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CARBONO
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Agência de Notícias CIÊNCIA&CULTURA
SUS: práticas integrativas complementares controversas Salve a Ciência: SBPC 70 anos O problema social explícito na rede Representação social e Representatividade
ISSO é
LIxo? Grande parte dos resíduos sólidos com alto potencial de reaproveitamento são descartados no Brasil
Editorial CONSELHO EDITORIAL
Nádia Conceição, Rebeca Almeida, Amanda Brito, Giovanna Hemerly e Larissa Costa
É com muito orgulho que apresentamos a edição experimental da revista Carbono, nossa edição número 0. Focada em uma Ciéncia humanizada, a Carbono é uma publicação onde buscamos continuar seguindo os princípios da agência Ciência e Cultura - Agência de Notícias em CT&I da Bahia. Para nós, o saber cientifico não é superior aos demais saberes, mas tão importante quanto todos os outros. Entendemos que todos como conhecimentos podem se complementar. Assim, o lugar de construção do conhecimento deixa de ser somente a universidade e passa a ser a rua, as religiões, o conhecimento popular... enfim, onde quer que existam mentes capazes de pensar e refletir sobre a vida. Nesta edição trazemos um artigo do professor Nelson Pretto sobre a importancia do 8 de Julho, dia de celebrar a Ciéncia brasileira e o pesquisador. Questionamos a representação social e a representavididade dos negros em diversos espaços sociais, como escola, mîdia e a sociedade brasileira como todo. Entrevistamos o pesquisador Samuel Vida acerca das manifestações racistas na internet, que parecem estar acontecendo com mais frequencia no último ano. Traçamos o contexto histórico das criptomoedas, sobretudo devido a grande alta do Bitcoin no final do ano passado. Apresentamos as controversisas entre o SUS e as Práticas Integrativas Complementares em Saúde (PICS). Em nossa matéria de capa questionamos os fins que tem sido dados ao lixo no estado da Bahia e por fim, trazemos um pouco do que acontece na universidade para as ruas, com a matéria sobre Oxum e seu poder no Candomblé, evento que ocorreu no Instituto Goethe no mês passado. Esperamos que vocé se divirta e se informe com a leitura. Que possamos colaborar para o desenvolvimento da Ciencia brasileira com representação de toda a sociedade. E nossa campanha possa nos lembrar sempre: Todos podem fazer Ciéncia! POR REBECA ALMEIDA Editora de arte
REPORTERES
Rebeca Almeida, Amanda Brito, Giovanna Hemerly e Larissa Costa
EDITORA-CHEFE Nádia Conceição
DIAGRAMAÇÃO E ARTE Rebeca Almeida
FOTOGRAFIA
Giovanna Hemerly e Jéssica Muniz
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CONSELHO EDITORIAL
Nádia Conceição, Rebeca Almeida, Amanda Brito, Giovanna Hemerly e Larissa Costa
REPORTERES
Rebeca Almeida, Amanda Brito, Giovanna Hemerly e Larissa Costa
EDITORA-CHEFE Nádia Conceição
DIAGRAMAÇÃO E ARTE Rebeca Almeida
FOTOGRAFIA
Giovanna Hemerly e Jéssica Muniz
____________________ Ciência e Cultura - Agência de Notícias em CT&I da Bahia CONTATOS www.cienciaecultura.ufba.br cienciaecultura.ufba@gmail.com Faculdade de Comunicação Universidade Federal da Bahia Rua Barão de Geremoabo, s/n, Ondina, Salvador, Bahia, Brasil. Tel: (71) 3283-6174 (71) 3283-6177
FALA PESQUISADOR Salve a Ciência, SBPC 70 anos 5 CULTURA E HUMANIDADES Representação social e representatividade 7 ENTREVISTA Racismo na rede na perspectiva do Direito 10 TECNOLOGIA Ascensão e queda: dois lados de uma criptomoeda 14 POLÍTICA e CIÊNCIA SUS: Práticas Integrativas Complementares geram controvérsias 14 BIOCIÊNCIAS Isso é lixo? 16 UNIVERSIDADE Evento celebra Oxum e o poder do feminino no Candomblé 20
Fala pesquisador
Salve
ra i e l i s a r b a Ciencia ^
SBPC 70 anos
Existe um dia de homenagem ao Pesquisador e à Ciência: 8 de julho, foi estabelecido no Brasil como Dia Nacional do Pesquisador e Dia Nacional da Ciência. Em artigo, o professor da Faced - UFBA, Nelson Pretto*, faz um relato sobre a importância desse marco histórico para a Ciência brasileira Desde de 2001 existe uma lei, sancionada por FHC, instituindo 8 de julho como Dia Nacional da Ciência. Em 2008, no governo Lula, a mesma data também passou a celebrar o Dia do Pesquisador. Apesar de existirem as leis, a data nunca foi celebrada, sendo praticamente desconhecidas da população e dos cientistas.
1/3 do que foi aplicado oito anos atrás”. Os atuais cortes drásticos nos recursos para CT&I, após mais de uma década de aumento significativo, colocam todo esse investimento anterior, em recursos e em pessoal qualificado, em risco. Estão ameaçadas a continuidade das pesquisas e a formação de novos cientistas.
A Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) vem trabalhando para recuperar essa celebração, inclusive porque no argumento legislativo para a escolha do 8 de julho constava uma referência à primeira reunião de cientistas, lá nos idos de 1948, que deu origem à SBPC.
