Contos do Gin Tonic

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Contos do

Gin Tonic Texto Mário - Henrique Leiria – Ilust. Raquel Botelho





Contos do

Gin Tonic


FICHA TÉCNICA Titulo: Contos do Gin-Tonic Autor: Mário-Henrique Leiria 1.ª edição: Editorial Estampa, 1973 2.ª edição: Editorial Estampa, 1976 Capa: Carlos António de Oliveira e Sousa Colecção: Ficções n.º 14 Impressão e Acabamento: Gráfica Manuel Barbosa & Filhos, Lda. © Copyright: Mário-Henrique Leiria Editorial Estampa, Lda. Lisboa, para a língua portuguesa Depósito Legal n.º 28.303/89 ISBN 972-33-0822-3


Contos do

Gin Tonic Texto Mário - Henrique Leiria – Ilust. Raquel Botelho



Índice Pequena nota à segunda edição 7 A verruga 9 Gin sem tónica 10 Livre, cristã e ocidental 11 Carreirismo 14 Jogos olímpicos 15 A estratégia 17 Fc, o banho e não só 18 O menino e o caixote 20 Cegarrega para crianças 21 Facilidade 22 Discussão 23 Negócios ferroviários 24 Aviso urgente 26 O losango e a serpente 28 Julgamento definitivo 32 Ida sem volta 34 Meu sósia, o general 36 Última ceia 45 Xeque-mate 46 Babelite ou segismondo o babélico 48 Cinegética 54 Tropicália 55 Torah 58 Joãozinho volta a casa 59 Intervalo 64 Felina 65 Entre o tigre e o eufrates 67 Noivado 69 Desabamento 70 Sejam bem-vindos 72 Casamento 73 Regresso 74 Gulodice 75 Indústria caseira 77 Maternidade 79 Medicina tropical 80 A viagem, enfim 81 A velha e as coisas 84

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Hitler? Não sei quem é 86 Cegarrega para crianças 90 Surpresas da pesca 91 A sombra 92 Kgb ataca ao entardecer 95 História exemplar 98 O bode imarcescível 99 Questão de terras 102 O discurso 103 Jornalismo 104 Repreensão 105 Explicação 106 Pôr-do-sol 108 Profissão é profissão 110 Shalom e vou-me embora 111 O que dizem os teus olhos 113 Engano 114 Cidade 115 Evocação 120 A perna e os outros 121 Cessar-fogo 122


PEQUENA NOTA À SEGUNDA EDIÇÃO

Quando o autor grafou estes Contos do Gin-Tonic estava-se em meio do ano de 1973. Imperavam na governação nacional um barrigudinho e um outro com óculos. Foram retirados em Abril de 1974, por sinal que com bastante benevolência. Os contos ficaram e, entretanto, várias coisas se passaram.O autor pulou de gozo (simbolicamente, claro) e parou de escrever. Havia mais que fazer. Agora pediram-lhe a segunda edição. Ela aqui está. Neste fim de Julho de 1976 o autor deixou de pular. Não altera qualquer palavra à primeira edição, nada vê que seja de alterar, sente-se em 1973. O de óculos e o barrigudinho cá estão. De novo. Coisas de fantasmas, dirá alguém. O autor não acredita em fantasmas, pelo menos em princípio. Mas parece que existem, embora com outro nome. Vem agora à memória do autor, não se sabe bem porquê, a frase inicial de um discurso. Reza assim: A revolução não é um estado de coisas permanentes e não podemos permitir-lhe que assim queira caminhar. A corrente da revolução desencadeada deve ser conduzida pelo canal da evolução. Tudo nos levaria a crer que é uma frase recente, muito recente. Realmente, é de 6 de Julho. 6 de Julho de 1933 Adolfo Hitler na Chancelaria do Reich, no seu discurso aos reichstatthalter nacionais e socialistas, todos perfilados e impecavelmente fardados. Ficariam conhecidos na generalidade por NAZIS. E foi o que se viu. O autor despede-se. Bastante chateado, como de costume, e razoavelmente atabafado. No entanto, resolveu não desistir. Nunca desistir. Fins de Julho de 1976.



A VERRUGA

Estava eu sentado lá em casa, quando ouvi a minha tia dizer uff! Suspeitei logo que havia coisa. Fui ver. Tinha-lhe nascido uma verruga na orelha. Não me pareceu normal. Procurei imediatamente o meu tio, que é brigadeiro. – Vamos falar com o ministro – disse o meu tio. Fomos. O ministro, em princípio, não quis acreditar. Não podia ser, aquilo não era normal. Claro que não era normal mas eu tinha visto, e foi o que lhe disse. – Nesse caso, o melhor será fazer como se não soubéssemos de nada – propôs o ministro. – O senhor já pensou o que isso pode causar? – continuou, ansioso. – Começam por aí a inquirir, a verruga complica-se, os anarquistas, sempre prontos para a insídia, aproveitam o momento, a greve surge, as coisas atrapalham-se, intervenção das Potências, a guerra, que sei eu? Não, não digamos a ninguém. Guardamos segredo, o Estado o compensará. Olhei para o meu tio, brigadeiro como já tive oportunidade de fazer notar, e vi que realmente o caso parecia grave. No entanto, duvidando um pouco, inquiri ao ministro: – A coisa é assim tão importante, Excelência? – Mais que isso, meu amigo, mais que isso. A pátria está em tremendo perigo. Senti que era a hora da decisão. – Se a pátria periga, não desejo a mínima recompensa. Comigo é assim. Pela pátria, tudo. Calarei. Calámos. Dias depois a minha tia recebia uma carta escrita pelo próprio imperador. Agradecendo. Louvando. A carta ainda lá está. A verruga também. Quanto a mim, continuo sentado lá em casa. Calado.

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GIN SEM TÓNICA

Uma garrafa de gin estava a preocupar o pescador a garoupa e o rodovalho não tinham aparecido pró jantar que fazer? telefonou ao ministro Da pesca e do Trabalho mas o ministro estava a trabalhar na cama com a mulher foi então que a garrafa de gin sugeriu discretamente porque não telefonar ao presidente? telefonaram o presidente da nação estava em acção na cama com a mulher nessa altura até que enfim encontraram a solução o pescador foi para a cama com a garrafa de gin


LIVRE, CRISTÃ E OCIDENTAL

A Galeria Bernardette fazia um negócio excelente e o senhor Balakian tinha todas as razões para estar satisfeito. Era raro o dia em que não vendia uma meia dúzia de frutas, quase sempre dos mais procurados autores. Nesse mesmo momento acabava do vender uma lindíssima banana com a assinatura de Tibor Gayo. Uma banana Gayo realmente excepcional, com aquele alegre colorido tão poderosamente abstracto que caracterizava toda a fruta do artista. A verdade é que a melhor sociedade, todos os apreciadores da capital eram seus clientes. Com frequência se ouviam comentários encomiásticos ás magníficas frutas dos jantares mais apurados. Um banqueiro tinha que resolver grave problema de finança e era certo e sabido: no fim do repasto surgia a fruta com excelentes assinaturas. Com o ministro o mesmo: embaixador presente à mesa e pronto, lá estavam duas ou três peras Capristano naquele estilo forte e seguro do pintor. Realmente Capristano era caro mas ninguém discutia o preço. Valia o vendia-se bem. Pois se ainda há dias me dizia o doutor Lesoto, o conhecido critico: – Meu caro, ontem, em casa do Gualtério, havia uma maçã e dois abrunhos de Júlia Jardim que eram um regalo. Do melhor que lhe conheço, estou-lhe a dizer. E tão maduros! Uma delícia. Então aconteceu o Inesperado. Estava o senhor Balakian a pulir uma para Terensky quando lhe entra pela Galeria uma alta patente do exército, da Casa Militar do Ducado. Explicou ao que vinha, com exactidão militar. Sua Excelência dava. no dia seguinte. uma pequena recepção a uma delegação de deputados em visita ao pais. Muito bem. Sua Excelência necessitava de uma série de obras para a sobremesa, das mais reputadas Eram sessenta talhares. Logo no mínimo seriam sessenta peças escolhidas. O preço não interessava, era só o senhor Balakian apresentar a conta ao erário.

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Posto isto, o marechal retirou-se, avisando que mandaria pela fruta no dia seguinte, às seis da tarde. O senhor Balakian ficou tremendamente preocupado. Nunca tinha grande acervo, não se podia conservar excessivamente a maioria das obras, sorvavam com enorme rapidez, era capital perdido. Deu um balanço ao que havia. Uma maçã e duas peras Capristiano, do melhor estilo, sóbrias profundas. Sete bananas Tibor Gayo, ultimamente a procura de banana baixara um pouco. Um ananás realmente extraordinário de Ferdinand, de um colorido assombroso nos múltiplos losangos. Meia dúzia de ameixas sortidas, com a alegria de Júlia Jardim, a imaginação metafísica de Carlos Clareie e a dignidade antiga de Mestre Rovira. Três melões casca de carvalho com motivos folclóricos e não assinados, coisa própria para estrangeiros e, finalmente, uma pera e três laranjas de Terensky. Fulgurantes de abstracção. Feitas as contas, eram vinte a uma obras, embora se pudesse considerar o ananás e os melões como obras não unitárias. Bem vistas as coisas, digamos que podiam corresponder a quarenta talheres. Era o diabo, os convivas eram sessenta, conforme informara o marechal da Casa Militar. Uma encrenca, essas coisas não podem ser feitas assim de repente, arreliava-se o senhor Balakian. Passou a tarde a telefonar para os artistas mais conceituados, mas nada. Uns não tinham tempo, outros faltava-lhes fruta apropriada, outros ainda estavam ocupados com peças de grande porte, como abóboras, de factura exigente e demorada. À noite, desesperado, mandou-me um recado de aflição pela Remualda da caixa que aparece umas vezes por outras cà por casa. Pensei um pouco, disso à Remualda que se pusesse à vontade que eu não me demorava e atirei-me para o telefone do Praxis, logo ali em frente. Enquanto sorvia um gin, liguei para o Militão Cuba, sabem, que vive em Balmoral. Ora. como também sabem com certeza. Balmoral é uma vila famosa pelos fenómenos constantes: já deu um nabo do sete quilos, um pianista búlgaro de dezoito meses e um frango com três pernas, isto que me lembre agora. O Militão estava em casa e disse-me, eficaz como sempre, que lhe parecia poder solucionar a coisa. Eu que lhe aparecesse por lá logo de manha e então se veria Não quis explicar mais nada.


Passei a noite preocupado, embora não muito e, mal foi dia, corri à Galeria a comunicar o facto ao senhor Balakian. Aporrinhado como estava, viu ali a salvação e disse-me que usasse o seu helicóptero, para ser mais rápido. As onze e meia estava de volta. O Militão arranjara tudo, com o mais recente fenómeno de Balmoral: uma tremenda melancia de vinte e sete quilos, de um verde radioso! Uma superfície ideal para a pintura paisagística, uma abundância excelente para os convivas que restavam. Mas havia que acabar a obra. Tinha de ser rápido. O senhor Balakian, já de certa idade e com aquela complicação ás costas, não tinha cabeça para nada. Lembrei-lhe o Fujimoto, no seu clássico paisagismo asiático, rápido na execução. Era o indicado, se estivesse livre. Isso mesmo, o Fujimoto, concordou o senhor Balakian e cedeu-me o carro, logo ali. para me atirar ao assunto. Fui e vim em meia hora, numa loucura de volante, com Fujimoto, as seringas de Pravaz. os pincéis fininhos e as lacas apropriadas. Prometemos-lhe tudo e pusemo-lo numa azáfama criadora. Ao quarto para as seis a paisagem oriental, exacta, delicada, de suave colorido, envolvia a enorme esfera verde. Na verdade, um dos melhores Fujimoto que me fora dado ver, se não o melhor. Às seis a fruta era entregue ao enviado especial da Casa Militar. Dias depois o senhor Balakian recebia do erário o cheque magnânimo e, cerca de um mês após a recepção. Sua Excelência agraciava-o com o colar do Mérito Agrícola Cultural. A melancia fora um êxito completo, o país saíra-se airosamente, com elogios unâni mes dos deputados estrangeiros maravilhados. Quanto a mim. recebi três nêsperas que o senhor Balakian me ofereceu com eterna gratidão. Três nêsperas excepcionais, devo dizer, com originalíssimas colagens do Senegal Júnior. Souberam-me muito bem.

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CARREIRISMO

Após ter surripiado por três vezes a compota da despensa, seu pai admoestou-o. Depois de ter roubado a caixa do senhor Esteves da mercearia da esquina, seu pai pô-lo na rua. Voltou passados vinte e dois anos, com chofér fardado. Era Director Geral das Polícias. Seu pai teve o enfarte.


JOGOS OLÍMPICOS

Olímpia Criscraft pegou rápidamente no disco e, com excelente precisão, lançou-o à cara do marido. Olímpia era assim, quando se irritava. O primeiro disco que estivesse à mão. Fora a Sinfonia dos Salmos mas também podiam ter sido os Gitanillos de Cadiz ou mesmo um clássico Bill Haley e seus Cometas. LP, que Olímpia não lançava coisas pequenas. Apenas abria excepção para açucareiros e frascos de molho inglês. O marido, o professor Criscraft, engenheiro de som, não gostava daquilo. Era uma estragação imperdoável. Viviam bem, com alguns intervalos excitantes de exercício, já que Olímpia era jogadora. Formavam um casal unido, ambos interessados em discos, embora com conceito diferente acerca dos mesmos. O professor Criscraft entregava-se à pesquisa, ao apuramento do som, atingido realmente um nível excepcional dentro da especialidade. Quando a Olímpia, além de os ouvir atentamente , gostava de os lançar, vê-los ir com gentileza atravessando o espaço que sobrava entre ela e a cara do marido. Exercícios, como já disse. E também aquela exuberância que tanto a caracterizava, ao lado da calma imperturbável do esposo cientista. Fora o caso. Exuberância e irritação, ao ver o professor amodorrado no sofá, a fazer cálculos num papel e indiferente, asténico, perante a Clássica de Prokofiev que cantava e sorria, irónica, no estéreo. Praticando o exercício, ficaram de bem outra vez, com três discos a menos. Deu-se então o som incrível. Quem notou logo foi o professor engenheiro de som, como era de esperar. Olímpia, após os jogos, estava a recolher os restos e não deu por nada. – Parece-me estranho – pronunciou o professor Criscraft. – Nem por isso – retorquiu Olímpia – Afinal foram só três. – Não, não. É este som esquisito. Olímpia prestou atenção e, realmente, notou. Um silvo não agressivo, como uma almofada que apitasse com válvula de pressão.

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Foram à janela da sala, que dava para a noite e para o campo em repouso. Olharam para cima, como faz toda a gente quando há estrondos e apitos, e lá estava ele, a silvar docemente e a fulgurar intermitente, numa aparente velocidade rotativa alucinante. Um disco! – Não pode ser! – exclamou o engenheiro, habituado a vê-los e analisá-los na banca de trabalho. – É , é! – extasiou-se Olímpia, crente no voo e na música. Ficaram assim, num tempo parado, a olhar. O disco girava, rodopiava, brilhava, zumbia como quem roubou um cacho de uvas e aproximava-se. – Não, isto não é aceitável! – rebentou o doutor Criscraft. – E pode ser perigoso. – Fechou a janela com violência. – Essa coisa pode trazer por aí desastres irreparáveis. Catarro, bexigas, doenças venéreas já esquecidas, sabe-se lá! A decisão era ajuizada. Aquilo não era aceitável. Mas Olímpia não estava para decisões assim. Antes as bexigas, antes tudo do que a dúvida. – Eu vou ver lá fora. – Não vais. Nem pensar. É um perigo. Um atrevimento. Ficas aqui, já. Olímpia pegou na Clássica, olhou-a com certa saudade antecipada e lançou-a. Eficaz como sempre. O disco estava exactamente nos olhos do professor quando Olímpia bateu com a porta a rua. Correu pela relva, olhando o disco cantante que lá estava, num brilho feliz, pousado na terra. Abriu-se aquela portinha que já conhecemos dos filmes japoneses. Olímpia parava de correr, ficara a olhar, maravilhada e talvez à espera. Desceram três homenzinhos bem verdes. Aqueles que nos explicou Fredric Brown e nos confirmou Carlos Eurico da Costa há uns anos já, aquando da descida do disco lá no Norte. Deram uns passos até Olímpia. Não se sabe ainda o que disseram, mas parece que Olímpia sorriu, conforme conta o professor na sua visão pela janela. Dirigiram-se para a portinha, entraram todos e o disco foi-se. Agora os governos esperam ansiosamente o ultimato do Comando dos Homens Verdes. Aguarda-se a carta dirigida ao Chefe das Polícias. Que pretenderão em troca da raptada? Nixon? Breznev? Os dois? Ainda mais alguns? Será bom que isto se resolva. Olímpia faz-nos falta, não há ninguém como ela.


A ESTRATÉGIA

Vejamos perguntou o capitão como vai indo essa instrução? vai muito bem um caso lindo disse o sargento falando a contento ao capitão e veio a guerra então a instrução pôs o boné e entrou logo em acção como vai indo essa função? perguntou o general ao capitão vejamos expôs o capitão o importante sempre tenho dito e repito é levar a instrução avante e foi assim que acabada a guerra o capitão ficou napoleão

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FC, O BANHO E NÃO SÓ

– Cuidado, deixa a janela aberta por causa do gás, é perigoso. – Já sei, mãe, já sei – respondeu, ao apagar o esquentador e entrar no banho. A água estava muito quente, confortável e acariciante. Mergulhou até ao fundo da tina que era já ali, 40 centímetros de mundo líquido. Ajeitou-se com gozo e pegou na esponja para lavar o pescoço. Então ouviu flup e a válvula da tina abriu-se sozinha, com lentidão. Que coisa! A água começou a fugir e atrás, escorregando e acompanhando-a, lá foi ele. O mais difícil foi o primeiro pé, depois tudo passou discretamente por aquela válvula devoradora. Quando tinha apenas a cabeça de fora olhou para a janela. A picota do vivinho recortava-se contra as nuvens. Achou bonito pela primeira vez, mas não teve tempo, para tirar conclusões. A água fez gulp e pronto. A cabeça foi também. Estava deitado na areia, ainda com a sensação de deslize vindo de lá, pela válvula transmissora. Levantou-se e sacudiu-se todo, olhando o mar que vinha recortar a praia, ali mesmo ao pé. Era líquido, como costumam ser os mares, mas não tinha horizonte. Curioso! Um mar que ia por ali fora, entre o verde e o lilaz, até se perder no cansaço da visão, sem linha obrigatória e separá-lo de um espaço quase roxo. Extraordinário. Ficou logo preocupado. E então o horizonte? Ia começar e investigar quando teve uma súbita necessidade de olhar para o lado. E esqueceu-se de tudo, para olhar apenas. Pelo areal sem horizonte, ele vinha caminhando, no rasto azul dos dois sóis. Uma sombra para cada lado a acompanhá-la com exactidão. Aproximava-se. O boné inesperado redondo, elmo grego sem Grécia dentro, a aumentar-lhe os olhos dourados. No vidro do relógio, enorme a luz fulgurava como num escudo sem idade, fora da História. Depois havia as pernas, com couro a agarrar-lhe os joelhos.


Nada mais, excepto os seios cantantes. Que lindo! Deram-se os braços e foram pela praia fora, à procura do horizonte. Isto foi o que eu vi, que estava atrás de uma pedra a conversar com o ministro. – Que diabo hei-de fazer para conter aquela inflação galopante, não me diz? E o PNB que não há maneira de subir, já viu? – inquiria-me elem preocupadíssimo, enquanto tirava o cotão do umbigo com a unha do indicador direito. (Como se sabe, todos os que passam pelo cano da tina vêm nus. É natural). Não respondi, estava a vê-los, muito pequenos, a afastarem-se lá ao longe na areia, duas figurinhas, abraçadas que cantavam, num som de sortilégio trazido pela distância. nuvem de prata chapéu de couro silêncio antigo dragão de ouro nuvem de som chapéu de cor silêncio quente mar e amor Continuavam cantando, numa música a desaparecer muito suavemente. Olhei o ministro e, rápido, nu e tudo, procurei o caminho de volta pelo buraco do cano da tina. Irra, era demais, nem ali!

