Observatório da Constituição e da Democracia nº 33

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CONSTITUIÇÃO & DEMOCRACIA | OUTUBRO DE 2009

O fim do pensamento único

n FRONTEX: a mão (in)visível da repressão ANO III Nº 33

Boaventura de Sousa Santos

Outubro de 2009

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o momento em que escrevo, os portugueses dispõem de duas visões muito diferentes sobre como sair da crise em que nos encontramos. De um lado, o “manifesto dos 28” e, do outro, o “manifesto dos 52”. Para o primeiro, a solução é o limite do endividamento, o que implica uma drástica redução do investimento público, fonte de muitos males, sendo os maiores o TGV, o novo aeroporto e as auto-estradas. Para o segundo, a prioridade é a promoção do emprego e a capacitação econômica, o que implica um forte investimento público (não necessariamente nos projetos referidos) pois só o Estado dispõe de instrumentos para desencadear medidas que minimizem os riscos sociais e políticos da crise e preparem o país para a pós-crise. As diferenças entre os dois documentos são, antes de tudo, “genealógicas”. O primeiro é subscrito por economistas, a grande maioria dos quais ocupou cargos políticos nos últimos quinze anos, e colaborou na promoção da ortodoxia neoliberal que nos conduziu à crise. O segundo é subscrito por economistas e cientistas sociais que, ao longo dos últimos quinze anos, tomaram posições públicas contra a política econômica dominante e advertiram contra os riscos que decorreriam dela. À partida há, pois, uma questão de credibilidade: como podem os primeiros estar tão seguros do seu saber técnico se as receitas que propõem, descontada a cosmética, são as mesmas que nos conduziram ao buraco em que nos encontramos e em cuja aplicação participaram com tanto desvelo político? Mas as diferenças entre os dois documentos são mais profundas que a descrição acima sugere. Separa-os concepções distintas da economia, da sociedade e da política. Para o manifesto dos 28, a ciência econômica não é uma ciência social; é um conjunto de teorias e técnicas neutras a que os cidadãos devem obediência. Pode impor-lhes sacrifícios dolorosos — perda de emprego ou da casa, queda abrupta na pobreza, trabalho sem direitos, inse-

n Neoconservadorismo: fantasmas voltam a incomodar

C&D Constituição & Democracia

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gurança quanto ao futuro das pensões construídas com o seu próprio dinheiro — desde que isso contribua para garantir o bom funcionamento da economia entendida como a expansão dos mercados e a lucratividade das empresas. O Estado deve limitar-se a garantir que assim aconteça, não transformando o bemestar social em objectivo seu, pois mesmo que o quisesse falharia, dada a sua inerente ineficiência. Pelo contrário, para o manifesto dos 52, a economia está ao serviço dos cidadãos e não estes ao serviço dela. Os mercados devem ser regulados para que a criação de riqueza social se não transforme em motor de injustiça social. Enquanto o bilionário Américo Amorim não terá

de cortar nas despesas do supermercado apesar de ter perdido montantes astronômicos da sua imensa riqueza, o mesmo não ocorrerá com o trabalhador a quem o desemprego privou de umas magras centenas de euros. Cabe ao Estado garantir a coesão social, acionando mecanismos de regulação e de investimento para que a competitividade econômica cresça com a proteção social. Para isso, o Estado tem de ser mais democrático e a justiça mais eficaz na luta contra a corrupção. É de saudar que haja opções e que os portugueses disponham de conhecimento para avaliar as consequências de cada uma delas. Em tempos eleitorais é importante que saibam que não há “uma única solu-

ção possível para sair da crise”. Há várias e estas, sem deixarem de ser econômicas, são sobretudo sociais e políticas. Contudo, o pluralismo, para ser eficaz, tem de ser equilibrado em sua publicidade. Anoto, sem surpresa, que apesar de vários jornais de referência terem dado voz equilibrada aos dois manifestos, o mesmo não sucedeu com o Público, cujo diretor nos brindou com um comentário ideológico e auto-desqualificante contra o manifesto dos 52. Este proselitismo conservador tem muitos antecedentes — quem não se lembra da grosseira apologia da invasão do Iraque e da demonização de todos os que se lhe opunham? — e talvez por isso este jornal tenha os dias contados enquanto jornal de referência.

n Entrevista: Paulo Abrão

s a t is

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EDITORIAL

Observatório da Constituição e da Democracia

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iscursos e práticas aparentemente superados pela conquista de direitos fundamentais reaparecem no cenário atual do direito e da política. Argumentos permeados de resquícios de uma postura autoritária, que põem em risco a Constituição e a Democracia, ignoram a experiência histórica recente do país. A marca desses discursos e práticas é o fato de que eles buscam sustentação exatamente na Constituição e na Democracia. Trata-se de uma abordagem que, em última análise, lança o direito contra si mesmo, a ser analisada neste número sobre o Neoconservadorismo. O ressurgimento de posturas que relativizam direitos fundamentais, a despeito de recorrerem como ponto de apoio a esses mesmos direitos, evidencia de forma significativa a possibilidade de abuso da forma do direito. Comportamentos autoritários e que violam liberdades podem ser desencadeados sob a roupagem do direito. O texto constitucional de 1988 não é capaz de prevenir contra isso, pois também pode ser instrumentalizado. Em outras palavras, não há garantia de não retrocesso. Tais práticas e discursos aqui chamados neoconservadores devem ser denunciados e combatidos. Esse é o propósito desta edição do Observatório. Alexandre Bernardino Costa indica a presença na Universidade de posturas que se recusam à discussão político-ideológica e negam a possibilidade de a democracia ser debatida sob a ótica do direito. Cristiano Paixão revela outra tentativa de reforma da Constituição de 1988 mediante uma “Constituinte especial”, que representa na verdade um esvaziamento da própria Constituição. Em entrevista, Paulo Abrão, Presidente da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, aborda a questão da memória e da luta pela reconstrução de uma narrativa do passado brasileiro. O sociólogo Boaventura de Sousa Santos fecha o Observatório analisando algumas propostas que se apresentam para a solução da crise econômica em Portugal. O Observatório da Constituição e da Democracia não se furta de sua responsabilidade de apontar os excessos do hoje e propor uma reflexão sobre como lidar com tais abusos. Grupo de pesquisa Sociedade, Tempo e Direito Faculdade de Direito – Universidade de Brasília

EXPEDIENTE Caderno mensal concebido, preparado e elaborado pelo Grupo de Pesquisa Sociedade, Tempo e Direito (Faculdade de Direito da UnB – Plataforma Lattes do CNPq). ISSN 1983-8646 Coordenação Alexandre Bernardino Costa Argemiro Martins Cristiano Paixão José Geraldo de Sousa Junior Menelick de Carvalho Netto Valcir Gassen Comissão executiva Mariana Cirne Noemia Porto Paulo Rená da Silva Santarém Ricardo Machado Lourenço Filho Integrantes do Observatório Adriana Andrade Miranda Aline Lisboa Naves Guimarães Beatriz Vargas Damião Alves de Azevedo Daniel Augusto Vila-Nova Gomes Daniela Diniz Daniela Marques Daniele Maranhão Costa Douglas Antônio Rocha Pinheiro Douglas Locateli Eneida Vinhaes Bello Dultra

Fabiana Gorenstein Fabio Costa Sá e Silva Giovanna Maria Frisso Guilherme Scotti Jean Keiji Uema Joelma Melo de Sousa Jorge Luiz Ribeiro de Medeiros Judith Karine Juliano Zaiden Benvindo Leonardo Augusto Andrade Barbosa Lúcia Maria Brito de Oliveira Mariana Siqueira de Carvalho Oliveira Marthius Sávio Cavalcante Lobato Natália Dino Natália Medina Noemia Porto Paulo Henrique Blair de Oliveira Ramiro Nóbrega Sant´Ana Raphael Augusto Pinheiro Raphael Peixoto de Paula Marques Renato Bigliazzi Rosane Lacerda Sven Peterke

Advocacia e Consultoria www.yamakawa.adv.br

Projeto editorial R&R Consultoria e Comunicação Ltda Editor responsável Luiz Recena (MTb 3868/12/43v-RS) Editor assistente Rozane Oliveira

O retorno de um fantasma: reforma política e Assembleia Constituinte Cristiano Paixão – Professor da Faculdade de Direito da UnB, membro dos grupos de pesquisa Sociedade, Tempo e Direito e O Direito Achado na Rua

Preço avulso: R$ 2,00

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Cercando a cidadania Paulo Henrique Blair de Oliveira - Mestre e doutorando em Direito, Estado e Constituição pela UnB, 06 Membro do grupo de pesquisa Sociedade, Tempo e Direito Sistema punitivo e neoconservadorismo Carolina Costa Ferreira - Mestranda em Direito, Estado e Constituição pela UnB; membro do Grupo Candango de Criminologia (GCCrim); Professora voluntária de “Criminologia e Justiça Restaurativa” 08 (2008-2009) na graduação em Direito da UnB FRONTEX e a “militarização” da política fronteiriça da União Européia Sven Peterke - Professor visitante da Faculdade de Direito da UnB, doutor em direito pela Universidade Ruhr de Bochum (RFA)

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Entrevista com o presidente da Comissão de Anistia Paulo Abrão Anistia, memória e direito: “as lutas do passado são as mesmas lutas do presente” Alexandre Bernardino Costa – Alexandre Bernardino Costa - Professor da Faculdade de Direito da UnB, coordenador de Extensão – FD/UnB e integrante dos grupos de pesquisa Sociedade, Tempo e Direito e Direito Achado na Rua

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OBSERVATÓRIO DO JUDICIÁRIO A greve entre interditos e dissídios: resistências à afirmação de um direito fundamental Ricardo Lourenço Filho - Mestre em Direito, Estado e Constituição pela UnB, professor universitário e integrante do grupo de pesquisa Sociedade Tempo e Direito Noemia Porto - Mestranda em Direito, Estado e Constituição na UnB, juíza do trabalho e 14 integrante do grupo de pesquisa Sociedade, Tempo e Direito OBSERVATÓRIO DO LEGISLATIVO Levando os direitos a sério no Tribunal de Sancho Pança Damião Alves de Azevedo – Mestre em Direito pela UnB, advogado e professor universitário

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OBSERVATÓRIO DOS MOVIMENTOS SOCIAIS Um olhar feminista sobre a reforma eleitoral aprovada Patrícia Rangel - Doutoranda em Ciência Política no Ipol/UnB e assessora do CFEMEA – Centro Feminista de Estudos e Assessoria

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DIREITO ACHADO NA RUA RESPONDE Os direitos nas relações homoafetivas Luiz Menezes – Graduando em Direito pela FD/UnB Maria Eduarda – Graduanda em Direito pela FD/UnB

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A Anistia e as limitações prévias a Constituição Marcelo D. Torelly - Mestrando em Direito – UnB

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OBSERVATÓRIO DO MP Jurisdição constitucional e legitimidade Antonio Carlos Alpino Bigonha - Presidente da ANPR e Procurador Regional da República

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NOTA DO CORRESPONDENTE À beira do ridículo Fabio de Sá e Silva - Bacharel (USP) e Mestre (UnB) em Direito. Doutorando em Direito, Política e Sociedade (Northeastern University, Boston, EUA)

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O fim do pensamento único Boaventura de Sousa Santos - Diretor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra

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Assine C&D

Diagramação - Gustavo Di Angellis Ilustrações - Flávio Macedo Fernandes Contato observatorio@unb.br www.fd.unb.br

Os conservadores estão de volta! Alexandre Bernardino Costa - Professor da Faculdade de Direito da UnB, coordenador de Extensão – FD/UnB e integrante dos grupos de pesquisa Sociedade, Tempo e Direito e Direito Achado na Rua 03

http://www.unb.br/fd/ced/

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Os conservadores estão de volta! Alexandre Bernardino Costa

