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ISSN: 2175 - 4705

Antropologia Social Programa de Pós-Graduação

Universidade Federal de São Carlos São Paulo, Brasil

volume 1, número 2 jul.-dez. 2009


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Revista de Antropologia Social dos Alunos do PPGAS - UFSCar

Revista de Antropologia Social dos Alunos do PPGAS - UFSCar, v.1, n.2, jul.-dez. 2009

ISSN: 2175-4705 Editor responsável Messias Basques

Comissão Editorial

Camila Rocha Firmino, Carla Souza de Camargo, Christiane Tragante, Flávia Carolina Costa, Gil Vicente Lourenção, João Paulo Moreira Aprígio, Karina Biondi, Mariana Medina Martinez, Marília Martins Bandeira, Tatiana de Lourdes Massaro, Thaísa Lumie Yamauie, Victor Hugo Fischer Ribeiro da Silva.

Conselho Editorial

Ana Claudia Marques (USP), Celso Castro (FGV), Christine Alencar Chaves (PPGAS-UFPR), Cynthia Andersen Sarti (UNIFESP), Débora Morato Pinto (UFSCar), Edward MacRae (UFBA), Fernando Rabossi (Museu Nacional), Fraya Frehse (USP), Gabriel de Santis Feltran (UFSCar), Guilherme José da Silva e Sá (UNB), João Biehl (Princeton), João Valentin Wawzyniak (UEL), Jorge Luiz Mattar Villela (UFSCar), Marco Antonio T. Gonçalves (UFRJ), Marcos Lanna (UFSCar), Maria Catarina C. Zanini (UFSM), Mariza Gomes e Souza Peirano (UNB), Olívia Cunha (Museu Nacional), Pedro Peixoto Ferreira (UNIFAL), Rose Satiko G. Hikiji (USP), Simoni Lahud Guedes (UFF).

Universidade Federal de São Carlos

Reitor: Prof. Dr. Targino de Araújo Filho Vice-Reitor: Prof. Dr. Pedro Manoel Galetti Junior

Centro de Educação e Ciências Humanas

Diretora: Profa. Dra. Wanda Aparecida Machado Hoffmann Vice-diretor: Prof. Dr. José Eduardo Marques Baioni

Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social Coordenador: Prof. Dr. Luiz Henrique de Toledo Vice-coordenadora: Profa. Dra. Clarice Cohn

Correspondência Editorial

rau.ppgas@gmail.com https://sites.google.com/site/raufscar/ Publicação eletrônica – Periodicidade semestral Projeto gráfico e Editoração: Messias Basques


R@U Revista de Antropologia Social dos Alunos do PPGAS – UFSCar ISSN: 2175 - 4705

volume 1, número 2 jul.-dez. 2009


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Revista de Antropologia Social dos Alunos do PPGAS - UFSCar

jul.-dez., v.1, n.2, 2009 ISSN: 2175-4705 Publicação eletrônica com periodicidade semestral, organizada pelos alunos do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, da Universidade Federal de São Carlos. R@U destinase à apresentação e discussão de pesquisas e trabalhos em Antropologia, procurando colocar o leitor em contato com os mais diversos temas e questões contemporâneos da disciplina. Colaboradores deste número: Adalton Marques, Aline Scolfaro, Ana Cláudia Rodrigues Marques, Ana Paula Serrata Malfitano, Beatriz Caiuby Labate, Bruno Paes Manso, Camila Nunes Dias, Carla Souza de Camargo, Danilo César Souza Pinto, Eduardo Dullo, Gabriel de Santis Feltran, Gil Vicente Lourenção, Jean Paulo Pereira de Menezes, Karina Biondi, Laymert Garcia dos Santos, Marcelo S. Mercante, Philip Compton, Rafael Guimarães dos Santos, Wellington Teixeira Lisboa. Nomimata de assessores: Caio Araújo Manhanelli, Camila Mainardi (PPGAS-USP), Camila Rocha Firmino, Carla Sousa de Camargo, Christiane Tragante, Elisa Massae Sasaki (ILE-UERJ), Flávia Carolina da Costa, Gil Vicente Lourenção, João Paulo Aprígio Moreira, Karina Biondi, Mariana Medina Martinez, Marília Martins Bandeira, Messias Basques, Thaísa Lumie Yamauie, Tatiana de Lourdes Massaro, Victor Hugo Fischer Ribeiro da Silva.

Projeto gráfico e Editoração: Messias Basques

Biblioteca Comunitária – Universidade Federal de São Carlos R@U: revista de antropologia social dos alunos do PPGAS-UFSCar [Universidade Federal de São Carlos. Centro de Educação e Ciências Humanas. Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social]. Vol.1, n.2 (2009), São Carlos, São Paulo, Brasil. 205 páginas. 1. Antropologia; 2. Antropologia (teoria e métodos).


Sumário

Editorial

p.9

Artigos Roteiro para uma ópera sobre a Amazônia e o futuro da floresta

p.12

Laymert Garcia dos SANTOS

Fruit in the Soil of Magic Horticultural practices as socially conditioned techniques in the formation of Anthropogenic Amazonia

p.20

Philip COMPTON

L’entretien comme methode de recherche avec les personnes sans abri Questions de terrain

p.45

Ana Paula Serrata MALFITANO & Ana Cláudia Rodrigues MARQUES

Kendo: Devir samuraico, mitológicas e ritológicas nipônicas Adentrando a ‘Casa Japonesa’

p.64

Gil Vicente LOURENÇÃO

Selvagens, brutos ou heróis? Os brasileiros de torna-viagem e a construção identitária do Brasil em Portugal

p.94

Wellington Teixeira LISBOA

Ayahuasca As Encruzilhadas da imprensa: Uma análise da reportagem de capa da Revista Isto É sobre a ayahuasca

p.105

Beatriz Caiuby LABATE

Consciência, miração e cura na Barquinha

p.116

Marcelo MERCANTE

Efeitos da Ayahuasca em medidas psicométricas de pânico, ansiedade e desesperança Rafael Guimarães DOS SANTOS

Revista de Antropologia Social dos Alunos do PPGAS-UFSCar, v.1, n.2, jul.-dez. 2009

p.139


Relatos de Pesquisas Acessos e Acordos: Como realizei minha pesquisa sobre as homenagens cariocas

p.144

Danilo César SOUZA PINTO

Entrevista Um debate sobre o PCC Entrevista com Camila Nunes DIAS, Gabriel de Santis FELTRAN, Adalton MARQUES e Karina BIONDI

p.154

Bruno Paes MANSO

Resenhas KISHI, S.; KLEBA, J.B. (orgs.) Dilemas do acesso à biodiversidade e aos

p.176

conhecimentos tradicionais: direito, política e sociedade Aline SCOLFARO

LIMA, Diana. Sujeitos e objetos do sucesso: Antropologia do Brasil emergente

p.183

Eduardo DULLO

CARVALHO, Fernanda Schmuziger. Koixomuneti: Xamanismo e Prática de Cura

p.187

entre os Terena

Jean Paulo Pereira de MENEZES

CASTRO, Celso; LEIRNER, Piero (orgs.) Antropologia dos militares. Reflexões

sobre pesquisas de campo Carla Souza de CAMARGO

Revista de Antropologia Social dos Alunos do PPGAS-UFSCar, v.1, n.2, jul.-dez. 2009

p.194


Editorial

A segunda edição da r@u apresenta aos leitores um itinerário que tem início numa ópera amazônica, cujas personagens não são as típicas figuras do Dramma per musica ou da Favola européias, e que tampouco nos falam de um anti-herói marioandradiano. O artigo de Laymert Garcia dos Santos retrata o projeto de criação de uma ópera multimídia a partir de uma parceria que envolve indígenas Yanomami, o centro de arte e tecnologia ZKM1 e acadêmicos – como o próprio autor, e o filósofo alemão Peter Sloterdijk. In scena estão a Amazônia e o futuro da floresta. Por que uma ópera? Alguns se perguntarão. Laymert Garcia dos Santos demonstra que a questão vista pelos olhos de atores indígenas como Davi Kopenawa é justamente esta: Como fazer com que os brancos ouçam e entendam o que temos a dizer? De nossa parte, o desafio se refere à necessidade de ir além dos muros da academia. Ou seja: Como tornar públicas as coisas?2 Ora, nada melhor que empregar os meios e foros mais cultivados pelo ideário artístico “Ocidental” para fazer com que entrem pela porta da frente, e não apenas como parte constituinte da platéia, os atores que costumamos relegar aos museus etnológicos. O que teriam a dizer a respeito de temas tais o impacto ambiental da construção de hidrelétricas, do extrativismo desenfreado, das monoculturas de soja...? Esses são temas que, no mais das vezes, despertam nosso interesse como “objetos de conhecimento.” Resta levar a sério a tarefa de (re)conhecer as “assimetrias” que permeiam os nossos modos de vida e politizar o debate antropológico de modo a fazer com que a máxima “os nativos com quem estudamos” seja algo mais que uma praxe textual. Aos céticos e velhos do Restelo, fica o convite para que se conceba uma posição acadêmica que não seja nem a do sacerdote, tampouco a do profeta, mas quiçá a de ator-participante e não apenas de espectador-comentarista. Da ópera aos jardins amazônicos... O artigo de Philip Compton se inspira numa bela formulação de Marcel Mauss3 para descrever as técnicas de horticultura indígena responsáveis pela produção e fertilidade das Terras Pretas da Amazônia. Compton articula observações etnográficas junto a indígenas Kayapó e Ka’apor em face das pesquisas da pedologia, biologia e Editorial

geografia que tem se ocupado da ecologia amazônica, delineando de que modo cada

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uma dessas abordagens trata a atuação humana na construção e manutenção das roças (jardins) que os povos indígenas cultivam em toda a floresta. A seção de artigos prossegue com um interessante trabalho de Ana Paula Serrata Malfitano e Ana Cláudia Rodrigues Marques. As autoras problematizam a situação de campos etnográficos nos quais a entrevista se coloca como método que orienta e municia a pesquisa antropológica. Para tanto, relatam suas pesquisas com pessoas sans domicile fixe (ou em situação de rua) na França e no Brasil. O artigo seguinte, de Gil Vicente Lourenção, propõe uma reflexão a respeito da noção de casa por intermédio de sua etnografia junto a praticantes de esgrima japonesa (Kendo). O ensaio de Wellington Teixeira Lisboa encerra a seção com um balanço bibliográfico acerca dos fluxos migratórios de portugueses para o Brasil e seu retorno a Portugal como brasileiros de torna-viagem. Em virtude da controvérsia que se estabeleceu com a recente aprovação pelo governo brasileiro do uso religioso da ayahuasca,4 a r@u traz aos leitores uma seção inteiramente dedicada à questão. O artigo de Beatriz Caiuby Labate analisa a reportagem de capa de uma revista de circulação nacional, demonstrando de que modo a imprensa tem tratado o assunto ao corroborar para a conformação de um juízo que singulariza a questão do uso de substâncias reconhecidas como “drogas” (e afins) como um problema social, político e moral que deveria ser remediado pela polícia e pelo Estado. Marcelo Mercante, por sua vez, oferece ao leitor uma etnografia do universo cultural e simbólico da Barquinha, religião ayahuasqueira localizada em Rio Branco, Acre, na qual se realizam, entre outros rituais, trabalhos de “cura.” O foco da investigação é o papel das visões (mirações) obtidas pelo uso ritual da ayahuasca em processos de conscientização em situações de enfermidades. Last but not least, o artigo de Rafael Guimarães dos Santos discorre sobre os efeitos da ayahuasca em medidas psicométricas de “pânico,” “ansiedade,” e “desesperança,” e sobre os resultados clínicos da ayahuasca nos casos assim diagnosticados.5 Das manchetes do noticiário policial a objeto de estudo nas ciências sociais, o PCC (Primeiro Comando da Capital) é o tema da entrevista realizada por Bruno Paes Manso com quatro jovens pesquisadores paulistas: Adalton Marques, Camila Dias,

encontro de antropólogos e sociólogos em torno de um tema comum, por vias diversas.

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Gabriel Feltran e Karina Biondi. O debate é oportuno, sobretudo, por propiciar o

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A seção relatos de pesquisa conta com um artigo de Danilo César Souza Pinto sobre “homenagens públicas” relativas à nomeação de logradouros, entregas de honrarias e medalhas na cidade do Rio de Janeiro. A revista se encerra com quatro resenhas que, de certa maneira, remetem a pontos que perpassam todos os trabalhos publicados nesta edição. Aline Scolfaro resenha o livro Dilemas do acesso à biodiversidade e aos conhecimentos tradicionais: direito, política e sociedade, organizado por Sandra Kishi e John Kleba. Eduardo Dullo apresenta Sujeitos e objetos de sucesso: Antropologia do Brasil emergente, de Diana Lima. Enquanto Jean Menezes trata do livro de Fernanda Schmuziger Carvalho sobre Koixomuneti: Xamanismo e Prática de Cura entre os Terena; e Carla Souza de Camargo apresenta, por fim, uma resenha do livro Antropologia dos militares. Reflexões sobre pesquisas de campo, organizado por Celso Castro e Piero Leirner.

Boa leitura!

Messias Basques editor responsável

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ZKM | Zentrum für Kunst und Medientechnologie, Karlsruhe, http://www.zkm.de/ Cf. LATOUR, P.; WEIBEL, P. (eds.) Making Things Public: Atmospheres of Democracy. MIT Press and ZKM Karlsruhe, Germany, 2005; Capítulo de Introdução disponível on-line: http://www.brunolatour.fr/articles/article/96-MTP-DING.pdf [acesso em 05/04/2010]; LATOUR, P.; WEIBEL, P. (eds.) Iconoclash. Beyond the Image Wars in Science, Religion and Art. MIT Press and ZKM Karlsruhe, Germany, 2002. 3 “Techniques are like seeds which bore fruit in the soil of magic.” MAUSS, M. A General Theory of Magic. London and Boston: Routledge and Kegan Paul. 1972 [1950], p.142. 4 Cf. http://www.cultura.gov.br/site/2010/01/28/ayahuasca/ ; http://www.obid.senad.gov.br/portais/CONAD/biblioteca/documentos/327994.pdf [acessos em 05/04/2010] 5 Sobre o interesse de psicólogos e neurocientistas, cf. http://cienciaemdia.folha.blog.uol.com.br/arch2010-03-21_2010-03-27.html#2010_03-22_20_58_04129493890-28 [link permanente]

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Roteiro para uma ópera sobre a Amazônia e o futuro da floresta1

Laymert Garcia dos SANTOS

Sob a iniciativa e coordenação do Instituto Goethe-São Paulo, está em curso a criação de uma ópera multimídia sobre a Amazônia a ser apresentada na Bienal de Ópera de Munique, em 2010. O projeto, fruto de uma cooperação germano-brasileira, conta ainda, do lado alemão, com a atuação do centro de arte e tecnologia ZKM,2 de Karlsruhe; do lado brasileiro participam o Centro de Pesquisa da Petrobrás, o SESC-São Paulo, o Ministério da Cultura e a Associação Hutukara Yanomami. Um grande conhecedor da região, Lúcio Flávio Pinto, nos advertiu que a questão central da Amazônia foi, é e será a floresta. Por isso mesmo, ela deve ser a personagem central da ópera. Porém, como se sabe, tal personagem se encontra em situação-limite, engajada num processo que a empurra para a morte. Ocorre que o desaparecimento da floresta amazônica afeta as vidas dos moradores locais nos nove países em que se encontra, dos habitantes do Cone Sul e... do mundo todo. Estamos, portanto, diante de um jogo fatal cuja evidência ninguém mais contesta. Por que um jogo? Porque no imaginário coletivo nos comportamos como se apostássemos que a floresta é inesgotável, e que será encontrada a tempo uma solução para o desmatamento. Mas o jogo é sem vencedores - embora em termos imediatistas haja gente fazendo dinheiro com ele, no longo prazo todos perdem. Ora, tal jogo se dá em diferentes planos e a ópera deve tratá-los em suas relações - para que o público “mergulhe” progressivamente na situação-limite, e realize o que está se perdendo. O espectador precisa sentir-se parte do que está acontecendo. Por isso, nada melhor do que introduzi-lo ao papel da Amazônia no clima, ao que se sabe da floresta como “máquina de fazer chuva” e como “máquina” de absorção de CO2. Em suma, abordar o complexo água-floresta: o maior rio do mundo e a maior floresta tropical do mundo, em interação ainda positiva, embora não se saiba até quando; e ao mesmo tempo deixar claro a fragilidade dessas máquinas gigantescas.

1

Este texto foi originalmente publicado no periódico Humboldt. SANTOS, L. G. “Cantos da selva Notas para uma ópera sobre a Amazônia.” Humboldt (Edición en Español), v. 97, p. 71-73, 2008. A Comissão Editorial da Revista R@U agradece a Laymert Garcia dos Santos pela gentil e atenciosa acolhida à solicitação de sua re-publicação em nossa revista. 2 ZKM | Zentrum für Kunst und Medientechnologie, Karlsruhe, http://www.zkm.de/

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Do plano ambiental pode-se passar para o plano arqueológico-antropológico, pois o que se vê foi gerado por um complexo socioambiental, uma vez que a Amazônia foi e vem sendo ocupada há milênios. Aqui importa destacar que a floresta foi produzida. Tal plano permite derrubar dois equívocos importantes: o de que a floresta é um espaço vazio, que precisa ser ocupado e “civilizado;” o de que a floresta é produto da natureza e não de uma inter-relação entre natureza e cultura. Num certo sentido, é preciso mostrar que a floresta deve ser pensada como um tipo especial de jardim. O plano arqueológico-antropológico nos faz perceber que a floresta é o meio onde evoluem gentes e bichos - sociodiversidade e a maior biodiversidade do planeta. Na Amazônia a vida fervilha – só a Amazônia brasileira possui 1.200 espécies conhecidas de aves, mais de 2.000 espécies de peixes, 250 de anfíbios, 311 de mamíferos, 3.000 de abelhas, 1.800 de lagartas e borboletas, um sem número de insetos. As comparações com outros biomas evidenciam um contraste violento: em uma única árvore da Amazônia já foram encontradas 95 espécies de formigas – dez a menos do que em toda a Alemanha! Os biólogos calculam o número de espécies conhecidas no Brasil entre 168 mil e 212 mil; mas estimam que haja entre 1,4 milhões e 2,4 milhões de espécies... O plano do clima, o plano arqueológico-antropológico e o plano da biodiversidade convergem numa espécie de “apresentação” da floresta, de sua excessiva riqueza e heterogeneidade. Assim, a floresta é a um só tempo, “máquina” de clima, sociedade humana, e mundo animal e vegetal; e tudo estaria bem nessa imensa usina de produção de vida, se não tivesse sido imposto, de fora para dentro, um intensíssimo processo de produção de destruição, que leva o nome de “desenvolvimento”. O que significa o desmatamento? No plano do clima, a devastação conduz a uma catástrofe ecológica - aqui se pode pensar nos efeitos dos incêndios, na exploração ilegal de madeira, na mineração insustentável, na transformação da mata em pasto ou plantações de soja, nas hidrelétricas mal planejadas. Vale dizer: no paradoxo da destruição de uma riqueza socioambiental para a construção de uma riqueza econômica que promove o desenvolvimento... em outros lugares. O paradoxo é que o valor socioambiental não tem valor e que sua destruição gera valor! No plano societário, o “esquecimento” da ocupação multimilenar da floresta favorece uma lógica de ocupação e de povoamento baseada na predação dos recursos e, principalmente, na imposição de modelos de exploração concebidos para outras realidades, que ignoram a especificidade maior da Amazônia, que é ser floresta. Tal atitude colonial conduz ao não-

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reconhecimento da cultura amazônica e ao preconceito contra suas populações tradicionais. Assim, a Amazônia segue desentendida. Mas, a pergunta que ninguém faz é: Por que os povos indígenas sabem manejar a floresta sem destruí-la e, mais ainda, produzindo diversidade? Afinal, basta olhar o mapa e constatar que eles são os guardiões das áreas mais preservadas e que são eles que contêm a devastação. Por que, então, nem mesmo a ciência lhes dá crédito? Para a ciência e a tecnologia contemporâneas a floresta é, antes de tudo, informação, e não é por acaso que biólogos e ecólogos a comparam a uma imensa biblioteca que está sendo perdida com a crescente extinção das espécies, antes mesmo que os “livros” da natureza tenham sido lidos. O sociólogo indiano Shiv Visvanathan percebeu isso muito bem no trabalho do biólogo Edward Wilson: Wilson habita a floresta, mas não mora nela, (...): ele a habita como biólogo de campo. A floresta, como um todo, não existe. Sente-se que até mesmo antes de ter entrado nela, já foi equacionada dentro de um conjunto de programas de pesquisa. Em Biophilia há uma percepção fragmentada da perda da floresta. Há, primeiro, o perigo do homem precisar biologicamente da floresta, e há também a ameaça ao constante avanço da ciência. Para cientistas como Wilson, a floresta é literalmente uma fonte mágica que a ciência pode explorar indefinidamente. A floresta é informação. (...) O modo como o cientista lê a floresta a recorta imediatamente na certeza de uma série de campos visuais através do mapeamento, da sondagem, do censo, da lente de aumento e do microscópio. (...) Em segundo lugar, o que aparece como uma série de discretos bits de informação é então organizado em um enorme sistema de informação chamado ciência. A perda da floresta abre uma série de buracos gigantescos nesse sistema cibernético. (Apesar da eloqüência da linguagem) o sentimento em relação à floresta se perde entre o enquadramento cibernético e o olhar cartesiano.

Chamando a atenção para o modo como a tecnociência percebe a floresta e sua perda, Visvanathan permite descobrir que o fato de ela inaugurar um novo tipo de conhecimento sobre a mata não a torna capaz de promover a preservação desta. Com efeito, arma-se uma situação terrível: por um lado, o conhecimento tecnocientífico acumulado sobre a floresta e sobre sua destruição não parece ter força para influir nos rumos do desenvolvimento predatório levado a cabo pelos civilizados; por outro lado, o conhecimento tradicional dos povos indígenas revela-se operatório para assegurar a sustentabilidade de uma relação positiva entre natureza e cultura. Há, assim, uma contradição no âmago das relações estabelecidas com a floresta, tornando o jogo negativo para todos - parece que os “brancos” são incapazes de ouvir o que os povos

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indígenas estão dizendo. Assim, no centro da ópera, a tragédia é a impossibilidade de ouvir quem enuncia o nó do problema inteiro. E até mesmo os procedimentos tecnocientíficos mais precisos não bastam para fazer o homem ocidental contemporâneo perceber sua cegueira e surdez, fruto de uma ausência de compromisso com o futuro da floresta. Ora, o conhecimento tecnocientífico não dá crédito ao conhecimento tradicional porque a própria constituição do seu discurso se dá pela negação dos saberes que o precedem. Mas a arte, que parte de outros pressupostos, pode ser mais livre do que a ciência para arriscar-se a ouvir o que os povos indígenas estão dizendo. A arte não tem problema em relacionar-se com o mito, a estética não tem nada a perder ao se abrir para essa dimensão. E aqui entram os Yanomami na ópera. Os Yanomami são um dos povos mais tradicionais da Amazônia e do mundo. Desde o final dos anos 80, Davi Kopenawa repete incansavelmente que a floresta não pode morrer. Numa conversa com o antropólogo Bruce Albert, que há quase 30 anos se dedica ao estudo, à compreensão e à defesa da sociedade Yanomami e é sutil intérprete do pensamento de Davi, o xamã, depois de descrever o processo que conduziria à queda do céu, observou: “Nós queremos contar tudo isso para os brancos, mas eles não escutam. Eles são outra gente, e não entendem. Eu acho que eles não querem prestar atenção. Eles pensam: “esta gente está simplesmente mentindo.” É assim que eles pensam. Mas nós não mentimos. Eles não sabem dessas coisas. É por isso que eles pensam assim...”3 Os brancos não escutam, não entendem, não querem prestar atenção. O abismo é tão grande entre os dois mundos, que é total a insensibilidade para com uma possível catástrofe atingindo brancos e índios! Mas se a ópera abre espaço para que os Yanomami falem e os brancos se disponham a ouvir, talvez possamos descobrir porque somos indiferentes à morte da floresta, e eles não. Aqui, tocamos no âmago do roteiro da ópera.

*

3

Davi Kopenawa Yanomami & Bruce Albert, “Xawara: Das Kannibalengold und der Eisturz des Himmels - Ein Gespräch/ Xawara: O Ouro Canibal e a Queda do Céu, in Laymert Garcia dos Santos, Drucksache N.F. Düsseldorf: Richter Verlag/Internationale Heiner Muller Gesellschaft, 2001, pp. 52-53.

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Em novembro de 2006, numa primeira reunião sobre o projeto, no ZKM, ficou claro que uma ópera “sobre” a Amazônia exige de nós compreendermos o que significa captar o “espírito” da Amazônia através do gênero operístico. Assim, parte importante da conversa em Karlsruhe girou em torno da relação entre nossa ópera multimídia e Orfeu, ou seja, entre o que vamos fazer e o que o mito, o teatro antigo e Monteverdi fizeram. Mas atenção: nessa conversa com Orfeu não comparecia como argumento retórico ou referência erudita. Com efeito, após ouvir nossas intervenções, Peter Sloterdjik observou que, em seu entender, parecia que todos manifestavam “uma dor amazônica”, a dor de uma perda, ou da iminência de uma perda, como se estivéssemos todos à procura de um Orfeu amazônico que tenta cantar algo, cuja música estaria sujeita a ou determinada por uma situação de ameaça. E sugeriu que tínhamos de começar pela elaboração de um Roteiro que pudesse lançar e delinear um herói, talvez a própria mata como um coro heróico; isto é: o sujeito amazônico como suporte do experimento. O filósofo ainda imaginou que tomássemos o estado de ameaça como ponto de partida para a busca da imanência dessa perda e acrescentou que, através de um quadro fonotópico denso o bastante, talvez pudéssemos fazer emergir a realidade da situação. Parece-me que, em seu ponto de vista, o sujeito amazônico por excelência deveria cantar a perda do que Gilbert Simondon denomina “realidade pré-individual”, que é tanto pré-vital quanto pré-física, e que o filósofo da técnica concebe como “centro consistente do ser” - esse plano-fluxo de potenciais, de intensidades e de diferenciais, essa dimensão virtual da realidade, sem a qual nada do que existiu, existe ou existirá pode se atualizar. E Sloterdjik concluiu sugerindo que, caso fosse assegurado o acesso a esse plano de realidade, dele poderia ser lançado um cristal de música. Pois bem. A intuição de Peter Sloterdjik pode se concretizar agora e gerar um cristal de música que capta o “espírito” da Amazônia e tem como herói a própria floresta. Pois os Yanomami falam explicitamente do que o filósofo chamou “a dor amazônica”, enunciam a perda. Mas não se fazem ouvir! Ora, ouvir o que os Yanomami têm a dizer é ouvir o que têm a dizer sobre a floresta, como um meio de ouvir o que a própria floresta tem a dizer. Em seu texto “L’esprit de la forêt”, Bruce Albert esclarece o que significa floresta para os Yanomami: “A palavra urihi a designa em yanomami, ao mesmo tempo, a floresta tropical e o solo sobre o qual ela se estende. Também remete, através de encaixes sucessivos, a uma idéia de territorialidade aberta e contextual. Assim, a expressão ipa urihi, “minha terra-floresta”, pode designar a região de nascimento ou de

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residência atual de um locutor (como domínio de uso), enquanto yanomae thëpë urihipë, “a terra-floresta dos seres humanos (Yanomami)” se aproxima de nossa idéia de “território yanomami,” e urihi a pree, “a grande terra-floresta” se refere a um espaço englobante maximal que faz eco ao nosso conceito de “Terra.” Reservatório inesgotável de recursos indispensáveis à sua existência, essa “terra-floresta” não é, porém, de modo algum para os Yanomami um cenário inerte e mudo situado fora da sociedade e da cultura, uma “natureza morta” submetida à vontade e à exploração humana. Trata-se, pelo contrário, de uma entidade viva, dotada de uma imagem-espírito xamânica (urihinari), de um sopro vital (uixia) e de um poder de crescimento imanente (në rope). Mais ainda, ela é animada por uma complexa dinâmica de trocas, de conflitos e de transformações entre as diferentes categorias de seres que a povoam, sujeitos humanos e não-humanos, visíveis e invisíveis.”4 Essa terra-floresta comporta, portanto, uma dimensão atual e uma dimensão virtual em constante interação, que não parecem aceitar uma separação entre os planos transcendente e imanente, pelo menos como os concebemos, uma vez que a transcendência e a imanência fazem parte de uma “mesma economia de metamorfoses,” para retomar a expressão de Bruce Albert. Nesse sentido, a terra-floresta não pode ser confundida com uma paisagem, um “meio” ou uma área objetivada como mera fonte de recursos, cuja existência só se justifica porque pode propiciar aos humanos a sua sobrevivência ou enriquecimento. Natureza, para os Yanomami, é urihi a, a terra-floresta, e urihinari, o espírito da floresta, imagem que os xamãs vêem. Mas é também da natureza que nascem os cantos dos xamãs Yanomami. Com efeito, numa narração de grande força mítica, Davi Kopenawa transmite a Bruce Albert o modo como os espíritos xapiripë, que são as imagens dos ancestrais que se transformaram nos primeiros tempos, se manifestam para os xamãs no transe xamânico. Assim, depois de descrever o deslumbramento das manifestações dessas imagens, Davi passa a falar de seus cantos, de como, através dos xamãs e dos xapiripë, se dá a recepção do canto da floresta, e de como até mesmo a música dos brancos teria ali a sua origem. “Os cantos dos xapiripë são realmente inumeráveis. Eles não cessam nunca, pois é junto das árvores amoahiki que os xapiripë os colhem. Foi Omama [o criador da humanidade atual e de suas regras culturais] quem criou essas árvores de cantos, afim 4

Bruce Albert, “L’esprit de la forêt », in Yanomamil’esprit de la forêt, Fondation Cartier pour l’Art Contemporain, Paris : Actes Sud, 2003, p. 46.

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de que os xapiripë venham aí adquirir suas falas. Assim, quando eles descem de muito longe, os xapiripë passam perto delas para apanhar os cantos, antes de sua dança de apresentação. Todos os que assim o desejam se detêm então perto das árvores amoahiki para coletar suas falas infinitas. Com elas eles enchem, incessantemente, cestos vazados, corbelhas e grandes jamaxins. Eles não páram de acumulá-los. É o que fazem os espíritos melros, os espíritos xexéu e os espíritos sitiparisiri [tempera-viola] e tãritãriaxiri [gaturamo]. Os cantos dos xapiripë são tão numerosos quanto as folhas da palmeira paa hanaki que se colhe para o teto de nossas malocas, e até mais do que todos os Brancos reunidos. É por isso que suas falas são inesgotáveis. (...) Assim, as árvores amoahiki não param de distribuir seus cantos a todos os xapiripë que chegam perto delas. Sua língua é realmente inteligente, embora algumas possam ser pobres de falas e só ter um falar de espectro. São grandes árvores cobertas de lábios que se mexem, uns sobre os outros, deixando escapar magníficas melodias. Lá onde Omama, nos primeiros tempos, as plantou na terra, os cantos não param de surgir. É possível ouvi-los sucedendo-se sem fim, tão inumeráveis quanto as estrelas. Mal termina um canto e, muito rapidamente, começa outro. Suas falas não se repetem e jamais se esgotam. Pelo contrário, elas não param de proliferar. (...) É lá que os xapiripë devem descer para adquirir seus cantos. Finalmente, quando os xamãs, seus pais, ouvem suas falas, eles por sua vez os imitam. É assim que todos os outros Yanomami podem então ouvi-los. Não pense que os xamãs cantam sozinhos, sem motivo. Eles cantam o que cantam seus espíritos. Os cantos penetram um atrás do outro em seus ouvidos, como nesse microfone. (...) Mas há também árvores que cantam nos confins da terra dos Brancos. Sem elas, seus cantores só teriam melodias curtas demais. Só as árvores amoahiki ofertam belas falas. São elas que as introduzem em nossa língua e em nosso pensamento, mas também na memória dos Brancos. Os xapiripë escutam as árvores amoahiki olhando para elas com muita atenção. O som de seus cantos penetra em seus ouvidos e se fixa em seu pensamento. É assim que eles conhecem. Para os Brancos, os espíritos melros dão folhas cobertas de desenhos de cantos que caem das árvores amoahiki. As máquinas deles as transformam em peles de papel que os cantores olham. Daí eles podem dançar e cantar. Desse modo eles imitam as coisas dos espíritos. É assim. Os Brancos também apanham seus cantos lá onde Omama plantou as árvores amoahiki. Há muitas delas nos limites das suas terras. Eles olham os desenhos de seus cantos sobre peles de papel para imitá-las e se apropriarem deles. É por isso que têm tantos cantores, músicas, gravadores, discos e rádios. Mas nós, os xamãs, não temos o

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que fazer com os papéis de cantos, só queremos a fala dos xapiripë para guardá-la em nosso pensamento.”5 No plano mítico, o canto se origina na floresta. Mais ainda: o conhecimento que os Yanomami e seus xamãs adquirem tem sua matriz sonora no canto das árvores amoahiki. A natureza viva é preciosa, ao mesmo tempo, como terra-floresta e como imagem visual e sonora. Vale dizer: Como opera de não-humanos e de humanos numa economia de metamorfoses. É isso que os xamãs querem dizer e que ninguém parece querer ouvir. Se a personagem central da ópera é a floresta da Amazônia, os Yanomami são o vetor que pode nos fazer aceder ao espírito da floresta; por isso mesmo, são eles que alertam para o perigo do fim. A ameaça da perda irreparável para índios e brancos intuída por Sloterdjik suscita a agoniados Yanomami que tudo fazem para salvar a floresta; mas o que eles dizem é que a agonia da floresta é também a nossa própria agonia.

Laymert Garcia dos Santos Professor Titular do Departamento de Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, IFCH-UNICAMP Pós-Doutor pela École des Hautes Études en Sciences Sociales, EHESS, França Pós-Doutor pela Université de Paris VII, França Professor-Visitante no St. Antony’s College, Oxford University – 1992-1993 Conselheiro do CNPC – Ministério da Cultura, Brasil

Texto cedido pelo autor em 10/02/2010

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Davi Kopenawa e Bruce Albert, “Les ancêtres animaux », in Yanomami l’esprit de la forêt, op. cit., pp. 68 e ss.

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Fruit in the Soil of Magic: Horticultural practices as socially conditioned techniques in the formation of Anthropogenic Amazonia

Philip COMPTOM

Abstract: This study aims to accentuate the effect of social realities that influence indigenous horticultural practices. The purpose of which is to help with the understanding of the formation of Amazonian Dark Earths (ADE’s), fertile anthropogenic soil patches that are widespread across Amazonia. A tentative operational chain is proposed, delineating the processes that go into the formation of a garden (swidden), using data collected on the Kayapó and Ka’apor Indians, in order to demonstrate that the choices of technique and technology involved in horticulture are socially conditioned. Combining pedological, biological and geographical approaches with anthropological ethnographies explaining indigenous cosmology helps to elucidate the processes that go into the creation of Amazonia as anthropogenic. Keywords: indigenous environment; horticulture; Amazonia; cosmology.

1. Introduction: Techniques and Magic

Techniques are like seeds which bore fruit in the soil of magic. Mauss, 1972 [1950], p.142

The above analogy by Mauss can be applied with uncanny accuracy to this study. Here I approach indigenous horticultural practices as a framework for understanding anthropogenic soil formation in Amazonia. This soil is referred to as Amazonian Dark Earth, (ADE), which includes both terra preta (black earth), terra mulata (brown earth). The criteria for this division of soils, apart from colour, include the absence of artifacts within terra mulata (compared with an abundance in terra preta), and the lower levels of Phosphorous (P), Carbon (C), Magnesium (Mg), Calcium (Ca) and PH levels in terra mulata (Kämpf et al. 2003). This led Sombroek (et al. 2002), a pioneer of ADE scholarship, to attribute terra preta formation to be the result of kitchen midden accumulation, and terra mulata the result of agricultural practices. The separation of these two soils, and the exclusion of agricultural habits from studies of cultural practices, rest on tentative historically grounded notions of the Amazonian environment, and should be reappraised. Following an approach that includes agricultural practices in the social and cultural sphere may elucidate information not normally considered by scholars involved in studying ADEs. This is

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valid because there is little consensus on the formation of ADE’s (Neves et al, 2003; Neves and Petersen, 2006; Oliver, 2008). ADE (and terra mulata) is magical in the sense that it is far more nutrient-rich (eutrophic) than surrounding Amazonian soils, which vary in composition but are generally nutrient-poor (oligotrophic). Therefore to pedologists and other scientists the magic lies in the mystery of its creation; how pre-historic Indians created eutrophic soils. Mauss’ (1972 [1950]) ‘seeds,’ in the context of this study, are the choices involved in the creation of agricultural plot or swidden, hereafter referred to as garden on account of the social realities that occur during creation. Lemonnier (1993, p.22) notes that the choices that go into the creation of artifacts are socially produced and “always embedded in some symbolic system,” for which reason the garden is here viewed as an artifact.

1.1 Fixing Horticulture in Western Theories of Nature

The social production of gardens is a little-studied topic, most anthropology and archaeology focusing on domestic spaces, which are in turn the implied and implicit limits of cultural activity. However scholars such as Descola (1996), Fausto (1999), Latour (1993), Lima (1999), and Viveiros de Castro (2004), amongst others, are increasingly interested in how this separation between nature and culture came to be, and what the consequences are for the discipline of anthropology and the study of nonwestern cultures. Latour (1993) demonstrates that the study of the ‘Other’ originated from a perceived boundary that arose as a consequence of science. He asserts that since science arose, those who have it “…differentiate absolutely between Nature and Culture, between Science and Society.” (Latour, 1993, p.99) In the western imaginary, this conflates nature with Amazonian Indians, and within western cultures, creates an internal divide between nature and society. In Amazonia there has been a wealth of studies on indigenous people and the environment (cf. Balée, 1994; Erickson, 2006; Fausto, 1999; Lima, 1999; Viveiros de Castro, 1998, 2004). But until recently the disciplines of ecological anthropology and social anthropology found little common ground in Amazonia. Viveiros de Castro (1996, p.184) explains this was entirely predictable; ecological anthropology assumed an “immanent rationality of an evolutionary kind,” whereas social anthropologists “have

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tended to emphasize the historical, socially determined nature of interaction with the physical environment.” With the general (and recent) acknowledgement that ADE’s are of anthropogenic origin, both ecological anthropologists and social anthropologists have overlapping interests in the form of ADE’s. Returning to the concept of science as a barrier to western understanding of indigenous interactions with nature, Balée (1994) encounters this issue in the parameters of plant classification, in particular, in reference to plants used for magic and those used for medicine. As he notes, “[i]t was seventeenth century Protestant thought that divided the concepts of ‘science’ and ‘religion’,” (Balée, 1994, p.91) whereby science and religion were complimentary, but not magic and religion nor magic and science. Magic is considered here as the process of creating a garden from the forest. This may not be such a leap from Mauss’ (2006 [1939], p.143) intended meaning: “Magic…is concerned with understanding nature.” The extent of comprehension of nature is indeed admirable in Amazonia; the large number of domesticated species that have arisen is testimony to the level of magical accomplishment (many are described in Balée, 1994). Mauss (2006 [1947]) mentioned the most important Amazonian staple as evidence of technological accomplishment: manioc (Manihot esculenta). He cites the use of poison as a sign of the perfection of techniques (Mauss, 2006 [1947], p.100). The preparation of manioc, which involves removing certain poisonous toxins in order to make it edible, is an example of this perfection. The transformation of manioc into edible food, or of elements from nature into gardens, demands skilled processes of making. Gell (1992, p.43) considers the processes of making as a defining characteristic of art objects, separating them from unmade objects that are aesthetically valued. This he calls the ‘enchantment of technology’ (Gell, 1992). Following this understanding the processes of garden-making are what defines it as art object. I begin in Section 2 by describing the phenomena of ADE’s, establishing the importance of horticultural practices as critical components to their formation. Landscape alteration by subsistence activities introduces the issue of environmental determinism, a theory that has lingered in Amazonian literature since it was first applied by Meggers (1954) in connection with the prehistoric Marajoara culture of the Amazon delta. Section 3 details plant use and the environmental determinist perspective, contrasting it with Heckenberger’s (2005) theory of the ‘ecology of power,’ where the effects of the social in the economic are viewed in a prehistoric village layout.

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Section 4 provides a hypothetical operational chain, whereby choices that go into the creation of a garden are extracted and analysed. Ethnobotanical data is drawn from the Ka’apor (documented by Balée, 1994) and Kayapó (from Posey, 2002 [1982, 1985]; and Posey and Hecht, 2002 [1989]). In Section 5 and my conclusion horticultural practices of contemporary lesssedentary peoples are introduced to identify and analyse some of the theories embedded in the operational chain proposed in Section 4. These include ethnographies by Politis (1996) who worked with the Nukak, Rival (1996, 2001) who worked with the Huaorani, Descola (1994) among the Achuar, and Arhem (1996) from the Makuna.

2. Anthropogenic Amazonia

ADE’s cover 0.1-0.3% of forested Amazonia (Sombroek et al, 2003, p.130), or 15,500-20,700 square kilometres (Denevan, 2006, p.156). ADE size and depth is affected by the water-type of the nearest river, commonly divided into ‘white’, ‘clear’ or ‘black’ water. Different river categories hold different quantities of aquatic resources, so while white-water rivers (eg. the Amazon) are the richest in fish, black-waters (eg. the Negro) are the poorest, and clear-waters (eg. the Xingu), are in-between. Though there are small ADE’s located along black-water rivers, such as the Negro, the majority and the largest (measuring up to 500 hectares) are located near the confluences of large white-water rivers, such as the Madeira, Purús, Tocantins, Uatumã, Ji-Parana and Amazon rivers (Kern et al, 2003, p.52) Though few Amazonianists have focused on the region as ecologically heterogeneous, Gragson (1992, p.429) notes that these water-type distinctions are extremely flexible and localized. For example water quality is often seasonal, and may depend on activities and natural phenomena that occur further upstream. Gragson (1992) intimates doubt over water-type as an environmentally limiting factor on human populations, and notes that fish distributions are responses to short-term changes in landscape and habitat, and that “native groups simply adjust their procurement tactics to account for fish density.” (1992, p.436) There may be advantages to ichthyology in relation to indigenous settlement, but Gragson’s (1992) argument negates the fact that ADE’s are smaller near black-water river systems which reflect smaller settlement size. Black-waters are oligotrophic because they drain soils that are oligotrophic. Though there are many vegetation types

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on soils that drain into black-water rivers, one predominant variety is Caatinga, which is xeromorphic and characterised by species dominance and low species diversity (Moran, 1991, p.364). Moran (1991, p.368) proposes manioc as a solution to the problem in Amazonia of cultivation in oligotrophic soils. Moran (1991) correlates extreme dependence on manioc with black-water systems, such as the Negro. This would seem to correspond with plant adaptation to xeromorphic conditions, where biomass is concentrated in plant roots in much higher quantities (34-87%), than most terra firme (interfluvial) forest areas (typically 20%) (Moran, 1991, p.366). The formation of ADE’s is linked to manioc cultivation across Amazonia, and seems a more important subsistence method than varied fishing techniques. Smith (1980) published a seminal paper outlying the rate of accumulation of human debris that would have formed ADE, as ADE depth is correlated with time. He proposed a rate of 1cm per 10 years of settlement (Smith, 1980, p.564). Although this has largely been accepted, Neves (et al 2003) suggest that with higher levels of intensity the rate of incremental growth could have been even faster. ADE’s are between 5,000-2,500 years old (Neves et al, 2003, p.37). The oldest is dated to 4,800 BP in the Jamari River area (near the Ji-Parana river at the source of the Madeira), but most are dated to 2,500-2000 BP (Neves et al, 2003, p.38). Neves (et al 2003, p.29) suggest that this indicates a radical shift in economic subsistence practices, correlated to social change. This has been described by Petersen (et al 2001, p.103), and Heckenberger (2005), as the ‘Formative Period.’

2.1 Formation of ADE’s

The earliest dates of ADE’s are from the central and lower Amazon River. Petersen (et al. 2001, p.101) emphasise the importance of manioc cultivation and intensive use of aquatic resources in the move to sedentism. In the understanding of plant interactions across Amazonia geographically as well as diachronically, it is necessary to include sedentary and less sedentary lifestyles. Heckenberger (2006, p.320) states that macroregional systems of interaction between the two lifestyles began in the Formative period. This interrelationship across ecological zones (upland and riverine), and lifestyle types (sedentary and less-sedentary), is an essential component to the studies provided by researchers.

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For pedologists it is the high nutrient content of ADE’s that are of interest. Upland soils in Amazonia generally are either clayey Acrisols and Ferralsols or sandy Podzols (Lehmann et al, 2003, p.105). The major question that arises in ADE formation is “whether these soils were managed for agricultural use or are a byproduct of human habitation.” (Lehmann et al, 2003, p.105) Applying contemporary horticultural practices to understand the socio-cultural realities that went into the formation of ADE’s is problematic as the past is not isomorphic with the present in Amazonia (Heckenberger, 2006, p.323). Contemporary Indians seldom live in large-scale, sedentary communities on account of the demographic rupture that occurred with the arrival of Europeans in the 1500’s, which resulted in slavery, disease, etc. Nonetheless combining ethnographic studies with archaeological data may be an extremely practical method to approach the distinction in the formation of terra pretas and terra mulatas. Silva (2003) notes that amongst the Asurini of the lower Xingu, communal spaces, where rituals occur, are unlikely to be sources of ADE formation as they are frequently swept clean. This is correlated by Heckenberger’s (2005) reports of the Kuikuru in the upper Xingu. However when the domestic space where food is prepared and ceramic containers are stored is cleared, the refuse is deposited in discard areas, which according to Silva (2003) are the most likely sources of ADE formation. In the case of village abandonment, the domestic space with litter may also be a source of ADE formation. One vast ADE which was among the first archaeological sites to have been extensively excavated are the mounds of earth, (they are classified as a form of ADE), on Marajó Island. Whilst reviewing the research at Marajó, the very early evidence of plant use must be stated in order to comprehend subsistence practices prior to the Formative Period, in both fluvial and interfluvial environments. This is because, as Neves and Petersen (2006, p.282) remind us, both fluvial and interfluvial environments were utilised since the initial occupation of Amazonia.

3. Ethnobotany and Environmental Determinism The separation of Amazonia into várzea, seasonally flooded regions, and terra firme, interfluvial tracts, has been the source of much academic interest into human/environment relations. The line of argument that complex societies could not

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have developed in interfluvial zones because (amongst other factors) the soil was not fertile is known as ‘environmental determinism,’ and was a popular theory around the time (mid-20th century) that Meggers (1954) archaeologically investigated Marajó Island. The environmental determinist approach in Amazonia is that riverine habitation and the fertile soil of the fluvial environment encouraged social complexity. The archaeological presence of a complex society, the Marajoara, in the várzea, was attributed to migration of people from the Andes into an ultimately unsuccessful environment. Meggers (1954, p.809) claimed this was supported by the Marajoara culture having complex societies and technologies in its early stages. At the core of environmental determinism, it was believed that the domestication of flora (agriculture) led to sedentism which in turn led to civilization. Many contemporary scholars now agree to a different sequence, which is, as Oliver (2001, p.55) states; “agriculture followed domestication and settled life.” Oliver (2001) has pointed to the climatic change at the end of the Pleistocene that led to the Holocene period as an important factor in the human manipulation of plants. The archaeological sites of Caverna Pintada, (at the mouth of the Tapajós River) and Peña Roja (between the Upper Negro and Solimões Rivers) both have radiocarbon dates supporting human occupation over 9,000 years ago (Oliver, 2001, p.56), which is within the time that modern climatic conditions began to prevail. As Oliver (2001, p.57) notes, around 11,000 – 8,000 BP humans occupied both upland forest and savannah habitats. Plant distribution, influenced by climatic conditions, played an important role in the subsistence practices of these very early inhabitants. During the late Pleistocene (18,000-12,500 BP), reduction in carbon dioxide, coupled with homogenous mean temperatures and precipitation would have been disadvantageous for tuberous root plants and forests (Oliver, 2001, p.54). Tubers would have been low-ranking dispersed food resources for hunters and gatherers/foragers (Oliver, 2001, p.54). Grasses of the savannah (including the ancestor of maize), would have thrived under these conditions. Climatic changes that happened at the transition to the Holocene would have been conducive to the advance of lowland forest and tuberous plants. High-ranked food sources would have dissipated at this time, thus a stimulus was provided for a broader, more diversified diet in order to obtain a higher return rate (Oliver, 2001, p.56). Most modern staple root crops, such as manioc (Manihot), sweet potato (Ipomoea), yam (or

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American Taro) (Dioscorea), cocoyam (or American cocoyam) (Xanthosoma sp.), and arrowroot (Maranta) “develop in response to marked dry and wet seasons,” (Oliver, 2001, p.54) those conditions that emerged at the start of the Holocene. Thus a smaller foraging range, with a more diverse diet, would have lead to sedentism. Between 11,000 and 9,000 BP at Pedra Pintada botanical remains including palm seeds and fruits testify to a directed subsistence pattern, not evidence for agriculture as such but “incipient silviculture focused on a broad spectrum of palm species adapted to both flood plain and upland conditions.” (Oliver, 2001, p.211) Most of the identified botanical remains are from trees that fruit during the rainy season, except two palms, Attalea microcarpia and Attalea spectabilis, which fruit throughout the year. The wet season is notoriously bad for fishing, but good for fruiting palms. Thus seasonality would have increased dependency on the availability of other food sources. Clement (2006, p.166) describes fruit-production phenology as a reason for the decline in importance of palm tree fruits towards the middle Holocene, and the increase in use of tuberous plants, leading to their domestication. Tubers and roots are important food sources in tropical zones of wet and dry seasonal variation, such as in Africa, Oceania, and the tropical Americas. He argues that fruit phenology is all the more important considering the often rudimentary nature of food processing and storage techniques (Clement 2006, p.166).

3.1 Moundbuilders and the Ecology of Power The floodplain was seen by Roosevelt (1991) as inimical to the cultivation of tuberous plants such as manioc, which are long-maturing and susceptible to waterlogging (though the possibility of short-maturing tubers was precluded). Short-maturing crops such as maize were better suited to the seasonally inundated floodplains, and this demanded a large investment of labour, particularly in the manual transportation of silt to agriculture areas (Roosevelt 1991, p.405). At the beginning of the Marajoara phase, which Schaan (2001, p.111) suggests began around 500 AD, mounds were built in order to create platforms to protect the inhabitants from the floods. Research by Roosevelt (1991) revealed that manioc was not a staple, thus supporting a theory of heterogeneity across Amazonia. Instead there is evidence of “appreciable maize consumption by some people (20-30% levels) and a few showed

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rather high levels (over 60%).” (Roosevelt, 1991, p.377) David Greene, (the project’s physical anthropologist) proposed a multiagricultural diet supported by bone chemistry, osteology, and archaeobotany (Roosevelt, 1991, p.394). Roosevelt (1991, p.5) intimates that the Marajoara were a culture that expanded, whose population exploded, and then whose populace became weakened on account of intensive economies that were ecologically unstable and over-taxed the resources. Roosevelt (1991, p.405) suggests physiological stress of the population may have been a factor in the demise of the culture, as there was pathological evidence of “disease, poor diet, and hard labour.” These are strong implications that she follows Meggers’ (1954) adaptation theory: Stressing the fertility of várzea soil avoids contradicting Meggers’ (1954) environmental limitation theory. Roosevelt’s (1991) data contradicted Meggers’ (1954) theory by proving that a complex society arose out of Amazonia, rather than originated in the Andes. There are no contemporary indigenous populations that can either support or disclaim theories of environmental adaptation in the várzea. In contrast Heckenberger (2005) claims the Upper Xingu Cultural Area has been continuously inhabited for at least one millennium, probably more, and so provides a wealth of information because the scale of demographic rupture in this region was not as thorough as in most of Amazonia. According to Heckenberger (2005, p.25), hierarchical social relations are tied to where one lives, what area of the village a house is located, where one sits, sleeps, and walks, in relation to other village members, and this is basically the same as in ancient times, just on a smaller scale. In contemporary villages, Heckenberger (2005, p.307) notes that their circular shape “allows the special expression of separation and opposition.” Hierarchies of power are represented by house position and angle. This he calls ‘the ecology of power’, and therefore complex hierarchies exist even in the absence of administrative or economic centralization, which are the traditional criteria for social complexity (Heckenberger, 2005, p.25). The galactic configuration of the 16th century Kuhikugu village demonstrates the embeddedness of social hierarchy in the landscape: Powerful families lived close to the plaza, physically partitioning the villages (Heckenberger 2005, p.123). The plaza is the most sacred ‘owned’ space, which belongs to an individual, the chief, and “can be seen as the incarnation of that individual.” (Heckenberger, 2005, p.306) Heckenberger (2005)

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describes the plaza, the men’s house and the cemetery as institutions, on account of the sacred power they represent, and the fact that the chief embodies the power of the plaza. The studies of contemporary, small scale societies in the present does not include the large and extensive trade network systems that were in place with more complex societies in pre-Columbian times (Heckenberger, 2006, p.323). Heckenberger (2006, p.323) notes the basis of power and prestige in early complex societies in Amazonia (as well as Africa and Oceania) was not based on economic centralization, but rather “the concentration of symbolic and social capital.” In the context of an Amerindian garden, to what extent symbolic concentration and social capital is linked to economic centralization is hard to measure. Using the documentation of the Ka’apor and Kayapo horticultural practices and the format of an operational chain, I aim to illustrate the presence of the symbolic and social in economic activities.

4. Technological choices in the garden Operational chains have been developed by the French school of anthropology that focuses on technological processes as being socially imbued. The line of theory has as its progenitor Marcel Mauss, who in 1948 (2006, p.150) highlighted the sociality characteristic of techniques. Technological choices may or may not complement physical factors. For example, Ingold’s (1993) research into reindeer herders’ choice of technology in Finland provides an example of a decision that is socially conditioned but does not provide the best answer to a physical problem, which is minimum energy input versus maximum production. The reasons for herders’ refusal to adopt to modern and more practical technology of lasso in the north of Finland

“is dictated as much by

considerations of who he is as it is by the mechanical effect he desires to achieve.” (Ingold, 1993, p.124) Such social influences to technological decisions are not visible in the archaeological record, and are not considered by many scientists in their understanding of human interactions with the environment. There is a risk of concluding that actions, technological choices, are always the most energy efficient methods of achieving a desired goal. It must be noted that it is impossible to give a total and real operational chain here, as field-work for a particular case study is necessary. Examples of the necessity

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for fieldwork to describe a functional system include: 1) The gendered nature of horticulture in Amazonia, 2) the question of ownership of garden plots and individual plants, and the relation between plant and owner (if there are similarities to the relation between pet and master (cf. Fausto, 1999), and 3) the time and labour investment. Concerning time and labour, research by Descola (1994) among the Achuar of the Peruvian Amazon provides information in terms of labour hours invested in swidden gardening. After calculation the number of hours spent gardening by each sex is approximately equal (Descola, 1994). Balée’s (1994, p.50) research among the Ka’apor of eastern Amazonia confirms Descola’s (1994) conclusion.

4.1 Operation Garden My operational chain is made following gardening practices documented by Balée (1994) and Posey’s (2002 [1982, 1985,]) (and Posey and Hecht’s 2002[1989]) research amongst two primarily sedentary groups, the Ka’apor (from eastern Amazonia), and Kayapó (from the middle Xingu River). Unlike Heckenberger’s (2005) Kuikuru, both Kayapó and Ka’apor groups have histories involving large-scale movement and cultural rupture over the past few centuries, primarily because of European presence in the region. Heckenberger’s (2005) hierarchy of power cannot therefore be easily applied to garden spaces in this context. It is excluded on account of absence of sufficient data, however it is presumed there may be an ‘ecology of power’ visible in horticultural practices, and in the resulting garden and plant demarcation. The proposed diagram aims to indicate why environmental determinism has intrinsic limitations in revealing either how ADE’s were formed or how pre-Columbian Indians survived in Amazonian ecosystems. The choices that result from social pressures may be solutions to environmental limitations, or they may not. Ethnographies do not commonly detail when technological choices are not the most efficient method of environmental manipulation, but such instances can be inferred through hermeneutically revisiting existing data and providing analogous situations. Analysing horticultural practices of the Kayapó and Ka’apor within the framework of the operational chain below will reveal some of these limitations, and how they could be overcome. As Lemonnier (1993, p.10) remarks, the questions regard to what extent “technologies are a mediation (as well as a compromise) between inescapable universal physical laws and the unbounded inventiveness of cultures.”