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O MENINO E O CAIXOTE

– Não pode ser – disse o senhor Sousa ao filho, o Ernestinho de oito anos. – Mas, papá, eu vejo nos filmes. Todos têm – afirmou a criança, à procura de uma salvação para aquilo que lhe parecia um desejo certo. – Onde é que já se viu um leão em casa? Só nessas fitas idiotas. E, além disso, o menino não vê que não há espaço? Para a semana arranjo-lhe um gato bonito, daqueles que bebem leitinho e fazem miau. O Ernestinho desistiu de convencer o pai. Para quê? Era um homem com bigode. sempre a explicar o que não era preciso. Nem sequer percebia de leões. Sentou-se no chão a pensar. Com certeza que devia haver um leão ali em casa! Não era a vassoura atrás da porta, nem a cadeira larga da mãe dormir aos domingos, nem sequer o embrulho do lixo à espera de ser deitado fora. Foi investigar, toda a gente sabe que os leões estão onde menos se espera. Na cozinha, lá ao fundo, estava o caixote vazio que trouxera as compras da Cooperativa. O Ernestinho pousou-lhe a mão, acariciou-o com ternura e um certo receio. O caixote rugiu e sacudiu a areia amarela e antiga que lhe aquecia a juba. O menino puxou-o ao de leve, como quem ensina e acompanha, e o caixote seguiu-o. Pisando firme. O Ernestinho sentou-se no chão da sala. Entre o sofá e a mesinha da televlsao o caixote ficava mesmo bem, confortável, como na caverna onde nascera e dera o primeiro rugido. – Agora vamos caçar, Baluba – explicou o Ernestlnho ao caixote. – Que faz o menino aí com esse caixote? – perguntou severamente o senhor Sousa, abrindo a porta, de sobrolho franzido. O menino olhou para o pai, assustado, e depois para o seu amigo Baluba.– Mata o velho, Baluba! – gritou, num desespero. O leão saltou veloz e, com uma única dentada eficaz, arrancou a cabeça do senhor Sousa.


CEGARREGA PARA CRIANÇAS

A velha dormindo o rato roendo a Velha zumbindo o rato correndo a Velha rosnando o rato rapando a Velha acordando o rato calando a Velha em sentido o rato escondido a Velha marchando o rato mirando a Velha dizendo o rato escutando a Velha ordenando o rato fazendo a Velha correndo o rato fugindo a Velha caindo o rato parando a Velha olhando o rato esperando a Velha tremendo o rato avançando a Velha gritando o rato comendo

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FACILIDADE

Quando fez a primeira comunhão o pai explicou-lhe com honesta rectidão as comunhões são como os bonés de caça basta tapar as orelhas e já está tens o que desejas ficas logo comunhado gostou e comunhou-se mais três vezes sempre atento e preocupado mas era fácil dai em diante teve a certeza bastava tapar as orelhas era só era uma beleza pronto orelha protegida e comunhão logo garantida


DISCUSSÃO

– Desconfio que a democracia não resulta. Juntam-se astronautas, bodes, camponeses, galinhas, matemáticos e virgens loucas e dão-se a todos os mesmos direitos. Isso parece-me um erro cósmico. Desculpa Desculpei mas fiquei ofendido. Que a democracia era aquilo mesmo, e ainda com conversa fiada como brinde. isso sabia eu. Que mo Viessem dizer, era outra coisa. Fiquei ainda mais ofendido, até porque não gosto de erros cósmicos. Acho um snobismo. – Eu sou democrático rugi entre dentes, como resposta.Tenho amigos no exilio, todos democráticos. Foram para lá por serem democráticos. r:. um sacrlficlo que poucos fazem, ir para o exílio e ser professor universitário exilado e democrático. Eras capaz de fazer isso? – Não sou democrático. Não havia resposta a dar. Nenhuma. Ele não era demo-crático, não sabia de democracia. Eu sim, sou democrático, até já quis ir à América, que me afirmaram que lá é que é a democracia Recusaram-me o visto no passaporte, disseram que eu era comunista! Viram Isto!?

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NEGÓCIOS FERROVIÁRIOS

Sentado, no comboio, ia extremamente preocupado a comer o peixe seco. O outro em frente, olhava a guloseima e retorcia-se de leve, agitando-se incerto. Não se conteve e perguntou: – Parece-lhe que esse peixe está bom? O que comia cuspiu uma espinha para o chão, ajeitou o bigode e, olhando para a janela, achou bem responder: – Acho que como coisas estragadas? – De forma nenhuma. Perguntei apenas para ter a sua opinião, pois tudo me faz acreditar que gosta de peixe. Eu também. – Os gostos são uma coisa muito estranha – comentou o que comia o peixe, falando para os sapatos. – Não há dúvida – retorquiu o que o enfrentava, num gesto apaziguante. – Pode-se gostar de coisas enganosas. Mas quando se gosta de uma coisa certa, é evidente que temos bom gosto. Bem, como gostar de peixe. O do peixe conservou-se calado algum tempo, mastigando com cuidado as barbatanas do rabo e esgravatando com a unha as que ficavam entaladas nos dentes. – Como os peixes têm espinhas! – admirou-se o espectador, num trejeito concordante de cuspir o imaginário pela janela fora. – É verdade. Nem calcula como tem razão! – confirmou o comedor, num ripanço de mastigar com gosto. – Nada mais verdadeiro – e cuspiu mais uma espinha, apontando ao sapato. O peixe aproximava-se do nada. Restava um pouco junto à gueira e a cabeça de olho fascinante. – Escute, amigo – lançou-se, num desespero, o que olhava – não, seria possível decer-me um pouco desse magnifico peixe? O da frente fez uma pausa na mastigação. – Creio que talvez esta excelente cabeça lhe agrade. Uns cinquenta centésimos americanos. Bem, digamos que me contento com as suas alparcatas. Sei que gosta de peixe e isso basta-me.


O pretendente recuou no banco. Uma expressão de nojo e espanto surgiu-lhe de repente. – Por essa cabeça? Péssima, devo dizer-lhe. E sabe-se lá se está em bom estado! – Como vê, continuo vivo – informou o proprietário, chupando já a gueira derradeira. – Sendo assim – concedeu contrafeito o comprador em potência, num pânico intimo de ver desaparecer a cabeça – acho que a trocarei por uma alparcata. – E para que me serve uma alparcata, é o que lhe pergunto. Tenho dois pés, como vê, além da cabeça desde riquíssimo peixe. Mas digamos que acrescento à cabeça estes cigarros de gringo que não vai encontrar nunca mais. Veja. Superiores a todas as alparcatas. E extraiu do fundo do bolso das calças um ama – chucadíssimo maço de Old Gold já em meio. O outro não se conteve. Tirou as alparcatas, esfregou gostosamente os pés no chão, e depositou-as com pre– caução ao lado do possuidor de peixes e Old Golds. A cabeça e os cigarros mudaram de mão, no silêncio cúmplice dos grandes actos. Apenas se ouviu então o esmagamento final do crânio do peixe, enquanto o espaço deslizava lá fora.

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AVISO URGENTE

Quando as coisas que hão-de vir chegarem confúcio buda lao-tsé reis barbudos pendões e caldeiros duvidosos arnezes oscilantes arietes sem emprego fixo reis imberbes e condutores de noite aprisionada cristo maomé conquistadores a construir pirâmides inúteis vitória e os seus lagos imperiais e outros muitos sempre estarão nos livros de consulta e história analítica os paraísos diversos indicados tornar-se-ão textos curiosos em microfilme encadernado levado na mala exacta das férias pelo espaço serão armas perfeitamente abandonadas do medo ainda a querer viver nas propostas teo iliógicas de uma morte para além da morte paraísos dispersos mastigando-se fornecidos com molho especial mas mesmo assim quotidianamente incertos na afirrmação das garantias oportunas de uma wall street de promessas em inflação constante colunas templárias sem cavalo de sela para ser montado


pequenas fábricas do acontecer obrigatório por esperança empacotada memórias de santos mártires heróis santos efectivos no livro de registo caligráfico para a organização menor da lepra em família três mártires três todos na panela sem tempero hoje prato do dia por enquanto santos vários a lista é grande tiveram sortes imagísticas abundantes e heróis ainda em produção contínua na necessidade urgente de criar novos modelos e pô-los em circulação imediata antes que a história os recuse um carimbo eficaz no peito a garantir origem qualidade e preço e alguma perna a menos para andar tudo isto nos textos em que estará a recordação de cóleras bancos pestes governos batalhas casamentos impreteríveis ducados colónias sobras de banquetes bíblicos notícias de suicídios sexos mutilados cidades afundadas quando as coisas que hão-de vir chegarem

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O LOSANGO E A SERPENTE

O senhor Antunes acordara bem-disposto. O dia estava lindo e, além disso, era sábado. Olhando o sol que lhe entrava pela janela aberta, resolveu gastar esse sábado saudavelmente, no campo, ir encher os pulmões de ar puro, enfim, libertar-se por umas horas da amarra citadina e casmurra. Preparou um farnel quase imperial, que o senhor Antunes, como bom celibatário sempre precavido, tinha a despensa a abarrotar de lataria, carnes frias, pão de forma e bebidas pelo frigorifico, tudo o que era necessário para qualquer emergência. Meteu-o num cesto de vime com duas tampas laterais, daquelas que dantes se usavam para ir à praça ou transportar perus e aconchegou-o bem com uma velha toalha. Depois enfiou meia-duzia de cervejas e duas sodas na geladeira portátil e corou a obra com uma agradável garrafa de whysky. Feito isso, dobrou a manta escocesa que servia para o ar livre, pegou num livro e transportou tudo para o velho utilitário que o acompanhava fielmente havia mais de dez anos mas que mantinha uma forma e uma coragem realmente invulgares. Uma excelente aquisição aquele carrinho, fora o que fora. Saiu guiando à vontade, conduzindo e conduzindo-se à procura do acaso acolhedor. Fora da cidade, foi em frente, a olhar as fábricas que passavam, cada vez mais raras a cheirar o ar cada vez mais limpo, a sentir-se bem, óptimo, cada vez mais livre. Um sábado em cheio, era o que previa. O tempo foi correndo e o senhor Antunes procurou uma amarração. Era mesmo a altura, um pinhal magnifico passava-lhe a esquerda. Tirou-se do asfalto obsessivo e meteu por um desvio, uma quase-picada que mal dava para o carro. Quando a estrada lhe desapareceu da vista, após uma curva do caminho bravo, parou. Era ali mesmo.


Os pinheiros faziam zzz zzz muito discretamente, a caruma parecia-lhe apetecível, com formigas, com bichinhos remexidos e tudo. Estendeu a manta escocesa com ripanço, dobrada ao meio por causa de alguma agulha mais agressiva, escolhendo o local junto a um tronco sólido, para ter encosto. Puxou o cesto do farnel para um lado,, a geladeira para o outro E, gloriosamente entalado, estendeu-se com um prazer que não sentia havia muito, preparando-se para ler. O senhor Antunes cultivava-se sempre aos sábados. Mas não se conteve. Largou o livro e tratou de preparar um whisky bem generoso com a soda gelada a alegrá-lo. Então, regalando-se com uns goles espaçados e bem saboreados , foi por ali fora; uma sanduíche de fuá-grá e umas anchovas com alcaparra tentadora, isto para aperitivo. Ouviu os passos e voltou a cabeça, a mastigar com satisfação. Aproximava-se alguém, pelo carreiro. Viu-o vir, em mangas de camisa assobiando. Com certa contrariedade dispôs-se a ser civilizado. – Bom dia – disse o recém-chegado, parando junto ao pinheiro. – Então muito bom dia – retorquiu o senhor Antunes com a boca cheia, tentando sorrir e mastigar ao mesmo tempo. O desconhecido sentou-se na ponta da manta. Ao senhor Antunes aquilo pareceu abuso mas, que diabo, era sábado e havia sol. O estranho olhou bem para o senhor Antunes atentamente apontou o indicador esquerdo e perguntou, com voz calma: – Como se chama? Que coisa! O senhor Antunes não gostou, não gostou mesmo nada. Esta gente com a mania de fazer perguntas estúpidas! Mas respondeu: – Antunes. Ricardo Gouveia Antunes. – Três nomes? Mau, pensou o senhor Antunes. Que tipo este! – Sim, acha pouco? – Não, não. É que não está no regulamento. Porquê Gouveia Antunes? – Sabe, era a minha mãe. E o meu pai, veja lá! A ironia ainda era o melhor. – A mãe e o pai. Curioso, muito curioso, diria mesmo fascinante. O desconhecido pareceu mergulhar em pensamentos distantes.

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Então o senhor Antunes decidiu-se. Ia contra-atacar. E inquiriu, gosador: – E o senhor, como se chama? – Hoje chamo-me Cananaro. Alto lá, aqui há coisa, congeminou o senhor Antunes. Mas o outro, o Cananaro de hoje, não lhe deu tempo. – O senhor está a comer? Nessa altura o senhor Antunes reparou que tinha sido grosseiro. Mas aquelas perguntas, tudo aquilo o tinham desnorteado um pouco. – Ah, claro que estou. É servido? Tenho ali umas boas sanduíches de presunto. E cerveja. Não faça cerimónia. – Não, obrigado, o meu dia é só depois de amanhã. Hoje não posso, como sabe. Perguntei apenas para saber se tinha pago imposto. – O imposto? Que imposto? O senhor Antunes estava já sem saber o que dizer ou o que fazer. – O imposto de Gruka, é claro. A não ser que o senhor tivesse vindo de Rovir ou de Tronka. Veio? Não, assim não. O senhor Antunes rebentou. Lá se ia o sábado, mas assim é que não podia ser. – Olhe, meu amigo: não tenho imposto nenhum, nunca tive nem quero ter, nem dessa tal Gruka ou o que é, nem de nada. Não vim desse de Rovir ou Tronka e não quero vir. E chamo-me Ricardo Gouveia Antunes, três nomes como disse e que parece não lhe agradarem. Fique-se com essa, está a ouvir? E agora? – Calma, calma por favor – disse o Cananaro não se exalte, nada está perdido – e, sentado na manta, sorria para o senhor Antunes. Antunes não soube o que dizer. Ficou parado, mastigando ainda o resto da sanduíche, sem vontade para o whisky. O outro tirou do bolso traseiro das calças uma caixinha pequena, assim como esses transitores japoneses mais baratos. Falou-lhe sempre com voz pausada. – Tragam o carro da recolha. Sim, aqui a 27 Gruka. Pareceu-me urgente, sim, disse urgente. Meteu outra vez a caixinha no bolso e ficou a olhar para o tronco do pinheiro. O senhor Antunes ia levantar-se quando ouviu barulho de um motor. Pelo carreiro apertado vinha chegando um velho camião, um modelo que parecia doas anos trinta, daqueles que dantes serviam


para mudanças, com uma grade de ferro, assim como uma jaula, a encher-lhe a parte de trås. Esfrangou-lhe alguns ramos mais baixos dos pinheiros que continuavam a fazer zzz zzz e parou, ali mesmo, ao lado do carro do senhor Antunes. Saíram dois homens de maia idade, em mangas de camisa e com boina galega. Um deles tinha um enorme bigode pendente, triste, milenårio.

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JULGAMENTO DEFINITIVO

O julgamento chegara ao fim. O Juiz levantou-se, colocou a touca de pompons e encarou a assistência. O silêncio era total quando o preboste tocou a corneta. Todos se levantaram numa unanimidade respeitosa, enquanto o escrivão disparava os dois tiros da praxe. A pequena porta à esquerda da tribuna abriu-se e os acusados entraram, acompanhados pelas vivandeiras e pelos carregadores habituais. O coro, na varanda, entoou os primeiros acordes do hino e o decano dos archeiros perfilou-se e içou a bandeira. Ia processar-se a leitura da sentença. O Juiz estendeu o documento ao boticário de serviço nocturno que fora chamado especialmente. A acusação descritiva foi lida em primeiro lugar, para descrever a acusação apresentada a favor dos acusados pela Comissão de Inquérito. Os três réus eram elogiados sob reserva por, em local algures, terem exterminado trinta e sete crianças avulsas, setenta e duas mulheres em movimento recalcitrante, onze velhos não autenticados e sete cabras suspeitas de espionagem comercial, embora o óbito destas últimas não tivesse sido confirmado pela Comissão de Inquérito. Também lhes era atribuído o incêndio de três aldeias não localizáveis e de duas cadeiras Luís XV já localizadas, se bem que sem número de catálogo. O preboste tocou a corneta e o escrivão, em sentido, disparou o tiro da praxe. Ia ser lida a decisão final. Os acusados viraram-se para o Juiz. As vivandeiras viraram-se para os acusados. Os carregadores viraram-se uns para os outros. O Juiz tirou a touca de pompons, pôs o chapéu das circunstâncias sentenciosas e virou-se para o boticário.


O boticário prosseguiu a leitura do documento. Verificados os acontecimentos e sendo os mesmos louvados por unanimidade, os acusados sofriam os seguintes benefícios: O primeiro acusado, de boné grande (vinte e uma crianças. trinta e seis mulheres, sete velhos, duas aldeias), recebia medalha de ouro. O segundo acusado, de boné pequeno (dez crianças, vinte e nove mulheres, três velhos, uma aldeia), recebia medalha de prata. O terceiro acusado, sem boné (seis crianças, seis mulheres, um velho, nenhuma aldeia mas duas cadeiras), tinha direito a medalha de bronze. A assistência irrompeu em aplausos frenéticos, com preferência evidente para o segundo acusado, que era da terra. O boticário enrolou o documento e devolveu-o ao Juiz que o entregou ao Depositário de Secos e Molhados. O preboste tocou a corneta e o escrivão, atento, deu os três tiros da praxe. As vivandeiras beijaram os acusados. Os carregadores beijaram o boticário. Todos se sentaram. Os acusados subiram ao podium e saudaram a assistência, em sentido e sem rir. O coro, na varanda, entoou os últimos acordes do hino. A noite, depois da marcha triunfal, houve um cocktail Molotov comemorativo, no Palácio dos Jogos Fenianos, com e presença de todas as altas personalidades do Condado. Dizia o Juiz aos três homenageados “ainda não lhes contei a última do Reboredo” quando o mundo explodiu.

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IDA SEM VOLTA

Acordar na cidade logo de manhã e esperar a noite com exactidão no encontrar do último comboio que parte conciso para outro dia sair na estação que é central de outra cidade já a anoitecer onde talvez seja o lugar habitual do vendedor ambulante das sortes quase grandes no caminho designadamente antecipado pelo voo dos pássaros migradores que agora mesmo se vão de partida para outra cidade de amanhecer definitivo e depois da viagem sempre conhecida da porta em porta na cidade adormecer ao aviso da madrugada e esperar o sinal propício indicado pelo caminho persistente dos peixes a subir o rio exaustivamente nele acordar na noite da noite na cidade até chegar o momento muito matinal de partir no primeiro comboio efectivo da manhã de outra cidade a entardecer Então chegaram a minha casa e disseram-me: – Mas você não consegue escrever coisas compridas! Isso que faz é uma miséria. – Coisas compridas como? – Bem, romances, crónicas autênticas, ensaios sólidos. – Não, isso não sou capaz. – Então você não é um escritor.


Pois não. Quem se atreveu a chamar-me tal coisa? – ai é que me ia encanzinando. – Não é ofensa, desculpe. Mas uma coisa comprida, por favor, não arranja? – Olhe, o mais comprido que tenho é isto. E já foi difícil. Quando as coisas vão a ficar maiores, deito logo fora. Compreende, não é? Aí está porque mostro o que se segue.

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MEU SÓSIA, O GENERAL

– O senhor é o general? Já era a terceira vez que me acontecia aquilo. Estava sentado a tomar sossegadamente o meu gin-tonic e aparecia-me logo alguém a perguntar se eu era o general. Que diabo! Seria eu parecido com o general? Não sabia, nunca o tinha visto pessoalmente, mas nas fotografias não era. Seria o meu farto bigode? Ou a minha cabeça rapada à navalha? Não, não podia ser. Generais de cabeça rapada só na União Soviética e ali não era a União Soviética, disso estava eu certo. Talvez o meu porte marcial. É verdade que tenho mais de um metro e meio, mas andava com as calças sempre a cair. Ná, alia havia coisa. – Não, não sou o general! E, enfezado, levantei-me, paguei a bebida e fui até ao jornal tratar do meu artigo político, sempre muito discutido, devo informar. Mas a coisa aporrinhava-me e tratei de esclarecê-la. À tarde dirigi-me ao Palácio e expliquei à sentinela: – Quero falar com o general. É urgente. Limitou-se a olhar-me. Depois apontou-me a arma, uma M-43 que andava muito em voga na altura. Creio que ainda anda. Fui-me embora, é evidente. Mas não desisti. Dei a volta e saltei o muro. Afinal eu era jornalista. Depois saltei também uma janela, bem aberta para arejar o saudável calor da tarde que ensopava tudo. Fui em frente e acabei por encontrar o general. Abria ainda mais uma porta para ver o que estava atrás, quando dei com ele. Devia ser. Bigode impressionante tal como nas fotos, sólido, fardado e com muitas medalhas, numa sala enorme, atrás de uma secretária ainda maior. Era com certeza. Disse “com licença” e avancei por ali a dentro. De cada lado da porta saltou-me um galifão gigantesco de 38 em punho. Parei logo. Mas o general ergueu a mão e os guardas tremendos voltaram ao lugar da emboscada.