Dois outros aspectos estão sendo considerados centrais para nós. O primeiro, é a revogação da Emenda Constitucional 95, que congelou os investimentos no país por 20 anos. O segundo, a recriação de dois ministérios que foram absurdamente integrados, o da Ciência e Tecnologia e o das Comunicações, cada um deles com suas especificidades e responsabilidade que não se integram por ações administrativas e, sim, por politicas públicas de governo.
Afirmava o então deputado Evandro Milhomen, relator da lei: “a SBPC carecia de uma data de referência para a ciência no pais; além do que, em vista da grandeza da entidade, entendemos que a definição desse marco referencial levará o Poder Público a perseguir o objetivo da proposta em discussão, incentivando a divulgação ampla do Dia da Ciência em todos os setores da sociedade brasileira, principalmente nas escolas.” O difícil momento pelo qual passamos, particularmente depois do golpe que depôs a presidenta Dilma Roussef, tem imposto cortes significativos nos orçamentos para a área. Como parte da celebração dos seus 70 anos, a SBPC vem promovendo seminários temáticos. No primeiro deles, a realidade orçamentária para CT&I foi exposta de forma cristalina: o “investimento nessa área voltou a níveis de 2002, valor reduzido a
Em termos locais, temos muito a lutar, pois nosso sistema de C&T está fragilizado, com profundos cortes orçamentários e com o praticamente esvaziamento da FAPESB. Complemento que ainda temos que lutar pela não continuidade da destruição do nosso Museu de Ciência e Tecnologia e por um Plano de Banda Larga para todo o estado. Mais do que celebrar uma data, o momento é de luta. Exige maior participação da sociedade na defesa da Ciência e da Educação contra essas ações que, seguramente, comprometerão de forma grave o futuro do país C
*Professor da Faculdade de Educação da UFBA e conselheiro da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC)
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Cultura & Humanidades
ç social e Representacao Representatividade ~
POR GIOVANNA HEMERLY
Para pesquisadoras sobre estudos de raça e etnicidade, a representação depreciativa que a sociedade faz do indivíduo e de seus aspectos físicos, históricos e culturais, podem ter forte impacto na sua auto-aceitação e na forma como este trata seus semelhantes. No entanto, a representatividade surge como possibilidade de reversão de concepções e conceitos racistas
Estudos sobre a representação distorcida apontam o impacto que esta pode ter na vida de uma geração. No caso da população negra, a representação negativa tem gerado estigmas sociais que alimentam o preconceito e a discriminação que já duram séculos. Temas como este, foram debatidos no V Seminário Produção Científica Feminina na Bahia: Pesquisas e Pesquisadoras, realizado pelo Instituto Geográfico e Histórico da Bahia. Algumas pesquisas mostram a ocorrência de mudanças nesse quadro a partir da desconstrução e da ressignificação de estereótipos e ideologias, tanto nos espaços educacionais, quanto nos meios eletrônicos digitais. Mas a luta pela desestabilização de um sistema de valores que desumaniza o outro e ignora os direitos de um grupo social ainda continua. A representação do negro nos livros didático - Durante suas pesquisas sobre a questão racial na educação brasileira, em meados da década de 1980, Ana Célia da Silva, doutora em Educação pela UFBA e especialista em Estudos Africanos pelo Centro de Estudos Afro-Orientais (UFBA), notou que
a representação social do negro nos livros didático das escolas de ensino básico, além de raras, ajudavam a reforçar estereótipos e a discriminação, invisibilizando seus valores históricos e culturais. A depreciação era naturalizada de forma que, muitas vezes, a própria criança sujeitava-se à concepções preconceituosas sobre si, acreditando ser esta uma realidade e não uma representação distorcida. Foi a partir dessa representação negativa que Ana Célia da Silva passou a desenvolver seus estudos sobre o conceito de auto-rejeição, pois ela percebia que desde cedo a criança com a autoestima afetada pelas representações depreciativas do seu fenótipo, tendia a não aceitar a si e nem aos seus semelhantes por haver uma ruptura na sua relação com a própria identidade étnico-racial, não querendo deste modo pertencer a um grupo socialmente inferiorizado. “Quantas de nós não pegou nossos cabelos quando era criança e alisou? Por que a gente queimava nossos cabelos? Na maioria das vezes, porque alguém disse que ele era ‘ruim’. Isso se chama ‘au-
to-rejeição’, disse Ana Célia, durante sua palestra no V Seminário Produção Científica Feminina na Bahia: Pesquisas e Pesquisadoras. Em seu livro “Desconstruindo a Discriminação do Negro no Livro Didático”, lançado pela editora EDUFBA, a pesquisadora propõe a ressignificação para desconstrução da representação negativa em sala de aula através da identificação e correção tanto de textos quanto de imagens discriminatórias nos livros durante atividades feitas pelo professor e alunos. Não somos todos iguais - Outra questão colocada por Ana Célia da Silva é o cuidado que os educadores devem ter quando enfatizam a igualdade ao invés de valorizar a pluralidade histórico-cultural e fenotípica que constitui a sociedade brasileira. Quando se coloca que todos são iguais, há uma possibilidade de interpretar a diferença como um problema ou algo passível de ser ignorado, deixando assim de trabalhar o valor da pluralidade em sala de aula. Isso abre um espaço para a valorização da “ideologia do branqueamento”, já que diante do valor negativo que