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a falta de nome melhor para o fenômeno sócio-políticojurídico e epistemológico, nós do Observatório da Constituição e da Democracia resolvemos chamar o fato de “neoconservadorismo” que agrega a tentativa, por parte de setores da sociedade, sobretudo das elites, de trazer de volta discursos que foram superados há bastante tempo pelas lutas democráticas e em especial, pela constituição de 1988. Essa postura conservadora tem ocorrido no mundo todo. Após o 11 de setembro nos EUA e com a política Bush na luta contra o terrorismo, por exemplo, correu-se o risco de transformar a tradição norte americana dos direitos civis para admitirse a violação de direitos fundamentais contra nacionais e estrangeiros em território americano e fora do país. O símbolo mundial dessas violações foi a prisão criada em Guantânamo. O fenômeno, contudo, tem ocorrência no mundo todo. Seja nos conflitos entre israelenses e palestinos, seja no tratamento dado aos imigrantes na Europa, inclusive com o surgimento de um forte discurso neonazista. Todos esses fatos têm em comum um discurso que elege um inimigo a ser enfrentado e que afirma que a democracia estaria em risco caso não fossem adotadas medidas estremas que suspendem a eficácia dos direitos humanos para o enfrentamento do perigo. No Brasil não tem sido diferente, ao contrario, as desigualdades sociais aqui existentes tornam o problema ainda maior em muitos aspectos. A criminalização dos pobres pelos discursos contra os direitos humanos sob a alegação de que são direitos que protegem os bandidos foi ampliada para incluir os movimentos sociais que buscam a efetivação da constituição. Além disso, pela afirmação de que as políticas públicas de inclusão geram privilégios. Temos uma constituição democrática que foi elaborada após um longo período de ditadura. Os conservadores afirmam que essa mesma constituição concedeu direitos em

demasia, e inclusive propõe a mudança em seu texto por meio de reforma para suprimir esses direitos. Paralelamente, nega-se a ditadura que ocorreu no país, seria então uma “ditabranda”, e que a reparação das violações por parte do Estado poderia gerar instabilidade em nosso sistema político. Utiliza-se o argumento da democracia para ir contra a democracia. Na Universidade o discurso é o mesmo, ainda que travestido de alguma sofisticação intelectual. São construídos argumentos em torno da necessidade de se negar a discussão político-ideológico, sob a idéia de que não cabe ao direito discutir a democracia, que isso deveria

ser tarefa de outras áreas posto que ao direito compete tão somente aplicar a lei que regula a sociedade, não sendo tarefa do ensino e da pesquisa e imiscuir-se em questões meta jurídicas. Esse argumento foi muito utilizado para dar sustentação à ditadura no Brasil, pois impossibilita a ciência do direito o questionamento da legitimidade democrática das leis. Quando há alguma sustentabilidade teórica nesses discursos conservadores, ela se dá pela apropriação distorcida de autores que são ultrapassados do ponto de vista da epistemologia jurídica, sobretudo Hans Kelsen e sua teoria pura do direito. Outra possibilidade é a utilização de autores como Carl Schmitt, ainda

que não assumidamente, que associaram o constitucionalismo ao autoritarismo. Por fim, quando há alguma base teórica contemporânea ela ocorre por meio de autores que poderíamos também chamar de neoconservadores, ou por visões corrompidas de autores que afirmam a democracia. O fato é que há um conservadorismo se manifestando atualmente na teoria e na pratica do direito, e isso deve ser analisado com muito cuidado, pois ele luta contra a constituição e a democracia. Mas ao mesmo tempo em que devemos denunciá-los podemos refletir sobre os argumentos já conhecidos e a repetição da historia que acontece como farsa.


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O retorno de um fantasma: reforma política e Assembleia Constituinte Cristiano Paixão

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conteceu de novo. E, ao que parece, não será a última vez que algum deputado ou senador resolve propor uma nova forma para modificar a Constituição de 1988. Primeiro foi a PEC 554/1997, que procurava estabelecer uma “mini-constituinte”. Depois veio a PEC 157/2003, que previa uma nova forma de “revisão constitucional”. A PEC 193/2007 visava incluir um procedimento revisional no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Agora é a PEC 384, apresentada em 1º de julho de 2009, que tem como objetivo viabilizar a eleição, no pleito de 2010, de 180 “parlamentares constituintes” com a função de “revisar os dispositivos da Constituição Federal relativos ao regime de representação política”. Trata-se, em outras palavras, de realizar a reforma política pela via sinuosa de uma “Constituinte especial”, com representantes eleitos para esse fim. Para além da tentativa de subverter os procedimentos de modificação da Constituição, o que as propostas acima mencionadas conservam em comum? Em todas elas há a previsão de um mesmo quorum para efetivação das modificações na Constituição de 1988: maioria absoluta dos votos. Essa confluência revela, então, a natureza inconstitucional de todas essas propostas: no fundo, elas querem apenas facilitar a mudança da Constituição, “dispensando” o quorum de 3/5 dos votos (em duas votações nas duas casas) exigido pela Carta vigente para qualquer modificação em seu texto. No que aparenta ser um pequeno detalhe procedimental reside a importância do papel das constituições na contemporaneidade: por definição, elas exigem uma maioria qualificada para sua alteração, exatamente para que não fiquem ao sabor de maiorias ocasionais e a serviço de interesses político-partidários

momentâneos. O tempo da transformação do quadro legislativo ordinário não é o mesmo tempo necessário e suficiente para aprovar uma alteração no texto constitucional. No primeiro caso, temos o tempo da política cotidiana, das políticas públicas, das exigências do contexto econômico. No segundo caso, vislumbramos as alterações nas decisões políticas fundamentais, vincu-

lantes em relação ao futuro, que ultrapassam a dinâmica das efêmeras maiorias e coalizões de governo. Mudar a Constituição não é o mesmo que mudar uma lei. Para além desse aspecto, a PEC 384/2009 introduz um problema adicional, que colabora ainda mais para agravar a crise institucional do Parlamento. A ideia que preside a proposta é a de que o Congresso não

teria condições de realizar, de forma isenta, a reforma política, daí a necessidade de uma “Assembleia”. Mas, para existir no mundo real, essa “Assembleia” precisa ser criada e autorizada pelo Congresso. Com isso chegamos à seguinte conclusão: o Congresso Nacional não tem como fazer uma reforma constitucional nas instituições políticas, mas, por outro lado, tem como autorizar a eleição

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de um outro órgão que poderá fazer essa reforma. A pergunta é inevitável: se o Congresso precisa reunir 3/5 de seus votos, em duas votações nas duas casas, para criar um novo órgão que fará a reforma política, por que o próprio Congresso, com o mesmo quorum, não vota a reforma política? As propostas em curso – e os temas em debate – são amplamente conhecidos: fidelidade partidária, financiamento público de campanha, elaboração das listas de candidatos e outros temas conexos. Ou então o Congresso espera que a “Assembleia” invente um novo mundo? Que resolva todos os problemas políticos com uma visão descomprometida e inovadora? Admitamos, apenas para argumentar, que isso fosse possível. Poderíamos então perguntar: então por que o Congresso não convoca uma comissão encarregada de propor essas inovações? Ou ele mesmo promove debates amplos com toda a sociedade para desencadear a reforma política? Talvez os próprios idealizadores da PEC 384/2009 tenham consciência de que a eleição e convocação da “Assembleia” é, de fato, impossível, seja pela flagrante inconstitucionalidade, seja pela circunstância de que todas as propostas similares naufragaram. Apesar de todos os esforços empreendidos, nenhuma proposta de emenda constitucional que procurou estabelecer novas regras de modificação na Constituição teve sucesso. É verdade que as propostas tem vida persistente. Elas simplesmente se recusam a morrer. São apensadas, anexadas umas às outras, continuam aguardando pauta. Mas não empolgam nem emocionam. No fundo, elas possivelmente ainda persistem guardando um único significado: uma recusa recorrente, em alguns setores da sociedade civil e da classe política, acerca do conteúdo e do profundo sentido histórico da Constituição atual. E aí se localiza um outro desdobramento bastante complicado. Caso seja concretizada, a “Assembleia” pro-

posta na PEC 384/2009 assumiria o status de precedente. E a solução ali preconizada seria incorporada ao arsenal de técnicas de transformação constitucional – pela via mais explicitamente inconstitucional que se possa conceber. A partir da reforma política implementada por esse meio impróprio, já seria possível imaginar as pautas futuras: reforma tributária, reforma da Previdência, reformas trabalhistas, todas elas poderiam ser realizadas pelo novo procedimento. Convoca-se uma “Assembleia” constituinte restrita, aprova-se a iniciativa num referendo e, muito aos poucos, vai-se consolidando o desmonte da arquitetura constitucional brasileira. Sempre pelo caminho da maioria absoluta dos votos.

Teríamos então um curioso caso de esvaziamento da Constituição, sem a necessidade de um novo momento constitucional. Seria, então, o triunfo da ideia, já referida em várias oportunidades por setores interessados na desvalorização da Carta de 1988 (e do processo constituinte a ela ligado), de que não existiria, no contexto brasileiro, o poder constituinte originário, “categoria alienígena” supostamente divorciada da concretude histórica brasileira. Portanto, seria uma espécie de vazio, de “não-momento” que teria a propriedade de subverter, pela cumplicidade da classe política, as conquistas plasmadas na Constituição vigente. Ironia da história: um momento constitucional (que se acelera no período

1987-1988) sendo superado por uma ausência, uma negação continuada, uma implosão constitucional. Porém, a maior vítima desse processo não é a Constituição. É o Congresso. Recusando-se a exercer o seu papel constitucional, ele permite (e até hospeda) alternativas que apontam para a sua suposta inviabilidade, ou falta de preparo. Se ele cumprisse suas importantes funções (como a de legislar, fiscalizar o Executivo, promover o debate democrático), ele não estaria submetido a similares desgastes. E poderia augurar às propostas de “miniconstituinte”, “Assembleia revisora” e similares o destino que os fantasmas previram a Ricardo III na véspera da batalha: “Desespera e morre”.

A pergunta é inevitável: se o Congresso precisa reunir 3/5 de seus votos, em duas votações nas duas casas, para criar um novo órgão que fará a reforma política, por que o próprio Congresso, com o mesmo quorum, não vota a reforma política?


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Cercando a cidadania Paulo Henrique Blair de Oliveira

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cidade do Rio de Janeiro ingressou, recentemente, no rol das que abraçaram uma prática ineficaz e inconstitucional ante seus problemas de segurança pública e de meio ambiente: conter, pelo isolamento físico, áreas estigmatizadas pela violência. Muros de três metros de altura, em média, deverão cercar a comunidade conhecida como Vidigal, naquilo que o poder público estadual pretende ser uma das respostas ao déficit absoluto de cidadania que marca o cotidiano dos habitantes daquela área. Celebrada por vários setores conservadores como uma “mudança positiva de atitude” por parte de autoridades estaduais, os defensores dessa medida invocam dados estatísticos de crescimento urbano desordenado nas favelas, e de conseqüente de-

gradação ambiental, para sustentarem não apenas a sua racionalidade, mas também para considerá-la indispensável como medida de contenção da violência e da destruição do meio-ambiente. E – concluem esses mesmos setores – se tal medida é imperativa, tanto os governos estaduais anteriores foram irresponsáveis ao não implementá-las, como os que agora as criticam são demagogos ou movidos por compromissos ideológicos. De todas as manifestações de apoio a essa medida, talvez esse último argumento seja o único verídico, ainda que por motivos completamente diversos. Se é correta a lição de que nossas idéias são construtoras de nossa realidade, tanto o apoio à construção desse muro, quanto a resistência a ele, representam um embate de idéias em torno de como deve ser construída nossa realidade.

Nesse melhor sentido, a resistência ao uso de muros para a contenção de uma comunidade é sim ideológica, questionando radicalmente os pressupostos dos que consideram essa contenção eficaz , democrática e constitucional. A lógica dos muros: controlar o espaço é também controlar o sujeito Muros de contenção populacional pressupõem que a segregação de uma comunidade controle a violência (seja aquela entre pessoas, seja a praticada contra o meio-ambiente) precisamente porque supõe que as raízes dessa violência sejam completamente internas à comunidade segregada. Desse modo, controlado o espaço de sua existência, seria dado um passo essencial à “docilização” de seu agir, domando seus corpos como forma de, em última

análise, roubar-lhes sua autonomia, destruir-lhes sua subjetividade. De forma irônica, esse processo é apresentado à comunidade segregada como útil a sua própria proteção. Essa ironia enganadora não é periférica ao problema, mas central a ele: vivendo sob uma ordem constitucional que se afirma como democrática, pessoas somente se permitirão enganar se forem convencidas de que não estão sendo ludibriadas. É necessário, desde o princípio, que a seriedade da questão não seja diminuída pelo medo de enfrentarmos as conseqüências mais drásticas das premissas que levam à edificação desses muros. A contenção de comunidades sob o pretexto de que, acaso livres, elas serão geradoras de violência, banaliza a restrição ao direito de existir espacialmente, trazido pela Constituição como direito de ir e vir. Quando realizadas por medidas