– Que deseja? – perguntou-me, num tom afável. – O senhor é que é o general? – Sim, se quer referir-se ao general Alvarado, sou eu. – Pois, meu general, passa-se uma coisa muito estranha. O general acenou-me para que me sentasse numa cadeira ao lado da secretária ciclópica. Sentei-me e expliquei o caso invulgar. Passavam a vida a chamar-me general, veja lá, e acabava de verificar que nem sequer era parecido com ele. Que coisa, meu general! Qual seria a explicação? Atentado? Revolução? Eu não queria meter-me em coisas dessas e por isso estava ali. O general olhou-me calmamente. Pareceu-me simpático, apesar daquelas medalhas todas. E falou: – Mas afinal diga-me cá, meu caro: quem é o senhor? Apresentei-me imediatamente. De pé e em sentido, declarei, solene: – Sou o Botas de El Heraldo General, às suas ordens, meu general. – Sente-se, sente-se, meu amigo – o general sorria. – Então o senhor é que é o conhecido Botas dos artigos políticos de El Heraldo General! Pois creio que aí está a explicação. Não percebi nada, mas como o general era conhecido por tirar conclusões rápidas, fiquei à espera. E ele continuou: – Claro. Os seus artigos despertam a atenção de toda a gente. Até eu os leio, imagine, apesar de estar sempre ocupadíssimo. Não sabia que o general era uma pessoa tão ocupada, mas acenei um acordo compreensivo. – As pessoas lêem e interessam-se – prosseguiu o general – e querem logo saber quem é que escreve. Aqui neste país é assim, o senhor deve saber, já cá vive há bastante tempo. Gostam de conhecer pessoalmente todos e tudo, são extremamente sociáveis. Isso sabia eu. Tinha provas. Todos os dias a garrafa de gin me aparecia com um desfalque nítido. Sociabilidade, era então como se chamava! – Portanto a razão deve ser essa – explicava calmamente o general. – Vêem-no e dirigem-se logo a si para lhe falar, querem saber as coisas da política. O que lhe perguntam, com certeza, é se o senhor é do General e não se é o general. Pareceu-me certo, lógico. Senti que tudo estava esclarecido.

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Ia levantar-me para agradecer, pedir desculpa do incómodo e ir-me embora, quando o general me pôs a mão no ombro, dizendo: – Espere um pouco, meu caro. A sua presença dá-me uma ideia que me parece excelente. Conheço-o, sei que é activo, eficiente, nunca me atacou excessivamente nos seus artigos, está sempre disposto a prestar um serviço. Agradar-lhe-ia ser meu sósia? Um espanto vertiginoso deve ter-me aparecido na cara. Na verdade eu era mais parecido com uma nêspera de que com o general. O general acalmou-me: – Não se espante, eu explico. Vê ali aqueles três senhores? Olhei e então reparei que havia três pessoas sentadas lá no fundo da sala. Disse que via. – Pois são meus sósias – informou o general. Pus-me a olhar de novo, mais atento, e tive de chegar à conclusão que, de todos, era ainda eu o mais parecido com o general. Fantástico! – Já vê – o general continuava a explicar. – Não é preciso para nada ser parecido, o que é preciso é ser eficiente. Não tenho tempo de andar aí pelo país nessas macacadas de inaugurações e discursos. Há locais onde nunca me viram, onde mal chega a rádio. Então mando um sósia. Aparece à janela, fala pelo microfone lá em cima e vem-se embora. Às vezes há um atentado, mas raramente resulta; como vê ainda estou vivo. Olhe, há ocasiões em que os meus três sósias estão todos ocupados e ainda são poucos. Convinha-me mais um. Agora mesmo ia eu tratar de uns discursos e umas distribuições de batata com eles. Venha cá, que eu apresento-lhos. Ainda embasbacado com tudo aquilo, fui até aos três senhores que se ergueram, urbanos. Fiquei assim a conhecer Chiquitin, o Professor e o Visconde, todos sósias activos do general Alvarado. Ele há cada coisa! E eu que não sabia de nada! O general insistia para que eu tomasse uma decisão. Aquilo dos atentados é que me causava uns certos engulhos, mas o general garantiu que a segurança era perfeita e ali estava ele, vivo. Acabei concordando, até porque cada actuação me ia dar mais (em dólares, claro, que não sou idiota) do que o trabalho de um ano no Heraldo. E mantinha o Heraldo, que o general garantiu que ai tratar disso. Postas as coisas nesse pé, fiquei logo ali na reunião conjunta, para se distribuírem as inaugurações, os discursos, se prepararem


as dignidades convenientes e a oferta da batata ao camponês. A mim coube-me estar presente e ser general na distribuição da Cartilha Revolucionária, acompanhada com sacos de batata, em Puerto Pobrecito, daí a uma semana. Tudo esclarecido, fui para casa preparar-me. Em frente ao espelho fiz caretas convenientes, atirei murros militares e puz a mão no peito. Depois lembrei-me que afinal era para ser visto ao longe e deixei-me disso. Continuei a ir ao Heraldo General mas, como já sabia de tudo, quando me perguntavam se eu era o general respondia logo afável que sim senhor, era don Botas, o comentador político. E, realmente, era isso mesmo que eles queriam. Tomávamos umas bebidas e ficávamos amigos, com alguns convites para ir lá a casa jantar. Chegou a quinta-feira indicada e, logo de manhã, dirigi-me ao Palácio. A sentinela já devia saber, não me disse nada nem me apontou coisa nenhuma, deixou-me passar. O general já tinha mandado arranjar mais uma farda, bem bonita por sinal e com muitas cores, adaptada ao meu ar marcial de mais de um metro e cinquenta. Também me entregou várias medalhas que estavam numa caixa de lata, lamentando não serem lá grande coisa, mas as melhores tinham ido com o Chiquitin e o Professor, que andavam em missão. A partida foi às dez horas. A comitiva era sólida. À frente um carro a abarrotar de guarda-costas, todos sósias. Depois um dos carros do general, isto é, o meu. Lá dentro iam o secretário do general, ou seja, o meu, sósia, está bem de ver, e dois terríveis guarda-costas. Para fechar, outro carro entupido de guarda-costas. Sósias. Eu parti meia hora depois, num triciclo motorizado, desses com uma grande caixa atrás, que servem para vender sorvetes. Ia dentro da caixa, com a tampa fechada. O condutor estava vestido de vendedor de sorvetes, todo de branco, com a marca no boné. Isto por causa dos atentados, que é que pensam que fosse? O trajecto aconteceu sem incidentes de nota. Quando estavam quase a chegar, rebentou uma mina debaixo do carro da frente. Posta pela Legião Nacional, ao que parece, os fragmentos eram de origem americana. Morreram dois guarda-costas, mas como eram sósias não foi mau. Os restantes carros passaram, não sem que o carro do general, quer dizer o meu, fosse atingido por uma rajada

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de metralhadora disparada por membros emboscados da Liga Revolucionária do Povo, segundo consta, pois as balas encontradas eram de origem asiática. Cheguei hora e meia após a comitiva, em sigilo, um pouco amarrotado mas sem novidade, a não ser duas paragens que o meu condutor teve de fazer para explicar que os sorvetes já tinham acabado. Às cinco horas começou o acto solene. Tratava-se, como já disse, da distribuição da Cartilha Revolucionária aos camponeses, acompanhada pela oferta de batata em pequenos sacos. A Cartilha Revolucionária era a base educacional primária do governo do general. Era simples, apropriada, aprendia-se nela com muita facilidade. Começava assim: O ge-ne-ral é bom O ge-ne-ral é a-mi-go Os cam-po-ne-ses gos-tam Do ge-ne-ral Havia também outra cartilha, a Cartilha Vermelha, que era distribuída clandestinamente pela Liga Revolucionária do Povo, do mesmo tamanho e com um boneco muito parecido na capa. Era assim o início: O ge-ne-ral é mau O ge-ne-ral é i-ni-mi-go Os cam-po-ne-ses não gos-tam Do ge-ne-ral Por mim não lhes notava grandes diferenças, mas o general parece que não concordava com a Cartilha Vermelha. Mandava-a apanhar, fosse onde fosse. Estiquei a farda, enterrei o boné e, totalmente rodeado de guarda-costas enormes, subi para a varanda do segundo andar da Casa del Pueblo. Ninguém conseguiu ver-me. A praça estava medonha de gente. Camponeses com fatos brancos, mulheres garridas, crianças gritadoras. A ovação foi realmente comovedora quando surgi à janela acompanhado pelo meu secretário. Ia pegar no microfone, quando ele mo


tirou das mãos e mo apresentou. Claro, eu era o general. Fui curto e incisivo. O general ali presente saudava o povo e prometia cada vez mais cartilhas e mais batatas. E talvez também luz eléctrica. Entretanto, das janelas laterais, os meus acompanhantes iam atirando à multidão punhados de cartilhas e sacos de batata. O entusiasmo era geral. Dava-se o atropelo lá em baixo. A caça à cartilha e principalmente à batata, numa alegria comunicativa de dentadas e dedos nos olhos. Findo o breve discurso a praça rugiu um viva ensurdecedor ao general. Agradeci com gestos sóbrios, concisos. A minha tarefa findara. À noite ainda havia música, dança, comidas apimentadas e bebida inesgotável, mas já não me competia presidir a tal comemoração patriótica. Passámos a noite na Casa del Pueblo, pois viagem oficial nocturna seria tentar demais o destino. Mas de manhã eis que chega um aviso trazido por um camponês suado. Preparava-se grande emboscada no caminho de volta. Tinham-lhe dito. Viera logo informar o senhor general. Os meus companheiros não se impressionaram muito. Era sempre assim e, a maior parte das vezes, não acontecia nada. No entanto, foi resolvido que eu voltasse à capital totalmente incógnito. Um general morto, mesmo sósia, é sempre uma encrenca. Foi assim que, enquanto o meu secretário e os guarda-costas se metiam nos carros, eu, vestido de vendedeira de tremoços com botas de atanado e tudo, tomava o caminho de volta montado num burro. Cheguei dois dias depois, sem qualquer contrariedade. Dormira pela casa de uns camponeses a quem oferecera várias batatas que levava comigo, à cautela. Soube então que tinha havido duas emboscadas e uma espera. As emboscadas, uma pela Legião Nacional (financiada pela CIA, ao que me contaram) e outra pela Liga Revolucionária do Povo (financiada pelo chinês, afirmavam). A espera, pelos Libertadores Armados (financiados pelo próprio general, ao que vim a saber, que sempre é bom ter alguns guerrilheiros na mão para garantir o futuro). Com tudo isto apenas morreu um guarda-costas, sósia evidentemente. A missão fora portanto coroada com êxito. À chegada, o general felicitou-me calorosamente e convidou-me para jantar. Ainda cumpri mais três missões, em Calaveritas, Reguengos e San-

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ta Sara del Picon, sempre com excelentes resultados, sem nenhum acidente digno de nota. Apenas sete sósias falecidos em serviços e dois carros desmantelados. Com o dinheiro que estava juntando, pensava finalmente realizar a minha grande ambição: uma casa no Lesoto, que é um sítio sossegado e com bons ares. Mas não consegui. Quando me preparava para a quinta missão, o general mandou-me chamar de urgência. Parecia que havia coisa no ar. Estava eu disposto a correr o risco de ficar com ele? Devia-lhe favores, era uma pessoa que sabia rir. Estive. A revolução rebentou no dia seguinte, com uma proclamação de Legião Nacional lida pela rádio tomada de assalto. A Legião Nacional anunciava o início do movimento de libertação, para que a pátria fosse salva da escravidão totalitária, para que a civilização ocidental, cristã e livre continuasse iriante. Foi a primeira vez que ouvi essa palavra na rádio e fui logo perguntar ao general o que era aquilo. Também não sabia, mas estava certo que não era nada de bom. Saímos para a rua, com a guarda do general, todos os sósias e alguns soldados que eram da montanha. Encontrámo-nos com os estudantes e o general arengou. Era um general que não tinha jeito para dizer mentiras, devo confessar. Não convenceu nenhum chefe de família. Os estudantes ficaram todos connosco. Sentimo-nos fortes. Entretanto, a aviação decidira-se. Estava com a CIA, perdão, com a pátria livre e democrática. Três majores dos rangers promoveram-se a generais e resolveram, imediatamente, ser também pela democracia ocidental. Restavam-nos os mineiros e a dinamite do costume. O general deixou-se de sósias e disse-me que era melhor ir-me embora. Não fui, gosto de encrencas. Quando os mineiros vinham a caminho da capital, carregados de bombas, rastilhos e cacetes, a aviação atacou. Os velhos caças do após-guerra funcionavam, era inaudito! Arrombaram com metade do Palácio, onde já não estávamos porque idiotas é que não éramos. Os tanques atacaram. Os sete capitães blindados formaram-se majores e prepararam-se para o próximo generalato e uma viagem de estudo aos States. Escolheram a liberdade, pela rádio.


A Liga Revolucionária do Povo lançou então um papel às massas, dando o seu apoio ao general, pondo de parte a Cartilha Vermelha e ordenando ao povo que viesse à rua. Era tarde e as ruas estavam intransitáveis. Os rangers ocupavam tudo, os blindados arranjavam-se como podiam para escaqueirar a Universidade. Os aviões zumbiam e divertiam-se com os foguetões. Donde viera tanta gasolina, da melhor, da mais octanada, era o pasmo do general. Pois foi. Parece que ainda houve um encontro à entrada da cidade, entre os camiões dos mineiros que vinham e os tanques que estavam no entertenimento de acabar com o último edifício da Universidade, caçando o seu estudante de passagem. Não vi o resultado, mas ouvi dizer que fora o diabo. Já lá não estava. Pois foi, realmente. O general escapou-se a tempo para um país vizinho e pôs imediatamente a funcionar os Libertadores Armados. Razão tinha ele. Parece que os Libertadores se encontraram mais tarde com a Liga Revolucionária e resolveram pôr de parte a questão das cartilhas. Não sei bem. Eu larguei logo El Heraldo General, fiz a mala e saí com uma rapidez que pareceu excessiva a alguns conhecidos meus. Fui para outro país vizinho. Os dólares ficaram no cofre do Palácio, onde os guardara. Sabe-se lá onde estão agora. Isto tudo e apenas para lhes falar do general. Gostava do general, sabem? Era extraordinário. Nunca o vi em macacadas nem em papagaiadas, como ele lhes chamava. Era humano. Bebia muito e gostava de beber. E fumava ainda muito mais. Nunca o vi pelas ruas de óculos e mostrando os dentes, prometendo tudo a torto e a direito. E nunca o ouvi falar de destinos imperecíveis de nações nem de gloriosos feitos do passado. Nem nunca me disse que a pátria contava comigo. Era realmente humano. Nunca pretendeu colonizar nada, até porque sabia que também ele era colonizado. Não tinha polícia política, nunca quis mandar buscar ninguém a casa para lhe fazer perguntas e o torturar. Quando se zangava mandava fuzilar, pronto. Tinha muitas medalhas, gostava de as ter e sabia que não valiam nada. E as outras que por aí andam?

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Sim, gostava do general, era humano e estava vivo. Não, não estou zangado, se estivesse partia já este copo com gin. Estou apenas a dizer que gostava do general, que era humano, ouviram? E ninguém me venha dizer o contrário, senão vai tudo a ponta de faca ou a berro de 38.


ÚLTIMA CEIA

Estava a jantar no PING-PONG com uma amiga realmente simpática. Na altura do conhaque a acompanhar o café, lembrou-se de repente: “e se este fosse o último?”. Pediu mais outro conhaque, mesmo antes de acabar o que estava a desgustar. À porta , quando safa, o Tião Medonho atirou-lhe quatro de 38 exactas, abaixo do diafragma, e foi-se embora. Isto de religião é uma coisa tremendamente complicadas, sempre tenho dito. E a minha mãe confirma.

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XEQUE-MATE

– Vai um judeu num comboio… – Essa já conheço. Nem calcula como conheço as de judeus! Todas. Então o meu vizinho mudou logo para as de escoceses. Eram esplêndidas. Aquilo acontecera na oferta de um cigarro public-relations, enquanto íamos a caminho de ainda outra cidade. Como o compartimento não tinha mais ninguém, a relação sociável dera-se inevitavelmente. Expansivo e muito viajado, ao que parecia, contou-me tudo, excepto o que não contou, claro. Depois foi a ternura amiga, com anedotas a chegar em sucessão rápida. Acabaram os escoceses. Realmente óptimos. – Jogas xadrez? – Às vezes, com dúvidas. – Não faz mal. A dúvida é o que nos ensina. Se quiser…– E puxou do tabuleirinho portátil, encadernado em couro autêntico, próprio para todas as viagens. Quis, não tive outro remédio. Passaram pelo corredor a tocar o sino. Jantar. Primeira série. Deu-me uma certa fome, mas tinha que aguentar um bispo que se preparava para me roubar o cavalo e sabe-se lá que mais. Estava o meu vizinho explicando as excelências do xadrez, a sua história e os seus santos, enquanto jogava mais uma torre inesperada, quando rugiu a segunda série pelos espaços pasmosos do corredor. Quanto a mim, não tinha mais nada a perder. Fora-se tudo. Possuía o rei escondido a um canto, dois peões apavorados e, perdido na incerteza, o último bispo envergonhado. Cedi, logo ali. O sorriso do meu vizinho eficiente foi magnífico. -Agora um jantarzinho, ein! Pois claro. Lá fomos, atravessando ao contrário o caminho feito, até chegarmos às mesas trepidantes. Cuernavaca, se estivéssemos em Cuernavaca com Juanito. Entre a sopa e a parede ouvi tudo.


Tudo o que faltava. Café, conhaque e voltámos, a oscilar. Já não faltava mais nada. Logo ao lado da discreta privada das carruagens em viagem, há uma porta de emergência como sabem, fácil, é só levantar a alavanca. São as emergências das viagens que puseram ali. Levantei a alavanca e deu-me um desequilíbrio de ombro muito súbito auxiliado com um jeito de perna. O meu vizinho estava a explicar como se devem resolver os problemas da delinquência pré-juvenil. O resto da explicação hei-de perguntar um dia destes à Erika que sabe tudo de kindergarten, de delinquências e ainda mais coisas. Vai um judeu num comboio… lembrei-me de repente da história toda. É bem divertida, gostava de lhes contar, se tivesse tempo.