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“ educadores devem ter cuidado ao enfatizar A igualdade ao inves de valorizar a pluralidade cultural e fenotipica que constitui a sociedade
brasileira ”
se tem do negro, a criança acredita que para ser igual a todos, é preciso se igualar ao modelo eurocêntrico convencionado pela sociedade. Por esta razão, seria mais importante ressaltar que a diferença não é o problema, e sim a sua não aceitação e intolerância. Em vigor desde janeiro de 2003, a lei 10.639 que coloca como obrigatório o ensino de História e Cultura Africana/Afro-Brasileira nas escolas de educação básica, é uma das conquistas no âmbito educacional e jurídico que visa valorizar a diversidade e promover ações que auxiliem no combate
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da discriminação, do preconceito e da intolerância. Desse modo, a escola deve, por lei, ser um local onde é possível produzir conhecimentos e valorizar a pluralidade de raças e etnias que formam a identidade cultural brasileira, além de possibilitar aos estudantes afrobrasileiros a construção de sua identidade pessoal ao conhecer mais sobre sua própria história, a partir de uma perspectiva menos eurocêntrica. No entanto, Ana Célia da Silva afirma que, apesar de ser um importante avanço para o reconhecimento e valorização da diversidade cultural brasileira, a eficiência da lei ainda fica comprometida por
restrigir sua aplicação somente à educação básica, deixando os cursos de formação de professores fora dessa obrigatoriedade. A consequência dessa decisão afeta inclusive a possibilidade de se trabalhar efetivamente a cultura negra em sala de aula e de desconstruir estigmas sociais por haver professores que não conhecem os elementos da própria cultura negra e que, em diversos casos, ainda perpetuam preconceitos e ideologias discriminantes. Geração Tombamento e Representatividade - Para a pesquisadora Adriele Regine, mestranda no Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Estudo Étnicos e Africanos – UFBA, a representatividade negra é um elemento chave para o enfraquecimento do modelo social hegemônico, por
ser justamente a representação positiva da cultura africana e afrodescendente, de forma que o indivíduo e seus semelhantes possam se espelhar e ter referências positivas para a construção da sua identidade pessoal. Desta forma, a mestranda escolheu como linha de pesquisa os estudos sobre o movimento estético, social e político que ganhou força com a popularização das tecnologias digitais, a chamada “Geração Tombamento”. De acordo com a pesquisadora, o termo surgiu da gíria “tombei”, que é utilizada em situações em que a pessoa ressalta seu auto-valor e sucesso pessoal. A expressão popularizou com a música de Karol Conká, um dos expoentes desse movimento que coloca em suas canções temas como liberdade, independência e poder negro/feminino. Desta forma, o movimento busca ressignificar a representação tanto da comunidade negra, como dos grupos minoritários em geral, a fim de fortalecer uma identidade pessoal mais fiel aos próprios valores, seja étnico-racial, de gênero ou de sexualidade, ao mesmo tempo que constrói uma identidade social como meio de resistir e re-existir diante do modelo hegemônico. Adriele, que também é bacharel em Design de Moda, ressalta que apesar de ser lembrado mais por sua conotação estética e cultural, esse estilo implica também uma atitude de militância política herdada de outros grupos que lutaram pelo fim do preconceito nas décadas passadas, como o afrofuturismo e o afropunk. Para essa nova geração, o corpo torna-se instrumento de re-
sistência, já que através do cultivo da aparência e atitudes que fogem do padrão considerado aceitável socialmente, coloca-se a auto-afirmação como forma de protesto. “Quando esse corpo negro entende que ele tem ele tem seus próprios desejos vontades e experimentações, ele compreende seu espaço, compreende como esse corpo é político. Aí ele rompe com o modelo colonizador, assume suas características físicas e étnicas para além do caricato”. Segundo Adriele, o maior acesso da população das classes mais baixas às tecnologias de comunicação e a promoção de políticas públicas pelo governo, no início deste século, foram fundamentais no surgimento da geração tombamento. As redes sociais são uma das principais ferramentas utilizadas pelo movimento para buscar a auto-representação dos grupos sociais discriminados, como negros, LGBT+ e feministas, seja através de frases de efeito, da organização de eventos que destaquem a música negra e da periferia, do empreendedorismo voltado para grupos minoritários e dos famosos “textões” de facebook. Deste modo, os representantes dessa geração têm pautado questões sociais que foram invisibilizadas durante muito tempo, como o racismo, machismo, sexismo, gordofobia e a LGBTfobia. C
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Entrevista
O Problema social explicito na rede POR REBECA ALMEIDA
