Poe Mร Rio
POE MAR IO
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Poe MÁRio
“PoeMÁRio” reúne textos de vários Poetas Portugueses (na maioria) do século XX que, a propósito de diferentes temas, invocam o mar e os seus elementos, levando-nos a navegar mais além, nas sonoridades, nas cores, nas ondas, nas metáforas. Assim, “PoeMÁRio” é uma coleção de poemas que contém o “MAR” destacado dentro de si, mas sempre a transbordar, dobrando o cabo da grafia e desafiando a(s) nossa(s) leitura(s). A presente antologia foi elaborada com as sugestões dos alunos de décimo ano (2013/ 2014) ao estudar a unidade “Poetas do Século XX” e surgiu no âmbito do subprojeto “Ler + Mar”, integrado no projeto do Agrupamento D. Filipa de Lencastre - “O mar – património natural”. Para além das escolhas pessoais dos alunos das turmas A e B, “PoeMÁRio” abarca ainda alguns poemas lidos/ analisados em aula e outros apresentados oralmente por alunos da turma C.
A Professora
de Português,
Raquel Oliveira
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Poe MÁRio Trova do vento que passa Pergunto ao vento que passa notícias do meu país e o vento cala a desgraça o vento nada me diz. Pergunto aos rios que levam tanto sonho à flor das águas e os rios não me sossegam levam sonhos deixam mágoas. Levam sonhos deixam mágoas ai rios do meu país minha pátria à flor das águas para onde vais? Ninguém diz. Se o verde trevo desfolhas pede notícias e diz ao trevo de quatro folhas que morro por meu país. Pergunto à gente que passa por que vai de olhos no chão. Silêncio -- é tudo o que tem quem vive na servidão. Vi florir os verdes ramos direitos e ao céu voltados. E a quem gosta de ter amos vi sempre os ombros curvados. E o vento não me diz nada ninguém diz nada de novo. Vi minha pátria pregada nos braços em cruz do povo. Vi minha pátria na margem dos rios que vão pró mar como quem ama a viagem mas tem sempre de ficar.
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PoeMÁRio Vi navios a partir (minha pátria à flor das águas) vi minha pátria florir (verdes folhas verdes mágoas). Há quem te queira ignorada e fale pátria em teu nome. Eu vi-te crucificada nos braços negros da fome. E o vento não me diz nada só o silêncio persiste. Vi minha pátria parada à beira de um rio triste. Ninguém diz nada de novo se notícias vou pedindo nas mãos vazias do povo vi minha pátria florindo. E a noite cresce por dentro dos homens do meu país. Peço notícias ao vento e o vento nada me diz. Quatro folhas tem o trevo liberdade quatro sílabas. Não sabem ler é verdade aqueles pra quem eu escrevo. Mas há sempre uma candeia dentro da própria desgraça há sempre alguém que semeia canções no vento que passa. Mesmo na noite mais triste em tempo de sevidão há sempre alguém que resiste há sempre alguém que diz não. (Escolha de Francisca Carreira)
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Portugal O O E A
teu destino é nunca haver chegada teu destino é outra índia e outro mar a nova nau lusíada apontada um país que só há no verbo achar
(Escolha de Marcos Ribeiro)
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Mar de Setembro Tudo era claro: Céu,lábios, areias. O mar estava perto, Fremente de espumas. Corpos ou ondas: Iam,vinham,iam, Dóceis,leves – só Ritmo e brancura. Felizes,cantam; Serenos,dormem; Despertos,amam, Exaltam o silêncio Tudo era claro, Jovem,alado. O mar estava perto. Puríssimo.Doirado.
(Escolha de Pedro Calhau)
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Até Amanhã Sei agora como nasceu a alegria, como nasce o vento entre barcos de papel, como nasce a água ou o amor quando a juventude não é uma lágrima. É primeiro só um rumor de espuma à roda do corpo que desperta, sílaba espessa, beijo acumulado, amanhecer de pássaros no sangue. É subitamente um grito, um grito apertado nos dentes, galope de cavalos num horizonte onde o mar é diurno e sem palavras. Falei de tudo quanto amei. De coisas que te dou para que tu as ames comigo: a juventude, o vento e as areias.