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BABELITE ou SEGISMONDO O BABÉLICO

A babelite acontece às pessoas com mais frequência do que se supõe. Os sintomas iniciais costumam surgir nos primeiros anos, na infância, embora haja casos de precocidade extraordinária, como foi o do meu primo. Tinha ele então dezasseis meses e uma tremenda falta de cabelo. Estaca em Caracas quando lhe apareceram pela frente três falas diferentes configuradas em três amigos da casa: espahol, alemão e japonês, a que acrescentou um guincho. Era um babélico, não havia dúvidas, mas nunca passou de babélico fónico. Vive entre dicionários e a pronunciar palavras místicas em urdu, sem nunca ter sido um verdadeiro ambulatório. De uma forma geral, a babelite manifesta-se entre os quatro e os cinco anos. O petiz chega a casa, depois de ter passado a tarde em actividades lúdicas e outras com companheiros de idade aproximada e, à hora do jantar, lança as palavras inesperadas que o definem como babélico. É vernáculo assimilado. Os pais espantam-se e explicam-lhe que aquilo não se diz, mas o garoto continua a aprendizagem. Está no período inicial da babelite, é babélico fónico incipiente. Por volta dos dez anos todas as gramáticas e dicionários da família estão estraçalhados e o infante pronuncia coisas extraordinárias em cinco línguas diferentes com a segurança absoluta de quem não sabe o que diz. É o período de transição. Se ficar por aí, torna-se um babélico fónico e acaba falando urdu, como o meu primo, sem mais nada. Se continua, a prepara-se para babélico ambulatório, ou melhor, fono-ambulatório. Aos doze anos sai de casa e, três semanas depois, é encontrado em Estarreja a trabalhar como mecânico de bicicletas e dominando razoàvelmente o dialecto local. Daí em diante nada poderá detê-lo. Aos dezasseis toma decisões definitivas e ele aí vai. Às vezes aparece por casa, com intervalos de meses, diz que gosta muito da família e desaparece de novo. Sabe-se vagamente que ganhou uma corrida de sa-


cos em Kinshasa, que lhe partiram uns dentes em Murmansk, que comprou uma dentadura em Oaxaca. Chegam, de vez em quando, postais com vistas impossíveis de locais ainda mais impossíveis, sempre mandando um abraço e anunciando volta próxima. O babélico é assim. E é assim porque não é um turista, não é um emigrante, não é um bolseiro da Gulbenkian. É um babélico. À terra onde chega essa é a sua terra, quinze dias depois tem amigos velhos, até trabalha e começa a dizer coisas, mesmo que a língua seja inacreditável. Um babélico entende-se como um swali sete minutos após tê-lo conhecido e é capaz de ir jantar com o primeiro samoiedo que encontre, divertindo-se ambos tremendamente com as boas piadas mútuas. O babélico possui a qualidade de emitir sons universais e de aceitar imediatamente qualquer som que lhe apareça, tal como aconteceu com o meu primo de dezasseis meses perante o espanhol, o alemão e o japonês. E além disso anda, anda muito, anda sempre, de um lado para o outro, à procura de qualquer coisa, até se tornar um babélico sedentário, de que falaremos mais tarde. Mas mesmo sedentário tem os seus rompantes, como se verá. Segismondo era um babélico. Fono-ambulatório dos mais determinados. Segismondo falava tudo. Chegava a Marselha, apanhava um encontrão na Place de la Corderie e espinafrava logo: Vá te fér futre! O outro, que era marselhês e portanto só falava marselhês, língua estranha e misteriosa, respondia qualquer coisa. Segismondo, danado, rabentava: Fut muá lá pé! Daí a pouco estavam os dois a beber um pastis e, no dia seguinte, Segismondo instalava-se lá em casa com mala e tudo. Se por acaso a coisa se passava em Moscovo, não tinha importância nenhuma. Segismondo atirava tovarich a torto e a direito, com grande espanto de toda gente. Dias depois tinha dois ou três amigos, vários quilos de vodka Stolichnaya na barriga e vivia no melhor local da rua Gorki ou da perspectiva Mojaisk, quando não na dancha de personagem mais eminente. E continuava a chamar tovarich a todo o mundo, perante o espanto geral. Às vezes víamos o Segismondo. Aparecia de súbito e passávamos uma noite divertidíssima, tomando bebidas e a ouvi-lo rememorar acontecimentos vários em guarani, em ronga, em português,

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em vasconço, tudo línguas tremendas, como se sabe. Mas nós já estavamos habituados e percebíamos perfeitamente. Depois diziamos boa noite com a ceteza absoluta que, dias mais tarde, ninguém saberia dele. E era infalível. Chegava-nos um postal de Atenas com o Partenon ensolarado e um abraço no verso. Passados tempos aparecia-nos o Bósforo à noite, com outro abraço e a informação “não me escrevam, sigo amanhã para Trebizonda”. Em certa altura chegou-nos um postal com carimbo de Comodoro Rivadavia. Segismondo estava na Patagónia. O postal era todo branco, não devia haver por lá nada a fotografar. Contava-nos que estava muito satisfeito, que aquilo era lindo, mandava-nos um abraço e infomava-nos, lacónico, “apaixonei-me”. Ponto final. Ficámos todos impressionadíssimos e fomos às nossas vidas.Então, mês e meio depois, aparece-nos o Caguincha com a novidade incrível: – O Segismondo está aí. Encontrei-o ontem. Vem casado, calculem! Come sopa de feijão com nabos e fica todas as noites em casa, sentado, a ver televisão, vejam vocês! Até parece que alugou apartamento bem perto daqui. Há cada coisa! Ficámos varados. À noite, guiados pelo Caguincha, invadimos o apartamento do Segismondo, que era realmente perto. O Segismondo abriu a porta e, em seguida, abriu-nos os braços com aquele potencial de amizade que lhe era tão característico. E apresentou-nos a mulher. Mais abraços. Era a Raina, ucraniana e ex-administradora da cantina dos Mineiros em Comodoro Rivadavia. Babélica, via-se logo. Estavam a ver televisão. O Cagacinha falara verdade. O apartamento era simpático, cheias de coisas inesperadas vindas sei sabe-se lá donde. Conversámos todos ao mesmo tempo, durante bastante tempo. Bebemos também quase ao mesmo tempo, enquanto falávamos ao mesmo tempo. Saímos de madrugada, com mais abraços e algumas incertezas quanto à porta do elevador. Na rua olhámos uns para os outros e verificámos: o Segismondo tornara-se um babélico sedentário. Era verdade e fomos para casa. O babélico sedentário tem características definidas e infalíveis. Se vocês chegarem pela primeira vez a casa de alguém e virem o arco e as flechas carajás numa parede, o corno tibetano de chamar


os bodes noutra, o manipanço pelo chão, objectos indecifráveis e mesmo um pouco suspeitos por cima das mesas, até aquele fémur de canguru esculpido encontrado num monhé de Capetown, desconfiem logo que estão em casa de um babélico sedentário. Se os discos tiverem certas etiquetas incompreensíveis e tocarem coisas como os cantares dos Shquipetars de Kosmet, a buzina de uma bicicleta a passar na praça Jamaa El Fna de Marrakech e ruídos piores ainda, transformem a desconfiança numa quase certeza. E se o dono da casa ficar por vezes a olhar para qalquer coisa que não há e resolver ir até à cozinha preparar comidas ignóbeis para oferecer, satisfeitíssimo, então é certo. Vocês estão de visita a um babélico sedentário. O babélico, enquanto é fono-ambulatório, deixa tudo em sacos e caixas de papelão por aqui e por ali. Só depois, no período final ou de sedentarismo, junta o que consegue – se consegue – e se instala, a olhar para aquilo. Aí tínhamos pois o Segismondo chegado ao período final, tal como a mulher. Mas defendiam-se bem, como ele mesmo nos explicou. Duas ou três vezes por semana viajavam, contou-nos uma tarde, enquanto tomávamos a bebida dos fins-de-semana. A coisa passava-se da seguinte maneira: tinha comprado dois assentos de avião em segunda mão, desses que os Transportes Aéreos vendem em saldo para fazer um dinheirinho extra. De vez enquando, às nove da noite, colocavam-nos em frente à televisão e instalavam-se. A mulher abria uma coca-cola e ele entregava-se a uma tónica. Viajavam em classe turística e não tinham direito a bebidas alcoólicas, excepto uma ou outra vez em que estavam mais abonados. À meia-noite aterravam. Fechavam a televisão e iam até à cozinha. Conforme à terra a que tinham chegado, assim Raina preparava o prato especial. Havia noites de sopa de cebola com arenque no molho, noites de hamuss bi tahine, de borsch, até de feijoada com laranja, cachaça e tudo. Às três da manhã, após terem discutido todos os problemas do país na língua do mesmo, claro, e admirado a vista pela janela, empanturrados, saíam do restaurante exótico e iam para o hotel, isto é, para a cama. Na manhã seguinte, felizes, beijavam-se e seguiam para as respectivas tarefas profissionais. Achámos o processo genial. Era solução perfeita para manter inteiros dois babélicos fono-ambulatórios que entravam no período final e sempre melancólico do sedentarismo.

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Certa vez tínhamos combinado com o Segismondo ir lá passar uma noite de bate-papo bem quente. No sábado não podia ser, iam viajar não sabia ainda para onde, mas ficou tudo acertado para domingo. No domingo, depois do jantar, lá fomos, entusiásticos, e batemos à porta. Nada. Insistimos. Nenhuma resposta. O Cagacinha deu vários pontapés sem qualquer resultado apreciável. Descemos e perguntámos ao porteiro pelo senhor Segismondo. Bem, tinha-o visto sair de manhã com a mulher e uma mala. Mais nada. Chateados, fomos tomar qualquer coisa ao Três Bonés. Devia ter iso passar o fim-de-semana a qualquer parte, com a mulher. Mas podia ter avisado, que diabo! Dissemos boa noite e cada um foi fazer o que lhe apetecia. O Segismondo não voltou a aparecer. O telefone não respondia, a porta não se abria, no trabalho ninguém sabia de nada e o porteiro ignorava tudo, intrigadíssimo. Desistimos e continuamos a viver. Dois meses depois chega-nos uma carta de Segismondo. De Tombuctu. Explicado. E tudo ficou claro. Naquele sábado Raina e Segismondo tinham ido viajar. Quando aterraram, à meia noite, estavam em Tombuctu. Partiram para a cozinha, encantados, e então deu-se o desastre. Raina não sabia nada da culinária tombuctense e Segismondo, por mais que se esforçasse, também não conseguiu qualquer comida que salvasse a situação. Passaram uma noite miserável, esfomeados, sem vista pela janela, sem hotel exótico, tiveram de ir para o quarto, arrepelando-se. Foi terrível. No dia seguinte, logo de manhã, pegaram numa mala com o indispensável e atiraram-se ao aeroporto, em busca de Tombuctu. Agora a coisa estava perfeita. Com dois meses de Tombuctu, Raina encontrava-se já perfeitamente instruída na cozinha regional. E Segismondo também. Pensavam voltar a casa dentro de uns quinze dias. Os babélicos são assim. Bem, ontem o meu afilhadinho, que está com os seus três anos e meio, veio visitar-me. Conversava eu com os meus pais quano vi o miúdo estender a mão pequenina mas eficaz para a estante. Sem hesitar, extraiu tudo começou em babel do Herbert Wendt. Senti suspeitas e tirei-lhe logo o livro da mão, mas ele não se


preocupou, estava a olhar para o agôgô pendurado na parede ao lado da estante. E depois, de olhos brilhantes, encarou o cachimbo chiu-chuá em cima da mesinha e disse grr. Ouvi-o nitidamente. Deu um pontapé amigável no manipanço que está no chão e pulou-me para os joelhos. Não há dúvidas. Assim seja.

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CINEGÉTICA

Um caçador perdeu a cedilha e por isso sua mulher nunca mais quis ir à caça com ele sem cedilha


TROPICÁLIA

Ao chegar aos trópicos sul-americanos ficamos sempre um pouco desconfiados, é fatal. Trazemos connosco um çerto cartesianismo europeu, mesmo sem querer. E os trópicos nada querem ter e ver com Isso, sao assim como uma máquina inesperada e tremenda de fabricar alfinetes irritantes. Bichos a remexer, plantas a devorar o espaço, gente a tentar devorar seja o que for entre o tempo diferente ou em cidades súbitas e tentaculares onde há azeite, caviar, sapatos, nêsperas e tudo. E ainda os chapéus de palha, os rios inacreditáveis e 300 milhões de voracidade em evolução constante. Mas o que mais me arreliou, que sempre me causou espanto, toram os aparsclmentos e desaparecimentos. Então um dia voltava a cesa para lr almoçar. Abri a porta, olhei o correio e fui até à cozinha. Tratei de preparar a salsicha habitual e o gin-tonic sem tónica, tal como deve ser. Ainda mastigando, fui à varanda tomar ar e admirar os arranha-céus em frente que me tapavam tudo. Era o décimo andar. E zás, lá estava especado a olhar para mim. Um elefante, ali mesmo na varanda. Espantei-me um pouco, claro. Mas afinal quem sou eu para me pennitir tais espantos? Voltei para dentro e resolvi comer mais qualquer coisa. Entretanto durante a tarde, enquanto trabalhava, o caso começou a agradar-me. Não havia dúvidas que era uma companhia sólida, poderosa, conveniente e até mesmo respeitável na casa de um celibatário. Quando voltei à noite para jantar o necessário, resolvi ter a certeza... Fui à varanda e o bicho lá estava, a abanar a tromba plácidamente. Então tratei das coisas como se deve. Fui logo lá dentro e trouxe duas cadeiras de palhinha, uma esteira caipira e um velho cortinado de bambu que estava debaixo da pia da cozinha.

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Soube-lhe bem, foi o que me pareceu. Disse-lhe boa noite e fui ver a televisão. Tomei as bebidas habituais, meti-me na cama e adormeci consolado. No dia seguinte. mal foi manhãzinha. voltei encantado à varanda. E nada. O bicho não estava lá, desaparecera. Lá se fora o elefante que tantas esperanças me dera. Então danei-me, assim não podia ser. Saí firme pela porta fora e fui protestar. Enfiei-me no primeiro táxi que passava e mandei seguir para o Departamento dos Perdidos e Encontrados. Aí, embiquei para o functonário competente que lia o jornal atrás do guiché, atarefado. – Desapareceu-me o elefante – barafustei, realmente ofendido e lesado. – De que cor? – perguntou-me, indiferente embora cortês. – Ora essa! Cinzento, está bem de ver. – Bem, vou tomar nota. Mas quem sabe, talvez o senhor não lhe tivesse dado alimento suficiente! – Duas cadeiras de palhinha. uma esteira caipira bem grossa e um cortinado de bambu. acha pouco? – Não se enfeze, não se enfeze que não vale a pena. Ele volta, é mais que certo. Vendo bem. o funcionário estava na razão. Era assim mesmo. Voltei para casa, preparei um gin e fiquei à espera As coisas nos trópicos são assim. Aparecem e desaparecem Entretanto, enquanto andava de aqui para ali, apareceram-me uma morena bem simpática, seta garrafas de gin e um pacote de bolacha araruta. O elefante ainda não.


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TORAH

Jeová achou que era altura de pôr as coisas no seu devido lugar. Lá de cima, acenou a Moisés. Moisés foi logo, tropeçando por vezes nas lajes e evitando o mais possível a sarça ardente. Quando chegou ao cimo, tiveram os dois uma conferência, cimeira, claro. A primeira, se não estou em erro. No dia seguinte Moisés desceu. Trazia umas tábuas debaixo do braço. Eram a Lei. Olhou em volta, viu o seu povo aglomerado, atento, e disse para todos os que estavam à espera: – Está aqui tudo escrito. Tudo. É assim mesmo e não há qualquer dúvida. Quem não quiser, que se vá embora Já. Alguns foram. Então começou o serviço militar obrigatório e fez-se o primeiro discurso patriótico. Depois disso, é o que se vê.


JOÃOZINHO VOLTA A CASA

Joãozinho sentia-se livre, realmente livre apos sete anos de serviço militar obrigatório e mais oito compulsivos nas províncias coloniais de Veja-3 e de Procion-5. Quinze anos duros, sem a certeza de estar vivo no dia seguinte, na espera constante dos ataques súbitos, inesperados e eficazes dos guerrilheiros indígenas a defenderem palmo a palmo os seus planetas das investidas do ocupante de outra raça. Guerra porca, pensava joãozinho. Mas tinha acabado, pelo menos para ele. Fizera os seus quinze anos e estava vivo. Era o que importava. Os outros que se matassem lá em Veja-3 e Procion-5. Ele não tinha mais nada a ver com aquilo. Chegara de manha vindo de Procion-5, com transbordo na estação orbital de Lyra, no transporte subespacial “Pátria Feliz”. Vestido civilmente, com o saco do regulamento cheio de recordações de guerra que pensava poder vender por bom dinheiro aos amadores de coisas mórbidas; narizes de zark, mãos embalsamadas de gurol, orelhas secas de timbor. E também três medalhas que talvez dessem algum lucro, alem do soldo atrazado que recebera junto com o premio de fim de alistamento. Um pouco desorientado, a cidade monumental e tentacular mudara assustadoramente naqueles quinze anos, procurou um pequeno hotel automático onde ficasse uns dias. Não tinha família para procurar. Talvez alguns primos, não sabia onde. No dia seguinte tentaria localizar os velhos amigos e, se possível, encontrar um emprego, embora se sentisse um pouco desactualizado no que dizia respeito a trabalho. Bem, veria. No momento, o que desejava mesmo era beber, saborear aquelas antiquíssimas bebidas do velho planeta, um gin, um whisky, uma cerveja, mesmo um pouco daquele liquido que era a paixão do avo, o vinho, se ainda houvesse. Matar uma sede que, durante quinze anos, apenas fora enganada com os álcoois imundos das colónias remotas.

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E depois distrair-se, ir ver como é que estavam funcionando os quase esquecidos Palácios do Prazer. Deixou o saco no quarto, registou a voz no ordenador da entrada, entregou os créditos pedidos no recebedor automático e saiu. A tarde passou-a num bar quase igual aos da sua juventude de mecânico em computadores portáteis. Para que lhe seria útil aquilo, agora? Certamente os modelos actuais eram totalmente diferentes, o que ele soubera já não devia servir para nada. Pediu outra cerveja. O copo cheio surgiu-lhe na cavidade do balcão, sistema que não havia no seu tempo. Quinze anos naquela guerra suja, era o que era! Bem, estava livre dela. Jantou ali mesmo. Pelo menos o bife ainda era igual, embora um pouco menor, pareceu-lhe, e também com um gosto levemente diferente. Ou talvez ele já tivesse esquecido o sabor da carne do seu planeta. Pagou e saiu. Olhou em volta, à procura de um transporte. Viu passar o helicarro mas preferiu esperar um trubotaxi, não estava bem certo na direcção a tomar. Instalou-se no primeiro que passou e disse, conciso: – Para o Palácio do prazer mais próximo, por favor. O condutor olhou-o, sorriu e perguntou discretamente: – É de fora, não? – Sim, bem de fora. Quinze anos em Veja e Procion, na guerra. – Ah! Na guerra! É terrível, mas tem que ser, não é? Ainda há pouco, na distribuição das medalhas aos inválidos, sabe, o Presidente Mundial afirmava que temos de manter as províncias coloniais, são parte integrante do património planetário. E a nossa heróica juventude a lutar bravamente nesses planetas distantes! O senhor foi ferido? – Fui. Várias vezes. Leve-me ao Palácio do Prazer. Joãozinho recostou-se bem e olhou pela janela. O condutor observou-o com certo espanto e seguiu em frente, calado. Pagou e saiu junto à entrada fulgurante do Palácio. Bem diferente de antigamente. Entrou no hall enorme, cheio de luz e dirigiu-se ao vendedor automático de ingressos. Cinco créditos! Estava mais caro, no seu tempo eram dois. Quando se virava para a porta giratória de passagem, uma voz mecânica disse, seca:


– Identificação. Olhou em volta, admirado. A voz vinha do automático. – O quê? – Identificação – repetiu a voz. Mas que era aquilo? Aquela era nova! – Sou soldado desmobilizado. Cheguei hoje. – Identificação – foi a resposta mecânica. Joãozinho, enfrenesiado, ia atirar um murro quando se lembrou que aquilo era uma maquina. Não adiantava. – Mas que raio quer que eu faça? – zangou-se como se estivesse a falar com alguém. – Identificação. Quarto pedido. Queira meter a sua carta de identificação na abertura ao seu lado esquerdo. Joãozinho puxou da identificação militar que se conservava consigo. Num gesto brusco, de repelão, meteu-a na abertura indicada. A carta desapareceu para voltar a aparecer uns segundos depois. Joãozinho pegou nela. – Recomenda-se uma ida imediata ao Centro Mundial de Identificação mais próximo. A sua carta está desactualizada. Pode entrar. A porta giratória começou a girar. Joãozinho entrou, furioso. Raios partissem a máquina, mais a identificação, mais aquilo tudo! Meteu pelo corredor da direita e entrou na Sala de Tiro. Estava cheia, no seu tempo já era assim. Escolhia-se a arma preferida e o alvo que se desejasse, vários animais e ate seres humanos dos dois sexos. Em tamanho natural e tão bem realizados que, ao serem atingidos, caiam como se fossem verdadeiros. Pegou numa carabina automática de doze tiros. Queria ver se , apos ter usado durante anos as mais modernas formas de matar, ainda sentia algum prazer ao usar aquela arma antiquíssima. Talvez um arco e uma flecha o divertissem mais. Ia ver. Nesse momento sentiu a mão pousar-lhe no braço. Virou-se e viu um empregado do Palácio, com brilhante uniforme de guarda suíço, que lhe sorria. – Tem a sua licença para uso de armas num Palácio do Prazer? Joãozinho explodiu: – A minha licença? Oiça cá, sou soldado, cheguei hoje, passei quinze anos a usar tudo quanto é arma e a matar sem licença, ouviu? Que estupor de licença é essa?

