente espaços diversos, pessoas que desejam 75


propor algo nesses espaços e pessoas dispostas a colaborar para que tais proposições aconteçam. Por meio de um cadastramento online, é possível participar da ação que visa facilitar intercâmbios para realização de ocupações urbanas experimentais entre diversas cidades e fomentar outros imaginários urbanos. O grupo Thislandyourland, que atua no Rio de Janeiro, também compartilha da mesma ideia e desenvolve trabalhos em diversas mídias que relacionam arte, natureza e cidade. Em seus projetos são trabalhadas questões em torno dos usos e do acesso à terra e realizam-se imagens que possibilitam pensar outros modos de vida coletiva. Outros projetos criados nas cidades brasileiras são os mapas colaborativos que apontam problemas situacionais de lugares da cidade ou que indicam ações coletivas e apropriações urbanas. As plataformas para criação dos mesmo estão cada vez mais acessíveis. Com ferramentas como Meipi, Mapme ou GoogleMaps, qualquer pessoa pode acrescentar informações, fotos ou videos para criar mapas públicos alimentáveis que sirvam para determinadas situações de uso comum. Muitos destes mapas estão baseados em cartografias de propriedade de Google, mas há uma infinidade de pessoas trabalhando hoje para desenvolver cartografias opensource, de propriedade coletiva. No Brasil, as ocupações de moradia com toda sua força subjetiva e política, ocupações artísticas, praças construídas coletivamente, hortas urbanas, picinics públicos, grupos de cicloativismo, acontecem como ações que tem como denominador comum a criação de lugares comuns possíveis para a cidade. Seus atores, em suas diferenças pessoais e profissionais, são responsáveis por construir essas relações invisíveis que fazem de espaços e situações, lugares mais vivos e mais humanos. 76


Intervenções por Louise Ganz e Breno Silva Lotes Vagos, 2005 Praia Atântico Clube, 2010 Área de Construir, 2012


Frames do vídeo de apresentação do Publique sua Cidade. Basurama, São Paulo, 2011

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O cenário final que criam para o desenvolvimento dessas realidades emergentes é a transformação da experiência do espaço público, com objetos ou novas imagens do cotidiano que permitem criar impacto social e sugerem reflexões para construção de discursos alternativos. A prática artística se dá como uma tentativa de fazer emergir como ao menos uma “imagem da experiência”, outros projetos de sociedade, sendo a cidade o domínio no qual as múltiplas escalas em jogo na disputa por esse projeto se evidenciam, se encontram , se sobrepõe, se atualizam, se confrontam. [...] Essas imagens, que surgem a partir de determinadas situações e problemáticas locais tem, por sua vez, um potencial de iluminar questões em outros contextos situados, na medida em que tanto nomeiam – criando formas de tornar visíveis e legíveis – acontencimentos estratégicos na produção do espaço social contemporâneo, quanto ampliam a visibilidade e legibilidade deles, transformando-os em imagens que circulam e, assim, inserindo-os em um território mais amplo.19

Embora situe essas práticas urbanas sob ponto de vista artístico, Joana Zatz aponta que, por meio das práticas coletivas, cria-se um tipo específico de território estético simbólico, no qual as imagens surgem da colaboração e mostram um uso alternativo, crítico, subversivo do espaço urbano. São esses imaginários emergentes, que se posicionam em determinado lugar, os quais referencio aqui como maneira de forçar a reflexão sobre como a cidade está sendo construída.

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19 MUSSI, 2012 p.25


Neste contexto, cabe ressaltar a exposição Actions, de curadoria do Canadian Centre of Architecture em Montreál, que no Brasil pôde ser vista no Centro Cultural São Paulo, em outubro de 2013. Ações: O Que Você Pode Fazer com a Cidade, através da reunião de ações coletivas que reiventam a vida cotidiana e reocupam o espaço urbano dando a ele novos usos, ressaltou a ideia de que não podemos mais nos pautar somente nas ferramentas do planejamento moderno para elaborar o desenho e a gestão do nosso espaço urbano. Nós focamos em caminhar, brincar, reciclar e jardinar. Caminhar significa restabelecer relações sociais. Jardinar, enquanto uma nova forma produtiva, significa zelar pelo solo urbano. Reciclar significa pensar a respeito do desperdício na nossa sociedade. Redefinir tais ações nos confere um trampolim que nos projeta a imaginar nossas cidades pautadas por diretrizes diferentes. Brincar significa tomar posse, de forma criativa, da cidade física e social. O objetivo é, através dessas ações, encontrar ferramentas para introduzir novas prioridades na sociedade.20

A exposição reuniu ações, agrupadas por tipos de ferramentas ou meios, expostas em cartazes manuseáveis e tinha como objetivo inspirar o visitante pelas soluções criativas e positivas nas cidades contemporâneas mundo afora. Através dela, foi possível mostrar novos significados de espaços urbanos feitos com ferramentas que não vieram com instruções de uso, mas que eram frutos de necessidades e motivação de todos aqueles que as reiventam e as reaplicam. A crença da curadoria era no potencial das pessoas, daquelas que trabalham minando a sabedoria convencional com novos imaginários possíveis para as questões da cidade, sem necessariamente confrontá-las.

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20 Actions, teve sua primeira edição no Canadian Centre for Architecture, Montréal, entre nov/2008 a abr/2009, em seguida no Graham Foundation for Advanced Studies in the Fine Arts, Chicago, entre out/2009 a mar/2010. No Brasil, veio para a X Bienal de Arquitetura de São Paulo, no CCSP, entre out/2013 e dez/2013.


Plataforma online cca-actions.org / Exposição Actions no CCA, 2012 e no CCSP, 2013


Para essa euforia, também caberia uma discussão institucional – em termos de Estado – mas também instituições invisíveis, linguística, códigos, discursos, etc., que de alguma forma está se relativizando no cenário urbano contemporâneo. A noção de soberania dos Estados, normas e leis, parece estar em crise profunda e muitos teóricos discutem a a possibilidade de instauração de um estado de exceção permanente até desaparecimento por completo. Essa discussão me instiga bastante e pude encontrar na leitura de autores contemporâneos a construção de teorias relacionadas às formas atuais do capitalismo e a resistência à ele. Michael Hardt e Antonio Negri definem uma nova forma de fazer política a partir da noção de multidão e do viver comum. A globalização, contudo, também é criação de novos circuitos de cooperação e colaboração que se alargam para nações e continentes, facultando uma quantidade infinita de encontros. [...] o que ela proporciona é a possibilidade de que, mesmo nos mantendo difrentes, descubramos os pontos comuns que permitam que nos comuniquemos uns com os outros para que possamos agir conjuntamente. Também a multidão pode ser encarada como uma rede: uma rede aberta em expansão na qual todas as diferenças podem ser expressas livres e igualitariamente, uma rede que proporciona os meios da convergência para que possamo trabalhar e viver em comum. [...] Na medida em que a multidão não é uma identidade (como povo) nem é uniforme (como as massas), suas diferenças internas devem descobrir o comum que lhe permite comunicar e agir em conjunto.21

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21 HARDT, NERI, 2006, p. 9-14


Seminário Vivero de Inciativas ciudadanas, La Casa encendida, Madrid, 2014 / Ação Cuadra Urbanismo, Michoacán, México, 2014


N達o Vai ter Copa Ato no Largo da Batata Melina Kuroiva, 2014

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Esse entendimento de uma nova forma de fazer política, logicamente exige uma leitura mais próxima e profunda dos modos e relações sociais e econômicas atuais. De qualquer maneira, esse posicionamento está sendo colocado em discussão e me chamou a atenção, a partir do momento que as redes de ação urbana participam e atuam em favor desse interesse pelo comum. Ainda que com suas diferenças e particularidades, eles utilizam essa inteligência coletiva para constituir aos poucos a política da multidão, evidenciada pelos autores. Nessas referências e exemplos que apontei são visíveis as muitas linguagens que se somam para dar forma a essas celebrações do urbano. Eventos, acontecimentos, festas, publicações, diálogo, discursos são plataformas midiáticas promotoras da apropriação do espaço público. Essa multiplicidade de linguagens em colaboração com um repertórios próximos gera uma vitalidade do comum e produz uma comunidade de sentimentos em relação à cidade, na medida que instituem novos lugares, situações e acontecimentos inesperados e subvertem o que estava formalizado. Pode-se compreender que é essa dimensão festiva e múltipla dos eventos que tem a cidade como suporte – na escala material dos espaços livres e simbólica dos lugares de encontro – que potencializa a construção colaborativa dos espaços públicos. E por que trazer essas referências de outros territórios, que não de São Paulo? Acredito no potencial de deslocamento dos símbolos e imagens produzidos a partir das problemáticas locais, possibilitados principalmente pela existência das redes e das plataformas de comunicação virtual, presentes nas diversas realidades do mundo contemporâneo. Ao mesmo tempo, penso que o aspecto que aproxima essas práticas é o enfrentamento da cidade que mobilizam um certo lugar comum.



São Paulo são 12 milhões de cidades, 12 milhões de mapas sentimentais recortados pelas pequenas histórias de vida de seus habitantes. Cada homem comum tem a cidade que seus passos percorreram e que a sua imaginação inventou. (Maria Rita Kehl)




Oรกsis Madalena Angela Leon, 2012


Lugar São Paulo

A escolha da grande metrópole para análise das práticas urbanas alternativas foi definida a partir de uma inquietação pessoal e ao mesmo tempo da vontade de extrair um olhar mais otimista para a realidade da cidade. São Paulo, como já explorado no início deste texto, em Reflexão, é um território com ausência de lugares coumuns. Em sua dimensão metropolitana, a espacialidade do público quase não é possível, e a dimensão humana da troca e do encontro não está estabelecida. Olhando atualmente para as perspectivas alternativas sobre o espaço público que emergem do imaginário coletivo, a sensação é de retomada do sentido da convivência e da valorização da cidadania, o que a torna de certa forma inserida no contexto de euforia apresentado. No entanto, para entender de que forma a criação de imaginários urbanos e como novos projetos de apropriação do coletivo e do público tem transformado física e sensorialmente realidades existentes em São Paulo creio ser de fundamental importância fazer uma breve análise histórica e funcional desse fenômeno. Os coletivos de ação urbana, que atuam hoje na cidade, se apoiam em sua maioria em referências de intervenção que, como explicado anteriormente, perderam força no cenário da cidade após o fim da ditadura militar. André Mesquita, sociólogo, fez levantamento dessas experimentações coletivas sobre a cidade, na sua pesquisa Insurgênias Poéticas: Arte ativista e Ação Coletiva (2009) e apontou a retomada do movimento. O pesquisador afirma que essas experimentações e ações coletivas ressurgem em meados nos anos 1990 mas que se desenvolvem principalmente a partir da década seguinte, com um caráter ativista e horizontal, de construção de novos lugares urbanos e reocupação dos espaços públicos existentes22.