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Urgentemente É urgente o amor É urgente um barco no mar É urgente destruir certas palavras, ódio, solidão e crueldade, alguns lamentos, muitas espadas. É urgente inventar alegria, multiplicar os beijos, as searas, é urgente descobrir rosas e rios e manhãs claras. Cai o silêncio nos ombros e a luz impura, até doer. É urgente o amor, é urgente permanecer.
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Mar sonoro, mar sem fundo mar sem fim. A tua beleza aumenta quando estamos sós. E tão fundo intimamente a tua voz Segue o mais secreto bailar do meu sonho Que momentos há em que eu suponho Seres um milagre criado só para mim.
(Escolha de Diogo Miguez)
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As ondas quebravam uma a uma Eu estava só com a areia e com a espuma Do mar que cantava só para mim
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Como o rumor do mar dentro do bĂşzio O divino sussurra no universo Algo emerge: primordial projeto.
(Escolhas de Marta Varandas)
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No fundo do Mar
No fundo do mar há brancos pavores, Onde as plantas são animais E os animais são flores. Mundo silencioso que não atinge A agitação das ondas. Abrem-se rindo conchas redondas, Baloiça o cavalo-marinho. Um polvo avança No desalinho Dos seus mil braços, Uma flor dança, Sem ruído vibram os espaços. Sobre a areia o tempo poisa Leve como um lenço. Mas por mais bela que seja cada coisa Tem um monstro em si suspenso.
(Escolha de Catarina Sequeira, Marta Alves, Mafalda Batalha e Rita Xue)
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Cidade
Cidade, rumor e vaivém sem paz das ruas, Ó vida suja, hostil, inutilmente gasta, Saber que existe o mar e as praias nuas, Montanhas sem nome e planícies mais vastas Que o mais vasto desejo, E eu estou em ti fechada e apenas vejo Os muros e as paredes, e não vejo Nem o crescer do mar, nem o mudar das luas. Saber que tomas em ti a minha vida E que arrastas pela sombra das paredes A minha alma que fora prometida Às ondas brancas e às florestas verdes.
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Poe MÁRio Eu ontem passei o dia Ouvindo o que o mar dizia. Chorámos, rimos, cantámos. Falou-me do seu destino, Do seu fado... Depois, para se alegrar, Ergueu-se, e bailando, e rindo, Pôs-se a cantar Um canto molhado e lindo. O seu hálito perfuma, E o seu perfume faz mal! Deserto de águas sem fim. Ó sepultura da minha raça Quando me guardas a mim?... Ele afastou-se calado; Eu afastei-me mais triste, Mais doente, mais cansado... Ao longe o Sol na agonia De roxo as águas tingia. «Voz do mar, misteriosa; Voz do amor e da verdade! - Ó voz moribunda e doce Da minha grande Saudade! Voz amarga de quem fica, Trémula voz de quem parte...» E os poetas a cantar São ecos da voz do mar! (Escolha de Valéria Leong e Francisco Silva)
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Poe MÁRio O navio de espelhos O seu porão traz nada nada leva à partida Vozes e ar pesado é tudo o que transporta (E no mastro espelhado uma espécie de porta) O navio de espelhos não navega cavalga Seu mar é a floresta que lhe serve de nível Ao crepúsculo espelha sol e lua nos flancos Por isso o tempo gosta de deitar-se com ele Os armadores não amam a sua rota clara (Vista do movimento dir-se-ia que pára) Quando chega à cidade nenhum cais o abriga
Seus dez mil capitães têm o mesmo rosto A mesma cinta escura o mesmo grau e posto Quando um se revolta há dez mil insurrectos (Como os olhos da mosca reflectem os objectos) E quando um deles ala o corpo sobre os mastros e escruta o mar do fundo Toda a nave cavalga (como no espaço os astros) Do princípio do mundo Até ao fim do mundo
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Caravelas Cheguei a meio da vida já cansada De tanto caminhar! Já me perdi! Dum estranho país que nunca vi Sou neste mundo imenso a exilada. Tanto tenho aprendido e não sei nada. E as torres de marfim que construí Em trágica loucura as destruí Por minhas próprias mãos de malfadada! Se eu sempre fui assim este Mar-Morto, Mar sem marés, sem vagas e sem porto Onde velas de sonhos se rasgaram. Caravelas doiradas a bailar... Ai, quem me dera as que eu deitei ao Mar! As que eu lancei à vida, e não voltaram!...