Entre as possibilidades trazidas pela internet, uma delas é facilitar a comunicação, aproximando indivíduos. Através da rede é possível conversar com pessoas diferentes e acessar as mais variadas informações. Mas esse potencial nem sempre é utilizado de maneira positiva. Um grande número de pessoas têm usado a esfera cibernética para propagar pensamentos racistas e discursos de ódio. No Brasil, em 2017, foram recebidas e processadas 40.380 denúncias anônimas de racismo envolvendo 20.479 páginas (URLs) hospedadas em 4.413 hosts diferentes, conectados à Internet através de 2.978 números IPs distintos. Segundo dados da SaferNet, sistema automatizado de gestão de denúncias de crimes online. De acordo com esses indicadores, é o segundo crime mais denunciado, atrás apenas da pornografia infantil. O Brasil ocupa o terceiro lugar no mundo em denúncias por racismo na internet, atrás apenas dos EUA e Irlanda. Para o professor e coordenador do Programa Direito e Relações Raciais (PDRR/UFBA), Samuel Vida, os crimes de racismo praticados na internet acontecem sobretudo porque aqueles que os praticam acreditam na possibilidade de anonimato. Além disso, outra característica do racismo é sua forma mais crua. “O que a internet permite é a transgressão daquilo que alguns chamam de racismo cordial, aquele que se reflete nas formas mais indiretas de discriminação”. Ele acredita que nas redes sociais esses meios são deixados de lado e o racismo se expressa de forma mais direta e agressiva. Confira a entrevista:
Ciência e Cultura: O que é um caso de racismo e o que é injúria racial? Samuel Vida: Tecnicamente, a diferença é a seguinte: segundo a tradição jurídica em vigor, a injúria é uma ofensa individual à honra subjetiva de um sujeito. Ou seja, se eu chamo de “Nega Maluca” eu estou praticando injúria. Se eu digo “as negras são malucas”, eu estou praticando racismo. Racismo é quando deixa de ser uma ofensa individual e passa a ser uma ofensa a toda coletividade, depreciação genérica da condição racial. Essa é uma distinção criada pela técnica jurídica cuja função é a dispersão do potencial de reação às denúncias de racismo. No meu entendimento, ambas as práticas são racismo. Por que se adotou essa dupla estrutura de criminalização? Porque na prática faz com que quem responde por injúria racial possa contar com um tratamento mais brando. Não é inafiançável, não é imprescritível, até
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pouco tempo atrás era um crime de ação penal privado, que implicava que a vítima tinha que contratar um advogado e entrar com uma ação. Isso esvazia o potencial punitivo porque do ponto de vista técnico, injuria não é racismo. Quais as especificidades do racismo praticado na internet do praticado offline? A única especificidade é a sensação de anonimato ou de inacessibilidade que parece marcar a subjetividade de quem pratica esses atos pela internet. Pela possibilidade de usar perfis fakes e imaginar que não vai ser descoberto. Também parece que o meio remoto libera com mais ênfase aquilo que muitas pessoas pensam, acham, acreditam, mas, que no contato mais direto costumam ter mais constrangimento de externalizar. Talvez essa seja a única distinção. Do ponto de vista mais substantivo, as manifestações, agressões, injúrias ou atos atentatórios praticados pelas redes sociais são a expressão do sen-
timento médio que marca a intolerância racial e a disponibilidade do brasileiro para exercer uma atitude discriminatória. As questões raciais são um foco de permanente tensão no Brasil e o que a internet possibilita talvez seja a transgressão daquilo que alguns chamam de racismo cordial, onde o racismo se reveste em formas mais indiretas, evasivas e sutis. Parece que nas redes sociais esses meios são, digamos assim, abandonados e se utiliza um expediente mais direto, mais agressivo, mais cru. Podemos afirmar que o racismo na internet é uma consequência de um problema que existe na sociedade como um todo? Seguramente o racismo é o elemento que estrutura a sociedade brasileira, em todos os domínios. Nas suas formas mais indiretas, no plano institucional, quando se têm toda uma mobilização de estruturas, de normas e valores que são intrinsecamente excludentes para os negros e suas trajetórias, até o
cotidiano e suas relações de convivialidade. Eu diria que inclusive no terreno mais insuspeito para o senso comum, que é o terreno da afetividade e da sexualidade. Então, o racismo na internet é só uma expressão, por uma modalidade um pouco diferente, daquilo que está no cotidiano das relações sociais no Brasil. Como o Direito trata a injúria racial na internet? Primeiro, o Direito ainda lida mal com o racismo de forma geral porque ele pretende capturar apenas e tão somente aquelas manifestações mais explícitas, o que muitas vezes deixa de fora grande somas de expressões e práticas racistas Já no caso específico da internet, como as agressões são mais diretas, o Direito tecnicamente está habilitado a responder. Há uma mobilização para a responsabilização penal pela legislação em vigor, que considera racismo crime inafiançável, imprescritível, sujeito à pena de reclusão ou quando se refere a injúria racial. Então, em tese, há condições de punibilidade, o problema
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vai acontecer na esfera judicial porque normalmente os magistrados brasileiros ou desclassificam essas denúncias ou aplicam um expediente processual penal chamado de suspensão condicional do processo, pelo qual, o réu primário, pode se beneficiar de uma interrupção do processo. Como os criminosos racistas em geral são as “pessoas de bem”, que não têm precedentes criminais, quase sempre têm direito a esse tipo de benefício que acaba gerando, do ponto de vista efetivo, a impunidade.