22 MESQUITA, 2009, p. 263


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Viaduto do Chá Melina Kuroiva, 2013

Em sua tese, o autor traz uma abordagem dessas experimentações pela sua proposição de intervenções diretas em situações políticas e nos fatos sociais do espaço urbano, na qual questiona quais as urgências que os coletivos de São Paulo tanto reivindicam. Ele relembra a publicação do número 116 da revista Parachute, de 2004, coordenada naquela edição pela psicanalista Suely Rolnik, que reúne um conjunto de ensaios acerca da produção de artistas e coletivos paulistanos em projetos de intervenção urbana inseridos no contexto sociopolítico da cidade. Em sua perspectiva há clareza da necessidade de se discutir os significados do encontro e da construção colaborativa de uma vida pública. Corroborando com essa perspectiva e ao mesmo tempo observando o cenário atual de São Paulo, entendo as atuações desses coletivos, como uma tentativa de ressignificação de espaços públicos-comuns, com mudanças na sua lógica de utilidade e re-imaginação das fronteiras existentes. Institucionalmente, a partir de 2012, é possível perceber mudanças no discurso dos responsáveis pela gestão da cidade. A atual organização das secretarias e departamentos, que discutem desenvolvimento urbano e gestão da cidade, está juntando forças para tentar diagnosticar e dar início ao processo de melhoria efetiva de São Paulo em suas diversas problemáticas, diante de vontades de seus habitantes. A efetivação do substitutivo do Plano Diretor, que estava parado nas gestões anteriores e cujo processo de redação pautou-se na relevância do diálogo com a população, pretende apontar novas alternativas para crescimento e construção da cidade. Esse parece ser um dos pontos mais instigantes da mudança de posicionamento político da gestão da cidade: a tentativa de aproximação por meio da comunicação e da abertura de processos participativos claros, através de novos progra93


mas. Há previsão da participação popular nas decisões e conselhos de representantes de bairros e subprefeituras, que desenvolvem poderes locais, minipúblicos e direcionam maior atenção ao comum dos microterritórios da cidade. Plataformas de comunicação online também foram criadas. O Gestão Urbana SP, por exemplo, é um canal online desenvolvido pela Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano e se configura como uma plataforma de informações sobre os projetos em andamento, documentos e leis, agenda de atividades e ferramentas de participação. Nele é possível dar sugestões aos projetos em andamento, avaliar e comentar propostas que podem auxiliar na definição de estratégias de intervenção nos espaços da cidade. Essas posturas permitem afirmar que a gestão atual do município parece estar mesmo atenta à importância do bem estar urbano pensando em uma São Paulo com uma dimensão humana mais bem calculada, com mais possibilidades de encontros. A agenda pública se evidencia neste sentido também. Nos últimos 10 anos, eventos já consolidados como a Virada Cultural, o Festival Baixo Centro retomam a vontade coletiva de ocupação da cidade e de partilha de seus espaços. A Virada Cultural é organizada desde 2005, pela Secretaria Municipal da Cultura, com uma programação de 24 horas ininterruptas de eventos culturais, shows, peças de teatro, intervenções urbanas, exposições, espalhados pelo centro da cidade e pela rede CEU. O evento foi inspirado na Nuit Blanche de Paris, que agita anualmente a capital francesa, com atrações que seguem madrugada adentro. A ideia de trocar arte e experiências urbanas pela madrugada se espalhou por mais de 120 cidades no mundo inteiro e tem, a cada ano, novas adesões. Em São Paulo, com contornos superlativos e participação de boa parte da população, a Virada se consolidou nas suas últimas edições 94


Virada Cultural, Anhagabaú, 2013 / Viradinha Praça Roosevelt 2014


Intervenções no Festival Baixo Centro, 2013


como evento público mais importante da cidade, e é positivamente visto pela qualidade de sua programação e pela sua contribuição à ocupação do centro, tão esvaziado no seu cotidiano. É na Virada Cultural que se passeia, se percorre, se observa e se apropria das ruas do centro. É possível ver uma multidão muito diferente da multidão nos metrôs e trens nos horários de pico ou da multidão que consome na Rua 25 de Março às vésperas do Natal. Sua quase tradição é inspiradora para ação sobre a cidade o ano todo e para o entendimento de que São Paulo comporta, sim, um respiro para o encontro e a troca de experiências artísticas, urbanas e humanas. Evidentemente, por ser um evento que acontece uma vez ao ano, não dá conta de enfrentar nem de resolver as distâncias e conflitos que separam paulistanos, condenando-os no dia a dia a experiências tão restritas e limitadas de urbanidade. O BaixoCentro é um festival de rua independente que se consolidou após uma vontade coletiva dos moradores e frequentadores dos bairros em torno do Minhocão de reativar os espaços daquela região da capital, compreendendo os bairros de Santa Cecília, Vila Buarque, Campos Elísios, Barra Funda e Luz. Organizado por uma rede aberta de produtores e interessados, o festival se configura hoje como uma forma de ocupação coletiva auto-gestionada que busca ocupar as ruas da região com práticas artísticas e ações táticas. Diferentemente da Virada Cultural, ele é totalmente autofinaciado por meio de crowdfunding e outras formas independentes de arrecadação (leilão, rifa, doações) e todo processo organizativo e produtivo é feito de forma aberta e livre. BaixoCentro se configura hoje como uma grande plataforma de encontro dos coletivos em São Paulo, pois as reuniões para sua realização alimentam e fortalecem os nós da rede de pessoas envolvidas nas práticas pela cidade. 97


Paralelamente aos dois festivais, registro a relevância da última edição da Bienal Internacional de Arquitetura que de forma particular me influenciou nos caminhos que escolhi percorrer para realização dos estudos deste trabalho. Na sua 10a edição, em 2013, o evento deu conta - enfim - de evidenciar a mais desejada pauta: a cidade. Depois de edições um pouco fracassadas no sentido de discussão da relação entre arquitetura e espaços urbanos (uma série de salões de exposição de projetos com apresentações em formato tradicional, de caráter propositivo inexistente, o que levou a perda de prestígio do evento), uma equipe jovem de colaboradores do IAB-SP abraçou a missão com a convicção de que os arquitetos não poderiam se ausentar da discussão pública do momento de revisão do papel das cidades. Sob curadoria de Guilherme Wisnik e curadoria adjunta de Ana Luíza Nobre e Lígia Nobre, a bienal Cidade: Modos de Fazer, Modos de Usar se moldou com o objetivo de retomar o caminho da real participação da arquitetura na produção dos espaços da cidade, e trouxe à tona a discussão contemporânea sobre mobilidade, densidade, qualificação do espaço público e infraestrutura urbana, expondo e discutindo diferentes maneiras de usar/fazer cidade. Em um engajamento quase idealista do grupo que juntou capacidades e energias para produzí-la, mesmo com dificuldades na captação de recursos, a edição foi das melhores já realizadas, e pareceu ao menos em partes ter conseguido realizar os objetivos traçados. O instigante dessa vez, foi a proposta de apresentar essas discussões se apropriando efetivamente do território da cidade, tirando o evento de uma sede única, e localizando-o verdadeiramente na cidade. Ao espalhar os módulos expositivos em diferentes lugares, criou-se uma rede em que se envolveram muitas instituições e pessoas, o que potencializou as discussões pretendidas e promoveu experiências urbanas singulares. A inspiração pareceu ter 98


sido a dos festivais culturais, em que múltiplos acontecimentos são disparados simultaneamente, procurando engajar diversos níveis da vida urbana. Um de seus módulos esteve inteiramente dedicado à compilação das práticas colaborativas sobre a cidade que apontam novos modos de agir – nos planos individual e coletivo – e propõe iniciativas concretas e tangíveis. A exposição, denominada Work in progress - Modos de colaborar, esteve montada no Sesc Pompeia e se colocou como uma plataforma que reuniu “iniciativas que reinventam presentes com distintas ferramentas e estratégias, incluindo trabalhos em redes, tecnologias, ativismo urbano, representações poéticas, publicações, edifícios, hortas comunitárias, design de serviços públicos, inserções urbanas e ações políticas.”23 A experiência pessoal desse módulo possibilitou alcançar conhecimento daquilo que estava sendo proposto por pequenos coletivos em São Paulo e permitiu aproximações com coletivos latino-americanos, amplificando o campo de visão sobre o que se pretendia pesquisar. Pude encontrar diversos exemplos de ações em várias escalas do ambiente urbano, desde ações para tapar buracos nas calçadas do projeto Curativos Urbanos; passando pela escala do objeto como o projeto Bicicletas Ambiente, que utilizou esse tipo de transporte como instrumento de pesquisa das microeconomias em regiões da cidade para a coleta de resíduos orgânicos e reciclagem para transformação em adubo para hortas urbanas; até propostas de maior escala como do coletivo equatoriano Al Borde, que junto com o NACCO de São Paulo propôs a construção de uma ponte de pedestres na Cidade Tiradentes para acesso ao Centro de Formação Cultural. Nas oficinas propostas, a Amplifica Pompeia promovida pela Bienal em parceria com a Parsons School of Design de Nova York teve boa 99

23 Trecho da apresentação do módulo Modos de Colaborar. Monolito 17, p123, 2013


Oficina Amplifica Pompeia na X Bienal de Arquitetura, 2013 / Como Virar sua Cidade no CCSP / A Batata Precisa de VocĂŞ, 2014


adesão dos moradores do bairro. Propunha-se um mapeamento colaborativo de ações que acontecem no bairro da Pompeia que transformam pequenos lugares. Foi intessante entender como um microterritório da cidade – o bairro – concentra forças produtivas e criativas que permitem tranformar espaços em favor do bem estar urbano e convívio comum. Uma oficina no bairro do Bixiga foi proposta pelos arquitetos do coletivo latinoamericano Supersudaca, junto com o coletivo Vazio S/A, de Belo Horizonte, e pretendia refletir sobre as possibilidades de transformação urbana da área a partir do projeto Copa da Cultura promovido pelo Teatro Oficina e Ze Celso. Essas parcerias ocorridas nas oficinas, discussões e wokshops durante a Bienal, sob o enfoque da reflexão sobre a cidade, demostraram a atualidade do tema do fazer cidade por nós mesmos. Foi sintomático, ao menos sob ponto de vista pessoal, que outras intervenções tenham acontecido neste período. Expedições urbanas com aulas de história pelos bairros de São Paulo promovidas pelo coletivo SampaPé, ou descobertas da rede hidrográfica coberta pelas avenidas da cidade proposta pelo Rios e Ruas, saídas fotográficas ou percursos sensoriais por lugares da cidade, como a metafórica ação Penetrável Genet estruturada no cemitério do Araçá, resignificaram os percursos diários e paisagens comuns da cidade. Nesse ambiente de manifestação do imaginário urbano, propostas de ocupação de praças abandonadas, caminhadas que atravessam lugares incomuns, picnics coletivos no metrô, ocupação da Praça Roosevelt com rodas de discussão multitemáticas, colaboração para construção de hortas urbanas e a própria ocupação do Minhocão que teve até piscina olímpica instalada como um convite a um banho coletivo fizeram parte de eventos promovidos por pessoas interessadas em discutir novas maneiras de pensar o urbano contemporâneo. 101


