Texto de subsídio para a militância
ASSEMBLEIAS POPULARES DA MINERAÇÃO - um debate urgente e necessário -
Movimento pela Soberania Popular na Mineração MAM
Expediente
Secretaria Nacional do MAM Rua Quintino Bocaiuva, 429, Velha Marabá CEP: 68.500-030 Marabá - Pará mam.mineracao@gmail.com mamnacional.org.br www.facebook.com/MAMNacional
Capa: André Gouveia Projeto Gráfico: Raul Gondim Fotos: Arquivo Campanha pelas águas e contra o mineroduto da Ferrous (pág. 28), Arquivo MAM (pág. 13, 14, 15, 22, 23, 24, 25, 26 e 27) e Marcelo Cruz (pág. 10, 18 e 21).
Texto de Subsídio - 2ª versão / MAM - Belo Horizonte 2017
Índice Introdução ................................................................................................... 06 Por que falar de soberania na mineração? .................................. 08 População rural e urbana .................................................................... 14 Trabalhadores e trabalhadoras ..........................................................14 O que é uma Assembleia Popular? ................................................. 16 Para que a Assembleia Popular da Mineração? ........................ 17 Quem participa da Assembleia Popular da Mineração? ....... 18 Como funciona a Assembleia Popular da Mineração? .......... 19 Referências .................................................................................................. 26
"(...) na alquimia colonial e neocolonial, o ouro se transforma em sucata e os alimentos se convertem em veneno. Potosí, Zacatecas e Ouro Preto caíram de ponta do cimo dos esplendores dos metais preciosos no fundo buraco dos filões vazios, e a ruína foi o destino do pampa chileno do salitre e da selva amazônica da borracha; o nordeste açucareiro do Brasil, as matas argentinas de quebrachos ou alguns povoados petrolíferos de Maracaibo têm dolorosas razões para crer na mortalidade das fortunas que a natureza outorga e o imperialismo usurpa. A chuva que irriga os centros do poder imperialista afoga os vastos subúrbios do sistema. Do mesmo modo, e simetricamente, o bem estar de nossas classes dominantes dominantes para dentro, dominadas de fora - é a maldição de nossas multidões, condenadas a uma vida de bestas de carga.” Eduardo Galeano
Introdução Refletir, debater e produzir uma memória política da mineração através dainterpretação e incorporação da pedagogia de luta dos trabalhadores e populações em contradição com o capital mineral, anunciando propostas de superação soberana e popular do atual modelo de mineração. Este é o sentido da proposta das assembleias em 100 municípios do país com atividade mineral e/ou afetados pelo escoamento da extração para a exportação. Estamos certos de que esse esforço coletivo pode nos assegurar um lugar na luta de classes no Brasil, sobretudo um lugar de atuação nas contradições do modelo mineral, dado o caráter destrutivo da indústria extrativa evidenciado no crime-catástrofe produzido com o rompimento da barragem de Fundão em Mariana, Minas Gerais; assim como na efetivação do complexo de mineração S11D, no Grande Projeto Carajás, no sudeste paraense. A história recente, de intensificação da extração mineral no Brasil, produziu uma série de contradições na sociedade, nas cidades mineradas, na classe trabalhadora, nos ecossistemas e biodiversidade de inúmeros territórios, sejam eles indígenas e/ou quilombolas, assim como em outros territórios rurais de assentados de reforma agrária, ou de pequenas e médias propriedades; em todas as situações a indústria extrativa se apoderou por pilhagem da riqueza social e da natureza, transformando-a em mercadoria e em lucro dos seus acionistas. Existe uma ligação entre os interesses do setor extrativo e a corroboração exercida em diferentes instituições do Estado, e em todos os níveis (municipal, estadual e federal). Esta combinação de interesses não é pontual, mas sim sistemática, tendo efeitos diretos na pauta política nacional. A prática das empresas não está desassociada da política que tem sido historicamente exercida pelo Estado brasileiro no setor da mineração. Este é um debate fundamental, e precisa também ser feito nas assembleias populares. Devemos, com o conhecimento, despertar a luta para estas contradições.
