Mulher de Honra
Raquel Lisboa
MULHER DE HONRA
S達o Paulo Raquel Nonato da Silva Lisboa 2013
Todos os direitos Reservados. Nenhuma parte desta edição pode ser utilizada ou reproduzida, por qualquer meio ou forma, seja mecânico ou eletrônico, fotocópia, gravação, etc. – nem apropriada ou estocada em sistema de banco de dados sem a expressa autorização da autora.
Revisão: Edu de Almeida (oconsultorliterario@gmail.com) Diagramação: Edu de Almeida Capa: Thaís do Vale (thatadovale@hotmail.com) Colaboração: Arabian Manojo Edna Benazzi Igor Victor Prates Lisboa, Raquel Nonato da Silva Mulher de Honra – São Paulo, 2013 Este livro é uma obra de ficção. Todos os personagens e os diálogos foram criados a partir da imaginação da autora e não são baseados em fatos reais. Qualquer semelhança com acontecimentos ou pessoas, vivas ou mortas, é mera coincidência.
Aos meus pais, Dona Rita e Sr. Edgard (in memoriam ), que ensinaram-me o significado do amor; Meu padrasto Sr. Alcides, que com carinho cuida da mulher que mais amo no mundo; Meu marido Ivan, que acima de tudo é meu melhor amigo; E meu filhinho João Victor, razão da minha vida.
Agradeço: A Deus, por me ajudar em todos os meus caminhos; À minha família, por me apoiar em tudo o que faço; Aos meus amigos, por me incentivarem; Ao leitor dessa obra, por acreditar em meu trabalho.
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Não posso deixar de agradecer ao meu querido amigo Edu de Almeida, que me orientou em todo o meu trabalho, fez as correções gramaticais e diagramou o livro com responsabilidade, comprometimento e amor... Ensinou-me a melhorar, apontou meus erros com carinho e paciência. Por isso, hoje posso dividir minha obra com o mundo... Agradeço também aos meus sobrinhos queridos Arabian Manojo, que leu os primeiros originais da obra, e Igor Victor, que me escutava pacientemente todos os dias quando lhe falava sobre a narrativa, e à minha querida amiga e professora de música Edna Benazzi... Como dizia Renato Russo: “Não preciso de modelos Não preciso de heróis Eu tenho meus amigos”
SUMÁRIO
Prólogo ................................................................................... 13 1. O doente bastardo ............................................................... 17 2. O primeiro beijo .................................................................. 29 3. Encontro com o desconhecido ............................................. 43 4. A primeira briga .................................................................. 59 5. A primeira vez .................................................................... 73 6. A separação ........................................................................ 87 7. Juliana e Fernando ............................................................ 101 8. O Aborto ........................................................................... 109 9. A Partida ........................................................................... 119 10. O casamento de Helena ................................................... 125 11. Em busca de pistas .......................................................... 137 12. O Estranho ...................................................................... 147 13. Ana ................................................................................. 161 14. Ana e Augusto ................................................................ 173 15. O reencontro ................................................................... 185
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16. Era uma vez, um bebê ..................................................... 205 17. Fernando e o estranho ..................................................... 217 18. O baile ............................................................................ 225 19. Em busca da Vingança .................................................... 237 20. Encurralados ................................................................... 247 21. Revelações ...................................................................... 261 SOBRE A AUTORA ............................................................ 269
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Prólogo
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ssa obra nasceu de uma conversa que tive com uma colega de trem, chamada Juliana. Naquela segunda-feira, Juliana começou a contar a estória de sua família e confesso que me encantei. Afeiçoei-me por pessoas que não conheci e que até já faleceram. Apaixonei-me principalmente por Helena, avó de Juliana e que hoje está com sessenta e quatro anos e, acreditem, está casada com o grande amor de sua vida e feliz. Helena, uma jovem com extraordinária beleza, viveu a maior parte de sua infância em Jandira, uma cidadezinha que fica localizada na Grande São Paulo. Além de bela, era dotada de uma inteligência fora do comum. Seu único sonho era se casar com um príncipe encantado e viver feliz para sempre. Aos dezesseis anos, apaixonou-se perdidamente pelo seu professor de Literatura, entregando-se a ele de corpo, alma e coração, e só faltava a consumação do casamento, para que seu sonho de menina se realizasse. “Foi de Helena a iniciativa de beijá-lo, motivo suficiente para a consumação do amor. Ela o queria e ele também. Ao perceber que Cadu estava receoso, Helena tirou a blusa deixando somente os seios à mostra.“ Um dia, ao sair do colégio, conheceu Fernando um moço notavelmente bonito e milionário que lhe pediu uma simples informação e não resistindo aos seus encantos, se apaixonou por 13
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ela. O rapaz nunca fora rejeitado por ninguém, sendo Helena a primeira mulher a rejeitá-lo, pois seu coração já pertencia ao professor. Fernando não aceitou a rejeição, armou um plano de vingança, e com a ajuda de seu primo Augusto, drogou e violentou a jovem, durante uma noite inteira. Seu plano consistia em tirar algumas fotos deles juntos e depois em mostrá-las para o namorado e para o pai da moça, com a intenção de desonrá-la, pois para seus pais qualquer intimidade antes do casamento era um absurdo. “Inicialmente, Helena ria enquanto Fernando percorria seu corpo com as mãos e com a língua. Às vezes ela o empurrava, outrora falava coisas incompreensíveis. Algum tempo depois, adormeceu.” Infelizmente, o rapaz percebeu que estava apaixonado de verdade, e ao invés de desonrá-la com as fotos persuadiu-a com elas, para que se casasse com ele. O plano funcionou. Helena abriu mão de seu amor e casou-se com Fernando, indo morar numa bela mansão em Copacabana no Rio de Janeiro, onde descobriu que o marido era um poderoso traficante. Durante todo o tempo em que esteve casada, Helena sofreu vários tipos de agressões físicas, psicológicas e sexuais, motivos que a levaram ao desespero, a ponto de desejar sua própria morte. “Seu rosto estava banhado em lágrimas, não era tanto pela dor que sentia, mas pelo ódio que invadia seu coração.” Como se não bastasse, o ex-namorado e seu melhor amigo de infância, viam-na como uma mulher falsa e interesseira que 14
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ao se aproveitar da beleza que possuía deu o “golpe do baú”, num moço ingênuo, bonito e rico. Helena não contrariava o marido, pois temia que ele fizesse algum mal para seus pais e ao seu amado professor. Sofria em silêncio. Procurava oportunidades de vingança e de livrar-se dele. Aproveitando sua vasta inteligência e tirando das fraquezas forças para mudar de vida, Helena procurou meios de reconquistar sua liberdade, sem colocar em risco a vida de seus pais e do homem que ela amava. A narrativa acontece em terceira pessoa, numa linguagem simples e de fácil entendimento. Inicialmente, parece uma historinha infantil, no decorrer torna-se um romance estilo teen e finalmente, junto com as situações vividas pela protagonista, torna-se um romance adulto. É um misto de drama, suspense, amor, ódio e até mesmo aventura, onde o leitor se envolve como eu me envolvi, e garanto que não é possível desgrudar do livro até sorver a última palavra. Enfim, só tenho a agradecer a minha querida amiga Juliana, que compartilhou comigo essa incrível estória, e agora com o coração cheio de alegria, a compartilho com vocês, na certeza de que dentro de cada um de nós existe em algum lugar, uma Helena. Raquel Lisboa, São Paulo, outubro de 2012.
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1. O doente bastardo
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dia estava claro. Não havia nenhuma nuvem no céu e devido ao forte brilho do sol, o calor era intenso. Sr. Manuel, do portão, observava as crianças que corriam na rua de um lado para outro. Abriu o portão que estava entreaberto, e entregou ao menino de calças curtas e sem camisa, uma bola que havia batido em seus pés. Parado ali pensava, com certa amargura, em toda a trajetória de sua vida. Sentia um orgulho inexplicável da história de seus antepassados, contada por sua madrasta quando ele ainda era uma criança. Seu pai foi um grande marinheiro e participou bravamente da Revolta da Chibata, quando um marujo foi condenado a duzentas e cinquenta chibatadas, por algo que fizera de errado. Era com certa eloquência que sua madrasta contava-lhe como tudo havia acontecido e como bravamente Sr. Júlio, seu pai, tornara-se um comandante respeitável da marinha mercante - tão diferente de outros tão carrascos - , quando servira a marinha de guerra. O que lhe inspirava confiança não eram ameaças, mas a bondade que havia em seus olhos, e a coragem com que enfrentava os problemas. Abraçou uma causa justa, e juntamente com os revoltosos, saiu na peleja pelo bem dos marinheiros por não concordar que o ser humano pudesse ser tratado de maneira bruta, e viver em situações precárias, como os marujos viviam. Tornou-se herói, não reconhecido em jornais ou livros; somente pela família era visto com orgulho. Nunca seria esquecido por seus familiares. 17
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Jamais seria esquecida pelo Sr. Manuel, sua mãe, que bravamente ao lado do pai, defendeu-o com unhas e dentes. Dona Manuela, ou simplesmente Dona Manu, seria esquecida pelo restante da família. Não havia motivos para recordar de sua verdadeira mãe, visto que Sr. Manuel foi fruto de uma traição. Foi consequência do amor entre um marinheiro casado, filho de um grande fazendeiro dono de milhares de alqueires de cacau, e de uma linda jovem pobre, dona de uma inteligência e uma coragem dificilmente reconhecidas em uma mulher daquela época. Sr. Manuel foi criado por Dona Carola, esposa de seu pai, a quem devia um grande respeito. Nunca soube o que houvera com sua mãe. Diziam que ela estava morta e que com ar arrependido Sr. Júlio o levou, ainda recém - nascido, à casa da esposa, pedindo perdão pelo “incidente”. Dona Carola tinha um bom coração; cuidou dele desde pequenino. Ele era muito doente e a madrasta contou-lhe que Sr. Júlio, para não vê-lo morrer, deixou-o em casa em companhia dela e dos irmãos paternos e partiu. Nunca mais retornou. A vida de Sr. Júlio era o mar, e percebendo que o fruto do amor que tivera com Manu estava por um fio, não viu motivos para ficar. Nem a companhia da esposa, nem o afeto dos outros filhos foram motivos suficientes para segurá-lo ali. O que ele nunca soube, era que seu amado filhinho havia sobrevivido. Dona Carola sentia um enorme amor pela criança, mesmo não sendo sua. Sr. Manuel não compreendia por que sua madrasta o defendia, apesar de ser fruto de um adultério.
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Seus irmãos, tios e avós paternos não tinham a mesma bondade de Dona Carola: ao descobrirem a verdade sobre Sr. Manuel, passaram a maltratá-lo e a chamá-lo de bastardo. Somente ela o apoiava. História estranha aquela de sua família, que certamente daria um lindo livro de ação, suspense e aventura. Apesar de tudo, Sr. Manuel orgulhava-se de o sangue do Sr. Júlio correr em suas veias, mas entristecia-se ao se notar tão diferente dele. Desde criança, tinha problemas de saúde, sempre foi fraquinho. Na juventude, conheceu a esposa, apaixonaramse, casaram-se e seu maior sonho era ter um filho. Talvez se fosse pai, a frustração que o acompanhava desde a infância, devido ao desprezo de seus irmãos, fosse esquecida. Tinha muito amor para dar e sentia-se feliz porque nisso, pelo menos nisso, parecia com seu adorado pai. Pensava em tudo isso durante muitas tardes, ao observar da calçada e recostado no portãozinho de madeira, os meninos que brincavam na rua de terra. Como seria bom ter um filho! Uma criança para correr em casa, reinar e enchê-la de alegria. Passaram-se vinte anos, mas não havia experimentado ainda o sabor de ser pai e infelizmente não deixaria semente sua. Não teria ninguém para contar as façanhas dos seus pais. Sentia-se frustrado e deprimido. Sr. Manuel aos poucos se conformou, contentando-se apenas em observar as crianças que brincavam na rua. Não tocava nesses assuntos com Dona Valquíria, sua esposa, para não entristecê-la. *** 19
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Dona Valquíria estava estranha nos últimos dias. O marido notou que a esposa estava um tanto “inchada”. Realmente fazia uns três meses que a regra da mulher não vinha. Só podia ser a “menopausa”, mas como não tinham certeza, resolveram procurar o farmacêutico. Sr. Luís, o farmacêutico, receitou um xaropezinho. Disse que podia ser friagem no “pé da barriga”, sendo assim, a regra atrasa mesmo. Dona Valquíria, que havia tomado vários tipos de chá, também tomou até a última gota do xarope. E nada de aparecer. A barriga estava cada vez maior. Como Dona Valquíria não sentia dor e tinha horrores a médico, tranquilizou-se e deixou o tempo passar. “Seja o que Deus quiser.” A verdade é que os meses se passaram e a barriga da mulher estava cada vez maior. Sr. Manuel não queria ficar viúvo, em suas orações pedia para Deus que o levasse antes de sua esposa, pois não se imaginava viver sem ela. Procuraram curandeiros, fizeram rezas e nada. A preocupação era constante e ninguém – nem o farmacêutico – descobria o que a mulher tinha. Uma curandeira chegou a comentar que poderia ser filho, mas logo se calou devido ao olhar de reprovação do Sr. Manuel. O bondoso senhor se programava, guardava um dinheirinho, aqui e ali, para levar a esposa à capital a fim de que um médico descobrisse a causa daquilo. Levá-la-ia de qualquer maneira, mesmo contra sua vontade. Não a deixaria morrer “à míngua”. Um belo dia, Sr. Manuel seguiu para o trabalho e como sentiu uma pontada no peito – em cima do coração – resolveu voltar mais cedo para casa. Ao chegar, teve uma enorme surpresa. Por pouco não desmaiou. A esposa estava deitada na 20
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cama, completamente “desvalida”. Uma mulher, de pé ao lado da cama, segurava um pacotezinho de pano. Reconheceu a mulher. Era Dona Vera, a parteira. “Mas o que será que ela está fazendo em minha casa?” Sr. Manuel, mal entrou no quarto, a mulher lhe entregou o embrulho e disse: - É uma menina muito bonita, parece japonesa. Parabéns, Sr. Manuel. - Parabéns? Hoje não é meu aniversário... De quem é essa criança? -Sua... Sua não... Nossa... – balbuciou Dona Valquíria deitada na cama. -Eu não acredito... Quer dizer que aquele “inchaço” todo que você tinha era gravidez? Meu Deus... Olha só que coisinha linda... – Sr. Manuel chorou. Ajoelhou-se com o bebê nos braços e falou: - Obrigado Meu Deus! – e passava as mãos ásperas no rostinho do bebê, que se retorcia ao procurar o seio materno. - Olha só como é comilona, já está com fome. Sr. Manuel entregou o embrulhozinho para a mãe e foi até o guarda-roupa pegar as economias para pagar os honorários da parteira. “E agora? Qual será o nome da criança?” O pai que era religioso tratou logo de procurar um nome bíblico. Conhecia a bíblia de capa a capa. E por que não, Maria? Maria foi mãe de nosso Senhor Jesus Cristo, houve também outra Maria por sobrenome Madalena que fora pecadora, mas que alcançou graça e perdão. Belo nome. Dona Valquíria achava o nome Maria muito sem vida e queria batizá-la de Helena, em homenagem à sua falecida madrinha. Então, para que ambos 21
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ficassem satisfeitos, a menina foi batizada, na semana seguinte, com o nome de Maria Helena. No calendário, Sr. Manuel marcou aquele dia para registrar a filha na data correta. Era 23 de julho de 1948. Dona Valquíria tinha então trinta e seis anos e Sr. Manuel trinta e sete quando receberam aquela dádiva. No dia 23 de julho de 1950, Maria Helena completou dois anos de idade. Dona Valquíria preparou um bolinho para comemorarem o dia que Deus lhes havia dado aquele presente. Para Sr. Manuel, que também era fanático por futebol, aquele ano foi de muitas vitórias. Depois da Segunda Guerra Mundial, doze anos após a última Copa do Mundo, o Brasil seria agraciado como anfitrião. E sua família, mais ainda, comemorava dois anos que a alegria invadira cada canto da casa com a chegada de sua amada filhinha. Sr. Manuel ouvia atentamente o jogo pelo rádio, enquanto a pequena Heleninha reinava pela casa. Ele não se contentava com tanta felicidade que seria ainda mais completa se o Brasil não perdesse o jogo para o Uruguai. *** A garotinha era a princesinha da casa. Ela era alegre e sorridente. Todos a estimavam pela educação que tinha, pelo sorriso encantador... Era também dona de uma beleza rara. Até quando reinava em sua casa, quando fazia estripulias de criança, era cheia de encantos. Não se podia ralhar com ela. Logo, cheia de graça, abria os bracinhos e dizia aos pais: “Meu paizinho...” ou ainda “Mamãe Linda...” Quando os pais se distraíam, lá estava a garotinha fazendo a mesma arte. Conhecia o ponto fraco dos pais e sabia que bastava um simples 22
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sorriso seu para que se esquecessem da bronca. Moravam em Osasco, na grande São Paulo. *** Sr. Manuel tinha sérios problemas de saúde. Sofria de epilepsia, tinha problemas no coração... Tomava muitos remédios. Diferentemente de seus parentes, seu avô era fazendeiro, seu pai serviu a marinha de guerra e depois a mercante, seus irmãos – Oscar, Ângelo e Eugênio – seguiram carreira militar. Não tinha estudo devido a seus problemas de saúde e aos ataques frequentes, que diminuíram somente na mocidade, e para sustentar sua família trabalhava como servente de pedreiro. Não demorou muito para aprender o ofício e começar a construir também. Dona Valquíria era lavadeira de roupas. Ambos moravam no velho sobrado de Dona Carola, onde seu pai fizera testamento deixando-o em nome de Sr. Manuel como usufruto, mesmo desconfiado de que ele morreria ainda bebê. Somente em caso de morte de Dona Carola ou de Sr. Manuel, o imóvel seria vendido e repartido entre os demais filhos. Era situado no Jd. Das Flores, em Osasco, numa ruazinha de terra. Dona Carola já havia morrido e os demais irmãos de Sr. Manuel queriam a herança que correspondia aos seus pais, independentemente do testamento. Recorreram até desapropriálo alegando que ele era bastardo. Seus irmãos não precisavam de dinheiro, sempre tiveram vida regalada, mas nunca o aceitaram como membro da família. Tinham conhecimentos com bons advogados de boa e má índole, e Sr. Manuel aceitou vender a casa e dividir o dinheiro com seus irmãos. 23
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E agora? Para onde iria com sua família? Ganhava tão pouco, não via condições de comprar uma casa, e a parte da herança que correspondia a ele não era tanto assim. Sentia-se incapaz. Nunca fora tão humilhado. Oscar, seu irmão mais velho, o olhava com desdém e fazia questão de passar por ali todos os dias para lembrá-lo do compromisso de sair da casa, visto que já estava vendida. Não tinha escolha. Pensou em tomar veneno e acabar com tudo aquilo. Chegou até a venda do Sr. Antônio, pediu um frasco de chumbinho e afirmou que pagaria assim que recebesse por um serviço que havia feito, pois tinha urgência de matar alguns ratos que surgiram em sua casa. Dona Valquíria e a pequena Maria Helena, ou Heleninha como era chamada, tinham ido à casa da comadre Nair. Com o pequeno pacote debaixo do braço, Sr. Manuel notou que a casa estava vazia. Mesmo não concluindo o primário, sabia ler e escrever muito bem. Escreveu uma carta direcionada a Heleninha, dizendo que a amava muito, mas que não poderia suportar vê-la na rua com a mãe, sem um teto. Com o rosto molhado em lágrimas e as mãos trêmulas, dobrou cuidadosamente a carta e deixou-a sobre a mesa. Quando abriu o vidrinho com o veneno e preparava-se para levá-lo a boca, uma mãozinha empurrou a porta subitamente: -Achô! - E correndo em direção ao Sr. Manuel com os bracinhos abertos, disse:
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-É baia? Papai qué baia... - A menina não deixou o pai colocar o veneno na boca. Sr. Manuel escondeu-o depressa em cima do armário. A pequena Heleninha o olhou desolada. - Qué doche, qué doche! E abriu um berreiro que só foi acalentado quando Sr. Manuel a pegou nos braços. Dona Valquíria chegou em seguida. - Menina terrível! Distraí-me um pouquinho e ela queria porque queria você... Falei para ela esperar mais um pouco... Ela se soltou da minha mão e voltou correndo para casa. Precisa levar uns tapinhas para aprender que não pode fazer isso... Dona Valquíria ainda não percebera que Sr. Manuel soluçava. Assim que notou, perguntou o que houve. O marido explicou tudo mostrando-lhe a carta e o veneno. A esposa o envolveu num forte abraço. Os três estavam abraçados. Sr. Manuel e Dona Valquíria choravam copiosamente. Somente a pequena Heleninha sorria inocentemente, pendurada no pescoço do pai, tentando alcançar o armário. *** Sr. Manuel desistiu da ideia de se matar. Conhecia a bíblia, a lia constantemente. Sabia que o único que tinha o total direito de tirar a vida era Deus. Sentia-se covarde e agradecido pelo anjinho da sua filha livrá-lo da morte. Prometeu para a esposa e para si mesmo que jamais tornaria a cometer tal ato por maior que fosse seu desespero. Naquela manhã de sábado, saiu desesperado à procura de uma casa para comprar e contava somente com algumas economias e com a parte que recebera da venda do velho sobrado. Precisava desocupá-lo o quanto antes, pois o morador 25
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tinha pressa em apropriar-se dali. Foi à cidade de Cotia, onde havia uma região periférica conhecida como Jandira, visitar um amigo de infância e procurar um lugar para comprar. Andou pelo local que não passava de um desvio da Estrada Sorocabana, hoje CPTM, e encontrou uma placa: “VENDE-SE UM TERRENO.” O lugar era muito humilde. Perto dali, havia um depósito de lenha para abastecer as saudosas “Marias Fumaças”. Não hesitou, comprou o terreninho e fez um pequeno barraco de madeira para acomodar-se com sua família. Pagou o terreno e o material à vista. Era muito esperto e engenhoso, no mesmo dia que fechou o negócio, levantou o barraquinho. Dona Valquíria estava preocupada porque o marido ainda não chegara. Sr. Manuel retornou ao sobrado por volta da 1:00 h da manhã de domingo, dizendo que já tinham para onde ir. No domingo, às 10:00 h, juntaram algumas coisas que possuíam. Sr. Oswaldo fez o carreto dos modestos móveis em um velho caminhão. A família partia. Vizinhos e amigos próximos desejavam uma vida próspera. Algumas comadres choravam. Sr. Oscar, recostado em seu carro de luxo, acompanhava a mudança do irmão com um olhar de desapontamento. Na verdade, queria que ele fosse expulso dali pelo novo proprietário. A família partiu de cabeça erguida. Aquele foi o último dia em que o Sr. Manuel viu seu irmão mais velho. Nunca mais encontrou seus irmãos. Com tamanho desgosto admitia para si mesmo que ele era o bastardo e além de tudo, doente. Era o único sem estudo nem 26
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profissão, e achava natural que seus irmãos não quisessem saber notícias suas, até porque nem o consideravam como tal. A única razão para viver, era a esposa e a filhinha que Deus lhe dera. Mudaram-se para aquele distrito e iniciaram uma nova vida. Quando Heleninha tinha cinco anos, Sr. Manuel comprou alguns materiais para iniciar a construção de alvenaria. Não demorou muito para Dona Valquíria trabalhar como lavadeira de roupas por ali. Dois anos depois, o barraquinho transformou-se numa casinha de dois cômodos e um banheiro, que ficava do lado de fora. Não existia água encanada naquela região, e o banheiro consistia simplesmente numa casinha coberta de telhas com um buraco bem fundo, que depois de utilizado era coberto com um pedaço de madeira. Os banhos eram tomados com uma “cumbuca”, misturava-se água quente com água fria num balde e com a ajuda de algum recipiente, molhava-se o corpo, depois se ensaboava com sabão caseiro, sempre economizando para que a água se tornasse suficiente até o término. O casal sentia um orgulho muito grande daquela casinha humilde, pois era uma das poucas de alvenaria. A maior parte de seus vizinhos morava em casinhas de madeira. O terreno era pequenino, talvez desse para construir mais um cômodo somente. Uma sala, talvez. Depois de alguns meses, Sr. Manuel fez a sala, que era dividida com o minúsculo quartinho de Helena. Compraram cal e algumas “bisnagas de corante” para pintar a casinha. Os anos passaram e os vizinhos também começaram a construir. A infância toda de Maria Helena foi naquele lugar, em Jandira. Era querida por todos os vizinhos, tão alegre e meiga 27
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era aquela criança. Os pais se preocupavam com o futuro da pequena. Ela se tornaria uma moça muito bonita e muito inteligente, com certeza. -Tomara Val – dizia Sr. Manuel para a esposa – que nossa filha encontre um bom marido, e que ela não sofra tanto, como nós sofremos. Que não precise se matar de trabalhar na casa de um e de outro, para ganhar tão pouco. Ela é muito inteligente. Se fosse homem, com certeza teria um bom futuro. -Os tempos estão mudando, Mané. Hoje em dia, tem mulher que trabalha em lugares como datigrafas. Se ela estudar, poderá até encontrar um bom trabalho independente de se casar ou não. Sr. Manuel sorriu com as palavras da mulher. E num tom de brincadeira, falou: - Nossa filha vai ser o quê? – e ria – Datigrafa? Que diacho de profissão é essa que nunca ouvi falar? Não seria datilógrafa? E não se aguentando de rir abraçou a esposa, completando: - Olhe Val, vou lhe falar uma coisa: já me disseram que beleza e esperteza não cabem num corpo de mulher, e agora percebo que isso é verdade. Tomara Deus, que Maria Helena tenha puxado somente a beleza da mãe... – completou Sr. Manuel sorrindo e dando um tapinha nas nádegas de Dona Valquíria. -Olhe Mané... Fique sabendo que só não respondo como deveria, porque não entendi nadica de nada do que você disse...
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2. O primeiro beijo 1964
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s anos se passaram, não é possível controlar o tempo. Em 1963, Jandira conquistou emancipação políticoadministrativa de Cotia, tornando-se cidade. Para reprimir movimentos socialistas que envolviam boa parte dos países, inclusive o Brasil, os EUA apoiaram os exércitos brasileiros para a tomada do poder. Em 1964, após um golpe de Estado, o Brasil se via dominado pela ditadura militar e governado pelo Marechal Castelo Branco. Outras mudanças ocorreram na vida de Sr. Manuel. Sua filha Helena tinha então 16 anos, e a família morava num sobradinho de quatro cômodos. Como a filha já era moça e Dona Valquíria reclamava do aperto, Sr. Manuel transformou os quatro pequeninos cômodos em dois: sala, cozinha e banheiro. Com esmero, fez uma escadinha que dava acesso a dois quartos na parte superior. Gastou um bom dinheiro com ferro, pois para tal empreitada foi necessário reforçar as estruturas. A casa era bem arrumadinha, apesar de simples. Dona Valquíria a encerava com dedicado cuidado. As panelas eram muito bem areadas e ficavam suspensas sobre o fogão. A casinha era um verdadeiro brinco. Já havia eletricidade em muitos pontos de Jandira e na casa de Sr. Manuel havia chuveiro elétrico e água encanada. Somente o telefone, parecia algo inalcançável.
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Heleninha tornou-se uma bela jovem. Estatura mediana, a pele muito alva, o rosto bem desenhado, bochechas rosadas, cabelos negros, muito negros e levemente cacheados até a altura das espáduas. Seus olhos eram grandes e ligeiramente puxados. Podia-se pensar que talvez algum antepassado seu fosse oriental. Seu corpo era bem definido, a cintura fina era realçada pelos largos quadris, os seios redondos e rijos pareciam gotas d’orvalho sobre as folhas. Foi abençoada com um belo colo, belo pescoço e belas pernas. Até os dedos das mãos e pés, os braços, as unhas... Parecia uma escultura esculpida, onde até os mínimos detalhes foram realizados com a mais perfeita técnica. A natureza também a abençoou com uma inteligência fora do comum. Tinha muita facilidade com ciências exatas, era curiosa a ponto de observar o mecânico consertando o veículo do professor Carlos Eduardo no estacionamento da escola com grande prazer e admiração. Um dia, o veículo quebrou novamente e o professor esbravejava, irritando-se a ponto de chutar a roda do veículo. Depois de sair e bater a porta com força. Helena, observava-o de longe com um sorriso e seguindo lentamente em sua direção ofereceu-se gentilmente para solucionar o problema. O professor olhou-a surpreso e deixou que a jovem abrisse o capô do carro, para verificar. Não soube exatamente o que a garota havia feito. Simplesmente a viu abrir um grampo que retirou dos cabelos e mexer aqui e ali. A jovem ordenou: - Dê a partida. 30
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O professor obedeceu, sem esperanças. Estranhamente o veículo funcionou. O professor saiu do veículo e quando ia agradecer, a jovem adiantou-se: - Dá para chegar até sua casa, mas é estritamente necessário procurar uma oficina... Não deixou que o professor agradecesse, rapidamente pegou seus livros que estavam depositados sobre o teto do veículo, virou as costas e saiu. *** Helena era muito alegre. Adorava contar piadas e fazer as pessoas rirem. Não se podia ficar muito tempo perto dela, sem sorrir. Logo, tornou-se uma das garotas mais populares e mais cobiçadas da escola. Uma de suas virtudes era o estudo. Adorava estudar. Extremamente dedicada, suas notas eram as melhores. Terminava a prova primeiro que todos e disfarçadamente respondia as provas de seus colegas sem que o professor notasse. Muitas jovens de sua idade já tinham beijado ou “ficado” com alguém, Helena era muito reservada com relação a isso. Sempre cheia de pudor, não se podia tocar “nesses assuntos”, que suas bochechas avermelhavam, principalmente quando notava que algum rapaz a estivesse observando. Algumas amiguinhas já tinham perdido a virgindade, coisa que para a criação que teve, era absurda. Seus pais sempre a ensinaram que deveria primeiramente concluir seus estudos e depois se casar com alguém que a amasse de verdade. Diziam que existiam muitos homens aproveitadores que depois de conseguirem o que queriam, abandonavam as moças e 31
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ainda falavam mal delas. Helena não sabia o porquê, mas seus pais a inspiravam tanto respeito e confiança, que ela acreditava neles. Então, aproveitava sua mocidade entregando-se aos estudos e as conversas jogadas fora com seus colegas e sua amiga Ana. Mesmo com a repressão da ditadura, a educação naquela época era excelente. As escolas públicas eram as melhores e somente os alunos que tinham muitas dificuldades para o aprendizado eram colocados em escolas particulares. - O mundo, minha filha, dizia seu pai, é cheio de ameaças. Vivemos num mundo machista e a mulher ainda não conseguiu um espaço na sociedade. Por você ser mulher, é preciso estudar em dobro para conseguir um emprego digno e nunca depender de ninguém. Se você casar com um bom homem, tudo bem. Mas, se casar com um homem mau não quero vê-la passar por humilhações em troca de um prato de comida. Você ainda é jovem. Se namorar agora se esquecerá dos estudos. Se “ficar” com um e outro, além de não pensar em estudar, vai ficar mal falada e nenhum rapaz de respeito irá aceitá-la como esposa. A jovem ouviu aquilo a vida inteira e acreditava em todas as palavras do pai. Do pai, não. Do herói. Como aquele homem era admirado pela jovem! Helena pensava em estudar e conseguir um bom trabalho para ajudar os pais quando estivessem mais velhos. Nem pensava em contrariar aquele pobre ser que lhe deu a vida, nem se não concordasse com a ideologia dele, jamais o contrariaria. Era extremamente apegada ao velho. Sempre o chamava de “superpai”, fazia tudo para 32
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deixá-lo contente. Sabia que mesmo vivendo em outra época diferente da que ele viveu quando jovem, se ele lhe dava tantos conselhos era porque a amava e se preocupava com ela. Era com grande alegria que em suas horas vagas, fazia aquele bolinho de fubá de que Sr. Manuel tanto gostava. *** Helena estava no segundo colegial. Naquele dia se encontrava toda empolgada e feliz porque as duas últimas aulas seriam vagas. Sendo assim, poderia passar na biblioteca, e pegar alguns livros emprestados. Talvez, Memórias Póstumas de Brás Cubas, Diva ou Senhora... Não se cansava de ler. Ler era um de seus passatempos preferidos. - Me acompanha até a biblioteca, Ana? Perguntou Helena para sua melhor amiga. - Claro que não. Desde quando você me vê na biblioteca? Deus me livre. Só se estivesse doente. Como sairemos mais cedo, vou namorar o Jorginho... - Não sei o que você e uma dúzia de meninas veem naquele “cara”... Nossa!O homem parece até celebridade... É só chegar à escola, todas as meninas começam a suspirar, suspirar... - Helena fazia um gracioso gesto, imitando as meninas. - Mas ele é celebridade. É bacana demais. E quando vem para a escola somente de calça, sem camisa, o peito peludo a mostra... Ai, ai, ai... Não sei como não tem interesse por ele. Justo você que é uma das meninas mais bonitas da escola... Só não digo que é a mais bonita porque perde para mim... – e sorrindo continuou – era só dar um sorrisinho que ele já se 33
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aproximaria... Falo contigo sobre o Jorginho porque somos amigas e sei que você não gosta dele... Você só gosta de garotos inteligentes, e olhe vou lhe dizer uma coisa, é muito difícil de encontrar, viu? Helena sorriu com as palavras da amiga, pensando que Ana estava realmente certa. Difícil encontrar um garoto inteligente. - É... Realmente é muito difícil encontrar um rapaz estudioso, inteligente... Mas, com certeza eu jamais me interessaria pelo Jorginho. Nem que fosse o último homem do mundo. Também acho que ele não é de boa índole, por isso é melhor tomar cuidado, lembre-se que o Jorginho é bem mais velho que você... Ele só aparece aqui para se exibir para as garotas. Acho que nem terminou os estudos... Ana sorriu. - Você fala como seu pai... Com certeza, o cara ideal para você é daquele tipo que conhece muito bem a fórmula de báskara, assim como todas as Grandezas da Física e tudo de Química, Filosofia, Literatura e de preferência que fale pelo menos duas ou três línguas... – risos- Vou lhe contar uma coisa, mas é segredo, hein? Nós não estamos namorando só na escola. Nós estamos namorando de verdade... Estou contando para você, porque sei que posso confiar... - Seus pais sabem? - Lógico que não. Se soubessem eu não estaria namorando... - disse Ana com uma gargalhada - A propósito, contei-lhe um grande segredo. Agora me conte um, vai... Você já beijou alguém? 34
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- Você sabe. Não sei por que vive me perguntando isso. - Porque não acredito. Uma menina com 16 anos e virgem, tudo bem. Mas, “virgem de boca”, é de lascar... Acho que nem minha avó demorou tanto tempo para dar o primeiro beijo... – outra gargalhada. - Bem. É melhor você se encontrar com aquele “mocorongo”, que irei para a biblioteca. Tchau mesmo! - disse Helena com as bochechas vermelhas, se retirando de perto da amiga e seguindo rapidamente para a biblioteca. Como pode sua amiga caçoar dela desse jeito? “O fato de nunca ter beijado ninguém não diz nada. Se nunca beijei, é porque não chegou a hora. Ou porque nunca apareceu nenhum rapaz interessante. Eu não preciso sair por aí, beijando todo mundo para provar alguma coisa para alguém”. - Boa Tarde! A Senhorita Concerta Tudo está tão apressada hoje... Na verdade, você vive apressada, tão apressada que nem me deixou agradecê-la por ter consertado meu carro naquele dia. Era o professor de Literatura, Carlos Eduardo, mais conhecido como Prof. Cadu. Era um rapaz de altura mediana, branco, cabelos castanhos escuros e dono de uma simpatia incrível. Ele ensinava brincando. Suas aulas não eram enfadonhas, cansativas ou chatas. Não. Ao contrário. Eram as melhores aulas. Todos aprendiam a matéria com facilidade. Ele tinha o precioso dom de ensinar, não se portava como professor autoritário ou mandão, mas ali juntinho de seus alunos parecia um deles. Disposto a ensinar tudo o que sabia, com humildade para aprender também. Para ele, a vida só já era uma grande 35
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escola, sabia o momento certo para falar e também tinha paciência para ouvir. Tinha vinte e seis anos e lecionava havia um. Era o herói de muita gente, estimado por todos os alunos e cobiçado por uma boa parte das alunas. Era extremamente inteligente e organizado. -Oi Professor Cadu! - disse Helena com um sorriso tímido. - Preciso ir para a biblioteca entregar alguns livros e pegar outros. Não estou com pressa, não! É impressão sua... Helena sentia uma grande atração pelo professor. Ele era tão inteligente, educado, simpático... Muitas vezes escrevia versos em seu caderno dedicados a ele. Só que nunca havia contado a ninguém, nem para sua melhor amiga Ana, até porque ela não era a única garota da escola apaixonada pelo professor. Foi exatamente a admiração e atração que sentia que a levou por muitas vezes ao estacionamento da escola, bem na hora que o professor saía. Ficava ali, olhando-o de longe. Outras vezes, quando saía mais cedo da escola, passava por ali, ficava observando o veículo algum tempo na esperança de que o professor também saísse, para paquerá-lo. Lembrava-se de que fora num desses dias em que o mecânico – Sr. Jairo - que ela conhecia muito bem – consertava o veículo do prof. Cadu, e permitira que ela observasse, sem ralhar. - Bem, então se a senhorita não estiver com pressa, podemos tomar um sorvete na cantina? - Então... É que estou com um pouco de pressa... - disse Helena, corada. - Não entendo... Você está ou não está com pressa? 36
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- Não. Quero dizer, sim. Talvez... Tudo bem... Eu aceito o sorvete. Os dois seguiram até a cantina da escola e o professor gentilmente a ajudou a levar os livros e os cadernos. Sentaramse e enquanto tomavam o sorvete, conversavam animadamente. Helena nem parecia aquela menina tímida de outrora. Era outra. Ria muito, conversava bastante. Não se podia negar, que além de linda e inteligente, era completamente simpática. Não era como as típicas meninas bonitas de sua idade, que por serem belas, se tornavam arrogantes e “convencidas”. Ao contrário. Se dissessem mil vezes que ela era linda, continuava a mesma. Sempre risonha, nunca apresentava nenhum sinal de superioridade. Reconhecia-se então que a humildade também era uma de suas virtudes. Depois que tomaram o sorvete foram à biblioteca. Em seguida, o professor pediu para acompanhá-la até próximo de sua casa. Helena permitiu. Primeiro porque estava tarde e como tudo por ali era deserto, não convinha andar sozinha. Segundo porque Cadu era uma companhia muito interessante. Se o trajeto fosse feito somente por Helena, ela levaria dez minutos para fazer o percurso da escola à sua casa. Mas, como estava conversando com o professor, não tinha muita pressa de chegar. Demoraram o dobro de tempo. - Aqui está bom... Muito obrigada por me acompanhar... Os olhares de ambos se cruzaram. Parecia que as estrelas estavam mais brilhantes naquela noite. A lua contemplava aqueles jovens, e não se sabe se por algum impulso dela ou das estrelas, a atração foi certa. A mão do professor afastou uma 37
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madeixa de cabelos que cobriam parte da face de Helena para detrás de sua orelha. Aproximou seus lábios devagarzinho dos dela, e uniram-se. O resultado foi um beijo inesquecível. Um não, dois. Ou melhor, três... Foram vários. O professor a envolvia nos braços com desejo e ternura. Ela sentia o mesmo, sentia um tremor em seu corpo a cada toque de Cadu, mas em seu subconsciente ouvia a voz do pai: “Homem depois que consegue o que quer, larga a moça e ainda sai falando mal...” Helena não acreditava que um homem tão especial como o Cadu tivesse intenção de fazê-la sofrer. Ela gostava dele e aquilo que vivenciava em seus braços era como um sonho... Era uma bela coincidência... Não dava para acreditar que depois que trocou aquelas palavras com Ana na escola – a respeito do primeiro beijo – o primeiro beijo acontecesse naquela mesma noite. Subitamente afastou o professor colocando suas mãos no peito dele... - Preciso ir... Ele assentiu com a cabeça e observou-a de longe até que ela entrasse em sua casa. Não sabia o motivo, mas estava feliz. Cadu também sentia uma forte atração por Helena, mas nunca conversavam como amigos. Sua relação com aquela jovem era de professor para aluna. Na hora do intervalo, quando tentava se aproximar, ela estava sempre acompanhada de sua amiga Ana ou de algum colega enamorado suplicando um pouco de atenção. Ele via-se sem esperanças, pois se achava bem mais velho. Nunca teria chance.