Paralelamente à programação da bienal, muitos seminários importantes com a temática do urbanismo e realidades urbanas contemporâneas suscitaram o tema que aqui debato. O Ideas City (New Museum, Estados Unidos), o Nós Brasil! We Brasil! (Instituto Goethe, Alemanha), o Track Changes (The New Institute, Holanda), para citar alguns, foram inspiradores para compreensão da re-decodificaçao das cidades a partir de intervenções colaborativas e para entender a importância destas na discussão dos espaços urbanos. O encontro Como Virar Sua Cidade, ocorrido no CCSP, reuniu grupos ativos de São Paulo para construção de manuais e ferramentas educativas e divulgação dessas ações que acontecem quase que silenciosamente nos vários bairros da cidade, viabilizando seu espraiamento e contaminação. Os sintomas de necessidade de ação continuaram. O coletivo Acupuntura Urbana tomou frente do Projeto Coruja, que propunha reativar as margens do córrego das Corujas na Vila Madalena por meio da construção colaborativa de um parque linear. A intenção do projeto era de que a comunidade fizesse parte de todo o processo de reconstrução do parque, com oficinas de permacultura e construção de mobiliários com reaproveitamento de materiais existentes. E deu certo. Hoje o parque está lá, ativado pelas pessoas que o frequentam. Logicamente, as ações situadas nesse eixo da cidade tem maior facilidade de encontrar seu lugar na mídia e, portanto, de conseguir financiamento para sua efetivação mais rapidamente. No entanto, não são menos importantes sob ponto de vista de mudança de cultura urbana e estímulo à ocupação dos espaços da cidade. Mais recentemente, pude encontrar a continuidade dessa discussão nas intervenções feitas por grupos que acreditam nessa ativação colaborativa da cidade. Desde início de 2014, o Largo da Batata – que teve 102


seu projeto urbanístico inaugurado no ano anterior, notadamente caracterizado pela ausência de dimensão humana de convívio ou convite à permanência – está sendo ocupado por pessoas interessadas em transformar a atmosfera árida do local e retomar a vida diversificada que um dia lhe foi inerente. Oficinas de montagem de bancos, ateliers de costura, de dança, de corte de cabelo e outras propostas de atividades coletivas fizeram parte de todas as sexta-feiras do ano de 2014. A iniciativa, batizada de A Batata Precisa de Você, fortaleceu a rede de pessoas que atuam na região e estabeleceu o Largo como plataforma local para encontros, ação e discussão urbana. Outros movimentos recentes, dessa vez resistentes ao processo de especulação imobiliária e com vontades de lutar pela existência de espaços comuns e áreas verdes na cidade, podem ser citados, como os do Parque Minhocão e o do Parque Augusta. Por meio de reuniões e ações locais, esses movimentos fortalecem, com suas particularidades e vontades próprias, as microresistências ao processo atual de privatização - no sentido de privar o usufruto livre - da cidade. Fora do eixo cultural-midiático centro-oeste, podemos encontrar em São Paulo mais exemplos de coletivos, centros de cultura e grupos interessados em intervir na cidade com a mesma lógica, a partir de um imaginário novo. Na zona leste, por exemplo, o Ateliê Azu atua no bairro Vila Santa Inês, em Ermelino Matarazzo, transformando a paisagem local com oficinas e aplicação de azulejos pintados utilizando a técnica da cerâmica artesanal. Pensado para transformar a paisagem da periferia de modo colaboirativo, parece contribuir com o desenvolvimento sociocultural local e com a reflexão sobre o espaço público urbano, como extensão e vizinhança. Suas ações valorizam ocupações do bairro, batizam os espaços comuns e nomeiam lugares púlicos res103


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Buraco da Minhoca Viaduto Radial Leste, 2014

significando-os por meio da arte. Outros tantos centros culturais na periferia reativam lugares e fortalecem a discussão da importância de se ocupar e de se criar uma noção de pertencimento ao urbano. A partir deste panorama de ações e evidencias de um movimento alternativo que busca apropriar-se da cidade, entendo que uma rede de colaboração está se construindo aos poucos, assim como parecem tomar vida as plataformas para discussão desses trabalhos. E para finalizar essa discussão, registro que sob ponto de vista institucional, parece haver uma crescente preocupação em dialogar com esses movimentos e ações. Um exemplo efetivo dessa preocupação foi a recente publicação do Manual para Construção de Parklets, no mês de maio de 2014. O Parklet é uma intervenção urbana temporária que ocupa vagas de carros e amplia as áreas de convívio das calçadas. Ter essa ferramenta disponível em meio as políticas públicas traz a possibilidade de influenciar a qualidade de vida das pessoas e de a identificação de potencialidades de mudança no modo como os espaços urbanos são ocupados e hierarquizados. Além do canal colaborativo SampaCriativa, criado e disponibilizado na internet no ano passado e que reuniu propostas cidadãs de transformação social e espacial da cidade, no primeiro semestre de 2014 a Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania de São Paulo produziu o documentário RUA!. Com direção de Tatá Amaral, o projeto pretendia levantar a discussão sobre a dimensão do espaço público na cidade de São Paulo, trazendo entrevistas e imagens de como ele é apropriado e potencializado por pessoas que dele se utilizam.

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Equipamento extraordinรกrio Basurama, Virada Cultural, 2014


Prática Coletivos

Para respaldar o entendimento do papel das ações urbanas emergentes na construção de imagens simbólicas e transformações espaciais no âmbito da cidade de São Paulo e como essas ações corroboram para a discussão da importância dos espaços públicos comuns, neste capítulo apresento alguns coletivos, selecionados para compor esse estudo de forma específica. Em suas experiências, estabelecem ações diretamente nos espaços públicos da cidade e trabalham necessariamente nessa microescala do urbano, transformando e resignificando esses espaços. Mas parece ser justamente a natureza espontânea e critica desses coletivos urbanos emergentes de São Paulo, capazes de extenuar questões inerentes à metrópole, que os caracterizam como transformadores de realidades sociais. São eles: Basurama, Contrafilé e Muda_coletivo. A exposição desses coletivos se pauta em uma reflexão sobre o modo como suas intervenções e ações são imaginadas para o espaço da cidade – diante do que existe, diante das fronteiras visíveis e invisíveis que a todo momento colidem com nossas urgências em transformar o lugar em que vivemos. Os casos foram selecionados com base em critérios básicos que delimitaram o perfil dos coletivos para efeitos desse estudo. Primeiramente pelo tempo de atuação em São Paulo, entre 2005-2014, e que coincide com o período em que conheço e vivo na cidade. Em seguida, pela proximidade pessoal com suas ações e pelo foco que dão na transformação dos espaços construídos. Todos eles, de alguma maneira, se tocam e conversam, pois entre si partilharam algumas experiências que propuseram na cidade. O entendimento da estrutura de trabalho também foi importante para esta seleção, principalmente após as leituras de como se dá o trabalho dos coletivos na Espanha. Busquei, a partir delas, analisar sua


formação e modos de atuação. Entendi que seu discurso especulativo se apoia principalmente no próprio modo de trabalho: estruturas horizontais, interação direta entre os envolvidos e seu caráter local, constituindo uma imagem sintomática e alternativa das relações entre produção do espaço e sociedade. Identifiquei que em seu planejamento de ações tratam de proposições descoladas de uma base política em seu sentido convencional, mas que se utilizam a ferramenta da criatividade e inovação como ferramentas dar forma e conteúdo crítico à elas. As considerações a respeito dos três casos que apresento aqui são frutos de um conjunto de observações pessoais acerca dessas experiências, de conversas informais com os envolvidos e de oficinas das quais participei em conjunto com eles. Ao observá-los identifiquei algumas características as quais enumero: INFRAESTRUTURA. Apoio em plataformas de trabalho alternativas; não estão estabelecidos fromalmente em um lugar ou espaço físico fixo; o espaço de reunião de trabalho é mutável, e na maioria das vezes estabelecido no próprio local da ação; INTERDISCIPLINARIDADE. Diversos atores para convergência da ação; normalmente há pessoas envolvidas de diferentes disciplinas no momento em que alimentam a discussão para o caminho a ser levado à ação; podem ser arquitetos, sociólogos, publicitários, pessoas ligadas a produção cultural, ou interssados em novos modos de produção de espaço e de economias. DISCURSO = MATERIALIDADE. Material social e estético das ações tem fonte ou vínculo nas contradições da cidade ou na própria questão que está sendo discutida; a ocupação do espaço público é portanto ao mesmo tempo discurso e plataforma da ação; 110


SÍMBOLO, RAPIDEZ. Prioridade nas ações de impacto e rápida apreensão; embora estejam focadas em transformação do construído, elas pretendem ser rápidas; sua potência está na oportunidade da intervenção e na imagem simbólica que têm como resultado; COLABORAÇÃO, PARTICIPAÇÃO. As ações podem ser efêmeras ou permanentes, em função do objeto final ou material utilizado; o valor de sua permanência está na sua construção, ou seja, no caráter particpativo e colaborativo que possibilita transformação dos corpos envolvidos; DIFUSÃO. O caráter local da ação não impede seu espraiamento; a integração da vizinhança e envolvimento de pessoas diferentes cataliza os microatores; ideia de contaminação é sempre buscada.

Essas características são analisadas a partir do levantamento das principais ações desenvolvidas pelos coletivos, as quais apresentarei por meio de fichamentos individuais. A base para tal são as entrevistas realizadas ao longo da pesquisa que configura um conjunto de relatos desde o histórico da formação dos grupos, o processo de trabalho que desenvolvem, a pauta que discutem para encaminhamento das ações, o campo e grau de atuação e suas maneiras de financianciamento. Em seguida, levanto evidências comuns encontradas no trabalho de cada um deles, frente a suas diferenças e particularidades do modo de agir sobre as questões que discutem.