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puramente administrativas, calcadas no desejo de reorganização do espaço público pelo ente estatal, essa contenção tem nome já conhecido (e infame) na história social: a criação de guetos. Edificar muros em torno da comunidade do Vidigal, é verdade, difere bastante da formação de guetos judaicos na Polônia ocupadas por topas o III Reich alemão. Contudo, é inevitável a lembrança de que toda contenção segregadora é acompanhada de restrições a direitos fundamentais. Por isso, ela é berço de violência e – o que é mais grave – ela também a banaliza. A crítica portanto não é descabida ou demagógica: o cerco físico a tais comunidades é, inevitavelmente, um cerco a sua cidadania. A análise que se impõe diante de tal problema é aquela que o toma precisamente pelo ponto que os muros e a política de contenção pretendem obscurecer, que é a relação entre espaço, democracia e cidadania. A lógica do espaço como elemento da cidadania: não apenas existir, mas também emancipar. A afirmação constitucional de primazia da dignidade da pessoa humana possui, sem dúvida, uma dimensão temporal, notadamente na perspectiva que a liberdade e igualdade que temos e aquela que almejamos possuem como nexo comum uma multiplicidade de lutas por direitos, cuja narrativa memorial é imprescindível como forma de tornálas presentes. A perspectiva espacial de nossa dignidade não é menos importante, porquanto nossa subjetividade não transcende a essas duas dimensões necessárias, tempo e espaço. Pensar o espaço e nossas práticas sociais quanto a ele é estar no centro de nossas preocupações quanto ao exercício da cidadania. Portanto, em uma democracia constitucional, a relação entre espaço urbano e democracia é tematizada de forma normativa, mediante princípios tais como aquele que, no caso brasileiro, deve guiar todas as políticas públicas em torno

do tema e toda a interpretação jurídica dessas políticas. Trata-se aqui do art. 182 de nossa Constituição Federal, propositadamente mal interpretado nos debates em torno da contenção da comunidade do Vidigal. Ele afirma que a política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem- estar de seus habitantes. Logo, por força do que prevê a constituição brasileira, ordenar a ocupação urbana jamais pode significar contê-la segundo uma lógica de exclusão ou de segregação, mas apenas assegurar as condições para que as cidades cumpram sua função social primária, que é o bem-estar de seus habitantes. Tais habitantes não existem de forma estática no tempo e no espaço, e assim seu bemestar é um conceito dinâmico. Ordenar o espaço urbano é paradoxal-

mente permitir que a ordem em vigor seja questionada, e que desse modo seja revista. O único sentido constitucionalmente correto de um ordenamento urbano é o de uma ordem que se permite desordenar para emancipar. Ao ocuparmos espaços ou restringirmos sua ocupação estamos, ao fim das contas, estabelecendo formas sociais simbólicas de grande significado. Se tais formas não se ocupam da edificação de espaços para cidadania, não apenas comprometemos uma expansão de liberdades, antes somos subtraídos das liberdades que já usufruímos a grande custo histórico. Violência não é fruto de condições endóginas a um grupo social. Elas podem ser tornadas mais visíveis nos grupos mais frágeis, como é o caso das comunidades de periferia. Mas a violência, em realidade, se alimenta e se multiplica nas cor-

reias (muitas delas invisíveis) de transmissão de poder nas relações de todos os integrantes de uma sociedade. Por esse motivo é que a restrição espacial não a contém, ao contrário, ela a multiplica. Se poder e violência possuem um laço interno, medidas de reforço ao poder não são eficazes no enfrentar do drama urbano das comunidades mais fragilizadas pela violência. O oposto é o caminho mais racional: abandonar os esforços de contenção da cidadania e concederlhe o espaço para o exercício. A crítica que se fará, de modo livre, nesses espaços de cidadania exigirá que tais espaços sejam expandidos e, quando expandidos, novas demandas por mais cidadania surgirão. É essa a natureza contínua da emancipação, bem mais aparelhada para o efetivo combate à violência do que muros jamais serão.

A lógica do espaço como elemento da cidadania: não apenas existir, mas também emancipar.


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Sistema Punitivo e Neoconservadorismo: velhas-novas práticas Carolina Costa Ferreira

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sistema penal sempre foi ambiente perfeito para ampliação e testes de experiências neoconservadoras. As práticas de justiça, na área criminal, sempre acertaram muito bem os seus alvos, criando um círculo vicioso que responde com (mais) violência a condutas que poderiam ser solucionadas de formas diferentes. Valoriza-se, hoje, muito mais a punição do que a solução do conflito. E, nesta punição, também não se alcança nenhum resultado positivo. Em 2008, o Grupo Candango de Criminologia (GCCrim) divulgou pesquisa realizada com réus e vítimas dos crimes de furto e roubo no Distrito Federal, entre 1997 e 1999. O resultado reafirmou o que a Criminologia da Reação Social teoriza há tempos: o sistema penal tem por alvo jovens, negros, pobres e de baixa escolaridade. Quanto mais características associadas, maior é a probabilidade de o indivíduo ser criminalizado, passando de réu a preso (provisório) em pouco tempo. Alguns resultados desta pesquisa merecem particular atenção: 55% dos réus de roubo são presos provisoriamente por mais de 81 dias – tempo máximo, em teoria, para o término de um inquérito policial; 91,47% dos réus de furto sequer têm advogado particular. Em relação às vítimas, 90,17% dos bens furtados foram restituídos total ou parcialmente. Em 76,92% dos casos pesquisados, as vítimas participaram apenas como informantes na produção da prova. Em 20,77% dos casos, sequer foram ouvidas. A “Justiça Pública” apropriase do conflito destas vítimas, e sequer lhes dá notícia de eventual resultado – porque, talvez, realmente isso não importe à vítima, que se preocupa com a recuperação do bem roubado ou furtado e, sobretudo, com o trauma gerado pelo conflito e pela violência. Quanto à real aplicação da pena, a pesquisa também concluiu que

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houve cumprimento integral das medidas alternativas em 77% dos casos analisados; nas condenações “tradicionais” por furto, com a aplicação da pena de prisão, apenas 36,08% das penas foram cumpridas. Assim, percebe-se que o sistema se retro-alimenta: prende provisoriamente para garantir eventual cumprimento de pena, sem se preocupar com os princípios constitucionais da inocência e do devido processo legal. Além disso, mesmo que a legislação permita “aberturas” neste sistema, não há confiança nas suas próprias alternativas à prisão. Cada um destes resultados apresentados merece análise detida e contextualizada, mas seus números já causam perplexidade suficiente para que se perceba a evolução de um sistema punitivo que tem objetivo bastante específico: selecionar os mais frágeis para manter sua dominação, valendo-se do discurso falacioso de que mais punição significa mais segurança. Para sustentar este discurso, acatado excessivamente pela mídia, o sistema penal não se cansa de fornecer respostas, sobretudo pela criação de novas leis ou a reforma de antigos códigos – como o nosso Código Penal, ainda de 1940, reformado em 1984. O objetivo destas reformas é sempre recrudescer as penas. Uma das mais recentes ações foi a aprovação da Lei nº 11.923/2009, que inseriu no Código Penal a tipificação do chamado “sequestro-relâmpago”. Obviamente, é mais fácil que o Estado “responda” à sociedade com uma alteração legal do que com políticas públicas de segurança, com medidas de valorização da cidadania e de diminuição das desigualdades sociais. Esta resposta – técnica e politicamente mais fácil – é chamada atualmente de “Direito Penal de Emergência”. Responde-se às demandas sociais por punição e “justiça”, sem qualquer planejamento ou reflexão sobre o atual sistema penal. O Direito Penal assume, desta forma, um papel meramente simbólico, pois a falácia consiste na promessa de que, com a edição de novas leis penais, as pessoas deixarão de cometer crimes, o que, efetivamente, não se comprovou em nenhum dos mais recentes casos de aumento de penas. O Direito Penal de Emergência manifesta-se desde o final da Segunda Guerra Mundial, pela crescente “es-

pecialização” das leis penais, sob a justificativa de que muitos bens jurídicos relevantes não eram suficientemente tutelados. No Brasil, este “prurido legiferante”, como bem definiu Nélson Hungria, iniciou-se após o golpe militar de 1964. Nos anos 1990 este movimento ganhou ainda mais projeção com a Lei de Crimes Hediondos e as chamadas “leis para os poderosos”, que tutelam crimes contra a ordem econômica, tributária e financeira, crimes ambientais, lavagem de dinheiro, entre outros. O simbolismo destas leis é evidente. Alguns conceitos são excessivamente abertos, e a orientação dos Tribunais tem criado instrumentos de “flexibilização” para estas leis: o Supremo Tribunal Federal, por exemplo, tem entendimento pacificado no sentido de que é necessário o término do processo administrativo tributário, e a constituição do tributo, para que se inicie o processo penal. O mesmo STF, no HC 98.944/MG, indeferiu liminar e rejeitou a aplicação do princípio da insignificância no caso de uma ré acusada de furtar duas caixas de chicletes, por não configurar “furto famélico” e pelo fato de a paciente voltar a “claudicar na arte de proceder em sociedade”. O discurso punitivo influencia diretamente as políticas de segurança pública adotadas. Medidas de promoção da cultura de paz e de diminuição das desigualdades sociais não são nada populares. Segundo o

Valoriza-se, hoje, muito mais a punição do que a solução do conflito. E, nesta punição, também não se alcança nenhum resultado positivo. raciocínio do Direito Penal de Emergência, obter “sucesso” em programas de segurança pública não significa exatamente diminuição da ocorrência de crimes. Deseja-se repressão, o aumento de prisões – mesmo que sejam provisórias, temporárias, injustas e desproporcionais. Na perspectiva da Criminologia Crítica, políticas sociais são fundamentais para o sucesso de um programa de segurança pública, como é o caso do PRONASCI – Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania. Mas há que se ter cuidado na condução de tais políticas, que só poderão cumprir seus objetivos se conseguirem contar com a efetiva participação social, pela integração das chamadas agências formais (polícia, sistema de justiça, administradores públicos) e informais de controle (igrejas, escolas, centros comunitários); a geração de um sentimento de pertencimento, que fa-

cilite a convivência urbana e a valorização do espaço público; ações integradas e locais, além do reconhecimento dos direitos e deveres dos cidadãos. Não há segurança cidadã sem comunidade. No entanto, ainda se dá maior atenção ao aparelhamento das polícias e construção de novos presídios, reproduzindo velhas-novas práticas. Medidas voltadas à promoção da cultura de paz e formas alternativas de resolução de conflitos não têm o mesmo destaque. Assim, em tempos de Direito Penal de Emergência, o resultado se materializa na pesquisa do GCCrim: desigualdade em relação aos pobres e inchaço do sistema prisional, que não percebe, em seus próprios caminhos, medidas alternativas ao encarceramento. A emergência, assim, inverte-se e passa aos criminalizados, que pedem socorro ante a situação caótica do sistema prisional.


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Operações contra migrantes

FRONTEX e a “militarização” da política fronteiriça da União Européia Sven Peterke

E

m Varsóvia está sediada a pouca conhecida “Agência Européia de Gestão da Cooperação Operacional nas Fronteiras Externas dos Estados-Membros da União Européia”, também chamada “FRONTEX” (do francês, “frontières extérieures”). Criada pelo Regulamento (CE) n.° 2007/2004 do Conselho de 25.11.2005, ela deu, em maio de 2005, início a seu trabalho. Como seu nome já indica, sua tarefa principal é colaborar com a guarda de fronteiras dos Estados-membros

da UE e outras agências comunitárias para reforçar a vigilância operacional do respectivo território soberano. Para isso, ela elabora “análises de risco” – em particular, no que se refere à ameaça da segurança por imigração ilegal – e ajuda os Estados-Membros da UE em “operações conjuntas de regresso” – a “repatriação” daqueles milhares de migrantes coagidos a voltar aos seus países. Ainda, pouco mais de 100 funcionários trabalham para a FRONTEX. Todavia, em 2007, o Parlamento Europeu aprovou um regulamen-

to suplementar prevendo a criação de “Rapid Border Intervention Teams”. Logo, uma tropa de guardas de fronteira móvel com mais de 500 membros ajudará os Estados da UE bloquear a afluência de migrantes. Os equipamentos que a FRONTEX tem a sua disposição para tais operações já é impressionante: mais de 20 aviões, 30 helicópteros e mais de 100 navios – e, claro, a mais moderna tecnologia de vigilância. Seus relatórios anuais mostram que várias operações já eram realizadas. Interessantemente, a FRON-

TEX descreve as áreas de ação dessas operações com palavras códigos: “Poseidon” – para operações no Mediterrâneo oriental, em particular, diante de Grécia; “Hera” – nas Canárias e nas costas da África Ocidental; “Nautilus” – no Mediterrâneo entre África do Norte e Malta/Itália do Sul; e “AMAZON” – para operações nos aeroportos internacionais da UE para controlar imigrantes da América Latina. Não somente elas causam a impressão de que está crescendo uma instituição que atua de modo militar contra indesejados migrantes.

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Na verdade, a FRONTEX já se desenvolveu em uma agência que efetivamente contribui para a deslocação das fronteiras da UE fora das suas águas territoriais. A operação “Hera I” limitou-se ao envio de expertos que assistiram os guardas de fronteira nas Canárias na identificação da nacionalidade daqueles anualmente em torno de 30.000 mil migrantes africanos que conseguem chegar nestas ilhas com seus pequenos barcos - apesar do patrulhamento intenso da proteção-costeira por meio de helicópteros, da frota e do emprego do “Sistema Integral de Vigilância Exterior” (SIVE). Trata-se de um sistema de bases que consiste em dúzias de torres equipadas com câmeras infravermelhas e aparelhos de radar que conseguem detectar corpos humanos até uma distância de 7,5 kilometros. Todavia, já durante a “Hera II”, a FRONTEX assumiu diretamente tarefas da vigilância de fronteiras e até conduziu operações nas águas territoriais do Senegal e da Mauretania. Durante nove semanas, ela oficialmente prendeu 3.885 refugiados em 57 barcos de pescador. Mais ou menos 5.000 pessoas devem ser impedidas já na África de se fazer ao mar. Em outras palavras: o mandato da FRONTEX efetivamente abrange a implementação de uma política cujo objetivo é parar e repelir os barcos de refugiados já fora das águas territoriais dos Estados-membros da UE. Para isso é preciso o consentimento dos Estados de que emanam as afluências de migrantes. Em troca, os governos “colaboradores” recebem ajudas imediatas – em forma de dinheiro ou, por exemplo, sacos de cadáveres. Ninguém sabe o número exato, mas são, sem dúvida, milhares de refugiados que se afogam anualmente à sua tentativa em vão de escapar à miséria. Muitas vezes, as vítimas são aqueles pescadores da costa africana que conseguiam alimentar suas famílias até as modernas frotas de pesca da UE chegarem para explorar suas águas. Sem perspectiva alguma de poder continuar vivendo com dignidade nos seus próprios países, estes pescadores arriscam suas vidas, atravessando com seus pequenos barcos no mar alto. Outros confiam nas organizações criminosas, esperando que sua experiência em