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Como podia ser assim tão especial àquela garota? Tinha um dom extraordinário de cativar as pessoas, de fazer com que os outros a quisessem bem, de conquistar no primeiro olhar... Carlos Eduardo, que era homem vivido, se inclinava aos encantos e às graças de uma quase criança. Como? Ele que já fora casado, que experimentara as delícias da companhia feminina, que vivera tudo o que a vida oferece de melhor, se inclinar aos encantos daquela moça... Era 15 de Abril de 1964. Seu casamento não deu certo, é verdade. Sua mulher era muito bonita, mas era extremamente arrogante e exigente. Por saber o tamanho amor que o professor sentia por ela, o pisava, o massacrava... Regulava-lhe um beijo e para conseguir o desfrute do belo corpo que o enlouquecia, era preciso humilhar-se, ao pó. Vivera com sua mulher dois anos de paixão avassaladora, ciúme incessante e privado do prazer que ela lhe negava. Recordava-se das muitas vezes que ao procurá-la, sua mulher o olhando com aquele olhar frio de senhora e soberana, o reprimia com a palavra NÃO. Não entendia o motivo daquilo. Enquanto sua esposa o recusava, muitas mulheres bonitas o queriam. Mas ele era cego de amor, ninguém poderia substituir a mulher com quem ele se casara; só tinha olhos para ela... Um dia, cansado, partiu de casa. Nem tanto por mendigar o amor daquela ingrata, mas porque descobrira o sabor da traição. E era amargo. Sua mulher o traía com seu melhor amigo. Foi numa segunda-feira. Cadu pegou o carro para seguir ao trabalho – era num escritório no centro da cidade de São Paulo a 50 km de onde morava com a família – e no caminho lembrou-se que 39
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deixara dois relatórios que redigira em casa, sobre a mesa da cozinha. Rodou aproximadamente vinte quilômetros, mas não hesitou em retornar. Estacionou o veículo do outro lado da rua e entrou cuidadosamente em casa, para não acordar sua esposa. Iria pegar os relatórios que estavam dentro de um envelope amarelo, mas algo o fez subir ao quarto. Observou sobre a mesa uma maleta preta que não estava ali, quando ele havia saído para o trabalho. O coração acelerou e, devagar, abriu a porta. Viu um homem nu, seu amigo de infância, Antônio, sobre uma mulher nua, que era sua esposa - e fez um hãhãhã, visto que o casal estava tão distraído que nem percebera sua presença. Na certa, eles se encontravam com tanta frequência que descuidaram da porta, pois jamais imaginariam que o babaca que era Cadu, desconfiasse de alguma coisa. Rapidamente pararam o que estavam fazendo. Com os olhos arregalados, ambos – amigo e esposa – observavam-no atônitos pronunciando algumas palavras como: “Não é nada disso que você está pensando...” Antônio levantou-se rapidamente vestindo as calças. Cadu estava parado, com olhar de ódio voltado para os dois. O amigo aproximou-se na tentativa de se desculpar, dizendo que não sabia como aquilo havia acontecido e sua frase foi interrompida por um soco certeiro dado com tanto ódio que cortou seus lábios, acompanhado de outros que acertaram e provavelmente quebraram seu nariz. O sangue jorrou, Antônio caiu sobre a cama amparando o sangue com as mãos. A esposa se encolhia na cama. 40
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Não tinha palavras... Naquele instante, Cadu saiu de casa sem relatórios, somente com algumas roupas, documentos e livros. Deixou um filho pequenino de alguns meses, que estava dormindo e que de quando em quando visitava. Nunca deixou de ajudar financeiramente e lutava para conseguir a guarda do filho na justiça. Lembrava-se também da quantidade de vezes que seguiu para o trabalho embriagado, depois do que havia acontecido. Pensou até em se suicidar para deixá-la com remorsos, mas não teve forças para tanto. Saiu com a cara e a coragem. Mudou-se para longe. Começou a dar aulas naquela escola no Município de Jandira, onde foi bem acolhido pelos funcionários e pelos alunos. Não queria saber de mulher nenhuma devido ao sofrimento que passou, mas brincou com várias. Mulher alguma seria digna de seu amor. Não queria sofrer e resolveu descontar seus dissabores em outras mulheres. Mentia, dizia que amava sem amar... Prometia casamento. Chegou a namorar cinco mulheres de uma só vez. Para ele, mulheres eram todas iguais, interesseiras e mentirosas. As mais belas, eram as mais arrogantes e perigosas. Depois de algum tempo, sua mulher até pediu para voltar a viver com ele, e a palavra dessa vez era dele: NÃO. Até que conheceu Helena. Pensou que fosse igual a todas as outras. Na sala de aula admirava seu desempenho e interesse, percebia que algumas meninas quando falavam de namoradinhos com ela, ao perceber que ele a observava, corava. Percebia quantos rapazes a cobiçavam e ela sempre com um sorriso nos lábios e uma ternura na voz, dizia NÃO. Era um Não
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parecido com Sim. Até para negar, para desfazer de alguém ou quando precisava ser áspera, era meiga e carinhosa. Não dava para se zangar com ela. Era simplesmente maravilhosa. Demorou muito tempo para se aproximar da jovem. Pela primeira vez depois da separação, tinha medo de se apaixonar novamente. Percebia pelo olhar da moça e pelo seu comportamento que sentia algo por ele, talvez por admirar sua inteligência, pois imaginava ser velho demais para ela. E depois de tudo isso, naquela noite foi surpreendido. Pode tê-la por alguns momentos em seus braços, pode beijá-la... Imaginou quantos moços bem mais jovens sentiriam inveja dele. Estava orgulhoso e satisfeito. Imaginou que ainda poderia ser feliz dividindo sua vida com outra pessoa. Subitamente pensou que Helena era demais para ele... Talvez ela só quisesse experimentar o sabor de um homem mais velho... Então decidiu que o melhor era se afastar dela antes que se apaixonasse de verdade e sofresse outra decepção.
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3. Encontro com o desconhecido
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elena devorou os livros no final de semana. Era a única maneira de não pensar no professor. Queria desabafar com alguém e como não tinha ninguém, descontava na leitura. Leu e releu. Não tinha o que fazer, sua melhor amiga estava com Jorginho, e suas outras amigas, bem... Ela não tinha. Uma grande barreira de inveja se instalou entre ela e as outras garotas do colégio, que a enxergavam como um perigo. Seus únicos colegas eram garotos apaixonados, que viviam a rodeando pedindo ajuda nos cálculos matemáticos e nos dias de prova. Se saísse com algum deles, na certa seria agarrada, e isso ela não queria. Queria ser agarrada por um homem e não por um moleque. Queria ser agarrada novamente pelo professor de Literatura. Ria consigo mesma. Tinha também o professor de História, que era seu melhor amigo, depois de Ana. Porém, Paulo César estava tão envolvido com Movimentos Revolucionários que não tinha tempo para ela. Na segunda-feira, Helena devolveu os livros na biblioteca depois da aula. -Boa noite, Sr. Tibério!
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-Boa noite, senhorita! Creio que se lembrou de devolver os livros... Pensei que não os traria mais. – brincou o bibliotecário ironicamente, pois fazia somente dois dias que a garota estava com os livros. -Não deu nem para o começo... -Menina, menina. Os livros devem ser lidos calmamente, para o bom entendimento. E não devorados... - disse o simpático senhor sorrindo. -Tem alguma novidade, aí? -Até tinha. Mas você leu todas as novidades... -Então... Creio que levarei todos novamente... Só não sei por onde começar... Já sei: pelo O Crime do Padre Amaro. Quem diria que esse livro não poderia ser lido por garotas há algumas décadas por ser considerado imoral?! E agora está disponível em todas as bibliotecas... Para todos... Como tive aula vaga, começarei a leitura aqui mesmo, posso? Como não tem quase ninguém na rua, esperarei até a próxima turma sair, tudo bem? - Claro senhorita! A Biblioteca só fechará às 22:00 h! Helena pegou o livro O crime do Padre Amaro e começou a devorá-lo. Saiu da biblioteca assim que o sinal tocou, com outra turma, para ter companhia de retorno para casa. Não viu o professor Cadu, ele não trabalhava às segundas-feiras naquela escola. Defronte ao colégio havia vários moços conversando alegremente. Alguns com roupas coloridas, cabelos Black Power. Outros utilizavam cortes de cabelos com topete e costeletas, estilo Elvis Presley. Entre eles se encontrava o
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professor de História, Paulo César, e o assunto de que falavam era ditadura militar. O professor tinha trinta anos, um metro e oitenta, moreno, cabelos lisos e pretos, olhos negros e grandes. Tinha um sorriso branquíssimo, e no canto direito dos lábios, trazia uma pinta negra que só era visível quando estava barbeado. Tinha também um furinho no queixo, que enlouquecia as mulheres. Nunca se envolvera com nenhuma aluna, na sala de aula era sério e até sistemático. Muito diferente de Cadu, que era extremamente simpático com todos, Paulo César era reservado. Era muito bonito, e as garotas tinham que se contentar em somente paquerá-lo de longe. Quanto mais reservado era, mas cobiçado também. Somente Helena tocava seu coração. Era a única aluna que conversava com ele e até brigava se achasse necessário. Quando eles se conheceram, ela tinha dez anos e ele vinte e quatro. A amizade iniciou quando a bola de capotão de Heleninha caiu em sua casa. Ele a entregou no portão muito irritado, e a garotinha admirando a beleza do rapaz, estalou-lhe um beijo na testa e disse um delicadíssimo “Obrigada”. Desde aquele dia, a amizade foi crescendo entre eles e além de amigo, Paulo César se sentia o protetor da garota. Era como se fosse seu irmão mais velho. Eram tão amigos que Helena o tinha como confidente. A moça contava-lhe tudo desde criança, até mesmo quando trancou Sr. Josias, o dono da mercearia, no banheiro com a trinca que ficava do lado de fora, quando ele tentou acariciar seus pequeninos seios que ainda estavam despontando. O 45
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homem ficou preso por duas horas, quando um cliente, percebendo sua ausência, abriu a porta e o encontrou desmaiado no chão e banhado em suor. Paulo, que escutou tudo atentamente, não comentou nada com Helena, mas também não hesitou em conversar com Sr. Josias sobre o ocorrido, ameaçando-o que se houvesse uma próxima vez ele deveria se considerar um homem morto. Sr. Josias acatou todas as palavras e nunca mais mexeu com a garota. Ela estava moça formada, era linda, mas contentava-se somente em olhá-la. Era esquisito o que o professor Paulo sentia por Helena. Achava que precisava cuidar dela, e nunca alimentara esperanças de tê-la como esposa ou namorada por se considerar muito velho. Somente o elo da amizade, o fato de saber que ela estava feliz, era suficiente para ele. Mais tarde, Paulo começou a estudar na USP e a trabalhar na capital. Encontrou um apartamento em conta, vendeu a casinha em Jandira e mudou-se. Algum tempo depois retornou. Alugou um cômodo pequenino próximo da escola onde lecionava e deixou seu apartamento vazio. Reencontrou a amiga, ainda mais bonita e inteligente que antes; agora já era uma mulher formada. Ficara ausente por quatro anos, mas ao retornar, a amizade permaneceu a mesma. Como tantos outros homens, também sentia extrema atração pela moça. Ao sair do colégio, Helena entrou na roda de rapazes, conversou um pouco com os garotos e com o professor Paulo e seguiu rapidamente para sua casa. Paulo ofereceu-se para acompanhá-la, mas ela não aceitou dizendo que tinha muitas 46
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pessoas na rua aquele horário. Todos os rapazes a acompanharam com o olhar. Mal atravessou a rua, passou um veículo azul conduzido por um belo rapaz moreno, cabelos lisos, topetudo, lábios carnudos e dono de um belo sorriso. Usava uma camisete branca de golas altas e calça azul marinho. Exibia um colar de ouro no pescoço, e a primeira impressão era de que se tratava de um jovem rico. O carro parou subitamente e o rapaz perguntou para Helena: - Moça, você conhece algum posto de gasolina por aqui? Helena rapidamente informou o local, encantada com os traços do rapaz. - Muito obrigado! Você me ajudou bastante. Moro no Rio de Janeiro e estou visitando a irmã do meu pai, ou seja, minha tia... - Não me diga que sua tia mora por aqui?! - Mora sim... Meus tios tem um Restaurante em São Paulo, mas não suportam o barulho de carros e o grande movimento da cidade grande... Então eles resolveram morar por aqui... Pelo menos é bem tranquilo... - É tão tranquilo que dá raiva... Nunca acontece nada de novo por aqui... Bem... Preciso ir... - Espere, você quer uma carona? - Não, obrigada! Não pego carona com estranhos... - Eu também não dou carona para estranhos – brincou o rapaz – Meu nome é Fernando, e o seu?
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- Me chamo Maria Helena Soares, mas pode me chamar simplesmente de Helena, Maria, Maria Helena, como achar melhor... - Posso escolher então? Prefiro chamá-la de princesa... - Não me lembro de oferecer essa palavra como opção... - Mas vou chamá-la assim mesmo... - Prefiro ser chamada pelo meu nome. Fui generosa, ainda lhe ofereci três opções... - Mas acredito que essa quarta opção, combina melhor com você... - Bem... Como lhe disse, o posto de gasolina fica a uns cinco minutos daqui. Sendo assim, passar bem. Rapidamente a jovem virou as costas e partiu. Fernando não esperava aquilo. Toda moça que se prezasse teria caído aos seus encantos. Sempre foi assim, mas aquela era diferente. Certamente, Helena lhe daria muito trabalho. Com o cadilac azul metálico, seguiu-a cuidadosamente. Rua Dois nº 35. Centro. Era ali que ela morava. Fernando ficou encantado com a beleza da jovem. Mas o que o encantou ainda mais foi à maneira objetiva que ela se livrou dele. Ela era um anjo em forma de pessoa, mas Fernando percebeu que Helena tinha personalidade e isso o excitava. A moça por sua vez, embora o achasse atraente no primeiro impacto, não sentiu confiança no rapaz. Sentiu por ele o mesmo que sentia em relação ao Jorginho, namorado de Ana. O belo moço trazia certa maldade nos olhos. Helena não via a hora de sair dali e retornar para casa, para ficar a sós com seus livros e seus pensamentos. O seu coração pertencia a Cadu. 48
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Helena não tinha muitas ambições na vida. Pensava somente em estudar, conseguir um bom emprego e se casar com o professor. Morar numa casinha confortável, ter filhos e cuidar dos pais. Seus sonhos se resumiam a isso. Eles eram tão simples, que ela não via motivos para não se realizarem. *** Dona Valquíria ganhou de uma de suas patroas um quilo de carne e por isso, preparou um delicioso jantar. Simples, mas muito gostoso. Arroz, feijão, bife e salada. - A comidinha está muito boa, Val... – disse Sr. Manuel. - É porque eu lavei a salada, meu pai... - Logo percebi. Se a filha que eu mais amo não tivesse lavado a salada, a comida não estaria assim tão boa... - Superpai, eu sou sua única filha... Os pais da jovem sorriram. O jantar terminou às onze horas da noite. Aquela família parecia ser a única que jantava assim tão tarde. O motivo era que Helena estudava à noite, e se os pais jantassem mais cedo, a comida não teria o mesmo sabor, sem a presença dela com eles, à mesa. Após o jantar, já em seu quarto, Helena lia tranquilamente O crime do padre Amaro. O frio era intenso. Garoava lá fora. Fernando sorria ao se lembrar da desculpa que tinha arrumado para puxar assunto com Helena, pois sabia exatamente onde tinha um posto de combustível por ali. Ao chegar à casa dos tios, foi logo falando para seu primo Augusto sobre a jovem.
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- Cara! Conheci um broto, velho! Linda! Só que pela primeira vez na vida, acho que é um broto que não gostou de mim... - Onde você a conheceu? - Em frente daquela Praça Nilo de Andrade Amaral... Ela estava saindo da escola, Vicente Themudo Lessa... - Será que ela tem alguma irmã gêmea? - Não sei. Ainda não a conheço direito... Mas vou conhecê-la e descobrir. Se tiver, aviso! –Amanhã passarei em frente à escola, para vê-la, beijá-la e... Quem sabe... - E a Juliana, como fica nessa? - perguntou Augusto. - Bem... Se a garota gostar de mim, a Juliana é coisa do passado... Passo ela para você – Ecoaram gargalhadas por toda a sala. – E por falar nisso, marquei encontro com ela hoje. Seus pais viajaram... É hoje que a filha chora e a mãe não vê... Fernando levantou-se rapidamente do sofá, e logo se aprontou para o encontro. Alguns minutos depois, saiu com o cadilac. Estava muito bonito. Usava costeletas, vestia calça preta boca de sino e camisete azul de mangas compridas e com gola alta. Uma jaqueta preta de couro completava o visual do moço sedutor. No rosto moreno, naqueles lábios carnudos brotavam um lindo e malicioso sorriso, revelando dentes incrivelmente brancos. Para uma mulher, estava simplesmente irresistível. Sem falar de suas palavras. Sabia cativar uma mulher por mais difícil que fosse. Quanto mais difícil, melhor. O único problema era que para ele não existiam mulheres difíceis. Encostou o veículo na Rua Três de Agosto, Jd. Monte Belo em Cotia. Buzinou. Logo, desceu uma jovem loira. Juliana 50
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usava minissaia apesar do frio e uma blusa vermelha com um leve decote que mostrava o contorno dos seios. Tinha quadris largos, cintura fina, coxas grossas – era muito atraente. - Pensei que não viesse. – disse a loira sorrindo, enquanto abria o portão da garagem – meus pais não voltam hoje. Somente no próximo mês. Estão viajando. - Eu sabia. Na semana passada você me contou que eles viajariam... Eu estava louco de saudades... O casal subiu as escadas abraçando-se e beijando-se compulsivamente. A noite passou tranquila. Apesar da noite fria e chuvosa, o dia amanheceu claro. O sol despontou tímido, porém muito cedo naquela manhã. Os pássaros cantavam alegremente, dez horas da manhã e o calor estava intenso. Fernando e Juliana dormiram abraçadinhos. Helena dormiu abraçada a seu livro. O dia começou cedo para o prof. Cadu, que se levantara às cinco e meia da manhã porque havia perdido o sono. Resolveu então corrigir algumas provas e preparar a aula da turma da 8ª série. Dona Valquíria iniciou o dia lavando as roupas da casa. Não tinha trabalho fora. Helena ora ajudava a mãe na arrumação, ora lia. Sabia tudo o que aconteceria nos próximos capítulos, mas a leitura a prendia tanto que até irritava. - Por favor, filha! Vê se tira pelo menos o pó dos móveis antes de ir para a escola. Você fica presa a esse livro... Helena entrava às 18:00 h no colégio e saía às 22:00 h. Era o melhor horário. Podia dormir até mais tarde, ajudar a mãe nos serviços domésticos, fazer os deveres escolares e encontrar-se com Ana para jogar conversa fora. 51
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Pretendia arrumar emprego em breve e sempre que podia saía de casa a procura de trabalho. Seus pais não sabiam. Não queriam que ela trabalhasse. Preferiam que Helena se dedicasse somente aos estudos. De quando em quando, a moça interrompia a leitura e recordava-se dos momentos em que ficara nos braços do professor. Às 17:00 h, após um banho, arrumou-se depressa, pegou seu material e seguiu até a casa de Ana. Iriam juntas ao colégio. Helena gritou pelo nome da amiga algumas vezes no portão. Ana desceu toda sorridente, segurou o braço da amiga e foi logo cochichando. -Você nem imagina... Vou sair com o Jorginho hoje. -Que horas? -Oras bolas! Na hora da aula. Daqui a pouco ele passará na escola para me pegar. Isso se ele já não estiver lá me esperando. -Credo! Você é muito louca! Sair com um cara que nem conhece direito. -Não é com um cara que vou sair. É com “o cara”. Aposto que a Júlia, a Catarina e companhia morrerão de inveja. Helena ficou tensa. Não confiava em Jorginho e não queria ver sua amiga sofrer. Em suas andanças à procura de emprego, o via em rodas com vários homens mal encarados, fumando e bebendo. Tentou comentar com Ana, mas ela disse que Jorginho era meio hippie, completamente contra a ditadura militar. Por isso andava por aí com uma turma pregando paz e amor.
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Helena conhecia muito bem as pessoas que eram hippies e Jorginho estava mais para um bandido qualquer, do que para um hippie. - O que foi, Helena? Ficou estranha de repente... Está preocupada com alguma coisa? - Não... Espere... Helena tirou um spray de pimenta da bolsa, que ela mesma havia preparado - pois sua comercialização no Brasil era proibida - e entregou para Ana... – Se você precisar... Ana a abraçou e devolveu o spray. - Fique tranquila, Amiga! Não precisarei disso... Hoje, serei “inaugurada”, e pelo homem que amo... Nada pode dar errado... Você gostará do Jorginho quando conhecê-lo melhor... - Se você diz... Escute, você está me dizendo que fará amor com ele, é isso? - É... Isso mesmo... Vamos fazer amor... - E se você ficar grávida? - A gente casa. Mas como não pretendo casar agora, é só tomar a pílula... - Que pílula? - Ah, então você não sabe? Você deveria estender seu gosto pela leitura e passar a ler algumas revistas de vez em quando... Você já leu a Revista Claudia? Lembra-se daquela revista que lhe mostrei aquele dia? Ela está aqui... Já a li, e reli. Pode ficar com ela... A Revista datava do ano anterior, 1963. - E o que tem a ver a revista com a pílula?
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- A gravidez pode ser evitada, através de uma pílula anticoncepcional... A pílula foi inventada em 1960, ou seja, há quatro anos... Que sorte a nossa, não? Helena sorriu e abraçou Ana. Depois pensou em como era boba ao se preocupar tanto com a amiga se era justamente aquilo que ela queria. E mais, Ana era extremamente atualizada. Helena colocou a revista juntamente com seus cadernos. - É uma pena que você não aprove esse relacionamento, Amiga... Pensei que pudesse contar com você. Meus pais com certeza, jamais me apoiarão... - Se você gosta tanto assim do Jorginho, quem sou eu para aprovar ou não? Só quero que seja feliz... Mas me diz uma coisa: Você sairá com o Jorginho com o uniforme da escola? – as meninas usavam saia azul marinho – repleta de pregas e cintura alta - na altura dos joelhos, blusa branca com mangas curtas e sapatos brancos. No tempo do frio, utilizavam um agasalho de tecido mais grosso, da cor da saia. Qualquer pessoa que a vir sozinha num carro com um homem, logo vai imaginar que você fugiu da escola... É até perigoso chamarem a polícia, sabia? Ana apontou para uma sacolinha que carregava. - Minha outra roupa está aqui. As amigas se abraçaram como duas irmãs que se amam deveras. Seguiram para a escola. Jorginho se encontrava apoiado em seu fusca branco defronte do portão do colégio. Ana despediu-se de Helena e com um sorriso, aproximou-se do rapaz. Naquele momento, passavam por eles as rivais de Ana, Júlia e Catarina. Ana, ao perceber que o namorado era alvo dos 54
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olhares das meninas, envolveu-o num beijo demorado. O sinal tocou. Helena entrou no colégio. O fusca de Jorginho partiu levando sua melhor amiga. Estava distraída pensando em como às vezes se parecia com seu pai, sempre se preocupando com as pessoas que amava. Seu pensamento foi interrompido pelo prof. Cadu. - Boa tarde Helena! Tudo bem? - Tudo. Mais ou menos... - Por que mais ou menos? - Ainda não consegui trabalho... - E, seus pais sabem que você está procurando trabalho? - Não. Eles não querem que eu trabalhe agora... - E então? - Sabe, às vezes penso que meus pais querem que eu estude para lavar, passar e cozinhar... De que adianta estudar tanto, se eles não querem que eu trabalhe? - Talvez eles pensem que você é muito jovem... - Ou tenham esperanças de que eu me case com um homem rico... - Isso seria ruim... Porque não poderia me candidatar... Helena sorriu. - Me convida para um sorvete? - Claro! Depois da aula a gente se encontra na cantina. Helena preparou-se para entrar na sala de aula. Despediram-se com um sorriso. Logo, várias moças rodearam o prof. Cadu. Tinha moça ruiva, morena com os cabelos rebeldes, louras, brancas. Todas usavam lápis preto em torno dos olhos, batom muito claro e 55
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lenços. O professor, simpático como era, tentava ser atencioso com todas. Helena com uma ponta de ciúmes, enquanto o professor de História não chegava para iniciar a aula em sua turma, espiava de longe Cadu, no corredor conversando com as garotas. “Como são oferecidas. E por que será que ele dá tanta atenção para elas?“ O professor de História, Paulo César, chegou cinco minutos atrasado. Ele que conhecia bem sua aluna e amiga, perguntou logo em voz baixa: - O que aconteceu meu bem? Parece zangada... - Não aconteceu nada. – respondeu a moça secamente, com seriedade no olhar. Paulo César admirava a amiguinha, principalmente quando estava zangada, porque fazia um “biquinho”, como de criança quando faz birra. Pensou consigo: “Se eu fosse uns dez anos mais jovem...” Ele, que também desconfiava do amor da menina pelo professor de Língua Portuguesa, disse olhando para o corredor onde Cadu se encontrava: - Nem precisa responder... – disse ele – Já sei. - E passando as mãos nos cabelos da moça, completou ternamente – Ele a ama. - Como sabe disso, Paulo César? Ele lhe contou? - Contou, mas não com palavras. Contou-me através do olhar... - o professor respondeu conduzindo a jovem pela mão até sua carteira. As outras alunas os observavam com inveja. Nas duas últimas aulas, o prof. Carlos Eduardo entrou na sala, todo sorridente como sempre. 56
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- Espero que tenham estudado. Não quero que pensem que “desconfio de vocês”, mas nas carteiras somente caneta, lápis e borracha. – Era prova. Amanda, uma mocinha que estava na sala, retrucou: - Ah professor, nós ficamos muito chateados com essa “desconfiança” de sua parte... Não é pessoal? Todos os alunos concordaram sorrindo. Somente Helena estava séria. No momento da prova de português, Cadu por mais que tentasse, não tirava os olhos de Helena. Era linda, toda concentrada na prova. Como sempre, foi a primeira a terminar. Os garotos pediam ajuda disfarçadamente. Queriam trocar as provas para que Helena as respondesse no lugar deles. A moça ignorou os olhares angustiados de súplica de seus colegas. Cadu podia ficar muitas horas admirando-a. Como podia existir uma criatura tão linda e tão perfeita aqui na Terra? Não seria um anjo que quebrou as asas e veio parar aqui? E aquela ideia de esquecê-la e de vê-la somente em sala de aula? Pensava em Helena todos os dias, sua imagem, seu sorriso... Chegava até a imaginar seu corpo nu, como veio ao mundo. Como seria ela? Era tão perfeita. Chegou sonhar que a amava. Todavia tinha medo de sofrer, tinha medo de passar por tudo o que tinha passado. Mas a ideia de vê-la nos braços de outro homem também o perturbava. Estava preso àquela moça. Se conquistasse o seu amor, corria o risco de sofrer por ele, e se não o conquistasse sofreria do mesmo jeito. A aula terminou. Helena saiu rapidamente do colégio, para fugir do professor. Embora não pudesse exigir nada dele, 57
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estava zangada pelo excesso de atenção que dava às outras alunas. Cadu, ao perceber que a menina ia embora, apressou os passos e vendo-a no portão seguiu rapidamente em seu encalço. E todo cheio de simpatia, a convidou para dar uma volta na praça da cidade. Helena, ao ver o sorriso do professor, esqueceu que estava irritada e aceitou o convite. Fernando apareceu em seguida e, com chispas de raiva, observava que a moça pela qual se interessara, tinha um namorado. Observou os dois andando lado a lado e o rapaz segurando seus livros. Deu meia volta no carro e seguiu novamente até a casa de Juliana. “Existem tantas mulheres bonitas no mundo. Aquilo era o de menos.”
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4. A primeira briga
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Maio de 1964
ara que seus pais não se preocupassem com sua ausência, Helena pediu para um colega de sua sala, que morava próximo, avisá-los que chegaria mais tarde. O casal seguiu até a praça da cidade conversando animadamente. Com Cadu, parecia até que Helena conversava com uma amiga... Como se entendiam! O professor parecia tão adolescente quanto ela. Que amizade gostosa era aquela. Ao perceber que estavam distante do movimento de alunos que passava por ali, abraçaram-se no banquinho da praça. Beijaramse e concluíram que deveriam ficar juntos. Era quase 22:30 h. Logo, o delegado passaria pelas ruas ordenando o fechamento dos bares que insistiam em permanecer aberto, e prendendo pessoas que ficassem na rua até tarde, por vadiagem. O professor levou Helena de carro até próximo de sua casa, e dentro do veículo a observou entrar. Os dias se seguiram tranquilamente. Cadu e Helena encontrando-se e saindo sempre que podiam. Quando não saiam, contentavam-se em conversar na cantina da escola. Ana estava cada vez mais apaixonada por Jorginho e, inclusive, perdendo aulas. Ia à escola um dia sim, outro não. Jorginho trabalhava em regime de escala 12 por 36, e nos dias de folga levava Ana para sua casa. Era solteiro e morava sozinho. Todo o tempo em que as amigas ficavam juntas conversavam sobre Jorginho. Ana não falava em outra coisa, 59
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nem perguntava se Helena estava bem ou não. A amizade esfriou. Houve tempo que Ana não ia mais ao colégio e como não acompanhava as matérias parou com os estudos. - Ano que vem eu volto. – dizia ela. - Ana, Ana, por que você vai parar agora? Deixe para ver seu namorado aos fins de semana... - replicava Helena. - Se fizer isso, no tempo que eu estiver na escola, terá alguma garota ocupando meu lugar... Ele mesmo falou... A propósito, você nem perguntou como foi minha primeira vez... - Como foi? – perguntou Helena sem interesse. Ana contou todos os detalhes. Helena estava tão envolvida pensando em Cadu, que não se atentava em quase nada do que a amiga dizia. Na verdade, não tinha interesse em ouvir, e nem curiosidade de saber como era. Sua vez chegaria e a julgar pelo tamanho da paixão que sentia pelo professor, esse dia não tardaria. Fernando ficou um bom tempo sem aparecer na escola. Ele gostou de Helena, mas também gostava de Juliana que lhe dava muito prazer. Ainda mais depois que os pais da moça viajaram, eles ficavam juntos todas as noites. Um mês depois, os pais da loira retornaram da viagem. Como não teria as mesmas regalias de outrora, Fernando resolveu procurar Helena, mesmo desconfiado que ela estivesse namorando. E, quando menos se esperava, um belo dia o moço apareceu no colégio. Lindo, lindo, lindo. As meninas, que só tinham olhos para Jorginho, Cadu e Paulo César, começaram logo a suspirar por Fernando também. Helena surpreendeu-se quando viu aquele moço, moreno, alto e lindo de pé apoiado 60
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agora, num fusca branco, que pertencia a seu primo Augusto. O rapaz não gostava de andar sempre com o mesmo carro, no Rio de Janeiro, onde morava, trocava de carros com muita frequência, até porque era rico. Em São Paulo, na casa dos tios, se contentava em utilizar o seu e o do primo. Enquanto seu pai resolvia alguns negócios no exterior, Fernando administrava-os no Brasil. Havia uns cinco anos que pai e filho não se viam, de modo que se comunicavam através de alguns contatos que possuíam. Naquela noite, o lindo moço estava com um perfume irresistível. As meninas fizeram até roda para contemplar a beleza do rapaz. Fernando, ao observar Helena no portão do colégio, seguiu em sua direção com um belo sorriso: - Quanto tempo... Percebi que está bem diferente de quando nos vimos da primeira vez... - É sim, de fato. Acho que estou mais velha. - Ora, ora, ora. Muito mais velha... – disse Fernando numa gargalhada - Tem até algumas rugas perto dos olhos... Também, faz tanto tempo que a gente não se vê... Creio que umas duas semanas. - Cinco semanas, para ser mais exata! - Na verdade você está muito mais bonita do que quando a vi pela primeira vez. Apesar de não se sentir a vontade com o moço, Helena conversava com ele enquanto aguardava o namorado. Cadu saiu às pressas da sala dos professores para alcançá-la, mas foi interrompido pelo Sr. Tibério, o bibliotecário, que o chamou para uma palestra demorada com outros professores... Meia hora 61
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perdida. E nem pode avisar a namorada da “tal” reunião, pois ele mesmo foi surpreendido por aquele imprevisto. Enfim, saiu afoito na esperança de vê-la na cantina. Não a viu. Seguiu para a porta da escola e notou que Helena papeava com um belo rapaz. Sentiu uma enorme fúria, o ciúme invadiu seu coração... Queria pegá-la pelo braço e levá-la para longe dali. Sentiu raiva de si mesmo. Como podia se entregar para aquela moça de corpo, alma, coração? Como? Tantas mulheres o procuravam. Tantas alunas o cobiçavam, e se não tinha nada com elas era por causa da idade. Jamais se envolveria com uma adolescente simplesmente para satisfazer seus desejos. Isso nunca. Mas com Helena era diferente, ele a amava. Nunca sentira aquilo por ninguém, nem pela sua ex-mulher. Saiu pelos fundos da escola e entrou em seu Fiat 850 branco. Helena, vendo que Cadu não saía da escola, despediu-se de Fernando e entrou no colégio à sua procura, mas não o encontrou. Cadu já havia partido. No dia seguinte, Helena percebeu que Cadu a evitava. Tentou por diversas vezes puxar conversa na hora do intervalo, ele a ignorava. Porém dava atenção exagerada a outras meninas. Chegou a vê-lo de braço dado com uma moça no Auditório da escola, enquanto assistiam à peça representada pelos alunos de outra turma Auto da Barca do Inferno, de Gil Vicente. Helena ficou profundamente chateada, perdeu a amizade de Ana (a amiga nem se lembrava dela) e agora o amor de sua vida a desprezava, sem motivos. Seu amigo Paulo César, envolvido com ideais revolucionários, não tinha tempo para ela.
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Suas colegas de escola a evitavam, a barreira da inveja as separavam. Helena se sentiu só. Seu pai tinha razão, “homem não presta.” Chegou a sentir raiva de Cadu, principalmente quando o via em companhia de outras moças. “No mínimo aquele bando de oferecidas já teriam ido com o professor para os finalmente, e como sou um pouco mais reservada, ele se afastou. Na certa, somente me beijar não é suficiente.” Passou a tratá-lo friamente também, e quando o via na rodinha com algumas meninas, ignorava-o. Quando conversavam em sala de aula, o tratava rispidamente. Cadu percebeu a mudança de seu comportamento e como as atitudes dele também a irritava. Mas não a procurou. Era orgulhoso. Um dia, após a última aula de Matemática, Helena foi a última a sair. Sua cabeça estava cheia de problemas, preocupava-se com a saúde de seu pai, que não andava boa. Procurou trabalho desesperadamente durante todo o dia, mas as únicas opções que encontrou na região eram para trabalhar como cortesã em luxuosas casas noturnas. Ainda persistia em alguns escritórios da região oeste a ideia de que somente homem redigia com eficácia em uma máquina de datilografar, e que as mulheres sabiam muito bem pilotar fogão. Estava chateada. Só o que sua mãe ganhava não era suficiente para abastecer a casa e comprar remédios para o pai enfermo. Então, Helena seguia sozinha envolta nesses pensamentos pelo pátio da escola, quando de repente, encontrou-se com Cadu que saía de outra sala de aula. Estavam a sós naquele corredor comprido repleto de salas vazias. Cadu 63
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vendo Helena à sua frente, não pensou duas vezes. Dominado por um amor cego, misturado com ciúmes, repleto de paixão e raiva ao mesmo tempo, puxou-a para si bruscamente. Em seguida, envolveu-a num beijo enfurecido e prolongado, sem dar importância ao local que se encontravam, nem na possibilidade de alguém surpreendê-los. Helena tentou afastá-lo, mas estava com as mãos ocupadas com cadernos e livros. Tentou relutar, mas sentiu um arrepio na espinha e aos poucos se entregou àquele beijo. Sentia as mãos de Cadu em sua cintura, uma sensação de prazer misturado com raiva, percorria seu corpo. “Quem ele pensa que é? Primeiro me despreza, depois me ataca com um beijo?” Após esses pensamentos, tentou esquivar-se, mas ele a beijava e a abraçava cada vez mais forte. Subitamente, Cadu a soltou e olhando-a secamente disse: - Quem era aquele cara? Ela, irritada, respondia à altura: - Não sei do que você está falando. - Ah, não sabe? Vou refrescar sua memória... Semana passada, aquele cara moreno apoiado num fusca branco, estava de prosa com você. Quem é ele? - Não me vejo na obrigação de responder a essa pergunta, já que você também estava de braço dado com uma garota no Auditório da Escola. Sem contar, na exagerada atenção que dá a todas as alunas desse colégio. - Escute aqui, você não tem o direito de bater papo com nenhum cara, está me entendendo?
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Cadu estava transformado. Nem parecia aquele professor amável que Helena conhecera. As mãos do professor a machucavam, enquanto ela tentava se livrar, respondeu: - Por que não tenho o direito de conversar com quem eu quiser, hein? Dê-me um único motivo... – completou irritada. Cadu percebeu que Helena continuava linda, mesmo zangada. Olhando-a nos olhos num tom decisivo, objetivo e com os lábios próximos dos seus, disse: - Porque a amo. – Beijou-a novamente. Helena aceitou o beijo. Cadu sussurrou próximo de seu ouvido, agora em tom amigável: - Sei que você me quer tanto como eu a quero. Se não fosse assim, não aceitaria meu beijo... Helena sorriu e disse ternamente: - Você se aproveitou porque eu estava com as mãos ocupadas com meus livros... Abraçaram-se e entenderam-se. Helena explicou que o rapaz era somente um conhecido, que procurou o namorado naquele mesmo dia, mas ele já havia partido. Cadu falou que tudo o que fez, foi somente para provocar ciúmes na menina e que estava completamente apaixonado por ela. Tão apaixonado a ponto de se casar. -Você quer se casar comigo, Helena? -Não sei não, preciso pensar... -Dou-lhe três segundos... Um, Dois, Três. -Aceito. 65
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O feliz casal saiu abraçadinho da escola. *** Junho – 1964 As coisas na casa de Sr. Manuel não iam muito bem. Os ataques começaram a atormentá-lo com frequência e já não tinha forças para trabalhar. A família vivia com o que Dona Valquíria recebia das lavagens de roupa. Helena procurava emprego quase todos os dias nas redondezas de Jandira – entre Cotia, Itapevi, Barueri e até Osasco, mas não conseguia nada. A preferência era para homens. Não importava sua inteligência, sendo bonita como era poderia seguir carreira de “bailarina”, comentou com ar maldoso, um gerente de loja de carros que ela procurou. Mas, se ela quisesse ganhar dinheiro, não precisaria ir muito longe. Poderia encontrar um homem que lhe desse muito mais do que ela precisava... Ele mesmo, o gerente, estava disposto a se tornar seu “padrinho”. O que ela precisava fazer era muito simples, ser sua amante. O homem levantou-se da mesa, receoso de que ela fugisse de seu escritório, e Helena ao perceber suas intenções, com uma mistura de medo e nojo, golpeou suas partes íntimas com um chute, pois esquecera seu spray de pimenta em casa. O gerente rolava de dor. A garota fugiu dali. Pensou na possibilidade de procurar emprego no Centro de São Paulo. Seguiu até a Estação Ferroviária, e sentada num banquinho, foi abordada por uma mulher. -Moça, você está procurando emprego? 66
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Helena estranhou a maneira de abordagem imaginando como sabia daquilo. A mulher aparentava trinta e cinco anos, era alta, usava saia xadrez preto com branco e uma camisete branca de mangas compridas e com delicado babado, feito com o mesmo tecido. Usava um lindo coque, seus cabelos eram louros, trazia batom vermelho nos lábios carnudos e calçava sapatos de salto alto brancos. Era sem dúvida muito elegante e, talvez, rica. Pelo seu porte e modos de falar, demonstrava personalidade forte e uma notável inteligência. - Como à senhora sabe? -Tenho uma equipe de rapazes que procuram jovens bonitas para tirar fotos. Publicidade... entende? Você gostaria de participar? -Não sei... -Acontece que temos uma modelo para tirar as fotos, só que infelizmente sua mãe está doente... Doença maligna... Está em fase terminal... Ela mora na Bahia, e a moça foi visitá-la tendo que cancelar todos os compromissos para este mês... Estou aflita porque preciso de uma substituta com urgência. O serviço não é efetivo, é somente, um “quebra-galho”, se você aceitar poderá tirar as fotos ainda hoje... – A mulher completou enquanto consultava o relógio da estação. -Como a senhora sabe que procuro emprego? -Um dos meus rapazes a viu sair de uma agência de veículos... Não é difícil imaginar que esteja à procura de trabalho, visto que está com uma pasta nas mãos... Ele imaginou que você estivesse assustada e que talvez se ele a abordasse, não 67
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aceitaria... Então, ao perceber que você viria para a estação, ele me contatou, eu estava por perto. Estou de carro, segui rapidamente e até comprei bilhete de trem para tentar alcançála... Felizmente o trem ainda não passou. - Olhe, já andei muito à procura de emprego, e a única coisa que me dizem é que sou bonita... Até me sugeriram para trabalhar em casa noturna... Saiba que se é para isso, a resposta é não... -Não estou mentindo para você. O comércio sexual exige que as moças sejam analfabetas e sem família, completamente sozinhas e leigas. De preferência, muito pobres e sem opção de vida. Sou formada em Direito, mas fiz vários trabalhos sobre isso. Se você fosse pega para fazer esse tipo de serviço, ainda que a força, rapidamente daria um jeito de retornar para casa. Simplesmente porque você é instruída... É inteligente e tem família. - A não ser... - A não ser?... - A não ser que eu fosse sequestrada e participasse de um tráfico de mulheres, para o exterior... - Não disse? Você é realmente muito esperta... Se você fosse traficada para o exterior, seria completamente leiga lá... Não conheceria nada, sequer o idioma... Como sabe de tudo isso? Imagino que proceda de uma família bem informada... Geralmente essas notícias não circulam muito por aí... Helena permaneceu calada. Não sabia o que responder. - Bem... Por favor, me ajude, sim? Sei que é difícil, mas tente confiar em mim... Se eu fosse uma cafetina, envolvida com 68
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tráfico no exterior, depois de todo esse diálogo, simplesmente me levantaria e procuraria outras jovens. Mas é de você que preciso... - E por quê? A Amélia, minha modelo, é tão bonita quanto você. Vocês se parecem muito... Foi com a imagem dela que fechei contrato com as empresas para fazer a propaganda de marketing... - Pensei que fosse advogada... -Você deve ter percebido que as oportunidades para mulheres são escassas, não é? Se uma pessoa física ou jurídica possui uma causa na justiça, a quem você imagina que recorrerá, a um advogado ou a uma advogada? - A um advogado... - Entendeu? - Sim... - No seu caso também é complicado. Você encontraria serviço facilmente numa indústria, para trabalhar de dez a quatorze horas por dia, se não fosse tão bonita. Olhando para você, num primeiro momento, seu perfil não se enquadraria... Numa casa de família para trabalhar como doméstica, você também não seria contratada... - Por quê? - Você seria uma séria ameaça para sua patroa... Se seu patrão se apaixonasse por você? Ou, se o filho do patrão se apaixonasse? Helena sorriu.