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Basurama

ORIGEM

ETSAM, Madrid (2001)

AÇÃO SP

Desde 2007

PESSOAS

Miguel Míster, arquiteto Ángela León, designer

MATÉRIA

Lixo e resíduos urbanos

IMAGEM

Cidade lúdica, desejos urbanos

PROJETOS Publique sua Cidade O Lixo Não Existe A Bolha Imobiliária Parque de Diversões Minhocão A Cidade é para Brincar Equipamento Extraordinário Light My Playground

Nascido na Escola de Arquitetura de Madrid em 2001, o Basurama foi evoluindo adotando várias formas de trabalho desde sua origem. Se posiciona hoje como um grupo que pretende estudar os fenômenos inerentes da produção massiva do lixo real e virtual da sociedade de consumo, aportando novas visões que atuem como geradoras de pensamento e atitudes. No território da cidade, encontram resquícios desses processos de consumo que são os interrogantes sobre a forma de explorar, pensar, trabalhar e perceber a realidade. O resultado dessa busca se consolida em projetos de transformação de corpos na cidade mediante estratégias lúdicas e participativas. O coletivo funciona em qualquer lugar, segundo eles, pelo simples fato de que a basura é produzida em qualquer lugar do mundo contemporâneo. Em São Paulo, o Basurama mantém atividade de pesquisa e intervenção no espaço urbano desde 2007. O Lixo Não Existe se tornou a principal projeto na cidade. As ações deste projeto estão espalhadas em focos de ocupações informais principalmente na periferia da cidade. O projeto se divide em Brincos e Libreria de Tecnologias. Um Brinco é uma oficina colaborativa na qual Basurama ensina a criar brinquedos e equipamentos com a Libreria de Tecnologias. Num Brinco, a equipe de Basurama e os participantes caminham juntos nos


passos da criação: organizar a logística reversa para conseguir os resíduos no local, organizar um atelier temporal, aprender a utilizar as ferramentas, trabalhar com os distintos materiais, tinta e acabamentos e instalação dos equipamentos na destinação final. A Libreria de Tecnologias é uma ferramenta aberta e colaborativa, disponível para qualquer que queira criar seus próprios equipamentos de brincar. O projeto já aconteceu em muitas regiões da cidade: no Jardim Míriam, em Heliópolis e no Sacomã; no Jardim Keraluz, Ferraz de Vasconscelos e União Vila Nova; no Cingapura de Santana; em Perus, no Oásis da Vila Madalena, na Praça da Nascente, e na Praça do Aprendiz. Um desdobramento de O Lixo Não Existe ocorreu no Festival Baixo Centro em abril de 2013 e sem seguida, durante a Virada Cultural em maio do mesmo ano, com as ações Parque de Diversões Minhocão e A Cidade É Para Brincar, respectivamente. Com o discurso de que qualquer espaço da cidade pode se transformar em um playground quando há liberdade de uso dos espaços e pessoas querendo se divertir, no Minhocão foram instalados, com a colaboração dos moradores próximos, vários pneus amarrados sob a estrutura do viaduto, transformando-os balanços como os de uma praça. A ação contava com um protótipo de projeto, com instruções para a intervenção, por meio de manuais sintéticos, que permitia ser replicada em outros lugares para difusão da ideia de de um parque aberto e construído coletivamente. No Viaduto do Chá, um pouco depois, a ação foi replicada e o alcance da intervenção foi ainda maior. Embora não tenha participado dos Brincos, pude participar dos dois eventos nos Festivais. Muito interessante foi poder captar a recepção positiva das pessoas que passavam por ali. Sorrisos e conversas dos adultos e muita empolgação e felicidade das crianças, igualmente numa vontade de participar e brincar com a cidade. 114



conversa, 10/03/2014

Encontrei Ángela e Miguel na casa deles, no apartamento simpático de um predinho antigo de três andares no bairro de Santa Cecília. Espanhóis, de Madrid. Ele, arquiteto, ela, designer e ilustradora. São eles que formam a equipe fixa do Basurama aqui no Brasil. Logo na chegada, acompanhando o café, fui apresentada ao Guia Fantástico de São Paulo. Um projeto dos dois, e desenhos expressivos de Ângela, que foi pontapé inspirador para a nossa conversa que era: falar sobre a cidade. Iniciamos com o clichê da discussão de como é morar em São Paulo e viver a dualidade de angústias e ânimos que os fazem permanecer por aqui até agora. Questões muitas, mas a vontade de transformar o imaginário coletivo inexistente na cidade pareceu ser a grande força resistente que ainda dá a eles a vontade de trabalhar. Espaço público inutilizado, proibido, e o sentido do coletivo são os temas que se continuaram. Eles percebem que em São Paulo, aquilo que é bem comum é quase barrado, muitas vezes proibido. Angela – Os parques estão fechados, a praça com bancos e arvores com copas bonitas está fechada, mesmo com manutenção e cuidado que alguém da prefeitura faz. É muito maluco isso, pois ninguém está usando aqueles espaços mas alguém está cuidando dele (...) No Brasil, o imaginário da cidade parece estar se desvendando agora para seus habitantes.

Para eles, a discussão a respeito dos usos dos espaços urbanos está na pauta, pois o Brasil vive um momento de euforia. Sem julgar o caráter dessa euforia, mas admitindo que de fato ela existe, eles dizem que percebem uma vontade quase inconsciente de seus habitantes de mudar realidades e emergir o novo. Mister – Pudemos ver isso no ano de 2013, com o início da preparação 116


e reflexão para os eventos esportivos internacionais que chegam ao Brasil este ano, as manifestações contra aumento da tarifa e a ocupação da ruas de muitas cidades nas jornadas de junho. Muita discussão efêmera, sim. Mas euforia existiu e parece continuar. A cidade esteve presente como tema principal da Bienal, que participamos como expositores, ações e palestras no módulo Modos de Fazer, Modos de Usar, instalada no Sesc Pompéia, o centro cultural que mais admiramos na cidade. O Parque Minhocão foi um projeto que tinha várias intervenções. Uma delas realizamos na Praça da Amaral Gurgel, localizada aqui no bairro de Santa Cecília. É uma praça bem cuidada com muitas árvores, e por ordem do Metrô, é mantida fechada. Ali criamos uma narrativa convidando as pessoas a visitar o zoo da Praça, com mapa que alertava os perigos dos animais que ameaçam os espaços da cidade – personagens históricas que deveriam ser apagadas. A intervenção não durou muito, foi apreendida pelos funcionários do metrô em menos de duas horas. É triste como fecha-se um espaço público desse porte – para que não cause “problemas” para a vizinhança –, sendo que há potencial de ser usado de maneira democrática e saudável. Ainda mais perversa é a situação quando os próprios vizinhos, desaprovam a manutenção de um espaço aberto comunitário e de alguma forma depredam mobiliários ou equipamentos para não conviver com situações ruins – moradores de rua, noias, etc. A relação do espaço público brasileiro está muito deteriorada. Os conceitos de Jane Jacobs estão longe de acontecer aqui em São Paulo, parece. Lógico que a violência existe, em muitas escalas, principalmente na periferia e nas regiões mais pobres com ainda mais carência de espaço público. Angela – Na periferia, atuamos no projeto Parque para Brincar e Pensar, [proposta coordenada pelo coletivo Contrafilé, em 2011, no Jardim Miriam, zona sul de São Paulo]. O trabalho de longo prazo junto com a comunidade foi feito pelo coletivo e nos ajudamos com a construção do parque com o Lixo Não Existe. E foi aí que conhecemos melhor o contexto do Jardim Miriam, que deve ser igual a muitas outras comunidades. O espaço público não existe porque a situação é muito difícil, não é só questão de ter ou faltar de vontade da comunidade, mas por aspectos da violência muito forte. No centro da cidade parece ser mais fácil de trabalhar de certa maneira. 117


É mais fácil trabalhar no centro então? Mister – É e não é. As vezes é mais fácil uma intervenção na periferia, onde o espaço está mais livre, onde há menos disputa real pelo espaço físico e menos controle. Foi muito bacana a construção do parquinho que fizemos no assentamento do MST DomTomás, em Franco da Rocha que já tinha tido contato com pessoas do EPA! da FAU e da assesoria técnica do USINA, na construção das casas.

Como foi a experiência da Virada Cultural aqui em São Paulo? Mister – Chegamos muito por acaso na Virada de 2013. Já havíamos tentado fazer laguma coisa na Virada, levados outras propostas em anos anteriores, pois do ponto de vista do retorno financeiro é muito relevante. Mas nunca havíamos chegado na hora certa e falado com a pessoa certa. Já havíamos feito intervenção para outras viradas fora de SP, mas aqui não tinha rolado ainda. Mas antes de falar da Virada, queríamos apontar o que foi o Parque Minhocão, o maior parque de diversões da América Latina. O Parque Minhocão foi realizado durante o Festival Baixo Centro e tinha como papel interpretar os espaços existentes do elevado, dando um uso alternativo para esses espaços por meio de três intervenções: Balançar eu Adoro, Zoológico de Santa Cecília e as Fontes do Minhocão. A Fontes do Minhocão era uma intervenção mais ligada a água. Queríamos a participação dos moradores e vizinhos, que jogassem água desde mangueiras de suas varandas sobre o elevado, formando uma grande cachoeira em uma hora combinada. Só que, obviamente, não deu certo, por falta de comunicação com os moradores e falta de dinheiros para financiar todas aquelas mangueiras. E também neste dia choveu muito. Não houve mesmo recursos e a maneira como festival funciona, totalmente independente, sempre fica aquela dúvida se vai rolar o programado ou não, todo mundo chega sempre muito tarde... Com as coisas rolando devagar e tal.

E vocês tem contato direto com o pessoal do Baixo Centro? Angela – Sim. Somos muito amigos. Trabalhamos já há um tempo juntos, na mesma luta pelo espaço público acessível e para todos. E esse ano tem outro, com nossa participação em conjunto. Mas vou terminar de contar como foram as intervenções no Festival em 2013. Foi muito interessante! A gente fez o Balançar Eu Adoro e foi um su-

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cesso realmente incrível, lá na praça Marechal Deodoro. Foi a intervenção nossa mais bem sucedida de todas. As fotos do dia apareceu em um monte de jornais, e as pessoas que passavam por lá comentavam que estava bacana e tal. Falávamos do controle dos espaços na cidade, mas na verdade, aquele dia, a polícia deixou os balanços acontecerem. Não houve ninguém que estava por ali, que fazia manutenção da praça ou que passava pelo elevado, que passou para retirar ou verificar se as cordas realmente eram seguras. E na verdade, foi muito simples. Colocamos os balanço amarrados em corda desde o elevado para a Praça Marechal Deodoro, com assentos de pneus e tudo funcionou muito bem! Mister – Queria agora fazer o link desse momento com a Virada Cultural. Fizemos então essa intervenção em abril, foi sucesso! E quando estava chegando o momento de organizar a Virada Cultural, a Prefeitura de São Paulo, que com a nova gestão está bem mais aberta para acontecimentos inovadores e diferentes do que já se viu, abriu uma chamada pública e convidou o Baixo Centro, como quem diz, “oi Baixo Centro, vocês tem alguém interessado a participar da Virada este ano?” Essa abertura, a meu ver, foi maravilhosa! Principalmente sabendo que a intervenção no Festival Baixo Centro rolou e foi um sucesso mesmo sem recursos.

-Essa primeira conversa foi muito gostosa e em outras de suas ações ao longo deste ano, pude dar continuidade ao diálogo e às crenças que compartilhamos.