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Clearing

Desiccating cut vegetation Physical Factors

Burning

Choices Planting the garden

Social Factors

Leaving plants to grow

Harvesting

Operational chain of Amazonian indigenous horticulture

The left-hand side of the diagram is read vertically, from top to bottom, in six identifiable stages, firstly ‘clearing’, lastly ‘harvesting.’ In reality harvesting does not happen as one event but is staggered, as the garden is multicrop, and therefore harvesting is a process interspersed with replanting, weeding and soil amelioration . Each stage of the garden-making process involves choices that are affected by social and physical factors, displayed at the right hand side of the diagram. Only the first four stages (‘clearing’, ‘burning’, ‘vegetation left to dry’, and ‘planting’), will be discussed, as they are actions resulting from easily identifiable social elements.

Stage 1: Clearing The social meaning of clearing space is important. Descola (1994, p.136) explains how the Achuar conceptualise the preliminary stages of garden creation as “the result of an act of predation committed on the forest.” Predation and reciprocity are themes extensively studied by anthropologists, though rarely in reference to

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horticulture. The significance of taking, or predating land from an imaginary is vital, as predation is extremely important in Amerindian societies. Fausto (1999) explains the logic behind historic accounts of indigenous cannibalism as being deeply embedded in symbolic reproduction. Warfare and shamanism are parts of a dialectic that exists between predation and familiarization. Predation has been suggested as the primary mode of interaction with the outside (Fausto, 1999), in which case the act of clearing forest to create a horticultural plot is embedded in social modes of cultural reproduction. Conversely, familiarization of the predated land must also be included in the sociality of the choice of land, which also affects the size of predated land. Among the Piaroa of Venezuela, Santos Granero (1986, p.660) describes their view of the environment as a subject. Viveiros de Castro (1998, 2004) supports this notion of subjectified nature as a universal amongst Amerinidian societies. The original state of nondifferentiation between humans and animals becomes blurred in the realm of plants. Some are more ‘social’ than others. Viveiros de Castro (2004, p.466) notes that “[c]ultivated plants may be conceived as blood relatives of the women who tend them.” The affinity between plants that are most useful and their cultivators is relational. Manioc thus plays an important role in mythology, as manioc-derived products (beer, bread and soup) are important foods. Manioc dominates the garden layout, both in the Kayapó and Ka’apor garden. Plants are perceived to have had a humanoid ancestor, as with all living things (Viveiros de Castro, 1998, 2004). It is affiliated in a familial way, as pets are, into the social life of Indians, which is reflected by the way the gardens are created and maintained, and how the crops are harvested and ingested. The major difference between pets and plants is that pets are not eaten, whereas plants (or their ‘fruits’) are. Pets are familiarized when included into the village, a phenomena Fausto (1999) refers to as ‘adoptive filiation.’ Pets are subjectified when captured, and then familiarized. Gardens are a social construction for the indigenous communities who transform them from nature, a cultural artefact in anthropological terminology. The following choices are demonstrations of reactions to practical limitations that are strongly influenced by cultural determinants. Among the Kayapó Posey and Hecht (2002 [1989]) describe processes of ‘mulching’ that improve soil quality so that oligotrophic soils are enriched. How the soil is mulched and by whom, and what exactly is added (ash and various plant parts) are

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socially defined factors. Algae from silt has been found in some ADE’s, indicating the transportation of fertile silt to less fertile soil to enrich it (Mora, 2003). Research by Arroyo Kaolin (2009, p.3) illustrates evidence of tillage and soil amendments. Denevan (1996, 2006) has repeatedly emphasised the inefficiency of stone axes compared with metal tools in tree-felling, emphasising the probability of change from sedentism to more nomadic lifestyles upon contact and trade with Europeans. Balée (1994, p.51), reports that the Ka’apor simply girdle very large trees, “since it is believed that an attempt to cut them down might break one’s axehead,” a factor included by Denevan (1996, 2006), in his calculations of labour, time and energy involved in clearing forest. Posey and Hecht (2002[1989], p.175) note that the Kayapó method of tree felling determines to an extent the garden layout, and so trees are felled so that their crowns face the perimeter of the plot. Where the tree bowls fall, and are subsequently burned, large nutrient input into the soil occurs, of which the Kayapó are aware, and consequentially planting is coordinated to match particular species’ soil and nutrient requirements. For the Ka’apor Balée (1994) describes a domino-like process of tree felling, whereby one large tree is cut, and the surrounding trees are weakened so they collapse when the big tree falls. The result of this method on garden layout is not provided. This type of human ingenuity that overcomes physical realities can potentially undermine Denevan’s (1996, 2006) theory that is essentially determinist, where stone technology is the reason for sedentism. Among the Ka’apor the clearing happens in stages, the first of which includes felling vines and shrubbery using machetes, and is done by men, women and older unmarried children (Balée, 1994, p.51). Approximately one month later men and older, unmarried boys continue clearing, this time larger trees with steel axes (Balée, 1994, p.51). The practice of clearing larger shrubbery by men and older boys, compared with the initial clearing done with the inclusion of women seems pertinent, but neither is elaborated on by Balée nor Posey.

Stages 2 and 3, burning the desiccated vegetation The second and third stages overlap in social and physical determinants. Both the Kayapó and Ka’apor leave the cut vegetation to dry before setting it alight. The

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timing of this period involves climatic conditions, as the vegetation has to become desiccated prior to burning, which must happen before the wet season arrives. Recounting Ka’apor practices, Balée (1994) documents the spiritual significance of the wind, that it is called upon by the blowing of a horn the morning burning begins. The importance of wind in the burning process is complemented by Kayapó fire management recorded by Posey (2002 [1982], p.195), who notes that the appropriate day for burning is decided by the elders, who meet to discuss the conditions and timing. He (Posey 2002 [1982], p.195) states that there has to be a wind, but not too strong, so the fire burns the vegetation thoroughly rather than race over it in patches. This is known as a ‘cool fire’, as opposed to a ‘hot fire’, which may scorch the earth (Posey, 2002[1982], p.195). Scorched earth is not good for nutrient retention, but also a ‘hot’ fire would damage the roots of fire-tolerant cultivars of sweet potato (Ipomoea), that are planted even before the burning stage has ended (Posey and Hecht, 2002[1989], p.175). The Kayapó repeatedly burn patches of garden (called by Posey and Hecht; (2002[1989]) ‘in-field’ burning) which effectively cleans the garden of potentially harmful pathogens. The ‘cool’ burning as described for the Kayapó appears to be knowledge of physical environmental practices that are understood in terms of Kayapó sociality. What cannot be discerned from Posey’s (2002) recounting of gardening practices is any social factor that may contravene physical laws, thus providing a danger of nobilizing indigenous actions, and imbibing intentionality of a Western type in landscape management.1 Balée (1994) does not attempt to claim indigenous knowledge of soil chemical make-up as Posey and Hecht (2002[1989]) insinuate, rather an indigenous knowledge of plants through lexicology and a history of horticulture. Amongst the Ka’apor, fire occasionally escapes into surrounding forest, which is not subsequently turned into swidden, but left to regenerate (Balée, 1994, p.51). The burnt forest is called by the same name as burnt patches that are caused by lightening (ka’a-kai) (Balée, 1994, p.51), and provides evidence for a social factor in the parameter of the garden space, as burnt areas are not cultivated.

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See Parker (1992, 1993) for criticism of Posey’s (2002 [1985]) description of the anthropogenic formation of Apêtê’s, forest islands in the savannah

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Stage 4, planting the garden Systematic emic documentation of indigenous horticultural practices at garden organisation level are uncommon in anthropological ethnographies in Amazonia, surprising given the labour time involved in gardening and the cosmological importance of flora and fauna. Posey (2002 [1982]), and Posey and Hecht (2002[1989]) correlated plant distribution to soil fertility: The plants that survive and produce most fruit in rich soils, for instance sweet potato (Ipomoea batatas), are planted in the most nutrient-rich locations, perhaps by the burnt stump of a tree, or under a mound of ash. Balée (1994, p.159) gives a diagram of a garden, showing the spacial distribution of the various plant species that are used in a specific Ka’apor garden. He notes that “the most significant food species are to be found in the sunny center of the swidden.” (Balée, 1994, p.158) The location of crop-type may not be solely because of edaphic conditions, but indicate dietary preferences also, contradictory to Posey and Hecht’s (2002[1989]) theory of soil gradients. Many plant species originate outside the Americas, and are incorporated into Ka’apor and Kayapo gardens, not just for consumption, but sometimes as commodities (eg. rice). The choice of plants with economic value is a factor that would have been germane in pre-Columbian times, as trade across regions occurred. People from different regions utilized a variety of ecological niches. As Moran’s (1992, p.369) studies of indigenous survival in the comparatively infertile black-water ecosystem demonstrates, smoked game meat and forest fruits from upland groups were traded in exchange for fish and agricultural products from the riverine inhabitants, resulting in populations exploiting both fluvial and interfluvial ecosystems. Returning to contemporary upland groups, Balée (1994) and Descola (1994) (and numerous others) document extensive plant knowledge, both in terms of cultivated and non-cultivated plants. Balée (1994, p.169) notes how plants are identified more by shape, colour, leaf texture, smell, and taste of the bark than by fruiting parts, confirming knowledge based on multi-sensory and multi-valence rather than solely consumption interests.

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5. Ethnographies indicating sociality in environmental relations Ethnographies by Politis (1996) and Rival (1993, 1996) amongst less sedentary peoples indicate sociality in their subsistence strategies which are easily visible to anthropologists, and less visible in the archaeological record and to physical scientists. Amongst the Huaorani, Rival (1993) documents the stages that are involved in the creation of a manioc garden. The gardens of manioc are grown solely for the production of manioc beer for festivals. Horticulture is devoted to the purpose of feasting, whereas everyday consumption is dominated by peach palm fruit (Bactris gasipaes) and other semi-domesticated species, such as plantains and bananas, that are ‘grown in the wild,’ so as to be available on expeditions (Rival, 1993, p.644). Rival (1993, p.648) notes that their gardens involve very little labour: They are not weeded, and the same location is never used twice. These choices are made in order to retain their extractive traditions and communal identity as different from that of sedentary societies, of which the Huaorani are aware (Rival, 1993). Another horticultural choice is the duration of growing-time. “The greater the number of guests, the larger the plantation, and the longer the roots are left to grow.” (Rival, 1993, p.646). The size of the garden is also important, Huaorani gardens being typically small, 15 m x 18 m, (Rival, 1993, p.645) sufficient only for the quantity of manioc that is desired for the feasting ceremonies. After harvesting, the pulp is extracted and buried in the ground ‘for about ten days’, until it smells ‘strong and sweet’, and is considered ‘as sweet as a fruit.’ (Rival, 1993, p.646). This metaphorical transformation from root to fruit is important in the understanding of manioc ingestion in Huaorani society. The pollinating practices of birds are analogous to the feasting of Huaorani on manioc. Great importance is attributed to large trees, and fruit-bearing trees, and the Huaorani see themselves as being like birds on a fruiting tree, because birds gorge on the fruit, and therefore so must the Huaorani gorge on manioc beer (Rival 1993, p.647). Politis (1996, 2001) has conducted extensive research into the environmental effects of the Nukak subsistence practices, who live a primarily hunter-gatherer lifestyle in the Colombian Amazonian terra firme forest. Gathering involves limited horticultural practice, extensive hunting, and being extremely mobile, relocating up to 80 times a year (Politis, 1996, p.492). The effect of non-sedentary, non-agriculturalist indigenous

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peoples on the environment is a subject little documented, either in Amazonia or other tropical forest regions. Politis (1996, 2001) documents subsistence practices that transform plant densities and locations irreversibly. The practice of obtaining palm grubs involves chopping down palm trees, waiting for the insects to lay their eggs in the decomposing palm hearts, and then collecting the larvae (Politis, 2001). Among the Achuar Descola (1994, p.254) observes that palm trees are also felled to get at the edible part at the base of the fronds, but palms located closer to the village are spared so that they can be regularly beaten and the fruits obtained over a longer period. This consequently reverses expected density of palm populations relative to village location. For the Nukak, certain palm species’ fruiting seasons are factors that influence the decision to move location, which happens before there is a decline in available resources, which preserves those resources in the long-term (Politis, 1996, p.504). Politis (1996, p.504) is unable to explain how exactly some species of plants came to be concentrated in specific locations, for example popere (Oenocarpus bataua), guana (Dacryodes peruviana), seje (Oenocarpus mapora) and tarriago (or plantain) (Phenakospermum guyanense), but he postulates that their density and location is affected by Nukak mobility patterns, primarily on account of the seeds that are left scattered on the ground in camps that are abandoned. This concentration of seed, and the lack of competing plants that have been removed to create the camps provide improved conditions for their propagation. To confuse the notion of Amazonia as anthropogenic, Politis (2001) states that there are naturally occurring stands of some plant species (eg. Caryodendron orinocense and Mauritia flexuosa), though what impact successive generations of human resource abstraction over millennia may have had is hard to determine.

Conclusion: Nature, Cosmology and Indigenous Technologies Indigenous understanding of flora and fauna is crucial in forming an ecological history of Amazonia. Descola (1994) maintains that clearing a space for a garden is a form of predation, an activity with a gender bias. Among the Makuna, Århem (1996, p.199) states: “Hunting … is a form of male gardening, a point which is explicitly made in mythic narratives.” Descola (1994, p.252) comments that among the Achuar “wild

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fruit is consumed mainly by women,” and that the approximately five kilometer radius of ‘extended garden’ is often covered with women and children gathering such fruits. Århem (1996, p.194) interprets the cosmological process of consumption: Eating involves a process of partial consubstantiation and contextual identification between eater and food – and therefore also the potentiality of the eater being ‘consumed’ by the very food consumed.

All foods are blessed by the shaman before being eaten (Århem, 1996). Ritual transformation of the food into edible (safe) product is important, and exposes the underlying notion that “all natural foods are inherently dangerous to human beings.” (Århem, 1996, p.195) This cosmology of food is carried forward to the extent that it can have implications as to the level of modification of the environment in the long-term. The reciprocity ideology of food consumption “imposes strong sanctions against overexploitations of forest and river sources.” (Århem, 1996, p.200) The power of mythology in dictating environmental use results in large areas of Makuna land being effectively periodically untapped. This Makuna interaction with the environment Århem (1996, p.200) describes as “cosmology turned into ecology,” and it is an extremely useful method of understanding long-term human effects on the environment. The theme of predation and reciprocity is not restricted to the Makuna but is found all over Amazonia (Århem 2006, p.201; Fausto, 1999, p.936). When plants in the garden are viewed as consanguinal (by the Achuar) or predatory (by the Makuna), the reciprocity element inherent in Amerindian cosmologies reveals the power of some plant species (eg. manioc) in both everyday life and belief. And because manioc cultivation has been intimately linked to ADE formation, Amerindian cosmologies are also crucial to the comprehension of the origins of ADEs. Barcelos Neto (2004, 2006) documents the link between Amerindian cosmology and the mundane activities of everyday living among the Wauja of the Upper Xingu, interpreting the omnipresence of apapaatai; beings that lie at the origin and cure of illness. The technologies involved in manioc processing are powerful, believed to have derived from the apapaatai, and as such are physical evidence of the omnipotent dangers of illness. The study of technology among indigenous peoples has been approached by Ingold (2000, p.314), who comes to the conclusion that pre-modern societies don’t have technology at all. This, he argues (Ingold, 2000, p.314), is because the concept of

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technology in Western usage meant that it is used to distance society from nature. As is evident among the Wauja, all tools used in the production of horticulture are a part of indigenous cosmology, and should be approached as such. They are not used to distance the Wauja cosmologically from the environment. This supports an anthropological approach to the study of technology as advocated by Pfaffenberger (1992), Lemonnier (1993) and Ingold (2000). The reason for the proposed anthropological approach to the study of technology is the same as my proposed anthropological approach to the study of horticulture: It bypasses the division of disciplines created when science, magic and religion meant that magic became inimical to science and religion, and technology became included in the study of science. Horticulture also became included in the study of science. Following Gell’s (1992) technological regard of art as ‘that which creates magic,’ horticulture can therefore be described as art production. In describing magic and technical efficacy, Gell (1992, p.57) links the production of art with the production of social relations, and explains that social relations that are generated by technical relations are “technical processes of the production of subsistence and other goods.” The various systems of relations are thus intimately intertwined, totally inseperable. Returning to Mauss, (2006 [1947], p.100) this notion can be drawn together into processes that become compiled into industries or crafts. Industry is taken here as centuries of magical transformation of the soil involving technologies of enchantment creating ADE’s. If domestication is the achievement of levels of understanding of nature, indigenous societies in Amazonia are experts of magic. Gardening among indigenous societies is a form of production, and is an industry involving techniques, and is understudied by anthropologists, and misunderstood by physical scientists who deny magic in the form of art in the production of ADE’s. The practices of cooking and gardening among Amerindian peoples are perpetually affected by cultural determinants, factors that repeatedly skew the statistics of pedologists and archaeologists. Further research from a crossdisciplinary approach, including physical and social scientists, would prove fruitful in the comprehension of Mauss’ (1972[1950]) ‘seeds’ and the soil of magic in Amazonia.

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Philip Compton Sainsbury Research Unit for the Arts of Africa, Oceania and the Americas University of East Anglia Norwich, England E-mail: philipcompton135@hotmail.com

Frutos no Solo de Magia: Práticas de Horticultura como Técnicas Socialmente Condicionadas na Formação da Amazônia Antropogênica Resumo: Este estudo procura acentuar o efeito das realidades sociais que influenciam as práticas indígenas de horticultura. O objetivo é colaborar para a compreensão da formação das Terras Pretas da Amazônia (TPA), que constituem solos férteis antropogênicos disseminados em toda a Amazônia. Propõe-se aqui uma “corrente provisória de funcionamento,” delineando os processos que participam na formação de um jardim (roça) a partir de dados coletados junto a indígenas Kayapó e Ka’apor a fim de demonstrar que a escolha da técnica e da tecnologia empregadas na horticultura são socialmente condicionadas. Combinando abordagens pedológicas, biológicas e geográficas com observações etnográficas e antropológicas referidas às cosmologias indígenas intenta-se elucidar os processos que propiciam a criação da Amazônia como antropogênica. Palavras-chave: indígenas; ambiente; horticultura; Amazônia; cosmologia.

* This is a revised edition of my MA dissertation, submitted in July 2008, at the Sainsbury Research Unit for the Arts of Africa, Oceania and the Americas. University of East Anglia. Supervisor: Aristóteles Barcelos Neto

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Recebido em 02/10/2009 Aceito para publicação em 14/10/2009

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L’entretien comme Methode de Recherche avec les Personnes Sans Abri : Questions de Terrain Ana Paula Serrata MALFITANO

Ana Cláudia Rodrigues MARQUES Resumé: Dans cet article, il s’agit de deux enquête de terrain, menées l’une en France et l’autre au Brésil, auprès de personnes en situation de rue. Etant à la fois acteurs du terrain et chercheurs, les auteurs utilisent comme méthode l’observation participante, la participation observante et les entretiens approfondis auprès des autres acteurs en présence. La réflexion ici présentée porte sur l’utilisation d’entretiens semi-directifs auprès de cette population, dans le but d’appréhender leur point de vue sur les services dont elles sont les usagers. A partir de l’analyse du refus de l’entretien par la personne, de son acceptation ou de situations intermédiaires, il en sort que l’entretien est une méthode effective d’approcher cette population. La discussion porte également sur le contenu des entretiens, le contexte dans lequel ils ont été menés (y compris l’effet de l’enquêteur-acteur), ainsi que les négociations implicites et explicites entre enquêteur et enquêté au cours du processus. Mots-clés: méthodes de recherché ; sans abri ; entretien.

Introduction L’objectif de ce texte est de discuter l’utilité des entretiens semi directifs auprès des personnes vivant prioritairement à la rue, comme manière d’appréhender leur point de vue sur les services, sanitaires et sociaux, qui leur sont proposés. Les réflexions que nous présentons ici sont issues de deux enquêtes de terrain menées dans le cadre de nos doctorats. La première de ces recherches, menée en France (Paris) par le premier auteur de cet article, étudie la place d’une Équipe Mobile de Psychiatrie et Précarité (EMPP) et son intervention auprès des équipes du dispositif d’urgence sociale, des équipes de psychiatrie et des usagers de ces services. La deuxième recherche, menée au Brésil (Campinas),1 étudie le réseau de services publics et associatifs qui travaillent avec les enfants et les jeunes qui habitent la rue, ceux qu'on appelle « les jeunes du circuit des rues, » et met en lumière le réseau des services et les actions qui sont proposées à cette population. Par ailleurs, nous sommes toutes les deux directement engagées dans les dispositifs étudiés. La première, en tant que chargée de mission de l’EMPP, donc sans

1

La ville de Campinas, localisée à 100 km de São Paulo, compte 1 million d'habitants environ et présente les problèmes de grandes villes urbaines.

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contact direct avec la population ; la deuxième, intervenant directement auprès de la

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population en tant qu’ergothérapeute dans l’équipe sociale d’un service de santé mentale intégrant le réseau étudié. Ce dernier service se propose d’accueillir et d’accompagner les jeunes dans des projets individuels prenant en compte la santé physique, la santé mentale – plus particulièrement la question des drogues –, les démarches sociales et le contact avec les familles. En France, le travail de terrain a commencé en janvier 2004, avec notre arrivée dans l’EMPP. Les entretiens dans la rue ont été réalisés durant une semaine du mois d’août 2007.2 Pendant cette période, nous avons essayé de contacter 9 personnes : 4 ont été interviewées, 2 ont refusé l’entretien et 3 n’ont pas été trouvées à plusieurs reprises. Il s'agit de personnes qui sont depuis de nombreuses années à la rue et qui vont rarement dans des structures quelles qu'elles soient, mais qui sont ou ont été suivies dans la rue par l’EMPP. Nous avions donc la connaissance de certains éléments de l'histoire de ces personnes, via l’EMPP et, comme nous les avions toutes rencontrées entre une et 5 fois avec cette équipe, nous avions également quelques expériences communes. Cependant, aucune d’entre elles ne s’en souvenait spontanément lors de la première rencontre dans le cadre de la recherche. Au Brésil, le travail de terrain à proprement parler a duré dix-huit mois, en plus des 3 ans de présence dans le service en tant qu’ergothérapeute. Les entretiens dans la rue ont été réalisés pendant le mois de juillet 2006.3 Nous avons effectué 8 entretiens dans la rue avec 5 jeunes que nous connaissions depuis plus d’un an en tant qu’ergothérapeute : deux garçons âgés de 15 et 17 ans et trois filles, entre 15 et 19 ans. Nous leur avons demandé un entretien en explicitant le cadre de cette recherche, entretien qu’ils ont tous accepté et quelques uns nous ont proposé de passer une journée dans la rue avec eux. La méthodologie de nos recherches est donc au carrefour de différents outils : l’observation participante, la participation observante4 et les entretiens semi directifs En plus des observations, nous avons effectué 48 entretiens avec différents acteurs du terrain (médecins, infirmiers, travailleurs sociaux, usagers), dont 19 usagers. 3 En plus des observations, nous avons effectué 40 entretiens avec différents acteurs du terrain (gestionnaires, directeurs de services, travailleurs du réseau de services et usagers) et 21 groups de discussion avec les jeunes. 4 Différemment de Gold (2003), mais inspirées par les rôles du chercheurs qu’il décrit, nous considérons que le participant observateur est un indigène et agit en tant que tel mais il engage une démarche pour objectiver sa réalité et sa condition, démarche qui prend, le plus souvent, la forme d’une recherche académique, avec une méthodologie spécifique. Eventuellement, la recherche (et l’observation) est pour lui une forme de participation, mais sa présence sur le terrain est d’abord justifiée par sa participation en tant que membre du groupe et seulement ensuite en tant que chercheur. Il était indigène avant d’utiliser l’observation comme une méthode de recherche et probablement il continuera de l’être après. L’observateur participant, par contre, est un chercheur qui arrive sur le terrain pour mener une enquête.

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avec différents acteurs du terrain en étude, à savoir les gestionnaires, les professionnels et les usagers, en dehors et dans les institutions. Dans cet article, nous abordons uniquement les réflexions méthodologiques à propos des entretiens réalisés auprès des usagers. Il est important de préciser deux aspects qui s’articuleront tout au long de cet article : notre double casquette - de professionnelles d'intervention et de chercheuses - et les conditions d’appréhension du point de vue de cette population. D’abord ce double rôle nous met entre les positions de l’observation participante et de la participation observante. Puisque ce sont les actions, celles des autres acteurs sociaux mais aussi les nôtres, qui sont au cœur de nos recherches, nous pouvons dire que le fait d’avoir eu un rôle d'intervention pendant longtemps, modifie notre situation d'observation ; c’est-àdire qu’il y a une réciprocité entre la participation et l’observation qui, dans notre cas, est donnée par notre double position professionnelle. Le deuxième aspect dont il sera question tout au long de cet article est la possibilité d’appréhender le point de vue des usagers – les personnes vivant prioritairement à la rue rencontrées par les services dans lesquels nous travaillons – sur les services qui leur sont proposés, puisqu’ils représentent un élément important pour les deux recherches qui ont comme objectif de connaître la place de ces services dans ce réseau. Ainsi nous nous posons les questions suivantes : quels sont les outils méthodologiques adaptés pour recueillir l'opinion de cette population ? Quelle est l'utilité de mener des entretiens auprès de personnes vivant à la rue ? Est-il possible d'en faire l'économie ? Comment améliorer l’utilité de l’entretien comme méthode pour appréhender le point de vue des usagers ? Y a-t-il une différence entre faire un entretien dans la rue ou dans une institution ? Bien que l'entretien auprès des usagers d’une manière générale soit une méthode courante pour accéder à leur point de vue, étant donné l’objectif de nos recherches, il nous a semblé nécessaire de trouver des stratégies pour dépasser le premier discours des personnes à la rue, que Girola (1996) qualifie de discours stéréotypé.5 Ce type de discours est souvent utile à cette population comme une stratégie pour avoir accès à certaines prestations proposées par les services sociaux ou sanitaires (Adorno et Silva, Même s’il se fait embaucher dans une institution, même s’il vient vivre dans le quartier, même s’ils se fait passer par un malade auprès des autres malades et que, pour ce faire, il doit jouer le rôle de participant, c’est-à-dire de membre du groupe, son objectif principal n’est pas la participation, mais l’observation ; la participation n’est pour lui qu’une forme d’observation. Idéalement, fini l’observation, il cesse la participation. 5 Voir également sur ce point Guedj et al (2003).

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1999). Nous voudrions dépasser ce type de discours, non pas dans le souci d’atteindre une supposée vérité, ce qui n’est pas une question pour le chercheur, mais pour avoir d’autres informations nous permettant d'aller plus loin dans la réflexion sur ces services. Dans ce but, il nous semblait important de rencontrer les usagers en dehors des institutions pour faciliter l'émergence d’autres discours qui souvent ne sont pas possibles dans le domaine institutionnel.6 C’est pourquoi nous avons choisi de mener des entretiens dans la rue. Ceci dit, il nous semble important de réfléchir aux conditions pouvant favoriser ou pas la réalisation et le contenu des entretiens dans ce contexte : avoir préalablement des informations sur la personne, pouvoir citer des connaissances en commun, avoir rencontré les personnes auparavant, aborder la personne et de lui expliquer la raison de cette rencontre. Toutes ces questions sont évidemment importantes dans toute enquête et plusieurs auteurs s’y sont penchés, mais la rencontre dans la rue avec les personnes qui y vivent a ceci de particulier que la rue est pour eux à la fois un lieu public et un lieu privé.7 De ce fait, tout le cadre de la rencontre est à poser au fur et à mesure, rien n’est donné d’emblée, la rue étant un no man’s land et donc l’univers des possibilités qui régissent la rencontre est trop large. Aussi, ces personnes sont-elles souvent abordées par une foule d’intervenants, professionnels ou bénévoles, ainsi que par des riverains et d’autres personnes vivant également à la rue. Celui qui arrive peut venir déranger, soutenir, agresser, aider, contraindre, sachant que la même rencontre peut représenter tout cela à la fois. Dans le but de contribuer à la réflexion sur la méthodologie du travail de terrain avec les personnes qui habitent la rue, nous relatons ensuite quelques séquences de rencontres qui seront discutées à la fin de cet article.

C’est ce qu’a discuté Goffman (1968) et les études sur l'institutionnalisation avec son corollaire de massification, dépersonnalisation, annulation de demandes. Voir également Vexliard (1957, p. 103-104) qui montre comment les entretiens dans les institutions produisaient souvent un discours conventionnel, surveillé (« je cherche du travail »), manquant de spontaneité. 7 Voir sur ce point la discussion de Lovell (1996, p. 62-63) sur les espaces intersticiels, leur dégré de publicité ou privatisation non pas en fonction de propriétés substantielles, mais des pratiques qui s’y construisent et les construisent comme tels.

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Scènes de rencontres dans la rue

Mme Tournier : refus d’entretien

Mme Tournier avait été rencontrée régulièrement par l’EMPP pendant quelques mois et dans ce cadre, nous l’avions rencontrée trois fois. Cependant, cela faisait plus d’un an qu’elle n’était plus suivie par cette équipe. Nous l’avons rencontrée 4 fois dans le cadre de l’enquête. La première fois, elle était au marché. Nous craignions de la déranger, peut-être faisait-elle la manche ? Mais elle s’est éloignée du marché et nous avons pu l’aborder. Pour ce faire, nous avons dû en quelque sorte lui « courir après, » c’est-à-dire que nous marchions très vite derrière elle sur 30m environ, ce qui n’est pas très favorable à une rencontre : il aurait été préférable qu’elle nous voit arriver. Ce type de détail est très important dans un univers dangereux comme celui de la vie à la rue. Nous lui avons expliqué la raison de notre visite et lui avons demandé son aide pour cette étude. Madame Tournier nous a dit que cela faisait 1 an et demi qu’elle demandait partout et personne ne lui répondait, donc elle ne répondrait à personne. Nous lui avons expliqué que nous venions vers elle parce que nous étions déjà venue deux ou trois fois la voir avec le Dr Untel ou Mme Untel. Elle a dit ne pas se souvenir de ces personnes, puis elle nous a signifié la fin de notre rencontre par un « au revoir, mesdames » très ferme. Nous nous sommes demandées si, avec ce refus aussi clair, nous avions le droit d’insister, de revenir à une autre occasion. Puis nous avons considéré qu’elle était peutêtre de mauvaise humeur et qu’un autre jour elle serait plus disposée à nous recevoir. Et aussi, que l’acceptation pouvait venir par la répétition des rencontres, donc pourquoi ne pas re-essayer. Lors de la deuxième rencontre, Mme Tournier nous a accueilli souriante, gentille, en disant qu’elle était fatiguée. Nous n’avons pas évoqué la proposition d’entretien, juste un bref « bonjour, comment allez-vous. » Puis, nous lui avons proposé de passer plus tard, ce qu’elle a accepté. Nous nous sommes demandées si elle se souvenait de nous et espérions qu’elle garde un souvenir de cette dernière rencontre, qui s’était plutôt bien passée, pour faciliter la prochaine rencontre. Le troisième jour, nous sommes passées deux fois sur son site. La première fois, Madame Tournier nous a accueilli en disant : « Bonjour, mesdames. Je vous ai déjà dit : 15 mois sans réponse pour moi, donc je ne veux pas qu’on vienne me casser la tête, je n’ai pas de réponse non plus. Allez voir les gens qui sont place Ménilmontant, il y en a plein par là. Merci, au revoir. Vous avez changé de masque, avant vous aviez un grain

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là et là, maintenant plus, mais je vous reconnais. Je ne veux pas qu’on me casse la tête. S’il vous plaît. Au revoir. » (JT, 8 août 20007) La deuxième fois, même accueil. Nous avons re-expliqué le pourquoi de nos passages et elle : « vous m’avez expliqué tout ça l’autre jour là-bas (en indiquant l’endroit exact de notre première rencontre dans le cadre de la recherche) et je vous ai déjà dit qu’on ne répond pas à mes questions, donc je ne répondrai rien à personne. » Cette fois-ci nous avons estimé que ce refus clair, précis et circonstancié méritait d’être respecté en tant que tel et n’avons plus insisté. La question à souligner dans cette situation est celle de savoir jusqu’à quel point insister ou respecter le refus de contact (Firdion et al., 2000). Faut-il passer plusieurs fois pour créer une constance qui permettrait la connaissance/reconnaissance mutuelle nécessaire à la réalisation de l’entretien ? Les équipes de maraude et l’EMPP fonctionnent souvent de cette manière, en respectant le refus de contact sur le moment, mais en revenant un autre jour en espérant que si un jour la personne n’a pas envie, peut-être le lendemain elle serait plus disponible. Et souvent les personnes à la rue reconnaissent que heureusement les intervenants sont revenus malgré les refus réitérés. Par contre, il arrive aussi qu’elles s’énervent de l’incapacité des intervenants à respecter leur seule demande : qu’on les laisse tranquilles. Donc il ne faut pas renoncer au premier refus, mais il faut aussi savoir respecter un refus. Par ailleurs, concernant nos stratégies pour obtenir son acceptation, il faut relever notre association à des personnes avec lesquelles Mme Tournier avait une bonne relation, stratégie qui n’a manifestement pas fonctionné. Un autre élément à relever est l’explicitation d’emblée du cadre de la rencontre : nous nous sommes présentées en position de demande, en position faible par rapport à elle, puisque nous avions besoin de son entretien pour notre étude. Nous avons formulé l’hypothèse qu’il ne fallait peut-être pas préciser d’entrée de jeu ce cadre, mais nous n’étions pas à l’aise avec cette idée de tromper la personne sur nos intentions. Peut-être a-t-elle refusé parce que cette position d’impuissance dans laquelle nous nous sommes mises ne l’intéressait pas, elle avait peut-être besoin de gens capables de lui proposer des réponses, de l’aide, et non pas qui venaient lui poser des questions, lui demander de l’aide. Ce que nous pouvions échanger à ce moment-là ne l’intéressait pas. Cette négociation du cadre de l’entretien va revenir dans les autres récits ci-dessous, comme nous allons voir.

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M. Maurice Lepage : entretien en « bain marie » M. Lepage était pris en charge par l’EMPP depuis presque dix ans. Si, pendant longtemps, il a été difficile pour cette équipe d’engager une prise en charge avec lui, récemment le lien entre lui et ces intervenants était plus fort, il les accueillait bien et acceptait souvent leurs propositions, comme faire des démarches sociales, prendre une douche régulièrement, voir un médecin et autres. Nous l’avions rencontré avec l’équipe deux ou trois fois auparavant, notamment quelques jours avant d’aller le voir pour lui proposer un entretien dans le cadre de l’enquête. Il disait se souvenir de nous. Nous l’avons ensuite rencontré 3 fois. Dès la première fois, nous lui avons expliqué la raison pour laquelle nous venions le voir et avons sollicité son accord pour participer à la recherche. Il a répondu qu’il allait y réfléchir. Au vu de ce qui s’est passé avec les autres personnes contactées - que nous ne rencontrions plus par la suite ou qui étaient réticentes lors de la proposition d’entretien mais qui finissaient par l’accepter si cela n’en avait pas l’air -, nous avons décidé d’entrer en matière de suite, en essayant d’aborder les thèmes de la grille d’entretien. En même temps, cela pouvait ressembler à du forcing : il n’avait pas donné son accord, mais nous avancions tout de même. Mais Monsieur Lepage n’était pas en position de faiblesse face à cet éventuel forcing. Au fur et à mesure que nous essayions d’avancer dans nos objectifs, il se renfermait, il y avait des silences de plus en plus longs, il ne nous regardait plus et on finissait par clore l’entretien en se donnant rendez-vous pour un jour précis, mais avec une fourchette horaire large, du type fin de matinée ou à partir de 15h. Il ne nous accordait que ce qu’il voulait, c’est-à-dire d’accord pour la rencontre, mais pas pour l’entretien. Dans ce contexte, il était impossible d’introduire le dictaphone. Nous avons procédé de la sorte à chaque fois. Il n’a jamais refusé de nous recevoir, au contraire, il nous accueillait avec le sourire. D’ailleurs, lors de la troisième rencontre, il nous a fait remarquer qu’on passait assez tard (il était 17h). Les intervenants de l’EMPP ont l’habitude de considérer ce type de remarque comme une demande – ou en tout cas, un accord – pour la rencontre, tel que le cadre de cette rencontre a été présenté, donc une légitimation de l’intervention. Ils considèrent cela comme un signe de lien constitué. Pourtant, à chaque rencontre, nous lui demandions s’il avait réfléchi à notre sollicitation et il nous répondait qu’il y réfléchissait encore. Cela montre en tout cas qu’il savait bien ce pourquoi nous étions venues. Le fait de connaître son histoire avec l’EMPP nous permet d’affirmer que s’il ne voulait pas nous rencontrer, il nous l’aurait fait comprendre par son silence, en regardant ailleurs, voire

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en nous quittant sur place. S’il nous accueillait si bien, s’il montrait comprendre en tout cas en partie ce qui nous amenait, il était possible d’identifier là un accord. Il parlait spontanément et facilement de son quotidien, ce qu’il faisait de ses journées, comment il s’organisait quand il pleuvait, quand il faisait froid, etc. Par contre, il se renfermait dès que nous abordions les relations avec l’EMPP ou plus généralement, dès que nous essayions de diriger un peu la conversation sur n’importe quel thème. Il était maître de la conversation, c’était lui qui décidait de quoi nous allions parler et c’était lui qui mettait fin aux rencontres. Il ne nous laissait presque aucune marge de manœuvre pour négocier le cadre de ces rencontres, c’était lui qui imposait le cadre. Nous avons formulé l’hypothèse qu’il pensait que tant qu’il ne nous donnait pas ce qu’on lui demandait, on allait continuer de passer et que s’il nous accordait l’entretien, on ne viendrait plus. Ce qui était vrai, en fait.8 L’expérience de mener des entretiens dans la rue nous a permis de nous retrouver à la place des intervenants : nous essayions d’obtenir l’accord de la personne pour obtenir un entretien, comme les intervenants le font, pour accomplir leur mission (soigner, héberger…) et une fois que la mission serait accomplie, la relation serait interrompue. D’où l’importance de bien préciser les objectifs de la rencontre, pour ne pas créer des illusions. Par ailleurs, ceci pose la question de la négociation du cadre de la relation : il semblait être d’accord, voire demandeur, pour nous recevoir et pour papoter, mais pas pour participer à l’enquête. Il faisait ce qu’il pouvait pour (im)poser ce cadre et nous faisions de même pour (im)poser le notre, celui de l’enquête. Finalement, nous ne sommes plus passées et n’avons pas fait d’entretien formel avec lui, par contre il nous a donné quelques éléments sur son mode de vie, sur les services et, notamment, sur la négociation du cadre de la relation. Cette négociation du cadre est encore plus évidente dans la rencontre avec Antoine.

Antoine : acceptation « partielle » de l’entretien

Comme pour M. Lepage, nous avions rencontré Antoine deux ou trois fois auparavant avec l’EMPP, la dernière fois une semaine avant de lui proposer l’entretien. Nous l’avons rencontré deux fois dans le cadre de l’enquête, mais pour cela il a fallu passer 7 fois sur son site : il n’était pas souvent là, y compris quand nous avions fixé un

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Voir sur ce point Rullac (2006, p. 105)

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rendez-vous. Lors de notre première rencontre dans le cadre de l’enquête, il n’était pas

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sur son site,9 son lieu de vie, mais est arrivé quand nous étions sur place. Il nous a vu de loin et est venu vers nous avec un grand sourire, comme s’il nous reconnaissait, comme il fait d’habitude avec les membres de l’EMPP qu’il connaît depuis environ deux ans. Est-ce que nous bénéficions là d’un transfert de confiance de l’EMPP vers nous ? Est-ce qu’il aurait accueilli de la sorte deux jeunes femmes inconnues qui cherchent à le rencontrer ? Dans un cas comme dans l’autre, il est possible de formuler l’hypothèse que la possibilité de l’entretien ne dépendait pas de la durée de la relation dans le temps. Nous lui avons expliqué la raison de notre visite et il était d’accord pour faire l’entretien, tout de suite, d’autant plus lorsque nous avons proposé de le faire dans le café du coin, qu’il connaît bien. En supposant que cette proposition brouillait le cadre de la relation, que cela avait l’air d’être compris comme un café avec des copines, et toujours dans un souci de ne pas tromper la personne sur la raison de notre rencontre, nous avons fait marche arrière sur l’idée d’aller au café et du coup, lui aussi, sur son enthousiasme initial pour l’entretien. De plus, lorsque nous lui avons parlé de l’enregistrement, il est devenu très réticent et a fini par se souvenir subitement qu’il avait un rendez-vous dans 5 minutes. Il était tout de même d’accord pour qu’on revienne une heure plus tard pour l’entretien. Mais il n’était pas présent au rendez-vous. Sur place, son frère l’attendait : « il fait ça à tout le monde, il n’est jamais présent à ses rendez-vous ! » Nous l’avons attendu pendant une demi-heure, nous sommes repassées plus tard, sans succès. Nous sommes revenues deux jours plus tard et il s’est spontanément excusé d’avoir manqué notre rendez-vous, ce qui montre qu’il se souvenait de nous, de notre rendez-vous et de ce qui nous amenait. Cela était encore plus évident lorsque, quelques minutes plus tard, d’autres intervenants l’ont sollicité pour un entretien et il leur a dit qu’il ne pouvait pas, parce qu’il avait « du boulot avec ces jeunes dames. » N’empêche qu’il a essayé de poser un autre cadre à cette rencontre, qui n’était pas celui du « boulot. » Il nous a fait comprendre que ce serait bien d’aller au café, sans le demander explicitement, et c’est ainsi que nous nous sommes retrouvés autour d’une table avec café, croissant et verre d’eau. Il a fait durer son café et son croissant un maximum, peut-être pour faire durer la rencontre qui fût assez longue et très riche. Nous avons pu aborder tous les thèmes de la grille d’entretien et il y a participé de bonne

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Les personnes rencontrées à Paris pour cette enquête sont fixées sur un point ou un territoire précis. Ils ne sont donc pas errants. Voir à ce propos la notion de territoire chez cette population.

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grâce. Si parfois il nous disait ne pas vouloir aller plus loin sur tel ou tel sujet, cela

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montrait qu’il restait maître de son discours. Par contre, il avait refusé l’enregistrement, gentiment mais fermement. Nous avons considéré qu’il valait mieux prendre ce qu’il était disposé à nous donner, plutôt que d’insister et de risquer de tout perdre, comme la dernière fois. Aussi, cela nous faisait penser à la négociation du cadre de la rencontre pour plusieurs raisons : d’abord, il était d’accord pour tout ce qui pourrait faire penser à une rencontre banale entre un homme et deux femmes qui prennent leur petit déjeuner ensemble et était réticent, voire opposé, à tout ce qui pourrait faire penser à une rencontre où deux chercheurs rencontrent un sdf10 (rester sur son site, autoriser l’enregistrement). Ensuite, il a insisté pour payer ce qu’il avait consommé. Et enfin, au moment de quitter le café, il nous a parlé du fait que tous les hommes avaient le droit de draguer, mais pas lui, parce qu’il était sdf. Nous nous sommes quittés en nous donnant rendez-vous pour quelques jours plus tard, pour un entretien enregistré. Nous avons essayé de le rencontrer à trois reprises, sans succès. D’ailleurs, quelques semaines plus tard, la police a nettoyé son site et il a été impossible de le retrouver, même pour l’EMPP. Ceci nous fait penser que même si nous essayons de continuer ce travail sur le long terme, étant donné les aléas de la vie à la rue, il n’est pas toujours possible de faire ce type de suivi.

José et Pedro : Entretien en route

Parmi les jeunes interviewés au Brésil, deux d’entre eux nous ont proposé de passer une journée dans la rue avec eux, comme une manière de nous parler de leur vie dans ce contexte. José, 16 ans, vivait dans la rue depuis 4 ans et, à l’époque de l’entretien, il venait de quitter une communauté thérapeutique pour traitement d’usage de drogue. Pedro, 15 ans, vivait depuis 3 ans en intermittence dans la rue et chez lui, avec sa famille, dans une favela à Campinas. Nous les avons rencontrés dans les structures où nous travaillions, lors de leurs premières expériences de vie à la rue. Au moment où nous avons fait les entretiens, les garçons dormaient dans un foyer d’urgence11 et ils passaient leurs journées ensemble, dans la rue et dans d’autres institutions pour jeunes en circuit de rue. Nous avons donc pu partager une de ces journées avec eux.

SDF – Sans Domicile Fixe Ce type de structure accueille provisoirement les adolescents uniquement pour la nuit et pour une courte période allant de quelques jours à quelques semaines. 11

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Pendant toute la journée, nous avons marché dans les rues de la ville et ils nous ont présentées à plusieurs personnes pour montrer ce qu'ils faisaient, qui étaient les personnes dont ils nous parlaient, leurs amis, comment ils choisissaient les chemins, comment éviter la police, les loisirs, les activités quotidiennes. Ils ont sûrement choisi les activités qu'ils pouvaient faire avec nous, ils n'ont pas montré n'importe quelle activité de la rue. Cela a été clair quand ils nous ont parlé de la nourriture : ils nous ont parlé des restaurants où ils pouvaient demander un repas et où il était plus facile de l'obtenir, mais ils ne l'ont pas fait avec nous. Cela ne nous était pas autorisé, ce n'était pas un code que nous pourrions partager. Avec cette compréhension, nous avons proposé de manger un hot dog ensemble et ils ont accepté. Aussi ont-ils mentionné qu'ils faisaient la manche, mais ils ne l'ont pas fait en notre présence. Par contre, ils nous ont permis de les accompagner dans d’autres activités, ce qui nécessitait également l’accord d’autres jeunes. Par exemple, lorsque nous sommes arrivés au carrefour où d’autres garçons faisaient la manche auprès des voitures qui s’arrêtaient au feu rouge ou proposaient de nettoyer leur pare-brise, ils nous ont précédé pour d’abord rassurer les autres jeunes présents, en disant : « elle est avec nous, elle travaille dans telle institution, tout va bien. » Et ce n’est qu’après que nous avons été autorisée à approcher le groupe, discuter, parler... Trois aspects sont à relever dans cet entretien en marche : d’abord, les entretiens dans la rue avec les garçons ont été une possibilité d'entrer concrètement dans l'univers de la rue et de connaître un peu de sa dynamique. José et Pedro ont fonctionné comme des passeurs, qui nous ont donné une permission pour approcher, observer et interagir avec les jeunes de la rue. Ils nous ont également permis de connaître des ressources de la ville que nous ne connaissions pas, telle une structure publique dans le centre-ville qui donne accès à l'internet gratuitement pour le tout venant (un Point Internet). Nous avons utilisé les ordinateurs pendant une heure, comme les autres personnes qui se trouvaient sur place, et les garçons les ont utilisés pour jouer. Nous avons pu constater qu'ils ont un réseau qui leur est propre pour la vie quotidienne, un réseau plus large que celui proposé par le service de santé et qui comprend des ressources inconnues de ce dernier. Le fait qu’ils nous présentent le lieu et qu’ils nous aident à nous inscrire pour accéder à ce service était l’opposé de ce qui se passait quand nous étions dans le rôle de l'ergothérapeute du service de santé.

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Cette inversion de rôles, le deuxième aspect à souligner dans cette expérience, s’est produite à plusieurs reprises dans cette journée avec José et Pedro, mais aussi dans les rencontres effectuées à Paris, dans lesquelles il était question de demander de l’aide pour notre étude, alors que d’habitude, c’est pour leur proposer de l’aide que les intervenants les abordent.12 Nous faisons l’hypothèse que cette inversion des rôles (un type de négociation du cadre de la rencontre) a été fondamentale pour réaliser les entretiens et pour connaître un peu plus la dynamique de la vie de ces personnes à la rue, y compris leur rapport aux services de santé. Nous allons y revenir. Enfin, le troisième aspect soulevé par cette expérience d’entretien dans la rue est le fait qu’il y a des choses qu’on ne peut dire qu’en marchant ou qu’on ne peut pas dire, donc on montre. Ce n’est pas pareil que de faire un entretien, même dans la rue, mais assis quelque part. Il y a d’autres éléments qui ressortent dans l’observation et dans le discours quand on marche avec les gens et c’est aussi ce que Girola (1996) a constaté. Quand nous étions en train de marcher, nous parlions de leurs opinions sur les services qu'ils utilisent. Nous nous attendions à avoir des critiques sur les services ou les équipes ou encore qu’ils pointent ce qui les intéressait dans telles ou telles structures, ce qui n’a pas été le cas. Les informations obtenues l’ont été indirectement. Ils nous ont expliqué qu'ils vont à tel ou tel endroit selon les nécessités du moment, souvent de manière aléatoire, en suivant les contingences qui leur arrivent au fur et à mesure, au long de la journée.13 Quand nous avons insisté pour avoir leur point de vue sur les services de santé en question, ils ont fait des associations avec quelques situations d'urgence. Par exemple, Paulo nous a parlé de la fois où un éducateur l’a amené à l'hôpital. Ils ne nous en ont pas dit davantage.

Discussion

L’expérience de ces deux terrains nous permet d’affirmer que l’entretien semi directif dans la rue est une méthode importante pour accéder au point de vue de cette population concernant les services qui lui sont proposés. Il faut dire d’emblée que, pour cette population en particulier, mener des entretiens uniquement dans le cadre des

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Voir sur ce point Girard (2006). Voir sur ce point Lovell (1992) et Gregori (2000).

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institutions signifie diminuer les possibilités d’émergence de discours divers, en plus

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d’exclure des recherches une partie de la population, celle qui ne s’adresse pas ou peu à celles-ci. L’intérêt des entretiens dans la rue avec les personnes qui y vivent se présente sous deux aspects : tout d’abord, dans un sens plus strict, le contenu de l’entretien : les informations que le chercheur peut obtenir à propos du thème qu’il souhaite étudier. Ensuite, dans un sens plus large, le contexte de vie des personnes : leurs inscriptions territoriales, leurs réseaux de relations. Bref, l’entretien dans la rue favorise l’émergence d’un autre discours chez l’usager, mais il est important de remarquer aussi qu’il favorise l’appréhension de ce discours autrement par le chercheur, à partir de son vécu de ce qui se passe dans la rue avant et pendant l’entretien. Ceci peut être généralisé pour tout entretien : le lieu où l’entretien se déroule a certainement un impact sur son contenu. Aussi, tout entretien comporte une partie d’observation du contexte, ce qui compose avec le contenu de l’entretien lui-même. Ainsi, l’entretien réalisé dans un foyer, dans un lieu de soin ou dans la rue apportera des informations différentes. Cependant, dans notre expérience, ce que l’entretien dans la rue produit en terme de connaissances du contexte est aussi important, voire plus, que ce qu’il produit en termes de contenu. Plus encore, c’est grâce au partage de ce contexte, de cette inscription territoriale, le temps de l’entretien, que le chercheur peut accéder à certains contenus. Par exemple, ce n’est que parce que nous étions dans la rue avec les garçons pendant qu’ils nettoyaient les pare-brise des voitures qui s’arrêtaient au feu rouge, que nous avons pu assister au passage d’une « cliente habituelle. » C’est ce qui nous a permis d’aborder avec eux des questions concernant d’autres ressources informelles auxquelles nous n’avions pas pensé auparavant. Aussi, à partir de l’expérience de tenter de trouver les personnes et d’essayer de les convaincre pour l’entretien ou, autrement dit, à partir du moment où nous nous sommes mises dans une situation semblable, sur ce point, à celle des professionnels, nous avons pu comprendre autrement ce qu’ils nous ont dit dans leurs entretiens. Ainsi, il est possible de dire que plus qu’un entretien « ordinaire, » avec ce qu’il comporte d’observation, l’entretien dans la rue avec cette population est déjà une observation participante, pour peu que le chercheur ouvre son champ d’observation plutôt que de se concentrer uniquement sur la personne, voire sur son visage, comme le dit Girola (1996). Ce qui nous amène à aborder trois facteurs ayant influencé la qualité du matériau produit par nos entretiens dans la rue, sous l’aspect du contenu comme sur

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celui du contexte : la place des chercheuses, la durée du travail de recherche sur le terrain14 et, enfin, la négociation du cadre de la rencontre. Notre place sur le terrain, en tant que chercheuses et en tant que membre de l’équipe, présente trois implications principales : la première concerne le choix éthique de nous présenter aux personnes avec notre double casquette, l’idée étant de bien expliciter d’emblée les raisons de nos visites. La deuxième implication, est que, en tant que membres des équipes, nous avions une connaissance préalable des personnes - entre un et quatre ans - ainsi que des informations concernant leur vie et leur rapport aux services ; nous avons pu ainsi aborder et approfondir certains points de l’entretien. Enfin, sachant que les personnes que nous avons interviewées étaient en contact avec nos équipes d’appartenance depuis assez longtemps – entre 1 et 10 ans – et qu’il y avait entre eux une relation de confiance, la référence à cette relation a facilité notre contact avec elles. Cela opérait une sorte de transfert de confiance, comme si, faisant confiance à l’intervenant, la personne pouvait faire aussi confiance au chercheur. Et ce autant auprès des personnes qui nous connaissaient déjà, qu’auprès de celles que nous connaissions mais qui ne se souvenaient plus de nous. Nous avons donc une position qui se distingue de celle d´autres chercheurs, qui ont préféré un contact « ouvert » (Rullac, 2006) ou « direct » (Girola, 1996) avec les personnes dans la rue, c’est-à-dire sans la médiation des institutions.15 Un autre facteur qui nous semble avoir influencé la qualité du matériau produit par nos entretiens dans la rue est la durée du travail de recherche sur le terrain. Celle-ci a pu être considérablement réduite par ce transfert de la relation de confiance, que ce soit dans le cadre de la recherche menée au Brésil, avec un temps plus important de contact avec les usagers, mais aussi dans la recherche menée en France, avec ce temps Il est important de souligner qu’étant donné l’objectif de nos recherches, le but de nos rencontres dans la rue avec les personnes vivant prioritairement à la rue était de réaliser des entretiens et non pas de mener l’observation de terrain. Par contre, si l’objectif des recherches était, par exemple, l’appréhension du mode de vie dans la rue, il serait essentiel, nous semble-t-il, de mener également une observation de terrain assez long. 15 Ces deux chercheurs ont fait l’expérience de constituer une partie de leur matériau à partir de rencontres dans la rue avec des personnes qui y vivent, qu’ils ne connaissaient pas et sans passer par des institutions. Girola (1996) parle de “relation directe,” c’est à dire sans médiation des institutions, dans le but justement d’éviter qu’un cadre soit posé d’emblée à ces rencontres, cadre donné par l’institution de médiation. Par contre, elle expliquait l’objectif de la rencontre, son étude, assez rapidement. Rullac (2006, p. 48), parle de “relation ouverte,” lorsque, outre l’absence de médiation par les institutions, il ne présentait pas l’objectif des rencontres, en se présentant comme un habitant du quartier et qui, à force de passer, avait décidé de s’arrêter un peu pour parler. Vexliard (1957, p. 105) a rencontré des personnes dans des institutions et dans la rue, sans médiation institutionnelle. Il se présentait comme collaborateur d’un service social nouveau qui n’avait pas encore d’actions mais qui avait besoin d’informations sur les usagers potentiels.