“A internet possibilita a transgressão daquilo que chamam de Racismo Cordia”
Do ponto de vista legislativo, existe alguma busca por mudanças para julgar esses casos? Há uma discussão sobre isso buscando dar maior efetividade, mas há também muita controvérsia, pois o Direito não pode ser pensado como um instrumento de combate ao racismo apenas na esfera penal. Essa é a esfera menos propícia a reverter qualquer tipo de discriminação, ainda mais quando ela se reveste de natureza estrutural como o racismo. Portanto é preciso trazer para o direito a prospectiva de dar conta do racismo em outros domínios: nas relações civis, no Direito Constitucional, no Direito Administrativo, no Direito Educacional… Então, embora existam outras questões que pretendem aperfeiçoar, me parece que são discussões sujeitas à um risco muito grande de duas ilusões: uma de corrigir o racismo pelo Direito Penal, a outra de ter a ilusão de que a magistratura, que também é racista, vai aplicar qualquer lei, por mais “precisa” que ela seja. Porque na interpretação há sempre subterfúgios que podem ser evocados para descaracterizar [como crime]. O mesmo acontece com o feminicídio
“A única especificidade do racismo na internet é a sensação de anonimato”
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ou outros comportamentos preconceituosos e discriminatórios de natureza estrutural. Quais seriam possíveis soluções para o crime de racismo? Eu penso que, ainda que devamos manter essas condutas criminalizadas, não devemos apostar na estratégia de que é pelo direito penal que nós vamos desconstruir o racismo. Essas medidas penais são meramente simbólicas para se construir, inclusive, uma reação de condenação moral e ética à essas práticas. Mas elas só são efetivamente enfrentadas na esfera de outros territórios. Até porque, imagine se todos os machistas fosse colados na cadeia? Se todos os racistas fossem colocados na cadeia? Se todos os homofóbicos fossem colocados na cadeia? Nós despovoaríamos a sociedade brasileira. São metas inatingíveis pelo direito penal. Então, elas devem existir para casos exemplares, para casos mais agudos e sobretudo para disputa simbólica, disputa de valores, disputa ética no interior da sociedade. No mais, é necessário trabalhar na prevenção e conscientização da sociedade como um todo. C
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Tecnologia
Ascensão e queda: Dois lados de uma criptomoeda
Com a grande alta na cotação dos Bitcoins no final do ano passado e a forte queda no início deste ano, oscilações parecem fazer parte do mercado econômico de criptomoedas. Investidores comentam o fenômeno e essa nova tecnologia POR REBECA ALMEIDA No final do ano passado diversas notícias sobre criptomoedas circularam na mídia, sobretudo sobre Bitcoins, a primeira moeda digital descentralizada. Tendo surgido em 2009, a moeda não valia nem US$ 0,01. Em 2010 valia cerca de US$ 0,39. Sete anos mais tarde a moeda alcançou seu maior valor: US$ 19.551 em dezembro de 2017. No entanto logo após a alta do ano passado, 2018 parece não estar sendo muito favorável para a valorização da criptomoeda. Atualmente 1 BTC (ou XBT, ambas siglas para Bitcoin) vale aproximadamente US$ 10.224. Inúmeros são os casos de investidores que lucraram muito com a valorização do final de 2017. Exemplo foi o da investidora baiana, Jéssica Jiusti. Ela já possuía ações na bolsa de valores, mas em novembro percebeu uma nova possibilidade de lucro: investir em criptomoedas. Passou a investir valores não só em Bitcoins mas também nas moedas Ripple, Iota, Cardano, Lisk, Sttelar e Dash. Para ela, que não revelou números exatos do quanto lucrou, esse tipo de investimento é de alto risco, por isso ressalta que “só se deve investir um valor que não fará falta caso se perca”. Bolhas e tulipas - Outro investidor baiano é o arquivista Ricardo Andrade. Para ele,apesar da grande oscilação no valor dos Bitcoins, não se trata de uma bolha especulativa, como apontam alguns especialistas. Tal conceito econômico está relacionado com uma situação onde o valor de uma
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determinada coisa ou ação parece se basear em uma visão distorcida ou inconsistente sobre o futuro. Ou seja, muitas vezes um determinado produto atinge grandes valores devido simplesmente a grande demanda em torno do mesmo, gerando alta nos preços. Quando a bolha “estoura” esses mesmo preços caem vertiginosamente em um curto período de tempo. Um exemplo de bolha especulativa sempre citado por economistas foi o das tulipas, no século XVII. Considerada a primeira bolha da história, essas flores alcançaram preços altíssimos que depois simplesmente caíram quando as pessoas pararam de comprar, gerando queda nos preços. Muitos especialistas comparam a alta dos Bitcoins com a alta das tulipas no passado. É o caso do economista-chefe da rede de bancos UBS, Paul Donovan, que, em novembro do ano passado, fez a comparação em uma série de tweets. Quando ocorrem manifestações como essa, o valor do Bitcoin cai rapidamente. Para a investidora Jiusti essa variação ocorre porque “há muitas pessoas investindo nessas moedas sem estudar. Assim, quando cai um pouco a primeira coisa que essas pessoas fazem é vender”, o que acaba gerando mais queda. Nova tecnologia - Muito antes da investidora Jiusti, em 2014, Andrade percebeu como uma boa oportunidade de lucro investir em criptomoedas. Ele não tinha histórico de outros tipos investimentos até aquele momento e pode ser considerado um entusiasta da nova tecnologia trazida pelos Bitcoins: o blockchain. Também conhecido como “protocolo da confiança”, essa tecnologia foi desenvolvida junto com a moeda digital Bitcoin. Trata-se de um tipo de Base de