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Contrafilé

ORIGEM

São Paulo

AÇÃO SP

Desde 2001

PESSOAS Cibele Lucena, artista-educadora Joana Zatz, socióloga e jornalista Jerusa Messina, artista-educadora Fábio Invamoto (Peetssa) Rafael Leona, artista-educador MATÉRIA

Pre-existências urbanas

IMAGEM

Crítica situativa, transformação poética

PROJETOS Programa para a Descatracalização da Própria Vida A Rebelião das Crianças Cubo Parque para Brincar e Pensar Quintal

Formado no ano 2001, o Contrafilé é um grupo de investigação e produção de arte que trabalha a partir de sua experiência cotidiana na cidade de São Paulo. O grupo tem como foco lugares e espaços da rua, onde desenvolve trabalhos de intervenção pública misturando técnicas de performance, instalação, escultura e narrativas poéticas. O mais importante para eles é o estado, matéria ou situação propulsores das ações. Ou seja, desenvolvem suas ações a partir da a imersão em problemáticas situacionais. É daí que partem para entender e apoderar-se do sentido de construção de outros discursos e modos de vida urbana, criando com isso uma multiplicidade de formas, representações e soluções performáticas. Desde suas primeiras experimentações o Contrafilé atuou em projetos em parceria com outros coletivos tais como: Frente 3 de Fevereiro, Política do Impossível, EIA – Experiência Imersiva Ambiental, JAMAC – Jardim Miriam Arte Clube, Corposinalizante, BiJari, entre outros grupos e Pontos de Cultura. Esses encontros criativos com diferentes pessoas, coletivos e comunidades se consolidam em práticas críticas e ações educadoras daquilo que defendem.


Iniciaram seu processo de discussão acerca das realidades urbanas no fim da faculdade com intervenções pontuais críticas por meio de colagens táticas pelos muros, debates públicos na rua, ativação de pequenos espaços da cidade com objetos de encontro, cafés coletivos no centro, etc. Uma das grandes potências de sua prática frente à realidade da cidade se evidenciou com o projeto Programa de Descatracalização da Própria Vida, quando da instalação do Monumento à Catraca Invisível em um espaço público da cidade, em 2004. A ação foi resultado das conversas e depoimentos pessoais de moradores da Zona Leste desenvolvidas dentro do projeto Zona de Ação, no Sesc Itaquera, de onde se extraíram histórias, narrativas, experiências cotidianas diversas e inquietantes tendo a catraca como representante. Nessas conversas, oficializou-se a o símbolo do controle na cidade em situações visíveis e invisíveis. E, por meio dessa reflexão construída coletivamente, uma catraca velha foi instalada anonimamente em um pedestal no Largo do Arouche. A experiência simbólica desta ação gerou repercussões significativas na mídia no mesmo ano e foi fundamental para dar força ao trabalho do grupo nas ações que se seguiram. O Contrafilé percebeu o quanto o símbolo é importante para a contaminação social em relação às ideias que se pretende ativar com as intrervenções sobre o espaço da cidade24. Ao mesmo tempo que avançava na sua pesquisa sobre o papel da intervenção artística sobre o espaço urbano na tranformação de realidades socias, o grupo participava de performances urbanas, de ações artíticas em ocupações de moradia, e outros projetos de arte ativista com expressões visuais diversas que também resultaram na particpação de algumas exposições locais e internacionais de relevância.

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24 A função social da arte é transformar formas de represntar, de paresentar e simbolizar a realidade. Transformar as formas de pensar só faz sentido se a arte se inscreve no tecido social. A política e a arte não estão separadas uma da outra. O símbolo só tem potência política se tiver potência estética e vice-versa. (Joana Zatz)


Um importante processo de pesquisa artístico-reflexivo nomeado A Rebelião das Crianças foi iniciado em 2005, a partir de um olhar atento à grande rebelião que aconteceu no início do mesmo ano na Fundação para o Bem Estar do Menor (FEBEM). A reflexão tinha como objetivo a percepção da condição da criança como representante máximo do estado degenarativo da sociedade25. A pesquisa levou a um entendimemento de que o direito à uma cidade plena, como construção social permanente, só se realiza quando diferentes grupos e gerações dialogam e constroem juntos - ao imaginá-los e executá-los. Para tornar públicas essas reflexões, praticaram algumas experiências neste sentido. A primeira intervenção ocorreu no viaduto Okuhara Koei, a conexão entre a Avenida Paulista e a Avenida Dr. Arnaldo. Sob o viaduto, foi organizada uma Assembléia Publica de Olhares26 com os moradores e a ação final foi ativar o espaço, pendurando um balanço para uso daqueles que por ali passavam. Outras experiências no mesmo sentido continuaram ocorrendo. Os lugares escolhidos eram estratégicos: ao mesmo tempo que destacavam a situação que ali ocorria e todas as tensões que ela envolvia, criavam uma imagem visualmente inquietante. Para o grupo, buscava-se instaurar um território de existência no qual todos brincam juntos - tanto ao imaginar o brinquedo que irão construir como ao experimentá-lo. O Contrafilé envolveu esse trabalho, por meio de debates, criação de símbolos e utilização de linguagens artísticas, diversos teóricos, educadores, jovens e artistas que exercem papel de destaque nas situações analisadas pelo grupo. Em 2007, com a colaboração das pesquisadoras Conceição Paganele, Maurinete Lima e Suely Rolnik, a reflexão resultou em uma publicação/sistematização dessas reflexões e ações.

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25 Trecho de A Rebelião das Crianças, Contrafilé, 2007. 26 Assembleia Pública de Olhares é uma metodolgia construída pelo grupo Contrafilé para colocar em paura, junto a um coletivo mais amplo, sensações, reflexões a partir de exepriências cotidianas, a fim de construir um projeto comum de ação. É utilizada em todos os processos propostos pelo grupo.


parque para brincar e pensar

O Parque para Brincar e Pensar foi o mais importante projeto consequente da pesquisa A Rebelião das Crianças. Elegi ele aqui, pois se situa exatemente na transformação física de um espaço da cidade. Com desenvolvimento em 2011, ele foi pensado como um acontecimento: um processo de contrução e reflexão coletiva junto ao JAMAC e a Comunidade Brás de Abreu no bairro do Jardim Miriam na Grande São Paulo. Neste tempo-espaço, uma área abandonada no meio de uma favela (na qual a Eletropaulo colocou abaixo diversas casas para passar fios de alta tensão) foi sendo reapropriada pelas pessoas da comunidade. Um brinquedo gigante – com a escala da cidade – e outros pequenos brinquedos e jogos periféricos foram inventados, construídos e instalados, dentro de um processo criativo que, em si, segundo o grupo, foi um verdadeiro território de invenções. Para contrução desse imaginário coletivo, criou-se um grupo multiplicador constituído pelas pessoas da comunidade, integrantes do Contrafilé, pela Monica Nador e Mauro, pelo músico Cássio Martins e por jovens arquitetos da FAU, integrantes do mesmo grupo EPA! do qual participei em 2009. Aos poucos outros atores apareceram para contribuir com o processo colaborativo de trabalho, somando esforço físico, material e conceitual com a comunidade. Para o Contrafilé, a experiência da construção colaborativa do Parque, se apresentou como alternativa à cidade onde os espaços do comum e da fantasia estão desvalorizados e o jogo da convivência é regido pelo valor imobiliário do mercado. Da mesma forma, percebendo que as pessoas se vêem fora da possibilidade de se pensarem criadoras e gestoras de seu próprio ambiente, o Parque se apresentou como lugar possível para a elaboração de outra visão da realidade, onde cada um, como parte de um coletivo, foi responsável e criador de seu ecossistema. O Parque para Brincar e Pensar foi inaugurado no mesmo ano com uma bonita festa junina. Em 2013, ocorreu o Quintal, um desdobramento dessa experiência em parceria com as comunidades do Jardim dos Químicos e Vila Esperança, em São Bernardo do Campo. 124



conversa, 28/03/2014 Encontrei a Joana Zatz pela primeira vez no casarão da FAU, na Rua Maranhão. Formada em Ciências Socias na USP, ela estava em seu intervalo de uma das aulas teóricas para o doutorado que desenvolve sob orientação da professora Vera Pallamin. Como uma das integrantes do Contrafilé e do coletivo Política do Impossível27, se demonstrou muito curiosa por meu interesse pelo trabalho. Nos apresentamos e paramos para um café por ali mesmo. Fui preparada com algumas questões, após a leitura de sua tese de mestrado28 defendida em 2012, na qual analisa os processos de criação e impacto social das ações de alguns coletivos de São Paulo e Buenos Aires. O desenvolvimento da tese, ela mesmo pessoalmente apresenta, como resultado de seus 12 anos de trabalho junto à pessoas implicadas em refletir e agir para que vida adquira sentidos compartilhados mais amplos. Iniciamos com essa tema, e perguntei como ela havia encontrado esses caminhos alternativos para discussão urbana. Joana - O mais interessante do caminho que escolhi foi ter sido orientada pela professora Vera Pallamin, arquiteta. Nos conhecemos já há um tempo, no início dos anos 2000, quando ela fazia sua pesquisa sobre arte e começou a pedir uns materiais sobre o que estávamos fazendo. A catraca, a intervenção no Monumento às Bandeiras. Então ela que se aproximou da gente, e isso foi muito bacana. Ela nos chamou para fazer um grupo de estudos quando pude conhecer outros coletivos também através da pesquisa que ela estava preparando. Aí que conheci ela de verdade e aí que fez sentido eu fazer mestrado com ela e agora o doutorado. Mas quais são suas perguntas?

Meu foco é entender os coletivos, o papel deles na construção do espaços urbanos, não caracterizando seus tipos, mas entendendo como eles atuaram nos últimos anos. Como o Contrafilé começou?

do é universitário, mas que também passou pela ditadura. A experi-

27 O coletivo Política do Impossível - PI cria projetos de investigação e ação no espaço urbano que colocam participantes como ativos na dinâmica da cidade, contra sua perpetuação como espaço dissociado da vida, tomando visíveis possibilidades e desejos de transformação no sentido de criação de vida pública. In: Cidade Luz - Uma investigação-ação no centro de São Paulo. São Paulo: Funarte, 2008

ência da ditaura está inscrita no corpo desses jovens da minha gera-

28 MUSSI, 2012

O Contrafilé assim como os coletivos, da forma como pensamos hoje, que atuam no âmbito da arte, cidade e política, passam a estar presentes no final dos anos 1990, que é quando o neoliberalismo entra solapando o planeta. Então, é mais ou menos nessa época. Pode ser explicado assim: a ditadura termina mesmo em 1985; eu tenho 38 anos, e a minha geração tem 20 anos em 1995, época que todo mun-

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ção, tanto de memória concreta, até como no sentido subconsciente - que antes não sabíamos. Por exemplo, coisas que não sabíamos que eram resutados da ditadura militar, como as sensações de ter medo de atuar no espaço público. Isso é totalmente relacionado, e não era uma coisa consciente. Só depois que tomamos consciência dessas ausências. Principalmente pelo contato com outros coletivos. A conexão com o GAC, coletivo argentino, trouxe um pouco essa reflexão sobre a memória. A memória da ditadura militar na Argentina é muito forte. Primeiro porque o país é muito politizado, há um acúmulo histórico de tomada de consciência. Nessa época, os jovens de lá já estavam com o pensamento formado acerca dessas resistências. Lembrar sobre o que aconteceu, sobre traumas, é uma postura política para não permitir que isso ocorra novamente, entendendo como isso ainda reverbera hoje. Então, um primeiro passo da formação dos coletivos foi politizar e tomar conciência dessas situações, libertando o corpo para ação no espaço social.