escapar do patrulhamento rigoroso nas fronteiras européias possibilite sua entrada clandestina. Eles se submetem a condições desumanas nesses barcos inseguros, superlotados e velhos, pagando-lhes com seu último dinheiro. E nota-se: o crescimento do tráfico de migrantes é, por sua vez, reflexo da política de cercamento das fronteiras européias que resulta, muitas vezes, na criminalização das suas vítimas. Até agora, o reforço da vigilância nas águas territoriais mostra sucessos modestos: os imigrantes simplesmente tomam desvios cada vez mais perigosos para escapar o patrulhamento. Trata-se de uma tragédia humana de uma escala desconhecida. Ela não é uma “lei de natureza”, mas conseqüência de uma série de decisões políticas deliberadas. Trata-se de uma verdade que muitos cidadãos europeus não querem ouvir – ainda menos seus governos incapazes ou sobrecarregados com o desafio de desenvolver uma política que visa combater as causas da imigração em massa. Violações de direitos humanos no mar alto? Diante desse pano de fundo, constata-se que é difícil negar o fato de que a UE começou a “militarizar” sua política fronteiriça. Já há muito tempo, o “castelo Europa” não é mais uma metáfora, mas uma realidade. Infelizmente, parece que a situação é ainda pior do que muitos recearam. Estimulado pelas reclamações de várias organizações de direitos humanos, uma equipe alemã de rádio produziu um documentário sobre a FRONTEX. Ela anseia ter descoberto que seus funcionários apreendem o combustível e até os alimentos dos refugiados de barco, ao coagi-los à volta, aceitando a possibilidade do seu afogamento ou morte à fome. Se for verdade, tratase de violações gravíssimas de direitos humanos. Como os governos se consideram, em primeiro lugar, protetores exemplares de direitos humanos, eles negam estas acusações – e apresentam argumentos jurídicos que devem excluir sua responsabilidade jurídica. Um é o de que os pertinentes tratados internacionais, em particular as convenções de direitos humanos e a Convenção de Genebra sobre Refugiados, não são

aplicáveis fora das águas territoriais da UE, no mar alto. Por conseguinte, o “European Center for Constitutional and Human Rights” mandou, em 2007, fazer um parecer jurídico sobre o relevante complexo de perguntas. Seus autores chegam, entre outras, às seguintes conclusões: as medidas extraterritoriais de vigilância não liberam as agências da UE das suas obrigações internacionais. Elas têm de tratar migrantes naufrágios conforme os dispositivos dos direitos humanitários do mar. No mais, os migrantes têm o direito de ser transpostos ao próximo porto seguro. E eles não perdem seu direito a apelar para asilo – pedido que não pode ser refutado no mar alto pela FRONTEX, mas que necessita de um verdadeiro processo. Caso não, a UE corre particularmente risco de violar um dos princípios mais basilares do direito de refugiado: o de non-refoulement que proíbe mandar de volta pessoas para países em que sua vida e integridade física e psíquica são ameaçadas por governos que desrespeitam direitos humanos fundamentais. E observa-se: há muitos governos da África ocidental e da zona mediterrânea responsáveis por tortura e outras violações de direitos humanos. Mas o que acontece é que vários governos europeus – entre outros o de Berlusconi e de Sarkozy – descobriram sua nova amizade

com os ditadores desses países, por exemplo, como o ditador Kadaffi, da Tunesia. A Itália já mantém centros de acolhimento em Tunésia e Líbia. No último país, estima-se que haja entre meio e um milhão de pessoas sem documentos válidos que esperam a ocasião de se mudar para Itália ou Malta. Há relatórios de organizações de direitos humanos testemunhando que milhares dos refugiados, que se encontram nesses centros, são transportados em caminhões como gado no exterior - ou simplesmente no deserto como depósito de lixo humano. Entendo, como europeu, que não é possível simplesmente abrir as fronteiras da UE e exigir, de modo ingênuo, uma política mais liberal – na Europa inteira faz tique-taque, de novo, uma bomba que se chama “xenofobia”. Mas, se os relatórios das organizações não-governamentais e da mídia não mentem, não há como justificar moral e legalmente as medidas tomadas pelos governos europeus que escarnecem os direitos humanos dos migrantes. Não há como enfrentar este novo exodus por fechar um pacto com o diabo, vendendo as almas dos mais pobres. A página oficial da FRONTEX: http://www.frontex.europa.eu/ O parecer jurídico do ECCHR: http://www.ecchr.eu/opinions.html


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aqui dentro, aqui do lado. Ele desenvolveu o conceito de direito como liberdade.

ENTREVISTA COM PAULO ABRÃO

A importância da memória para consolidar a democracia A

lexandre Bernardino Costa entrevistou o Presidente da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça e vice-Presidente da ABEDi, Paulo Abrão, sobre temas como o neoconservadorismo, anistia e ensino. A questão do muro é uma metáfora muito forte. Bauman diz que Foucault hoje mudaria de opinião, ao invés da estrutura panóptica de observação da sociedade permanentemente, um grande irmão, o grande medo. O medo hoje em dia é o de ser excluído para nem ser observado. É ser excluído do shopping, do trabalho, de qualquer possibilidade. Ser jogado dentro de uma prisão, dentro de um espaço físico, onde não há poder, a não ser o poder exercido de forma violenta. Você concorda com Bauman? Eu concordo. Mas, na verdade, esta questão da onda neoconservadora mundial pode ser relativizada a partir dos fatos mais recentes relacionados ao governo Obama. Querendo ou não, os Estados Unidos sempre foram força motriz, para o bem e para o mal, na defesa das liberdades civis, seja por intervencionismo ou por um exercício de uma ingerência sobre outras soberanias, sob a justificativa de direitos humanos, tal qual ocorreu no Iraque, em Guantánamo, ao se lesar todos os direitos daqueles que estão presos até hoje. Mas, por outro lado, temse uma nação que se baseou fortemente pelo discurso, pela narrativa do exercício das liberdades para afirmar a democracia ocidental. Vejo com bons olhos algumas das iniciativas que o Obama nos traz e que ele pré-anuncia para a sociedade porque ali é uma inversão desse diagnóstico de Bauman. Ali ele está dizendo: “Não, nós precisamos incluir, ter um diálogo, re-inclusão no mercado”. Evidente que isso é

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muito recente, e nós não sabemos até que ponto o pragmatismo da política externa norte-americana vai permitir que essas mudanças sejam efetivamente estruturais e não conjecturais pela passagem de um presidente um pouco mais humanista no capitalismo. Relate-nos um pouco sobre a ação do neoconservadorismo no Brasil, em relação à Comissão de Anistia. A Comissão de Anistia sofre críticas da imprensa, de algumas lideranças políticas, ao tentar cumprir a lei e resgatar uma memória, em um processo de luta democrática. Como é que você enxerga esse processo que está sendo vivenciado? O neoconservadorismo se expressa, no âmbito da anistia, por meio de duas expressões muito peculiares: a primeira é a de qualificar o direito constitucional a uma reparação de um prejuízo provocado pelo próprio Estado - que tem o dever de indenizar a vítima - pejorativamente como um direito a uma bolsa-ditadura. A segunda expressão é que a luta dos que resistiram à ditadura militar deve ser necessariamente enquadrada como atos terroristas. Bolsa-ditadura de um lado para desqualificar o dever do Estado da reparação, terrorismo de outro lado para incorporar uma linguagem, em plena democracia, a mesma linguagem utilizada pelo Estado autoritário para justificar as ações de tortura e de violação aos direitos humanos. Essas são as duas expressões mais significativas e que desvelam esse cenário de neoconservadorismo dentro da discussão sobre anistia. Há o movimento dos anistiados, o movimento dos sem-terras, o movimento de mulheres, o movimento dos sem-teto, e outros inúmeros movimentos sociais que mobilizam,

criam direitos, fazem direitos vivos, em exercício, para a Constituição ser efetivada. No entanto, esses movimentos passaram a ser identificados como a instabilidade da Constituição, segundo o discurso autoritário. Como é que você enxerga esse discurso? As lutas do passado são as mesmas lutas do presente. Aquilo que imbuia o sentimento dos resistentes contra o regime autoritário era nada mais nada menos do que a defesa dos princípios da liberdade de ir e vir, da liberdade de pensamento, da liberdade de organização, da defesa dos direitos políticos. E, hoje, o que os movimentos sociais buscam é nada mais nada menos que o aprofundamento das liberdades civis, o direito ao associativismo, o direito às suas mobilizações e muitos dos métodos que eram empregados no passado para se repelir o movimento de resistência democrática são os mesmos métodos utilizados até hoje como ranço autoritário aos movimentos sociais. Essa desvalorização da participação da sociedade civil na vida pública vem desde a cultura do medo instituída no regime autoritário, no qual quem participasse de qualquer espécie de associação, partido político, de agremiação, era necessariamente taxado de subversivo, quiçá de terrorista para, a

partir dali, se reprimir o exercício dessas liberdades. E hoje é a mesma coisa, essa história se reproduz. Daí a relevância, a importância de se relembrar esse passado recente para desnudar as práticas autoritárias atuais e demonstrar que ainda falta muito para vivermos numa democracia consolidada. Eu acho importante aqui também colocar a questão do conceito de direito. Nós trabalhamos em uma perspectiva na qual o direito é constituído socialmente, com seus diversos atores da sociedade, e em um embate muito sério, com a possibilidade de construção, de caminhada em conjunto ainda que não seja contada, ainda que haja diferença, ainda que haja, inclusive, conflitos. Qual a sua perspectiva? Essa pergunta nos faz perceber o grande valor de Roberto Lyra Filho. O direito como liberdade. Até porque estão esquecendo dessa grande contribuição já trazida ao pensamento jurídico brasileiro, ainda dentro do regime militar. Eu vejo que as próprias faculdades de direito no Brasil, hoje, estão com os olhos muito voltados para a formação de um pensamento jurídico importado e essa migração para escolas européias e norte-americanas nem sempre é o melhor para a constituição do nosso pensamento. Roberto Lyra Filho está

Daí a relevância, a importância de se relembrar esse passado recente para desnudar as práticas autoritárias atuais e demonstrar que ainda falta muito para vivermos numa democracia consolidada.

Nós criticamos o ensino jurídico sobre esse modelo que está imposto pela pseudo-técnica, segundo a qual se engole conceitos ditados pelos manuais e pela legislação a partir de uma determinada visão que é muito igual ao processo no qual eu me formei, em plena ditadura. Como você enxerga este tema em relação a ABEDi? A ABEDi tem insistido na criação de uma rede de professores que tenham uma visão emancipatória do direito e, mais do que isso, tem procurado implementar ou ações de pesquisa ou de extensão ou mesmo práticas pedagógicas inovadoras para o enfrentamento dessa leitura reducionista do direito, fruto de uma formação eminentemente legal. criamos alguns fóruns, debates virtuais, os congressos anuais da ABEDi e, também, agora, participamos dos processos, junto ao Ministério da Educação, de supervisão dos cursos de direito. O que nós repelimos é a idéia de que a ampliação do acesso ao ensino superior a um número maior de cidadãos brasileiros seja encarado, a priori, como um problema.. Mas, hoje, as faculdades de direito estão reproduzindo muito a lógica jurídica conservadora emitida pelos tribunais superiores, mesmo porque, os docentes, em sala de aula, acabam reduzindo o estudo do direito, também, a uma leitura não mais da juridicidade, mas sim dos argumentos de autoridade. E é uma pena que isto esteja ocorrendo, não sei até que ponto as súmulas vinculantes ou a repercussão geral não são instrumentos refletidos de conformação de uma leitura semântico-jurídica que nada mais é do que a expressão de uma ideologia e de um valor de um agente verbalizador, de um agente da fala autorizada, e que as faculdades têm reproduzido.

Na ordem do dia dos debates, nós estamos acompanhando nos jornais o caso Cesare Battisti. A não extradição dele, o acolhimento. Como é que o presidente da Comissão de Anistia vê este tema? Criou-se uma polêmica sobre o caso Cesare Battisti. A priori, era

um caso simples. O exercício de uma tradição de refúgio que o Brasil, há muitos anos, exercita. A polêmica é reflexo dessa leitura enviesada da história que parte da opinião complicada que revela que a história só pode ser contada de um único modo. E que, num determinado momento, foi necessária a ação dos Estados para se poder reprimir as insurgências comunistas que colocavam em risco as instituições, a paz social, a família brasileira, a propriedade.

Isso se dá tanto com o caso da lei de anistia, no Brasil, quanto com o caso Battisti, na Itália. Evidente que lá, formalmente, estava acontecendo num cenário de Estado Democrático. Mas o que não se pode rejeitar são as evidências de estado de exceção dentro de um ambiente democrático. É isso que justificou a decisão do Ministro da Justiça em conceder o refúgio a ele no Brasil. Em primeiro lugar, sustentando a tradição histórica do Brasil em dar acolhida;

em segundo lugar, pelo fato de que os fatos que envolveram Battisti estavam envoltos a um cenário de exceção, mesmo dentro de um regime formalmente democrático; e em terceiro lugar, pela convicção de que nós não devemos ler a história, não por essa leitura unilateral e exclusiva. O bem jurídico a ser protegido ali é a configuração de um estado de perseguição política e isso está muito bem comprovado no processo de Battisti.


