Universidade do Sul de Santa Catarina
Ciência Criminal Disciplina na modalidade a distância
Palhoça UnisulVirtual 2011
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Reitor Unisul Ailton Nazareno Soares Vice-Reitor Sebastião Salésio Heerdt Chefe de Gabinete da Reitoria Willian Máximo Pró-Reitora Acadêmica Miriam de Fátima Bora Rosa Pró-Reitor de Administração Fabian Martins de Castro Pró-Reitor de Ensino Mauri Luiz Heerdt Campus Universitário de Tubarão Diretora Milene Pacheco Kindermann Campus Universitário da Grande Florianópolis Diretor Hércules Nunes de Araújo Campus Universitário UnisulVirtual Diretora Jucimara Roesler Equipe UnisulVirtual Diretora Adjunta Patrícia Alberton
Secretaria Executiva e Cerimonial Jackson Schuelter Wiggers (Coord.) Marcelo Fraiberg Machado Tenille Catarina Assessoria de Assuntos Internacionais Murilo Matos Mendonça Assessoria de Relação com Poder Público e Forças Armadas Adenir Siqueira Viana Walter Félix Cardoso Junior Assessoria DAD - Disciplinas a Distância Patrícia da Silva Meneghel (Coord.) Carlos Alberto Areias Cláudia Berh V. da Silva Conceição Aparecida Kindermann Luiz Fernando Meneghel Renata Souza de A. Subtil Assessoria de Inovação e Qualidade de EAD Denia Falcão de Bittencourt (Coord) Andrea Ouriques Balbinot Carmen Maria Cipriani Pandini Iris de Sousa Barros Assessoria de Tecnologia Osmar de Oliveira Braz Júnior (Coord.) Felipe Jacson de Freitas Jefferson Amorin Oliveira Phelipe Luiz Winter da Silva Priscila da Silva Rodrigo Battistotti Pimpão Tamara Bruna Ferreira da Silva
Coordenação Cursos Coordenadores de UNA Diva Marília Flemming Marciel Evangelista Catâneo Roberto Iunskovski
Assistente e Auxiliar de Coordenação Maria de Fátima Martins (Assistente) Fabiana Lange Patricio Tânia Regina Goularte Waltemann Ana Denise Goularte de Souza Coordenadores Graduação Adriano Sérgio da Cunha Aloísio José Rodrigues Ana Luísa Mülbert Ana Paula R. Pacheco Arthur Beck Neto Bernardino José da Silva Catia Melissa S. Rodrigues Charles Cesconetto Diva Marília Flemming Fabiano Ceretta José Carlos da Silva Junior Horácio Dutra Mello Itamar Pedro Bevilaqua Jairo Afonso Henkes Janaína Baeta Neves Jardel Mendes Vieira Joel Irineu Lohn Jorge Alexandre N. Cardoso José Carlos N. Oliveira José Gabriel da Silva José Humberto D. Toledo Joseane Borges de Miranda Luciana Manfroi Luiz G. Buchmann Figueiredo Marciel Evangelista Catâneo Maria Cristina S. Veit Maria da Graça Poyer Mauro Faccioni Filho Moacir Fogaça Nélio Herzmann Onei Tadeu Dutra Patrícia Fontanella Rogério Santos da Costa Rosa Beatriz M. Pinheiro Tatiana Lee Marques Valnei Carlos Denardin Roberto Iunskovski Rose Clér Beche Rodrigo Nunes Lunardelli Sergio Sell Coordenadores Pós-Graduação Aloisio Rodrigues Bernardino José da Silva Carmen Maria Cipriani Pandini Daniela Ernani Monteiro Will Giovani de Paula Karla Leonora Nunes Leticia Cristina Barbosa Luiz Otávio Botelho Lento Rogério Santos da Costa Roberto Iunskovski Thiago Coelho Soares Vera Regina N. Schuhmacher Gerência Administração Acadêmica Angelita Marçal Flores (Gerente) Fernanda Farias Secretaria de Ensino a Distância Samara Josten Flores (Secretária de Ensino) Giane dos Passos (Secretária Acadêmica) Adenir Soares Júnior Alessandro Alves da Silva Andréa Luci Mandira Cristina Mara Schauffert Djeime Sammer Bortolotti Douglas Silveira Evilym Melo Livramento Fabiano Silva Michels Fabricio Botelho Espíndola Felipe Wronski Henrique Gisele Terezinha Cardoso Ferreira Indyanara Ramos Janaina Conceição Jorge Luiz Vilhar Malaquias Juliana Broering Martins
Luana Borges da Silva Luana Tarsila Hellmann Luíza Koing Zumblick Maria José Rossetti Marilene de Fátima Capeleto Patricia A. Pereira de Carvalho Paulo Lisboa Cordeiro Paulo Mauricio Silveira Bubalo Rosângela Mara Siegel Simone Torres de Oliveira Vanessa Pereira Santos Metzker Vanilda Liordina Heerdt Gestão Documental Lamuniê Souza (Coord.) Clair Maria Cardoso Daniel Lucas de Medeiros Eduardo Rodrigues Guilherme Henrique Koerich Josiane Leal Marília Locks Fernandes
Gerência Administrativa e Financeira Renato André Luz (Gerente) Ana Luise Wehrle Anderson Zandré Prudêncio Daniel Contessa Lisboa Naiara Jeremias da Rocha Rafael Bourdot Back Thais Helena Bonetti Valmir Venício Inácio
Gerência de Ensino, Pesquisa e Extensão Moacir Heerdt (Gerente) Aracelli Araldi
Elaboração de Projeto e Reconhecimento de Curso Diane Dal Mago Vanderlei Brasil Francielle Arruda Rampelotte Extensão Maria Cristina Veit (Coord.) Pesquisa Daniela E. M. Will (Coord. PUIP, PUIC, PIBIC) Mauro Faccioni Filho(Coord. Nuvem) Pós-Graduação Anelise Leal Vieira Cubas (Coord.) Biblioteca Salete Cecília e Souza (Coord.) Paula Sanhudo da Silva Renan Felipe Cascaes
Gestão Docente e Discente Enzo de Oliveira Moreira (Coord.)
Capacitação e Assessoria ao Docente Simone Zigunovas (Capacitação) Alessandra de Oliveira (Assessoria) Adriana Silveira Alexandre Wagner da Rocha Elaine Cristiane Surian Juliana Cardoso Esmeraldino Maria Lina Moratelli Prado Fabiana Pereira Tutoria e Suporte Claudia Noemi Nascimento (Líder) Anderson da Silveira (Líder) Ednéia Araujo Alberto (Líder) Maria Eugênia F. Celeghin (Líder) Andreza Talles Cascais Daniela Cassol Peres Débora Cristina Silveira Francine Cardoso da Silva Joice de Castro Peres Karla F. Wisniewski Desengrini Maria Aparecida Teixeira Mayara de Oliveira Bastos Patrícia de Souza Amorim Schenon Souza Preto
Gerência de Desenho e Desenvolvimento de Materiais Didáticos Márcia Loch (Gerente)
Desenho Educacional Cristina Klipp de Oliveira (Coord. Grad./DAD) Silvana Souza da Cruz (Coord. Pós/Ext.) Aline Cassol Daga Ana Cláudia Taú Carmelita Schulze Carolina Hoeller da Silva Boeing Eloísa Machado Seemann Flavia Lumi Matuzawa Gislaine Martins Isabel Zoldan da Veiga Rambo Jaqueline de Souza Tartari João Marcos de Souza Alves Leandro Romanó Bamberg Letícia Laurindo de Bonfim Lygia Pereira Lis Airê Fogolari Luiz Henrique Milani Queriquelli Marina Melhado Gomes da Silva Marina Cabeda Egger Moellwald Melina de La Barrera Ayres Michele Antunes Corrêa Nágila Hinckel Pâmella Rocha Flores da Silva Rafael Araújo Saldanha Roberta de Fátima Martins Roseli Aparecida Rocha Moterle Sabrina Bleicher Sabrina Paula Soares Scaranto Viviane Bastos Acessibilidade Vanessa de Andrade Manoel (Coord.) Letícia Regiane Da Silva Tobal Mariella Gloria Rodrigues Avaliação da aprendizagem Geovania Japiassu Martins (Coord.) Gabriella Araújo Souza Esteves Jaqueline Cardozo Polla Thayanny Aparecida B.da Conceição
Jeferson Pandolfo Karine Augusta Zanoni Marcia Luz de Oliveira Assuntos Jurídicos Bruno Lucion Roso Marketing Estratégico Rafael Bavaresco Bongiolo Portal e Comunicação Catia Melissa Silveira Rodrigues Andreia Drewes Luiz Felipe Buchmann Figueiredo Marcelo Barcelos Rafael Pessi
Gerência de Produção
Arthur Emmanuel F. Silveira (Gerente) Francini Ferreira Dias Design Visual Pedro Paulo Alves Teixeira (Coord.) Adriana Ferreira dos Santos Alex Sandro Xavier Alice Demaria Silva Anne Cristyne Pereira Cristiano Neri Gonçalves Ribeiro Daiana Ferreira Cassanego Diogo Rafael da Silva Edison Rodrigo Valim Frederico Trilha Higor Ghisi Luciano Jordana Paula Schulka Marcelo Neri da Silva Nelson Rosa Oberdan Porto Leal Piantino Patrícia Fragnani de Morais Multimídia Sérgio Giron (Coord.) Dandara Lemos Reynaldo Cleber Magri Fernando Gustav Soares Lima Conferência (e-OLA) Carla Fabiana Feltrin Raimundo (Coord.) Bruno Augusto Zunino
Gerência de Logística
Produção Industrial Marcelo Bittencourt (Coord.)
Logísitca de Materiais Carlos Eduardo D. da Silva (Coord.) Abraao do Nascimento Germano Bruna Maciel Fernando Sardão da Silva Fylippy Margino dos Santos Guilherme Lentz Marlon Eliseu Pereira Pablo Varela da Silveira Rubens Amorim Yslann David Melo Cordeiro
Gerência Serviço de Atenção Integral ao Acadêmico
Jeferson Cassiano A. da Costa (Gerente)
Avaliações Presenciais Graciele M. Lindenmayr (Coord.) Ana Paula de Andrade Angelica Cristina Gollo Cristilaine Medeiros Daiana Cristina Bortolotti Delano Pinheiro Gomes Edson Martins Rosa Junior Fernando Steimbach Fernando Oliveira Santos Lisdeise Nunes Felipe Marcelo Ramos Marcio Ventura Osni Jose Seidler Junior Thais Bortolotti
Gerência de Marketing Fabiano Ceretta (Gerente)
Relacionamento com o Mercado Eliza Bianchini Dallanhol Locks Relacionamento com Polos Presenciais Alex Fabiano Wehrle (Coord.)
Maria Isabel Aragon (Gerente) André Luiz Portes Carolina Dias Damasceno Cleide Inácio Goulart Seeman Francielle Fernandes Holdrin Milet Brandão Jenniffer Camargo Juliana Cardoso da Silva Jonatas Collaço de Souza Juliana Elen Tizian Kamilla Rosa Maurício dos Santos Augusto Maycon de Sousa Candido Monique Napoli Ribeiro Nidia de Jesus Moraes Orivaldo Carli da Silva Junior Priscilla Geovana Pagani Sabrina Mari Kawano Gonçalves Scheila Cristina Martins Taize Muller Tatiane Crestani Trentin Vanessa Trindade
Giovani de Paula
Ciência Criminal Livro didático
Design instrucional Alvaro Roberto Dias
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Copyright © UnisulVirtual 2011 Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida por qualquer meio sem a prévia autorização desta instituição.
Edição – Livro Didático Professor Conteudista Giovani de Paula Design Instrucional Alvaro Roberto Dias Projeto Gráfico e Capa Equipe UnisulVirtual Diagramação Alice Demaria Silva Revisão B2B
341.59 P34 Paula, Giovani de Ciências criminais : livro didático / Giovani de Paula ; design instrucional Alvaro Roberto Dias ; [assistente acadêmico Eloisa Machado Seemann]. – Palhoça : UnisulVirtual, 2011. 157 p. : il. ; 28 cm. Inclui bibliografia.
1. Criminologia. 2. Violência. 3. Segurança pública. I. Dias, Alvaro Roberto. II. Seemann, Eloisa Machado. III. Título.
Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Universitária da Unisul
Sumário Apresentação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7 Palavras do professor. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .9 Plano de estudo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11 UNIDADE 1 - Ciências Criminais e Criminologia: Conceito e campo de atuação. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15 UNIDADE 2 - Violência, Controle Social e Sistema Penitenciário . . . . . . . . . 47 UNIDADE 3 - Sistema de Justiça Criminal. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 81 UNIDADE 4 - Segurança Pública: atuação do Estado e da sociedade na promoção da pacificação social . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 119 Para concluir o estudo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 145 Referências. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 147 Sobre o professor conteudista. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 151 Respostas e comentários das atividades de autoavaliação. . . . . . . . . . . . . . 153 Biblioteca Virtual. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 157
Apresentação Este livro didático corresponde à disciplina Ciência Criminal. O material foi elaborado visando a uma aprendizagem autônoma e aborda conteúdos especialmente selecionados e relacionados à sua área de formação. Ao adotar uma linguagem didática e dialógica, objetivamos facilitar seu estudo a distância, proporcionando condições favoráveis às múltiplas interações e a um aprendizado contextualizado e eficaz. Lembre-se que sua caminhada, nesta disciplina, será acompanhada e monitorada constantemente pelo Sistema Tutorial da UnisulVirtual, por isso a “distância” fica caracterizada somente na modalidade de ensino que você optou para sua formação, pois na relação de aprendizagem professores e instituição estarão sempre conectados com você. Então, sempre que sentir necessidade entre em contato; você tem à disposição diversas ferramentas e canais de acesso tais como: telefone, e-mail e o Espaço Unisul Virtual de Aprendizagem, que é o canal mais recomendado, pois tudo o que for enviado e recebido fica registrado para seu maior controle e comodidade. Nossa equipe técnica e pedagógica terá o maior prazer em lhe atender, pois sua aprendizagem é o nosso principal objetivo.
Bom estudo e sucesso! Equipe UnisulVirtual.
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Palavras do professor Prezados alunos, Estamos iniciando uma nova jornada de estudos diretamente relacionada às Ciências Criminais. O estudo da disciplina Ciência Criminal é muito importante para o exame e avaliação das principais causas da violência, da criminalidade, dos processos de exclusão e criminalização, das atribuições dos órgãos integrantes do sistema de justiça criminal, (com destaque para o sistema de segurança pública e sistema penitenciário), das formas e métodos de reinserção social dos apenados. Além disso, estabelece um olhar para as reais funções do sistema penal nas sociedades contemporâneas, que se atêm à questão do controle social como medida visando a ordem pública e a convivência pacífica e cidadã entre as pessoas. Nesse sentido, os indicativos e algumas experiências sobre o enfrentamento à violência e à criminalidade têm demonstrado que programas e estratégias de segurança baseados numa articulação que envolva várias organizações - estado, sociedade, entidades privadas e cidadãos – têm sido muito mais efetivos como resposta ao problema. Isso porque a questão não está restrita à segurança pública, mas compreende a necessidade de atuação em outras áreas, como a saúde, educação, assistência social, planejamento urbano e questões sistêmicas como o problema da desigualdade, acessibilidade e da má distribuição de renda. Ao longo da disciplina, pretende-se construir uma percepção crítica sobre o fenômeno da violência, que aponte para novas políticas de controle e de prevenção e que não estejam restritas apenas ao crime e às penas, pois o novo desafio que aparece frente às instituições que atuam na promoção de segurança
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e de manutenção da ordem pública não é o de trabalhar mais somente com situações definidas como “fato crime”, mas sim com problemas e conflitos no sentido de diminuir as taxas da criminalização, impulsionar ações de (re)inserção social e promover um realinhamento com a sociedade na promoção incessante da paz social. Por fim, espera-se que estes estudos e saberes possibilitem novas reflexões sobre a importância do sistema de justiça criminal numa sociedade democrática e baseada em valores de solidariedade e de cooperação na resolução dos problemas - dos individuais aos comunitários - minimizando a necessidade de uma intervenção repressiva, e caso esta seja necessária, que ocorra na medida exata do restabelecimento dos vínculos para uma convivência segura e cidadã!
Bons estudos!
Plano de estudo O plano de estudos visa a orientá-lo no desenvolvimento da disciplina. Ele possui elementos que o ajudarão a conhecer o contexto da disciplina e a organizar o seu tempo de estudos. O processo de ensino e aprendizagem na UnisulVirtual leva em conta instrumentos que se articulam e se complementam, portanto, a construção de competências se dá sobre a articulação de metodologias e por meio das diversas formas de ação/mediação. São elementos desse processo:
o livro didático;
o Espaço UnisulVirtual de Aprendizagem (EVA);
as atividades de avaliação (a distância, presenciais e de autoavaliação); o Sistema Tutorial.
Ementa Campo da criminologia. Cena atual da Criminologia. Causas da criminalidade. Análise do sistema penitenciário. Formas e métodos de ressocialização. Personalidade do delinquente. Análise biológica e social do crime e do criminoso. Vitimologia. Modalidades de controle e pacificação social. O sistema de justiça criminal; Modelos de processo penal; Polícia, Ministério Público, Poder Judiciário e advogados.
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Objetivos Geral A disciplina tem por objetivo geral apresentar os fundamentos da Ciência Criminal mediante uma perspectiva crítica, transformadora e interdisciplinar, levando-o a compreender a Criminologia, enquanto ciência, as origens e funções das estruturas integrantes do Sistema de Justiça Criminal, com destaque ao Sistema de Segurança Pública.
Específicos
Conhecer a legislação pertinente à Justiça Criminal. Relacionar conhecimento teórico e conhecimento empírico, mostrando a realidade do sistema de controle social do país. Apontar novas perspectivas para a promoção da paz social, de forma a contribuir para a formação de agentes potencialmente difusores da cidadania e de transformação social.
Carga Horária A carga horária total da disciplina é 60 horas-aula.
Conteúdo programático/objetivos Veja, a seguir, as unidades que compõem o livro didático desta disciplina e os seus respectivos objetivos. Estes se referem aos resultados que você deverá alcançar ao final de uma etapa de estudo. Os objetivos de cada unidade definem o conjunto de conhecimentos que você deverá possuir para o desenvolvimento de habilidades e competências necessárias à sua formação. Unidades de estudo: 4 12
Ciência Criminal
Unidade 1: Ciências Criminais e Criminologia: Conceito e campo de atuação Conhecer a Criminologia enquanto ciência do âmbito criminal, seus aspectos históricos e como fundamento para a compreensão do Sistema Penal e das Estruturas de controle dominantes. Conhecer a evolução do pensamento criminológico e suas principais correntes. Conhecer as tendências da criminologia na contemporaneidade. Compreender a importância da disciplina “Criminologia” para as Ciências Criminais e para as atividades de segurança pública.
Unidade 2: O Sistema de Justiça Criminal Conhecer as estruturas que compõe o sistema de justiça criminal. Compreender o papel das estruturas do sistema de justiça criminal num Estado Democrático de Direito. Conhecer o Sistema de Segurança Pública no Brasil, suas atribuições, competências e formas de atuação diante dos novos cenários de violência.
Unidade 3: Violência, Controle Social e Sistema Penitenciário Compreender o fenômeno da violência, da criminalidade e da criminalização. Conhecer as formas de controle social em nossa sociedade e suas bases de sustentação. Conhecer o sistema penitenciário e sua função: da declarada à real.
Unidade 4: Segurança Pública: atuação do Estado e da sociedade na promoção da pacificação social Compreender a responsabilidade das estruturas de segurança e da sociedade na promoção da pacificação social. Conhecer as políticas de segurança pública no Brasil. Avaliar as políticas públicas no enfrentamento à violência e à criminalidade.
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Agenda de atividades/ Cronograma
Verifique com atenção o EVA, organize-se para acessar periodicamente a sala da disciplina. O sucesso nos seus estudos depende da priorização do tempo para a leitura, da realização de análises e sínteses do conteúdo e da interação com os seus colegas e professor. Não perca os prazos das atividades. Registre no espaço a seguir as datas com base no cronograma da disciplina disponibilizado no EVA. Use o quadro para agendar e programar as atividades relativas ao desenvolvimento da disciplina.
Atividades obrigatórias
Demais atividades (registro pessoal)
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unidade 1
Ciências Criminais e Criminologia: Conceito e campo de atuação Objetivos de aprendizagem
Compreender a importância da disciplina “Criminologia” para as Ciências Criminais e conhecer a Criminologia enquanto ciência do âmbito criminal nos seus aspectos históricos.
Entender a criminologia como fundamento para a compreensão do Sistema Penal e das Estruturas de Controle Dominantes.
Conhecer a evolução do pensamento criminológico e suas principais correntes.
Conhecer as tendências da criminologia na contemporaneidade.
Seções de estudo Seção 1
As Ciências Criminais
Seção 2
A Criminologia
Seção 3
Criminologia e Segurança Pública
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Para início de estudo Liberdade, segurança e democracia são temas que cada vez mais têm dominado a pauta dos debates nas sociedades contemporâneas. Com as transformações sociais e tecnológicas, a contemporaneidade trouxe também como herança a necessidade de um conjunto de atuações capazes de fazer frente às mais variadas expressões de violência que afligem a todos - do contexto local ao global - o que exige novas análises e estudos que permitam a compreensão teórico-empírica dos fenômenos, com destaque para os conflitos, as ameaças e os riscos comprometedores da construção da paz social e da convivência cidadã. Nesse sentido, iremos abordar, nessa primeira unidade de estudos, a conjuntura das ciências criminais e sua importância para dar suporte para ações no âmbito da segurança num Estado Democrático de Direito. Conheceremos o pensamento criminal a partir do movimento iluminista (cujas correntes foram denominadas de “Escolas Criminais”), destacando o surgimento da Criminologia enquanto ciência, seus conceitos, evolução e perspectivas na busca de desvendar a questão do “crime” e seus múltiplos aspectos. Por fim, estabeleceremos as correlações existentes entre os estudos da Criminologia e o Sistema de Justiça Criminal, de forma que se perceba o papel do Sistema Penal e das Estruturas de Controle Dominantes, do legal ao real, em nossa sociedade. Bom início de jornada, de novas reflexões e de estudos!
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Ciência Criminal
Seção 1 – A Ciência Criminal “Conhecer os crimes, refletir sobre eles, refletir sobre a ordem jurídica, eis como se pode construir uma ordem pública, construir uma convivência social boa, facilitando o trabalho da polícia e concorrendo eficazmente para a prevenção da criminalidade.” Carlos Magno Nazareth Cerqueira
As ciências criminais abrangem estudos que visam a compreensão da violência - com destaque para o fenômeno do crime e sua complexidade - e das respostas que a sociedade e o Estado vêm buscando no sentido de preveni-la ou reduzir seus efeitos para a convivência pacífica e cidadã entre as pessoas. Possui um caráter interdisciplinar e multifacetado na medida em que recorre e interage com as ciências, destacadamente a criminologia, envolvendo ainda o direito penal e processual penal, a psiquiatria, a antropologia, a sociologia, a ciência política e a filosofia, cujas problemáticas convergem para o interesse comum de compreensão dos conflitos em nossa sociedade.
O desenvolvimento nas mais variadas áreas das ciências - com novas formas de “pensar”, de “conhecer”, e de “agir” - aliado às novas tecnologias se incorporam ao cotidiano das pessoas, e ensejam a necessidade de adequação dos instrumentos do Estado no sentido de que novas formas de governança possam assegurar o exercício da liberdade, da igualdade e da cidadania, num cenário do local ao global de integração e paz social.
A ciência criminal tem um papel relevante nesse contexto, de análise, pesquisas e estudos sobre a violência, pois se trata de um problema mundial e que vem acompanhando a trajetória histórica da humanidade em busca da “civilização” e do ideário utópico da “paz social” - razão pela qual auxilia na compreensão da vida em sociedade e dos conflitos em seus aspectos mais fundamentais. As exigências por mais segurança têm dominado os debates, num momento em que os instrumentos jurídicos de regulação Unidade 1
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social no âmbito penal não têm surtido os necessários efeitos de manutenção da ordem pública, o que tem levado à necessidade de revisão das políticas criminais que não fiquem somente no plano punitivo, mas que permitam outras formas de intervenção nos conflitos em que predominem valores constitucionais na proteção dos bens jurídicos individuais e supra-individuais. Cabe elucidar que “ordem pública” compreende o seguinte: [...] conjunto de regras formais, que emanam do ordenamento jurídico da Nação, tendo por escopo regular as relações sociais de todos os níveis, do interesse público, estabelecendo um clima de convivência harmoniosa e pacífica, fiscalizado pelo Poder de Polícia, e constituindo uma situação ou condição que conduza ao bem comum. (Art. 2°, inciso 21 do Dec. Fed. Nº 88777/83)
Por mediação entende-se toda a intervenção que vise a composição de conflitos entre partes que possuem interesses antagônicos, buscando soluções possíveis construídas pelos envolvidos, de maneira que ocorra um acordo consensual e pacífico. Na judicialização, o Estado se apropria dos conflitos e dita as regras, havendo, via de regra, sempre um ganhador e um perdedor, sendo que na esfera criminal, a resposta tem sido a criminalização.
Estudos apontam que a insuficiência da atuação do Estado em outras áreas de atendimento às necessidades humanas (como educação, saúde, lazer, promoção social, infraestrutura urbana), tem levado à busca de mediação pela judicialização dos conflitos, em que a ciência criminal e a via punitiva têm servido como maior esteio. O campo de atuação da ciência criminal abrange a dogmática penal, a política criminal e a criminologia, que tem como objetivo a defesa do Estado, da sociedade e do cidadão, visando prevenir a prática de atos que impliquem em violência. A Dogmática Penal compreende o Direito Penal e o Direito Processual Penal, que apresentam limitações ao exercício das liberdades individuais e coletivas em nome da convivência pacífica e manutenção da ordem pública. O Direito Penal, segundo Fernando Capez, É o segmento do ordenamento jurídico que detém a função de selecionar os comportamentos humanos mais graves e perniciosos à coletividade, capazes de colocar em
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risco valores fundamentais para a convivência social, e descrevê-los como infrações penais, cominando-lhes, em consequência, as respectivas sanções, além de estabelecer todas as regras complementares e gerais necessárias à sua correta e justa aplicação. (CAPEZ, 2008, p. 1)
Assim, sempre que houver um ato atentatório contra os bens mais importantes da vida em sociedade, o Direito Penal se apresenta como o instrumento do Estado para a segurança das relações sociais pela via da aplicação de sanções, em que a pena é o meio de satisfação da justiça para aquele que transgride, visando não apenas a punição pelo mal causado, mas sua recuperação social. Ocorre que, muito embora haja a necessidade do Direito Penal como recurso para a preservação do bem comum, atualmente o sistema de direito penal está em crise. Conforme Heleno Claúdio Fragoso: Põe-se em dúvida o efeito preventivo do sistema punitivo, e sabe-se que não é possível emendar o criminoso através da pena. Verifica-se que a prisão necessariamente avilta, deforma a personalidade e corrompe o condenado. O exame da administração da justiça criminal revelou que o sistema funciona de forma seletiva, profundamente injusta e opressiva. Há evidente incongruência entre as aparências do magistério punitivo e suas dramáticas realidades. (FRAGOSO, 2008, p. 5)
Muito embora o sistema penal esteja em crise, ainda assim ele se apresenta como um meio de justiça em razão de sua função ético-social de não apenas punir quem transgride, mas também de proteger os bens e valores necessários à vida em sociedade (tais como a vida, a saúde, a propriedade, a liberdade, a dignidade e o meio ambiente). O Código Penal e as leis penais esparsas, como a Lei de Tóxicos, Lei de Proteção Ambiental, Lei Maria da Penha, Estatuto da Criança e do Adolescente, dentre outras, dão os contornos do Direito Penal em nosso país. Desse modo, o Direito Penal deve refletir os anseios sociais em torno do que é justo, refreando condutas que apresentem perigo ao convívio, e não um instrumento opressor em defesa do Estado, razão pela qual ampara-se em alguns princípios:
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1. Legalidade – só é crime o que previamente for concebido como tal. 2. Insignificância – tutela de bens jurídicos relevantes e que merecem proteção. 3. Alteridade – leva em consideração a especificidade da pessoa humana. 4. Confiança – instrumento capaz de fazer frente à violência. 5. Adequação social – regular condutas que comprometam realmente o convívio social. 6. Intervenção mínima – aplicação somente em casos em que não se tenha outra medida possível. 7. Fragmentariedade – concorre com outras medidas. 8. Proporcionalidade – a pena deve ser aplicada na justa medida, sem excessos. 9. Humanidade – o sistema penal deve possuir um ambiente que permita a reinserção social do apenado. 10. Necessidade – a pena deve ser medida extrema a ser aplicada a quem transgride. 11. Ofensividade – a violação ao direito deve ser relevante. Deve se perceber que muito embora o Direito Penal ainda seja uma estrutura necessária ao Estado e à sociedade, o crime não é apenas fenômeno jurídico, mas sócio-político, em que a estrutura social e outros fatores como o econômico favorecem sua intercorrência, devendo-se ter a consciência de que a judicialização penal dos conflitos não basta para se evitá-los. O Processo Penal nasce no contexto histórico e social como forma de composição e solução de conflitos visando eliminar a força e a autodefesa, em que o Estado interfere visando a conciliação entre os envolvidos.