Dados Distribuída que guarda registros de transações e até então é considerada à prova de violações, pois os dados são criptografados (daí a origem do nome criptomoeda). Não se sabe a real identidade da pessoa ou grupo de pessoas desenvolveu o Blockchain, mas o pseudônimo “Satoshi Nakamoto” respondia na rede como o criador da tecnologia até 2012 quando subitamente Nakamoto “sumiu” da internet sem revelar sua real identidade. “Blockchain é uma forma de encadear blocos [com informações de transações]. Cada bloco novo está ligado ao bloco anterior. Dessa forma não é possível desvincular esses blocos”, explica Andrade. Ele afirma ainda que o diferencial do Bitcoin é ter sido a primeira moeda digital a utilizar essa tecnologia. Para o profissional de TI, Ariel Bello, as possibilidades trazidas pela Blockchain estão muito além do Bitcoin. Ele cita a Steemit, uma rede social que utiliza a tecnologia para gerar renda para todos os usuários que produzem ou compartilham conteúdo dentro do sistema. Apesar disso, ele é pessimista: “Como várias outras tecnologias antes do Bitcoin, o poder descentralizador do blockchain só vai até onde os reguladores econômicos permitirem”. Livre comércio - Outra característica das criptomoedas está na comodidade. Tudo funciona na internet, de forma autônoma. Não há taxas cambiais ou órgãos reguladores. Tais características podem levar ao desenvolvimento de uma moeda internacional, que não depende de fronteiras entre países. Por outro lado, tais características são as que geram desconfiança do mercado financeiro tradicional. Resta saber até quando as criptomoedas irão sustentar essaautonomia. C
Biociências
SUS: Práticas Integrativas Complementares geram controvérsias POR LARISSA COSTA Segundo dados do Ministério da Saúde, ano passado, mais de 1,4 milhão de pessoas tiveram acesso às Práticas Integrativas Complementares em Saúde (PICS). A expectativa é que os pacientes do SUS se beneficiem de tratamentos e utilizem recursos terapêuticos como prevenção de doenças como depressão e hipertensão
Nas manhãs de sexta-feira da Universidade Federal da Bahia (UFBA), no campus de Ondina, em frente à Biblioteca Central, pode-se encontrar um grupo praticante de Tai Chi Chuan. É fácil reconhecer essa prática por seus movimentos lentos e circulares realizados com as mãos, pela leveza com a qual os pés são movidos. As orientações da instrutora, formada pela Academia Brasil China e bióloga licenciada pela UFBA, Isa Machado, 34, passadas durante a aula são quase sempre sobre concentração e respiração: “Prestem atenção ao seu corpo. Vocês só têm uma hora na semana para cuidar de si mesmos”. Já Maria Fanny de Araújo tem duas semelhanças com Isa: tem 34 anos e também pratica algumas terapias alternativas. Diagnosticada com câncer de mama, pela segunda vez, optou por fazer o tratamento integrativo, aliada à hormonioterapia, em vez do convencional com quimioterapia. Após o primeiro diagnóstico, em 2016, ela realizou a quimioterapia, mas adotou a ozonioterapia, a suplementação e a acupuntura para complementar o tratamento habitual. Dessa vez, entendeu que precisava de um tratamento que fosse menos agressivo e que tratasse a saúde como um todo. “Eu não me sinto doente, não me sinto cansada. Eu faço
um tratamento no qual não sinto efeitos colaterais”, afirma. A eficácia e os resultados dessas práticas ainda geram controvérsia e debates no cenário da saúde no Brasil. Em 2006, o Ministério da Saúde (MS) incorporou ao Sistema Único de Saúde (SUS) as chamadas Práticas Integrativas e Complementares em Saúde (PICS), das quais o Tai Chi Chuan, a ozonioterapia e a acupuntura fazem parte. O objetivo dessas práticas é prevenir doenças e promover a recuperação da saúde através de métodos tradicionais. Neste ano, o MS incorporou mais dez novas terapias, totalizando 29. As PICS consideram o bem-estar dos indivíduos como a união do corpo e da mente, pensamento que tem origem com Hipócrates, o pai da medicina. Historicamente, a medicina ocidental se separou desta corrente com o surgimento do racionalismo e do pensamento cartesiano. Quando aliadas ao tratamento médico, essas tera-
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pias adquirem caráter complementar, não substituindo o papel do médico. O manual da dor do Instituto Nacional do Câncer (INCA), de 2011, sugere o uso dessas práticas no tratamento dos pacientes. “Acredita-se que pensamentos e atitudes podem afetar os processos psicológicos, influenciar no humor e determinar comportamentos”. De acordo com dados divulgados pelo MS, em 2017, foram realizados mais de 1,4 milhão de atendimentos aos usuários, como acupuntura, auriculoterapia e yoga. A expectativa é que os pacientes do SUS se beneficiem de tratamentos e utilizem recursos terapêuticos, baseados em conhecimentos ancestrais, voltados para prevenir diversas doenças, como depressão e hipertensão. As últimas terapias a serem integradas no SUS foram: apiterapia, aromaterapia, bioenergética, constelação familiar, cromoterapia, geoterapia, hipnoterapia, imposição de mãos, ozonioterapia e terapia de florais. Controvérsias - A integração das PICS ao sistema público de saúde levanta algumas problemáticas. O presidente Conselho Federal de Medicina (CFM), Carlos Vital, declarou em vídeo que as terapias complementares “não têm base científica, portanto oneram o sistema e não deveriam estar incorporadas”. A adoção das PICS é incentivada pela Organização Mundial de Saúde (OMS) desde a década de 70. Seus praticantes defendem a eficácia das terapias para a saúde física e mental. Isa Machado conta que começou a praticar o Tai Chi Chuan quando ainda era estudante e procurava aliviar as tensões que sentia com a vida acadêmica. “Minha respiração mudou, minha capacidade de concentração também. Eu acho que a medicina ocidental despreza o cuidado com a mente”, comenta.