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As assembleias populares são um esforço de politizar o debate, nacionalizando o conflito político, que hoje é em geral tratado cidade a cidade, região a região, empresa por empresa. Contribuir para que tenhamos um diagnóstico regional e nacional de como as empresas e governos atuam, e como o povo está se organizando para defender os seus direitos e os seus territórios. As assembleias trazem também a necessidade de resgatarmos uma narrativa de Brasil, para que possamos nos enxergar cada vez mais como o que também somos: um país minerador, e muito minerado. E que teve seus bens minerais saqueados em toda a sua história. E o seu povo explorado no trabalho na mineração. E muitos dos territórios e da nossa natureza destruídos em nome de uma lógica privatista. Nunca tivemos soberania quando se trata da mineração. A iniciativa faz parte do esforço de construção do MAM, iniciado em 2012, de construir um movimento de caráter popular, classista e anticapitalista que tem como objetivos principais organizar as populações em conflito com a mineração, e pautar outro modelo de mineração na sociedade brasileira. Mas esperamos que as assembleias não sejam uma iniciativa do MAM apenas, mas sim de todos aqueles e aquelas que estão em luta contra este modelo destrutivo do capital. Todas estas questões são centrais para serem encaradas nas Assembleias Populares na Mineração, no grande esforço de conectarmos os nossos problemas e lutas nos nossos territórios e locais de trabalho com o modelo mineral brasileiro. Esperamos que as assembleias contribuam também na prática política e organização do MAM, na luta por soberania popular na mineração!
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Por que falar de Soberania na Mineração? O Brasil é um país minerado há aproximadamente 300 anos. O primeiro ciclo mineral ocorreu no estado de Minas Gerais, que foi a primeira veia aberta no Brasil na exploração mineral. Os primeiros saqueios minerais foram o ouro e as pedras preciosas. Realizado no período colonial pela Coroa Portuguesa para atender a acumulação de metais preciosos na Europa, através da política econômica que ficou conhecida como mercantilismo. A mineração era mais um bem estratégico brasileiro que passava a ser funcional para a nascente economia brasileira: débil, desigual e dependente. O objetivo principal era atender as potências econômicas europeias da época. A organização da indústria de saque mineral se confunde com a formação do Estado brasileiro, tendo como característica a negação e a exclusão do povo. Impõe-se enquanto face mais violenta e excludente da formação socioeconômica brasileira, associada ao Estado enquanto responsável pela violência institucional. O segundo ciclo ocorre em meados do século XX, logo após a segunda divisão internacional do trabalho. Nesse momento o mundo estava dividido entre países especializados em fornecer matéria-prima e países que a utilizavam para fazer produtos industrializados. A tarefa que nos coube era o papel de fornecer matéria-prima aos países de economia central. Nesse momento, em especial, o minério de ferro. Entretanto, a exploração mineral no Brasil se intensifica no séc. XXI, no período que ficou conhecido como o superciclo ou “boom” das commodities. Alguns dados dão uma noção do que significou o “boom”: a produção mineral brasileira cresceu 550% entre 2001 e 2011. Nessa década, a participação da indústria extrativa mineral no PIB cresceu 156%. Em 2000 representava apenas 1,6% e em 2011 passou para 4,1% (BITTENCOURT, 2013). A exploração de minérios nos primeiros 15 anos do século XXI é então marcada por um crescimento expressivo tanto no valor do minério, quanto na quantidade extraída.
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O aumento expressivo da extração dos minérios no território brasileiro no período do “boom” se deu, principalmente, por dois motivos: o primeiro, pelo alto consumo mundial de importação de minério de ferro pela China, que no ano 2000 se encontrava no patamar de 150 milhões de toneladas (GRIBEL, 2008) das importações globais. Somente o Brasil exportou para a China no ano de 2014 mais de 152 milhões de toneladas de minério de ferro, o que correspondeu a 52% da exportação brasileira das commodities (BRASIL, 2016). O segundo motivo foi a política de crescimento econômico baseada na reprimarização da economia, através de uma ênfase de fortes investimentos em bens primários, mais do que os beneficiados e industrializados. Essa política teve como fomentador o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), através dos financiamentos de grandes projetos (minerários, petrolíferos, hidrelétricos, ferroviários e portuários), que beneficiavam diretamente uma parte da burguesia brasileira, que investiu fortemente em obras de infraestrutura para garantir as exportações das commodities, destacando-se o agronegócio e a mineração, como setores fundamentais da política econômica governamental para garantia de resultados positivos na balança comercial e no superávit primário. Porém somente cerca 30% do montante dos minérios extraídos ficou no Brasil. A grande parte se destinava ao mercado exterior, em especial à China, que nesse momento foi o principal parceiro comercial brasileiro, consumindo 40% de toda a exportação mineral brasileira. Além de reforçar a inserção econômica brasileira de forma dependente, a intensificação do saque mineral aprofundou os conflitos sociais e impactos ambientais. A lógica de saque às nossas riquezas da natureza permanece: roubam os nossos bens naturais e reforçam o papel primário exportador da economia brasileira. O povo brasileiro nunca exerceu controle sobre a exploração sobre os bens minerais, que são, por definição, finitos e não renováveis. A exploração sempre se operou de um modo subordinado, inserida na lógica do capitalismo dependente, que coloca o Brasil como exportador de matéria-prima, comprometendo a nossa soberania de diferentes maneiras. Não está colocada a discussão dos ritmos de exploração adequados à soberania do país, nem a necessidade de se construírem áreas livres da atividade de mineração, que possam proteger biomas e comunidades. Nem a concepção de que nem todo lugar pode ser minerado. Deveria ser um direito do povo brasileiro a possibilidade de participar dos rumos da extração mineral no nosso país.