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Nesse sentido, cabe destacar que: (...) Nos seus primeiros anos, todos os poderes se enfeixavam nas mãos de uma só pessoa, como no regime tribal, ou na família de tipo patriarcal. Depois, com o crescimento do agrupamento humano, por certo houve necessidade de distribuição de funções, e, finalmente, num estágio mais avançado, os órgãos que desempenhavam as funções mais importantes, as funções básicas, atingiram a posição de Poderes. (...) Para atingir a seus fins, as funções básicas do Estado – legislativa, administrativa e jurisdicional – foram entregues a órgãos distintos: Legislativo, Executivo e Judiciário. Três, pois, os órgãos que se altearam a Poderes. (TOURINHO FILHO, 2009, p.1)
Ao Estado atribuiu-se a função de intervir nos conflitos e intermediar a composição por meio do Poder Judiciário. No âmbito penal, somente o Estado poderá responsabilizar alguém pela prática de um fato crime, ou seja, punir, impingindo ao infrator a pena após confirmar-se sua responsabilidade, o que se fará mediante um processo, o “processo penal”. “O processo penal é um caminho para se chegar, legitimamente, à pena.” (LOPES JÚNIOR, 2008, p. 9)
Desse modo, quando alguém comete um fato que é considerado crime, as estruturas do Estado se mobilizam. Inicialmente o Poder Executivo, com a ação de suas polícias, realizando a prisão do infrator (se couber) e apurando, mediante uma investigação criminal, a comprovação da autoria do ilícito e examinando as provas necessárias para a responsabilização do autor do fato. A seguir, o Ministério Público promove a ação penal e esclarece sua pretensão com base nas provas obtidas pela polícia. Feito isso, o processo é encaminhado para o Juiz que ouve as partes – Ministério Público e acusado (MP) - e analisa o material produzido para aplicar, se for o caso, a pena ou então absolver o acusado. Em síntese, este é o processo.
Cabe observar que existem também outras situações como, por exemplo, a prevista na Lei 8099/95 (que trata dos crimes de menor gravidade), em que se dá a opção ao particular a legitimidade para demonstrar o interesse na execução penal, Unidade 1
Órgão independente, essencial à função jurisdicional incumbido da “defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”.
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podendo o ofendido conceder o perdão a quem o agrediu ou violou um direito seu tutelado penalmente. Pode-se citar também alguns exemplos do Código Penal, como o caso de estupro, previsto no artigo 225, em que o Ministério Público somente atua se houver representação da vítima (salvo se for menor de 18 anos, em que a ação será pública incondicionada, ou seja, não exigirá representação). Não obstante, manifestado o interesse do particular em começar a ação, o Ministério Público dará seguimento ao processo, mas o direito de punir, em qualquer caso, sempre caberá ao Estado. Outra situação de excepcionalidade é aquela em que a pessoa pode decidir ou não pela proposta da ação penal, conforme seu juízo e avaliação, nos crimes chamados de ação privada, em que pesam outros interesses do ofendido, como, por exemplo, nos seguintes casos:
Crimes contra a honra: calúnia, injúria e difamação previstos nos artigos 138 a 140 do Código Penal; Violação de direito autoral - artigo 184 do Código Penal; Induzimento a erro essencial e ocultação de impedimento – artigo 236 do Código Penal.
Nos crimes de ação penal privada, a peça inicial se chama de “queixa”, e na ação penal pública, quando o MP a impulsiona, se chama “denúncia”. Por fim, tem-se o caso em que o particular pode também entrar com a ação penal quando houver incapacidade do MP, ou seja, quando ele não começa a ação nos prazos fixados em lei. Neste caso, o particular pode oferecer a queixa substitutiva da denúncia, muito embora o MP deva tomar ciência dos autos e retomar a titularidade da ação. O processo penal é garantidor não apenas das medidas necessárias por parte do Estado, como apurar, prevenir, reprimir e, eventualmente, responsabilizar quem tenha praticado uma conduta criminosa, mas também das garantias formais aos acusados pela prática destes atos definidos como crimes em nosso ordenamento jurídico. 22
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Cabe destacar que a constituição da República Federativa do Brasil de 1988 – CRFB 1988 – no seu título II, artigo 5°, que trata “Dos Direitos e Garantias Fundamentais”, prevê algumas regras que visam preservar o respeito à dignidade da pessoa humana e o direito à liberdade dos acusados, conforme se depreende dos seguintes enunciados:
não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal;
a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito;
a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu;
ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente;
ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;
aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;
são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos;
ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória; (CRFB, 1988)
A persecução penal é uma obrigação do Estado e visa, portanto, investigar e apurar o ato considerado criminoso e imputar, ou isentar, alguém de responsabilidade - observadas as formalidades legais - a fim de que a segurança e o respeito ao Estado de Direito sejam preservados. A política criminal se insere no contexto das ciências criminais tendo como objeto de estudo a questão dos meios e recursos para fazer frente à criminalidade, buscando suporte teórico nos estudos criminológicos e fazendo análises sobre os sistemas punitivos vigentes.
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Para Zaffaroni: A Política Criminal é a ciência ou a arte de selecionar os bens (ou direitos) que devem ser tutelados jurídica e penalmente e escolher os caminhos para efetivar tal tutela, o que iniludivelmente implica a crítica dos valores e caminhos já eleitos. (ZAFFARONI, 1999:132)
Ocorre que o sistema de justiça criminal tem se apresentado como um instrumento de exclusão, em que, de forma recorrente, a mediação dá lugar à judicialização dos conflitos pela criminalização e pela crescente geração de novos estereótipos de “criminosos”. A política criminal tem um importante papel no sentido de proposição de alternativas ao que “está posto” como verdade, pois a concepção pautada apenas no controle social pela via da punição tem reproduzido a violência, ao invés de preveni-la. Sérgio Adorno nos elucida essa questão ao afirmar que: Não são poucos os estudos que reconhecem a incapacidade do sistema de justiça criminal, no Brasil – agências policiais, ministério público, tribunais de Justiça e sistema penitenciário–, em conter o crime e a violência respeitados os marcos do Estado democrático de Direito. O crime cresceu e mudou de qualidade, porém, o sistema de Justiça permaneceu operando como há três ou quatro décadas. Em outras palavras, aumentou sobremodo o fosso entre a evolução da criminalidade e da violência e a capacidade do Estado de impor lei e ordem. (ADORNO, 2002)
Cabe destacar ainda que: A política criminal, enquanto programa de controle do crime e da criminalidade, no Brasil, influenciada pelo modelo norte-americano, se configura como mera política penal, pois ”exclui políticas públicas de emprego, salário, escolarização, moradia, saúde e outras medidas complementares, como programas oficiais capazes de alterar ou reduzir as condições sociais adversas da população marginalizada do mercado de trabalho e dos direitos de cidadania, definíveis como determinações estruturais do crime e da criminalidade“. (SILVEIRA FILHO, 2007, p. 346)
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Desse modo, a política criminal, enquanto ciência, precisa promover a revisão dos paradigmas vigentes que permeiam as ações do sistema de justiça criminal, em que predomina a expansão do controle punitivo e o aumento dos índices de encarceramento, o que tem redundado na reprodução das violências, quer no plano macrossocial como resultante de um modelo de sociedade desigual, como na esfera das individualidades, o que traz também como consequência a deslegitimação e desestruturação do chamado “Estado Democrático de Direito”. A criminologia, enquanto ciência criminal, é a ciência surgida no século XIX, segundo alguns autores, pela fusão da Antropologia com o pensamento sociológico, e se ocupa do estudo das teorias do direito criminal, das causas do fenômeno criminal (e de suas características), da sua prevenção e do controle de sua incidência, tendo um caráter interdisciplinar e abrangente de outras disciplinas e ciências, tais como o Direito, a Psicologia, a Psiquiatria, a Medicina, a Sociologia e a Antropologia. O campo de estudo e atuação da criminologia tem tido definições que, apesar de convergirem para um mesmo objeto – o homem, o crime, o criminoso, os fatores criminógenos e os mecanismos de controle social – conceitualmente apresentam suas variáveis, como se percebe nos conceitos apontados por João Antônio Medeiros Vieira, tais como:
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Amaral Fontoura: “a Criminologia estuda todos os fenômenos referentes ao crime - causas, efeitos, constituição mórbida dos criminosos, estatística de crimes etc., sendo a Sociologia Criminal parte integrante da mesma.” Paulo Dourado Gusmão: “entende que a Criminologia estuda o homem criminoso, o delinquente e o crime em seu aspecto psíquico-social, fundada exclusivamente em métodos científicos, alheada das definições e das categorias jurídico-penais.” Basileu Garcia: “a criminologia engloba o objeto da Biologia Criminal (compreendidas a Antropologia Criminal propriamente dita, a Psicologia Criminal e a Psiquiatria Criminal) e a Sociologia Criminal. ‘Estudando a incidência da fenomenologia psíquica da criminalidade; o elemento subjetivo do delito, que decide da culpabilidade, os motivos que dirigem o comportamento antisocial etc., a Psicologia marca os necessários rumos à avaliação da personalidade, indagação culminante no Direito Penal do nosso tempo. O material das suas conclusões alargou-se com a Psicanálise, que tenta penetrar nos mistérios do inconsciente. ” Magalhães Noronha: entende a Criminologia como ciência causalexplicativa que estuda as leis e fatores da criminalidade e abrange as áreas da Antropologia e da Sociologia Criminal. Augusto Thomson: “a criminologia é uma ciência natural que não dispõe de um objeto de estudo precisamente definido; o crime não é um fenômeno natural; a Criminologia considera como objeto específico de seu estudo o criminoso designado como tal pela máquina da repressão.” Pablos de Molina: “Cabe definir a Criminologia como ciência empírica e interdisciplinar, que se ocupa do estudo do crime, da pessoa do infrator, da vítima e do controle social do comportamento delitivo, e que trata de subministrar uma informação válida, contrastada, sobre a gênese, dinâmica e variáveis principais do crime – contemplado este como problema individual e como problema social –, assim como sobre os programas de prevenção eficaz do mesmo e técnicas de intervenção positiva no homem delinquente.” (VIEIRA, 1997, p. 33 – 37) A Criminologia, enquanto ciência do âmbito criminal, contribui para a percepção do fenômeno da violência e da criminalidade de forma multifacetada, indo das expressões criminológicas típicas do Estado Absolutista, até a concepção crítica que aponta para a necessidade de reformulação do paradigma punitivo sob bases que considerem a realidade da estrutura social e de novas ações necessárias para a incessante resolução de conflitos e promoção da paz social.
Na próxima seção aprofundaremos nossos estudos sobre a Criminologia e sua importância e contribuição para a Ciência Criminal. 26
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Seção 2 – A Criminologia O “Crime” e a “Violência” são temas que sempre fizeram parte dos diferentes estágios de civilização das sociedades, desde os tempos primitivos ou arcaicos (com registros obtidos das inscrições rupestres sugestivas das formas de interação humana daquela época), passando pela Antiguidade Clássica (em que as obras poéticas da época como a Ilíada e a Odisseia retratavam a forma de organização social e seus problemas ou ainda a obra “Antígona” de Sófocles que nos demonstra a crise histórica estabelecida entre o Direito Natural e o Direito Positivo); a Idade Média com o Estado Absolutista que passou a ser chamado por alguns historiadores e criminólogos também de “Estado de terror penal ”; a Idade Moderna com o positivismo jurídico irradiante de dogmas e postulados (que, com base principalmente na razão, contribuíram para elaborar instrumentos jurídicos de controle social que também desaguaram em expressões de violência); e a época Contemporânea, que nos confronta com um modelo político, econômico e social que tem contribuído para fomentar a cultura do medo e da violência.
Você sabia? Na tragédia Antígona, de Sófocles, o conflito se estabelece entre Antígona — que representa a família — e Creonte — que representa a cidade. Os irmãos de Antígona lutam em partidos contrários; um deles, acusado por Creonte de traição política, é vencido e morto em combate pelo outro irmão. Como traidor político, a lei da cidade não lhe dá o direito ao funeral e à sepultura; portanto, não tem direito à outra vida, pois, sem o ritual fúnebre e o sepultamento, o corpo é destruído pelos animais e não forma a sombra inteira, necessária à outra vida. Antígona, contra a lei da cidade, realiza o ritual fúnebre, por piedade fraternal. Assim, a tragédia, além de narrar a diferença entre o passado e o presente, também narra os conflitos entre as leis do costume (o passado familiar) e as leis escritas da cidade. (Marilena Chaui. Introdução à história da filosofia, p. 114)
Portanto, é importante que se compreenda que a história da humanidade esteve sempre atravessada pela violência. Muitos
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são os registros de guerras, perseguições, disputas, questões de gênero, preconceitos, desigualdades, terrorismos, explorações e por aquela modalidade de violência que muitas vezes é entendida e definida por valores de determinados grupos sociais organizados: os fatos considerados criminosos, da criminalidade e dos processos de criminalização. Os saberes produzidos sobre essas “violências”, as relações dessas violências com as estruturas de poder e as instituições, notadamente as da segurança pública, apontando as contradições do sistema penal (entre as funções declaradas, simbólicas e as reais), são contribuições que a Criminologia, enquanto ciência, nos oferece, permitindo que se perceba um modelo de política criminal equivocado, onde a reação e punição é quem dá sustentação e legitima o discurso repressivo e do controle como única forma de proteção social e manutenção da ordem pública. A Criminologia busca a compreensão das múltiplas dimensões dos atos de violência, principalmente os que são considerados de transgressão humana e por que o são assim considerados, tendo como premissa os mecanismos de controle social e os processos de criminalização, e não o “fato-crime” como uma realidade ontológica.
Os saberes teóricos no campo da criminologia servem de base e tornam mais elucidativos alguns aspectos sobre os conceitos e dogmas equivocadamente construídos sobre o sistema penal e a chamada “criminalidade” na sociedade contemporânea, permitindo uma análise mais detalhada sobre as características dessa “criminalidade” no Brasil (a questão das drogas, da violência de gênero, da criança e do adolescente, a análise de dados estatísticos e do Plano Nacional de Combate à Violência), e as relações de interligação que essas questões estabelecem com as instituições integrantes do sistema de justiça criminal. A base teórica do pensamento criminológico permite que se questione o discurso de fortalecimento do sistema penal e as crenças equivocadas de que isto representa o interesse geral, ou seja, a erradicação dos problemas sociais com a articulação e operacionalização do sistema punitivo - “braço armado do Estado” compreendendo a Polícia, o Ministério Público, o Judiciário e o Sistema Penitenciário. 28
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Figura 1. Quadro pintado por van Gogh a partir de uma gravura mostrando a prisão de Newgate. Fonte: http://www.serazul.com.br/Van.htm
Desse modo, o pensamento criminológico auxilia na desconstrução da visão estigmatizante sobre a realidade social, de concepção maniqueísta e excludente. E contrapondo ao discurso oficial com novas possibilidades de resolução pacífica dos conflitos, possibilitando a substituição das políticas criminais pelas políticas públicas.
A preocupação com o crime, o castigo, a punição fazem parte do processo civilizatório, desde o Código de Hammurabi na região mesopotâmica, passando pela legislação Mosaica constante nos livros da Bíblia; as reflexões de Confúcio (551 – 478) - “tem cuidado de evitar os crimes para depois não ver-te obrigado a castigá-los”; os gregos que com Esopo afirmou que “os crimes são proporcionais a capacidade dos que os cometem”, dentre outros pensadores da antiguidade clássica como Isocrates (436 – 38 a.C) – “ocultar o crime é tomar parte nele” -, Protágoras (485 – 415 a.C.) que sustentou o caráter preventivo da pena; Sócrates (470 – 399 a.C.) através de Platão afirmando “que se devia ensinar aos indivíduos que se tornavam criminosos como não reincidirem no crime, dando a eles a instrução e a formação de caráter de que precisavam”; Platão (427 – 347) dizendo que “o ouro do homem sempre foi motivo de seus males” (A República); Aristóteles (384 – 322) sugerindo que “a miséria engendra rebelião e delito” e Sêneca, em Roma ( 4 a.C. – 65 d.C), com sua análise sobre a ira, que considerava a mola propulsora do crime, argumentando ser a razão da sociedade viver em constante luta fratricida. (FERNANDES; FERNANDES, 2002. p.62)
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Código de Hammurabi: monumento jurídico mais importante da Antiguidade antes de Roma. Continha 282 artigos, sendo muito desenvolvido para a época, sobretudo no domínio do Direito Privado. Hammurabi foi rei da Babilônia, provavelmente entre 1726 – 1686 a.C. (Maior aprofundamento ver: GILISSEN, John. Introdução Histórica ao Direito. Trad. de A. M. Hespanha e L. M. Macaísta Malheiros. 3. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.
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Este movimento surgiu na França do século XVII e defendia o domínio da razão sobre a visão teocêntrica que dominava a Europa desde a Idade Média. Segundo os filósofos iluministas, esta forma de pensamento tinha o propósito de iluminar as trevas em que se encontrava a sociedade. Os ideais iluministas acreditavam que o pensamento racional deveria ser levado adiante substituindo as crenças religiosas e o misticismo, que, segundo os pensadores da época, bloqueavam a evolução do homem. O homem deveria ser o centro e passar a buscar respostas para as questões que, até então, eram justificadas somente pela fé. Fonte: http://www.suapesquisa. com/historia/iluminismo/
Muito embora a preocupação com a questão da violência tenha origem em tempos remotos, em que os que exerciam o poder tendiam a manter a ordem e buscar a paz pelo controle e o desenvolvimento da sua polícia e da sua justiça, é no marco histórico do Iluminismo que ocorrem transformações que conduzem a uma verdadeira revolução na concepção jurídica e também política, econômica e social com reflexos diretos no campo do direito penal. Na base das inquietações do marco histórico do Iluminismo, surge uma corrente do pensamento chamada Escola Clássica, com uma unidade ideológica comum, com um significado político, liberal e humanitário e se contrapondo ao estado da legislação penal vigente à época, e do excesso no ato de “punir” com castigos corporais e penas de morte, também uma arbitrária e desigual aplicação da lei conforme a condição social do acusado. (ANDRADE, 2003) O pensamento e a obra do italiano Cesare Beccaria (1738 – 1794) o torna percussor desse momento. Segundo Gilissen:
Beccaria teve uma grande influência na modernização do direito penal. Escreveu o seu livro Dei delitti e delle pene (Dos delitos e das penas, 1764) com a idade de 25 anos e publicou-o como um panfleto anônimo. Novamente publicado pouco depois com um comentário de Voltaire, a obra rapidamente conheceu o sucesso e foi traduzida na maior parte das línguas europeias. Sob a influência do Contrat Social de Rousseau, Beccaria imagina um sistema jurídico no qual cada um deve ceder uma parcela da sua liberdade – tão mínima quanto possível – ao soberano, em troca da manutenção da ordem por este último. O soberano não pode abusar do seu direito de punir; os fatos são apenas puníveis se a lei os considerar como infração; é a proclamação da legalidade dos delitos e das penas; é o adágio nullun crimen, nulla poena sine lege que, embora expresso em latim, nada tem de romano. A pena deve ser proporcional ao mal a reprimir; a tortura e a pena de morte não podem ser toleradas. (GILISSEN, 2001, p. 368)
Não obstante a importância de Beccaria, é com Cesare Lombroso que se tem o marco histórico da fundação da criminologia com sua obra “L’Uomo delinqüente”, em 1876, que acaba criando a 30
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Antropologia Criminal. Essa obra estabeleceu uma relação entre o homem que pratica crimes e as suas características biopsíquicas. Segundo a professora Vera Regina Pereira de Andrade: A primeira e célebre resposta sobre as causas do crime foi dada pelo médico italiano Lombroso, que sustenta, inicialmente, a tese do criminoso nato: a causa do crime é identificada no próprio criminoso. Partindo do determinismo biológico (anatômico-fisiológico) e psíquico do crime e valendo-se do método de investigação e análise próprio das ciências naturais (observação e experimentação), procurou comprovar sua hipótese através da confrontação de grupos não-criminosos com criminosos dos hospitais psiquiátricos e prisões sobretudo do sul da Itália, pesquisa na qual contou com o auxílio de Ferri, quem sugeriu, inclusive, a denominação “criminoso nato”. Procurou desta forma individualizar nos criminosos e doentes apenados anomalias sobretudo anatômicas e fisiológicas vistas como constantes naturalísticas que denunciavam, a seu ver, o tipo antropológico delinquente, uma espécie à parte do gênero humano, predestinada, por seu tipo, a cometer crimes. (ANDRADE, 2003, p 35 – 36)
Portanto, foi Lombroso quem iniciou os primeiros estudos em Criminologia, colocando no centro da discussão sobre a questão da criminalidade a pessoa humana “incomum”, cujo objeto central da discussão é o “homem criminoso” (aquele ser antropologicamente diferente das demais pessoas). Lombroso, prosseguindo em suas pesquisas, acrescentou como causas da criminalidade, ao lado do atavismo, a epilepsia e a loucura moral, ou seja, o atavismo, epilepsia e loucura moral constituem o que Vonnacke denominou de “tríptico lombrosiano”. (ANDRADE, 2003, p. 36) O chamado “criminoso nato” para Lombroso, além dos estigmas físicos, possuía sintomas psíquicos - como insensibilidade à dor, preguiça, crueldade, instabilidade emocional, superstição, precocidade sexual - sobre o qual a sociedade teria o direito de defender-se condenando-o a prisão perpétua e excepcionalmente à morte, mas sem expiações morais ou punições infamantes. (FERNANDES, 2002) Unidade 1
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Figura 2. Tipos lombrosianos Fonte: DEPAULA, Giovani. A Importância do ensino de Criminologia na Formação Policial. Dissertação de Mestrado. Florianópolis: UFSC, 2007.
Van Hamel chegou a afirmar que “César Beccaria, nos dias de arbítrio, disse ao homem: conhece a justiça; César Lombroso, na época em que se está aferrado às fórmulas clássicas do Direito Penal, disse à justiça: conhece o homem.” (2001, p. 3.) Esse momento histórico propiciou discussões que deram origem ao surgimento do paradigma conceitual em Criminologia, sofrendo também influências de correntes do pensamento chamadas Escolas Penais. Dessas, iremos destacar as duas que consideramos mais importantes para esta disciplina e é o assunto que passaremos a tratar a seguir. As discussões sobre a questão do Direito Penal, do crime e da criminalidade - com suas respectivas teorias sobre o assunto - passaram a ser designadas Escolas Penais. Essas “escolas” passaram a (re)analisar os fundamentos do Sistema Penal buscando ampliar a compreensão da chamada “criminalidade” e de suas teorias. Veja, a seguir, as principais escolas de criminologia :
Escola Clássica A Escola Clássica surge no contexto do movimento Iluminista, tendo como consequência os postulados da humanização da pena. Beccaria (que já vimos anteriormente) foi o expoente e representante máximo da Escola Clássica em decorrência de sua valiosa contribuição. Teve a preocupação em estabelecer as bases do Sistema Penal com fundamentos inspirados na humanização dos meios punitivos, legalidade do Direito Penal e Processual Penal - garantia e segurança jurídica - e finalidade da pena, opondo-se aos arbítrios e lutando pela segurança individual em contraposição à Justiça Penal ingente da época, cujas penas, estabelecidas “no duplo pilar da expiação moral e da intimidação coletiva, eram excessivamente arbitrárias e bárbaras, prodigando os castigos corporais e a pena de morte”. (ANDRADE, 2003, p. 49) Sustentou-se num sistema dogmático e se baseou em conceitos racionalistas, considerando a imputabilidade penal diretamente 32
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vinculada ao livre arbítrio e à culpabilidade moral, tratando o delito como algo de natureza jurídica e a pena como um mal necessário à segurança jurídica. (OLIVEIRA, 1996). Deixou como herança um legado que, baseado em concepções liberais, contribuiu para a consolidação da dogmática jurídico-penal, na produção de uma ideologia especificamente penal, a “ideologia da `defesa social´, que sintetiza a sua percepção básica sobre a problemática da criminalidade e da reação social”. (ANDRADE, 2003)
Escola Penal Positiva A Escola Positiva, na base do pensamento positivista de Ciência, incorpora em suas análises um novo método: o indutivo e de observação dos fatos, em substituição ao Método dedutivo e de lógica abstrata da Escola Clássica, “deslocando-se da investigação racional para a factual – e do fato para o homem delinquente – deslocarão o território classicamente colonizado pelos juristas(...)”. (ANDRADE, 2003, p. 63) A obra “O homem delinquente”, de Lombroso, é outro item, como vimos anteriormente, que contribuiu com o paradigma conceitual da Criminologia, constituindo, segundo a professora Vera Andrade, junto com a Sociologia Criminal de Ferri, uma das matrizes fundamentais desse paradigma, que interpretava o delito como uma realidade biológico-social, constituída de fatores antropológicos e materiais, realçando como objeto do seu estudo o homem “criminoso” e suas características anatômicofisiológicas. Essa Escola Penal, a Positiva, teve como característica a questão da responsabilidade social baseada no determinismo e na “periculosidade” do delinquente, bem como na sua compleição física e biotipo, considerando o crime como um fenômeno natural e social produzido pelo homem e a pena não mais apenas como um meio de castigo, mas de defesa social, negando o livre arbítrio e a liberdade social. (OLIVEIRA,1996, p. 61)
Distendeu o entendimento lombrosiano sobre a criminalidade admitindo uma tríplice série de causas ligadas à etiologia do crime – individuais (orgânicas e psíquicas), físicas (ambiente telúrico) e sociais (ambiente social)
Os seguidores da Escola Positiva defendiam as teorias relativas, ou da prevenção, em que a pena tinha um fim prático e imediato, o da prevenção geral ou especial do crime, ou seja, servia Unidade 1
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como um instrumento de “defesa social” com o objetivo de “reajustar” ou tornar sem efeito o “homem delinquente”
Figura 3. Ambiente/local de estudos de Lombroso Fonte: http://www.museounito.it/lombroso/storia/storia_2.html
As medidas de segurança, como a de internação em hospital de custódia, tratamento psiquiátrico e os institutos jurídicos ( o livramento condicional e a suspensão condicional da pena) têm sua origem nesse período.
A Mudança do Paradigma conceitual para o Labelling Aproach (abordagem por etiquetamento) ou Paradigma da Reação Social O paradigma conceitual, de base positivista e derivado das ciências naturais, considerava que algumas características distinguiam o homem normal do homem criminoso. Daí a tese fundamental de que ser delinquente constituía uma propriedade da pessoa que a distinguia por completo dos indivíduos normais sem que se fizesse uma análise crítica do Direito Penal Positivo enquanto definidor do crime e das penas. (ANDRADE, 2003)
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É nesse contexto que os pressupostos e postulados das Escolas Penais e do paradigma conceitual passam a ser questionados, que o surgimento de novos saberes criminológicos começam a se contrapor à ideologia da defesa social indagando sobre outras causas para o crime e a criminalidade, voltadas para além daquelas obtidas pela Antropologia, Sociologia e outras ciências e teorias da época. O labelling aproach e o paradigma da reação social representam essa mudança de paradigma em criminologia, passando-se a conceber o crime, a criminalidade e o sistema penal segundo novos pressupostos, fundados, principalmente, nos processos de criminalização, o que ensejará um caminho para a construção de uma nova criminologia, a criminologia crítica. O labelling tem como fundamento e tese central [...] de que o desvio e a criminalidade não são uma qualidade intrínseca da conduta ou uma entidade ontológica pré-constituída à reação social e penal, mas uma qualidade (etiqueta) atribuída a determinados sujeitos através de complexos processos de interação social, isto é, de processos formais e informais de definição e seleção. (ANDRADE, 2003, p. 41)
Muda-se o foco, indo-se além do estudo do crime e do criminoso para a questão dos processos de criminalização, para os que são criminalizados e para a reação social da conduta desviada, passando-se a questionar a legitimação do sistema penal. (ANDRADE, 2003) Segundo essa corrente do pensamento, os processos de criminalização têm início não apenas no aparato político-jurídico do Estado encarregado pelo controle social formal, que engloba a Poder Legislativo (criminalização primária), Polícia, Ministério Público, Judiciário (criminalização secundária), mas também os mecanismos de controle social informal, como a escola, a família, a religião ou a mídia. (ANDRADE, 2003, p. 43) A mesma parcela social sobre a qual recai a mobilização do aparato do Sistema Penal, também acaba sendo a mais atingida pelos efeitos da violência, distribuindo-se de forma desigual Unidade 1
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os riscos reais de vitimização. E isso é atual e muito presente na sociedade brasileira, conforme Cláudio Beato “o risco de vitimização por homicídio nas grandes cidades, hoje, é cerca de 300 vezes maior para um jovem de periferia se comparado com o risco para o mesmo crime que corre um senhor de meia idade de um bairro típico de classe média”. (BEATO, 2004). Dessas inquietações decorrem necessidades de novas discussões surgindo um movimento criminológico intitulado “Criminologia Crítica” cujas teorias, segundo Ian Taylor, Paul Walton e Jock Young, são caracterizadas (...) pela orientação questionadora da ordem social que produz o fenômeno do crime (definição do comportamento criminoso e dos métodos de controle e de repressão da criminalidade) e pelo compromisso com uma prática social transformadora das condições estruturais da desigualdade material e da marginalidade econômica, nas sociedades fundadas na divisão e na exploração de classes. O esquema teórico desse questionamento é definido pelas categorias fundamentais do pensamento marxista (modo de produção, classes sociais, luta de classes, hegemonia ideológica, etc.). E por isso, está comprometido com o processo histórico de emancipação das massas, exploradas como força de trabalho e oprimidas pelos mecanismos de poder da ordem social, que seleciona não só os comportamentos, os sujeitos que devem ser incriminados. (TAYLOR; YOUNG, p. 7)
A Criminologia Crítica se apresenta, assim, com um discurso que passa a se concentrar em desconstruir o discurso da guerra contra o crime, do combate à criminalidade, tentando evidenciar que os processos de criminalização e a inflação jurídico-penal nada mais fazem do que agravar os problemas sociais, destacando-se a superlotação das prisões e outras formas de violência institucional, como a pobreza, o desemprego, o estado de abandono, a fome, o estado de terror penal em que se desconhece todo o entrelaçamento de leis e armadilhas do sistema, mas tudo, enfim, buscando criar no imaginário coletivo uma falsa sensação de segurança jurídica.