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OBSERVATÓRIO DO JUDICIÁRIO

A greve entre interditos e dissídios: resistências à afirmação de um direito fundamental Ricardo Lourenço Filho e Noemia Porto

A Constituição prevê a greve como direito social fundamental dos trabalhadores, inclusive no serviço público. Pela primeira vez em nossa história, temos um texto constitucional que reconhece esse direito de forma ampla, garantindo aos trabalhadores a decisão sobre a oportunidade da paralisação e os interesses que serão defendidos. A extensão e a amplitude com que o direito foi reconhecido talvez estejam relacionadas à importância das greves ocorridas no país principalmente no final da década de setenta e início dos anos oitenta. Tais paralisações, concentradas sobretudo no ABC paulista, projetaram no cenário político as diversas lutas e reivindicações dos trabalhadores brasileiros. A Carta de 1988 certamente sofreu os reflexos desse processo, que possui um forte conteúdo democrático. Não obstante, vinte anos depois, é possível identificar estratégias que buscam enfraquecer o direito de greve. Falamos aqui em uma reação neoconservadora contrária à afirmação plena desse direito fundamental. Decisões judiciais em dissídios coletivos e o manejo constante de interditos proibitórios para a suposta defesa da propriedade dos empregadores revelam sérias resistências que ainda persistem à previsão democrática da Constituição. Além de se construir limitações infraconstitucionais aos direitos fundamentais, ao argumento de que não são absolutos, há silêncios judiciais constrangedores sobre a intensidade da garantia constitucional de que compete aos trabalhadores decidir sobre o exercício do direito de greve. As decisões proferidas em dissídios coletivos, declarando a abusividade da paralisação, constróem excessivas limitações ao direito de greve e tornam inconsistentes, na prática, as mudanças e possibilidades trazidas com a Constituição de 1988. O Judiciário acaba intervindo na definição da mo-

tivação que legitimaria a suspensão dos serviços, usurpando a competência decisória assegurada constitucionalmente aos trabalhadores. É o que ocorreu na greve dos metroviários de São Paulo, em 2006. A Justiça do Trabalho considerou abusivo o movimento que pretendia discutir o descumprimento, pelo empregador, de ordem judicial emitida em ação popular - proposta pelo presidente do sindicato dos trabalhadores - na qual se questionava a implementação da Parceria Público-Privada (PPP) na Linha 4 do Metrô de São Paulo. Houve ainda determinação de que fossem mantidas as atividades mínimas, com circulação de 100% da frota nos horários de pico (6 às 9h e 16 às 19 h) e 70% no horário normal, sob pena de paga-

mento de multa equivalente a R$ 100.000,00. Já os “interditos trabalhistas” normalmente versam sobre supostos ataques à posse do empregador promovidos pelo sindicato articulador do movimento grevista. A ameaça decorreria de diversos atos dos trabalhadores: a presença em frente aos locais de trabalho (organização e formação de piquetes); a colocação de faixas e cartazes nas portas de acesso; o impedimento do trânsito de clientes do empregador (“barreira humana”); os atos de convencimento dos nãoaderentes ao movimento, entre outros. Nesses casos, os empregadores têm se utilizado das ações de interdito proibitório exatamente para, senão impedir, ao menos embaraçar o exercício do direito de greve.

Por meio dos interditos, pretende-se, de preferência em caráter liminar, obter ordem judicial para impedir o aliciamento à greve, ainda que pacífico, de outros trabalhadores e para manter os grevistas, em manifestação, a certa distância do local de trabalho. E as decisões judiciais que confirmam no todo ou em parte essas pretensões causam substancial impacto sobre a capacidade de articulação política e coletiva dos trabalhadores. Há, com essas ações, intensamente utilizadas às vésperas das mobilizações de grande envergadura, como no caso dos bancários, dos metroviários ou dos motoristas de ônibus, transferência da discussão acerca do fato social da greve, das ruas para os gabinetes, ou do âmbito das categorias para os juízes. Nova-

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mente, a decisão sobre o exercício do direito de greve é suprimida dos trabalhadores. Manifestação pacífica não equivale a manifestação silenciosa. O exercício normal de um direito, no caso a greve, não pode ser considerado coação. A greve, aliás, nada significa se não consegue causar impacto dentro da relação entre capital e trabalho. O movimento grevista é essencialmente temporário. Ele não visa a romper as relações de trabalho, nem inviabilizar as atividades da empresa. Por isso mesmo não há ânimo por parte dos grevistas de obter ou de se manterem na posse, o que incompatibiliza o pronunciamento judicial que se pretende nos interditos proibitórios. Além disso, a agremiação sindical é importante corpo intermediário das reivindicações por melhores condições de trabalho, e é dramática a sua conversão de agente articulador em sujeito fiscalizador e contendor do movimento grevista, quando se torna réu em ação de interdito proibitório. Vincular e condicionar o direito de greve apenas às reivindicações salariais fragilizam a capacidade de mobilização da categoria por outras causas ou interesses que considere relevantes, negando a própria garantia constitucional. O mesmo efeito é produzido sob o argumento da preservação das necessidades inadiáveis da população. As limitações impostas judicialmente acabam inviabilizando a greve, seja porque determinam a manutenção das atividades praticamente em sua integralidade, seja porque passam a considerar essenciais, não apenas aqueles serviços vinculados ao atendimento das pessoas numa perspectiva de sobrevivência - como ocorre com a saúde, a segurança ou o abastecimento alimentar, por exemplo –, mas, também, aquelas consideradas simples comodidades cotidianas, como os serviços bancários. A presença da polícia durante as manifestações – normalmente com

autorização judicial – e a perseguição e demissão de dirigentes e ativistas sindicais, práticas estas nem sempre combatidas a contento, também são altamente reveladoras da dificuldade em se observar e respeitar o movimento grevista como evento democrático e de afirmação política dos trabalhadores. Na realidade, o valor jurídico da greve não é negado pelas decisões judiciais. O problema então não reside nesse reconhecimento, mas nas estratégias adotadas na implementação (ou negação) desse direito fundamental. O aspecto peculiar da reação neoconservadora à greve é a sua roupagem argumentativa diferenciada. O direito é restringido mediante fundamentações que buscam e afirmam um suporte constitucional. Em outras palavras, o direito de greve é limitado supostamente em nome

da própria Constituição. É necessário recordar que a greve se consolidou como instrumento de pressão e de afirmação de direitos num cenário histórico de exploração dos trabalhadores e de arbitrariedades por parte dos empregadores. O personagem de Charles Chaplin, no filme “Tempos Modernos”, que, ao deixar a fábrica, continua repetindo os mesmos movimentos corporais desenvolvidos durante a jornada de trabalho para cumprir seu ofício consegue traduzir, sem nenhuma palavra dizer, uma bela cena, uma fotografia, do sistema econômico capitalista daqueles tempos de produção em série. Do alvorecer do capitalismo para cá, a greve adquiriu diversas feições, entre greve-liberdade-indiferença, greve-delito, greve-tolerância, greve-direito. Num processo de avanços,

retrocessos, persistências e mudanças, o direito de greve foi se afirmando como garantia fundamental dos trabalhadores e que não só comunica reivindicações, como abre a possibilidade para a negociação coletiva e a aquisição de direitos. Entre interditos e dissídios, tem emergido uma instância judiciária de controle social da greve que a percebe como delito. É uma reação que minimiza a conquista da Constituição de 1988, que fortaleceu a greve como instrumento de luta e emancipação dos trabalhadores. O desafio apresentado é justamente o de combater as estratégias de enfraquecimento desse direito. O recurso à história e ao nosso passado recente fornece a perspectiva de que se trata de um direito historicamente construído, cuja feição democrática não pode ser ignorada.

Decisões judiciais em dissídios coletivos e o manejo constante de interditos proibitórios para a suposta defesa da propriedade dos empregadores revelam sérias resistências que ainda persistem à previsão democrática da Constituição sobre o direito de greve.


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OBSERVATÓRIO DO LEGISLATIVO

Levando os direitos a sério no Tribunal de Sancho Pança Damião Azevedo

H

á um episódio do romance Dom Quixote, de Cervantes, em que o cavaleiro da triste figura e seu escudeiro, Sancho Pança, são recebidos por um duque gaiato que lhes prega uma peça. Finge acreditar nas peripécias do “engenhoso fidalgo” e o trata como herói. E em recompensa ao escudeiro, concedelhe o governo de uma suposta ilha. Empossado governador de sua ilha de fantasia, Sancho é convocado a assumir as responsabilidades da aplicação da lei. Logo aparece uma mulher que acusa um pastor de porcos de tê-la deflorado. O pastor defendia-se alegando que a mulher se oferecera por dinheiro. Sancho condena o réu a indenizar a mulher, entregando-lhe todas as moedas que trazia consigo. O réu cumpre a sentença e a mulher se vai. Em seguida, Sancho pondera que a indenização não poderia ser extorsiva e muda sua sentença. Determina ao pastor que procurasse a mulher para que lhe devolvesse as moedas. Mas dentro em pouco retorna o homem vencido e surrado. Não conseguira reaver o dinheiro. De pronto, Sancho ordena à mulher que devolvesse ao pastor toda a quantia que recebera. Ante seu espanto, Sancho declara que se ela tivesse defendido sua honra com o mesmo vigor que defendera sua bolsa, jamais teria sofrido dano algum. Noutra ocasião, os criados pedem a Sancho que solucione um enigma. No reino havia uma ponte sobre a qual havia uma forca. E existia uma lei que dispunha que quem quisesse atravessá-la deveria, sob juramento, dizer aonde ia. Só poderia passar quem dissesse a verdade. Aquele que mentisse seria enforcado. Eis que chegou à ponte um jovem dizendo que iria morrer na forca que ali estava. Se o executassem, teria falado a verdade, e portanto não poderia ser enforcado. Porém, se o deixassem

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passar, teria mentido, e então deveria ser condenado. Vendo que ambas normas eram válidas, mas que só poderia aplicar uma, Sancho percebe que, por princípio, em casos de dúvida o réu deve ser favorecido. E conclui que não deveriam enforcar o jovem. Tanta prudência revelou e tantas outras coisas tão boas determinou que para sempre se guardaram naquele lugar as célebres “constituições do grande governador Sancho Pança.” Essas passagens anedóticas certamente fazem alguma troça da Justiça. No entanto, também revelam como a aplicação do direito não está aprisionada na técnica judicial. É enorme a responsabilidade dos juízes. Por isso pode parecer que é preciso super-homens para tal tarefa. Porém, ainda que seja um trabalho hercúleo, mesmo um humilde Sancho Pança, quando confrontado com diferentes argumentos trazidos pelas partes, é capaz de inferir certos princípios universais a partir da experiência concreta. O direito é estudado na jurisprudência dos tribunais porque é lá que se encontra disponível para investigação pública. Mas todos os dias o direito se produz na rua, no trabalho, nas relações de vizinhança, nas ligações familiares. Aos tribunais chega apenas parte dos crimes e dos demais conflitos sociais. Ao julgar, o juiz lida com concepções de certo e errado que já existem na sociedade. Mesmo um julgado inovador não faz mais que reconhecer a legitimidade de uma das teses apresentadas pelas partes. E ainda que sua fundamentação seja original, o dispositivo da sentença está limitado aos pedidos das partes, devendo o juiz ao fim dizer se algum deles é procedente. O direito é também o conjunto de técnicas usadas para a tomada de decisões públicas. E, como qualquer tecnologia, exige pessoas especializadas em sua operação. Por isso, para atuar num dos poderes de Estado – o Judiciário – é preciso formação técnica. Contudo, depois de Chernobyl, nem as tecnologias mais “exatas” dizem respeito apenas aos técnicos. No caso do direito isso se nota de modo mais evidente, pois não só as conseqüências da técnica afetam a todos, mas o próprio objeto manejado pelos técnicos do direito é

elaborado pela sociedade. Quem produz as normas de conduta, tanto a lei como os usos e costumes, não é o jurista, mas os cidadãos, diretamente ou por meio de seus representantes parlamentares. É a sociedade que fornece ao Judiciário aquilo sobre o qual este aplicará a técnica processual. Logo, a todo cidadão se atribui a competência para avaliar e criticar a adequação das normas jurídicas, pois, em última instância, ele participa de sua produção. Evidência disso é que os crimes contra o mais elementar dos direitos – a vida – não são julgados por um juiz técnico, mas por um júri popular composto por leigos. Toda pessoa lida rotineiramente com decisões sobre o certo e o errado e sobre qual é a conduta adequada diante dos dilemas da vida. Por isso, mesmo sendo um homem rústico e nada afeito a sutilezas intelectuais, Sancho baseia seus julgamentos em princípios gerais e abstratos. Seu raciocínio simplista e sua nenhuma formação escolar não impedem de avaliar se as condutas estão de acordo com princípios gerais de justiça, nem de entender que as circunstâncias do caso determinam o que é certo e errado. Como qualquer pessoa, ao focar o contexto concreto, Sancho é capaz de transcendê-lo, pautando suas decisões por princípios que po-

dem ser generalizados. Seu pensamento é, a um só tempo, contextual e universal. Isso não significa que sua decisão será justa. Mas tampouco a técnica processual garante que as decisões judiciais o sejam. O que nos interessa ressaltar, porém, é que, ao interpretar a lei, deve-se ter sempre em vista que todo indivíduo é também autor do direito que se irá aplicar. Se o juiz quiser impor suas preferências e valores pessoais à sociedade, violará o pluralismo no qual se baseia a Constituição e, em conseqüência, violará o próprio fundamento de sua função jurisdicional. Quando os especialistas pretendem substituir os cidadãos, o resultado quase sempre é o conhecido fenômeno das leis que não pegam. Ainda que o juiz não seja um autoritário arrogante, mas alguém comprometido com as causas sociais, se ele tratar as partes como seres incapazes e oprimidos, pretendendo emancipá-los por sentença, transformará os cidadãos em clientes dependentes de tutela. Para que os cidadãos sejam protagonistas do direito não é preciso substituir nem afastar o Judiciário, mas sim que tenham voz, que seus argumentos tenham oportunidade de figurar na esfera pública e sejam levados a sério. Não é o mecanismo processual em si que garante a legi-

timidade das leis, mas a abertura de canais de acesso e participação no sistema judicial e demais instituições públicas nas quais as leis são produzidas e aplicadas. Todo indivíduo, ainda que pobre ou discriminado, é capaz de entender e refletir sobre o que é justo. E se reconhece como cidadão quando, autonomamente, reivindica seus direitos e exige reparações contra experiências concretas de desfavorecimento ou opressão. Ainda que sua demanda não seja vencedora, se participar ativamente, já age como ator político, emancipando-se da condição de expectador passivo. Mesmo diante de sentenças desfavoráveis, as pessoas assimilam criticamente as decisões e as devolvem ao próprio Judiciário, sob a forma de novas reivindicações e relações sociais cada vez mais complexas. O direito é certamente um trabalho de Hércules. Entretanto, não exige superior capacidade cognitiva. O que não pode faltar é aquela disposição de Sancho Pança, de se levar a sério as pretensões e argumentos formulados por todas as partes envolvidas. Só assim o direito pode ser um fluxo de comunicação contínua, por meio do qual a sociedade aprende sobre si mesma e define os valores e liberdades que se pretende defender e afirmar.