O ex-ministro da Saúde, Ricardo Barros, reforça a defesa das PICS e afirma que o Brasil lidera a oferta desta modalidade e se trata de um investimento em prevenção. “Somos o país líder na oferta dessa modalidade na atenção básica. Essas práticas são investimento em prevenção à saúde para evitar que as pessoas fiquem doentes. Precisamos continuar caminhando em direção à promoção da saúde em vez de cuidar apenas de quem fica doente”, ressaltou o ex-ministro em entrevista ao portal do Ministério da Saúde. O médico do Conselho Regional de Medicina do Estado da Bahia (CREMEB) e representante da Bahia, no CFM, Otávio Marambaia questiona a acessibilidade dessas terapias. “Eu não desprezo essas técnicas, mas não confiro a elas validade científica. Se houvesse a possibilidade de que as pessoas tenham acupuntura ou ioga isso seria ótimo, desde que elas tenham o tratamento de base feito de maneira adequada”, disse.. A regulamentação do CFM proíbe os médicos de prescrever terapias complementares para seus pacientes, por não serem reconhecidas cientificamente. Ainda assim, caso o paciente deseje praticar alguma terapia, Marambaia recomenda informar de maneira fácil sobre os riscos e as vantagens que o tratamento pode trazer. “Não há terapia inócua”. Isa reconhece que há alguns cuidados a serem tomados com a prática do Tai Chi Chuan. “Quando eu dou aulas para idosos procuro tirar alguns movimentos que seriam perigosos para eles. Ainda faço os movimentos normais, mas alguns seriam muito fortes”, afirma a professora. C
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Política e Ciência
isso
É lixo ?
Desafios no processo de gerenciamento do lixo ainda faz com que grande parte dos resíduos sólidos com alto potencial de reaproveitamento sejam descartados no Brasil POR GIOVANNA HEMERLY
Lixo
é uma palavra comumente utilizada pela população em geral para referir-se a algo que não se quer mais ou que não tem mais nenhum tipo de serventia, merecendo assim ser destinada ao descarte. No entanto, a partir da instituição da Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS – Lei 12.305/10), que visa promover políticas públicas que reduzam o impacto ambiental e socioeconômico ocasionado pelo descarte incorreto, o termo resíduo sólido tem sido preferível por indicar que o material que é jogado fora ainda é passível de reaproveitamento. Desta forma, houve uma mudança no conceito para estabelecer que: lixo é algo descartado por não possuir mais qualquer tipo de utilidade, enquanto que o resíduo sólido é algo que deve ser destinado de maneira correta, pois precisa ser reaproveitado. Para Viviana Zanta, pro-
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Desafios do reaproveitamento - Segundo dados da ONU Meio Ambiente, apesar de mais da metade do lixo doméstico possuir potencial para o reproveitamento, apenas 20% são reciclados em parte da América Latina. E apesar dos países apresentarem leis específicas que abrangem todas as etapas do manejo dos resíduos sólidos, com punições para o descumprimento, há um grande abismo entre a proposta teórica e a aplicação dessas leis na prática. Viviana Zanta alerta que é importante, por exemplo, repensar a respeito das
embalagens que podem ser reutilizadas e quais devem ser encaminhadas para uma coleta seletiva e serem reaproveitadas por cooperativas de materiais recicláveis. Entretanto, a falta de informações sobre como e onde encaminhar os resíduos para serem reciclados e até mesmo a falta de unidades para realizar esse proces-
fessora da Universidade Federal da Bahia e pesquisadora da área de saneamento e resíduos sólidos, o lixo vv é constituído em boa parte por resíduos orgânicos e recicláveis, o que significa que uma grande quantidade do que é descartado poderia estar sendo reaproveitado. Ela ressalta que a PNRS prevê também a chamada “responsabilidade compartilhada”, ou seja, todos aqueles que geram resíduos possuem a responsabilidade de destinar o lixo de forma correta, seja o cidadão comum, representantes e instituições da esfera política ou até mesmo grupos empresariais. “Hoje eu diria que a maior parte do lixo doméstico seria na realidade resíduo sólido e não lixo. Por lei, desde 2010, nós temos que tratar o material que consideramos não ter mais serventia para nós como resíduo sólido e buscar formas de reaproveitar”, afirma a pesquisadora.