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Figura 4. Falsa sensação de segurança jurídica Fonte: Revista Consulex - Ano VI - Nº 131 - 30 de junho de 2002 (Fig.1); Ano VIII - Nº 176 - 15 de maio de 2004 (Fig. 2); Ano VI - Nº 127 - 30 de abril de 2002. (Fig.3)
Assim, a Criminologia sofreu um processo de evolução em sua concepção que foi influenciado pelas correntes do pensamento das Escolas Penais, culminando na Criminologia Crítica que redefine seus conceitos e que aponta para a necessidade de um sistema de justiça que leve em consideração todos os valores e necessidades dos seres humanos, premissa maior para o enfrentamento de todas as formas de violência.
Seção 3 – Criminologia e Segurança Pública A Criminologia nos permite compreender a questão da segurança pública sob novas bases e fundamentos teóricos. As estruturas de segurança pública no país são as responsáveis pela intervenção mais direta e imediata nos problemas que dizem respeito à criminalidade e à criminalização - muito embora se saiba que uma atuação efetuada de forma cooperativa, envolvendo não apenas o poder público, mas também ações do empresariado, da sociedade civil organizada e de comunidades locais, tenha efeitos bem mais úteis sob o aspecto da solução integrada dos conflitos sociais. Ocorre que o Estado e a Sociedade têm demonstrado insuficiência na compreensão e no trato das questões que envolvem a ordem social, percebendo-se que as amostragens estatísticas oficiais apontam para um crescimento desproporcional Unidade 1
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da incidência criminal no país, isso sem falar nas cifras ocultas, daqueles crimes que não são contabilizados, os quais, para Zafarroni, correspondem a maioria das práticas delitivas. Segundo este autor, Praticamente não existe conduta - nem mesmo as ações mais privadas – que não seja objeto de vigilância por parte dos órgãos do sistema penal ou daqueles que se valem de sua executividade para realizar ou reforçar seu controle, embora se mostrem mais vulneráveis as ações realizadas em público, o que acentua a seletividade da vigilância em razão da divisão do espaço urbano que confere menores oportunidades de privacidade aos segmentos mais carentes. [...] Se todos os furtos, todos os adultérios, todos os abortos, todas as defraudações, todas as falsidades, todos os subornos, todas as lesões, todas as ameaças, etc. fossem concretamente criminalizados, praticamente não haveria habitante que não fosse, por diversas vezes, criminalizado. (ZAFFARONI, 1991, p. 25-26)
As estruturas de polícia, assim como as demais instâncias de poder, historicamente acabaram servindo às elites de nosso país como mecanismo de controle social, e até há pouco tempo foram extensão dos Estados, de uma ideologia voltada para a segurança nacional. Não obstante, com a abertura política e a democratização, nosso país tem procurado se adequar às novas realidades e contingências sociais, muito embora a incorporação de novos postulados inerentes aos direitos de cidadania encontre resistências individuais e institucionais. Aliado a esse problema de “função das polícias”, percebe-se que, muito embora haja uma tentativa de articulação e mobilização no sentido de proporcionar segurança à sociedade e às pessoas, seus esforços têm sido muitas vezes em vão, decorrente também dos problemas crônicos de nossa sociedade, que é atravessada pelas desigualdades sociais (falta de saúde pública, infraestrutura urbana deficiente, desvalorização da educação e do sistema de ensino) e pelas mais variadas expressões de violência já citadas, como a pobreza, o desemprego, os preconceitos, o tráfico de drogas, a exploração sexual, a exploração do trabalho infantil (e adulto), a falta de assistência familiar, a falta de acesso aos meios de cultura, a violência (intrafamiliar, contra a mulher, contra os animais), dentre outras questões para as quais não estão 38
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plenamente preparadas para agir. Tanto é assim que o chamado Guia para a Prevenção do Crime e da Violência nos Municípios, elaborado pelo Governo Federal, catalisa e prioriza ações nesses aspectos. Some-se a isso a cultura punitiva disseminada no contexto social e com terreno fértil na esfera policial, que dificultam os espaços para a mediação preventiva dos conflitos, e, ao contrário, pune-se e violenta-se como resposta da macroestrutura social.
Para mais informações veja: MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. Secretaria Nacional de Segurança Pública. Guia para a Prevenção do Crime e da Violência nos Municípios. Brasília: SENASP, 2006.
Assim, sob a proteção da função declarada do Direito Penal, a da prevenção “da violência e da criminalidade”, as polícias acabam contribuindo para o agravamento desse quadro auxiliando na construção dos chamados “processos de criminalização”, exercendo influência significativa com a mobilização de seu aparato, principalmente quando vira moda falar-se em “movimentos de lei e ordem” como solução para os problemas de natureza social em momentos de crise. Na realidade, é preciso evitar, cada vez mais, que as polícias sejam órgãos a serviço de um poder (principalmente o poder econômico e o poder político) e sobre isso a afirmação de JeanClaude Monet, estudioso de polícia, em seu livro “Polícias e Sociedades na Europa” é esclarecedora: [...] é certo que o desenvolvimento das formas modernas de polícia na Europa resultou de uma demanda crescente em matéria de segurança, emanada, no essencial, das camadas dominantes urbanas. Mas nas modalidades de sua organização, tanto quanto nas prioridades operacionais que são as suas, transparece, no mais das vezes, mais a vontade dos governantes de se dotar de instrumentos politicamente confiáveis, do que uma verdadeira preocupação de responder à demanda social de segurança. É, pelo menos, o que sugere uma observação atenta das formas e dos ritmos que escandiram o desenvolvimento dos aparelhos policiais desde sua emergência histórica. É igualmente o que revela a análise de suas estruturas atuais. (2001, p. 100)
Entende-se que se deve instrumentalizar as polícias segundo políticas públicas que lhe permitam atuar também num cenário político - o que é diferente de ser “usada” politicamente - ou Unidade 1
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Segundo Álvaro Lazzarini: “Atribui-se a Honoré de Balzac a afirmação de que `os governos passam, as sociedades morrem, a polícia é eterna´. Ela o é porque, na realidade, as nações podem deixar de ter as suas forças armadas. Nunca, porém, podem prescindir de suas polícias, da sua força pública.” (LAZZARINI, Álvaro. Estudos de Direito Administrativo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999. p.49.)
Por eficiente serviço de inteligência entenda-se aquele voltado à produção de informações e dados para a proteção social e dos direitos inerentes ao exercício de cidadania.
seja, lutar por uma atuação voltada para o atendimento às demandas sociais, legitimando suas ações mediante processos de interação e participação popular, em sintonia com o que prescreve a nossa Constituição em seu artigo 144, ao afirmar que Segurança Pública é responsabilidade de todos, não podendo ainda se esquecer que segurança, desde os tempos remotos, é preocupação dos povos e trata-se de uma necessidade básica, de bem viver, ter tranquilidade, de buscar a felicidade! Alguns autores chegam a afirmar que há sociedade sem “justiça”, mas não há sociedade sem polícia! Obviamente que não se pode esquecer as muitas vezes em que a atuação das estruturas policiais exigem uma atuação eminentemente repressiva, como, por exemplo, naqueles casos em que ocorrem inevitáveis enfrentamentos diretos, contato físico, troca de tiros, situações essas em que não se torna possível o exercício de práticas de mediação, ao menos num primeiro momento, devido aos riscos e situação de perigo eminente. Há também que se ressaltar que essas situações constituem uma pequena parte dentro das múltiplas possibilidades da atuação policial e ainda assim um eficiente serviço de inteligência policial poderia minimizar em muito a condição de enfrentamentos. Por outro lado, é importante também perceber que o papel da polícia muitas vezes apresenta algumas ambiguidades, como, por exemplo, as citadas por Adriana Loche et all ao apontar que na ação da polícia, revela-se uma das faces de nossa sociedade, a saber: Entrar no cotidiano da polícia descortina uma outra sociedade, funcionando sob regras e valores diferentes dos preceitos fundamentados no direito. Pode-se falar de uma lógica ocupacional, mas também de uma lógica societária que interferem no julgamento e na prática que os policiais têm de suas funções. Lógicas que exigem soluções rápidas e proporcionais aos crimes; que colocam o criminoso como estando fora do pacto social, portanto, sem poder beneficiar-se das garantias constitucionais que foram feitas para pessoas de bem; que separam o universo em categorias polarizadas de bom x mau, delinquente x pessoa de bem etc. Mas, ao mesmo tempo, lógicas que permitem uma flexibilidade enorme no tratamento das pessoas em função de suas relações. Assim, alguns
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indivíduos teriam mais direitos que os demais porque, afinal, são parentes, amigos, protegidos, bem–vestidos, estudados tem conhecimento, etc. que aqueles outros que não teriam. (1999, p. 172)
Essa realidade precisa ser percebida, pois trata-se de ponto de partida para delimitação dos espaços de atuação das polícias numa sociedade de classes e em que as estruturas policiais têm se mobilizado amparadas por uma ideologia liberal (burguesa), que insiste em hierarquizar suas ações desconsiderando os mais vulneráveis socialmente, atuando de forma, muitas vezes, pouco isenta. O sistema penitenciário brasileiro, onde a maioria dos presos são pessoas pobres, retrata a realidade essa situação. Tal reflexão serve para demonstrar a necessidade de construção de uma nova filosofia com relação à forma de atuação policial, rompendo com o senso comum e com a hegemonia do pensamento (ideologias dominantes) no sentido de rever “velhos” paradigmas inadequados para uma sociedade que se deseja livre e igualitária. Parafraseando o professor Alessandro Baratta: que permita o controle social não-autoritário do desvio e que abra espaço à diversidade, o que é garantido pela “igualdade” e expressão da individualidade do homem como portador de capacidades e de necessidades positivas. (BARATTA, 1999, p. 20) A amplitude das políticas públicas necessárias para fazer frente ao problema da (in)segurança pública pressupõe o rompimento de paradigmas, em que se perceba não apenas a necessidade de novas tecnologias e modalidades de gestão, mas também a mudança de concepção sobre o papel da polícia; em que se inclua tanto na dimensão da prevenção como na repressão, a participação democrática nas ações de segurança pública. Isso porque os indicativos, e algumas experiências sobre o enfrentamento à violência e à criminalidade, têm demonstrado que programas e estratégias de segurança baseados numa articulação que envolva várias organizações - ou seja, entre estado, sociedade e cidadão - tem sido muito mais efetivos como resposta ao problema. Há que se ter a consciência de que a questão não está restrita à segurança pública, mas compreende a necessidade de atuação em outras áreas, como a saúde, lazer, educação, assistência social, planejamento urbano e questões sistêmicas como o problema da desigualdade e da má distribuição de renda. Unidade 1
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Síntese Nesta unidade de estudos, nós vimos a contextualização da Ciência Criminal e seus principais aportes cujas bases se assentam no Direito Penal e no Direito Processual Penal e seus fundamentos, do Estado absolutista ao Estado Liberal e Democrático de Direito. Conhecemos a Criminologia enquanto ciência do âmbito criminal nos seus aspectos históricos e seus fundamentos no sentido de uma compreensão do Sistema Penal e das Estruturas de Controle Dominantes. A evolução conceitual da criminologia a coloca como ciência empírica e interdisciplinar, que se ocupa do estudo do crime como construção social, da pessoa do infrator, da vítima e do controle social do comportamento considerado delitivo, entendido como um problema não apenas individual, mas também social, assim como os programas de prevenção eficaz do mesmo e técnicas de intervenção positiva nas mais variadas expressões de violência que culminam em criminalidade e criminalização. Apresentamos as tendências da Criminologia na contemporaneidade, percebendo-se que a corrente chamada de “Criminologia Crítica” tem exercido influências que mostram a necessidade de modificação do sistema de justiça criminal, destacando-se que a “terapia punitiva” faliu já há muito tempo. A importância da disciplina “Criminologia” para as Ciências Criminais e para a Segurança Pública implica na percepção da necessidade de adequação da polícia às novas realidades políticas e sociais e numa nova compreensão sobre o estudo do chamado “fenômeno criminal” em todas as suas nuances. A Criminologia aponta que o atual modelo de política criminal - na medida em que prioriza ações de regulação e repressão – somente tem servido para validar a lógica da exclusão.
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Assim, a Criminologia contribui com seus fundamentos para que haja uma perspectiva de solidariedade e cumplicidade na resolução dos problemas, dos individuais aos comunitários e, mesmo que haja a necessidade de uma intervenção repressiva, que esta aconteça na exata medida do restabelecimento dos vínculos para uma convivência segura e cidadã.
Atividades de autoavaliação Ao final de cada unidade, você realizará atividades de autoavaliação. O gabarito está disponível no final do livro didático. Mas, esforce-se para resolver as atividades sem ajuda do gabarito, pois, assim, você estará estimulando a sua aprendizagem.
1. “O projeto político da Modernidade, onde se insere o discurso das ciências criminais, tem como objetivo a busca da felicidade através da negação da barbárie e da afirmação da civilização.” (Salo de Carvalho) Com base no enunciado acima é correto afirmar sobre as ciências criminais e a criminologia: a. As ciências criminais abrangem estudos que visam a compreensão da violência - com destaque para o fenômeno do crime e sua complexidade. b. A Criminologia se ocupa do estudo do homem delinquente e das causas que o levam a praticar atos de violência. c. As ciências criminais são integradas pelas normas penais e processuais penais, bem como pela criminologia e pelos postulados da política criminal, tendo por objetivo controlar a violência e assegurar os ideais de paz social, muito embora isso incorra na realidade social, pois ao invés de contê-la, o Estado acaba por reproduzi-la. d. Historicamente o campo de investigação da criminologia esteve reduzido à concepção voltada à intervenção punitiva, no espaço da pena e dos cárceres e só recentemente se ampliou a perspectiva multifacetada do fenômeno criminal. e. A Política Criminal é a ciência ou a arte de selecionar os bens (ou direitos) que devem ser tutelados jurídica e penalmente e escolher os caminhos para efetivar tal tutela.
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2. “A história das penas é seguramente mais horrenda e infame para a humanidade que a própria história dos delitos”. (Luigi Ferrajoli) Escreva, entre 10 e 15 linhas, com uma perspectiva criminológica, sobre os fundamentos do Direito Penal em nossa sociedade e seus objetivos, dos declarados aos reais!
3. Um governo comprometido com a justiça e o exercício da ética na política, determinado a aprofundar a democracia, incorporando os brasileiros mais pobres à cidadania plena, estendendo a todos os homens e mulheres de nosso país os direitos civis e os benefícios do Estado de Direito Democrático, terá de dedicar-se com prioridade ao combate à violência, em todas as suas formas. Da fome à tortura, do desemprego à corrupção, da desigualdade injusta à criminalidade. (Plano Nacional de Segurança Pública) Com base no enunciado acima, aponte os principais aspectos do Plano Nacional de Segurança Pública, disponibilizado em nosso ambiente virtual de aprendizagem (MIDIATECA), que se alinham com uma política criminal de base criminológica!
4. Apresente uma charge que tenha alguma relação com o perfil do “homem delinquente” descrito por Cesare Lombroso! Faça uma pesquisa na internet, revistas, livros ou jornais.
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Saiba mais BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas: texto integral. 2. ed. São Paulo: M. Claret, 2000. ALVAREZ, Marcos César. A Criminologia no Brasil ou como tratar desigualmente os desiguais. Revista de Ciências Sociais. Rio de Janeiro, Vol. 45, n° 4, 2002, pp 677 – 704.. Disponível em: http://www.nevusp.org/portugues/index.php?option=com_ content&task= view&id=1082&Itemid=96 Se você desejar, aprofunde os conteúdos estudados nesta unidade ao consultar as seguintes referências: FERNANDES, Newton; FERNANDES, Valter. Criminologia integrada. 2. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. HULSMAN, Louk; CELIS, Jacqueline Bernat de. Penas perdidas. O sistema penal em questão. Trad. de Maria Lúcia Karam. Rio de Janeiro: LUAM Editora Ltda., 1993.
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Violência, Controle Social e Sistema Penitenciário Objetivos de aprendizagem
Compreender o fenômeno da violência, da criminalidade, da criminalização e da vitimização.
Conhecer as formas de controle social em nossa sociedade e suas bases de sustentação.
Entender o sistema penitenciário e sua função: da declarada à real.
Seções de estudo Seção 1
Violência, Criminalidade, Criminalização e Vitimização
Seção 2
O Crime e sua Prevenção
Seção 3
O sistema penitenciário e a reinserção social do apenado
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Para início de estudo Por que os governos adotam, tão rapidamente, soluções penais para lidar com comportamento de populações marginalizadas, em vez de cuidar das fontes sociais e econômicas de sua marginalização?
Porque soluções penais são imediatas, fáceis de serem implementadas e podem alegar que “funcionam” como instrumento punitivo ainda que fracassem em todos os outros objetivos. (GARLAND, David. A cultura do controle: crime e ordem social na sociedade contemporânea. Rio de Janeiro: REVAN, 2008, p. 423)
Em nossa primeira unidade, foi apresentado um panorama através da abordagem das ciências ditas criminais, passando pelo esboço de áreas do conhecimento como o Direito Penal, o Direito Processual Penal e a Criminologia. Agora, nesta unidade, o foco será o estudo da violência com destaque para a questão do crime, da criminalização, da vitimização e do papel do Estado e da sociedade na sua prevenção. Nossa intenção é buscar uma melhor compreensão da condição humana e de seus componentes de agressividade, incluindo-se aí os casos de comportamentos considerados psicopatológicos. A questão penitenciária também será abordada no sentido de se conhecer a finalidade das prisões, das declaradas às reais, bem como a situação atual do sistema penitenciário brasileiro e a necessidade de sua recuperação a fim de cumprir o seu papel no processo de reintegração social do apenado. Vamos, então, aos novos estudos!
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Seção 1 – Violência, Criminalidade, Criminalização e Vitimização Simplificando, pode-se afirmar que ao nascer, a violência se expressa em decorrência dos traumas do ato em si (parto e dor); na morte, pelo desaparecimento e sofrimento que gera; e no viver, decorrente do exercício conflituoso da vida e da necessidade de sobrevivência. Portanto, parte-se do pressuposto de que a história da humanidade esteve envolvida pela violência, pelos conflitos, inerentes à vida em sociedade. Muitos são os registros de guerras, perseguições, disputas, questões de gênero, preconceitos, desigualdades, terrorismos, explorações, e pela modalidade de violência que muitas vezes é entendida e definida por valores de determinados grupos sociais organizados: os fatos considerados criminosos, da criminalidade e dos processos de criminalização. Historicamente, o ser humano é falível no que se refere aos seus sentimentos, reações, impulsos, comportamentos, enfim, como ser político por natureza, o homem nasce, vive e morre num contexto das mais variadas condições e possibilidades de situações de poder e conflitos, tendo estabelecido consensualmente nas sociedades uma estrutura de poder superior para sua resolução (a que denominamos “Estado”) fazendo com que as sociedades transitem entre a auto-regulação e o controle formal. Essas estruturas evocavam inicialmente forças metafísicas, religiosas, presentes nos relatos históricos das figuras dos pajens, chefes de tribo, feiticeiros, enfim, cuja autoridade definia a figura do proibido, do pecado, do castigo. Na realidade. consistia numa das manifestações de poder e cooptação sobre o grupo. Hans Kelsen nos dá uma dimensão aproximada da natureza das normas dos povos antigos: [...] na consciência dos homens que vivem em sociedade, existe a representação de normas que regulam a conduta entre eles e vinculam os indivíduos. [...] As normas mais antigas da humanidade são provavelmente aquelas que visam frenar e limitar os impulsos sexuais e agressivos.
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O incesto e o homicídio são deveras os crimes mais antigos, e a perda da paz (isto é a exclusão do grupo) e a vingança de sangue as mais antigas sanções socialmente organizadas. Está-lhes na base uma regra que determina toda a vida social dos primitivos, a regra da retribuição (retaliação). (2003, p.92)
A violência, na sua característica estrutural, institucional ou individual, manifesta-se das mais variadas formas sobre a(s) pessoa(s), direta ou indiretamente, de forma ostensiva ou oculta, de maneira instrumental ou simbólica, gerando uma série de consequências. Dentre as várias maneiras e formas de compreender a violência enquanto fenômeno social, vamos recorrer a uma definição ampla do termo, baseada em Yves Michaud: Há violência quando, numa situação de interação, um ou vários autores agem de maneira direta ou indireta, maciça ou esparsa, causando danos a uma ou várias pessoas em graus variáveis, seja em sua integridade física, seja em sua integridade moral, em suas posses, ou em suas participações simbólicas e culturais. (2001, p.11)
Não se pode esquecer que, com a estatização dos aparatos político-jurídicos e com a modernização da burocracia estatal e seus instrumentos, emergiu uma nova figura simbólica: o chamado “Estado de Direito”, que, para ter legitimidade, teve que se estabelecer sobre bases democráticas. Mas isso não foi suficiente para parar os impulsos geradores das violências em suas diferentes formas de expressão e “distribuição”. E o sistema penal, surgido exatamente para conter a violência, tem sido historicamente um dos (re)produtores mais eficientes dessas violências. Exemplo disso são as legislações penais da Grécia e da Roma Antiga, onde a construção de uma teoria da pena tinha suas bases no excesso punitivo (sendo comuns o emprego da pena de morte, o desterro, a imposição da Lei de Talião – “olho por olho, dente por dente”) e outras formas de retaliação para questões de pouca gravidade. A Europa, no século XVIII, essa crueldade também teve muita visibilidade, a ponto de: 50
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(...) Na França, até que a Revolução de 1789 igualasse todo mundo na hora de prestar contas ao carrasco, aos nobres era reservado o método indolor da decapitação, enquanto para as pessoas de baixa extração sobravam geralmente a forca, a fogueira e o terrível suplício da roda, no qual o carrasco, depois de amarrar a vítima na horizontal com o rosto virado para o céu, braços e pernas bem abertos fazendo um grande “xis”, quebrava-lhe as articulações dos membros com uma barra de ferro, depois aplicava-lhe alguns golpes violentos no estômago. Era chamado suplício da roda porque, finda essa primeira parte, o carrasco dobrava os braços e pernas do suplicado para trás, de modo que os calcanhares tocassem a cabeça do infeliz, e amarrava o sinistro “embrulho” numa roda, também na horizontal, que ficava exposta ao público. (OLIVEIRA, 1994, p.)
No Brasil, a história da violência se destaca pelas injustiças históricas e processos de marginalização que vão da esfera penal à social, sempre com dificuldades de reconhecimento dos direitos mais elementares da pessoa humana. Os índios foram as primeiras vítimas desse processo. Segundo Dalmo de Abreu Dallari: Na realidade, desde o início da colonização do território brasileiro pelos portugueses, no ano de 1500, foi estabelecida no Brasil uma sociedade profundamente marcada pela diferenciação entre os novos senhores da terra e os outros. As primeiras vítimas dessa nova sociedade foram os índios, primitivos habitantes da terra brasileira, que o colonizador explorou de várias formas, tentando escravizá-lo e roubando suas terras. Acostumado a viver em liberdade, em relação íntima com a natureza, o índio tentou resistir, mas a superioridade de armas e a ambição de riqueza dos colonizadores foram mais fortes. Calculam os historiadores que existiriam no Brasil, no ano de 1500, entre quatro e cinco milhões de índios. Mas eles foram sendo dizimados, ou pelas armas ou por falta do ambiente natural que garantia sua sobrevivência, conseguindo sobreviver apenas as comunidades mais protegidas pela floresta e poucos grupos isolados em alguns pontos do litoral. Hoje restam menos de trezentos mil índios, muitos deles sendo vítimas da espoliação e das pressões da sociedade circundante. Empresários e Unidade 2
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agentes do governo se mostram impacientes e procuram apressar a eliminação dos grupos tribais remanescentes, considerados obstáculos à plena ocupação do território e à exploração das riquezas do solo e do subsolo. (...) É um genocídio mais ou menos disfarçado, que necessita de algum tempo para se consumar, mas é absolutamente certo. Os “civilizados” estão assassinando os “selvagens”. (2007, pp. 30 – 31)
Com os afrodescendentes, a história não foi diferente: diante da resistência dos índios em serem escravizados (os colonizadores interpretavam como “pouca aptidão para o trabalho”) eles foram “importados” por Portugal de suas colônias africanas, implantadas por volta do século XV. Os negros eram trazidos nos chamados “navios negreiros”, em condições desumanas, sendo que muitos morriam mesmo antes de chegar ao Brasil. A escravidão consistiu na apropriação sobre o outro - o escravo por meio da coerção e da força, em que um “senhor”, “dono” ou “comerciante” tinha direitos sobre o mesmo, podendo explorar sua força produtiva, comprar ou vendê-lo e puni-lo, no Brasil pelo chamado “castigo exemplar”, aplicado em público e visando intimidar os demais escravos. A escravidão ocorreu desde a antiguidade e foi utilizada por diversos povos e civilizações. No Brasil, a violência da escravidão esteve muito presente e faz parte da construção da nação brasileira. Segundo Eduardo Bueno: No porão dos navios negreiros que por mais de trezentos anos cruzaram o Atlântico, desde a costa oeste da África até a costa nordeste do Brasil, mais de três milhões de africanos fizeram uma viagem sem volta, cujos horrores geraram fortunas fabulosas, ergueram impérios familiares e construiram uma nação. O bojo dos navios da danação e da morte era o ventre da besta mercantilista: uma máquina de moer carne humana, funcionando incessantemente para alimentar as plantações e os engenhos, as minas e as mesas, a casa e a cama dos senhores – e, mais do que tudo, os cofres dos traficantes de homens. A cena foi minuciosamente descrita por centenas de obervadores. Quanto mais são os depoimentos cotejados, mais dificil é crer que
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tantos sobrenomes famosos tenham seu fausto e suas glórias vinculados a tantas desgraças. Mas assim foi, e assim teria sido por mais tempo se, por circunstâncias meramente econômicas, a escravidão não deixasse de ser um negócio tão lucrativo.(2010, p. 124)
Figura 1 - Condição da Escravidão no Brasil Imperial. Pintura de Jean-Baptiste Debret Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Escravid%C3%A3o
No ciclo do ouro no Brasil, os escravos eram submetidos, além das punições, a exaustivos e árduos trabalhos; a condições de risco, pois muitos se feriam ou morriam em acidentes como os provocados pelos gases que alimentavam as lamparinas e carburetos; à má alimentação e a péssimas condições de higiene que deterioravam suas condições de saúde, sendo que a maioria, iniciando suas atividades na mineração, ainda como crianças, acabavam morrendo após cinco/dez anos de trabalho. Há relatos de que se escolhiam escravos em fase púbere com determinado tipo físico (estatura baixa para o trabalho apertado nas minas) para serem “reprodutores” e muitos deles eram “castrados” de forma rudimentar (marretada em cima do escroto sobre pedra) para não terem desenvolvimento físico que inviabilizasse seu trabalho nas minas de ouro. Um poder que se mantinha no controle tendo como base a violência .
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Figura 2 - Escravo sendo açoitado em Minas Gerais, durante o auge do ciclo do ouro Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Escravid%C3%A3o
Figura 3 - Trabalho escravo em mina de ouro – Pintura de Rugendas Fonte: http://www.suapesquisa.com/historiadobrasil/ciclo_ouro.htm
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Figura 4 - Castigo aos Escravos Fonte: http://www.cliohistoria.hpg.ig.com.br/bco_imagens/rugendas/santana.htm
Com a abolição da escravatura no ano de 1888, começou a migração, para o Brasil, de um grande contingente de trabalhadores europeus, o que gerou um novo problema: Os negros libertados, sem dinheiro e sem preparação profissional, foram abandonados à sua própria sorte e passaram a constituir um segmento marginal da sociedade. Vivendo na miséria e, além disso, vítimas de um tratamento preconceituoso, passaram a trabalhar nas atividades mais rudimentares e com menor remuneração, o que arrastou muitos deles para a criminalidade, agravando ainda mais os preconceitos, embora estes sejam sempre negados. (DALLARI, 2007, p. 31)
A classe dominante brasileira da época se encarregou de elaborar leis que criminalizassem as classes consideradas “subalternas”, onde os pobres e negros em geral foram os principais alvos, além de mobilizar as estruturas de poder para exercer o controle pela via punitiva. Tem-se como exemplo, dentre outros, a previsão de ser crime os atos de capoeira e de vadiagem - pano de fundo para justificar os instrumentos de repressão e de controle social e proibir o acesso dos indivíduos de camadas sociais mais baixas à participação política e seu melhor acesso aos bens materiais. O controle da segurança pública nesse cenário de desigualdade social, representada principalmente pelo escravagismo, se dava por meio do emprego, para a manutenção da ordem e dos meios de produção da economia, do que seriam os embriões das Unidade 2
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atuais polícias. Não havia interação entre as instituições e as comunidades, mas sim um conjunto de constantes intervenções do Estado que judicializavam os conflitos visando o controle e o domínio. O patronato, o paternalismo, o clientelismo e outras formas espúrias de relação de poder e autoritarismo se fundamentaram neste contexto. Portanto, ao lado das situações de desigualdade, das injustiças e da marginalização social, o problema da violência é decorrente também dos fatos considerados crime, sendo delegado a um sistema formal de controle chamado de “Sistema Penal” - composto pelo Legislador (criminalização primária), Polícia, Ministério Público e Judiciário (criminalização secundária) - indo até os mecanismos de controle social informal, como a família, a escola, o mercado de trabalho, a mídia.
Essas estruturas sociais acabam - de forma articulada e seguindo uma “orquestração ideológica” proveniente de um modelo sóciopolítico que incorporou novos padrões de dominação - destacandose a econômica, gerando desigualdades, exclusão social e um aumento dos processos de criminalização, que, como foi abordado anteriormente, tem recaído sobre um alvo preferencial: os pobres, submetidos em nossas prisões aos mais vergonhosos aviltamentos de suas garantias e direitos fundamentais, além da perda da sua subjetividade como ser humano. Segundo Roberto Porto:
Ao ingressar em um presídio brasileiro, o sentenciado é “despido de sua aparência usual”. É despojado de seus pertences pessoais, recebendo um uniforme padronizado, o qual é obrigado a utilizar. Seu nome é substituído por um número, denominado matrícula. O seu cabelo é raspado. É privado de toda e qualquer comodidade material, recebendo tão-somente o necessário a sua higiene pessoal. E, por fim, é informado das normas do estabelecimento e das consequências do se descumprimento.