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- Então, o que posso ser? Do lar? Estudar tanto, para ser do lar? - Não. Você pode ser professora ou enfermeira. As mulheres de hoje só ocupam esses cargos na sociedade. A nossa única missão é educar ou cuidar... Você poderá ser também uma secretária, mas na certa será tão cobiçada que largará o emprego... Helena suspirou. A mulher estava certa. Se na escola, não tinha amigas por ser considerada uma ameaça para as outras garotas, imagine no mundo corporativo? - Qual é mesmo o seu nome? - Helena. - Me chamo Edith Fontana. Você é muito simpática, apesar de não confiar em mim. Bem... Para uma jovem bonita como você, imagino que toda essa situação seja de desconfiança mesmo... Mas, não posso obrigá-la. Vou sair daqui, ver se consigo outra garota que seja mais ou menos parecida com você... Vai ser difícil encontrar, mas não custa tentar... Edith levantou-se e se despediu. Seu olhar era de preocupação. Helena pensou na situação da família. Um dinheiro a mais só ajudaria. Precisava comprar remédio para seu pai e pagar a conta da mercearia. Resolveu confiar em Edith e arriscar. Não tinha escolha. Quando a mulher estava próxima à saída da estação, Helena gritou pelo seu nome e seguiu em seu encalço. Ela aceitou a proposta. Naquela mesma tarde, tiraram as fotografias. Ela pousou com um caixinha do filme Kodak nas mãos, exibindo um belo sorriso. Pela primeira vez utilizou maquiagem. Tirou várias 70
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fotos para a Kodak, para a geleia Real, para várias marcas de sabonete e xampu e para marcas de roupas como Lee, Levi’s e outras. Ficou o dia inteiro no estúdio que era ali mesmo em Osasco. Em todas as fotos estava vestida. Pararam para o almoço. Helena foi almoçar num Luxuoso Restaurante, onde havia bancários e pessoas importantes. Depois, retornou ao trabalho. As sessões de fotos terminaram muito tarde, por volta das vinte horas. Helena saiu com uma quantia razoável de dinheiro – que sua mãe levaria dez meses para ganhar – mais uma caixa grande de roupas, vários kits com xampu, sabonete, perfume e vários filmes da Kodak. E ainda todos os agradecimentos de Edith que a levou de carro até a Estação Ferroviária. Sr. Manuel e Dona Valquíria mobilizaram o bairro inteiro, para procurar a moça. Eram quase dez horas da noite e ela ainda não chegara. A menina falou que estudaria na casa de não sabiam quem, eles não se importaram muito, confiavam na filha. Pensaram que ela estava na casa de alguma amiguinha. Eles não tinham telefone e não havia maneira de Helena avisá-los que chegaria tarde. Quando Dona Valquíria chegou à casa aos prantos, amparada pelos vizinhos e amigos, encontrou a moça sentada no pequenino sofá, com vários pacotes e caixas no chão ouvindo sermões do “superpai”. A moça levantou-se do sofá cabisbaixa, como se estivesse arrependida, pedindo desculpas por tudo o que acontecera. Antes de subir para o quarto, estalou um beijo na testa de Sr. Manuel: - O senhor me perdoa, superpai?
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O velho, até tentou esbravejar, mas não conseguiu seguir adiante com a farsa: -Você sabe que sim, filhinha... Mas, nunca mais deixe seu superpai esperar tanto... Fiquei com medo de perdê-la... Ao subir, a jovem entregou para a mãe um envelope com dinheiro. No fundo, os pais tinham muito orgulho da filha, sabiam que ela era muito responsável. Estavam aliviados, por tê-la novamente em casa. Helena tomou um banho e foi dormir feliz. O único problema foi explicar no dia seguinte como tinha conseguido tudo aquilo.
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5. A primeira vez
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Julho de 1964
ernando não desistia da ideia de ficar com Helena. Sempre que tinha oportunidade para abordá-la, o fazia, e era extremamente ignorado. Sentia-se ofendido e rejeitado. Chegou a oferecer dinheiro para ajudar a família da moça, em troca de um encontro. - Sabe Fernando... Quando o conheci imaginei que você, pelo brilho dos seus olhos, fosse uma pessoa de má índole. Mas o conhecendo melhor, percebo que estava certa... Pode ficar com seu dinheiro! -Olhe Helena, eu só quero ajudar sua família... -O que você sabe sobre minha família? -Estive em sua casa por esses dias... -Você sabe onde moro? Como descobriu? -A segui naquele dia que nos encontramos pela primeira vez... - E então? - Percebi que as coisas não estão muito bem em sua casa... Conversei bastante com sua mãe... Seu pai está muito doente, não? - É sim... Está... - Então, posso ajudá-los... Só o que quero é levá-la para passear... -Você quer ajudar minha família, mas quer algo em troca, certo? 73
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Fernando não soube responder. Realmente aquela moça era muito esperta e intuitiva. Não era como Juliana, que somente com um sorriso se derreteu e entregou-se para ele. Ele estava indo longe demais para conquistá-la, a ponto de oferecer dinheiro por um encontro. Queria comprá-la. - Não, não é bem assim... Só quero ter uma oportunidade de me aproximar de você... Sabe, estou apaixonado... Helena sorriu e com ar extremamente irônico, rebateu: -Você está apaixonado por mim e por quantas outras? -Você não acredita em mim? – retrucou o jovem ressentido. -É claro que não. Aquela moça parecia um anjo de beleza, e seu sorriso era lindo. Mas tinha uma personalidade muito forte, que poucas pessoas conheciam. Era decidida e inteligente, qualidade tão rara numa mulher – pensou Fernando. -Você está namorando o seu professorzinho? -Com quem eu namoro ou deixo de namorar, não lhe diz respeito. Assim como não me diz respeito a quantidade de garotas que caem em sua lábia... Olhe, eu nem sei por que estou lhe dizendo tudo isso, mas acredite, seja feliz com quem quiser e me deixe em paz. – Helena virou as costas e saiu, seguindo à escola. Helena estava cansada de ser perseguida e constantemente abordada pelo rapaz. Não gostava de ser ríspida, mas pensou que se agisse daquela maneira ele se desiludiria e partiria para outra. Fernando, por sua vez, estava cada vez mais envolvido por ela, desde que a vira pela primeira vez. Quanto mais ela o 74
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rejeitava, mais ele a queria. E ele a teria, custasse o que custasse. Os dias se passaram e de longe Fernando observava a garota com o professor. Sempre que podia, seguia-os. Ela estava decidida e apaixonada pelo namorado. Como poderia ser aquilo? Nunca nenhuma mulher o rejeitara. Justo ele que era dotado de uma grande beleza e que possuía muito dinheiro. Não aceitaria isso. Perder para outro cara, um simples professorzinho, que nem era tão bonito... E além do mais, pobre. Revoltou-se. Aquilo não ficaria assim. A vingança é um prato que se come frio. Helena não apresentou o namorado para seus pais. Sabia que quando o apresentasse, teria que namorar na sala sob os olhares atentos de sua mãe e do superpai, e não teria a liberdade de passear com Cadu. Por ser muito responsável, seus pais a deixavam sair com suas “amiguinhas”, quando na verdade era com o namorado que ela saía. Ela leu a revista Claudia, que Ana lhe dera, inteirinha e ao perceber que não tardaria para cair nos braços de Cadu, começou a utilizar a pílula. Não poderia correr o risco de engravidar e eles ainda não tinham condições suficientes para assumir um casamento. Numa tarde de sábado, aceitou o convite de Cadu para ir até sua casa. Relutava todas as vezes que ele a chamava, mas decidiu-se a ir naquele momento. Depois que descobriu o anticoncepcional, Graças a Ana, sentia-se mais segura. Depois do almoço, inventou uma desculpa qualquer para seus pais e partiu para casa do namorado que morava sozinho. 75
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Cadu ficara órfão, já adulto, seus pais faleceram num acidente de carro, deixando para ele um sobradinho em São Paulo, que ficou para sua ex-mulher e seu filhinho. Como vivia sozinho, alugou um cômodo com banheiro em Jandira, que não era tão distante da escola. O casal encontrou-se em frente ao colégio, na praça. Comeram um lanche por ali, conversaram animadamente e foram à casa do professor. Apesar de pequenino, o lugar era limpo e organizado. Havia um pequeno guarda roupa recostado na parede, uma cama de casal ao lado deixava um estreito corredor entre ambos. Tinha também uma pequena pia quase defronte de uma janela e sobre a pia um fogãozinho de duas bocas. Ao lado da pia, uma escrivaninha repleta de livros e papéis, e uma cadeira. Ao lado da escrivaninha ficava a porta. Ao chegar à sua casa, Helena estirou-se na cama, espreguiçando-se. Cadu não sabia exatamente o que fazer, pela primeira vez estava constrangido na presença de uma mulher. Talvez pelo respeito que tinha por ela, sentia até medo de tentar alguma coisa. Foi de Helena a iniciativa de beijá-lo, motivo suficiente para a consumação do amor. Ela o queria e ele também. Ao perceber que Cadu estava receoso, Helena tirou a blusa e deixou somente os seios à mostra. -Não sei se é uma boa ideia... -Está com medo de mim? – perguntou a jovem beijandoo. A atração foi inevitável, o temor extinguiu-se.
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Helena entregou-se a Cadu e experimentou pela primeira vez o sabor de um homem. Uma garoa fina começou naquela tarde, depois engrossou, tornando-se uma forte chuva. Naquele cômodo, por algumas vezes, Helena pensou na reprovação de seu “superpai” se ele descobrisse aquilo. Jamais teria sua benção naquele ato errôneo. Somente a chuva parecia abençoá-los ali. Era dia 23 de julho de 1964 e Helena completava 17 anos. Outros encontros como aquele aconteceram. Os dias passaram e Fernando não suportava a ideia da rejeição. Adiou seu retorno ao Rio de Janeiro, só retornaria para a cidade maravilhosa quando conseguisse a jovem. Era atormentado pelos mesmos pensamentos: “Quem ela pensa que é? Se fosse rica, pelo menos... Se tivesse pais influentes... Mas, não... Ser rejeitado por uma pobre plebeia e trocado por um Zé ninguém? Isso não ficará assim...” Com a ajuda de seu primo Augusto, armou um plano. Inicialmente aceitou a recusa de Helena. Conformou-se com a amizade apenas, mas enquanto Helena estava na escola, aproximou-se de seus pais. Na primeira vez, bateu palmas, Dona Valquíria o atendeu. Ele disse que era amigo da menina e que sabia que o pai estava enfermo. Queria visitá-lo. Dona Valquíria aceitou a visita que se tornou frequente. Aos poucos, Fernando percebeu que os pais da moça não estavam numa boa situação financeira. Então pegava as receitas de Sr. Manuel escondidas e no outro dia, aparecia por lá todo sorridente, com pacotes de remédios que comprara. Também dava dinheiro para Dona Valquíria que não queria receber, embora precisasse. 77
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-Não posso aceitar, meu filho. -Dona Valquíria, dinheiro não é problema. Tenho muito. Se precisar de alguma coisa é só falar. Mas, por favor, aceite. Ficarei chateado se não aceitar. Amigos são para ajudar. -Tudo bem então. Deus o abençoe. -Só não diga nada para Helena, tampouco que venho aqui... Ela é um pouco orgulhosa e poderá se chatear comigo... Dona Valquíria, que conhecia o orgulho da filha, dizia que um tio seu – um dos irmãos de seu pai - ajudava a família, e que por enquanto, ela não precisaria se preocupar em trabalhar. Fernando, ao sair da casa de Helena, como não podia se encontrar com Juliana – os pais da moça haviam retornado de viagem - seguia para uma casa de tolerância. Dia a dia, os pais de Helena se encantavam com o moço. Era bonito, tinha muito dinheiro. Devia ser filho de algum empresário ou político. Seria um bom partido para a filha, pensava Dona Valquíria. Sr. Manuel, embora estimasse o rapaz, não sentia muita confiança nele. Precisava passar por uma cirurgia urgente e Fernando, ao saber disso, correu atrás de toda a papelada necessária, pagou os exames e a cirurgia à vista. Somente depois disso, Sr. Manuel começou a aceitá-lo e pedia perdão a Deus por ter pensado mal do moço. Para o casal, Fernando era como um anjo do céu, que viera socorrê-los. Um belo dia, Dona Valquíria disse ao rapaz: - Filho, sabe que não temos como pagar tudo o que está fazendo por nós... -Faço isso porque gosto de ajudar as pessoas, Dona Valquíria. Mas confesso que sinto uma grande afeição por sua 78
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filha. Se ela quisesse se casar comigo, compraríamos uma casa aqui perto para ajudar a senhora e seu esposo – mentiu. -Você já conversou com Helena sobre isso? -Já. Ela não aceitou, parece que está namorando um professor da escola. -O quê? Ela nunca me falou nada... Como gostaria que vocês se casassem... Acho que minha filha perdeu o juízo em recusar sua proposta. -A senhora me quer como genro?- perguntou o rapaz com um sorriso inocente. -É tudo o que mais quero. – disse Dona Valquíria com simplicidade. -Então convença a garota a sair comigo amanhã, sextafeira. Se possível, diga a ela que ajudo a família, e que não ficará bem se não aceitar meu convite de amigo... O resto é só deixar por minha conta... - Combinado. “Se a menina se casar com o Fernando, terá uma vida de princesa” – pensava a pobre mãe – “Tudo o que não pude oferecer para ela, esse rapaz oferecerá. Deus queira que dê tudo certo.” Enquanto isso, Cadu e Helena estavam juntos, na casa do professor. O professor de História, Paulo César, não pôde dar aula naquela noite – estava resolvendo alguns assuntos referentes ao movimento revolucionário – então Helena teve as duas últimas aulas vagas. Como Cadu adiantou as duas primeiras aulas de outra sala que também seriam de História, Helena e Cadu 79
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ficaram livres. Logo, resolveram fazer algo útil juntos... Fizeram amor... Agora, Helena compreendia o que Ana sentia por Jorginho. A moça não via à hora de se casar para ter o namorado, com maior frequência. O professor, por sua vez, mesmo apaixonado pela jovem, já não tinha a mesma pressa para casar... Iria se casar sim, mas não tão rápido. Não via necessidade de antecipar o casamento, porque a tinha sempre que precisava e, além disso, estava endividado. Pagava horrores ao advogado para conseguir a guarda do filho, pensão alimentícia, impostos da casa em que a mulher vivia, etc. Casar naquele momento só aumentaria gastos desnecessários. Helena chegou a casa pontualmente às dez da noite, naquela quinta-feira. Estava feliz. Dona Valquíria aproveitou o contentamento de sua filha e falou sobre o convite de Fernando. A menina rejeitou de imediato. Dona Valquíria contou que quem havia ajudado sua família, quem havia pago a cirurgia do Sr. Manuel não tinha sido seu tio – que a jovem nem conhecia – e sim, Fernando. Helena revoltou-se. Disse que estava comprometida e que seu namorado jamais a perdoaria. -Por que a senhora aceitou o dinheiro dele, mãe? -Você não me contou que tinha namorado... Filha, a única coisa que ele quer é levá-la para sair como amigos. Ele próprio sabe que você namora... Foi ele mesmo quem me contou... Por favor, eu peço... Não me faça passar essa vergonha de dizer não ao rapaz...
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-Meu pai sempre disse: “O que a mão direita dá a esquerda não fica sabendo”. Se ele tem a intenção de ajudar tudo bem, mas querer algo em troca? Um encontro? -Mas que maldade pode haver num encontro, minha filha? -A senhora é muito inocente... E por que será que ele insiste tanto? -Acho que ele gosta de você, mas mesmo que não namorem podem ser amigos, não? Dona Valquíria insistiu tanto que Helena aceitou o convite, contrariada. Logicamente que Cadu não poderia saber daquilo. Como explicaria o fato de sua mãe marcar um encontro para ela porque o moço havia pago uma cirurgia caríssima para seu pai? Mesmo sendo somente um encontro de amigos, ele que era muito ciumento, jamais acreditaria naquela história e terminaria tudo. -Tudo bem. Aceitarei o convite pela senhora. Daqui para frente não receba nada dele, arrumarei trabalho e nem que demore minha vida inteira, pagarei vintém por vintém todo o dinheiro que ele nos deu. Dona Valquíria abraçou a filha. Helena estava preocupada. O que diria para Cadu? A melhor solução era não ir à escola naquela noite. No dia seguinte, às oito da noite, Fernando chegou pensando que provavelmente a jovem estivesse no colégio. Foi com um sorriso de alegria que constatou que a moça cedera ao convite. Entraram no carro. Helena usava calça boca de sino preta, uma camisa de mangas três quartos amarela e uma jaqueta de couro preta, que havia 81
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ganhado no dia em que tirara as fotos para Edith Fontana. Olhando-a tão bem vestida, qualquer pessoa diria que era rica. Fernando pensou na grande possibilidade de se apaixonar por ela de verdade. Dona Valquíria, sem saber o porquê, sentiu o coração apertado. Sr. Manuel suspirou: -Fizemos errado Val. Não devíamos aceitar nada desse sujeito... Creio que tudo o que ele fez por nós, saíra por um preço muito alto... -Para com isso homem. Deus irá ajudar. Nada de mal acontecerá com nossa filha. Fernando levou Helena para uma festinha de amigos na casa de seus tios. Ofereceu uma bebida para a moça e devido sua constante insistência, aceitou. Tudo estava preparado. Havia no copo de bebida alcoólica, um medicamento utilizado pela tia de Fernando, chamado diazepam que servia como calmante. De acordo com a quantidade utilizada, misturado com álcool, a pessoa poderia cair em sono profundo podendo dormir até vinte e quatro horas seguidas. Por esse motivo, era natural não se recordar de nada no dia seguinte. Dona Valquíria estava muito preocupada com a filha. Era meia-noite e nada. Não dormiu a noite inteira. Andava de lá para cá, de cá para lá. Helena, na casa de Augusto, estava deitada no sofá da sala, falando “coisa com coisa”. Às vezes ria, outras vezes chorava. Sua língua estava enrolando, sentia muito sono e seu corpo estava “mole”. Fernando a conduziu pela mão até o quarto de seu primo Augusto. Seus tios viajavam, a festa corria alegremente pela casa. 82
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Muito churrasco, cerveja, música, mulheres e homens dançavam alegremente, e claro, muita droga. Essa não podia faltar. Cocaína e heroína eram vendidas e consumidas ali mesmo na casa de Augusto. A casa era grande e bem aconchegante. Havia muitos cômodos e uma piscina enorme nos fundos. Fernando trancou a porta ao entrar no quarto. Agarrou a moça e começou a beijá-la furiosamente, cheio de desejos. Suas mãos percorriam seu corpo esbelto; despiu-o peça por peça. Parecia um cão no cio, tudo nela o excitava. Para se vingar, pensava em gozá-la e depois desprezá-la. Daí ela poderia ficar com o “namoradinho”. Teria ainda coragem de contar para o professorzinho, todos os detalhes de tudo o que fizera com ela. Queria ver se depois que soubesse de tudo, o namorado continuaria com a moça. A jovem foi vítima de abusos pelo rapaz a noite inteira. Inicialmente, Helena ria enquanto Fernando percorria seu corpo com as mãos e com a língua. Às vezes ela o empurrava, outras vezes falava coisas incompreensíveis. Algum tempo depois, adormeceu. Foi assim que Fernando apossou-se da menina. Foi ali, no quarto de Augusto que sua vingança foi consumada. O sol brilhava ardente naquela manhã de sábado. Onze horas, Helena acordou. Estava nua, num quarto desconhecido, numa cama que não era a dela. Estava só. Levantou-se rapidamente. Sentiu em suas pernas um líquido branco gosmento, misturado com sangue. Estava toda suja, sentia dores nas partes íntimas. O lençol também estava sujo. Aconteceu. Fernando aproveitou-se dela e, pelas dores que sentia, pelas manchas de sangue no lençol e como não era virgem, era 83
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elementar que ele havia utilizado de alguma violência. Sobre o criado mudo viu um par de algemas, provavelmente utilizado por ele. Em suas pernas havia marcas de correia, como se também tivessem sido presas para a consumação do ato. Viu através de um grande espelho que tinha no quarto, seu corpo todo machucado com marcas roxas e vermelhas, o que serviu para ratificar suas suspeitas. Próximo de seu umbigo havia uma mordida tão violenta que o sangue escorreu sobre seu ventre, ficando somente uma leve casquinha de cicatrização. Percebeu que tinha sido espancada durante o ato sexual. Todo seu corpo doía. Sua cabeça também latejava horrivelmente, não se lembrava de absolutamente nada do que havia acontecido. Bem que ela falou com a mãe, que não deveria aceitar o convite daquele homem. Mas, Dona Valquíria era ingênua. Acreditava na boa índole do rapaz. E agora Helena estava ali, humilhada. Com os olhos marejados, observou a existência de um banheiro naquele quarto. Com dificuldades, segurou-se no vão da porta do banheiro, até se equilibrar. Estava tonta. Rapidamente banhou-se e vestiu-se. Abriu a porta do quarto. A casa estava em silêncio. Moças dormiam seminuas, somente de calcinha, outras nuas mesmo, bêbadas (ou drogadas) nos sofás da sala. No chão, havia rapazes dormindo, nas escadas também. Helena passou entre eles com cuidado para não acordar ninguém. Em volta da piscina, nos fundos da casa, também havia pessoas caídas em sono profundo.
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Na saída, sobre a varanda, havia um líquido esquisito, verde amarelado. Parecia que alguém vomitara ali mesmo. Fora da casa havia silêncio total, vários rapazes estirados no chão. Helena tinha pressa de sair daquele local, e quando estava próxima ao portão, observou um rapaz que também estava estirado, com a cabeça recostada na roda de um dos carros que estavam estacionados na garagem. Reconheceu-o depressa. Era Jorginho, o namorado de Ana. O carro de Fernando não se encontrava na casa. Ele não estava entre os desmaiados também. A menina temia que ele a encontrasse e do lado de fora, andou apressadamente. De quando em quando, sua cabeça rodava. A moça recostava-se em algum poste por ali, aguardando a tontura passar. Pegou uns trocados na bolsa, seguiu para o ponto. Felizmente, um ônibus passava naquele momento. Dona Valquíria esperava a filha impacientemente. Sr. Manuel, devido aos efeitos dos remédios, ainda dormia. Quando Helena chegou a casa, sua mãe veio encontrá-la. A menina se jogou nos braços maternos, soluçando. Abraçaram-se. Dona Valquíria fazia carícias nos cabelos da filha. Não precisava de palavras, a mãe – arrependida - compreendeu tudo.
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6. A separação
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adu estava impaciente. Helena não tinha ido à escola na sexta. Queria notícias suas, estava com saudades. Precisava vê-la, beijá-la... Não havia ido à sua casa porque ainda não tinham assumido um compromisso, e não saberia o que dizer aos pais da moça se a fosse procurar. Infelizmente, a menina não apareceu na escola na segunda e na terça. Cadu decidiu que se não a visse na quarta-feira iria procurá-la depois da aula. Helena pensava o tempo inteiro no que falaria para o namorado. E se não dissesse nada, temia que alguém que estivesse na festa lhe contasse tudo. Se ela relatasse a verdade, duas coisas aconteceriam: Primeira, Cadu não acreditaria em suas palavras, o que era mais provável. Segunda, se acreditasse se vingaria de Fernando e aí aconteceria uma tragédia. Helena não tinha dúvidas de que Fernando era perigoso e seria, na melhor das hipóteses, um bandido. E na pior, só Deus sabia. Seu pai também não sabia de nada, mãe e filha preferiram não contar. Helena só se preocupava com a reação de seu amado. Na quarta-feira, ao final da tarde, chegou a sua casa um envelope grande branco que o carteiro trouxera. Era para Helena. A menina abriu o envelope que continha uma carta. Estava escrito assim: Querida! 87
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Pensei que fosse esperto o suficiente para não me envolver com nenhuma mulher. Quando a conheci, pensei que fosse como tantas outras que se passaram pela minha vida. Queria somente me vingar de você por ter me rejeitado. Mas a vida é cheia de armadilhas, e compreendi que estou loucamente apaixonado por você e quero que seja, para sempre, minha. Por isso, termine seu namoro com aquele professorzinho ainda hoje, porque amanhã vou pedi-la em casamento para seus pais. P.S: Tomei o devido cuidado de tirar algumas fotografias nossas que estão sendo reveladas. Se você rejeitar minha proposta, quando os negativos forem revelados, vou mostrá-los para o professor e para seu pai. Seu professor se encarregará de contar para seus amigos o quanto você é interesseira, a ponto de passar por cima da dignidade e honra para se casar com um homem rico. E seu pai morrerá de desgosto. De quem a deseja muito, Fernando. Aos prantos, Helena terminou a leitura da carta. Quando as fotos fossem reveladas e mostradas para seu pai e para seu namorado sua vida estaria perdida. Cadu jamais a perdoaria e seu pai morreria de tristeza. Que situação. Quanta vergonha. Não sabia o que fazer, a não ser chorar. Às cinco e meia da tarde aprontou-se depressa e foi à escola antes da primeira aula para conversar com Cadu. Esperou impaciente no estacionamento o momento em que o veículo do professor chegasse. Precisava terminar tudo e abrir mão do seu 88
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amor. Não havia saída. Com um frio na espinha, acompanhou o Fiat branco que chegava de outro colégio e trazia seu namorado. Ao sair do veículo e vê-la ali, Cadu abriu um sorriso e correu para abraçá-la. -O que aconteceu, meu Anjo? Estava morrendo de saudades. Por que está assim tão abatida?Está doente? Helena respondeu: -Cadu, por favor, não me faça perguntas. E nunca duvide do amor que sinto por você. Apenas leia esse bilhete. A moça entregou o envelope branco para Cadu, enquanto ele lia, ela pensava que a única alternativa era lhe contar a verdade mesmo, compreendendo, pelo pouco que o conhecia, que ele não acreditaria em uma só palavra e terminaria tudo. Mas seria melhor assim. Era melhor ele terminar tudo do que se vingar de Fernando e acabar morto, pois Helena não duvidava nenhum pouco da possibilidade de ele ser um assassino. Não tinha provas disso, mas a sua intuição lhe dizia isso constantemente. Somente o tempo traria provas de suas especulações. Cadu terminou a leitura do bilhete, completamente irritado: -E você quer que eu acredite nisso, depois de vê-los conversando como duas comadres naquela noite, em frente do colégio? Se você quer terminar tudo para ficar com ele, não precisa escrever uma carta, se passando pelo seu Fernandinho... Termina e ponto final. Agora... Você disfarçar a caligrafia e escrever isso, como se fosse ele? -Eu imaginei que sua reação seria essa... Mas é melhor assim... 89
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A moça virou-se para partir, Cadu completamente alterado não conteve uma bofetada no rosto da menina, que cambaleou e por pouco não caiu. As lágrimas correram dos seus olhos copiosamente, não pela dor do golpe, mas pela dor d’alma. -Nunca imaginei que você fosse uma “vadia”, sem moral alguma... É lógico que você arrumaria uma maneira de se livrar de mim, ao saber o quanto eu estava apaixonado, a amando loucamente... Sabia que se simplesmente terminasse, eu não aceitaria com facilidade... Como você estava louquinha de amor pelo Bacana, arrependeu-se de aceitar meu pedido de namoro e agora quer jogar tudo para o alto. Pois bem... Se é isso o que quer, conseguiu. Agora, quem não a quer sou eu. – disse isso ao virar as costas e adentrou a escola. Helena, enxugou as lágrimas e seguiu até a secretaria do colégio para trancar sua matrícula. Sabia que não poderia estudar ali e não tinha certeza de como seria o seu futuro. Depois disso, retornou para casa, explicou para sua mãe que passou mal na escola e por isso não assistiu às aulas. Cadu não tinha cabeça para dar aulas naquela noite. Ficou alguns instantes na sala dos professores, depois pegou seus livros e saiu. Deu partida no carro e andou sem destino. Por fim, parou em frente a um bar e embriagou-se. Helena, ao chegar a casa, jogou-se em sua cama. Dona Valquíria sentou-se perto da moça e com os olhos marejados pedia perdão. - A senhora não teve culpa, mãe. Ele aproveitou-se da sua inocência. Agora não existe remédio, se ele me pedir em casamento amanhã, aceitarei. 90
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Um sorriso despontou dos lábios de Dona Valquíria. “Então esse é o plano. Ele gosta mesmo da moça, se ele quiser se casar, a única alternativa é a filha aceitar.” Mesmo assim, Dona Valquíria lançou a pergunta, esperançosa: -Você terá coragem de se casar com ele? -Sim. Se não aceitar, ficarei desonrada e meu pai morrerá de desgosto. A mãe abraçou a filha com ternura. Tinha esperanças de que a menina fosse feliz com o moço, apesar de tudo o que acontecera, pelo menos sabia que a jovem teria uma mesa farta e uma vida regalada. Era uma verdadeira pena, uma jovem tão linda e tão inteligente passar sua vida casada com um “pobretão”, trabalhando muito para ganhar pouco. Sua filha precisava de coisa muito melhor, merecia tudo de bom. Helena não contou para a mãe os detalhes do que acontecera entre ela e Fernando. Sentia vergonha de tudo. Guardou a carta que ele lhe mandou, na esperança de servir para alguma prova de sua inocência. A noite passou e Helena não dormiu. No dia seguinte, pela manhã, Fernando apareceu na casa de Sr. Manuel e de Dona Valquíria para pedir a mão da jovem em casamento. Os pais a consultaram e na sala, ao olhar para Fernando com um ódio mortal, a moça respondeu que SIM. Após isso, deixou-os a sós e retornou para seu quarto. Dona Valquíria bateu na porta e pediu que a filha saísse para dar um pouco de atenção ao noivo. A moça dizia que estava com dor de cabeça. A futura sogra desculpou-se com o rapaz: -Desculpe... Ela está com dor de cabeça...
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-Não tem problemas... Só gostaria que a senhora me desse o documento de Helena e que vocês fossem comigo ao Cartório... Daí eu trago os papéis para ela assinar aqui mesmo... -Mas o senhor já vai marcar a data? -Sim. Para o próximo mês... Os pais da moça acompanharam-no até o cartório mais próximo de Jandira, em Cotia. Helena, em sua cama, afundou-se no travesseiro, inconformada. Os dias passaram rapidamente. Helena emagreceu, mas sorria forçosamente. Fazia de tudo para demonstrar ao pai uma satisfação que não sentia. Sr. Manuel que estava alheio aos acontecimentos entre a filha e o rapaz, não se contentava de contente. Falava com orgulho para seus amigos que sua filha tinha encontrado um bom partido. Após vê-la casada se Deus quisesse buscá-lo, morreria em paz. Fernando tentava conquistar a moça. Levava doces, flores e deu até um anel de brilhantes para a noiva. Quando ele virava as costas, a menina jogava tudo. A mãe que não via o anel no dedo da filha procurou-o no lixo, e ao encontrá-lo guardou-o com cuidado. Dona Valquíria não via maldade no rapaz, imaginava que mais cedo ou mais tarde, “aquilo” aconteceria. Pensava que a mocidade estava muito diferente de seus tempos. Por causa da ditadura, os jovens faziam coisas absurdas. As meninas usavam minissaias, se entregavam antes do casamento, usavam lápis nos olhos como se fossem mulheres de casa de “luz vermelha”. E falando sozinha completava seus pensamentos: 92
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-Pensam que assim conseguirão mudar a situação política do país. Esses jovens estão completamente revoltados, perderam o pudor. Minha filha ainda teve sorte, por cair nas mãos de um bom rapaz. Depois de casados, com certeza ela se afeiçoará pelo marido e esquecerá o ex. Até que, enfim, Ana procurou Helena. Apareceu toda feliz quando soube do casamento da amiga, mas sem compreender o motivo daquela reviravolta. Até onde sabia, Helena era apaixonada por Cadu, e não pelo bonitão que apareceu na escola. No quarto da jovem, as duas conversavam. Dona Valquíria tentava escutar detrás da porta, quando foi surpreendida: -Mas, Valzinha! Que coisa feia, minha velha! – era Sr. Manuel que a repreendia, ternamente. -Oxi Mané! Que coisa feia, o quê? Por um acaso é feio tirar o pó da porta? – disse Dona Valquíria esfregando uma flanelinha para disfarçar. Sr. Manuel tomou a flanela das mãos da esposa e disse: - Vá fazer um cafezinho para o seu velho, que eu tiro o pó para você... – completou com um sorriso, apoiado em sua bengala. Dona Valquíria, emburrada, seguiu até a pequena cozinha. Sr. Manuel acompanhava a mulher com o olhar, quando a viu desaparecer, soltou uma gargalhada. Helena contou tudo para a amiga. Ana a consolou: - Helena, não fique assim... Quando perdi a virgindade também doeu muito. Não foi bom para mim também. O fato de o Fernando agir de má fé não justifica o sangue, a dor e nem 93
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aquele líquido branco que estava sobre seu corpo. Se fosse com o Ca... – Ana cortou a frase e completou-a novamente – Se fosse qualquer outro homem, seria assim também. Nós mulheres demoramos um tempo para sentir prazer... -Eu não perdi minha virgindade com o Fernando. Perdi com o Cadu... E não foi tão doloroso... Talvez porque eu queria aquilo, foi bom... Fizemos amor várias vezes... -Você nem me contou nada! -Digamos que nós duas estávamos muito ocupadas: Eu estava ocupada com o Cadu e você com o Jorginho... Rapidamente Helena contou tudo o que acontecera entre ela, Cadu e Fernando e como foi forçada a terminar seu namoro e assumir um casamento, a contragosto. Helena levantou a blusa e deixou o ventre à mostra. Ana assustou-se com o que via. A amiga estava toda marcada. Ana suspirou, não sabia o que dizer. Tentou animá-la: - Quando vocês se casarem aprenderá a amá-lo. Não fique assim, Amiga... Helena lembrou-se que viu Jorginho na casa de Augusto naquela manhã de sábado, quando tudo aconteceu. Contou para Ana. -Eu sei. Ele é muito liberal. Ele me disse que quando usa aquilo se esquece dos problemas e da repressão que vivemos atualmente com o governo... -Você precisava ver que tristeza... Mulheres nuas estavam jogadas no chão, homens desmaiados... Acho que foi aquilo que me deixou a mercê de Fernando...
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Helena tentava abrir os olhos da amiga, sem ser indiscreta. - Só espero que o Jorginho não tenha feito amor com nenhuma delas... Helena calou-se sem esperanças. Esperava que um dia Ana acordasse para a realidade e que o amor desenfreado que sentia por Jorginho não a levasse para um futuro inqualificável. Helena não duvidava nada que para satisfazer as vontades do namorado, a amiga também terminasse no mundo das drogas. Subitamente, Ana cortou seus pensamentos confirmando-os: -Helena você não imagina o quanto eu amo o Jorginho... Por ele sou capaz de tudo... - depois a abraçou e ao alisar seus cabelos: - Amiga... Tomara que você seja muito feliz, mesmo que – por ironia do destino - não seja com o Cadu... -Impossível... Sinto que se não for com o Cadu jamais serei feliz com ninguém nessa vida... Nesse momento, uma lágrima tímida rolou dos belos olhos puxados. Ana percebeu com tristeza no olhar, como era intensa a dor de sua pobre amiga. *** Naquela mesma tarde, Helena saiu um pouco para refrescar a cabeça. Colocou uma saia curta e uma blusinha branca sem mangas. Usava sapato plataforma preto e estava, apesar de abatida, muito bonita. Pegou o bilhete que Fernando lhe escrevera e o colocou no bolso da saia. Pensava em se livrar dele no caminho. A tarde estava ensolarada e Helena ficou 95
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alguns minutos na praça central de Jandira, sentada num banquinho. Olhava fixamente para frente e pensava em seus problemas, quando foi surpreendia pelo professor Paulo César. -Boa tarde, meu bem! - Boa tarde, Paulo! -Soube que terminou o namoro com o Cadu, é verdade? -É... -Creio que por isso nunca mais apareceu na escola... -Acertou novamente. -Posso saber o motivo da separação? -Pode. Sabe que somos amigos... -Bem... Somos amigos, mas você nunca me contou que estava apaixonada pelo Cadu... Tive um trabalhão para adivinhar... -Não contei nem para a Ana... Acho que fiquei com vergonha... E você também sempre tão alheio, envolvido com reuniões sobre revolução... -É verdade. Tenho culpa. Ultimamente não vivo para mim, e sim, pelos outros. Penso como serão os dias futuros, se a situação do nosso país continuar como está... – discursou com eloquência. E com a mão no queixo da amiga: - Você me perdoa por não estar presente em sua vida como deveria? -Perdoo. -Então, me diga o que aconteceu? Pode confiar em mim, meu bem! Conte-me tudo. Helena começou sua narrativa e mostrou-lhe o bilhete que recebera de Fernando. Relatou quase tudo o que houvera, e 96
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como o cruel destino a arrancou dos braços de seu amado. Omitiu, porém, detalhes da violência que sofrera. Também não teve coragem de mostrar as marcas em seu corpo. Ao terminar, o amigo e professor, com voz comovida dizia, acariciando os cabelos da jovem, com a ternura de um pai: -Estive ausente no momento em que você mais precisou de mim... -Não precisa se desculpar... A vida nos prega muitas peças, Paulo... -Bem... Tenho um apartamento na capital. Você poderá fugir para lá e não se casar com aquele canalha... -Não será uma boa ideia... Fernando tem muito dinheiro, logo, além de descobrir tudo, não duvido que faça algum mal para meus pais para me prejudicar. -Leve-os com você... -Você já imaginou o nervoso que meu pai passaria se soubesse de tudo isso? Se soubesse que precisamos mudar apressadamente porque fui violentada e se não me casar com Fernando todos poderemos morrer? A saúde dele está tão fragilizada... Apesar da cirurgia, os ataques ainda o atormentam... Seria o mesmo que matá-lo... -Realmente, esse tal Fernando é um verdadeiro patife... Ele pensou em tudo. Helena recostou-se no peito de Paulo que a abraçava. Ele não sabia o que fazer no momento, precisava pensar. *** Ana em sua casa pensava na amiga. Ficou várias noites sem dormir. Imaginava uma forma de ajudá-la. Sua cabeça doía 97
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de tanto matutar. Como se não bastasse, passava por algumas crises no namoro... Jorginho não a procurava como outrora, chegava sempre atrasado aos encontros... Embora refletisse sobre a situação de Helena, Ana não conseguia também parar de meditar sobre o namorado. Precisava arrumar um jeito de vê-lo. Seus pais não sabiam que ela tinha abandonado a escola por causa dele. Na verdade, eles sequer sabiam que a jovem estava namorando. Todas as vezes que saía para o colégio, seguia para a casa de Jorginho, que lhe dera uma cópia da chave. E ficava horas e horas à sua espera. Só saía de lá no término da aula. E o namorado não aparecia. O rapaz só chegava a casa depois que a moça saía. Naquele dia, Ana planejou em sair numa noite daquelas enquanto seus pais dormiam, para procurar o rapaz. Sabia que seria extremamente arriscado. Se fosse descoberta levaria uma grande sova. E assim continuou muitos dias pensando na querida amiga e no adorado amante. Sempre saía no horário da aula com livros e cadernos, até a casa do rapaz na esperança de revê-lo. *** Cadu não se conformava com a separação. Os dias na escola sem a presença de Helena o entristeciam muito. Todos perceberam a diferença. O professor não era o mesmo. O namoro durou pouco, mas foi suficiente para deixar a marca da dor da separação. Estava na biblioteca da escola, sentado numa mesa cabisbaixo, quando o professor de História – o Paulo César – aproximou-se. -Posso me sentar? – perguntou. 98
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-Claro. -Você me parece triste, velho! Será por causa da garota? -Não. Que nada. Até já me esqueci. - Cadu, precisamos conversar seriamente. Talvez você não me considere tão amigo a ponto de confiar em mim... Mas Helena precisa de ajuda. -Não precisa não. Ela está muito bem... -Olhe, eu não sei se você sabe, mas ela foi violentada pelo Fernando. Temos que ajudá-la... -Ajudá-la? Ela está de casamento marcado com ele... Paulo, será que você não percebe que foi tudo armação? Você leu a carta que ele escreveu para ela? -Li. -Então... Eu já havia surpreendido os dois conversando animadamente em frente ao colégio... A carta foi escrita pela própria Helena se passando por ele. Foi uma maneira que eles encontraram de fazer com que eu terminasse tudo. -Não sei se Helena seria capaz disso... Mas, faz sentido... -Não devemos confiar em todas as pessoas, Paulo... Pense, ela é uma moça muito bonita e muito jovem... Mais cedo ou mais tarde se arrependeria de ficar comigo... Apareceriam melhores partidos... -Talvez... -Olhe, sei que você tem uma grande estima por Helena, mas acredite: Ela é humana, e todos nós humanos cometemos erros... Ela pensou que estava apaixonada por mim, mas se apaixonou por outro... Acontece... -Bem... Não foi isso que ela me contou... 99
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-O que ela lhe contou, então? Paulo relatou toda a narrativa de Helena para Cadu, que por fim, disse: -Foi exatamente isso que ela me falou. E eu não acredito nessas palavras... Conversaram mais alguns instantes, o professor de História despediu-se de Cadu e seguiu para casa pensativo. Talvez Cadu tivesse razão. Realmente, seria muito esperto da parte de Helena, elaborar um plano para se livrar do namorado. Ele sorriu: “Garota esperta!” Quanto a ele – Paulo César – só esperava que sua amiga fosse muito feliz. Ele prosseguiria sua vida, envolvido com projetos de Revolução, entregando-se aos estudos e se divertindo com os amigos. Não adiantava mais alimentar aquela amizade, que não passava de um amor sufocado. A jovem se casaria em breve, e nem de longe Paulo poderia vê-la. Já corriam boatos que após o casamento, Helena partiria para o Rio de Janeiro.