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plus réduit. C’est-à-dire que les premières rencontres dans le cadre des recherches n’étaient pas un premier contact, car nous avions déjà une histoire avec les usagers. Cela a certainement favorisé le dépassement du discours stéréotypé et des histoires de perte dont parle Girola (1996), au bout d’une ou deux rencontres dans le travail de terrain. Ce qui aurait été probablement beaucoup plus long sans cette position de chercheurintervenant. Mais, pourquoi nous entêtons-nous à dépasser le discours stéréotypé ? Nous n’avons pas cherché à le faire lors des entretiens auprès des gestionnaires ou des décideurs, par exemple. C’est que, dans nos recherches, l’entretien auprès du décideur ne visait pas à obtenir un discours personnel, mais un discours officiel. En ce qui concerne les intervenants des équipes, nous nous intéressions en même temps au discours personnel et au discours institutionnel. Par contre, les entretiens auprès des usagers avaient pour objectif d’appréhender leur discours personnel, l’histoire du rapport de cette personne-là, précisément, et le ou les services. C’est pourquoi nous avons décidé de nous situer entre deux extrêmes par rapport à la durée du terrain : ni mener les entretiens lors d’une première rencontre sans aucune relation préalable, ni devoir faire un terrain d’observation avant l’entretien. Cependant nous nous sommes demandées si passer plus de temps dans la rue avec les interviewés et répéter les rencontres ne serait pas une manière d’obtenir des informations plus précises sur les questions abordées. Ceci nous amène à nous interroger sur l’échelle de temps optimale pour cette méthode, sachant bien évidemment qu’il n’y a pas de recette. Pour nous qui avons été respectivement dix jours et un mois dans la rue, la question s’est posée, à la fin du terrain, de savoir si une ou deux semaines en plus auraient fait une différence. Est-ce qu’il aurait fallu 3 ou 4 mois pour que les entretiens nous apportent un autre ordre d’informations ? Ou est-ce que cela n’est possible qu’après 10 ou 15 mois sur le terrain ? L’idée d’un long terrain auprès de cette population ne nous semble pas nécessairement plus utile, d’autant plus que plusieurs de nos enquêtés ont été perdus de vue juste après les entretiens. En plus, passer une fois par semaine pendant quelques mois risque de donner pour résultat une rencontre par mois, voire une seule rencontre sur toute la période, car la vie dans la rue, ainsi que les institutions qui travaillent avec cette population, sont très dynamiques et mouvantes ; par exemple la personne est hospitalisée ou quitte la ville, l’institution où elle avait l’habitude d’aller a fermé, la police passe régulièrement dans le site où elle avait l’habitude de faire la manche, etc. Puis ce n’est pas seulement la durée,

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mais l’intensité de la présence : dans notre expérience, il a fallu passer plusieurs fois dans la semaine et même plusieurs fois le même jour, pour rencontrer les personnes, et ce pour diverses raisons, par exemple, parce que nous ne les trouvions pas ou parce qu’il ne fallait pas les déranger au moment de notre arrivée. Ainsi, concernant la durée du terrain comme un facteur important dans la production du matériau par entretien dans la rue, notre expérience nous suggère que, grâce à la position de chercheur-intervenant, nous avons pu obtenir des récits qui peuvent dépasser le discours stéréotypé, qui peuvent constituer un bon matériau, autant avec le terrain plus court, d’une semaine, qu’avec le terrain plus long, d’un mois. Enfin, le troisième facteur qui nous semble avoir influencé nos entretiens dans la rue est la négociation du cadre de la rencontre.16 L’entretien est-il une rencontre entre des copains ? Entre une personne en haut de l’échelle sociale et une autre, tout en bas ? Entre quelqu’un qui a besoin d’informations et quelqu’un qui est expert en la matière ? Qui est l’expert de quoi ? Comment nous avons agencé ces cadres, qu’est-ce que chaque partie, enquêteur et enquêté, a pu gagner et était prêt à céder pour que l’entretien/la rencontre ait lieu ? Lorsque les personnes sont informées de l’objectif de notre visite et qu’elles sont d’accord pour nous rencontrer, est-il possible de considérer qu’elles sont d’accord pour l’entretien ? Ces questions étaient très présentes à chaque rencontre, notamment avec Antoine et avec Maurice : d’accord pour nous rencontrer, bon accueil, ils disaient toujours que l’entretien oui, mais un autre jour. Par contre, ils nous retenaient toujours par leur conversation et demandaient à ce qu’on revienne une autre fois. Et Antoine, avec l’idée d’aller au café, montrait bien qu’il était d’accord pour nous rencontrer dans le cadre d’une relation « amicale » - il a utilisé ce mot plusieurs fois -, tout en disant qu’il avait bien compris que nous étions là dans le cadre d’une recherche. Et le prix de cette négociation du cadre, pour nous, était de ne pas enregistrer l’entretien, ce qui serait imposer notre cadre. Il nous est difficile de dire le prix que cette négociation a eu pour lui, mais il nous pouvons formuler l’hypothèse que le fait de se prêter au jeu de l’entretien, d’accepter de parler des thèmes abordés lui demandait un effort. Nous pouvons donc affirmer que, dans cette situation, la négociation du cadre de la rencontre a donné satisfaction aux deux parties, même s’il y avait divergence de

Sur l’interaction entre le sujet et l’observateur et les négociations conséquentes voir Devereux (1980, p. 73). Cet auteur met « en lumière la nature essentiellement transactionnelle de tout ce qui se passe entre l’observateur et l’observé ». 16

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cadre.

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Nous retrouvons, dans le texte de Rullac (2006), ses tentatives de négocier le cadre des entretiens, en se présentant tantôt comme chercheur, tantôt comme riverain et les conséquences pour obtenir ou pas les rencontres. Cette négociation du cadre est présente également dans la discussion de Girola (1996) qui montre comment le premier cadre était celui d’une recherche auprès des sdf, elle étant la chercheuse, eux, les sdf. Puis vient s’ajouter le cadre d’une demande, elle étant dans le besoin d’informations et eux, les experts de la rue, puis le cadre de l’appartenance à une nation, elle en tant qu’étrangère et eux, les français. Les différents cadres ne s’excluent pas, ils se surajoutent, ils s’articulent. A chaque évolution du cadre, le contenu du discours changeait et la rencontre se faisait autrement. Ainsi, il nous semble que trois facteurs se sont articulés pour influencer la qualité du matériau produit par nos entretiens dans la rue, sous l’aspect du contenu comme sur celui du contexte : la place des chercheuses, la durée du terrain et, enfin, la négociation du cadre de la rencontre. Car notre place en tant que chercheuseintervenante a permis de diminuer la durée du terrain et nous a donné une autre entrée pour négocier le cadre de nos rencontres, pour obtenir ainsi des entretiens en ayant dépassé un discours stéréotypé. Si nous n’avions pas eu cette double place, la négociation du cadre des rencontres et l’obtention des entretiens aurait pris plus de temps.

Ana Paula Serrata Malfitano Docteur par la Faculté de Santé Publique de l’Université de São Paulo (Brésil) avec Stage de Doctorat à École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS) – CERMES (Centre de Recherche Médecine, Science, Santé et Société). Docteur réalisé avec une bourse d’étude de l’agence CAPES-Brésil (Coordenation de Personnel de Niveau Supérieur). Enseignante et chercheuse au département d’Ergothérapie à l’Université Féderale de São Carlos, SP, Brésil. E-mail: anamalfitano@ufscar.br

Ana Cláudia Rodrigues Marques Doctorant de l’École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS) dans le Groupe de Sociologie Politique et Morale (GSPM). E-mail: marquesana@belgacom.net

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A Entrevista como Método de Pesquisa com as Pessoas em Situação de Rua: Questões de Campo Resumo: Abordam-se duas pesquisas de campo, realizadas na França e no Brasil, direcionadas para a população em situação de rua. As autoras, na posição de pesquisadoras e também atores deste campo, uma vez que são técnicas de serviços sociais que atendem esta população; utilizaram como método a observação participante, a participação observante e as entrevistas aprofundadas com moradores de rua. As reflexões apresentadas centram-se em entrevistas semi-diretivas, com o objetivo de apreender o ponto de vista daqueles sujeitos sobre os serviços sociais dos quais são usuários. A partir da análise sobre a recusa à entrevista, sua aceitação ou situações intermediárias, apontamos que a entrevista pode ser um método efetivo para se aproximar desta população. A discussão aponta, ainda, o conteúdo das entrevistas, o contexto no qual foram realizadas (compreendendo a dupla posição das pesquisadoras), bem como as negociações implícitas e explícitas entre entrevistadores e entrevistados, ocorridas no decorrer do processo. Palavras-chave: método de pesquisa; população em situação de rua; entrevista.

The Interview as a Method of Research with Homeless People: Issues of Fieldwork Abstract: It is a field work report from two PhD researches, one in France and the other in Brazil, which aim to discuss about policies and institutions for homeless. Both the researchers used participating observation, observing participation and interviews with different actors in the field as the method. A reflection is done on the usage of open interviews with homeless people, trying to catch the point of view from those people about the sanitary and social services of which they are users. Starting from examples of refusing, bargaining and accepting the interview proposal, they are concluded to be an effective approach method to those people. It is discussed on the interview's content, the context and by whom they are performed, as well as the implicit and explicit negotiations on the process of field work. Key-words: research methods; homeless; interview.

Bibliographie ADORNO, Rubens Camargo de Ferreira; SILVA, Selma Lima. “Cenas do mapeamento da rua: diários e discussões dos educadores.” In: LESCHER, A. D. et al. Cartografia de uma rede. São Paulo: Projeto Quixote, UNIFESP, FSP/USP, UNCDP, Ministério da Saúde, 1999, pp. 9-32. DEVEREUX, Georges. De l'angoisse à la méthode dans les sciences du comportement. Paris : Flammarion. 1980. 474 p. FIRDION, Jean-Marie ; MARPSAT, Maryse ; BOZON, Michel. “Est-il légitime de mener des enquêtes statistiques auprès de sans-domicile ? Une question éthique et scientifique.” In : MARPSAT, M. et al. La rue et le foyer. Paris : Press Universitaire de France, Institut National D’études Demographiques. 2000, pp. 127-149.

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GIRARD, Vincent, et al. “La relation thérapeutique sans le savoir. Approche anthropologique de la rencontre entre travailleurs pairs et personnes sans chez-soi ayant une co-occurrence psychiatrique.” L’évolution psychiatrique, v. 71, 2006, pp. 75-85. GIROLA, Claudia M. “Rencontrer des personnes sans abris : Une anthropologie réflexive.” Politix, v. 34, 1996, p. 87-98. GOFFMAN, Erving. Asiles. Paris : Ed de Minuit. 1968. 452 p. GOLD, Raymond I. “Jeux de rôles sur le terrain. Observation et participation dans l’enquête sociologique.” In : CEFAÏ, D. Enquête de terrain. Paris : La Découverte. 2003, pp. 34-349. GREGORI, Maria Filomena. Viração: Experiência de Meninos nas ruas. São Paulo: Companhia das Letras. 2000. 280 p. GUEDJ, Marie-Jeanne et al. “Mensonge, mythomanie, fabulation et SDF.” Perspectives Psy, v. 42, n.1, 2003, pp. 25-30. LOVELL, Anne. “Seizing the moment: power, contingency, and temporality in street life.” In: RUTZ, H. J. (éd). The politcs of time. Washington D.C.: American Anthropological Association, 1992, pp. 86-107. ______. Mobilité des cadres et psychiatrie “hors murs”. Raisons Pratiques. La folie dans la place : Pathologies de l’interaction. v. 7, 1996, p. 55-81. MINAYO, Maria Cecília S. O Desafio do Conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 2.ed., São Paulo: Hucitec, Rio de Janeiro: Abrasco. 1993. 269 p. RULLAC, Sthéphan. Critique de l’urgence sociale : Et si les SDF n’étaient pas des exclus ? Paris : Vuibert. 2006. 137 p. VEXLIARD, Alexandre. Le clochard. Paris : Desclée de Brouwer. 1998. 493 p.

Recebido em 01/12/2009 Aceito para publicação em 01/02/2010

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Kendo: devir samuraico, mitológicas e ritológicas nipônicas. Adentrando a ‘Casa Japonesa’1 Gil Vicente LOURENÇÃO Resumo: O plano deste artigo é relacionar alguns fatos etnográficos levantados junto a praticantes de esgrima japonesa [Kendo] – entre eles japoneses descendentes e não descendentes – através das relações ativadas nos espaços de treinamento, chamados de dojo, nos quais operam os conceitos de hierarquia e família e traçar uma provável analogia com a noção de Casa, tomada em referência à teoria antropológica. A utilização do salão de treino como unidade de análise é importante e se oferece como conseqüência de meu trabalho de mestrado, pois é nele que se atualiza o dispositivo de japonesidade, ou seja, o mecanismo de produção de japoneses e de discursos ‘mitoríticos,’ re-elaborados a partir de uma dimensão corpórea objetiva e subjetiva. Palavras-chave: hierarquia; valor; noção de casa; japonesidade.

Introdução Neste paper desenvolvo algumas reflexões que remetem ao primeiro capítulo de minha dissertação de mestrado (2010, p. 47-101) em relação a uma comparação possível entre a prática do Kendo nos ginásios [denominados dojo] e algumas teses acerca da noção de casa retiradas principalmente de Lévi-Strauss e comentadores. Denomino meu procedimento de “comparação possível,” pois mesmo Lévi-Strauss se limitou a fazer observações de caráter mais abrangente sobre a noção de casa para o contexto japonês e espero desenvolver um projeto temático amplo no futuro.2 No presente momento limitome a esboçar tal possibilidade para o ‘contexto brasileiro,’ mais especificamente em academias de Kendo espalhadas pelo estado de São Paulo e em São Carlos-SP, às quais farei menção indicativa ao longo do texto. O plano deste artigo, portanto, é relacionar alguns fatos etnográficos nos quais operam os conceitos de hierarquia, família e dojo em uma provável relação com a noção de casa. No geral, o tema de minha pesquisa de mestrado foi abordar uma formulação de ‘identidade japonesa’ (Cardoso de Oliveira, 20003) em uma prática marcial denominada

Este paper se constitui como continuação do artigo enviado em 2009 [no prelo - 2010] para a revista Cadernos de Campo (UNESP), 2009. ISSN: 14150689, sob o título – “Observar o invisível: atualização da identidade japonesa na prática do Kendo: reflexões sobre o trabalho de campo,” que trata sobre a minha inserção nesta prática corporal e ética. Aos interessados, basta retomar o artigo precedente. 2 Em suma, o projeto de doutoramento em Antropologia Social intitulado “O espírito japonês: atualizações, proximidades e distâncias para uma analítica da relacionalidade,” em desenvolvimento. 3 Roberto Cardoso de Oliveira se refere neste texto sobre a ‘identidade’ que surge no interior de EstadosNação a partir de situações de minorias étnicas, afirmando que no bojo deste conceito há designação de ambigüidade, e a própria situação de ‘minorias’ reforçaria laços de parentela e aspectos culturais como

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Kendo4 que elabora discursos míticos e rituais sobre o modo de condução ‘moral’5 de seus praticantes, descendentes e não descendente de japoneses. Desenvolvi ‘pesquisa de campo’ em ‘Associações Japonesas’6 nas quais se apresentava essa prática. Em uma aproximação para o português, Kendo significa o “Caminho da Espada” e se trata de uma modalidade de esgrima japonesa na qual é usada uma armadura e espadas de bambu para os combates compreendendo séries de movimentos corporais e um rígido código moral, centrado na formulação ética do Bushido,7 vivenciado ‘miticamente’ pelos praticantes.8 Essa arte marcial inseriu-se no Brasil pelo intermédio de emigrados japoneses9 e é praticada atualmente no Brasil por imigrantes,10 por descendentes e por

sistemas que articulam operadores identitários, como a terra – noção de território – história ‘real’ ou suposta; sangue, língua, caráter, honra. Utilizamos esse conceito tal qual tomado por Cardoso de Oliveira, embora saibamos das dificuldades. Sobre ‘identidade’, pode-se ler o trabalho de Silva (2000) (Org.), ”Identidade e diferença: A perspectiva dos estudos culturais”, que faz uma boa revisão sobre o tema. Sobre japoneses, contamos com um estudo amplo e uma competente revisão da literatura a partir da arqueologia identitária japonesa e posteriormente ‘nipo-brasileira’: SASAKI, E. (2009): ‘Ser ou Não Ser Japonês? A Construção da Identidade dos Brasileiros Descendentes de Japoneses no Contexto das Migrações Internacionais do Japão Contemporâneo.’ Tese de doutoramento, Campinas, SP. 4 Kendo: “剣道”- “O caminho da Espada”. 5 Embora não se limite exclusivamente a esse predicado. Não obstante, entende-se por “moral” (Foucault, 2003, p. 211) um conjunto de valores e regras de conduta que podem ou não estar relativamente fechadas e propostas aos indivíduos e aos grupos por meio de diversos aparelhos prescritivos. Ocorre que essas regras e valores sejam bem explicitamente formulados em uma doutrina coerente e em um ensinamento explicito. Mas ocorre também que sejam transmitidos de maneira difusa e que, longe de formarem um conjunto sistemático, constituam um jogo complexo de elementos que se compensam, se corrigem, se anulam em certos pontos, permitindo, dessa forma, compromissos ou escapatórias. Feitas essas ressalvas, pode-se chamar esse conjunto prescritivo de ‘código moral’. Porém, entende-se também por ‘moral’ o comportamento real dos indivíduos em sua relação com as regras e valores que lhes são propostos: designa, assim, a maneira pela qual eles se submetem mais ou menos completamente a um principio de conduta, pela qual obedecem ou resistem a uma interdição ou a uma prescrição, pela qual respeitam ou negligenciam um conjunto de valores. Chamemos esse nível de fenômenos de ‘moralidade dos comportamentos’. Isso, porém, não é tudo. De fato, uma coisa é a regra de conduta; outra, a conduta que se pode comparar com essa regra. Porém, outra coisa ainda é a maneira como é preciso ‘conduzir-se’, ou seja, a maneira como se deve constituir a ‘si mesmo’ como sujeito moral, agindo em referencia aos elementos prescritivos que constituem o código e sua atualização. Tudo isso é passível de observação no Kendo; nosso trabalho (2010) focou os três aspectos e poderíamos defini-lo enquanto um estudo da ‘moralidade’ de matriz nipônica em sua tridimensionalidade. 6 Entre as associações, podemos citar a Sociedade Brasileira de Cultura Japonesa [Bunkyo], Fukuhaku, Suzano, Associação cultural e esportiva Piratininga, associações com sede na região metropolitana de São Paulo e Associação São Carlos de Kendo, em São Carlos/SP. 7 Bushido “武士道”. O livro mais difundido sobre o bushido é o homônimo de Inazo Nitobe [1899], no qual as virtudes do Caminho do Guerreiro foram difundidas. Essas ‘virtudes-conceitos’ eram passadas oralmente no Japão, de geração a geração e sintetizavam-se no número de sete princípios: Retidão, Coragem, Benevolência, Respeito, Sinceridade, Honra e Lealdade. 8 Aqui não é o local para defender a idéia de vivência ‘mítica’ dessas virtudes, não obstante, aos interessados, basta ler o capítulo 2 de minha dissertação (2010). 9 Segundo o informante Luiz Kobayashi, no navio Kasato Maru durante a viagem para o Brasil alguns japoneses lutaram Kendo e organizaram posteriormente à instalação definitiva no Brasil campeonatos e eventos a partir dos quais o Kendo se disseminou entre os descendentes. O primeiro Campeonato oficial ocorreu em 1933, embora tais “micro-campeonatos” ocorressem desde a década de 1910, seguindo o trajeto de fazendas de café do interior paulista onde estavam instalados os imigrantes.

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pessoas sem descendência nipônica. Essa arte marcial enfatiza no seu ‘ensinamento’ uma postura de entendimento com o meio social amplo através de princípios como a honra11 e objetiva a afirmação de que a espada é um modo de aperfeiçoamento do ‘espírito,’12 sem contar que é através da atualização da noção de espírito nos treinamentos e demais vivências possibilitadas pelo dispositivo dojo que se reconhece uma singularidade como dotada de potência japonesa.

A Prática do Kendo nos Dojo Estou interessado em como se apresenta uma estrutura13 que é classificada pelos nativos como ‘japonesa’ nos locais de treinamento. Essa ‘estrutura’ será importante para compreendermos como essa prática marcial produz reflexões, práticas morais e molda certo campo de comportamento dos sujeitos sob seu raio de influência. Aqui o ‘olhar’ opera por dentro e por fora da prática mediante a ‘inserção densa’ (Lourenção, 2010, p. 47-65) de acordo com o método entre-perspectivo.14

Cada vez mais raros, evidentemente. Um dos professores mais antigos com que tive contato durante a pesquisa foi o Sr. M. K., falecido poucas horas após tê-lo entrevistado, em maio de 2008. Nascimento: 12/02/1916 e falecido em 30/06/2008- 7º Dan Kyoshi. 11 Existe um código ético difuso que teria por meta fornecer um esquema comportamental ideal aos praticantes de esgrima, sobre o qual conceituo de “japonesidade,” difundida e compartilhada por descendentes e não descendentes de japoneses. Tomo o termo “japonesidade” de empréstimo de Tsuda (2000; 2003) ampliando um pouco visto que tal autor embasa a noção de ‘Japaneseness’ com um matiz demasiado étnico. Não é essa a perspectiva adotada por mim. Tomo enquanto um sistema de reflexão e inflexão sobre os modos de ‘subjetivação’ e ‘objetivação’ Bourdieu in Ortiz (1983, p. 46-81) da ética japonesa e de como essa ética deve ser praticada. Em suma, gerar um habitus, ou seja, um sistema de disposições – enquanto resultado de uma ação organizadora e enquanto uma maneira de ‘ser,’ uma ‘inclinação’ – duráveis, estruturas estruturadas predispostas a funcionar como estruturas estruturantes, como principio gerador e estruturador das práticas – corporais, éticas e reflexivas – e das vivências que podem ser objetiva e subjetivamente orientadas, sem ser necessariamente o produto da obediência a regras, mas que no mais das vezes pressupõe um acordo tácito e uma obediência estratégica a essas regras. O habitus produz práticas, individuais e coletivas; produz ‘ação’ (ibdem, p.76), orientada por esquemas de percepção (ibdem, p. 79), de concepção e motiva-ação, que são comuns a um dado coletivo e funcionando enquanto objetividades praticáveis, univocamente garantindo uma dada visão de mundo, coerente no geral e centrada em uma conjuntura fornecida pela estrutura da prática, na temporalidade real ou fictícia da prática e na ‘ação’ coletivamente ativada e orientada. 12 Yamato damashii, ou ‘espírito japonês’. 13 A quem se incomodar com tal palavra, pode-se substituí-la sem perda de significação por ‘processo’. O termo “estrutura” é bastante abrangente no caso de Lévi-Strauss, podendo comportar elementos de ordem de organização social à formas de cogitação. Não obstante, a validade de sua utilização é dada pelo seu caráter de arquitetura mental referente ao inconsciente, sem contar sua aparente validade enquanto ‘método.’ Sobre isso, ver o excelente trabalho de Bonomi (2004). 14 O método entre-perspectivo não singulariza epistemologicamente a condição de nativo e antropólogo: apenas corre no mezzo – traça linhas de repouso e velocidade entre partículas de discursos que entram em uma dada relação de agenciamento, seja esse de conhecimento ou não.

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Em primeiro lugar, o aprendizado do Kendo pode ser separado em três ‘etapas’ de acordo com a prática e conceitualização nativa15 e, embora sejam apresentadas sincronicamente, tem seu desenvolvimento na diacronia (Sahlins, 1999, p. 16). 1-

Kendo Kata;

2-

Keiko – Kihon;

3-

Kendo Shiai.

No Kendo katá16 ocorre um aprendizado e desenvolvimento dos kamae.17 Essas formas-padrão são efetuadas com bokuto18 ou katana19 e trata-se de simulações de lutas feitas por dois praticantes. Essa prática é uma forma ‘ritualizada’ (Turner, 1974; 1991) de ‘manifestação do espírito’ em uma luta simulada, pois não se atinge o oponente. Mas, se não se atinge o oponente, qual é o objetivo de praticá-lo? A razão para praticálo é a de aprimorar o espírito, o ‘ki’ segundo o Sr. H. Há uma semiologia20 ao nível dos movimentos corporais no katá, uma vez que cada corte efetuado pelos oponentes visa um local do corpo e mais importante, um ‘sentimento.’ Esse ‘sentimento’ ou ‘kokoro’21 se manifesta na forma como é executado o katá: com ímpeto, vivacidade, os movimentos com a espada feitos de forma ampla e os olhos sempre alvejando o oponente. O sr. Y. diz que a partir dos olhos se consegue perceber a ‘intenção.’ O sr. I., o ‘coração.’ Em outras palavras, há uma imanência do inimigo através de tal percepto. O professor H. diz que: No treinamento de Kendo, sempre tem que olhar os olhos do adversário. Por isso, com treinamento muito severo é possível ver o pensamento do oponente. O que ele está pensando, né... [Entrevista Sr. H. – Abril 2008]

Yamamoto, I.: 2004- Palestra de Hiroshi Yano, Japonês-Português, Color, NTSC, Kendo. Cito essa palestra mas toda a dinâmica de prática é sintetizada nesse triedro. 16 De acordo com anotações de campo, conversas com professores e leitura de uma apostila de circulação interna, em relação ao Kendo kata, tem-se um desenvolvimento pela reunião dos seguintes termos : ‘reiho’ [regras de conduta]; ‘kamae’ [postura corporal]; ‘maai’ [intervalo tempo/espaço entre oponentes e tempo/espaço de aplicação do golpe]; ‘waza’- golpe; ‘karada-sabari’ movimentação do corpo; ‘sen’ combatividade; ‘ki garai’- brio; ‘katana suji’- posicionamento da espada; ora, em suma, um “mapeamento infinitesimal” do corpo centrado em três núcleos de ação, os quais denomino para facilidades discursivas de “triedro analítico do Kendo”: o corpo, a espada e o espírito; sobre tal discussão, ver Lourenção (2010, Dissertação de Mestrado, Cap. 3). 17 Formas padrão. 18 Espada de madeira“木刀”. 19 Espada de metal “刀”. 20 Uma tecnologia de morte, sendo mais preciso. 21 “心”- Coração, mente, pensamento.

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Em segundo lugar, o keiko ou kihon22 no qual há o aprendizado da postura correta para segurar a espada e posicionar o corpo. O treino básico versa sobre os movimentos decompostos de corte com a espada e que são feitos indefinidamente e milhares de vezes pelos praticantes de Kendo. Esses movimentos básicos são sintetizados em quatro regiões de ataque no corpo: cabeça – chamada de men -; antebraços [kote]; abdômen [do] e tsuki – garganta.23 Os outros movimentos são decomposições dessas áreas. Em terceiro lugar, o shiai24 que se trata do combate propriamente dito, utilizando-se de uma armadura para proteção e espadas de bambu para tocar o corpo do ‘oponente.’ A atitude perante os equipamentos e em especifico em relação à armadura é observada pelos professores japoneses e descendentes e é um dos índices de respeito constantemente avaliado nessa socialidade (Strathern, 1996, p. 66). O aluno de Kendo G. F. que faz manutenção nesses equipamentos disse-me que certa vez ele contou ao sr. I. que conseguia sentir a ‘energia’ das armaduras quando fazia as manutenções e I. respondeu haver verdade nessa afirmação, pois os japoneses que fazem esse tipo de trabalho ‘sentem’ a energia emanada pelas armaduras e isso indicaria, segundo I. citado por G., que o segundo poderia portar um “espírito japonês.”25 Sobre a atitude perante o ‘objeto,’ presenciei certa vez o professor K. em um treino da Seleção Brasileira em 2007 repreendendo duramente um atleta que havia posicionado displicentemente o seu equipamento no chão. A armadura em sua relação evidente com seu detentor possui uma ‘personitude’26 que implica tomá-la como detentora de um conjunto de predicados humanos e não humanos – sintetizada no conceito nativo de‘energia.’ Basicamente, a estrutura primária dos treinos de Kendo chamados de shiai se oferece da seguinte forma: as pessoas, conforme chegam ao ginásio local de treino precisam fazer uma reverência ao entrar e cumprimentar os presentes. No horário estipulado ao treino, ocorre a formação de uma fila dupla simétrica, na qual os mais graduados ficam postados a frente dos professores. Eles se olham mutuamente. Neste

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Treinamento básico. Bōgu 防具 : men 面; dō 胴; kote 小手; tare 垂れ, protetores corporais – armadura – respectivamente protetor de cabeça, tronco, antebraços e bacia-genitais. 24 Prática de luta. 25 Nota de conversa- Setembro de 2008- São Carlos. 26 Utilizo o conceito de ‘personitude’ tal qual Viveiros de Castro (2002a, Cap. 7, p. 353 e seguintes) e Coelho de Souza (2001), ou seja, como uma capacidade de agência e intenção, definidoras de um sujeito numa situação estruturada. Em suma, é a ‘condição’ que define a ‘humanidade de tipo sócio-morfico nipônico’, não a ‘espécie humana’ japonesa e na linha de minha dissertação é justamente possuir um lugar neste ‘mosaico japonês’ que permite ser classificado, não o contrário.

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momento, o mais graduado junto aos alunos dá um comando, shisei o tadashite.27 Após isso, tem-se a meditação. “O Kendo começa com uma reverência e termina com uma reverência,” de acordo com o sr. I.. Desde o momento em que é admitido no treinamento, uma das primeiras lições que um neófito aprende é a de que é preciso agradecer pela possibilidade de praticar e, após o final do treinamento é preciso agradecer. O procedimento de aceite de novos ingressantes normalmente passa pela necessidade de procurar um professor e pedir autorização para o inicio. Após isso, o novo praticante é chamado de kohai28 e passa a ter os fundamentos da prática, passada por uma atenção constante e ininterrupta sobre seu corpo e sobre seu comportamento dentro do dojo. Sobre os novos ingressantes, diz I.: Quando o aprendiz vem praticar o Kendo, ele já vem com a mentalidade para estudar, para ser melhor; então, o estudante de Kendo, quando vem praticar, já vem com uma agilidade para sua vida, pois quando está lutando, sabe que precisa aprender a defender, a contra-atacar. [entrevista- janeiro de 2007]

A questão do ‘fenótipo’ é um critério de distinção inicial, pois é possível – e altamente provável - que um descendente de japoneses partilhe de noções comuns, como respeito à hierarquia, à coletividade e tenha em seu campo de atitudes similitudes em relação à prática nos dojo. Mas isso não é tudo. Pode acontecer – e acontece – que não descendentes ativem esses signos com liberdade, pelas suas trajetórias de vida, e o que acontece é uma reclassificação, a partir de tais noções. Note-se a fala de I. Não é ‘qualquer’ pessoa que procura o Kendo. Mas procurar é apenas o primeiro passo. Após a meditação, tem-se inicio o aquecimento e depois o treinamento. Os praticantes mais antigos ficam de motodachi29 e são executados movimentos básicos [kihon]. Depois disso, tem-se inicio o treino com os mais avançados e em separado. Existe uma circulação do ‘dar e receber’ no Kendo e uma necessidade de agradecimento pelo ensinamento recebido. Quando se aplica um golpe, demonstra-se ao adversário o local que está desprotegido. Em suma, uma circulação da troca, pois a cada corte se demonstra ao adversário como melhorar. E também, uma forma de comunicação por intermédio da espada, pois elas se tocam e o idioma operado funciona – na prática – pela troca de golpes. Note-se um trecho de uma carta enviada pelo professor I. quando 27

“Corrigir a postura!” Iniciante. Novato. 29 Motodachi- base de treino- função de praticante mais antigo que auxilia na prática e correção aos mais novos.

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do campeonato interno da Associação São Carlos de Kendo ocorrido em Novembro de 2008: Nos esportes levar um ponto e ser derrotado é um fato negativo e muitas vezes humilhante, como o filho de um famoso treinador da Seleção brasileira de Futebol disse ao pai certa vez: “Segundo colocado, nada mais é senão o primeiro dos derrotados.” No Kendo “剣道”, caminho da espada, cada golpe recebido é um momento de aprendizado e desenvolvimento. O oponente está ensinando o ponto desprotegido no confronto, recebendo um carinho através do golpe. E a cada carinho recebido poderá mostrar humildade agradecendo pelo ensinamento. Diz um ditado japonês que “a espiga de arroz quanto mais carregada se curva ainda mais, e quanto mais vazia se empina ao máximo.” E quem é humilde felicita de coração a destreza demonstrada ao aplicar golpe certeiro, conseguindo com isto evoluir-se espiritualmente, pois a postura mais nobre de um ser humano é o sentimento de felicitar de coração o seu semelhante. [Trecho da carta do sr. I.- Novembro de 2008]

Após o treino com os praticantes avançados, o treino encaminha-se para o final. Normalmente o sensei de mais alta graduação presente no dojo dá o comando para a finalização e ocorre novamente a formação da fila dupla simétrica, na qual em uma coluna ficam os professores e na outra ficam os alunos. Isto posto, ocorre a meditação e os agradecimentos e alguns alunos mais antigos vão até os ‘sensei’ para ajudar a guardar os equipamentos e obterem ensinamentos, sendo tal prática disseminada e cobrada. O Sr M. K. nos diz sobre isso: O sensei sempre é um modelo... Tudo o que o sensei fala é absoluto. Depois que eu acabava de treinar, tirava o men e o equipamento e corria até o sensei para ajudar a arrumar o equipamento. Não precisava alguém falar que era para fazer... eu corria e fazia. Antigamente o sensei era sagrado. [Entrevista sr. M.K. – Maio de 2008]

Em todas as academias [dojo] a estrutura básica é a que se apresenta: um espaço e um conjunto de relações estáveis. O espaço é o ‘dojo’ e pode ser traduzido como ginásio, salão de exercícios ou como o local sagrado de prática budista. As atitudes perante o ‘dojo’ são observadas pelos professores, uma vez que sempre o menor deslize coloca em relevo o “espírito” do aprendiz. O local de treinamento possui uma ‘aura sacra’ para os praticantes de esgrima japonesa, visto que é nesse local que se desenvolve o aprendizado e que se desenvolveram muitos aprendizados e atribui-se a esses locais uma circulação de ‘energia’ de acordo com alguns professores. Todos os atletas têm de demonstrar o ‘respeito’ por esse local mediante uma série de atitudes. Entre elas, a mesura feita quando se entra e se sai do dojo. Essa atitude é tão

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internalizada, que em momentos diversos ela é manifesta: por exemplo, certa vez quando estava a entrar em uma sala de aula da pós em antropologia, fui acometido de uma mesura feita ao adentrar a sala.

Dojo- estrutura A estrutura que sintetiza a temporalidade ternária capturada nos treinos coadunase com a seguinte série de eventos:

1-

Adentrar o espaço que separa o ‘sagrado’ do ‘profano’ [minhas palavras] – Os dojo são locais ‘sagrados’ para os praticantes que exigem uma espécie de ‘etiqueta’ feita mesmo quando não tem presença de alguém no local e mesmo que mude o local. É preciso direcionar o olhar ao kamiza30 normalmente posicionado em um lugar de ‘honra’ no dojo31 e fazer uma reverência. Após, volta-se ao centro do dojo e repete-se a reverência. Isso demonstra o ‘respeito e a sinceridade’ de acordo com o professor Y.. O termo ‘centro’ não é tomado como virtualidade, possuindo uma existência concreta. A ‘idéia de centro’ perpassa toda a prática do Kendo e sua disciplinarização corporal.32

2-

Treino: dividido por sua vez em três variantes temporais: aquecimento, treino básico dos movimentos e treino avançado com as lutas. No inicio e final das lutas, tem-se lugar os agradecimentos e a disciplinarização dessa conduta.

3-

Finalização e retomada do ‘mundo profano.’ Quando se deixa o dojo, deve-se fazer os mesmos cumprimentos que foram feitos no inicio para deixar o local. Essa estrutura é o substrato referencial da chave classificatória – invocando não

descendentes de japoneses e descendentes – pois é a partir das atitudes inseridas neste esquema ordenado que se demonstra o ‘valor’ de um ‘kenshi’.33 Especificamente em relação ao segundo ponto, que é tomado como um índice de classificação dos professores em relação aos alunos, em diversas oportunidades recebi palavras de incentivo após as lutas e fui classificado. Por exemplo, em Outubro de 2007 durante um 30

‘Kami’ “神”- autoridade, divindade. Ou seja, um local apartado topograficamente. 32 O “centro” é um conceito com extensão finita e intenção infinita. Perpassa desde os corpos [seikatanden], a espada e o espírito, além de situar geograficamente a ‘energia’ no ‘dojo’, isso sem falar no ‘centro exemplar’, o Japão. Sobre a noção de Centro exemplar: Geertz (1980); e a sua operação para um contexto etnográfico migrante, Machado (2003). 33 Kenshi – praticante de Kendo.

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seminário de Kendo em São Carlos, lutei com o professor T. e ao final do treinamento ele me disse que a minha prática havia evoluído e que ele estava quase chorando. Em contrapartida, quando algum elemento da tríade do Kendo está diversa em relação ao modelo nipônico ideal tomado como centralidade virtual, as criticas são feitas. Uma vez, passei por cima de um shinai34que estava deitado ao chão e sofri uma reprimenda de um praticante mais experiente, que me disse que nunca se deveria fazer isso visto que se demonstraria falta de respeito.35 Mas não é tudo. Nos ‘dojo’, há três ‘tipos’ de ‘pessoa’ – em duas classes – com quem se deve relacionar, formando um sistema. Primeira classe: os professores (sensei), os alunos mais antigos (senpai) e os praticantes iniciantes (kohai), segunda classe. O professor é aquele que ministra as aulas e é tratado com deferência, pois é responsável pelos ensinamentos e torna-se responsável pelas pessoas que treinam no local em que ministra aulas. Quanto a isso, tenho inúmeros fatos que ilustram a posição de centralidade do professor em relação às atitudes de seus aprendizes, mas bastam dois. No inicio de 2007, uma aprendiz precisou parar de treinar Kendo em São Carlos em razão de ter passado em um curso de moda em São Paulo. Em razão desse fato e desejando continuar os treinamentos naquela localidade, pediu autorização ao professor Y. que a autorizasse a procurar um local de treinamento em São Paulo o que foi feito pelo professor enviando uma carta de recomendação ao responsável pela Academia Bandeirantes de Kendo pedindo que a aceitasse como aluna. Outro exemplo ocorreu quando da primeira entrevista que realizei na pesquisa, na qual o professor Y. acompanhou-me na entrevista com o professor I. O segundo ‘tipo’ de pessoas com quem se deve relacionar – e respeitar – são os veteranos, os quais sofrem uma cobrança sócio-motivada para manterem uma conduta exemplar36 pois são os mediadores entre os professores e os iniciantes. Os mais velhos devem chegar antes do inicio do treino, devem tem uma postura corporal exemplar, devem se portar com gravidade. O domínio [ainda que tímido] da língua japonesa é um 34

Espada de bambu “竹刀”. A relação entre Kendo e religiosidade zen é tomada como instituinte, pois tudo é pensado como na iminência da morte de acordo com o professor Y.. Em um exemplo que ele falou certa vez antes de um treino, sobre entrar no dojo descalço e colocar os sapatos paralelos e simétricos junto aos outros pertences, ele afirmou que caso alguém morresse, as pessoas que vissem os sapatos bem posicionados teriam uma boa impressão do morto. Em segundo, todos os atos que são feitos devem ser tomados como os últimos atos da vida e precisam de concentração. 36 Conversando com a sra. N. a qual relatou-se que um membro da Seleção Brasileira de Kendo lhe disse que, a partir do ganho do 3º Dan, as pessoas que praticam Kendo abaixo dessa graduação começam a vêlo como um ‘exemplo’ e em razão desse fato é preciso demonstrar habilidade e maturidade. O 3º. Dan é o nível de instrutor autorizado pela Confederação Brasileira de Kendo para ensino dessa prática.

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requisito importante, e há quem diga “necessário.” Mas não é o suficiente. É preciso ter um domínio do corpo que se manifesta nas lutas; uma postura da mente que se manifeste nas relações, seja aquelas com o equipamento, com os parentes, com os subordinados e superiores, com toda e qualquer relação, em suma. O Sr. I. contou-me que um membro da seleção brasileira não falava japonês quando iniciou os treinos de Kendo, mas em algum momento ele começou a estudar: Mas ele começou a ficar bom no Kendo e a gente começou a falar para ele puxar o treino, né, e aí o Taniguchi sensei falava assim né: “Kendo é nihongo!” E aí ele começou a falar e a estudar nihongo. Então o Kendo auxilia também a aprender o idioma. [Entrevista Sr. I. – Janeiro 2007]

O terceiro ‘tipo de pessoa’ são os ‘kohai’ ou iniciantes. Quando adentrei o Kendo, passei por maus bocados para ser ‘aceito’, pois o ‘grupo’ chamado de senpai37 se apresenta portando exigências de respeito. Não raro ocorrem ‘pequenas humilhações’ em razão de desconhecimento das formas aceitas de condução diante dos ‘superiores’. Lembro-me que em 2004 – em um treino no mês de agosto – quando comecei a usar a armadura, após a meditação chamada mokusoo,38 levantei-me para começar a treinar e fui interpelado por um praticante que me disse para levantar do solo de forma cerimoniosa, pois sempre alguém está olhando e é preciso gerar uma boa impressão. Em suma, os iniciantes são sujeitos a pequenos mecanismos disciplinares com o objetivo de incutir-lhes o sistema de regras operado no Kendo. Neste momento, estarão sujeitos a uma observação constante e ininterrupta, na qual o professor e os sujeitos de maior graduação e tempo de prática corrigirão os movimentos corporais do aprendiz no sentido de como posicionar seu corpo, como executar os movimentos básicos, como se portar em relação aos superiores, como pedir licença e agradecer ao final do treinamento, como adentrar e se retirar do ginásio fazendo uma reverência entre outras ações dignas de nota.

Hierarquia

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Veteranos- praticantes mais antigos. “Pensamento silencioso,” meditação, contemplação.

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...O que mais me marcou foi uma palavra do finado meu pai que falou que, quando entrar no dojo, não tem seu pai; tem sensei. Isso ficou gravado muito profundo. Então o que a gente precisa pensar é que, quando entra no dojo, existem pessoas acima do seu nível, no mesmo nível ou abaixo do seu nível, chegar e fazer aisatsu.

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Tem gente que treina com sensei que era shodan e mesmo não fazendo exame, continuou dedicando, ensinando e agradecendo o comparecimento de todo mundo, aprendendo como é tradicional de japonês né e sempre dando aquela força. Aí tem aqueles alunos que sobem para shodan, nidan sandan, yondan e não tem muito respeito por esse sensei e essa é uma coisa que, em alguns lugares que aconteceu isso, eu fiquei muito decepcionado porque só subiu porque tem aquele sensei ali, né. Se essas pessoas não tivessem esse sensei eles seriam alguma coisa no Kendo? Não seriam nada!! Falta alguma coisa. Falta pensar que eu sou nissei, sou brasileiro, mas sou descendente de algum lugar, nordeste, São Paulo, seja o que for, preto branco brasileiro mas tem que pensar igual. Quem está estudando alguma coisa tem que pensar igual, redondo. Tem hora que eu fico em dúvida, assim, porque vem marcando; puxa vida, daqui um ano, daqui dois anos, daqui ao tempo que eu estou vivo, se eu conseguir pelo menos algumas coisas que é lembrar para essas pessoas de agredecer e levar para a frente e ensinar os outros também a saber agradecer, saber cumprimentar, e saber orientar. Isso que foi gravado no fundo do meu coração e que eu estou divulgando agora. É um pouco difícil mas eu quero fazer com que as pessoas aprendam essa parte. [Entrevista: Professor T., Maio 2007]

Nota-se no Kendo – em sua sociabilidade-socialidade39 – que é preciso ter ‘respeito’ pela hierarquia e ela é transposta para outros planos. A familiar – o pai, a mãe e os irmãos. A hierarquia do trabalho – o chefe, os iguais e os subordinados. A hierarquia em relação aos mais velhos – e sua maior experiência. O professor T. T. diz:

O Kendo, do meu ponto de vista, segue a tradição budista, a tradição xintoísta e a tradição confucionista, né. Do budismo, ele pega duas coisas importantes: o caminho do meio e a auto-análise. Agora, do xintoísmo ele pega exatamente essa parte de respeitar, de amor a família, amor à pátria, concentrando mais nesse assunto. Do confucionismo, ele pega a noção de obedecer; conviver e tratar o seu superior bem, conviver bem com seus pais, e depois, respeitar bem as coisas estabelecidas, ou seja, leis, costumes; então essas coisas têm que ser respeitadas. Então, essas coisas vão fundamentar a noção de hierarquia e de disciplina. Ou seja, do ponto de vista do Kendo, conviver bem com seus inferiores, iguais e superiores, e respeitar as convenções instituídas; as leis etc. [Entrevista professor T. T., fevereiro de 2008]

Nos seus espaços de disciplina, tem-se a operação de um sistema hierárquico chamado de Kyu (sistema primário) e Dan (sistema secundário). O sistema hierárquico

A definição de Simmel (1997, p. 120-129) sobre a ‘sociabilidade’ (Geselligkeit) se aproxima bastante da noção de ‘Socialidade’ de Strathern (1996) à qual corresponderia à matriz relacional de que se constitui a própria vida das pessoas, as quais a um só tempo existem através de suas relações e as renovam. Nessa perspectiva, as relações sociais são intrínsecas à existência humana, não podendo, portanto, conceber-se o ‘indivíduo’ ou a própria ‘sociedade’ como entidades circunscritas; é aproximadamente, em resumo, o que vamos chamando de ‘relações sociais’ (Viveiros de Castro, 2002b, p. 120).

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primário vai do 5º Kyu40 ao 1º Kyu em ordem negativa à positiva. Neste primeiro sistema, o aprendiz se acostuma aos movimentos básicos do Kendo – corporais, formas de corte com a espada, noções de ‘respeito’ – até que seja possível a ele começar a utilizar o Bogu,41 que passa a ser um ‘rito de passagem’ (Turner, 1974) para o acesso e vivência deste iniciante em relação aos eventos e aprendizados com professores de alta graduação. Não há muita precisão neste primeiro sistema pois ele é efetivado nas academias, ao menos do 5º kyu ao 2º kyu. A partir do primeiro kyu, o exame deve ser realizado nos eventos oficiais da Confederação Brasileira de Kendo, que ocorrem duas vezes por ano em São Paulo. O primeiro kyu “Ikkyu” é a passagem para o sistema de graduação mais restrito, conhecido por Dan.42 A atribuição desse sistema segue a operação do exame.43 Sobre a graduação, diz-nos o Sr. I.:

A graduação só vê o lado técnico. Se estou apto a receber essa graduação. Em alta graduação, tem Renchi, Kioshi e Hanshi. A diferença está que o Renshi tem de saber orientar, dar aula. Fui ver no site da Federação Japonesa44 para poder traduzir para o C. sensei e vi que Renshi quer dizer que se tem um bom Kendo e se está apto a ensinar. Kyoshi é um ótimo Kendo. Seria um ótimo orientador. E Hanshi é um excelente Kendo e um excelente orientador. E ainda no Hanshi é preciso ter uma conduta excelente. [Em relação ao exame] é preciso entender os porquês; por que o Kendo é importante; por que os kamae são importantes. Por que a conduta é importante... tem que escrever isso. O comportamento de um Kyoshi na sociedade brasileira. Tem que escrever duas folhas de cinqüenta linhas. Tem que saber tudo isso para almejar fazer o exame e depois que passou precisa praticar isso.45 [Entrevista Sr. I. – Janeiro 2007].

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Classe. Primeiro sistema hierárquico do Kendo. Refere-se a graduações abaixo da ‘faixa preta’. Armadura. 42 Grau, graduação, qualidade. O sistema de Dan refere-se a graduação acima da faixa preta e designa que o praticante domina com certa liberdade os movimentos básicos. 43 Nos exames observa-se uma série de qualidades na passagem de uma pessoa pela graduação: qualidade do shiai [luta]; qualidade do kata [formas básicas de esgrima] e respostas a um questionário na data do exame. Em todos os níveis, o corpo é observado em suas qualidades para se saber se o examinado está prestes a passar para um novo nível. Por exemplo, o professor I. afirma que a qualidade de passar para um nível não coloca o aprendiz em condições de estar nesse nível; segundo ele, a passagem é apenas um incentivo para se prosseguir na prática. Os exames são realizados pro professores que possuem maior graduação. Normalmente cinco examinadores que referendam a passagem, sendo que três precisam aprová-lo no caso de baixas graduações. Acima de 3º Dan o numero de examinadores aumenta até chegar ao número de 21 examinadores para os exames de 8º Dan, apenas realizados no Japão. Cada graduação tem um tempo indicado para que seja possível prestar exame para graduação posterior, e segue a lógica “n-1”, ou seja, para poder prestar exame para 4º Dan, é preciso ter a graduação de 3º Dan há três anos. A exceção é o exame para 8º Dan, no qual a exigência é de 10 anos após o 7º Dan e o mínimo de 45 anos de idade. 44 http://www.kendo.or.jp/ 45 Renshi ("praticante avançado", conferido para kenshi de 6.º Dan e acima); Kyoshi ("praticante professor", conferido para kenshi de 7.º Dan e acima); Hanshi ("praticante modelo", conferido para kenshi de 8.º Dan) (TOKESHI, 2003, 199-202); (SASAMORI & WARNER: 1989, 60-61).

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A hierarquia de Dan é apenas indicativa de um campo de atitudes diferenciais em termos de relação com outrem46. Que um praticante de alta graduação possua de fato os predicados necessários para conceituar seu comportamento de ‘japonês’ é contingente, embora haja uma cobrança alta continuamente efetuada pelos professores mais velhos em relação aos mais novos de forma a que coincidam. Por outro lado, a hierarquia no Kendo difere-se quando observada por outro ponto de vista; quando ocorre a acumulação de graduação, há uma relativa obrigatoriedade47 de se ser mais ‘humilde’ para com os aprendizes e para com a chamada comunidade. Dizem que, quanto mais se sobe, mais responsável se deve ser, pois o incremento de insígnias é sinônimo de ‘conhecimento’ e essa ‘responsabilidade’ constituiria o “modo japonês” de proceder. O Sr. I. ilustra tal ‘condição’ por meio da metáfora do ramo de arroz: “quanto mais pesado está um ramo de arroz, mais ele se curva.” Outro ‘exemplo’. O professor Dr. T.T. encarna um comportamento de conduta para os praticantes48. Possui alta graduação e não se furta a chegar bem antes dos praticantes em treinamentos e eventos da CBK49 para limpar a quadra, conforme notamos em sua entrevista.

...eu ainda faço isso. Todo domingo eu chego cinco, cinco e meia e limpo a quadra, faço iai e me preparo para a aula, né. Por que eu faço isso? Porque a limpeza é purificação. Então, no Japão diz que a primeira coisa que o kenshi aprende é limpar o dojo. Ele fica limpando, limpando... isso é o que Sasaki sensei dizia. Ele é de uma família tradicional do Japão e falava: “olha, eu fiquei limpando o dojo não sei quantos anos. Só depois que o meu sensei começou a me ensinar Kendo.” Então quando começa a praticar ken, a parte interna já está pronta para receber. Quando eu ouvi isso, eu me propus a limpar o Piratininga todo domingo. Chego, limpo e quando o pessoal chega tá tudo limpinho. Também pratico o iai para estar moralmente, fisicamente e mentalmente pronto para a aula. Então, isso eu faço para mim mesmo, para poder guardar alguma coisa boa dentro de mim. [Entrevista professor T.T. – Fevereiro 2008]

A hierarquia se apresenta como uma contradição relativa e uma valorização aparentemente ‘absoluta,’ quando em referência aos mais antigos. Distinguem-se os superiores como dotados de saberes, que são sintetizados pelas suas designações “Outrem, não é ninguém, nem sujeito nem objeto, mas uma estrutura ou relação, que determina a ocupação das posições relativas de sujeito e de objeto por personagens concretas, bem como sua alternância: outrem designa a mim para o outro eu e o outro eu para mim”. Outrem é a expressão de um mundo relacional possível. (Viveiros de Castro, 2002b, p. 118) 47 Dada no plano sócio-praxiológico. 48 Sobre outros ‘exemplos’ coletados em campo, ver Lourenção (2010a). 49 Confederação Brasileira de Kendo.

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hierárquicas dadas no sistema de Dan e nos comportamentos socialmente modelados. Porém, essa hierarquização é sempre relativa. Alguém pode ser ‘superior’ ou inferior a outrem. E mesmo a essa classificação entre “superior e inferior” é dada a possibilidade de inversão, pela ação de “ganhar” do adversário o que é apenas um plano metaforizado. Ganhar em uma luta ou no discurso coloca em relevo o diálogo entre as posições hierárquicas. O valor hierarquiza. E se é o valor que faz mover a estrutura hierárquica, ele deve ser externado sempre. Em relação à Hierarquia, diz-nos Dumont (1996, p.370): Acredito que a hierarquia não seja essencialmente uma cadeia de ordens superpostas, ou mesmo de seres de dignidade decrescente, nem uma arvore taxonômica, mas uma relação a qual se pode chamar sucintamente de englobamento do contrário. Essa relação hierárquica é muito geralmente aquela que existe entre um todo [ou conjunto] e um elemento desse todo [ou desse conjunto]: o elemento faz parte do conjunto, é-lhe nesse sentido consubstancial ou idêntico, e ao mesmo tempo dele se distingue ou se opõe a ele. É isso o que designo com a expressão englobamento do contrário.

A hierarquia postula um princípio de unidade, afinal são todos praticantes de Kendo. Porém, há hierarquização em relação ao outro mediante a graduação de Dan [quando há diferença de graduação] e em relação à idade, e o ‘valor’50 pois os mais antigos no Kendo e na idade possuem status diverso. Em um nível, existe complementaridade e em outro, diferenciação e em outro ainda, a ‘densidade,’ que é o termo modular do valor ‘humildade.’ Dumont (Idem, p. 371-372) exemplifica a hierarquia a partir da consideração de um universo de discurso, figurado por um retângulo, dividido em duas classes. Existem duas formas possíveis de se entender suas relações. Ou tomamos o retângulo como duas Podemos distinguir três formas para uma analítica dos valores (Dumont, 2000, 1992): 1-Os valores sociais são essenciais para a integração e a permanência do corpo social, e também da personalidade; 2-Vínculo estreito entre idéias e valores, ou seja, união entre os aspectos cognitivos e os aspectos normativos; 3-São organizados hierarquicamente; cada sistema de valores deve ser visto como uma combinação sui generis de elementos, que são universais no sentido de que os encontramos por toda a parte (2000, p. 245246). Sobre a Hierarquia. As idéias superiores contradizem e incluem as inferiores; esta relação definese como ‘englobamento’, segundo Dumont. Variação 1: Inversão. Este princípio está inscrito na estrutura: dados dois elementos contrários em uma estrutura, um adquire valor simbólico superior ao seu referente estrutural em um momento, e em outro ocorre o privilégio do oposto. O princípio ordenador é a possibilidade de intercâmbio tendo por referência uma totalidade significante, o que confere mobilidade à estrutura em questão. Variação 2: Segmentação. Ocorre a segmentação de valores em contextos diferentes dentro de um plano; em determinadas situações, feixes de valores são alocados em resposta e outros ficam em estado de latência.

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partes justapostas – a e b – em relação, o que levaria à consideração de uma perspectiva ‘estrutural’; ou então admitimos que as duas partes possam se apresentar em coextensão, ou uma interna a outra e o discurso como uma totalidade o que indicaria uma perspectiva ‘substancial’. No caso da hierarquia – tal qual defendida por Dumont – teríamos tal perspectiva como adequada, pois tomando-se a e b ambos estão condensados no discurso, mas em diferenciação entre si. No nível superior, existe unidade. No inferior, existe distinção, poderíamos dizer, como no primeiro caso, complementaridade ou contradição. A hierarquia, portanto, consistiria na combinação dessas duas proposições de nível diferente. Dessa forma, a complementaridade ou contradição estariam contidas numa unidade de ordem superior. De um lado, temos estrutura. De outro, dialética em Dumont. Bem, a oposição hierárquica tal qual definida, enquanto relação englobante/englobado ou relação conjunto e elemento é indispensável para um pensamento estrutural do mesmo modo que a oposição distintiva ou relação de complementaridade. O sistema de graduação no Kendo tratar-se-ia de um modo sócio-morfológico de classificação, pois de fato os termos de diferenciação hierárquica levam em consideração o domínio sobre o comportamento e a noção de ‘respeito,’ que é a atualização da hierarquia. Mas a dificuldade seria considerar os praticantes, hierarquizados entre si, enquanto um ‘todo’ ora diferenciando-os, ora aproximando-os a partir das atualizações validadas na práxis. Melhor seria pensar enquanto potência, não totalidade. Ora, isso significa que o ‘valor’ relativo de atualidade do ‘respeito’ e sua relação com essa matéria ética que organiza o Kendo é constitutivo de sua distinção, significa que o valor não pode ser dissociado, como se houvesse de um lado uma idéia de polaridade simples hierárquica e do outro, um valor que lhe seria acrescentado à revelia em uma totalidade abstrata que enquadraria todas as possibilidades de atualização. Em suma, o problema é a consideração de uma ‘totalidade,’ que incluiria todas as ordens. Essa totalidade é desprovida de extensão pois carece de mobilidade e mais, cada ação precisa ser ‘feita,’ atualizada. Não há simplesmente uma idéia à qual se ajustaria em maior ou menor grau um estado de afectações ‘tipicamente japonesas’ tomadas enquanto código fechado. De acordo com Dumont, a hierarquia procede como uma forma de se incluir uma categoria inferior em outra superior. Ora, o sistema de Dan é uma demonstração aproximada desse sistema de hierarquia através da qual se procede à incorporação da categoria inferior na superior. Mas não é tudo. Note-se o trecho da entrevista do Sr. I.:

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...bom, hierarquia é assim; shodan, nidan, sandan etc né; agora, conforme você sobe, ela não é como militarismo. Por exemplo, todos os Sensei que eu conheci – nanadan etc – no Japão e que eu vim a descobrir que eram os melhores no Japão naquela época, eles me tratavam como I. San. E eu era quarto, quinto Dan no máximo. Eles não falavam I.. Então existe hierarquia tanto de quem está embaixo quanto de quem está em cima. [Entrevista Sr. I.– janeiro de 2007]

Os termos – honra, manutenção da palavra, humildade etc. – tomam significado. Eles não são arbitrários ou simplesmente ‘termos’ repetidos pelos descendentes; são antes ‘coordenadas’ que escalonam os praticantes enquanto potências valorativas: coordenadas de validação da ‘fabricação,’ ou seja, produtos do dispositivo em questão. A hierarquia – no Kendo – pressupõe a noção de ‘respeito,’ e é a partir disso que ‘valores outros’ são calculados. É indicativa essa noção, se tomarmos a discussão sobre os ritos de ‘elevação de status’ coligidos por Turner junto aos Ndembo, no noroeste de Zâmbia. Nos ritos, observa-se uma série de reversões hierárquicas quando os nobres são alçados à investidura da chefia, nas quais estão sujeitos a execrações públicas através das quais precisam se mostrar complacentes e aceitarem o ‘castigo’ coletivo. Turner classifica essa série de eventos como ‘communitas’ (1974, p. 118 e seguintes), que se oporia à ‘estrutura’ das investiduras sociais. Nesses momentos ritualizados e abertos ao coletivo está perspectivado que os privilégios, advindos da ‘comunidade’ enquanto dádivas devem retornar a um campo valorativo comunal mediante a negação de seu caráter absoluto através da execração (Idem, p. 128). Em outras palavras está a dualidade entre saber/poder e uma aparente ‘humildade’ que deve ser manifesta nessas ocasiões. Ora, a ‘humildade’ no Kendo não se oferece como um ‘rito’ mas como um ‘estado,’ ou ainda como um ‘afecto contínuo,’ que é uma das coordenadas nessa geometria de densidade variável. É o referente da graduação e tanto mais alta a graduação, mais humildade deve se externar. Neste sentido, a humildade aparece como corolário nesse sistema hierárquico, e tanto maior o ‘valor’ relativo de um praticante quanto maior a prova – para outros e para si – de sua capacidade de aprender a todo instante. De acordo com o prof. Dr. T.T.: A humildade está na atitude. Quando treino, tenho um vaso comunicante com o adversário. Se eu não tiver humildade, durante o treino, estarei passando meu conhecimento e, em pouco tempo nada terei a passar e estarei “vazio.” A atitude correta é eu me colocar ao mesmo nível para haver troca de forma que tanto ensinarei como aprenderei.