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Este processo, denominado perda da subjetividade, consiste na desprogramação do indivíduo, na perda de sua identidade, de modo a torná-lo apto a um novo mecanismo de reprogramação, agora baseado em regras de enquadramento, adestramento e de padronização. Ao determinar ao sentenciado uma rotina diária a ser seguida, pretende-se uma renúncia à própria vontade e ao desejo. Este sistema, denominado por Goffman pasteurização do indivíduo, consiste na perda e na anulação da singularidade. Os dados empíricos apresentados refletem a ideologia que está por detrás das práticas propostas pelo sistema penal: punir os pobres! Daí a distinção entre a criminalidade e a criminalização, ambas operadas pelo sistema penal, em que a primeira corresponde aos resultados apresentados pela segunda mediante os processos de definição, etiquetamento e seleção. Essa forma de interpretar e significar o problema da violência e da criminalidade, em que o sistema de justiça criminal se limita a sua reprodução encontrando notável visibilidade nos cárceres e que se subsume a sofrimento e dor não é algo exclusivo da sociedade brasileira, é fenômeno global e que vem sendo repensado e discutido por pesquisadores no sentido de se vislumbrar alternativas a um modelo falido há algum tempo. Sobre a questão do crime, enquanto conduta, criminalidade enquanto ato de violência tipificado como crime e criminalização como ação do Estado sobre quem praticou esse ato, Vera Regina Pereira de Andrade nos esclarece que: Uma conduta não é criminal “em si” (qualidade negativa ou nocividade inerente) nem seu autor um criminoso por concretos traços de sua personalidade ou influências de seu meio ambiente. A criminalidade se revela, principalmente, como um status atribuído a determinados indivíduos mediante um duplo processo: a “definição” legal de crime, que atribui à conduta o caráter criminal, e a “seleção” que etiqueta e estigmatiza um autor como criminoso entre todos aqueles que praticaram tais condutas. Consequentemente, não é possível estudar a criminalidade independentemente desses processos. Por isso mais apropriado que falar da criminalidade (e do criminoso) é falar da criminalização (e do criminalizado), e esta é uma das várias maneiras de construir a realidade social. (2003, p.41)
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Dessa maneira, o sistema de justiça criminal tem se apresentado como um instrumento de exclusão, onde, de forma recorrente, a mediação dá lugar à judicialização dos conflitos pela criminalização e pela crescente geração de novos estereótipos de “criminosos”. (Para recordar, nós abordamos esse assunto também na unidade 1). Com isso, se reproduz a violência, quer no plano simbólico como no plano real: A política criminal, enquanto programa de controle do crime e da criminalidade, no Brasil, influenciada pelo modelo norte-americano, se configura como mera política penal, pois ´exclui políticas públicas de emprego, salário, escolarização, moradia, saúde e outras medidas complementares, como programas oficiais capazes de alterar ou reduzir as condições sociais adversas da população marginalizada do mercado de trabalho e dos direitos de cidadania, definíveis como determinações estruturais do crime e da criminalidade´. (SILVEIRA FILHO, 2007, p. 346)
Esse paradigma, modelo, que permeia as ações do sistema de justiça criminal, em que se percebe a expansão do controle punitivo e o aumento dos índices de encarceramento, recai na reprodução das violências, quer no plano macrossocial (como resultante de um modelo de sociedade desigual), como também na esfera das individualidades (o que traz, também, como consequência a deslegitimação e a desestruturação do chamado “Estado Democrático de Direito”). A vitimização, enquanto expressão de violência, é outro aspecto a ser considerado nesse contexto, pois muitas vezes acaba sendo esquecida - o interesse maior do sistema de justiça criminal é sempre no autor do delito, visando sua punição - relegando-se a segundo plano a proteção e os interesses da vítima.
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Segundo a “Declaração dos Princípios Fundamentais de Justiça relativos às Vítimas da Criminalidade e de Abuso de Poder”, entende-se por vítimas: As pessoas que, individual ou coletivamente, tenham sofrido um prejuízo, nomeadamente um atentado à sua integridade física ou mental, um sofrimento de ordem moral, uma perda material, ou um grave atentado aos seus direitos fundamentais, como consequência de atos ou de omissões violadores das leis penais em vigor num Estado membro, incluindo as que proíbem o abuso de poder. A referida Declaração prevê ainda que: Uma pessoa pode ser considerada como “vítima”, no quadro da Declaração, quer o autor seja ou não identificado, preso, processado ou declarado culpado, e qualquer que sejam os laços de parentesco deste com a vítima. O termo vítima inclui, conforme o caso, a família próxima ou as pessoas a cargo da vítima e as pessoas que tenham sofrido um prejuízo ao intervirem para prestar assistência às vítimas em situação de carência ou para impedir a vitimização.
Nesse sentido, é oportuno destacar que cabe o reconhecimento como vítimas as pessoas, além daquela que sofreu ou suportou diretamente o ato violento provocado pela violação de direito, que mantêm vínculos com o agredido, sendo vítimas indiretas. Um exemplo disso é o das “vítimas” do sistema penitenciário, ou seja, dos que são criminalizados, rotulados e etiquetados como perigosos e encarcerados, quando não esquecidos nos cárceres, onde os efeitos da prisonização vão além dos muros das prisões, atingindo também familiares e amigos do preso. Elas, na maioria das vezes, também têm que se submeter ao processo de exclusão e de violência típica ao sistema quando se realizam visitas, tendo que se expor a humilhações como, por exemplo, às revistas pessoais íntimas, às buscas e ao ambiente nocivo típico do meio prisional. A vitimização não se reduz ao efeito produzido por uma agressão, mas também aos efeitos psicológicos sobre a vítima. E prossegue em decorrência de atos do próprio Estado na persecução criminal - em que o agredido terá que prestar declarações, realizar exames, se submeter ao processo judicial Unidade 2
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instaurado, muitas vezes não recebendo o devido tratamento como sujeito de direitos, mas sim como “objeto de investigação” - e até mesmo posto sob prova em alguns crimes, como, por exemplo, os contra os costumes, se destacando o estupro, o atentado violento ao pudor e o assédio sexual. O acesso à justiça e o tratamento equitativo também está previsto na Declaração dos Princípios Fundamentais de Justiça Relativos às Vítimas da Criminalidade e de Abuso de Poder (Resolução 40/34), conforme consta em seu anexo A:
As vítimas devem ser tratadas com compaixão e respeito pela sua dignidade. Têm direito ao acesso às instâncias judiciárias e a uma rápida reparação do prejuízo por si sofrido - de acordo com o disposto na legislação nacional.
Há que criar e - se necessário reforçar - mecanismos judiciários e administrativos que permitam às vitimas a obtenção de reparação através de procedimentos, oficiais ou oficiosos, que sejam rápidos, equitativos, de baixo custo e acessíveis. As vítimas devem ser informadas dos seus direitos para procurar a obtenção de reparação por estes meios.
A capacidade do aparelho judiciário e administrativo para responder às necessidades das vítimas deve ser melhorada: a) Informando as vítimas da sua função e das possibilidades de recurso abertas, das datas e da marcha dos processos e da decisão das suas causas, especialmente quando se trate de crimes graves e quando tenham pedido essas informações; b) Permitindo que as opiniões e as preocupações das vítimas sejam apresentadas e examinadas nas fases adequadas do processo, quando os seus interesses pessoais estejam em causa, sem prejuízo dos direitos da defesa e no quadro do sistema de justiça penal do país; c) Prestando às vítimas a assistência adequada ao longo de todo o processo; d) Tomando medidas para minimizar, tanto quanto possível, as dificuldades encontradas pelas vítimas, proteger a sua vida privada e garantir a sua segurança, bem como a da sua família e a das suas testemunhas, preservando-as de manobras de intimidação e de represálias; e) Evitando demoras desnecessárias na resolução das causas e na execução das decisões ou sentenças que concedam indenização às vítimas.
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Os autores de crimes ou os terceiros responsáveis pelo seu comportamento, se necessário, reparar de forma equitativa o prejuízo causado às vítimas.
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No Brasil, a legislação vem incorporando a preocupação com as vítimas: elas estão sendo compreendidas como sujeito de direitos. Assim, o Estado, ao se apropriar do conflito, deverá sempre levar em consideração os interesses e proteção dos vitimizados, sobretudo com relação aos seus direitos fundamentais.
Seção 2 – O Crime e sua Prevenção O “Crime” e a “Violência” são temas que têm feito parte dos diferentes estágios civilizatórios das sociedades, desde os tempos primitivos ou arcaicos, com registros obtidos das inscrições rupestres sugestivas das formas de interação humana daquela época, passando pela Antiguidade Clássica em que as obras poéticas da época, como a Ilíada e a Odisseia (Poemas épicos de Homero), retratavam a forma de organização social e seus problemas. Além delas, a obra “Antígona” de Sófocles nos demonstra a crise histórica estabelecida entre o Direito Natural e o Direito Positivo; a Idade Média, com o Estado Absolutista, que passou a ser chamado por alguns historiadores e criminólogos também como “Estado de terror penal”; a Idade Moderna, com o positivismo jurídico derivado de dogmas e postulados que, com base principalmente na razão, contribuíram para elaborar instrumentos jurídicos de controle social que também terminaram em expressões de violência; e a época Contemporânea, que nos confronta com um modelo político, econômico e social que tem contribuído para fomentar a cultura do medo e da violência. O crime, o castigo, a punição, como já visto anteriormente, fazem parte do processo civilizatório, tais como:
o Código de Hammurabi na região mesopotâmica
a legislação Mosaica constante nos livros da Bíblia.
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Como foi dito na unidade 1, na tragédia Antígona, de Sófocles, o conflito se estabelece entre Antígona — que representa a família — e Creonte — que representa a cidade. Os irmãos de Antígona lutam em partidos contrários; um deles, acusado por Creonte de traição política, é vencido e morto em combate pelo outro irmão. Como traidor político, a lei da cidade não lhe dá o direito ao funeral e à sepultura; portanto, não tem direito à outra vida, pois, sem o ritual fúnebre e o sepultamento, o corpo é destruído pelos animais e não forma a sombra inteira, necessária à outra vida. Antígona, contra a lei da cidade, realiza o ritual fúnebre, por piedade fraternal. Assim, a tragédia, além de narrar a diferença entre o passado e o presente, também narra os conflitos entre as leis do costume (o passado familiar) e as leis escritas da cidade. (Marilena Chaui. Introdução à história da filosofia, p. 114)
Código de Hammurabi: monumento jurídico mais importante da Antiguidade antes de Roma. Continha 282 artigos, sendo muito desenvolvido para a época, sobretudo no domínio do Direito Privado. Hammurabi foi rei da Babilônia, provavelmente entre 1726 – 1686 a.C. (Maior aprofundamento ver: GILISSEN, John. Introdução Histórica ao Direito. Trad. de A. M. Hespanha e L. M. Macaísta Malheiros. 3. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.
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Povos do norte da península itálica e da Europa, que invadiram o Império Romano do Ocidente. Eram assim chamados pelos gregos e romanos em razão de suas características físicas e comportamento considerado grosseiro, rude e selvagem.
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as reflexões de Confúcio (551 – 478) - “tem cuidado de evitar os crimes para depois não ver-te obrigado a castigá-los”. os gregos, que como Esopo afirmou que “os crimes são proporcionais à capacidade dos que os cometem”. outros pensadores da antiguidade clássica como Isocrates (436 – 38 a.C) – “ocultar o crime é tomar parte nele” -, Protágoras (485 – 415 a.C.) que sustentou o caráter preventivo da pena; Sócrates (470 – 399 a.C.). através de Platão (427 – 347) afirmando “que se devia ensinar aos indivíduos que se tornavam criminosos como não reincidirem no crime, dando a eles a instrução e a formação de caráter de que precisavam” e que “o ouro do homem sempre foi motivo de seus males”. (A República) Aristóteles (384 – 322) sugerindo que “a miséria engendra rebelião e delito”. e Sêneca, em Roma (4 a.C. – 65 d.C), com sua análise sobre a ira, que considerava a mola propulsora do crime, argumentando ser a razão da sociedade viver em constante luta fratricida. (FERNANDES, 2002)
Nessa breve abordagem histórica, é oportuno relembrar que, com a queda do Império Romano do Ocidente em 476 d.C. e as conquistas dos povos bárbaros, ocorre um pluralismo de ordens jurídicas criando um ambiente favorável para a consolidação, na Europa, de um novo modelo político econômico: o Feudalismo, com a nobreza feudal sob a proteção do papado - bem como a “expansão do cristianismo, como ideologia religiosa oficial orquestrada pelas classes econômica e politicamente mais fortes e dominantes”. (FERNANDES, 2002, p. 63) As relações feudais consolidaram o Estado Absolutista e, com isso, os preceitos proibitivos e a maneira de punir ficaram ao arbítrio dos senhores de terra e sob o jugo das monarquias daquele período histórico. A natureza e o caráter expiatório das penas atingiam não apenas a liberdade, mas principalmente o “corpo” do condenado, consistindo nos castigos corporais, nas galés, nos degredos.
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Assim, o contexto geopolítico da Europa, decorrente do processo de formação daqueles países, fez com que decorresse um pluralismo de ordens jurídicas e ocorressem algumas transformações a partir dos séculos XII e XIII. Segundo Gillissen: [...] As transformações, aparentemente lentas e progressivas, conduzem a uma verdadeira revolução na concepção jurídica e também política, econômica e social. Passa-se dum sistema de direito feudal ou, no Norte e no Leste, de direito arcaico para um sistema desenvolvido e evoluído, racional e equitativo, de tendência individualista e liberal. [...] Os que exercem o poder tendem a manter a ordem e a paz pelo desenvolvimento da sua polícia e da sua justiça. Assim se formam os embriões dos Estados modernos [...] O poder de fazer leis passa progressivamente dos senhores e das cidades para os soberanos e depois para a nação. (GILISSEN, 2001, pp. 205 - 206)
As mudanças ocorrem também no campo penal, como a que substituiu o sistema de provas irracionais, em que se evocava os ordálios (os juízos de Deus) e os duelos judiciários para a resolução dos conflitos por juízes ou árbitros, a fim de investigarem a verdade e decidirem com bases em regras de direito, surgindo a Justiça e a Equidade como fundamentos do Direito. (GILISSEN, 2001) A transição da Idade Média para a Idade Moderna, entre os séculos XIV e XVI, manteve a influência de alguns valores e postulados metafísicos, religiosos e das chamadas “ciências ocultas”, exemplo disso são os tribunais inquisitoriais da Idade Média e suas perseguições, a Astrologia relacionando o movimento dos astros com o comportamento humano, a Quiromancia prevendo o futuro pelas linhas das mãos, ou a Demonologia. Sobre a Demonologia, segundo Fernandes, [...] buscava conhecer os indivíduos pretensamente possuídos pelo demônio, com o que facilitou o
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florescimento de todas as Inquisições havidas na Humanidade. Esta ciência é que propiciou o aparecimento, na Idade Média, da Psiquiatria. Naquela época, como é sabido, eram considerados como possuídos pelo demônio os loucos e os portadores de alienação mental, que eram sistematicamente caçados e encarcerados, quando não sacrificados pelos terríveis Tribunais da Inquisição espalhados por todo o mundo. (FERNANDES, 2002, p. 64)
Essa mesma demonologia, que servia como subterfúgio para a manutenção do poder e como instrumento de controle social, acabou atravessando séculos e atingiu nosso tempo com o surgimento de novas modalidades de extermínio, em que diante da ameaça do “outro”, o castigo, o sofrimento e a exclusão têm sido as respostas mais alvissareiras. Em outras palavras, a “demonização” do outro enquanto não mais enquadrado como “força produtiva” ou sua condição de “diferente” é algo recorrente em nossa sociedade: o aluno rebelde, o portador de necessidades especiais, o radical, e os três “pês”! Desse modo, surge o Direito Penal como instrumento destinado à resolução de conflitos e à proteção de bens jurídicos considerados mais relevantes. Ricardo Antonio Andreucci nos apresenta o seguinte conceito de Direto Penal: O Direito Penal pode ser conceituado como o conjunto de normas jurídicas que estabelecem as infrações penais, fixam sanções e regulam as relações daí derivadas.
A luta pela sobrevivência sempre marcou a existência do homem na face da Terra. Desde as mais remotas épocas, ele se viu diante das agruras da vida primitiva, sendo obrigado a desenvolver formas e mecanismos de defesa que pudessem resguardá-lo das ameaças e dar-lhe um mínimo de tranquilidade para o desempenho das tarefas do quotidiano. (...) Criou-se, então, uma forma de controle social institucionalizada, tendo como integrante o sistema penal, do qual faz parte o Direito Penal.
Assim, cumpre ao Direito Penal selecionar as condutas humanas consideradas lesivas à coletividade, transformandoas em modelos de comportamentos proibido, denominados crimes, e estabelecendo punições para quem os infringir, chamadas sanções penais. (2008, p. 3)
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O crime é o objeto central sobre o qual se assenta o Direito Penal no sentido de regular através de normas o convívio social estabelecendo as condutas proibitivas sobre os atos mais gravosos e que ensejam a regulação e a intervenção do Estado, que culminam, em última análise, nas práticas punitivas. O Decreto-Lei número 3.914, de 9 de dezembro de 1941, em seu artigo 1°, assim define o Crime: Considera-se crime a infração penal a que a lei comina a pena de reclusão ou de detenção, quer isoladamente, quer alternativa ou cumulativamente com a pena de multa; contravenção, a infração penal a que a lei comina, isoladamente, pena de prisão simples ou de multa, ou ambas, alternativa ou cumulativamente.
Esse é o conceito jurídico de crime, estabelecido pelo direito, cabendo destacar que existe diferença entre o ilícito penal e o ilícito civil, pois enquanto o primeiro tem como sanção uma “pena” chamada criminal, o segundo se limita a obrigar o responsável pelo ato a repor o prejuízo. O ilícito penal e o ilícito civil podem coexistir num mesmo ato, mas as responsabilidades serão distintas na seara penal e na seara civil. Para Ricardo Antonio Andreucci (2008, p.33) o crime pode ser conceituado sob os aspectos material, formal e analítico:
Conceito material de crime: violação de um bem penalmente protegido. Conceito formal de crime: conduta proibida por lei, com ameaça de pena criminal. Conceito analítico de crime: fato típico e antijurídico.
Esses conceitos encontram limitação pelo seu caráter eminentemente jurídico e dogmático, sabendo-se que muito embora o Direito Penal encontre legitimação em seus objetivos declarados de proteção e garantia de direitos e de defesa da sociedade, o atual modelo jurídico-penal está em decadência, pois não cumpre seu papel de prevenir a violência que se refere ao fato crime.
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O que acontece é que se insiste em ver o crime no “homem”, sem se levar em conta as relações e as dinâmicas sociais, econômicas, políticas e culturais que levam às diferenças e aos conflitos, buscando-se a individualização de responsabilidades e apontando respostas pelo espaço da “pena”. É questionável, portanto, a atribuição de responsabilidades de forma eminentemente individual. Segundo Theodomiro Dias Neto: A noção de responsabilidade, ou livre arbítrio, não é, contudo, algo que se possa deduzir de uma incontestável verdade empírica ou metafísica, mas definição social. A avaliação sobre se um ato foi resultado de livre-escolha, coação, imprudência ou do acaso será feita a partir de critérios socialmente convencionados. Toda conduta humana, qualquer que seja o juízo moral ou jurídico que dela se tenha, é passível de uma “explicação”, ou seja, passível de ser inserida num contexto de relações causais. Sempre haverá fatores (psicológicos, econômicos, culturais, políticos, religiosos) motivando a prática de um ato e não há nada na essência desses fatores que conduza a um sentido absoluto de responsabilidade. (2005, p. 79)
Assim, deve-se entender o crime não apenas como ato definido normativamente e de caráter “individual”, mas como fato e fenômeno social a fim de que não ocorra a “recondução do sistema penal a um sistema seletivo e classista e de violência institucional como expressão e reprodução da violência estrutural, isto é, da injustiça social”. (ANDRADE, 2003, p. 56)
Essa perspectiva permite que se promova outras formas de prevenção ao crime, pois se cede espaço para o diálogo e para novas maneiras de articulação e mediação dos conflitos, minimizando sua judicialização pela via punitiva. Articula pela via da política pública, e não apenas da política criminal, respostas mais adequadas e com uma ampla coalização de sujeitos em torno do objetivo maior de promoção da pacificação social. Assim, para Theodomiro Dias Neto:
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Prevenir o crime, afrontar o problema do medo, diminuir os custos sociais do crime e da reação social ao crime, garantir as condições materiais, e não meramente simbólicas, de segurança, não são tarefas que possam ser exercidas por uma única instituição, mas que requerem a co-responsabilidade do conjunto das instituições democráticas de um território. (2005, p. 118)
A situação é preocupante, pois segundo dados do Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN), houve um aumento da população carcerária de 4,3% em relação a 2009. Na primeira metade do ano de 2009, o Brasil tinha 494.237 presos, sendo que em dezembro de 2009 a população carcerária era de 473.626. A projeção do DEPEN previu um crescimento entre 5 e 7%, com a possibilidade de que 2010 se encerrasse com meio milhão de presos. (DEPEN, 2009) Evidencia-se que a questão do crime, enquanto expressão de violência, e de sua prevenção é multifatorial e envolve a atuação de vários atores, requerendo mobilização geral e uma concepção que pela via da garantia dos direitos fundamentais propicie também a prevenção dos delitos.
Seção 3 – O sistema penitenciário e a reinserção social do apenado O Estado tem monopolizado, pelo sistema de justiça criminal, a questão da segurança, da apuração de crimes e da punição dos ditos “criminosos”. O sistema moderno de captura, acusação e punição de violadores da lei penal se tornou especializado e, ao mesmo tempo, diferenciado, constituindo parte do aparato do Estado moderno. Ao longo do tempo, veio a ser administrado por burocracias profissionais, por instituições úteis, por leis e por sanções, especialmente designadas para este propósito. (GARLAND, 2008, p. 97)
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O sistema de justiça criminal, como cota parte integrante do Estado, e seus subsistemas formais e informais projetam-se com um modus operandi que se pauta na repressão e na punição como bases da política criminal brasileira - evidenciando esse tipo de relação como suporte para a manutenção das relações de dominação e poder. Nesse sentido, o sistema de justiça criminal apresenta-se como um instrumento de exclusão, em que, de forma recorrente, a mediação dá lugar à judicialização dos conflitos pela criminalização e pela crescente geração de novos estereótipos de “criminosos”. Com isso, se reproduz a violência, quer no plano simbólico como no plano real: A política criminal, enquanto programa de controle do crime e da criminalidade, no Brasil, influenciada pelo modelo norte-americano, se configura como mera política penal, pois ´exclui políticas públicas de emprego, salário, escolarização, moradia, saúde e outras medidas complementares, como programas oficiais capazes de alterar ou reduzir as condições sociais adversas da população marginalizada do mercado de trabalho e dos direitos de cidadania, definíveis como determinações estruturais do crime e da criminalidade´. (SILVEIRA FILHO, 2007, p. 346)
Esse modelo que dá base às ações do sistema de justiça criminal, em que prevalece a expansão do controle punitivo e o aumento dos índices de encarceramento, redunda na reprodução das violências, quer no plano macrossocial - como resultante de um modelo de sociedade desigual - como também na esfera das individualidades, o que traz também como consequência a deslegitimação e desestruturação do chamado “Estado Democrático de Direito”. Em nosso país, as estruturas integrantes do sistema de justiça criminal vivem uma situação de permanente crise, notabilizada pelas sérias violações de direitos humanos que ocorrem rotineiramente em nossos “cárceres”, e que são decorrentes, em grande parte, por problemas como: 68
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longo período de encarceramento tanto de presos provisórios como condenados sob custódia da polícia e não em instituições penais; reduzido número de pessoal no sistema penitenciário agravado pela deficiente qualificação, capacitação e treinamento; falta de assistência aos presos (psicológica, médica, social, familiar); exposição dos presos a uma série de doenças infectocontagiosas;
corrupção dos agentes do sistema;
má administração;
deficiente infraestrutura;
revistas sem critérios e violadoras de direitos e garantias individuais dos presos; torturas e maus tratos, dentre outras.
O Relatório sobre Tortura e Maus Tratos no Brasil, feito pela Anistia Internacional no ano de 2001 - cuja realidade não difere da atual e está ainda mais agravada -, registra que: A superlotação extrema, causada pela presença de detentos aguardando julgamento e também pela aplicação de sentenças excessivamente punitivas a delitos menores, exauriu o sistema penitenciário, que já não tem mais condições de lidar com o número de presos que mantém. Os presos são apinhados em celas escuras e sem ventilação, onde permanecem expostos a doenças potencialmente mortais, como a AIDS e tuberculose, para as quais recebem pouco ou nenhum tratamento. Sem contar que ainda não são separados, conforme seu delito nem pena. (...) Motins e fugas semanais e casos quase diários de agressão indicam que em muitas prisões as autoridades perderam o controle. A corrupção impera, o pessoal encarregado do cuidado e reabilitação de presos não tem recursos para fazer seu trabalho. Os guardas das
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prisões não têm treinamento profissional em habilidades importantes tais como métodos de contenção e, tal como os internos, correm o risco de violência. Apesar da enorme responsabilidade inerente ao trabalho que fazem, não dispõem de diretrizes oficiais que os orientem nem são devidamente monitorados. (2001, pp. 26 – 27)
O Plano Nacional de Segurança Pública (PNSP) apresenta um conjunto de propostas de superação da crise do Sistema Penitenciário Brasileiro que enfocam duas vertentes, no âmbito das iniciativas do governo federal e dos governos estaduais: 1. A primeira diz respeito “às medidas que possibilitem reservar a pena de prisão para os crimes mais graves, que se constituam em ameaça concreta ao convívio social”. 2. A segunda refere-se “às iniciativas específicas em relação ao sistema penitenciário”. (PNSP, 2000) Com relação às iniciativas específicas destacam-se, além das voltadas aos infratores, em que se busca restringir a pena de prisão para os casos mais graves, as seguintes:
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efetivo apoio técnico e financeiro aos estados que criarem programas de penas alternativas, principalmente prestação de serviços à comunidade.
abertura de crédito em instituições federais de fomento à pesquisa para trabalhos que possibilitem um maior conhecimento da aplicação de penas alternativas no país e sua eficácia.
fixação de prazo máximo para as prisões processuais, sugerindo-se 150 dias.
fixação de prazo aos estados para retirada dos presos da responsabilidade da polícia.
determinação expressa para que os recursos do Fundo Penitenciário (Funpen) não sejam contingenciados (condicionados).
criação da Ouvidoria-Geral do Sistema Penitenciário Brasileiro no Ministério da Justiça e estímulo à criação de Ouvidorias nos sistemas penitenciários estaduais, por meio de ajuda técnica e financeira.
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aprimoramento do Departamento Penitenciário Nacional (Depen) transformando-o em órgão que realmente cumpra suas finalidades, com dotação financeira e de recursos humanos adequados. (VER LEP cap V sec I)
aprimoramento do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP) no sentido de que cumpra suas finalidades.
criação do Departamento de Ensino do Sistema Penitenciário Nacional na Escola Superior de Segurança e Proteção Social auxiliando os estados na elaboração de planos de carreira para as diversas áreas profissionais do sistema penitenciário.
implementação de programas de apoio ao egresso, notadamente de preparação para a liberdade, com ênfase nos últimos três meses que antecedem o término da progressão de regime, da liberdade condicional e da liberdade total.
estímulo e apoio técnico à criação de órgãos correcionais nos sistemas penitenciários estaduais, estimulando, por exemplo, fiscalizações noturnas.
abertura de linhas de crédito específicas para estímulo ao trabalho prisional.
apoio, por meio de incentivos fiscais (federais, estaduais e municipais), aos pequenos e médios empresários que ocuparem a mão-de-obra do preso em regime fechado, semi-aberto e do egresso do sistema prisional.
criação de grupo de trabalho no Ministério da Educação visando desenvolver conteúdos programáticos e linhas metodológicas especificamente destinados à educação do preso e, a partir daí, incentivar os estados a utilizarem tais recursos auxiliando financeiramente a implantação dos cursos.
apoio financeiro e técnico à informatização das fichas e cadastros dos presos, de tal modo que se evitem os atrasos na concessão do benefício da progressão da pena.
realização de Censo Penitenciário anual pelo IBGE. Nesta área, elaborar políticas públicas consequentes depende do conhecimento da realidade.
criação de Casas Especiais de Redução da Vulnerabilidade Penal dos Dependentes Químicos destinadas aos infratores que cometem pequenos delitos e jamais desenvolveram uma “carreira criminosa”.
criar unidades especiais para presos primários (provisórios ou condenados) que nunca tiveram contato com o sistema penitenciário.
criação de assessorias para juízes criminais e de execução penal, compostas de psicólogos e assistentes sociais, como as de Custódia e Tratamento Psiquiátrico (PNSP, 2000) já existentes nas Varas de Família há muitos anos.
