DANIEL MURGEL OFENDÍCULO 2014
“XEQUE”
Ao olharmos um trabalho feito em papel presente nessa individual, suspeitamos se tratar de um estudo para erguer uma escultura no espaço da galeria. Na parte de cima da imagem, isso é anunciado – “as ideias para o ofendículo”. Mais ou menos no centro está representado aquele objeto que ganhou forma tridimensional e que tem lugar de destaque aqui. Abaixo dele, a frase “namoradeira arruinada devidamente ofendiculizada”. A ideia de ruína é um dado que se faz presente na produção de Daniel Murgel há algum tempo. Ao observarmos seus trabalhos, é possível detectar tanto alguns títulos que apontam para isso (como “A casa arruinada nas pedras”, de 2008/2009), quanto imagens que potencializam esse lugar da transformação da matéria em pó. A verticalidade e clareza do bronze proporcionadas pela estatuária clássica são recodificadas e vertidas em obras que partem do contato direto com o chão e a esse lugar parecem destinadas. O lugar da memória e História vertido em narrativa grandiosa cede espaço para, como também diz o título de um trabalho de 2012, a “Amnésia – construir para destruir”. Camas, berços e bancos de praça, espaços projetados para o bem-estar e o conforto são atravessados (às vezes literalmente) por cimento, tijolos e uma reflexão escultórica que sugere bruta verticalidade. Não apenas os materiais da construção civil são presentes, mas em alguns momentos essas superfícies para o corpo compartilham o mesmo espaço de elementos tipicamente vistos como advindos da natureza, tais como a água e a vegetação. Daniel Murgel sugere esses diálogos a partir de estruturas nada naturais que mediam nossa experiência atual desses elementos vivos – na ausência de um oceano, eis a caixa d’água de plástico; longe de uma floresta, as raízes de uma planta brotam do fundo de um vaso de concreto. Parece não haver mais espaço para a comodidade na experiência do espaço arquitetônico sugerido pela sua pesquisa, restando ao homem apenas a apreensão do mundo a partir da claustrofobia – seja ela dada a partir de um aquário com sua transparência opaca, seja através do oxigênio gradeado de uma gaiola. De que modos, portanto, a presente exposição dialoga com o lastro de trabalhos do artista? Falar da constância do cinza, do vermelho e do cheiro de canteiro de obras me parece interessante, mas óbvio. O que me chama a atenção aqui é a vontade de um diálogo com um uso habitual de um espaço, ou seja, se trata de uma instalação que foi pensada a partir de uma
experiência do corpo daqueles que adentram a galeria Portas Vilaseca. Lembrando-se da frase presente no trabalho anterior de Daniel, feito na I Bienal do Barro, é possível afirmar que aqui também há uma “mudança de sentido”. E se o apertado cubículo presente em um centro comercial no Leblon fosse ainda mais estrangulado? E se a palavra estrangeira, o shopping (e o verbo comprar, tão inerente a uma galeria de arte) fosse de encontro ao puxadinho, essa solução tão comum na arquitetura popular brasileira? Longe da crítica ao lugar do comércio (caminho que certamente roçaria em uma contradição amparada pelo cubo branco), se preferiu pensar de modo reflexivo a partir dos ofendículos, esses elementos nada discretos e muito comuns na arquitetura no Brasil afim de coibir invasões. Esses objetos cortantes e feitos de vidro, arame ou, como o par de nossa namoradeira, de metal pontiagudo, demonstram interior e exterior, disciplinando o corpo do passante e indicando os nossos limites perante um espaço visto como do outro. Esse jogo entre o dentro e o fora foi estimulado através do deslocamento da vitrine da galeria - elemento arquitetônico comumente visto como oposto do ofendículo, ou seja, um meio de transparência e de visibilidade, aqui ele é o responsável tanto pelo sufocamento do espaço, quanto pelo protagonismo dessa namoradeira entre o conforto e a coroa de espinhos. Tentando, por fim, enxergar essa configuração formal por outra perspectiva, não estaria toda galeria de arte pautada nesse jogo entre o convite para a entrada por parte do passante (vitrine) e o intrínseco distanciamento social dialógico com a ideia de mercado privilegiado que carrega (ofendículo)? Ao voltar para o trabalho com o qual comecei esse texto, para além de qualquer esforço metafórico por parte do observador, parece mais importante a experimentação de materiais e de configurações formais para que nossos corpos experimentem o ambiente construído. Através desse dado descubro de onde surge minha admiração pela produção de Daniel: é a incapacidade de circunscrever de modo muito preciso os códigos de seus trabalhos que me levam a prosseguir com minha vontade de contemplação. É no cimento que escapole das reentrâncias de seus tijolos que me parece estar contida a densidade do “coeficiente artístico”, conforme escreveu Marcel Duchamp, da sua pesquisa – apenas resta continuar a jogar xadrez com Daniel e observar novos xeques. Raphael Fonseca
DANIEL MURGEL OFENDÍCULO 2014