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7. Juliana e Fernando 1964 - Agosto
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uliana estava muito apreensiva nos últimos dias. Fernando não a visitava mais. A jovem emagrecera, não tinha vontade de se alimentar e seus olhos viviam vermelhos de tanto chorar. Estava apaixonada por ele. Desde o primeiro momento que o viu, na praça da cidade numa festa popular, sentiu uma atração muito forte pelo rapaz. Ele demonstrava que sentia o mesmo e foi ao seu encontro todo sorridente. Apresentaram-se e começaram o namoro. Logo, a loira convidou-o para ir a sua casa, e o moço aceitou o convite sem hesitar. Conheceu seus pais. As juras de amor eram intensas por parte dele. Todas as vezes que ia à casa da moça levava algum presentinho, sabia impressionar. Pouco tempo depois, seus pais planejaram uma viagem para o interior, e deixou a moça em casa, em companhia do irmão mais velho, Pedro, que não parava em casa. Dormia com frequência nas casas dos amigos onde discutiam sobre Revolução, ou metia-se em festas noturnas. Com a ausência dos pais, chegava muitas vezes embriagado. Como Fernando dizia-se apaixonado pela moça, ela se entregou. Foi sua mulher durante todos os dias que seus pais viajaram. Quando eles retornaram da viagem, o moço desapareceu. Ela não conhecia muito sobre Fernando, mas sabia que seu primo Augusto morava em Jandira, porque já fora a sua 101
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casa. Além da saudade que a atormentava, uma preocupação afligia sua alma. Fazia dois meses que sua regra tinha desaparecido. Ouviu sua mãe dizer que chá de canela era muito bom para liberar, porém era abortivo se a mulher estivesse gestante de poucos dias. Tomou o bendito chá de canela, chá de arruda, de carvalho, de angélica e nada. Nada de menstruação, nada de aborto. Tudo que bebia era a mesma coisa que água. Quatro meses se passaram. E nada. Preocupada com a situação em que se encontrava, procurou Fernando na casa de Augusto. Pediu para o irmão levá-la em seu fusca. Rezava em seus pensamentos que o moço estivesse lá. Chegaram. Bateu palmas no portão, e como imaginava, o carro de Fernando estava estacionado ali. Seu irmão saiu para resolver algumas coisas e disse que a buscaria no prazo de duas horas. Augusto anunciou ao primo que estava no quarto, a chegada da loira. -O que será que ela quer? -Talvez você... – respondeu Augusto. -Você não devia dizer que eu estava aqui. Agora ela ficará “no meu pé”... -Não tinha como não dizer... Ela viu seu carro estacionado na garagem. -Está bem... Fale para ela subir, então. – disse Fernando irritado. Juliana subiu as escadas rumo ao quarto de Augusto, apreensiva. Não sabia qual seria a reação de Fernando. Abriu a porta. O moço estava deitado. -Oi meu bem! – cumprimentou a moça com um sorriso. 102
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Fernando estava somente de ceroulas. Com ar enfadonho, respondeu: -Espero que seja breve. Estou muito cansado. O que quer aqui? -Bem... Pensei em visitá-lo já que nunca mais foi em casa... -Não deveria fazer isso... Se nunca mais fui visitá-la é porque não queria mais vê-la... Se veio para isso, por favor, retire-se. Augusto ouvia toda a conversa detrás da porta. Pensava consigo: “Como meu primo consegue ser tão canalha?” Mesmo sendo aventureiro, ele – Augusto - jamais teria coragem de agir como Fernando. Recordava-se de um dia que conversavam sobre amor, e seu primo falou friamente: -Meu caro Augusto, você tem muito que aprender. Amor para mim se resume em duas coisas: dinheiro no bolso e muito sexo. -Não sei como você consegue ser tão frio em relação às mulheres, Fernando. – replicou Augusto. -Ah, Augusto! Mulheres foram feitas para nós homens as gozarmos à vontade, para satisfazerem a todos os nossos desejos e depois, quando não quisermos mais, serem jogadas fora, para outro. Augusto sentia uma ponta de inveja do primo, talvez pelo sucesso que ele tinha com as mulheres, mas nunca tratou mulher alguma daquela maneira que via Fernando tratar Juliana. Sabia que o primo era muito frio, pois ele mesmo não só presenciou como ajudou no preparo da bebida para Helena, ao 103
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pegar o calmante na bolsa de medicamentos de sua mãe. Foi ele quem tirou as fotografias do primo com a moça, mas nunca viu maltratar nenhuma com palavras. Se o primo armou aquele plano contra Helena, era porque pela primeira vez, ele tinha se apaixonado e Augusto como primo e amigo, tinha obrigação de ajudá-lo naquela empreitada. Em sua cabeça, Fernando simplesmente fez tudo aquilo para se casar com a moça. Augusto desconhecia as marcas de agressões, pois quando tirou as fotos, a jovem ainda não tinha sido violentada. Augusto nunca pensou que Fernando teria coragem de colocar em pratica tais palavras a respeito do que pensava das mulheres. Até que Juliana procurou por ele em sua casa. Augusto se encontrava perdido nesses pensamentos, enquanto ouvia o diálogo dos dois, detrás da porta: -Pensei que me amasse de verdade... – falou a moça ressentida. -Ah, pelo Amor de Deus! Vá embora, não me deixe irritado... – bradou o rapaz. -Então... Quer dizer que quando você dizia que me amava, mentia? -Não. Era verdade. Eu a amei durante um mês inteiro, enquanto você me servia. Meu amor acabou quando seus pais chegaram de viagem... Agora vá embora. – concluiu levantandose e pegando-a pelo braço para atirá-la fora do quarto. Ao perceber que seria expulsa dali, a moça falou: -Eu estou grávida. Fernando respondeu: - Problema seu. 104
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A moça foi empurrada para fora do quarto com violência e por pouco Augusto foi surpreendido escutando a conversa. A porta estava entreaberta ainda, e ela ameaçou que contaria a seus pais e a seu irmão tudo o que Fernando lhe fizera. Ele, mesmo não temendo a família da moça, mencionou: -Eu não assumirei nenhum compromisso. Mas posso levá-la para uma clínica onde abortará a criança. Só volte a me procurar se decidir abortar. Caso contrário nunca mais apareça aqui! – finalizou, ao fechar a porta do quarto. Augusto, que se encontrava no corredor, amparou a jovem que chorava desconsoladamente. Conduzia-a até a varanda da casa e tentou acalmá-la. -Escutei toda a conversa... Não pude evitar... Olhe, se seus pais não se importarem, lhe peço que não tire essa criança... Caso contrário, nós damos um jeito... Eu converso com minha mãe – que adora crianças – e ela adota. Só não tire o bebê... -Eles não se importarão. Se disser que estou grávida, com certeza eles me ajudarão. Tenho pais muito compreensivos. – respondeu a jovem, soluçando. -Você tem sorte de seus pais serem assim. Já ouvi casos de moças, que por serem enganadas como você, são expulsas de casa... Isso aconteceu com minha mãe quando ficou grávida de mim... Felizmente meu pai a acolheu e cuidou de mim como seu próprio filho. -Nossa! Não imaginei que você tivesse uma história assim. Mas preferia muito mais ser expulsa de casa e acolhida pelo Fernando do que ser aceita pelos meus pais e repudiada por ele. 105
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-Nesse caso, como seus pais são compreensivos, por favor, não aborte... O pobre ser não tem culpa do que vocês fizeram, e se aconteceu foi porque você também quis. Não vale a pena arriscar sua vida, para tirar outra. -Não sei... Mas acho que se tirá-lo, talvez o Fernando volte para mim. -Creio que não. Ele se casará daqui a duas semanas. -Me fale, por favor, quem é essa moça. Preciso contar para ela com quem está se envolvendo... Conte-me quando eles vão se casar, e onde ela mora... – a jovem falava com o rosto banhado em lágrimas. -Ela sabe com quem está se envolvendo, mas não tem escolhas. Infelizmente também tenho alguma participação nisso tudo... – Augusto cortou a frase e retornou ao mesmo rumo da conversa - E eu sei que sua intenção não é somente essa, e sim, atrapalhar esse casamento. Sei que no fundo você ama meu primo. -Faria qualquer coisa para tê-lo comigo. -Tiraria até mesmo seu bebê? -Sim. Tiraria... Augusto replicou - com olhar de piedade - as palavras da moça: -É uma pena que seja tão vazia de sentimentos. Mas, ainda que tirar essa criança, Fernando nunca mais olhará para você. Conheço bem meu primo. Ele se cansa muito fácil das mulheres... Aproveita e depois que enjoa, procura outra... Sempre foi assim...
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Estavam no portão de casa. O irmão da moça chegou com o fusca branco para pegá-la como o combinado. Ao despediremse, Juliana lembrou-se do olhar de súplica de Augusto quando pedia para que ela não tirasse o bebê. Com voz comovida, desabafou: -Foi bom conversar com você... Pena que seu primo não tenha o coração igual ao seu... Entrou no carro e partiu.
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8. O Aborto
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s dias passaram sem novidades. Helena se casaria somente no civil e partiria para o Rio de Janeiro em companhia do marido, que trabalhava lá. A moça não queria festa, mesmo sob os protestos de Dona Valquíria. Juliana contou aos pais que estava grávida. Eles ficaram furiosos no começo, mas aceitaram. A mãe da moça iniciou as compras do enxoval da criança. O pai falava para filha: -Não adianta chorar pelo leite derramado. Eu queria que você se casasse, mas como a juventude de hoje só pensa em Revolução e faz tudo ao contrário para bater de frente com o governo, não tardaria para que isso acontecesse. Mas, como aconteceu, vamos criá-lo. Sr. Teleciano, pai de Juliana, era muito compreensivo. Lembrava-se que em seu tempo de jovem, o rapaz seria forçado a assumir o compromisso por ter desonrado a filha. Ele recordava que a honra de um homem era lavada com sangue, e uma mulher desonrada desonrava toda a família. Agora, viviam em outra época e ele jamais teria coragem de abandoná-la, ou forçar Fernando a assumir um compromisso que não queria. Ao contrário. Fazia questão de cuidar do bebê sem a contribuição de nenhum centavo do cafajeste. Junto com Dona Soraia, até imaginava como suas vidas seria mais alegres quando o netinho ou a netinha reinasse pela casa. A pobre moça era quem não se conformava. Um pensamento de tirar aquela criança a atormentava. Pensava em 109
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tirar o bebê, e depois procurar por Fernando. Queria ele de todo jeito, nem que fosse como amante, nem que dividisse o seu amor com outra mulher. Foi tomada desse pensamento que foi atrás de Augusto novamente, que estava com uma bermuda jeans, deitado no sofá, quando sua mãe anunciou que uma moça procurava por ele. Rapidamente, foi conversar com a jovem no portão. Juliana decidiu tirar a criança. Augusto inutilmente tentou convencê-la daquela ideia absurda. Ela não precisava fazer aquilo. Tinha pais que a amparariam. Mas Juliana quase ajoelhou a seus pés e implorou que ele a levasse para uma clínica clandestina, aquela que Fernando lhe falou no momento da discussão. Augusto ainda conversou com sua mãe, que também tentava convencer a jovem de desistir daquela loucura. -Querida, - dizia Dona Marlene – Não vale a pena arriscar sua vida, e nem tirar seu filho por causa do meu sobrinho. É meu sobrinho na verdade, mas saiba que Fernando não vale um centavo. Tanto é que não vejo a hora de ele partir para o Rio de Janeiro. Todas as vezes que vem para cá, apronta uma... Só peço a Deus que guarde a pobre e infeliz moça que se casará com ele... -Já estou decidida, Dona Marlene. Tenho esperanças de que ele ainda será meu se tirar esse bebê... -Pode ser que isso custe muito caro. Quando jovem decidi entre o amor da minha vida e meu filho. Eu amava o pai de Augusto mais do que tudo, mas optei pela criança. Fui 110
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expulsa de casa e morei na rua. Comi restos de comida de um restaurante, com meu nenê nos braços. Passados alguns dias, o filho do dono do restaurante reparou que eu me alimentava ali, e pediu para o cozinheiro me preparar uma marmita todos os dias. Enquanto eu me alimentava do lado de fora, o moço me observava de longe. Um dia ele se aproximou de mim amigavelmente e contei-lhe a minha história. Ele demonstrou um interesse muito grande em me ajudar. Levou-me para sua casa. Tomei um delicioso banho, depois de trinta dias que estava na rua. Foi assim que Jorge e eu nos apaixonamos. A gente se casou e ele registrou o meu filho em seu nome. Nunca tivemos filhos, mas para Jorge, Augusto é muito mais do que isso, é o motivo pelo qual nós nos unimos. Hoje, Graças a Deus, vivemos muito bem. Deus, que conhecia a minha inocência e o meu caráter, me ajudou... Filha, se seus pais te apoiam nessa empreitada, por favor, desista dessa loucura. Uma das maiores dádivas que Deus nos concede é o prazer de ter um filho. Muitos querem e não podem ter. Quanto tempo faz que sua regra está atrasada? -Cinco meses... -Então... Sua gravidez está muito adiantada... Você correrá perigo se tentar... Agora já não é só a vida do bebê que você quer tirar... É a sua também... A menina ouvia tudo friamente. Nada do que Dona Marlene falava tocava em seu coração. Juliana só pensava em Fernando. -Existe uma grande diferença entre mim e a senhora. A senhora amava Augusto, antes mesmo de ele nascer... E eu amo 111
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Fernando mais que tudo nesse mundo... Eu o amo mais do que a mim mesma... Dona Marlene com um suspiro e uma dor na alma, respondeu: -Bem... Nesse caso, não me intrometerei mais... -A senhora permite que seu filho me leve até a clínica? -Meu bem... Ele é maior de idade, se quiser levá-la não sou eu quem impedirá. Enquanto as duas conversavam, Augusto seguiu até o quarto e no guarda-roupa pegou um pacote de dinheiro com o endereço da clínica deixado por Fernando, no caso da jovem procurá-lo para abortar. Ele deixou todas as recomendações ao primo, pois sabia que mais cedo ou mais tarde Juliana o procuraria para tirar aquela criança. E se porventura, ele não se encontrasse, caberia a Augusto aquela missão. Augusto não gostava daquilo, mas Juliana estava decidida e se Dona Marlene não a convencesse, ninguém mais conseguiria. Ele desceu as escadas rumo à sala na esperança da jovem ter mudado de ideia. Seu desapontamento aumentou quando, ao descer, a moça levantou-se: -Vamos então? Foi assim, que os jovens seguiram no fusca branco até a clínica clandestina. *** Cadu compareceu ao Teatro Municipal juntamente com o professor Paulo, pois decidira participar ativamente das discussões sobre Revolução. Não tinha nada a perder, estava 112
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vazio, amargurado. Sua vida não tinha mais sentido e procurou preenchê-la fazendo o que acreditava ser útil para a pátria. Seguiram com um grupo de jovens até a USP, para discutir assuntos referentes ao governo, onde se encantou com os ideais. Despertou em seu coração um sentimento de luta, de fazer alguma coisa em prol do país. Somente se ocupasse seu coração com esses sentimentos, esqueceria de que fora abandonado e do amor que ainda sentia por Helena. *** Augusto e Juliana seguiram até a clínica que foi recomendada por Fernando. Provavelmente, - pensava Augusto – o que houve com a Juliana aconteceu com outras moças. Caso contrário, como Fernando saberia da existência da clínica? Augusto imaginava que a clínica era quase um Hospital ou Posto de Saúde, com salas e equipamentos. Sua decepção começou quando percebeu que o local se tratava de uma velha casa. A pintura devia ter trezentos anos, estava amarelada e em alguns pontos, descascada. O chão de taco de madeira era riscado e gasto, a mobília era simples e empoeirada. Havia um antigo sofá na sala de espera. Parecia que o ambiente não era limpo assiduamente, e sim, vez ou outra. “Casa velha não é defeito, desde que seja limpa”. Aos olhos de Augusto, limpeza não era um ponto forte naquele estabelecimento. Em sua cabeça, para uma mulher se submeter a um local daquele para tirar uma criança, era porque estaria em completo desespero, quando outros métodos falhavam. Augusto não compreendia o motivo pelo qual Juliana colocava sua vida em risco pelo amor de um homem. Essa 113
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atitude era própria de “mulheres néscias que não tem um ínfimo de amor próprio”, pensava ele. Ainda mais com o uso da pílula, somente moças ingênuas ficavam grávidas. Ficaram sentados no sofá, envolvidos em pensamentos. Juliana sonhava acordada com a na nova vida que teria depois daquilo, matutava numa maneira de reconquistar Fernando, mesmo depois de casado. Talvez segui-lo, encontrá-lo no Rio de Janeiro e reconquistá-lo. Ainda que não conseguisse segui-lo, pois isso parecia mesmo impossível, o aguardaria ansiosamente até que retornasse para a casa de Augusto. Era bem provável que mesmo depois de casado, ele ainda visitasse os tios, e nessa hora ela apareceria e o reconquistaria. Seria sua amante fiel. Augusto por sua vez, chamava Juliana de tudo quanto era sorte de nome vulgar em suas reflexões. Achava admissível uma mulher se apaixonar por Fernando, mas não a ponto de se arriscar. Não a ponto de tirar a vida de outro ser. Isso jamais compreenderia, porque também fora fruto de um amor ingrato e sobreviveu graças ao amor de sua mãe que lutou por ele desde o ventre. Os pensamentos de ambos foram interrompidos por uma mulher negra e forte, estatura mediana, de meia idade. -Pois não?... -A moça veio fazer uma cirurgia... A mulher deu um riso enviesado ao ouvir as palavras do rapaz. -Você está de quanto tempo? – perguntou se direcionando a moça. -Cinco meses...
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-É muito arriscado. É perigoso você morrer também... Não fazemos. – A mulher disse isso no sentido de “passar bem”, “tchau mesmo”, e virou as costas para sair e deixá-los a sós. Parou uns instantes para observar o diálogo dos dois jovens. -Não disse? – falou Augusto – É melhor irmos embora e deixar a criança nascer... Tenho certeza que o bebê será bem vindo... -Eu não quero essa criança! -Mas não há o que fazer... Você ouviu a Dona... É arriscado e você pode morrer... -Eu já morri Augusto... Morri no dia que me apaixonei e fui abandonada... -Mas isso vai passar... Você precisa levantar a cabeça e seguir em frente... Você é bonita Juliana, e um filho não é o fim do mundo... Se você tiver alguma dificuldade, pode contar comigo, vou ajudá-la no que for preciso... -Você não entendeu Augusto... Eu não quero essa criança! – a jovem bradou esmurrando a própria barriga numa crise de ódio e desespero, seu rosto estava coberto de lágrimas – Quando sairmos daqui pularei da primeira ponte que encontrar e me suicidarei! Se não tirar essa criança, morrerei com ela... A mulher assistia a tudo, mas não tinha o que fazer. Até que a moça se ajoelhou no meio da sala, aos prantos, pedindo pelo amor de Deus que tirassem seu filho. Augusto tentou acalmá-la, em vão. Ao notar que a jovem estava decidida, a mulher perguntou:
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-Tem certeza de que é isso que você quer? Olhe... De 100% você corre 95% de risco... Tirar o bebê agora é o mesmo que suicídio... -Eu já morri por dentro... Por favor, me ajude... Quero correr o risco... Não me importa mais nada... Augusto a amparava. -Bem... Nós não nos responsabilizamos se der errado, e também não devolvemos o dinheiro que deverá ser acertado, antes. -Isso não é problema – falou a menina aparentemente mais calma, remexendo na bolsa, à procura do dinheiro. Augusto segurou sua mão e da carteira tirou o valor – que Fernando deixara em seu guarda roupa – entregando-o para Juliana. -Quanto é? - Cr$ 300,00 A jovem entregou a importância para a mulher que a levou para os fundos, e devolveu o restante para Augusto. Os jovens aguardaram alguns minutos na sala. Depois, a mulher retornou com um copo de liquido marrom escuro para a moça beber. Continuaram no aguardo. Logo, a moça foi chamada: -Pode entrar, Juliana. Antes de adentrar, Juliana entregou um papelzinho para Augusto: -Aqui tem o meu endereço. Se acontecer alguma coisa comigo, sabe onde encontrar minha família...
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Um vento frio atravessou a sala. Talvez fosse a sombra da morte que passava por ali. Augusto arrepiou-se por inteiro, agora maldizia a si mesmo por ter levado a jovem até a clínica. “Se ela quisesse morrer que tentasse com suas próprias mãos”. Naquele momento sentia-se culpado e não tinha mais o que fazer. Só restava esperar. Era uma da tarde quando Juliana entrou. Augusto andava de um lado para outro. Duas horas e nada. Três horas. Nada. Algum tempo depois ouviu alguns gritos vindos dos fundos. Saiu muitas vezes até o carro, tapando os ouvidos. Queria sair dali o quanto antes. Estava simplesmente apavorado, em seus pensamentos de então, só pedia a Deus que desse tudo certo, que corresse tudo bem e que Juliana não morresse, pois sabia que se sentiria culpado e não teria paz. Por outro lado, também se afeiçoou à moça, sentia pena dela e queria ajudá-la. Sempre observou as mulheres sob o ponto de vista de Fernando, como objetos de prazer, mas nunca sob os pontos de vista delas mesmas. Agora compreendia que nunca se devia brincar com os sentimentos das pessoas, principalmente com os de uma mulher. Nunca havia imaginado que, por uma simples brincadeira de Fernando, a vida de uma jovem estivesse em perigo, já que ela simplesmente recusou-se a viver. Se tivesse algum culpado nessa história, seria seu primo. Somente ele era responsável por toda aquela desgraça. Subitamente, a mulher apareceu no corredor com uma agulha de tricô suja de sangue nas mãos: -Ei, rapaz! -Sim... 117
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-O aborto foi feito, porém não com sucesso. Na hora de aplicar o instrumento, acredito que a bexiga da moça foi perfurada, junto com algum órgão. Ela se retorcia e gritava demais, o procedimento falhou... É melhor levá-la para um Hospital e se o médico perguntar alguma coisa, diga que ela fez o procedimento sozinha, e quando você a viu, ela estava mal...
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9. A Partida
A
9 de setembro de 1964
ssim, Juliana foi carregada nos braços de Augusto até o fusca, banhada em sangue. Desnorteado, levou a moça até o Hospital particular mais próximo, em Cotia. Rapidamente explicou que a havia encontrado na casa de uma amiga, naquelas condições, e que a amiga não quis acompanhála. Juliana foi atendida às pressas. O médico chamou por Augusto: -O senhor está acompanhando a jovem? -Sim... -O senhor tem algum grau de parentesco com a moça? -Não. Sou somente um conhecido... Hoje fui até a casa da minha namorada, e essa jovem estava nessa situação. Minha namorada não teve coragem de acompanhar, e eu a trouxe às pressas... – mentiu. -O senhor está me dizendo que sua namorada a ajudou com a tentativa de aborto? -Não necessariamente... Essa moça precisava de um lugar para abortar e em sua casa era inviável, pois sua mãe fica em casa durante vinte e quatro horas... Por outro lado, a mãe da minha namorada trabalha fora... Minha namorada simplesmente cedeu o lugar para ela... -Entendo... – assentiu o médico desconfiado - Bem... Se quiser vê-la com vida é melhor se apressar... Sua bexiga está 119
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rasgada e acredito que parte do intestino perfurado. A pobre moça está expelindo pedaços de órgãos, me parece que são partes do intestino e do bebê... Augusto hesitou por alguns instantes em vê-la, mas se foi forte até ali, seguiria até o fim. Com um enorme vazio no peito, entrou na sala indicada pelo médico e aproximando-se de Juliana, sussurrou em seus ouvidos: -Eu avisei... Se você não fosse tão teimosa... A moça abriu os olhos, estava consciente. Ainda conseguiu apertar a mão de Augusto e suspirou: -Eu fui teimosa... E você foi um bom amigo... Perdoeme... -Claro que perdoo... Tudo vai ficar bem... O jovem passava a mão sobre a testa da moça que estava molhada de suor. A hemorragia era constante, ela precisava passar por uma cirurgia às pressas. Estava com soro e respirava com a ajuda de um aparelho. Os médicos aguardavam a disponibilização da sala de cirurgia, que estava ocupada por um rapaz que tinha levado um tiro no abdômen. As outras três, do centro cirúrgico, também estavam ocupadas... Era provável que a moça não resistisse à espera, e tirá-la dali era um sério risco. -Você passará por uma cirurgia, fique tranquila que pagarei tudo... – Augusto disse beijando sua testa. Lágrimas de dor percorriam o rosto da jovem, juntamente com o arrependimento que sentia. A moça olhou para Augusto, como se fosse á última vez, e sussurrou:
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-Obrigada... Amigo... – seus olhos pararam, ela apertou sua mão com força. Duas grossas lágrimas escorreram dos seus olhos, e com infinita amargura o rapaz compreendeu tudo... Ela tinha partido. Naquele instante, Augusto se retirou da sala e procurou o médico avisando que entraria em contato com a família da jovem. Não havia mais o que fazer. Imediatamente, o corpo de Juliana foi coberto com um lençol e levado sobre uma maca até o necrotério. Fazendo-se forte, Augusto pegou o papelzinho deixado pela moça com seu endereço. Entrou no veículo decidido a procurar pela família dela, e pensava o tempo inteiro nas palavras que daria àquela triste notícia. Um sentimento de culpa o perturbava. Por que a levou à clínica? Se ela quisesse tirar a criança que tirasse sozinha. Parecia que ele era cúmplice daquele pecado. Mas, no fundo, não imaginava que ela morreria. Pensava que talvez, depois de abortar a criança, ao perceber que Fernando não lhe daria atenção, se arrependesse, se regenerasse e cuidasse de sua vida. Infelizmente não foi o que aconteceu. Uma hora depois, encontrava-se em frente à casa da família de Juliana. Não sabia o porquê, mas parecia que eles já sabiam. O rapaz foi recebido pelo irmão dela, Pedro. Augusto acomodou-se no sofá. Não sabia por onde começar. -Bem... Então você veio nos falar a respeito de nossa filha? – perguntou Sr. Teleciano. -É sim... Eu só não sei como dizer... 121
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-Será que tem a ver com essa carta? – perguntou Dona Soraia mostrando uma carta de despedida redigida pela filha. Augusto suspirou: -É... Tem a ver sim com essa carta... -Ela tirou a vida? – perguntou Dona Soraia que agora se mostrava desesperada. -Praticamente sim... Ela tentou um aborto mal sucedido... Tentei convencê-la, mas ela queria se livrar da criança para tentar reconquistar o namorado... -Eu sabia que aquele namorado dela não prestava. Meu Deus, eu sabia. Mas ela não precisava fazer isso... – Sr. Teleciano, recostado na parede, chorava como criança. Dona Soraia amparava o esposo, que tremia compulsivamente. Até o irmão que parecia frio, chorava. Augusto entregou para Pedro uma importância em dinheiro que trazia consigo. -Pedro, esse dinheiro é para as despesas do velório... Aqui está o endereço do Hospital, se quiser vou com você para dar a entrada nos papéis... Pedro agradeceu e acompanhou-o até o Hospital de Cotia. Esperaram quatro horas, era noite, quando o corpo foi liberado. Augusto tomou todas as providências, visto que Pedro não se encontrava em condições para tanto, pois estava visivelmente abalado. Somente às onze da noite o corpo da jovem se encontrava no velório municipal de Cotia. O estômago de Augusto reclamava, ele ficou praticamente o dia inteiro sem comer. Pensou que àquela altura sua mãe estivesse preocupada. Retornou para casa enquanto a família velava o corpo da bela 122
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Juliana. Ao chegar a casa, o semblante viril e forte se desfez e somente ali, naquela hora nos braços de sua mãe, desabou em lágrimas como um menino. -Ela morreu, mãe. Eu fui culpado. Sou cúmplice... -Não querido. Você não tem culpa de nada... – Dona Marlene acariciava os cabelos do filho. Fernando chegou naquele momento. Achava estranho ver seu primo chorando ali, como um bebê. -O que aconteceu? – perguntou o moço. -Ela morreu... – suspirou Dona Marlene. -Vou lhe entregar o dinheiro para o velório. Não acompanharei, porque como vocês sabem, meu casamento é amanhã. – Fernando disse isso, seguindo para o quarto do seu primo, com um sorriso. Augusto acompanhou-lhe. -Fernando, não se preocupe com o dinheiro... Já acertei tudo... Não sei como você consegue... Se você não quisesse nada com a moça, tudo bem... Mas não assumir um filho? Logo você que tem tanto dinheiro? Fernando respondeu com indiferença: -Augusto, Augusto... Se eu fosse assumir todos os filhos que já tive na vida, precisaria comprar uma pensão. Você não imagina que a Juliana seja a primeira moça que mando para aquela clínica, não é? A Dona da Clínica e eu já somos até amigos – riu com sarcasmo – de quando em quando apareço por lá com alguma garota grávida... Augusto não acreditava no que ouvia, e se arrependia de seguir tão fielmente seus passos quando ele ia para São Paulo. 123
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-O enterro será amanhã por volta das treze horas e pelo jeito, você não participará... -Não, não. Amanhã me casarei no civil e voltarei para o Rio em seguida... É uma pena que vocês não participarão da cerimônia, mas também não haverá festa... Darei um jeito de passar por aqui para me despedir de vocês antes de partir... Ah! Pelo jeito você não participará da minha despedida de solteiro... É uma pena! Mas se você mudar de ideia eu estarei lá no ”Las Musas”, com Jorginho e mais alguns colegas. “Las Musas” era uma casa de tolerância. Dona Marlene preparou um chá de erva cidreira para o filho, que estava inconformado. Augusto perguntava para si mesmo: por que foi cúmplice daquele crime? Por que não negou o pedido de Juliana? Sua mãe – como se adivinhasse seus pensamentos – falou: -Augusto, há males que vem para bem... Sabe, estou triste com o que aconteceu com Juliana, mas estou feliz por você... Há algum tempo pedi um sinal para Deus quando te vi em companhia de seu primo e percebi que você seguia fielmente o caminho dele... Fiquei desesperada e roguei para Nosso Senhor me levar, se porventura seu coração fosse duro e frio como o de meu sobrinho... Parecia que você não tinha alma e que seria tão ruim quanto Fernando... Eu não queria que fosse assim, mas o que aconteceu, meu filho, serviu para mostrar para mim e para você mesmo o quanto seu coração é nobre. Após aquelas palavras, Augusto se conformou. Vinte minutos depois Dona Marlene e Augusto seguiram ao velório. Sr. Jorge, pai de Augusto, dormia tranquilamente. 124
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10. O casamento de Helena
N
10 de setembro de 1964.
o dia seguinte, o corpo de Juliana foi sepultado. Augusto acompanhou o enterro junto com Dona Marlene. Enquanto os pais, família e amigos pranteavam a morte da jovem, Fernando e Helena se casavam. Não houve festa, e mal chegaram à casa de Dona Valquíria e Sr. Manuel, partiram para o Rio de Janeiro. Helena não teve tempo de se despedir de Ana. Deu um breve abraço nos pais e disse ao Sr. Manuel: -Meu superpai, nunca se esqueça do quanto o amo. Se demorar a vê-lo, lembre-se que o amor supera todas as distâncias e que sempre o trarei guardado em meu coração. Sr. Manuel chorava como criança e abraçava a jovem com ternura. Não tinha palavras, só lágrimas. Dona Valquíria abraçou a filha. Os três se abraçaram. Fernando buzinava o carro impaciente. Helena sussurrou no ouvido da mãe: -Cuide do meu pai, mãe! – e desceu apressadamente as escadas em direção ao cadilac preto. Já no carro, viu Sr. Manuel com seus cabelos brancos, apoiado em sua bengala e enxugando as lágrimas com a outra mão, bem próximo ao portão. Uma dor corroia o peito daquele pai... Dor de saudade. Sentia no íntimo de sua alma que não veria mais sua amada filha. 125
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Na estrada, Fernando passou na casa de Augusto para se despedir, afinal, seu primo era como um irmão. Estacionou o veículo defronte a casa da tia. Dona Marlene não se encontrava. Após o velório foi ao mercado comprar verduras. Helena aguardava no carro. Augusto atendeu a campainha e falou com seu primo do portão mesmo, nem o convidou para entrar. -Boa tarde, Augusto! Vim me despedir... Agora não poderei vir para cá como antes, afinal... Sou um homem casado... – disse sorridente. Augusto respondeu secamente: -Boa tarde! Antes de você partir, preciso lhe dizer uma coisa... -Então diga... -Saiba que nesse jogo do amor, você caiu em sua própria armadilha... -Não entendo... -Então vou lhe explicar... Nesse jogo do amor, você perdeu... -Por quê? -Porque você acabou se apaixonando... -É verdade... Apaixonei-me pela garota... -Você só se casou com ela porque tramamos tudo aquilo, juntos... Mas, ela não o ama... Em outras palavras, você nunca a terá por inteiro, porque o coração de Helena pertence a alguém que não é você... Por isso, você é um perdedor... -Pode ser – disse Fernando coçando o queixo - mas não me importo... Posso não ter o coração de Helena, mas tenho o 126
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resto, e garanto que já é alguma coisa... – relutou com ironia. – Penso que com essas palavras, você se arrependeu de tudo o que fizemos juntos... O que houve para essa mudança repentina? A morte da Jú mexeu com você? -Acho que sim... Depois do que aconteceu com a Juliana, passei a olhar à minha volta com um olhar diferente... É por isso que não o entendo... Eu vi a Juliana morrer na minha frente... Se você estivesse em meu lugar saberia o que estou sentindo... Fernando sorriu. -Você acha que a Juliana foi a primeira namorada que tive que morreu numa clínica clandestina? Engano seu... Outras passaram por lá e não sobreviveram... Ainda mais antes da “tal pílula”... Foram muitas garotas, Augusto. Aqui em São Paulo e no Rio de Janeiro... E era eu quem as acompanhava. Augusto não acreditava no que ouvia. Fernando falava com uma frieza que dava arrepios. -Você nunca falou sobre isso comigo... -Tem muitas coisas sobre mim que você não conhece... Você jamais me compreenderia, mas é assim que vejo a vida... No mundo tem os fortes e os fracos, o predador e a presa... É o ciclo da vida... Não sou eu que sou assim, é o mundo... -Creio que não podemos mais ser amigos... O seu mundo é diferente do meu... -Tive muito orgulho de você, até imaginei um dia levá-lo comigo para o Rio... Mas, temia que a bondade da Tia Marlene o influenciasse... Fiz bem em não revelar nada a meu respeito... No jogo da vida você pertence ao time dos fracos e das presas... É uma pena... Mas, foi assim que você quis e essa foi sua 127
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escolha... Tenho que respeitar e quando resolver meus negócios por aqui não passarei em sua casa... Acredito que não serei bem vindo, e também não quero ficar num local onde meu melhor e único amigo não confia mais em mim... -É um grande favor que você me faz... Quando olho para você me envergonho por seguir fielmente seus passos e me arrependo de todas as besteiras que fiz... Por isso, seria melhor nunca mais vê-lo... Fernando assentiu com a cabeça e antes de sair, completou com sarcasmo: -Obrigado, primo! Obrigado por me ajudar até aqui, mas de todos os favores que você me fez, esse aqui é o melhor... disse isso apontando para a aliança na mão esquerda - Serei eternamente grato a você... Adeus. Augusto olhava-o enquanto se dirigia ao veículo. Uma dor invadiu seu coração, uma amargura tomava conta de sua alma. Agora, Helena estava sob o poder de Fernando, e ele também tinha uma parcela de culpa. Fernando sabia magoar. Aquelas palavras saíram como uma flecha. Augusto entrou em casa, jogou-se na cama e chorou amargamente. Fernando e Helena pegaram a estrada sentido Rio de Janeiro. No trajeto, trocaram poucas palavras. A jovem seguia séria e muito pensativa. Chegaram ao bairro Monte Verde, em Copacabana. A empregada Jaci, uma mulher morena, bem forte e muito simpática, os recebeu. Chamou por Zé, o motorista da casa, para guardar as bagagens. Fernando mal chegou, saiu para resolver alguns problemas. 128
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-Zé! Ô Zé! Vem pegar as malas do Sr. Fernando e da Dona Moça... Qual é mesmo o nome da senhora? -Helena. -Que nome bonito a senhora tem. Mas, posso chamá-la de Dona Moça? A senhora é tão jovem ainda... Quase uma criança... -Só você mesmo, ô Jaci! – comentou Zé, o motorista, muito sério – E se ela fosse velha? Você a chamaria como? De Dona Velha? -Eu gostaria de ser tratada pelo meu nome... Mas pode me chamar de Dona Moça, por favor, só não me chame de senhora... -Então está combinado! – disse Jaci, sorridente – Preparei um bolo de chocolate, que está uma “gostosura”... Não é, Zé? O motorista, seriamente, respondeu: -Eu não gosto de bolo de chocolate... Gosto de bolo de fubá. -Vem, menina! – disse Jaci segurando a mão da jovem puxando-a para a cozinha – Deixe esse carrancudo aí... Vamos “prosear”... Para Helena, foi bom encontrar uma pessoa tão simpática como Jaci, pelo menos não se sentiria tão sozinha. A empregada logo cochichou no ouvido da jovem: -O Zé é assim todo sério, cheio de marra, mas tem um coração tão bom... Logo você vai se acostumar com ele... -Com certeza... - Tempo para isso é o que não vai faltar... - suspirou a jovem 129
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Fernando chegou tarde a casa. Helena estava sentada no sofá da sala, lendo um livro que encontrara jogado por ali, O primo Basílio. O rapaz sentou-se ao lado da esposa e perguntou: -A Jaci lhe mostrou nossa casa? -Sim... É muito bonita... -Já lhe mostrou nosso quarto? -Já. -Meu bem, infelizmente o elevador está enguiçado então precisaremos seguir até o quarto a pé... – falou o rapaz, levantando-se e segurando as mãos da jovem. O casal subiu as escadas calmamente. O quarto era enorme, o banheiro era maior do que a casa da moça. Tinha tudo o que era luxo, banheira com hidromassagem... Os móveis eram planejados, feitos com a mais fina madeira. As portas eram perfeitas; uma pessoa que apreciasse arte passaria horas e horas somente as observando. A casa tinha três andares e uma piscina na cobertura. Até as torneiras eram banhadas a ouro. Um verdadeiro luxo. Nada daquilo, porém, impressionava a pobre jovem. Preferia morar numa casinha humilde desde que seu marido fosse Cadu. O moço encheu a banheira. Despiu-se e depois despiu a esposa. Após o banho, depois de enxugarem-se, Fernando aproximou de Helena com um par de algemas. Aquelas algemas ela conhecia muito bem. Foram utilizadas no dia que foi violentada na casa de Augusto. Um frio percorreu sua espinha, e na mesma hora o desespero tomou conta dela. Começou a gritar desesperadamente. Helena correu em direção à porta, mas foi 130
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puxada com violência pelos cabelos. Seu roupão foi brutalmente rasgado, e a jovem foi presa na cama com os braços e pernas abertos. Foi amordaçada para não fazer escândalo. E depois, mais uma vez, experimentou o sabor da violência. Dessa vez foi pior, porque na primeira pelo menos estava drogada. Seu rosto estava banhado em lágrimas, não era tanto pela dor que sentia, mas pelo ódio que invadia seu coração. Três horas se passaram. Helena estava desfalecida. Fernando a observava silencioso. Nunca foi tão longe na conquista de uma mulher. Nunca sequer pensou em se casar um dia. Sentia–se vitorioso, pois tinha lutado muito para conseguir que Helena se casasse com ele. A bela jovem, tão cobiçada por tantos outros, estava ali à sua mercê. Morava longe dos pais, não tinha ninguém que olhasse por ela. E se alguém se intrometesse em seu caminho ele não hesitaria em eliminar. Já fizera isso outras vezes. *** Fernando estava cada vez mais apegado a Helena. Era um amor difícil de se explicar e, por conseguinte, quase impossível de se compreender. Fernando era louco pela jovem e reconhecia isso... Pensou que estivesse doente por ela, pois nunca sentira aquilo por ninguém... Era um amor - se é que pode ser descrito assim - onde o único que ganhava era ele. Todas as noites Helena era praticamente violentada, apanhava na maioria das vezes. Fernando também saía machucado: a moça revidava a violência, o insultava e jogava sobre o rapaz tudo o que via pela frente, na tentativa de se
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defender dos maus tratos. Essas atitudes, porém, o deixavam ainda mais excitado. -Então você quer medir forças comigo... Eu sou muito mais forte... Durante o tempo que permaneceram casados, era comum Fernando rasgar as roupas da esposa e jogá-la com violência na cama. Foi em atitudes como esta que Helena bateu a cabeça na quina da cama e parou no Hospital. O marido parou de jogá-la com violência, mas a agredia de outras maneiras. Um dia, Helena quebrou um jarro de flores que estava sobre o criado mudo na cabeça do marido. Sua testa sangrou. Dessa vez, foi Fernando que seguiu ao Hospital para levar alguns pontos. Depois disso, durante várias noites, lutas corporais tornaram-se frequentes entre eles, nas quais Fernando saía vitorioso apesar de machucado. Já rendida, algemada na cabeceira da cama, o olhando com um ódio que parecia transpassar a alma do marido, Helena falava: -Eu lhe odeio... Enquanto se satisfazia a seu bel prazer, Fernando retrucava: -Vou ensiná-la a me amar... – disse certa vez, estalando um tapa na face da esposa. O sangue escorreu no canto da boca. -E agora, você me ama? -Odeio-lhe com todas as minhas forças... – Chispas de ódio saiam dos olhos da moça. -Você terá muito tempo para aprender a me amar - disse isso lambendo o sangue que escorria dos lábios feridos.