so, tem sido um obstáculo para o funcionamento correto do sistema proposto pela Política Nacional de Resíduos Sólidos. “Uma boa parcela dos nossos resíduos são passíveis de reaproveitamento. O que falta é um conhecimento, ou até mesmo uma unidade que vai tratar ou processar os resíduos sólidos para o reaproveitamento”, declara Zanta. Entre 2012 e 2014, foram disponibilizados R$ 1,2 bilhão por parte do governo federal para que estados e municípios se adequassem à PNRS. No entanto, várias regiões ainda apresentam situação de irregularidade, destinando os resíduos coletados aos lixões ao invés de encaminhá-los aos aterros sanitários ou a uma unidade de coleta seletiva. Os lixões são proibidos no Brasil desde 2014, podendo gerar multas para os estados e municípios que descumprirem a lei. Contudo, apesar dos obstáculos existentes na execução das políticas públicas voltadas para o manejo dos resíduos, o cidadão comum ainda pode ajudar a contribuir para mudanças nesse quadro assumindo responsabilidade sobre o lixo que gera e alterando algumas atitudes cotidianas para que se possa agir de maneira mais consciente e menos consumista. “A nossa deficiência ainda está em estabelecer esse sistema funcionando adequadamente e manter todos os atores envolvidos
trabalhando de uma forma equilibrada. Eu sou responsável pelo resíduo que eu gero. Eu tenho o poder de decidir se eu vou consumir determinado produto e se eu vou querer gerar um resíduo desse produto ou não. A gente tem poder de decisão para reduzir a quantidade de resíduos, mas isso depende da mudança de hábito”, afirma Zanta. C
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Oxum e o poder do feminino no CandomblĂŠ
Universidade
Evento realizado na UFBA reuniu a sacerdotisas do Brasil e da Nigéria para discutir sobre a relevância do orixá feminino no Candomblé e a importância da valorização dos cultos religiosos de matriz africana
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egundo a tradição Iorubá, os orixás são ancestrais sagrados que representam manifestações das forças da natureza e valores humanos, como a justiça e o amor. Cada divindade possui suas características e simbolismo próprio que constituem um arquétipo relacionado com o tipo de ritovutilizado para cultuá-lo. Dentre os principais orixás cultuados pelas religiões de matriz africana está Oxum, também conhecida como Senhora do Ouro, Mãe d’água, Rainha das Cachoeiras, Orixá do Amor. Os aspectos e a importância desta divindade do panteão africano foram discutidos durante o evento “Quem é Oxum? Diálogos Brasil-Nigéria”, organizado pelo Goethe Institut em parceria com o Programa de Pós-Graduação em antropologia da UFBA (PPGA-UFBA). Sagrado Feminino - “Oxum” é um termo que vem da língua iorubá, tendo como origem o nome do rio Osun, localizado no sudoeste da Nigéria. Não por coincidência, Oxum é considerada dona das águas doces tanto no Candomblé
POR GIOVANNA HEMERLY*
quanto na Umbanda (religião na qual é sincretizada com Nossa Senhora da Conceição, santa católica). A orixá representa o poder feminino através do arquétipo da mulher elegante e amorosa, mas também inteligente, determinada, desinibida. Senhora da fertilidade. Esse último aspecto inclusive lhe associa à maternidade, já que é considerada a protetora do feto durante o processo de gestação, além de possuir forte afeição por crianças. Outros aspectos que relacionam-se com ela são a riqueza, o amor, a prosperidade, a beleza e a sensualidade. Mãe Walquíria d’Oxum, integrante do conselho religioso da Casa de Oxumaré e mãe de santo há quase 60 anos, conta durante o evento sobre os atributos principais da orixá e sua importância para o Candomblé. Segundo ela, Oxum, por ser associada a água doce, é a senhora das águas da vida, já que a substância é essencial para a perpetuação dos seres vivos no planeta. “Ela é dona da fertilidade, protetora do amor, inventora do Candomblé, é
menina dos olhos de Oxalá [orixá que está acima dos demais na hierarquia divina]. Oxum é a rainha das águas doces, sem ela ninguém vive”, conta a mãe de santo. No Brasil, Iemanjá, outra orixá das religiões de matriz africana, também recebe o título de “rainha das águas”. No entanto, os praticantes do Candomblé brasileiro associaram esta orixá às águas do mar, deixando as águas dos rios em domínio de Oxum. Mas durante sua palestra, a princesa da cidade de Osogbo (Nigéria), Adedoyin Talabi Faniyi, alta sacerdotisa de Oxum e mestre em estudos africanos pela Universidade de Ibadan, ressalta que em seu país, Iemanjá também é um orixá de rio. Desta forma, a diferença seria entre o tipo de rio, sendo o de Oxum mais sinuoso e de regiões do interior, enquanto que os de Iemanjá correm em regiões mais próximas do mar. Compartilhamento de saberes - A sacerdotisa, que também é bacharel em Artes pela Universidade de Ilorin, participa do Programa de Residências Vila Sul do Goethe Institut, que visa promover o intercâmbio
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Para Mãe Valquíria d’Oxum, a água doce é um dos elementos fundamentais na representação da Orixá por estar associada ao poder de gerar de vida
cultural com artistas interessados na cultura SulAmericana. A princesa contou que sua participação em um evento que busca manter um diálogo entre Brasil e Nigéria, faz parte de sua missão como sacerdotisa, já que, além de poder estabelecer conexões entre a Nigéria e culturas remanescentes da diáspora africana, esta é também uma grande oportunidade para promover a importância da preservação e valorização cultural das religiões de matriz africana, especialmente nas universidades. Em entrevista para Agência de Notícias Ciência e Cultura, Adedoyin Faniyi afirma não encontrar dificuldade na hora de relacionar os conhecimentos científicos acadêmicos com
os conhecimentos religiosos. No entanto, o que é mais difícil de lidar é com relação a desvalorização que as pessoas fazem do conhecimento, dificultando assim o compartilhamento de saberes. Casa de Oxum - A Nigéria, país de origem da princesa Adedoyin Faniyi, foi onde o Candomblé surgiu. É na cidade de Osogbo, localizada na região sudoeste do país, que está situado um dos mais importantes templo dedicado a Oxum, local onde acontecem todos os anos o “Osun-Osogbo Sacred Grove Festival” (Festival sagrado de Osun). O Templo, que é considerado Patrimônio Mundial da UNESCO desde 2005, fica próximo ao rio Osun, que tem suas águas consideradas sagradas por pertencer a orixá. C