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OBSERVATÓRIO DOS MOVIMENTOS SOCIAIS

DIREITO ACHADO NA RUA RESPONDE

Um olhar feminista sobre a reforma eleitoral aprovada Patrícia Rangel

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sub-representação das mulheres na política institucional é reconhecidamente um grave defeito em regimes democráticos. O Brasil sofre deste problema e apresenta um dos mais baixos índices de participação feminina no mundo: em 2006, foram eleitas apenas 45 deputadas federais (8,7% do total) e 123 deputadas estaduais (11,6%), ao passo em que, em 2008, somente 6.508 mulheres se tornaram vereadoras (12,5%). Em setembro de 2008, a União Interparlamentar (IPU, da sigla em inglês), órgão vinculado à Organização das Nações Unidas, colocou o Brasil na 142ª colocação de um ranking com 188 países. Nas Américas, só ganhamos de Colômbia, Haiti e Belize. Diante deste diagnóstico, diversos acadêmicos têm apontado a necessidade de uma reforma política ampla com ações afirmativas para as mulheres com vistas a equalizar o acesso à política institucional, levando em conta a perspectiva social e as trajetórias diferenciadas. Após anos de luta e mobilização por uma transformação estrutural do sistema político brasileiro, o movimento feminista se depara com mais uma proposta insuficiente reforma política: no dia 08/07, o Plenário da Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei 5.498/09, que desenha uma reforma bastante limitada. Desde sua formulação por um grupo de parlamentares designados pelo presidente da Câmara dos Deputados (Michel Temer) e sob relatoria do deputado Flávio Dino (PCdoBMA), o projeto recebeu críticas da sociedade civil organizada. As redes e articulações que integram a Plataforma dos Movimentos Sociais pela Reforma do Sistema Político (www.reformapolitica.org.br) avaliaram que o conteúdo sugerido estava limitado a uma reforma eleitoral estrita, não correspondendo a uma reforma política necessária.

Alterações na legislação eleitoral de interesse específico das mulheres

Os direitos nas relações homoafetivas Luiz Menezes e Maria Eduarda

O projeto aprovado na Câmara estabelece a destinação de 5% do fundo partidário na formação política das mulheres, assim como de 10% do tempo de propaganda partidária (fora de anos eleitorais) para promover e difundir a participação feminina. O texto incluiu uma punição para o partido que não cumprir a regra dos 5%: se não destinar esse percentual, deverá acrescentar mais 2,5% dos recursos do fundo no ano. Outra alteração na lei eleitoral expressou, de forma mais explícita que o texto atual, a obrigatoriedade de preencher ao menos 30% da lista partidária com candidatos do sexo minoritário. O termo atual se refere à “reserva de candidaturas” e a proposta aprovada na Câmara estabelece o verbo “preencherá”. Essas conquistas, alcançadas graças à atuação firme da Bancada Feminina e da Comissão Tripartite para revisão da Lei de Cotas, representam um avanço para a participação política das mulheres. Além do valor simbólico que exerce, a medida de destinar recursos ampliará em muito o engajamento feminino, qualificará e incentivará muitas candidatas, mesmo nos menores partidos. Por outro lado, a rejeição de incluir o critério raça/cor nas fichas de candidatura do TSE representa um retrocesso. Essa sugestão, oriunda da Comissão Tripartite e impulsiona pela Bancada Feminina, foi motivada pela necessidade de gerar dados estatísticos sobre a participação de negros/as e indígenas nas eleições e, posteriormente, de políticas para combater a sub-representação destes. Outra derrota para as mulheres nesta reforma foi não conseguir estabelecer nem a punição para os partidos que não cumprirem as cotas nas listas eleitorais, nem a diminuição das vagas de candidaturas de 150% para 100%, mudança

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que auxiliaria o cumprimento das cotas para mulheres. O retorno das sufragistas Nos momentos prévios à votação do projeto, militantes feministas ocuparam o Salão Verde da Câmara dos Deputados fantasiadas de sufragistas. Chamaram a atenção dos parlamentares para suas reivindicações sobre a Reforma Política: lista fechada, alternância de sexo, financiamento público exclusivo e mais ações afirmativas. Elas queriam demonstrar que, quase cem anos depois de começar a demandar o sufrágio universal, as mulheres ainda pedem espaço na política institucional. Elas conquistaram o direito de votar, mas não de ser votadas. “Sem as mulheres não existe democracia”, “obrigatoriedade das cotas e punição para quem não cumpre”, “abaixo os partidos machistas e racistas”, “lista fechada + paridade = caminho aberto para as mulheres” e “cem anos depois, continuamos lutando por direitos políticos” eram alguns dos dizeres ostentados pelas placas das manifestantes que, além disso, abriram uma enorme faixa com as palavras “Deputados machistas e racistas excluem mulheres e negras(os) da política”. Esta faixa foi exibida, também na galeria do Plenário da Câmara. Significado da reforma que interessa às feministas O projeto de lei em questão demonstrou não considerar as deman-

das dos movimentos sociais sobre alguns dos problemas no sistema de votação, como a sub-representação das mulheres; a forma de financiamento das campanhas; o desvirtuamento da representação proporcional no que se refere à representação federativa; e a exclusão dos espaços de poder provocada pelo racismo. A reforma pareceu caminhar mais no sentido de reduzir gastos de campanha e regulamentar procedimentos já realizados pela Justiça Eleitoral. As questões votadas não interferem nas estruturas de poder que regem o sistema eleitoral vigente. Desta forma, ainda que representem avanços para a participação feminina e a democracia, as ações afirmativas para mulheres que passaram no projeto teriam maior impacto se fossem acompanhadas por mudanças como a lista fechada com alternância de sexo e o financiamento público exclusivo de campanha. Desta forma, seria possível alcançar patamares de representação feminina compatíveis com a participação das mulheres na sociedade. Por isso, interessa às feministas uma Reforma Política que transforme as relações que estruturam o sistema político brasileiro: o patrimonialismo; o clientelismo; o populismo; as oligarquias; as múltiplas formas de exclusão (racismo, etnocentrismo, machismo, homofobia). Para tanto, é necessária uma reforma política ampla, que radicalize a democracia. Para isso, há alguns caminhos. O feminismo é definitivamente um bom caminho para transformar o mundo.

Vivi com um companheiro do mesmo sexo durante 15 anos. Eu decidi cuidar do lar, enquanto ele ficou responsável pelo sustento da casa. Esse meu parceiro tinha uma filha fruto de uma relação anterior a nossa. Ele faleceu há um mês e não deixou um testamento. Eu tenho direito a algum bem? Ou tudo que ele tinha será repassado para a filha? (João Silva)

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oão sua situação é idêntica a de milhares de brasileiros. Além do preconceito encontramos diversas adversidades para resolver seu problema tais como a falta de legislação e as diferentes tendências dos juízes em resolver casos envolvendo relações homossexuais. Nós vivemos em uma sociedade marcada por preconceitos e distorções, onde ainda é forte a presença de grupos que são contra os relacionamentos entre pessoas de mesmo sexo. Os homossexuais brasileiros são titulares de direitos inalienáveis, cumpridores das leis, eleitores e contribuintes de impostos, mesmo assim ainda são vistos como cidadãos inferiores, não adquirindo proteção legal para suas relações de afeto, como é garantida aos demais, sendo seu único amparo estatal limitado a decisões favoráveis, após longas batalhas judiciais. Quando um grupo social como o movimento gay gera um demanda jurídica, ou seja, quando um grupo passa a questionar na justiça os seus direitos ou a falta deles, o judiciário começa a refletir sobre tal questionamento e tende a englobar tal grupo no resto que já é protegido ou tem seus direitos reconhecidos. A justiça e as Relações Homoafetivas Uma primeira observação a ser feita é que como seu companheiro

não deixou um testamento, os bens que ele adquiriu antes da relação ou os que ele tenha recebido como herança são da filha dele, ou seja, não entrarão em discussão na justiça. A justiça brasileira tem adotado duas formas de resolver a sucessão de bens em relações homoafetivas.

você deverá apresentar provas de que deu suporte financeiro na sua relação – ou de forma indireta - pela reunião de diversos elementos que compõem a vida do casal, como fotos, cartas e que comprovem sua parcela de auxilio no estabelecimento da relação.

Resolução Conservadora A primeira forma é mais utilizada e ocorre quando o juiz considera a relação homoafetiva como uma sociedade de fato. Esse conceito considera que a relação homossexual funcionaria como uma empresa e que com dissolução dessa sociedade a riqueza produzida por ela. O grande problema dessa alternativa é que geralmente os bens encontram-se apenas no nome de um dos companheiros. Se a relação homoafetiva é vista pelos Tribunais como uma “sociedade de fato” (como se fosse uma sociedade comercial), não há que se falar em sucessão, pois os “sócios” não são herdeiros uns dos outros Os juízes aceitam duas maneiras de se comprovar a contribuição na relação: a contribuição direta e a contribuição indireta. Na primeira maneira, o juiz determina que a parte interessada em receber os bens, nesse caso você, deve provar que contribuiu seja com dinheiro ou com imóveis, por exemplo. Os juízes têm entendido que a contribuição indireta é qualquer ajuda,que não seja financeira,mas que, contribua para existência de um “esforço comum” entre os companheiros. O suporte espiritual, o afeto mútuo e o trabalho doméstico são exemplos de contribuição indireta. Então, João, caso o juiz que “pegue” seu caso siga a maioria dos processos ele irá solicitar que você prove que ajudou na constituição do patrimônio. Essa comprovação ou deverá ser feita de forma direta -

Solução Vanguardista João deu para perceber que a lei não está no mesmo compasso que a sociedade e por isso alguns juízes tem tentado um uso diferente da lei até que seja feita uma legislação melhor. Esses juízes utilizam a lei para fazer uma analogia entre as relações homoafetivas e as uniões estáveis, as quais são definidas por lei como a convivência pública, contínua, duradoura, entre homem e mulher, com o objetivo de constituição de família. Já a união homoafetiva implica uma situação representativa de entidade familiar, quando decorrente de convivência duradoura, pública e contínua, porque o princípio da não discriminação afasta a limitação de tal união seja somente homem e mulher. As opiniões ficam bastante dividas, quando a expressão “entre homem e mulher” entra em discussão; aqueles que são à favor da analogia dizem que seria discriminação não ampliar tal conceito às relações homoafetivas , porque iria contra os princípios da Igualdade e da Dignidade humana, que estão presentes na Constituição Federal. Mas mesmo quando a analogia união estável x união homoafetiva é utilizada, os homossexuais ficam atrás em direitos em relação aos heterossexuais. Em muitos casos, aceita-se apenas a condição de meação e não a de herança. A distinção entre meação e herança fica mais clara, quando exista prévia separação dos companheiros ocorre ainda em vida. Desde que eles

tenham adquirido patrimônio durante a convivência, a divisão correspondente é feita de acordo com a participação de cada um na aquisição. Caso essa participação seja igual, divide-se igualmente; isso é a meação. O mesmo ocorre na distribuição dos bens depois da morte: primeiro, a meação; depois, o que sobra dessa divisão é que constitui a herança. E sua destinação, não se dá em favor do companheiro sobrevivente, mas sim dos herdeiros legítimos ( filhos e pais) ou que estão no testamento. A segunda opção para o seu caso é o juiz fazer uma analogia entre a sua relação e uma relação estável tradicional. Nessa situação, os seus bens podem ser divididos segundo a meação, onde os seus bens serão divididos de acordo com sua participação na construção deles. Resposta João é difícil dizer qual será o desfecho de seu caso, mas não desanime, pois a justiça brasileira tem avançado muito para corrigir as distorções entre a lei e realidade. Por exemplo, o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Superior Tribunal de Justiça (STJ) julgou que os homossexuais também têm direito de por seu companheiro com dependente no plano de saúde. No Distrito Federal, o Tribunal de Justiça decidiu que um pintor tem direito à pensão deixada pelo seu companheiro, que era militar e a qual iria integralmente para filha do militar, que veio de uma relação anterior à do pintor. Você tem direitos sobre o que você e seu companheiro conquistaram na relação de vocês, lute por eles. Contatos úteis Defensoria Pública do Distrito Federal - Telefone: 3961-4739 http://www.defensoria.df.gov.br/