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Helena, por diversas vezes, tentou encontrar um meio de se vingar, de se livrar daquele cafajeste, de sumir dali. Mas, se fugisse, a primeira coisa que ele faria seria mal para seus pais e para Cadu. O cerco estava fechado. Um dia, Fernando pegou as fotos que tirou na primeira noite que violentara a moça, quando eram solteiros. As fotos estavam datadas, eram aquelas daquela sexta-feira que Dona Valquíria a convenceu a sair com ele - colocou-as num envelope para entregá-las pessoalmente a Cadu. Precisava fazê-lo para mostrar o quanto era superior e melhor que ele. Anunciou que viajaria, o que causou um grande alívio a Helena já que ficaria alguns dias sem vê-lo, mas que passou logo quando o marido disse que seria uma viagem rápida. Despediu-se da mulher com um beijo demorado e partiu. Viajou o dia inteiro e por volta das cinco da tarde se encontrava em Jandira. Era nove de março de 1965, e o primeiro prefeito de Jandira, Oswaldo Sammartino, tomara posse da prefeitura dois dias antes. Apesar de ser dia útil, o movimento nas ruas era intenso. Pessoas conversavam sobre assuntos de política nas praças, nas calçadas, nos bares, relembrando os tempos em que a pequena cidade de Jandira pertencia a Cotia. Era com orgulho que os moradores comemoravam a vitória do primeiro prefeito e o desmembramento da cidadezinha. Fernando estacionou o veículo em frente à escola, onde também havia pessoas que falavam de política, e certificou-se de que o carro do professor estava no estacionamento. Foi com
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satisfação que o reconheceu ali. Chegou até a secretaria e pediu para chamá-lo. -Cadu? -Pois não, Vilma... -Tem um rapaz no pátio à sua procura. -Obrigado, Vilma. – agradeceu Cadu, levantando-se e dirigindo-se ao pátio. Logo viu Fernando que o aguardava sorridente. -Boa tarde, professor! -Pois não? – respondeu secamente. -Bem... Vim trazer esse envelope. Quando tiver tempo, abra-o. Creio que vai ajudá-lo a esquecer minha mulher... – Fernando disse isso entregando–o e sem se despedir, saiu apressadamente. Cadu ficou sozinho no pátio observando o envelope. Seguiu até o estacionamento e entrou no carro. Abriu-o. Não acreditava no que via. Helena, sua amada Helena, nua beijava Fernando. Tinha seis fotos dela no envelope. Em uma delas, Fernando acariciava os seios da moça. As fotos eram em preto e branco, estavam datadas e bem nítidas. A mulher que escolheu para ser sua esposa estava ali nos braços de Fernando, enquanto namorava ele. Então, quando Helena terminou o namoro, ela já o havia traído. Por isso, a moça inventou que foi violentada. Aquilo foi o tiro de misericórdia. Era bem provável que naquele momento os dois estivessem rindo dele. Ele já estava conformado com a
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separação, mas aquelas fotos só serviram para alimentar a mágoa que tinha de Helena. Cadu sentiu ódio de si mesmo e sentia inveja de Fernando. Não teve forças suficientes para rasgar as fotos da amada, guardou-as. Escondeu-as. Nas noites que se seguiram, em seus sonhos, o homem que a amava nas fotos, era ele. ***
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11. Em busca de pistas
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Março de 1965
elena aproveitou a ausência do marido para procurar informações a seu respeito. Subiu até o sótão com uma lanterna e pôs- se a observar documentos que estavam empilhados sobre caixas empoeiradas. Logo percebeu com que tipo de monstro tinha se casado. Fernando era traficante de drogas e de armas. Formava sociedade com seu pai, que se encontrava no exterior comprando armas ilegais para repassar para comunistas, policiais rebeldes e qualquer pessoa que pagasse por elas. Também recebiam maconha através da Marinha Mercante de alguns marinheiros, que se arriscavam em pegar esse tipo de mercadoria no nordeste e repassavam para traficantes do Rio de Janeiro, onde Fernando e seu pai eram os principais “clientes”. Esses marujos eram conhecidos como “Vapozeiros”, e esse tipo de serviço prestado por fora dava um lucro razoável. Num canto do sótão encontravam-se alguns medicamentos. Eram alguns vidrinhos de cianureto e outros de clorofórmio, reconhecidos por Helena pelas fórmulas estampadas no exterior de cada um deles. A moça pensava na possibilidade de matar o marido intoxicado, mas reconhecia que não teria forças para tanto. Sabia também que se o fizesse, a primeira suspeita seria ela. Observou um álbum de fotografias sobre uma prateleira, onde se encontravam fotos de uma mulher magra e morena, 137
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cabelos rebeldes e bonita, provavelmente mãe de Fernando, e de um homem branco, bem apessoado que seria seu pai. Ele aparecia no colo da mulher, ainda pequenino. Helena abriu outra caixa, que continha algumas armas de fogo, armas brancas e algemas. Cuidadosamente, retirou uma pistola dali, uma faca e uma algema. Pretendia vingar-se de Fernando, não aceitaria ser violentada, mas não sabia como. Saiu às escondidas do sótão, trancou-o cuidadosamente e colocou as chaves no lugar. Jaci a observava o tempo inteiro e não se conteve em perguntar o que ela fazia ali. Helena estava possuída por um ódio e uma frieza nunca reconhecidos antes. Ela se afeiçoou a Jaci e a Zé, mas estava decidida a reconquistar sua liberdade e ninguém se oporia a ela. -Não é da sua conta! -Mas eu preciso saber... Preciso ficar de olho em você... – Jaci disse sem pensar nas palavras... – Quero dizer... -Então você precisa ficar de olho em mim? -Não, não foi isso que eu quis dizer... -Mas disse... -Desculpe-me Dona Moça... Vamos comer alguma coisa, vamos? -Antes, você me contará tudo o que sabe sobre Fernando... – Helena puxou a arma de fogo e apontou para a cabeça de Jaci. Jaci fazia o sinal de cruz, desesperada... -Minha nossa! Ai Dona Moça vire essa arma para lá... -Então, sente-se e me conte tudo o que sabe... Jaci contou que não sabia de nada. Foi somente isso. Helena, jamais iria torturá-la até a morte, ou dar-lhe coronhadas 138
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na cabeça... Isso nunca! Fingiu que tinha acreditado na empregada e mentiu ao dizer que guardaria a arma no mesmo lugar. Pediu desculpas e com os olhos mareados replicou: -Jaci, eu sei que você gosta muito do Fernando... Mas, chegará o dia em que terá que decidir entre mim e ele. Por mais que gostamos das pessoas, nem sempre podemos apoiar as coisas erradas que elas fazem. E ele faz muitas coisas erradas... Inclusive matar... Jaci gelou. Como será que ela descobriu aquilo? Será que o Sr. Fernando deixou alguma evidência guardada no sótão? Ela, Jaci, nunca acreditou que Fernando fosse capaz de seguir tão longe em suas perversidades. Sabia sim, que ele era desregrado, irresponsável e que tinha um ar de crueldade nos olhos. Zé lhe alertara muitos anos antes sobre maldades que o moço fazia, mas ela sempre o defendia com unhas e dentes, já que não tinha mais sua mãe para defendê-lo. Ouvia as coisas a seu respeito, mas não acreditava. Tapava os ouvidos, fechava o coração para o mundo. A única coisa que valia era o sorriso do jovem que para ela era como se fosse o filho que nunca tivera. Ela nunca se atrevera a entrar no sótão. Era o lugar proibido da casa, nem sabia como Helena conseguira a chave. Muitas coisas aconteceram naquela casa e somente Jaci compreendia o motivo pelo qual trabalhava para aquela família durante tanto tempo... Helena estava certa. Por mais que amasse Fernando como filho - teria que decidir de qual lado ficaria. E talvez, esse dia chegasse logo. *** 139
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Helena morava no Rio de Janeiro, mas de quando em quando, escrevia para os pais e para a amiga Ana que ficava ansiosa esperando as cartas da jovem. Era assim que elas se comunicavam. Era Ana quem escrevia cartas para Helena em nome dos seus pais, pois Sr. Manuel estava muito doente e Dona Valquíria não tinha estudo. Sr. Manuel ditava e Ana escrevia. Helena, ao receber as cartas da amiga, as lia em voz alta para Jaci. A moça não possuía mais o ar angelical e o sorriso meigo de outrora. Era fria, calculista. Raramente sorria. Ela sabia que Fernando não era boa peça. Descobrira muitas coisas sobre ele no dia em que visitara o sótão. Guardou duas armas das que havia encontrado nas caixas, um vidrinho de clorofórmio e outro de cianureto. Mas era com tristeza que imaginava que provavelmente nunca iria utilizá-los. Sabia que se tentasse fazer alguma coisa contra Fernando a primeira suspeita seria ela, e que além da polícia, toda a quadrilha de seu marido iria procurála. Então, guardaria para si seu sofrimento, até que a maré retornasse a seu favor. *** Ana não aguentava mais de saudades do Jorginho. O ano letivo começara e ela nem sonhava em faltar na escola. Quase levou uma sova do pai quando foi reprovada no ano anterior. E o Jorginho nem aparecia no colégio. Um dia, resolveu procurá-lo. Como o pai a levava até a porta da escola e a buscava todos os dias, por desconfiar que ela namorasse escondido, o único jeito era ir à casa do moço, de noite. Pelo menos, seu pai 140
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estaria dormindo. E foi isso o que aconteceu. Numa bela sextafeira, a uma da manhã, lá estava Ana pulando a janela de casa. Saiu sobressaltada, temia que o pai acordasse e a procurasse no quarto. Estava tudo escuro nas ruas. Pegou uma vela para iluminar o caminho. Chegou à casa de Jorginho e abriu a porta. O rapaz dormia, mas acordou assustado quando a viu sentada sobre sua cama. Nem recordava que ela tinha uma cópia da chave. -Oi Jorginho! Você poderia me dar uma explicação? – perguntou a moça. -O que faz aqui? – bocejou o rapaz. -A única que faz perguntas aqui sou eu. Bem... Acho que você não me quer mais, e como não tem coragem de dizer, desapareceu. Sendo assim, estou indo... Passar bem. – Ana levantou-se da cama e dirigiu-se a porta. Subitamente, Jorginho levantou e, segurando em seu braço, disse: -Fique. Por favor, fique. Ana queria mostrar o seu valor, mas não resistiu aos apelos do moço. Sabia que ele era um verdadeiro “cafajeste”, porque não a procurou mais e que no mínimo devia ter outra. Mas, ela o amava. Se ele a deixasse ir, seria mais fácil esquecêlo e seguir adiante. Só que vê-lo ali a sua frente, com aqueles olhos claros pedindo para ela ficar... Jorginho nem insistiu muito. Ana ficou. Amaram-se. Às cinco horas da manhã a moça retornava para seu quarto pulando a janela. *** Como Helena morava no Rio de Janeiro, Cadu desistiu da ideia de ir para a capital. Afinal, estava empregado e adorava dar 141
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aulas em Jandira. Os dias se passaram e o professor recobrou a simpatia de outrora. Sempre sorria, era atencioso, muito inteligente e educadíssimo. Porém, quando a noite chegava e se encontrava só em seu quarto, as lembranças o torturavam, a tristeza batia. Pensava em Helena, ainda a amava, mas sentia uma enorme mágoa. Olhava as fotos na intenção de odiá-la, em vão. Imaginava que se a revisse um dia iria ignorá-la. Se conversassem, jogaria em sua cara o quanto era interesseira e superficial. Mas, sabia no íntimo de seu coração que se a encontrasse seria capaz de beijá-la e até mesmo, implorar pelo amor de Deus para que não partisse e não o abandonasse mais. Talvez nunca mais se vissem. E o que importava? Ela escolheu assim... Então, ele continuaria na esperança de odiá-la, para esquecê-la. Um dia, andando pela Av. Paulista, Cadu e Paulo César foram surpreendidos por uma propaganda das roupas Lee em um outdoor, onde a modelo era simplesmente Helena. Na verdade, fazia algum tempo que ela estava por ali, só que até então eles nunca a perceberam. Observaram também que em uma vitrine de uma loja de Fotos, havia outra imagem da moça segurando um filme da Kodak. -Nossa que Linda... – disse Paulo César enquanto observava a imagem da amiga e ex-aluna. -O que você disse, Paulo? -Não, nada, nada... – respondeu o professor de História, envolvido em seus pensamentos:
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“Realmente Fernando é um cara de sorte. A natureza deu- lhe muitos atributos físicos e seus pais financeiros.” Helena poderia mesmo inventar toda aquela história que contara para Paulo César e para o namorado, para livrar-se do compromisso. Paulo agradecia de coração por não estar no lugar de Cadu. Se apenas o fato de serem amigos lhe trazia uma tristeza enorme por não vê-la mais, e se tivesse experimentado algo além da amizade? Pobre Carlos Eduardo. Somente o tempo poderia consolá-lo da saudade e do sabor amargo da traição. Cadu, por sua vez, ao vê-la nas fotos ficou chateado e se propôs a odiá-la com todas as suas forças. Virou o rosto e com dificuldades conteve uma lágrima de saudade. Quem sabe um dia, poderia até mesmo se vingar dela... *** Outubro de 1965. No Rio de Janeiro, em Copacabana, algumas coisas aconteceram. Fernando cuidava das “Empresas de seu pai” e, por conta disso, vivia metido em reuniões. Helena estava com dezoito anos, e devido à convivência e às pistas que encontrou, conhecia bem o marido. Sempre que podia, investigava mais sobre tais “negócios” na esperança de, aproveitando-se de algum ponto fraco, se livrar dele. Ele nunca havia permitido que ela fosse até a “empresa”, e para que a moça não o importunasse com perguntas, deixou-a concluir os estudos, e fazer alguns cursos, desde que o motorista a levasse e a buscasse, e que a jovem não fizesse amizade com
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ninguém. Só assim a manteria ocupada. Helena aproveitou a oportunidade e mergulhou nos estudos. Durante o dia não se importava tanto com o que o marido fazia, e as vezes até esquecia-se de seus propósitos. Somente no final da tarde, quando estava próximo de ele chegar, seus pensamentos se envolviam à procura de uma maneira de sair dali. Mas, fugir não seria o correto, pois ele a encontraria em qualquer lugar do país. Como não sabia exatamente o que fazer, procurava distrair-se estudando, até que sua cabeça se iluminasse. Helena datilografava e falava inglês muito bem. Tinha uma inteligência fora do comum, estudava durante o dia e ajudava Zé – o motorista – a consertar os veículos que quebravam. Zé também era mecânico e ficava estupefato com a facilidade que a garota tinha para consertar os veículos e tudo mais que quebrava naquela casa. A amizade entre Helena e o motorista aumentou, e nas horas vagas ele a ensinava a dirigir, tarefa que aprendeu com muita facilidade. Zé tinha quarenta e oito anos, era calvo, tinha orelhas e mãos grandes, era alto, magro e dono de uma paciência extraordinária. Era calado, quase não se abria. Raramente sorria e quando isso acontecia era devido às proezas de sua aluna. Jaci não se conformava. Já que a moça era tão inteligente, bem que poderia auxiliá-la na cozinha, fazendo doces caseiros, bolos, etc. Mas Helena preferia fazer coisas de “homem”. Em poucos dias, a jovem aprendeu a dirigir como ninguém, e agora era Zé quem seguia no banco do passageiro. Helena tirou a habilitação, mas não contou nada para Fernando e nem para 144
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Jaci. Sabia que a empregada tinha certa afinidade pelo seu marido e por esse motivo omitia, pois não queria que ele soubesse. Somente Zé conhecia esse segredo. Na casa de Fernando não havia dificuldades financeiras. Quanto maior a inflação maior a quantidade de dinheiro. Helena depositava mensalmente uma boa quantia na conta poupança dos pais e aumentou o salário de Jaci e de Zé. Apesar de adquirir certa liberdade, Helena tinha muito receio de Fernando. Não era medo de agressões, isso ela já superara. Ela temia mesmo, era que ele fizesse alguma coisa contra seus pais e contra Cadu, pois sabia que seu marido era imprevisível.
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12. O Estranho
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lém das agressões físicas, Fernando também agredia a mulher psicologicamente, ameaçando tirar a vida de seus pais e de seu ex-namorado a qualquer momento. A última vez que Helena falou na possibilidade de visitar seus pais em Jandira, levou uma bofetada que deixou seu rosto marcado. Ela invadida por um ódio mortal, avançou sobre o marido esbofeteando-o também, mesmo sabendo que sua luta seria vã. Pensava em dar um jeito em sua vida, mas não sabia como. Um dia de madrugada, Helena acordou com um terrível pesadelo. Eram duas e quarenta da manhã, e Fernando não estava na cama. Helena andou de pontinha de pé, até a enorme sala. Ao chegar perto das escadas ouviu vozes. Escutou: -Nando, o material chegou. Será entregue lá, depois seguirá para Ilha Comprida, no presídio... Antes de ser transportado, o moleque entregará o dinheiro porque vendeu pra uns bacanas na Universidade... -Já ouvi essa conversa antes, Capataz! O moleque está enrolando a gente... Acho que ele não vendeu nada e acabou consumindo tudo... Já faz um mês que era para o dinheiro ser entregue. -Também penso que ele aprontou alguma coisa... -E é muito dinheiro... Não ficaremos no prejuízo, não...
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-Não tem problema. A gente dá um jeito, Nando! Nem que ele pague com a vida... -Não faça nada antes de me consultar... Quero conversar com aquele idiota “olho no olho”... -Tudo bem... Fique tranquilo. Não farei nada sem sua ordem... E os medicamentos? Você ainda utiliza-os em suas missões? -Capataz, é muito melhor do que armas. Muito discreto, não faz volume... Você coloca na bebida da pessoa, ela dorme e acorda na outra vida... -Não sei como você consegue essas coisas... -Segura aí... – Fernando jogou nas mãos do estranho um vidrinho de cianureto. -Então esse vidrinho aqui, é tão eficiente quanto as armas? -Muito. Não faz barulho e cabe em qualquer lugar... Capataz sorria. -Sabe Nando, mesmo assim, eu prefiro as armas mesmo... Os dois sorriram. Despediram-se marcando um encontro para a semana seguinte, às nove da manhã no esconderijo. Ao perceber que o estranho se retirava, Helena voltou para a cama. Fingiu que dormia. Fernando entrou no quarto e deitou ao seu lado, abraçando-a. *** Dois dias depois da conversa com o estranho, Zé completou 49 anos. Teve festa, somente Jaci, Zé e Helena participaram. No dia seguinte, Helena fez uma prova no colégio 148
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e como foi bem, terminou o colegial, sem concluir o curso. Eliminou todas as matérias de uma só vez. Estava pronta para prestar vestibular e ingressar na Universidade, no ano seguinte, se Deus quisesse e se o marido permitisse. Dois dias depois, num sábado, Helena tocou no assunto de ver seus pais, pois não suportava a saudade. -Penso na possibilidade de ir com você para São Paulo, em sua próxima viagem... Fernando, que estava recostado na cabeceira da cama lendo o jornal, levantou-se revoltado. Jogou o jornal na cama, segurou a moça pelos braços com força e gritou próximo de seus ouvidos: -Nunca mais me peça para ir para São Paulo. Você nunca irá para São Paulo. Nunca! Esqueça que você tem pais, que tem família lá. Você está muito bem aqui sem eles... Merda! Você conseguiu me irritar. – berrou Fernando empurrando a moça com violência, sobre a cama. Helena, deitada na cama, o fuzilava com um olhar de ódio. -Pede perdão – berrava Fernando – Anda, pede perdão... -Perdão, por quê? – desafiava Helena, recostando-se na cabeceira – Olhe, sinceramente, você é um fraco... Uma bofetada estalou nos lábios da moça, mais uma vez estavam cortados e sangravam. Ela passou os dedos sobre os lábios feridos e continuou: -Você não confia em si mesmo... No mínimo tem medo de que me encontre com o professor... Você tem medo de que,
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afinal de contas? Nós não somos casados? Você não é meu dono e eu não sou seu brinquedinho? -Tenho medo que você se engrace com ele novamente... -Eu tenho juízo... -Você não tem medo de mim. Você me enfrenta... Quem me garante de que não se engraçará com o professorzinho, de novo? - Nisso você acertou... Realmente, eu não tenho medo de você... Sei que quando não me quiser mais, me abandonará ou até mesmo me matará... O máximo que você poderá fazer comigo é tirar minha vida... -E você, pelo jeito, não tem medo de morrer... – Fernando a encarava. Helena dava sequência na conversa indiferente à bofetada que levara, e de quantas outras poderia levar. -Não, eu não tenho medo de morrer... Você já matou minha alma... Conseguiu roubar meus sonhos... A morte para mim é indiferente... Naquele momento, Helena levantou-se da cama e pegou um lápis bem apontado que Fernando tinha deixado no criadomudo. Entregou-o a ele. -Não temos mais vasos de flores por aqui, desde aquele último que quebrei em sua cabeça... Mas esse lápis bem apontado serve como arma... Por que você não faz o serviço aqui mesmo? Enfie esse lápis na minha garganta e depois me sufoque com o travesseiro... Sei que você tem coragem para isso... Então, poderemos acabar com tudo isso de uma vez por todas... 150
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Fernando segurou o lápis e o direcionou na garganta de Helena, esperando que ela tivesse uma reação contrária. A moça permaneceu firme, olhando para frente. Fernando aproximou o lápis e ao chegar bem próximo, o soltou. Beijou a moça furiosamente e a jogou na cama. Depois, deitado ao lado dela, prosseguiu com o assunto: -Posso fazer isso com qualquer pessoa, menos com você... -Você vai esperar que eu mesma faça? Fernando gelou. -Você insinua que irá se suicidar? -Talvez... Fernando parou por alguns instantes e observou a jovem. Não duvidava mais de sua coragem e lembrava-se do que Augusto lhe dissera, que ele tinha caído na própria armadilha. Estava apaixonado por Helena e não podia imaginar o vazio de sua vida sem a presença dela. Estava com ódio de si mesmo, como poderia se apaixonar? Teve tantas mulheres e agora se via a mercê de Helena. -Bem... – começou Fernando ternamente - Sinceramente, se você se suicidar vai ser um grande desperdício... Mas, se o motivo do suicídio é o fato de não ver seus velhos, darei um jeito... Dentro de alguns meses irei para São Paulo resolver uns assuntos... Você irá também, mas terá que se comportar... Nunca tirarei sua vida, mas posso mexer na vida dos velhos e do professor... Você me conhece bem... – relutou Fernando dirigindo-se ao banheiro.
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Helena com um discreto sorriso, ao descobrir o ponto fraco do marido resmungou consigo mesma: -E eu posso dar um jeito na minha... *** Uma semana depois da estranha conversa que Helena escutou na sala, Fernando saiu por volta das cinco e quarenta da manhã. Na certa, “ele irá para o tal esconderijo”. Helena levantou-se em seguida. Vestiu uma calça reta, xadrez bege com preto, e uma blusa de gola alta preta, estilo cacharréu. Por baixo da blusa, somente uma blusinha branca. Colocou também um sapatinho preto utilizado no cotidiano, com um pequenino salto. Desceu até a garagem e dentro de uma caixa de isopor muito bem escondida, retirou um revólver, um canivete e dois vidrinhos que continham em cada um, clorofórmio e cianureto. Não sabia o que encontraria pela frente, então resolveu se prevenir. Fernando dobrou a esquina, Helena rapidamente pegou as chaves do cadilac azul, ligou o motor e iniciou sua perseguição ao marido. Para mudar sua vida e tentar algum meio de vingança, primeiramente deveria saber mais a respeito dele, e uma das primeiras coisas a fazer era descobrir em que lugar ficava o “tal” esconderijo. Manteve-se em distância considerável do puma vermelho de Fernando, para que ele não percebesse que estava sendo seguido. O trânsito era intenso, muitas pessoas saíam cedo de casa para trabalhar e por pouco, Helena não o perdeu de vista. Logo Fernando deixava a cidade maravilhosa e seguia sentido Minas Gerais, na BR 040. Rodaram aproximadamente uma hora e 152
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meia, quando ele virou para a esquerda e entrou num trecho de terra. Helena acelerou. Ultrapassou, por diversas vezes, veículos e caminhões para não perdê-lo. Virou para a esquerda em uma rua de terra e à sua frente só havia uma fumaça de poeira, que a deixou desnorteada. A poeira abaixou, enquanto Helena esperava com o veículo estacionado. Desapontada, percebeu que deveria retornar para casa, pois não via nenhum sinal do veículo do marido, que desaparecera no poeirão que se formara. Quando deu a partida no cadilac, notou que o puma vermelho passou por baixo da rua em que ela estava, ou seja, ela se encontrava em uma pequenina serra, sendo que só deveria descer duas ruas curvas para alcançá-lo. Seguiu em frente. Quase não passava veículos por ali, pois a estrada era muito ruim. Desceu a serra e continuou o percurso sempre seguindo em frente. Havia muitos sítios e fazendas dos dois lados da estradinha de terra. Gados pastavam no tapete verde de grama, e uma enorme quantidade de árvores completava a paisagem. Mais adiante havia plantações gigantescas de cana-de-açúcar e outras lavouras que foram diminuindo. Depois só existiam árvores. A beleza da paisagem extinguiu-se, e o que Helena apreciava agora era uma estrada no meio de uma floresta que parecia, como em filmes de terror, mal assombrada. Um estranho medo invadiu seu corpo e ela sentiu vontade de voltar, mas o desejo de uma possível liberdade a fazia superar.
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O puma vermelho adentrou uma ruazinha estreita que a moça avistou de longe, mas por precaução ela estacionou o veículo, aguardando que ele andasse mais um pouco para que, quando estivesse mais longe, ela o seguisse. Percebeu que ali onde estava, havia algumas árvores frondosas bem juntas umas das outras, com folhas caídas. Havia um vão entre elas que caberia o cadilac tranquilamente, sendo que ficaria bem escondido. A jovem o estacionou ali, ajeitou-o entre as árvores e seguiu a estradinha a pé, para não levantar suspeitas. Faltavam quinze minutos para as nove horas, horário combinado entre Fernando e o homem desconhecido. Helena seguiu pela ruazinha se escondendo por detrás das árvores, pois temia que os homens de Fernando chegassem ao local por volta daquele horário e a surpreendessem por ali. Andou mais dez minutos, e com o coração aos pulos avistou o veículo estacionado em frente a uma chácara abandonada com a grama razoavelmente comprida, onde havia uma piscina vazia e suja. O portãozinho de madeira estava entreaberto. Helena, tomada de uma súbita coragem, adentrou a chácara rumo a uma velha casa que tinha algumas janelas remendadas com madeira e parecia mal assombrada. Helena deu uma volta pela casa e nos fundos avistou uma janela com uma fresta razoável. Ficou abaixada ali e pôs-se a espiar. A janela pertencia a um quarto, onde havia cinco homens. Um ela conhecia bem, Fernando, e mais quatro que ela conheceu depois, no decorrer da espionagem. O desconhecido que foi até sua casa de madrugada conversar com Fernando era chamado de Capataz e se tratava de 154
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um homem alto e muito forte. Trazia uma tatuagem em um dos braços que devido à má iluminação e do receio de ser descoberta, Helena não pôde identificar. Aparentava ter trinta e cinco anos. O outro tinha estatura mediana, devia ter trinta anos, mas utilizava um enorme e grosseiro bigode que o fazia parecer mais velho. Esse era seu apelido, Bigode. O quarto homem aparentava ter vinte e seis anos, estatura mediana, e trazia em seu rosto algumas cicatrizes de bexiga e talvez, por esse motivo, era chamado de Cicatriz. O quinto, era muito alto e magro, media quase dois metros de altura, tinha mãos grandes e andava meio encurvado, era chamado de Magrão, devia ter trinta anos. Os cinco homens estavam reunidos ali, conversando sobre negócios que, da brecha da janela, Helena escutava bem. Eles não tinham receio de ficar à vontade naquele lugar, pois aquele local era absurdamente deserto. A única coisa que existia era aquela chácara abandonada, cujo único dono morrera, graças à ação daqueles cidadãos que contribuíram para que a morte o buscasse mais depressa. Tratava-se do Sr. Geraldino, que era dono não só daquela velha chácara, mas de todas aquelas terras vazias, ao redor. Claro que antes da morte buscá-lo, alguns dos cidadãos reunidos ali fizeram com que ele passasse todas as terras para o nome de Fernando, e depois ao tomar seu remédio misturado com clorofórmio, morreu. Era um senhor de noventa anos – dono de uma avareza sem tamanho - e se encontrava com tuberculose, não tinha parentes, nem herdeiros. A gangue de Fernando encontrou aquela chácara naquele fim de mundo, quando procuravam um lugar distante da cidade, 155
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para realizarem com mais tranquilidade os seus negócios. E ali, era tão deserto, que desde o início em que praticavam seus contrabandos nunca foram descobertos. Tampouco precisavam deixar alguém vigiando o local, que era conhecido somente pelos seis integrantes da equipe. Cinco que permaneciam inflexíveis em seus negócios e um que trazia problemas e chegaria mais tarde. Helena sentiu um frio na espinha e imaginava o quanto era louca de realizar tamanha façanha. Mas, ela estava decidida a mudar de vida... Se fosse para viver nas situações em que se encontrava, era melhor morrer. Ela não tinha nada a perder. Observou dali os rapazes repartirem entre si uma boa quantidade de dinheiro. -Bem... O restante ficará para depósito. Será lavado e transferido para conta do meu pai no Paraguai. Depois, ele nos enviará as armas através da Marinha Mercante. Só teremos que mandar alguns homens de confiança e meio de transporte disfarçado para retirá-los no Porto e trazer até aqui. Essa operação será feita com a maior cautela... – dizia Fernando. -Nove e dez e até agora nada do Pingo... – suspirou Capataz ao olhar para o relógio. -É bem provável que ele recebeu todo o dinheiro da cocaína e fugiu... – comentou Magrão. -Ele não é louco... Sabe que se fizer isso, é um homem morto... – Fernando respondeu ao dar um soco na mesa. -Sabe qual é o problema, Nando? Eu acho que o Pingo está viciado em cocaína... – argumentava Bigode ao passar a mão no queixo. 156
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-Você acha que ele consumiu cinco quilos de cocaína, sozinho, Bigode? – perguntou Fernando sentado sobre uma velha mesa. -Acho provável... -Vamos esperar mais dez minutos... Se ele não chegar, vamos até a casa dele, trocar umas ideias com a família... Será que ele tem alguma irmã bonita? – indagou Fernando na tentativa de disfarçar seu nervosismo. -Não sei chefe... Mas prefiro a minha parte em dinheiro... – retrucou o Capataz que andava de um lado para outro. -Mas uma irmã bonita é melhor que nada... – relutou Bigode. Fernando levantou da mesa impaciente. Todos estavam nervosos, sabiam que cinco quilos de cocaína era uma perda inestimável. Ninguém queria perder. Subitamente um ruído de carro ecoou por ali. Um fusca amarelo estacionou em frente à chácara. Helena continuava nos fundos da casa, na escuta. Seu coração parecia que sairia pela boca, tinha medo de ser descoberta, mas precisava continuar ali. A porta do quarto se abriu, um rapaz magricela e espinhento entrou. Era Pingo. O moço mal chegou, foi recebido com um soco do Capataz que o levou ao chão. -Isso é por chegar atrasado... – disse Fernando – E isso será por não trazer o nosso dinheiro... – completou tirando uma faca da cinta – Eu preferia matá-lo com arma de fogo, porque o sofrimento é passageiro... Mas isso acarretaria num enorme barulho... Poderíamos levantar suspeitas... 157
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-Só se for suspeita das árvores... – brincou Bigode. Capataz ao aproximar-se de Pingo, começou a chutá-lo no rosto. Fernando gritava: -Cadê o dinheiro, seu merda? Cadê? Fala imbecil, cadê o dinheiro? Nova onda de golpes, por parte do Capataz, assolava o rapaz. Os golpes eram tantos que Pingo não tinha oportunidade de dizer nada. Helena observava tudo com os olhos arregalados; seu coração estava acelerado. Arrependeu-se de estar ali, imaginava que não suportaria ver o garoto praticamente morrendo em sua frente. Não conseguia raciocinar nada. Nenhuma ideia surgia em sua cabeça. Em volta do rapaz, se formava uma poça de sangue. Fernando deu sinal para que Capataz parasse o espancamento e perguntou: -Cadê o dinheiro? -Meus pais venderão a nossa casa, para pagar a dívida... A casa está à venda, Nando... -Então quer dizer que você usou cinco quilos de cocaína, sozinho? – interrogava Fernando. -Eu usei com algumas pessoas em algumas festas que fiz em casa... Repassei outra parte para uns caras revenderem, mas eles não me pagaram. Acabaram usando tudo. Mas será pago... Eu juro... – o rapaz falava com dificuldades. -Onde é a sua casa? – perguntou Fernando.
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-Posso levá-los lá Nando... Vocês verão que tem placa de venda e tudo... – disse o jovem com as mãos no rosto amparando o sangue que jorrava do nariz. -Tudo bem então... Capataz, vamos até a casa desse merda, fazer uma visitinha para a família dele... Se essa história for mentira, você morrerá na frente dos seus pais... – complementou Fernando. Todos desocuparam o quarto. Pingo foi arrastado até o puma vermelho de Fernando, por Capataz. O fusca de Pingo e o Fiat do Capataz foram deixados em frente à chácara, indicando que, provavelmente, eles voltariam para pegá-los. As portas foram trancadas e a casa ficou vazia. Somente Helena se encontrava nos fundos da velha casa, aguardando a gangue sair. Helena fora esperta ao esconder o cadilac azul entre as árvores. Ouviu o ruído do veículo de Fernando longe, deu uma volta completa na casa e ao forçar uma das janelas, entrou. A casa tinha quatro cômodos muito sujos, a mobília era velha e empoeirada. Havia no corredor um banheiro que fedia a urina, no madeiramento do telhado viviam algumas aranhas. Helena revistou três cômodos com facilidade, somente um estava com a porta trancada. A jovem tirou dos cabelos um grampo e com um jeitinho aqui e ali, destrancou a fechadura. Seus olhos deslumbraram com a quantidade enorme de armas e de sacas de cocaína existentes ali. Não havia espaço para mais nada, o quarto estava repleto. A moça fechou a porta novamente com o grampo. Pulou a janela por onde entrara. Retornou a pé pelo mesmo trecho que passou outrora até o lugar que o cadilac azul estava estacionado. 159
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Entrou no veículo, ligou o motor e saiu apressadamente dali, tremendo compulsivamente. Temia encontrar a gangue de Fernando no caminho. Rodou uma hora na estrada de terra até chegar à BR 040. Fez o retorno para a pista contrária, e já do outro lado parou para abastecer o veículo. Seu estômago roncava e então comeu um lanche em uma loja de conveniência ali. Chegou a casa por volta do meio dia e meia, alegando para Jaci que tinha ido para o curso de Auxiliar de Escritório, e como saíra muito cedo de casa, não quis acordar o Zé para levála. -Eu não sabia que você sabia dirigir, Dona Moça... -É... Eu não sabia, mas aprendi... Vocês me dão licença, vou tomar um banho e estudar... Minha professora passou muitos exercícios e preciso fazê-los ainda hoje... Jaci aceitou bem a estória da moça, somente Zé desconfiava.
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13. Ana
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na estava preocupadíssima. Engordara muito. Suas roupas estavam muito apertadas. Não entendia o motivo. Ela tomava a pílula corretamente. Às vezes esquecia e tomava duas no dia seguinte, assim que se lembrava. Na verdade, depois que Jorginho se afastara dela, Ana relaxou um pouco com o anticoncepcional, mas depois que reataram, passou a tomar corretamente. Esperou algum tempo. Lembrava-se do quanto sua amiga Helena fazia falta. Sua menstruação estava atrasada havia uma semana. Ana precisava conversar com alguém que a orientasse, que lhe desse um apoio. Sua melhor e única amiga não estava ali para ajudá-la e talvez estivesse com problemas um tanto maiores. Ana procurava não pensar naquilo. No encontro seguinte que teve com Jorginho, depois dessas suspeitas, comentou: -Acho que estou grávida... -Tira... - respondeu o moço, calmamente – Acredito que o Augusto, primo do marido de sua amiga, conheça alguma clínica que faz todo o procedimento e não cobra muito... O Fernando que é meu amigo também levava as meninas que engravidavam dele para esse lugar. Como ele foi para o Rio, Augusto deve saber onde fica... Se quiser, amanhã mesmo, seguiremos até a casa do Augusto para nos informarmos... -O quê? – Ana não acreditava no que ouvia. Jorginho é amigo de Fernando? E o pior, ele sabia da existência da clínica 161
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e que o marido de Helena levava garotas grávidas para lá? E ainda, ele queria que ela tirasse o filho deles? O fruto do amor de ambos? Ana ia protestar, mas resolveu não tocar nos assuntos referentes a Fernando. -O quê, O quê? Perguntou o rapaz. - Pensei que você ia dizer que se casaria comigo, que assumiria a criança, e você simplesmente diz com essa cara de “mocorongo”: Tira...– falou a menina brava, mas muito graciosa ao imitar a cara de “mocorongo” do namorado. Jorginho sorriu. -É isso mesmo... Eu não penso em ser pai. É melhor você tirar, antes que seus pais descubram... Se eles descobrirem, colocarão você na rua... -E você não me acolherá?- indagou a garota surpresa. -Claro que não... Com filho não. Quero só você, sem filho. -E se eu tirar a criança, você ficará comigo?- perguntou Ana sem acreditar no que ouvia. -Claro! Eu gosto de você... Eu a amo sabia? Só que um filho só atrapalharia a nossa felicidade... – disse o rapaz abraçando a moça. -Tudo bem... Amanhã iremos até a casa desse seu amigo, para falar com ele... Onde é mesmo que ele mora? – questionou a moça preocupada. -Na única casa bonita que fica no Centro, ao lado do posto de gasolina... – respondeu Jorginho e abraçando a namorada, continuou: -Eu amo você, fique tranquila que tudo dará certo. 162
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*** No dia seguinte, Jorginho e Ana seguiram até a casa de Augusto. Era dezembro de 1965, e os alunos estavam de férias. Ana disse para a mãe que sairia com algumas colegas. Chegaram. Dona Marlene veio atendê-los. Como Jorginho precisava trabalhar, o rapaz pediu para a moça conversar com seu amigo sobre o assunto que trataram na noite anterior... Despediram-se. Ana estava sentada sobre o sofá da sala de Dona Marlene e aguardava a chegada de Augusto, que estava no banho. Conversavam animadamente enquanto o moço não vinha. Ana era uma jovem muito bonita e engraçada. Não se sabia se era bonita por ser engraçada, ou se ser engraçada a tornava bonita. Era muito simpática. Tinha a pele branca, bochechas rosadas, cabelos castanhos claros escorridos da mesma cor dos olhos, e algumas sardas no rosto. Tinha um belo talhe, e um sorriso encantador... Um doce de menina... Às vezes fazia algumas estripulias de criança de sete anos... Tinha dia que Pedrinho, um menininho que morava perto de sua casa, abria a boca a chorar dizendo: -Manhêêê! A Ana pegou minha bola e não quer devolver... -Ana! Por que você não devolve a bola do menino? Ele está jogando em sua janela? -Não, Dona Maria. Não devolverei a bola porque estou brincando com ela... 163
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-Ai meu Deus! Toma jeito menina... – respondia a mãe do garoto sorrindo. -Calma, Pedrinho! Tenho uma ideia! Podemos brincar juntos com sua bola, o que acha? Dona Maria divertia-se com as estripulias da jovem. Na verdade, Ana era a melhor amiga de seu filho Pedrinho. Eles brincavam juntos, ficavam de mal... Ana era amiga de todas as crianças do bairro. A única diferença entre ela e os demais, é que os demais tinham sete anos, e ela dezessete. Sua melhor amiga era Helena. Cresceram juntas e eram quase irmãs. Até se pareciam na maneira de sorrir e na simpatia. Embora conversasse com Dona Marlene animadamente, Ana trazia uma preocupação em sua cabeça. Não achava certo tirar uma criança. Um moço moreno, cabelos Black Power, descia as escadas... Era Augusto. -Bem... Vou deixá-los a sós... – disse Dona Marlene se retirando para a cozinha. -Boa Tarde! – cumprimentou Ana oferecendo a mão para o rapaz. -Boa Tarde! – respondeu Augusto, apertando-a. – Em que posso ajudá-la? -Então você é o Augusto? -Sim... E qual é o seu nome? -Ana. -Muito prazer, Ana... -O prazer é seu mesmo... - Augusto sorriu com as palavras da moça, Ana continuou - Você conhece o Jorginho? 164
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-Claro! Quem não o conhece? Ana falaria sobre o aborto, mas mudou a direção da conversa, pois a maneira que o moço se referiu a Jorginho deixou-a curiosa. -O que você sabe sobre ele? – indagou olhando-o com firmeza. -Depende do que você quer saber... E... Por quê? -Então... – mentiu a menina – ele quer namorar comigo, e não sei se devo aceitar... Um amigo meu me trouxe até sua casa porque disse que você o conhece bem... -Conheço e muito. Então você quer saber se ele é um bom partido? Bem... Ele é um péssimo partido. Mulherengo, dependente de drogas, mentiroso e vagabundo... Se você quiser compromisso sério é melhor procurar outro... Jorginho troca de namoradas o tempo todo e não para em emprego algum. -E você fala essas coisas de seu próprio amigo? – perguntou Ana sem acreditar em uma só palavra. -Bem... Foi você quem perguntou. Ele é apenas um colega. Nós andávamos juntos há algum tempo... Mas, percebi que Jorginho não é uma boa companhia... E mesmo se ele fosse meu amigo jamais repetiria o mesmo erro... -Que erro? – questionou a garota abelhuda. -Bem... De colocar uma moça em risco, somente para satisfazer os caprichos de um amigo... – Augusto disse isso ao se lembrar da boa parcela que tinha de culpa, na relação entre Helena e Fernando.
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-Então, você já fez isso antes? – indagou-o com um sorriso maroto. -Já, mas me arrependi muito... Ana percebeu que esse assunto mexia com o rapaz e ao notar uma tristeza em seu olhar, retomou o rumo da conversa. -Bem... Mas de qualquer forma, eu não acredito, a menos que você me prove o contrário. -Ah, não acredita? Aposto que nesse momento, ele está lá na área de lazer com alguma moça... Quer a prova? É só me acompanhar... Você só se queimará se quiser brincar com fogo, porque se depender de mim... Ana não aceitava as palavras de Augusto e resolveu acompanhá-lo para tirar a prova. O rapaz pegou as chaves do carro gritando: -Mãe, vou ali e já volto... -Vá com Deus, se cuida... – respondeu a mãe da cozinha. Os jovens entraram no fusca branco e partiram. *** Chegaram até a área de lazer. Realmente o lugar era próprio para namorar. Tinha uma praça e detrás dela havia uma mata que parecia virgem. Grandes pedras estavam instaladas ali. Nos fundos da mata havia um lago. O fusca branco foi estacionado próximo ao de Jorginho. -Você conhece esse carro, aí do lado? Ana o conhecia muito bem. Sentiu um nervoso imenso quando percebeu que o veículo do namorado estava ali. “Mas, ele me disse que ia trabalhar...” Desceram do carro e seguiram até a praça. Como o rapaz não se encontrava, o casal adentrou a 166
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mata que não era tão virgem assim, pois havia uma trilha no caminho. Andaram cuidadosamente até chegarem ao lago rodeado de árvores. Ali mesmo, detrás das árvores, Augusto e Ana observaram que em volta do riozinho escorados sobre pedras, havia vários casais se beijando. Dentre esses casais se encontrava Jorginho sentado sobre uma pedra e uma jovem ruiva sentada sobre suas pernas, que também o beijava. A moça ruiva estudava na mesma escola que Ana, era Júlia. Naquele momento uma tristeza muito grande invadiu o coração da pobre Ana que não faria escândalos ali para não se rebaixar. Somente naquele instante percebeu o quanto foi tola. Perdeu um ano letivo inteiro para ficar com Jorginho. Fez papel de amante, correu o risco de ficar mal falada e até mesmo de ser descoberta pelos pais. O jovem prometeu-lhe muitas coisas, dizia o tempo inteiro que a amava. “Para que estudar, se podemos passar bons momentos juntos?”- dizia ele. E o pior de tudo era a suspeita de gravidez. Percebeu que se estivesse grávida, não contaria com o apoio de Jorginho, nem de seus pais e muito menos de Helena. Mesmo com a promessa de que o rapaz ficaria com ela se tirasse o bebê, Ana não concordava com aquilo. Ainda mais depois da descoberta da má índole dele. Então pensou num plano enquanto observava seu namorado nos braços da ruiva. Primeiramente procuraria um emprego. Quando começasse a trabalhar, contaria a seus pais que esperava um bebê. Se fosse expulsa de casa, pelo menos com um salário daria um jeito de se sustentar. Mas jamais tiraria a criança. Faria de 167
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tudo para vencer na vida. Trabalharia muito, mas nunca abandonaria seu filho ou filha. E com certeza, os dois, mãe e bebê – pensava a jovem –se divertiriam muito. Um cuidaria do outro. Envolvida nesses pensamentos, até esqueceu por alguns momentos da existência do namorado e do quanto o amava. Parece que ao ver Jorginho aos beijos com Júlia, todo aquele amor que sentia, evaporou-se no ar. Só pensava em ser mãe. -Não falei? – disse Augusto interrompendo os pensamentos da jovem. -Augusto, eu preciso trabalhar... – disse Ana sem dar atenção ao que o moço acabava de dizer. -Trabalhar? Pensei que tivesse vindo até aqui para ver o cafajeste que você ia namorar... Se não fosse por mim... -Tudo bem, vai... Devo-lhe uma... Você me salvou... -Acho que mereço alguma coisa em troca, não é? Quem sabe um sorvete? Estou morrendo de calor... -Só se for outro dia, porque não trouxe nenhum centavo. -Eu pago. É por minha conta. -Sendo assim, devo-lhe duas: Uma por me salvar, e outra pelo sorvete... -Depois você me paga, então... Vamos? -Vamos. Ana pensou que ficaria completamente irritada, chateada e magoada com tudo o que viu, mas decidiu ficar alegre. Enquanto ela chorasse, Jorginho aproveitaria a vida feliz. Então, ela saborearia um delicioso sorvete em companhia do novo
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amigo que arranjara. E depois, pensaria em seu futuro e como seria sua nova vida sendo mãe. Chegaram a uma conceituada sorveteria, escolheram seus sorvetes e sentaram-se em uma das mesas. Enquanto tomava seu sorvete, Augusto a observava sorrindo: -Garotinha, sua boca está suja de sorvete aí no canto... – apontava para os lábios da moça. -Depois eu limpo... Se eu limpar agora, vai sujar de novo... -Então, você não tem namorado... – disse o rapaz -Não. – falou a menina prontamente concentrada no sorvete. -Não acredito! Uma moça bonita como você, sem namorado... E quase caiu nas garras do Jorginho... -Para você ver como são as coisas...- dizia a garota sem dar muita atenção ao rapaz. -Você quer namorar comigo? -Mas, assim de repente? Você nem me conhece direito... – nesse momento, Ana levou o assunto a sério. -Mas gostei de você... -Não sei não... É muito cedo ainda... Preciso pensar... – suspirou a jovem, pensativa. -Cinco minutos. Você tem cinco minutos para pensar... -Mas é muito pouco... – Ana estava preocupada em arrumar emprego e não em conquistar um novo namorado – Sabe Augusto, eu também gostei de você, mas não posso pensar em namorar agora. -Por quê? – indagou o moço sem compreender. 169
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-Então – ludibriou a moça – Preciso ajudar minha família que está passando por dificuldades. Por esse motivo, não posso namorar ninguém... -Mas você quase namorou o Jorginho... E só não vai namorar porque eu a salvei...- argumentou Augusto, segurando sua mão. -Mesmo que você não me salvasse eu não namoraria o Jorge. Não posso conciliar escola, trabalho, preocupação com a família e um namorado. Eu só queria saber mais sobre o Jorginho, só isso... – Ana respondeu esquivando-se do toque. -Bem... Se você precisa realmente trabalhar, no Restaurante do meu pai estão contratando... Posso arrumar emprego para você lá... O que você sabe fazer? -Eu? Nada... Nunca trabalhei na vida. Não sei datilografar, não sei cozinhar... – suspirou a jovem com um tom de preocupação na voz. -Sabe lavar louça? -Sei. Faço isso em casa todos os dias... -Então passa na minha casa segunda - feira às seis da manhã. Vou levá-la até o restaurante de carro porque também trabalho lá. Você aprenderá o serviço aos poucos. Se você se adaptar será contratada. O que acha? -É uma ótima ideia. Muito obrigada pela oportunidade. – Ana disse isso, levantando-se e beijando a testa do rapaz. O moço retribuiu com um belo sorriso. A tarde foi maravilhosa apesar da decepção que sofrera. A moça percebeu o valor que tinha e descobriu que o jovem que ela pensou que amava não valia nada. Lembrou-se dos conselhos de Helena. Era 170
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com dor no coração que Ana reconhecia que, quando pedia para que tomasse cuidado com Jorginho, sua amiga tinha razão.