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As adoções dessas medidas, ou de parte delas, certamente poderiam ao menos minimizar a grave crise do sistema penitenciário. A atual realidade exige um choque de gestão que se apoie numa política criminal que proceda a reformas segundo uma concepção voltada à verdadeira finalidade da pena: a prevenção da violência e a reintegração social do apenado. O CNPCP – Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária apresentou o Plano Nacional de Política Penitenciária em setembro de 2007, incorporando algumas dessas medidas em suas propostas, as quais, muito embora tenha havido alguns avanços, ainda estão longe de serem efetivadas. Ainda sugeriu reformas pontuais no Código Penal, no Código de Processo Penal e na Lei de Execução Penal com a intenção de que o documento se constituísse num conjunto de orientações aos responsáveis pela concepção e execução de ações relacionadas à prevenção da violência e da criminalidade, à administração da justiça criminal e à execução das penas e das medidas de segurança. Cada vez mais se reconhece que o encarceramento em massa não é a solução para a questão da violência e da criminalidade e que se deve conciliar as políticas criminais com as políticas sociais. No Brasil, a Lei n° 7210, de 11 de julho de 1984, instituiu a Lei de Execução Penal (LEP), a qual prevê em se artigo 1° que “A execução penal tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado”. A mesma LEP prevê uma série de medidas de reintegração social do apenado, com destaque para a assistência ao preso - que considera um dever do Estado - objetivando a prevenção do crime e cuidando do retorno do preso à convivência em sociedade. A assistência vem ao encontro do previsto no artigo 3° da LEP que diz “ao condenado e ao internado serão assegurados todos os direitos não atingidos pela sentença ou pela lei”, compreendendo a assistência material, à saúde, jurídica, educacional, social e religiosa. O trabalho do preso é previsto e tratado como dever social e de condição de dignidade humana, tendo finalidade educativa e produtiva. Além disso, a LEP estabelece os deveres e direitos do preso, que constam nos artigos 38 a 41, transcrito in verbis: 72
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Art. 38. Cumpre ao condenado, além das obrigações legais inerentes ao seu estado, submeter-se às normas de execução da pena. Art. 39. Constituem deveres do condenado: I - comportamento disciplinado e cumprimento fiel da sentença; II - obediência ao servidor e respeito a qualquer pessoa com quem deva relacionar-se; III - urbanidade e respeito no trato com os demais condenados; IV - conduta oposta aos movimentos individuais ou coletivos de fuga ou de subversão à ordem ou à disciplina; V - execução do trabalho, das tarefas e das ordens recebidas; VI - submissão à sanção disciplinar imposta; VII - indenização à vítima ou aos seus sucessores; VIII - indenização ao Estado, quando possível, das despesas realizadas com a sua manutenção, mediante desconto proporcional da remuneração do trabalho; IX - higiene pessoal e asseio da cela ou alojamento; X - conservação dos objetos de uso pessoal. Parágrafo único. Aplica-se ao preso provisório, no que couber, o disposto neste artigo.
SEÇÃO II Dos Direitos Art. 40 - Impõe-se a todas as autoridades o respeito à integridade física e moral dos condenados e dos presos provisórios. Art. 41 - Constituem direitos do preso: I - alimentação suficiente e vestuário; II - atribuição de trabalho e sua remuneração; III - Previdência Social; IV - constituição de pecúlio; V - proporcionalidade na distribuição do tempo para o trabalho, o descanso e a recreação;
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VI - exercício das atividades profissionais, intelectuais, artísticas e desportivas anteriores, desde que compatíveis com a execução da pena; VII - assistência material, à saúde, jurídica, educacional, social e religiosa; VIII - proteção contra qualquer forma de sensacionalismo; IX - entrevista pessoal e reservada com o advogado; X - visita do cônjuge, da companheira, de parentes e amigos em dias determinados; XI - chamamento nominal; XII - igualdade de tratamento salvo quanto às exigências da individualização da pena; XIII - audiência especial com o diretor do estabelecimento; XIV - representação e petição a qualquer autoridade, em defesa de direito; XV - contato com o mundo exterior por meio de correspondência escrita, da leitura e de outros meios de informação que não comprometam a moral e os bons costumes. XVI - atestado de pena a cumprir, emitido anualmente, sob pena da responsabilidade da autoridade judiciária competente. (Incluído pela Lei nº 10.713, de 13.8.2003) Parágrafo único. Os direitos previstos nos incisos V, X e XV poderão ser suspensos ou restringidos mediante ato motivado do diretor do estabelecimento.
Percebe-se que a LEP é uma legislação concebida para se adequar à perspectiva de se tratar os presos como cidadãos - com humanidade e respeito à sua dignidade - não obstante ao que se vê nas prisões brasileiras: o oposto disso. O Estado acaba sendo o primeiro descumpridor da legislação e esse fato tem sido um dos maiores estopins para as crises que se sucedem no sistema penitenciário pelo Brasil afora. Por isso que, sempre que ocorrem rebeliões em prisões, consta da pauta dos presos como principal reivindicação a questão da melhoria das condições de sua custódia e tratamento. 74
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Diante desses fatos, a chamada “ressocialização”, além de inadequada, é uma expressão que adquire um caráter meramente simbólico, pois a maneira com que as pessoas são criminalizadas e “etiquetadas” como criminosos, aliadas às atuais condições do sistema penitenciário, fazem com que a reinserção social do preso não passe de mero engano e ilusão. Para Cristina Rautier: A crença na eficácia do chamado tratamento penitenciário é algo que dificilmente poderá ser compartilhado por teóricos ou mesmo autoridades na área. Tem sido exaustivamente demonstrado que a prisão, ao contrário de qualquer efeito recuperador sobre o delinquente, parece ter sempre como subproduto indesejável a reincidência e a preparação para uma carreira de criminoso crônico da qual é quase impossível escapar. Isolado de seus laços familiares, ao indivíduo preso só resta estabelecer novos laços com possíveis futuros cúmplices. Estigmatizado como ex-presidiário, frequentemente retorna ao mundo extra-muros se esclarecimentos ou orientação sobre os documentos de que necessita, ou sobre como conseguir emprego. É presa fácil da polícia num país de desempregados, onde estar sem trabalho era considerado até há pouco tempo como crime (“vadiagem”) e onde ter estado no cárcere significa ter uma ficha “suja”. (2003, p. 104)
Isso não implica em que se possa abrir mão das prisões, mas sim que se repense o engano da “ressocialização” através da abertura das prisões para a sociedade no sentido de ter ressignificado seu papel e ver recuperada suas reais funções de reintegração social do apenado. Para Alessandro Baratta: Os muros da prisão representam uma barreira violenta que separa a sociedade de uma parte de seus próprios problemas e conflitos. Reintegração social (do condenado) significa, antes da modificação do seu mundo de isolamento, a transformação da sociedade que necessita reassumir sua parte de responsabilidade dos problemas e conflitos em que se encontra “segregada” na prisão. Se verificarmos a população carcerária, sua composição demográfica, veremos que a marginalização
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é, para a maior parte dos presos, oriunda de um processo secundário de marginalização que intervém em um processo primário. É fato comprovado que a maior parte dos presos procedem de grupos sociais já marginalizados, excluídos da sociedade ativa por causa dos mecanismos de mercado que regulam o mundo do trabalho. A reintegração na sociedade do sentenciado significa, portanto, antes de tudo, corrigir as condições de exclusão social, desses setores, para que conduzilos a uma vida pós-penitenciária não signifique, simplesmente, como quase sempre acontece, o regresso à reincidência criminal, ou o à marginalização secundária e, a partir daí, uma vez mais, volta à prisão. (s/d, pg. 3)
Assim, antes de buscar “ressocializar” o chamado “delinquente”, é urgente uma ressignificação das leis e do sistema social de maneira que a prevenção do crime e o controle da criminalidade não fiquem reduzidos a um modelo punitivo e sim que priorizem ações públicas de garantia ao exercício dos direitos de cidadania e de emancipação humana - não apenas de controle e de regulação - numa dimensão que aponte para substitutivos penais. A realidade de violência do sistema penal tem feito com que ele não cumpra o seu papel na proteção dos bens jurídicos chamados “relevantes”, mas sim tem se convertido num instrumento de “gestão” da exclusão, razão pela qual urgem mudanças que o transforme num sistema social de inclusão. Nada mais justifica que se continue a responder à violência com mais violência!
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Síntese Nessa Unidade, aprofundamos os estudos sobre a questão da Violência, da Criminalidade, da Criminalização e da Vitimização, estudou-se aspectos ligados ao crime e sua prevenção e encerrou-se abordando o sistema penitenciário e a reinserção social do apenado. Sobre a violência foi destacado que se manifesta das mais variadas formas, atingindo o direito das pessoas e estando presente tanto no espaço público como no privado. Algumas formas de violência passam despercebidas pela sutileza com que se apresentam, como, por exemplo, a questão das desigualdades, o não reconhecimento do direito das minorias e o desrespeito aos direitos de cidadania praticado muitas vezes pelas próprias estruturas de poder. Distinguiu-se criminalidade de criminalização, ambos formas de violência que atingem a todos indistintamente. A criminalidade se apresenta em condutas tidas pelo Estado como “crime”, em que o princípio do controle social é aplicado para de um lado “punir” e “reintegrar” socialmente quem transgrediu, e por outro para prevenir esse tipo de violência considerada relevante. A criminalização, por sua vez, compreende os processos de etiquetamento e seleção de pessoas que praticaram crimes, há uma “seletividade penal” por parte das agências de controle social - Polícia, Ministério Público e Justiça - a qual recai preferencialmente pelos mais vulneráveis socialmente, a pobreza em geral. Sobre a vitimização viu-se que não se reduz ao efeito produzido por uma agressão, mas que tem efeitos psicológicos sobre a vítima e prossegue em decorrência de atos do próprio Estado na persecução criminal, em que o agredido terá que prestar declarações, realizar exames, se submeter ao processo judicial instaurado, muitas vezes não recebendo o devido tratamento como sujeito de direitos, mas sim como “objeto de investigação”, e até mesmo em alguns casos posto sob prova em alguns crimes, Unidade 2
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como, por exemplo, os contra os costumes (em que se destacam o estupro, o atentado violento ao pudor e o assédio sexual). O conceito de crime foi tratado de forma a se perceber que não se trata de uma realidade ontológica, mas sim de um fato social, definido pelas estruturas de poder como conduta passível de resposta punitiva, ou seja, de um fato que seja típico (previsto já na norma), anti-jurídico (contrário ao direito), culpável (que se possa e se tenha elementos para se responsabilizar alguém) e punível (que seja prevista uma pena). A prevenção ao crime pede a participação e a mobilização de toda a sociedade e passa por um conjunto de ações que vão além da esfera penal: dizem respeito a políticas públicas de emprego, renda, lazer, educação, moradia, saúde, infraestrutura urbana, enfim, de medidas assecuratórias dos direitos de cidadania. As políticas públicas devem estar acima das políticas criminais. Por fim, se analisou o sistema penitenciário e sua situação de crise, evidenciando que o atual modelo precisa ser revisto e repensado, pois não tem legitimidade para cumprir seu papel de reintegração social do apenado. As condições nocivas de nossas prisões não conferem as mínimas condições de sociabilidade para os sentenciados e de transformação do indivíduo para o convívio social.
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Atividades de autoavaliação 1) “A crescente violência urbana expõe um monumental déficit na vida democrática do Brasil. Caem regimes autoritários, constituições se aperfeiçoam – e a repressão fica cada vez mais letal, a Justiça ainda é inacessível, os agentes estatais não sofrem controle sobre suas ações.” (PINHEIRO, Paulo Sérgio. Violência Urbana. São Paulo: Publifolha, 2003, contracapa). Com base no enunciado acima, escreva entre 10 e 15 linhas sobre a dimensão da violência em nossa sociedade e as perspectivas para sua superação!
2) No Brasil, em que pese o mito da cordialidade, da alegria, da tolerância e do pluralismo de nosso povo, a história real foi construída com muito sangue, repressão, violência, autoritarismo, desigualdades e exclusão. O processo de estigmatização, desclassificação e criminalização das classes inferiores sempre esteve presente ao longo da formação do país. (SULOCKI, Victória-Amália de Barros Carvalho G. de. Segurança Pública e Democracia: aspectos constitucionais das políticas públicas de segurança. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 173). Com base no enunciado e em nossos estudos, é correto afirmar (coloque V, se a alternativa é verdadeira, e F, se falsa): (
) A chamada teoria do etiquetamento ou do labelling approach aponta para a rotulação e estigma que determinados indivíduos sofrem ao serem apontados como criminosos.
(
) O paradigma etiológico, que nasce com o saber criminológico positivista e com a obra de Lombroso, via o crime no homem, ou seja, o fenômeno delitivo como uma realidade ontológica préconstituída ao Direito Penal.
(
) Quanto mais se reforçar a reação social e se mobilizar o aparato de justiça criminal, maior será a prevenção de crimes.
(
) Sabe-se que todos cometem crimes, mas o aparato político jurídico do Estado se mobiliza em desfavor dos mais vulneráveis sob o aspecto social, criminalizando suas condutas.
(
) O Sistema de Justiça Criminal deve ser o principal instrumento para se coibir a violência e a criminalidade em nosso país.
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Saiba mais PINHEIRO, Paulo Sérgio. Violência Urbana. São Paulo: Publifolha, 2003. SÁ, Alvino Augusto de. Criminologia clínica e psicologia criminal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010. Aprofunde os conteúdos estudados nesta unidade ao consultar também as seguintes referências: PEDROSO, Regina Célia. Violência e cidadania no Brasil: 500 anos de exclusão. São Paulo: Ática, 2006. MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. Secretaria Nacional de Segurança Pública. Guia para a Prevenção do Crime e da Violência nos Municípios. Brasília: SENASP, 2006. Disponível no site: <http://www.mj.gov.br/senasp/default.asp > acesso em: 04 fev. 2006.
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Sistema de Justiça Criminal Objetivos de aprendizagem
Conhecer as estruturas que compõe o sistema de justiça criminal.
Compreender o papel das estruturas do sistema de justiça criminal num Estado Democrático de Direito.
Conhecer o Sistema de Segurança Pública no Brasil, suas atribuições, competências e formas de atuação diante dos novos cenários de violência.
Seções de estudo Seção 1
O Estado e o sistema de justiça criminal
Seção 2
Estado Democrático de Direito, justiça e ordem pública
Seção 3
O Sistema de Segurança Pública no Brasil
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Para início de estudo Quem não estremece de horror ao ver na história tantos tormentos atrozes e vãos, criados e empregados com frieza por monstros que se davam o nome de sábios? Quem não tremeria até o âmago da alma vendo milhares de desgraçados que o desespero obriga a retomar a vida errática, para fugir a males superiores às suas forças, provocados ou tolerados por essas leis injustas que sempre acorrentaram e ultrajaram a multidão, para servir tãosomente a um reduzido número de homens privilegiados? (BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Tradução de Torrieri Guimarães. São Paulo: Martin Claret, 2000, p. 49)
Nas primeiras unidades, abordou-se o campo de atuação das ciências ditas criminais e da violência, destacando-se a questão do crime, do sistema penitenciário e da reinserção social do condenado enquanto função do Estado e da sociedade na sua prevenção. Nesta unidade, vamos avançar e conhecer um pouco mais sobre o sistema de justiça criminal, formas de respostas e a adequação das políticas criminais a um pensamento criminológico que tenha, como premissa, a compreensão e prevenção do fenômeno da violência, da criminalidade e da criminalização em sua dimensão complexa e multifatorial para que seja capaz de oferecer respostas mais adequadas aos problemas da atualidade. Bons estudos!
Seção 1 – O Estado e o sistema de justiça criminal “Encontrar uma forma de associação que defenda e proteja com toda a força comum a pessoa e os bens de cada associado e pela qual cada um, unindo-se a todos, não obedeça senão a si mesmo e permaneça tão livre
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como anteriormente. Esse é o problema fundamental, cuja solução é dada pelo contrato social.”
(ROUSSEAU, Jean-Jacques. O Contrato Social. Tradução de Ciro Mioranza. Coleção Grandes Obras do Pensamento Universal. São Paulo: Ed. Escala, s/ano)
O Estado surge como instrumento de garantias do exercício das liberdades individuais e de garantia dos direitos civis, políticos e sociais, entre eles o direito à segurança. Ao longo da história, o Estado, organizado política e juridicamente, tem se mostrado insuficiente para fazer frente à questão da violência e da criminalidade, o que tem reforçado o discurso punitivo e a busca da chamada “pacificação social” pelo controle e pela vigilância social. A soberania do Estado decorrente, em tese, da vontade popular e dos princípios que legitimam suas ações, encontra proteção na sua forma de organização, destacando-se o princípio da legalidade, consequente da formação do Estado Moderno e que serve de base aos Estados ditos de “Direito”. Segundo Vitória Amália Sulocki A diferença social, a distinção de classes e hierarquia são para Montesquieu uma condição da moderação do poder. Daí que, longe de ser um defensor do regime republicano, ele era a favor de um Estado de Direito, ou seja, um Estado fundado sobre uma Constituição que garantisse a cada um a liberdade através do equilíbrio dos poderes e do respeito às leis. Para Montesquieu, a questão da segurança do cidadão passa por esta separação dos poderes, já que ela é a garantia de liberdade deste. A ordem e a segurança públicas estão centradas nessa garantia de liberdade do indivíduo, que por sua vez é protegida através de mecanismos políticos como o equilíbrio entre os poderes do Estado. (2007, p. 27)
Muito embora esse contexto se refira a necessidade de oposição ao Estado Absolutista, não podemos perder de vista que, ao longo do processo histórico e social, o maior violador de direitos e garantias fundamentais continua sendo o próprio Estado.
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O Estado Moderno e a Democracia são formados num ambiente e modelo político - e jurídico - de poder vigente cuja essência é o capitalismo, mas que valoram os princípios da igualdade e da liberdade, o que implica na consolidação de uma categoria de indivíduos: os “cidadãos”. Para Sulocki, O cidadão é uma criação jurídica da revolução burguesa que procura dar essa aparência de igualdade a todos na sociedade. Ao fazê-lo, encobre-se a verdadeira realidade existente na sociedade, a profunda desigualdade, ao mesmo tempo que impede qualquer movimento contra tal realidade. Com muita clareza, Guillermo O´Donnell desmascara a cidadania no Estado Liberal capitalista ao dizer que `o Estado capitalista é a primeira forma de dominação política que postula o seu fundamento na igualdade de todos os sujeitos em seu território´, explicando que `esses sujeitos são cidadãos e o Estado capitalista é normalmente um Estado de cidadãos´. (2007, p. 31)
Disso decorre o chamado Estado do Bem-Estar, que surge da necessidade de se manter a estrutura do Estado Capitalista, na busca das satisfações básicas da população - notadamente das classes baixas e das chamadas “minorias” - para se manter um mínimo de controle dos conflitos sociais. Na realidade, era uma forma de se manter as relações de poder e dominação vigentes ao longo do século XIX e início do século XX. Já o Estado Democrático de Direito, que agrega os conceitos de Estado Democrático e Estado de Direito, apresenta-se como uma tentativa de consolidação do bem-estar e dos direitos dos cidadãos. Para José Afonso da Silva, que relaciona seus fundamentos com o disposto na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988,: A democracia que o Estado Democrático de Direito realiza há de ser um processo de convivência social numa sociedade livre, justa e solidária (art. 3°, I) em que o poder emana do povo, e deve ser exercido em proveito do povo, diretamente ou por representantes eleitos (art. 1°, parágrafo único); participativa, porque envolve a participação crescente do povo no processo
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decisório e na formação dos atos de governo; pluralista, porque respeita a pluralidade de ideias, culturas e etnias e pressupõe assim o diálogo entre opiniões e pensamentos divergentes e a possibilidade de convivência de formas de organização e interesses diferentes da sociedade; há de ser um processo de liberação da pessoa humana das formas de opressão que não depende apenas do reconhecimento formal de certos direitos individuais, políticos e sociais, mas especialmente da vigência de condições econômicas suscetíveis de favorecer o pleno exercício. É um tipo de Estado que tende a realizar a síntese do processo contraditório do mundo contemporâneo, superando o Estado capitalista para configurar um Estado promotor de justiça social que o personalismo e o monismo político das democracias populares sob o influxo do socialismo real não foram capazes de construir. (SILVA, 2007, pp 119-120)
Entender a formação e o papel do Estado revela-se importante para que se compreenda as interfaces existentes entre esse modelo e as formas de atuação na ordem e na segurança pública. O contexto social, do local ao global, exige instituições que ofereçam serviços orientados à defesa do Estado, da Sociedade e do cidadão, prevenindo ameaças e riscos comprometedores da segurança nacional e da segurança pública. E enfrentando a violência com respostas mais efetivas, o que implica na necessidade de redirecionamento das estratégias de controle do crime - com destaque para a mediação pacífica dos conflitos - relevando sempre a dimensão do exercício dos direitos de cidadania, papel que incumbe “prima facie” ao sistema de justiça criminal. Para Lola Anyar de Castro “Não há justiça para delinquentes ou vítimas se não investigarmos de onde surgem, de que valores ou estereótipos se alimentam os procedimentos argumentativos”. (2007, p. 197) O sistema de justiça criminal - como cota parte integrante do Estado - e seus subsistemas formais e informais projetam-se com um modus operandi que pauta-se na repressão e na punição como bases da política criminal brasileira, evidenciando esse tipo de relação como base para a manutenção das relações de dominação e poder.
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Nesse sentido, o sistema de justiça criminal apresenta-se como um instrumento de exclusão, onde, de forma recorrente, a mediação dá lugar à judicialização dos conflitos pela criminalização. E pela crescente geração de novos estereótipos de “criminosos”. Com isso, se reproduz a violência, quer no plano simbólico como no plano real: A política criminal, enquanto programa de controle do crime e da criminalidade, no Brasil, influenciada pelo modelo norte-americano, se configura como mera política penal, pois ´exclui políticas públicas de emprego, salário, escolarização, moradia, saúde e outras medidas complementares, como programas oficiais capazes de alterar ou reduzir as condições sociais adversas da população marginalizada do mercado de trabalho e dos direitos de cidadania, definíveis como determinações estruturais do crime e da criminalidade´. (SILVEIRA FILHO, 2007, p. 346)
Esse paradigma que permeia as ações do sistema de justiça criminal, em que se submete a expansão do controle punitivo e o aumento dos índices de encarceramento, redunda na reprodução das violências, quer no plano macrossocial como resultante de um modelo de sociedade desigual, como também na esfera das individualidades - o que traz também como consequência a deslegitimação e desestruturação do chamado “Estado Democrático de Direito”. A falta de critérios pautados na busca da emancipação de subjetividades faz com que se rebaixem direitos e garantias fundamentais, tornando o ideário de justiça existente apenas no plano simbólico - a cidadania reduzida a uma “cidadania de papel” - se priorizando intervenções penais que desconsideram critérios de humanidade e civilidades. Em nosso país, as estruturas integrantes do sistema de justiça criminal vivem uma situação de permanente crise, notabilizada pelas sérias violações de direitos humanos que ocorrem rotineiramente em nossos “cárceres” e que são decorrentes, em grande parte, por
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problemas como: longo período de encarceramento tanto de presos provisórios como condenados sob custódia da polícia e não em instituições penais; reduzido número de pessoal no sistema penitenciário agravado pela deficiente qualificação, capacitação e treinamento; falta de assistência aos presos (psicológica, médica, social, familiar); exposição dos presos a uma série de doenças infecto-contagiosas; corrupção dos agentes do sistema; má administração; deficiente infraestrutura; revistas sem critérios e violadoras de direitos e garantias individuais dos presos, torturas e maus tratos, dentre outras.
Sérgio Adorno nos elucida bem a questão da reprodução histórica da violência quando afirma: Não são poucos os estudos que reconhecem a incapacidade do sistema de justiça criminal, no Brasil – agências policiais, ministério público, tribunais de Justiça e sistema penitenciário –, em conter o crime e a violência respeitados os marcos do Estado democrático de Direito. O crime cresceu e mudou de qualidade, porém, o sistema de Justiça permaneceu operando como há três ou quatro décadas. Em outras palavras, aumentou sobremodo o fosso entre a evolução da criminalidade e da violência e a capacidade do Estado de impor lei e ordem. (2002, p. 7 e ss)
E quando se aborda a questão do crime e da violência, está se orbitando em volta da questão do “crime” e o papel do Estado no seu enfrentamento. Os instrumentos coercitivos do Estado para fazer frente ao crime, enquanto expressão de violência, se fazem presentes sempre que, numa análise crítico-marxista, os interesses das classes dominantes são atingidos. Talvez essa seja uma das razões pelas quais tem se dado historicamente ênfase à necessidade de criminalização das condutas que, direta ou indiretamente, possam por em risco a sociedade capitalista, mais destacadamente os crimes contra o patrimônio, o tráfico de entorpecentes e outros delitos que indiretamente têm reflexo na lógica do capital e de sua circulação. Oportuno o texto de Richard Quinney que diz:
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De acordo com a inteligência liberal, o Estado existe para manter a estabilidade na sociedade civil. O direito é considerado, consequentemente, como um corpo de regras estabelecidas através de consenso, por aqueles que são governados, ou, ao contrário, pelos `representantes´dos governantes. Uma tal noção do Estado e de seu direito apresenta uma falsa realidade, mas uma realidade que serve àqueles que se beneficiam de uma tal concepção – os que governam. (...) O Estado é, assim, uma organização política real, mas artificial, criada pela força e coerção. O Estado é estabelecido por aqueles que desejam proteger sua base material e têm o poder (por causa dos meios materiais) para manter o Estado. O direito, na sociedade capitalista, dá reconhecimento político aos interesses privados poderosos. (1980, p. 236)
A violência do sistema de justiça criminal encontra suas raízes nesse modelo em que se submetem relações de poder e dominação, fazendo com que as ações de controle recaiam, acentuadamente, sobre os mais vulneráveis (os pobres em geral) pela via da criminalização de suas condutas. O sistema de justiça criminal no Brasil se estrutura em três frentes de atuação: segurança pública, justiça criminal e execução penal. É composto pelo Poder Judiciário, pelo Ministério Público e pelas estruturas de segurança pública (as polícias) que exercem as atividades de controle social através da criminalização das condutas consideradas mais danosas ao convívio social, ou seja, atuando sobre a prática de crimes visando sua prevenção e punição e reintegração social de quem os pratica.
A segurança pública está vinculada ao Poder Executivo, cujo órgão central é a Secretaria Nacional da Segurança Pública do Ministério da Justiça. Os órgãos de segurança Pública do país, organizados a nível federal e estadual, estão previstos no artigo 144 da Constituição Federal:
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Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos: I - polícia federal; II - polícia rodoviária federal; III - polícia ferroviária federal; IV - polícias civis; V - polícias militares e corpos de bombeiros militares. § 1º - A polícia federal, instituída por lei como órgão permanente, estruturado em carreira, destina-se a: {§ 1º A polícia federal, instituída por lei como órgão permanente, organizado e mantido pela União e estruturado em carreira, destina-se a: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)} I - apurar infrações penais contra a ordem política e social ou em detrimento de bens, serviços e interesses da União ou de suas entidades autárquicas e empresas públicas, assim como outras infrações cuja prática tenha repercussão interestadual ou internacional e exija repressão uniforme, segundo se dispuser em lei; II - prevenir e reprimir o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o contrabando e o descaminho, sem prejuízo da ação fazendária e de outros órgãos públicos nas respectivas áreas de competência; III - exercer as funções de polícia marítima, aérea e de fronteiras; {III - exercer as funções de polícia marítima, aeroportuária e de fronteiras; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)} IV - exercer, com exclusividade, as funções de polícia judiciária da União. § 2º - A polícia rodoviária federal, órgão permanente, estruturado em carreira, destina-se, na forma da lei, ao patrulhamento ostensivo das rodovias federais. {§ 2º A polícia rodoviária federal, órgão permanente, organizado e mantido pela União e estruturado em carreira, destina-se, na forma
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da lei, ao patrulhamento ostensivo das rodovias federais. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)} § 3º - A polícia ferroviária federal, órgão permanente, estruturado em carreira, destina-se, na forma da lei, ao patrulhamento ostensivo das ferrovias federais. {§ 3º A polícia ferroviária federal, órgão permanente, organizado e mantido pela União e estruturado em carreira, destina-se, na forma da lei, ao patrulhamento ostensivo das ferrovias federais. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)} § 4º - às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares. § 5º - às polícias militares cabem a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública; aos corpos de bombeiros militares, além das atribuições definidas em lei, incumbe a execução de atividades de defesa civil. § 6º - As polícias militares e corpos de bombeiros militares, forças auxiliares e reserva do Exército, subordinam-se, juntamente com as polícias civis, aos Governadores dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios. § 7º - A lei disciplinará a organização e o funcionamento dos órgãos responsáveis pela segurança pública, de maneira a garantir a eficiência de suas atividades. § 8º - Os Municípios poderão constituir guardas municipais destinadas à proteção de seus bens, serviços e instalações, conforme dispuser a lei.
A justiça criminal, também organizada a nível federal e estadual, é composta por juízes federais, Tribunais Regionais Federais, Ministério Público Federal e defensoria Pública da União, juízes estaduais, Tribunais de Justiça, Ministérios Públicos e Defensorias Públicas Estaduais. As competências de cada um destes órgãos são ditadas pela Constituição Federal e também pelas legislações estaduais específicas. Os artigos 108 e 109 da Constituição da República Federativa do Brasil prescrevem a competência dos órgãos federais do Sistema de Justiça Criminal: 90
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Art. 108. Compete aos Tribunais Regionais Federais: I - processar e julgar, originariamente: a) os juízes federais da área de sua jurisdição, incluídos os da Justiça Militar e da Justiça do Trabalho, nos crimes comuns e de responsabilidade, e os membros do Ministério Público da União, ressalvada a competência da Justiça Eleitoral; b) as revisões criminais e as ações rescisórias de julgados seus ou dos juízes federais da região; c) os mandados de segurança e os “habeas-data” contra ato do próprio Tribunal ou de juiz federal; d) os “habeas-corpus”, quando a autoridade coatora for juiz federal; e) os conflitos de competência entre juízes federais vinculados ao Tribunal; II - julgar, em grau de recurso, as causas decididas pelos juízes federais e pelos juízes estaduais no exercício da competência federal da área de sua jurisdição.
Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar: I - as causas em que a União, entidade autárquica ou empresa pública federal forem interessadas na condição de autoras, rés, assistentes ou oponentes, exceto as de falência, as de acidentes de trabalho e as sujeitas à Justiça Eleitoral e à Justiça do Trabalho; II - as causas entre Estado estrangeiro ou organismo internacional e Município ou pessoa domiciliada ou residente no País; III - as causas fundadas em tratado ou contrato da União com Estado estrangeiro ou organismo internacional; IV - os crimes políticos e as infrações penais praticadas em detrimento de bens, serviços ou interesse da União ou de suas entidades autárquicas ou empresas públicas, excluídas as contravenções e ressalvada a competência da Justiça Militar e da Justiça Eleitoral; V - os crimes previstos em tratado ou convenção internacional, quando, iniciada a execução no País, o resultado tenha ou devesse ter ocorrido no estrangeiro, ou reciprocamente;
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{V-A as causas relativas a direitos humanos a que se refere o § 5º deste artigo; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)} VI - os crimes contra a organização do trabalho e, nos casos determinados por lei, contra o sistema financeiro e a ordem econômico-financeira; VII - os “habeas-corpus”, em matéria criminal de sua competência ou quando o constrangimento provier de autoridade cujos atos não estejam diretamente sujeitos a outra jurisdição; VIII - os mandados de segurança e os “habeas-data” contra ato de autoridade federal, excetuados os casos de competência dos tribunais federais; IX - os crimes cometidos a bordo de navios ou aeronaves, ressalvada a competência da Justiça Militar; X - os crimes de ingresso ou permanência irregular de estrangeiro, a execução de carta rogatória, após o “exequatur”, e de sentença estrangeira, após a homologação, as causas referentes à nacionalidade, inclusive a respectiva opção, e à naturalização; XI - a disputa sobre direitos indígenas. § 1º - As causas em que a União for autora serão aforadas na seção judiciária onde tiver domicílio a outra parte. § 2º - As causas intentadas contra a União poderão ser aforadas na seção judiciária em que for domiciliado o autor, naquela onde houver ocorrido o ato ou fato que deu origem à demanda ou onde esteja situada a coisa, ou, ainda, no Distrito Federal. § 3º - Serão processadas e julgadas na justiça estadual, no foro do domicílio dos segurados ou beneficiários, as causas em que forem parte instituição de previdência social e segurado, sempre que a comarca não seja sede de vara do juízo federal, e, se verificada essa condição, a lei poderá permitir que outras causas sejam também processadas e julgadas pela justiça estadual. § 4º - Na hipótese do parágrafo anterior, o recurso cabível será sempre para o Tribunal Regional Federal na área de jurisdição do juiz de primeiro grau. {§ 5º Nas hipóteses de grave violação de direitos humanos, o ProcuradorGeral da República, com a finalidade de assegurar o cumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil seja parte, poderá suscitar, perante o Superior Tribunal de Justiça, em qualquer fase do inquérito ou processo, incidente de deslocamento de competência para a Justiça Federal. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)}
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Os órgãos estaduais de justiça criminal são compostos por juízes de direito, em primeira instância; por meio das varas criminais, Juizados Especiais Criminais e pelos Tribunais do Júri em segunda instância; sendo regidos pelas constituições estaduais e por normas específicas que organizam suas unidades e atribuições. Conforme o tipo de crime e a pena prevista no Código Penal, os ritos - o conjunto de procedimentos formais, a serem seguidos - são definidos no âmbito do Poder Judiciário pelo Código de Processo Penal e leis processuais especiais, para que sejam analisadas as provas, ouvidas as testemunhas, os acusados e para que, finalmente, o juiz possa formar sua convicção sobre os fatos e proferir a sentença. Cabe destacar que com a instituição dos Juizados Especiais Criminais (Lei n° 9099 de 26 de setembro de 1995), houve um avanço na política criminal do país no sentido de se buscar a minimização da criminalização. Passou-se a tratar as infrações penais de menor potencial ofensivo, cujas penas previstas não ultrapassam dois anos de privação de liberdade, com medidas alternativas à prisão. A lei prevê que nestes casos, o inquérito policial seja substituído por um instrumento chamado termo circunstanciado - contém de forma sucinta os dados sobre os fatos - que é remetido ao juizado dando-se início à audiência preliminar e aos procedimentos que têm maior rapidez. Além de desburocratizar a Justiça, a lei que instituiu os Juizados Especiais Criminais possibilita a reparação do dano na própria ação penal e contribui para a ampliação da aplicação de penas alternativas às de prisão no caso de infrações consideradas menos graves. O sistema de execução penal, no que se refere à aplicação da pena, é regulado pela Lei de Execução Penal (LEP), que destaca em seu artigo 1° que a função da pena no Brasil é a reinserção social do condenado, conforme já visto. A execução penal está a cargo dos Estados que se encarregam de organizar os respectivos sistemas penitenciários em conformidade com as leis nacionais e locais a respeito.
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A LEP prevê, em seu artigo 61, os seguintes órgãos de execução penal: I - o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária; II - o Juízo da Execução; III - o Ministério Público; IV - o Conselho Penitenciário; V - os Departamentos Penitenciários; VI - o Patronato; VII - o Conselho da Comunidade; VIII - a Defensoria Pública.
O Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, composto por 13 (treze) membros designados através de ato do Ministério da Justiça - dentre professores e profissionais da área do Direito Penal, Processual Penal, Penitenciário e ciências correlatas - bem como por representantes da comunidade e dos Ministérios da área social, tem como atribuições em âmbito federal ou estadual: I - propor diretrizes da política criminal quanto à prevenção do delito, administração da Justiça Criminal e execução das penas e das medidas de segurança; II - contribuir na elaboração de planos nacionais de desenvolvimento, sugerindo as metas e prioridades da política criminal e penitenciária; III - promover a avaliação periódica do sistema criminal para a sua adequação às necessidades do País; IV - estimular e promover a pesquisa criminológica; V - elaborar programa nacional penitenciário de formação e aperfeiçoamento do servidor; VI - estabelecer regras sobre a arquitetura e construção de estabelecimentos penais e casas de albergados;
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VII - estabelecer os critérios para a elaboração da estatística criminal; VIII - inspecionar e fiscalizar os estabelecimentos penais, bem assim informar-se, mediante relatórios do Conselho Penitenciário, requisições, visitas ou outros meios, acerca do desenvolvimento da execução penal nos Estados, Territórios e Distrito Federal, propondo às autoridades dela incumbida as medidas necessárias ao seu aprimoramento; IX - representar ao Juiz da execução ou à autoridade administrativa para instauração de sindicância ou procedimento administrativo, em caso de violação das normas referentes à execução penal; X - representar à autoridade competente para a interdição, no todo ou em parte, de estabelecimento penal. (LEP, artigo 61)
O Juízo da Execução tem por atribuições: I - aplicar aos casos julgados lei posterior que de qualquer modo favorecer o condenado; II - declarar extinta a punibilidade; III - decidir sobre:
a) soma ou unificação de penas;
b) progressão ou regressão nos regimes; c) detração e remição da pena;
d) suspensão condicional da pena; e) livramento condicional; f) incidentes da execução.
IV - autorizar saídas temporárias; V - determinar:
a) a forma de cumprimento da pena restritiva de direitos e fiscalizar sua execução; b) a conversão da pena restritiva de direitos e de multa em privativa de liberdade;
c) a conversão da pena privativa de liberdade em restritiva de direitos;
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d) a aplicação da medida de segurança, bem como a substituição da pena por medida de segurança; e) a revogação da medida de segurança;
f) a desinternação e o restabelecimento da situação anterior;
g) o cumprimento de pena ou medida de segurança em outra comarca; h) a remoção do condenado na hipótese prevista no § 1º, do artigo 86, desta Lei.
VI - zelar pelo correto cumprimento da pena e da medida de segurança; VII - inspecionar, mensalmente, os estabelecimentos penais, tomando providências para o adequado funcionamento e promovendo, quando for o caso, a apuração de responsabilidade;
VIII - interditar, no todo ou em parte, estabelecimento penal que estiver funcionando em condições inadequadas ou com infringência aos dispositivos desta Lei; IX - compor e instalar o Conselho da Comunidade.
X – emitir anualmente atestado de pena a cumprir. (Incluído pela Lei nº 10.713, de 13.8.2003) (LEP, artigo 66)
O Ministério Público tem por atribuição a fiscalização da execução da pena e da medida de segurança, oficiando no processo executivo e nos incidentes da execução e em todos os seus termos. Ao Conselho Penitenciário, que é órgão consultivo e fiscalizador da execução da pena, cabe: I - emitir parecer sobre indulto e comutação de pena, excetuada a hipótese de pedido de indulto com base no estado de saúde do preso; (Redação dada pela Lei nº 10.792, de 1º.12.2003) II - inspecionar os estabelecimentos e serviços penais; III - apresentar, no 1º (primeiro) trimestre de cada ano, ao Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, relatório dos trabalhos efetuados no exercício anterior; IV - supervisionar os patronatos, bem como a assistência aos egressos.
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O Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN) é órgão executivo da Política Penitenciária Nacional e de apoio administrativo e financeiro do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, tendo como atribuições: I - acompanhar a fiel aplicação das normas de execução penal em todo o Território Nacional; II - inspecionar e fiscalizar periodicamente os estabelecimentos e serviços penais; III - assistir tecnicamente as Unidades Federativas na implementação dos princípios e regras estabelecidos nesta Lei; IV - colaborar com as Unidades Federativas mediante convênios, na implantação de estabelecimentos e serviços penais; V - colaborar com as Unidades Federativas para a realização de cursos de formação de pessoal penitenciário e de ensino profissionalizante do condenado e do internado. VI – estabelecer, mediante convênios com as unidades federativas, o cadastro nacional das vagas existentes em estabelecimentos locais destinadas ao cumprimento de penas privativas de liberdade aplicadas pela justiça de outra unidade federativa, em especial para presos sujeitos a regime disciplinar. (Incluído pela Lei nº 10.792, de 1º.12.2003) Parágrafo único. Incumbem também ao Departamento a coordenação e supervisão dos estabelecimentos penais e de internamento federais. (LEP, artigo 61)
O chamado Patronato tem como finalidade a prestação de assistência aos albergados e aos egressos (artigo 26 da LEP) e também a orientação dos condenados à pena restritiva de direitos, fiscalizando o cumprimento das penas de prestação de serviço à comunidade e de limitação de fim de semana e colaborando na fiscalização do cumprimento das condições da suspensão e do livramento condicional. E diante da importância da participação das comunidades no controle e na execução das políticas públicas referentes ao problema penitenciário tem-se o Conselho Penitenciário, o qual Unidade 3
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tem por função a fiscalização dos recursos, ação pela preservação e garantia dos direitos humanos e pela reintegração social do apenado, cabendo-lhe ainda: I - visitar, pelo menos mensalmente, os estabelecimentos penais existentes na comarca; II - entrevistar presos; III - apresentar relatórios mensais ao Juiz da execução e ao Conselho Penitenciário; IV - diligenciar a obtenção de recursos materiais e humanos para melhor assistência ao preso ou internado, em harmonia com a direção do estabelecimento. (LEP, artigo 81)
Por fim, tem-se a Defensoria Pública, a qual tem por objetivo cuidar para que ocorra uma correta execução da pena e da medida de segurança, cuidando, no processo executivo e nos incidentes da execução, da defesa dos necessitados em todos os graus e instâncias, inclusive no que tange à violação dos direitos do preso, de forma individual e coletiva, e às condições de cumprimento da sentença. As estruturas do Estado que acolhem, que tem por finalidade a “reeducação” dos condenados criminalmente, aos submetido à medida de segurança, aos presos provisórios e aos egressos são as seguintes:
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Penitenciárias estaduais, destinadas à pena de reclusão em regime fechado; Colônias agrícolas, industriais ou similares, destinadas ao cumprimento da pena em regime semi-aberto; Casas do albergado, para os condenados em regime aberto e com pena de limitação de fim de semana; Centros de observação, onde são realizados exames gerais; Cadeias públicas, para o recolhimento de presos provisórios – a LEP determina que cada comarca tenha pelo menos uma; e
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Hospitais de custódia, destinados aos sentenciados para cumprir medida de segurança, ou seja, os inimputáveis e os semi-imputáveis.
Os estabelecimentos penitenciários federais também estão previstos na Lei de Execução Penal de 1984, e destinam-se ao recolhimento de condenados em local que seja distante local da condenação - caso isto seja necessário por questões de segurança pública ou de segurança do próprio condenado. A penitenciária de Catanduvas (PR), que entrou em funcionamento no ano de 2007, é o primeiro estabelecimento penitenciário federal do país e unidade percussora do Sistema Penitenciário Federal, ainda em processo de formação. No caso de crimes cometidos por crianças e adolescentes, diz-se que cometeram “atos infracionais” e são considerados inimputáveis, sujeitos ao Estatuto da Criança e do Adolescente - Lei n° 8069 de 13 de julho de 1990 - e não à Lei de Execução Penal. A criança com até 12 anos de idade é submetida a medidas de proteção como tratamento médico, psicológico ou psiquiátrico, inclusão em programa de auxílio à família, tratamento a alcoólatras ou toxicômanos, matrícula e frequência obrigatórias em escola, dentre outras. E o adolescente a uma medida chamada sócio-educativa. O adolescente com idade entre doze e dezoito anos, além das medidas de proteção já citadas, também podem se aplicar as seguintes medidas, de acordo tanto com as circunstâncias e a gravidade do ato, bem como com as capacidades do adolescente: I- advertência; II - obrigação de reparar o dano; III - prestação de serviços à comunidade; IV - liberdade assistida; V - inserção em regime de semi-liberdade; VI - internação em estabelecimento educacional.
A internação é medida excepcional e não pode ultrapassar três anos, devendo ser aplicada somente no caso de ato infracional Unidade 3
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cometido mediante grave ameaça ou violência à pessoa, por reiteração no cometimento de outras infrações graves e/ou por descumprimento reiterado e injustificável de medida imposta anteriormente. Por fim, destacamos que a atuação da sociedade e do Estado na prevenção da violência e da criminalidade não pode ficar restrita ao que é feito pelo sistema de justiça criminal. Há necessidade de substituição das políticas criminais por políticas públicas e sociais nas áreas de educação, saúde, moradia, cultura, emprego, geração de renda, saneamento básico, infraestrutura urbana, dentre outras, que busquem canais pacíficos e alternativos para a prevenção e resolução de conflitos e das mais variadas expressões de violência, conciliando desenvolvimento e crescimento econômico com a inclusão social de todos. Em função disso, o sistema de justiça criminal deve atuar em situação de excepcionalidade e exercer um papel complementar na prevenção e controle da violência que diz respeito à criminalidade, adequando-se ao previsto na LEP e aos postulados de um estado que se diz e se pretende consolidar como Democrático e de Direito, tema que veremos na próxima seção de Estudos.
Seção 2 – O Estado democrático de Direito, justiça e ordem pública O caráter social do homem não se esgota no Estado, mas se realiza em diversos grupos intermediários, da família, aos grupos econômicos, sociais, políticos e culturais, que têm cada qual sua autonomia própria. João Paulo II, encíclica Centesimus Annus, 1991
A consolidação de um Estado de Direito passa pela busca incessante de meios que resguardem os valores fundamentais da pessoa humana, que privilegie os direitos de cidadania e que promova a paz social, reduzindo os apelos “disciplinares” 100
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mediante as novas práticas legais, administrativas e de emancipação de subjetividades. O Estado e a sociedade precisam empreender novas formas de garantias, de um modelo legal à realidade.
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 estabelece que: Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I - a soberania; II - a cidadania; III - a dignidade da pessoa humana; IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V - o pluralismo político. (grifo nosso)
Ao constituir-se em Estado Democrático de Direito, o Brasil assumiu o compromisso de velar pelo respeito aos direitos individuais e coletivos e ao cumprimento das leis. E, ao se assegurar os direitos e garantias fundamentais inerentes ao Estado de Direito, deve-se dar lugar a uma prática dialógica que pode potencializar novas formas de prevenção e de mediação pacífica dos conflitos, reduzindo-se a tensão típica de uma sociedade desigual e contribuindo para o apontamento de novas perspectivas, que aperfeiçoem o conjunto de garantias aos cidadãos cedendo espaço a uma nova cultura, a cultura da paz! O ideário de justiça e de consolidação de um Estado de Direito deve ser permanente. Segundo Zaffaroni, O Direito Penal deve sempre caminhar para o ideal do Estado de direito; quando deixa de fazê-lo, o Estado de polícia avança. Trata-se de uma dialética que nunca para, Unidade 3
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de um movimento constante, com avanços e retrocessos. Na medida em que o direito penal (doutrina), como programador do poder jurídico de contenção do Estado de polícia, deixe de cumprir essa função – isto é, na medida em que legitime o tratamento de algumas pessoas como inimigos -, renuncia ao princípio do Estado de direito e, com isso, abre espaços para o avanço do poder punitivo sobre todos os cidadãos e, consequentemente, para o Estado de polícia. Em outras palavras, cede terreno em sua função de contenção ou de dique permanente resistência. (2007, p. 172)
O modelo de Estado, como instância central de poder, deve levar em consideração as mudanças nos diversos campos da realidade social e do conhecimento, como o direito, a economia, a política, as novas tecnologias, o meio ambiente, dentre outros, de maneira que possa exercer com mais efetividade suas funções de planejamento e de gestão pública em que o centro dos interesses orbite em torno do atendimento e prestação de direitos fundamentais de forma igualitária.
Essa acepção vem ao encontro de um Estado Democrático de Direito que substitua o exercício arbitrário de poder; e cuja lógica de gestão esteja orientada aos interesses, não apenas do Estado, mas principalmente da sociedade, da comunidade e dos cidadãos. Para Sérgio Cadermatori: O resgate da legitimidade do Estado de Direito, bem como a constante denúncia de seus vezos de ilegitimidade, é então um trabalho cotidiano que deve ser empreendido pelo conjunto da sociedade, uma vez conscientizada esta da importância civilizatória que aquele modelo normativo comporta. Com efeito, o mecanismo de limitação do poder que o Estado Constitucional de Direito representa é uma conquista do processo iluminista-racionalista, que não deve ceder aos embates de forças irracionais, sejam elas provenientes de eventuais tendências obscurantistas, sejam provenientes de lógicas de mercado que nada dizem com a dignidade humana. (2006, p. 220)
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Esse “Estado de Direito” deve estar atento para que as dinâmicas fundadas na exclusão - principalmente aquelas resultantes de um modelo social em que imperam o modelo capitalista e a lógica de mercado - não ampliem as condições de desigualdades que acabam por se manifestar também como expressões de violência, muito embora não entendida como tal em nossa sociedade. O individualismo típico de uma sociedade capitalista faz com que não se perceba a pobreza, a desigualdade social, a marginalização, a falta de acessibilidade e a criminalização como formas de violência, aceitando-se sua reprodução histórica, as nossas prisões são a mais nítida manifestação disso. E sobre os nossos “delinquentes” e nossas “prisões”, Cristina Rauter afirma que (...) a prisão constrói uma micro-sociedade no interior da sociedade. Sob condições de extrema privação, ela faz conviver todo tipo de infrator das leis proveniente das camadas mais pobres da população, e produz um tipo de comunidade onde prolifera uma estranha espécie de seres violentos, viciosos, inimigos de qualquer ordem social. É a própria prisão que constrói meticulosamente este tipo de violência que se manifesta de forma incoercível e desligada de qualquer contexto. (...) Ao produzir a delinquência, a prisão procura romper os elos que unem o infrator das leis com seu meio social (...). (2003, p.119)
Nesse sentido, o Estado de Direito, considerando a pluralidade jurídica de produção das normas, torna-se ameaçado: diante de sua incapacidade de prevenir e resolver o conflito se vale da “violência institucional” para impor a ordem e o direito, comprometendo, portanto a justiça e aumentando os custos sociais dos problemas. Assim, “a intervenção do sistema de justiça criminal pode ser necessária à proteção de bens jurídicos ameaçados, à coibição de atos violentos, à garantia de certa liberdade, mas não incide sobre causas” (DIAS NETO, 2005, p. 84). Porém, a justiça é a base para que um Estado de Direito subsista, pois atua na mediação dos conflitos decorrentes de relações políticas, sociais, econômicas e interpessoais, de forma a evitar que o poder dos mais fortes se sobreponha pela força sobre os mais fracos. Unidade 3
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Figura 1- Representação da justiça http://www.alagoas24horas.com.br/conteudo/?vCod=84297
Entretanto, cabe destacar que a dimensão da justiça nem sempre se alinha com os postulados do direito, pois nem toda lei é necessariamente “justa”.
Figura 2- Escultura A Justiça, de Alfredo Ceschiatti, em frente ao Supremo Tribunal Federal em Brasília, Brasil. Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:A_Justica_Alfredo_Ceschiatti_Brasilia_Brasil.jpg
Existe a tradição de representar a justiça com os olhos vendados, para demonstrar a sua imparcialidade, e a espada, símbolo da força de que dispõe para impor o direito. Algumas representações da Justiça possuem também uma balança, que representa a ponderação e a busca do equilíbirio dos interesses das partes em litígio. 104
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A fim de que a justiça não se transforme em conveniente estruturas de poder dominantes - pois o direito por estas produzidos é o seu principal reflexo e quem a define - destacamos uma definição de justiça que é conciliável com um Estado Democrático de Direito: Ninguém pode criar justiça como bem individual para satisfazer interesses particulares. Parece tratar-se do princípio da alteridade que Platão teoriza como doutrina pluralista do ser. A ideia de justiça pressupõe o outro. A construção da ideia de justiça volta-se, sempre, para o semelhante. Não existe Justiça do ser para si, senão o reconhecimento do outro. A ideia de justiça, enquanto bem moral, relaciona-se, sempre, ao outro, à Sociedade. Um dos pontos essenciais do conceito de justiça consiste no estabelecimento de critérios políticos jurídicos para sua distribuição. (SILVA, 2003, p. 34)
Desse modo, percebe-se, pelas condições de nossas prisões, que a pressão estatal exercida pelo sistema de justiça criminal continua valorizando a vingança e a punição como medida de controle contra os que transgridem as normas penais. Visa, com isso, a “prevenção”, denotando o caráter de exclusão estabelecido pelo Estado que monopoliza e impede outras possibilidades de resolução dos conflitos. O sistema precisa ser repensado no sentido de que a reeducação e a reinserção social se sobreponham ao castigo. A ordem pública, por sua vez, compreende um conjunto de regras jurídicas que visam regular as relações sociais de todos os níveis de interesse público, de forma a permitir que se estabeleça um clima de convivência harmoniosa e pacífica, conduzindo ao bem comum. Abrange a tranquilidade pública, a salubridade e a segurança pública, interesses e necessidades que devem ser catalisadas no sentido de se buscar a paz social. Segundo Álvaro Lazzarini: A ordem pública é mais fácil de ser sentida do que definida, mesmo porque ela varia de entendimento no tempo e no espaço. Aliás, nessa última hipótese, pode variar, inclusive, dentro de um determinado país. Mas,
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sentir-se-á a ordem pública segundo um conjunto de critérios de ordem superior, políticos, econômicos, morais e, até mesmo, religiosos. A ordem pública não deixa de ser uma situação de legalidade e moralidade normal, apurada por quem tenha competência para isso sentir e valorar. A ordem pública, em outras palavras, existirá onde estiver ausente a desordem, os atos de violência, de que espécie for, contra pessoas bens ou o próprio Estado. (1999, p. 202)
A atuação do sistema de justiça criminal na preservação da ordem pública e na busca por justiça deve, portanto, estar alinhada com os postulados de um “Estado Democrático de Direito” que proteja os cidadãos e promova a cidadania, para que a intervenção de seus agentes não se dê como mais um dos instrumentos de expansão punitiva além de tática de contenção dos “inimigos” - os inimigos do direito penal rotulados como “bandidos”, “delinquentes”, “criminosos”, “marginais” - dentre outros adjetivos. Isso porque, segundo Zaffaroni: Os Estados de direito não são nada além da contenção dos Estados de polícia, penosamente conseguida como resultado da experiência acumulada ao longo das lutas contra o poder absoluto. (...) O direito penal deve sempre caminhar para o ideal do Estado de direito; quando deixa de fazê-lo o Estado de polícia avança. ( 2007, p. 172)
O papel das estruturas do sistema de justiça criminal, num Estado Democrático de Direito, deve ter uma concepção que priorize os canais de comunicação política e de resolução pacífica dos conflitos, evitando e minimizando a judicialização dos conflitos e a terapia “punitiva” como alternativas às respostas pela via da violência institucional.
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Seção 3 – O Sistema de Segurança Pública no Brasil A segurança Pública no Brasil é considerada dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, conforme se estudou na primeira Seção dessa Unidade. O conceito de segurança pública é amplo, não está restrito à questão da violência, da criminalidade e de seu controle, sendo cada vez mais claro que o sistema penal não é a única maneira de enfrentá-los. Há uma série de outros mecanismos e práticas políticas e democráticas que podem possibilitar a construção de uma infraestrutura social capaz de processar e resolver conflitos em um contexto de intervenções, quer preventivas ou reativas, que priorizem os direitos e garantias fundamentais. As estruturas de segurança pública no país são as responsáveis pela intervenção mais direta e imediata nos problemas que dizem respeito à criminalidade e à criminalização, muito embora se saiba que uma atuação efetuada de forma cooperativa, envolvendo não apenas o poder público, mas também ações do empresariado, da sociedade civil organizada e de comunidades locais, tem efeitos bem mais úteis sob o aspecto da solução integrada dos conflitos sociais.
O estado e a sociedade têm demonstrado insuficiência na compreensão e trato das questões que envolvem a ordem social, percebendo-se que as amostragens estatísticas oficiais apontam para um crescimento desproporcional da incidência criminal no país - isso sem falar nas cifras ocultas, daqueles crimes que não são contabilizados, os quais, para Zafarroni, correspondem a maioria das práticas delitivas. Segundo este autor: Praticamente não existe conduta - nem mesmo as ações mais privadas – que não seja objeto de vigilância por parte dos órgãos do sistema penal ou daqueles que se valem de sua executividade para realizar ou reforçar seu controle, embora se mostrem mais vulneráveis as ações realizadas em público, o que acentua a seletividade da vigilância em razão da divisão do espaço urbano que Unidade 3
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confere menores oportunidades de privacidade aos segmentos mais carentes.[...] Se todos os furtos, todos os adultérios, todos os abortos, todas as defraudações, todas as falsidades, todos os subornos, todas as lesões, todas as ameaças, etc. fossem concretamente criminalizados, praticamente não haveria habitante que não fosse, por diversas vezes, criminalizado. ( 1991, pp. 25 – 26)
As estruturas de segurança, assim como as demais instâncias de poder, historicamente, em nosso país, acabaram servindo às elites como mecanismo de controle social e, até há pouco tempo, foram extensão dos Estados, de uma ideologia voltada para a segurança nacional. Porém, com a abertura política e a democratização em nosso país, têm procurado se adequar às novas realidades e contingências sociais, muito embora a incorporação de novos postulados inerentes aos direitos de cidadania encontre resistências individuais e institucionais. Aliado a esse problema, percebe-se que, embora haja uma tentativa de articulação e mobilização no sentido de proporcionar segurança à sociedade e às pessoas - cujos esforços por parte das polícias têm sido muitas vezes em vão - temos também dos problemas crônicos de nossa sociedade, como as desigualdades sociais, a falta de saúde pública, a deficiente infraestrutura urbana, a desvalorização da educação e do sistema de ensino e pelas mais variadas expressões de violência já citadas, como a pobreza, o desemprego, os preconceitos, a drogadição, a exploração sexual, a exploração do trabalho infantil (e adulto), a falta de assistência familiar, o não acesso aos meios de cultura, a violência intrafamiliar, contra a mulher, contra os animais, dentre outras questões para as quais não estão plenamente preparadas para agir. Deve-se perceber que o papel da polícia, como integrante do sistema de justiça criminal, muitas vezes apresenta algumas ambiguidades, como, por exemplo, as citadas por Adriana Loche ao apontar que na sua ação, revela-se uma das faces de nossa sociedade, como: Entrar no cotidiano da polícia descortina uma outra sociedade, funcionando sob regras e valores diferentes dos preceitos fundamentados no direito. Pode-se falar
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de uma lógica ocupacional, mas também de uma lógica societária que interferem no julgamento e na prática que os policiais têm de suas funções. Lógicas que exigem soluções rápidas e proporcionais aos crimes; que colocam o criminoso como estando fora do pacto social, portanto, sem poder beneficiar-se das garantias constitucionais que foram feitas para pessoas de bem; que separam o universo em categorias polarizadas de bom x mau, delinquente x pessoa de bem etc. Mas, ao mesmo tempo, lógicas que permitem uma flexibilidade enorme no tratamento das pessoas em função de suas relações. Assim, alguns indivíduos teriam mais direitos que os demais porque, afinal, são parentes, amigos, protegidos, bem–vestidos, estudados tem conhecimento, etc. que aqueles outros que não teriam. (1999, p.172)
Essa realidade precisa ser percebida, pois trata-se de ponto de partida para delimitação dos espaços de atuação das polícias numa sociedade de classes, em que as estruturas de polícia têm se mobilizado conforme uma ideologia liberal (burguesa) - que insiste em hierarquizar suas ações em desfavor dos mais vulneráveis socialmente - atuando, muitas vezes, de forma pouco isenta. O sistema penitenciário brasileiro, em que a maioria dos presos são pessoas pobres, retrata com fidedignidade essa situação. Essa avaliação demonstra a necessidade da construção de uma nova filosofia no que diz respeito à forma de atuação policial: rompendo com o senso comum e com a hegemonia do pensamento (ideologias dominantes) no sentido de rever “velhos” paradigmas inadequados para uma sociedade que se deseja livre e igualitária. Parafraseando o professor Alessandro Baratta: “que permita o controle social não-autoritário do desvio e que abra espaço à diversidade, o que é garantido pela “igualdade” e expressão da individualidade do homem como portador de capacidades e de necessidades positivas”. (1999, p. 20) No Brasil, existe, há algum tempo, uma preocupação com a questão da (in)segurança pública em nível nacional, estadual e municipal, em que o contexto da banalização da violência e os índices de crescimento apresentados “oficialmente” sobre a criminalidade, principalmente a partir dos anos 90, fez com que as autoridades se mobilizassem, emergindo, no epicentro
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das discussões, a necessidade de um órgão a nível Nacional para tratar do problema. No ano de 1995, foi criada a Secretaria Nacional de Segurança Pública e, logo a seguir, no ano de 2000 (diante do agravamento do quadro de insegurança) é elaborado o chamado “Plano Nacional de Segurança Pública” (PNSP) - também conhecido por “Plano Nacional Antiviolência” - sob a coordenação do Ministério da Justiça. Aproveitando a oportunidade, veio a criação do Fundo Nacional de Segurança Pública (FNSP), com o objetivo de apoiar projetos dos governos dos estados e municípios, bem como projetos sociais de prevenção à violência. Porém, a “democratização” do país e a rediscussão sobre segurança pública não impediram solução de continuidade na criminalidade e na criminalização, o que nos reforça a tese de que a concepção do sistema penal como meio de prevenção dos conflitos continua a reproduzir a violência estrutural desse modelo chamado “neoliberal’ e “capitalista”. O Plano Nacional de Segurança Pública previu medidas no âmbito do governo federal, em cooperação com os governos estaduais, de natureza normativa e de natureza institucional, que tiveram o poder de remeter a compromissos assim distribuídos:
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No âmbito do Governo Federal 1. Combate ao narcotráfico e ao crime organizado; 2. Desarmamento e controle de armas; 3. Repressão ao roubo de cargas e melhoria da segurança nas estradas; 4. Implantação do subsistema de inteligência de segurança pública; 5. Ampliação do Programa de Proteção a Testemunhas e Vítimas de Crime; e 6. Mídia x Violência: regulamentação. Em cooperação com os governos estaduais 1. Redução da violência urbana; 2. Inibição de gangues e combate à desordem; 3. Eliminação de chacinas e execuções sumárias; 4. Combate à violência rural; 5. Intensificação das ações do Programa Nacional dos Direitos Humanos; 6. Capacitação profissional e reaparelhamento das polícias; e 7. Aperfeiçoamento do sistema penitenciário. De natureza normativa 1. O aperfeiçoamento legislativo. De natureza Institucional 1. A implantação do Sistema Nacional de Segurança Pública.