(Escolha de Catarina Fernandes) P á g i n a | 23
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Poe MÁRio O sol é sempre o mesmo e o céu azul ora é azul, nitidamente azul, ora é cinza, negro, quase verde... Mas nunca tem a cor inesperada. O Mundo não se modifica. As árvores dão flores, folhas, frutos e pássaros como máquinas verdes. As paisagens também não se transformam. Não cai neve vermelha, não há flores que voem, a lua não tem olhos e ninguém vai pintar olhos à lua. Tudo é igual, mecânico e exacto. Ainda por cima os homens são os homens. Soluçam, bebem, riem e digerem sem imaginação. E há bairros miseráveis, sempre os mesmos, discursos de Mussolini, guerras, orgulhos em transe, automóveis de corrida... E obrigam-me a viver até à Morte! Pois não era mais humano morrer por um bocadinho, de vez em quando, e recomeçar depois, achando tudo mais novo? Ah! se eu pudesse suicidar-me por seis meses, morrer em cima dum divã com a cabeça sobre uma almofada, confiante e sereno por saber que tu velavas, meu amor do Norte. Quando viessem perguntar por mim, havias de dizer com teu sorriso onde arde um coração em melodia: "Matou-se esta manhã. Agora não o vou ressuscitar por uma bagatela." E virias depois, suavemente, velar por mim, subtil e cuidadosa, pé ante pé, não fosses acordar a Morte ainda menina no meu colo..."
(Escolha de Diogo Balula)
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Poe MÁRio Poema do homem-rã
Sou feliz por ter nascido no tempo dos homens-rãs que descem ao mar perdido na doçura das manhãs. Mergulham, imponderáveis, por entre as águas tranquilas, enquanto singram, em filas, peixinhos de cores amáveis. Vão e vêm, serpenteiam, em compassos de ballet. Seus lentos gestos penteiam madeixas que ninguém vê. Com barbatanas calçadas e pulmões a tiracolo, roçam-se os homens no solo sob um céu de águas paradas. Sob o luminoso feixe correm de um lado para outro, montam no lombo de um peixe como no dorso de um potro. Onde as sereias de espuma? Tritões escorrendo babugem? E os monstros cor de ferrugem rolando trovões na bruma? Eu sou o homem. O Homem. Desço ao mar e subo ao céu. Não há temores que me domem É tudo meu, tudo meu.
(Escolha de Beatriz Santos) P á g i n a | 27
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Deixa escrever-te, verde mar antigo, Largo Oceano, velho deus limoso, Coração sempre lyrico, choroso, E terno visionario, meu amigo! Das bandas do poente lamentoso Quando o vermelho sol vae ter comtigo, - Nada é mais grande, nobre e doloroso, Do que tu, - vasto e humido jazigo! Nada é mais triste, tragico e profundo! Ninguem te vence ou te venceu no mundo!... Mas tambem, quem te poude consollar?! Tu és Força, Arte, Amor, por excellencia! E, comtudo, ouve-o aqui, em confidencia; - A Musica é mais triste inda que o Mar!
(Escolha de João calhau) P á g i n a | 29
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Poe MÁRio Se uma gaivota viesse trazer-me o céu de Lisboa no desenho que fizesse, nesse céu onde o olhar é uma asa que não voa, esmorece e cai no mar. Que perfeito coração no meu peito bateria, meu amor na tua mão, nessa mão onde cabia perfeito o meu coração. Se um português marinheiro, dos sete mares andarilho, fosse quem sabe o primeiro a contar-me o que inventasse, se um olhar de novo brilho no meu olhar se enlaçasse. Que perfeito coração no meu peito bateria, meu amor na tua mão, nessa mão onde cabia perfeito o meu coração. Se ao dizer adeus à vida as aves todas do céu, me dessem na despedida o teu olhar derradeiro, esse olhar que era só teu, amor que foste o primeiro. Que perfeito coração no meu peito morreria, meu amor na tua mão, nessa mão onde perfeito bateu o meu coração.
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Ó mar salgado, quanto do teu sal São lágrimas de Portugal! Por te cruzarmos, quantas mães choraram, Quantos filhos em vão rezaram! Quantas noivas ficaram por casar Para que fosses nosso, ó mar! Valeu a pena? Tudo vale a pena Se a alma não é pequena. Quem quer passar além do Bojador Tem que passar além da dor. Deus ao mar o perigo e o abismo deu, Mas nele é que espelhou o céu.