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Existem hoje aproximadamente dois mil municípios brasileiros que possuem atividades econômicas, legais, oriundas da mineração; ou seja, cidades que recebem o imposto da Compensação Financeira pela Exploração de Recursos Minerais (CFEM). Entretanto, estima-se que cerca de mil e duzentas cidades no Brasil não recebem a CFEM, especialmente nos locais onde se minera agregados para a construção civil, tais como cascalho, areia, brita, entre outros. São então muitos municípios brasileiros que possuem a atividade da mineração. Muitos trabalhadores e muitos territórios impactados! Os capitalistas da mineração seguem tendo lucros extraordinários à custa da geração de muita pobreza e destruição. Como o exemplo da empresa Vale, que através do saque mineral garantiu altíssimos lucros a bolsos invisíveis, longe das empoeiradas comunidades localizadas nas cercanias das minas. A Vale, em 2013, obteve somente no terceiro trimestre um lucro líquido de R$ 7,9 bilhões, 139% a mais do faturado no mesmo período em 2012. Seus acionistas, em diversas partes do mundo, embolsaram no ano de 2014 US$ 4,5 bilhões. Em 2016 o lucro líquido da empresa foi ainda maior: 13,3 bilhões! Apesar do não funcionamento pleno dos empreendimentos no Complexo
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Mariana (MG), em consequência do rompimento da barragem do Fundão, a empresa conseguiu esse lucro extraordinário graças ao recorde de extração com as explorações do Complexo Carajás, no Pará. Nos últimos anos o código da mineração brasileiro passa por propostas de alteração. O projeto de lei que trata da reformulação do novo marco legal da mineração foi encaminhado pelo governo Dilma à Câmara dos Deputados em junho de 2013 e ainda se encontra em tramitação. Há uma ausência total no texto apresentado pelo executivo e nos textos apresentados na comissão especial do novo marco legal de todos os aspectos sociais e ambientais que a mineração afeta. Como se minerar fosse algo inevitável, em qualquer lugar. E os atingidos e o meio ambiente fossem questões secundárias. O rompimento da barragem do Fundão mostrou, de uma forma intensamente trágica, como tudo está conectado, que uma barragem de rejeitos da mineração de ferro pode causar impactos profundos a 700 km de distância. Como pensar mudanças profundas na regulação do setor sem levar em consideração que houve o rompimento de Fundão e todos os impactos que se sucederam? O evento nos mostrou, e segue nos mostrando, que os alertas de lideranças de comunidades atingidas pela mineração, ambientalistas e pesquisadores críticos não eram alarmes vazios. Tem se mostrado, em realidade, a materialização de muitas preocupações e previsões de um conjunto de pessoas e organizações que já acompanhavam a mineração no Brasil. O texto original do governo, e todas as versões que se sucederam, falharam brutalmente em não considerar, a sério, que a mineração é feita no entorno de comunidades, fauna e flora. E que impacta
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de modo irreversível o território onde ela se estabelece. Caso as propostas de novo marco legal não sejam repensadas levando em consideração estas questões, e não priorizando apenas o lucro das empresas, teremos um quadro futuro de aprofundamento da destruição ambiental, dos problemas sociais, da exploração sobre os trabalhadores e, sobretudo, da contínua perda da soberania nacional sobre os nossos minérios. O código mineral é somente mais uma medida de flexibilização dos instrumentos que deveriam regulamentar a exploração mineral e garantir direitos para as populações. A crise econômica mundial que se perpetua coloca os capitalistas em uma corrida intensa para se apropriarem dos bens naturais e dos bens minerais. E o atual governo golpista de Michel Temer tem demonstrado que vai aprofundar essa lógica de exploração desenfreada dos nossos bens minerais, tentando garantir ainda mais facilidades para as empresas que exploram os nossos bens minerais.