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O plano teve, como um de seus eixos, exatamente a cooperação, conforme se entende do determinado em sua apresentação: A solução para a complexa e desafiadora questão da segurança exige o efetivo envolvimento de diferentes órgãos governamentais em todos os níveis, entidades privadas e sociedade civil. Busca-se, com o estabelecimento de medidas integradas, aperfeiçoar a atuação dos órgãos e instituições voltadas à segurança pública em nosso País, permitindo-lhes trabalhar segundo um enfoque de mútua colaboração. Somente com essa participação conjunta, este programa terá efetividade e criará condições para o desenvolvimento de ações mais eficazes. (FONTE?)
Desta forma, se vê que já existe uma preocupação real com a questão da segurança pública, materializada com uma política pública que, apesar das dificuldades e resistências, tem permitido a abertura e a democratização das instituições policiais no país, oportunizando-se a participação popular. Como exemplo disso, temos os Conselhos de Segurança Pública que estão sendo criados nos bairros dos municípios, os CONSEGs, a Polícia Comunitária, o PROERD – Programa de Prevenção ao Uso de Drogas – dentre uma série de outras iniciativas que tem a intenção de aproximar cada vez mais a comunidade da polícia e quebras a divisão histórica até então existente, e até mesmo fomentada, entre “polícia” e “sociedade”. O Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania é outra recente iniciativa que se alinha com os postulados de um legítimo Estado Democrático de Direito: Desenvolvido pelo Ministério da Justiça, o Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci) marca uma iniciativa inédita no enfrentamento à criminalidade no país. O projeto articula políticas de segurança com ações sociais; prioriza a prevenção e busca atingir as causas que levam à violência, sem abrir mão das estratégias de ordenamento social e segurança pública. Entre os principais eixos do Pronasci destacam-se a valorização dos profissionais de segurança pública; a reestruturação do sistema penitenciário; o combate à corrupção policial e o envolvimento da comunidade na
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prevenção da violência. (http://portal.mj.gov.br/pronasci/ data/Pages/MJE24D0EE7ITEMIDAF1131EAD23 8415B96108A0B8A0E7398PTBRIE.htm. Acesso em: 18 jan. 2011)
Mas por outro lado, apesar de ambíguo, é preocupante o desencadeamento de operações típicas de “lei e ordem” que vem ocorrendo no país (tendo início nos morros e favelas do Rio de Janeiro, mas que já começam a se realizar em outras grandes cidades) que tem encontrado sua justificativa principalmente na necessidade de enfrentamento ao tráfico de entorpecentes. Essas ações de lei e ordem acabaram sendo reguladas pela Lei Complementar n° 97 de junho de 1999, alterada pela Lei Complementar nº 117 de 02 de setembro de 2004, que deram ao Exército Brasileiro e às Forças Armadas Poderes de Polícia.
Esta legislação prevê que a atuação das Forças Armadas, na garantia da lei e da ordem, poderá ocorrer por iniciativa de quaisquer dos poderes constitucionais - de acordo com as diretrizes baixadas em ato do Presidente da República - e após esgotados os instrumentos destinados à preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, relacionados no art. 144 da Constituição Federal. Caso ocorra a necessidade de emprego das Forças Armadas na garantia da lei e da ordem, o controle operacional dos órgãos de segurança pública necessários ao desenvolvimento das ações será dado à autoridade encarregada das operações, que deverá constituir um centro de coordenação de operações, composto por representantes dos órgãos públicos sob seu controle operacional ou com interesses afins. Questiona-se até que ponto as Forças Armadas possuem estrutura e pessoal com qualificação para atuar nesse tipo de ação que não se confunde com operação de guerra, para a qual seu efetivo é preparado. Uma intervenção meramente belicista tem seus riscos - é inadequada pela própria natureza da operação e público alvo - e seus resultados são questionáveis, ou seja, há necessidade de estratégias e decisões em outros campos de forma concorrente à intervenção militar. Unidade 3
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Com a criação da Força Nacional de Segurança Pública (FNSP), regulada pela Medida Provisória nº 345 de 14 de janeiro de 2007 (que dispôs sobre a cooperação federativa no âmbito da segurança pública), essa estratégia de enfrentamento à violência de forma belicista foi reforçada, mas, além de iludir a sociedade e a população sobre a dimensão do problema, não tem apresentado resultados animadores, passando à margem de políticas públicas que possam, ao lado das condições de satisfação das necessidades materiais básicas, também propiciar meios justos de exercício da cidadania, de forma a, ao menos, minimizar as carências e diversidades da população pobre que vem sendo cada vez mais criminalizada e alvo dessas operações. Outro problema diz respeito à falta de legitimidade da FNSP, pois sua existência não tem previsão constitucional. Na impossibilidade de atuação na desconstrução da violência estrutural, as diferentes estratégias de atuação policial e prevenção criminal podem, ao menos, suavizar a situação mediante uma mobilização e cooperação geral, ou seja, Estado e sociedade civil organizada se empenhando e conjugando esforços no sentido de tornar prioritário e real os princípios inerentes aos direitos e garantias fundamentais previstos na Constituição Federal: respeito ao direito à vida (digna), à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, sem esquecer os direitos sociais: educação, saúde, trabalho, moradia, lazer, infância e a assistência aos desamparados. Buscar esses ideais legais, preparando, mobilizando e priorizando o aparato policial para o exercício de ações emancipatórias, consolidando tais ações como que constituinte de uma filosofia de trabalho, deve ser eixo básico de uma política pública de segurança que alcance e busque compreender, sem preconceitos, as dimensões do problema da (in)segurança pública.
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Síntese Nos estudos dessa unidade, delimitamos o papel do Estado numa sociedade democrática e conhecemos as estruturas que compõe o sistema de justiça criminal, que se estrutura em três frentes de atuação: segurança pública, justiça criminal e execução penal. A estrutura dos órgãos de segurança pública e suas competências, previstos no artigo 144 da Constituição da República Federativa do Brasil, foram evidenciadas, sendo que com a criação da Secretaria Nacional da Segurança Pública do Ministério da Justiça, este passou a ser o órgão central do sistema de segurança pública do país. Explanou-se que a justiça criminal está organizada a nível federal e estadual e é composta por juízes federais, Tribunais Regionais Federais, Ministério Público Federal e defensoria Pública da União, juízes estaduais, Tribunais de Justiça, Ministérios Públicos e Defensorias Públicas Estaduais. Destacou-se que o sistema de execução penal é regulado pela Lei de Execuções Penais, a qual prevê em seu artigo 61 os seguintes órgãos de execução penal: Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, Juízo da Execução, Ministério Público, Conselho Penitenciário, Departamentos Penitenciários, Patronato, Conselho da Comunidade e a Defensoria Pública. Vimos que num Estado Democrático de Direito, o papel do Estado deve priorizar a consolidação do bem-estar e dos direitos dos cidadãos e que no Brasil tem sido recorrente a história de violações de nosso sistema de justiça criminal, que o invés de promover a reinclusão social de quem transgride, acaba por retroalimentar o processo de exclusão pela criminalização. Por fim, conhecemos como se constitui o Sistema de Segurança Pública no Brasil, suas atribuições, competências e formas de atuação diante dos novos cenários de violência que se apresentam, de forma a que se percebesse que a instrumentalização apenas sob o viés penal das forças de segurança não é suficiente para prevenir violência e criminalidade, havendo a necessidade de Unidade 3
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uma diversificação de respostas sociais e governamentais para a promoção mais efetiva da paz social. Com base nesses estudos, cujas bases nos permitiram uma visão sobre a complexidade do sistema de justiça criminal, pode-se avançar para compreender o Sistema de Segurança Pública no Brasil, seus aspectos legais e as políticas públicas que vêm sendo desenvolvidas no sentido de conter a violência, a criminalidade e os processos de exclusão, o que será visto na nossa próxima unidade de estudos.
Atividades de autoavaliação 1) Com base no artigo intitulado “Crise no Sistema de Justiça Criminal”, de autoria de Sérgio Adorno (disponível em nossa MIDIATECA), escreva, entre 10 e 15 linhas, sobre que tipo de mudanças seriam necessárias para tornar mais efetivo o papel do Estado no enfrentamento da violência e da criminalidade!
2) Somos todos iguais perante a lei. Mas perante que lei? Perante a lei divina? Perante a lei terrena, a igualdade se desiguala o tempo todo e em todas as partes, porque o poder tem o costume de sentar-se num dos pratos da balança da justiça! (GALEANO, Eduardo. De pernas pro ar: a escola do mundo ao avesso. Porto Alegre: L&PM, 1999, p. 207) Inspirado na frase de Eduardo Galeano, faça a correlação entre os agentes da lei e os órgãos correspondentes: I - Juízes federais, Tribunais Regionais Federais, Ministério Público Federal e defensoria Pública da União, juízes estaduais, Tribunais de Justiça, Ministérios Públicos e Defensorias Públicas Estaduais. II- Juízes de direito, em primeira instância, Juizados Especiais Criminais e Tribunais do Júri. III- Polícia Militar, Polícia Civil e Polícia Federal. IV- Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, Juízo da Execução, Conselho Penitenciário. ( )
Órgãos do sistema de execução penal
( )
Órgão do Sistema de Segurança Pública
( ) Órgãos estaduais de justiça criminal ( )
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Órgãos do Sistema de Justiça Criminal
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Saiba mais MACHADO, M. Lavenére; MARQUES J. B. História de um massacre – Casa de Detenção de São Paulo. São Paulo: Cortez, 1993. BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. Introdução à Sociologia do Direito Penal. Rio de Janeiro: Revan, 1997. Aprofunde os conteúdos estudados nesta unidade ao consultar também as seguintes referências: ZAFARONI, Eugenio Raúl. Em Busca das Penas Perdidas: a perda de legitimidade do sistema penal. Trad. Vânia Romano Pedrosa & Almir Lopes da Conceição. Rio de Janeiro: Revan, 1991. BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da pena de prisão: causas e alternativas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993.
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unidade 4
Segurança Pública: atuação do Estado e da sociedade na promoção da pacificação social Objetivos de aprendizagem
Entender o papel do Estado na promoção da paz social.
Compreender a importância das políticas públicas de segurança no Brasil.
Entender a dimensão das políticas públicas e dos mecanismos de prevenção e de repressão à violência na promoção da paz social.
Seções de estudo Seção 1
Estado e Ordem Pública
Seção 2
Controle social e preservação da ordem pública
Seção 3
Políticas públicas de segurança e promoção da paz social
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Para início de estudo Nesta unidade, vamos finalizar os estudos da disciplina aprofundando os estudos sobre o papel das estruturas de segurança pública em um Estado Democrático de Direito. Vamos compreender um pouco mais a importância das políticas públicas de segurança como base para ações dos mecanismos de prevenção e de repressão à violência na promoção da paz social. No âmbito das ciências criminais, a segurança pública se insere como um dos temas mais relevantes em nossa sociedade, principalmente diante dos cenários de violência e de criminalidade que o Estado não consegue conter. A preocupação com a promoção da paz social busca se assentar em novas bases, onde os aparatos do sistema de justiça criminal, com destaque para a segurança, devem buscar alternativas para a prevenção e solução de conflitos. Nesse sentido, veremos a questão do Estado e da Ordem Pública na primeira seção; na segunda seção, será estudado o controle social e a preservação da ordem pública e, por fim, se fará uma abordagem sobre políticas públicas de segurança e promoção da paz social em nossa sociedade. Vamos, então, finalizar essa disciplina com novas reflexões que essa unidade de estudos lhes trará!
Seção 1 – Estado e Ordem Pública As funções do Estado e sua soberania na organização do poder político se baseiam na decisão coletiva de que se monopolize o uso da força no sentido de buscar a segurança coletiva e a paz social. A ideia de segurança e de ordem está no centro da consolidação do Estado Moderno, o que implica na necessidade de um modelo, com instrumentos de administração da vida econômica e 120
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social, que rompa com o aparato de autoridade privada típico da sociedade feudal e com vários entes políticos. Na construção do Estado Moderno, segundo Victória-Amália de Barros Carvalho G. de Sulocki, tem-se: O primeiro movimento é o de criação de uma força pública permanente, estabelecendo a unidade do poder do Estado do ponto de vista coativo, ou seja, primeiramente surge o elemento que podemos chamar de monopólio da força. As demais esferas se organizarão, racional e planificadamente, nos moldes da força coativa, passando assim da esfera privada para a pública sob um comando unitário. Forma-se desse modo uma burocracia estatal que elimina as instâncias de mediação feudal e “torna-se possível estabelecer o vínculo de súdito com caráter geral e unitário”. Esse novo modelo político que se desenhava servia como uma luva ao desenvolvimento da forma econômica capitalista. (2007, p. 20)
O Estado prestador de direitos e assegurador da segurança, fruto da revolução liberal burguesa, disfarça os verdadeiros interesses de detenção dos poderes políticos e econômicos. Nesse contexto cabe relembrar o que Victória-Amália de Barros Carvalho G. de Sulocki afirma sobre igualdade e cidadania: O cidadão é uma criação jurídica da revolução burguesa que procura dar essa aparência de igualdade a todos na sociedade. Ao fazê-lo encobre-se a verdadeira realidade existente na sociedade, a profunda desigualdade, ao mesmo tempo que impede qualquer movimento contra tal realidade. (2007, p. 31)
Diante da percepção e da tomada de consciência das classes excluídas das injustiças desse modelo político, econômico e jurídico de Estado, surgem as pressões populares, fortalecidas com a criação de sindicatos e de grupos políticos, o que faz com que o Estado reveja seu papel e passe a intervir em outros campos, com destaque para o social - o chamado Estado de bem-estar social (welfare state) - que para alguns autores que tratam do tema tem como pano de fundo a manutenção do poder capitalista.
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A necessidade de concessões às classes populares ao longo do século XX fez - e continua fazendo - com que se abrisse espaços para sua maior participação política no sentido de terem ingerência na condução da administração pública. Isso faz emergir e fortalecer o conceito do Estado Democrático de Direito. O Estado Democrático de Direito, conforme visto na unidade 2, se fundamenta no verdadeiro acesso de todos aos direitos fundamentais e sociais e na universalização da prestação desses direitos pelo Estado - o que também contempla o direito à segurança, à saúde, à educação, à cultura, ao trabalho, à seguridade, ao lazer, à tranquilidade pública, dentre vários outros individuais e coletivos. Acontece que o pretendido Estado Moderno, que deveria garantir esses direitos aliado à apropriação indevida da ideia política de representatividade democrática por grupos de poderes hegemônicos, tem transformado as garantias constitucionais desses direitos numa cidadania de papel, ou seja, sem eficácia real. Sobre os direitos naturais positivados, especificamente os direitos fundamentais, que passam a ser a base das democracias modernas, Sérgio Cadermatori nos alerta que: A legitimidade democrática dos governos contemporâneos passa assim a ser medida pelo respeito e pela implementação desses direitos por meio de mecanismos de legalidade, erigida esta em instrumento privilegiado de concretização dos valores fundamentais que são plasmados por meio daqueles. (2007, p. 25)
É nesse contexto de:
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violação de direitos;
de rapidez com que vêm ocorrendo as mudanças sociais;
da migração e urbanização acelerada dos espaços;
da concentração populacional;
do desequilíbrio entre o capital e o trabalho;
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da concentração de renda;
do desemprego;
da falta de planejamento de políticas públicas básicas para o atendimento à população; da deterioração dos valores, dentre outros aspectos que tem comprometido a qualidade de vida das pessoas nas mais variadas dimensões
e - culminando num sentimento de intranquilidade e insegurança pública cada vez mais generalizado - que as estruturas de segurança pública têm que intervir para assegurar a ordem pública. A noção de ordem pública, segundo Álvaro Lazzarini, é resultado de um conjunto de “princípios de ordem superior, políticos, econômicos, morais e algumas vezes religiosos, aos quais uma sociedade considera estreitamente vinculada à existência e conservação da organização social estabelecida”, obedecendo a um critério contingente, histórico e nacional”. (1999, p. 52) O conceito de “ordem pública” está previsto no artigo 2° do Decreto Federal n° 88.777, de 30 de setembro de 1983, que compreende: Conjunto de regras formais, que emanam do ordenamento jurídico da Nação, tendo por escopo regular as relações sociais de todos os níveis, do interesse público, estabelecendo um clima de convivência harmoniosa e pacífica, fiscalizado pelo poder de polícia, e constituindo uma situação ou condição que conduza ao bem comum.
Este Decreto, no mesmo artigo, também nos apresenta a dimensão dos fatos e ações que caracterizam a “perturbação da Ordem Pública”: Abrange todos os tipos de ação, inclusive as decorrentes de calamidade pública que, por sua natureza, origem, amplitude e potencial possam vir a comprometer, na Unidade 4
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esfera estadual, o exercício dos poderes constituídos, o cumprimento das leis e a manutenção da ordem pública, ameaçando a população e propriedades públicas e privadas.
Apesar do decreto, ainda assim a noção de ordem pública é incompleta. É importante considerar que abrange outros aspectos, além da ordem material, que dizem respeito a uma convivência social ajustada ao Estado Democrático de Direito, conveniente e pacífica, de maneira que tenha alcance sobre bens e pessoas, salubridade, tranquilidade e também sobre outros aspectos políticos, sociais e econômicos. Desse modo, podemos considerar que a ordem pública abrange a tranquilidade pública, a segurança pública e a salubridade pública.
A tranquilidade pública diz respeito ao estado ou condição social de paz e tranquilidade individual e social, compreendendo situações que caso violadas podem trazer incômodos, atingindo direitos individuais ou sociais, ou ainda configurar atos preparatórios para a prática de crimes. Muito embora a tranquilidade pública possa ser atingida por fatos ou eventos, ou ainda violada de várias formas em outros âmbitos, na esfera criminal o Código Penal Brasileiro tem um título específico que trata dos crimes contra a paz pública, que compreende os crimes de “incitação ao crime”, “apologia de crime ou criminoso” e “quadrilha ou bando”. A lei de contravenções penais também possui um capítulo específico que trata das contravenções referentes à paz pública, que compreende a “associação secreta”, a “provocação de tumulto”, o “falso alarme”, e a “perturbação do trabalho ou sossego alheio”. A salubridade pública diz respeito à saúde individual e coletiva referindo-se às condições favoráveis de vida, saúde e higiene inclusive as decorrentes de deficiências do Estado ou de desastres e calamidades públicas.
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O Código Penal - Título III, capítulo III - trata dos crimes contra a saúde pública, como, por exemplo, o crime de epidemia, de falsificação de remédios, de poluição de água potável, de curandeirismo e de charlatanismo, dentre outros. E a segurança pública pode ser entendida como: (...) o estado anti-delitual, que resulta da observância dos preceitos tutelados pelos códigos penais comuns e pela lei das contravenções penais, com ações polícia regressiva ou preventiva típicas, afastando-se, assim, por meio de organizações próprias, de todo perigo, ou de todo mal que possa afetar a ordem pública, em prejuízo da vida, da liberdade ou dos direitos de propriedade das pessoas, limitando as liberdades individuais, estabelecendo de cada pessoa, mesmo em fazer aquilo que a lei não lhe veda, não pode ir além da liberdade assegurada aos demais, assegurando-a. (LAZZARINI, 1999, p. 54)
Segundo o Manual Básico de Elementos Fundamentais da ESG: A garantia do exercício dos direitos individuais e a manutenção da estabilidade das instituições, bem como o bom funcionamento dos serviços públicos e o impedimento de danos sociais, caracterizam a Ordem Pública, objeto da Segurança Pública. Os serviços públicos incluem todas as atividades exercidas pelo Estado, com ênfase nas administrativas, de polícia, de prestação de serviços, judiciárias e legislativas.
A compreensão da dimensão desses conceitos nos permite perceber que a atuação do Estado e da sociedade na promoção da pacificação social compreende ações do sistema de justiça criminal - incluindo o sistema penitenciário - que deve evitar que essas ações impliquem em mais danos do que a lei busca prevenir. E mais especificamente a segurança pública, compreendendo o âmbito político social tanto na esfera pública como na privada, de maneira a se manter o equilíbrio no convívio social. Este aspecto é importante porque a dinâmica de exclusão pela criminalização tem ricocheteado e voltado em forma de mais violência para toda a sociedade, o que pede reflexões que conciliem o empirismo (prática) com uma base científica no Unidade 4
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sentido de uma compreensão aprofundada das raízes e dimensões do problema. Jock Young nos aponta alguns caminhos: A dinâmica fundamental de exclusão resulta de forças de mercado que excluem segmentos amplos da população do mercado primário de trabalho e dos valores de mercado, o que contribui para gerar um clima de individualismo. Tal situação afeta tanto as causas da criminalidade (através da privação relativa e do individualismo) quanto às reações contra o crime (pela precariedade econômica e a insegurança ontológica). As exclusões que ocorrem na superfície deste processo primário são uma tentativa de lidar com o problema da criminalidade e da desordem por ela engendrada. (...) A própria criminalidade é uma exclusão, como o são as tentativas de controlá-las através de barreiras, encarceramento e estigmatização. (2002, p. 49)
Na nossa próxima seção, vamos estudar a importância das políticas públicas de segurança no Brasil e a formas de controle social e de preservação da ordem pública.
Seção 2 – Controle social e preservação da ordem pública A abordagem e o enfrentamento do problema da insegurança passam por uma análise que transcende a questão criminal, necessitando de uma avaliação que permita superar o paradigma de “lei e ordem”, pois os conflitos que acabam em violência, criminalização e criminalidade têm vários fatores e causas. Assim, sua compreensão deve se alicerçar em bases de natureza interdisciplinar, sob pena de se ficar limitado à reprodução do modelo de controle social pela via punitiva. As formas de controle social e a preservação da ordem pública devem acompanhar as mudanças sociais, compreendendo as desigualdades, as diferenças e os problemas de natureza social que terminam em expressões de violência e acabam exigindo a intervenção policial. 126
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Na falta de políticas públicas, se apela para a política criminal num ciclo histórico de exclusão pela via da criminalização.
Acontece que a função da polícia em nossa sociedade é cada vez mais complexa, precisando de alternativas no sentido de que não seja apenas um degrau para o sistema de justiça criminal. Nesse sentido, Hermann Goldstein nos esclarece que: A prática policial é altamente dependente do sistema de justiça criminal e relaciona-se quase que inextricavelmente com suas operações – o processo de prisão, a instauração do inquérito, o julgamento, a sentença, o encarceramento ou suspensão condicional da pena e o livramento condicional - , sendo óbvio, segundo esse sistema, o papel integral da polícia na citação de suspeitos. O que é menos reconhecido é o fato de o sistema ser o principal meio possível para a polícia poder agir em situações das mais diversas. Para muitas dessas situações, o sistema é claramente inapropriado e, mesmo quando é adequado, muitas vezes sua aplicação é ineficaz. Mas, na ausência de alternativas, o sistema de justiça criminal acaba sendo utilizado e, para que as coisas possam funcionar, várias vezes seu uso é distorcido. (2003, p. 38)
A partir de uma mudança de concepção sobre o papel das estruturas de polícia - de não apenas uma atuação criminal - se pode avançar para novas perspectivas na prevenção e resolução de conflitos e rever a relação polícia-sociedade-cidadão. Para Theodomiro Dias Neto: O esforço por identificar e compreender os conflitos geradores de insegurança por fora das classificações contidas na legislação penal deu origem ao “policiamento orientado ao problema”. (...) Trata-se de profunda reavaliação da função policial, pela qual a polícia, em coordenação com outras instituições estatais e não estatais, mobiliza os seus recursos materiais e intelectuais na identificação, análise e solução dos problemas, criminais ou não, de um território. No lugar de reiteradamente reagir a incidentes, meros sintomas Unidade 4
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de problemas, a polícia adota uma atitude preventiva e investe na busca de soluções definitivas para os problemas em si. (2005, p. 108)
Essa concepção ultrapassa a lógica de “combate ao crime” - historicamente uma lógica de “guerra” - permitindo seu redirecionamento para uma forma de atuação policial pautada na prevenção e desconstrução dos conflitos, não ficando restrita às práticas eminentemente repressivas que, pela sua própria dimensão, são excludentes e recaem de forma preponderante sobre a pobreza. Isso pode ser confirmado pelo perfil social do preso. A percepção da função global da polícia em nossa sociedade (de não apenas os fatos ligados ao crime) pode impulsioná-la para outros compromissos e formas de atuação, pois a solução pela mediação de grande parte dos conflitos minimiza a possibilidade de sua judicialização evitando-se a necessidade do emprego da força, da coerção e da criminalização. A superação do padrão de punição é um dos desafios para as novas estruturas de controle social, em especial das polícias, que precisam rever sua cultura de “combate” a um pseudo “inimigo” o chamado “meliante”, “delinquente”, “marginal”, ou o “criminoso”, dentre outros adjetivos depreciativos muito utilizados no jargão policial e no senso comum contra os pobres criminalizados (muito raro ver um criminoso do colarinho branco ou autoridade de Estado ser exposto e chamado de “vagabundo”, “criminoso” etc.!). Esses adjetivos ferem a dignidade da pessoa humana e os princípios e os direitos fundamentais previstos na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB, 88). A cidadania deve ser o eixo central das discussões sobre o papel das polícias.
Normalmente, a polícia é a primeira a se deparar com situações conflitivas e a quem, num primeiro momento, cabe o resgate das condições mínimas para o exercício dos direitos de cidadania e de emancipação de subjetividades, mesmo diante de uma situação de 128
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confronto ou de violência extremada. Segundo a professora Vera Regina Pereira de Andrade: Enquanto a cidadania é dimensão de luta pela emancipação humana, em cujo centro radica(m) o(s) sujeito(s) e sua defesa intransigente (exercício de poder emancipatório), o sistema penal (exercício institucionalizado de poder punitivo) é dimensão de controle e regulação social, em cujo centro radica a reprodução de estruturas e instituições sociais, e não a proteção do sujeito, ainda que em nome dele fale e se legitime; enquanto cidadania é dimensão de construção de direitos e necessidades, o sistema penal é dimensão de restrição e violação de luta pela afirmação da igualdade jurídica e da diferença das subjetividades; em definitivo, enquanto a cidadania é dimensão de inclusão, o sistema penal é dimensão de exclusão social. (2003, p. 22)
A cidadania, como um dos fundamentos da República, representa a importância que o Estado brasileiro outorga aos seus cidadãos. Implica na relevância da condição de participação de seu povo e não apenas na condição de votar e ser votado. E também como componente destacado das ações do governo e no reconhecimento de cada pessoa como integrante do processo histórico de transformação histórica e social. A compreensão da dimensão de preservação da ordem pública é fundamental nesse contexto, pois é a partir desta que se pode estabelecer as novas bases pretendidas para uma polícia cidadã. Assim, parte-se do pressuposto constitucional (artigo 144 da CRFB, 88) que diz que “a segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública”, compreendendo o conjunto de ações necessárias para a “manutenção da situação de tranquilidade e normalidade cuja preservação cabe ao Estado, às instituições e aos membros da Sociedade, consoante as normas jurídicas legalmente estabelecidas”. (BRASIL. Escola Superior de Guerra (ESG). Fundamentos da Escola Superior de Guerra. Rio de Janeiro: A Escola, 2009) As estruturas do Estado responsáveis pela segurança detêm o chamado “poder de polícia”, para o exercício das atividades de Unidade 4
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preservação da ordem pública. Uma melhor definição se encontra no Código Tributário Nacional, que escreve em seu artigo 78 que: Poder de Polícia é a atividade da administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão de interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranquilidade ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos.