(Escolha de João Frazão) P á g i n a | 33
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O MOSTRENGO O mostrengo que está no fim do mar Na noite de breu ergueu-se a voar; À roda da nau voou três vezes, Voou três vezes a chiar, E disse: «Quem é que ousou entrar Nas minhas cavernas que não desvendo, Meus tectos negros do fim do mundo?» E o homem do leme disse, tremendo: «El-Rei D. João Segundo!» «De quem são as velas onde me roço? De quem as quilhas que vejo e ouço?» Disse o mostrengo, e rodou três vezes, Três vezes rodou imundo e grosso, «Quem vem poder o que só eu posso, Que moro onde nunca ninguém me visse E escorro os medos do mar sem fundo?» E o homem do leme tremeu, e disse: «El-Rei D. João Segundo!» Três vezes do leme as mãos ergueu, Três vezes ao leme as reprendeu, E disse no fim de tremer três vezes: «Aqui ao leme sou mais do que eu: Sou um Povo que quer o mar que é teu; E mais que o mostrengo, que me a alma teme E roda nas trevas do fim do mundo, Manda a vontade, que me ata ao leme, D' El-rei D. João Segundo!»
(Escolha de Ana Jacinto) 34 | P á g i n a
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SEGUNDO / TORMENTA
Que jaz no abismo sob o mar que se ergue? Nós, Portugal, o poder ser. Que inquietação do fundo nos soergue? O desejar poder querer. Isto, e o mistério de que a noite é o fausto... Mas súbito, onde o vento ruge, O relâmpago, farol de Deus, um hausto Brilha, e o mar 'scuro 'struge.
(Escolha de Filipa
Cunha)
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O Infante
Deus quer, o homem sonha, a obra nasce. Deus quis que a terra fosse toda uma, Que o mar unisse, já não separasse. Sagrou-te, e foste desvendando a espuma, E a orla branca foi de ilha em continente, Clareou, correndo, até o fim do mundo, E viu-se a terra inteira, de repente, Surgir, redonda, do azul profundo. Quem te sagrou criou-te português. Do mar e nós em ti nos deu sinal. Cumpriu-se o Mar, e o Império se desfez. Senhor, falta cumprir-se Portugal!
(Escolha de Ricardo Lage) 36 | P á g i n a
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Cântico Negro "Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces Estendendo-me os braços, e seguros De que seria bom que eu os ouvisse Quando me dizem: "vem por aqui!" Eu olho-os com olhos lassos, (Há, nos olhos meus, ironias e cansaços) E cruzo os braços, E nunca vou por ali... A minha glória é esta: Criar desumanidades! Não acompanhar ninguém. — Que eu vivo com o mesmo sem-vontade Com que rasguei o ventre à minha mãe Não, não vou por aí! Só vou por onde Me levam meus próprios passos... Se ao que busco saber nenhum de vós responde Por que me repetis: "vem por aqui!"? Prefiro escorregar nos becos lamacentos, Redemoinhar aos ventos, Como farrapos, arrastar os pés sangrentos, A ir por aí... Se vim ao mundo, foi Só para desflorar florestas virgens, E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada! O mais que faço não vale nada.
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Como, pois, sereis vós Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem Para eu derrubar os meus obstáculos?... Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós, E vós amais o que é fácil! Eu amo o Longe e a Miragem, Amo os abismos, as torrentes, os desertos... Ide! Tendes estradas, Tendes jardins, tendes canteiros, Tendes pátria, tendes tetos, E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios... Eu tenho a minha Loucura ! Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura, E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios... Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém! Todos tiveram pai, todos tiveram mãe; Mas eu, que nunca principio nem acabo, Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo. Ah, que ninguém me dê piedosas intenções, Ninguém me peça definições! Ninguém me diga: "vem por aqui"! A minha vida é um vendaval que se soltou, É uma onda que se alevantou, É um átomo a mais que se animou... Não sei por onde vou, Não sei para onde vou Sei que não vou por aí!