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A Anistia e as limitações prévias à Constituição Marcelo D. Torelly

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efetividade de uma Constituição não é um fato dado, depende de uma complexa série de relações entre as prescrições normativas nela contidas, sua legítima formulação, e a relação que guardam com os valores de uma sociedade. São longevas as constituições que conseguem, sem perder seu conteúdo norteador, renovarem-se pela interpretação e mesmo por reformas, que re-traduzem constantemente os consensos sociais e os objetivos de um povo. Isso gera uma constatação paradoxal, pois conservam-se aquelas constituições que mudam no tempo (num chavão historicista: “evoluem”), num delicado equilíbrio entre aquilo que se deve mudar e aquilo que mudar não se pode, para garantir que o “ordenamento” legal não transforme-se em “engessamento” social. O conservadorismo desempenha, neste contexto, um papel vital, pois é da dialética de sua (boa) superação que surgirão os avanços capitais da sociedade, numa hermenêutica sobre o que queremos conservar e o que queremos superar. As constituições latino-americanas recentes encontram em seus processos de leitura uma espécie de “limitação apriorística”, que pretende impor-se para além do próprio Poder Constituinte, limitando não apenas a feitura da Constituição, como também sua futura interpretação. No caso brasileiro, a gênese da limitação apriorística à Constituição e a sua capacidade de produzir efeitos (leia-se: concretizarse) surge em 1979, quando um Congresso Nacional com alguns membros biônicos e outros de legitimidade questionável, cercado por homens armados, aprovou um projeto de anistia enviado pelo governo militar, inaugurando o processo de abertura que culminaria em uma nova constituição quase dez anos depois. Nunca é demais referir que a sociedade demandava uma anistia “ampla, geral e irrestrita”, mas que o Congresso Na-

cional rejeitou o projeto substitutivo com tal bandeira, estabelecendo uma anistia parcial, limitada e bastante focal: anistiava crimes eleitorais, políticos e os a estes conexos – exclusos os “crimes de sangue”, como os homícidios. Lançava-se aí uma limitação apriorística, uma barreira capaz de imporse a qualquer outra norma ou valor do ordenamento jurídico em todo o período futuro: o pacto que permite o início de um longo processo de abertura democrática, firmado na “casa do povo” por seus “representantes”, colocara fim a um período de violência recíproca, selando os fatos com o esquecimento que tornaria o futuro da Nação possível – e é apenas isso que deveria ser lembrado. O esquecimento seletivo produziu resultados hermenêuticos interes-

santes. Lembrando-se apenas da importância de esquecer, a lei de anistia foi usada em 1981, dois anos após sua edição, no episódio Rio-Centro para absolver agentes públicos que planejaram um atentado, a ser imputado “aos comunistas”, de modo a demonstrar que os grupos armados seguiam na ativa. Igualmente, na medida em que se tornavam impossíveis de esconder episódios de tortura e assassinatos praticados durante o regime de exceção – negados nos mais diversos fóruns no período que antecedeu a lei de 1979 –, pode-se, prontamente, mesmo que ex post facto, estabelecer a tese de que a anistia “fora para os dois lados”, anistiando em concreto aos perseguidos políticos mas, também, em nome da pacificação nacional, anistiando em abstrato aos

agentes públicos que desviaram-se da própria legalidade do regime de exceção. Numa versão similar, embora menos bem elaborada filosoficamente, a aquela apresentada após a anistia da Guerra Civil Espanhola e da ditadura de Franco, quando formulou-se o princípio da eqüidistância, assegurando igual tratamento a franquistas e republicanos para fins de anistia, abstraindo-se tanto as diferenças materiais existentes entre os grupos, quanto o fato de que o grupo vitorioso – que instalou uma ditadura – havia usado o Estado para perseguir, processar e punir ilegitimamente aos vencidos in concreto, enquanto os vencedores jamais foram sequer identificados, porquanto anistiados in abstrato. Em ambos os casos parte-se do pressuposto que, em dada conjuntura

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histórica, dois grupos políticos antagonizaram-se fortemente, tomaram as armas e foram à luta. A paz nacional, após tão severas conturbações, depende que se esqueçam esses fatos para seguir em frente, e o tratamento dado a um “lado” deverá ser idêntico ao dado ao outro, sob pela de estabelecer-se um uso político da memória com fins de revanche. Nessa leitura, que busca conservar o esquecimento seletivo, o uso político da memória é um fim escuso que deve ser evitado! Todo o conservador teme mudanças por desconhecer seus efeitos, e, portanto, vincula-se a um objeto cujo seu fetiche é, justamente, excluir dos efeitos do tempo. Esta caracterização é fundamental pois permite diferenciar o conservador, que teme, do reacionário, que conhece plenamente os efeitos da mudança e, por saber que ela desestabilizará seu sistema de poder, engaja-se contra ela por opção. Na hermenêutica constitucional proposta para a chamada à responsabilidade dos criminosos do regime de exceção, tal distinção torna-se basilar, pois permite diferenciar dois grupos de objeções: Os conservadores oporão que a lei de 1979 foi legítima em seu contexto e produziu efeitos, e se forem tais efeitos revistos, perder-se-á em segurança jurídica, além de se gerar uma ameaça a estabilidade política do país, fundada na transição. São argumentos formais e razoáveis. Já os reacionários, sempre mais atentos ao mundo, sabem que Argentina, Chile, Colômbia, Paraguai, Uruguai e Peru, num rápido passeio ilustrativo pela América Latina, já tiveram alguns de seus carrascos condenados, por decisões pátrias ou internacionais, sem perder o “equilíbrio democrático”, e que isso acontecerá invariavelmente também no caso brasileiro, submetido à jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos e desde a época da ditadura, signatário de diversos tratados de direito internacional que vedavam a anistia a crimes desta natureza. A estes o que preocupa não é a responsabilização dos torturadores, mas a quebra da limitação apriorística de leitura da Constituição, pois estes sabem que “não fazer uso político da história” é a melhor forma de usá-la politicamente para garantir que estruturas arcaicas de poder se mantenham incólumes, nas brumas do es-

quecimento imposto... O argumento destes é que, para punir aqueles que praticaram torturas, desaparecimentos forçados, homicídios e estupros (dentre outros crimes, pressupostamente políticos), teríamos de punir também aos “terroristas”, como bem recita o princípio da eqüidistância! Para que seja útil o conservadorismo precisa ser justificado, caso contrário encontra-se a hipótese posta no início desde texto – da necessidade de sua (boa) superação. Surge, portanto, a pergunta óbvia: o que pretende-se conservar ao dizer que a Constituição de 1988 e o Estado de Direito bem convivem com a autoanistia de crimes contra a humanidade por parte de um poder ilegítimo oriundo de um golpe de estado? A resposta à pergunta óbvia sói ser óbvia também: a impunidade e a percepção já de muito enraizada em alguns setores da sociedade brasileira que de a lei e a justiça aceitam gradações de aplicação de acordo com quem a elas se submete. A resposta a um conjunto de três objeções-chave, que sistematizam os “problemas” para a nova leitura trazidos por conservadores e reacionários serve para justificar (e legitimar) a tese de uma hermenêutica efetivamente acorde com a Constituição de 1988 e com a disciplina do Direito Internacional: Problema 1: Lei de Anistia de 1979 produziu seus efeitos no tempo, dentro de uma rígida legalidade – da qual podemos discordar, mas que era uma legalidade. A essa tese podemos chamar de cumprimento do devido processo legal, para usarmos termos hodiernos. Desconsiderando a própria negação por parte dos militares da existência de tortura e homicídio nas operações de “segurança nacional” à época dos debates legislativos que conduziram o país a anistia, bem como os compromissos internacionais firmados pelo Brasil que vedavam a anistia a este tipo de crimes. Tem-se ainda que o devido processo legal deve ser respeitado, o processo de anistia, para que seja válido, não pode ser abstrato. O argumento conservador da necessidade do devido processo é aceitável e justo, porém, se válida a auto-anistia àqueles que violaram direitos humanos de forma massiva em nome do Estado, precisamos (I) identificar os delitos dos agentes de estado, (II) abrir inquéritos apuratórios de

responsabilidade, (III) processar os acusados, (IV) atribuir-lhes pena, para apenas então (V) anistiá-los. Do contrário, o que temos é impunidade, e explicitar este fato demonstra que o que sustenta a leitura conservadora não é o devido processo, mas sim o terror da verdade. Problema 2: A Lei de Anistia foi bi-lateral, “revogar” seus efeitos para um grupo necessariamente implicará na revogação de seus efeitos para todos. Essa tese, como já dito, ganha uma versão mais bem elaborada integrando o conteúdo do princípio da eqüidistância. Tal princípio usa-se do Direito para encobrir disfarçadamente a política. Faz parecerem simétricos dois lados que não são. Brevemente: de um lado estavam agentes de um golpe de estado que rompeu com a constituição posta derrubando um governo democraticamente eleito e, apropriando-se da máquina do estado, praticaram crimes contra seus cidadãos sem nenhum amparo jurídico legítimo ou não. De outro, estavam cidadãos insurgentes, que, mesmo se “criminosos”, deveriam sofrer no máximo a imposição da lei (como hoje se faz no Estado de Direito) e jamais a tortura, o desaparecimento forçado e a morte. Comparar os dois grupos, estendendo-lhes as mesmas prerrogativas, é similar a dizer que nazistas e judeus constituíam simplesmente duas forças em disputa durante o holocausto. Vale aqui não a eqüidistância, mas assimetria! Não são iguais os terroristas de estado e os resistentes (concorde-se ou não com suas causas). Problema 3: Por fim, já fora do plano eminentemente jurídico, mas sem dele se descolar de pleno, temos o problema da estabilidade política.

Afinal, certamente não seria razoável uma interpretação jurídica que botasse abaixo as instituições democráticas de um país inteiro! Somente democracias consolidadas são capazes de olhar para seu passado, superá-lo e com ele aprender, sem medo que a reflexão gere novas rupturas. É desta noção que parte a idéia de imprescritibilidade. Alguns crimes, dada a sua natureza, só podem ser cometidos em contextos de absoluta ausência de um Estado de Direito, e esses crimes só podem receber apuração e justiça na plenitude da refundação democrática. Se o Brasil não é capaz de julgar seus crimes de exceção – praticados não contra cidadãos, mas contra a humanidade – e reconhecer seus erros, deixando amadurecer suas instituições, é porque o Brasil ainda não é uma república consolidada enquanto “democracia de direito”, e neste caso ainda mais que julgar os delitos, o que precisaríamos é reformar essas instituições, para que se enquadrassem na Constituição e se tornassem democráticas. Lidar com o passado é algo que todas as sociedades fazem como fato e as democracias como dever. O passado é as vezes algo a conservar, as vezes algo a superar. É fundamental aprender a dialogar com o conservadorismo e superar o reacionarismo, aprendendo a mudar conservando, sob pena de vivermos um “Estado de Direito” interpretado a luz não da Constituição, mas dos sensos comuns do autoritarismo. Essa superação é tarefa central de um Estado que se pretende Democrático de Direito. Espera-se de nossas instituições já estarem, passados vinte anos da constituinte, aptas a empreenderem tal tarefa.


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OBSERVATÓRIO DO MINISTÉRIO PÚBLICO

NOTA DO CORRESPONDENTE

Jurisdição constitucional e legitimidade Antonio Carlos Alpino Bigonha

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ngana-se quem atribui aos temperamentos dos ministros Gilmar Mendes e Joaquim Barbosa os ânimos acirrados de recente sessão plenária no Supremo Tribunal Federal. A nova feição do controle de constitucionalidade promovida pelos juristas brasileiros atribui ao STF protagonismo que tende a atrair para a Corte as contradições da sociedade civil, inerentes ao processo político, para as quais os tribunais não estão legitimados. O parlamento estruturou-se como sofisticado mecanismo da democracia para apaziguar as diferenças inerentes às vontades. Não é por acaso que o processo parlamentar estabelece-se por meio de comissões, representação partidária e bicameralismo, de modo que as contradições sejam conciliadas na promulgação da lei. A exigência de quorum, a estabelecer medida de consenso em torno da proposição, institucionaliza o processo de decisão, o que tem como corolário mitigar o não acatamento de algumas sugestões. Desse modo, ao parlamento cabe constatar as vontades vigentes na sociedade. A vontade ganha representação com a proposição apresentada pelo partido. Como representante de parte da sociedade, o partido apresenta sua colaboração ao debate. Essa colaboração recebe o nome de proposição. A fim de deixar de ser mera proposição e se converter em lei, a proposição precisa ganhar no Parlamento o assentimento dos demais partidos, de modo a se transformar em algo capaz de obter a aprovação das demais partes. É quando o projeto de lei, antes circunscrito a uma fração da sociedade, ganha contornos universais. É assim que filosofia política estabelece a passagem da vontade à lei (razão), sendo a vontade obra das partes e a lei, do consenso. Esse processo por si só sofisticado ganha legitimidade na medida em que representa, pelo voto, a sociedade. É assim que a democracia, com os Parlamentos, soluciona a intricada questão da representação, que por ser representação, nunca se

À beira do ridículo Fabio de Sá e Silva

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equipara à sociedade, razão pela qual a democracia é sempre aberta a modificações e a revisão daquilo que fora ordenado. Uma outra questão diz respeito à oportunidade política e jurídica surgida com a crise econômica mundial. Essa crise, produzida no centro do capitalismo, nos conduz a uma mudança de paradigma não apenas da economia, mas da definição dos papéis que cabem ao Estado desempenhar. A desconfiança ante a atividade estatal se materializa pelo estabelecimento de marco jurídico que significava desconfiança, traduzida em termos jurídicos pela circunscrição da administração ao princípio da legalidade.