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O Tsubouchi-sensei toda vez que me encontra pergunta se estou fazendo os exercícios matinais. Recebi orientação do Horiguchi-sensei, 9º Dan, na parte moral e espiritual (道). Certa vez, ele perguntou-me se eu sabia de minha responsabilidade quanto ao que faço e penso como Presidente da Associação Brasileira de Kendo. Disse que: -"Suji ga tootte inai to ikenai," ou seja, é preciso que a nervura/linha esteja passando/transmitindo... É preciso que cada um se abra para ver em que ‘Caminho’ - "道" - está. Um mestre mandou o discípulo jogar um balde d'água na terra. A água correu devagar, tomando o caminho do mar. Mandou jogar a água de um segundo balde e esta corrigiu o caminho seguido anteriormente pela água do primeiro balde e caminhou mais rápido em direção ao mar. O papel do "Shidosha" (professor) é o do primeiro balde d'água, ou seja, o de indicar o caminho "道". Enquanto você estiver usando o que aprendeu, é "Tooteki". Quando estiver fazendo os seus próprios movimentos, será "Kanteki" (sentimento). É a primeira vez que estou falando disto. Guardei tudo em segredo, mas como o pessoal do Clube Piratininga descobriu que eu chegava bem antes do treino e limpava a quadra, tive que revelar um pouco do que fiz para me aperfeiçoar, esperando que cada um de vocês descubram o seu ‘caminho’ "道" através dos exercícios e da procura constantes. [Nota de palestra proferida em Brasília- DF, 22/04/1995- Texto cedido por prof. Dr. Y. 22/04/1995]

A ‘hierarquia consiste na combinação dessas duas proposições de nível diferente’. E tem-se a seguinte proposição complementar: a hierarquia supõe a distinção de dois níveis. A hierarquia, portanto, é bidimensional (Dumont, 1996, p. 374). Dado que afirmamos uma relação de superior com inferior, é preciso que nos habituemos a especificar em que nível essa mesma relação hierárquica se situa. Ela não pode ser verdadeira de uma ponta à outra da experiência, porque isso seria negar a relação hierárquica e mais, seria não distinguir o ‘valor,’ que é o atributo a partir do qual se hierarquiza. A hierarquia abre a possibilidade do retorno: aquilo que era superior num nível superior pode-se tornar inferior num nível inferior (Ibidem, p. 374). Porém, a chave hierárquica encontrada no Kendo é tridimensional, mediante a consideração da ‘densidade’ de atualização. Como juntar todas essas experiências em algo inteligível?

‘Dojo’- ‘Casa’ Quando a Associação São Carlos de Kendo foi fundada em 2004, o professor Y. disse-nos que o “Kendo era como uma grande família,” e em todos os treinos nos quais novos alunos ingressam – o que ocorre a cada seis meses – ele repete essa proposição quando faz a apresentação da prática para os neófitos. Temos o oferecimento a partir dessa concepção nativa, de uma chave interpretativa importante, pois podemos tomar

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em uma homologia formal o ‘dojo’ como um modelo ampliado da ‘casa japonesa.’ Vejamos. Em primeiro lugar, tanto o ‘dojo’ quanto a ‘casa’ possuem o ‘kami.’ Reader (Reader & Andreasen & Stefansson, 1993, p. 77-79) nos diz que, embora polissêmico, trata-se: ...fundamentally a term that distinguishes between a world of superior beings and things which are thought of as filled with mysterious power and a world of common experiences that lie within the control of ordinary human technique. Often the best translation is simply by the word ‘sacred’. In this sense it has an undifferentiated background of everything that is strange, fearful, mysterious… … uncontrolled, full of power, or beyond human comprehension. E prossegue: In addition to the general sense of sacred as just outlined, the specific meanings of ‘kami’ [strongly influenced by modern Shinto] should be noted. They are: spirits and deities of nature; the spirits of ancestors (especially great ancestors, including emperors, heroes, wise men and saints); superior human beings in actual human society, such as living emperor, high government officials, feudal lords etc; the government itself; that which is above in space or superior in location or rank… A esse senso mais geral, trata-se também de um lugar hierarquizado nas ‘casas’ e nos ‘dojo’ – espaço esse em que são depositados ‘artefatos sagrados,’ como imagens de divindades e fotos daqueles que não mais estão presentes em vida. Notadamente pais, esposos[as], avós51 - familiares em suma. Uma das formas que pode assumir concretamente é a de um oratório de madeira, normalmente delicado e finamente ornamentado – chamado de butsudan – que as ‘casas japonesas’ possuem. No ‘dojo’ a presença do Kami ou Kamiza52 é dada por meio um espaço igualmente hierarquizado, no qual se posiciona esse pequeno altar ou ainda fotos e escrituras budistas e/ou shintoistas. A atitude perante tais “objetos”53 é a ‘reverência,’ que se trata de um modo

Em algumas casas que freqüentei deparei-me com fotos de parentes já falecidos posicionadas dentro de um oratório em um lugar de honra nas casas, muitas vezes nas salas de visitas ou próximo a cômodos hierarquizados em relação ao restante das demais partições domésticas. Um lugar hierarquizado, perpétuo e memorável protegido contra o fluxo inexorável do tempo. O ‘kami’, como o butsudan, basicamente são máquinas de memória. 52 Kamiza “上座”. Nos dojo o local chamado de kamiza é o que deveria se referir como kamidana “神棚”, ou seja, o lugar hierarquizado no qual se localizam os objetos-oratório e nas quais há oferendas de arroz e flores. Kamiza no contexto da casa japonesa é um local ilustre e apartado topograficamente no qual se recebem visitas. Não obstante, esse mesmo lugar hierarquizado pode portar o butsudan. Utilizo a noção de Kamiza [e não a de Kamidana], pois foi com a primeira que me deparei na pesquisa de campo, e para a qual capturei esses conceitos. 53 Ou mais apropriado seria falar de formas-memória de “pessoas”?

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de atualização do ‘respeito’ para com a ‘divindade protetora,’ nas palavras do Sr. Y.. Em certas entrevistas que realizei, indicações sobre o Kamiza-butsudan aparecem despreocupadamente; diz-nos o Sr. T.:

...quando o Roberto vem do Japão para passear, ele sempre vai no dojo para agradecer ao finado meu pai pelo que ele fez. Tem um altarzinho no dojo e ele fica lá rezando e agradecendo. Quando ele vem também do Japão ele vai e treina lá no nosso dojo. [Entrevista: Professor T., novembro 2007]. Em segundo lugar, os ‘dojo’ são ‘domínios’ das famílias que tiveram papel relevante em sua constituição, assim como a ‘casa’ é um domínio da família através da perpetuação e transmissão de bens materiais e imateriais. Ora, por ‘papel relevante’ quero dizer que algumas famílias ao iniciar os treinos e agrupar pessoas conseguiram que esses dojo tivessem existência temporal para além de suas vidas particulares. Embora seja possível argumentar que nas associações muitas pessoas são responsáveis pela condução e continuidade, ainda sim o ‘moto’ inicial foi oferecido por algum descendente de japoneses, a exemplo a Associação São Carlos de Kendo que teve na figura do Sr. Y. o motor inicial de sua fundação. Possuo variados exemplos sobre esse fato em relação ao Estado de SP [e Brasil], mas este já basta em caráter de ilustração. Em terceiro, os dojo se perpetuam pela ‘memória’ de um domínio e um nome através dos quais os seus membros se esforçam por reverenciar e justificar a inserção. Além de que a transmissão e treinamento dos ‘bens imateriais’ – como a noção de ‘espírito’ e a própria operação da hierarquia através da categorização presente no sistema de Dan é possibilitado pela existência do vinculo dos kenshi nos dojo. A ‘hierarquia’ leva em conta a temporalidade de treino e graduação, o que pode indicar a comparação com a hierarquia de idade e ‘primogenitura’54 nas ‘famílias japonesas’ (Benedict, 2002, p. 48-68, 87-106); (Vieira, 1973, p. 110- 127); (Beillevaire, 1986, p. 287-340). Em quarto lugar, conhecem-se os membros [para além dos dojo, notadamente em campeonatos] e se atribui localização neste espaço ‘familiar’ através dos zekken, que são placas de identificação portando o sobrenome e o nome da associação na qual tal indivíduo é vinculado. Os sobrenomes – escritos nesta placa posicionada à armadura –

Embora a hierarquia de primogenitura não seja a mais relevante para a qual os dados apontam. Sobre isso – e as distinções entre ranqueamento consangüíneo e afim em relação e principalmente à adoção no Japão – ver Bachnik J. M. (1983).

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são as franjas a partir das quais se localiza (familiarmente) as pessoas através da ligação do nome-sobrenome ao ‘dojo’ e, conseqüentemente, ao vinculo entre mestre e discípulo, sendo no mais das vezes os professores responsáveis pela conduta dos alunos, o que aproxima o sensei de uma noção de ‘chefe de família’55 (Idem, ibidem). Em quinto lugar, os termos designativos de temporalidade de treino mantêm uma dada relação estrutural. Sensei, senpai e kohai são termos posicionais de hierarquização dentro do dojo e são independentes de gênero, embora a noção de sensei de fato se aparte das subseqüentes em razão da similaridade estrutural com a posição de chefe de família dentro do Dojo. Sobre isso, cabe a indicação etnográfica-documental absolutamente perspicaz de Bachnik (1983, p. 164 e seguintes) através da argumentação de que os termos de parentesco para o contexto da ‘casa’ japonesa podem ser posicionais ou então atribuídos por sucessão (household parameters: position and succession).56 No caso de adoção,57 por exemplo, os termos são considerados enquanto posicionais. Em suma, há uma vinculação entre ‘dojo’ e sistema de posições hierárquicas. Notadamente uma hierarquia no qual o principio de operação leva em consideração o domínio de um saber e uma forma de atualização nos corpos das pessoas que estão sob sua influência. Portanto, uma dada relação se estabelece, entre ‘dojo’ – ou poderíamos dizer ‘casa,’ hierarquia e corpo. Quando estava a fazer o levantamento dos praticantes de Kendo, perguntei-me por qual razão de tantos [cerca de 100 pessoas em um universo de pesquisa de 120] permanecerem vinculados de alguma forma aos ‘dojo’ nos quais iniciaram os treinos. A razão se me apresentou em evidente simplicidade; tais espaços de práticas podem ser pensados enquanto ‘pessoas morais’, que é a significação da ‘casa’ (Lévi-Strauss, 1981, p. 153 e seguintes). Sobre a Casa, Lévi-Strauss nos diz que (Dictionnaire de L´Ethnologie, 1992, p.435): La maison est 1) une personne morale, 2) détentrice d´un domaine 3) composé à la fois de biens matériels et immatériels, et qui 4) se perpétue par la transmission de son nom, de sa fortune et de ses titres Há de se notar que as corporações militares japonesas em suas “rapports hiérarchiques au sein de ces groupements guerriers” normalmente se valiam de termos retirados de empréstimo do parentesco, mais especificamente de um vocabulário familiar (Beillevaire, 1986, p. 303). 56 A terminologia de parentesco no Japão é a de tipo ‘eskimo’, simétrica e dependente de ego para a diferenciação (Beillevaire, 1986, p. 330-340). Há mesma utilização dos termos por parentes consangüíneos e pelos parentes por aliança. 57 Há variados casos de adoção para o Japão, embora a adoção do genro seja a mais comum [Muko Yoshi] de acordo com Beillevaire (1986, p. 318). Mas pode contar com a adoção de um casal [Fûfu Yoshi], que é a forma direta de perpetuação da ‘casa’ quando de impossibilidade de consangüinidade apriorística, o que leva a um processo de consangüinização de um duplo afim. Sobre isso também, pode-se ver Bachnik (1983) e Shimizu (1987).

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em ligne réelle ou fictive, 5) tenue pour légitime à la condition que cette continuité puisse se traduire dans le langage de la parenté ou de l´alliance, ou 6) le plus souvent les deux ensemble.58 Levando em consideração a crítica à ‘noção de casa’ efetuada por Carsten e Hugh-Jones (1995), a qual indicamos sucintamente como se apresenta: em primeiro lugar, Lévi-Strauss usa tal noção como instrumento de estabilização temporal de características materiais e imateriais fornecidas pela organização social, tais como nomes, títulos, prerrogativas de identidade e bens variados. Pois bem, não se desenvolve a relação entre casa e hierarquia e entre ranqueamento hierárquico entre casa/casa e casa/espaços. “The diacritical, status-marking significance of such property appears to imply that the constituent units of society, the houses, are necessarily hierarchically ranked.” (Idem: p. 07) Tomando apenas a hierarquia de espaços, notamos que tanto nas casas que tive a chance de freqüentar e nos ‘dojo,’ o lugar de honra constitui-se no Kami. A casa é uma ‘representação’ não somente da unidade – muitas vezes tal ‘unidade’ é dada idealmente apenas no nome da ‘casa’, que é o nome da ‘família’ – mas de vários tipos de hierarquia. Note-se o ‘poder’ que é encarnado na figura do ‘chefe de família’ japonesa, o que é comparável em certa medida ao ‘poder’ baseado no ‘saber’ dos professores – sensei – sobre os corpos e atitudes dos alunos, formando no mais das vezes uma espécie de “família estendida”. Embora tal termo não seja preciso, ainda sim temos uma dada correlação que aproximaria em uma analogia funcional os termos no dojo e na casa. Especificamente para o contexto japonês existe um conceito que opera em forma de sistema (LéviStrauss, 1996, p. 45-349; 2003, p. 12-45), que é o de ‘ie’, nas palavras de Waterson (In Carsten, 1995, p. 11) “a multi-faceted institution penetrating every level of japanese society and fitting awkwardly with the terms of conventional kinship analysis, in the terms of Lévi-Strauss suggested for the house.” A instituição ‘ie’ data do século XIII no Japão e se torna absolutamente operante durante o período Edo (1600-1867) (Beillevaire, 1986, p. 308-315), que se desenvolveu enquanto um conjunto de regras de operação praxiológica que tinha por finalidade assegurar a continuidade familiar e a transmissão da herança, através do sistema de primogenitura (Vieira, 1973, p. 116-122) ou ainda do sistema de adoção (Bachnik, 1983); (Shimizu, 1987). Entretanto, o ‘ie’ não “A ‘casa’ é pessoa moral detentora de um domínio composto simultaneamente por bens materiais e imateriais e que se perpetua pela transmissão do nome, da fortuna e dos títulos em linha real ou fictícia, tida como legítima sob a condição única de esta continuidade poder exprimir-se na linguagem do parentesco ou da aliança e, as mais das vezes, em ambas ao mesmo tempo.

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corresponde estritamente à idéia de ‘família,’ pois seus vínculos ultrapassam os laços de consangüinidade, permitindo a ‘adoção de uma pessoa’ mediante outros critérios, como a afinidade ou ainda parentesco afastado, na ausência de um primogênito que pudesse garantir a sobrevivência da ‘casa’ pelas mais variadas razões. Uma interpretação relativamente consensual é tomá-la enquanto grupo corporado (Ib. Ibidem). Nas palavras de Shimizu (Idem) p. 85: It is commonly accepted that in Japanese agrarian villages the ie is the family. At the same time, however, a number of scholars insist that it cannot be understood simply as a family. Besides being a family, the ie is a corporate group with a wide variety of functions covering the domestic, economic, political, and religious lives of its members. Todo o sistema social e econômico59 era baseado nesta possibilidade, que supunha a residência comum, sob a autoridade do pater-família e a divisão dos papéis que cabiam a cada membro, segundo critérios estabelecidos e atualizados nas hierarquias geracional e de gênero. Trata-se de uma unidade de organização social que perpassou boa parte dos estamentos sociais, de acordo com Ocada (2002, p. 1); opus cit: (Sakurai, 1993; Ortiz, 2000). Segundo Lévi-Strauss (1986, p. 186-187) na Europa e noutras partes do mundo – como no Japão – as casas medievais apresentam exatamente as mesmas características, definindo-se pela posse de um domínio composto de riquezas materiais e imateriais – as “Honras” – entre as quais se situam até mesmo tesouros sobrenaturais. E o importante é que, para se perpetuarem, as ‘casas’ apelavam amplamente para o parentesco fictício, quer se trate de aliança ou de adoção. Na falta de herdeiros masculinos, e por vezes em concorrência com eles, as irmãs e as filhas podiam assegurar a transmissão dos títulos. A ‘casa’ para o contexto japonês guarda relação com a operação do ‘ie’ e no contexto de minha pesquisa é encontrada no Kendo – em sua operação lógica, bem entendido – através da continuação do ‘dojo’ nas mãos de não-descendentes, que incorporam o domínio da ‘casa’ de acordo com as indicações de meus dados e informantes. Em segundo lugar, a ‘casa’ aparece em Lévi-Strauss como forma de transcender um campo paradoxal criado entre princípios teóricos ‘opostos’: por exemplo, regras operativas como endogamia e exogamia, residência e filiação, descendência patri-matri linear, aliança e afinidade. Em terceiro, notadamente aparece como uma solução de

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Essa generalização não é válida para a família imperial – ocorria nos casos coletivos samurai, agricultores e comerciantes (Beillevaire, 1986, p. 287-340).

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continuidade [lógica-evolucionista, não ‘histórica’ de acordo com Lanna (1998, p. 2)]

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através da qual se daria a passagem entre estruturas elementares do parentesco às estruturas complexas e a troca generalizada. Em suma, a ‘casa’ é interpretada por Carsten e Hugh-Jones a partir de Lévi-Strauss como “a hybrid, transitional form between kin-based and class-based social orders, ‘a type of social structure hitherto associated with complex societies [but] also to be found in non-literate societies’.” (1995, p. 10) e a partir da qual se nota que uma ‘operação política’ normalmente é acompanhada em seu desenvolvimento, por exemplo, a critério de seleção e atribuição de domínio sobre a casa. Expandindo o exemplo, o professor P. B. disse-me que – embora tivesse na associação de Kendo de São Carlos o cargo de Presidente, e acompanhando as reuniões, normalmente as decisões eram direcionadas para o ‘fundador’ de tal associação, o professor Y.. Apenas quando p. obteve o 3º Dan e recebeu de Y. a indicação – em uma reunião da CBK – de que eles deveriam tomá-lo como responsável pela referida associação, é que os outros representantes de academias passaram a tratá-lo enquanto tal. Carsten e Hugh-Jones ainda argumentam que a ‘casa’ pode ser tomada como uma relação entre estrutura física, pessoas e idéias, na qual o fato importante é menos corroborar uma análise de posição dela como um instrumento complementar em relação ao parentesco ou à organização social e vê-la como um instrumento que organiza temas tratados de forma separada. Como proposição tautológica (1995, p. 02, grifos meus),

…the house and the body are intimately linked. House, body and mind are in continuous interaction, the physical structure, furnishing, social conventions and mental images of the house at once enabling, moulding, informing and constraining the activities and ideas which unfold within its bounds.

Nos ‘dojo’ os professores – sensei – tem cada academia como seu ‘domínio’ e que se manifesta mesmo que haja visitas de professores mais graduados. Cada academia é a continuidade do sobrenome de seu fundador, uma continuidade manifesta pela responsabilidade que cada singularidade tem em seu próprio domínio. E esse domínio detém qualidades materiais e imateriais e dentre essas, a atualidade do kami permite-nos comparar o ‘dojo’ como uma ‘casa.’ Isso é importante, pois é um modelo ampliado da casa japonesa e um espaço de hierarquização. Bem, a hierarquia é também uma operação da memória. Esse lugar de honra coloca em relevo uma hierarquização que se apresenta como sendo um respeito à memória da família, o que é uma forma de propagação da casa. E, dizendo o que é evidente, têm de haver desigualdades relativas

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para se haver troca entre-hierárquica; ao papel de kohai preenchido por um praticante, soma-se o papel de sensei, em uma temporalidade continua advinda da prática. Nas palavras de Lanna (1996, p. 37):

Obviamente, não discordo da demonstração de Lévi-Strauss de que estes diferentes modos de troca acarretam diferentes modos de solidariedade. Meu argumento é justamente a generalização deste: diferentes modos de troca, generalizadas ou não, sejam ou não restritas à esfera do parentesco, acarretam sempre diferentes modos de solidariedade. Decorre daí que a troca generalizada lévi-straussiana está mais próxima do que se imagina da noção de maison (cf. Lévi-Strauss 1981, 1983, 1984, 1992), já que, fundando-se mais no fato da dívida do que na troca bilateral, ela implica desequilíbrios que poderão ser compensados, mas nunca cancelados. Concluindo, por implicar sempre a fundação de um novo movimento, que é uma nova dívida e um novo circuito, a reciprocidade é sempre desigual. Por implicar sempre um lapso de tempo e desigualdade do que é trocado, a reciprocidade é sempre desequilibrada. Assim é a vida social: “são estas desigualdades, [...] grandes ou minúsculas, que animam o mundo, o transformam sem parar nas suas estruturas superiores, as únicas verdadeiramente móveis.” (Braudel, 1970, p.479)

Algumas palavras ainda sobre a hierarquia e adentrando de fato a casa japonesa

A hierarquia no Kendo se apresenta como um cálculo geométrico variável (Latour, 1994, P 84-87); (Viveiros de Castro, 2002a, 401-455) resultando no contato com outrem acima, abaixo ou lateral, sendo a álgebra de Dan inversamente proporcional à distancia social no contexto etnográfico. Calcula-se a aproximação relativa, e em segundo o domínio de causa do saber tradicional e sua ativação-atualização nas coordenadas valorativas – como a humildade e o respeito, por exemplo. O que passamos a partir deste momento a designar enquanto uma geometria da japonesidade, através da qual os ‘valores’ adquirem densidade por meio de sua atualização. Mas é importante ressaltar que tais ‘valores’ não são pontos, mas linhas de ‘densidade’ variável. A dualidade da chave hierárquica em Dumont abre problemas, pois o cálculo não é apenas entre acima, abaixo ou ao lado ou ainda sobre se uma idéia engloba, inverte ou se apresenta em uma reciprocidade (Lanna, 1998, p. 12 e especialmente Viveiros de Castro, 2002a, p. 427-431) em relação à contrária. O cálculo leva graus variados de proximidade e distância em relação à idéia e à prática de atualização. Dito isso, a ‘hierarquia’ enquanto princípio a uma segunda aproximação pode ser pensada no

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Kendo em um de seus efeitos, como o englobamento sistêmico da ‘diferença,’ multiplicando diferenças em níveis infinitesimais com sua atualização dada numa tridimensionalidade referencial. Isso que compreendemos como princípio hierárquico tridimensional. A seguir temos um pequeno desenho que ilustra o que falamos anteriormente. O termo ‘nebulosa virtual de ideação’ quer dizer multiverso ideal, através do qual conceitos e idéias existem de modo esparso sem as devidas conexões. A exemplo poderíamos dizer ‘samba’ para a nebulosa virtual de ideação ‘Brasil’ e ‘koto’, para o ‘Japão,’ desde que avaliadas em forma cruzada. Isso marcaria uma diferença máxima, pois só se deduz que um termo tenha sentido no ‘Brasil,’ e outro no ‘Japão.’ Chamo de ‘afinidade potencial’ – em boa medida remetendo ao texto de Viveiros de Castro (2002a, p. 404-447) a discussão – a diferença para o contexto nipo-brasileiro [de onde partimos], pois um afim é antes de tudo outrem, e marca uma função de tipo hierárquico. Mas todo afim é dado de certa forma, visto que a própria consangüinidade é ‘construída’ para o contexto japonês (Bachnik, 1983); (Shimizu, 1987) conforme apontamos até o momento. Ora, o interesse das famílias de descendentes a que se pratique kendo, e as atualizações da hierarquia geracional bastam para ilustrar. Por outro lado, o termo ‘consangüinidade potencial’ tem valor metafórico, pois conforme caminhamos da linha ‘Brasil’ para a ‘Japão’ [não confundir, pois são linhas distintas], pode-se estabelecer uma consangüinidade “virtual,” como o é a descoberta-fabricação do espírito, o fabricação do corpo, a atualização da hierarquia até chegarmos a adentrar a ‘casa japonesa:’ dojo.

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Figura 1 – Gráfico de Hierarquia de Diferencial-Potencial

LOURENÇÃO, 2009, Dissertação de mestrado, p. 100

Até aqui, nada de muito novo; mas em cada componente opera o cálculo da japonesidade, que fornece densidade às unidades-valor que ativam os sujeitos. Isso é importante. E existem conseqüências. Em primeiro lugar, a própria idéia de ‘identidade’ é um atual em um virtual no qual só há ‘diferença,’ de cima a baixo e ortogonalmente. Em segundo, não há senso de ‘totalidade’ pois nunca se tem o domínio do todo, o que é o corolário da operação hierárquica. Em suma, no gráfico, temos relações dadas entre séries de agenciamentos hierárquicos, e caberia falar aqui também que dentro do dojo, os termos hierárquicos aproximam de termos de parentesco, mesmo que tomados em forma virtual. Resumindo em forma escolar o precedente conforme se ‘sobe’ relativamente, mais imbuído o ‘pensamento’ sobre os japoneses se fica e conseqüentemente capturada se torna a singularidade, que é o efeito evidente do processo. Ora, a aproximação hierárquica tem por corolário domesticar a diferença fenotípica, ao mesmo tempo em que a distância social se torna mínima, o que poderíamos conceituar como uma espécie de hierarquia de ‘diferencial,’ através das quais seriam moduladas pelo cálculo na geometria de japonesidade.

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Nota conclusiva Vimos neste pequeno paper a possibilidade de se comparar – e relacionar – ‘casa’ e ‘hierarquia,’ através do dispositivo ‘dojo,’ ao menos do ponto de vista sóciológico e etnográfico. Ora, para uma imaginação ‘japonesa,’ o que parece emergir é que em questão não está conclusivamente a diferença fenotípica, mas um conjunto de microdiferenças que aproximam ou afastam singularidades – tanto metafísicas quanto físicas, atualizadas constantemente. Ora, os termos de relação hierárquica dentro do dojo podem portar comparações amplas com a ‘família japonesa,’ e o objetivo deste artigo foi apenas indicar tal possibilidade, que continuará a ser explorada no próximo trabalho.

Gil Vicente Lourenção Doutorando em Antropologia Social, PPGAS Universidade Federal de São Carlos – UFSCar E: mail: gil_vicente1@yahoo.com.br

Abstract: The plan of this paper is to relate some facts ethnographic collected from practitioners of Japanese fencing [Kendo] - including Japanese, Japanese descendants, and people without Japanese ancestry - through relationships activated in training spaces, called dojo, in which the concepts - like hierarchy and family - operate and a likely draw analogy with the notion of Maison, taking to reference an anthropological theory. The use of the hall training as the unit of analysis is important and offered as a result of my master's thesis, for it is there that updates a a device of Japaneseness - that is, a mechanism for the production of 'Japanese' myth and rith speeches, re-designed and updated from an objective and subjective body-size. Keywords: hierarchy; value; notion of maison; japaneseness.

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Sites Inazo

Nitobe [1899] Bushido. http://www.gutenberg.org/etext/12096 http://www.Kendo-fik.org/english-page/english-page2/IKFaffiliates/IKF-affiliates.htm Federação Internacional de Kendo: http://www.Kendo.or.jp/

Filmografia Yamamoto, Ivan: Palestra de Hiroshi Yano, Japonês-Português, Color, NTSC, Kendo, 2004, Aprox. 3 horas.

Recebido em 19/03/2010 Aceito para publicação em 22/03/2010

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Selvagens, brutos ou heróis? Os brasileiros de torna-viagem e a construção identitária do Brasil em Portugal

Wellington Teixeira LISBOA

Resumo: Os fluxos migratórios dos portugueses para o Brasil constituem um dos mais importantes períodos da história da emigração portuguesa. O movimento contrário de muitos portugueses à sua terra natal, especialmente no século XX, foi acompanhado pela profusão de imagens pejorativas sobre os assim denominados brasileiros de tornaviagem. No presente estudo, analisaremos como essa movimentação transatlântica refletiu na construção histórica da identidade brasileira em Portugal. Paralelamente, incidiremos sobre algumas estratégias discursivas que, à luz dos atuais interesses lusófonos, vêm redimensionando as interpretações sobre este evento histórico-cultural. Palavras-chave: relações Brasil-Portugal; brasileiros de torna-viagem; lusofonia; identidade cultural.

Os fluxos migratórios dos brasileiros de torna-viagem representam um dos mais importantes períodos da história da emigração portuguesa no mundo, também se caracterizando como um fenômeno singularmente relevante no processo de construção identitária do Brasil em Portugal. A historiografia portuguesa atesta que a movimentação de um contingente da população daquele país europeu com destino à grande colônia imperial – o Brasil – já se acentuava desde o século XVII,1 sendo que no final do século XIX e começo do XX essa translação oceânica atingiu índices de forte expressividade. As incompletas estatísticas brasileiras, por sua vez, registram a representatividade do número de imigrantes portugueses que nos últimos séculos aportaram em território brasileiro, contabilizando a entrada de cerca de 942 mil, no período que se estendeu de 1855 a 1914, e, após uma forte contração durante a Primeira Guerra Mundial, a chegada de 320 mil portugueses, no período compreendido entre 1919 e 1929 (Leite, 2000). De acordo com Alves (2000), o Brasil era o terreno mais fértil para o imaginário coletivo português do século XIX e de até meados do XX, materializando o sonho do

Segundo Baganha (2001), os trânsitos migratórios de portugueses para o Brasil, até a independência deste país, apresentaram íntima ligação aos objetivos mercantis e imperiais da Coroa portuguesa. Assim, o que marca os primórdios da emigração portuguesa é o fato de os emigrantes abandonarem seu país, prioritariamente, aos serviços do Império. Rocha (2001) exemplifica essa relação, denominada por esta autora como emigração direcionada pelos poderes públicos, a partir dos fluxos migratórios que se sucederam em meados do século XVIII, com origem nos arquipélagos dos Açores e da Madeira e destinos nos territórios localizados nos atuais Estados brasileiros de Santa Catarina, Rio Grande do Sul e Pará.

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Eldorado que tanto instigou centenas de milhares de portugueses para o êxodo transatlântico. No dealbar de 1800, esses emigrantes, majoritariamente do sexo masculino, quase sempre jovens, e alguns ainda crianças, fugindo das condições socioeconômicas desfavoráveis que assolavam as aldeias e as pequenas cidades do Norte e Noroeste de Portugal,2 rumavam prioritariamente às fazendas de Minas Gerais, região brasileira onde a extração do ouro e a intensa urbanização compunham um cenário auspicioso. Independentemente das desiguais concentrações de riqueza, boa parte dos emigrantes portugueses tornava-se definitiva naquelas terras, e noutras para onde emigravam, estruturando uma cadeia de contatos que ativou o grande movimento da migração do século XIX entre Portugal e Brasil. Contribuiu para a intensificação desse fluxo o fato de a burguesia comercial, formada pela negociação do ouro e pela posse das plantações de café, ter dominado as redes de emigração e garantido a sedimentação do monopólio português do comércio brasileiro. Alves (2000) também refere que esta emigração, na fase inicial do século XIX, era estimulada por famílias que tinham condições de pagar os custos da viagem do emigrante. Além disso, o interesse em encaminhar os filhos para o Brasil obedecia às estratégias familiares e à distribuição fundiária portuguesa, ou seja, enquanto a um filho era delegada a responsabilidade pela manutenção das propriedades agrárias, os demais eram quer direcionados à vida eclesiástica, quer enviados ao Brasil, sempre com objetivos de garantir um futuro familiar economicamente estruturado. A expectativa de mobilidade social ascendente, logo, apresentava-se como princípio fundamental no campo das decisões individuais e familiares que conduziam ao processo migratório. Naquele contexto, as notícias que chegavam do outro lado do Atlântico continuavam divulgando, em solo português, a imagem mítica do Brasil como terra das promessas, das facilidades e das riquezas. Segundo Leite (op. cit., p. 31), “muitos rapazes teriam a ambição de uma vida livre da pesada autoridade paterna e dos apertados costumes de terras pequenas, acenando ao longe com a possibilidade de fortuna.” As famílias portuguesas que organizavam a ida dos filhos à “terra prometida” consideravam a necessidade de garantir uma carreira profissional àqueles jovens, sendo que os contatos prévios nos meios comerciais brasileiros, dinamizados pelos portugueses, permitiam entrever a concretização do sucesso almejado. Naquele século, algumas melhorias no atendimento à sociedade permitiram o aumento da população portuguesa, e as famílias não conseguiam garantir seu sustento apenas com pequenos pedaços de terra. Acresce-se ainda as parcas oportunidades decorrentes de uma economia baseada na insuficiência de lavouras incipientes, com fluxos monetários desgastados (Alves, 1999, 2004).

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No Brasil, muitos desses imigrantes enviavam, com certa regularidade, notícias e dinheiro para os pais, orientando-os para a compra de terrenos e imóveis e para a expansão das plantações; outros, todavia, nunca mais os contatavam, “talvez falecidos ou perdidos para a família numa pobreza envergonhada.” (Leite, op. cit., p. 33) Após sucessivas décadas de trabalho em terras brasileiras, inúmeros brasileiros3 retornavam a Portugal, sempre dotados, como afirma Santos (2000), de um diferente sotaque linguístico e de aparentes mudanças comportamentais, nomeadamente aquelas relativas aos hábitos alimentares, de vestimenta, aos valores morais, às convicções e às práticas de sociabilidade. De acordo com este autor, tais distintivos simbólicos, alimentados na terra natal pelas mitologias da emigração e do retorno, remetiam, no imaginário português da época, às representações identitárias do Brasil como terra paradisíaca, tropical e abundante de riquezas, imagens intensificadas pela ostentação dos tornaviagens ricos que, não raramente, desfilavam pelas ruas com suas botas largas, com seus chapéus de abas fortes e cores claras e com seus anéis de brilhante e cordões de ouro. Assim, no imaginário coletivo do Portugal oitocentista, cristalizou-se a imagem do Brasil como “terra das patacas,” como o tão almejado “paraíso dourado,” de uma “vastidão incomensurável, onde era possível rasgar os horizontes impostos pelo nascimento e onde a fortuna podia sorrir, desde que houvesse um misto de trabalho metódico e sorte.” (Santos, op. cit., p. 18) No entanto, após a Independência do Brasil, e com a adoção das políticas brasileiras para o branqueamento da raça,4 que asseguravam diversos incentivos a europeus que emigrassem para este país, alterou-se o perfil do coletivo de emigrantes portugueses, que já não dispunham de posses fundiárias em Portugal, não se encontravam inseridos em redes do comércio brasileiro e não possuíam instruções Denominação atribuída em Portugal aos portugueses que emigraram ao Brasil e, tempos depois, retornaram a seu país dotados de considerável poupança e de salientes mudanças comportamentais, que remetiam às características subjacentes no imaginário dos portugueses sobre o Brasil e os brasileiros, ou seja, ao universo simbólico difuso de referências exóticas e “selvagens.” 4 A teoria do branqueamento da raça apregoava a necessidade de “branquear” a população brasileira, a partir do cruzamento entre o negro e o estrangeiro branco, e substituir o negro e o mestiço no mercado de trabalho livre, nas zonas rural e urbana. Uma das medidas tomadas para a execução das propostas dessa teoria racial foi a adoção das políticas de imigração, que incentivavam, com as concessões de propriedades rurais e de pequenos comércios artesanais nas zonas urbanas, a vinda massiva de emigrantes para o Brasil, principalmente os de origem europeia. Vale salientar que essa teoria fundamentava-se, em parte, nos pressupostos da tese da “raça pura,” do Conde de Gobineau, autor do ensaio A desigualdade das raças humanas (1853-1855), que propunha a superioridade biológica da “raça nórdica.” Este autor, ex-embaixador no Brasil e amigo do imperador D. Pedro II, defendia a ideia de que o desenvolvimento do Brasil estava travado em decorrência do grande contingente populacional pertencente às “raças inferiores,” concepção que, por longo tempo, exerceu enorme influência no pensamento social brasileiro (Cervo; Magalhães, 2000; Borges, 2001).

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escolares que lhes valessem como garantia de uma carreira profissional. Ainda que esses emigrantes, na sua maioria, continuassem pertencendo ao sexo masculino, um considerável número de mulheres passou a ter acesso à experiência da emigração transatlântica, ambicionando uma vida estruturada no Brasil, ou posteriormente em Portugal, com as condições imaginadas quando dos deslumbramentos diante dos brasileiros com cordões de ouro. Assim, às mulheres e aos homens portugueses, com perfis bastante discrepantes em relação àqueles que emigravam no início do século XIX, fora atribuída, em Portugal, a designação de engajados, emigrantes a contrato que, para pagar a passagem e os custos da viagem, assumiam dívidas com os engajadores, comprometendo-se a quitá-las, com trabalhos sistemáticos, nas fazendas brasileiras de café e, inclusive, nas novas obras públicas (Alves, 2000). Convém, pois, mencionar que esses imigrantes, com idades mais avançadas em relação aos de outrora e geralmente casados e provenientes do meio rural português, participaram da substituição da mãode-obra escrava no Brasil, durante o processo de abolição da escravatura ocorrida neste país. Em Portugal, generalizou-se a ideia de que o engajado não era mais que um escravo branco. Essa concepção fora amplamente propagandeada pelo Estado português, que pretendia canalizar os excedentes demográficos para as colônias africanas e, naquelas posses, construir novos “brasis.” Ainda assim, e não obstante as representações ultrajantes que se firmaram contra a figura dos que, naquele período, emigraram para a ex-colônia, o fluxo transatlântico continuou crescendo durante o século XIX, atingindo elevados índices na década de 50, quando definitivamente se proibiu o tráfico negreiro no Brasil.5 Como demonstra Miranda (1999), em meados do século XIX, a esmagadora maioria da emigração portuguesa afluía para o Brasil, estimando-se cerca de 80% dos emigrantes que deixavam Portugal. No pensamento generalizado, “o Brasil era o seu ideal; ali quem trabalha tem a justa recompensa do seu trabalho.” (Machado, 1881, s/p.) Face àquele contexto, a evidente obstinação do governo e da sociedade portuguesa impulsionou a recriação maciça de imagens pejorativas do Brasil e dos brasileiros, dos engajados e dos engajadores, como se Portugal estivesse diante de “uma ‘sangria’ de gente para o Brasil, como se este último estivesse a roubar parte vital

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Há que se registrar que, principalmente devido à pressão inglesa, em 4 de setembro de 1850 foi instituída a Lei Eusébio de Queirós, que proibiu o tráfico inter-atlântico de escravos.

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do corpo português, numa metáfora bem a gosto positivista.” (Machado, 2003, p. 42).

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Como contextualiza Machado (op. cit.), a imagem que se produzia sobre o Brasil era a de o país para onde Portugal “sangrava,” onde a mão-de-obra portuguesa era injustamente escravizada, porque subornada por inescrupulosos contratadores portugueses. Com efeito, não foram poucas as acusações de enriquecimento ilícito contra os portugueses que, no Brasil, movimentavam há longo tempo o negócio da emigração portuguesa, e em especial contra aqueles que, gradativamente, começaram a tornar a viagem para Portugal. Sobre esses novos torna-viagens recaíram estereótipos de ignorantes, toscos e de sujeitos não-confiáveis, características que, nas acepções de Machado (op. cit.) e de Lisboa (2007, 2008), perduram, ainda atualmente, no senso comum português a respeito do Brasil e seus nacionais. Dentre outros fatores de ordem econômica e familiar, essa leva de imigrantes da segunda metade do século XIX retornava para Portugal, sobretudo, em decorrência do antilusitanismo brasileiro, movimento que suscitou inúmeras revoltas populares por várias regiões do Brasil, debilitando o monopólio português do comércio brasileiro e denegrindo a identidade dos portugueses neste país.6 Em Portugal, esses regressados eram denominados como abrasileirados, ou seja, torna-viagens que já não voltavam munidos de vultosas poupanças econômicas, mas se encaixavam na condição de remediados, possuindo quantias suficientes para instalarem-se na cidade do Porto e pelo Norte de Portugal, construindo mercearias, pensões, cafés e hotéis. Em contrapartida, muitos torna-viagens aportavam em Portugal dotados de pouco ou nenhum dinheiro, tendo de se esconder da família e evitar a circulação em espaços públicos, obstando, deste modo, a divulgação dos inúmeros casos de emigrantes que não tiveram sucesso no Brasil, ou melhor, não enriqueceram no tão desejado “paraíso dourado.” Em relação a esses portugueses retornados, atribuía-se a expressão brasileiro de mão-furada, figura em torno da qual o cancioneiro popular não hesitou em tematizar (César, 1969, p. 21): Brasileiro, brasileiro, Chamam-te de mão-furada; Foste ao Brasil e viestes (sic) Não trouxestes (sic) de lá, nada.7

Como demonstram Cervo & Magalhães (op. cit.) e igualmente Machado (op. cit.), o antilusitanismo foi desencadeado pela tentativa de nacionalização do comércio a varejo no Brasil, completamente dominado pelos portugueses, mesmo após a independência deste país. Os tumultos que repercutiram com maior gravidade foram os ocorridos em 1848, em Pernambuco, e em 1873-1874, na antiga província do Pará. 7 Cancioneiro de Entre Douro e Mondego.

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De acordo com Alves (op. cit.), o retorno dos emigrantes portugueses acentuouse no decurso dos séculos XIX e XX, sendo que, em 1914, havia em Portugal mais registrados de entrada do que de saída. Este autor também destaca que, naquele período, os remediados constituíam a maioria dos torna-viagens, a quem, pelo fato de não terem permanecido por muito tempo no Brasil e sobretudo porque retornaram com módicas quantias de dinheiro, não fora outorgada, popularmente, a alcunha de brasileiro. E é precisamente neste ponto nodal que podemos identificar o quanto o Brasil revestia-se de um conjunto de imagens míticas e estereotipadas no imaginário português de fins do século XIX e começo do XX. Retomemos, portanto, as percepções de cunho antropológico sistematizadas por Machado (op. cit.), a fim de salientarmos que a figura do abrasileirado significava, efetivamente, que a categoria de brasileiro de tornaviagem não dizia respeito, tão-somente, à passagem do emigrante português pelas terras brasileiras, mas à aquisição das características identitárias que, em Portugal, eram imputadas ao Brasil: “a sua riqueza, seu exotismo e, de certa forma, a brutalidade selvagem.” (Machado, op. cit., p. 43) Os abrasileirados, conquanto transformassem a realidade socioeconômica das regiões para onde retornavam, movimentando as redes hoteleiras, de restaurantes e de bares e cafés, gerando impacto marcante no processo de modernização portuguesa, não expressavam alterações em seus sotaques linguísticos, bem como não exibiam salientes mudanças nas vestimentas e nos modos de comportamento. Contrariamente, os brasileiros primavam por ostentar, nas roupas, nas falas, nos costumes, nas benfeitorias, nas decorações de suas luxuosas mansões,8 o sucesso de sua experiência no Brasil e a adoção de sua nova identidade, publicamente reconhecida como tropical e exótica. Em decorrência do seu exibicionismo e alarde na sociedade portuguesa, sobre os brasileiros de torna-viagem foram despejadas críticas, anedotas e caricaturas mordazes, comumente elaboradas por inúmeros escritores portugueses, tais como Camilo Castelo Branco, Júlio Dinis, Ramalho Ortigão, Aquilino de Almeida, Eça de Queiróz e outros literatos da época. Em geral, as imagens do brasileiro rico, exótico e tolo eram as mais recorrentes nesses escritos literários (Vieira, 1991; Lisboa, 2007, 2009). As casas dos brasileiros de torna-viagem contrastam com as casas “originalmente” portuguesas, porque, diferentemente destas, são grandes, vistosas, de amplas e muitas janelas, com clarabóias no interior da casa e decoradas com azulejos de cores fortes, envergando imagens de florestas, índios, animais. Também é comum, numa casa de brasileiro, serem plantadas palmeiras e outras vegetações que remetem, simbolicamente, ao Brasil. Convém referir que essas características arquitetônicas e paisagísticas também são encontradas em igrejas, escolas e conventos portugueses, precisamente por terem sido construídos com dinheiro ofertado pelos brasileiros (Monteiro, 2000a; 2000b). Principalmente nas regiões do Minho e de Trás-os-Montes, no Norte de Portugal, é possível observar essa realidade.

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No presente estudo, consideramos pertinente indagar se as representações simbólicas (Hall, 2000, 2003; Moscovici, 2003) dos brasileiros de torna-viagem mantiveram-se no imaginário português contemporâneo, influindo na (re)construção identitária do Brasil em Portugal. Fundamentemo-nos, novamente, nas análises de Machado (op. cit.), que chamam a atenção à clarividente incoerência entre, por um lado, os estereótipos propagados em séculos passados pelo Estado, pelo senso comum e pelos literatos portugueses e, por outro lado, os atuais enaltecimentos, no cenário político e cultural português, da figura do brasileiro. Lembra este autor que, em 2000, no contexto das comemorações portuguesas dos “Descobrimentos,” a Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses (CNCDP) organizou, na cidade do Porto, uma exposição intitulada “Os brasileiros de torna-viagem.” Essa exposição tinha como objetivo central exaltar o papel dos emigrantes portugueses como protagonistas construtores do Brasil, salientando uma vertente de discursos imperialistas, e bem a gosto lusófono (Lourenço, 1999, 2004; Baptista, 2006), que qualificavam os tornaviagens como sujeitos que, imbuídos pela “grande alma portuguesa,” continuaram os “feitos heróicos” dos “descobridores.” Aclamava-se, igualmente, a capacidade empreendedora desses brasileiros, quando de seu retorno à mãe-pátria portuguesa. Ora, mas esses emigrantes, até o século passado, não foram taxados como indivíduos grosseiros e exóticos, quase selvagens, dotados de uma boçalidade e fealdade que, no dizer português de Eça (Mónica, 2004), eram o grande causador do riso público? Por que, então, contemporaneamente, o discurso oficial do Estado português enaltece a história e o caráter dos torna-viagens e sua importância em ambos os lados do Atlântico? Como observa Machado (op. cit.), se, no passado, os brasileiros foram considerados uma mácula vergonhosa, responsáveis pela “sangria” de Portugal para o Brasil, na retórica da atual lusofonia esses personagens auferiram um novo estatuto simbólico, um certo prestígio social, valorizados que são como co-responsáveis pela reconstrução do império cultural luso.9 A lusofonia, proclamada como a comunidade de sentimentos e afetos dividida pelo Atlântico, busca recompor um imaginário fundado no passado império-colonial português, em que Portugal reemerge na figura de ex-colonizador europeu, civilizado e branco, que, gozando de sua “vocação” para o lusotropicalismo, evangelizou índios e negros dos trópicos, “selvagens” das florestas brasileiras e das paragens da África, além de outros povos asiáticos. Na concepção de Thomaz (2002), antigos mitos e estereótipos sociais constituem elementos simbólicos basilares da Comunidade dos Países de Língua Oficial Portuguesa (CPLP). Considera este autor que os pressupostos que estruturam a CPLP são reverbere de parte do discurso lusotropicalista de Gilberto Freyre, sendo que, de acordo com tal matriz discursiva, o pensamento colonial aparece dissimulado na ideologia lusófona, reincidindo na retórica da “alma portuguesa” no mundo e diligenciando a reedificação de um império português em âmbito cultural. Santos (2005), assim como Thomaz (op. cit.) e Alexandre (1999), acentua que o discurso oficial da

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O que, de fato, a historiografia e os discursos oficiais portugueses têm negligenciado são as possíveis inter-relações entre as representações estereotipadas que outrora se construíram sobre a figura dos torna-viagens – e sobre o Brasil – e as imagens pejorativas que, em Portugal, ainda recaem sobre o Brasil e seus nacionais (Lisboa, 2007, 2008). Além disso, e como notou Machado, não se têm problematizado as formas como esses emigrantes enriqueceram em terras brasileiras, importando, tãosomente, contextualizar a trajetória do emigrante em solo português, antes da partida e depois do regresso do “paraíso dourado.” Mas acentuar os meios de enriquecimento no Brasil, como aqueles concernentes ao tráfico de escravos, pode não se configurar uma estratégia consentânea aos desígnios dos entusiastas lusófonos da margem portuguesa. Afinal, no que toca a esse propósito, apenas salientam que os emigrantes, os “novos heróis portugueses,” devem ser honrados por, supostamente, continuarem o “mundo que o português criou.”10

Wellington Teixeira Lisboa Doutorando em Sociologia no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas Universidade Estadual de Campinas (IFCH/UNICAMP) Mestre m Ciências da Comunicação pela Universidade de Coimbra, com apoio do Programa de Bolsas de Alto Nível da União Européia para América Latina (ALBAN) E:mail: wtlisboa@yahoo.com.br

Savages, stupids or heroes? The brazilian of torna-viagem and the construction of brazilian identity in Portugal Abstract: The migration of Portuguese people to Brazil is one of the most important periods in the history of Portuguese emigration. The opposite movement of many Portuguese to their country, especially in the twentieth century, was accompanied by the proliferation of images of the so-called Brazilians of torna-viagem. In this study, we analyze how the trans-Atlantic movement reflected in the historical construction of Brazilian identity in Portugal. We will analyse too the current discourses about this theme. Keywords: relations Brazil-Portugal; brazilians of torna-viagem; lusofonia; cultural identity.

pretensa sintonia histórica, cultural, linguística e afetiva entre os povos lusófonos atende a interesses econômicos locais e supranacionais, num movimento que esmorece, sobretudo na memória social portuguesa, versões dissidentes do passado colonial. 10 Expressão introduzida no discurso acadêmico português, nos anos 50 do último século, pelo professor e político Adriano Moreira, mas que rapidamente se reproduz no discurso do Estado Novo em Portugal (Castelo, 1998).

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Recebido em 31/01/2010 Aceito para publicação em 22/03/2010

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As Encruzilhadas da imprensa: Uma análise da reportagem de capa da Revista Isto É sobre a ayahuasca Beatriz Caiuby LABATE

Introdução Recentemente, a Revista Isto É publicou uma reportagem de capa sobre o uso da ayahuasca1 no país, intitulada “As Encruzilhadas do Daime.” 2 O texto noticia que o uso da ayahuasca teria sido “liberado pelo governo federal,” denotando complacência com um “quadro de desorganização e alto risco,” um alarmante “tráfico de ayahuasca” e uma “série de mortes” associadas ao consumo do perigoso “chá alucinógeno.” A notícia principal à qual se refere a reportagem é a recente publicação no Diário Oficial da União da Resolução nº 1 do Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (CONAD), de 25 de janeiro de 2010.3 Esta resolução consistiu na publicação do Relatório Final do Grupo Multidisciplinar de Trabalho sobre a Ayahuasca (GMT), concluído em 2006.4 O GMT reuniu representantes do governo, cientistas de várias áreas e líderes das religiões ayahuasqueiras, e produziu um documento estabelecendo uma deontologia do uso da ayahuasca, isto é, uma série de regras e princípios éticos orientando o consumo da ayahuasca. Realizarei aqui uma análise desta reportagem, e apontarei como ela não investiga o que anuncia investigar. Este texto, é importante notar, não pretende fazer uma reflexão mais sistemática sobre como a mídia lida com o tema das drogas.5 No final, apresento um breve comentário sobre os dilemas do antropólogo diante da imprensa, esperando, assim, estimular reflexões análogas em meus colegas.

A ayahuasca é composta pelo cipó Banisteriopsis caapi e pelas folhas do arbusto Psychotria viridis, que contém dimetiltriptamina. Ela tem sido usada por movimentos religiosos que tiveram sua origem no norte do país, o Santo Daime, a Barquinha e a União do Vegetal, além de outras modalidades urbanas mais recentes. Para uma lista da bibliografia sobre as religiões ayahuasqueiras, ver: Labate, Beatriz C.; Rose, Isabel S. & Santos, Rafael G. Religiões ayahuasqueiras: um balanço bibliográfico. Campinas, Mercado de Letras, 2008. 2 GOMES, Hélio. “As Encruzilhadas do Daime”, Revista Isto É, ed. 2100, 5 de fevereiro de 2010. Disponível em: http://www.istoe.com.br/reportagens/48304_A+ENCRUZILHADA+DO+DAIME+PARTE+1?pathImage ns=&path=&actualArea=internalPage 3 Disponível em: http://www.bialabate.net/wp-content/uploads/2008/08/Resolução-Conad_1_25_01_2010.pdf. 4 Disponível em: http://www.bialabate.net/pdf/texts/gmt_conad_port.pdf. 5 Para tanto, remeto o leitor para o livro: FIORE, Maurício. O uso de drogas: controvérsias médicas e debate público. Campinas, Mercado de Letras, 2007.

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A arte da capa da versão on-line da reportagem é toda avermelhada, e no fundo há pessoas reunidas no escuro em volta de algo em chamas. Esta revela, de saída, a estratégia de criação de um tom de medo e perigo, desqualificando o debate. Na página inicial há uma enquete que pergunta aos leitores sua opinião sobre a Resolução, distribuindo de forma desigual o conteúdo das perguntas: “um absurdo,” “não faz diferença,” “sou a favor” (a ordem das alternativas também revela a tese implícita da reportagem). O título utiliza o termo “Daime” para se referir tanto ao Santo Daime quanto a União do Vegetal (UDV), indicando um desconhecimento básico em relação ao assunto.6 A estratégia alarmista implica também em usar na capa e na chamada da reportagem a expressão “chá alucinógeno” em vez de daime ou ayahuasca.7 As primeiras linhas indicam o que parece ser a inspiração da reportagem: “Por outro lado, outras vozes levantaram a hipótese de que a liberação do daime poderia abrir o perigosíssimo precedente para a criação de religiões que incorporem drogas como a cocaína e a maconha em seus rituais.”8 O argumento inverte maliciosamente a ordem dos fatos: as religiões ayahuasqueiras não foram inventadas porque houve uma lei ou resolução que permitiam a sua existência; elas são resultado de determinadas circunstâncias históricas e culturais específicas. Com sua expansão, passaram a levantar uma série de debates, o que gerou sucessivas levas de regulamentação por parte do governo. A matéria adota, contudo, um tom de aparente investigação e neutralidade, o que torna complexo o entendimento de seu enunciado. Apontarei aqui os erros que a reportagem contém e como ela poderia ter contribuído para a importante discussão que pretendia fazer.