Qual era a preocupação de vocês no momento do surgimento de suas ações, no ínicio do trabalho? Os grupos não tiveram muito uma forma objetiva de atuar no inicio. A forma como começou veio mais de uma urgência de se libertar o corpo para a ação sobre o espaço público, frente a situação pós ditaura. Num espaço público que não é só material, mas também social. O corpo angustia. E o que posso fazer para organizar essa angustia em um pesamento enquano ação política. O Colectivo Situaciones da Argentina, por exemplo, é um coletivo de pensamentos. Eles tem milhares de pubnlicações maravilhosas, sobre espaço público, ação na cidade, arte. E em um dos textos que publicam, eles utilizam um termo que é politizar a tristeza, que pode ser entendido na questão: como transformar uma angústia em uma urgência? Como transformar algo que é individual, pessoal, intimo e entender que isso é uma questão coletiva, comum e que pode ser inscrita no espaço como probelma? A chave do início dos coletivos é essa. Não foi uma questão formal, foi uma questão política. Foi a busca por uma resposta à essa negação da atuação do corpo sobre a cidade, portanto uma questão também micropolítica. A vontade passou a ser entender a cidade como matéria-prima, não como suporte para ação dessas vontades, mas como escala visível e invisível de embate e de conflito. A relação do corpo, enquanto pensamento, tentando entender uma problemática dada na cidade, passa a atuar nessas múltiplas escalas. 127


E quais são essas formas de fazer e agir sobre a cidade? As formas são múltiplas, e são acionadas a partir do que é necessário. Então, não é a catraca, o lambe-lambe, a instalação, uma performance. A forma é aquilo que for necessário, aquilo que é mais preciso para transformação do espaço público, porque ela tem a ver com tática. Quando você politiza uma questão, que parece ser apenas de um grupo pequeno ou um corpo coletivo, esse esforço de politizar essa questão e enteder que talvez ela possa abranger uma relação maior, é que é válido como forma. E aqui, é importante entender que Coletivo é aquele corpo que se faz público. Não é o Coletivo como moda, mas aquele que propõe politizar uma questão de fato. David Harvey fala sobre isso quando aciona o Don Mitchell, em A Liberadade da Cidade: só é possível reclamar o espaço público no público. Não dá para inventar espaço publico comum, se você não estiver inscrito nele. A ação da criação do comum ela deve ser em si, comum. É impossível você criar a vida pública e a vida comum dentro de casa. Então é nesse sentido que nascem os coletivos. Nasceram de uma angústia comum. O Contrafilé pelos estudantes do curso de Ciências Socias, assim como outros coletivos com um monte de gente dos cursos da escola de Arquitetura, como o BiJari, da Geografia, das Artes Visuais. Era uma mistura. E isso é uma outra questão desse tipo de fenômeno. Necessariamente ela supera as disciplinas. Ele é transversal. É um atravessamento.

Mas como o Contrafilé começou exatamente? Éramos um grupo de amigos que conversava sobre diversas questões. Ainda não tínhamos nomeado, pois dar nome é uma ação política. As angústias foram tomando forma. Nos reuníamos 2 ou 3 vezes na semana para discutir as questões daquele momento, ou o posicionamento da mídia frente a fatos sociais. Líamos jornal em conjunto, buscávamos outras informações e teorias e tentávamos entender várias coisas ao memso tempo, seus significados ou como que cada um se sentia frente a algumas situações urbanas. Pensávamos como, onde e de que forma se expressar. Passamos a sentir que nos conctávamos a partir dessas mesmas angústias, desse vazio. Experimentamos algumas ações sobre o espaço urbano, mas ainda eram experiências muito frágeis: stencils, cartazes ou outros tipo de linguagem questionavam algumas situações urbanas... A grande entrada do

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grupo nas ações sobre a cidade ocorreu na Bienal dos 500 anos, em 2001, que havia se posicionado como a grande celebração histórica do país, negando extermínios indígenas, escravidão ou quaisquer lutas inerentes à nossa existência. Alguns dos participantes estavam fazendo parte do curso de formação do educativo da Bienal. Tínhamos uma consciência corporal e não uma consciência intelectual crítica a respeito da exposição. E fora isso, naquele momento, se consolidou a entrada do neoliberlaismo no sitema cultural brasileiro e nas artes visuais. Foi bem simbólico sob este ponto de vista. Então tínhamos um fato: a Bienal dos 500 anos celebrando a entrada do neoliberalismo do Brasil, da relação construída entre cultura e mercado. E aí resolvemos agir. Fizemos um manifesto: “Chega de Mickey, 500 anos de Mito”. Foi aí que começaram de verdade as ações políticas. As ações seguintes caminharam nesta direção: entender uma ausência, a partir de uma situação que toca no corpo, e propor uma política, agindo do micropolítico para o macropolítico, ou vice-versa.

E o tempo que se seguiu, em meados do anos 2000 até o final da década? Como você entende o decorrer das ações pelo tempo? Acho que houve um boom do fim dos anos 1990 até o início dos anos 2000, que foi de ação. Mas tem uma coisa importante que caminha junto com o Contrafilé e outros coletivos que é a reflexão. O pensamento e a ação são totalmente conectados. Então, o entender o que está fazendo e propondo sobre realidades exsitentes se deu paralelamente às ações, mas se consolidou em seguida, com textos, exposições e publicações. Não apenas como manifestos, mas como entendimento intelectual, sistematizando as experiências e refletindo sobre elas. Até porque faz parte da compreensão estética, essa sistematização do pensamento. Neste nível que estamos falando, é muito importante tornar visível e sistematizar, pois isso também é criar uma dimensão política que está inserido em um território de pensamento. Publicar é criar uma imagem densa, na qual vários conhecimentos e disciplinas que se articulam: imagens gráficas, cartografias, textos, conversas transcritas. --

A conversa foi rápida, mas o encontro possibilitou o canal de abertura para a continuidade do diálogo acerca do posicionamento do grupo às questões do corpo intervindo na cidade. 129


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Muda_

ORIGEM

Escola da Cidade, São Paulo

AÇÃO SP

Desde 2012

PESSOAS Julia Pinto Marcella Arruda Naiara Abrahão Pedro Norberto MATÉRIA

Madeira, pallet, plástico, papel

IMAGEM

Mobiliário resignificando o espaço

PROJETOS Palletmob Papelação [In] depedência day Park[in] day Parque de Diversões do Minhocão Praxis_ Cidade Playground Objetos Temporários Sinta-se em casa

O Muda_, formado por um grupo de estudantes do curso de Arquitetura e Urbanismo da Escola da Cidade, nasceu a partir da vontade comum de transformar o ensino e a maneira como as pessoas se relacionam a cidade. Para o coletivo, as teorias estudadas e as práticas desevolvidas ao longo da graduação, na maioria das vezes não correspondem às realidades enfrentadas na cidade existente. Portanto, entendendo que uma reflexão alternativa sobre essas realidades se faz urgente, passam a propor novas maneiras de olhar e lidar com a vida urbana. Para tal, o grupo acredita ser fundamental o trabalho coletivo, no sentido de prática do comum, daquilo que sai da esfera pública e que engloba tudo e todos, preservando suas diferenças. Sua experiência sobre territórios e lugares da cidade se posiciona com um caráter experimental e provisório. As ações propostas não são permanentes em seus sentidos material ou físico, mas tentam atingir o sensível da discussão de determinada situação que é imposta ou escolhida. A ideia defendida pelo grupo é a de que a partir da intervenção, seja possível ativar uma reflexão crítica sobre aquilo que existe ou que é ausente. Ou seja, propciar a abertura de uma possibilidade de modificação


do que está dado, ou promover a ocupação de determinado espaço, a partir da reflexão daqueles que olharam ou participaram daquela ação. Na análise dos projetos realizados e propostos pelo grupo, evidencia-se um caráter lúdico que buscam enfatizar em cada momento da ação, desde sua concepção até o processo final. A construção participativa da ideia é um convite ao encontro de várias gerações que ativa e instiga a curiosidade de colaborar e integrar-se à cidade. Ao mesmo tempo todos os projetos são desenvolvidos pelo como projetos piloto. Sua criação deve possibilitar replicação em outras situações e outros lugares e devem ser publicados através de manuais para poderem ser apropriados como projetos coletivos possíveis. A prática do Muda_ é também multidisciplinar. Infatizam o ser coletivo por trabalharem conjuntamente com pessoas de outras disciplinas que não só a arquitetura. Colaboradores diversos realçam a transversalidade das ações e potencialidades porfissionais, dentre fotógrafos, geógrafos, catadores, sociólogos, artistas, advogados, etc. Algumas das ações foram realizadas em colaboração com o Basurama, com o qual o grupo mantém relacionamento afetivo muito grande. O projeto de uma arquitetura inflável que deu origem à Bolha Imobiliária, foi um deles. A ideia era chamar a atenção para a tensão existente cidade por conta da especulação, ao memso tempo que criar um momento de bricadeira a partir da espacialidade da bolha gigante. Esse projeto foi construído junto à Cooperativa de Catadores do Glicério, com materiais fornecidos por eles, e pôde ser levado e instalado em diversos ponto da cidade: minhocão, Parque Ibirapuera, Vila Mariana, em frente à ocupações de moradia no centro. A mesma colaboração ocorreu na ação Balançar Eu Adoro, ocorrida dentro de um projeto maior que foi Parque de Diversões do Minhocão, já apresentado aqui na entrevista com o Basurama. Para o grupo, a percepção resultante dessa ação foi que há ausência de espaços na cidade onde seja possível brincar e se divertir. Segundo eles, a Praça Marechal deodoro esteve ocupada o período todo que os balanços estiveram por lá, não porque o projeto tinha sido divulgado em determinada mídia, mas sim pela vontade emergente das pessoas que passavam por ali. 132



Uma prática importante foi a participação ativa na Ocupação Marconi do Movimento Moradia para Todos, situada na Rua Barão de Itapetininga no centro. Duas integrantes do coletivo residiram na ocupação durante alguns meses e procuraram entender quais eram as dinâmicas locais e realações afetivas estabelecidas dentro e fora da ocupação. A residência das estudantes ali repercutiu em ações colaborativas com os vizinhos e principalmente procurou ativar a relação dos moradores com o entorno, a partir de uma reflexão sobre microresistências e micropolíticas ali estabelecidas. A percepção do coletivo foi a de que, embora esteja positivamente localizada sob ponto de vista de acesso à infraestrutura pública, as relações além da vizinhança lhe são negadas. Entendido isso, as intervenções passaram a explorar a possibilidade de recriar e resignificar o convívio com o entorno, numa tentaiva de proporcionar aos moradores da ocupação um direito de experienciar, de suas maneiras, a cidade. Várias práticas com grupos pequenos ou maiores, estudantes, comunidades, e junto à outros coletivos, foram desenvolvidas ao longo de sua curta existência. A ideia sempre defendida pelo Muda_ é a de propciar possibilidades de reflexão, ocupação e aprendizado contínuo da cidade a partir da criação de microespacialidades urbanas temporárias, que tensionam o existente e desalienam do estado presente, propondo novos discursos. Ao mesmo tempo, buscaram sempre uma ação colaborativa, entendendo que as pessoas externalizarem aquilo que a elas fazem bem e dividem com outras pessoas aquilo que elas acreditam. Portanto, para eles, é urgente e deve ser constante, criar esses lugares imaginários, espaços de troca, de modo colaborativo, para que a interação entre pessoas e cidade se efetive e convivência coletiva não seja destruída.