O fundamento do poder de polícia é a necessidade de preservação da ordem pública, identificando-se com o interesse público - visando propiciar uma convivência social harmoniosa e pacífica -, evitando e prevenindo conflitos, bem como intervindo de forma repressiva com o uso da força no caso de condutas ilícitas, tidas como crimes ou contravenções penais, e que exijam intervenção policial. O poder de polícia se sujeita ao regime jurídico típicos da administração pública, com destaque para os princípios constitucionais da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. Segundo Odete Medauar, no âmbito administrativo, para fins do exercício do poder de polícia, ordem pública significa: (...) um mínimo de condições essenciais a uma vida social adequada e pacífica; seu conteúdo varia com o estágio da vida social. Além dos aspectos clássicos da segurança dos bens e das pessoas, da salubridade e da tranquilidade, abarca também aspectos econômicos (contra alta absurda de preços, ocultação de gêneros alimentícios), ambientais (combate à poluição) e até estéticos (proteção de monumentos e paisagens). (2002, p. 407)
Na área de atuação judiciária, o poder de polícia atua repressivamente quando o ilícito penal é praticado, sendo regido pelo direito processual penal. Mas, ainda assim, a finalidade é a prevenção para que ocorra a reintegração social do cidadão em
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conflito com a lei com uma medida punitiva. E desse modo que se evite que ele volte a delinquir. Maria Sylvia Zanella di Pietro nos esclarece que: A polícia judiciária é privativa de corporações especializadas (polícia civil e militar), enquanto a polícia administrativa se reparte entre diversos órgãos da Administração, incluindo, além da própria polícia militar, os vários órgãos de fiscalização aos quais a lei atribua esse mister, como os que atuam nas áreas da saúde, educação, trabalho, previdência e assistência social. (2009, p. 118)
As polícias devem pautar suas ações num poder que não caia para o arbítrio, ou seja, tanto o “poder de polícia” como o “poder da polícia” devem ter por objetivo principal o bem-estar da coletividade, a promoção da paz social e dos direitos de cidadania.
As estratégias dos órgãos oficiais de controle social, visando a preservação da ordem pública, devem, então, adequar-se aos novos tempos de forma que as intervenções não estejam alinhadas apenas com um modelo: aquele que desclassifica as pessoas rotulando-as de perigosas. E se atendo à criminalização de condutas, em que as ferramentas do sistema penal são os meios de contenção mediante antigos métodos punitivos e disciplinadores de nossas prisões, reformatórios e unidades de internamento. Acontece que, historicamente, houve uma falta de compromisso das elites brasileiras com a inclusão social; desde os tempos coloniais, os processos sociais excludentes estão presentes em nossa história - o que formou um Brasil onde: (...) a violência é “camuflada” pela cordialidade, onde a opressão é exercida com o “jeitinho brasileiro”, onde se criou o mito da democracia racial e da cordialidade, onde se convive com a dor uma alegria quase inexplicável. Uma sociedade marcada pelo autoritarismo, pelo mandonismo, pelo elitismo, pela “carteirada”, pelo “sabe com quem está falando?” Nesta sociedade desigual, injusta, autoritária, racista, a ordem sempre foi mantida a “ferro e fogo”, os problemas sociais ainda são “questão de polícia”, os Unidade 4
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policiais ainda cumprem o seu papel de “capitães do mato”, servindo aos seus senhores na perseguição cruel dos excluídos de sempre: escravos no passado, hoje trabalhadores, favelados, sem terra, sem teto, sem capital. (DORNELLES, 1998, p. 17)
É preciso que as ações de controle social e de preservação da ordem pública deixem de ser, ou não se convertam em instrumentos de exclusão. A evidente desigualdade social, econômica e política na sociedade brasileira, aliada às mais variadas formas de discriminação - da econômica à cultural, política, étnica, de gênero, homofóbica, dentre outras continuam existindo e são incompatíveis com o processo de democratização da sociedade. Portanto, as estruturas de segurança pública como coresponsáveis pelo processo de democratização no país devem tirar a naturalidade de suas práticas discriminatórias, muitas vezes mascaradas pela imagem da intervenção em nome da “quebra da ordem”. Estas práticas são geradoras e reprodutoras dos processos de exclusão. O controle social deve implicar em ações que vão além das práticas estigmatizantes e seletivas do sistema de justiça criminal, onde as polícias possam contribuir com ações de emancipação e proteção da pessoa. Conforme João Ricardo Wanderley Dornelles: Uma sociedade democrática, justa, com base na soberania popular, exige uma mudança radical dessa situação histórica. Exige reformas que incluam como beneficiários das conquistas da civilização esses milhões de brasileiros excluídos. Exige que a cidadania seja uma conquista real exercida por todos os brasileiros. E exige que cada membro desse povo seja respeitado na sua dignidade, com salário decente, com escola, saúde, moradia, transporte, saneamento e segurança. (1998, p. 17)
Desse modo, o enfrentamento da violência e da criminalidade (visando a preservação da ordem pública) não deve ficar só nos processos de criminalização e no fortalecimento do aparato repressivo penal, mas sim ultrapassar a concepção de “ordem” 132
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conservadora com propostas que deem primazia às ações preventivas e aos direitos de cidadania. Na próxima seção, abordaremos as políticas de segurança necessárias nesse sentido.
Seção 3 – Políticas públicas de segurança e promoção da paz social Já vimos que segurança pública - dever maior do Estado, mas obrigação de todos - exige o cumprimento dos deveres e funções necessários à manutenção desta condição. Um dos mais difíceis problemas que os dirigentes de uma Nação enfrentam é obter o exato equilíbrio entre as obrigações e as responsabilidades do Estado — voltado para o interesse coletivo e detentor do monopólio do uso legítimo da força — e as do cidadão, possuidor, de um lado, de direitos inalienáveis e, de outro, subordinado ao ordenamento jurídico do estado de direito, como o Brasil. (BRASIL. Escola Superior de Guerra (ESG). Fundamentos da Escola Superior de Guerra. Rio de Janeiro: A Escola, 2009, p. 69) No campo da Segurança Pública, são muitas as ações necessárias para se potencializar o compromisso com os valores democráticos, com a cidadania e com os direitos humanos:
renovação das práticas e realinhamento das estratégias policiais; adequação aos novos saberes e às novas tecnologias; preparação para o exercício de atribuições institucionais no regime democrático.
No Brasil, segundo Cláudio Beato,
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[...] A proposição de políticas públicas de segurança consiste num movimento pendular oscilando entre a reforma social e a dissuasão individual. A ideia da reforma decorre da crença de que o crime resulta de fatores sócio-econômicos que bloqueiam o acesso a meios legítimos de se ganhar a vida. Esta deterioração das condições de vidas traduz-se tanto no acesso restrito de alguns setores da população a oportunidades no mercado de trabalho e de bens e serviços, como na má socialização a que são submetidos no âmbito familiar, escolar e na convivência com sub-grupos desviantes. Consequentemente propostas de controle da criminalidade passam inevitavelmente tanto por reformas sociais de profundidade, como por reformas individuais no intuito de reeducar e ressocializar criminosos para o convívio em sociedade. A par de políticas convencionais de geração de emprego e de combate à fome e à miséria, ações de cunho assistencialista visariam minimizar os efeitos mais imediatos da carência, além de incutir em jovens candidatos potenciais ao crime novos valores através da educação, prática de esportes, ensino profissionalizante, aprendizado de artes e na convivência pacífica e harmoniosa com seus semelhantes. (1999, p.12)
Na impossibilidade de atuação na desconstrução da violência estrutural, as diferentes estratégias de atuação policial e prevenção criminal podem, ao menos, tornar menos penosa a situação mediante uma mobilização e cooperação geral, ou seja, Estado e sociedade civil organizada envidando e conjugando esforços no sentido de tornar prioritário e real os princípios inerentes aos direitos e garantias fundamentais previstos na Constituição Federal:
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respeito ao direito à vida (digna);
à liberdade;
à igualdade;
à segurança;
à propriedade;
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sem esquecer os direitos sociais:
educação,
saúde,
trabalho,
moradia,
lazer,
infância e a
assistência aos desamparados. O eixo básico de uma política pública de segurança que alcance e busque compreender, sem preconceitos, as dimensões do problema da (in)segurança pública, deve ser o de buscar esses ideais legais, preparando, mobilizando e priorizando o aparato policial para o exercício de ações emancipatórias, consolidando tais ações como que fazendo parte de uma filosofia de trabalho.
O Estado brasileiro, no exercício institucional de preservação e manutenção da ordem pública e da segurança das pessoas e do patrimônio, tem mobilizado esforços de seu aparato para contenção da violência priorizando o foco policial, mas isso tem apresentado poucos resultados, visto que esses problemas são multifacetados. Acrescente-se a isso o fato de que a atuação policial - baseada mais na supressão de conflitos do que na sua prevenção e mediação - tem sido colocada sob suspeita permanente, pois, segundo Kant de Lima: Sua capacidade de mediação e conciliação é minimizada em função de sua capacidade repressiva, pois seu poder de negociação não é legitimado pelas demais instâncias das instituições de controle social. A ênfase interpretativa do sistema é institucionalmente reforçada, com a valorização da imparcialidade associada à distância dos fatos. A proximidade da polícia à arena do conflito, exposta aos fatos e interesses em jogo, característica de sua prática e Unidade 4
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fundamental para o exercício de seu poder de polícia – e de negociação – são postos sob suspeita institucional. A Polícia, assim contaminada, fica em desvantagem perante os outros órgãos de aplicação da lei, notadamente o Ministério Público e o Judiciário. (2002, p. 208)
Portanto, está na hora de se repensar a forma de atuação do Estado brasileiro no enfrentamento ao problema da (in)segurança pública, o que, certamente, não será possível com o foco apenas na atuação policial, na criação e ampliação de contingentes, na compra de novos equipamentos e armamentos (apesar disso também ter sua importância). As ações devem ir além disso:
dizem respeito a um novo olhar sobre o problema da violência;
passam pela quebra de paradigmas;
de superação de “antigos” valores;
da construção de um novo modelo de formação policial;
pela mobilização geral da sociedade; e
democratização do sistema de Segurança Pública no país e dos Estados com o foco voltado, sobretudo, para a criação de condições favoráveis à emancipação da pessoa humana e de defesa dos direitos de cidadania.
E quando se fala em emancipação, é num sentido de se atravessar “o mapa da codificação rumo ao território da cidadania”, nas palavras da professora Vera Regina, que crê “que seja fundamental reencontrar o homem (nas ruas, praças, nas estradas), antes que no território punitivo, no da pedagogia da cidadania.” (ANDRADE, 2003, p. 179) Para isso, é necessário que o Poder Público cumpra o seu papel, conciliando as necessidades humanas, em seus mais variados aspectos - dignidade, educação, saúde, moradia, trabalho e lazer - com o desenvolvimento sustentável e com a Segurança Pública. As incompatibilidades decorrentes da não satisfação dessas 136
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necessidades implica também em violência (que não tem a devida visibilidade como os crimes de rua), gerando uma reprodução sistêmica de outras formas de violência que, normalmente, recaem sobre as camadas excluídas da população: os pobres em geral (extermínio, tráfico, chacinas etc.). Outra questão importante é a de que a polícia não pode ser a única responsável por resolver conflitos que, em sua esmagadora maioria, tem origem e implicações estruturais e sociais. Na realidade, há que haver uma consciência de cada cidadão sobre o seu papel neste cenário e ambiente em que se vive: as pessoas precisam se sensibilizar e ter um novo olhar sobre o contexto social em que estão inseridas, percebendo que as mudanças iniciam com uma nova consciência de si e pelo reconhecimento do outro. Desaprisionar consciências e compreender as contradições do sistema social e dos discursos oficiais é um dos passos para isso. Segundo Theodomiro Dias Neto: Ao atribuir responsabilidades penais, a sociedade se exime da responsabilidade por conflitos que não é capaz de administrar. Os processos sociais geradores de riscos deixam de ser questionados em função do processo de individualização das responsabilidades pelos danos. (2005, p. 90)
A situação de desequilíbrio social e a forma como o problema da violência tem sido tratado no Brasil acabam criando condições ainda mais favoráveis para a insegurança e descrédito nas instituições que compõe o sistema de justiça criminal, notadamente as polícias, o que nos obriga a refletir sobre a necessidade de novas práticas e de reformas institucionais. As práticas, que precisam rever suas formas de atuação tornando-se menos reativas e mais proativas no exercício de suas atividades, dizem respeito à filosofia de atuação e ao modus operandi das instituições policiais e, de quebra, das subculturas de violência policial. De uma cultura de guerra para uma cultura pedagógica de (re)construção da cidadania, de abertura política e permeabilidade à participação popular, de não ingerência política, de postulados filosóficos de atuação pautados no respeito Unidade 4
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à dignidade da pessoa humana: tudo isto de forma instrumental não apenas simbólica e pirotécnica, como se tem muitas vezes observado quando ocorrem crimes de sangue, que são notabilizados pela imprensa com o respaldo da polícia. Mas, e quanto as mais de 40.000 mortes anônimas que ocorrem em média anualmente, onde ficam? No anonimato, sem visibilidade alguma, a não ser quando “delinquem”, pois são os “acionistas do nada”! Theodomiro Dias Neto defende uma proposta conhecida por “Nova Prevenção”. Ela se caracteriza pela diversificação das respostas sociais e governamentais aos problemas do crime, da violência e da insegurança, afirmando que “não há ator social que não possua alguma responsabilidade na gestão da segurança no espaço urbano.” Segundo o autor: A perspectiva é um novo equilíbrio entre o espaço da pena e o espaço da política, entre resposta punitiva e resposta preventiva no confronto da exclusão, da delinquência e do sentimento de insegurança dos cidadãos. Equilíbrio no qual a intervenção penal se acrescenta a múltiplas intervenções na área da educação, planejamento urbano, saúde, regulação bancária ou econômica e não a situação contrária, na qual as políticas públicas são instrumentalizadas para fins de controle penal. (2005, p. 144)
Com relação às reformas institucionais - para que se viabilizem políticas públicas de segurança tendo como elemento nuclear a cidadania - há que se repensar o papel do próprio Estado no mundo pós-moderno, que não está restrito ao sistema de justiça criminal. Quer dizer: para se falar em políticas públicas de segurança convém que se aborde sobre o papel do sistema de justiça criminal em seu todo e até que ponto seus organismos formais – Polícia, Ministério Público e Judiciário - têm contribuído para a resolução pacífica dos conflitos sociais.
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Para a professora Vera Regina Pereira de Andrade, Fortalecendo o discurso e as técnicas da guerra contra o crime e da segurança pública (limpeza do espaço público e devolução das ruas aos cidadãos), o controle penal globalizado radicaliza a função simbólica do Direito Penal através de uma hiperinflação legislativa, ou seja, a promessa e a ilusão de resolução dos mais diversos problemas sociais através do penal, ao tempo em que redescobre, ao lado dos tradicionais, os novos “inimigos” (o mal) contra os quais deve guerrear (terroristas, traficantes, sem teto, sem terra, etc.) não poupando, ainda que simbolicamente, a própria burguesia nacional (sonegadores, depredadores ambientais, corruptos, condutores de veículos, etc.) que se torna também vulnerável face ao poder globalizado do capital. (2003, p.25)
Figura 01 – Isolamento prisional: reinserir ou punir? Figura 02 – Realidade da exclusão pela criminalização Fontes: http://aidsinfonyc.org/hivplus/issue6/report/picture.html e http://ucamsesc.com.br/imagens
O sistema penal rouba o conflito das pessoas diretamente envolvidas nele. Quando o problema cai no aparelho judicial, deixa de pertencer àqueles que o protagonizaram, etiquetados de uma vez por todas como “o delinquente” e “a vítima”. (HULSMAN, Louk; CELIS, Jacqueline Bernat de. Penas perdidas. O sistema penal em questão. Trad. de Maria Lúcia Karam. Rio de janeiro: LUAM Editora Ltda., 1993. p.82)
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Estar em sintonia com outras entidades que possam contribuir com a preservação e resgate dos direitos de cidadania.
Outra questão é a da interagencialidade nas ações que dizem respeito à Segurança Pública. Ela deve fazer parte de uma política de segurança pública séria. Um exemplo dessa busca de uma pedagogia para a cidadania em Santa Catarina é o Projeto Aroeira, em Florianópolis, coordenado pelo Padre Vilson Groh, em que os resultados são estimuladores e apontam para novas perspectivas: (...) ao transformar uma prática do campo de ação da educação popular e inclusão social em objeto de sistematização, deseja-se refletir sobre os processos sociais e as relações que os constituem, suas dinâmicas, suas continuidades e descontinuidades, suas ambivalências. (...) O Aroeira atendeu, entre outubro de 2005 e março de 2006, a 1200 jovens com idades entre 16 e 24 anos, com baixa renda familiar, que não tinham tido carteira de trabalho assinada, matriculados no ensino regular – ou dispostos a voltarem a ele – ou ainda, com ensino médio concluído. Afrodescendentes, indígenas, portadores de deficiência, trabalhadores rurais, moradores de áreas de risco e jovens em conflito com a lei, constituíram-se no público-alvo preferencial do programa. (2006, pp. 16 – 17)
A dimensão da violência e da criminalidade é um problema que atinge a todos, indistintamente, o que deixa oportuno o questionamento de Nazareth Cerqueira e que nos esclarece a respeito disso: Quem são as pessoas responsáveis pela contenção da criminalidade? Quais são os órgãos públicos ou privados encarregados disso? E as instituições? Diz O. Wilson, autor americano, que, “enquanto a maioria das pessoas acreditar que a polícia é totalmente responsável pelos crimes que se cometem, todo programa de luta contra a criminalidade fracassará inevitavelmente”. Os que acham que só a polícia deve agir contra o crime acharão razões suficientes para criticá-la, porque não acaba com o crime, e nada farão, por sua parte, para apoiá-la ou cooperarem num programa preventivo. Os que acham que não é a polícia a única responsável pela prevenção da criminalidade nada farão, também, se não forem acionados e motivados por um plano qualquer que lhes acene com metas explícitas, objetivas e imediatas. (2001, p.40)
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O passo inicial para a consciência e mobilização coletiva em torno da prevenção, contenção e solução dos problemas que comprometem a paz social passa pela percepção do que deve ser o real papel do sistema penal: a prevenção dos conflitos. Os processos de construção da paz social, enquanto ideais dos Estados e das sociedades, somente será possível com a consciência de que a ordem política e social precisa ser revista e que os poderes dominantes e hegemônicos - quer de natureza institucional ou acadêmica - precisam estar cercados por outros olhares, de forma plural e democrática, pois “a paz de forma alguma é algo automático e rápido. Exige comprometimento dos indivíduos, instituições e Estados”. (SILVEIRA, 2008, p. 26) As políticas públicas de segurança devem, portanto, levar em consideração, e promover, a cultura da paz. Uma paz que significa e pressupõe: (...) trabalhar de forma integrada em prol das mudanças ansiadas pela maioria da humanidade – justiça social, igualdade entre os sexos, eliminação do racismo, tolerância religiosa, respeito aos direitos humanos, equilíbrio ecológico, participação democrática e liberdade política. A cultura da paz é o elo que interliga e abrange todos esses ideais num único processo de transformação social e pessoal. Essas mudanças precisam ser incorporadas e vivenciadas por indivíduos, famílias, escolas, mídia, comunidades, instituições públicas e privadas, organismos sociais, religiões e governos. (MILANI, 2003, pp. 13 – 14)
As estruturas do sistema de justiça criminal, através de seus agentes, precisam perceber as violências - do local ao global e do estrutural ao individual - não insistindo em procedimentos que cada vez mais se regionalizam, coisificam e submetem a pessoa humana. E um dos primeiros passos para se falar em políticas públicas de segurança e buscar a paz social é o da compreensão do cenário de nossa sociedade. Despertar um sentimento de alteridade em relação ao outro naquilo que a professora Vera Andrade nos traduz na seguinte frase: “nós não temos que delimitar o outro, mas sim expandir o nós”. (2003, p. 2) Unidade 4
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Completando nossos estudos, destacamos que: “Entre o gigante do sistema punitivo e a anã da cidadania existe a mediação dos sujeitos e sua infinita capacidade de reinventar o mundo!” Vera Regina Pereira de Andrade (2003, p. 2)
Síntese Encerramos os nossos estudos com uma abordagem sobre a atuação do Estado e da sociedade na promoção da pacificação social destacando-se os seguintes aspectos: 1. Um dos principais papéis do Estado nas sociedades contemporâneas é assegurar, mediante as ações de suas estruturas de segurança pública, a preservação da Ordem Pública e a promoção da paz social. 2. A noção de ordem pública é resultado de um conjunto de princípios de ordem superior, políticos, econômicos, morais e algumas vezes religiosos, aos quais uma sociedade considera estreitamente vinculada à existência e conservação da organização social estabelecida, obedecendo a um critério contingente, histórico e nacional. 3. As políticas públicas de segurança e promoção da paz social devem compreender ações do sistema de justiça criminal e, mais especificamente, a segurança pública, que compreende o âmbito político social tanto na esfera pública como na privada, de maneira a se manter o equilíbrio no convívio social. Inclui-se, também, o sistema penitenciário, que deve evitar que suas ações impliquem em mais danos do que a lei busca prevenir. 4. O controle social e a preservação da ordem pública têm como bases o pressuposto constitucional (artigo 144 da CRFB, 88), que diz que a segurança pública - dever do Estado, direito e responsabilidade de todos - é exercida para a preservação da 142
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ordem pública. Ela compreende o conjunto de ações necessárias para a manutenção da situação de tranquilidade e normalidade às instituições e aos membros da Sociedade, consoante às normas jurídicas legalmente estabelecidas. Essa preservação cabe ao Estado. 5. As políticas públicas de segurança devem levar em consideração uma nova concepção, pautada na cultura da paz. Isso significa, e pressupõe, um trabalho integrado que assegure justiça social, igualdade entre os sexos, eliminação do racismo, tolerância religiosa, respeito aos direitos humanos, equilíbrio ecológico, participação democrática e liberdade política. Assim, no entendimento de que segurança pública é dever do Estado, mas obrigação de todos, as mudanças e as ações precisam ser incorporadas e vivenciadas por indivíduos, famílias, escolas, mídia, comunidades, instituições públicas e privadas, organismos sociais, religiões e governos. O caminho para a construção de uma sociedade mais livre, justa e solidária passa por políticas de inclusão social, em que o espaço do controle, da criminalização e da exclusão ceda espaço para a cidadania e para a emancipação humana.
Atividades de autoavaliação 1) Leia em nossa midiateca o artigo intitulado “Direitos Humanos: entre a violência estrutural e a violência penal”, de autoria de Alessandro Baratta (publicado no fascículo de Ciências Penais pela Editora Fabris, em Porto Alegre, no ano de 1993) e comente, na ferramenta exposição, as suas impressões com base no texto sobre o sistema de justiça criminal na modernidade.
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Saiba mais Aprofunde seus estudos com a leitura das seguintes obras: HULSMAN, Louk; CELIS, Jacqueline Bernat de. Penas Perdidas - O Sistema Penal em questão. Trad. Maria Lúcia Karam. 2. ed. Rio de Janeiro: Luam, 1997. CERQUEIRA, Carlos Magno Nazareth. O futuro de uma ilusão: o sonho de uma nova polícia. Discursos Sediciosos: crime, direito e sociologia. Rio de Janeiro: Revan, 1997. KAHN, Túlio. Cidades Blindadas: ensaios de criminologia. São Paulo: Conjuntura, 2001.
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Para concluir o estudo O enfrentamento à violência e à criminalidade tem demonstrado que programas e estratégias de segurança baseados numa articulação que envolva várias organizações - ou seja, entre estado, sociedade e cidadão - têm sido muito mais efetivos como resposta a um problema que não pode ficar restrito à esfera de atuação do sistema de justiça criminal. E isso porque a questão da segurança compreende a necessidade de atuação em outras áreas (como a saúde, educação, assistência social, planejamento urbano) além da necessidade de percepção sobre questões sistêmicas como o problema da desigualdade, da má distribuição de renda e da não universalização dos direitos de cidadania. Percebeu-se, em nossos estudos, que a noção de ordem pública e de promoção da paz social convergem para um mesmo objetivo, o de possibilitar a convivência pacífica e a felicidade das pessoas - ente “Estado” somente faz sentido se catalisar esforços nesse sentido. Neste aspecto, a Constituição da República Federativa do Brasil é adequada na medida em que previu no artigo 3° que constituem objetivos do país a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a garantia do desenvolvimento nacional, a erradicação da pobreza e a marginalização e a redução das desigualdades sociais e regionais e a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. O estudo das ciências criminais nos leva a compreensão de que as organizações e os sistemas organizacionais e sociais e, por conseguinte, seus conflitos, exibem padrões dinâmicos com uma complexidade que lhes é própria. Isso nos permite e nos exige que se projetem
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novos objetos, novos cenários e novas estratégias de ação, pois sem informação e conhecimento em ambientes complexos correse o risco de se limitar, ou mesmo inviabilizar, a capacidade de previsão e de mudanças. As mudanças para o sistema de justiça criminal implicam na necessidade, tanto de permanente desenvolvimento organizacional e das pessoas, como também da concepção sobre o fenômeno da violência e da criminalidade, num sentido de que ofereçam respostas compatíveis aos anseios de justiça, legalidade e com o sistema democrático, de forma que o recurso ao uso do poder e da força não sirva para retroalimentar o ciclo vicioso da exclusão e da violência, mas apenas na exata e necessária medida para a prevenção e repressão ao crime tendo como objetivo final a reinserção social do cidadão em conflito com a lei. Portanto, os marcos teóricos estabelecidos em nossos estudos visaram uma melhor compreensão e interpretação da realidade do sistema de justiça criminal, possibilitando a percepção de que novas políticas de Segurança Pública são necessárias para que os instrumentos de controle social funcionem como instrumentos de prevenção e mediação de conflitos e sirvam para a inclusão social em nome da construção de uma sociedade mais livre, justa e solidária, ou seja, uma atuação em defesa da sociedade, do estado democrático de direito e de todos os cidadãos.
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Sobre o professor conteudista Giovani de Paula possui graduação em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (1996), graduação em Formação de Oficiais da Polícia Militar pela Academia de Polícia Militar (1986), Mestrado em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (2007) e é Doutorando do curso de Pós-Graduação em Engenharia e Gestão do Conhecimento da Universidade Federal de Santa Catarina. Pesquisador da Universidade Federal de Santa Catarina e professor da Universidade do Sul de Santa Catarina (graduação e pós-graduação). Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Penal, atuando principalmente nos seguintes temas: crime, cidadania, criminologia, legislação penal e política criminal e segurança pública.
Respostas e comentários das atividades de autoavaliação Unidade 1 1) A/C/D/E
2) É o segmento do ordenamento jurídico que detém a função de selecionar os comportamentos humanos mais graves e perigosos à coletividade, capazes de colocar em risco valores fundamentais para a convivência social, e descrevêlos como infrações penais, impondo-lhes, em consequência, as respectivas sanções, além de estabelecer todas as regras complementares e gerais necessárias à sua correta e justa aplicação. Quanto aos seus objetivos, o direito penal visa prevenir a ocorrência de crimes pelo poder intimidativo das penas. Na prática, funciona como um instrumento de condenação e de exclusão, pois, via de regra, sua incidência é sobre os pobres e vulneráveis no atual modelo social.
3) Todos os tópicos abordados no Plano Nacional de Segurança Pública (PNSP) se alinham com uma base teórica do pensamento criminológico, muito embora ainda se faça presente a questão do controle social. Merece destaque o tema dos princípios para uma nova Polícia integrante do sistema de justiça criminal, bem como a necessidade de incorporação de novas tecnologias de produção de conhecimento e informação para o enfrentamento à violência e à criminalidade. A busca de resolução de conflitos pela não criminalização e/ou judicialização é outro ponto destacado do PNSP.
Unidade 2 1) A violência pode ter uma natureza que atinge a dimensão física, sexual, psicológica ou relacionada à privação ou negligência. Conforme quem as comete, pode ser auto-
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infligida, interpessoal e coletiva. Esta última diz respeito aos atos praticados pelo próprio Estado quer por ação ou omissão, aos grupos políticos, milícias ou grupos terroristas. Para Yves Michaud “Há violência quando, numa situação de interação, um ou vários autores agem de maneira direta ou indireta, maciça ou esparsa, causando danos a uma ou várias pessoas em graus variáveis, seja em sua integridade física, seja em sua integridade moral, em suas posses, ou em suas participações simbólicas e culturais.” A superação da violência implica na necessidade de efetivar e tornar real a democracia na sociedade brasileira, viabilizando o processo de participação democrática em suas estruturas de poder, e no fortalecimento da sociedade civil pela via do reconhecimento e aplicação irrestrita dos direitos humanos. Políticas públicas de prevenção às graves violações de direitos em nossa sociedade de forma que todos os cidadãos e cidadãs possam tornar real seus direitos de cidadania. 2) V/V/F/V/F
Unidade 3 1) O sistema está em crise. Sabe-se que somente criminalizar condutas não resolve o problema. É necessário repensar a concepção do sistema e remover o “entulho” autoritário que ainda grassa em nossas prisões que tem como suporte a “terapia punitiva”. A reintegração social com base nos direitos humanos e na observância do Estado Democrático de Direito deve ser a premissa básica de um novo modelo. Por outro lado, a resposta à sociedade deve ser efetiva, não permitindo a criação da sensação de anomia (impunidade) que leva ao descrédito do Estado e pode estimular o exercício arbitrário das próprias razões, ou seja, a justiça pelas próprias mãos. É preciso resgatar a crença dos cidadãos no Sistema de Justiça Criminal e para isso este deve buscar outras ações e políticas públicas de prevenção e controle da violência, que não fiquem adstritas à terapia punitiva e aos cárceres. 2) IV/III/II/I
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Unidade 4 1) O texto demonstra a ambivalência entre um modelo social estratificado e que reproduz a violência e a desigualdade. A distinção entre a violência estrutural e a violência do sistema penal também é apresentada no texto. Na chamada “modernidade” ou “pós-modernidade”, a reprodução da violência pela via punitiva ainda se faz presente. Os direitos humanos têm se convertido em mero discurso por parte dos representantes da estruturas de poder sem que efetivamente saiam do formalismo legal e se transformem em ações que minimizem as expressões de violência que atingem preferencialmente os mais vulneráveis e pobres em nossa sociedade. Desse modo, há que se repensar o atual modelo social e também os instrumentos de controle, de maneira que a concepção passe a ser a inclusão, e não a exclusão pela criminalização. Não apenas defender, mas promover.
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Biblioteca Virtual Veja a seguir os serviços oferecidos pela Biblioteca Virtual aos alunos a distância:
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