No Santo Daime e na Barquinha a ayahuasca recebe o nome de Daime e na UDV de Hoasca ou Vegetal. Apenas nos dois primeiros contextos poderíamos falar em daimistas. 7 O termo alucinógeno é problemático, sendo questionado tanto a partir de determinados discursos biomédicos quanto da perspectiva dos membros destas religiões, a qual consideram-no pejorativo, uma vez que entendem que a ayahuasca é um sacramento. Para uma discussão sobre o conceito de alucinação, ver: LABATE, Beatriz C.; GOULART, Sandra L. e CARNEIRO, Henrique S. “Introdução”. In: LABATE, B. C. e, GOULART, S. (orgs.). O uso ritual das plantas de poder. Campinas, Mercado de Letras, 2005, pp. 29-55. 8 A revista concorrente, a Veja, foi menos sutil. Poucos dias antes soltou uma nota com o título “Liberado”, onde se lê: “Cabe a pergunta: se alguém criasse uma religião batizada, digamos, Santo Pirlimpimpim, baseada em aspirações mágicas da cocaína, o Planalto também oficializaria o consumo?” Revista Veja, ed. 2150, 3 de fevereiro de 2010.

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Imagem de capa da Revista ISTO É, edição 2100, fevereiro de 2010

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“Liberou geral” Na capa da versão impressa, a manchete anuncia: “Santo Daime liberado,” expressão forte que transmite a idéia de “vale-tudo.” Esta informação está equivocada. O reconhecimento do uso ritual e religioso do consumo da ayahuasca no Brasil ocorreu em meados de 1980, tendo sido reafirmado por meio de uma série de pareceres e resoluções posteriores.9 Se antes, contudo, havia uma autorização genérica para o uso ritual e religioso da ayahuasca, a publicação da nova Resolução implica no estabelecimento de alguns controles. Este é o fato novo. Ora, se estamos diante de uma suposta explosão de casos problemáticos – tese da reportagem, não comprovada – não seria justamente o caso de destacar a iniciativa do governo de impor determinadas regras para o melhor ordenamento do campo ayahuasqueiro no país? A matéria revela também certa indecisão sobre o significado jurídico da Resolução. Na chamada, acusa-se a Resolução de abrir uma “brecha jurídica,” sem deixar claro o que ela seria, uma vez que o próprio repórter afirma que a Resolução impõe vetos. Em outra passagem, critica-se o documento por falta de força legal. O fato é que a reportagem não discute as implicações jurídicas da Resolução, o que teria sido uma boa contribuição, por se tratar de um assunto novo sobre o qual pairam dúvidas. Por exemplo, o leitor não fica sabendo qual é a diferença entre uma resolução e uma lei, ou se a resolução prevê fiscalização e sanções; ou, noutras palavras, como o Estado poderia legalmente, a partir da Resolução, coibir as supostas distorções que estariam em curso com relação ao consumo da ayahuasca.10

Série de mortes por consumo da ayahuasca A reportagem associa especulativamente o consumo da ayahuasca à morte. Dois supostos casos são mencionados. Num deles, um jovem teria morrido devido a um ataque cardíaco durante um ritual de um grupo ayahuasqueiro em Goiás – o texto Vários destes documentos estão disponíveis em: http://www.bialabate.net/texts. Para uma análise deste processo, ver: MacRAE, Edward. A elaboração das políticas públicas brasileiras em relação ao uso religioso da ayahuasca. In: Labate et. all. (orgs). Drogas e cultura: novas perspectivas. Salvador, Edufba, 2008, pp. 289 – 331. 10 Apesar de não ter força de uma Lei, o documento é uma orientação emanada do CONAD. Segundo a Lei 11343 e o Decreto 5912, resoluções do CONAD devem ser levadas em consideração por todos os integrantes do Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (SISNAD), incluídos aí órgãos como as Superintedências da Polícia Federal, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária e a própria Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (SENAD). Em pequisa de campo inicial observei haver discordância por parte dos juristas sobre as eventuais sanções que poderiam ser associadas à Resolução.

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destaca que um laudo com a causa da morte está sendo elaborado, mas ainda não foi concluído. Afirma-se que o personagem teria consumido daime e drogas e, além disto, teria síndrome de Marfan, enfermidade degenerativa do coração. Sabemos que pessoas com problemas cardíacos têm maiores chances de sofrer um ataque – o que poderia, ocorrer, potencialmente, em situações diversas. Mas a reportagem não faz cerimônia em insinuar a causa da morte. Na verdade, não fica totalmente claro se o problema teria sido, além do consumo do “perigoso alucinógeno,” o contexto em si – um “grupo independente,” não associado ao Santo Daime ou à UDV; as duas vertentes, especialmente a última, parecem levemente resguardadas no texto. Observe-se que esta ambigüidade que aparentemente distingue entre contextos legítimos e outros problemáticos, é importante para construir a impressão de que o artigo procura mostrar vários lados da questão, é equilibrado etc. O outro caso: “No penúltimo final de semana, Alexandre Viana da Silva, 18 anos, morreu afogado em um lago em Ananindeua (PA), depois de tomar o chá em um culto independente. Claro que não é possível afirmar que o alucinógeno levou o rapaz, que não sabia nadar, a enfrentar uma situação de risco sem medir as conseqüências. Mas a hipótese não pode ser ignorada.” O leitor não tem acesso à fonte das informações, e nem a maiores detalhes sobre o que teria acontecido. Uma pessoa que não sabia nadar morreu afogada depois (não sabemos quanto tempo) de participar de um ritual religioso. De novo, pura especulação. Cabe perguntar: se o afogamento tivesse ocorrido depois de uma noite num ritual da umbanda, numa festa com consumo de álcool entre jovens ou após a ingestão de medicamentos controlados, teria levantado suspeitas e críticas semelhantes? Em outro trecho, lemos: “Não é preciso dizer que o risco de algo dar errado é alto, o que pode transformar o caso em uma questão de saúde pública.” A matéria não apresenta, contudo, dados sobre estes supostos riscos. As religiões ayahuasqueiras existem há pelo menos oitenta anos e não causaram problemas significativos, ainda que tenham expandido significativamente nos últimos anos. A hipótese do perigo médico é uma velha conhecida no debate sobre a regulamentação do uso de drogas. Ela vem respaldada, de praxe, por discursos legais e policiais – não é à-toa que dois delegados são citados na matéria – um a propósito do inquérito sobre a morte do jovem com problemas no coração, e o outro como

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qualificado especialista do estatuto jurídico nacional e internacional da ayahuasca.11 Aqui, a matéria titubeia; parece haver movimento pendular: se antes as críticas recaiam sobre os supostos “abusos,” neste trecho parece sugerir-se que o uso da ayahuasca em si não deveria ser permitido – em nenhum contexto, sob nenhuma condição. Não é demais repetir que o consumo religioso da ayahuasca não deve ser reduzido a uma questão policial, e sim entendido a partir de uma perspectiva interdisciplinar. Voltando ao tema do suposto perigo médico: o texto poderia ter seguido a mesma hipótese de apontar os eventuais riscos à saúde, procurando pesquisar sistematicamente casos relatados de problemas derivados do consumo da ayahuasca em fontes diversas, tais como a literatura científica, os próprios grupos, ex-discípulos, registros em hospitais etc. Em seguida, poderia tentar relacionar os eventuais achados com o número de prováveis consumidores de ayahuasca no país. Para tanto, seria necessário pesquisar o número de grupos existentes no Brasil, o que em si já seria uma boa contribuição.12 Uma vez encontrado este dado, poder-se-ia estabelecer uma eventual correlação entre “número de usuários” e “tipos de problemas.” E, então, comparar esta taxa com índices gerais ocorrentes da população (por ex., esquizofrenia, surtos psicóticos etc.), ou em outros contextos específicos (por ex., entre consumidores de drogas ilícitas). É claro que podemos argumentar que uma reportagem sempre será incompleta; meu objetivo ao destacar aqui determinadas ausências é antes de mais nada explicitar como a matéria de fato não investiga aquilo que afirma investigar.

Fetos, crianças e grávidas viciados As acusações contra a segurança do consumo da ayahuasca estão supostamente respaldadas também num box sobre os efeitos e riscos da mesma. Este, contudo, está repleto de erros. Não discutirei o tema em detalhe; para tanto, remeto o leitor a um texto escrito por meu colega Rafael Guimarães dos Santos.13

A reportagem afirma que segundo a Resolução do CONAD, a ONU (Organização das Nações Unidas) considera que as espécies vegetais que compõem a ayahuasca não seriam objeto de controle internacional. Logo em seguida, cita o presidente da Associação Nacional dos Delegados de Polícia Federal, o qual “vê a questão de forma diferente: “O efeito do daime preocupa porque é semelhante ao de drogas proibidas no ordenamento jurídico”, afirma”. 12 O repórter cita dados informados pelo CONAD, CEFLURIS e UDV, que já são conhecidos, mas não dão conta do total. O real desafio é estabelecer quantos pequenos grupos existem país afora, e quantas pessoas participariam regularmente de suas atividades. 13 SANTOS, R.G. Uma crítica farmacológica e biomédica à reportagem As Encruzilhadas do Daime. Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos – NEIP, 2010. Disponível em: http://www.neip.info/html/objects/_downloadblob.php?cod_blob=537

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Um aspecto particular merece comentário. No box, lemos: “O uso pelas gestantes é perigoso (...) acredita-se que poderia provocar modificações neurológicas nos fetos (...) pelo mesmo temor não deve ser consumido por crianças.” Os mecanismos de desqualificação empreendidos pela reportagem neste caso consistem, em primeiro lugar, em inserir uma ampla e complexa questão numa tabela, sem discussão alguma. Vale notar que O CONAD atribuiu a decisão sobre a participação de gestantes e crianças nos rituais aos pais (isto é, inseriu a questão dentro do pátrio poder familiar) através da Resolução nº 5 de 4 de novembro de 2004,14 decisão reafirmada na última Resolução. Este é o resultado de um longo processo de negociações, e tem a ver com um debate importante e delicado, que é o das fronteiras e limites da liberdade religiosa. Note-se que todas as afirmações contidas no box aparecem referendadas com duas fontes diferentes, dificultando o reconhecimento do suposto autor de cada. Além disto, as informações aparecem como suposto dado científico. Mas não há dados científicos na literatura especializada que comprovem tais informações. Seja como for, independente da veracidade científica ou não das afirmações supostamente atribuídas aos dois especialistas, o texto confunde e distorce ao inserir numa tabela como dado que o consumo da ayahuasca por gestantes e crianças é perigoso sem discutir este assunto no próprio texto, o que passaria por descrever como se dá este consumo, contextualizar a história da regulamentação, e refletir explicitamente sobre conflitos existentes em torno da questão. A passagem na qual a agenda oculta da reportagem aparece de maneira emblemática pode ser encontrada aqui, a propósito de um comentário do repórter sobre o tratamento de dependentes de drogas no âmbito destas religiões: “A substituição de um vício por outro é altamente condenada pela medicina porque, no fundo, não resolve o problema.” Onde e quem define que o consumo de ayahuasca é “um vício”? Aqui o texto descarta arbitrariamente qualquer possibilidade de uma adesão sincera e saudável a estas religiões. Não há evidências científicas de que o consumo da ayahuasca cause dependência. Por outro lado, existe uma forte controvérsia dentro da medicina sobre as diversas formas de tratamento da dependência, e uma ampla bibliografia sobre o tema da redução de danos. O trecho passa ao largo também de uma enorme discussão sobre o

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Disponível em: http://www.bialabate.net/pdf/texts/resolucao_05.pdf.

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papel do consumo de substâncias psicoativas em contextos religiosos.

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O texto continua: “Fica a pergunta: o daime é uma droga?” A reportagem não discute a relevante questão da definição – legal, médica, sociológica – do conceito de “droga” (e de “vício”). O termo é empregado aqui no seu pior sentido, o do senso comum, como categoria moral e acusatória.

Alarmante tráfico de ayahuasca Outro pilar da argumentação é que haveria um alarmante tráfico de ayahuasca no país. Mas o que, de fato, a reportagem investiga? A apuração se restringiu a digitar “comprar ayahuasca” no google e mencionar alguns resultados que apareceram. Não são respondidas perguntas que permitissem demonstrar esta tese, tais como: quantos sites de venda existem? Qual é freqüência de seu acesso? Há quanto tempo estão no ar? Os sistemas de venda on-line de fato funcionam? Os sites vendem os produtos naturais (sementes, mudas, cipó, folha) ou a ayahuasca pronta? Há sites que ensinam a preparar a ayahuasca? Trata-se de ayahuasca ou análogos da ayahuasca? Há sites com aparência de estabelecimento comercial ou se trata aparentemente de atividades do fundo do quintal? Qual o fluxo estimado de dinheiro movimentado? Este tráfico se daria de que lugar para que lugar? Qual é a proporção de ayahuasca consumida pelos grupos ayahuasqueiros oficialmente registrados e o movimento supostamente alcançado por estes sites? Muito mais relevante, ainda, seria investigar se haveria outras formas de “tráfico” de ayahuasca que não se dão via internet. Nenhuma pesquisa tampouco foi feita nesta direção. Por fim, outra maneira de entender o possível tráfico de ayahuasca seria buscar a eventual demanda desta oferta, isto é, apurar se haveria uma cena de consumo recreacional – o que, por sua vez, obrigaria uma reflexão mais detida sobre as fronteiras entre um uso religioso e não religioso, tanto do ponto de vista legal quanto sociológico. No entanto, outra vez, nenhuma pesquisa foi feita neste sentido. Na imagem da web postada na reportagem vemos um site em português seguido de outro em inglês. Se navegarmos um pouco pelas páginas, reproduzindo o caminho feito pelo repórter, observamos que há uma grande quantidade de sites em inglês. Neles, nos deparamos com vários livros, fotos, CDs e DVDs ligados à ayahuasca – talvez o que pudéssemos chamar de uma cultura “cibernética-pop-do-cipó.” Numa análise rápida, parece haver nos Estados Unidos e na Europa um universo psiconáutico, de experimentalismo livre, do do-it-yourself praticamente inexistente no Brasil. Aqui, ao

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contrário, predominam as religiões como o Santo Daime e a UDV. Além disto, conforme argumentei em minha dissertação de mestrado,15 há uma proliferação de vertentes que combinam elementos destas duas matrizes principais com outras denominações espirituais e religiosas – como a umbanda, o budismo, o esoterismo e o movimento nova era, entre outros –, e com expressões filosóficas e artísticas diversas. Estes grupos compõe o que denonimei de campo ayahuasqueiro brasileiro; até o momento, não há relatos na literatura especializada sobre usos recreacionais da ayahuasca no Brasil.

Conclusão Vemos como esta equivocada somatória de erros aparece articulada na chamada da reportagem: “O governo legaliza o uso religioso do chá alucinógeno, mas peca ao deixar que mortes ocorram e ao abrir uma brecha jurídica que pode estimular o tráfico.” Como vimos, o uso da ayahuasca não foi legalizado pelo governo agora, e a Resolução impõe regras e veta a comercialização. Mas o que mais chama a atenção é como os dois remotos e incertos casos de mortes associados ao uso da ayahuasca – um com menos de uma linha de descrição – tornam-se evidências de um forte perigo iminente. Perde-se a chance de investigar se estariam em curso formas problemáticas de consumo da ayahuasca de acordo com os parâmetros estabelecidos pela Resolução, tais como comércio, usos terapêuticos, turismo e propaganda. A reportagem poderia também discutir questões ecológicas relacionadas ao plantio, colheita e o transporte da ayahuasca – outro tema que preocupou o GMT. Como revista de ampla circulação, a Isto É poderia, ainda, informar o leitor de forma didática e neutra, com base na literatura científica, sobre os eventuais riscos existentes associados ao consumo da ayahuasca no contexto religioso – realidade existente e plenamente reconhecida pelo governo. O final procura amenizar o tom geral, evocando a proteção do “patrimônio religioso brasileiro”16 e a defesa do que seria um uso adequado da ayahuasca em

LABATE, Beatriz C. A Reinvenção do uso da ayahuasca nos centros urbanos. Campinas, Mercado de Letras, 2004. 16 O termo aparece, porém a reportagem não esclarece que os grupos ayahuasqueiros entraram com um pedido junto ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico e Nacional (IPHAN) de reconhecimento do uso da ayahuasca como parte do patrimônio imaterial da cultura brasileira, para o qual aguardam uma resposta. Para uma discussão sobre isto, ver: LABATE, Beatriz C. & GOLDSTEIN, Ilana. Ayahuasca – From Dangerous Drug to National Heritage: An Interview with Antonio A. Arantes. In: International

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determinados contextos. Contudo, como procuramos demonstrar aqui, este é apenas um verniz para uma hipótese de fundo – a associação entre ayahuasca, regulamentação caótica, mortes e tráfico – bastante problemática. Sabemos das diferentes ambições e propósitos de um trabalho jornalístico e de um estudo acadêmico. Mas, tampouco, podemos aceitar a combinação entre texto e imagens que produzem associações negativas e estereotipadas, que contribuem para a estigmatização destes grupos, minorias religiosas historicamente já bastante perseguidas.

PS – Sobre antropologia, jornalismo e ética No dia 3 de fevereiro de 2010, o repórter Hélio Gomes me telefonou pedindo uma entrevista para esta reportagem. Fiquei na dúvida se a concedia ou não, pois, já naquele momento, me pareceu haver um ponto de partida, embora com aparente tom equilibrado, duvidoso: “a matéria vai mostrar os dois lados da questão... vai ter uma pegada polêmica” nas suas palavras. Perguntei se minhas aspas poderiam ser enviadas a mim antes da publicação. Ele respondeu que não, afirmando que isto feria a sua autonomia e a ética do jornalismo. Tenho observado que vários jornalistas aceitam estas condições, mas há controvérsias. Trata-se de uma ironia em nossos tempos de antropologia dialógica: enquanto os sujeitos dos nossos estudos nos impõem severas condições para a realização da pesquisa17 – nos deixando, por vezes, com menos autonomia do que um jornalista –, quando estamos no papel de entrevistados não temos necessariamente muitos direitos... Fiquei diante de um forte dilema entre boicotar o projeto e me preservar de eventuais distorções da minha fala, ou tentar discutir a pauta, indicar especialistas respeitados e apresentar minha perspectiva a respeito do assunto. Esta sim, uma encruzilhada: a do antropólogo (ou acadêmico em geral) diante da mídia. Acabei optando pelo segundo caminho, pensando que a recusa de alguns pesquisadores em dialogar com a mídia colabora para que apenas certas vozes ocupem o espaço do

Journal of Transpersonal Studies, vol 28, 2009, pp. 53-64. Disponível em: http://www.transpersonalstudies.org/ImagesRepository/ijts/Downloads/Labate.pdf 17 Para uma reflexão a respeito destas negociações num estudo sobre a UDV, ver: LABATE, Beatriz C. & PACHECO, Gustavo. Música Brasileira de Ayahuasca. Campinas, Mercado de Letras, 2009; sobre a relação sujeito-objeto no campo de pesquisa sobre as religiões ayahuasqueiras, ver LABATE (2004).

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debate.18 Dei duas entrevistas e enviei-lhe dois e-mails repletos de informações e contatos. Ele me procurou às vésperas da publicação para comunicar que minhas palavras não seriam usadas no texto porque não “combinavam com o enfoque dado à matéria.” Mas, apareceram aqui: “E ainda há quem considere o trabalho desenvolvido pela comissão multidisciplinar – composta por médicos, juristas, psicólogos e membros de religiões como Santo Daime, Barquinha e União do Vegetal, entre outros especialistas – do CONAD (Conselho Nacional Antidrogas) (sic.) um exemplo de respeito aos direitos individuais a ser exportado para o mundo. Porém, o noticiário indica outra direção.” (ênfase minha) Não creio haver uma fórmula ou receita fixa para sair desta encruzilhada com relação à mídia. Neste caso, optei pelo diálogo; embora minhas palavras não tenham sido distorcidas (pois não foram citadas), a reportagem distorceu, no meu entender, os fatos. A saída, então, foi a articulação de mais de uma centena de assinaturas numa nota pública de repúdio à reportagem19 e a publicação de um pequeno texto crítico de maior divulgação,20 além do presente escrito. A solução é, portanto, continuar escrevendo nossos textos. Beatriz Caiuby Labate Antropóloga, Pesquisadora Associada do Instituto de Psicologia Médica da Universidade de Heidelberg, Membro do Grupo Especial de Pesquisa (SFB 619) “Dinâmicas do ritual – Processos socioculturais sob uma perspectiva comparativa histórica e cultural” e Pesquisadora do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos - NEIP (http://ww.ritualdynamik.de; http://www.neip.info; http://bialabate.net).

Recebido em 06/03/2010 Aceito para publicação em 06/03/2010

Um exemplo particular que me inspirou foi o de um médico que declarou que o perigo das religiões ayahuasqueiras era o de “suicídio coletivo”: um comentário sem fundamento em nada, que foi ao ar num programa do SBT. 19 Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos (NEIP), 2010. Nota de repúdio às notícias veiculadas pelas Revistas Veja e Isto É sobre a Ayahuasca. Disponível em: http://www.neip.info/html/objects/_downloadblob.php?cod_blob=542 Observe-se que a nota foi enviada à seção de cartas do leitor da revista, mas não foi publicada nas duas edições seguintes. 20 LABATE Beatriz C. Notas sobre a pseudo-reportagem de capa da revista Isto É sobre a ayahuasca. São Paulo - SP: Casa Amarela, 2010. Disponível em: http://carosamigos.terra.com.br

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Consciência, miração e cura na Barquinha

Marcelo S. MERCANTE Resumo: Este artigo apresenta o universo cultural e simbólico da Barquinha, religião ayahuasqueira brasileira localizada em Rio Branco (Acre), que realiza, entre outros tipos de rituais, trabalhos de “cura.” O foco central da investigação é o papel das visões obtidas pelo uso ritual da Ayahuasca em processos de conscientização em situações de enfermidades. Tais visões são conhecidas pelos freqüentadores da Barquinha como “mirações.” As mirações tornariam conscientes muitas das dimensões extra-materiais do ritual, além de auxiliarem nos processo de transformação subjetiva e física dos participantes. Palavras-chave: Barquinha; ayahuasca; mirações; consciência; cura.

Introdução Pretendo neste artigo trabalhar com o papel desempenhado pelas mirações – como são chamados, pelos participantes da Barquinha, os processos visionários espontâneos (ainda que este fenômeno não esteja restrito às visões) que ocorrem durante o transe produzido pelo uso ritualizado da Ayahuasca – na consciência durante processos de cura.1 A Barquinha é um sistema religioso sincrético2 que surgiu no estado do Acre (sul da Amazônia brasileira) em meados da década de 1940, e que incorpora elementos de um cristianismo bastante devocional com outros oriundos das crenças afro-brasileiras e ameríndias (ver Mercante, 2006). A Barquinha foi fundada por um negro originário do Estado do Maranhão chamado Daniel Pereira de Mattos (ver Frenopoulo, 2005; Goulart, 2004; Luna, 1995; Mercante, 2006; e Araújo, 1999). Existem atualmente seis centros-matrizes pertencentes à este sistema religioso, todos em Rio Branco, capital do estado do Acre. O primeiro, o Centro Espírita e Casa de Oração Jesus Fonte de Luz, foi criado por Daniel Pereira de Mattos, em 1945. Este centro possui uma filial em Ji-Paraná (Rondônia) e outro no Rio de Janeiro (ver Araújo, 1999 e Oliveira, 2002). O segundo, fundado em 1962 por Maria Baiana e Mestre Juarez, ex-membros da Casa de Oração, foi o Centro Espírita Fé, Luz, Amor e Caridade (também conhecido como Terreiro de Maria Baiana). Em 1980, Antonio Geraldo da Para mais detalhes sobre as discussões sobre as chamadas “mirações” ver: De Rose (2005), Dias Junior (1992), Dobkin de Rios (1972), Mercante (2006), Shanon (2002). 2 Sobre o uso do termo sincretismo, ver Sanchis (1995); Ferreti (1995).

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Silva deixou o centro original e fundou o Centro Espírita Daniel Pereira de Mattos (Figueiredo et at., 1996, Paskoali, 2002). Francisca Campos do Nascimento (também chamada Madrinha Chica ou Francisca Gabriel) também decide deixar o centro original em 1991, e funda o Centro Espírita Obras de Caridade Príncipe Espadarte.3 O Centro possui uma filial em Niterói (Rio de Janeiro) e outra, em fase de estruturação, em Salvador (Bahia). Temos ainda o Centro Espírita Santo Inácio de Loyola, fundado em 1994, por Antônio Inácio da Conceição (Araújo, 1999). Finalmente, em 1996, José do Carmo funda o Centro Espírita de Obras de Caridade Raios de Luz Nossa Senhora Aparecida (Goulart, 2004). Todos os centros têm em comum várias características, e certamente perfazem o mesmo sistema religioso, ainda que sejam ritualísticamente independente. Barquinha

Tratarei nesta seção de duas histórias que se entrelaçam: a da Barquinha como um todo e, em particular, a do Centro Espírita Obras de Caridade Príncipe Espadarte como uma manifestação deste movimento. A história da Barquinha, como não poderia deixar de ser, é mais longa, com mais de sessenta anos, enquanto o Centro possui dezesseis anos de existência. O fundador da Barquinha foi, como disse acima, Daniel Pereira de Mattos, nascido em Vargem Grande, no Maranhão, em 13 de julho de 1888 – ano da abolição da escravatura no Brasil. Daniel, filho de escravos, foi para Rio Branco pela primeira vez em 1905, como marinheiro na Marinha do Brasil (Oliveira, 2002; Araújo, 1999), onde permaneceu por pouco tempo. Seu barco partiu para uma viajem de treinamento rumo à Europa e Jerusalém. Daniel retornaria para Rio Branco novamente em 1907, após o término de suas obrigações com a Marinha, onde provavelmente foi sargento (Araújo, 1999). Daniel era músico, tocando violino, trompete, violão e clarineta, tendo trabalhado também como alfaiate, carpinteiro e sapateiro. Mas foi como barbeiro que se estabeleceu em Rio Branco, possuindo uma barbearia no Papoco, bairro boêmio de Rio Branco, onde também era conhecido por seus dons musicais, animando as noites locais

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Referido neste artigo como o Centro, com “C” maiúsculo, onde realizei trabalho de campo em 2004 (que resultou na minha tese de doutorado; ver Mercante, 2006).

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entre prostitutas e seus clientes (Araújo, 1999). Um dia, ao dormir bêbado nas margens

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do rio Acre, tem uma visão de anjos que descem do céu trazendo-lhe um livro azul. Mais tarde, o consumo excessivo de álcool levou Daniel a ter problemas no fígado. Mestre Irineu, fundador do Santo Daime, era cliente de Daniel em sua barbearia. Muitos autores discutem a possibilidade de Daniel e Irineu já serem amigos desde os tempos do Maranhão (Goulart, 2004; Oliveira, 2002; Araújo, 1999). De qualquer maneira, Irineu convida (e manda buscar) Daniel para uma estadia no Alto Santo, onde seria submetido a um tratamento a base de Daime para curar seu fígado. Daniel teria bebido Daime pela primeira vez em 1936 (Araújo, 1999) ou 1937 (Oliveira, 2002). Novamente Daniel têm a visão dos anjos trazendo-lhe o livro azul, mas dessa vez sob efeito do Daime. Algum tempo depois Daniel recebe de Mestre Irineu instruções para que desse início a sua própria missão religiosa. Daniel se muda para as terras de Manoel Julião de Souza, no atual bairro da Vila Ivonete – que nesta época ainda era uma região coberta de seringais, nos arredores de Rio Branco. Ali ele constrói uma “capelinha” de madeira e telhado de palha. Mestre Irineu ficou responsável por fornecer Daime para Daniel até que ele fosse capaz de produzir o seu próprio. Daniel passa então a viver como um eremita, sozinho na floresta, recebendo caçadores e outras pessoas que passam pela sua casa, e se torna conhecido como uma pessoa sempre pronta a auxiliar aqueles que o procuravam em busca de conforto espiritual. Conforme o passar do tempo, cada vez mais pessoas vão em busca de Daniel, e ele passa a distribuir Daime para estas pessoas, enquanto toca violão para elas (Oliveira, 2002; Araújo, 1999). Ele vivia de alimentos trazidos em troca dos seus serviços. Lentamente, uma comunidade começa a se formar ao seu redor. Daniel se casou três vezes. A primeira esposa o deixou devido aos seus problemas com álcool, e retornou ao Maranhão. Ele casa de novo, para alguns anos mais tarde se separar, ainda que sua segunda esposa nunca tenha aceitado esta separação. Mais tarde, quando Daniel já conta com cinqüenta anos de idade, ele se casa pela terceira vez, com uma menina de dezesseis anos. Após o término de seu segundo casamento os sinais de um carcinoma (que o levaria à morte) começam a aparecer no seu pescoço (Oliveira, 2002). Algumas pessoas na comunidade começaram então a dizer que o câncer de Daniel teria sido o resultado de feitiçaria praticada por sua segunda esposa. Outros afirmam que Daniel acabou por reconhecer o erro de ter casado com uma mulher tão jovem, e que isso teria sido a causa de sua doença (Araújo, 1999).

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Ainda assim, Daniel viveu por doze anos em sua capelinha, nunca mais voltando à cidade de Rio Branco. Em julho de 1958, ele começa uma penitência de noventa dias, e começa a dizer às pessoas que ao final desta penitência ele iria fazer uma viajem. Muitos na comunidade pensaram que Daniel estaria planejando fazer uma viagem para o Maranhão. Contudo, a “viajem” a qual ele se referia era sua morte, ocorrida em 8 de setembro de 1958, quando estava cozinhando Daime (Araújo, 1999). Antônio Geraldo, um dos membros proeminentes da irmandade que se formara ao redor de Daniel, foi apontado como seu sucessor (ver Goulart, 2004; Paskoali, 2002; e Araújo, 1999 para mais detalhes). Antônio Geraldo introduziu vários elementos na Barquinha, como a farda e o bailado.4 Antônio Geraldo também criou o termo “Barquinha” para se referir aquele sistema religioso, após ter tido uma miração onde via um barco a navegar nos mares (Goulart, 2004). Em 1980, Manuel Araújo, também membro antigo da Barquinha, assume no lugar de Antônio Geraldo o lugar de dirigente da missão (ver Goulart, 2004; Paskoali, 2002; Araújo, 1999), o que levou Antônio Geraldo a fundar o Centro Espírita Daniel Pereira de Mattos. Francisca Campos do Nascimento, conhecida como Madrinha Francisca Gabriel, líder do Centro, nasceu Francisca Pereira dos Santos, em 7 de junho de 1934, no Antimari, perto da localidade de Boca do Acre, no Amazonas. Com quatro anos de idade sua mãe morreu, e semanas mais tarde, seu pai também faleceu. Francisca foi então adotada por seu padrinho, Manoel Balbino, com quem permaneceu até seus dez ou onze anos. Depois disso, passou a trabalhar como babá, deixando a casa de seu padrinho. Madrinha Francisca cresceu católica, e em sua juventude foi membro da Irmandade de Nossa Senhora das Dores. Padrinho Francisco (Francisco Campos do Nascimento) nasceu em 3 de julho de 1914, em Brejo da Cruz, no estado do Rio Grande do Norte. Em 1942 ele deixa sua cidade natal com seus pais e mais dez irmãos, fugindo da seca. Padrinho Francisco e sua família migram para o Acre, passando antes um tempo no Pará, e depois em Manaus, onde ele trabalha na produção de farinha de peixe que seria mandada para os Estados Unidos em função da II Guerra. Ao chegar ao Acre, em 1945, Padrinho Chico trabalha também como seringueiro. Padrinho Francisco encontrou Madrinha Francisca em 1952. Ambos estavam

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A “farda” é o uniforme utilizado pelos membros da Barquinha, e cada centro possui a sua; o bailado é uma dança realizada durante as festas – ver em seguida no texto.

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trabalhando na casa do dono de uma padaria em Rio Branco, e em 1953 eles se casaram.

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Em 2004 Padrinho Francisco completou noventa anos, sendo, naquela época, um dos rezadores mais procurados do bairro. Padrinho Francisco encontrou Daniel quando um amigo na casa de quem estava hospedado fora visitar Daniel, levando o Padrinho Francisco junto. Mais tarde, em 1956 ou 1957, quando Madrinha Francisca ficou doente, ele decidiu levá-la para ver Daniel. Durante o tratamento da Madrinha, ambos freqüentavam os rituais alternadamente, e assim seguiram com o passar dos anos, pois um deles precisava ficar em casa para cuidar dos dez filhos que tiveram. Antes de seu encontro com Daniel, Madrinha Francisca ficou muito doente, e, segundo ela, os médicos a mandaram para casa para morrer, pois não conseguiam achar uma cura para seu problema (ver também Goulart, 2004; Luna, 1995; Mercante, 2002). Todo seu corpo estava coberto de feridas e tumores. Padrinho Francisco disse para ela que ele conhecia um espírita – Daniel – que morava na Vila Ivonete, e que este tinha a capacidade de curar as pessoas. Padrinho Francisco perguntou a ela se ela aceitava se consultar com Daniel, uma vez que a Madrinha era profundamente católica. A Madrinha concordou, já que estava desesperada. Ela era mãe de três filhas quando da sua primeira visita à Daniel, e a mais nova estava com sete meses de idade – a Madrinha havia inclusive parado de amamentar esta filha, com medo de que seu problema fosse contagioso. Quando ela chegou na casa de Daniel pela primeira vez, ela conta que se sentiu confortada. Daniel lhe disse para sentar e lhe deu água para beber. Ambos os gestos foram profundamente apreciados pela Madrinha, uma vez que outras pessoas a evitavam. Depois, Daniel começou a falar com a irmandade, dizendo que o que a Madrinha tinha não era contagioso: de acordo com Daniel, o que a Madrinha tinha era o resultado de um mal feito só para ela. Da mesma forma, ele lhe disse para continuar a amamentar sua filha. Ela havia pedido a Deus para ser curada de sua doença, e sua maior preocupação era suas filhas. Madrinha Francisca era órfã, e como relatei acima, ela perdera seus pais muito nova. Ela me contou que se Deus lhe desse a permissão de ser curada por Daniel, ela seguiria esta missão, a doutrina ensinada por Daniel. O grande momento iniciático vivido pela Madrinha Francisca deu-se no dia 15 de agosto de 1958. Nesta noite Frei Daniel avisou à Madrinha Francisca que ele iria dar para ela uma dose maior de Daime, para que ela, através deste Daime, fosse levada ao

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fundo do mar onde receberia uma preparação. Segundo a Madrinha Francisca, “ele me disse que tinha uma entidade espiritual que iria lavar a minha coroa no fundo do mar.” Este preparo, nas palavras da Madrinha, seria um passo necessário para a aquisição de mais firmeza, fé, amor, compreensão, calma e paciência, todas as qualidades que ela precisava para dar continuação a sua vida espiritual, principalmente tendo em mente o seu futuro engajamento com a Barquinha. Sua doença era o primeiro passo na direção da posição que ela ocupa hoje como presidente do Centro. Madrinha Francisca vê sua doença como uma chave com a qual Deus a guiou para sua missão verdadeira nesta vida. Daniel ocupa o papel da pessoa – também uma ferramenta nas mãos de Deus – que a direcionou rumo à sua missão nesta vida. Ela tem um compromisso profundo com Daniel: acredita que foi ele que deu-lhe a vida de volta. Madrinha Francisca afirma que “não tem mal que não traga algo de bom.” Madrinha Francisca viveu sob a guia espiritual de Daniel por apenas dois anos. Durante este tempo, relata, foi preparada para se tornar um médium5 para o espírito de Daniel depois que este morresse. Daniel havia feito um pedido à Rainha do Mar para mandar para ele alguém para trabalhar como um médium. Ele reconheceu a Madrinha como a pessoa enviada pela Rainha do Mar para este papel. De acordo com Padrinho Francisco, Daniel prometeu à Madrinha que ele pediria à Rainha do Mar para que permitisse que os guias espirituais dela chegassem mais perto. A primeira entidade espiritual recebido por ela foi o Bispo Dom Nelson, que vinha para fazer, durante as cerimônias, a consagração da Igreja.6 Antes que ela trabalhasse com o Bispo, a consagração era feita espiritualmente, durante o tempo em que um salmo7 estava sendo executado. Uma noite, durante um ritual, Daniel pediu a um irmão para fazer a “chamada” de Dom Nelson, ou seja, que cantasse o salmo que o traria para trabalhar através da Madrinha. Contudo, algo diferente aconteceu. De acordo com a Madrinha, Daniel havia montado previamente um altar com duas velas brancas sobre um pano branco, e dois charutos feitos por Daniel com um tabaco muito forte. Depois da chamada, para a surpresa da Madrinha, ela não “recebeu” (incorporou) Dom Nelson, mas outra entidade

Médium é a pessoa que “recebe” ou “incorpora” espíritos, ou seja, o médium teria a capacidade de permitir que seres espirituais entrem em seu corpo e atuem no mundo físico através deste veículo. 6 A consagração da Igreja é um momento durante o ritual onde um guia espiritual é recebido por um médium para consagrar o local onde o ritual está sendo realizado, assim como os participantes do mesmo. É um momento de grande concentração. Para mais detalhes, ver Mercante (2006). 7 Como as canções entoadas durante o ritual são chamadas na Barquinha.

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espiritual, que chegou assoviando, alto, incessantemente. Outra pessoa presente no ritual disse para Daniel que aquela entidade não era Dom Nelson, mas o Príncipe Espadarte. Daniel então disse que já sabia disso, que o estava esperando se manifestar através da Madrinha. Daniel então saudou este novo guia espiritual e deu a ele um dos cigarros para fumar. Depois, ele pediu a esta entidade, que mais tarde também seria conhecida como Dom Simeão, que ajudasse uma mulher que havia sido vítima de um feitiço, e que chegara desfalecida à Igreja. A presença de charutos neste relato é notável. Madrinha Francisca fuma tabaco, mas mencionou que os charutos foram feitos com um tipo diferente e mais forte desta planta. Estes charutos podem muito bem ser uma versão dos cigarros de tauari fumados na pajelança8 no estado do Pará e Maranhão (ver Galvão, 1955; Maués & Villacorta, 2001). Assim, o próprio Frei Daniel foi o primeiro a utilizar o tabaco na Barquinha. Talvez isso também seja uma indicação de que Daniel tenha algum tipo de contato com as práticas espirituais caboclas e africanas no seu estado nativo, provavelmente o Catimbó (ver Assunção, 1999; Bastide, 2001) ou pajelança. Galvão (1955), por exemplo, cita que pajés preparavam um altar chamado de mesa, o qual era coberto por um pano branco e onde eles colocavam as suas parafernálias ritualísticas, incluindo os cigarros de tauari. Assunção (1999) indicou a presença no Catimbó dos reinos encantados, onde entidades espirituais vivem. Estes reinos são elementos essenciais na cosmologia da Barquinha. Outra ligação provável entre estas duas tradições é que no Catimbó a pessoa responsável pela organização da cerimônia é conhecido como mestre, um título dado a Daniel durante sua vida. Os fatos relatados acima, acerca do desenvolvimento espiritual de Francisca Gabriel, marcam o início de sua carreira na Barquinha. Mais tarde, em 1991, ela funda seu próprio centro, o Centro Espírita Obras de Caridade Príncipe Espadarte. Madrinha Francisca recebeu apenas a influência de duas matrizes religiosas na sua carreira: do catolicismo e de Daniel Pereira de Mattos. Ela me relatou descobrir que sua missão,

Maúes and Villacorta (2001, p. 11) definem a palavra pajelança como um “certo tipo de xamanismo onde o xamã – o pajé – é possuído por espíritos conhecidos como encantados ou caruanas.” O limite entre a pajelança e o catimbó é bastante tênue. A possessão também está presente no catimbó, contudo, o mestre pode ser possuído também por caboclos. É muito importante notar a presença da jurema no catimbó. Jurema é uma bebida preparada com a entrecasca da raiz de muitas espécies, mas principalmente Mimosa tenuiflora (ex hostilis), que tem maior concentração de DMT que as folhas de Psychotria viridis, que compõe a ayahuasca. A jurema também ajuda aqueles que a bebem a ter visões do mundo espiritual (ver Assunção, 1999; Bastide, 2001; Brandão & Rios, 2001).

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desde que deixou o grupo que freqüentava anteriormente, a Casa de Jesus, tem sido ampliar os horizontes da Barquinha. No meu ponto de vista, é inadequado classificar a Barquinha como uma “religião.” Decidi para tanto utilizar a expressão “movimento” ou “sistema religioso” ao me referir à Barquinha e ao Santo Daime. Há algum tempo atrás, entreguei um rascunho de um artigo meu para um membro do Centro ler. Neste, afirmava que havia três religiões no Brasil que utilizavam a Ayahuasca como sacramento (Mercante, 2004). Esta pessoa me disse que eu estava errado, e que de fato havia apenas duas religiões, o Santo Daime e a União do Vegetal (UDV). Ele me disse que se alguém lhe perguntasse sua religião ele diria “daimista,” e não “barquinhista.” Ele disse que bebia Daime, e que a Barquinha era simplesmente uma outra linhagem do Santo Daime. De acordo com ele, Mestre Irineu deu autorização a Frei Daniel para começar seu próprio caminho espiritual, porque o Mestre sabia que Daniel tinha uma outra missão para cumprir. Esta foi provavelmente a única separação pacífica no universo do Santo Daime (ver também Goulart, 2004). Este colaborador disse que era um consenso entre os membros antigos da Barquinha que eles eram daimistas, e que a diferenciação entre a Barquinha e o Santo Daime como duas religiões independentes começou a ser feita por novatos vindos do centro-sul do Brasil por não saberem a história da Barquinha e por verem um ritual bastante diferente daquele do Santo Daime. Para ele, a Barquinha seria uma extensão da doutrina do Santo Daime, a diferença sendo que na Barquinha eles estariam lidando com aspectos espirituais como a mediunidade, que não eram originalmente incorporados nos rituais do Santo Daime. Dentre as linhagens do Santo Daime, a mediunidade começou a ser explorada pela linhagem do Padrinho Sebastião (Centro Eclético da Fluente Luz Universal Raimundo Irineu Serra, ou Cefluris) há alguns anos atrás (ver Guimarães, 1992), mas ainda é um tabu nos grupos identificados como “Alto Santo.”9 Outro membro me relatou que, quando visitou um centro da Barquinha, ao ser indagado sobre sua religião antes de ir para uma consulta com um guia espiritual, respondeu que era “barquinhista.” A pessoa que perguntava então anotou em seu

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Grosso modo, o Santo Daime é dividido em duas linhagens: o Alto Santo e aquela ligada ao Padrinho Sebastião. Para mais detalhes ver Labate e Araújo (2002).

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caderno: “espírita cristão daimista.”

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De acordo com Marcos, um ex-membro do Santo Daime e agora membro ativo do Centro, a Barquinha pertencia à linhagem de São Francisco de Assis, a linhagem da caridade, do amor, para curar as pessoas e os membros tanto do Santo Daime quanto da Barquinha, e por sua vez o Santo Daime seria da linha de São João Batista, da justiça, para corrigir o comportamento dos irmãos e irmãs (Mercante, 2002). A Barquinha como um sistema religioso foi desenvolvida ao redor da idéia de devoção e de caridade. A caridade se desdobraria em dois níveis complementares: a direcionada para os humanos encarnados, e a dirigida para a assistência das almas, os desencarnados. A mediunidade é o principal veículo para praticar a caridade (ver também Frenopoulo, 2005). O fenômeno da incorporação, ou seja, a possessão de médiuns por espíritos de Pretos Velhos e Pretas Velhas, Caboclos, e Encantos é uma característica central da Barquinha. Os Pretos Velhos e Caboclos são espíritos bastante comuns em religiões sincréticas como a Umbanda, que combinam a devoção a estes espíritos com o legado dos cultos vindos da África (ver Boyer, 1999; Ferreti, 2000; Ortiz, 1988; Pordeus, 2000). Os Encantos ou Encantados são vistos como seres humanos que foram para o plano espiritual com o corpo físico, sem passar pela morte.10 Araújo (1999) relata que os encantos são extremamente sábios, e muito importantes para o desenvolvimento dos trabalhos espirituais na Barquinha. O Centro tem o nome de um encanto, o Príncipe Espadarte, entidade principal da Madrinha. Além dos guias citados acima, há a constante presença de espíritos de padres, bispos e arcebispos: o Centro é uma “missão franciscana,” e seus filiados se acreditam como membros dos “exércitos de Jesus.” Estes exércitos estão presentes e atuantes durante os rituais, ajudando os participantes a atingir um estado de harmonia, principalmente no caso de doenças. É interessante notar que São Francisco de Assis costumava dizer que estava comandando um grande exército devotado a Jesus (Englebert, 1979).

Os Encantados aparecem em vários movimentos espirituais no Norte e Nordeste do Brasil (ver Ferreti, 2000; Maués, 1994; e Maués & Villacorta, 2001). Entre os Manchineri (Mercante 2000), é comum encontrar referência ao Caboclinho do Mato, um índio transformado em um Encantado após beber muita Ayahuasca. Ele é responsável pela proteção aos animais na mata e por ensinar quem quer que queira transformar-se em um curador.

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O calendário ritualístico da Barquinha pode ser dividido em três partes: as Romarias, as Festas, e os rituais ordinários ou Trabalhos11 de Instrução e de Obras de Caridade, e de Prestação de Contas, realizados respectivamente nas quartas-feiras, sábados, e os todos os dias 27 do mês. Estes rituais ordinários acontecem sempre, mesmo durante as Romarias e antes de Festas. As Romarias são rituais diários realizados durante um certo número de dias em honra a um santo católico romano específico: para São Sebastião (de 1º a 20 de janeiro), São José (1º a 19 de março), Nossa Senhora (1º a 31 de maio), Nossa Senhora da Glória (1º a 15 de agosto) e São Francisco de Assis (1º de setembro a 4 de outubro). Da mesma forma, rituais diários também acontecem durante a quaresma. As festas acontecem fora da Igreja, no Salão de Festa, ao som de atabaques, violão, guitarras, e baixo. Podem ser em honra a santos católico-romanos ou Orixás. A escala bastante abundante de Festas no calendário do Centro revela a grande importância deste ritual para a Barquinha. Existem festas para: os Três Reis Magos (6 de janeiro); São Sebastião/Oxossi (final desta Romaria, 20 de janeiro); Nossa Senhora das Candeias/ Iemanjá (2 de fevereiro); São Lázaro/Omulu (11 de fevereiro); São Jorge/Ogum (23 de abril); Nossa Senhora de Fátima e Pretos Velhos (13 de maio); Aniversário de Madrinha Francisca (7 de junho); Santo Antônio (13 de junho); São João Batista/Xangô (24 de junho); São Pedro e São Paulo (29 de junho); Santa Ana/Nanã Buruquê (31 de julho); São Cosme e São Damião/Erês (27 de setembro); Morte de Frei Daniel (8 de setembro); Todos os Santos (1º de novembro); Dia dos Mortos (2 de novembro); Príncipe Dom Simeão (23 de novembro); Santa Bárbara/Iansã (4 de dezembro); Nossa Senhora da Conceição/Oxum (8 de dezembro); Santa Luzia (December 13); Natal; e finalmente, Ano Novo.

Consciência, miração e cura: Caroline

Caroline tinha, na época que a entrevistei, sessenta e um anos (ver Mercante, 2006). Ela é norte-americana, e trabalha como psicoterapeuta familiar, e foi visitar o Centro exclusivamente devido aos rituais de cura lá realizados, pois havia quebrado seu A noção de Trabalho precisa de uma clarificação. Todos os rituais no Centro são considerados trabalhos espirituais. O Daime “trabalha” na consciência de todos os presentes. Durante o tempo que uma pessoa está no ritual, está trabalhando. Interessante notar que a noção de trabalho como algo religioso e espiritual vem dos gregos, principalmente com Hesíodo (segundo Pordeus, 2000).

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quadril quando estava esquiando em 1994. Por alguns anos conseguiu controlar a dor, mas, ao final de 2003, esta se tornou insuportável. Ela estava bastante apreensiva de fazer uma cirurgia no quadril, pois não pôde encontrar um médico em que pudesse confiar, e temia os riscos das limitações de movimentos após a cirurgia. Na verdade, ela não se sentia pronta para a cirurgia. Caroline bebeu Ayahuasca pela primeira vez em um ritual do Santo Daime em uma igreja nos Estados Unidos. Eu a conheci nos Estados Unidos, durante o meu doutorado. Comentei com ela sobre a Barquinha e o Centro, e em 2004 ela decidiu empreender a viagem. Minha opção por explorar aqui a experiência de uma pessoa que originalmente não pertence ao universo cultural do Centro, ou seja, não é sequer brasileira, se deu por que desta forma terei maior possibilidade de colocar em evidência aspectos da consciência que não são limitados pela cultura. Não se trata de uma busca por “universais,” mas por tentar explicitar aspectos que talvez não se encaixem completamente no paradigma de cultura na antropologia. Uma discussão mais aprofundada foi realizada em Mercante (2006). Seguem abaixo traduções de trechos de seu diário pessoal que Caroline escreveu (em inglês – traduzido por mim) durante o tempo em que esteve no Centro, descrevendo um dos primeiros rituais que participou, um trabalho de Obras de Caridade

Eu sentia seres humanos vivos e almas do outro lado precisando de assistência. Entrei em um aspecto do mundo com que tenho travado conhecimento através do meu intelecto desde minha juventude – um mundo sobre o qual aprendi principalmente estudando a arte da Idade Média, e também através da leitura da busca do transe em seitas pentecostais em Ohio, incluindo grupos utópicos que formavam comunidades em Ohio durante o século XIX, incluindo pentecostais que falavam em línguas, os “Holy Rollers,” igrejas espiritualistas, manipuladores de serpentes, para nomear alguns dos que me vêm a mente. Eu notei mais sensações físicas aqui, predominantemente a sensação da presença de outros seres. Nada havia me preparado para a intensidade de minhas experiências na noite passada quando bebi o Daime novo recém feito sob a luz da lua cheia – e que ainda estava cozinhando fora da igreja, enviando rolos de fumaça cheias de Daime para lá. Como tudo começou? Como sempre

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cantando sob o brilho de luzes fluorescentes. Ninguém havia chegado ainda para tocar violão, e L. começou a cantar na capela. Escolhi sentar na primeira cadeira na seção que segue a partir da porta da frente. Foi neste lugar que sentei quando da minha primeira noite aqui, quando vi os espíritos calmos (e em duas situações espíritos flutuantes misteriosos) parados ao meu lado. A primeira coisa de que me conscientizei na noite passada foram movimentos ligeiramente atrás da minha cadeira, à direita, e presenças indo e vindo – seres tentando decidir para onde ir. Parece que alguns eram pessoas vivas, membros da igreja, entrando e saindo, mas a presença destes era mais definida. Se eu olhava em direção às outras presenças, nada estava visível. A intensidade geral do sentimento cresceu. Eu notei uma menina pequena se levantando atrás de mim em um vestido brilhante rosa e preto. Ela tinha talvez seis anos de idade e estava dobrando e levantando uma perna. Comecei a desconfiar dela. Eu a espantei algumas vezes, apenas para mantê-la afastada um pouco. Outros espíritos não chegaram tão perto de mim no começo. Então, notei que algo estava tentando brotar de meu ombro esquerdo e tomei consciência de seres atrás de mim. Continuei tirando coisas de mim sacudindo meus ombros. Em seguida, algumas mulheres que estavam sentadas nas primeiras fileiras se levantaram com seus olhos fechados e uma das mãos levantadas. Tive a sensação de que estavam incorporando algum espírito e senti que se eu estivesse aberta para fazer isso, teria feito. Quis escapar do rodamoinho de espíritos que estava se aproximando e ficar com apenas um deles para deixar que ele entrasse em mim, mas sabia que não conseguiria por não ter o conhecimento necessário. Então pude ver uma “hoste celestial” de espíritos femininos, suaves, protegendo todos, vestidos com robes azul claro e branco, flutuando por trás e acima das mulheres sentadas na mesa, protegendo e abençoando elas. Mais mulheres se levantaram nas fileiras de trás. Eventualmente elas foram convidadas a sair. Uma ou duas tinham incorporado uma Preta Velha e saíram inclinadas para a frente.12

Aqui Caroline descreve o momento durante do trabalho em que os guias espirituais são chamados para incorporar nos médiuns, e em seguida eles se dirigem para o Congá – local anexo à igreja onde são feitos os atendimentos das pessoas que vêm em busca de auxílio.

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Uma vez que elas partiram, a capela parece menos segura. Pude ver uma forma escura na área onde a garota [mencionada numa visão acima] estava, vindo na minha direção. Tinha a forma de uma algum tipo de animal grande e desconhecido, e parecia ter saído de dentro de uma pintura de Hieronomus Bosch. Estava vivo. Eu não sabia o que fazer. Senti que podia mover –me concentrei em andar e eventualmente sentei em um dos lugares de trás na mesa. A energia ainda estava intensa. Havia vários espaços abertos ao meu redor e senti vários espíritos se movendo. A fumaça do cozimento do Daime ainda estava entrando na Igreja. Uma vez que me sentei na mesa, instantaneamente me senti melhor e mais segura por um tempo. Eu podia ouvir as mulheres cantando ao meu lado e ver os homens nas outras duas fileiras do outro lado da mesa. As coisas ficaram intensas ali também. Podia ouvir os seres correndo atrás de nós. Vi um Preto Velho caminhando, vindo da área do Congá, ao redor da mesa e por trás de nós. Contudo, ele não era um membro regular do Centro, pois não usava nem espada nem cachimbo como os outros daqui. Eu pude sentir problemas. Parei de cantar em português13 e comecei a cantar “A Mighty Fortress is Our God” [canção de origem luterana] em alemão. Ouvi algo murmurando, baixo e pesado. Abri meus olhos, o que ajudou, mas deixou o medo lá. Foi nesse momento que utilizei minhas palavras luteranas em inglês. Tudo estava muito intenso, cheio de espíritos, alternando entre seguros e inseguros. De repente entendi porque as estátuas estavam dispostas ao longo do meio da mesa. Precisei olhar para elas enquanto sentia os espíritos inquietos na capela. Um espírito masculino se colocou entre mim e a mulher ao meu lado e tentou descansar sua cabeça no ombro dela. Ela permitiu e pareceu ser capaz de estar com ele. Eu não era capaz. O homem que estava sentado no outro lado da mesa estava com seus olhos abertos e revirados. Senti meus próprios olhos fazerem o mesmo mais tarde. As pessoas tinham as palmas de suas mãos abertas, repousadas no colo, com as faces para cima. Também fiz isso. Era difícil ficar “aterrada” e imóvel. Subitamente a face de uma das deidades

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É interessante notar que Caroline não falava português.

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tibetanas infernais veio em minha direção e eu a espantei. Um pássaro veio

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voando na minha direção e fez uma rotação completa. Eu estava quase me fundindo com o pássaro (da família dos gaviões), quando parei a visão. Isso era completamente inesperado, espantos, e transformador – a possibilidade de se tornar outro ser. Alguém tocou meu ombro. Alguém real, humano e disse que estava na hora de sair da capela e ter minha cerimônia de cura com “meu” Preto Velho. Ponderei se poderia caminhar para fora da Igreja. Eu pude. Foi um alívio deitar numa esteira com as velas ao meu redor neste espaço mais calmo, muito mais calmo. Mais tarde, outras pessoas disseram para mim que elas podiam ver e sentir os muitos espíritos da noite passada e que tudo foi muito intenso. Os espíritos estavam vindo para ajudar. As pessoas na Igreja estavam tentando ajudá-los. Foi exatamente nesta situação que me senti imersa. Parecia que eu estava no meio de uma igreja medieval lutando entre as forças do bem, e as forças do mal vieram com toda força, dramaticamente vivas! Experienciei tanto as forças do bem quanto as do mal presentes na Igreja, encenando sua luta ali, junto com cada um de nós. A luta não era apenas história, estava vividamente viva agora.