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O guarda suíço retirou a mão, ficou sério e tentou explicar: – Bem, não se exalte, é uma determinação recente. O senhor compreende, a violência tem andado de tal ordem que ate aqui isso acontecia. Vinham cá, pegavam numa arma, atiravam no companheiro ou companheira e iam-se embora. Estava a tornar-se exagerado. Então o Governo Mundial resolveu que era necessária uma licença para utilizar armas num local como este. Bem, é uma licença passada pelos Serviços Psico-Psiquiátricos garantindo a estabilidade emocional do possuidor. Nada complicado, o senhor amanhã trata disso num instante. Joãozinho ia para dizer qualquer coisa mas o amável funcionário interrompeu-o: – Soldado, quinze anos na guerra e chegou hoje, não foi o que disse? Bem, deve estar farto de matar – sorriu cordialmente. – Posso autorizá-lo a usar armas hoje, não tenho a menor dúvida. É só ir ali ao registador automático. Tem duas aberturas. Numa está escrito “licença de armas” e na outra “documentos provisórios”. Apresenta a identificação militar na segunda. Por hoje é suficiente, mas vá tratar da licença, meu amigo. Sorriu de novo e, marcialmente entrapado em guarda suíço, afastou-se. Joãozinho ia mesmo atirar-lhe um pontapé furibundo, mas conteve-se. Inferno, que era aquilo? Estava sem perceber nada, mas lá ir outra vez pedir autorizações a uma máquina, isso é que não. Atirou com a carabina para o chão, entre o espanto dos atiradores prazenteiros que o rodeavam e enchiam a sala, deu um pontapé, deu mesmo, num alvo em forma de cão-policia que estremeceu e quase tombou, e saiu pela porta fora. Tentou orientar-se. Sala do Amor, indicava uma luz acendendo e apagando, a apontar para o corredor da esquerda. Era isso. Quinze anos, irra! Era por ali que devia ter começado. Enfiou pelo corredor, já calmo e aliviado. Entrou na Sala do Amor com o à-vontade que dantes lhe fora habitual. Mas aquilo estava mudado! Nem sombra das mesas simpáticas e das cadeiras confortáveis onde se podia tomar uma bebida preparatória, não se via uma única daquelas maravilhosas garotas de sorriso provocante e convidativo, faltavam as velhas músicas quase melancólicas tão suas conhecidas, desaparecera a luz suave e embaladora, desaparecera tudo. Apenas uma sala pequena, iluminada por uma luz agressiva, nítida, com uma porta


giratória ao fundo e uma maquina de controle automática logo ao lado. Um funcionário do Palácio junto ao controlador, vestido de marroquino antigo, ao que lhe pareceu, teve um sorriso simpático e avançou para ele. – Isto está mudado! – murmurou joãozinho, num espanto triste. – Provavelmente há muito tempo que não nos dá o prazer da sua visita. – Sim, há uns quinze anos, parece-me. Estive na guerra, lá no ultraespaço e só hoje é que voltei – Joãozinho mirava a porta giratória. – É por ali? – Exactamente. É só apresentar o certificado genético ao controle automático. Paga lá dentro. – Certificado genético? – Joãozinho começou a desconfiar. – Ah, claro! O senhor esteve quinze anos fora! – O marroquino, sempre sorridente, prosseguiu a explicação. – O governo Mundial verificou, nestes últimos anos, que frequentemente os soldados que voltavam do ultraespaço, desculpe-me o senhor, traziam certo tipo de doenças venéreas que parece não terem podido ser tratadas com eficácia até agora. São contagiosas como o diabo e produzem uma loucura agressiva extremamente perigosa. Assim, toda a gente, mas toda a gente, tem de possuir agora um certificado passado pelo Instituto Mundial de Genética para poder garantir qualquer tipo de relações sexuais. Essa fiscalização é importantíssima, principalmente nos Palácios do Prazer, já que, como sabe, são locais em que o contágio poderia ser explosivo. É por isso que lhe pedi para apresentar o certificado genético. Se não tem, é rápido de conseguir. Amanhã o senhor... Joãozinho começou a olhar fixamente para o funcionário, bem fixamente, cada vez mais fixamente. Então ficou certo. Tinha à sua frente um timbor, um gerrilheiro timbor, era um timbor escuro e agressivo. Levou a mão à arma. Não a encontrou. De braços meio curvados, mãos abertas e dedos em gancho, avançou para o timbor que recuou de boca aberta. As mãos de Joãozinho encontraram o pescoço. E começaram a apertar com a prática eficaz de quinze anos. Apertavam, apertavam, apertavam, enquanto o timbor caía lentamente para trás.

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INTERVALO

– Sobe – ordenou o senador Spiralgold ao seu piloto privativo. O helicóptero zumbiu e tomou altura, oscilando levemente. – Acelera! – disse apressado o senador para o piloto atento. O piloto carregou no botão. O fundo abriu-se e o senador Spiralgold esborrachou-se no solo, com eficácia. – Coisas que acontecem – comentou para o piloto o espião moscovita disfarçado em garrafa de gin.


FELINA

Realmente custava a acreditar como era possível ter tantos gatos num apartamento tão pequeno, de quarto-sala, kitchnet e duche. Onze, dos mais sábios e milenários. A Lolita, o Sargento, a Mirelle, até o Moshe Dayan de olho único e tremendamente inquisitivo e, acima de todos, o Moisés, tal como deve ser. Mas Yaffa entendia-se perfeitamente no meio daquele caos felino, peixe e sopinhas, carne picada e leitinho, até lhe sobrava tempo para nos abeberar em excelente scotch quando lá íamos, sem falar no vinho que era realmente magífico. Os jantares em casa de Yaffa eram uma coisa exaltante. Armava-se a mesa e enfiávamo-nos todos na kitchnet, ajudando o cozinhado. Depois, instalados, chupando o espargo e a alcachofra, resolvíamos logo ali os mais complexos e tremendos problemas da estratégia móvel do Médio Oriente, enquanto o Dayan, abrindo caminho à sapatada e empurrando Mirelle, vinha ao encontro do pãozinho ensopado em molho. Mirelle sofria a injustiça sem se importar muito, era o que me parecia. Ela lá sabia. Então, quando já estávamos apopléticos de tanto solucionar os casos mais bicudos da arrancada blindada através das areias e da devolução das botas abandonadas, Mirelle passava-me suavemente entre as costas e a cadeira, pulava ao de leve para o meu lado e parecia sorrir. Moisés, lá empoleirado no alto do armário dos fatos, tinha o ar de quem lança o anátema. Mirelle, encostada ao meu braço, recusava a maldição e esperava. E lá ia o lombinho de linguado bem temperado, enquanto Dayan, rebarbativo, rondava os outros fregueses. Assim foram passando os jantares tácticos. Mas a coisa complicou-se. A guerra parecia estar de novo à porta, tremenda, angustiante. Jantámos imediatamente. Na preocupação do momento, exaltámo-nos no Chivas com pouco gelo. Deu-nos uma voracidade medonha, devorar fosse o que

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fosse, o inimigo estava ali, terrível, com mais botas, com canhões, com bonés, implacável. Encontrava-me na parte que me competia do lombo assado, quando Mirelle surgiu, vinda da distância. Dayan andava atarefado, governando-se o melhor que podia. Moisés, após a dignidade lá no topo do armário, viera ver passar o seu povo e, claro, auferir qualquer oferta ocasional. Sargento, Lolita e os restantes, cirandavam na pedincha do costume. Mirelle nada tinha a ver com aquilo. Nem o impor do soldado nem o conduzir do profeta, e com os outros ainda menos. Vinha ter comigo, tudo me levava a crer, sem falar no lombo cheiroso. Dei-lhe o pedaço que lhe pertencia há séculos – com molho, está bem de ver – e deixei-a macia, encostada ao braço. A zanga aumentava, estrugia. Num momento de súbita lucidez aquilo pareceu-me exaltação histórica sem ponta por onde se lhe pegasse. Mas era preciso e ajudei. Entretanto, após o assado monumental, chegou-nos a quebra e a morigeração. E então? Como resolver a encrenca, como solucionar aquele trambolho militar que nos enfezava e nos punha a cabeça em água? Só havia uma solução, estava ali, perfeita, clara. Outro governo já, outro, sem demora, um governo de paz e entendimento, já basta de agressão, abaixo as bombas e os zarolhos. Abraçámo-nos e votámos logo, rápidos, outro governo, com um Pernod em água gelada, claro. A situação esclarecia-se. Mas Mirelle ofendeu-se, Pernod não. Dayan, suspeitando de qualquer coisa, retirou-se. Moisés, digno como sempre, disse volto ao alto e lá se instalou no topo do armário, vendo tudo de cima. Que me restava fazer? Perdera as certezas. Yaffa estava com o companheiro do momento, tão herói durante o jantar que até parecia verdadeiro. Garantido por dois anos, como qualquer televisor decente com selo de fábrica. Sim, realmente que fazer? Yaffa, cotovelos na mesa e segurando ao de leve o rosto cruel e antiquíssimo, com os seios agressivos, sorria-me como quem morde uma maçã amarga mas gostosa. Foi assim. A paz estava feita, o novo governo estava votado. Disse boa noite, peguei gentilmente em Mirelle que me ferrou uma dentada de ternura e fui para casa ouvir música e beber o gin que me restava. Com Mirelle encostada ao braço. A guerra é perturbadora, Yaffa.


ENTRE O TIGRE E O EUFRATES

Não me chamem senhor foi o que eu disse quando cheguei ao caminho entre os teus seios não sabiam que eu possuí a tua língua e falaram-me com extrema preocupação como se fala a um estrangeiro não sou senhor de nada apenas conheço a terra líquida vegetal colorida quente que desce dos rios que tu és até ao teu umbigo Yaffa civilizações redondas e macias antigas e cruéis reunidas na estranha planície que nunca me entregaste estendendo-se entre amoras até se encontrar num tempo primeiro e decisivo fundo único exacto em colinas ondulantes onde nascem cantantes vales de laranjas que se repetem pelo horizonte até junto à orla do teu mar deslizando entre cidades enterradas a recordar vestígios de paisagens como trombetas de ruído e sal em caminhos de água e de memória

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Yaffa O teu sexo de repouso límpido Ao som da flauta do tof dos figos Bien n’har Part un’har Chideke!


NOIVADO

Estendeu os braços carinhosamente e avançou, de mãos abertas e cheias de ternura. – És tu Ernesto, meu amor? Não era. Era o Bernardo. Isso não os impediu de terem muitos meninos e não serem felizes. É o que faz a miopia.

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DESABAMENTO

Quando o prédio desabou achei que realmente era demais e desembestei por ali fora, a reclamar ao Janeiro, o porteiro. O Janeiro, metendo a cabeça através de um buraco e com a cara cheia de caliça, ficou espantadíssimo. – Estragaram-lhe alguma coisa? – Bem – estoirei – que é que você pensa, depois disto? Parece-lhe que são coisas que se façam? Pois fique sabendo que perdi as caixas das nêsperas, o gin, os sapatos de verniz, dois pijamas e a múmia! – A múmia também? – o Janiro saiu totalmente do buraco e sacudiu-se, visivelmente preocupado. – Tem a certeza que a múmia também foi? – Pois se lhe estou a dizer, homem! Deve ter ido pelo buraco do saguão, de cambulhada com o doutor Guedes e os restos da Dona Filomena. – Ora esta, ora esta! – mastigava o Janiro abanando a cabeça num espanto. – Ele há cada coisa! Temos que tomar providências. A múmia de cambulhada com o doutor Guedes e a dona Filomena que Deus tenha! Era o que faltava! Como foi não sei, mas o facto é que a notícia se espalhou. Assim, quando eu e o Janiro esgravatávamos os restos de mesas, lampreias, cabeças, panelas, braços, enfim, o usual nos desabamentos, em busca da múmia, surgiu-nos o Chefe da Polícia tropeçando entre os escombros, atarantado. – Constou-me que, com toda esta desarrumaçãoo, a múmia tinha desaparecido no entulho. É verdade? Contei-lhe o caso tal como acontecera, sem tirar nem pôr. Ficou Consternado. No que respeita as nêsperas e pijamas, arranjam-se quantos quiser; mesmo o gin, vá que não vá, sempre se há-de resolver. Mas a múmia! É logo de cambulhada com o doutor Guedes e a dona Filomena que Deus haja! Isto só mesmo aqui!


A busca sistemática foi imediatamente organizada. Até os bombeiros, que estavam todos a admirar duas crianças estrebuchando penduradas nos fios telefónicos, foram chamados a cooperar. O chefe de Polícia comunicou ao exército e aos políticos: a múmia tinha desabado de cambulhada com o doutor Guedes e a dona Filomena que repouse em paz! Formou-se a Comissão de Inquérito de urgência, enquanto eu e o Janiro continuávamos a esgravatar. E encontrámos o Estevão Marcondes, vejam lá! Estava entalado entre a sogra e um aparador Queen Ann, debaixo do entulho do 3º andar. Não sabia nada, a última vez que tinha visto fora no cinema, três meses atrás, pela altura das festas da Páscoa. Continuámos. Entretanto o exército entrava de prevenção rigorosa e o governador telefonava freneticamente. E nós a procurar. No buraco do saguão nada, a não ser uma perna – a última, creio – da dona Filomena. Então rebentou um estrondo medonho. O exército aperrou a arma. A parede da garagem ao lado desabou inteira, subitamete. E quem havia de ver, passando calmo através de nuvens de poeira? O elefante! Há coisas que só vistas, contadas ninguém acredita! Pois ali estava o elefante que me desaparecera da varanda havia tempos já! E atrás dele, lépida, sorridente, sagaz como sempre, a múmia! O exército desaperrou a arma. O Chefe da Polícia regozijou-se. – Vê-se cada coisa nesta vida! – comentava o Janiro para quem o queria ouvir, enquanto sacudia um bife de alcatra que se lhe pegara a um ombro. E, enquanto a múmia expunha detalhadamente os acontecimentos ao Chefe da Polícia e à Comissão de Inquérito e se preparava a conferencia de imprensa, eu e o elefante atravessámos a barreira das viaturas blindadas militares e dirigimo-nod ao bastilha para tomar uns gin-tonics.

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SEJAM BEM-VINDOS

Estava eu a almoçar quando ouvi a campainha da porta. Imperativa. Fui abrir, limpando a boca. Era um Vigilante, pelo menos foi o que me pareceu. Consta que agora eles andam muito por aí. Eles e outros. Quase todos. Convidei-o a entrar e, hospitaleiramente, disse-lhe que almoçasse connosco. Instalou-see na cadeira à minha esquerda, com dificuldade, ajeitou-se ao de leve e ficou silencioso. Cortês. ofereci-lhe vinho, um excelente tinto que o Gonzaga me enviara da terra havia pouco. Com voz peitoral, funda e levemente sibilante, arrastando os rr como é característico em todos os Vigilantes, informou-me: —Agrredeço mas não devo. O metabolismo, sabe. Se tiverr limonada gasosa, aceitarrei com prrazerr. A prima Helga, que de vez em quando vem por cá passar uns dias, correu rápida ao frigorífico e voltou com duas garrafas de limonada bem fresca, por sinal as últimas. Temos sempre limonada em casa, prevendo as urgências súbitas. Enquanto ela as abria insisti, simpático, com o nosso visitante: – E um pouco desta cabeça de pescada, não vai? Garanto-lhe que está realmente catita. Aí a prima Helga enfrenesiou-se. Lúcida e bem informada como é, retorquiu-me: – Não sabes que eles não podem? E cuidadosamente, quase com ternura, passando a mão pela superfície agradavelmente lisa que ia de ombro a ombro, começou a despejar a primeira garrafa de limonada gasosa pela fenda que, ávida, se abria no peito do Vigilante consolado. As primas são uma coisa...!


CASAMENTO

“Na riqueza e na pobreza, no melhor e no pior, até que a morte vos separe.” Perfeitamente. Sempre cumpri o que assinei. Portanto estrangulei-a e fui-me embora.

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REGRESSO

A caminho de casa apรณs dez anos de serviรงo na estrada militar pensava que o melhor nรฃo era isso o melhor era voltar a poder sair de casa voltar a procurar qualquer serviรงo que lhe desse mais dez anos sem ter que estar em casa


GULODICE

A maior parte das pessoas come bolos executando uma espécie de rito. Olha-os, regala-se por antecipação, observa a forma e a cor, entrega-se a suposições sobre o que será o recheio oculto, espera um pouco para a surpresa ser mais excelente e só então os come, com discretas dentadas saboreantes. Makarel não. Quando via um bolo avançava com raiva. Adquiria-o, furioso, e acabava com ele logo ali. Então lambia o beiço, esfregava as mãos e, satisfeito, ia à procura de outro. Portanto, nada mais compreensível do que ver Makarel entrar, já zangado, na pastelaria Ao Doce da Malásia. Foi logo direito ao balcão envidraçado e observou o que havia, disposto a tudo. Viu-o imediatamente. Era redondo, bem grande, coberto de creme amarelado, maligno e quase tão agressivo como Makarel. Não hesitou. – Este! Apontava o bolo com o dedo, enquanto olhava imperativamente para o empregado. O empregado pegou no bolo com a pinça e estendeu-o a Makarel, com um guardanapo de papel a acompanhar. Makarel abriu a boca. sorriu na vingança a vir, ergueu o bolo e avançou a cabeça, com a outra mão por baixo para não sujar o fato. O bolo saltou-lhe da mão e ficou pousado na mesa, atento. Makarel teve um sobressalto. Que era aquilo? Resistência? Atirou uma sapatada velocíssima, na intenção certa de pegar o bolo. Qual nada! O bolo, mais veloz ainda, zás, em cima do balcão. Então Makarel encanzinou-se. A ferocidade recalcada veio-lhe toda acima. Arreganhou os lábios, com os caninos à vista em agressão declarada. E atirou um murro demolidor ao bolo e ao balcão. Acertou no balcão e partiu tudo. No bolo, não. O bolo engrossara, estava de pé junto à porta dos Cavalheiros, fitando friamente Makarel através do creme cor de creme.

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Pessoas levantavam-se, algumas cadeiras caíam, o em-pregado rugia entre os restos do balcão. Makarel avançou para o bolo. Perdera a noção da prudência, queria comer, queria matar aquele bolo, queria destruir a coisa redonda, mergulhar as mãos até ao fundo no creme, esfrangalhar, triturar. O bolo avançou também, determinado, num caminhar maciço. Enfrentaram-se. Makarel atirou-se de punhos para a frente e cabeça encolhida entre os ombros. As portas rebentaram, deixando os gonzos solitários, a montra estilhaçou-se e vomitou lampreias de ovos. Lascas de madeira tinham sido mesas, cadeiras esmagavam-se ao sopro vindo de uma fúria ciclópica. As pessoas saiam, numa correria de alucinação. Procuravam a polícia, os bombeiros, o exército, o ministério, a presidência, até mesmo a NATO pelo telefone. O primeiro a chegar foi Gumersindo, da charcuteria ao lado, com a tranca da porta das traseiras. Deu uns passos temerosos, avançando com cuidado entre o desastre caótico. Tudo estava calmo, num silêncio de abismo milenário. Lá ao fundo o bolo abominável sorria, a limpar o creme que lhe escorria ao de leve entre o açúcar. Mais ninguém, na pastelaria "Ao Doce da Malésia."


INDÚSTRIA CASEIRA

Esqueletos Lda. O nome era poderoso, ma o negócio realmente uma miséria. Josefino tinha-o criado para sobreviver. Uns ossos aqui, outros ali, lá ia vendendo alguma coisa aos interessados, artistas de naturalismo, estudantes preocupados e vários decoradores de feiras e da televisão. Foi nessa altura que lhe apareceu o explicador de anatomia comparada. – Preciso de um esqueleto completo, bem limpo, feminino, humano é claro, nunca mais de metro e sessenta, para estudo e explicação da fatalidade do macaco nu. Tenho alunos. Pago. Josefino não se espantou. Não era caso para isso, aquilo era o seu negócio. Só que acontecia não ter o tal esqueleto feminino limpo, para estudo e explicação. Além de alguns fémures várias tíbias uma caveira sem maxilar inferior que trouxera de Estarreja, um mocho semi-empalhado, dois gatos com articulações de bom arame de cobre e um macaco que lhe viera do Brasil na mala de um jornalista, apenas tinha os ilíacos de uma velha. Era pouco. Tentou explicar a utilidade do macaco, a sua qualidade óssea, a sua validade pré-humana. Nada. O outro não aceitou os argumentos, não se convenceu. Se Josefino não tinha o esqueleto conveniente, ia-se embora e pronto. Josefino precisava, não podia perder aquela oportunidade Prometeu para depois de amanhã. à tarde, sem falta. Um esqueleto feminino totalmente acabado, perfeitamente limpo, digno de Esqueletos Lda. Próprio para explicadores. O explicador concordou, acertou o preço, deu um sinal suficiente e disse que voltava daí a dois dias com a mala apropriada E foi-se. Josefino foi ver o tanque da cal. Estava bem, a cal era abundante, ainda por usar. Escolheu os instrumentos mais indicados e procurou um bom arame, maleável, para as articulações.