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14. Ana e Augusto
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orginho esperou a namorada à noite. Meia noite, uma hora, duas horas da manhã e nada. Dormiu. Nos dias que se seguiram, a moça nem apareceu por lá. Foi então que descobriu, pela boca de não se sabe quem, que Ana trabalhava num restaurante na capital. Segunda-feira ela estava às seis da manhã no portão da casa de Augusto esperando-o. Dona Marlene a convidou para entrar e tomar café. A moça agradeceu o convite, mas preferiu aguardar lá fora mesmo. Augusto saiu vestido num terno cinza, usava chapéu, estava muito bonito. O cabelo Black Power de outrora estava cortado bem baixinho, e agora, usava costeletas e topete. E o sorriso... Que sorriso bonito, pensou Ana. Se não estivesse preocupada em trabalhar e em cuidar do seu bebê, até daria uns beijinhos no moço. “Afinal, ele não é de se jogar fora...” Despediram-se de Dona Marlene e partiram. Ana começou o trabalho no restaurante com muito empenho. O restaurante ficava na Av. Paulista e era muito frequentado, principalmente pelos banqueiros. Homens andavam o dia inteiro de um lado para outro, vestidos com ternos e chapéus. As mulheres conservadoras usavam vestidos até a altura dos joelhos, com mangas. Somente as jovens rebeldes utilizavam saias e vestidos curtos ou blusa sem mangas. Lápis nos olhos era comum na maioria das jovens, porém, quase não se viam moças de batom. 173
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Uma boa parte dos rapazes utilizava cabelos Black Power, compridos, ou estilo Elvis. Alguns radicais até ousavam ficar sem camisa em praça pública – o que não era comum para a época. Ana ficou encantada com o lugar. Muitos ônibus, carros, gente passava de um lado para o outro o dia inteiro. Nem acreditava que estava ali, que trabalhava e era dona de seu nariz. Até ajudaria os pais de verdade. Quando comunicou que estava disposta a trabalhar não apareceu nenhuma objeção por parte da família. A jovem era muito esperta e rapidamente aprendeu o serviço. Usava uniforme azul, lavava louça e salada, cortava legumes, varria, limpava... Augusto trabalhava no escritório administrando, e de quando em quando observava a moça, com estimado interesse. Como era esforçada. Era diferente das garotas de sua idade que só queriam trabalhar em escritórios. Como não sabia datilografar e não tinha cursos, Ana aceitou aquele serviço pesado de bom grado. E todos os dias agradecia ao novo amigo pela oportunidade. A amizade entre o jovem casal aumentava a cada dia. Nos dias de muito movimento, Augusto a ajudava na cozinha. Sempre que podia, colocava um doce dentro do bolso do avental da jovem. Quando saíam mais cedo do restaurante, passeavam nas praças, nos museus, nos parques. Que deliciosa era a amizade deles. Quanta cumplicidade. Ana até se esquecia da preocupação futura – do bebê – quando estava com Augusto. Todavia, ela conservaria somente a amizade e não permitiria que nada, além disso, existisse entre eles. 174
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Não imaginava como seria a reação do moço ao descobrir que ela esperava um bebê, e justamente de Jorginho. Agora sentia o peso da mentira que contara. Talvez, se Augusto descobrisse toda a verdade, poderia odiá-la e fazer com que seu pai a dispensasse do emprego. Esse pensamento tornou-se mais uma preocupação na vida de Ana. O único problema era que ela amava o rapaz, só que diferentemente do ex-namorado. Augusto a conquistou pela amizade e simpatia. Era compreensivo, charmoso e muito bonito também. As qualidades internas o tornavam mais belo do que as externas. Augusto sentia o mesmo por Ana. Ele nunca tinha levado nenhuma mulher a sério, pois acompanhou Fernando, Jorginho e outros colegas, em vidas desregradas, agradecendo a Deus todas as vezes que encontrava uma moça fácil de levar “na conversa”, mas agora se via apaixonado. Apesar da vida libertina, Augusto nunca tinha engravidado ninguém e antes de qualquer relação, investigava se a moça tomava pílulas. Procurava também sair com mulheres mais experientes. Diferente de Fernando que só saía com garotinhas virgens que desconheciam a medicação e sonhavam em se casar e viver feliz para sempre. Pensava como todos os seus colegas que a pessoa que inventara o anticoncepcional os livrou do pesado fardo do casamento. Nunca, porém, prometia nada do que não pudesse ofertar. A única coisa que oferecia para alguma mulher era o prazer que seria desfrutado por ambos por alguns momentos. As 175
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moças liberais com quem saía, por sua vez, aceitavam de bom grado, pois elas mesmas não queriam compromissos. Então, como dizia sua mãe “juntava a fome com a vontade de comer” e ninguém saía magoado. Somente depois da experiência com Juliana e Fernando, ele passou a enxergar a vida e as pessoas com outros olhos. Entendeu que mesmo as mulheres e homens mais liberais tinham sentimentos. E que a vida não se resumia somente em sexo e liberdade, às vezes para ser livre era necessário algumas limitações. Resumindo: ainda que ficasse com as mulheres mais belas da Terra, se não tivesse o amor de Ana seu mundo seria vazio. Reconhecia que estava apaixonado e queria uma companheira por toda a vida. Riu-se dele mesmo. Quem diria? Augusto apaixonado por uma jovem sardenta a ponto de se casar? A vida era mesmo cheia de surpresas. Ana era tão bonita, simpática, brincalhona... Às vezes era adulta, outras vezes criança. Quando se irritava fazia um gracioso bico e até birra... Por outro lado, também era muito responsável. Se precisasse ficar até tarde no serviço, não reclamava. Sr. Jorge, pai de Augusto, também se afeiçoou pela garota. -Meu filho... O que você espera para pedir a mão da jovem? Percebi que desde que ela começou a trabalhar aqui, alguns fregueses frequentam mais o restaurante... Até o Murilo, o banqueiro da esquina, passa por aqui de vez em quando para prosear com a moça... E olha que ele só frequentava o restaurante do outro lado do quarteirão, o D’Mais Grill. 176
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-Também percebi, meu pai... E isso me incomoda... Só não reclamo porque eles são fregueses... Eu pedi Ana em namoro no primeiro dia que a conheci... Mas ela disse que não pode conciliar trabalho, escola e namorado... Precisa de um tempo... -É melhor você reforçar o pedido, senão vai perder... E, outra coisa meu filho... Homem que é macho, não namora para casar... Casa primeiro, para namorar depois... -No seu tempo era assim, não é meu pai? Hoje em dia as coisas são diferentes... -Pois é... Agradeço a Deus por ter vivido “naquele tempo”... Talvez, se fosse “nesse tempo”, perderia a oportunidade de me casar com sua mãe... – respondeu Sr. Jorge ao dar uns tapinhas nas costas do filho. Augusto olhou-o admirado, seu pai sorria. Aquelas palavras mexeram com o moço. “E não é que o velho está certo?” Fazia então dois meses que Ana trabalhava. Augusto e Ana eram, sem dúvida, bons amigos. Às vezes brigavam, e quem pedia desculpas – quando ficavam de mal – era sempre Augusto. Um dia, o rapaz contestou: -Você percebe que todas as vezes que brigamos sempre sou eu quem pede desculpas? -Talvez isso aconteça porque você é sempre culpado das nossas brigas... Augusto contemplou a jovem que estava próxima dele e não resistiu àquelas palavras. Furtou-lhe um beijo. Ana se 177
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deixou beijar. Naquele momento a moça descuidou-se de seus propósitos e se esqueceu de tudo, aceitou e retribuiu. Abraçaram-se. Quando caiu em si tentou afastá-lo, fugindo de seus braços. Augusto se reaproximou na tentativa de beijá-la novamente. -Não posso... – a garota disse ao virar as costas para o rapaz. Augusto a tomou pelo braço, obrigando-a a olhar para ele: -Mas por quê? Será que dois meses não é tempo suficiente? Ou você está enamorada do banqueiro da esquina? -Claro que não. -Então? -Depois a gente conversa sobre isso... – Ana respondeu ao tentar livrar-se dos braços do moço. -Você não gosta de mim? -Gosto de você desde o primeiro sorvete que me pagou... Mas não posso gostar de você e nem você de mim. Outro dia lhe contarei tudo. Sei que depois que souber não gostará mais de mim. Talvez até me odeie, mas será melhor para nós dois... Augusto afastou-se da moça, irritado. Aquilo não continuaria daquele jeito. Ela teria que se decidir. Ele estava disposto a se casar com Ana e assim que tivesse oportunidade, ou melhor, coragem, lhe pediria em casamento. No fundo, Augusto temia receber um NÃO como resposta. Fevereiro, 1966.
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Helena não esquecia a cena em que Pingo fora arrastado pelo Capataz até o puma de Fernando. Queria saber o que aconteceu depois, se o garoto foi morto pela gangue do marido, ou não. Depois que chegou a casa, percebeu que no momento em que observava tudo, poderia sair imediatamente dali, pegar seu carro e num posto de combustível, ligar para a polícia de um telefone público. Mas, somente depois que tudo aconteceu, essa ideia surgiu em sua mente. Helena só deixou esses pensamentos de lado ao receber uma carta de Ana. A amiga contou-lhe tudo sobre o que houvera com Jorginho, das suspeitas de gravidez e do novo amigo que arranjou – o Augusto – que Helena conhecia bem. Disse também que Sr. Manuel estava muito doente. Helena ficou muito preocupada com o pai, e como não queria falar sobre isso com Fernando, deixou a carta aberta em cima da cama, com a intenção de fazer com que o marido a lesse. Fernando ao entrar no quarto leu a carta. Percebeu que era um plano de sua esposa para notificá-lo de que seu pai estava muito enfermo e chamou-a: -Helena! A jovem, que conversava com Jaci na cozinha, subiu apressadamente as escadas. -Fala... -Seu pai está muito doente, não está? -Sim... -Você quer vê-lo? -Que pergunta idiota...
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Fernando sorriu com a resposta da esposa. Talvez era aquela agressividade da parte dela que o excitava e o fizera se apaixonar. -Não vamos brigar agora... Preciso sair. Deixaremos essa sua má–educação para ser resolvida depois. Não viajarei para São Paulo de imediato, tenho alguns negócios por aqui e como seu pai está muito mal, é melhor você ir com o Zé e a Jaci. Eles ficarão de “olho em você”... Helena ouvia tudo com indiferença. -Não vai me dar um beijo de agradecimento? Fernando se aproximou e a puxou com força pelos cabelos. Ele era extremamente violento. Helena mordeu os lábios de Fernando que sangrou imediatamente, e em troca, recebeu um soco na barriga. Ela caiu no chão. Ele a ergueu soltando-lhe uma bofetada na boca, que sangrou também. -Rapariga! É assim que me agradece? – berrou Fernando enquanto enxugava o lábio ferido com um lenço. -Ficaria muito mais agradecida se você morresse... – a jovem retrucou estirada na cama, em posição fetal. -Não vamos terminar essa conversa hoje, porque você precisa arrumar suas malas para visitar seu velho... Não quero que depois você me culpe se acontecer alguma coisa com ele... – Fernando disse isso e aproximando-se da jovem a sufocou com outro beijo – Sentirei saudades e procure não demorar por lá... Virou as costas e saiu. Zé estava adoentado e não pôde levar Helena para São Paulo. A única alternativa seria ir de ônibus mesmo. A 180
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empregada não iria acompanhá-la, pois cuidaria do motorista enfermo. A jovem aprontou as malas rapidamente. Estava tão traumatizada com tudo o que vira no esconderijo, que não via a hora de sair dali. Despediu-se de Zé e Jaci com um abraço, recebeu recomendações de ambos e pôs-se na estrada. Na Rodoviária, Fernando despedia-se da esposa a beijando com ímpeto. Antes de a jovem partir, ele deu a última recomendação: -Espero que tenha muito cuidado... Quando entrou no ônibus, Helena sentiu-se aliviada. Queria ir e nunca mais voltar para os braços daquele monstro. Viajou à noite inteira de ônibus. Finalmente, chegou à Rodoviária do Tietê, em São Paulo. A moça pegou suas malas, e dentro de um táxi, seguia para Jandira. No trajeto, sorriu ao ver uma foto sua – daquelas que tirou para Edith Fontana – num outdoor. A foto estava amarelada devido às agressões do sol e da chuva, porém bem nítida. Na foto, Helena usava um vestidinho floral, acima dos joelhos e bem decotado. Dona Valquíria estava no portão, quando um táxi amarelo estacionou em frente sua casa, trazendo sua amada filha. Chorou emocionada ao ver a jovem. As duas abraçaram-se demoradamente e banharam-se em lágrimas. Subiram até a casinha. Na sala, Helena começou a gritar: -Superpai! Adivinha quem chegou... Dona Valquíria chorando, abraçou a jovem ternamente, dizendo: -Ele não está aqui, minha filha... Está descansando... 181
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-Onde? Superpai! Cheguei! – insistiu a jovem, que se negava a acreditar no que pensou e procurava em vão o velho pai nos cômodos da casa. E aos prantos: - Não... Não pode ser... Cheguei tarde demais... - Disse a jovem com um soluço. -Faz uma semana que ele partiu minha filha... – balbuciava Dona Valquíria abraçando a jovem na tentativa de consolá-la. - Insu... não sei o que... do coração. – completou a pobre senhora. Sr. Manuel faleceu de insuficiência cardíaca. Naquele momento, não existia palavras entre ambas. Elas simplesmente choraram. Pedrinho soltava sua pipa, quando viu o táxi amarelo com a jovem Helena dentro. Guardou-a e correu até a casa de Ana para contar a novidade. -Anaaa! – gritava o garotinho impaciente – Ana! Anaaa! -Meu Deus, o que é isso menino? – respondia Dona Anita, mãe de Ana – Onde é o fogo? -A Ana está aí, Dona Anita? Preciso falar com ela... -Ah, já sei! É a sua bola que ela pegou emprestada? Ela escondeu na varanda... Essa menina não tem jeito... Espera aí que vou chamá-la. Ana apareceu na escada sorridente: -Não adianta reclamar, nem choramingar, que não devolverei... Moleque mal–criado! -Eu não quero a bola mesmo... Vim aqui lhe mostrar a minha pipa nova... Vamos soltá-la no morro? -Ah não! Ando muito cansada... Não tenho ânimo para nada... 182
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-Você nunca mais brincou comigo... – disse o menino ressentido - Aposto que se fosse a Helena quem a chamasse você iria na hora. -Pensa que é fácil trabalhar, estudar e ajudar a arrumar a casa aos fins de semana? Nem que Helena me chamasse, eu sairia hoje... Até porque ela não mora mais aqui... -Aí que você se engana... Ela acabou de chegar. Está na casa de Dona Valquíria. Eu a vi com meus próprios olhos... -Sério? Ela está aqui? – disse a jovem descendo as escadas, apressadamente. E puxando o amiguinho pelo braço: -O que estamos esperando? Vamos ver a nossa amiga... O menino que era arrastado por Ana, resmungou: -Não falei? Chegaram defronte ao portão. Pedrinho subiu as escadas na frente de Ana, cumprimentou Dona Valquíria e abraçou Helena ternamente. A jovem, com os olhos vermelhos de tanto chorar, retribuiu o abraço do amiguinho. -Nossa! Como você cresceu! Está cuidando da nossa amiga doidinha? -Estou sim – cochichou o garoto – Ela está vindo aí atrás. E nem acreditou quando eu disse que você estava aqui... -Vou lhe pegar Pedrinho! Que história é essa de me deixar para trás? Quer me matar de correr, é? – era Ana que ralhava com o garoto e que ao entrar na sala, foi recebida pela amiga com um abraço. -Nossa quanta braveza! – disse Helena, enquanto abraçava Ana. Depois, Ana virou-se para Pedrinho, dizendo: 183
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-Depois a gente conversa... – e para Helena – Você quer me matar de saudades também, é? Pensei que nunca mais fosse vê-la... -Temos muito que conversar... – disse Helena. As duas colocaram os assuntos em ordem. Dona Valquíria foi à venda comprar biscoitos. Pedrinho foi soltar sua pipa, reclamando: -Não falei? Agora que não vamos brincar mais mesmo... Ana abraçou o garotinho e tascou-lhe um beijo na testa. -Deixa de ser egoísta e vá brincar com o Paulinho, com o Osvaldo, com a Meire... Não faltam amiguinhos para brincar... Não é sempre que temos a Helena por perto... -É verdade... – disse o menino enquanto beijava o rosto de Helena – Não vou reclamar afinal você também é minha amiga, e é muito mais bacana que a Ana... -Espere aí que vou pegá-lo! – levantou-se Ana correndo atrás do garoto. Pedrinho corria e gritava: -Ficou com ciúmes! Ficou com ciúmes! – e partiu com a pipa debaixo do braço à procura dos outros amiguinhos.
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15. O reencontro
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s amigas conversaram tudo a que tinha direito. Ana chorou muito quando soube de todas as desventuras que a pobre amiga sofria. Contou também o que Jorginho aprontara na área de lazer e da amizade com Augusto. Helena, ao ouvir a amiga falar de Augusto, não parecia ser do primo de Fernando a quem se referia, e sim a outra pessoa. Ana prosseguia com sua narrativa e contou-lhe a respeito das suspeitas de gravidez. -Você grávida? De jeito nenhum! É coisa da sua cabeça. – retrucou Helena. -Mas a minha menstruação não veio! Duas semanas, e minha barriga está inchada... -Isso só pode ser prisão de ventre! Tenho certeza de que você não está grávida... Deve ser alguma friagem... Minha mãe diz que friagem segura à menstruação. Dona Valquíria chegou com alguns pacotes de bolachas soltas, e colocou-os sobre a mesa. Helena perguntou: -Mãe, o que é bom para desprender a menstruação? -Chá de canela é muito bom, só que é muito quente. Depois que se toma o chá de canela, não se pode sair na friagem de jeito nenhum. Quem é que está com a menstruação presa, você? -Não. A Ana. 185
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-Pudera! Todas as vezes que a vejo na rua, é sem blusa, sem meias e naquele frio... Sem falar na curteza da saia, não é? -A senhora tem canela, aí? – perguntou Ana. -Tenho sim! Farei o chazinho para você, porque está muito calor. Mas amanhã de manhã, muito cuidado. Nada de sair nua por aí... -Não tem graça, Dona Valquíria – retrucou Ana com um bico. -É brincadeira, minha filha! -A senhora não entendeu. O que não tem graça sou eu não sair “pelada” por aí, por causa desse chá... Logo eu, que não suporto andar vestida... Até Helena que estava triste – com a notícia da morte do pai – não conteve o sorriso. Mesmo com tantas preocupações, Ana ainda sorria e arrancava risos dos outros. Como era possível encarar os problemas com tamanho humor? Somente Ana mesmo... À tarde, depois do café com biscoitos, Ana foi à escola devolver alguns livros que havia pego na biblioteca. -Hum... Como está estudiosa... – brincou Helena com a amiga. -Confesso que eu não era assim... Mas quando comecei a andar com certas pessoas, uma amiga para ser mais exata, fiquei desse jeito. O que as “más” companhias não fazem com a gente... Helena sorria. -Vamos comigo para a biblioteca? – perguntou Ana.
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-Agora não posso. Vou comprar algumas flores, para levar ao cemitério. Visitarei o túmulo do meu pai... Amanhã, talvez, irei à biblioteca conversar um pouco com o Sr. Tibério. -Tudo bem então... Vou lá devolver esses livros, senão o Sr. Tibério me mata. Vou aproveitar minha folga no trabalho e como hoje à noite não sei se irei para a aula... -Tudo bem. As duas separam-se cada qual para o seu destino. Ana seguiu até a biblioteca para devolver alguns livros e como temia voltar para casa e encarar a louça que restara do almoço, ficou por lá mesmo. Na biblioteca – como estava vazia – conversava animadamente com o Sr. Tibério. -E então o senhor não quer se casar? -Não, não, não. Já fui casado, minha filha. Duas vezes. E vou lhe dizer uma coisa, mulher é muito difícil de entender... -Quem disse que as mulheres devem ser entendidas, Sr. Tibério? As mulheres nasceram para ser amadas, e não entendidas. Já percebi o motivo pelo qual seus casamentos não deram certo! -Menina, tem mulher que só quer saber de dinheiro. Minhas duas esposas eram assim. Quando a situação financeira apertava em casa o amor esfriava. E o pobre velho aqui, coitado! Como sofria... Tinha que trabalhar de domingo a domingo, para sustentar os caprichos delas. Fiquei viúvo da primeira. Depois pensei que com a segunda fosse diferente. Enganei-me. Com a segunda esposa trabalhei dobrado! -Mas Sr. Tibério... Foi justamente para isso que os homens foram feitos... Para as mulheres se aproveitarem deles! 187
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Risos ecoaram ali. De súbito, alguém entrou na biblioteca e percorria as prateleiras em busca de algum livro. Era Cadu. -Menina, menina! Você não tem jeito mesmo... Vendo você tão alegre e dedicada aos estudos, me recordo de uma pessoa... – disse Sr. Tibério. -Ah, nem contei ao senhor! - Ana falou mais alto, quando percebeu que Cadu esta por ali - Helena está em casa de sua mãe. Veio visitar o pai, mas infelizmente chegou tarde. E o melhor de tudo é que está sozinha. O marido não veio. Daí, tivemos oportunidade de conversar à tarde inteira... -Ela nem se lembrou de mim... – disse o simpático senhor suspirando. -Lembrou sim. Virá aqui amanhã por volta desse horário. Só não veio agora porque foi ao cemitério, visitar a tumba do pai. Cadu aproximou-se e perguntou: -Desculpe me intrometer na conversa... Mas você disse que sua amiga está no cemitério? -É sim. Creio que a essa hora ela já tenha chegado lá. Saímos juntas de casa e faz uma hora que estou aqui... -Ela está sozinha? – perguntou o rapaz. -Está sim... Por quê? – indagou Ana com um sorriso de criança arteira. -Não, por nada... – completou Cadu se retirando. Ana piscou para Sr. Tibério e soltou uma gargalhada. O bibliotecário não compreendeu muito, mas também sorria. Depois exclamou: -Pobre rapaz! Ainda não esqueceu sua amiga... 188
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*** Uma jovem com um vestido preto na altura dos joelhos e um ramo de flores vermelhas estava sentada sobre um jazigo. O vestido era comportado, mas tinha mangas curtas e um leve decote que marcava a cova dos seios. Era justo até a altura da cintura e levemente solto na saia. A jovem calçava uma sandália preta e conversava com o pai que partira e estava sepultado ali. -Me perdoe meu pai... Não consegui chegar a tempo... Mas saiba que o amo muito... Nunca vou esquecê-lo e chegará um dia em que nos encontraremos. Quem sabe se onde o senhor está a vida é mais fácil de ser vivida... Aqui meu pai, é tudo muito difícil... A moça alisava a face de Sr. Manuel que estava estampada numa placa prateada sobre a sepultura, com a descrição da data de nascimento, 01/01/1911 e de falecimento, 20/01/1966. Ficou algum tempo em silêncio ao recordar de quando era criança. Montava nas costas do velho que a levava de um lado para outro da casa. Lembrava-se da primeira boneca de pano que ganhou do pai. Para lhe dar aquele presente, o pobre senhor trabalhou muito. Juntou todas as economias para no dia do aniversário de nove anos, fazer-lhe aquela surpresa. Seus pensamentos eram acompanhados com lágrimas de saudade que foram interrompidos por uma voz detrás da moça: -Podemos conversar? – era Cadu com um pequeno envelope amarelo nas mãos. -Sim... – respondeu a jovem surpresa, levantando-se e enxugando as lágrimas sem compreender como o professor sabia que estava ali. 189
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Cadu contemplou-a. Parecia que estava mais bonita do que quando a conheceu. Pensou em desistir do que faria ali ao notar que a jovem estava triste. Mas, juntou todas as suas forças e disse: -Confesso que vendo você tão triste pensei em recuar para lhe dizer algumas palavras que estão entaladas aqui em minha garganta... Mas não sei quando tornarei a vê-la, então vou lhe falar... -Diga... Estou preparada. Acredito que nessa vida, nada mais me surpreenderá... -Muito bem... Começarei dizendo o quanto a acho interesseira, mentirosa e falsa... Percebi isso logo que se propôs a se casar com aquele homem rico. Mas depois, descobri outro requisito seu: traição. Além de tudo, você é uma traidora... Você me traiu! Trocou-me por dinheiro... Você não vale nada! – o jovem professor disse isso ao entregar o envelope amarelo para Helena. A moça abriu o envelope e viu suas fotos – em preto e branco – nua, sendo acariciada por Fernando. Não tinha palavras. Fernando a enganou quando prometeu que se a moça se casasse com ele, aquelas fotos seriam esquecidas. -Se eu lhe disser que estava drogada e que fui violentada por esse homem, você acreditaria? – indagou à jovem. -Não. Isso você já me contou antes. -Se eu lhe disser que Fernando é um poderoso traficante no Rio de Janeiro, e que fui forçada a me casar com ele, para salvar a vida dos meus pais e até mesmo a sua, você acreditaria? -Não. 190
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-Se eu lhe disser que gosto de você? Que embora as evidências me acusem, sou inocente... Você acreditaria? -Não. -Então... Não temos o que conversar... – A moça disse isso devolvendo o envelope com as fotos para o rapaz, com olhar indiferente. Tinha problemas demais para se ocupar com ciúmes de um ex-namorado, mesmo ainda sendo apaixonada por ele. Não adiantava nada alimentar esperanças, e discutir sobre aquilo só aumentaria a dor que trazia em seu peito. Helena virou as costas e partiu. Cadu acompanhou-a com o olhar. Não conseguia odiá-la. Quando a reencontrou ali, no cemitério, seu coração bateu mais forte. Ele não admitia, mas ainda a amava. Eram seis da tarde quando Ana adentrou a sala da casinha de Helena, chamando-a para ir até a escola. -Vamos comigo para a escola, Helena? Sr. Tibério quer vê-la... -Você disse que não ia para escola hoje, lembra? -Mudei de ideia. É melhor ir para a escola do que lavar a louça do jantar... E depois ficarei na biblioteca, não assistirei à aula. -Tudo bem! Eu vou com você porque é bem provável que retornarei amanhã para o Rio... -Está com pressa de voltar, hein? -Não estou não. Se pudesse ficaria aqui para sempre... Mas receio que meu marido me busque se demorar mais... Helena disse isso e se aprontou rapidamente. Estava linda. Usava um vestido do mesmo modelo que o preto, só que esse 191
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era azul marinho, e um lindo lenço branco na cabeça, a franja cobria suavemente sua testa. Ana usava o uniforme da escola. As amigas seguiram até a biblioteca. Antes de entrarem no colégio, Helena foi rodeada por rapazes que estudaram com ela outrora. A moça dava atenção para todos, e Ana, angustiada de tanto esperar, pediu licença para a moçada e puxou a amiga pelo braço. Chegaram à biblioteca e Sr. Tibério ao ver a jovem Helena, não conteve as lágrimas. -Como está linda, minha jovem! Quantas saudades... A jovem abraçou o senhor: -Parti, mas deixei alguém aqui que está bem estudiosa, ocupando meu lugar... – disse Helena apontando para Ana, que estava entretida à procura de um romance nas prateleiras. -Minha jovem, você é insubstituível... – comentou Sr. Tibério dando uma piscadela para Helena. -Estou ouvindo viu, Sr. Tibério? –reclamava Ana. A noite na biblioteca foi animada, e só foi estragada fora da escola por Jorginho. Jorginho não se conformava com o fato de Ana tê-lo desprezado. A moça nunca mais foi visitá-lo, nunca mais o procurou. O moço investigou a vida da namorada e descobriu que ela estava de prosa com Augusto, pois de quando em quando os viam juntos em frente ao colégio. Naquela noite, ao passar em frente da escola, viu o casal conversando. Para se vingar, seguiu até a casa de Sr. Aníbal – pai de Ana – para contar tudo. Bateu palmas no portão, o pai da jovem atendeu:
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-Pois não? – disse o senhor secamente. O pai de Ana era muito severo. -Eu sou ex-namorado de sua filha. Vim aqui dizer que ela não vale nada... E que todas as noites enquanto o senhor dormia, Ana passava em minha casa e foi minha mulher durante mais de ano. Foi por isso que ela perdeu o ano letivo, ao invés de ir ao colégio, ficava comigo... E saiba que ela espera um filho meu... -O que você está dizendo, moleque? Está difamando minha filha? Se tudo isso é verdade porque você viria pessoalmente me contar? -Porque ela me abandonou para ficar com outro! Já é mulher de outro homem... Está saindo com o filho do dono do restaurante, onde trabalha... -Mentira! – bradava o velho. -Verdade! – bradava o rapaz. – Então, vá à escola e veja se ela não anda de prosa com ele. O senhor parou de buscá-la na porta do colégio, e agora ela está com um e com outro... Sr. Aníbal pegou um chicote de marinheiro – lembrança de seu pai - e foi à escola. Ana conversava animadamente com Augusto em frente ao colégio, enquanto Helena no pátio falava com Paulo César – o professor de História. -Me dê um único motivo para não ser minha esposa... – disse Augusto para a jovem. -Não sei como dizer isso... Tenho muito medo de perder sua amizade... Creio que você me odiará tanto que até me dispensará do trabalho... – retrucou a moça.
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- Me diz uma coisa: você gosta de mim? Eu sei que gosta... -Gosto, mas não posso... -Você é muito misteriosa... Não entendo... -Para que entender e deixar nossas vidas tristes? É melhor continuarmos alegres e deixarmos o tempo correr... Enquanto eles discutiam, Helena e Paulo César conversavam no pátio. Helena contou ao bom amigo tudo o que tinha descoberto sobre Fernando e falou sobre as ameaças que sofrera se caso desse algum passo em falso. Contou sobre o que aconteceu com Pingo, no esconderijo no Rio. Só omitiu as violências físicas e sexuais que sofria, mas o resto contou tudo. -Esse homem é um monstro! – retrucou Paulo César, que se esforçava para fingir que acreditava em tudo. No fundo não creu em uma só palavra. -Você não imagina o quanto tenho sofrido... Sei que é difícil de acreditar... -Eu mesmo pensei que você tinha inventado toda aquela história para fugir do compromisso com o Cadu e ficar com o Fernando... -E você ainda pensa assim? -Sinceramente, meu bem, eu não sei... -Tudo bem Paulo, não deixarei de gostar de você se não acreditar... Sei que é difícil... -A propósito, vejo você quase todos os dias, sabia? -Ah é? Onde? -No outdoor que fica defronte a Estação Júlio Prestes... 194
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Helena sorriu. Ela também viu várias fotos suas, quando estava na capital retornando para Jandira. -Eu também me vi hoje, quando estava na Marginal Tietê... Estava estampada num outdoor de uma loja não sei do quê... Faz quase dois anos que aquelas fotos foram tiradas... -Você nunca me contou sobre elas... -Você nunca me perguntou sobre elas... -Quando elas foram expostas você já tinha se casado... Helena contou a Paulo César o motivo que a levou a tirar as fotos. Percebeu pelo olhar do rapaz que ele não acreditava em nada do que dizia, por mais que se esforçasse. Realmente, após a exibição das outras fotos que Fernando dera a Cadu e que Cadu mostrou a Paulo César, Helena estava sem crédito. Mesmo assim, os dois amigos conversavam tranquilamente e apesar de tudo, Helena sorria. Já era tarde, Helena achou prudente se retirar. Paulo César a acompanhou até o portão do colégio. Do lado de fora, Augusto que não se conformava com a resposta de Ana em relação ao pedido de namoro, furtou-lhe um beijo. Seu Aníbal chegou nessa hora acompanhado por Jorginho que gritava: -Olhe ali! Pegamos com a boca na botija! O velho que segurava o chicote partiu para cima de Ana com violência espancando-a em público e separando-a dos braços do rapaz. Augusto tentava conter a raiva do velho que batia mais e mais na moça. Helena, do portão, correu ao encontro da amiga. Entrou na frente do velho e amparava a moça que sangrava, jogada no chão. O velho gritava para Helena: 195
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-Saia da frente! -Não vou sair! -Então apanhará junto com ela! – bradou o homem que espancava a outra jovem também. Helena caiu ao lado da amiga permanecendo em sua frente para que o chicote não a atingisse. Temia que Ana estivesse realmente grávida, se dispondo ali, em frente dela para receber todos os golpes. O velho gritava: -Rapariga! Sem vergonha! Maldita! Ana suplicava pelo amor de Deus para o pai parar: -Para, pai! Está machucando a Helena... -Ela não está lhe apoiando? É tão rapariga quanto você, sua sem vergonha! E o chicote estralava. Ana – no chão detrás da amigaimplorava para Helena sair de sua frente: -Helena saia... Pelo amor de Deus... Meu pai vai matála... Deixe-o descontar sua raiva em mim... Helena, suportando as dores, retrucava: -Não sairei... Augusto tentava segurar o velho, mas Jorginho segurava o rapaz. -Isso é assunto de família! Saia daqui, seu miserável... -Assunto de família coisa nenhuma, seu mau-caráter! Me larga que vou desarmar o homem! Me solta! Não vê que ele vai matá-las de bater? - gritou Augusto empurrando Jorginho que caiu no chão.
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-Pois então... Que mate! – disse Jorginho ao levantar-se e acertando um chute na barriga de Augusto, derrubou-o. Os dois rolaram pelo chão, enlaçados. Jorginho esmurrava Augusto que estava por baixo dele. Subitamente, Augusto conseguiu virar-se, agora era ele quem esmurrava Jorginho e não contente socava sua cabeça no chão. Jorginho soltava sangue pelo nariz. Uma multidão de jovens aglomerouse no local. Helena estava ensanguentada quando Sr. Aníbal foi contido por um rapaz. Era Cadu quem o segurava. Paulo César aproximou-se das moças para ajudá-las a se levantar. Cadu com muito sacrifício desarmou Sr. Aníbal. Com cuidado convenceu o senhor a ir para casa e se dispôs a levá-lo em seu automóvel. O velho concordou: -É bom você me levar de carro e já aproveita para levar as roupas dessa infeliz para a casa dessa outra aí... – e apontava para Helena - Já que apoiou essa sem vergonha, então leva ela para casa da sua mãe... Um grupo de rapazes separou os dois jovens. Jorginho estava desmaiado, e por pouco Augusto não o estrangulou ali. O professor de História orientou-o a se retirar. A multidão se desfez. Paulo César percebeu que uma boa parte do belo vestido azul de Helena estava rasgado. Para que os seios da jovem não ficassem expostos, Paulo César a cobriu com sua jaqueta de couro. O professor a conduziu até o veículo abraçando-a, pois estava tão fraca a ponto de não conseguir se sustentar de pé, sozinha. Algumas jovens que estudaram com Helena, ao observarem a confusão, sorriam satisfeitas. No chão, Paulo notou um pequeno pedaço de 197
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tecido e guardou-o em seu bolso. As duas amigas seguiram para a casa de Dona Valquíria no carro de Paulo César. Augusto seguiu logo atrás em seu fusca. Jorginho foi levado para casa por um grupo de amigos. Dona Valquíria quase desmaiou quando viu a filha naquela situação. As jovens sentaram-se no sofá, enquanto Dona Valquíria preparava os curativos. Com dificuldades, Helena banhou-se se apoiando no banheiro. A mãe a ajudou a vestir-se. Augusto e Paulo César aguardavam ao lado de fora. Logo outro veículo chegou ao local. Era Cadu quem saía do interior do carro com um saco de roupas de Ana. Depois de um banho Helena seguiu com dificuldades até o portão de casa para devolver a jaqueta de Paulo. Os três rapazes estavam ali e conversavam sobre o ocorrido. Chegando junto deles, a jovem agradeceu: -Obrigada por vocês nos ajudarem... Se não estivessem lá, não sei o que aconteceria... – disse isso entregando a jaqueta para o professor de História. -Não tem nada o que agradecer – disse Paulo César – Só fizemos nossa obrigação... -Augusto, a Ana quer falar com você... – disse Helena. O moço pegou o saco de roupas que estava com Cadu e dirigiu-se até a casa da jovem. O professor Paulo despediu-se de Helena com um abraço demorado, mas não apertado, pois a moça estava com o corpo dolorido. Despediu-se do colega com um aperto de mão, entrou
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no carro e partiu. No caminho, lembrou-se do pedaço de tecido que encontrara, e o tirou do bolso da calça. Identificou através de três letras pequeninas e negras, MHS, bordadas na parte inferior, que se tratava do lenço branco de Helena. Guardou-o cuidadosamente no porta luvas do veículo e sorriu. Seguiu para casa, pensando em toda a história que Helena lhe contara. Ela era muito criativa. “Inventava cada coisa...” Nesse momento Cadu e Helena estavam sozinhos. A moça estava com vários vergões estampados no pescoço, colo, braços e trazia os cabelos presos num “rabo de cavalo”. As dores em volta do pescoço eram muitas, e dava a impressão de que até o toque dos cabelos nas costas as aumentavam, por isso se encontravam presos. Sem contar, as chibatadas que levara no abdômen, coxas e pernas... Não sabia como teve forças para suportar tudo aquilo. Cadu a olhava com tristeza. Queria abraçá-la, dizer o quanto a amava e levá-la para longe. Se pudesse fugiria com ela para outro estado para viverem juntos. Mas, jamais proporia aquilo. Nunca dormiria em paz ao lado da mulher que um dia o traiu. -Apesar de tudo o que aconteceu entre nós, de você me trair e me abandonar, não consigo sentir raiva de você... -Acho que você não consegue, porque eu nunca o traí – embora as evidências me acusem. -Você nunca confessará sua traição! -Porque eu nunca o traí... -Não sei o porquê tocamos nesse assunto todas as vezes que nos encontramos... 199
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-Quem toca nesse assunto é sempre você... Talvez porque queira enganar a si próprio com falsas esperanças de que não me ama mais... -Eu a amo! E muito... Mas aqui faço um juramento de que tentarei odiá-la para aliviar a minha dor... -Pois quanto a mim, o amor que sinto por você me ajuda a superar minhas dificuldades... Nunca quero odiá-lo... -Você diz isso porque não foi eu quem a traí... Nem foi eu quem a trocou por dinheiro... -Você acredita no que lhe convém... Para você é muito mais simples pensar que sou uma traidora do que acreditar na verdade... -E as fotos que você tirou em São Paulo para fazer propaganda? Você nunca me contou sobre elas... -Não tive tempo... Quando me dei conta, estava noiva e me casaria no mês seguinte... Nem me lembrava delas... -Você é muito linda... Claro que jamais seria minha... Você não é mulher para um homem só... -Beleza não tem nada a ver com dignidade... Você insinua que uma mulher bonita não pode ser honrada? -Existem raras mulheres que são bonitas e honradas... E você não faz parte desse grupo... -Existem homens grosseiros e machistas que julgam pela aparência e são incapazes de decifrar o que se passa no íntimo do coração de uma mulher... Meus parabéns, você faz parte desse time. A moça disse isso com firmeza, virou as costas deixandoo só. Não se despediram com palavras. Despediram-se somente 200
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com o olhar. O olhar de Cadu era de paixão e ódio e o de Helena era frio e indiferente. Estava confusa em seus sentimentos. Seu ódio por Fernando aumentava. Aquelas fotos tiradas naquela maldita noite colocavam em dúvida a sua dignidade. Não era só Cadu que não acreditava mais nela, era Paulo César também. Helena percebeu que não adiantava seu coração alimentar o amor por Cadu, ela tinha problemas demais para resolver e não era mais uma criança que sonha em se casar e viver feliz para sempre. A realidade era muito mais do que reviver sentimentos vãos que talvez não trouxessem nenhum resultado. Precisava com urgência dar um jeito de livrar-se do marido monstro, reconquistar sua liberdade e correr atrás de seus sonhos que já não se resumiam em se casar com Cadu, viver numa casinha simples e ter muitos filhos. Ela queria somente ser livre para viver. Cadu contemplou a jovem que entrava na casa. Precisava esquecê-la, aquele sentimento transformava-se numa doença. De que adiantaria amá-la se ela jamais seria sua? E mesmo se fosse, a desconfiança nunca permitiria que fossem felizes. Infelizmente, seu orgulho era maior do que o amor que sentia por ela. Depois que a jovem entrou, Cadu partiu rumo a uma casa de tolerância. Não tocou em nenhuma mulher do local, apenas bebeu a noite inteira. *** Enquanto isso, Ana chorava nos braços de Augusto: -Entendeu porque eu não aceito o seu pedido? Eu menti para você o tempo inteiro... – falou Ana soluçando.