A experiência de estar no Acre foi bastante chocante para Caroline no princípio. Ela vive na região da baía de São Francisco, na Califórnia, e subitamente se viu imersa em uma cidade amazônica terceiro-mundista em processo de desenvolvimento. Ela me disse que estava bem assustada, pensando que seria “bastante difícil, bastante estranho, doloroso,” e que “ficaria perplexa, de uma forma que eu não poderia integrar a experiência. Os primeiros dias estava deprimida, não o tempo todo, mas várias vezes ao dia, pensando: ‘o que estou fazendo aqui, porque estou aqui? É muito quente aqui, muito sujo, por que estou fazendo isso?!’ ” O universo simbólico e espiritual do Centro era algo completamente novo para Caroline. De formação luterana – onde as igrejas e altares não têm nenhuma imagem – ela se viu mergulhada em um universo de estátuas de santos, cachimbos, substâncias psicoativas, Orixás, médiuns. Por outro lado, um tipo de visão de mundo comum entre ambos os universos surgiu. O fato de que ela estava em um grupo de pessoas que sabia estarem conscientes da existência de seres espirituais foi bom para ela, relata. A partir

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deste momento, conseguiu sair de uma posição de estranha para sentir que “existia todo um grupo de pessoas que pensava que isso [a existência de seres espirituais] era bastante comum, esperado, e tive que lidar com o medo de não ser entendida, ou mesmo de ser rejeitada. Isso foi bastante interessante, e essa era a razão pela qual estava com medo de vir aqui [no Centro], com medo de ser uma experiência negativa. Estava assustada de algo mais perigoso, algo que eu não pudesse não entender como lidar. Mas eu entendi que existiam pessoas aqui que sabiam.” Caroline não pôde ficar no Centro até o ritual de Prestação de Contas, que é o ritual mais fortemente voltado para as curas, do dia 27 de março de 2004 (ela chegou em Rio Branco no dia 1º de março e foi embora no dia 15). Assim, uma cerimônia de cura foi feita especialmente para ela, onde três médiuns incorporando espíritos de Pretas Velhas participaram. Ao todo, sete pessoas tomaram Daime naquela ocasião. Após uma hora cantando Salmos, elas pediram à Caroline para deitar em uma esteira. Uma vela branca foi acesa no chão, acima da sua cabeça, outra abaixo dos pés, e uma de casa lado da esteira. Então, as médiuns receberam seus guias espirituais e começaram a aplicar uma série de procedimentos para limpar espiritualmente Caroline utilizando suas espadas – pano que cada entidade espiritual possui (ver Mercante, 2006) – e depois a realizar a cura propriamente dita, através da imposição de mãos. Muita fumaça de tabaco oriunda dos cachimbos das Pretas Velhas foi soprada sobre todo o corpo de Caroline. Depois, um líquido especial foi preparado com uma infusão de cânfora em água, a qual foi utilizada por uma das Pretas Velhas na perna de Caroline. Ao final da cerimônia um desenho especial, denominado ponto riscado, foi feito para selar a cura (neste desenho são colocadas velas e, em geral, o nome da pessoa em tratamento). A cerimônia durou ao todo em torno de três horas. Perguntei à Caroline sobre sua experiência: “O mais interessante foi que inicialmente eu estava me sentindo eufórica, e quando deitei na esteira a dor se tornou bastante forte. Depois, comecei a chorar, minha perna estava “agonizando” [my leg was just agonizing], e pude sentir que elas estavam trabalhando a minha energia. Pude então sentir um buraco no meu fêmur, o buraco que está lá, e eu pude realmente experienciar ele. Pude sentir que minha perna estava me deixando. Depois disso senti como se fossem ondas, pessoas comigo. Na verdade, não vi imagens, o que foi bem interessante, não vi nada, tudo foram sensações, todas sensações físicas, do que elas estavam fazendo, o cheiro da água, os sons. Senti que elas estavam trabalhando

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comigo, e quando ocasionalmente abri os olhos não pude ver ninguém, mas senti que havia muitas pessoas lá. Pude sentir pessoas tocando minha perna, meu coração, meu quadril.” Ela deixou o Centro com recomendações de tomar, diariamente, uma infusão feita com o broto da embaúba (Cecropia sp.), a qual a Preta Velha disse que ajudaria na recuperação após a cirurgia. Da mesma forma, a Preta Velha “preparou” uma garrafa de azeite de oliva, rezando sobre o líquido, recomendando que ela bebesse uma colher de chá diariamente, e que massageasse, com o óleo, o quadril após a cirurgia. Depois que Caroline retornou aos Estados Unidos, ela me disse que a cerimônia de cura ajudou-a a tomar as decisões corretas em relação à cirurgia. Ela decidiu trocar de médico, achando outro que havia desenvolvido uma nova técnica cirúrgica onde era realizada uma incisão menor, em uma parte diferente da perna. Da mesma forma, entrou em contato com um hipnotista para prepará-la para a anestesia, e, para sua surpresa este havia estado no Peru bebendo Ayahuasca com vegetalistas. A cirurgia foi bem sucedida, e dois meses depois Caroline estava voltando a nadar; após quatro meses ela viajou para Machu Pichu para fazer caminhadas. Ela ainda tem uma vida muito ativa, e não restaram seqüelas nos seus movimentos. Interessantemente, Caroline continuou vendo luzes e padrões após seu retorno aos Estados Unidos. Caroline não foi ao Centro em busca de uma melhor relação com seu universo interior, mas com seu corpo físico. As rápidas mudanças impostas pela idade e pelo acidente não foram bem assimiladas por Caroline. Ela foi ao Centro em busca de ajuda para ir além do conflito com seu corpo físico, um conflito materializado pela cirurgia que ela inevitavelmente teria que se submeter. Durante o processo de se tornar consciente do seu corpo físico, Caroline pôde sentir o buraco que havia no seu fêmur, e ela pôde, durante a cerimônia, ficar em contato com um pedaço dela mesma que ela estava tentando evitar. Todo o medo que ela tinha da cirurgia – sobre uma hipoteticamente mal sucedida cirurgia – se dissolveu em um processo catártico de choro. Após este processo de conscientização do seu corpo físico, e depois de todas as sensações extremamente físicas, o medo que a estava bloqueando, bloqueando sua vida, desapareceu. Ela mudou de médico, acho um hipnotista familiar com o universo da Ayahuasca, e passou por uma cirurgia bem sucedida.

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Conclusão Durante o trabalho de campo para meu doutorado fiz a opção de entrevistar as entidades espirituais quando incorporadas nos seus médiuns. Vó Maria da Calunga, espírito de uma Preta Velha que é incorporada por Neide, filha da Madrinha, me deu uma explicação bem sucinta sobre a relação entre os processos de cura e as mirações. De acordo com ela, existiriam pessoas que veriam as entidades espirituais, o lado espiritual da cerimônia, e outras que não conseguem ver, ainda que sintam a presença destes seres, e até mesmo escutem eles. De acordo com Vó Maria da Calunga, “isso é uma coisa que só Deus é que sabe o porquê.” Caroline passou por todos estes níveis de experiência, quando viu os seres espirituais durante o trabalho de Obras de Caridade, e quando sentiu a presença deles quando ela mesma se submeteu ao tratamento. Vó Maria da Calunga me contou que para que os “curadores” venham do mundo espiritual, é necessário a permissão de São Francisco das Chagas, pois é ele que abre “o salão [espiritual] das curas,” em nome de Nossa Senhora da Caridade. Cada um receberia então a cura que merece, “conforme a sua fé, conforme o seu coração [pois] aqueles que não tem fé, não serão curados, mas aqueles que têm fé, sim, serão curados. É como já disse a você, não adianta o filho tomar um chá, o Preto-Velho rezar, se ele não tiver Deus dentro do coração, não tiver a fé.” Fé é o espaço onde a cura acontece. Sem fé o medo bloqueia qualquer tentativa de transformação física, emocional, mental e espiritual. Fé é o elemento que move as pessoas a se entregarem aos curadores, como no caso de Caroline. Outra Preta Velha, Vó Maria Clara deu uma explicação sobre o papel das mirações nos processos de cura: “A miração é, vamos dizer, um mundo astral, um mundo invisível que nele se encontra uma fonte sagrada, a fonte do santo amor, onde dá todo esse clarão, todo esse brilho, toda essa força.” Luz – tanto na sua qualidade de brilho quanto na de força – não é apenas uma metáfora, mas uma qualidade experienciada (vivamente sentida) durante as mirações (ver Mercante, 2006). É através desta luz que se alcança o mundo espiritual: “É uma coisa bem mais além, que os filhos têm oportunidade de enxergar um passo acima de si.” No momento em que se alcança o mundo espiritual, se pode perceber a doença – tanto sua fonte quanto o caminho para a cura. Vó Maria Clara relata que no momento em que se vê a doença, quando se permite entrar em contato com a doença e com tudo mais que está relacionado com ela, este é o momento que se passa a “ter um conhecimento de si, do que você está sentindo, o que

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que é aquilo, você se depara com muitas coisas.” Caroline pôde ver o buraco no seu fêmur, e neste momento a possibilidade de sucesso na cirurgia a qual ela viria a ser submetida foi criada: “Isso existe, você chega a ver aquilo ali, chega a atingir assim, é porque tá saindo, tá explodindo. (...) Então, é onde entra o processo da cura, você está se libertando de tudo isso, você está saindo de tudo isso. Então, é um processo, onde não se vê só o lado bom das coisas, tem de tudo um pouco. Você tem muita coisa boa, mas a cura está relacionada a tudo que você carrega na sua vida.” Vó Maria Clara continuou: “Às vezes você pensa,’me sinto tão mal, com tanta dor, o que é essa dor?’, essa dor está relacionada ao pecado. É por isso que existe a dificuldade de enxergarem. “Meu Deus, eu tanto faço, porque está tão difícil?” São filhos que estão nessa terra cumprindo e pagando com alguma coisa. Se não tivesse as dificuldades seria muito fácil, é onde entra o pecado, onde entram as dificuldades. Muitas vezes se vêm com deficiências, “porque meu Deus, porque isso?” Nesse plano [na vida na Terra] está pagando, está cumprindo a sua missão, para poder ter um encontro aos pés de Deus. Todos em uma só emanação, em uma só corrente de força, de Luz. Esta Luz é muito sublime, ela tem mistérios bastante profundos. É uma caminhada que não tem volta, é uma cura para o infinito, para as glórias sagradas, é uma cura eterna. Nunca acaba. Eu hoje rezo em você, mas não fechei nenhuma cura, não finalizei, estou fazendo apenas uma parte para lhe ajudar, para que você tenha mais força de vencer.” De acordo com a descrição de Vó Maria Clara, a fonte de uma doença emerge na consciência através da miração. A miração então é uma parte de um processo de revelação. A luz traz a revelação e ilumina a escuridão da vida e dos seres.14 Da mesma forma, a miração é em si mesma a fonte de cura, precisamente por suas características revelatórias. Vó Maria Clara apresenta a doença como um sinal – o sinal do cumprimento de uma missão, a missão da auto-transformação. Cura é um sinal de que a pessoa doente está caminhando para mais perto de Deus. Alcimar, filho da Madrinha, também descreveu a miração como um processo de revelação, em um discurso muito próximo ao que foi relatado acima, por Vó Maria Clara: “Eu vejo assim, a miração é um esclarecimento pra um processo de vida que a gente está passando, por uma transformação. Muitas vezes a gente pode fazer uma

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Curioso que o Daime também é chamado de “Santa Luz.” Ver detalhes em Mercante, 2006.

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coisa errada sem saber o que está fazendo, e depois que essa luz se manifesta você sabe

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o que tá fazendo, mas se você tá doente, nem sempre você pode saber porque está doente. Às vezes você sabe. Porque também depende desse grau de evolução das pessoas, porque nem sempre as pessoas aceitam que estão em determinado estado por conta de suas culpas, e pode, devido a esse não aceitar, ao invés de melhorar, piorar sua situação. Os seres que se manifestam dentro da luz só fazem esse esclarecimento se houver uma necessidade daquela pessoa tenha aquela esclarecimento do porquê aquela pessoa tá passando por aquele processo de cura. E as vezes a pessoa se pergunta porque que uma pessoa vive rezando, vive em concentração e adoece. Porque que a gente tá num plano de preparação, cada vez que a gente vence uma dificuldade, com amor, com dedicação, sem deixar que aquilo abale o seu caminho espiritual ela se eleva cada vez mais. Cada vez ele fica mais próximo da purificação. A gente passa tudo isso assim por uma dívida espiritual muito grande com Deus. Coisas de outras vidas passadas.” Miração aqui aparece como algo trazido pelos seres trabalhando na luz, no Daime, trazendo entendimento para a pessoa doente acerca tanto de fatos por trás da doença como sobre o tratamento em si. No caso de Caroline, podemos também dizer que os seres trouxeram para ela esclarecimentos sobre o ritual em si, uma vez que ela era incapaz de entender as canções, por serem em português. E a postura aberta da Caroline facilitou esse entendimento, uma vez que mesmo sem compartilhar do mesmo universo cultural e das crenças dos membros da Barquinha, conseguiu acesso ao “salão espiritual das curas.” É interessante notar que os Shipibo-Conibo da Amazônia peruana têm uma técnica muito especial de cura (Gebhart-Sayer, 1986). O xamã começa recebendo os desenhos de Nishi-bo, o espírito vivendo no cipó da Ayahuasca. O xamã pode ver os desenhos produzidos pela Ayahuasca em todos os lugares, e a partir destes desenhos, pode fazer um diagnóstico a respeito a situação de saúde do paciente. Então, o xamã começa a cantar, e a canção produz mais desenhos visionários, que são aplicados, através da música, sobre o corpo da pessoa doente, que não tem acesso a estas visões, pois não tomou Ayahuasca para receber o tratamento. Em contraste, na Barquinha a pessoa doente também tem acesso às visões, ainda que, como disse Alcimar, esta pessoa precise estar pronta para ver os ensinamentos. Tanto Vó Maria da Calunga quanto Vó Maria Clara disseram que a pessoa doente talvez não adquira consciência sobre o processo de cura, mesmo quando a cura acontece.

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Paskoali (2002), que realizou pesquisa na Barquinha do Antônio Geraldo, um outro centro da Barquinha localizado em Rio Branco (Acre), coletou informações similares às minhas, também indicando que algumas pessoas podem ver o tratamento enquanto outras apenas sentem ou têm uma intuição sobre o que está acontecendo. Pelo que foi dito acima vemos que a miração está intrinsecamente ligada à cura, algo muito mais amplo que a recuperação de uma doença. Cura significa a limpeza de todo o ser, e acontece todo o tempo, em todos os níveis, mesmo com aqueles que não estão “completamente” doentes. Cura seria então um processo de auto-transformação, de desenvolvimento espiritual, um momento de imersão na Luz, que é, ao mesmo tempo, o Daime e um poder espiritual que move tudo e todos, que é Deus. O antropólogo Thomas Csordas (1994), trabalhando com cristãos carismáticos, chegou a conclusões muito semelhantes. De acordo com ele, “o local da eficácia não são os sintomas, desordens psiquiátricas, significado simbólico, ou relações sociais, mas o self no qual tudo isso está incluído.” (p. 3 – tradução minha) Cura para Csordas (1994) – assim como para as pessoas no Centro – não está restrita a um momento no ritual. Pode ter início ali, mas vai além, transcendendo o “evento e continua como um processo diário do self.” (p. 70) Csordas (1994) aponta que “o reconhecimento da cura é uma modulação da orientação no mundo” (p. 70), o que faz com que as pessoas modifiquem as suas atividades no mundo. Csordas (1994) aponta ainda que é através da imaginação que as pessoas conseguem modificar suas vidas. De acordo com este autor, o “poder divino” atuaria através das imagens, que são entendidas pelos cristãos carismáticos com quem trabalhou como uma “experiência direta do sagrado” (p. 108), principalmente devido à sua espontaneidade e relevância. O mesmo se daria no Centro, onde as imagens reveladas pela miração também são entendidas como uma percepção do mundo espiritual, do sagrado. Uma suposta dualidade entre mente é corpo desaparece, uma vez que, de acordo com Csordas (1994), as imagens mentais revelatórias envolvem não apenas sinais, mas também atos, “atos encorporados” (p. 148). De acordo com Good (1994), “para a pessoa que está doente, assim como para o clínico, a doença é experienciada como presente no corpo. Mas para a pessoa que sofre, o corpo não é simplesmente um objeto físico ou um estado fisiológico, mas uma parte essencial do self. O corpo é o sujeito, o próprio local da subjetividade ou da experiência no mundo, e o corpo como um objeto

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físico não pode ser distinguido dos estados de conscientização. A consciência em si mesma é inseparável do corpo consciente.” (p. 116, tradução minha) A cura seria então a ordenação consciente do corpo, e as mirações ajudam na ordenação da consciência. Por outro lado, o corpo também influencia a consciência, e neste caso, durante o ritual, tanto, o corpo da pessoa doente quanto o corpo dos curadores estão profundamente envolvidos no processo de cura. De acordo com Blacking (1977, tradução minha), “sentimento, e particularmente sentimentos de companheirismo, expressos como movimentos de corpos no espaço e no tempo e freqüentemente sem conotação verbal, são a base da vida mental” (p. 21), e “Telepatia e empatia corporal (...) não são fenômenos paranormais, mas normais” (p. 10). A cerimônia de cura no Centro é composta de “movimentos de corpos no espaço e no tempo e freqüentemente sem conotação verbal.” Os médiuns se movem pela sala, tocando o corpo das pessoas doentes. Os médiuns, literalmente, incorporam os agentes de cura. A mera presença dos Pretos Velhos e Pretas Velhas dentro da consciência corporal do médium constitui uma força, que emerge na consciência da pessoa doente como imagens de cura.

Marcelo S. Mercante Ph.D. em Antropologia Saybrook Graduate School and Research Center, San Francisco, Califórnia. Pós-Doutorado em andamento, Antropologia Social, Universidade de São Paulo. E-mail: marcelo_mercante@yahoo.com

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Recebido em 12/02/2010 Aceito para publicação em 23/02/2010

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Efeitos da Ayahuasca em medidas psicométricas de pânico, ansiedade e desesperança1

Rafael Guimarães dos SANTOS

A ayahuasca é utilizada como sacramento de religiões como o Santo Daime, a Barquinha, a União do Vegetal e as suas dissidências. Nesses contextos, é geralmente preparada utilizando talos de Banisteriopsis caapi e folhas de Psychotria viridis, sendo seus principais alcalóides as beta-carbolinas harmina, tetrahidroharmina (THH) e harmalina e a triptamina dimetiltriptamina (DMT) (Callaway, 2005; Callaway et al., 2005). Está bem estabelecido que sintomas relacionados à ansiedade, ao pânico e à depressão são atenuados de modo significativo por agonistas serotoninérgicos como inibidores da recaptação de serotonina e da MAO-A (Wikinski, 2004; Nash & Nutt, 2005; Starcevic, 2006). O fato de que os alcalóides presentes na ayahuasca inibem a recaptação de serotonina (THH) e a MAO-A (harmina, THH e harmalina) (McKenna, 2004) e exercem atividade agonista serotoninérgica direta (DMT) (Smith et al., 1998) sugere que a ayahuasca pode atenuar estados emocionais regulados pelo sistema serotoninérgico. Estudos anteriores sugerem que a ayahuasca exerce papel terapêutico em casos de depressão e ansiedade (Grob et al., 2004). O presente estudo investigou essas possibilidades por meio da aplicação de questionários psicométricos padronizados para avaliações de ansiedade-estado (IDATEestado), ansiedade-traço (IDATE-traço), sinais relacionados ao pânico (ESA-R) e desesperança (BHS).2 Os questionários foram aplicados a membros de uma igreja do culto do Santo Daime nos arredores de Brasília, DF. Esses indivíduos faziam uso ritual da ayahuasca há pelo menos dez anos consecutivos, e o estudo foi conduzido na própria igreja, inserido na dinâmica de um dos rituais do Santo Daime, a Oração. Os

O presente artigo apresenta de forma resumida os resultados de minha pesquisa de mestrado (Santos, 2006), cujo texto completo encontra-se disponível no site do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos – NEIP: http://www.neip.info/downloads/rafael/tese_rafa.pdf. Um artigo contendo tais resultados foi recentemente aceito para publicação no Journal of Ethnopharmacology (Santos et al., 2007). Gostaria de agradecer ao Dr. Jordi Riba, do Hospital San Pablo, Barcelona, e a Jose Carlos Bouso, da Universidad Autónoma de Madrid, por revisarem o presente artigo. 2 IDATE – Inventário de Ansiedade Traço-Estado (em inglês, State-Trait Anxiety Inventory, STAI); ESAR – Escala de Sensibilidade à Ansiedade – Revisada (em inglês, Anxiety Sensitivity Index, ASI-R); Escala de Desesperança de Beck (em inglês, Beck Hopelessness Scale, BHS).

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questionários foram aplicados uma hora após a ingestão do psicoativo e foi utilizado o método duplo-cego com placebo. A ingestão aguda da ayahuasca atenuou de forma significante os parâmetros psicométricos relacionados ao pânico e à desesperança, não alterando os parâmetros de ansiedade. O conceito de pânico utilizado aqui deve ser associado ao de sensibilidade à ansiedade, que está relacionado com o medo de sentir ansiedade, ou seja, com a crença de que os sintomas autonômicos da ansiedade podem ter conseqüências desastrosas. Vários estudos mostram que o índice de sensibilidade à ansiedade está intimamente relacionado com o transtorno do pânico. O constructo desesperança é um fator presente em muitas desordens mentais e é altamente correlacionado com medidas de depressão e intenções suicidas. Nossos resultados sugerem que a ayahuasca promoveu efeitos que podem ser interpretados como diminuição de sinais associados ao pânico e à desesperança. Entretanto, o número de participantes foi limitado (nove) e esses possuíam experiência prévia com a ayahuasca. Em geral, esses participantes consideram a ayahuasca como um sacramento e a participação nos rituais benéfica. Por isso, nossos resultados devem ser vistos com cautela. Os efeitos agudos da ayahuasca podem incluir euforia, visões e experiências místicas, efeitos potencialmente benéficos, especialmente para pessoas que possuem uma vida religioso-comunitária associada à ingestão da ayahuasca. O fato de termos encontrado uma atenuação nos sinais relacionados ao pânico pode ter sido influenciado por essa experiência religiosa prévia, já que pessoas sem contato prévio com a ayahuasca poderiam, eventualmente, experimentar ansiedade e inclusive pânico, dada a intensidade de alguns dos efeitos que a bebida pode produzir (p. ex., visões ou vômitos). Entretanto, essa limitação deve ser relativizada pelo fato de que dados provenientes de pesquisas com pessoas que ingeriram a ayahuasca pela primeira vez não relataram casos de pânico; ao contrário, sugerem melhoras em sintomas psiquiátricos (Barbosa et al., 2005). Outra importante limitação é o fato de que os voluntários eram saudáveis. Nesse sentido, a relevância clínica de nossos achados deve ser relativizada. A ausência de efeitos significantes nas escalas de ansiedade pode indicar que os voluntários, experientes ayahuasqueiros, iniciaram o estudo com baixos níveis de ansiedade. Logo, não haveria mudanças significativas após a ingestão da ayahuasca. Entretanto, mesmo que uma pessoa não seja membro de uma religião ayahuasqueira, o fato de que a

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inibição da MAO-A pode elevar os níveis cerebrais de noradrenalina e serotonina e que a inibição da recaptação de serotonina pode elevar os níveis cerebrais desse neurotransmissor sugere que esses mecanismos podem explicar, ao menos em parte, nossos achados. Essa sugestão é corroborada pelo fato de que a maioria dos fármacos antidepressivos e antipânico também aumentam a neurotransmissão noradrenérgica (antidepressivos) e/ou serotoninérgica (antidepressivos e antipânico). Também é possível que a ação agonista da DMT nos receptores serotoninérgicos 5-HT2A/2C semelhante à da própria serotonina possa atenuar os sinais relacionados ao pânico, já que, na matéria cinzenta periaquedutal dorsal, o aumento de serotonina no receptor 5HT2 parece exercer efeitos antipânico (Deakin & Graeff, 1991; Graeff et al., 1996). Outra limitação de nosso estudo se refere à ausência de uma análise quantitativa dos alcalóides da ayahuasca, o que impossibilita a realização de análises dose-efeito e limita sobremaneira a comparação de nossos dados com estudos futuros. Por outro lado, a análise química qualitativa realizada identificou a presença dos principais alcalóides da ayahuasca – harmina, THH, harmalina e DMT – e, além disso, de outra betacarbolina – harmol –, que já havia sido encontrada em outros estudos (Riba et al., 2003). Tais achados corroboram nossa hipótese sobre a participação dos alcalóides da ayahuasca na diminuição de sinais associados ao pânico e à desesperança. Ainda com tais limitações, a presente pesquisa lança luzes para uma melhor compreensão dos efeitos da ayahuasca no sistema nervoso central. Ao melhor de nosso conhecimento, trata-se do primeiro estudo a avaliar diretamente os efeitos da ayahuasca em escalas de ansiedade, pânico e desesperança em humanos, encontrando uma atenuação dos parâmetros relacionados ao pânico e à desesperança. Estudos futuros realizados em voluntários sem experiência prévia com a ayahuasca poderão replicar ou refutar os resultados presentes, expandindo nossa compreensão sobre o potencial terapêutico dessa bebida ou de alguns de seus alcalóides e sobre seus efeitos em nossa mente-cérebro.

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Rafael Guimarães dos Santos Biólogo, Mestre em Psicologia – Processos Comportamentais pela Universidade de Brasília, Doutorando em Farmacologia pela Universitat Autònoma de Barcelona e pesquisador do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos (NEIP). E-mail: banisteria@gmail.com

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SANTOS, R.G.; LANDEIRA-FERNANDEZ, J.; STRASSMAN, R.J.; MOTTA, V. & CRUZ, A.P.M. “Effects of Ayahuasca on psychometric measures of anxiety, panic-like and hopelessness in Santo Daime members.” Journal of Ethnopharmacology, 112(3), 2007, pp.507-513. SMITH, R.L.; CANTON, H.; BARRET, R.J. & SANDERS-BUSH, E. “Agonist properties of N, N-dimethyltryptamine at 5-HT2A and 5-HT2C serotonin receptors.” Pharmacol Biochem Behav, 61(3), 1998, pp.323-330. STARCEVIC, V. “Anxiety states: a review of conceptual and treatment issues.” Curr Opin Psychiatr, 19(1), 2006, pp.79-83. WIKINSKI, S. “Depression and anxiety: from clinic to pharmacological treatment.” Vertex, 15(57), 2004, pp.208-212.

Recebido em 17/02/2010 Aceito para publicação em 23/02/2010

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Acessos e Acordos: Como realizei minha pesquisa sobre as homenagens cariocas Danilo César SOUZA PINTO

Minha pesquisa de doutorado1 trata de uma prática corriqueira realizada pelo Estado: as homenagens públicas. As homenagens públicas pesquisadas referem-se às denominações de logradouros públicos e às entregas de honrarias e medalhas. A partir de uma etnografia realizada junto a Câmara Municipal e a Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro, investigou-se a dinâmica dessas homenagens, os atores e elementos envolvidos. Observou-se desde os trâmites burocráticos até os aspectos entendidos como sendo os “mais políticos” dessas homenagens. Um dos aspectos relevantes desses processos é que eles são tratados pelos próprios políticos como um trabalho irrelevante. Não obstante, os dados etnográficos mostram que essas atividades constituem a maioria dos projetos apresentados pelos parlamentares da Câmara, e que, ainda mais, alavancam disputas entre os poderes executivo e legislativo. Nas conversas realizadas com parlamentares, funcionários burocráticos da prefeitura e representantes de ONGs “fiscalizadoras” da política nota-se termos centrais para pensar essas práticas, tais como acordo e agrado. Esses termos parecem mostrar um caminho de interpretação para o elevado número dessas homenagens. Parece haver um acordo implícito na Câmara em que essas homenagens devem passar, isto é, serem em regra aprovados por servirem como agrados às bases ou outros segmentos da sociedade. Neste relato destacarei como foi minha chegada ao campo a um dos locais onde realizei a pesquisa.2 Iniciei minha pesquisa no Rio de Janeiro em março de 2009. Comecei a freqüentar a Câmara Municipal, suas sessões ordinárias e as concessões de honrarias que iam ocorrendo. Honrarias, segundo as legislações das câmaras municipais, são mercês concedidas pelo poder público como forma de gratidão a serviços prestados por cidadãos e organizações não-governamentais, por exemplo. São medalhas, diplomas de

honrarias são um subconjunto das homenagens realizadas pelas câmaras municipais e organizações do Estado em geral. Honrarias são basicamente as medalhas e diplomas de reconhecimento, enquanto as homenagens abarcam as denominações de logradouros, a 1

Agradeço à FAPESP pelo financiamento da pesquisa. Além das homenagens públicas cariocas, a pesquisa também se debruçou sobre as homenagens paulistanas e as brasilienses. 2

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reconhecimento e títulos de cidadão. Diferencio homenagens de honrarias, pois as

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instituição de datas comemorativas, a declaração de cidades-irmãs e de utilidade pública. A Câmara Municipal do Rio de Janeiro está localizada no Palácio Pedro Ernesto, nome de um antigo prefeito da cidade. O palácio localiza-se na Cinelândia. É um prédio antigo de estilo eclético, construído em 1923. Há no prédio carioca todo um controle daqueles que entram e saem do prédio. Deve-se entrar por uma porta lateral e apresentar um documento de identidade para poder circular em suas dependências. Os gabinetes dos vereadores encontram-se nos andares superiores ou no prédio anexo Edifício Marechal Eurico Gaspar Dutra, inaugurado em 1952. Além da entrada, a própria permanência no prédio também é vigiada. Os acessos a esses gabinetes são mais complicados e vigiados. Os seguranças parecem estar sempre atentos. Quando notei em um mural a propaganda de uma honraria (entrega de medalhas) ao Ministro da Justiça, Tarso Genro, não hesitei, saquei minha câmera fotográfica para fotografar o cartaz. Prontamente, fui abordado por um dos seguranças que queria saber o porquê da fotografia e foi logo me avisando que “na Câmara não se pode ficar tirando foto.” Eu expliquei a ele que estava tirando foto de um cartaz que divulgava a distribuição de uma honraria e que estava ali em razão de uma pesquisa. Ele consentiu a fotografia, mas reiterou que não se pode tirar fotos no interior da Câmara. Essa situação ilustra como se dá o relacionamento da segurança da Câmara com as pessoas que não são costumeiramente seus freqüentadores. Ao perceber pessoas diferentes com atitudes não convencionais, ou seja, circulando pela Câmara, aparentemente sem nenhum propósito, fica-se alerta. E nesse ambiente de circulação vigiada e restrita às Galerias Vereador Lysâneas Dias Maciel do plenário Teotônio Villela, eu passei quase três meses circulando, assistindo às diferentes sessões, mas sem conseguir nenhum contato, apenas observando à distância o desenrolar do cotidiano da Casa.3 Não via maneira de abordar parlamentares, pois o público deve se encaminhar às galerias durante as sessões e os parlamentares parecem estar sempre com pressa. Depois de uma conversa com um amigo antropólogo nascido e criado no Rio,

seu pai tinham relações de amizade com um assessor da Câmara, antigo colega de trabalho de seu pai. Esse amigo passou a intermediar um contato com esse assessor, que

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É comum os vereadores se referirem à Câmara Municipal, como Casa ou Casa do Povo o que denota, apesar de todas as diferenças entre os parlamentares algo que os une, afinal, todos pertencem a mesma Casa.

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mas que já algum tempo não mora mais na cidade, tudo mudou. Por coincidência ele e

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prontamente se disponibilizou a ajudar um amigo do amigo. Enfim, algumas portas se abriram. Intermediado por meu grande amigo, conheci Barbosa,4 ex-diretor de uma empresa que presta serviços públicos, funcionário da Câmara Municipal, sujeito que construiu toda uma carreira política transitando em diversos cargos, fundando inclusive um sindicato em conjunto com o pai de meu amigo. Marcamos após as 18 horas do dia 19 de maio de nos encontrarmos no Amarelinho, famoso bar ao lado da Câmara Municipal. Introduzi a conversa dizendo o que eu gostaria de pesquisar, as homenagens com suas denominações de logradouros e entrega de medalhas. Ele já foi assessor de um vereador de partido de esquerda, o qual afirma ser um dos poucos honestos da Casa, mas se afastou desse trabalho direto da Câmara, por sofrer grandes frustrações durante a elaboração da Lei Orgânica, onde não conseguir aprovar leis que eram intensamente discutidas com outros setores da sociedade. Foi me contando como ele via essas homenagens, como algo mesquinho na Câmara, um modo de cooptar eleitores. Citou o caso das menções honrosas (moções), que são distribuídos, por exemplo, no dia das mães a dezenas de mães que habitam o distrito eleitoral do vereador. Perguntado se ele realmente achava que isso dava votos para os vereadores, respondeu-me que “não é só isso, é que ocorre toda uma circunstância que vai sendo construída, com o vereador sempre aparecendo de alguma forma para seus eleitores, e isso era um algo mais, para cooptar principalmente aquelas pessoas que são muito simples, analfabetas, que ao receber uma carta dessas da Câmara passam a se sentirem importantes, guardam a carta, penduram na parede, sendo uma forma de mexer com o ego do eleitor.” Também menciona um dispositivo regimental, proposições autorizativas, uma excrescência jurídica em sua opinião, que permite ao vereador elaborar um documento, por exemplo, que solicita ao poder executivo que construa uma creche ou uma escola em determinado lugar e que essa obra receba dado nome. Não tem força de lei. O legislativo não pode gerar gastos para o executivo, mas isso pode ter dois usos. Se o vereador é da oposição ele utiliza essa propositura para mostrar para seus eleitores que ele propôs, mas o

ser feito, o vereador acaba ganhando mais créditos com a população, pois “foi ele quem propôs.” Conta o exemplo do vereador que ele assessorava e que queria homenagear um poeta popular, apresentando uma proposição autorizativa para a criação de uma praça

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Nome fictício.

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executivo não cumpriu; já para a situação serve como uma forma de, caso isso venha a

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com o nome do poeta. Quando o prefeito se licenciou e quem assumiu foi uma correligionária, o vereador conseguiu concretizar a homenagem, pois somado ao apoio da prefeita, o novo diretor do metrô (também correligionário do vereador), foi criada uma área ao lado de uma estação de metrô recém-construída, a referida praça e sua conseqüente denominação. E por várias vezes se refere às homenagens como fazendo parte da troca que ocorre na política. Ele disse que nunca quis participar de cargos comissionados para não ficar com o “rabo preso,” isto é, devendo favores que serão certamente cobrados pelos políticos. Entretanto também menciona que ajudou a eleger uma vereadora do PSDB que “nem pra falar obrigado prestou.” Um amigo jornalista pediu para ele apoiar a candidata, a qual lhe solicitou a elaboração de dois projetos e disse ainda que, se eleita, lhe daria um cargo de confiança. Barbosa disse não ficar interessado no cargo, pois sabe como é promessa de político, mas a ajudou por ter sido um pedido do amigo. Entretanto, ele se zanga com a ingratidão da candidata que se elegeu e “nem obrigado disse!” Na eleição seguinte, ao fazer campanha no seu bairro, Barbosa abordou a vereadora e disse “Lembra de mim? Eu sou o Barbosa que te ajudou, indicado pelo Teodoro5 a te eleger, a conseguir votos nesse bairro. E você nem lembra de mim! Nem veio me agradecer, não disse nem um obrigado.” Ele conta que ela ficou muito sem graça diante de sua abordagem. Sobre a minha pesquisa, minhas conversas com vereadores e funcionários da Câmara, ele pensa que seriam difíceis de serem realizadas sem um acesso,6 pelo receio que os vereadores e funcionários têm com a utilização da informação. Sendo assim, quando ele liga para o Otávio7 (outro amigo assessor) para me receber , diz que eu sou de confiança, sou um amigo de um grande amigo, não sou jornalista, sou um acadêmico que esta realizando uma pesquisa séria. Liga na minha frente para Otávio e marca uma conversa para o dia seguinte às onze da manhã. Disse que esse assessor gosta muito dele e se considera como devedor de favores a eles, embora ele não entenda isso, não sabe que favor é esse que lhe devem. Otávio me ajudou muito. Ele é assessor de plenário, tem todo um know-how

como dos modus operandi e códigos de conduta que podem ou não ser diferentes do 5

Nome fictício. O termo acesso foi usado por Kuschnir (2000) para designar tanto uma categoria nativa como analítica para descrever um modo de entrada em campo e efetivação da pesquisa. Em minha pesquisa observei o mesmo uso desse termo. 7 Nome fictício. 6

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sobre o que ele chama de funcionamento técnico, ou seja, entende tanto dos regimentos

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regimento. Os assessores trabalham ou como funcionários da Câmara ou como assessores de gabinete de vereadores. Neste caso, eles viram cargos comissionados. O Otávio está como assessor de um vereador e ao mesmo tempo ajudando um outro, a pedido de um amigo deputado. Diz que têm outros assessores de plenário a disposição, mas como os vereadores não querem pagar, isto é, admitir como cargo de confiança, ele está “dando uma mão,” ou seja, ajudando, pagando algum favor ao deputado, como ele deixou claro. Depois de minha conversa com Otávio, onde falamos sobre o funcionamento da Câmara, o cotidiano dos funcionários e dos parlamentares, sobre alguns casos específicos e, claro, sobre as homenagens do poder legislativo, Otávio abriu muitas portas, arrumou-me muitas conversas e entrevistas. Foi um verdadeiro acesso. Passou a agendar conversas com vários vereadores. A dinâmica era a seguinte: eu chegava à Câmara, ligava para Otávio e ele ia me trazendo vereadores à medida que os encontrava nos corredores. Eu aguardava na Sala Inglesa (situada na Ala José Bonifácio) ou na Sala do Cerimonial (situada na Ala Bobadela) enquanto os vereadores iam sendo apresentados um por um e sendo entrevistados, ora com gravação, ora sem gravação, dependendo da postura do vereador conforme eu perguntava se poderia gravar. Se ele titubeasse, eu não gravava; se respondesse prontamente que sim, eu ligava o gravador. Sendo assim, todo o meu contato e acesso com pessoas ligadas à Câmara Municipal do Rio de Janeiro seguiu a dinâmica da amizade. A amizade e/ou a troca de favores e gentilezas, geralmente as duas coisas concomitantemente, eram acionadas como justificativa para o meu acesso, para a ajuda que estavam me dando com os contatos na Casa. Sendo assim, Barbosa estava me ajudando porque estava fazendo um favor aos meus amigos, Otávio me ajudara por sua relação com Barbosa, os vereadores falaram comigo por pedido de Otávio, outros funcionários me receberam pela indicação de Otávio e de Barbosa. Era notório que essa era uma lógica que permeava não só o meu contato com os vereadores como também a relação entre eles e os funcionário da Casa. Desta forma, minhas conversas na Câmara começaram a fluir. Além dessas entrevistas prontamente agendadas, eu procurei seguir as dinâmicas das homenagens de variadas maneiras. Entrevistei funcionários da Câmara, uma das responsáveis pelo Cerimonial; segui o noticiário sobre a Câmara Municipal no site da Casa, os parlamentares em seus sites, blogs e twitter; li inúmeros Diários Oficiais da Câmara Municipal do Rio de Janeiro, e claro, acompanhei sessões ordinárias e solenes. Também

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entrevistei uma funcionária da prefeitura, uma das responsáveis pela seção em que uma das funções era trabalhar com denominação de logradouros. Esta foi a única entrevista em que não precisei de nenhum contato prévio, de um acesso, bastou uma ligação e uma explicação do que eu desejava e a conversa foi prontamente agendada. Em suma: procurei, à medida que me foram dadas as chances, imiscuir-me e acompanhar o trabalho dos parlamentares, observando seus trabalhos na Câmara, seu material próprio de divulgação, bem como toda a rede onde circula a informação sobre as homenagens da Câmara: os ditos, publicados e não-ditos. Sobre o interesse do antropólogo em comparação sobre o dito e o escrito, Goldman (2006, p.30) pensa que “o etnólogo se interessa sobretudo pelo que não é escrito, não tanto porque os povos que estuda são incapazes de escrever, como por que aquilo que se interessa é diferente de tudo o que os homens se preocupam habitualmente em fixar na pedra e no papel” e defende, amparado em Favret-Saada (1981) que nos documentos está a fala das elites. Os documentos são a fala da elite sobre si e sobre o povo, um discurso administrativo sobre este. Entretanto, ciente de que o trabalho do antropólogo geralmente recai especialmente sobre aquilo que não é escrito, acredito que pesquisas em organizações das sociedades ditas complexas, entre elas, o Estado, o qual produz grande quantidade de material escrito, deve levar muito em consideração aquilo que se escreve. Se quisermos levar a sério uma antropologia dos mecanismos estatais, também devemos nos debruçar sobre o que está escrito, principalmente quando podemos observar in loco, aquilo que é escrito e o que é omitido nos documentos. Uma antropologia do Estado e da Política (e dos políticos, ou seja, de uma elite) tem a vantagem de poder observar esses dois lados da moeda: a informação cristalizada em textos escritos, seja do Estado, seja dos políticos, bem como o processo de fabricação desses documentos escritos, observando o que é deixado de lado e o que é enfatizado no processo de fabricação de documentos e textos de divulgação. Isto deve reter especial atenção quando se fala sobre a Câmara dos Vereadores, pois em determinados momentos como as sessões públicas, muito do que se fala é registrado em papel e essas falas muitas vezes revelam processos e mecanismos que o senso comum ou um olhar enviesado sobre a política poderia supor estarem ocultos, apenas “nos bastidores,” quando na verdade estão ali, quase à mostra, para todos que tiverem a paciência de enfrentar entraves e desconfianças burocráticas no acesso a esses documentos. Digo deste modo porque todo o material impresso (Diário Oficial da Câmara Municipal do Rio de Janeiro) que consegui foi devido a um momento de sorte,

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um imponderável característico da pesquisa de campo. Explico melhor. Fui algumas vezes a Biblioteca da Câmara para ter acesso aos diários, entretanto, deparava-me com a má vontade de um funcionário em me trazer esses diários, pois me solicitava muitas informações como datas específicas e assuntos específicos,8 quando, na verdade, eu queria olhar a esmo, perambular pelos documentos primeiramente e ir descobrindo aos poucos o que iria me interessar. Também não poderia tirar cópias e nem levar nenhum deles para casa. Depois de algum tempo, voltei à biblioteca e expliquei o que eu gostaria de ver nos diários. O funcionário (não o mesmo das outras vezes) prontamente me trouxe uma pilha com os diários dos últimos dois meses e ainda disse que por ele estar num bom dia, deixar-me-ia levar quantos eu quisesse para casa, desde que estes não fossem os únicos exemplares disponíveis. E frisou: “esse não é um procedimento habitual. Se você voltar aqui outro dia, pode ser que não consiga levá-los para sua casa. Mas hoje eu estou feliz e fui com a sua cara.” E assim o seu bom dia também virou o meu, pois consegui levar muitos diários para casa e examiná-los com muita calma e consideração. Minha etnografia das homenagens da Câmara consistiu em visitas em horário de expediente, durante um considerável período de tempo (quatro meses), além de acompanhar informações por onde quer que aparecessem em publicações (na internet e nos jornais). Infelizmente, não consegui acesso para acompanhar o cotidiano de um parlamentar específico durante algum período de tempo. Dessa forma, concentrei-me na dinâmica das relações entre eles a partir do que observava na Câmara e também do que me foi dito por eles, assessores e outros funcionários da Câmara e da Prefeitura. Acredito que esse modo de fazer etnografia, devido inclusive as peculiaridades de acesso ao campo, suas dificuldades intrínsecas de acesso, mas também seu caráter de momentos públicos se enquadra bem no que Goldman (2006, p.24) chama de “etnografia em movimento,” caracterizada por “um envolvimento cumulativo e de longo prazo.” Embora minha ida a campo (no Rio de Janeiro) tenha se concentrado em quatro meses, eu ainda acompanho de certa forma os acontecimentos sobre homenagens

tive nenhuma fonte de informações que sobrepujasse outra, acredito que esse trabalho 8

Situação muito semelhante às vividas por muitos brasileiros quando se deparam com a burocracia, com funcionários mal humorados e não conhecidos, que dificultam o acesso a documentos sempre exigindo mais e mais documentos. Situações como essa, eu descrevo em Souza Pinto (2007). Para uma abordagem um tanto diferente, ver DaMatta. (1979) e (1984).

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no Rio, mantenho meus contatos e persigo as informações publicadas. Como ainda não

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pode ainda ser mais ilustrado com o que Goldman chama de ‘catar folha’ no candomblé, uma boa imagem para se descrever o que seria o trabalho etnográfico: “alguém que deve aprender os meandros do culto deve logo perder as esperanças de receber ensinamentos prontos e acabados de algum mestre; ao contrário, deve ir reunindo (‘catando’) pacientemente ao longo dos anos, os detalhes que recolhe aqui e ali (as ‘folhas’) com a esperança de que, em algum momento, um esboço plausível de síntese será produzido.” (idem, p.24) Ainda sobre as peculiaridades desse ambiente de pesquisa, embora, a priori, decidamos dar o mesmo valor a todas as histórias que escutamos, a própria segmentação do campo político em que pesquisei, acaba obrigando, de certa forma, a uma mesma segmentaridade9 às pessoas que conversamos. Embora tenha conversado com mais vereadores que possam ser considerados de esquerda e de centro, acredito que de certa forma as informações e dinâmicas captadas possam ser, de alguma forma, generalizadas no que se refere ao caráter específico das homenagens. Tentarei alhures demonstrar que, não obstante meu acesso tenha se dado com vereadores mais ideológicos (no que se refere às entrevistas), a dinâmica também pode ser estendida ao que se convencionou chamar de vereadores assistencialistas, mesmo porque utilizo variadas fontes de pesquisa e nestas não há distinção quanto ao acesso se compararmos os ideológicos e os distritais. Essa divisão entre vereadores assistencialistas e ideológicos deve-se a Kuschnir (1999), onde ela divide os vereadores nessas duas categorias segundo algumas peculiaridades de cada grupo. O vereador assistencialista seria pautado como patrono, benfeitor e pelos seus préstimos como assistência à população, além de terem seus votos mais concentrados em distritos; já os ideológicos seriam pautados com valores como trabalho e vistos como porta-vozes de grupos, enquanto seus votos seriam mais espalhados pela cidade e/ou concentrados nas zonas centrais e sul da cidade. Nesse sentido (e ainda que esse não seja o caso de Kuschnir), os últimos seriam o ideal no que se refere a uma ideologia democrática e burguesa, já os primeiros seriam, muitas vezes, analisados por jornais ou pelo mainstream da ciência política como conseqüência de

população sem informação e formação educacional adequadas, falta de tradição democrática e organização em partidos sólidos, etc. Minha leitura sobre o acordo em 9

Sobre a segmentaridade como um aspecto universal da vida política, ver Goldman (2006:143): “Na verdade, a segmentação representa um dos modelos de ‘relatividade social’ acionados em qualquer sociedade: a segmentação é o arranjo relativo das alianças políticas de acordo com critérios genealógicos, ou outros, de distancia social entre grupos em disputa.” (apud Herzfeld 1987: 156 – grifos de Goldman).

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alguma falta, isto é, sistema eleitoral e de governo com falta de racionalidade,

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torno das homenagens, de certa forma, dissolve essa tipologia por se debruçar por um aspecto onde ideológicos e assistencialistas não se diferenciam muito, pois embora possam apresentar diferenças significativas entre os tipos de grupos homenageados, há aspectos intrínsecos às homenagens que são inescapáveis aos dois grupos, já que na prática isso não altera significativamente o modo de aprovação desses projetos, visto que os vereadores costumam assinar10 os projetos que lhe são pedidos, pois prezam o bom trânsito, assina-se projetos de colegas, garantindo que terão o mesmo tratamento por parte destes. Há um sentimento entre os vereadores de mútua dependência. Ter bom trânsito, “não ser radical,” “saber fazer acordos” são habilidades valorizadas internamente. Sabese que para se ter assinaturas de apoiamento ou para se ter um mínimo de votos para aprovação, os vereadores devem ser hábeis em fazer acordos. E aqui a reciprocidade tem grande papel: um voto numa matéria importante geralmente significa retribuição para uma matéria de igual relevância, embora o cálculo de relevância varie segundo as opiniões dos vereadores implicados nesse circuito de reciprocidade. Assinaturas de apoiamento para os colegas implica em retribuição dessas assinaturas. Sendo assim, observa-se grande número de proposições de honrarias sendo aprovadas, sem nenhuma discussão, pois o que está acordado deve ser aprovado. O acordo parece ser um dos códigos que balizam as relações entre os parlamentares. Além dos partidos políticos, a formação de blocos em torno de lideranças, a posição relativa ao Executivo (situação/oposição), o acordo dependendo do contexto serve para exprimir as tomadas de decisões. Dentro de uma perspectiva que olha para a pragmática dos parlamentares, que tenta a elaboração de uma grade de inteligibilidade que permita compreender um pouco mais sobre o funcionamento de mecanismos acionados pelos políticos, o acordo opera num código que justifica tomadas de posição e orienta a ação dos vereadores. O acordo pode significar a costura de uma aliança momentânea em torno de uma proposição como também pode significar o compromisso tácito que informa que determinadas matérias não devem ser discutidas

ação dos vereadores, o acordo, principalmente o tácito que conforma unanimidades, expressa de forma esclarecedora a interdependência interna e um certo espírito de corpo

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Há um acordo entre os vereadores para que sejam aprovados, sem discussão, todos os projetos que se referem a homenagens. Entretanto, para a proposição dessas homenagens, os vereadores devem recolher entre seus pares assinaturas de apoiamento.

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e sim aprovadas por unanimidade. Ou seja, dentre os diversos códigos que orientam a

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que há entre os vereadores. A quebra desses acordos expressa momentos de confronto, principalmente por disputas que não envolvem diretamente a matéria do acordo tácito das votações simbólicas, demonstram conflitos que saíram dos bastidores, da Sala Inglesa e que irromperam o espaço público da Plenária Teotônio Villela.

Danilo César Souza Pinto Doutorando em Antropologia Social Mestre e Graduado em Ciências Sociais Universidade Federal de São Carlos E-mail: bragacso@yahoo.com.br

Referências bibliográficas

DAMATTA, Roberto. Carnavais, Malandros e Heróis. Rio de Janeiro: Rocco. 1997 [1979]. 350 p. ______. A Casa e a Rua. Rio de Janeiro: Rocco. 2000 [1984]. 163 p. FAVRET-SAADA, Jeanne. “Sorcières et Lumières”. In FAVRET-SAADA e CONTRERAS. Corps pour corps. Paris: Gallimard, 1981, pp. 333-363. GOLDMAN, Márcio. Como funciona a democracia: uma teoria etnográfica da política. Rio de Janeiro: Sette Letras. 2006. 367 p. HERZFELD, Michael. Anthropology Through the Looking Glass. Critical Etnography in the Margins of Europe. New York/Cambridge: Cambridge University Press, 1987. 245 p. KUSCHNIR, Karina. Eleições e representação no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Relume-Dumará / NuAP - Coleção Antropologia da Política. 1999. 95 p. ______. O Cotidiano da Política, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 2000. 162 p. SOUZA PINTO, Danilo César. A Burocracia vista do cartório: uma análise antropológica da burocracia estatal. Dissertação (mestrado) – Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, Universidade Federal de São Carlos. 2007.

Recebido em 26/01/2010 Aceito para publicação em 04/03/2010

Relatos de Pesquisas

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Um debate sobre o PCC: Entrevista com Camila Nunes DIAS, Gabriel de Santis FELTRAN, Adalton MARQUES e Karina BIONDI

Bruno Paes MANSO1

Nota do Editor: Em 24/01/2010, o Caderno Metrópole do jornal O Estado de São Paulo publicou parcialmente uma entrevista realizada pelo repórter – e doutorando em Ciência Política na USP – Bruno Paes Manso a quatro jovens pesquisadores sobre o Primeiro Comando da Capital.2 Embora esta entrevista fosse inicialmente destinada ao público leitor do jornal, o denso debate suscitado entre os pesquisadores teve como produto respostas com um forte teor teóricometodológico, indissociável dos dados que cada um vem coletando. Por essa razão, propomos aos pesquisadores – que aceitaram prontamente – que a entrevista fosse publicada na íntegra nesta edição da r@u. Pretendemos, com isso, disponibilizar ao público acadêmico o debate em torno de um assunto tão presente na vida dos moradores de São Paulo: o Primeiro Comando da Capital.

1) Por que vocês quiseram estudar o PCC e como o trabalho se tornou viável?

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Gabriel - Sinceramente, eu nunca quis estudar violência, crime ou PCC. Sou um pesquisador das periferias urbanas - estudo as transformações desses territórios, as relações com o Estado, os movimentos sociais, associações de bairro, famílias etc. O problema é que a questão da violência e do crime - e mais recentemente do PCC - atravessou as histórias de vida das pessoas com quem eu convivo em pesquisa. Tenho muitos conhecidos que perderam maridos, filhos, irmãos assassinados nos anos 1990. Outros tantos que vivem de atividades ilícitas e, por vezes, violentas. Não foi possível desviar do tema. E todos eles relataram mudança importante nessa dinâmica a partir da aparição do PCC nos territórios. Isso me interessou e, a certa altura, estava metido nessa discussão mesmo sem querer. Sigo sentindo isso, aliás.

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Camila – Eu já estudava o sistema prisional e já vinha percebendo a crescente influência no PCC no cotidiano das unidades prisionais3 e, quando ocorreram os chamados “ataques de 2006” achei que era um fenômeno muito importante, Bruno Paes Manso possui graduação em economia na FEA-USP e atualmente cursa doutorado em Ciência Política na USP, onde defendeu mestrado sobre homicídios em SP. Escreveu o livro O Homem X - uma reportagem sobre a alma do assassino em São Paulo (Ed. Record - 2005). 2 Entrevista disponibilizada integralmente no blog Crimes no Brasil (http://blogs.estadao.com.br/crimesno-brasil/). 3 DIAS, Camila Caldeira Nunes. 2008. A igreja como refúgio e a Bíblia como esconderijo: religião e violência na prisão. São Paulo: Humanitas.

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jamais visto antes e que era preciso tentar compreendê-lo. Para tornar a pesquisa viável eu precisei pedir autorização para a Secretaria de Administração Prisional – uma vez que meu foco é o sistema carcerário – que o fez e conversar com os diretores das unidades em que a pesquisa foi realizada. Acho que tive sorte neste sentido, pois sei que têm diretores que dificultam a realização desse tipo de trabalho em decorrência das “normas de segurança.” No meu caso, entretanto, diretores e a maioria dos funcionários foram essenciais e colaboraram muito com o trabalho, ao permitir a realização das entrevistas com os presos com absoluta privacidade e com o tempo que fosse necessário para tal, dispensandome toda atenção que era possível nas minhas permanências na unidade por longos períodos de tempo – eu ficava semanas inteiras, das 7h - as 17 horas nas penitenciárias -, e também me ajudando na identificação dos presos que eram entrevistados, de acordo com o perfil que eu desejava conversar: o piloto, o irmão, o faxina, os excluídos, os mais velhos, os que estavam no seguro etc. Seria impossível eu identificar esses perfis para entrevistar sem a colaboração dos funcionários. Além disso, obviamente que eu devo à confiança depositada em mim, pelos entrevistados que, sejam membros ou não do PCC, poderiam ter todos os motivos para não falar de assuntos um tanto complexos e delicados com uma estranha. No entanto, a grande maioria colaborou muito e pudemos estabelecer, mais do que “entrevistas,” longos diálogos, onde muitas das experiências, vivências, conhecimentos e também, dos sonhos e esperanças destes sujeitos, me foram passados. Importante também enfatizar a necessidade da honestidade e respeito do pesquisador: por exemplo, sempre deixei muito claro que aquela entrevista não iria ajudá-lo em nada (nos seus processos) e nem atrapalhá-lo, uma vez seu nome ou fatos que o identificassem não seriam mencionados, explicando do que se tratava a pesquisa e quais eram os objetivos da mesma.

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BIONDI, Karina. 2006. “Tecendo as tramas do significado: As facções prisionais enquanto organizações fundantes de padrões sociais.” In: GROSSI, M. P., HEILBORN, M. L., MACHADO, L. Z. (orgs.). Antropologia e Direitos Humanos 4. Florianópolis: Nova Letra, p. 303-350.