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Então, com extremo cuidado, preparou a injecção e dirigiu-se para a varanda onde a avózinha dormia na cadeira de balanço, na doçura ensolarada do entardecer acariciante.


MATERNIDADE

.. entretanto, continuava a tricotar o casaquinho azul.

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MEDICINA TROPICAL

O calor era alucinante. A chuva caía pesada, num jogo de massacre. Sentiu que tinha uma tremenda dor de cabeça. Dirigiu-se ao posto clínico. – Isso é coisa sem Importância – disse o médico. – Tome estes comprimidos – deu-lhe três. Tomou. O calor continuava, sólido e exacto. A chuva também, persistente. A dor de cabeça estava a aumentar. Voltou ao posto clínico. – Vamos já tratar disso – afirmou o médico. – Ora vire-se para lá. Virou-se. O médico proporcionou-lhe quatro supositórios. O calor ainda; e a chuva. Sempre. A dor de cabeça a estoirá-lo. Retornou ao posto clínico. – Vai ver que fica bom – explicou o médico. – Ora abra a boca. Abriu. O médico extraiu-lhe imediatamente dois molares e um canino. O calor estava realmente alucinante. A chuva era espaço líquido. A dor de cabeça a invadirlhe o corpo todo. Foi ao post clínico. Uma vez mais. – Então como vai isso? – perguntou o médico. Puxou o facão e espetou-o, preocupado e consciente através do médico. Resultou.


A VIAGEM, ENFIM

Isto de ter sempre o mesmo sonho todas as noites torna-se aborrecido. Era assim: saía de casa, ia até ao carro e dizia à família “vamos lá fazer essa viagem”. Primeiro entravam a mulher e as duas crianças, depois os pais, ele instalava-se ao volante e pronto, não havia lugar para os sogros! Era sempre a mesma coisa. Por mais que empurrassem, não conseguiam metê-los lá dentro. Acordava a suar, empurrando ainda qualquer coisa que não estava lá. A mulher aconselhou-lhe uns calmantes, para ver se o sonho se ia. Mas nada. Lá vinha sempre, todas as noites. Éverdade que empurrava menos, talvez os calmantes, mas continuava naquele desespero de não conseguir enfiar os sogros no carro alucinante. Os sogros disseram-lhe que não se interessavam em ir, não faziam questão, já estavam velhos para viagens. Os pais prontificaram-se a ceder os lugares. deles. Toda a família colaborava, mas o sonho continuava. Chegou a fazer experiências, a meter a. família completa no velho Citroën arrastadeira. E conseguia, lá se metiam todos, mais ou menos apertados mas entravam. Mas no sonho não. A coisa tornava-se desesperante. – Porque é que não vais ao Mora? Ele é psicanalista, explica-te, tira-te isso – insistia a mulher, já arreliada e preocupada também, com aquelas viagens nocturnas e frustradas em que ele se envolvia sem culpa. O Mora era amigo de infância, nem sequer permitia que ele pagasse, era extraordinário! As vezes até ia lá jantar E respondeu à mulher: – Tens razão, Xuxa, vou mesmo, que isto assim não pode ser. Tens sempre razão, menina. Deu-lhe um beijo e atirou-se para o consultório do Mora. Contou tudo. O Mora mandou-lhe contar mais, o passado também que, mesmo sendo amigos de infância, o passado continua sem-

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pre oculto, ao que disse. Deitado, contou-lhe o que lhe veio à cabeça. E a coisa pareceu esclarecer-se. O que ele precisava era de derivar, sabem, encontrar qualquer coisa além do carro e da viagem que não fazia em sonhos. Derivar. Substituir o carro. Agradeceu e convidou o Mora para jantar no sábado. O Mora não podia e deu-lhe uma palmada nas costas. Chegou a casa aliviado e esclareceu a Xuxa: – Vou derivar, menina. – Derivar? – Sim, substituir o carro e tudo o mais, excepto tu, as crianças, os velhos e a casa. Amo-te, mas vou derivar. Xuxa concordou. Desde que derivar resolvesse o caso, ele que derivasse quanto fosse preciso. Nessa noite ainda teve o sonho e acordou estafado de tanto empurrar os sogros. No dia seguinte avisou para o emprego que la mais tarde, foi ao Banco buscar o que sobrava e entregou-se a uma moto, uma Rudge poderosa e em segunda mão. Estava a derivar em cheio. O sonho foi-se diluindo. Cada vez empurrava menos, com grande satisfação da mulher. Então, após ter passado um fim-de-semana a mexer na máquina para ver se percebia alguma coisa e a dar voltas pela vizinhança de capacete preto e amarelo enfiado na cabeça. deixando o carro na garagem, sentiu-se. livre. E era verdade. À noite não sonhou. No dia seguinte a Xuxa disse-lhe que até parecia dez anos antes. Tudo voltou à normalidade, os sogros deixaram de se preocupar com a viagem, as crianças entusiasmaram-se com os estoiros da moto. E o carro na garagem. E de repente, tornou a sonhar. O sonho. Assim: saiu de casa, foi até ao carro e disse à família “vamos lá fazer essa viagem”. A mulher e as crianças entraram depois os pais, e ele instalou-se ao volante. E não havia lugar para os sogros! Começaram a empurrar para os meter lugar, e nada. Então virou-se para a garagem. Estava uma pouco diferente mas a moto continuava lá dentro. Deixou tudo, montou a moto, pôs o chapéu de palha e avançou pela estrada. Uma estrada larga, muito aberta a tudo.


Pareceu-lhe já a ter visto alguma vez. Olhou para trás e lá ao longe, à porta de casa, continuavam a empurrar-lhe os sogros. Acenou uma despedida, acelerou e continuou, ohando árvores e nuvens. Ainda não voltou.

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A VELHA E AS COISAS

Verdade se diga que o país era pequeno, bem pequeno mesmo. Logo, é evidente, as coisas também tinham de ser pequenas para caberem. Daí os partidos. Havia o Partido Blicano e o Partido Crático; assim reduzidos, cabiam. Eram a oposição. Além disso, havia a Posição. O General, os Dois Coronéis, o Sargento (justicialista), o Professor Mustache, autor da Constituição e de ‹‹Cartas Patrióticas ao Corneta Pir›› e a Velha dirigindo, claro. Portanto as coisas lá iam, o comportamento geral era bastante aceitável, as cebolas vendiam-se a contento, o nabo aguentava-se, havia a nêspera e o export-import funcionava mais ou menos. Mas também havia as eleições à porta. Era preciso tanto, nada de imprevidências. E chamou-se o Galvez, dos suplementos Literários, para montar o processo jurídico, organizar e levar o assunto a bom termo, como devia ser. O Galvez organizou. Leram-se as dignidades do preparo. O discurso activou-se e a pátria foi avisada que estava em perigo. Houve quermesses. A Velha explicou tudo ao país, mais uma vez, pela televisão. Elegeram-se misses e praticou-se música histórica, própria da conjuntura. Assim se foram três meses, com várias bofetadas esclarecedoras aos que, pelos cafés, ainda não sabiam. Então chegou o dia do voto,. Todos deram o papel que lhes tinha sido entregue. Alguns espancamentos disciplinares, para clarear o voto, e a contagem fez-se. A informação foi a seguinte: Sopa de Feijão Branco (candidato Blicano) – 13 728 O Bode ( candidato Crático) – 13 727 D.ª Josefina Sur-Mer (candidata Independente) – 13 726 O General (candidato) – 13 Donde, conforme a Constituição, o General foi eleito de novo, por maioria absoluta.


Haviam os seguintes impedimentos ilegais: Sopa de Feijão Branco não residia há mais de cinco anos no país (inconstitucional, portanto). O Bode era menor e não estava inscrito nos cadernos eleitorais (inconstitucional, evidente). D.ª Josefina Sur-Mer não sabia Matemáticas Modernas, já residia há mais de cinco anos no país e, além disso, era Sur-Mer (totalmente institucional). Vendo o acontecimento, o Galvez ameaçou escrever para mais Suplementos, pondo tudo em pratos limpos, já que lhe parecia – tinha até provas – que Sopa era residente perpétuo. O Galvez foi chamado. A Velha falou-lhe. O Galvez escutou. A Velha explicou-lhe. O Galvez era patriota. O Galvez ficou convencido. Daí em diante o Galvez passou a negociar – com exclusivo próprio – na exportação da nêspera conservada, do pescado enlatado e da camisa de renda dos bilros. Teve também o Turismo e o Gabinete Alfandegário. Aqui se vê, portanto, que a coisa pública seguiu esclarecida, firme, como era de desejar. No entanto, dado o tamanho realmente pequeno do país, como aliás já fiz notar houve que fazer mais umas reduções. A Oposição passou a chamar-se só Ó e os Independentes, devido à situação económica e à outra, ficaram apenas Pendentes. Visto isto, o Galvez foi de ministro plenipotenciário para Tombuctu. Como dizia a Velha, no seu habitual ‹‹Colóquio à Lareira›› pela televisão: – Para a frente, meus filhos. A pátria nos contempla e o passado nos espera.

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HITLER? NÃO SEI QUEM É

Lopo Afonso Estêvão Benevides Dádois de Albergaria-a-Nova em um pintor marroquino muito conhecido. Entre os seus melhores clientes contavam-se o velho general chinês Serôdio e o príncipe moscovita Reboredo. Já tinha retratado toda a falecida família do príncipe e também pintara o general em várias posições sempre ao ataque. Por essa altura havia um tocador de gaita de beiços que se chamava Gogo, vejam lá. Como tocava gaita, ás vezes Lopo Afonso Estêvão convidava-o para o seu estúdio em El Passaro a fim de alegrar as presenças do general chinês e do príncipe moscovita com alegres gaitadas, como deve ser feito no ambiente artístico. Mas aconteceu certo dia uma coisa que. realmente, passa das marcas. Gogo tinha a mania da só tocar as músicas que achava bem, às vezes ficava horas sentado no chão, encostadoàparede, a inventar sabe-se lá o quê, sem qualquer espécie de respeito pela dignidade, pela sabedoria do general chinês, do príncipe moscovita, do pintor marroquino. Nesse dia, depois de suportar tais devaneios, o general Serôdio pediu o hino. O príncipe Reboredo concordou, o hino, pois claro. Lopo Afonso Estêvão ordenou o hino. Gogo não tocou! Sim, Gogo não tocou o hino! Recusou-se! Ele há cada coisa! E não houve nada a fazer! Não tocava e pronto! – Traição! – bramiu o general (chinês, note-se bem), recordando fuzilamentos e mergulhos em caldeiras ferventes. – Sim, traição ao Califado e ao Império, traição às obras pias, traição minaz! – aumentou o príncipe (moscovita, como já ficou bem esclarecido), recordando molhos de chibatas e também, não se sabe exactamente porquê, bailarinas circassianas. – Insídia, desafinado, malvadez! – engrolou Lopo Afonso Estêvão (marroquino e pintor, creio que não há dúvidas), sem conseguir recordar-se de nada. Gogo meteu a gaita no bolso e foi-se pela noite fora, e isto sem sequer pedir desculpa!


O general chinês trabalhou, o príncipe moscovita informou como se deve e o pintor (marroquino, insisto) comunicou. Passados uns dias foram lá onde às vezes Gogo vivia. Encontraram-no e trouxeram-no. Para uma casa alta numa rua estreita da capital. À chegada empurraram-no para fora do carro. Na porta eslava um senhor sorridente que comentou: – Então é este, ein! E deu-lhe duas bofetadas, confirmando assim o comentário. Continuaram a empurrá-lo pela escada acima. Pelos patamares iam-se vendo vários senhores, uns sorridentes outros não, quase todos mostrando uma pistola ou um cacetinho ao lado. No terceiro andar deram-lhe mais um empurrão e foi assim que o fizeram entrar numa sala, um pouco desequilibrado. – Vimos já—e fecharam a porta. À chave. Olhou em volta. Havia um banco corrido e uma clarabóia no tecto. Sentou-se no banco. Tinham-lhe tirado a gaita. Olhou para a clarabóia e viu uma nuvem que ia lá do outro lado. A chave girou na fechadura e eram os mesmos. – Anda cá. À saída da porta deram-lhe um pontapé, com ar de regulamento. O corredor cheirava a couves e urina, mas Gogo já tinha sido avisado. Toda a cidade sabia. Ao fundo, entraram todos por outra porta. Havia uma mesa e um candeeiro com o senhor sorridente atrás, outra mesinha com uma máquina de escrever e um enfezadinho a escrever nela e ainda uma cadeira. Vazia. – Senta-te aí. Gogo sentou-se. com os acompanhantes a ladeá-lo. Viraram-lhe o candeeiro para a cara. – Como te chamas? Não respondeu. Estava muito admirado por não saberem o nome dele. – Então? Nada. Não tinha vontade de falar, pronto. – Vejam se ele consegue lembrar-se. Um dos acompanhantes fez o que lhe tinham ensinado. Foi exactamente no ouvido.

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Gogo desequilibrou-se mas não muito, porque do outro lado lhe devolveram o equilíbrio. – Este parece que é dos que demora a falar! Sempre é precisa muita paciência! – e abriu mais o sorriso simpático, a olhar para Gogo. Gogo sorriu também. Era delicado por natureza. – Então não sabes o teu nome, Gogo! Nem onda moras, nem nada. Que coisa! Vamos ver. Mas Gogo tinha resolvido esquecer tudo. Tudo. Não foi no ouvido. Foi no nariz e Gogo caiu para trás. Com a cadeira. Começou a preocupar-se com o pouco de sangue que vinha do nariz mas um pontapé nos rins chamou-lhe a atenção para coisas mais importantes. – Levanta-te. Com novo pontapé e um safanão veloz ficou outra vez sentado. E um pouco espantado, enquanto esfregava os rins e tentava limpar o nariz, tudo ao mesmo tempo. – Então não sabes o teu nome, Gogo? Aquilo até parecia brincadeira. Mas não era. Era evidente que não tinha resposta. Não respondeu. Foi pelo nariz e pelo ouvido, ao mesmo tempo. Não conseguiu cair para trás porque um rolo de borracha, um dos tais cacetinhos. o apanhou pelas costas. Mas quando o rolo lhe acertou no estômago com suficiente precisão, caiu mesmo. – É teimoso. Gogo sentiu-se um pouco ensonado. Apanharam-no e puseram-no de pé. – Por agora basta. Levem-no lá para dentro. Voltaram pelo mesmo corredor. Abriram a porta e outro empurrão. Foi então que Gogo soube que não ia cair mais. E não caiu. – Já te vimos buscar. A porta fechou-se. À chave. Gogo sentou-se no banco e olhou para a clarabóia. A nuvem ainda lá ia. Ou outra, afinal era o mesmo. Começou a pensar, ia ter algum tempo para isso. Mesmo que lhe dessem a gaita ou até uma orquestra sinfónica, o hino é que ele não tocava, nem pensar nisso. Bem, as coisas têm sempre a recompensa que lhes compete, sabe-se.


Dado isso, Lopo Afonso Estêvão (pintor marroquino, estou farto de dizer, irra!), foi convidado para inspector de pinturas e outros actos pela Delegação Gonométrica Superior e enviado, com promoção à vista, a um sub-Califado dos trópicos Imperiais.

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CEGARREGA PARA CRIANÇAS

A velha dormindo o rato roendo a Velha zumbindo o rato correndo a Velha rosnando o rato rapando a Velha acordando o rato calando a Velha em sentido o rato escondido a Velha marchando o rato mirando a Velha dizendo o rato escutando a Velha ordenando o rato fazendo a Velha correndo o rato fugindo a Velha caindo o rato parando a Velha olhando o rato esperando a Velha tremendo o rato avançando a Velha gritando o rato comendo


SURPRESAS DA PESCA

Não tinha dado nada. Preparava-me para voltar para casa, mas resolvi atirar a linha uma última vez. Senti um esticão bem forte. Segurei firme e comecei a enrolar o carreto com cuidado, devagar. E não é que vejo vir um nazi no anzol! Um nazi bem bom, dos grandes! Fiquei admiradíssimo, tinham-me dito que já não havia. Tratei de o tirar com o auxílio do camaroeiro e fui verificar imediatamente. Era mesmo. General e SS, calculem! Com boné, medalhas, suástica e tudo. Vá lá uma pessoa acreditar no que lhe dizem! Meti-o logo numa lata, enquanto estava fresco, e despachei-o para a Peixaria Nacional. Lá devem saber o que fazer com ele. A mim, fracamente, não me serve para nada.

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A SOMBRA

Foi exactamente durante o jantar anual da empresa que Valter teve a sensação de que era seguido. Na altura do discurso final. Falava o doutor Raimondi, quando a sombra passou veloz, recortando-se por instantes no fundo da sala. Valter sentiu um arrepio súbito, ergueu-se de repente e, sem esperar o fim do arrazoado e as palmas consequentes, saiu pela porta fora entre a estranheza dos colegas. Na rua olhou em volta. Uma rua calma, iluminada, bur-guêsmente nocturna, sem tragédias à vista. Isso deu-lhe um certo alivio. Afinal fora apenas impressão sua, uma sombra que lhe parecera, talvez só a ele, ser mais do que uma sombra a segui-lo. Foi andando devagar pelo passeio, acendeu um cigarro e olhou uma montra de artigos para caçador, admirando um magnífico tigre que, em posição de rosnido feroz, propagandeava uma marca de cartuchos para assassinar coelhos. E, de repente, aquela coisa empalhada olhou para ele e a sombra que os spots atiravam para o fundo da loja pareceu avançar. Valter deu um passo atrás, em pânico, tropeçando numa jovem que lhe sorriu, agradável. Pediu uma desculpa entaramelada, quase engulindo o cigarro, engasgou-se, cuspiu e caminhou em frente, apressado. Não podia ser. Aquilo não tinha lógica. Como diabo um tigre empalhado…Evidentemente, o que ele estava era cansado Abrandou o passo, aquecido pelo neon dos Grandes Armazéns Bulora. As pessoas passavam, normais, apressadas umas, outras escorregando lentamente até ao tempo de ir para casa. ora vermelhas. ora azuis, ora amarelas, mas todas confortavelmente familiares, entrando e saindo do neon que escorria pelo passeio. Atravessou a rua, um pouco incerto no caminho a seguir, quase caindo em frente de um carro que buzinou, furioso. Por momentos sentiu-se tapado por aquela sombra ensurdecedora. Saltou, num arranco, para o passeio do outro lado.