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-Você mentiu porque sentiu medo, Ana... – respondeu Augusto com ternura. -Acho que estou grávida daquele sujeito, por isso precisava trabalhar... Ele pediu para eu tirar o bebê, foi por isso que fui procurá-lo em sua casa. Não acho certo tirar uma criança... – completava a jovem aos prantos. -E realmente tirar uma criança não é certo mesmo... completava o rapaz ao alisar seus cabelos. -Então menti. Depois daquele dia nunca mais procurei por ele... Estava disposta a cuidar do meu bebê, sozinha... Creio que ele nos viu juntos na escola e sentindo-se despeitado contou tudo ao meu pai... Augusto a abraçava. - Sabe o que penso de você? – disse o rapaz com ar sério para a menina. -Que sou tudo aquilo que meu pai falou?- perguntou Ana soluçando. -Penso que você é uma guerreira... E tudo isso que aconteceu aumentou ainda mais a admiração que sinto por você... Os dois se beijaram e só foram interrompidos com a chegada de Helena na sala. Augusto despediu-se das jovens, mas pediu para conversar com Helena no portão, em particular. No portão, Augusto iniciou a conversa: -Helena, preciso pedir-lhe uma coisa. -Acho que já sei... -Como você sabe? 202
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-Percebi pelo seu olhar, e pela sua mudança de quando o conheci naquela festa... Pela maneira que você tratou minha amiga, do modo como a defendeu... -Eu sei que tive uma grande parcela de culpa ao jogá-la nos braços do Fernando... Eu coloquei a droga em sua bebida, fui eu quem tirou as fotos... -Se você não fizesse isso, outra pessoa faria... -Você não sabe como estou arrependido... Só Deus sabe o que você está passando... -Augusto, eu acredito no seu arrependimento. Fernando é persuasivo, ele consegue fazer as pessoas acreditarem nele... Ainda bem que você acordou... Fico feliz por isso... -Então, você me perdoa? -Claro... Gostaria que você fizesse minha amiga feliz, percebi que vocês se gostam... Augusto sorriu timidamente: -Você é uma mulher sensacional... Espero que seu martírio acabe logo... Helena suspirou: -Eu também espero...
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16. Era uma vez, um bebê
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á era tarde. Todos se recolheram para dormir. Dona Valquíria colocou um colchão de casal na sala para dormir com a filha. A moça ardia em febre. Dona Valquíria fez um chá de erva dipirona para Helena e sobre seus ferimentos passou uma pomada chamada Minâncora. Ana deitou-se na cama de solteiro de Helena. A febre baixou como por encanto, Helena que estava ensopada de suor, acordou, levantou-se com dificuldades e trocou a camisola por outra seca. Percebeu que a mãe e a amiga estavam acordadas e participou da conversa. Ana comentou: -Helena, você é muito doida... Entrar na frente do chicote, por minha causa? -Bem... Não foi exatamente por sua causa... Foi por causa do bebê... Do meu afilhado... Ou afilhada... -Ah... Então quer dizer que se eu não estivesse grávida... -Você ficaria lá sozinha, porque eu fingiria que nem a conheço... Eu até falaria para o Sr. Aníbal bater mais forte... Quer saber? Acho que até pegaria o chicote dele, para ajudá-lo... Imagino que o pobrezinho do seu pai estava com o braço doendo de tanto bater... As amigas não contiveram o sorriso. Ana abraçou a amiga com ternura, dizendo: 205
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- Sabe, Helena...Você fez isso por mim porque sabia que se fosse com você eu faria a mesma coisa... - Adivinhona...- retrucou Helena adormecendo. No dia seguinte, Ana acordou lavada em sangue. Levantou-se assustada, acordou Helena e Dona Valquíria. - O que houve? – perguntava a senhora. - Olhe, mãe, olhe só quanto sangue...Ana, você está sentindo dor? - Não. - Nadinha de dor? -Não. Só uma colicazinha... Bem fraquinha... -Meu Deus! Que será isso? – perguntava Helena impaciente. -O chá! – disse Dona Valquíria – O chá de canela... Soltou o que estava preso... -Quer dizer que eu não estou grávida? – perguntou Ana do banheiro. -Não. – retrucou Helena - Devia deixar seu pai lhe bater, não é? – continuou sem conter o sorriso. -Que pena... – suspirou Ana – Agora que eu estava acostumada com a ideia... *** Helena aprontou-se para partir. Arrumou as malas, despediu-se de Dona Valquíria e de Ana com um abraço demorado. A lembrança de que talvez nunca mais retornasse fazia com que se derramasse em lágrimas. Todas choraram.
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Dona Valquíria – que não sabia de nada do que se passava entre Helena e Fernando – fazia mil e uma recomendações: -Não é porque você está bem casada, com um marido rico, que vai esquecer-se da gente, filha... -Bem casada? A Helena bem casada? – indagava Ana, que só parou de dizer estas palavras depois que Helena fez um sinal para ficar calada, pois não queria que sua mãe soubesse de suas desventuras. Dona Valquíria abraçou a filha ternamente. Afastou-se e agora era Ana quem abraçava a amiga: -Se cuida, Helena. Muito cuidado... -Pode deixar... Cuide de minha mãe para mim... Não sei quando volto. -Pode ficar tranquila que cuidarei de Dona Valquíria sim. Muito obrigada por tudo o que fez por mim... Você é muito mais que uma amiga, mais que uma irmã... -Não precisa agradecer... Você mesma disse essa noite o que eu já sabia: se fosse comigo, com bebê ou sem, você faria a mesma coisa... Despediram-se assim, fazendo juras de que nem o tempo, nem a distância ou as circunstâncias... Nada seria capaz de destruir aquela linda amizade. *** Helena finalmente retornou ao Rio. Pensou em ligar para o motorista ir buscá-la, mas preferiu seguir de ônibus mesmo, só assim levaria mais tempo para chegar. Chegou a casa à noite,
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Fernando não se encontrava. Jaci e Zé receberam-na com um abraço. -O que é isso, Dona Moça? Essas marcas no pescoço, nos braços, no colo... Vixi! Minha Nossa Senhora! Você está toda marcada... O que aconteceu? Helena contou o que houvera no colégio. -Quer dizer que o culpado de tudo isso foi o pai da sua amiga? – perguntou Jaci. -Não. O culpado de tudo isso foi o Jorge... Ex-namorado da Ana... Ele que fez a cabeça do Sr. Aníbal... -Isso não vai prestar... Não quero nem ver a cara do Sr. Fernando quando a vir assim, toda marcada... – suspirou o motorista. -Eu que não queria estar na pele desse tal Jorge... – completou Jaci. -Por que vocês dizem isso? – indagou Helena. -Quando Sr. Fernando souber de tudo isso... Ai, meu Deus... Com o amor que ele tem pela senhora... Eu nem sei do que ele é capaz... – respondeu a empregada - Ele disse que se Dona Moça não viesse hoje, ele ia atrás... O coitadinho fica todo jururu quando chega aqui e não a vê... Helena não segurou um sorriso enviesado. Como era irônico da parte de Jaci dizer que Fernando a amava. Ela própria a via toda marcada das agressões e ouvia por muitas vezes seus gritos sufocados do quarto. Sabia que a empregada sentia um imenso amor pelo Fernando por tê-lo criado como filho e tinha certeza de que acobertava muitas coisas a respeito do rapaz. Ao subir para o quarto, Helena suspirou: 208
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-Ai meu Deus! Só espero que Fernando não faça nenhuma besteira... Vinte e duas horas, Fernando mal entrou em casa, começou seu discurso, aos berros: -Amanhã vou buscá-la! Jaci! Jaci! Cadê essa infeliz que não atende quando chamo... Jaci! A empregada que varria os fundos da mansão, ouviu de longe os berros do patrão. Largou tudo e correu até a sala: -O senhor chamou? -Claro! Arrume minhas malas que amanhã de manhã irei para São Paulo... -O Senhor vai buscar a Dona Moça? -Que pergunta besta, Jaci! É claro que vou! Quem ela pensa que é para ficar quatro dias longe de casa? Ela é uma mulher casada... Bem que eu não devia deixá-la partir... E se... E se ela foi embora? – indagou Fernando esmurrando a mesa da cozinha. – Eu juro que vou matá-la... Fernando estava tão perturbado e falava tão apressadamente que não dava espaço para a empregada lhe contar que a esposa havia chegado. Helena, do quarto, ouvia tudo e dirigiu-se até a sala agradecendo a Deus por chegar a casa naquele dia. -Não precisa matar ninguém, meu Amor... – disse a jovem ironicamente, envolvendo o pescoço do marido com o braço. Fernando sorriu, ao perceber o braço da esposa em volta do seu pescoço. Levantou-se e envolveu-a num beijo prolongado.
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-Não posso deixá-la partir... Essa casa se torna vazia demais sem você... – disse o marido enquanto acariciava os cabelos da moça. “Se estivéssemos a sós, ao invés de acariciálos iria puxá-los como sempre fez em outras ocasiões” pensava Helena. Era incrível como ele a tratava bem na frente dos empregados. – E você Jaci, por que não me disse antes? -Eu tentei, mas... -Mas nada – disse o rapaz interrompendo a fala da empregada, e virando–se para a esposa exclamou estupefato: o que é isso? O que aconteceu? Essas marcas são do quê? Helena contou ao marido tudo o que houve. Ela não mentiria para Fernando, sabia que se inventasse alguma estória ele descobriria com certeza. Fernando não disse uma palavra. Porém, um sentimento de raiva misturado com vingança e ódio espalhou-se em suas veias. Ele que era temido por muitas pessoas, que por muitas vezes matava a sangue frio sem sentir remorsos, nunca ousou fazer aquilo com sua esposa, espancá-la com chibata de marinheiro. E olha que ele era o único que tinha o total direito de corrigi-la, porque ela era sua mulher. “Mas, um estranho? Um borra botas”, que além de tudo estava em dívida com Fernando? O rapaz se recordava que perdoou uma dívida de cocaína e morfina de Jorginho porque ele era amigo de seu primo. E como de quando em quando Fernando ia para Jandira, não queria se envolver em escândalos e perder ainda mais a confiança de tia Marlene, pois sempre pousava em sua casa e tinha o primo Augusto como um irmão. Chegava a hora de 210
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Jorginho lhe pagar a dívida, que eram duas agora. A primeira, do dinheiro que ele surrupiou da droga, provavelmente para comprar o carro, e a segunda por ser o responsável pelo espancamento de Helena. Jorginho não perdia nada por esperar... O casamento de Ana foi marcado para o mês seguinte. Helena não via esperanças de participar de tão esperado evento, quando teve a ideia de colocar a carta da amiga sobre sua cama para que o marido a lesse, como da primeira vez. Deu certo. Fernando leu a carta. Ele sabia que isso era um plano de Helena e pensou em não deixá-la ir. Receava, porém, de proibi-la e para se vingar dele, a moça resolvesse tirar a própria vida, pois tinha descoberto seu ponto fraco. Fernando sabia que Helena não o amava, e que era corajosa suficiente para se matar. Ela demonstrou isso havia alguns dias. Fernando pensou também que com o casamento do primo, surgia uma grande possibilidade de se vingar de Jorginho. Então, resolveu que também iria ao casamento com a desculpa de que resolveria alguns problemas em São Paulo e como não falava mais com o primo, não participaria da cerimônia. Seria bom fazer o “serviço” no dia do casamento de Augusto, porque as pessoas se ocupariam em se aprontar para o evento, e nem notariam a ausência de Jorginho. Em seguida, retornaria ao Rio de Janeiro para acertar seus negócios com o Pingo, que até aquele momento não pagara a dívida. A casa dos pais do rapaz não fora vendida, e Fernando sabia que mesmo recebendo o dinheiro, Pingo não viveria, pois ele conhecia o esconderijo. O plano seria, no retorno de São Paulo, após 211
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receber a importância da venda da casa dos pais de Pingo, liquidá-lo. Fernando pensava também em formar uma Organização de Tráfico de Drogas, com mais homens, mais armas e mais reforços. Ficaria muito mais rico. Para realizar seus planos, deixaria que Helena assistisse à cerimônia e participasse do casamento em São Paulo em companhia dos empregados. Depois de dois ou três dias, executaria Pingo na frente do Capataz e do restante da gangue para que servisse de exemplo aos demais. Seria bom que eles soubessem na prática o que acontece com os mentirosos e traidores. Pingo não era traidor, mas mentiu ao dizer que vendera a mercadoria, sendo que a tinha utilizado tudo com não se sabe quantas pessoas. Cinco quilos de cocaína pura eram muita droga, com certeza o moleque não utilizara sozinho. Se o tivesse feito teria morrido de overdose. Fernando também deixaria recomendações para que a esposa e os empregados voltassem no dia seguinte. Helena recebeu a notícia de que iria ao casamento da amiga, com um pequeno sorriso. Ficaria três dias longe do marido, teria tempo de maquinar seus planos de vingança. Teria possibilidade de refletir melhor numa forma de reconquistar sua liberdade. Era com satisfação que Helena, Jaci e Zé preparavam as malas. -Antes de irmos para São Paulo, vamos dar uma passada no Centro para comprarmos um vestido novo para você e um terno para o Zé, Jaci. -Mas para quê? – perguntava Jaci, inocentemente. -Porque haverá um baile, no casamento... 212
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-Eu nunca fui num baile... Eu nem sei dançar... resmungava a empregada. -Acredito que você e Zé se divertirão muito... – completou a jovem. -E você também... – completou Jaci. Helena respondeu apenas com um olhar indiferente. Mais tarde, no centro de Botafogo, o trio passeava alegremente de loja em loja experimentando roupas e sapatos. *** Junho - 1966 Jorginho não se conformava com a separação. Era com tristeza que via Ana nos braços de Augusto. Sentia falta do calor do corpo e dos ardentes beijos da moça. Como estava arrependido! Se pudesse voltar no tempo... A moça era tão apaixonada que Jorginho nunca imaginou perdê-la. Pensava que a tinha nas palmas das mãos e era com descontentamento que notou a perda. Ana chegava à escola, quando foi surpreendida por Jorginho: -Precisamos conversar... – disse ele. -Não precisamos, não... – retrucou Ana. -Eu sei que fui um irresponsável... Não devia pedir para você tirar o nosso filho... – insistiu o rapaz atrapalhando a moça de prosseguir seu caminho. -Não devia mesmo... Não devia também ter me enganado ao dizer que ia para o trabalho, quando foi se encontrar com a Júlia na área de lazer... Agora é tarde. Saia da minha frente. – disse a jovem alterada. 213
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-Calma, não precisa gritar... Sabe Ana... Eu fui um tolo... Eu só descobri o quanto a amo depois que a perdi... Dê-me uma nova chance? Afinal de contas você espera um filho meu... Quem tem que assumi-lo sou eu, e ninguém mais... -Então... Você resolveu assumir seu filho? -Sim. Quero assumi-los... – respondeu o jovem prontamente. -Resolveu muito tarde... Eu não estou grávida, nunca estive. Passar bem. A menina tentava continuar seu caminho, mas Jorginho não a deixava passar. Queria conversar mais, implorava por mais uma chance... Necessitava de uma nova oportunidade. -Eu vou me casar, Jorge! Daqui a três dias serei uma mulher casada! Você é um PASSADO na minha vida... Um triste PASSADO... -Mas eu amo você! – suplicava o jovem. -Mas eu não o amo mais! – retrucava a jovem seriamente. –Eu o amei, mas acabou no dia em que você me pediu para tirar nosso filho... Acabou ainda mais quando o vi nos braços de outra... Acabou... Jorginho se preparava para agarrar a moça à força quando foi impedido por Cadu, que passava por ali. -Acalme-se, rapaz... Deixe a moça... Deixe-a senão chamarei a polícia... Jorginho afastou-se irritado. Ana entrou na escola agradecendo gentilmente, ao professor. -Que bom que você passava por aqui... Muito obrigada!
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-Não tem nada o que agradecer...- respondeu Cadu com um breve sorriso. -A propósito, você irá ao meu casamento, não irá? -Claro que sim, Ana... Os dois se despediram e cada qual seguiu o seu caminho.
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17. Fernando e o estranho
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omente os ricos tinham telefone naquela época. O da casa de Fernando estava quebrado havia muitos dias, a Telesp arrumava, funcionava bem por aproximadamente um mês, depois quebrava. Ficava mudo por muito tempo. Naquele mês estavam sem telefone e pela manhã ao se prepararem para viajar, Helena percebeu que um homem chamava por Fernando no portão. Jaci atendeu ao moço que aguardava na sala. No momento em que Helena passava por ali, ao cumprimentar o rapaz com um oi, reconheceu-o imediatamente: era o Capataz. Helena seguiu para a cozinha, mas ficou na espreita, para escutar a conversa que ele teria com o marido. Fernando desceu até a sala e chamou-o para conversarem no sótão, discretamente. Helena seguiu-os, e de ponta de pé, pôs-se a escutar atrás da porta. -Nando, tentei ligar, mas não consegui... Sei que você não gosta de acertar as coisas em sua casa, mas precisava conversar com você sobre o Pingo... -E então? Fale... -Os pais dele venderam a casa, e foram morar num barraco numa comunidade. O Pingo vai levar o dinheiro para a
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gente na terça-feira. Hoje é sábado, então você terá dois dias para ficar em São Paulo... -Tudo bem... Será no mesmo horário? -Isso mesmo... Será às nove horas... -Estarei lá, não tome nenhuma decisão sem mim... Os dois se despediram. Helena correu até a sala cautelosamente. Fernando acompanhou o homem ao portão, sem desconfiar que fora espionado por Helena. Já sentada no sofá folheando uma revista, a jovem pensava que estaria em casa na terça-feira para comunicar o endereço do esconderijo secreto de Fernando à polícia. Seu coração acelerava e sutilmente surgia alguma esperança de reconquistar sua liberdade. Dois veículos foram preparados, um para Fernando e outro para os empregados. Fernando deixaria Helena na casa da sogra e seguiria para a capital para resolver seus problemas. Retornaria sozinho, e a esposa com Zé e Jaci. Chegaram à casa de Dona Valquíria no dia da festa. Era vinte de junho. Rapidamente se aprontaram. Saíram apressadamente e por pouco perderam a cerimônia. A mãe de Helena se encontrava na Igreja, quando eles chegaram de viagem. Como sabia que a filha viria, Dona Valquíria deixou a casa aberta. A sorte é que o sermão do Padre Antônio era demorado. A Igreja Católica Central estava muito bonita. Toda enfeitada com flores e repleta de gente. Na frente, o noivo e a noiva ajoelhados ouviam atentamente as palavras do padre. Até que depois de muito tempo ouviu-se “Eu os declaro Marido e Mulher”. Houve um beijo repentino entre os noivos, aplausos e gritos dos convidados 218
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ecoaram na pequena Catedral. Nessa hora, Dona Valquíria levou um tremendo susto e quase caiu do banco que estava sentada, cochilando. Na verdade, quase todos os convidados cochilavam ou conversavam entre si. Ana estava agoniada. Não via a hora de terminar também. Augusto deu um longo abraço na noiva e cochichou em seus ouvidos: -Eu amo você... Ana também cochichou nos ouvidos do noivo: -Preciso fazer xixi... Ainda bem que acabou... Vamos logo, senão faço aqui mesmo... – e arrastando o rapaz pelo braço, completou: Também amo você... Ao sair da Igrejinha, vendo Helena recostada em um dos pilares, Ana não conteve o sorriso e uma lágrima de contentamento. Foi ao encontro da amiga e abraçou-a: -Não acredito que você veio! -Como não viria... Deixe-me lhe apresentar: Essa aqui é a Jaci, minha amiga e esse é o Zé, meu amigo. E o Fernando... Cadê o Fernando? Fernando desapareceu. Quem dera se sumisse para sempre, pensou Helena ao observar Cadu de longe vestido num terno bege. Como estava lindo o rapaz. Usava costeletas e um topete. Se pudesse, se atiraria em seus braços. Diria o quanto o amava e o queria. Sabia que era injustiçada, e que ele jamais a perdoaria. Lembrou-se das duras palavras proferidas por Cadu, que não a feriram suficientemente para deixar de amá-lo. Não. Ao contrário. O amava mais e mais. Sabia que ele falou tudo
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aquilo, porque também estava magoado. O mais difícil era provar sua inocência. Por outro lado, um raio de esperança invadiu seu coração ao relembrar da conversa entre Fernando e o Capataz. Uma vez livre do marido, pensaria numa possibilidade de retomar sua vida e reconquistar o coração de Cadu. Estava envolvida nesses pensamentos quando Ana a puxou pelo braço a convidando para ir até a casa de Dona Marlene, onde seria a recepção. O baile os aguardava. Houve uma carreata que buzinou durante todo o trajeto. Praticamente todos os vizinhos do bairro estavam presentes. No quintal da casa de Augusto, que estava coberto com uma lona preta, havia uma enorme mesa, repleta de comida. Um vizinho doara um “capado assado”, outro dois frangos, uma vizinha fez uma panelada de galinhada e assim sucessivamente. Dona Marlene bem que podia oferecer o banquete sozinha, era rica e dona de um restaurante, mas Ana era tão querida pelos vizinhos que eles contribuíram cada qual dentro de suas condições, para a festa. Sr. Jorge comprou inúmeros engradados de tubaína, a festa corria alegremente. O trio se encontrava na casa de Augusto. Jaci usava uma faixa nos cabelos, que formavam pequenas “molinhas” improvisadas por Helena. Usava um lindo vestido preto com bolinhas brancas e sapato de salto alto. Zé usava um terno cinza e brilhantina nos cabelos grisalhos. Dona Valquíria também estava muito elegante, vestindo um conjunto de saia e blazer xadrez e um chapeuzinho preto na cabeça. Subitamente, 220
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Fernando entrou no quintal dirigindo-se à mesa onde Helena se encontrava com a mãe e os empregados. -Meu Amor, precisamos conversar – disse Fernando sem cumprimentar ninguém - Vou embora agora e amanhã faça o favor de voltar. Preciso retornar, lembrei-me de um compromisso urgente. Helena ouvia atentamente as palavras do marido. Não imaginava o que havia acontecido no Rio de Janeiro, e estremeceu só de pensar na possibilidade da antecipação do trabalho que seria realizado na terça por Fernando e sua gangue. Fernando despediu-se da esposa com um beijo demorado e despedindo–se de Jaci e de Zé em particular, disse: -Fiquem de olho nela... O moço retirou-se. Não disse uma palavra com a sogra. Nem sequer um “Boa Noite”. Virou as costas e partiu. Dona Valquíria pensou com orgulho: “Os ricos são diferentes dos pobres. Não cumprimentam, vivem tão envolvidos com seus negócios... Ainda bem que Helena se casou com um homem rico”... Na saída, o rapaz encontrou-se com a tia. Abraçou-a e deu a mesma desculpa de outrora. Dona Marlene abraçou o sobrinho com ternura, recomendando que se cuidasse. *** Fernando tinha bons motivos para retornar ao Rio de Janeiro. Naquela mesma tarde, enquanto todos assistiam à cerimônia religiosa do casamento de Ana, ele cumpria sua missão, ou seja, se vingava de Jorginho por ser o responsável
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pelo espancamento de Helena, e por utilizar sua amizade com Augusto para lhe dar calotes. Seu plano era esse: Fernando imaginava que Jorginho estaria revoltado pelo casamento de Ana com Augusto, pelas atitudes que havia tomado com relação ao Sr. Aníbal. Então pegou uma arma para presenteá-lo e incentivá-lo a se vingar do primo. Procurou-o pelos bares do bairro e encontrou-o no bar do Caneca. Convidou-o para beber e se sentaram junto à mesa mais reservada do recinto. -Sei que você está muito “macho” pelo casamento da Ana, velho! Por isso, trouxe um presente para você se vingar dos dois... -Não sabia que você estava contra seu primo... – relutou Jorginho. -Nós brigamos por causa da Juliana, lembra? Ele me falou coisas que não queria ouvir... -Sei... Não me diga que a moça... -Morreu. Eu não pude acompanhá-la, pedi para o Augusto porque eu me preparava para o meu casamento... -Entendi... Faz muito tempo... -E também não sou a favor de pessoas que tomam atitudes erradas, e meu primo tomou. Não é certo roubar o broto de um amigo... Olhe, trouxe um presente para você. Vou lhe entregar um embrulho, você entra no banheiro do bar e abre. Veja se gosta. Vou esperá-lo aqui. Se gostar, nós armaremos um plano para acabar com o Augusto. -Muito obrigado... A propósito sei que lhe devo uma grana... 222
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-Sua dívida será perdoada... -Nem sei como agradecer... -Se me ajudar a matar meu primo, terá quitado a dívida... Vou ajudá-lo. Então, pega o embrulho e abra-o no banheiro com cuidado... Veja se gosta... Jorginho pegou o embrulho e seguiu ao banheiro. Enquanto isso, Fernando retirou um pequenino frasco do bolso da camisa e despejou o conteúdo no copo de cerveja do rapaz. Subiu uma fumaça efervescente e logo a bebida retornou ao seu estado primitivo. Minutos depois, Jorginho saiu do banheiro com o embrulho na mão e um sorriso. Agradeceu Fernando mais uma vez e enquanto planejavam tirar a vida de Augusto, brindaram alegremente. Saíram do bar. Fernando acompanhou Jorginho de carro até sua casa, sempre atento ao relógio que trazia no pulso. Sabia que dentro de aproximadamente meia hora o veneno faria efeito. As ruas estavam desertas, todos os poucos moradores do bairro se encontravam na igreja assistindo à cerimônia do casamento de Ana e Augusto. Alguns homens embriagavam-se nos bares da vida. Os veículos foram estacionados. Entraram num cortiço. Com as vistas turvas Jorginho abriu a porta do seu cômodo. Entraram. Subitamente o rapaz sentiu fortes dores no peito e no estômago. Ficou sem fôlego e Fernando pedia para que ele se tranquilizasse. Fernando pegou um lenço que estava no seu bolso e com ele, limpou todos os objetos que tocou. A porta estava trancada a chave por dentro, e para passar a impressão de suicídio, 223
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Fernando jogou o vidrinho vazio de cianureto no chão, ao lado de Jorginho, que gemia. Aos poucos o rapaz parou de respirar, o vidrinho ali daria a impressão de que ele se matou no dia do casamento da ex-namorada. Fernando pegou a pistola que deu para Jorginho, colocoua na cinta, mais uma vez limpou o vidrinho de cianureto com o lenço, levantou-se e pulou a janela, deixando a porta trancada pelo lado interno. Perfeito. Ninguém passava por ali naquela hora. Entrou no carro, deu partida e seguiu sorridente, rumo à cidade maravilhosa. Nove da noite. Fernando no volante seguia para o Rio de Janeiro. Estava satisfeito. Era assim que matava suas vítimas. Não deixava rastro e se quisesse torturar alguém, era o Capataz quem o fazia.
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18. O baile
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baile começou às vinte. Helena trajava um lindo vestido vermelho de crepe, sem mangas e bem decotado. A saia era justa e próxima dos joelhos formava um grande babado, valorizando o belo talhe. Trazia uma faixa branca nos cabelos e usava sapatos de salto alto, da mesma cor. Usava cabelos soltos e cacheados até a altura da cintura, trazia no belo rosto um largo e branco sorriso, falso. Usava lápis forte no contorno dos olhos e um batom vermelho nos lábios. A moça sentou-se e logo vários rapazes aproximaram-se para reservar as próximas danças. Helena não tinha ânimo para dançar com ninguém, até porque era vigiada pelos empregados. E mesmo se estivesse sozinha, seu coração trazia tantas mágoas que só pensava em vingança. Negou todos os pedidos de dança até aquele momento, e suplicava a Deus em seus pensamentos que não houvesse nenhuma alteração nos planos do marido, para que pudesse realizar uma denúncia anônima na terça-feira. Todos os colegas do colégio vieram cumprimentá-la, e com um amargo sorriso procurava dar atenção a todos. De longe observou os professores Cadu e Paulo César, que também a olhavam. O quintal estava repleto. Mesas com cadeiras estavam postas em fila, nas laterais do enorme quintal coberto com lona preta. Havia um grande espaço no meio, e vários casais dançavam alegremente. Ao lado, havia uma enorme piscina. Sr. Tibério se aproximou da mesa da jovem e pediu para se sentar 225
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com eles. Cumprimentou todos os presentes, e a Helena não deixou de dar um abraço. Conversavam animadamente. Helena disfarçava a tristeza. Nesse momento, Cadu dançava com várias moças, sorridente. De quando em quando, um olhar escapava para Helena, e ao perceber que às vezes a jovem o observava, fazia de tudo para demonstrar-se feliz. Helena desejava estar no lugar de todas as moças que dançavam com o professor, mas era inviável. Era vigiada, não sabia até que ponto confiaria em seus empregados. Com Zé, mantinha uma relação de amizade, pois ele até a ensinou dirigir e sempre que dispunha de tempo livre, a ensinava mexer na parte elétrica dos carros e da casa. Muitas vezes, saíam juntos para pescar. Zé gostava da garota como uma filha, mas era muito calado, não tinha capacidade de demonstrar seus sentimentos e era exatamente esse silêncio que trazia insegurança para Helena. Não sabia se poderia confiar nele ou não. Jaci era mais faladeira, sempre a tratou bem, mas dispunha de um amor extremamente maternal pelo patrão. Foi ela quem o criou desde pequenino, então era melhor não confiar. Ao pensar nisso, Helena se desviou dos outros pensamentos e lançou uma pergunta a Jaci: -Jaci, foi você quem criou o Fernando, não foi? -Foi sim Dona Moça... Desde bebezinho... A mãe morreu depois do parto... -Então... Por que você o chama de Sr. Fernando, ao invés de simplesmente Fernando? -Ah, Dona Moça! A senhora conhece bem o Sr. Fernando... Desde pequenininho, ele sabia que eu era a 226
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empregada da casa, e deixou muito bem explicado que como tal, eu deveria chamá-lo de senhor... -Ah, Entendi! Não se esperaria outra coisa dele... -Mas, ele tem um bom coração... – defendeu Jaci. -É... Ele tem sim... – respondia Helena com ironia. Zé sorria timidamente. Admirava as atitudes de Helena e, ainda mais, a sua coragem. Nunca, de todas as moças que passaram por aquela casa, nenhuma respondia o patrão. Somente Helena falava com ele à altura. A menina não tinha medo de apanhar, falava o que sentia. Violento como o Sr. Fernando era, se ela respondesse ou não, apanharia de qualquer jeito. Por diversas vezes, ao passar pelo corredor do terceiro andar, escutou as discussões dos dois, detrás da porta. Tinha muita pena de Helena, mas uma enorme admiração também. Era com alegria, que muitas vezes observava no dia seguinte, depois de alguma briga, marcas de “revanche” no patrão. Rezava todas as noites para que Deus ajudasse a jovem a se libertar do marido. Jaci, ao escutar as brigas, também rezava. Não se sabia se ela pedia a favor da moça, ou para que Sr. Fernando maneirasse com a violência para não passar a vida na cadeia. Um gracioso menino, vestido a rigor com um terno azul claro, seguiu em direção à mesa onde Helena se encontrava estalando-lhe um beijo na face. Era Pedrinho, que gentilmente convidou Helena para uma dança. A moça aceitou segurando a mãozinha do garoto. Helena e Pedrinho dançavam “I want to Hold your Hand” dos Beattles. Os rapazes que se ofereceram para dançar
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com a jovem anteriormente foram vaiados por algumas garotas que diziam: -Nossa! Perderam para um garotinho... Pedrinho e Helena dançavam tão bem, que logo o espaço foi liberado para os dois. Pedrinho era um encanto. Ali vestido a rigor, com porte de um adulto, não tinha ninguém que não admirasse o encanto daquela criança de oito anos. Sr. Tibério conversava alegremente com Dona Valquíria, Jaci e Zé. Contava os “causos” de quando era jovem, dos dois casamentos que teve, enfim. Jaci se encantou com o simpático senhor que logo a convidou para dançar também. Agora era uma linda valsa que soava no quintal coberto de lona. Helena mal sentou-se, Pedrinho entregou-lhe um papelzinho e uma caneta. Estava escrito assim: “Seu marido está com você?” Helena que reconheceu a caligrafia, respondeu no papelzinho: “Não”. E entregou o papel para o garoto que o devolveu ao dono. Depois, o menino voltou com o mesmo papelzinho em mãos escrito assim: “Me concede a honra da próxima dança?” Antes de dar a resposta à moça, perguntou para Pedrinho quem era que lhe mandava os recados, somente para confirmar suas suspeitas. O garoto apontou para a mesa lateral onde havia um elegante rapaz que trajava um terno preto, que os acompanhava com o olhar. Era Paulo César. Antes de dar a resposta, Helena olhou para Jaci e Zé. Os dois como se adivinhassem os pensamentos da menina, disseram quase ao mesmo tempo: -Vai.
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-Fique tranquila Dona Moça. Não estamos aqui – completou a empregada. Helena escreveu então no papelzinho: “Sim”. O menino devolveu-o. Dali a alguns instantes, Paulo César aproximou-se da jovem e a tirou para dançar. Nesse momento, a noiva chegou. Após a entrada, todos dançavam a “Valsa dos Namorados”. Ana estava linda. Vestia um belo vestido branco, todo bordado. O colo estava à mostra, a covinha entre os seios realçava ainda mais a beleza da jovem noiva. Usava uma linda coroa brilhante que era realçada com a franja que escorria suavemente sobre a testa. Parecia uma princesa. A festa seguia tranquilamente. Paulo César dançava como ninguém. Carlos Eduardo observava o amigo e sua ex-namorada, com uma ponta de inveja. Helena, nos braços do amigo, não queria retornar para a realidade. -Seu marido é mesmo louco de deixá-la sozinha numa festa... -Eu não estou sozinha, Paulo... Tenho um motorista e uma empregada me vigiando... -Será que seu marido não ficará irritado quando souber que dançamos? -Claro que não... Se ele fizesse tanta questão, ficaria comigo no baile... Ou me levaria com ele para o Rio... -É verdade... Por que ele não ficou? -Tem negócios no Rio. -E por que ele a deixou aqui? -Talvez porque tenha medo de me contrariar... Acho que ficou com medo de que eu tire minha vida... – Helena deixou 229
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escapar um sorriso, ao recordar que foi dessa maneira que Fernando a deixou visitar o pai, pela primeira vez. -Não entendi... -Paulo, afinal de contas, você dançará comigo ou fará uma investigação sobre minha vida? -Desculpe... -Tudo bem... -Senti sua falta...- disse Paulo acariciando os cabelos da jovem, discretamente. -Você está muito bem acompanhado com o Cadu... Como diz minha mãe: Vão os anéis ficam-se os dedos... -Como você sabe que o Cadu e eu somos amigos? -Percebi... Ana também me contou quando vim para cá a primeira vez... -Você é bem intuitiva... E sua amiga uma “Fifi” -É... -Mas, confesso que prefiro muito mais a sua companhia que a dele... Helena sorriu. Ela preferia qualquer companhia desde que não fosse a de seu marido. -Também sinto sua falta, Paulo... Você se lembra de quando eu era criança, você me defendia dos moleques mal intencionados? -Lembro... Você era bem perseguida pelo sexo oposto... E não era só dos moleques que eu a defendia... Era de tudo e de todos... Eu era seu protetor... -É verdade... Sinto sua falta, sabia? -Só a minha? 230
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-Não. Sinto falta do Cadu também... Pelo menos você encontrou alguém para proteger... Parece que vocês se dão muito bem... -O Cadu é um bom camarada... A gente se aproximou por causa de algumas reuniões... -Referente ao Movimento Social? -Sim... Mas confesso que prefiro muito mais proteger você, que é uma mulher delicada e sensível, do que Cadu que é um homem barbado... Eles sorriram. Paulo continuou: -E você é feliz com Fernando? -Já lhe contei que nunca estive feliz... -Você ainda insiste naquela história de que foi forçada? -E pelo jeito, você insiste em não acreditar... Acho que você está andando demais com o Cadu... Ele deve fazer sua cabeça... -Não. Eu simplesmente não consigo acreditar... -O que eu ganharia mentindo para você? -Talvez, fosse uma maneira de não manchar sua reputação de “boa moça”... Entenda, dizer que você foi obrigada a se casar com o “Bacana” soa muito melhor do que falar que se casou com ele por dinheiro. -Então você também acha que inventei aquela história, para me vender? Ora, ora... Acho que você não me conhece... -Sinceramente, acredito que sim... Ainda mais depois das fotos... -O Cadu mostrou aquelas malditas fotos para você? -Sim... 231
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-Bem... Então não sou eu quem vai provar-lhe o contrário. São as minhas palavras contra as circunstâncias e, no momento, as circunstâncias são mais elementares. O melhor é dançar, somente dançar, porque esse assunto me aborrece... Não trocaram mais palavras. Simplesmente dançaram quase a festa inteira. Jaci também dançava animadamente com Sr. Tibério. Mais pisava nos pés do senhor, do que dançava. Sr. Tibério sorria. Zé dançava com Dona Valquíria. A festa só terminou às duas da manhã, quando começou uma forte chuva, acompanhada de raios e trovões, e as luzes da casa falharam. A dança terminou. Paulo César e Helena não trocaram palavras. A jovem pôde ser feliz por alguns momentos, queria que aquela noite fosse eterna. Não queria voltar para o Rio, mas sabia que tinha que voltar. Seu tempo em Jandira terminava. Paulo também estava feliz ao vê-la. Dançar com sua doce amiga foi para ele um grande presente. Dispensou outras jovens que eram solteiras para dançar exclusivamente com sua amiga casada, pois sabia que não seria possível vê-la sempre. Carlos Eduardo estava irritado com Paulo César. Não imaginava que seu amigo acompanhasse sua exnamorada e inimiga a festa inteira dançando. Tinha inveja, raiva e ciúmes. Em sua cabeça, somente uma mulher sem caráter algum aproveitaria a ausência do marido para dançar com outros homens. A festa acabou. Paulo César despediu-se de Helena com um abraço apertado e um demorado beijo na boca. Ao se desprender do amigo, Helena protestava baixinho: 232
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-Que é isso, Paulo? Você é meu amigo, esqueceu? E eu sou uma mulher casada... -E se fosse o Cadu, será que você pensaria assim? – indagou Paulo com malícia. Helena demonstrou sua decepção com as palavras do seu amigo, através do olhar. Paulo César arrependeu-se do que falara no mesmo instante e acariciando seus cabelos, pediu perdão: -Me perdoe, Helena... Eu não devia ter dito isso... Você me perdoa pelo que lhe falei? Helena respondeu com o silêncio, algumas lágrimas rolaram de seus olhos. A dor daquelas palavras penetrou sua alma. Nem a violência que sofria com o marido lhe arrancava lágrimas, mas aquelas palavras a machucaram profundamente. Então esse era o julgamento que Paulo César tinha dela? Que Cadu a odiasse, era aceito. Ele também foi vítima das atitudes de Fernando. Mas seu próprio amigo? A pessoa com quem manteve uma amizade verdadeira desde que ela tinha dez anos de idade, ela ainda uma criança e ele já homem adulto... Então era esse o juízo que seu melhor amigo fazia dela. Ou seja, para ele também, ela não passava de uma vadia. Paulo ficou desconcertado, não sabia o que dizer. A moça afastou-se deixando - o só. Ele tentou alcançá-la, mas como não sabia qual era a melhor atitude a tomar, nem o que dizer, deixou-a ir. Helena enxugava as lágrimas com as costas das mãos, seguindo em direção à saída. Já havia perdido sua mãe, Jaci e Zé de vista.
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Pensou que eles estivessem na rua. Despediu-se rapidamente de Augusto e de Ana e dirigiu-se até a grande garagem, que era coberta. Foi surpreendida por um homem que tentava alcançá-la. Pensou ser Paulo César, mas quando virouse deparou com Cadu que a beijou demoradamente. Helena sabia que não deveria, mas não teve forças para recusar. Entregou-se ao beijo do rapaz, lembrando que seu amigo Paulo César tinha razão. Quando o beijo terminou, Cadu disse: -O que se poderia esperar de uma mulher casada? Ora, ora, ora... Vejo que se eu quisesse me vingar do seu marido, teria uma grande oportunidade... -Quem me beijou foi você... -E você aceitou... – Cadu trazia um sorriso irônico na face. Helena provou que Paulo César estava certo ao aceitar o beijo de Cadu, e depois daquelas palavras proferidas por ele, sentiu-se indigna, suja e sem moral. Talvez eles estivessem certos. Irritada consigo mesma respondeu a altura: -O que você queria que eu fizesse? Isso? – completou esbofeteando o rosto do professor. Carlos Eduardo levantou o braço para devolver o golpe, mas não teve coragem de ir adiante. A jovem o encarou com uma seriedade que o fez estremecer. Não trocaram mais palavras. A moça, magoada com as palavras dos dois professores, retirou-se do estacionamento, na chuva mesmo. A água cobria o corpo da menina e o vestido que era justo, ficou completamente colado marcando ainda mais as belas curvas. 234
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Carlos Eduardo a contemplava trêmulo. A jovem também era observada com o olhar triste de Paulo César, que ao segui-la, flagrou o beijo dado por Cadu. “Eu estava certo”, pensava. “Helena ama Cadu, mas casou-se com Fernando por dinheiro. Quanto a mim não resta nada, a não ser guardar meus sentimentos e rezar para que ela seja feliz. Seguirei meu caminho, sozinho.” Cadu pensava no quanto foi longe em sua tentativa de vingança. O coração do moço estava acelerado. Queria seguir a garota e beijá-la novamente na chuva. Queria perdoá-la, fugir com ela e nunca mais voltar. Seu orgulho, no entanto, jamais permitiria aquilo. Era extremamente orgulhoso para perdoar uma traição. Do lado de fora, Helena tremia de frio. Zé, vendo de longe que a jovem seguia para fora da garagem, tratou de acompanhá-la com o carro, para que não se molhasse muito. O veículo estacionou ao lado da jovem, que entrou rapidamente. -Dona Moça, não dava para esperar mais um pouquinho enquanto o Zé manobrava? Olhe só você toda ensopada... – disse Jaci repreendendo a jovem docemente. -Vai ficar resfriada... – Completou Dona Valquíria. Helena não falou uma só palavra até chegar à casa de sua mãe. Estava muito chateada com Cadu, com Paulo e consigo mesma. Pensava que depois de tudo que estava passando com Fernando, fosse uma mulher forte, nunca imaginou que algumas simples palavras pudessem machucá-la tanto. Contudo, Paulo 235
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estava certo. Ela recusou seu beijo e aceitou o de Cadu, e se tivesse outra oportunidade aceitaria novamente. “Realmente, não tenho moral e não me portei como uma mulher casada. Minha atitude somente comprovou o que Cadu e Paulo pensam de mim”, pensava Helena. Cadu sentiu-se feliz pelo beijo e pelas palavras que dissera a Helena. Sentia-se aliviado quando percebeu que conseguiu feri-la de algum modo. Sentia-se vingado. Tentava enganar a si próprio, impondo ao seu coração que não amava mais aquela moça. Porém, todas as noites como de costume, Helena aparecia em seus sonhos invadindo seus pensamentos. Seu coração já pertencia a ela e ele tentava inutilmente odiá-la. Percebeu que a única forma de esquecê-la seria amar outra pessoa. Começou então, pela milésima vez, procurar sua alma gêmea.