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conversa, 03/04/2014 Encontrei a Marcella em um fim de tarde nos arredores da Escola da Cidade, em seu intervalo entre uma aula e outra. Ela é estudante do quinto ano de arquitetura e uma das criadoras do Muda_coletivo. Muito carinhosa, sentamos para a conversa que ocorreu, finamente, depois de trocas de emails e tantos desencontros. Iniciei apresentando o foco do trabalho e a maneira como pretendia abordar a pesquisa sobre os coletivos de ação urbana em São Paulo. Disse à ela que a conversa tinha como intuito conhecer de perto o Muda_ e, portanto seria legal apontar de tudo um pouco, desde o surgimento, as angústias vividas, as intenções propostas e como o grupo entende a importância das ações dos coletivos na cidade hoje e a rede que delas se estrutura ou não. E ela o fez. Marcella - Bom, acho que posso colaborar de 2 formas. Primeiro contando como foi a experiência com o MUDA, as ações que participamos através dele. Segundo, contando sobre o evento do ano passado que ajudei a organizar dentro da Virada Sustentável, o Como Virar Sua Cidade. A ideia foi justamente fortalecer a rede de coletivos que estavam pensando a transformação da cidade mas que muitos vezes não se comunicavam entre si. Então a ideia era: vamos potencializar essas ações articulando essas pessoas. Assim, organizamos no Centro Cultural São Paulo, uma exposição/seleção de vários tipos de trabalho, ou tecnologias como preferimos chamar, tentamos separar isso por áreas de atuação, por exemplo: agricultura urbana, mobiliário, articulação comunitária... E desde então, a gente continuou o trabalho da rede e fez uma ação disso na Zona Leste, agora no início de 2014 com esses vários coletivos. O MUDA começou em 2012, logo após o estopim de ideias que rolaram após uma palestra de um professor da ETH Zurich, aqui na Escola da Cidade. A palestra mostrou vários pavilhões e estruturas efêmeras que os alunos e professores estavam testando por lá. Isso nos levou a pensar a nossa produção de espaço como estudantes de arquitetura. A angústia de não estar em contato com a realidade diretamente, mas apenas estar numa discussão projetual sem tangibilizar a prática do projeto foi o que nos motivou naquele momento. Para nós, não adiantava pensar o projeto como algo finito e imutável. Devíamos trazer ele pro mais real e tangível, fortalecendo a relação de projeto-pessoas, 135


admitindo que a mudança de projeto e o processo e apropriação do projeto deve ser admissível. A diferença é que os trabalhos apresentados em Zurique levavam mais em conta uma experimentação de materiais e encontro de soluções. Aqui, pensamos em ir além disso e trazer a discussão inserida no contexto da cidade de São Paulo: pensar a carência de experimentação do espaço público pelas pessoas. Aqui ninguém se apropria. Ninguém cuida. É muito diferente nossa relação com aquilo que é de todos. A ideia que buscávamos neste início de discussão era de como, por meio da nossa ação de projeto, poderíamos criar e intensificar essas relações entre habitante e espaço público. E começar a especular por que que não existe esse sentimento de pertencimento com relação aos lugares da cidade. Então a primeira intervenção que a gente fez foi na Lapa no começo d 2012, em parceria com um movimento de moradores que chama Movimento Boa Praça. A organização, que existe há mais de 5 anos, tem como interesse cuidar e incentivar a apropriação de espaços verdes dos bairros da Lapa, Pompeia e Alto de Pinheiros, por meio de eventos que ocorrem uma vez por mês que tentam mudar a percepção dos moradores e vizinhos quanto aquele espaço coletivo. Não existe apropriação do espaço público porque o desenho dele não é convidativo e porque as pessoas também não se relacionam, aí o espaço não é experimentado e a relação com ele muito menos se consolida. Em uma atividade junto com os estudantes da Escola da Cidade, identificamos um canteiro de esquina da Rua Cerro Corá com a Av. Heitor Penteado. O espaço estava vazio, subutilizado, pela ribanceira que tem e pelo alto fluxo de veículos, e foi escolhido para ação coletiva dos estudantes junto com o Movimento Boa Praça. Em uma semana, montamos atividades com nossos colegas da Escola que começou com conhecimento da área, visitas, maquetes e discussão das possibilidades de intervenção. No fim de semana, faríamos a ação definitiva, a partir das ideias compartilhadas de melhoria do desenho do lugar para uma possível apropriação, mas principalmente levando em conta importância da construção coletiva e da participação de todos daquele objeto ou mobiliário que iria surgir. O resultado foi a construção de um mobiliário com paletes, conseguidos por de doação, numa tentativa de se virar com o que está disponível. O legal foi a ideia de construir juntos e de consolidar a relação daquilo que foi construído, criando laços de 136


confiança importantes de pertencimento àquele lugar, principalmente pela chegada de vizinhos e moradores do entorno que se interessaram pela ação e participaram da construção junto com a gente. A discussão naquele dia nos levou a pensar de que o espaço na cidade não é convidativo para a apropriação coletiva, e por isso não cuidamos e não enxergamos as possibilidades de usá-lo. E é lógico. Cuidamos da nossa casa, porque construímos cada espaço dentro dela e sabemos o que cada um deles significa, por isso elas são aconchegantes e convidativas. Daí a ideia de pertencimento. A relação da pessoas com suas casas é assim, pois nos preocupamos com cada espaço dela. Se construímos juntos, se participamos da ação, a ideia de pertencimento se consolida, aquilo passa a ser mais seu. Cria-se um vínculo muito mais profundo com os espaços da cidade. A intervenção que era para durar duas semanas. Durou dois meses, com gente usando. E os próprios moradores que foram parceiros da construção cuidavam do espaço. O que restou, após dois meses de uso foi levado para a Praça das Corujas para fazer adubo para uma horta que construíam lá. Esse foi nosso começo. Um tempo depois, no mesmo ano, fizemos o Park(in)Day, em frente à Escola. A ideia era trabalhar a possibilidade de ocupação das vagas destinadas a carros, como uma extensão da calçada ampliando o espaço de experiência coletiva e troca. Isso já havia sido feito em outra cidades pelo mundo e é uma ação bacana para extrapolar o comum do dia-a-dia nas cidades. As ideias que vieram surgindo em seguida, nos levaram a pensar que nossas experimentações deveriam ser como projetos piloto de uma coisa que poderia ser maior, e alcançar o replicável em outros lugares. Do ponto de vista de ações na cidade, pensamos elas como estratégias de novas leitura de cidade e ativação temporária dos espaços, já que as tecnologias que inventamos ou nos apropriamos se acabam, são efêmeras. A ativação de espaços não utilizados na cidade com um novo mobiliário, feito de material reaproveitado, é um exemplo dessas estratégias. Utilizar infraestruturas existentes na cidade, como viadutos e pendurar balanços por exemplos é uma outra estratégia de nova leitura dos espaços da cidade. Em alguns casos, a gente desenvolveu um processo de mapear nossa intervenções. E isso foi muito ineterssante. Fazer manual para que

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essa tecnologias fossem de fato difundidas e possíveis de ser reapropriadas e replicadas. Vira uma receita de bolo. Com os balanços do minhocão, isso aconteceu e uns amigos de Belo Horizonte fizeram lá só com o manual que publicamos. O potencial do efêmero é ser imagem que possa ser replicada, levantando a discussão e cutucando mesmo. Pois só a experência na cidade é que transforma as pessoas e a própria cidade. É participar das manifestações de junho, por exemplo, e perceber que andar no meio da Paulista, é sim muito legal quando não há carros em volta. O balançar no minhocão, o deitar numa praça para tomar sol... Por isso a potência das ações efêmeras, pois elas provocam, criam imagens novas e outros modos possíveis de cidade – e é barato é rápido e fácil. O problema das ações na cidade, sua contaminação, é que o grau de envolvimento, apropriação e atitude das pessoas quase não existe para a maioria.

No meio da fala da Marcella, chegou a Naiara, uma outra integrante do Muda. Ela não pode ficar, mas jogou uma crítica no ar que discutimos um pouco... Nairara – Duas coisas, construção colaborativa é uma mentira e método de participação também. A experiência como um todo, dos modelos e métodos participativos, que aconteceu na cidade de São Paulo, nenhuma deu certo. O que se construiu a partir de uma intervenção coletiva e colabirativa no espaço urbano da cidade? O que se criou foi uma indústia cultural que tem como plataforma o território da cidade, como Fora do Eixo em absoluto. Marcella – Para mim, o fica é imaterial. A construção coletiva é um processo. O impacto que essas ações tem na vida real não há como medir, não sei mesmo se é possível. Mas a especulação da validade das expeiências é mais imaterial que concreta. Naiara – Fica pra vocês discutirem mais pra frente.

Discordamos em partes. A Naiara teve que ir embora, mas de fato foi muito válido esse questionamento para entender até que ponto encarar as ações coletivas como essenciais. Dei continuidade às minhas outras curiosidades das ações do Muda e perguntei como tinha sido o processo na Ocupação Marconi. Marcella – Na Marconi, o que aconteceu foi um sonho de trabalhar com os moradores. Conheci a ocupação por meio de um workshop que fiz com o Breno Silva e seu projeto Ativador de Espacialidades 138


Temporárias. Pensamos na oficina que são as ocupações que estão nesse limiar entre o espaço privado e o o espaço coletivo, os lugares de grande potencial de ação. Aí eu conheci o Manutti, que é artista morador da ocupação, com quem compartilhei muitas lógicas e angústias e entendimento de mundo e vontades de atuação. Fui lá com a Naiara e descobrimos que dentro do prédio tem uma vida comunitária muito interessante. Aí pensamos que qualquer ação e intervenção com os moradores só faria sentido se entendessemos de fato a realidade do lugar. Nos propusemos então uma imersão total na ocupação e nos mudamos para lá onde vivemos por um mês. A ideia de viver ali era praticar o mesmo dia a dia dos vizinhos que estão inseridos na estética do possível: o de viver e ser criativo com os recursos que temos e solucionar os problemas com os materiais disponíveis. Embora tenha durado pouco tempo, aprendemos muito no com os moradores e entendemos a dinâmica da ocupação. Demos continuidade com a relaçñao com ele quando tentamos praticar novos exemplos de ação na cidade para que eles pudessem também se apro priar do público que lhe é sempre foi tão negado, mesmo ali no centro. A relação com o espaço público não exitia. Começamos a fazer eventos na rua, em frente, ali no calçadão da Barão de Itapetininga, pensando como podia se tornar a sala de estar da ocupação, que possibilitasse a atuação dos moradores no espaço que também é deles, os tornando iguais aos outros moradores da cidade que passam por aquele lugar. Uma delas foi o Café da Manhã na Rua, quando conseguimos levar um mesão lá pra baixo e a doação das padarias do bairro e algumas cadeiras emprestadaspara comer coletivamente. Outra foi o objeto urbano parte do Praxis_cidade, quando construímos junto às crianças da ocupação, um carrinho de passeio, ou para levar alimentos, que foi utilizado ali no calçadão também. A potência criada nessa sala de estar era a troca de realidades entre moradores da ocupação e os outrso habitantes da cidade, que em suas diferenças, poderiam encontrar as igualdades reveladas na ocupação do espaço público, tanto de dentro pra fora, como de fora pra dentro. A tentativa foi também de superar estigmas ao criar um momento comum, de convivência nas suas diferenças. Tem um professor meu que fala que a cidade é você se encontrar no outro. E é isso que a gente buscava. Por meio desses eventos, que desprograma as pessoas sobre espaço público, local por excelência que está aberto ao inesperado, poderíamos criar essas outras dinâmicas.