Ficou a olhar o carro que desaparecia na esquina e outros que iam passando num zumbido de escapes em liberdade nocturna, até se sentir mais calmo, mais capaz de saber onde estava. Na rua, claro, a caminho de casa. Acendeu outro cigarro e continuou. Logo ali à frente o RODEO, um barzinho seu conhecido. Entrou , na ânsia de uma bebida e de um repouso temporário. Pediu um gin-tonic duplo com bastante gelo, a noite estava mesmo quente. Foi bebendo lentamente, à procura de qualquer justificação para aquilo. Ao olhar para a porta, viu-a passar, viu-a com nitidez, vibrante e rápida, deixando o ar a oscilar como se fosse água. Acabou o gin e pediu outro, que enguliu de seguida. Não, aquilo não era nada, só cansaço. Pagou e saiu. Procurou um táxi. Um táxi não, era fechado, melhor ir a pé. Queria chegar a casa, queria descansar. Precisava de chegar a casa. Começou a andar, cada vez mais depressa. E viu-a. Lá estava, naquele vão de escada. Apertou o passo, mas ela chegou primeiro à esquina. Na esquina olhou, atento. Era a sua rua, o prédio ficava ali em baixo, acolhedor. Ela continuava, uma sombra escondida na sombra, a olhá-lo do outro lado da rua. Começou a correr. Da lado de lá via-a deslizar de porta em porta, de escuro em escuro, sempre a acompanhá-lo,silenciosa. Ia começar a gritar quando reparou que estava à porta de casa. Entrou no edifício, esbaforido mas aliviado. Olhou em volta. Não a viu. Boas-noites, senhor Valter. Sente-se mal? – interessou-se o Josué porteiro de noite, com uma solicitude matreira. Boas-noites, Josué. Não é nada. Apenas cansaço. Venho do jantar anual lá do emprego. Com patrões e tudo. sabe como é. Pois. Essas coisas cansam – concordou o Josué, julgando saber. – Cansam mesmo, senhor Valter Até amanhã, Josué. Até amanhã, senhor Valter. Entrou no elevador com a sensação de se ter libertado de um acontecimento atroz. Saiu no décimo andar. O corredor estava calmo, brilhante de

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luz e repouso. Abriu a porta do apartamento e entrou. Foi até ao bar. preparou apressado um gin saudávelmente triplo sem tónica e, sentando-se confortável no sofá, saboreou-o com um prazer todo novo, com lentidão, com luxo. Um bom sono e amanhã tudo seria apenas um motivo para sorrir. E se não fosse? Bocejou, sentindo-se realmente cansado. Acendeu um cigarro, bebeu o resto do gin num arrepio de gozo, pousou o copo e levantou-se. Dirigiu-se para o quarto e abriu a porta. A sombra ergueu-se da cama e avançou para ele, de braços abertos. -Querido! Vieste cedo…


KGB ATACA AO ENTARDECER

Entrou no Café Central, passo lento, vasta barba, camisola preta de gola alta. Sentou-te a uma mesa junto à porta e esperou, a olhar para a rua. Veio o Bernardino atendê-lo. – Que deseja o senhor? – Bem, sou um escritor russo fugido à perseguição, compreende, não é? – Pois – disse o Bernardino, que não tinha nada a ver com aquilo. – Mas que deseja o senhor? – Sabe, consegui fugir. Tinham-me preso, davam-me banho todos os dias. Foi um submarino clandestino que me trouxe até aqui. Os amigos são para as ocasiões. Sou um escritor russo, sabe? O Bernardino começou a alarmar-se. Um russo, a falar português assim, nunca se tinha visto. Nos jornais diziam sempre Da e Nyet que queria dizer sim e não, toda a gente sabia. Inquiriu: – Mas então como é que o senhor fala português? – Desde pequenino. Aprendi desde pequenino, para ler Os Lusíadas. Espantoso, Camões. O maior. E depois li também o doutor Augusto de Castro e o doutor França. Extraordinários. Os maiores. Quando fugi, resolvi logo vir para aqui. Magnífico. Mas querem acabar comigo, sabe? A KGB, é o que lhe digo. O Bernardino, explicado o mistério, desinteressou-se. Mas insistiu: – Afinal, que deseja o senhor? – Um bife com dois ovos a cavalo. E uma cerveja. Mas cuidado. O Bernardino foi tratar do assunto mas, ao passar pela mesa do doutor Beça, onde se encontravam o Oliveira da farmácia, o Leónidas da tabacaria e o Gutierrez dos negócios, segredou: – Está ali naquela mesa um escritor russo que diz que fugiu a umas letras. Pediu um bife a cavalo.

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Houve espanto. O doutor Beça dirigiu-se, digno, à mesa do refugiado com fome e quis logo saber coisas. O outro, olhando de soslaio para os passeantes da rua, contou tudo. Os livros contestatários deslizando na clandestinidade, a prisão, os banhos, a fuga, a perseguição, o seu amor à epopeia e aos Lusíadas, o submarino, o arranque final através do areal até chegar ali. O doutor Beça estava pasmado e orgulhoso também. Ali estava o que ele sempre dissera na Junta da Paróquia, ali estava a prova: o escritor russo, o intelectual soviético procurando abrigo em Camões. E virando-se para o Bernardino, que chegava com o bife a cavalo, lançou: – Ponha tudo na conta, Bernardino, quem paga é o Clube. E correu à mesa, a contar o caso espantoso aos amigos. O Leónidas, que era também correspondente dos jornais, atirou-se ao telefone a informar a cidade. Entretanto o Oliveira perguntava ao russo voraz: – E como é que o senhor se chama? – Eristov – respondeu o outro a molhar o pão no ovo. – Conheço, conheço, – gritou o Peralta, lá do fundo, levantado a cabeça da mesa – tenho uma lá em casa – e mergulhou de novo a cabeça nos braços. Ora aí estava. O russo era conhecido. Até o Peralta sabia. A coisa era séria. O escritor foragido acabara o bife e os ovos. Espetou o dedo para o Bernardino: – Traga-me outro bife, à Camões. – À Camões? – espantou-se o Bernardino.– Sim, só com um ovo – explicou o soviético enfadado. – Vê-se que conhece de literatura – comentou o Gutierrez que, desconfiado, ficara na mesa a ver como iam as coisas. A tarde foi correndo. O escritor, mastigados os bifes e os ovos, bebidas as cervejas, estava no café e no bagaço. A mesa do doutor Beça mudara-se para o lado de Eristov. Conversa animada, complexa, perante o silêncio do russo empanturrado. E, súbido à porta, chiando os pneus, travou o carro dos jornais. Três lá dentro e um fotógrafo. – Onde está esse russo foragido? – saiu berrando o da frente. E avançaram. A entrevista, a pergunta, a fotografia. O doutor Beça explicando, o russo arrotando.


O soviético procurando liberdade encontra camões, escrevia o repórter do vespertino para abrir cabeça no artigo. Então outro carro à porta, rangendo o travão num estoiro. O Bernardino, especado a ver o que era aquilo, foi empurrado de reboleta, estatelou-se contra o balcão. E entraram três individues medonhos que se dirigiram para a mesa da conferência de imprensa. – A KGB! A KGB! – berrou Eristov, erguendo-se de supetão, num pânico alucinado. Mas não teve tempo para mais. Foi agarrado pelos braços, logo torcidos para trás, pelos dois. que traziam uma espécie de uniforme desconhecido . e sinistro. O terceiro. queixo quadrado, meio louro. parecido com os oficiais da Okrana dos filmes dos anos trinta, olhou em volta e disse: – Que trabalhão idiota! O repórter do vespertino, estarrecido, lançou logo ao papel: KGB ataca ao entardecer. – Não escreva asneiras, meu caro – disse o com cara de Okrana, ao passar por ele, enquanto os outros dois levavam Eristov para a ambulância.

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HISTÓRIA EXEMPLAR

Entrei. – Tire o chapéu – disse o Senhor Director. Tirei o chapéu. – Sente-se – determinou o Senhor Director. Sentei-me. – O que deseja? – investigou o Senhor Director. Levantei-me, pus o chapéu e dei duas latadas no Senhor Director. Saí. É o que lhes digo. Com esta idade e nunca o usei. Há cerca de trinta anos apareceu-me uma oportunidade de o fazer, mas senti certas dúvidas e tive receio. No entanto, últimamente tenho-o lido com bastante frequência nos discursos que quotidianamente vejo nos jornais. Já não sou criança e não quero deixar este mundo sem o usar pelo menos uma vez. É um vocábulo realmente impraticável, verão, mas mesmo assim vou usá-lo. Imarcescível. Aí está! Espantoso, não acham? Imarcescível. Alucinante! Por isso lhes conto.


O BODE IMARCESCÍVEL

Julião amava os animais. Tinha um gato siamês teólogo e desdenhoso, dois perdigueiros de olhos tristes e um basset activo e escavador. Também uma gaiola com três periquitos protestantes e tivera um papagaio de que se vira obrigado a separar-se, dadas as constantes críticas e comentários do mesmo acerca da situação vigente. Mas realmente o que o encantava era o bode. Trouxera-o para casa ao voltar de umas férias na montanha. O bode acompanhava-o sem fazer questão e isso comovera Julião. Era um bode jovem mas já com barba digna, que ficava a olhar para tudo com desdém, como prevendo inúmeras desgraças. Afeiçoaram-se um ao outro. Julião esmerava-se no tratamento e o bode, compreendo que estava numa casa de respeito, passara a marrar apenas em polícias e cobradores. Mas comia, comia muito, comia tudo. Antes de ir para a repartição Julião cuidava carinhosamente dos animais. Os cães no quintal, o gato livre de tomar decisões as mais ousadas, os periquitos com milho painço, pevides e cânhamo. Quanto ao bode, deixava-o em casa, com couves abundantes na cozinha, não sem antes o passear pelas traseiras e ter uma conversa séria com ele. Um dia aconteceu o inesperado. Ao voltar a casa, à tarde, Julião encontrou o bode no escritório, sentado e a comer, voraz, a edição monumental de os Lusiadas encadernada em couro azul-escuro e com ilustrações de Lima de Freitas. Só restava a capa, que era dura, e um pouco do canto nono. Ficou amargurado. Que fazer? Como resolver aquilo? O bode podia voltar a ter apetências, lá se ia o Fernando Namora, o Eça, o Aquilino, sabe-se lá que mais! Não podia ser. E a solução surgiu-lhe. Levar o bode com ele para a repartição. No dia seguinte, após as tarefas matinais, disse ao bode: Vamos lá meu velho. Saíram. O bode comportou-se, sempre ao lado de Julião, olhando as montras.

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Apenas tentou investir com um polícia mas conteve-se, entre a simpatia dos passantes. Na repartição foi um alvoroço. “Olha um bode, olha um bode!”. O espanto era geral mas o bode, indiferente, sentou-se ao lado de Julião. E assim passaram os dias. O bode ia de manhã para a repartição, almoçava na cantina com o Julião, passava a tarde sentado, observando a actividade múltipla da casa e indo lá dentro de vez em quando, e voltava à tarde ao lado de Julião, vendo as montras e mirando os políciais de través. O diabo foi que um dia o bode teve um apetite feroz, como na altura de os Lusiadas. Foi à secretária do chefe e comeu todos os processos em andamento que faziam a cabeça em água aos funcionários. Não deixou senão os agrafos e as molas das pastas de arquivo. O chefe agarrou-se à cabeça e mandou chamar o Julião. Que é isto? – disse, de sobrolho franzido, quando Julião entrou. Isto – o chefe apontava para as sobras. Julião observou bem e respondeu, humilde: Parecem restos de agrafos, não parecem, senhor doutor? Foi o seu bode, senhor Julião. O seu bode. Não pode ser, isto é impossível – e gesticulava, apoplético. Aí o Julião não achou bem. Desculpe , senhor doutor, mas não tenho nada com isso. Não intervenho, nunca intervim, na vida de bode nenhum nem de qualquer outra pessoa. O bode é livre, fale com ele. E, pela primeira vez na sua vida de funcionário, virou as costas ao chefe e saiu, ofendido. O chefe aveio-se com o bode. Parece que se entenderam. O Julião não foi incomodado e o bode passou a andar de um lado para o outro pelas salas e gabinetes. O bode comia os processos, os processos ficavam arrumados. Os funcionários estavam encantados, escolhiam os melhores, os mais grossos e chamavam o bode. Os tempos passaram. Os chefes sucederam-se, os ministérios mudaram. O bode continuava na repartição, sempre jovem e activo. Julião, já cm o cabelo todo branco, reformara-se. O velho gato siamês fora juntar-se aos seus antepassados em Bubastis, os cães eram memória melancólica e a gaiola dos periquitos gritadores estava vazia.


Apenas o bode continuava presente com amizade e ia todos os dias para a repartição. Estava no quadro. Foi então que se deu o acontecimento decisivo. Poderoso, imarcescível, o bode entrou pelo gabinete do ministro e comeu, logo ali, o decreto de mobilização geral que estava a despacho. Foi eleito deputado pelo povo em delírio.

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QUESTÃO DE TERRAS

Quando o Ricardo Romarigues me convidou simpaticamente para ir passar o fim de semana lá na herdade, fiquei um pouco desconfiado. Tinham-me contado que havia querela entre ele e o doutor Estêvão Brás Tramagal, tudo por causa de uma outra herdade, a herdade da Argola, que Ricardo tinha de antiga e que o doutor Tramagal afirmava em ser proprietário por ocupação e cultivo. Dizia-se até que o doutor contratara malteses sólidos para lhe defenderem a causa. Coisas de terras, não é? Mas acabei indo, na minha bicicleta. Ao entardecer, quando estávamos de conversa, tendo ao alcance da mão magníficas canecas de vinho esquentado à lareira e mastigando, com saborear lento, excelentes rodelas de paio e pão trigal, estrugiu o ruído inesperado lá fora. Corri à janela, espalmei a tabuado contra a parede que olhava o espaço. E vi. Através da terra larga avançava uma matula de porrete em punho, bigodes antigos, ar de mundo já esquecido. Pisavam duramente e berravam em conjunto: Argola é nossa. Argola é nossa. Viva Tramagal! Pausa. Novo berro colectivo: Argola é nossa Argola é nossa Viva Tramagal! Era a briga. Não tinha nada a ver com aquilo. Fechei o tabuado o melhor que podia, puxei as calças que me escorregavam embirrativamente e declarei ao Ricardo que, embasbacado, parecia que não acreditar no berro que chegava: – Olha, aguenta-te Corri às traseiras, montei a bicicleta e aqui estou. Coisas.


O DISCURSO

“Meus bravos militares, a exemplo dos descalços sublimes de 1804, ergueste-vos como uma muralha de aço invencível e tendes montado guarda em torno do sagrado depósito guiadas pela estrela de um chefe predestinado, símbolo imarcescível da nação una e indivisível, peço-vos para dedicar a vossa alma aos esforços generosos que permitem a conquista das vitórias…” Acabo de ler isto e acho certo. Pois claro, é o discurso de Jean-Claude Divalier. Baby Doc para os amigos, presidente vitalício do Haiti. Em Port-au-Prince, 29 de Julho de 1972, bem rodeado pelos seus leopardos de metralhadora aperrada e com um confortável muro de tontons macoutes à frente, todos de óculos escuros e peito empinado. Mas não é isso. O diabo é que eu já li não sei onde. E várias vezes. Onde foi? Ah, esta minha memória! Vou já lá acima ao sótão dar uma olhadela aos jornais que por lá estão.

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JORNALISMO

El Pibe inclinava-se, insistia mesmo, para a penduração pelo pescoço até que a morte chegasse. Fora educado em Inglaterra, dizia que cursara Oxford e devíamos acreditar ao ouvi-lo falaràhora do chá. Era Shakespeare por Sir Lawrence kerr Oliver. A tomar chá claro. Ricas Papas não. Papas queria que as coisas fossem dignas: uma lâmina revolucionaria a separar a cabeça do resto, tinha estudado em França, descendia de uma distracção de La Fayette e nós aceitávamos. Sabia beber vinho e era realmente encantador. Don Álvaro, que decidia tudo quanto lhe deixavam decidir, era pela tradição: o muro, a cotovia a cantar, o pelotão apontando a arma e o fim próprio do homem. Era uma pessoa simpática que bebia de tudo. Quanto a mim, não concordava com nenhum deles. Parecia-me exagero. Então Roy F. Statler, que era quem vendia as cordas, as lâminas de todos os tamanhos as balas diversas – conselheiro comercial, parece-me que é assim que se chama – veio ter comigo à cantina, no intervalo entre a grapa e a hora de levar os pés. – Oiça cá, meu caro. Não deveria ter escrito aquilo. Que necessidade tinha você de chamar El Pibe e Ricas Papas a Ricas Papas? São coisas desagradáveis, o general não gostou, ele é muito sensível, você sabe. Não lhe parece melhor mudar de estilo? Pareceu-me. Jurei logo ali. Roy F. Statler resolveu-se. – Vou tratar do caso. Mas veja lá, ein! Não deixei qualquer dúvida. Eu e a CIA éramos um. No dia seguinte fui libertado, deram-me o cinto, a carteira, os atacadores e o chapéu, esqueceram-se do casaco onde estava tudo. Exigi o 38. Devolveram-mo, têm bastantes. E puseram-me na fronteira. Francamente!


REPREENSÃO

Depois de fuzilado Ao levar O tiro na nuca pra acabar Chateou-se E viu-se obrigado A explicar Ao major Que comandava o pelotão Que o tinha fuzilado Por favor Preste atenção E não me obrigue a repetir A repreensão Na próxima vez que mandar matar dê tempo ao morto Pra gritar Convicto Um último viva a revolução

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EXPLICAÇÃO

Os mistérios não são uma coisa tão complicada como se diz. É claro que nunca ninguém encontrou Jack o Estripador, até porque talvez o vissem todos os dias, nunca ninguém soube de nada acerca das doces tias velhinhas que matavam por ternura, nunca se explicou o gato que aparecia todas as noites no quarto de banho do solar dum amigo que tenho na montanha. Mas isto não quer dizer nada. As coisas e as pessoas são misteriosas por natureza, às vezes exageram, é só. Assim como aquele isqueiro que me deu a minha mulher, há muitos anos já e aqui; desapareceu e não houve forma de o encontrar, por mais que todos o procurassem. Pois voltou a aparecer-me no Piauí, seis mil quilómetros mais longe e vários anos distante, quando bebia uma cachaça. Aí está. Apenas um exagero. Realmente os mistérios não são uma coisa assim tão complicada. Tal como o caso de Josefo Abramonte, que passo a contar. Ele e a família possuíam um velho solar arruinado, lá entre a neve invernosa das terras altas, encostado às rochas e esperando o fim consolador. Josefo era especialista em actividades manuais, fazia prateleiras para tudo e jogava um poker igualmente acabado. À noite, estendia as mãos para a lenha a arder, aquecia-se bem, dava um beijo à senhora sua mãe, acenava ao tio e pronto, com o capote às costas saía para um poker ali em casa do doutro Faroé, médico da família e igualmente bom obreiro manual, dada a profissão e o resto. Foi numa noite dessas, depois da despedida em casa, da chegada do doutor e do baralhar das cartas que o mistério começou. Bem, mistério que não houve, como se vai ver. Estavam o doutor Faroé, Josefo, Franklin Groz que era proprietário de terras e bodes, e Benjamim, o Barbeiro. Também um candeeiro antigo de globo verde e todos com pala na testa, como sabiam que se fazia.


Parece, nenhum dos presentes esclareceu suficientemente o acontecimento, que Josefo teve cinco ases por engano. Benjamim admirou-se com tal coisa e, parece também, bateu-lhe com um ferro que tinha na algibeira. Enganou-se e matou-o, parece. A senhora mãe de Josefo, o tio de acenar e os amigos fizeram a vela. Passou-se a noite com frio e vento lá fora, na grande sala da entrada, uma mesa coberta de linho antigo, o corpo de Josefo em cima, vestido para casar, e os tocheiros ardendo com os pingos de cera a escrever vaticínios. Nenhum lobo uivou e não apareceu qualquer desconhecido em negro e vermelho. No dia seguinte, todos com as olheiras consequentes, atenderam a chegada dos homens da Agência Vespa & Repouso, com urna e trem de dois cavalos empenachados para torneio fúnebre. Josefo entrou na urna. Dona Abramonte a Mãe fechou a tampa e teve um leve sorriso, apenas um repuxo no canto dos lábios. Todos pegaram no objecto e o fretaram às costas, Benjamim e o doutor às primeiras alças. O tio não foi, estava a olhar o fogo, enquanto Korbute sacudia a barba rala e lhe servia a aguardente mais antiga. Josefo finara-se. Havia flocos de neve pelo ar, distraídos, mas de lobos nada. No cemitério, pequeno e indiferente, com o Janaro coveiro a coxear e a determinar o local exacto, o padre Sabino lançou a paz final. Franklin atirou uma pàzada de terra, Janaro disse que deixassem o resto com ele. Foram para casa. À noite dona Abramonte voltou para a cadeira de braços cansados, junto ao fogo. O tio escolheu uma aguardente macia e sentou-se em frente, com os olhos sabe-se lá onde. A porta abriu de repelão. O uivo do lobo ouviu-se nitidamente, mas a porta fechou-se de seguida e ficou tudo como antes. Josefo Abramonte limpou os pés na pele de cabra, sacudiu o capote todo molhado e, dirigindo-se para o fogo, explicou: – Que estopada! Parece que caí pela escada do doutor, sabem? E depois parece que me enganei no caminho. Que coisa! Nunca me tinha acontecido! Perdi-me e enfiei pelas terras da Arregada, irra! Enterrei-me no lamaçal dos Goritzu, foi uma increnca para sair de lá! Uma roupa seca é o que eu preciso. Estendeu as mãos para o fogo e, olhando para o velho Korbute, que o encarava de boca aberta, pediu com delicadeza:

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PÔR-DO-SOL

... encostou-se ao parapeito da janela aberta e ficou a olhar o entardecer discreto e melancólico. Caminhando por entre as árvores protectoras, cresceu uma figueirinha que se aproximava pela estrada de terra batida. Ergueu a carabina, apoiou-a bem no ombro e, visando com cuidado pela mira telescópica, disparou três vezes, espaçadamente. A figura pareceu ficar suspensa. Depois caiu devagar e estendeu-se, muito calma, na terra seca da estrada. – Que chatice, sempre a mesma coisa! Levantou da mesa de trabalho e olhou a máquina de escrever com desgosto. Era realmente uma chatice escrever aquilo. Pago à linha para magazines de pequeno suspense, ganhando uma forma de existir por vezes desagradável. Dirigiu-se ao bar preparou um whisky com sifão, sem gelo. Pegou no copo e foi até à janela. Uma simpática casinha que alugara naquela praia discreta, onde podia ficar sossegado algum tempo e produzir o suficientemente económico para o resto do ano. Olhou para o mar brilhando enorme até ao horizonte, no entardecer discreto e melancólico. Saindo de trás da duna, uma figurinha avançava pela areia. Colocou o copo no parapeito da janela e pegou na Remington automática de mira telescópica que estava encostada à parede. Ajustou-a bem ao ombro. Visou com cuidado e disparou três vezes, calmamente. A figura que se aproximava parou de súbito. Girou devagar e depois caiu, como a deitar-se na areia morna. – É mesmo uma chatice, não há dúvidas. Raio de profissão esta, escrever a metro!