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19. Em busca da Vingança
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o dia seguinte, pela manhã, o trio partia rumo ao Rio. Novas despedidas, novas lágrimas. Ana viajou com Augusto. Antes de partir, prometeu para Helena que cuidaria de Dona Valquíria. Dona Anita – mãe de Ana – não foi ao casamento da filha porque seu Aníbal não permitira. O pai não falava mais com Ana e proibiu a esposa de fazê-lo. A moça, por sua vez, fazia de tudo para se reconciliar com a família, em vão. O pai ameaçou por diversas vezes que se a jovem se aproximasse do portão de sua casa, apanharia novamente. Ana mantinha contato somente com suas duas irmãs: Maria e Socorro. Helena, Zé e Jaci chegaram a casa na segunda-feira pela manhã. O dia passou tranquilamente, Fernando não estava em casa. Por volta das onze da noite Fernando chegou, jantou e dirigiu-se para o quarto. Helena dormia. Fernando tomou um banho e antes de dormir acordou a mulher com um safanão: -Acorda, Vadia! Esqueceu que nós temos um assunto para tratar? Choveu a noite inteira. *** Terça-feira, seis horas da manhã, Fernando levantou-se apressado. Helena fingiu que dormia e observava atentamente os 237
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passos do marido. Precisava certificar-se de que ele iria realmente para o esconderijo, para depois chamar a policia. Não sabia se o motivo pelo qual Fernando retornou para o Rio, apressadamente tinha a ver com alguma alteração dos planos para aquela manhã de terça. Ouviu o ruído do veículo do marido se distanciar. Fernando partiu. Helena levantou-se em seguida. Desceu até a sala e tirou o telefone do gancho para se certificar se estava funcionando. Precisaria do telefone para as nove horas, horário combinado entre Fernando e o Capataz. Foi com uma ponta de decepção que a moça percebeu que estava mudo. Ligaria de um telefone público. Seu plano não poderia falhar, seguiria até o fim naquela empreitada. Lembrou-se da violência que sofrera na noite anterior, e em seus pensamentos a única frase que prevalecia enquanto era vítima de abusos era: “Você me paga...” Jurou para si mesma, que aquela seria a última vez que passaria por tudo aquilo. Se tudo desse errado, tomaria cianureto. Era melhor morrer do que viver naquelas condições. Subiu para o quarto, entrou no banheiro. Contemplou seu rosto no espelho. Era realmente muito bonita. Não foi à toa que fora abordada por Edith Fontana para tirar algumas fotos de marketing para algumas empresas. Lembrou-se do quanto o dinheiro que recebeu foi abençoado. Os remédios de seu pai foram comprados e a dívida do armazém, paga. Lavou o rosto, retirando uma casquinha de sangue seco que se formou no canto da fronte. Havia um corte feito por Fernando em sua testa, talvez fosse o milésimo feito justamente ali. Pensou que, provavelmente ficaria uma marca 238
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para sempre. Observou seu colo que ainda trazia algumas marcas das chibatas de Sr. Aníbal. Aquelas marcas, no pescoço e no colo, assim como as das pernas e das costas, talvez nunca mais desaparecessem. Estavam bem claras, mas ainda, olhando de perto, eram perceptíveis. Não suportaria aguardar até às nove horas para ligar para a polícia. Estava ansiosa e agoniada. Sete horas. Uma garoa fina caía acompanhada de um forte vento. Helena resolveu seguir para o esconderijo para se certificar de que o marido e a gangue estavam realmente lá. Vestiu uma saia cinza na altura dos joelhos e um casaco preto, de tecido grosso. Por baixo, vestiu uma meia de lã preta. Calçou botas pretas, colocou uma faixa preta no cabelo. O frio era intenso. Jaci e Zé estavam de pé. A moça pegou as chaves do carro, para sair. -Aonde você vai, Dona Moça? -Vou para o curso de Inglês... Talvez chegue somente à tarde... -Quer que eu a leve? – perguntou Zé. -Não. Pode deixar que irei sozinha... Até mais. Dirigiu-se à garagem, no seu esconderijo secreto. Pegou uma caixa de isopor, abriu-a e retirou dois vidrinhos: um de cianureto e outro de clorofórmio. Pegou as duas armas, uma pistola e um canivete, colocou dentro da bolsa. Abriu o cadilac azul, entrou, deu a partida e seguiu rumo ao esconderijo de Fernando. Zé levantou-se em seguida, pegou as chaves do cadilac preto e saiu de casa, seguindo a moça. Jaci perguntou para onde ele ia, mas ficou sem resposta. 239
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Helena saiu da cidade maravilhosa, pegou a BR 040, rodou duas horas, a pista estava molhada, o trânsito era intenso. Entrou na primeira travessa à esquerda, numa rua de terra. Estacionou o carro e certificou-se de que por ali, havia marcas de pneus. Não percebeu que Zé a seguia. Entrou no veículo novamente e prosseguiu. Uma hora depois, chegou no “ninho das árvores”, onde deixou o carro pela primeira vez. As folhas estavam molhadas, mas deu um ótimo esconderijo. Ninguém que passasse por lá enxergaria o veículo. A moça desceu do carro e logo se decepcionou com uma poça de lama que sujou suas botas. Com cautela, saiu do meio das árvores, separando as folhas cuidadosamente. Andou por detrás das árvores na ruazinha de terra. Chegou até a chácara e com decepção, percebeu que não havia nenhum veículo por ali. Abriu o portão de madeira com cuidado. A casa estava fechada. Rodeou a casa sem esperanças, até chegar à janela onde escutou toda a conversa da quadrilha, pela primeira vez. Espiou pela mesma brecha. Seu coração acelerou quando viu Pingo amarrado numa cadeira, desfalecido. Não dava para identificar se estava morto ou não. Não havia sinal de vida por ali, a casa estava vazia. Helena forçou a janela, abriu e entrou no quarto. Colocou os dedos sobre o pulso de Pingo, sentiu que ele vivia. Chamou-o: -Acorda, rapaz! Acorda! O moço levantou a cabeça ensanguentada. Helena com a ajuda do canivete que trazia na bolsa, o soltou. Em cima da mesa, havia um envelope com dinheiro. A moça perguntou: -Esse dinheiro é o da venda da casa dos seus pais? 240
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O rapaz assentiu com a cabeça. Como que ela sabia? Helena pegou o envelope cheio de dinheiro, pulou a janela e ajudou o moço a pular também. Tirou a faixa de seus cabelos, para limpar suas impressões digitais dos frasquinhos de clorofórmio e cianureto com a finalidade de jogá-los ali. Quando os homens de Fernando chegassem por lá, não encontrando o dinheiro e vendo os vidrinhos de veneno, que só eram utilizados por Fernando, pensariam que ele os roubou. Seria uma ótima maneira de colocá-los contra ele. A moça pensava nisso do lado de fora, enquanto limpava suas impressões. Subitamente ouviu um ruído de motor. Ficou apreensiva. Silêncio. Na hora que colocou o rosto por detrás da parede do fundo da casa, para expiar quem era, foi surpreendida por um golpe na cabeça. Caiu, segurando os vidrinhos. O susto foi maior que a dor. Helena foi surpreendida por Bigode, que segurava um pedaço de madeira. O ruído de motor pertencia ao fusca amarelo de Pingo, que estava com Bigode. A moça levantou-se rapidamente e correu em derredor da casa, somente para ganhar tempo de abrir a bolsa. O rapaz a perseguiu com o pedaço de madeira. Helena abriu e retirou a pistola. Virou-se repentinamente, agitando a arma em direção ao rapaz. Pingo correu com dificuldades e ao perceber que não chegaria muito longe, apoiou-se no portão, esgotado. -Muito bem... Solte a madeira... Bigode obedeceu. A moça falava com firmeza. -Abra a porta da casa. O rapaz abriu. Entraram na casa. -Vire de costas para lá... 241
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O moço virou as costas em direção ao banheiro, Helena abriu a geladeira que estava na cozinha, sempre “de olho” em Bigode. Rapidamente pegou uma garrafa de cerveja, abriu-a e a colocou num copo. -Não olhe para cá, senão você morre... O rapaz obedeceu. A moça abriu o vidrinho de clorofórmio e despejou-o no copo de cerveja. -Olhe para mim, agora... O moço virou-se e olhou para ela. Percebeu que a garota estava com uma pistola na mão e na outra trazia um copo de cerveja. -Beba a cerveja... Agora!... Aqui contém um sonífero, você dormira enquanto eu fujo... Se não beber, serei obrigada a liquidá-lo... O rapaz bebeu prontamente. -Agora sente-se no lugar que Pingo estava e me dê às chaves da casa... -Estão na porta... -Muito bem... Ficarei aqui mais quinze minutos para aguardar o efeito do sonífero. Percebi que o banheiro tem tranca por fora... Depois você entrará no banheiro... Quinze minutos depois, o rapaz entrou no banheiro, sonolento. Helena o trancou pelo lado de fora. Perto da cadeira onde Pingo estava sentado, a moça jogou o vidrinho de clorofórmio. Usou a faixa para limpar os lugares aonde encostou as mãos: na geladeira, na cerveja, no copo e na fechadura da porta, após trancá-la. Rodeou a casa e pegou o envelope com o dinheiro que deixara cair no momento em que foi surpreendida 242
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por Bigode. Seguiu até o portão da chácara, ajudando Pingo a se locomover. Colocou o braço do rapaz sobre seu ombro e seguiu até o local, onde o cadilac azul se encontrava. Pingo andava com dificuldade. Meia hora depois, estavam no veículo. Helena deu partida e desesperada percebeu que o carro estava atolado numa poça de lama. Subitamente, alguém bateu no vidro. Helena empunhou o revólver. Ao virar percebeu que Zé a observava do lado de fora, com os sapatos atolados no barro. Helena guardou a arma na bolsa. -Você precisa de ajuda? – perguntou o motorista. – Venha para meu carro... Rápido antes que chegue companhia... -Você me seguiu? – perguntou Helena surpresa. -Sim... Acho que fiz bem... Zé abriu a porta do passageiro e ajudou Pingo a caminhar. O cadilac preto estava estacionado adiante. Entraram no veículo, Zé manobrou-o e partiu. -Para onde iremos, senhorita? – indagou o motorista com um pequeno sorriso. -Para algum lugar seguro por aqui mesmo... Preciso aguardar a quadrilha de Fernando chegar por aqui, antes de ligar para a polícia. Helena estava trêmula, o coração acelerado, mas feliz por Zé aparecer na hora certa. Zé encontrou outro beco de árvores por ali, certificou-se de que não havia lama e escondeu o veículo entre as folhas das árvores. Helena desceu do carro e seguiu a pé, até próximo da trilha do esconderijo de Fernando. Ficou ali escondida no meio das árvores e do barranco, parada por aproximadamente quinze 243
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minutos, quando ouviu barulho de motor. Era o veículo do Capataz que passava por ela. Aguardou o carro de Fernando passar, em vão. Provavelmente, ele seguiria para lá mais tarde. Agora, era hora de partir. Só esperava não encontrar o marido no meio do caminho. Duas horas depois, o cadilac preto estava na BR 040. Zé fez o retorno, parou num posto de gasolina para abastecer. No posto havia um telefone público. Helena ligou para a polícia, indicando o lugar em que se encontravam armas e drogas. Esperava que no momento em que a polícia chegasse, Fernando estivesse junto com os colegas para ser preso. Na estrada, Helena perguntou para Pingo, onde ele morava: -No morro da Rocinha... – suspirou o rapaz. -Conte-me o que aconteceu. Onde está Fernando? -Eles marcaram comigo às nove horas... Cheguei no horário, me bateram bastante. Disseram que iam me matar. Saíram do esconderijo com uma pá e uma inchada. Falaram que cavariam minha cova e logo me buscariam... -Quem saiu para cavar sua cova? -Fernando, o Capataz e o Bigode... -E os outros? -Não vieram... Acho que o dinheiro seria repartido somente entre os três... -Quer dizer então que Bigode veio buscá-lo para levá-lo a cova... Ainda bem que ele estava sozinho... -É verdade...
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-Vamos até sua casa levar você e sua família até a Rodoviária... Vocês não poderão ficar por aqui, nem mais um minuto... O rapaz assentiu com a cabeça. Três horas depois, estavam no morro. Pingo, sua irmã e seus pais entraram no veículo. Quarenta minutos depois, estavam na Rodoviária. Helena entregou o envelope com o dinheiro para a mãe de Pingo, que chorava emocionada. Helena entrou no carro e com Zé, retornou para casa. Eram dezesseis horas quando Helena e Zé chegaram. Zé estacionou o veículo cuidadosamente, o carro de Fernando não estava ali. Helena subiu até seu quarto, juntou algumas roupas colocou numa mala. Pegou seus documentos. Zé fez a mesma coisa. Jaci perguntou o que acontecia. -Lembra-se daquela vez que lhe falei que chegaria o dia que você deveria decidir, de qual lado ficaria? Então, Jaci... Esse dia chegou. Se quiser me acompanhar, venha. Senão, Adeus. A moça disse isso, virando-se para partir. Zé a aguardava no carro. -Espere, Dona Moça... Eu vou com vocês... A empregada juntou algumas roupas e entrou no carro. O veículo partiu. No caminho, Zé encheu o tanque novamente, em um posto. Helena e Zé ficaram o dia inteiro sem comer, a fome era intensa. Alimentaram-se numa lanchonete de conveniência, Jaci estava sem fome. Helena agora maquinava outro plano. Precisava tirar sua mãe de casa, sabia que mais cedo ou mais tarde, se a polícia não o prendesse, Fernando apareceria por lá, atrás dela. 245
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20. Encurralados
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aquela terça, houve revoltas dos estudantes de graduação e entre esses movimentos, Cadu e Paulo César estavam presentes. Por volta das oito da manhã, um grupo de alunos exibia uma peça de Teatro com a intenção de demonstrar para o público os horrores da ditadura. Alunos e professores da USP foram surpreendidos por policiais armados. Muitos apanharam violentamente e outros foram presos e torturados. Cadu e Paulo César apanharam ao ponto de desfalecer. Quando foram largados após o massacre, Paulo César sussurrou com a boca encostada no ouvido de seu amigo. Ambos estavam deitados no chão. Uma chuva se aproximava. -Cadu, está me ouvindo? -Sim... – respondeu o amigo com dificuldades. - Sinto uma dor aqui dentro... Acho que vou morrer... -Não vai, não... Vamos sair daqui. - sussurrou Paulo. Olharam ao redor, estavam cercados por algumas pessoas desmaiadas ou mortas. Não reconheceram ninguém e economizando o resto de forças que tinham rastejaram-se para sair dali o quanto antes. Depararam-se com uma cerca, passaram por debaixo. Com esforço apoiaram-se um no outro, e escorando nas árvores, andaram dificultosamente por aproximadamente quatro horas. 247
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Estavam perdidos. Encontraram no trajeto um lago com água barrenta. Beberam, descansaram por meia hora e colocaram-se a andar. -Temos que continuar antes que escureça... – disse Cadu. -Escute... – falou Paulo César – estou ouvindo ruído de veículos naquela direção... Seguiram em direção ao ruído e enxergaram a Rodovia. Chegaram ao asfalto e sem forças para prosseguir, caíram desfalecidos. No dia seguinte, Paulo César acordou num lugar estranho. As vistas turvas clarearam e percebeu-se num hospital. Cadu estava na cama ao lado. Sentiu-se aliviado. Não sabia como chegaram ali. Tinha uma enorme necessidade de sair daquele lugar e retornar para casa. -Paulo, vamos à minha casa? Não quero ficar aqui... Tenho medo que a polícia nos encontre... -Vamos. Levantaram-se e vestiram suas roupas que estavam sobre uma mesinha. As roupas estavam sujas de lama e sangue. Paulo César verificou que ainda restavam uns trocados em sua carteira. Era o suficiente para voltarem para Jandira até a casa de Cadu. Felizmente, o quarto em que se encontravam era o térreo. A enfermeira acabara de passar por ali. Pularam a janela e fugiram. Pegaram três conduções para chegar até a cidadezinha. No cômodo onde Cadu morava, Paulo César tomou um banho e pegou roupa limpa emprestada do colega. Os dois estavam exaustos. Comeram pão com ovos fritos e esgotados, adormeceram. 248
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*** O Capataz chegou à chácara irritado com a demora de Bigode. Deixou Fernando vigiando o local e foi até a velha casa buscar Pingo. Ao chegar foi surpreendido pela porta trancada. Chamou por diversas vezes, ninguém atendeu. Arrombou a porta com um chute. Pingo não estava mais ali. A porta do banheiro estava trancada. Chamou, ninguém respondeu. Percebeu furioso que o envelope de dinheiro não estava sobre a mesa. Arrombou a porta do banheiro, Bigode estava desmaiado no chão. No cômodo onde Pingo estava amarrado havia um vidrinho de clorofórmio. Se Fernando não estivesse com ele imaginaria que fosse responsável por aquilo. Somente ele usava clorofórmio e cianureto em suas atividades criminais. Abriu a porta do outro cômodo que estava trancada a chave para verificar se toda a mercadoria ainda estava lá. Conferiu. Todo o armamento e as sacas de cocaína estavam intactos. Preparou-se para sair. Ao trancar a porta foi surpreendido por quatro viaturas policiais. Foi preso por porte ilegal de armas, tráfico de drogas e tentativa de homicídio. Quem estava à frente da operação era o comandante Perez, um sujeito quarentão, extremamente violento. O Capataz foi torturado até entregar todos os integrantes da quadrilha. -E esse vidro de clorofórmio, pertence a quem? A você? Com o rosto banhado em sangue, o Capataz revelou que pertencia ao Fernando e onde ele se encontrava. A polícia 249
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chegou ao local indicado pelo Capataz, mas Fernando não estava mais ali. Havia somente uma cova aberta, uma pá e uma inchada. Fernando suspeitou da demora do Capataz e fugiu ao perceber que alguma coisa não estava bem. Trazia uma arma na cinta com seis balas e dois vidrinhos de cianureto. Ao passar em frente sua casa notou que a polícia também estava por lá. A garagem estava escancarada, o cadilac azul e o preto não se encontravam. Isso só significava uma coisa: Sua mulher fugira para São Paulo. Fernando passou na comunidade onde Pingo morava para verificar se encontrava pistas. Chamou, mas ninguém atendeu. Arrombou a porta, encontrou alguns móveis velhos. A casa estava abandonada. Fernando não entendeu muito bem o que acontecia, mas sabia que a polícia estava à sua procura. Dirigiu-se então para São Paulo para recuperar sua esposa e dar um jeito de ficarem juntos para sempre. Perdeu tudo, estava encurralado. A única coisa que tinha de valor e por que valia a pena lutar era sua mulher. Quarta-feira de manhã. O cadilac preto estacionou em frente à casa de Dona Valquíria. Ana acabava de voltar de viagem e estava por ali, conversando com a senhora. Helena chegou subitamente, mal teve tempo de cumprimentar Ana... Foi logo dizendo: -Precisamos sair daqui, mãe. Pegue seus documentos se der tempo, senão vamos assim mesmo... -O que está acontecendo? – perguntou Ana. 250
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-Acho que Fernando chegará aqui a qualquer momento... Vou pedir o apartamento do Paulo César emprestado por algum tempo, até a poeira baixar... Em rápidas palavras, Helena contou tudo o que aconteceu. Todos saíram apressadamente da casa. Ana pegou o fusca branco de Augusto e acompanhou-os até a escola. Paulo César ainda não havia chegado. Zé, Jaci, Dona Valquíria, Ana e Helena aguardavam no estacionamento. Ana acalmava Helena: -Calma Helena... Provavelmente, ele está preso... -E se não estiver, Ana? Não quero colocar minha mãe em perigo... Olhe, eu não terei tempo de conversar com o Cadu, mas é melhor você orientá-lo a fugir também... Não sei o que será de mim, se alguma coisa acontecer com ele... -Você precisa se acalmar... Aposto que Fernando foi preso a uma hora dessas... -Tenho um pressentimento horrível, Ana... Ana abraçou Helena carinhosamente. Três horas depois, Cadu e Paulo César chegaram ao estacionamento da escola. Paulo César mal abriu a porta do carro, foi surpreendido por Helena, que estava apressada em lhe falar. -Paulo, o Fernando está atrás de mim e poderá me matar a qualquer momento... -O quê? Como você sabe disso? O que está acontecendo? -Não sei... Sinto um aperto aqui dentro... – a moça apontava para o coração – Escute, eu denunciei a quadrilha de Fernando para a polícia, mas acredito que ele não foi preso... Quando saí do esconderijo dele, somente um capanga estava lá... 251
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Paulo tocou suavemente os cabelos da amiga e segurando seu queixo a forçou a encará-lo: -Olhe, eu não estou entendendo direito, mas se a polícia pegou um bandido, com certeza os outros estão na mira... Cadu aproximou-se para se inteirar na conversa. A maneira como o amigo segurava o rosto de sua ex-namorada o deixava enciumado. Ao perceber que Cadu chegava, Helena tirou a mão de Paulo de seu queixo delicadamente e prosseguiu: -Tudo bem... Eu só quero saber se você me empresta seu apartamento por algum tempo... Até a poeira baixar... Paulo retirou as chaves do bolso e com um sorriso, respondeu ao colocá-las nas mãos da amiga: -Claro, meu bem... Aqui estão elas... Mal terminaram o diálogo, Fernando chegou no puma vermelho. Helena gelou. Todos gelaram. Fernando desceu do carro empunhando o revólver: -Rapariga, Vadia! Então você pensou em fugir de mim, é? A polícia está lá em casa, e você está aqui... Isso quer dizer que você sabia que tudo isso ia acontecer... Dona Valquíria chorava copiosamente. Fernando, irritando-se com o choro da sogra, bradou: - Cale a boca, velha! – e, aproximando-se, esbofeteou o rosto da senhora, que só não caiu porque foi amparada por Ana. Helena aproximou-se: -Sou eu quem você quer, não é? Deixe minha mãe em paz... – protestou Helena. -Me dê sua bolsa. - berrou Fernando para a esposa.
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A moça jogou a bolsa para o marido que a esvaziou na frente de todos. Encontrou o revólver, o canivete e um vidrinho de cianureto. -Acho que você mexeu aonde não devia... Sabe, eu a subestimei... Você é mais esperta do que eu pensava... Não é à toa que me apaixonei por você perdidamente... Da sala dos professores, era possível identificar o movimento, e Sr. Tibério, que passava por ali, ligou para a polícia imediatamente. Todos estavam apreensivos. -Olhe Helena... Eu perdi tudo, dinheiro, armas, tudo... Perdi minha liberdade, a polícia está atrás de mim... Mas somente uma coisa eu não perco... Você! – desabafou Fernando com voz comovida. Subitamente, soltou uma gargalhada e completou: -Aqui tem seis balas... Quatro são para você, meu amor... E duas, para mim... Na eternidade, ninguém nos separará... – outra risada - Nem aquele idiota ali... – apontou para Cadu – Você acreditou em tudo, não foi? Imbecil... Eu menti. Helena sempre foi louquinha por você... Eu armei tudo para ficar com ela e meu primo tirou as fotos... – outra gargalhada – ela estava drogada quando eu a violentei... Nada do que aconteceu entre nós foi porque ela queria... Cadu sentia-se derrotado. Não sabia o que pensar nem como agir. Fernando estava perturbado, ria com frequência, falava alto e descompassadamente. Parecia louco: -Saibam que Helena será minha para sempre... Ninguém poderá tirá-la de mim... 253
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Direcionou a arma para Helena. Disparou o primeiro tiro que acertou sua coxa esquerda. A moça caiu de joelhos, apavorada. Seu coração disparou e ela sentia que sua vida acabaria ali, dentro de alguns minutos. Os demais observavam a cena atônitos. Percebiam que uma tragédia aconteceria à qualquer momento. A mãe da moça estava desesperada. Não poderia perdê-la, pois Helena era tudo o que tinha. -Ainda restam três balas para você... – Disparou o segundo – acertando o ombro de Dona Valquíria que se jogou em frente da filha. -Mãe... – Helena soltou um soluço. A senhora caiu ao lado da jovem, que com dificuldades e sob os protestos da mãe, deslocou-se a sua frente para protegê-la do agressor. -Velha Imprestável! Agora só restam duas balas para você, Amor... E duas para mim... O marido apontou a arma. Helena fechou os olhos e não conseguiu pensar em nada. Quando ia disparar o terceiro tiro, Paulo César o surpreendeu pelas costas, segurando com firmeza em seu braço... O revólver disparou para cima, quatro tiros. A polícia chegou em seguida. Paulo César e Fernando lutavam agora corpo a corpo. Dona Valquíria e Helena foram socorridas por Ana. Fernando empurrou Paulo e com uma agilidade incrível pulou o muro da escola. Correu rua abaixo, desesperado. Seu plano falhara. Nem do outro lado da vida teria a mulher que tanto amou. A polícia estava longe, ele era muito rápido. Entrou numa viela e pulou por cima dos muros de algumas casas. O que ele mais temia aconteceu. Sua mulher o abandonou e reencontrou o homem que amava. Se fosse preso, 254
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sabia que Helena estaria com Cadu. Isso o machucava muito e ele não conseguia raciocinar. Se pelo menos seu pai estivesse ali... Recostou-se numa árvore nos fundos do quintal de uma casa. Não poderia suportar a perda de Helena e não tinha nenhum homem de confiança fora da prisão para vigiá-la. Fernando não tinha ninguém. Ouviu passos da polícia, o cerco se fechara. Pegou um vidrinho de cianureto que trazia no bolso da camisa e bebeu. Logo sentiu seu corpo amolecer. Respirava com sofreguidão, seu fôlego estava cada vez menor. Em sua lembrança via um garotinho no colo de uma mulata. Um homem adentrava a casa com uma arma e apontava para ele: “Fernando, essa aqui será sua... Vou ensiná-lo tudo o que sei e você será meu sucessor.” O garoto sorria e ao sair do colo da mulata, abraçava o pai: “Quero ser igual a você, papai...” A polícia rodeou o quarteirão inteiro e seu corpo foi encontrado estirado no quintal de uma velha casa alguns minutos depois. Dona Valquíria e Helena estavam fora de perigo. As balas tinham sido removidas com sucesso, Ana acompanhou-as o tempo todo em que ficaram no Hospital. Duas horas depois, Paulo César chegou para trocar de lugar com Ana, que precisava descansar. Fernando também deu entrada no Hospital de Cotia e estava muito mal na UTI. No dia seguinte, Dona Valquíria e Helena subiram para o quarto. Paulo ainda estava com elas. Mais tarde, por volta das dezessete horas, Jaci foi visitá-las e ver Fernando também. A mulher chorava copiosamente: 255
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-Dona Moça, eu gostaria de pedir um favor para a senhora... – disse encabulada. -Pode falar, Jaci. – assentiu Helena que estava recostada na cabeceira da cama. -Então, é o Sr. Fernando... Ele está sofrendo tanto... Cheio de aparelhos... Acho que ele ainda não partiu porque espera o seu perdão... Helena fitou-a pensativa. -E então, o que você quer que eu faça? -Que o perdoe para que sua alma descanse em paz... – finalizou com os olhos mareados. -Jaci, prometo que pensarei nisso – falou Helena segurando suas mãos na tentativa de tranquilizá-la. A empregada se despediu e retornou para o setor intensivo, onde Fernando se encontrava. Paulo César, que visitava Helena e Dona Valquíria, escutou tudo. -Então, Paulo? Quer dizer que quando a pessoa está próxima da morte, vira santa? Pois bem, a Jaci quer o meu perdão para o pobrezinho do Fernando, para ele morrer em paz depois de tudo o que fez. É muito fácil falar, o difícil é passar por tudo que passei... Paulo César acariciava os cabelos de Helena, enquanto ouvia seu desabafo. Perguntou: -E você me perdoa por não acreditar em suas palavras? Por fazer um mau juízo de você? -Claro que sim... Afinal, você me defendeu da morte... Mais uma vez você me defendeu. A propósito, eu nem 256
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agradeci... Obrigada, Paulo... Se você não segurasse aquela arma, eu estaria em outra vida... E o pior de tudo, com Fernando... O professor sorriu. -Então, Paulo? Voltando àquele assunto... Você acha que eu devo perdoar o Fernando? Dona Valquíria dormia na cama ao lado. Paulo respondeu: -Olhe Helena... Eu não gosto de me intrometer nesses assuntos, mas foi você quem pediu minha opinião... Só espero que não se zangue comigo... -Pode falar Paulo... -Então... Eu penso o seguinte: Eu não sou católico, nem evangélico, mas acredito em Jesus... Pois bem... Se Jesus Cristo que só fez o bem para o povo, curou os doentes, entre outros, em troca foi crucificado, lhe deram vinagre quando tinha sede e ainda na ânsia da morte pediu para Deus perdoar o povo... -Não sabia que você era teólogo... – suspirou a moça. -Eu também não sabia... Meu bem... Faça o que seu coração diz... Paulo César beijou a face da amiga. Ficou o dia inteiro com a jovem e sua mãe e prometeu que viria no dia seguinte. Não teria aula no restante da semana devido ao incidente. A polícia também descobriu o corpo de Jorginho no cômodo, e algumas mudas de maconha foram encontradas nos fundos da escola. -Paulo, me faz um favor antes de ir embora? -Sim... 257
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-Leve-me até a UTI, onde o Fernando está? -Vou perguntar para a enfermeira se ela autoriza. Como Fernando estava muito mal e era marido de Helena, a enfermeira autorizou. Logo disponibilizou uma cadeira de rodas para que Helena se locomovesse até o local que ficava no andar de cima. Paulo acompanhou a jovem. Jaci estava no quarto, fielmente ao lado do rapaz entubado. Paulo encostou a cadeira de rodas bem próximo de Fernando. Helena encostou os lábios nos ouvidos do moribundo e disse algumas palavras, que não davam para Paulo e Jaci escutarem: -Fernando, se eu disser que fui feliz com você, é mentira. Se eu disser que o amei, faltarei com a verdade... Mas, se você espera o meu perdão para partir, saiba que lhe perdoo e espero que sua alma encontre a paz de que precisa... – Helena pronunciou essas palavras segurando a mão do marido, emocionada. Duas grossas lágrimas caíram dos olhos de Fernando, que apertava a mão da esposa. Ele partia. Os aparelhos foram desligados, Jaci debruçou sobre o corpo, aos prantos. A enfermeira tirou-a dali. Helena foi conduzida ao seu quarto, por Paulo. Paulo levou Jaci até a casa de Dona Valquíria, para que tomasse um banho. Zé, deitado no sofá, escutava o noticiário pelo rádio: “A polícia prendeu hoje no início da tarde um perigoso bandido conhecido como Capataz. O homem fora indiciado por 258
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tráfico de drogas e armas, e suspeita de homicídio pela morte de outro bandido conhecido como Bigode, que foi encontrado morto no banheiro de uma velha casa, situada numa chácara na BR 040, intoxicado com clorofórmio. Capataz alega não ter participação no crime. Fernando Sanchez, o chefe da quadrilha, fugiu pra São Paulo, mas segundo informações da polícia acaba de falecer, vítima de intoxicação com Cianureto. A polícia acredita que existe alguma ligação entre a morte de Bigode e de Fernando. Através de alguns depoimentos, a quadrilha de Nandão, ou seja, Fernando Sanchez foi detida. No total, cinquenta pessoas fazem parte da Organização.” Jaci, ao chegar à casa de Dona Valquíria, disse chorando: -Ah, Zé... Você não sabe o que aconteceu... -Sei sim... Sr. Fernando morreu... Acabei de escutar no rádio... – Zé suspirava aliviado. O corpo foi liberado por volta das vinte e três horas e foi velado no velório central de Jandira. No velório, somente Jaci, Zé e Dona Marlene prestavam as últimas homenagens ao rapaz. Helena e Dona Valquíria tiveram alta no dia seguinte, após o enterro.
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21. Revelações
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epois de tudo o que aconteceu com Helena, Cadu recebeu uma ligação do Juizado de Menores, solicitando que comparecesse urgente ao Tribunal. Lá, soube que sua ex-mulher faleceu vítima de tuberculose, e os avós maternos não tinham mais condições de assumir a criança, pela idade avançada, sendo agora a guarda do menino, sua. Retornou com a criança para a casa que ficava em São Paulo, onde vivera com sua família. Sendo assim, não teve tempo de visitar Helena e pedir perdão, por não acreditar em suas palavras. Os ideais de luta contra a ditadura também foram adormecidos, pois tinha a responsabilidade de pai e mãe. Não sabia por onde começar, não tinha muito afeto pelo filho por não ficarem muito tempo juntos, o único laço que os unia era o sangue que corria em suas veias. Davi tinha quatro anos quando foi morar com o pai e percebia-se de longe que ele era mais feliz com Cadu - que quase não via - do que com a mãe, com quem dividiu sua vida desde seu nascimento até aquela idade. Depois de colocada a vida em ordem, Cadu contratou uma senhora de meia idade para ajudá-lo com o pequeno, e dirigiu-se apressadamente para Jandira. Precisava se reconciliar com Helena e pedi-la em casamento.
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Uma semana depois, Jaci e Zé estavam instalados na casa de Dona Valquíria, ainda sem saber o que fariam de suas vidas. Cadu passou por ali para conversar com Helena e foi informado que a moça estava no cemitério Municipal. Pediu licença e seguiu ao local informado. Ao chegar a encontrou ao lado do jazigo do pai. A jovem estava com o mesmo vestido preto, utilizado na última vez e um ramalhete de flores vermelhas, parecido com o anterior. Helena aproximou-se do jazigo do pai sussurrando: -Superpai, superpai... Pensou que eu não viria? – Alisou a face do pai que estava estampada na placa prateada e chorou. Suas lágrimas foram interrompidas pela mão de Cadu que pousou em seu ombro. -Helena, será que podemos conversar? – perguntou o rapaz emocionado. A moça enxugou as lágrimas e levantando-se respondeu comovida: -Claro que sim... -Você me perdoa por não acreditar em você? -Claro... Você foi tão vítima quanto eu... -Eu a amo Helena, case-se comigo? -Cadu, eu sinto um enorme amor por você, mas preciso pensar... Sabe, aconteceram muitas coisas ultimamente... Preciso pensar sobre minha vida... -Tudo bem, eu espero... Você vai para casa agora? -Não... Ficarei aqui mais um pouco conversando com meu pai... -Tudo bem... Vou deixá-los a sós. 262
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O rapaz aproximou-se de Helena beijando-lhe a fronte e retornou para casa, esperançoso e aliviado. Tudo acabou bem, e sua amada vivia. Helena sentou-se no jazigo e continuou a conversa, relembrando os momentos que tivera ao lado de seu velho. Agora era Paulo quem a observava de longe, segurando uma mala. Ele respeitava os sentimentos da jovem e não queria atrapalhar. Mas estava com seu tempo se esgotando. Precisava deixar o país o quanto antes, pois estava sendo perseguido. Aproximou-se, tocou em seus cabelos e sussurrou: -Helena! A moça virou-se: -Ah, é você, Paulo... O que o traz aqui? O rapaz sorriu: -Pensou que fosse o Cadu? Desculpe decepcioná-la... -Não sabia que você lia pensamentos... E saiba que não pensei nada disso, Cadu já esteve aqui... – protestou ela, levantando-se. -Como sempre, Cadu é mais adiantado do que eu... Vim por três motivos, meu bem... A moça deu um pequeno sorriso: -Me diz qual é o primeiro? -No dia da confusão do Sr. Aníbal, lembra? -Sim... -Esse lenço caiu dos seus cabelos e esqueci-me de devolver... Vim trazê-lo... -Certo – a moça pegou o lenço das mãos do rapaz – E o segundo? 263
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-Preciso dizer-lhe uma coisa que trago em meu peito a longos anos... Nunca tive coragem de falar antes, com medo que nossa amizade terminasse... Não quero que me leve a mal, mas que somente respeite meus sentimentos, mesmo que não sejam correspondidos... -Pode dizer... -Eu a amo, Helena... Sempre a amei... Desde que você tinha dez anos... -Por que você não me disse antes? -Eu sou muito mais velho... Achei que você se afastaria de mim... E o terceiro motivo... Preciso abandonar o país... Estou sendo perseguido... Então, lhe deixarei as chaves do meu apartamento de São Paulo... Não sei quando volto, e se volto... Cuide do apartamento para mim, se precisar morar lá, ele é seu. Se quiser alugá-lo faça tudo conforme a sua vontade e o seu querer... Só não o venda. Aqui estão as chaves e o endereço, o condomínio está pago por dois anos. Levarei uma cópia das chaves comigo... Estou de partida... Um estalo sobressaltou Helena. Ela recordava o quanto a companhia de Paulo era prazerosa e o quanto foram felizes juntos como amigos. Ela percebeu que também o amava. Só descobriu ali, no momento que ele se declarava. Percebia a falta que sentiria do amigo e sabia que gostava de Cadu, mas enganou-se ao considerar que o que sentia por ele era amor. A verdade era que a pessoa que ela amava sempre esteve próxima dela, e cega por suas novas descobertas, havia confundido todos os sentimentos. Agora, mais do que nunca, ela entendia o verdadeiro significado do amor. O amor está relacionado com a 264
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amizade. Um amigo verdadeiro não trai, defende e acima de tudo ama. -Paulo, você estava comigo o tempo todo e eu não sabia que também o amava... Paulo enxugava as lagrimas de Helena, com as mãos. -Não, Helena, você não me ama... Seu coração é de Cadu... Eu tirei a prova disso no casamento de Ana... A jovem não deixou que o professor completasse a frase. Atirou-se em seus braços e o beijou ternamente. O professor correspondeu ao beijo a envolvendo num abraço apertado. -Me leve com você, Paulo... Por favor, me leve? -Não posso colocá-la em risco... O Cadu também a ama, acho que vocês serão felizes... Você estará mais segura com ele... -Mas, Paulo... -Nunca vou esquecê-la Helena. Você é minha melhor amiga... – o rapaz disse isso ao afastar-se da moça – Na minha ausência procure não se meter em encrencas... Não estarei aqui para defendê-la... -Eu quero ir... -Sua mãe precisa de você... – O professor pegou sua mala, virou as costas e seguiu em frente, contendo as lágrimas. -Paulo! O professor virou-se. Helena correu ao seu encontro levando nas mãos o lenço que ele lhe devolveu. - Leve com você essa lembrança e nunca se esqueça de mim... – e passando as mãos trêmulas na face do professor Querido Amigo... 265
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-Nunca vou esquecê-la, meu bem... – O professor guardou o lenço em sua mala. Levantou-se e beijou a jovem novamente, depois partiu. Helena, aos prantos, o via ir. Quanto mais enxugava as lágrimas, mais caiam. A jovem olhou para o retrato do pai no jazigo e exclamou, soluçando: -Papai, ele tem razão... Minha mãe precisa de mim... O professor de História saiu do cemitério pensando em como havia julgado mal a amiga. Nunca deveria ter desconfiado de seu caráter, nem de sua índole. Helena era incapaz de se vender, era uma guerreira e, sem dúvida nenhuma, era uma mulher de honra. Em passos firmes, seguiu em frente sem olhar para traz. Era com dor de saudade que Paulo César deixava um pedaço de seu passado e a doce lembrança de sua querida amiga... Caminhava em direção a um futuro incerto e sem esperanças... Caminhava rumo ao exílio.
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Epílogo
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elena casou-se um mês depois com Cadu e foi morar em São Paulo com Dona Valquíria, Zé, Jaci e o pequeno Davi. Teve uma filha chamada Júlia. Seis meses depois, Dona Valquíria faleceu enquanto dormia. Helena prosseguiu seus estudos, fez doutorado na USP, era tradutora de livros e uma professora respeitada nos colégios e universidades. O sonho de Fernando realizou-se em 1979, treze anos após sua morte com o nascimento do Comando Vermelho – Organização Criminosa no Brasil, que existe até os dias atuais. Em 1982, a Ditadura Militar no Brasil estava enfraquecida, o descontentamento do povo era praticamente unânime, devidos a problemas como inflação alta e recessão. Nesse mesmo ano, Paulo César retorna ao Brasil solteiro e bem sucedido e reencontra Helena em seu apartamento, depois de dezesseis anos separados. Aparecem outros partidos de esquerda e uma perspectiva de redemocratização surge no país com o enfraquecimento da ditadura militar. Paulo César assistia ao cenário político da época esperançoso pelo fim da ditadura. Trazia também em seu peito uma doce expectativa de reconquistar o amor de Helena, que se encontrava numa verdadeira encruzilhada, pois também o amava. 267
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Poderia esse sentimento prevalecer depois de tantos anos e superar todos os obstรกculos existentes entre ambos? O que vale mais, o amor do passado ou a honra?
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SOBRE A AUTORA Raquel Nonato da Silva Lisboa nasceu em Osasco, em 1981. Atualmente, está cursando o último ano de secretariado executivo bilíngue pela Fatec, através do Centro Paula Souza. Leitora voraz, desde que aprendeu a juntar sílabas, essa é a primeira obra que escreveu e encorajou-se a publicá-la devido aos incentivos de sua família e amigos. Os originais do restante dessa Trilogia estão em andamento. Em seu blog, deixa claro sua paixão pela literatura com suas crônicas, dicas de redação e para novos autores.
Contato: juntando.palavras@gmail.com Site: https://sites.google.com/site/amandoaleitura/
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