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A legalidade veio substituir a presunção de legitimidade dos atos da administração. Com a legalidade, a administração passa a reger-se por uma lógica daquilo que aconteceu, submetendo a inovação pela mesmice. Cabe ao Executivo e ao Legislativo voltar-se para os desafios e para a constituição da realidade. Logo, a exigência de constituição da realidade é incompatível com a equiparação dos atos da administração ao que já passou. Os atos do Estado, por decorrerem da soberana manifestação do cidadão, é presumivelmente legítimo. É essa legitimidade que permite que o Estado projete a esperança de dias melhores. A crise econômica mundial gerou uma reviravolta na concepção das

estruturas do Estado, na relação entre Estado e sociedade e em seu paradigma. No cenário mundial, a desconfiança antes circunscrita ao Estado muda de lugar. Agora, é a atividade econômica, a atividade privada que se vê envolta em desconfiança e a legitimidade passa a ser própria à atividade estatal. Desse modo, a crise econômica mundial confere ao Estado a missão de estruturar de um modo novo as relações sociais, jurídicas e econômicas e essas questões somente podem ser realizadas se a legitimidade que decorre do voto for traduzida em marco jurídico apropriado, isto é, a administração pública é a instituição legítima para constituir o futuro.

ois episódios recentes na mídia dos Estados Unidos dão a medida de como anda o conservadorismo neste país. O primeiro deles foi o levante dos conservadores (em termos fiscais) contra as tentativas de Obama de estabelecer um orçamento robusto, capaz de permitir não apenas o enfrentamento da crise econômica mas também o avanço de outras propostas mais ousadas (e por isso mesmo bem menos consensuais), tais como a universalização do seguro-saúde. Como no tempo em que vivemos a não-intervenção do Estado na vida social faz pouco sentido para as pessoas e mesmo para economistas que defendem o livre mercado (mas reconhecem que diante de falhas de mercado a atividade regulatória se torna necessária), os conservadores resolveram apelar para a simbologia. Começaram a organizar dezenas de “festas do chá” pelo país, recordando o tempo no qual os pais-fundadores se rebelaram contra a extorsão britânica e resolveram lançar as bases de uma ordem jurídica e política orientada à proteção “da vida, da liberdade e da busca pela felicidade”. Mais que isso: lançaram uma campanha pedindo aos cidadãos para que enviassem pelo correio saquinhos de chá aos parlamentares, como um recado de que iriam resistir ao ímpeto governamental de expropriar o fruto do seu trabalho. E, abusando da flexibilidade lingüística do inglês, criaram um novo verbo (to teabag) para batizar o movimento (Teabag Obama, Teabag Washington, Teabag Congress e por aí vai). A brincadeira durou pouco. É que antes mesmo desta iniciativa conservadora, o verbo to teabag já representava uma gíria bastante popular nos EUA , cujo conteúdo (alusivo a um certo ato sexual) o leitor pode conferir por si mesmo no site www.urbandictionary.com. A mídia mais liberal não demorou para tirar um grande sarro dos conservadores, denunciando a imensa desconexão que existe entre esse

grupo e a maioria dos cidadãos americanos que vivem nas grandes cidades (onde as gírias e as desigualdades são mais presentes que nos ricos subúrbios nos quais provavelmente moram os integrantes do “movimento” do teabagging). Poucos dias depois foi o status jurídico da relação entre pessoas de mesmo sexo que acabou entrando na mira (desta vez dos chamados conservadores sociais). Tanto por iniciativa de Tribunais quanto por iniciativa de legisladores, um número cada vez maior de Estados vem admitindo a possibilidade de uniões civis e até mesmo casamento entre homossexuais. Um ponto alto desse movimento foi alcançado há poucos meses, quando a Suprema Corte de Iowa (um Estado de perfil rural e, por conta disso, de orientação bastante conservadora) julgou inconstitucional uma lei que proibia o casamento gay. Tudo isso traz dois compreensíveis temores aos conservadores. De um lado, o temor de que se desencadeie um efeito cascata entre os Estados, no sentido de que cada vitória específica gere mais mobilização e reduza a resistência dos políticos e Juízes nos Estados vizinhos em relação ao tema. De outro lado, o temor de que o aumento do contraste entre Estados que permitem e Estados que proíbem o casamento homossexual torne este assunto nacionalmente significativo e obrigue a Suprema Corte do país a se posicionar a respeito dele, ao invés de considerá-lo prerrogativa individual de cada Estado como até agora os Ministros têm feito. Diante dessas “ameaças,” dá até prá entender o tom acuado que os conservadores da Organização Nacional pelo Casamento acabaram por adotar na campanha de mídia que estão lançando em todo o país. O vídeo produzido por essa ONG conservadora exibe pessoas dizendo que “há uma tempestade sendo formada, com nuvens sombrias e fortes trovoadas” (o modo como aludem ao casamento gay). Lembrando o episódio Regina Duarte nas eleições

de 2002, uma das atoras prossegue: “Eu tenho medo”. Outra diz: “Minha liberdade será retirada”. E dois outros se revezam na conclusão: “A tempestade está chegando” ... “Mas há esperança. Uma coalizão de pessoas de todos os credos e cores está sendo formada para defender o casamento”. Novamente, a estratégia acabou soando ridícula. O comediante Stephen Colbert, do site www.colbertnation.com, tratou logo de fazer uma paródia com o vídeo, criando piadas hilárias a partir do mote da tempestade e das várias expressões amedrontadoras utilizadas na produção original. “Você sabia que se o casamento homossexual for aprovado pelos 50 Estados, o casamento heterossexual se tornará ilegal?,” brincava uma das atoras que participaram do vídeo-paródia de Colbert. O mais interessante disso tudo é pensar no que permite ridicularizar tão facilmente as recentes campanhas conservadoras. Um dos fatores pode ser, evidentemente, o tempo. Tanto a luta por ajuste fiscal quanto a oposição ao casamento homossexual parecem um pouco “fora de lugar” numa sociedade que está rediscutindo as suas prioridades depois das muitas crises herdadas do governo Bush (embora gestadas desde Reagan). Outro pode ser o declínio dos republicanos no Executivo e no Legislativo, o que retira dos conservadores os canais simbólicos e administrativos de que dispunham para fazer avançar determinados pontos de sua agenda, como a oposição ao aborto e vários direitos civis. Sem contar com a maioria nas instituições governamentais e com a figura influente do Presidente, os conservadores são obrigados a uma maior exposição pública e a formular argumentos convincentes em favor de suas bandeiras. Uma tarefa em que, obviamente, têm falhado. O problema é que esses momentos de completa transparência, nos quais grandes questões sobre o direito e a cidadania podem ser amplamente discutidas num contexto de “esfera pública,” não são neces-

sariamente uma constante em sociedades motivadas pelo consumo e articuladas antes de tudo por noções de mercado (cujo foco está no indivíduo). A eleição de Obama parece ter catalisado um processo pelo qual a lógica do mercado se deixa substituir temporariamente pela lógica da polis, mostrando que mesmo a maior democracia do mundo ainda precisa se tornar mais democrática. Resta saber se a sociedade americana saberá preservar esse processo e enfrentar os riscos que ele contém, dos quais o debate sobre a tortura em Abu-Ghraib já dá um instigante exemplo. Mas esta é mais uma daquelas histórias que fica prá outra vez. A campanha pelo teabagging mostra a imensa desconexão que existe entre os conservadores e a maioria dos cidadãos americanos que vivem nas grandes cidades (onde as gírias e as desigualdades são mais presentes que nos ricos subúrbios nos quais provavelmente moram os integrantes do “movimento”). Lembrando o episódio Regina Duarte nas eleições de 2002, a Organização Nacional pelo Casamento reage ao avanço do casamento homossexual dizendo: “Eu tenho medo”. O problema é que momentos de transparência, no qual grandes questões sobre o direito e a cidadania são tematizadas numa esfera pública, não são necessariamente uma constante em uma sociedade motivada pelo consumo e articulada por noções de mercado.


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CONSTITUIÇÃO & DEMOCRACIA | OUTUBRO DE 2009

O fim do pensamento único

n FRONTEX: a mão (in)visível da repressão ANO III Nº 33

Boaventura de Sousa Santos

Outubro de 2009

N

o momento em que escrevo, os portugueses dispõem de duas visões muito diferentes sobre como sair da crise em que nos encontramos. De um lado, o “manifesto dos 28” e, do outro, o “manifesto dos 52”. Para o primeiro, a solução é o limite do endividamento, o que implica uma drástica redução do investimento público, fonte de muitos males, sendo os maiores o TGV, o novo aeroporto e as auto-estradas. Para o segundo, a prioridade é a promoção do emprego e a capacitação econômica, o que implica um forte investimento público (não necessariamente nos projetos referidos) pois só o Estado dispõe de instrumentos para desencadear medidas que minimizem os riscos sociais e políticos da crise e preparem o país para a pós-crise. As diferenças entre os dois documentos são, antes de tudo, “genealógicas”. O primeiro é subscrito por economistas, a grande maioria dos quais ocupou cargos políticos nos últimos quinze anos, e colaborou na promoção da ortodoxia neoliberal que nos conduziu à crise. O segundo é subscrito por economistas e cientistas sociais que, ao longo dos últimos quinze anos, tomaram posições públicas contra a política econômica dominante e advertiram contra os riscos que decorreriam dela. À partida há, pois, uma questão de credibilidade: como podem os primeiros estar tão seguros do seu saber técnico se as receitas que propõem, descontada a cosmética, são as mesmas que nos conduziram ao buraco em que nos encontramos e em cuja aplicação participaram com tanto desvelo político? Mas as diferenças entre os dois documentos são mais profundas que a descrição acima sugere. Separa-os concepções distintas da economia, da sociedade e da política. Para o manifesto dos 28, a ciência econômica não é uma ciência social; é um conjunto de teorias e técnicas neutras a que os cidadãos devem obediência. Pode impor-lhes sacrifícios dolorosos — perda de emprego ou da casa, queda abrupta na pobreza, trabalho sem direitos, inse-

n Neoconservadorismo: fantasmas voltam a incomodar

C&D Constituição & Democracia

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A E M A

gurança quanto ao futuro das pensões construídas com o seu próprio dinheiro — desde que isso contribua para garantir o bom funcionamento da economia entendida como a expansão dos mercados e a lucratividade das empresas. O Estado deve limitar-se a garantir que assim aconteça, não transformando o bemestar social em objectivo seu, pois mesmo que o quisesse falharia, dada a sua inerente ineficiência. Pelo contrário, para o manifesto dos 52, a economia está ao serviço dos cidadãos e não estes ao serviço dela. Os mercados devem ser regulados para que a criação de riqueza social se não transforme em motor de injustiça social. Enquanto o bilionário Américo Amorim não terá

de cortar nas despesas do supermercado apesar de ter perdido montantes astronômicos da sua imensa riqueza, o mesmo não ocorrerá com o trabalhador a quem o desemprego privou de umas magras centenas de euros. Cabe ao Estado garantir a coesão social, acionando mecanismos de regulação e de investimento para que a competitividade econômica cresça com a proteção social. Para isso, o Estado tem de ser mais democrático e a justiça mais eficaz na luta contra a corrupção. É de saudar que haja opções e que os portugueses disponham de conhecimento para avaliar as consequências de cada uma delas. Em tempos eleitorais é importante que saibam que não há “uma única solu-

ção possível para sair da crise”. Há várias e estas, sem deixarem de ser econômicas, são sobretudo sociais e políticas. Contudo, o pluralismo, para ser eficaz, tem de ser equilibrado em sua publicidade. Anoto, sem surpresa, que apesar de vários jornais de referência terem dado voz equilibrada aos dois manifestos, o mesmo não sucedeu com o Público, cujo diretor nos brindou com um comentário ideológico e auto-desqualificante contra o manifesto dos 52. Este proselitismo conservador tem muitos antecedentes — quem não se lembra da grosseira apologia da invasão do Iraque e da demonização de todos os que se lhe opunham? — e talvez por isso este jornal tenha os dias contados enquanto jornal de referência.

n Entrevista: Paulo Abrão

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S A D ÇA


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