Pegou no copo com gin que estava ao lado da máquina de escrever e, ainda resmungando, foi até à janela aberta. No entardecer discreto e melancólico, a montanha recortava-se nitidamente, ao longe. Uma figurinha desajeitada surgiu, vinda do lado de lá das pedras altas, em direcção ao carreiro áspero que conduzia à casa.

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PROFISSÃO É PROFISSÃO

A noite estava alegre. Foi caminhando lento e a coxear, apoiando-se à bengala, entre o brilho quente dos neons, as conversas animadas, os sorrisos a deslizar para cá e para lá, envolvido num linguajar de vários sons inesperados e cantantes que saía de portas e de caras. Depois começou a descer e a noite ficou um pouco mais discreta. Os degraus altos causavam-lhe preocupações e cuidado, apoiando-se de vez em quando às paredes que lhe passavam ao lado. Lá em baixo continuou, dobrou ainda uma esquina, cansado. A bengala, com ponta de borracha, não incomodava ninguém, não alterava os sons habituais. No pulso tinha onze e vinte cinco. Caminhou um pouco mais e ficou encostado à parede, muito cansado, à espera. O outro abriu a porta e saiu. Assoou-se, cuspiu para o chão e começou a andar. Com um cansaço infinito e coxeando, desligou-se da parede e enfiou-lhe a bengala entre as pernas. Quando o outro caiu para a frente, tal como devia ser, meteu-lhe em cima da nuca uma lâmina que estava no tacão grosso da perna mais curta. Carregou bem, com o corpo no tacão grosso da perna mais curta. Depois de ouvir o corte e o estalo, deixou de carregar. A coxear e com bastantes dores nos rins, voltou para casa, apoiando-se à bengala.


SHALOM E VOU-ME EMBORA

Veruska vivia em Elefante e Castelo. Parece mentira mas procurem nos mapas das cidades. Está lá. Um pouco cansada daquilo, pegou na mama simples, foi ao São Pancrácio e deu o primeiro passo para entrar no navio que a levou até à terra onde estava Micha. Chegou, extremamente admirada porque ninguém dizia how do you do nice weather, nem sequer – e isso muito menos – falava yidish, que é uma língua que ela falava e achava que todos deviam falar. Veruska sempre teve dessas coisas. Andava meio perdida, tudo era diferente, as pessoas tinham várias cores, vários idiomas mas todos se entendiam, falavam muito e riam. Veruska cada vez percebia menos. Sentou-se a descansar e a comer qualquer coisa num bar, mesmo ao lado de Micha. Micha olhou-a, fez uma careta simpática e disse shalom e agora o que é bom é uma bebidinha ein! E Veruska percebeu! A partir da bebidinha tudo foi tal qual. Veruska ainda não tinha casa e sentiu necessidade de ternura. Foi comer mais uns cozinhados ao apartamento de Micha. Quando entrou, começou a arrumar tudo. Que mania a de Veruska! Comeu as trapalhadas que Micha por lá tinha e que quedou-se, a descansar. Dada a proximidade, gostaram-se. Veruska ficou ali, quase a sentir-se em casa e a insistir na arrumação, principalmente nos cinzeiros. Tinha um jeito especial para discutir sociologia e para o gulash. Insistia no tempero com paprika, em ficar com os olhosperdidos e deixar cair pratos ao chão. Micha também não era dali. Não se encantava em excesso com o gulash – afinal era um guisado, que chatice – , preferia a pimenta preta, mas partia coisas com a mesma frequência, em particular cinzeiros e copos com gin. Não tinha os olhos perdidos por não ter nada onde os perder. Veruska tinha cabelos cor de mel, tal como acontece nas histórias infantis de Europa Central.

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Talvez tenha sido isso. Micha, a comer gulash, a tentar arranjar trabalho para Veruska que não conhecia a língua da terra, a ter noites quase moscovitas e a aprender a amar, lembrou-se de repente dos cabelos de Yatta. Foi isso mesmo, não há dúvidas. Os cabelos de Yaffa eram como o corvo que, sabe se há muito tempo, é pássaro cientista que passeia pelas ruas, símbolo vivo do carvoeiro da taberna da terra de Micha. Começou a andar inquieto, sem atinar porquê. Veruska deu pela inquietação . Simplesmente. Foi assim que, um dia, depois de um gulash excepcional aumentando com chachlick a estalar no espeto, pegou na maia pequena e pobre/ sorriu tão lindamente que até dizia amor, sacudiu a cabeça com o mel a cantar até aos ombros e disse Shalom Aleichem como quem murmura uma canção relembrada. Engaou-se – e isso é que era a maravilha que nela exstia– , devia têlo dito à chegada. Saiu, muito direita naquele corpo suave e pequeno que parecia enorme e forte. Micha atrapalhou-se. Não sabia onde pôr as mãos até encontrar um copo de gin com gin. Depois saiu a correr atrás de Veruska, mas o elevador demorou e o trânsito era enorme. Não a encontrou e foi jantar ao To-wa. Voltou a casa com uma sensaçãoo de roubaram-me a marteira. Mas não fora. Continuava com a carteira. Pós o retrato de Veruska – como estava linda! – entre o de Marx e o de Amstrong e Voltou para a rua, à procura do esturjão e da alcachofra de Yaffa de cabelos corvo. Enganou-se, que Mincha tinha o senso nato do engano. Veruska talvez esteja na China. Micha nunca pergunta.


O QUE DIZEM OS TEUS OLHOS

Ma omrot einaych simples descobertas como o fogo e o pavor mínimos encontros como o silêncio e o amor distancias muito curtas como os mitos e o espaço coisas tão vulgares como a força e o cansaço ma omrot einaych dizem tâmara vontade de cantar dizem paz e querer amar dizem lua e alegria granito negro e dia ma omrot einaych tempo a saber esperar

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ENGANO

O ruído dos motores torna-se ensurdecedor. Depois, de súbito, tudo ficou em silêncio. Foi à janela e olhou. Lá em baixo os carros tinham parado, exactamente em frente à mansão. Abriram-se portas e as fardas começaram a sair, algumas de bota alta, olhando para cima. Recuou um pouco, para não ser visto lá de fora. Encostou o cano da Stein ao canto da janela e, aguentando com firmeza na anca, atirou a primeira rajada num movimento sabiamente circular. E continuou. Enganaram-se. Pela primeira vez. Vinham apenas dizer-lhe que fora eleito Presidente.


CIDADE

Saiu do bus, quase em frente à porta de casa, esfregou as mãos enluvadas e atravessou a rua, atento ao trânsito. Estava um frio medonho, ignóbil, ofensivo, mas havia que suportá-lo, tal como acontece com os ministros interinos e as doenças contagiosas. Entrou no edifício, disse um boa-noite acamarada ao porteiro de serviço e dirigiu-se ao elevador dos andares pares. Com ele subiu a velha senhora do oitavo, que vinha de passear o cãozinho de esquina a esquina. O bichinho estava de capa, o frio era realmente angustiante. A senhora não. Nada de capa, sorria apenas. Ele sorriu-lhe também. Fora cantora lírica razoavelmente aceite e agora dava lições de canto a futuros desastres; apesar disso, continuava a ser simpática, com olhos curiosos, grandes e quentes à procura de tudo inquisitivamente. – Boa noite vizinho. Que friozinho! – Boa noite, dona Rute. De matar, não me diga nada. No oitavo dona Rute saíu empurrando o bicho. Teve vontade de lhe dar um pontapé à sorrelfa mas não podia ser,. era feio e dona Rute não ia gostar com certeza. Segurou a porta automática. cheio de ternura íntima pela velha senhora. A porta fechou de súbito, zumbando, e quase não teve tempo de salvar o dedo do esmagamento catastrófico. Saiu no décimo sexto andar, ouviu o elevador fechar-se atrás de si e seguiu, esfregando as mãos. pelo corredor ladeado de portas. Na sua meteu a chave na fechadura e entrou. A snesação de conforto e vida envolveu-o. Olhou a pinturinha chinesa a tapar o quadro eléctrico, um bambu oscilante com dois gafanhotos extremamente exactos preparando-se para o salto. Fechou a porta e tirou as luvas. Estava um calor agradável. Espreitou para a sala e viu a lareira no apogeu, vermelha, revolucionária , alegre. Enfiou pela porta da esquerda, a da cozinha, enquanto tirava o sobretudo e o frio.

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– Boa noite, menina. A cozinha cheirava bem. – Boa noite, querido. Que frio lá fora,, heim! Ficou parado, farejando o acontecimento que se dava no tacho. Frika era espantosa! Realmente espantosa. Um dia de trabalho na agência, chegava a casa e ainda ia fazer aqueles cheiros de embasbacar o nariz! Sentiu-se culpado e afirmou competente: – Vou já descascar as batatas. Frika virou-se e olhou-o. Os olhos de Frika eram capazes de dizer sabe-se lá o quê. Histórias mágicas e zangas arrepelantes. Eram os olhos de Frika. Deixando a faca de cabo de madeira velha na beira da mesa, respondeu: – Mas amor, não preciso de batatas. Ficou numa frustração desesperante. Não era precisas batatas! Frika estava à sua frente. Ao de leve passou-lhe as mãos pelos cabelos e depois, com os indicadores, desenhou-lhe as orelhas com extremo cuidado, quase com receio. Puxou-a um pouco, atento ao corpo e à presença que chegava. Frika apertava-lhe os ombros, com os dedos assustadoramente fortes e cantantes, como sempre. E ele, com o medo habitual de não ser capaz de dizer tudo, deu-lhe o beijo recomeçado todas as chegadas a casa. Frika afastou-se levemente, encostou-se à mesa e, sorrindo enquanto esfregava as mãos no avental, decidiu: – Vou preparar-te uma bebida, vai saber-te bem. Assim não podia ser, era demais. Então ele não fazia nada? Nada disso. – Não menina, eu é que vou. E são duas. Que ela também tinha direito, era assim mesmo. Assobiando Petite Fleur numa oitava abaixo, enfiou para a sala. Estendeu as mãos ao fogo murmurante da lareira, atirou-lhe mais umas pinhas secas para o manter bem vivo e, no barzinho ao lado, começou a manejar copos e garrafas. Partiu logo um copo. Mas logo. Caiu-lhe da mão sem saber como e pronto. E tinha de ser o de cristal, raios partissem a falta de jeito! Da cozinha chegou-lhe uma gargalhada e um “eu não dizia” divertido. Danou-se– Não disseste nada, não senhora. Quem disse fui eu, fica sabendo. Ora esta!


Preparou um gin-tonic para si e um vermute para Frika, de consciência culpada mas sem partir mais nada. Quando voltou à cozinha com os copos na mão, Frika tirava o avental. Pegou no vermute, bebeu um pouco e explicou: – Vou ali ao Fli-Flac num instante. Buscar ovos, que já não tenho nenhum. Estou sempre a esquecer-me de tudo. – Eu vou, eu vou, menina. Ovos é comigo. Punha já o copo em cima da mesa e pegava no sobretudo. – Fazes o favor de ficar quieto com a tua bebida, sim querido? Se vais, não vamos ter ovos inteiros hoje. Olha, levo o teu sobretudo. Tirou-lhe o sobretudo das mãos e atirou-o para os ombros, com um ar de menina que vai apanhar papoilas, lançou-lhe um beijo com a ponta dos dedos numa careta risonha e saiu rodopiando. Ele ficou a ouvi-la, que abria a porta do elevador. O elevador zumbiu e desceu. Voltou à sala, apanhou os cacos do copo quebrado, foi deitá-los no lixo e voltou para o sofá velho e confortável, em frente à lareira. Instalou-se bem, pegou ao acaso numa revista das que estavam no cesto ali no chão e, folheando-a, lendo uma coisa ali e outra acolá, foi acabando com o gin. Sentia-se quase próximo de ser feliz numa beatitude dada pelo calor e pela bebida confortadora. Uma vaga sonolência o invadiu e assim foi ficando, revista aberta nos joelhos. De repente espertou. Olhou o relógio. Que diabo, tinham passado quase três quartos de hora! Que andava Frika a fazer? O Flic-Flac era logo no quarteirão seguinte. Levantou-se, inquieto, atirou mais pinhas ao fogo, preparou outro gin, foi até à cozinha, observou o tacho que fumegava e, receando que o trabalho de Frika se queimasse e lá fosse o jantar, apagou o lume. Mas não se conteve mais. Acabou a bebida de um trago e, tal como estava, sem procurar qualquer abafo, saiu batendo a porta. Tinha que ir saber onde estava Frika, aquilo não lhe parecia normal. O elevador demorava e isso irritou-o. Não valia a pena estar assim, pensou, afinal as pessoas demoram-se a conversar, a ver coisas. Não era caso para nervosinhos idiotas. No hall de entrada perguntou ao porteiro: – Viu a minha mulher, senhor Herodes? E, mal perguntara, deu logo pela pergunta estúpida que tinha feito. Claro que vira, pois se ela saíra há pouco.

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– O senhor sabe, estava aqui e vi-a sair ainda nem há uma hora. Depois não a tornei a ver. Agradeceu e saiu para a rua. O frio apanhou-o, sentiu-o no corpo como se levasse um pontapé. Continuou a andar, rápido, em direcção ao Flic-Flac logo ali no próximo quarteirão. Em frente à porta do Flic-Flac, enorme e envidraçada, ladeada por montas monumentais explodindo luz, havia um pequeno ajuntamento que lhe chamou a atenção. Apressou o passo, preocupado. Pessoas conversavam, comentavam qualquer coisa. Dirigiu-se a uma senhora de idade, abafada num casacão informe e com um menino pela mão entupido com peliça e gorro, que puxava activamente em várias direcções simultâneas. – Aconteceu alguma coisa, minha senhora? – tentou tomar um ar apenas curioso. – Oh, pobre pequena, pobre pequena! – Mas o que foi minha senhora? – Está quieto, Nico, não puxes, a avó já vai. Pois foi terrível, o senhor não calcula. Não puxes, já te disse. A pobre pequena ia a sair daqui do Flic-Flac e foi apanhada por um desses doidos que por aí andam a guiar sabe-se lá como. Deviam ir todos presos, é o que lhe digo e o senhor com certeza concorda. Olha que apanhas uma plamada, Nico. Não sei bem como foi, não vi. Disseram-me que era nova, pobrezinha, e que já estava morta quando o polícia que aqui chegou... Espera aí Nico, vamos já. Que garoto este! Mas como lhe dizia, parece que já estava morta quando o polícia a meteu num carro e a levou para o hospital. Uma desgraça. Boa noite, senhor, desculpe mas este garoto hoje está insuportável. A senhora idosa lá foi, arrastada pelo menino atabafado e cheio de pernas. Ficou parado, a tentar pensar lúcidamente o que teria ouvido. Olhou em volta, encontrou as montras, as pessoas, a luz, os carros a passarem, o barulho vivo da cidade. Depois baixou a cabeça e viu o chão. Na beira do passeio os restos de uma caixa de ovos eram esmagados com eficácia pelos pés que iam e vinham. Um pouco de amarelo, um pouco de branco, um pouco de cartão, quase que um pouco de nada. Começou a andar. Em direcção a casa. O frio continuava. Sentiu-o insistindo, presente.


No hall disse outra vez boa noite ao porteiro. O senhor Herodes perguntou-lhe qualquer coisa que não percebeu e a que não respondeu. Ninguém no elevador, a hora era de jantar. No décimo sexto saiu com os gestos habituais, abriu a porta como habitualmente. O fogo estava quase apagado. Sentou-se no sofá e viu uns pedacitos de vidro no chão, com certeza restos do copo partido. “Eu não dizia”. Abaixou-se e apanhou-os todos, com extremo cuidado. Sentiu uma impressão num dedo. Olhou. Tinha-se cortado. Foi à cozinha, deitou os vidrinhos no lixo e depois, no quarto de banho, lavou bem as mãos e pôs um banndei envolvendo o golpe no dedo que sangrava um pouco. Voltou à cozinha. Observou tudo atentamente, numa visão exacta, fotográfica. Apagou a luz. Dirigiu-se ao quarto. Acendeu o candeeiro comevedoramente inútil que Frika inventara para a mesinha ao lado da cama. Sentou-se na beira da cama e ficou a olha o telefone que estava junto ao candeeiro. Sentiu frio e estremeceu. Um pouco apenas. Começou a tirar os sapatos, sem saber porquê.

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EVOCAÇÃO

Pegada na areia recortada ainda como o sinal distante que espera apenas a prevista vinda do mar em maré cheia para então partir barco oscilante vazio como o búzio abandonado entre os escombros a recordar um rosto perdido de mulher envolto em algas com manchas solares até aos ombros num tempo já esquecido sorriso de mulher a desaparecer suavemente atrás da duna como a leve escuna que parte ao sol poente todos os demónios cantando em tua mão o mar a solidão


A PERNA E OS OUTROS

Foi quando começou a descer a escada que notou que não tinha a perna. Voltou ao quarto e encontrou-a. Integrou-a no resto, como se deve, e voltou para o caminho da rua. Entrou no pequeno bar melancólico do outro lado da esquina e pediu o habitual gin-tonic, enquanto a perna tentava caminhar para uma leve garota que sorria e até, inoportunamente temos de concordar, procurava seguir por ali fora atrás da solidão e do sorriso do acaso. Pôs a perna no seu lugar. Assim não podia ser. Então resolveu continuar, fosse como fosse, até lá ao cais pesado da fartura acidental do import-export. Entrou na rua estreita, com vagonetas e portas acesas, de novo à procura de uma bebida. Apareceu-lhe um preto. – Que trás aí? – perguntou o moreno. – Uma perna e eu. – Bem, faz realmente calor. Pode passar. Seguiu no escorregamento dos apitos e dos músculos a empurrar com persistência, e abriu a porta do ARABELA. A perna não achou bem, tentou seguir por ali fora. Meteu-a de novo na ordem e pediu um gin-tonic. Depois, com a satisfação momentânea de ter existido liquidamente um pouco, deixou à perna uma certa autonomia. Foram caminhando até onde a areia era apenas sombra de urubus. A perna insistia e os madeiros velhos deixavam-na passar. A água cor de petróleo começou a subir como por acaso. Foi então que teve a ideia de que não sabia nadar. Mas a perna continuava a caminhar, cada vez mais rápida, como uma cobra à procura do pássaro.

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CESSAR-FOGO

Era filho de uma Terrestre e de um Saturniano. Tinha orelhas bicudas como um lobo, às vezes sorria como amónia gelada. Era lógico e objectivo. Chamaram-no para a Grande Guerra Solar Colonial e Patriótica. Recusou-se. Mandaram-no ser herói em Procion-5. Não foi. Insistiram. Pôs uma bomba HG mesmo ao lado do Everest e deixou que a Terra se pulverizasse. Depois partiu. Para Procion.5.



CÓLOFON Titulo: Contos do Gin-Tonic Autor: Mário-Henrique Leiria 1.ª edição: Editorial Estampa, 1973 Ilustrações: Raquel Botelho Colecção: Ficções n.º 14 Impressão: Mais de Cópias, impressões. Rua Bernardo Sequeira 223. 4705 ‒ 010 Braga Papel Acabamentos: Páginas a Fio, papelaria. Rua da Formiga, Loja 79. Ed. Condestável. 4750 ‒ 159 Arcozelo, Barcelos Instituto Politécnico do Cávado e do Ave Unidade Curricular: Design Editorial Design Gráfico ‒ 2º ano






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