Entrevista

Artigos

Karina – Em 2003, quando meu marido foi preso, eu já era estudante de graduação em Ciências Sociais na USP. Depois de alguns meses, sob o incentivo do Prof. José Guilherme Magnani, decidi transformar a experiência involuntária à que fui submetida em instrumento para uma pesquisa sobre instituições prisionais. À época, ainda não era meu interesse estudar o PCC, mas para onde eu olhava, via-o em funcionamento. O estudo do PCC decorreu de uma impossibilidade de estudar uma instituição prisional sem falar do PCC. Todos os aspectos das vidas dos prisioneiros que por lá passaram estavam permeados, em maior ou menor intensidade, pelo fenômeno-PCC. A pesquisa que realizei durante a graduação foi premiada pela Associação Brasileira de Antropologia e publicada em uma coletânea organizada pela mesma.4 Naquele texto, a sigla PCC não aparece, embora seja dele que eu estivesse falando. Eu só me senti confortável a mencioná-la após enviar um exemplar daquele trabalho para que

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os presos pudessem ler e avaliar que minhas intenções não eram as de investigar crimes ou delatar pessoas. Com sua anuência, pude então me debruçar especificamente sobre o PCC em pesquisa de mestrado, que só foi viabilizada graças ao apoio de meu orientador, Prof. Jorge Luiz Mattar Villela. Adalton – Em 2004, ainda na graduação, iniciei uma pesquisa sobre conversão religiosa na prisão. Logo nas primeiras conversas que tive com ex-presidiários percebi que a noção “proceder” lhes era central para descrever suas experiências prisionais, fossem relacionadas às conversões, às visitas, às trocas materiais, às avaliações de condutas e de posturas, às considerações sobre crimes cometidos ou às definições de punição aos presos que “não tinham proceder.” A propósito, me chamou a atenção o fato de que a palavra “proceder” raramente era utilizada como verbo, indicando ações. Quase sempre era utilizada como atributo (“esse cara tem proceder,” “o proceder desse verme é zero”) ou como substantivo (“o proceder”). Quando me dei conta, já estava muito mais preocupado com essa categoria do que com as conversões religiosas. O PCC também me apareceu logo nessas primeiras conversas. Era difícil um ex-presidiário não marcar diferenças entre o “proceder do PCC” e o “proceder das antigas” ou o “proceder” de outros “comandos.” A partir de então, procurei perseguir essas diferenças e os desdobramentos que elas provocaram em minha pesquisa inicial.5

2) Quais foram as maiores dificuldades?

Artigos

Gabriel - Me perguntam muito isso, pressupondo que faço um trabalho de campo “perigoso,” quase uma “aventura.” Não é. Em minha opinião não é mais difícil estudar o crime ou a violência do que qualquer outro tema. No nosso tipo de pesquisa, a etnografia, estamos encontrando pessoas e conversando sobre as vidas delas durante períodos de tempo longos; convivemos com as pessoas, assim não nos preocupamos em “arrancar” informações delas, como se não fôssemos encontrá-las nunca mais. É todo o contrário, da convivência cotidiana e do método as informações aparecem. Como em qualquer relação, o fundamental é ter respeito. E como em qualquer pesquisa, é preciso ter rigor e método. Assim se pode pesquisar qualquer tema em ciências sociais. A maior dificuldade, na verdade, é conseguir fazer isso – falar como deve ser, como faço aqui, é sempre mais fácil.

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MARQUES, Adalton. 2006. “Proceder”: “o certo pelo certo” no mundo prisional. Monografia (Graduação em Sociologia e Política). Escola de Sociologia e Política de São Paulo.

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Karina: Geralmente as pessoas me perguntam a respeito das dificuldades, pensando que eu estaria submetida a algum risco ao estudar criminosos. Eu nunca tive esse tipo de problema, também porque sempre contei com a ajuda de meu marido que, sem ser membro do PCC, nunca economizou esforços para

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Adalton – Em determinado momento de minha pesquisa, vi-me com dados etnográficos que produzi a partir de escolhas teóricas (que são escolhas políticas). Essa situação me colocou duas grandes dificuldades, exatamente porque eu não queria escrever uma dissertação que trouxesse ao final de cada parágrafo o endosso de um grande autor; geralmente um endosso exógeno às relações de meus interlocutores. A primeira dificuldade foi intensificar as descrições sobre as relações de meus interlocutores nos instantes em que parecia inevitável a citação mágica (porque exógena) de um grande autor. Elas parecem ajudar na explicação, mas quase sempre interrompem o que há de mais importante nos dados etnográficos: um novo modo de explicar. A segunda dificuldade, foi explicitar essa estratégia metodológica e dizer que poderia ser proficiente não ceder espaços para teorias externas durante a descrição das relações que eu estudava.

3) Por que em São Paulo, ao contrário do Rio, os trabalhos sobre crime organizado são mais escassos? Gabriel – Há autores muito importantes nas duas cidades – Michel Misse, Alba Zaluar, Machado da Silva, entre outros no Rio, e Sérgio Adorno, Robert Cabanes e Vera Telles em São Paulo, para citar poucos. O fato é que as dinâmicas da violência e do crime são muito distintas no Rio e em São Paulo, muito mais do que se pensa. E elas também têm também temporalidades distintas. Creio que essa é a principal causa pela qual a produção acadêmica sobre os temas ter perfis também muito distintos nas duas cidades. Mas há outras causas: uma pouco comentada é que em São Paulo os movimentos sociais

Entrevista

Artigos

tornar minha pesquisa viável. É claro que, como toda pesquisa, me deparei com algumas dificuldades. A maioria delas foi teórico-metodológica. Por exemplo, no que diz respeito a uma pesquisa de campo pouco ortodoxa, que não se fixava em um só lugar. Mas ao contrário de constituir obstáculo, as freqüentes transferências de unidade prisional a que meu marido era submetido potencializavam a pesquisa, pois se por um lado permitia que eu visse o PCC sendo operado em diferentes lugares, pude também enxergar as diferenças que se manifestam no interior do PCC, pois seu funcionamento se dava de maneiras diferentes em cada prisão que eu conhecia. Na dissertação, exponho muitas outras dificuldades que encontrei no meu caminho, mas a principal, sem dúvida, está ligada a uma preferência teórico-metodológica que prioriza as falas, as práticas e reflexões das pessoas que estudo. É muito difícil vencer a tentação de tentar impor alguma ordem exógena ao que eles dizem/fazem/pensam e lutar contra vícios de pensamento que pertencem ao pesquisador e não aos pesquisados. Mas só com a superação desses vícios e tentações é possível acessar a riqueza que o objeto de pesquisa apresenta.

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das periferias urbanas foram muito mais expressivos que no Rio, e sua tematização acadêmica foi enorme desde os anos 1980. Isso de certa forma ocultou o problema do crime e da violência naqueles territórios - julgava-se que a democratização política inseriria os pobres na representação política, por via dos movimentos sociais, e isso geraria distribuição de renda e integração social. A diminuição da violência seria caudatária desse processo, e portanto o tema da violência seria menos importante que o dos movimentos sociais. No Rio isso não ocorreu, e talvez por isso a produção carioca sobre crime e violência tenha saído muito na frente. Atualmente há pesquisadores jovens, nas duas cidades, fazendo trabalhos fantásticos sobre esses temas, e com grande interlocução.

4) É possível dimensionar o tamanho e a influência do PCC? Quantos integrantes existem? Eles têm influências sobre quantas prisões? Karina - De acordo com minha pesquisa, o PCC está presente na grande maioria das instituições prisionais paulistas, mesmo em prisões que, eventualmente, não conta com a presença de “irmãos” (seus membros batizados). Narrei um desses casos em minha dissertação6, um Centro de Detenção Provisória recéminaugurado que foi conquistado para o PCC por presos que não eram seus membros. O número de “irmãos” é desconhecido até por eles próprios. Surpreender-me-ia saber que algum deles tem esse controle, já que um “irmão” sequer conhece todos os seus outros “irmãos.” O PCC, como procuro descrever em minha dissertação, não se restringe à soma de “irmãos;” é um fenômeno muito mais amplo, complexo e, sobretudo, múltiplo.

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BIONDI, Karina. Junto e Misturado: Imanência e Transcendência no PCC. 2009. Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de São Carlos.

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Camila – É muito difícil dimensionar o tamanho do PCC, mas de acordo com minha pesquisa, realizada em unidades prisionais, com entrevistas com diretores, funcionários e presos, o PCC tem influência em cerca de 90% das 147 prisões paulistas. Essa influência é um tanto quanto diversificada em cada uma das unidades, a depender das relações que se estabelece com a administração do local, na qual se estabelecem seus limites. No Estado inteiro há cerca de 6 ou 7 unidades aproximadamente, que são controladas por outros grupos ou que são chamadas “neutras” designando, assim, a inexistência das chamadas “facções.” Essas unidades, contudo, não permitem a entrada de presos que pertencem às facções e para elas são transferidos os presos que anteriormente ficavam no “seguro.” Ou seja, se um preso que se encontra numa penitenciária controlada pelo PCC sente-se ameaçado e pede “seguro,” ele provavelmente será transferido para uma dessas unidades “neutras” que são, de fato, unidades de “seguro,” tal como a definem diretores e os presos que nelas se encontram. Enfim, excetuando-se essas unidades e umas poucas controladas por outras facções, as demais se encontram sob a influência – maior ou menor – do PCC.

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Gabriel – Do lado de fora das prisões a lógica é exatamente a mesma. Ouço relatos de que “agora é tudo PCC,” referindo-se ao “mundo do crime” nas periferias há alguns anos. Mas quando vamos olhar os detalhes, aparecem situações curiosas. Por vezes, como diz a Karina, o PCC está mesmo onde não há um “irmão.” Por exemplo, um ponto de venda de maconha e cocaína, numa das favelas em que estudo, não é gerenciado por nenhum “irmão” (os outros pontos são). No entanto, quem gerencia esse ponto, uma pessoa respeitada na favela, lida bem com a presença do PCC e diz também concordar com “a lei” dos “irmãos.” Não saberia dizer o quanto casos como esse são freqüentes, e também me surpreenderia se alguém soubesse fazê-lo, mesmo entre os integrantes da facção. Adalton – Considero um equívoco pensar o PCC a partir de quantificação dos “batizados,” bem como de mensuração da extensão dos efeitos provocados por suas ações. Definitivamente, o PCC não é isso! O PCC não é somente um aglomerado de membros e de ações. Antes, se trata de um conjunto singular de enunciados, forte (o que não quer dizer necessariamente violento) o bastante para afirmar a “paz dos ladrões” – “ladrões” são aqueles “considerados” como tais, é claro – e a “disposição pra bater de frente com os polícia” e “pra quebrar cadeia, pra fugir.” Imprescindível dizer que a efetuação dessas coisas não depende da presença de um “batizado.” Portanto, as ações dos membros do PCC não são condições necessárias para a atualização do PCC.

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Em minha dissertação7 arrisco os mesmos 90% afirmados por Camila – Karina também teve essa impressão em seu campo. Contudo, entendo que, mais decisivo que a mensuração de extensões, é perceber que isso que se chama PCC se efetua nos quatros cantos da cidade, onde se fala e se escuta, por exemplo, as já clássicas expressões “veja bem, fulano,” “[en]tendeu?” e “sumemo” (isso mesmo). Esse modo específico de travar conversas é uma marca registrada do PCC, que substitui os “palavrões” e as ofensas banais por um novo jargão “do crime,” especialmente preocupado com as “palavras,” exatamente por saber da veracidade do dito popular “peixe morre pela boca.” Um último ponto. Esse modo de travar conversas é efetuado também por crianças de 7, 8, 9 anos, que já sabem que não devem mandar seus colegas “tomar no cu”. Já preferem dizer: “Veja bem, fulano, essa fita não tá certa. Vamo debater essa fita.”

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5) Qual o papel do PCC nos dias de hoje?

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MARQUES, Adalton. Crime, proceder, convívio-seguro. Um experimento antropológico a partir de relações entre ladrões. 2010. Dissertação de Mestrado apresentada à Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.

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Karina - Minha pesquisa de campo dentro de algumas prisões revelou que o PCC tem dois grandes papéis ali: ao mesmo tempo em que regula a relação entre

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os prisioneiros, é uma instância representativa da população carcerária frente ao corpo de funcionários das prisões. Gabriel – Minha pesquisa tem mostrado que, fora das prisões, e muito especificamente em algumas regiões das periferias urbanas, o PCC tem um papel de regulação das normas de conduta internas ao “mundo do crime,” que em algumas favelas também operam como regra geral de conduta. Nesses espaços, os “irmãos” são percebidos como uma instância regradora – que pode gerar medo, porque tem acesso à violência letal – mas à qual se pode recorrer no caso de injustiças sofridas. A depender da situação de injustiça experimentada, se pode recorrer ao Estado, a uma igreja, à imprensa, ou aos “irmãos.”

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Adalton – Entendo que o papel do PCC, nos dias de hoje, está intimamente ligado à manutenção do que compreendem por “Paz,” “Justiça,” “Liberdade” e “Igualdade.” As forças despendidas para assegurar esses valores passam pela efetuação de suas duas políticas centrais. A primeira consiste em esforços para estabelecer a “paz entre os ladrões,” a “união do crime,” acabar com a matança que tinha lugar no “mundo do crime,” fazer com que os “ladrões” sejam “de igual.” A segunda se divide em duas frentes: 1ª) “bater de frente com os polícia” – categoria que abarca policiais, agentes prisionais, diretores e outros operadores do Estado – a fim de protestar contra a situação imposta aos presos, considerada “injusta” por eles; 2ª) “quebrar cadeia,” manter ativa a “disposição” (“apetite”) para fugir, enfim, cultivar a vontade de “liberdade.”

6) Quais as principais mudanças que aconteceram ao longo dos anos? Karina – O sistema prisional do Estado de São Paulo sofreu um crescimento vertiginoso durante as décadas de 1990 e de 2000. O número de presos, bem como o número de unidades prisionais triplicou nos últimos 20 anos. Mas o impacto visual dessa política de encarceramento em massa foi amenizado por um processo de pulverização dessa população, com a construção de prisões em regiões mais afastadas dos centros urbanos. Acompanhando essa política estatal, vimos também mudanças na política operada pelos prisioneiros. As pessoas costumam utilizar o termo “política” se referindo à política partidária, mas utilizo-o aqui de forma mais ampla, para me referir ao modo como os prisioneiros conduzem suas existências e suas lutas. Minha pesquisa aponta para duas mudanças fundamentais nessa política operada pelos prisioneiros: uma

Entrevista

Artigos

Camila – dentro das prisões entendo que o PCC exerce um papel muito similar ao apontado pelo Gabriel, para o caso da periferia. Constitui-se como instância reguladora, não só na relação presos/administração prisional, mas, sobretudo, na relação entre a população carcerária, intervindo diretamente na resolução de conflitos e exercendo o papel de árbitro e juiz, inclusive impondo punições, quando se considera que seja o caso.

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relacionada ao nascimento e expansão do PCC e outra a uma revolução interna, a introdução do “ideal de igualdade” em seu lema e suas práticas.

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Adalton – Houve uma mudança decisiva entre o final do ano de 2002 e o início de 2003. Geléião e Césinha, os dois últimos “fundadores” vivos, foram “escorraçados” – essa é a palavra utilizada – pelos “presos” e mandados para o “seguro.” Segundo se diz, os “presos” perceberam que estavam sendo “extorquidos” e “lagarteados” – tornar-se “lagarto” de alguém é o mesmo que permanecer sob seu jugo, convertendo-se em mero instrumento de sua vontade – pelos dois e reagiram ao estado de coisas então vigente. Diz-se, também, que Marcola teve um papel decisivo, tanto para mostrar aos “presos” a situação a que se submetiam, quanto na “guerra” travada contra os dois “fundadores.” É comum ouvir de meus interlocutores que Marcola “bateu de frente” com os “fundadores” e recebeu “apoio total da população carcerária.” Esse acontecimento, segundo meus interlocutores, foi decisivo para “o PCC aprender com os erros do passado.” Desde então, conforme compreendem, foi extirpada a posição política “fundador,” bem como a figura de “general” – última variação de mando no seio desse coletivo –, pondo fim à diferença imensurável (infinita,

Entrevista

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Camila- Entendo que está perguntando as mudanças no PCC ao longo dos anos. Do meu ponto de vista o PCC mudou bastante. Para responder de forma mais sintética, eu diria que houve uma racionalização do seu modo de operar. Nos primeiros anos de sua existência, quando havia ainda a necessidade de expansão e “conquista” de territórios, além do discurso de necessidade de união da população carcerária para lutar contra a opressão do Estado, era necessária a imposição de seu domínio a partir da demonstração da violência explícita contra aqueles que rejeitavam ou eram recalcitrantes em aceitar esse domínio. Por isso, na década de 1990 – até o início dos anos 2000 – assistia-se cenas grotescas de violência no sistema carcerário, muitas delas protagonizadas pelo PCC que fazia questão de explicitar a sua capacidade de imposição da violência física, especialmente durante as muitas rebeliões ocorridas no período. Essa explicitação da violência era importante para demonstrar o seu poder para os presos e também para o Estado. A partir de 2003, 2004, o PCC alcança uma relativa hegemonia no sistema prisional – e, talvez, em algumas atividades fora dele – o que torna o exercício expressivo da violência física, como forma de punição aos “traidores,” desnecessária. Ou seja, não era mais preciso demonstrar publicamente sua capacidade de imposição da violência física, uma vez que o PCC já tinha seu domínio consolidado na ampla maioria das prisões paulistas, e não havia mais “rivais” a serem combatidos. Era possível, portanto, “gerenciar” a população carcerária – que já havia “aderido” às novas regras vigentes no sistema prisional - a partir de formas menos violentas, inclusive com o estabelecimento de instâncias de diálogo, debate e participação nas decisões que envolviam não apenas a cúpula, mas os diversos segmentos que compõem o PCC, além de alguns presos que não fazem parte do grupo.

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portanto) que os separavam dos “irmãos” (para não falar dos “primos.”) Desde então, está dito que não mais pode haver diferenças absolutas entre os relacionados ao PCC – antiga prerrogativas dos “fundadores” –, mas somente diferenças de “caminhadas” – entre “pilotos,” “irmãos” e “primos.” Esse é o movimento político guardado na adição da quarta orientação basilar do programa do PCC: “Igualdade.” Trata-se de uma renovação profunda do antigo lema, que trazia três princípios fundamentais: “Paz, Justiça e Liberdade.” Enfim, de acordo com essa nova diretriz, as diferenças de “caminhada” não podem mais ser confundidas com quaisquer relações de mando. Todos os presos de “cadeias do PCC,” sem exceções, devem ser efetuações do signo “de igual.” Esse acontecimento, sem dúvidas, se trata de uma re-fundação do PCC.

7) Marcola, apontado como liderança do PCC, exerce realmente essa função? O que mudou no PCC com a saída de Geléião e chegada do Marcola?

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Camila – Na minha concepção, a ascensão de Marcola coincidiu com o momento em que o PCC conquista a hegemonia e estabilidade nos locais onde exerce seu controle, o que permitiu o processo de racionalização citado na pergunta anterior. Acredito, no entanto, que o Marcola teve uma importante influência nesta mudança no PCC a partir da priorização de formas mais racionais de “controle,” com menos recurso à violência e a difusão de instâncias de participação, a fim de conferir mais legitimidade ao domínio do PCC, buscando a adesão e a manutenção desta adesão dos membros ou “simpatizantes” a partir desta nova forma de ação – supostamente mais democrática - e não mais pelo medo ou ameaça. Adalton – Se ousarmos ceder, ao menos por um instante, ao ponto de vista dos “ladrões,” perceberemos o quanto lhes é detestável aquele que “quer mandar,” comumente chamado de “bandidão.” Marcola, ao contrário dos “bandidões,” é considerado “de igual” por meus interlocutores. É “respeitado” por todos interlocutores com quem tive contato porque é considerado “humilde” e por que se mostrou “cabuloso” todas as vezes que foi preciso (quando “bateu de frente” com Geléião e Césinha, por exemplo).

Entrevista

Artigos

Karina - Não só Marcola não exerce, como não existe no PCC uma forma de liderança que pressuponha uma hierarquia piramidal, uma estrutura rígida ou formas de mando e obediência. Isso justamente porque, com a saída do Geleião, Marcola promoveu a inserção da “igualdade” ao lema e às práticas do PCC que, com isso, sofreu profundas transformações, dentre elas a extinção de lideranças que exerceriam poder sobre os demais integrantes. Essas transformações – que não param de se transformar – são como antídotos a quaisquer manifestações de mando ou de qualquer relação que venha a ferir o princípio de “igualdade.”

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Nesse sentido, o posto que lhe é atribuído pela grande mídia – “Líder máximo do PCC” – não encontra sentido nas práticas cotidianas dos presos. Trata-se de um grande equívoco. Se os presos obedecessem a uma Liderança desse tipo (do tipo que manda), segundo seus próprios pontos de vista, converter-se-iam em “lagartos!” Basta saber o que aconteceu com tantos outros presos que quiseram ascender à posição de mando, inclusive alguns “fundadores” do PCC: morreram ou foram “escorraçados.”

8) Como funciona o PCC? Como as ordens chegam das lideranças até os linhas de frente? Como podemos hierarquizar o PCC?

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Camila: O PCC possui uma hierarquia que não é de tipo “piramidal.” Até onde pude compreender, há uma “cúpula” que figura como instância máxima e que conta com cerca de 18 membros e que são chamados de “finais.” Abaixo deles há as “torres,” que controlam grandes áreas, geralmente divididas a partir do código DDD; abaixo das “torres” essa grande área é dividida e essa divisão será de acordo com o tamanho da área, que será controlada por um disciplina. Mais uma vez o tamanho da área definirá se abaixo desse “disciplina” haverá outras subdivisões. Essa estrutura – da torre para baixo – se duplica uma vez que uma se refere ao sistema carcerário e a outra às regiões fora do sistema. Abaixo dos “disciplinas” (que podem ser responsáveis por uma cidade do interior, um bairro, uma unidade prisional ou um raio da prisão) há os irmãos. Com exceção da cúpula todas as demais “instâncias” são inteiramente intercambiáveis, a depender da necessidade. Ou seja, todos os irmãos devem estar preparados para assumirem o posto de disciplina e/ou torre. Claro que tudo isso é um tanto quanto fluido e essa forma de organização pode mudar – e muda muito – a qualquer momento, a depender da ação das forças repressivas ou das necessidades e interesses da facção. Mas, essa foi a estrutura – aproximada – que consegui apreender na minha pesquisa.

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Karina - Como o Gabriel disse, não se trata de ordens, mas de “salves,” que possuem um estatuto mais de orientação e recomendação do que de ordem ou de lei, de decreto. O que o preso quer dizer com “ninguém é mais do que ninguém”, “ninguém é obrigado a nada,” “é de igual?” Não basta ouvir o que eles têm a dizer, é preciso levá-los a sério. Foi isso que procurei fazer em minha dissertação e que permitiu que eu enxergasse no PCC uma formação que, por um lado, não pode ser caracterizada como hierárquica, mas que por outro lado tem a hierarquia como um fantasma que não pára de aparecer em seu interior. Os prisioneiros tecem reflexões riquíssimas a esse respeito, reflexões que são indissociáveis de suas próprias experiências cotidianas. Esta questão é muito complexa e não há espaço aqui para respondê-la, mas trabalhei-a em minha dissertação de mestrado.

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Adalton – Segundo entendo, ordens e hierarquias são consideradas desarranjos de valores aos relacionados ao PCC. Quem “corre com o PCC” está na “caminhada do PCC,” está na mesma “sintonia do PCC,” está “junto e misturado” (para parafrasear o título da dissertação de Karina) “com o PCC.” Esse “correr junto,” esse “estar na mesma caminhada,” esse “estar na sintonia” nada tem a ver com obediência a ordens. Antes, se trata de um modo específico de existir: “ser lado a lado com o PCC.” E não há um Líder Mal ou uma Ideologia por trás disso.

9) Quais as principais mudanças nas prisões ocorridas por conta do PCC?

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Camila - A mudança fundamental foi a criação de uma instância de regulação das relações sociais na prisão. Antes (do PCC) as regras eram impostas – e quebradas – por líderes individualizados que alcançam essa posição a partir da imposição da violência física, do medo e da ameaça, além da formação de pequenos grupos que se utilizavam dessa superioridade física para dominar os mais fracos. Essa forma de domínio era extremamente efêmera e precária, uma vez que recorrentemente surgiam outros presos ou outros grupos que buscavam ocupar este espaço. Com o surgimento do PCC, este se constituiu como essa instância reguladora, de imposição e controle do cumprimento das regras, assim como de punição aos transgressores. Não se tratava mais de um domínio baseado puramente na violência e na ameaça e nem mais era uma dominação individualizada: trata-se agora de um grupo, organização, ou seja, lá como se chame o PCC; o fato é que a regulação das relações sociais passou a ser mais “institucionalizada,” menos dependente de indivíduos e, portanto, muito mais estável. Assim, muitas regras foram criadas, entre elas a proibição do uso do crack (provavelmente no início dos anos 2000), a proibição de matar um companheiro sem prévia autorização do PCC, a proibição do porte de facas e outros instrumentos cortantes, dentre muitas outras (essa última mais recentemente, a partir de 2006). Adalton – Concordo plenamente com a resposta dada por Karina.

Entrevista

Artigos

Karina – São muitas e conhecidas as mudanças que ocorreram nas prisões após o nascimento do PCC: diminuição no número de homicídios e das agressões entre prisioneiros, fim do consumo de crack e dos abusos sexuais, não se vende mais espaço na cela, não se troca favor com agentes penitenciários em benefício próprio em detrimento de outros, não se fala palavrões. Mas é importante lembrar que essas mudanças não são frutos de leis, decretos ou imposições. Suas propostas nascem de amplos debates e são expandidas e adotadas paulatina e assistematicamente, não sem resistências e diferenciações na condução dessas políticas. É muito comum uma unidade prisional funcionar de forma diferente de outras, principalmente no que diz respeito a mudanças ainda não tão cristalizadas.

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10) As lideranças do PCC tem poder de barganha com as autoridades nas prisões? Karina - Sobre lideranças, ver resposta à pergunta 7. De qualquer forma, os presos não vêem como barganha as negociações feitas com as autoridades das prisões. Trata-se, para eles, de reivindicações do que consideram seus direitos. O sucesso de tê-las atendidas não tem relação com uma suposta posição de um irmão dentro do PCC, mas depende exclusivamente da habilidade dos presos – “irmãos” ou não – em reivindicar e negociar.

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Adalton – O termo lideranças do PCC não me parece apropriado. De qualquer forma, os “presos de cadeia do PCC” – sejam “pilotos,” “irmãos” ou “primos” – travam relações com a administração prisional, sejam elas belicosas, denominadas de “guerra,” sejam elas não-belicosas, denominadas de “dar uma idéia.” Segundo suas próprias auto-descrições, jamais travam relações amistosas com a administração prisional. Justamente por que esse modo de “proceder” era comum entre “presos das antigas” que se aproximavam das autoridades para encontrar melhores condições durante suas passagens pela prisão, delatando (“caguetando”) seus companheiros como contrapartida aos favores recebidos.

11) Qual o papel do PCC hoje do lado de fora das prisões? Gabriel - Certa vez o Mano Brown disse: “o Estado defende a favela, dá segurança ao favelado, com a sua polícia? Não. Então a favela tem que se defender de outra forma.” Há que se entender o que ele diz. Se a frase causa estranhamento a quem acredita na universalidade da democracia, ela é perfeitamente inteligível na perspectiva de quem morou numa favela. Pois, nessa perspectiva, existe um repertório amplo de instâncias de justiça, autoridade e uso da força, para além do Estado. Ora, quando a justiça estatal funciona, não é preciso criar outra: ninguém da favela recorre ao PCC para ganhar horas-extras não pagas. Por quê? Porque a justiça do trabalho tem funcionado bem nesses

Entrevista

Artigos

Camila – Uma das funções das lideranças do PCC nas prisões – não só deles, mas sobretudo deles – é o estabelecimento de diálogo com a administração prisional, fazendo a ponte entre esta e a população carcerária. Neste sentido, o grupo que constitui a chamada “linha de frente” da unidade prisional (piloto/disciplina, faxinas) concentra as reivindicações dos presos e estabelece canais de diálogo com administração, que podem ser mais ou menos tensos. Como dito antes, os diretores pode ter uma maior ou menor tolerância com esse papel exercido pelos irmãos. Há unidades, por exemplo, que o diretor não admite que cresça muito o número e “irmãos” e passa a transferi-los quando entende que eles estão em quantidade muito grande ou quando eles “incomodam,” ou seja, explicitam demais o papel que exercem; em outras unidades, a tolerância é maior e o PCC pode ter uma influência maior também.

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casos. E em diversas outras áreas - infra-estrutura urbana, moradia, saúde, assistência social - há avanços nas políticas voltadas às periferias. O PCC não cuida de nenhuma dessas áreas. Mas na questão da segurança pública, e do emprego, as coisas pioraram muito para os favelados ao longo dos últimos 30 anos. E não por acaso, especialmente entre os mais pobres o “crime” disputa legitimidade tanto com o trabalho lícito, pois gera renda, quanto com a justiça estatal, pois se pode obter reparação de danos a partir do recurso a ele. Se alguém é agredido ou roubado na favela, e sente-se injustiçado, não chama a polícia, chama os “irmãos.” E se não consegue trabalho, ou não tem os requisitos mínimos para obtê-lo, sempre pode ocupar postos nos mercados ilícitos. A aparição do PCC do lado de fora das prisões, a partir do início dos anos 2000, é um passo a mais no estabelecimento de atores extra-estatais de regulação dessa dinâmica social. Sofistica-se, por especialização de funções, o que o “crime” já vinha fazendo de modo menos estruturado. Trata-se portanto de uma conseqüência da cristalização de deficiências de garantia de direitos de uma parcela da população, ao longo de décadas. Tentando resolver essa questão com encarceramento massivo, desde os anos 1990, o Estado jogou mais lenha nessa fogueira. O paradoxo político que essa dinâmica expõe, e que exploro na minha tese de doutorado (a ser publicada como livro ainda esse ano), é que isso se dá ao mesmo tempo em que se consolida a democracia institucional no Brasil.

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12) Como as ordens chegam do lado de fora? Gabriel – Não se trata de “ordens,” mas de “salves,” diferença sutil mas relevante. Os “salves” representam uma posição a ser considerada, mas é no “debate” que eles podem se transformar em ação prática, ou não. E os “salves” circulam por dentro e fora das prisões, como se sabe muito bem, por meio de telefones celulares. Adalton – Nada a acrescentar à resposta do Gabriel.

13) Como o PCC faz para exercer influência em diferentes territórios? Karina - O PCC não é externo aos territórios, ele brota no interior deles. Gabriel – Concordo com a Karina e acrescento que em cada território da cidade há uma tradição de atividades criminais específicas, e uma dinâmica social também específica que interage com ela. O PCC atua nesses territórios

Entrevista

Artigos

Adalton – O papel do PCC fora das prisões segue a mesma “sintonia” de suas políticas dentro do cárcere, e vice-versa. Suas diretrizes visam a “paz entre os ladrões,” “justiça” nos “debates” realizados, “correria” para trazer à “liberdade” os “irmãos que estão no sofrimento” (“estar no sofrimento” é o mesmo que “estar preso”) e “igualdade pra ser justo.”

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negociando e/ou usando a força, a depender do caso, para estabelecer sua legitimidade. Sem pensar essas relações, caímos no equívoco de pensar que o PCC domina tiranicamente esses territórios, o que é uma bobagem. A análise de um ator complexo como o PCC, numa cidade imensa como São Paulo, é uma empreitada muito desafiadora e ainda estamos engatinhando na compreensão desse fenômeno. Adalton – Nada a acrescentar às respostas da Karina e do Gabriel.

14) As lideranças realmente exercem poder efetivo sobre a massa de integrantes ou as decisões são tomadas em níveis mais baixos de hierarquia?

Artigos

Karina – Gilles Deleuze e Féliz Guattari escreveram um texto magnífico chamado “Um só ou vários lobos?”, uma crítica a um famoso caso freudiano, o Homem dos Lobos.8 Os autores chamam a atenção para as reduções que o psicanalista elabora sobre o relato do paciente. Apesar das constantes referências a matilhas, Freud as despreza, reduzindo sempre a matilha (o múltiplo) ao lobo (a unidade). Essa redução foi fundamental para suas construções teóricas, que cada vez mais se distanciavam dos problemas relatados pelo paciente. Todos os relatos dos pacientes se transformavam em substitutos, regressões ou derivados de Édipo. Não importa o que se relatava; de antemão, Freud sabia que era o pai. O mesmo ocorre com o PCC. Não importa o que seus participantes dizem, alguns analistas só vêem hierarquia, só enxergam lideranças, ordens, leis e decretos. Onde vêem diferenças, as tratam como contradições que anseiam em solucionar. “É o pai!,” diria Freud. “É a Lei! É o Marcola!,” dizem esses analistas, sempre em busca de um soberano, de uma unidade. Matam as diferenças, desprezam as multiplicidades que dão forma ao PCC. E se distanciam cada vez mais do fenômeno múltiplo e complexo que pretendem analisar.

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8

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. 1995 [1980]. “1914 – Um só ou vários lobos?” In: Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia, vol. 1. São Paulo: Ed. 34.

Entrevista

Camila – a maioria das decisões, que envolvem a “administração” cotidiana das unidades prisionais – e, acredito que também da periferia – como resoluções de conflitos simples, negociações com a administração prisional etc. são realizadas pelos irmãos e disciplinas responsáveis pelo próprio local, normalmente a partir do “debate” entre os mesmos que, algumas vezes, inclui outros presos que não são irmãos, mas são muito próximos deles. Quando se trata de algo mais sério ou importante – como agressões entre irmãos, delação, estupros, roubos – e que demandaria uma punição mais rigorosa, como a exclusão do PCC, a agressão ou a morte, então as discussões são levadas até as instâncias superiores e que, depois de ouvir todos envolvidos, tem papel decisivo na “sentença.”

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Adalton – Mais uma vez devo dizer que essa noção de liderança, tão dependente de um princípio hierárquico, não funciona no caso em tela. Os “presos de cadeias do PCC” não endossam essa externalidade entre lideranças e massa. Senão, veriam a si mesmos numa relação entre “bandidões” (um avatar para essa liderança imperiosa) e “lagartos” (um avatar para essa massa destituída de força e bastante obediente). O que, por certo, lhes é uma relação odiosa.

15) Qual a importância do tráfico de drogas para o PCC? Quais são as principais formas de financiamento? Karina – É mais o objetivo de minha pesquisa indagar sobre “qual a influência do PCC no tráfico e no consumo de drogas” do que procurar saber qual a importância do tráfico de drogas para o PCC. Interessa-me mais o que o PCC promove do que o que o financia. Pois a resposta a essa pergunta seria óbvia: se há alguma importância, é monetária. Mas isso não diz muito sobre meu objeto de pesquisa. É muito mais interessante investigar qual a relação da presença do PCC nas periferias de São Paulo e a concentração de consumidores de crack na região central da cidade. Para tanto, é preciso, novamente, levar a sério o que dizem sobre os “nóias,” sobre o porquê deles não serem bem aceitos nas “quebradas,” sobre o porquê de eles migrarem para o centro da cidade, sobre por que o centro é permitido. Essas sim são questões que eu gostaria de aprofundar.

Artigos

Gabriel - Em minha tese de doutorado levanto a hipótese de que, nos lugares em que faço pesquisa, a acumulação de capital pelo tráfico de drogas permitiu nas últimas décadas a diversificação, a especialização e a profissionalização de outras atividades criminais – roubo de carros, cargas, assaltos de grande especialização, etc.9 O PCC está em todas essas atividades, pelos depoimentos que obtive. Mas não tenho dados suficientes para comprovar essa hipótese, ou dizer que é assim em toda a cidade.

9

FELTRAN, Gabriel de Santis. Fronteiras de tensão: um estudo sobre política e violência nas periferias de São Paulo. Tese de Doutorado apresentada ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas.

Entrevista

Camila – De acordo com as entrevistas que realizei, o PCC é hoje um dos principais distribuidores de drogas (maconha, cocaína e o material para fabricação do crack) no estado de São Paulo (mas não o único), agindo também em outros Estados mas com uma participação menor. Além desta importante participação o PCC também exerce uma regulação da venda de drogas no varejo, intervindo nas disputas por pontos de venda, nas relações credor/devedor etc. a partir dos “disciplinas” que estão presentes em vários bairros e cidades do Estado. No comércio de drogas nas prisões o PCC também exerce essa regulação.

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Adalton – Essas questões não foram consideradas por mim durante minha pesquisa.

16) Qual o papel do PCC na diminuição da violência no Estado? Gabriel – Tenho trabalhado nisso há algum tempo. O primeiro ponto a considerar é que não há diminuição da “violência” em geral, mas dos homicídios e, muito especialmente, dos homicídios chamados no senso comum de “acertos de conta” entre indivíduos inscritos no “mundo do crime.” OBS. Colo abaixo respostas que dei ano passado a um repórter da Folha do Rio – Raphael Gomide – mas que jamais foram publicadas. Elas são extraídas de um artigo que será publicado em coletânea editada pelas Professoras Vera da Silva Telles, Isabel Georges e Cibele Rizek nesse semestre. [Gabriel]

1. O PCC pode ter interferido diretamente na queda de homicídios em SP? Gabriel – Há muitas evidências empíricas que sim, tanto no meu trabalho quanto em outras pesquisas recentes.

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Gabriel – Durante a pesquisa de campo, quando se comenta porque é que não morrem mais jovens como antes – o que é patente em todos os depoimentos e conversas – as explicações oferecidas são três. A primeira é: “porque já morreu tudo;” a segunda é: “porque prenderam tudo,” e a terceira, mais recorrente, é: “porque não pode mais matar.” Eu levei bastante tempo para compreender essas três afirmações, entender que elas me falavam de uma modificação radical na regulação da violência – e do homicídio – nas periferias de São Paulo, nos últimos anos. E que essa regulação tem a ver com a presença do PCC.

3. Você poderia explicar melhor? Gabriel – “Morreu tudo” significa dizer duas coisas, na perspectiva dos moradores: a primeira e óbvia é que morreu gente demais ali, e que portanto uma parcela significativa do agregado dos homicídios era de gente das periferias, ou seja, de gente próxima. Aqueles que as estatísticas conhecem de longe – jovens do sexo masculino, de 15 a 25 anos, pretos e pardos, etc. – são parte do grupo de afetos de quem vive ali. A segunda é que aqueles jovens integrantes do “mundo do crime” que se matavam, antigamente, já morreram há tempos; ora, se esse “mundo do crime” persiste ativo, e inclusive se expande, só podemos concluir que seus novos participantes não se matam mais como

Entrevista

Artigos

2. Que tipo de relatos você ouve com relação a essa questão?

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antigamente. Houve uma mudança, que as duas outras respostas ajudam a entender. “Prenderam tudo” significa dizer que aqueles que matavam, e não foram mortos, não estão mais na rua. Houve uma política de encarceramento em massa nos últimos quinze anos, em São Paulo.10 Há um problema pouco comentado, no entanto, entre os defensores dessa política. O que esse encarceramento fez foi retirar uma parcela significativa dos pequenos criminosos das vielas de favela, diminuindo a conflitividade delas e os inserindo em redes bastante mais complexas e especializadas do mundo criminal, que operam nos presídios. O período do encarceramento crescente corresponde, quase exatamente, com o período de aparição e expansão do PCC.

3. E a resposta “não pode mais matar”?

Artigos

Gabriel – É aí que a terceira afirmação, a mais freqüente de todas, ganha mais sentido. Quando me dizem na favela “porque não pode mais matar,” está sendo dito que um princípio instituído nos territórios em que o PCC está presente é que a morte de alguém só se decide em sentença coletiva, e legitimada por uma espécie de “tribunal” composto por pessoas respeitadas do “Comando.” Esses julgamentos são conhecidos como “debates,” podem ser muito rápidos ou extremamente sofisticados, teleconferências de celular de sete presídios ao mesmo tempo, como escutas da polícia já mostraram. Há uma série de reportagens de imprensa e estudos acadêmicos tratando deles. O que importa é que esses debates produzem um ordenamento interno ao “mundo do crime,” que vale tanto dentro quanto para fora das prisões. Evidente que a hegemonia do PCC nesse mundo facilitou sua implementação. Com esses debates, aquele menino que antes devia matar um colega por uma dívida de R$ 5, para ser respeitado entre seus pares, agora não pode mais matar.

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4. E isso impacta tanto assim no número de homicídios? Gabriel – Muito mais do que se imagina, porque o irmão daquele menino morto pela dívida se sentiria na obrigação de vingá-lo, e assim sucessivamente, o que gerava uma cadeia de vinganças privadas altamente letal, muito comum ainda

Dados oficiais da Secretaria de Administração Penitenciária do Estado de São Paulo indicam que a população carcerária subiu de 55 mil em 1994 para 144 mil em 2006 (161%). Ver http://www.sap.sp.gob.br. Estima-se que em 2008 os números cheguem a 160 mil presos, além de 30 mil sentenciados que não encontram vagas no sistema. Sobre a política de encarceramento em massa, suas motivações e conseqüências nos EUA, é referência o trabalho de Wacquant (2001, 2002). As taxas médias de homicídio no distrito de Sapopemba, onde faço pesquisa de campo, decresceram seis vezes de 2001 a 2008, e também de modo progressivo e regular: baixaram de 60,9/100 mil em 2001, para nada menos de 8,8/100mil em 2008. Fonte: elaboração do autor a partir de tabelas geradas pelo site do PRO-AIM, Prefeitura Municipal de São Paulo, em janeiro de 2010.

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em outras capitais brasileiras. Agora, entretanto, nesses tribunais do próprio crime, mesmo que o assassino seja morto, interrompe-se essa cadeia de vingança, porque foi “a lei” (do crime) que o julgou e condenou. E como a lei, nesses “debates,” só delibera pela morte em último caso – há muitas outras punições intermediárias – toda aquela cadeia de vinganças que acumulava corpos de meninos nas vielas de favela, há oito ou dez anos atrás, diminuiu demais.

5. O PCC seria, então, a principal causa para o declínio dos homicídios em São Paulo? Gabriel – Nossos dados indicam que sim, mas eles não têm capacidade de comprovação cabal. Uma parcela muito pequena dos homicídios é oficialmente esclarecida, e justamente a parcela menos esclarecida é a composta daqueles jovens pobres, supostamente assassinados em conflitos internos ao “crime” ou com a polícia. Entre esses casos, não há dúvida nenhuma de que a redução expressiva dessa década é resultado dessa regulação interna ao “mundo do crime,” que tem muito a ver com o PCC. Para medir esse impacto com mais exatidão, cruzando com outras possíveis causas aventadas por aí, seria preciso ver o quanto os assassinados nesse tipo de conflito representavam do agregado dos homicídios.

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Camila – Concordo com o Gabriel e Karina, acrescentando que, para mim, a regulação do comércio de drogas no varejo pelo PCC é um dos principais responsáveis pela diminuição dos homicídios no Estado de São Paulo. Todos os entrevistados, sem exceção, mencionaram o fato de “não poderem mais matar” se referindo tanto ao interior das prisões quanto aos bairros controlados pelo PCC. Essa proibição se estende, inclusive, a um fator que sempre se constituiu como um dos principais motivadores de mortes violentas na prisão, a dívida de drogas.

Adalton – Entendo que a diminuição da violência no Estado está atrelada a múltiplos fatores. Em minha pesquisa não tomei esse fenômeno como objeto. Portanto, não tenho como traçar uma resposta abalizada aqui. Posso dizer, apenas, que nas periferias que percorro – “quebradas” localizadas nos bairros Cidade Ademar, Pedreira, Capão Redondo, Sacomã, Sapopemba, Jardim Brasil, entre outros, e também em “quebradas” localizadas nas cidades de Diadema, São

Entrevista

Artigos

É evidente e relevante dizer, mais uma vez, que não estamos dizendo que essa regulação é boa, evidentemente não é. Só estamos alertando, como cientistas sociais, que esse processo vem ocorrendo em São Paulo, há pelo menos uma década, e que não podemos fechar os olhos para ele.

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Bernardo do Campo e Santo André –, comumente escuto vozes que apontam as políticas do PCC como causa principal, às vezes única, para a diminuição das mortes. Karina - Muitos prisioneiros e moradores das favelas atribuem ao PCC a responsabilidade pela queda do número de homicídios. O “não pode mais matar” (nas “ruas”) me foi dito pela primeira vez em meados de 2006, por prisioneiros. Logo depois, ouvi de uma moradora de uma favela da cidade de São Paulo que, se antes ela se deparava diariamente com um cadáver na porta de sua casa, hoje, “graças ao PCC, isso não acontece mais.” As informações sobre a influência do PCC na diminuição do número de homicídios no Estado de São Paulo, que antes apareciam para mim apenas em relatos de experiências como essa, foram reforçadas pelas estatísticas oficiais. Se há outros motivos para esta queda, não os encontrei nos relatos daqueles que vivem nas áreas onde ocorre a maioria dos homicídios.

17) Quais os riscos que o fortalecimento do PCC impõe à sociedade?

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Camila – Concordo com Gabriel. Acho que o fortalecimento do PCC coloca constrangimentos importantes para o Estado, que é incapaz de lidar com o problema fora da chave da repressão. E, desta forma, ocorre o efeito contrário, ou seja, o fortalecimento. Adalton – Isso que chamamos de PCC são múltiplas posições de embate (por que não existe o PCC, único e homogêneo) no seio do que se chama de sociedade. Assim como são a Universidade, a Polícia Militar, os Comerciantes, a Polícia Civil, os Sindicatos (nenhum desses corpos políticos é homogêneo). Compreender o jogo de riscos nesse solo de posições múltiplas e variantes, em embates móveis, não é tarefa fácil. Só para termos uma idéia dessa complexidade, o avanço do PCC é visto de forma positiva por uma parcela considerável de moradores das periferias paulistas, mal visto por outra e não visto por outra. Ao que tudo indica, as agências de segurança pública e os “comandos” inimigos do PCC consideram alto o risco de seu avanço. E o que pensar de um micro-empresário, numa situação hipotética (porém bastante

Entrevista

Artigos

Gabriel - Aqui eu gostaria de subverter a pergunta e dizer que os riscos não são “do PCC para a sociedade,” porque não há externalidade entre ambos. O PCC também é sociedade, e a dinâmica social como um todo não cansa de gerá-lo. Creio que sem a política de encarceramento dessa década, o PCC não seria tão forte quanto é hoje, por exemplo. Para pensar com mais rigor a questão há que se abandonar, o que é difícil, a polaridade entre o bem e o mal. Seria tudo mais simples, e palatável para os “bons cidadãos,” se houvesse um “submundo” que pudéssemos reprimir até o fim, liberando a “boa sociedade” para viver em paz. Mas infelizmente não é assim que as coisas funcionam.

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comum), que conseguiu recuperar seu carro roubado através de um “irmão” que toma cerveja com seu filho na padaria do bairro?

18) É possível enfraquecer ou acabar com o PCC? Como? Karina - Não é uma questão que cabe a mim, mas diria que seu fortalecimento está diretamente ligado às formas de opressão que o Estado dirige à população carcerária. Gabriel - Nem a mim. Gostaria de comentar, entretanto, que como minha análise identifica o desemprego e a fragilidade da garantia do direito à segurança dos mais pobres, nas últimas décadas, como elementos que fortaleceram a identificação, por eles, do “mundo do crime” como instância legítima de geração de renda e obtenção de justiça, radicalizar a repressão e o encarceramento só me parecem colocar mais água nesse moinho. Camila – Não sei como acabar com o PCC mas, como falei antes, de uma coisa tenho certeza: o aumento da repressão dentro e fora das prisões, a carta branca que parece ter a polícia para matar na periferia e outras formas mais de desrespeito aos direitos da população pobre da periferia e dos presos, são elementos que fortalecem o PCC, conferem mais legitimidade ao seu domínio enquanto enfraquece cada vez mais a confiança nas instituições públicas de segurança.

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19) O que representaram os ataques? Como repercutiram no PCC? Podem ocorrer novamente? Karina – Os ataques de 2006 desencadearam um grande movimento autoreflexivo no PCC. De acordo com essas reflexões, os ataques foram reações às provocações do Governo do Estado de São Paulo, cuja finalidade seria a de mostrar sua força e, assim, conseguir pontos na corrida eleitoral que estava em andamento à época. Essa é a análise que os próprios protagonistas dos ataques elaboraram, não cabe à mim questioná-la. Nesse mesmo movimento reflexivo, avalia-se que os ataques não foram a melhor maneira para chamar a atenção dos cidadãos para o que ocorria no interior das prisões. De lá para cá, vêm-se buscando, outras formas de articulação e diálogo, com pouco sucesso, entretanto. Afinal, como criminosos podem se articular, mesmo que para reivindicar o cumprimento da Lei de Execuções Penais, sem que constituam uma “organização criminosa?” Se novos ataques ocorrerão ou não, não é possível prever. Isso depende de inúmeros fatores, muitos deles sequer previsíveis.

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Adalton – Questão bastante apropriada à intelligentsia policial paulista. Como antropólogo, não tenho como respondê-la.

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Gabriel - Representaram uma manifestação de força da facção frente às forças policiais, que estabelece novos parâmetros para a negociação entre elas. Ouvi diversas vezes, em pesquisa de campo, que há negociação entre PCC e funcionários do Estado e das polícias. Evidentemente essa negociação se dá em bases distintas depois de uma demonstração como a de 2006. Mas os ataques também demonstraram o que significa colocar em xeque a força do Estado – segundo dados colhidos em 23 Institutos Médico-Legais, e divulgados pelo NEV e pelo Estadão, os eventos contabilizaram 493 mortos, em uma semana! Mais ou menos 50 mortes foram atribuídas ao PCC, cento e poucas oficialmente à polícia. Mais de 200 mortes permaneceram sem sequer hipótese investigativa. No distrito de São Mateus, do lado de onde faço pesquisa de campo, seis rapazes que iam trabalhar numa fábrica em Santo André, no sábado seguinte aos ataques, foram executados sumariamente. Segundo os moradores ao autores foram policiais à paisana. Suas mortes foram computadas entre os “suspeitos.” Espanta perceber que as mortes dessas pessoas não foram consideradas um descalabro num Estado democrático. O contrário, matar “suspeitos,” sejam eles quem forem, contribui para fazer crer que as forças da ordem retomavam o controle da situação. Se outros ataques vão ocorrer seria futurologia, não há como dizer. Estava em campo em maio de 2006 e não consegui prever os eventos. As causas de eventos como esses são complexas e dependem de negociações às quais temos muito pouco acesso, em pesquisa. No entanto, não me surpreenderia se voltassem a ocorrer, já que os atores principais seguem em cena.

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Camila Nunes Dias possui graduação em Ciências Sociais e mestrado em Sociologia pela Universidade de São Paulo (2005). Sua dissertação, “A igreja como refúgio e a Bíblia como esconderijo: religião e violência na prisão,” foi publicada pela Editora Humanitas. Agora, ela finaliza doutorado, também na USP, com base em pesquisas em presídios paulistas.

Gabriel de Santis Feltran é Professor do Departamento de Sociologia da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), pesquisador do Centro de Estudos da Metrópole (CEM) e do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP). Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), com doutorado-sanduíche na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), teve sua tese premiada pela

Entrevista

Artigos

Adalton – Nada a acrescentar às respostas de Gabriel e de Karina.

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ANPOCS em 2009. Atualmente pesquisa as transformações nas dinâmicas sociais e políticas das periferias urbanas, com foco nas ações coletivas e no “mundo do crime” em São Paulo. Adalton Marques é bacharel em Sociologia e Política pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo. É mestre em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo, onde defendeu a dissertação “Crime, proceder, convívio-seguro – um experimento antropológico a partir de relações entre ladrões” em fevereiro deste ano. Cursa, também, graduação em Filosofia pela Universidade de São Paulo. Atua principalmente nos seguintes temas: prisioneiros e sistema prisional.

Artigos

Karina Biondi é bacharel em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo e mestre em antropologia pelo Programa de Pós Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de São Carlos. Sua dissertação será publicada na Coleção Antropologia Hoje, pela Editora Terceiro Nome. Atualmente, é doutoranda em antropologia pela mesma instituição. Dedica-se ao estudo das relações travadas por prisioneiros no Estado de São Paulo, Brasil.

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Recebido em 22/03/2010

Entrevista

Aceito para publicação em 23/03/2010

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KLEBA, John Bernhard; KISHI, Sandra Akemi Shimada. Dilemas do acesso à biodiversidade e aos conhecimentos tradicionais: direito, política e sociedade. Belo Horizonte: Fórum, 2009.