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Poe MÁRio Quási Um pouco mais de sol - eu era brasa, Um pouco mais de azul - eu era além. Para atingir, faltou-me um golpe d'asa... Se ao menos eu permanecesse àquem... Assombro ou paz? Em vão... Tudo esvaído Num baixo mar enganador de espuma; E o grande sonho despertado em bruma, O grande sonho - ó dôr! - quási vivido... Quási o amor, quási o triunfo e a chama, Quási o princípio e o fim - quási a expansão... Mas na minh'alma tudo se derrama... Entanto nada foi só ilusão! De tudo houve um começo... e tudo errou... - Ai a dôr de ser-quási, dor sem fim... Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim, Asa que se elançou mas não voou... Momentos d'alma que desbaratei... Templos aonde nunca pus um altar... Rios que perdi sem os levar ao mar... Ansias que foram mas que não fixei... Se me vagueio, encontro só indicios... Ogivas para o sol - vejo-as cerradas; E mãos de herói, sem fé, acobardadas, Puseram grades sôbre os precipícios... Num impeto difuso de quebranto, Tudo encetei e nada possuí... Hoje, de mim, só resta o desencanto Das coisas que beijei mas não vivi... . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Um pouco mais de sol - e fôra brasa, Um pouco mais de azul - e fôra além. Para atingir, faltou-me um golpe de aza... Se ao menos eu permanecesse àquem... (Escolha de
Joana Ferreira) P á g i n a | 41
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Poe MÁRio Cantar do Amigo Perfeito Passado o mar, passado o mundo, em longes praias, de areia e ténues vagas, como esta em que haverá de nossos passos a memória embora soterrada pela areia nova, e em que sobre as muralhas quanta sombra na pedra carcomida guarda que passámos, em longes praias, outras nuvens, outras vozes, ainda recordas esta, ó meu amigo? Aqui passeámos tanta vez, por entre os corpos da alheia juventude, impudica ou severa, esplêndida ou sem graça, à venda ou pronta a dar-se, ido na brisa o sol às mais sombrias curvas; e o meu e o teu olhar guiando-se leais, de nós um para o outro conquistando - em longes praias, outras nuvens, outras vozes, ainda recordas, diz, ó meu amigo? Também aqui relembro as ruas tenebrosas, de vulto em vulto percorridas, lado a lado, numa nudez sem espírito, confiança tranquila e áspera, animal e tácita, já menos que amizade, mas diversa da suspeição do amor, tão cauta e delicada - em longes praias, outras nuvens, outras vozes, ainda as recordas, diz, ó meu amigo? Também aqui, sorrindo em branda mágoa, desfiámos, sem palavras castamente cruas, não já sequer os íntimos segredos que o próprio amor, porque ama, não confessa, nem a vaidade humana dos sentidos, mas subtis fraquezas vis, ingénuas e secretas - em longes praias, outras nuvens, outras vozes, ainda recordas, diz, ó amigo? Partiste e foi contigo a juventude. Ficou o silêncio adulto, pensativo e pródigo, e o terror de não ser minha estátua jacente sobre o túmulo frio onde as cinzas da infância desmentem - palpitar de traiçoeira fénix! que só do amor ou só da terra haja saudade. Em longes praias, outras nuvens, outras vozes, tu sabes que a levaste, ó meu amigo?
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Viagem Aparelhei o barco da ilusão E reforcei a fé de marinheiro. Era longe o meu sonho, e traiçoeiro O mar… (Só nos é concedida Esta vida Que temos; E é nela que é preciso Procurar O velho paraíso Que perdemos). Prestes, larguei a vela E disse adeus ao cais, à paz tolhida. Desmedida, A revolta imensidão Transforma dia a dia a embarcação Numa errante e alada sepultura… Mas corto as ondas sem desanimar. Em qualquer aventura, O que importa é partir, não é chegar. E é nela que é
(Escolha de Madalena Inácio) P á g i n a | 45
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Heroísmos
Eu temo muito o mar, o mar enorme, Solene, enraivecido, turbulento, Erguido em vagalhões, rugindo ao vento; O mar sublime, o mar que nunca dorme.
Eu temo o largo mar, rebelde, informe, De vítimas famélico, sedento, E creio ouvir em cada seu lamento Os ruídos dum túmulo disforme.
Contudo, num barquinho transparente, No seu dorso feroz vou blasonar, Tufada a vela e n'água quase assente,
E ouvindo muito ao perto o seu bramar, Eu rindo, sem cuidados, simplesmente, Escarro, com desdém, no grande mar!
(Escolha de Joana Ferreira) P á g i n a | 47
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Coordenação, revisão e design gráfico: Raquel Oliveira
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2013 | 2014