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Análise Evidências coletivas

Retomando a vontade inicial do trabalho de entender esse movimento coletivo que se forma na metrópole e suas interferências para criação de imaginários e novos projetos de cidade, analiso esses fenômenos com algumas das questões que balizaram seu desenvolvimento. Em São Paulo, avalio o porque de sua importância para a discussão contemporânea dos espaços na cidade, a partir da aproximação às práticas dos coletivos Basurama, Contrafilé e Muda. Os fatos apresentados por eles nas conversas expostas aqui foram de essencial importância para compreender sua maneira de agir sobre o território e modos de questionar aspectos da vida urbana. Nas ações propostas por cada um deles, fica evidente que a maneira como trabalham converge para um processo único entre si. Esse processo se configura em etapas de ação comuns que são essencialmente: refletir sobre determinada situação/tensão da cidade; evidenciar a tensão por meio de uma ação tática construída publicamente; e consolidar a ação com a ocupação do espaço urbano a fim gerar de novas experiências sensíveis e despertar consciência àquela tensão.

o processo

No momento da reflexão, o que acontece é a ativação de um outro modo de olhar para a cidade. Ou seja, quando agir e como agir solicita aos coletivos, antes de tudo, um processo de aproximação da realidade em que se quer trabalhar por meio de intuição e experimentação. Essa reflexão possibilita o olhar a cidade e uma compreensão mais clara entre espaço, tempo e relações. Entendem-se fatos situativos para além do que foi dado como informação primeira ou final, como por exemplo: refletir sobre o que pode estar acontecendo com os movimentos de moradia, ou as várias dimensões dos protestos nas ruas, ou as relações entre pessoas e o espaço público da cidade. É isso que os coletivos

a reflexão


aqui analisados assim como as demais ações pontuadas neste trabalho desenvolvem previamente. Em suas diferenças, os coletivos revelaram suas potências visíveis: os lugares transformados, a imagem criada pela ação, ou o objeto proposto naquele momento. O Basurama, com suas propostas lúdicas de criação de objetos com resíduos, tem a matéria física e o brincar como a grande imagem de suas ações sobre a cidade. O Contrafilé é situativo, pontual. Os problemas situados – as situações escolhidas para cada intervenção, tem como imagem a própria reflexão daquilo que pretendem evidenciar. Sua materialidade é mais variada. O Muda entende suas ações como pequenos projetos efêmeros que modificam determinados espaços visíveis e invisíveis. A imagem é a do objeto novo, ativador dos espaços em suas várias escalas.

potência visível a imagem

Nos três coletivos, no entanto, as imagens criadas são matéria e ao mesmo tempo discurso, que alimentam e evidenciam as ausências da cidade. Essas ausências estão essencialmente pautadas no espaço público. Por serem ausências coincidentes, é que a escolha dos coletivos se justifica neste trabalho. Esse espaço ausente, que também é espaço urbano, se coloca como o campo estratégico para construção do pensamento ou situação que dê conta do múltiplo e do comum. Pois é no espaço urbano em que ocorrem fluxos, circulações, mobilidade ampliadas, encontros e desencontros, fenômenos e realidades fundantes para a realização das ações.

o espaço público

Uma dimensão presente em todos os três trabalhos, é a da brincadeira. O brincar, para os coletivos analisados, é entendido como prática. Para mim é também metáfora bastante saudável para o rompimento de segregações espaciais, sociais e geracionais. Várias das práticas de-

o brincar

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senvolvidas no território da cidade, constituem uma busca por experimentar a cidade como campo de ação, de possibilidades criadoras, onde podem ser reinscritas as histórias cotidianas. A cidade, a partir dessas práticas, se constitui um grande parque, lugar de brincadeiras que, apesar de divertidas, revelam-se como muito sérias na medida em que ora questionam, ora evidenciam as relações sociais sobre o urbano e a nós mesmos. A potência invisível de cada trabalho está na transformação de mentalidade das pessoas através da possibilidade da experiência. Essa experiência é proposta ativa e ocorre, em todos os casos estudados, como proposta sobre o espaço público. É o modo como buscam criar essa nova experência de território, a partir do simbólico, que potencializa a transformação e a tomada de consciência. Entendi que é possível, somente a partir da experiência, a criação de novos personagens e a reinvenção do espaço-social. Ou seja, transformar mentalidades e fazer mais pessoas conscientes da dimensão comum, coletiva e humana dos espaços da cidade.

potência invisível a experiência

Ao mesmo tempo, a potência das ações se completa com a possibilidade da circulação desses imaginários construídos. Entendo que, quando alcançam representação, os trabalhos podem adquirir vida própria e serem multiplicados em outros meios e contextos distintos da ação inicial. Por meio de protótipos de transformação do espaço urbano, contribuem para construção social de outras formas de pensar e agir sobre o espaço da cidade.

a circulação

Quanto ao conceito do próprio fazer coletivo, apresentado no trabalho com suas várias dimensões e localidades, hoje se torna fundamental repensar o próprio conceito de sociedade. Novas relações sociais

o fazer coletivo

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se concretizam, múltiplas e transversais, já que elas contemporaneamente se fazem em rede, conexão e movimento. Além disso, a obsolescência programada do trabalho desses coletivos se mostra como algo supreendentemente necessário e livre de conotação negativa, a partir do momento em que permite diferenciá-los de outros tipos de associações formais menos transformadoras. Como evidenciado pelas experiências na Espanha e pelos relatos dos coletivos estudados, trabalhar com outros e em rede – além da tranversalidade de várias disciplinas que contribuem entre si nas suas competências – possibilita que a intervenção urbana que ali surja seja parte de uma experiência comunicatica que se despegue de ser apenas do entorno imediato para se concretizar em um cenário cotidiano mais amplo. A possibilidade de divulgação por meio de plataformas online, igualmente à vontade de alguns grupos e indivíduos em organizar, registrar a ação, criar manuais para replicação de ações são fundamentais para a corroborar para essa circulação de práticas urbanas. Em São Paulo, é provável que muitas intervenções artísticas na cidade se percam rapidamente em seus fluxos. Mas acredito que esse fato não impede de maneira alguma que os coletivos de ação urbana chamem a atenção para suas questões ao agir taticamente em situações de conflito. O que pude perceber é que a circulação se faz pesente, mesmo que de forma inicial, a partir da constatação de que uma rede de coletivos existe e se conhece entre si, como exposto neste trabalho. Essa existência garante a abertura de uma plataforma de dicussão em diversos níveis e contribui para a ideia de que os coletivos entendam que estão inseridos em um contexto mais amplo de ação sobre esse lugar comum com o qual podem partilhar e se apoiar entre si. 144


Em resumo, as práticas dos coletivos analisados, assim como as outras intervenções sobre o espaço público das cidades pontuadas no trabalho são acontecimentos urbanos que, enquanto fatos empíricos experimentais, partem da informalidade ou do efêmero para transformar as realidades e realções existentes. Para mim, elas se configuram, portanto, como a transição para uma efetiva apropriação coletiva da cidade, nas potências visíveis e invisíveis que constroem para a cidade e pessoas. O fenômeno, da maneira como acredito, foi apresentado e discussão começada. No entanto, a conclusão que coloco aqui é inacabada, pois essas ações sobre a cidade – os imaginários emergentes, tal como esse tempo coletivo e sentimento do comum – a euforia, estão em permanente transformação.

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coletivos e outras referências

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Handmade Urbanism – www.handmadeurbanism.com Inteligencias Colectivas (Espanha) – www.inteligenciascolectivas.org/ Left Hand Rotation (Espanha) – www.lefthandrotation.com Lotes Vagos – http://lotevago.blogspot.com.br Micrópolis – www.micropolis.com.br Movimento Boa Praça – www.facebook.com/movimentoboapracaantigo MUDA_coletivo – www.facebook.com/MUDAcoletivo Paisaje Transversal (Barcelona) – www.paisajetransversal.com/ Partizanning (Rússia) – http://eng.partizaning.org Project for Public Spaces (Nova York) – www.pps.org Recetas Urbanas (Barcelona) – www.recetasurbanas.net Revista Contravento – http://contravento.tumblr.com Revista Pise a Grama – http://piseagrama.org Rios e Ruas – http://rioseruas.com Sampa Criativa – www.sampacriativa.com.br SampaPé – www.sampape.com.br Supersudaca (Chile) – http://supersudaca.org The Social Life of Small Urban Spaces – http://vimeo.com/6821934 Think Commons – http://thinkcommons.org TXP (Espanha) – www.todoporlapraxis.es Urban Tactics (França) – www.urbantactics.org/home.html UrbanThinkTank (Caracas, São Paulo, NY, Zurich) – www.u-tt.com Urbano humano (Colômbia) – http://urbanohumano.org Vapor324 – www.vapor324.com Vazio S/A – www.vazio.com.br VIC (Madrid) – www.viveroiniciativasciudadanas.net 300.000 Km (Barcelona) – www.300000kms.net 149



Agradeço aos coletivos entrevistados, em especial ao Mister, Angela, Marcella e Joana, por me inspirarem pela generosidade, poesia e potência de seus trabalhos para a cidade e para as pessoas. À Ana Barone, por ter acompanhado a jornada inicial deste trabalho e ao Jorge Bassani, por aceitar o convite e ter me conduzido no momento principal desta caminhada. Aos meus pais, pelos valores ensinados e por continuarem sendo minha essência, ainda que com a saudade. À Sâmia, pelo amor e energia diários. Aos amigos André, Bernardo, Caio, Leo e Leila, pela companhia, conversas e alegrias neste último ano. À Anelise, à Camila, ao João e à Selma, por serem minha família por aqui, pelo aprendizado em conjunto na FAU e por dividirem durante esses 6 anos, as lições de viver a cidade. E ao Kim, pela companha, crítica, cuidado e, simplesmente, pela vontade constante de me fazer imaginar.




fontes: garamond e univers papel: polen bold 90g junho de 2014



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