Aline SCOLFARO

Um dos principais acordos derivados da ECO-92, a CDB (Convenção sobre a Diversidade Biológica) foi criada como um instrumento de direito internacional para a regulação das questões relacionadas aos recursos genéticos. Com o objetivo de servir à conservação da biodiversidade e incentivar o seu uso sustentável a Convenção adotou um novo marco no tratamento da questão ao reconhecer a soberania das nações sobre os seus recursos genéticos e a necessidade de mecanismos de proteção aos conhecimentos tradicionais a eles associados. Com isso, instituiu os parâmetros para um novo tipo de relação entre os países ricos em diversidade biológica, que com poucas exceções coincidem com os chamados países em desenvolvimento, e aqueles ricos em tecnologia: os primeiros regulariam o acesso a seus recursos genéticos e conhecimentos tradicionais associados condicionando-o à transferência de tecnologia e à repartição dos benefícios advindos do uso científico ou comercial do recurso ou conhecimento acessado. Em tese parece simples e justo, mas tanto a CDB é apenas um nó numa extensa rede de acordos internacionais que se inter-relacionam e muitas vezes contradizem-se, como as questões por ela tratadas se mostram infinitamente mais complexas e conflitantes na medida em que se tenta traduzir os seus propósitos em experiências práticas ou em uma legislação nacional de acesso. A heterogeneidade de atores e interesses envolvidos, tanto nas relações internacionais quanto no âmbito interno aos países, e a infinidade de questões que abarca torna a problemática do acesso aos recursos genéticos e aos conhecimentos tradicionais associados um grande labirinto, impondo inúmeras dificuldades e desafios para a sua operacionalização legal e prática. E parecem ser estes desafios que inspiraram a organização de uma obra coletiva como Dilemas do acesso à biodiversidade e aos conhecimentos tradicionais: direito, política e sociedade, coordenada por John Bernhard Kleba e Sandra Akemi Shimada Kishi, especialistas na área do direito ambiental e na temática em questão. Com prefácio do jurista Paulo Affonso Leme Machado, e prólogo da antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, o livro reúne treze artigos escritos por pesquisadores e especialistas de

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diversas áreas e simboliza um empenho de cooperação interdisciplinar e internacional no tratamento da temática, o que, no entanto, não exclui a diversidade de visões e a presença de abordagens nem sempre consensuais, tanto em suas dimensões críticas quanto propositivas. A obra é dividida em duas partes. Na primeira, intitulada “Prática, política e sociedade,” encontram-se os artigos de pesquisadores das áreas de ciência e tecnologia, antropologia e etnoecologia, que, em sua maioria, partem da análise de experiências práticas e casos empíricos no campo do acesso aos conhecimentos tradicionais associados e repartição de benefícios, apontando problemas e dificuldades para a implementação dos princípios contidos na CDB e sugerindo caminhos para a resolução de alguns de seus impasses. Dois destes artigos se dedicam a analisar as experiências concretas de países da América do Sul, ricos em biodiversidade, que se aventuraram em acordos e parcerias com empresas e instituições de países do norte interessados na bioprospecção: o trabalho de Camila Carneiro Dias e Maria Conceição da Costa examina os impasses do princípio da repartição de benefícios a partir dos acordos levados a cabo no Peru, um dos primeiros países a tentar transpor os preceitos da CDB em uma legislação nacional. O artigo de Léa Velho e Fabiano Toni, por sua vez, analisa a participação do Suriname num projeto de bioprospecção do programa International Cooperative Biodiversity Group (ICBG) empreendido pelos EUA, que apesar de não signatários da CDB inauguraram programas de pesquisa e parcerias com base em seus preceitos. Em ambos os casos visa-se avaliar os impactos desses acordos num campo de interesses envolvendo comunidades indígenas e tradicionais, universidades, grandes empresas estrangeiras (no caso, norte-americanas), ONG’s e outras organizações nacionais e internacionais, apontando seus aspectos positivos e suas graves falhas no cumprimento de princípios básicos defendidos pela CDB. Casos brasileiros envolvendo polêmicas relacionadas aos recursos genéticos e aos conhecimentos tradicionais associados são também analisados. “Entre o mercado esotérico e os direitos de propriedade intelectual: o caso Kampô (Phyllomedusa bicolor),” de Edilene Coffaci de Lima, abre um interessante debate acerca das dificuldades de conciliação entre dois regimes diversos de conhecimento e de propriedade, a partir de uma descrição etnográfica dos processos que se desenrolaram no âmbito do Projeto Kampô, articulado pelo Ministério do Meio Ambiente por solicitação dos Katukina, no intuito de resguardar seus conhecimentos sobre o sapo-

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verde, cuja secreção, usada tradicionalmente pelas populações indígenas do sudoeste da Amazônia, vinha sendo alvo de exploração comercial e biopirataria. De experiência modelo, criando grandes expectativas entre os índios, o projeto logo se transformou em motivo de inúmeras frustrações, evidenciando as dificuldades de se por em prática os preceitos da CDB. Dentre estas, ressalta-se a inadequação do princípio de propriedade embutido neste documento para um tipo de saber que se produz e se transmite por dinâmicas diversas, impondo limites para a delimitação de uma titularidade restrita sobre conhecimentos compartilhados por várias pessoas e grupos; mas há também a arrogância dos cientistas, que se recusaram a reconhecer os índios como parceiros na pesquisa de moléculas e princípios ativos a partir da secreção do kampô. A problemática da titularidade dos conhecimentos tradicionais, questão extremamente complexa, é também foco de atenção no texto de John Bernhard Kleba, coordenador da coletânea. Através do exame de dois polêmicos casos nacionais de acesso a recursos genéticos e conhecimentos tradicionais, um envolvendo índios Krahô e pesquisadores da UNIFESP e outro a Natura e ribeirinhos e erveiras do norte do país, Kleba trata de problemas operacionais relacionados à representação indígena e à demarcação da titularidade de conhecimentos compartilhados entre diversos grupos, discutindo ainda algumas controvérsias legais em torno de conhecimentos tradicionais disseminados entre populações locais e urbanas. A partir disso, o autor propõe uma nova tipologia para a conceitualização das possíveis formas de conhecimento tradicional, que, se tem a vantagem de ampliar o leque das possibilidades previstas em lei, apresenta a complicação de toda tipologia: reduzir a complexidade do real a tipos ideais. Por fim, compondo ainda a primeira parte do livro e tratando dos debates brasileiros em torno do anteprojeto de lei que visa substituir a Medida Provisória 2.18616/2001, que atualmente regula o acesso aos recursos genéticos e conhecimentos tradicionais associados no Brasil, o artigo conjunto de Gabriela Coelho de Souza, Rumi Regina Kubo, Ricardo Silva Pereira Mello e Rodrigo Allegretti Venzon, lança um olhar crítico sobre a lógica utilitarista e mercantilista que orienta as discussões e demandas atuais em torno da biodiversidade e dos conhecimentos tradicionais associados. Nessa configuração, a bioprospecção e as questões relacionadas às patentes assumem importância central e a valorização dos conhecimentos tradicionais fica atrelada ao potencial comercial que possam vir a oferecer. Diante disso, os autores atentam para a necessidade de valorização destes conhecimentos em sua própria lógica e chamam

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atenção para a dimensão sociocultural da biodiversidade, enfatizando a intrínseca relação entre diversidade cultural e diversidade biológica. Já a segunda parte do livro, “O direito em nível interno e internacional,” reúne trabalhos de diversos juristas que procuram pensar novos instrumentos legais que possam dar conta das especificidades e complexidade dos contextos que envolvem a problemática, apontando problemas e desajustes do sistema jurídico existente em um mundo em que se multiplicam os atores e os conflitos de perspectivas. Questão unânime aqui é a da inadequação do atual sistema de propriedade intelectual para a proteção dos conhecimentos tradicionais e a necessidade de um regime sui generis que leve em conta suas especificidades e dinâmicas próprias. Diante disso, grande parte dos trabalhos debruça-se sobre a problemática conceitual-legal acerca dos conhecimentos tradicionais, discutindo propostas e parâmetros para a sua proteção. O artigo de Eliane Moreira trata especialmente destas questões e aponta a emergência dos direitos intelectuais coletivos como novo conceito jurídico, capaz de fornecer as bases para a formulação de um sistema de proteção legal mais apropriado à lógica dos conhecimentos tradicionais, substituindo a noção de propriedade (individual) pela de patrimônio (coletivo). Também o artigo de Inês Virgínia Prado Soares discute mecanismos de proteção e aponta a “responsabilidade civil objetiva” como um instrumento jurídico que pode contribuir para contrabalançar a presumida desigualdade entre as partes nas relações de acesso aos conhecimentos tradicionais, na medida em que estes, ainda que objetos de interesse e exploração econômica, não se enquadram nas normas de tutela advindas do regime de propriedade intelectual. Pontos mais específicos da CDB relativos aos conhecimentos tradicionais, bem como as dificuldades e possíveis caminhos para sua otimização legal e prática, são também objetos de atenção de alguns desses trabalhos. Evanson Chege Kamau discute as implicações dos conhecimentos tradicionais disseminados para a efetiva implementação do artigo 8j da CDB, particularmente no contexto queniano. A partir de pesquisas sobre o conhecimento médico tradicional no Quênia, o autor apresenta propostas para a regulação dos canais de disseminação e desapropriação destes conhecimentos e para o retorno às comunidades locais e indígenas de parte dos benefícios oriundos de sua utilização privada. Já a problemática do consentimento prévio informado (CPI), incluída no artigo 15 da CDB, é analisada e discutida por Sandra Kishi, que ressalta as dificuldades e desafios para sua otimização prática e

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jurídica no Brasil, na medida em que envolve inúmeros problemas relativos à representatividade das comunidades indígenas e à titularidade dos conhecimentos tradicionais. Diante disso, Kishi defende o estudo antropológico independente como um instrumento essencial na resolução de alguns desses impasses. Mas pode-se advertir se tal estudo que, segunda a autora, ajudaria a determinar os detentores legítimos de um conhecimento tradicional, não corre o risco de projetar sobre este tipo de saber pressupostos que guiam a percepção ocidental do conhecimento enquanto criação necessariamente endógena, seja individual ou coletiva, e, portanto, sempre passível de possuir um proprietário legítimo. Soluções um tanto controversas são também apresentadas no artigo de Márcia Dieguez Leuzinger, que trata de questões bastante delicadas em torno da conceituação das populações e conhecimentos tradicionais em relação à problemática ambiental. A partir de uma abordagem que coloca a questão da conservação em primeiro plano, a autora discute a extensão e os limites do conceito de população tradicional para fins de proteção conferida pela legislação ambiental, defendendo critérios conservacionistas estritos para que um determinado grupo possa ser reconhecido como tal. O problema aqui é que o próprio conceito de conservação é também passível de discussão e não pode ser resolvido a partir de categorias impostas unilateralmente pelo ambientalismo ocidental. Por isso, ser ou não conservacionista, antes que um predicado inscrito na natureza das sociedades, é uma posição negociável em contextos determinados. Juliana Santilli, Gerd Winter e Fernando Mathias Baptista colaboram ainda nesta segunda parte da coletânea. O artigo de Santilli analisa o sistema multilateral estabelecido pelo Tratado Internacional sobre Recursos Fitogenéticos para a Alimentação e a Agricultura (TIRFA), discutindo seus pontos positivos e negativos e sua implementação no Brasil em interface com a MP 2.186-16/2001. O de Gerd Winter propõe um modelo de regulação do acesso aos recursos genéticos a partir da criação de Coleções Genéticas Regionais de uso comum, a serem organizadas por blocos de países pertencentes a uma mesma região biogenética como forma de fortalecer e agilizar mecanismos de acesso e repartição de benefícios. Já o trabalho de Fernando Mathias Baptista, com uma instigante crítica ao próprio modelo contratual que orienta a regulação jurídica do acesso aos recursos genéticos e conhecimentos tradicionais associados, bem como os acordos de repartição de benefícios daí derivados, talvez seja um dos mais contundentes desta coletânea. Apontando a lógica “individual civilista” que rege a própria CDB e que reduz a política

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de repartição de benefícios a um “contrato privado civil,” o autor examina a adesão brasileira a essa perspectiva problemática e defende um outro modelo para a regulamentação das questões relacionadas ao patrimônio genético, baseado na idéia de livre acesso e em noções de direitos coletivos e bens de uso comum, não sujeitos a qualquer tipo de apropriação privada. Estas problematizações suscitam uma série de outras questões quanto aos pressupostos que regem a CDB e que informam suas concepções sobre a própria natureza do conhecimento, seus modos de produção e circulação, orientando ainda os termos pelos quais devem se dar os acordos de acesso e repartição de benefícios. Aqui, tudo acaba reduzido a uma relação de propriedade suscetível à regulação através de contratos de troca entre sujeitos legalmente reconhecidos: projeta-se a forma e a dinâmica dos conhecimentos científicos sobre os conhecimentos tradicionais e toma-se como dado conceitos e categorias que são construções específicas das sociedades ocidentais. Nesse contexto, populações indígenas e tradicionais têm que se enquadrar em formas institucionais que muitas vezes conflitam com suas próprias formas de organização sócio-política. Daí os inúmeros problemas e conflitos envolvendo questões de representatividade das comunidades nos acordos de acesso aos conhecimentos tradicionais. Por outro lado, a adoção de uma perspectiva mais universalista que substitua a noção de propriedade pela de patrimônio coletivo e que se baseie na idéia de bem comum, apesar de parecer mais razoável, continuaria a operar com categorias que fazem parte da nossa imaginação conceitual. Como atenta Manuela Carneiro da Cunha no próprio prólogo do livro, o que não é justo é “transformar as populações tradicionais em paladinos dessa abordagem.” Mas apesar das dificuldades aparentemente insolúveis desse debate – as quais parecem derivar dos limites do próprio Direito ocidental para dar conta de processos de produção e circulação de conhecimentos que operam em regimes diversos –, a busca de entendimentos e soluções possíveis é importante e necessária. Para isso, o acompanhamento e o exame de experiências concretas no campo, como fazem alguns dos autores da coletânea, parece constituir um importante meio de entrever alguns caminhos praticáveis para um entendimento ao menos pragmático entre os diversos atores envolvidos; pois soluções possíveis precisam ser construídas em cada contexto específico. Também é fundamental pensar, conjuntamente com as populações envolvidas, um regime sui generis para a proteção dos conhecimentos tradicionais contra toda apropriação indevida. Porém, é preciso senso crítico em relação às

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limitações da CDB e de nossas próprias categorias jurídicas, e tomar cuidado para, ao propor soluções, não acabar reiterando noções e conceitos específicos do ocidente moderno.

Aline Scolfaro Mestranda em Antropologia Social Universidade Federal de São Carlos E-mail: alinescolfaro@yahoo.com.br

Recebido em 20/02/2010 Aceito para publicação em 20/02/2010

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LIMA, Diana N. de Oliveira. Sujeitos e objetos do sucesso: Antropologia do Brasil emergente. Rio de Janeiro: Garamond, 2008. 242 páginas.

Eduardo DULLO

Qual a extensão e a profundidade do nosso conhecimento, analítico e empírico, sobre as camadas superiores da sociedade brasileira? As tão afamadas “elites” nacionais foram minimamente pesquisadas pelas Ciências Sociais para que possamos corroborar impunemente as diversas críticas (e, quiçá, os elogios) que vemos encaminhadas a elas pelos meios de comunicação de massa em nosso cotidiano? Não que o livro de Diana Lima, originalmente sua tese de doutoramento em Antropologia Social no Museu Nacional/UFRJ, tenha a pretensão de oferecer um posicionamento sócio-político a respeito de nossas elites, mas demonstra com suficiente clareza a importância de aventurarmo-nos com boas pesquisas empíricas por esta seara tão pouco explorada. Primeiro volume de uma nova coleção (do Núcleo de Cultura e Economia – NUCEC – locado no PPGAS do Museu Nacional), sua proposta direciona-se para uma compreensão dos aspectos simbólicos da materialidade em nosso sistema capitalista, observando o entrelaçamento de alguns objetos e as trajetórias de sujeitos de “sucesso:” os da “Nova Sociedade Emergente” carioca, ou, os “emergentes” da Barra (da Tijuca). Ao delinear seu recorte empírico/etnográfico na tensão existente entre os padrões de gosto e de consumo desta Nova Sociedade Emergente com os da Sociedade Tradicional do Rio de Janeiro, a autora ganha em rentabilidade teórica: a posição de “elite” – que, conforme é explicitado em sua Introdução, é dimensionada a partir de categorias nativas que os associam diretamente ao nível econômico e mobilização de renda – não é mais algo homogêneo e indivisível, um grupamento sólido e rígido, reificado e substancializado, mas é percebido em suas nuances e conflitos constitutivos. A tensão mencionada opera, neste sentido, como uma estratégia etnográfica que a permitiu observar o pluralismo interno (os segmentos, normalmente descritos no singular) a esta camada. Conflituosa, a relação entre os padrões de gosto é colocada a partir do pólo da elite estabelecida; pois é nela (e para ela) que surge o problema da “falta de gosto” desses “emergentes” – “o mais interessante e certo é que os ‘emergentes’ não estão interessados nesse ‘gosto’ (...) O ‘gosto’ também não orienta a forma como os

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‘emergentes’ com eles [os bens materiais] lida ou como, na interação com os objetos, ele elabora sua subjetividade e objetifica o mundo social.” (p.141) Porém, se o questionamento conflituoso advém dos estabelecidos, é junto aos “outsiders” que a autora trabalha, para perceber o quanto este jogo faz parte dos próprios mecanismos de definição do que é ou pode ser uma elite e, não menos que isso, de como esta definição está submetida a uma importante transformação desde meados dos anos 1990. Se a elite tradicional primava pelo bom gosto, por sua estratégia de distinção hierárquica, por uma sólida formação educacional, pela discrição elegante; a elite que cresce e se multiplica no Brasil contemporâneo não faz uso das mesmas estratégias, nem visa o mesmo ideal. “Como representam e são representados, na década de 1990, esses sujeitos do ‘sucesso’ (econômico), nativos de uma sociedade eternamente à espera do desenvolvimento?” (p.198) Separada, assim, tão polarmente, entre um padrão de (bom) gosto e outro de falta de gosto, as descrições poderiam ser chamadas de simplistas e caricatas. Diana Lima tem o cuidado e nos permite a satisfação de verificar com dados provenientes de sua pesquisa de campo como o contraste não se mantém tão facilmente. Diversas pessoas da suposta elite bem formada no padrão de gosto erudito e estabelecido demonstram seu desinteresse por este universo (que alardeiam como de referência) e movimentam-se por diversos circuitos comuns aos “emergentes.” Não é possível dizer que eles agem e pensam do mesmo modo; afinal, os primeiros ainda consideram (embora poucos realizem essa idéia) por algum momento ver uma ópera no Municipal, enquanto esta possibilidade desaparece quando se trata dos últimos. A preferência final, de ambos – que fique bem claro, aliás –, é pelo musical da Broadway e não pela ópera ou pela Orquestra Sinfônica. Não obstante a verificação da permeabilidade das fronteiras entre estes dois segmentos de elite, a autora prossegue sua pesquisa a partir das estratégias de produção e recepção de colunas sociais em jornais cariocas (como O Globo e Jornal do Brasil) e em revistas especializadas em colunismo social (como Caras ou IstoÉ Gente),

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existência de quatro principais agrupamentos: uma, que condena a glorificação do consumo; outra, que recusa a exposição da interioridade das pessoas em meios de comunicação e está decepcionada com a não realização das transformações sociais rumo a uma nação mais igualitária; uma terceira, positivamente receptiva ao glamour system (“sistema discursivo de elogio ao ‘sucesso’.” p.231) elaborado nestas revistas, composta por jovens educados de acordo com a importância da formação (Bildung) e que

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vislumbram na acumulação de capital uma importante complementaridade a este universo cultural; e, por fim, “há um quarto grupo, integrado pelos filhos e netos de famílias recém-enriquecidas, que – novidade histórica, como verifiquei na etnografia – perpetua através das gerações a lógica do trabalho e do acúmulo financeiro e mantêm total afinidade com o universo da ‘emergência’.” (p. 210-211) As possibilidades deste novo cenário foram comentadas em seu segundo capítulo: “Mobilidade e ascensão individual nas sociedades modernas,” no qual a autora faz uma recapitulação dos ideais de igualdade que permearam as sociedades modernas ocidentais e que permitiram a figura social do emergente: aquele que sai de uma camada social e “sobe na vida.” A argumentação ganha em capacidade heurística quando se aproxima do nosso período histórico; nos anos 1980 e 1990, a figura dos yuppies (young urban professionals – jovens profissionais urbanos) coexiste, nos Estados Unidos, com o governo Reagan e Tatcher (na Inglaterra) de desmantelamento do Estado de BemEstar social e promovedores do empreendedorismo que caracteriza o mercado de trabalho no período neoliberal. O que a autora demonstra, e é uma importante tese, é a posição destes “emergentes” brasileiros (e etnograficamente cariocas) como realização neste cenário de promoção dos valores de um outro formato de sujeito e individualismo; em sua pesquisa, vemos com clareza que, para essa camada da população, não é apenas o trabalho duro que faz de um sujeito bem sucedido... Não é com o ascetismo que existe a “afinidade eletiva,” como no caso analisado por Weber, mas com uma ética do “consumo conspícuo:” a afinidade é entre os objetos e os sujeitos de sucesso, como explicita a autora no título. Por fim, podemos observar a riqueza do trabalho em sua pouca observância das fronteiras disciplinares: embora o livro seja oriundo de uma tese em Antropologia Social, seus temas (como a circulação de bens via consumo, mobilidade social, construção de padrões de gosto distintivos, presença e impacto de aspectos midiáticos; entre outros tantos) são de grande alcance para a Sociologia como um todo (e, não por acaso, a autora ocupa uma posição no departamento de Sociologia do IUPERJ). Uma contribuição como esta nos deixa sempre esperançosos de que novas pesquisas venham auxiliar a equilibrar a balança de referências tão desigual entre os pobres e os endinheirados no Brasil.

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Eduardo Dullo PPGAS Museu Nacional - UFRJ Mestre (Museu Nacional, 2008) Doutorando, bolsista CAPES E-mail: edudullo@hotmail.com

Recebido em 08/02/2010 Aceito para publicação em 01/03/2010

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CARVALHO, Fernanda Schmuziger. Koixomuneti: Xamanismo e Prática de Cura entre os Terena. São Paulo: Editora Terceira Margem, 2008. Jean Paulo Pereira de MENEZES

Fernanda Schmuziger Carvalho é uma das intelectuais emblemáticas entre os membros da segunda geração do Centro de Estudos Indígenas Miguel Angel de Menéndez (CEIMAM) da UNESP de Araraquara, que participaram das interlocuções com os Terena na região de Aquidauana durante os anos 80. Entre meados dos anos 80 e início dos 90, a autora desenvolveu sua pesquisa de mestrado sobre os Terena do Mato Grosso do Sul (MS), vindo apenas tardiamente a ser publicada como livro em 2008 com o título: “Koixomuneti: xamanismo e prática de cura entre os Terena” e que nos ocupamos aqui de apresentar aos leitores por se tratar de um importante trabalho, há anos, referencial para os pesquisadores que se ocupam do estudo sobre o povo Terena do MS. O trabalho de Fernanda Carvalho está organizado em quatro capítulos, a saber: o primeiro, no qual situa os aspectos relacionados ao modo de vida Terena. O segundo, em que discorre sobre as representações do xamanismo que trata de situar o recorte do povo Terena em que dedicou especial atenção sobre os aspectos do modo de vida Terena e as religiões cristãs; o terceiro, em que aborda as concepções de saúde e doença; e, precedendo a conclusão, um quatro capítulo, dedicado ás práticas de cura e cuidados especiais durante o ciclo de vida dos indivíduos. No capítulo primeiro, se ocupa com o aspecto do modo de vida Terena pontuando a questão da localização, população, a área Taunay-Ipegue, trocas e comercialização, trabalho, migração, educação, política e a construção étnica. Sobre a população a autora elenca uma série de localidades, ou seja, áreas indígenas de população Terena, no eixo Aquidauana - Miranda: sendo, Limão Verde, Buriti, Buritizinho (antiga Aldeinha Sapé), Taunay-Ipegue, Cachoeirinha, Pilade Rebuá (compreendendo Passarinho e Moreira) e Lalima. Indica também áreas mais distantes deste eixo, como a região de Nioaque (Brejão) no mesmo Estado, fazendo ainda, referência à outras áreas de população mista com a participação Terena, como o caso de Dourados, assim como em áreas mais distantes como Vanuíre, Araribá e Icatu no Estado de São Paulo.

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O trabalho além de apresentar um quadro demográfico da população Terena em crescimento, também problematiza a demografia desenvolvida através da FUNAI. O índice populacional apresentado pela FUNAI em 1986 estima cerca de 10.000 indivíduos aldeados. Fernanda apresenta uma abordagem crítica neste capítulo inicial de seu trabalho, aos moldes da tradição que se constituía o CEIMAM durante e após os anos 80. Critica-se a metodologia desenvolvida pela FUNAI sobre a aplicação deste trabalho demográfico, delegado aos chefes de postos em prazo de sete dias para apresentação do mesmo, o que, de forma a cumprir as determinações, redundara em uma análise quantitativa errônea, ocultando o número real da população aldeada em Taunay e Ipegue. A contribuição de Fernanda é de ilação ao órgão intermediador, uma vez que aponta de modo comparativo, o censo determinado pela política indigenista do Estado e as estimativas de sua pesquisa de campo entre os Terena no MS. Ainda neste primeiro capítulo, a autora problematiza a questão socioeconômica de Taunay-Ipegue ao se debruçar sobre as trocas e comercialização, identificando a rede complexa que se fazia presente e também identificada já nos anos 80 nas visitas do Grupo de Estudos Indígenas Kurumim. Neste ponto, o trabalho nos remete ao fenômeno da movimentação Terena nos espaços e tentativa de adaptação em suas novas territorialidades, urbanas ou não. O texto sinaliza uma atividade política agitada no Posto Indígena Taunay. Uma movimentação de política interna, devidamente em sintonia com a política indigenista externa; uma movimentação política em relação à religião, apresentando notáveis mudanças nos procedimentos ecumênicos, seja pela releitura do protestantismo e o desenvolvimento de uma nova denominação, seja pela apropriação do catolicismo nas aldeias e sua direção “ecumênica” hegemônica; nos dois casos, com suas próprias pautas em debates na comunidade. Ao apresentar o segundo capítulo, a autora explica: “O objetivo deste capítulo é analisar as adaptações do sistema de representação sobre o mundo, no contexto em que estão inseridos os Terena hoje.” Sob o título “As Representações do Xamanismo e as Religiões Cristãs,” organiza uma contextualização histórica do Oheokoti, como importante cerimônia para os Terena. A autora se utiliza de depoimentos e fontes bibliográficas, se remetendo a cronistas, viajantes e pesquisadores consagrados. Apresenta entre essas suas fontes e referenciais, diretamente dialogando com a bibliografia sobre o Chaco e os Terena: Métraux, Susnik, Altenfelder, Siqueira,

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Castelnau, J. Bach, Kalervo Olberg, Sanches Labrador, Silvia Carvalho (Carvalho, 2008, p.149-163), além de parte da produção de Roberto C. de Oliveira sobre os Terena. Fernanda Carvalho nos apresenta o Oheokoti como um ritual consistente na reunião de koixomuneti das aldeias de Taunay Ipegue, onde juntos realizam uma viagem xamânica, utilizando alguns instrumentos como o maracá acompanhado da bebida, a chicha, que na época era representada pela água-ardente. Ao escrever sobre o Oheokoti, a autora contribui com uma construção etnográfica bastante importante no que se refere a sua construção etnográfica no período das décadas de 80 e início dos anos 90. Para isso a autora cita a contribuição de Modesto Pereira e sua filha como mediadores para se chegar aos xamãs Terena através dos quais contribuiu para que a autora estabelecesse uma interlocução direta com o Sr. Pascoal e Sr. Onofre, importantes xamãs Terena que possibilitaram a nossa pesquisadora um contato direto com esse ritual marcante da historicidade Terena. Diante da inferência violenta da política indigenista e das novas realidades históricas, entende-se o Oheokoti em sua função profilática, e, diante do quadro histórico que envolve os Terena, busca compreender as configurações do ritual, ao se apropriar de novas roupagens em suas manifestações. Afirma o ritual, como “resignificado,” uma vez que os agradecimentos sobre a colheita, por exemplo, encontrava-se desacralizado, diante da aceleração histórica, uma das responsáveis por sistemas de novas adaptações sociais que se eleva com novas configurações políticas e econômicas. O desenvolvimento da cerimônia, diante desse processo, é apresentado como modificado, diferindo-se da realização dos antigos rituais, na medida em que se limita ao cerimonial dos koixumoneti, não mais sendo realizada uma série de outras danças englobantes dos indivíduos da comunidade. (Carvalho, 2008, p.63) Com essas inferências, o trabalho nos remete a presença de alguns novos elementos Terena. Por exemplo, após o contato com o cristianismo ainda no Chaco, introduz-se o elemento deus no céu, que passa a dividir espaço com Vanuno e outras serpentes aquáticas como elementos de permanência da visão Terena. O que demonstra a continuidade de alguns elementos chaquenhos na religiosidade, mesmo após séculos de contato com o mundo mítico cristão, contribuindo para que a visão de mundo Terena seja entendida como uma série de confluências entre elementos cristãos e crenças xamânicas. (Carvalho, 2008, p.65)

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O texto procura focar o elemento central às visões de mundo, tendo como sujeito fundamental a figura do koixomuneti. Para isso, concentra o seu dissertar sobre a escolha e formação do koixomuneti, historiando sua inicialização em relação ao pretérito, utilizando seu referencial, onde identifica a função de curador e prolongador da vida pela intervenção do rezador que se comunica com outros rezadores já mortos. Fernanda nos aponta desta maneira o status e o papel crucial deste indivíduo para a comunidade. Sobre os poderes do koixomuneti, o texto procura entender o aspecto mágico e sua função antinômica, pois ao mesmo tempo em que é prestigiado por seus poderes de cura, é também, temido por este mesmo poder de inferência na vida dos indivíduos que formam a comunidade. Relata ainda depoimentos deste poder mágico capaz de visões além do lócus de sociabilidade, tendo acesso a outro espaço histórico e mesmo de deslocamento do koixomuneti para esses outros espaços. Uma espécie de “parte” com os animais é relatada como viabilizadora dessas concepções e que são entendidas como parte fundamental da cosmovisão Terena. Nossa autora continua discutindo a problemática político-religiosa entre os Terena ao apresentar o desenho que se erguia entre relações de poder interna a este grupo étnico. Mapeia a tríade política no território terena ao identificar como força política os protestantes, católicos e SPI. Evidencia-se a existência de rede de poderes em seu (triunvirato), tendo como objeto e objetivos diversos, a população Terena. Todavia, pareceu-nos evidente que nesta rede de poderes, o objeto se transforma em hegemônico ao se apropriar desses novos elementos religiosos como instrumentos e lócus de reprodução da política interna do grupo, fazendo frente aquilo que não fosse de interesse dos Terena. Uma verdadeira apropriação das novas perspectivas de organização político-social que foram inseridas pelo não-índio, em partes, às organizações terena. Apontando até mesmo para a problematização se os Terena alguma vez tivessem realmente se convertido ao mundo cristão. No capítulo terceiro, Fernanda Carvalho procura entender as concepções de saúde e doença para os Terena na época de sua pesquisa, a partir de observações de campo, buscando a construção de “um modelo etiológico terena, com base nos estudos de Laplantine (1986) e Zempléni (1985)” (Carvalho, 2008, p.85). Com depoimentos (interlocuções) de campo, a autora procura identificar a construção narrativa sobre a origem e as causas das doenças, registradas entre os Terena. Contribuindo para isso, a visão de mundo acerca da doença, consistente em um pluralismo que conduz as concepções de doenças de acordo com a tradição terena, a medicina popular, e, ainda, as

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apropriações das ciências médicas. A síntese desta tríade, resultante em elementos fundamentais na composição de uma perspectiva Terena sobre da doença, contribui na constituição da cosmo visão Terena, e, deste modo, na leitura etiológica no cotidiano da comunidade. Esse capítulo do trabalho de Fernanda Carvalho se ocupa em entender as manifestações terena sobre a doença, onde a autora infere no sentido de que essas representações estão “associadas à concepção de um equilíbrio rompido” (Carvalho, 2008, p.100). Deste modo, situa o debate sobre do modo de ver as origens e as causas das doenças entre os Terena de Taunay-Ipegue, apresentando ainda um diálogo diante de suas referências bibliográficas sobre as concepções de doenças. Propõem-se dois tipos de relação entre meio e homem, sendo: os feitiços (tipo “A”) e as transgressões (tipo “B”). O primeiro relacionado às problemáticas internas de desequilíbrio provocadas por um intermediador (o feiticeiro), e, o segundo, relacionado ao rompimento do equilíbrio por intermédio direto do indivíduo com o meio, sem intermediadores, que, neste caso, serão necessários para o restabelecimento do equilíbrio entre as partes. E, sobre este aspecto, o da intermediação, Fernanda Carvalho identifica a figura do intermediador como o elemento necessário para a restauração. Contribuindo desta maneira para entendermos, ao menos, um dos aspectos da importância histórica dos koixomuneti na sociedade Terena, ampliando-se ainda a parcelares dos regionais. No quarto e último capítulo, o livro de Fernanda Carvalho propõem descrever sobre as práticas de cura e cuidados especiais durante o ciclo de vida dos indivíduos, apresentando uma abordagem acerca dos recursos assistenciais no PI Taunay, as opções dos Terena diante dos agentes de cura, o papel dos Koixumoneti como curadores. E, ainda, diagnosticando os problemas mais freqüentes em relação à saúde e o atendimento a gestantes e os cuidados no parto e com os recém-nascidos. Finalizando, apresenta um quadro fitoterápico terena, relativamente extenso em que se apóiam os membros da comunidade, através dos seus agentes de cura. Nas suas páginas finais a autora descreve suas considerações reconhecendo o pluralismo Terena sobre a doença e suas práticas de cura durante o processo histórico de contato. A dissertação de Fernanda Carvalho conclui ainda reconhecendo quatro tipos de crenças em curas de doenças através das práticas dos koixumoneti, curandeiros (esses não sendo necessariamente como o Koixumoneti, uma espécie de viajantes no mundo espiritual), a medicina popular e a institucional, fazendo, os Terena, distinção dessas

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práticas, pluralizando-as diante de uma concepção de doenças do espírito e doenças do corpo. Contribui para um melhor conhecimento da figura do Koixumoneti como personagem marcante da historicidade terena, mesmo após a relativa recente história de contato com as representações cristãs, identificando a importância deste, diante toda a comunidade, e, ainda, contribuindo para o entendimento das relações do todo com esta personagem respeitada e temida, porém, sob a mira desse mesmo todo que o reconhece como um koixumoneti, bom ou ruim, de acordo com a lógica do bem e do mal via cosmologia cristã. Identifica a viagem xamânica de forma distinta da possessão judaica-cristã, marcando o posicionamento Terena diante do cosmos religioso cristão e sua apropriação ao desenvolver as suas leituras diante de suas práticas tradicionais em constantes transformações diante do processo de contato, que embora ganhe novas configurações, não delega ao xamanismo uma posição marginal na historicidade Terena. Assim, reconhecendo a permanência da figura do xamã nas narrativas históricas desse povo, tendo “na comunicação com os seus ‘grandes mortos’ e com os espíritos de animais o veículo fundamental de reequilibrar – ainda que apenas uma vez por ano no Oheokoti – as suas relações com o universo.” (Carvalho, 2008, p.147) Este trabalho de Fernanda Carvalho contribui ao entendimento crítico da política indigenista, através da atuação de parte de um grupo de intelectuais de Araraquara, ligados ao CEIMAM e seu papel ao se posicionar (através desses intelectuais) nesse contexto. E, também, ao propor um entendimento, fornecendo elementos para uma proposta alternativa diante da política oficial que ainda se praticava, não se tratando de fazer apenas uma denúncia, mas também, de apresentar uma possibilidade alternativa de se pensar outra política acerca dos povos indígenas e da identidade étnica estabelecendo um diálogo com a área da saúde publica. Esse último aspecto nos chamou atenção, pois o aponta para uma contribuição a área médica. Não foi possível identificar este sinal com maior profundidade para compreendermos se é a perspectiva médica que influencia o trabalho antropológico da autora ou se o contrário. Entretanto é possível afirmar que as duas perspectivas contribuem na constituição de seu livro, reforçando a possibilidade de um diálogo como extensivo ao pensamento na área da saúde.

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Jean Paulo Pereira de MENEZES Professor de História e Metodologia Científica, União das Faculdades dos Grandes Lagos, UNILAGO. Pesquisador membro do grupo Gênero, Identidade, Memória Universidade Federal da Grande Dourados - UFGD E-mail: fafica_95@yahoo.com.br

Recebido em 02/02/2010 Aceito para publicação em 01/03/2010

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CASTRO, Celso; LEIRNER, Piero (org.). Antropologia dos militares. Reflexões sobre pesquisas de campo. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2009. 242 p. Carla Souza de CAMARGO

Por diferentes formas e moldes, a etnografia prevaleceu como o método mais caro à teoria antropológica. Estranho seria se ao longo do desenvolvimento da disciplina as crises não aparecessem, e elas vieram. Monografias extremamente descritivas, por um lado; aproximadas à prática de “colecionar borboletas azuis” em razão de relatos sem ânimo do que é extremamente exótico num momento, em outro somente traduziam uma interpretação de terceira mão; a incessante procura pela melhor forma de melhor traduzir o discurso nativo; e empreendimentos para englobar diversas vozes são exemplos entre muitos outros presentes em diversos momentos na história do desenvolvimento da disciplina antropológica. Impróprio seria apontar a etnografia como um método consolidado pelo consenso e também a antropologia como um campo de saber que tenha relegado pouca atenção aos seus métodos. A etnografia é um método que prescreve uma rotina de pesquisa, um tratamento específico aos dados e também em relação ao tipo de texto que será produto deste trabalho. Entretanto, ao aplicar o método para o conhecimento de uma instituição tão regulada e reguladora como o universo militar, os pesquisadores se deparam com uma série de códigos de condutas e adequação justa de ações e comportamentos, rotina e instâncias burocráticas. Nesse sentido, uma pausa para uma revisão de métodos – e assim fizeram os organizadores do volume Antropologia dos Militares: reflexões sobre pesquisas de campo, Celso Castro e Piero Leirner – é de grande contribuição para dar continuidade ao empreendimento de transformar em objeto antropológico as ações cotidianas que transcorrem do lado interno da instituição militar. Composto por onze artigos, além de uma introdução produzida por seus organizadores, este volume conta com a contribuição de pesquisadores de várias áreas das Ciências Humanas, que compartilham o interesse pelo método etnográfico e pelas contribuições específicas que a observação participante pode agregar ao rendimento das pesquisas; nem todos os pesquisadores aqui congregados se utilizam de tais métodos, mas por ocasião da pesquisa, entram em relação com antropólogos e com a produção desta linha de pesquisa – a Antropologia dos Militares. Estes artigos, e as pesquisas

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neles descritas, perpassam temas clássicos da antropologia, como gênero, parentesco e rituais; não é, no entanto, sobre os objetos das pesquisas que repousa a grande contribuição desta obra, mas sobre o relato minucioso das trajetórias pessoais que cada pesquisador travou com suas pesquisas e seus objetos. É por meio da demonstração de suas experiências desde o início de suas pesquisas, dos procedimentos que tiveram que ser seguidos, das dificuldades enfrentadas e dos erros cometidos, que se esboçam os contornos de uma pragmática que pode ser de grande contribuição para direcionar as ações dos atuais e futuros pesquisadores interessados pelas instituições militares. Na introdução do livro, Castro e Leirner apontam que a organização deste volume é fruto de trabalhos pioneiros que ambos desenvolveram na década de 90 e que motivaram estudos sobre o cotidiano dos militares – que viriam a constituir a antropologia dos militares –, diferentemente da produção existente, nas ciências humanas, em relação às características externas da instituição militar, principalmente agregadas a temas de conjunturas políticas – regimes militares ou transições de regimes políticos. Os artigos reunidos têm em comum as motivações e fins acadêmicos que os guiam e também a experiência dos pesquisadores no contato direto com militares. Os autores apontam, ainda, que existem muitas possibilidades para novas pesquisas – o serviço militar obrigatório, a Marinha e a Aeronáutica, trajetória dos militares –, apesar do significativo aumento dos trabalhos nesta área desde o ano 2000. Vários são os artigos que relatam uma, e sempre presente, morosidade dos processos de autorização das pesquisas. Celso Castro relata que mesmo com intervenção de seu pai (que era militar) – desde os cuidados da redação da carta, até o acionamento dos contatos – e seu posicionamento como pertencente a “família militar,” houve uma espera de dois meses entre o pedido de autorização da pesquisa e a primeira visita a Academia Militar das Agulhas Negras. Piero Leirner relata que freqüentou a Escola de Comando e Estado-Maior do Exército ao longo de dois anos esperando uma autorização para o estudo de tal instituição, que nunca foi concedida, fato que não impediu que o pesquisador realizasse uma torção em seu objeto e produzisse uma etnografia a respeito de sua experiência. O mesmo entrave foi encontrado por Aline Prado Atassio ao apresentar sua pesquisa à Escola de Sargentos das Armas, que levou um ano para ser aprovada, passando por um processo difícil, de várias re-elaborações do projeto. Quando aprovada, a pesquisadora teve que se deslocar apressadamente para que fosse possível cumprir o cronograma apresentado na proposta aprovada.

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Assim como uma demora constante nos pedidos de autorização da pesquisa, são inúmeras as tentativas de dissuasão relatadas nos artigos. Alexandre Colli de Souza não conseguiu autorização para estudar os rituais e cerimoniais em seu primeiro empreendimento para adentrar uma instituição militar, apesar de escrever aos mais diversos órgãos nacionais e um órgão estadual. Acabou conseguindo a condição de pesquisa em uma instituição militar através de um amigo, mas precisou de uma autorização formal do comandante da unidade para sua realização. Para o autor, a dissuasão é um mecanismo da lógica militar, que opera através de estratégias de esconder-se em determinadas circunstâncias e mostrar-se em outras. Adriana Barreto de Souza relata várias circunstâncias em que a persistência e a posição incisiva foram altamente determinantes para driblar os atravanques que alguns movimentos de dissuasão impunham a sua pesquisa em arquivos militares, como a falta de pessoal em um arquivo que tornava a pesquisa inviável e também um horário muito limitado de funcionamento de outro arquivo. Existe uma grande preocupação por parte do Exército, apontada neste livro por alguns pesquisadores, em posicionar os etnógrafos na chave amigo/inimigo da instituição. Lauriani Porto Albertini relata que, por vezes, sentiu-se incomodada com a posição atribuída a ela de porta-voz do Exército, mas que esta posição fora essencial para sua boa relação em campo e que sua pesquisa representa muito do papel que a ela estava atrelado, como uma “amiga do Exército.” Caso semelhante nos relata Cristina Rodrigues da Silva: mais do que todas as outras identidades a ela atribuídas no momento de sua pesquisa, ela era reconhecida como uma “amiga do exército,” alguém que é visto sob a possibilidade de construir um projeto político comum com o Exército. Máximo Bandaró nos conta que alguns elementos de sua condição como pesquisador no período de seu campo o ajudaram a figurar em outras identidades que fugissem da chave amigo/inimigo do exército. Para ele, ter uma autorização do diretor do Colégio Militar da Nação (academia de formação inicial do exército argentino), estar na posição de estudante de doutorado na França e ter uma idade aproximada com a maioria dos cadetes foram pontos essenciais para que conseguisse fugir de tais questionamentos quanto ao seu posicionamento ideológico/político. Outro mote colocado pelo autor é que, ademais a hostilidade que marca as relações da sociedade argentina com o Exército e dos motivos sociais e jurídicos dessa relação se mostrarem justos, esta não pode ser a única visão antropológica possível da instituição.

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A “família militar,” apesar de ser tema de duas pesquisas relatadas neste livro, também opera como um importante instrumento metodológico a ser compreendido e operacionalizado. Como acima referido, a condição de Celso Castro como pertencente a uma “família militar” foi um fator de grande contribuição para a viabilidade de sua pesquisa. Porém, essa instância ainda pode ser gerenciada de outras formas, como nos exemplos apontados por Fernanda Chinelli, Cristina Rodrigues da Silva e Juliana Cavilha. Chineli desempenhou seu trabalho de campo, que tinha por objeto as esposas dos militares, em um edifício residencial de famílias militares, e ao fim de sua pesquisa constatou que precisava levar em conta a incessante atenção das esposas para não prejudicar os maridos com algum relato indevido, assim como a prática de demonstrar o pertencimento à família militar como um modelo positivo, a ser seguido. Dessa forma, relata Chinelli, dada a importância da participação das mulheres na constituição das carreiras dos maridos, seus relatos pareciam ser construídos a partir de um tipo ideal de “família militar.” Silva coloca que a “família militar” sugere a idéia de uma extensão do quartel, uma vez que a organização das moradias e do cotidiano está submetida às mesmas normas da instituição militar. Cavilha ao retratar os rituais do Exército, a partir de relatos de militares aposentados, fala também da contribuição dos relatos de suas esposas, por fazerem parte da comunidade militar e terem acompanhado e contribuído diretamente para as carreiras dos maridos; ainda segundo ela, não é somente dentro das residências que se pode compreender este papel da esposa do militar, ao citar que na “Despedida,” ritual de aposentadoria, a esposa também é homenageada, pois “é uma carreira construída em casal.” (p.147) Os artigos de Celso Castro, Piero Leirner e Emilia Takahashi relatam sobre determinada tensão acerca das relações aparentemente avessas entre a universidade e os militares. Um passado de relações de adversidade – intervenções militares na política do Brasil - não deixa de habitar o imaginário do presente e pautar a relação que é assumida entre pesquisador e objeto no estudo das instituições militares. Para Celso Castro, uma saída era sua condição “híbrida” – apesar de formado em ciências sociais, também fazia parte (embora ele mesmo marque que nunca completamente) do mundo militar pelo pertencimento a uma “família militar.” Leirner aponta que se de fato as noções militares são formuladas a partir da imagem da guerra, a universidade atuaria como um espelho hierárquico disciplinado, onde “A universidade seria como um exército; o conhecimento, como a disciplina; a ciência, como estratégia; a antropologia, como espionagem; o etnógrafo, na ponta da lança, como o agente duplo que é ao mesmo

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tempo informante e propagador das idéias.” (p.38). Dessa forma, aponta Leirner que o pesquisador, ao se apresentar frente ao exército, tem que se colocar não só como um representante da universidade, como deixar claro seu lugar na “cadeia de comando universitária,” por meio de cartas e pedidos daqueles que, segundo essa visão lhes seriam superiores. Emilia Takahashi também tem uma contribuição importante nessa questão, ao relatar os problemas que enfrentou na universidade por conta de seu duplo pertencimento – como professora da Academia da Força Aérea e como pós-graduanda na universidade. Esta muitas vezes fora interrogada sobre sua postura ideológica nos encontros acadêmicos e também sobre a interferência de sua condição no processo de seleção da pós-graduação. Dois pontos abordados, desenvolvidos respectivamente por Piero Leirner e Máximo Bandaró, são de importância fundamental para qualquer estudo antropológico sobre militares. Leirner discorre a respeito das inversões dos fluxos de informações que se pode ter na experiência dos estudos com militares. Ele descreve que a antropologia como uma área do conhecimento útil aos olhos dos militares é um fenômeno que não pode ser ignorado. Relata a respeito da sua experiência em campo, onde os militares o convidaram a trabalhar para eles e também sobre um movimento que não é recente, mas que cresce em números: a contratação de antropólogos pelo exército americano, até mesmo por meio de organizações aparentemente descoladas das Forças Armadas. Bandaró coloca que a transformação dos militares em uma alteridade, atribuindo características a estes radicalmente opostas às do pesquisador, é uma prática de “militarização” dos militares. Por meio desta prática concebe-se que a comunidade militar é “uma espécie de sociedade tradicional homogênea, equilibrada, coesa, isolada e encerrada em si mesma.” (p.193) Segundo o autor, desta forma, a análise antropológica recairia antes em um exercício de relativização do que uma tentativa de compreensão e análise das práticas e idéias militares, uma vez que é próprio da identidade militar se opor radicalmente à sociedade civil. Essa argumentação se constrói na mesma direção em que Castro defende que o “civil” é uma invenção dos militares, que só adquire algum significado diante dos militares e quando assim se é classificado por estes. Como descrito pela maioria dos artigos presentes neste livro, hierarquia e disciplina são valores que permeiam as concepções dos militares, sendo o pesquisador levado a ter sempre em consideração estas matrizes de baliza; como aponta Leirner, esses conceitos não significam na parte interior da caserna a mesma coisa que em seu

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exterior. A hierarquia que o autor delineia se mostra tão especializada que admite formas de uma hierarquia individualizada, onde duas pessoas não podem ocupar o mesmo espaço; outro ponto importante é que essa hierarquia que pauta o entendimento militar é móvel, e por isso todo contato que é estabelecido pelo etnógrafo tem que ser refeito a cada contato deste com a instituição. A disciplina, por sua vez, é como uma prescrição única para todas as condutas militares: indissociável da etiqueta, estipula desde a formação para um combate até a maneira de entrar em um elevador. Uma pragmática da pesquisa: a etnografia como método em relação a um objeto, aparentemente fixo, que se mostra esparso, negociável e visível apenas no contato. Creio ser esta a principal contribuição do volume organizado por Celso Castro e Piero Leirner, e o desafio particular da antropologia dos militares. Um desafio duplo em suas ambições: negar a existência do sujeito militar interventor, rígido, autoritário em sua própria natureza, e evitar o deslize relativista, transpondo aos militares algo que descremos em nós mesmos - a tradição antes que a cultura - nos perdendo na crença e permanecendo cegos às criações. Os entraves, as limitações, as dissuasões nos dão a idéia da emergência de uma nova possibilidade: diferentemente da história serial, que enxerga como objeto a instituição militar, os feitos militares, as conquistas militares etc., os “problemas” encontrados pelos pesquisadores deste volume criam novos objetos de pesquisa; a espera, a tentativa de cooptação, a recusa, os empecilhos ao trabalho de campo, são constituintes e definidores da prática militar, da atenção dos militares aos possíveis relatos distorcidos de sua instituição, à tentativa de inversão no fluxo de informações na constituição da antropologia como área útil à instituição militar. Tudo depende, contudo, do contato estabelecido em campo. Não apenas na maneira como o estudo será levado, mas na própria possibilidade do objeto de estudo. É algo mais que sabido: o objeto não existe sem o sujeito, ou o nativo sem o antropólogo. E aqui se encontra, definitivamente, a contribuição de uma antropologia dos militares: dar a uma instituição e a um conjunto de singularidades, como os militares, a possibilidade de uma torção de sua posição nas ciências humanas, através do estudo de suas relações cotidianas, do contato direto com indivíduos que não nasceram (mas talvez morrerão) militares, de percepção de um conjunto de preocupações que vão além da instituição militar, da visibilidade de movimentos e deslocamentos que criam e recriam os militares, sua instituição e suas relações, dia após dia.

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Carla Souza de Camargo Mestranda em Antropologia Social Universidade Federal de São Carlos E-mail: carla@decamargo.com

Recebido em 04/03/2010 Aceito para publicação em 04/03/2010

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Contents

Editorial

p.9

Articles Script for an opera about the Amazon and future of the Forest

p.12

Laymert Garcia dos SANTOS

Fruit in the Soil of Magic Horticultural practices as socially conditioned techniques in the formation of Anthropogenic Amazonia Philip COMPTON

The Interview as a method of research with Homeless People Issues of Fieldwork

p.45

Ana Paula Serrata MALFITANO & Ana Cláudia Rodrigues MARQUES

Kendo: samuraic becoming, nipponic myths and rites Gil Vicente LOURENÇÃO Savages, stupids or heroes?

p.64

p.94

Wellington Teixeira LISBOA

Ayahuasca The crossroads of the Press

p.105

Beatriz Caiuby LABATE

Consciousness, visions and healing in Barquinha

p.116

Marcelo MERCANTE

Ayahuasca effects in psicometric of panic, anxiety and depression

p.139

Rafael Guimarães DOS SANTOS

Relatos de Pesquisas Access and Agreements: On how I made my research about the public homages at Rio de Janeiro p.144 Danilo César SOUZA PINTO

Revista de Antropologia Social dos Alunos do PPGAS-UFSCar, v.1, n.2, jul.-dez. 2009

p.20


Interview A debate about the PCC Interview with Camila Nunes DIAS, Gabriel de Santis FELTRAN, Adalton MARQUES, and Karina BIONDI

p.154

Bruno Paes MANSO

Book Reviews KISHI, S.; KLEBA, J.B. (orgs.) Dilemas do acesso à biodiversidade e aos

p.176

conhecimentos tradicionais: direito, política e sociedade Aline SCOLFARO

LIMA, Diana. Sujeitos e objetos do sucesso: Antropologia do Brasil emergente

p.183

Eduardo DULLO

CARVALHO, Fernanda Schmuziger. Koixomuneti: Xamanismo e Prática de Cura

p.187

entre os Terena

Jean Paulo Pereira de MENEZES

CASTRO, Celso; LEIRNER, Piero (orgs.) Antropologia dos militares. Reflexões

sobre pesquisas de campo Carla Souza de CAMARGO

Revista de Antropologia Social dos Alunos do PPGAS-UFSCar, v.1, n.2, jul.-dez. 2009

p.194


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Revista de Antropologia Social dos Alunos do PPGAS - UFSCar

jul.-dez.,v.1, n.2, 2009

ISSN: 2175-4705

A Revista de Antropologia Social dos Alunos do PPGAS-UFSCar (r@u) também publicará trabalhos em língua estrangeira: espanhol, francês e inglês. Os trabalhos devem ser submetidos exclusivamente por e-mail: rau.ppgas@gmail.com E devem indicar, em folha separada, nome(s) do(s) autor(es), titulação, afiliação acadêmica, endereço para correspondência e e-mail. Os textos devem estar digitados em página A4, fonte Times New Roman, corpo 12, espaçamento 1,5 cm, com margens esquerda/direita 2,5 cm, cabeçalho/rodapé 3 cm, em formato Rich Text (.rtf) ou Word (.doc), compatível com o Windows. As notas devem ser numeradas com algarismos arábicos, em ordem crescente e listadas ao final do texto, antes das referências bibliográficas. Quadros, mapas, tabelas, imagens etc., devem ser enviados em arquivo separado, com indicações claras, ao longo do texto, dos locais em que devem ser incluídos. No caso das fotografias, devem estar digitalizadas com resolução acima de 300 dpi e nos formatos TIFF, JPEG e/ou PNG. Os autores deverão ser comunicados do recebimento da sua colaboração - e se esta atende aos quesitos para ser encaminhada para avaliação - no prazo de até 8 (oito) dias a partir da submissão. E deverão ser comunicados do resultado da avaliação de sua colaboração no prazo de até 90 (noventa) dias, a contar a partir da confirmação do recebimento. Toda comunicação da revista para os autores será feita através do e-mail do primeiro autor do artigo. Os autores que não receberem mensagem da revista nos prazos supra-citados devem procurar novo contato para esclarecer se houve extravio de correspondência eletrônica. * Para inscrição da revista na base CNPq-Lattes, utilizar os seguintes dados: r@u: Revista de Antropologia Social dos Alunos do PPGAS – UFSCar ISSN: 2175-4705


a) Artigos e ensaios inéditos. Devem indicar título (em português e inglês) e apresentar, em português e inglês, um resumo entre 100 e 150 palavras e um elenco de palavras-chave (separadas por ponto) que identifique seu conteúdo. Limite máximo de 30 páginas, incluídas as referências. b) Relatos de pesquisa: espaço para apresentação de reflexões preliminares acerca das pesquisas dos alunos do PPGAS e outros programas de pós-graduação em antropologia. Limite máximo de 10 páginas, incluídas as referências. c) Traduções de trabalhos relevantes e indisponíveis em língua portuguesa. Devem apresentar título, nome(s) do(s) autor(es) e do(s) tradutor(es). Devem ainda ser acompanhadas de cópia do original utilizado na tradução, bem como autorização – do editor e do autor – para publicação. d) Resenhas de livros, coletâneas, filmes, documentários, discos, etc., editados nos dois últimos anos a contar da data de publicação da revista. Devem indicar a referência bibliográfica do trabalho resenhado. Não devem ultrapassar 6 páginas. e) Entrevistas devem apresentar o(s) nome(s) do(s) entrevistado(s) e entrevistador(es). Devem trazer também uma apresentação de, no máximo, 1 página. Solicitamos também o envio da autorização do(s) entrevistado(s), concordando com a publicação do trabalho. As entrevistas não devem exceder 30 páginas. Menções a autores ou citações presentes no corpo do texto devem adequar-se aos respectivos modelos: um único autor, (Geertz, 1957) e (Geertz, 1957, p. 235), e mais de um autor (Hobsbawn; Ranger, 1984) e (Hobsbawn; Ranger, 1984, p. 254). Títulos do mesmo autor com o mesmo ano de publicação devem ser identificados com uma letra após a data: (Lévi-Strauss, 1962a) e (Lévi-Strauss, 1962b). Citações com mais de 3 linhas devem ser apresentadas em parágrafo próprio. As referências bibliográficas devem vir ao final do trabalho, listadas em ordem alfabética, obedecendo aos seguintes padrões exemplificados, segundo as normas da ABNT NBR 6023. É obrigatória a apresentação do número total de páginas do livro citado ou do número de páginas, quando o a menção for feita a um capítulo de livro, coletânea, etc. Livros: LÉVI-STRAUSS, Claude. La pensée sauvage. Paris: Plon. 1962. 395 p. ______. Le Totémisme aujourd'hui. Paris: PUF, 1962. 154 p. ______. O cru e o cozido. Tradução de Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo: Cosac & Naify, 2004. 442 p. BATESON, Gregory; MEAD Margaret. Balinese Character. A Photographic Analysis. New York: The New York Academy of Sciences, 1942. 277 p.


Artigos em periódicos (versões impressa e eletrônica): GEERTZ, Clifford. Ethos, world view and the analysis of sacred symbols. The Antioch review, Yellow Springs, v. 17, n. 4, p. 234-267, 1957. TOREN, Christina. Como sabemos o que é verdade? O caso do mana em Fiji. Mana, Rio de Janeiro, v. 12, n. 2, 2006. Disponível em: . Acesso em: 31 Mar 2007. Trabalhos em coletâneas: STOCKING JR., George. The Ethnographer's Magic: Fieldwork in British Anthropology from Tylor to Malinowski. In: ______. (Org.). Observers observed – Essays on Ethnographic Fieldwork. Madison: The University of Wisconsin Press, 1983. p. 70 120. TURNER, Terence. Ethno-ethnohistory: Myth and History in Native South American Representations of Contact with Western Society. In: HILL, J. (Org.), Rethinking History and Myth. Indigenous South American Perspectives on the Past. Urbana: University of Illinois Press. 1988, p. 235-281. Teses ou dissertações acadêmicas: DAWSEY, John Cowart. De que riem os bóias-frias? Walter Benjamin e o teatro épico de Brecht em carrocerias de caminhões. 1999. 235 f. Tese (Livre-docência) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo. 1999. Documento eletrônico: AMARAL, Rita. Antropologia e internet. Pesquisa e campo no meio virtual. In: OS URBANITAS - Revista digital de Antropologia Urbana. ano 1, v. 1, n. 0, out. 2003. Disponível em: <>. Acesso em: 18 jan. 2007. Trabalho e resumo publicados em Anais de Congresso: Trabalho completo (versões impressas e digitais) SILVA, Márcio Ferreira da. A Fonologia Kamayurá e o Sistema de Traços de Chomsky e Halle. In: GEL-SP, XXIV. PUC-Campinas. Anais do XXIV GEL-SP. Campinas/SP, 1981. v. 1, p. 175-182. PEREZ, Léa Freitas. De juventude e da religião - modulações e articulações. In: JORNADAS SOBRE ALTERNATIVAS RELIGIOSAS NA AMÉRICA LATINA, XIII, 2005. PUCRS. Anais da XII Jornadas sobre Alternativas Religiosas na América Latina. Porto Alegre/RS, 2005. CD.


MARQUES, Ana Claúdia Rocha. Singularização e Transmissão do Conhecimento Antropológico. A antropologia na USP. In: ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS. 31º. Hotel Glória. Anais do 31º. Encontro da ANPOCS. Caxambu/MG, 2007. Disponível em <http://201.48.149.88/anpocs/arquivos/13_11_2007_14_24_54.pdf>. Acesso em: 15 de abril de 2008.

Resumo (versões impressas e digitais) LANGDON, E. J. . Xamânismo no Mundo Pós-Moderno: Neo-Xamânismo entre os Siona. In: REUNIÃO DE ANTROPOLOGIA DO MERCOSUL: DESAFIOS ANTROPOLÓGICOS, VII., 2007. UFRGS. Anais da VII RAM. Porto Alegre, 2007, p. 1-1. ALMEIDA, Mauro. Conflitos da conservação ambiental: identidades, territorialidades e natureza. In: REUNIÃO BRASILEIRA DE ANTROPOLOGIA: SABERES E PRÁTICAS ANTROPOLÓGICAS: DESAFIOS PARA O SÉCULO XXI. 25ª. 2006. UFG/UCG. Anais da 25ª. RBA. Goiânia/GO, 2006. CD (V. 01) Referências videográficas Prelúdio. Direção: Rose Satiko Hikiji. Produção: Laboratório de Imagem e Som em Antropologia, 2004, 13 minutos. Multimeios: CD MIRANDA, Marlui. Ihu – todos dos sons. [S.1]: Pau brasil [1995].


Antropologia Social Programa de Pós-Graduação

ISSN: 2175 - 4705

jul.-dez. 2009 volume 1, número 2

Universidade Federal de São Carlos São Paulo, Brasil


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