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Um exemplo é a medida que visa garantir a autorização da a exploração mineral em zona de fronteira. Por uma lei de 1979 esta área de caracteriza por uma faixa de 150 km de largura, atravessando 11 estados brasileiros, que possui uma série de restrições, entre eles a mineração. Esta área se localiza especialmente na Amazônia Legal, regiões com ainda muitas florestas e com presença significativa de povos indígenas. Autorizar a mineração nessas áreas é colocar em maior fragilidade populações tradicionais, historicamente encurraladas por sucessivos projetos de “desenvolvimento”, abrir a fronteira de um ainda maior desmatamento na Amazônia e colocar áreas estratégicas da segurança nacional no controle de empresas privadas. Mas não é o único caso: existem projetos hoje no Congresso Nacional para que passe a ser permitido minerar em territórios indígenas e em unidades de conservação integrais. E áreas que eram fechadas à exploração mineral, por serem consideradas estratégicas, estão começando a ser colocadas no mercado, deixando de ser reservas fechadas às exploração. Muitos perigos estão colocados nessa difícil conjuntura nacional e internacional. E não há limites para os projetos de exploração mineral, agora além de tentar fazer um código de mineração que sirva ainda mais aos interesses das grandes empresas, tentam mudar leis para poder minerar onde hoje é proibido. O Estado Brasileiro não tem sido capaz de alterar o peso das heranças patrimonialistas e excludentes sobre o controle dos recursos naturais e a distribuição desigual dos impactos da exploração desses recursos. Há o fator também de que nossa posição, primário-exportador, é ainda mais reforçada com a estrutura tributária nacional que estimula a exportação de produtos primários, como a Lei Kandir, que isenta as commodities minerais do recolhimento do ICMS. A mineração em grande escala no Brasil tem apresentado um padrão de apropriação extensiva da natureza e dos territórios. O aumento da produção mineral no Brasil nos últimos 15 anos teve como uma de suas consequências a ampliação de um quadro de conflitos socioambientais e de violações aos Direitos Humanos onde a mineração se estabelece. A dinâmica predatória que essa atividade impõe ao meio ambiente e às comunidades do seu entorno tende a provocar a perda das bases de reprodução socioeconômica dos grupos que vivem e trabalham nos locais onde os empreendimentos são instalados, comumente passando a se tornar dependentes, então, de uma única atividade: a mineração.
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População rural e urbana Nesse contexto o capital mineral avança a passos largos, tendo como objetivo o saque intensivo dos nossos minérios. Na contramão dessa história as populações tradicionais têm seus territórios usurpados e seus modos de vida (material e imaterial) destruídos. Boa parte das populações rurais são expulsas dos seus territórios, sendo obrigadas a ocupar as periferias das cidades brasileiras. As famílias que permanecem nos territórios são privadas de fazer uso dos territórios em que historicamente viveram. Associado a isto, as famílias são violentadas com impactos de toda ordem: casas destruídas pelas explosões; poluição sonora; poeira; contaminação dos cursos d´água, rebaixamento do lençol freático e extinção de nascentes; e a sobreposição da produção mineral sobre a produção cultural e econômica camponesa. As populações urbanas, quando não sofrem diretamente com os impactos da cava mineral, estão também vulneráveis aos diversos impactos provocados pelo atual modelo mineral. Envolvendo impactos sobre a água, dependência econômica dos municípios minerados, prostituição, aumento da criminalidade, pobreza, entre outros. Além disso, grandes estruturas logísticas como ferrovias e minerodutos atravessam cidades inteiras pelo país, provocando sérios acidentes com a população e transformando de modo profundo socioambientalmente a vida das populações. O desenvolvimento propagandeado pelas empresas nesse caso é tão somente o desenvolvimento do capital.
Trabalhadores e trabalhadoras Os trabalhadores da mineração são, muitos deles, duplamente explorados pelo atual modelo mineral. Inúmeros desses trabalhadores nasceram e vivem em áreas de exploração mineral, tendo que lidar com todos os impactos no ambiente e são, comumente, superexplorados pelas empresas através da terceirização, quarteirização e até mesmo sendo submetidos à mão de obra análoga à escravidão. A indústria de saque mineral se coloca com maior dose de crueldade contra esses homens e mulheres responsáveis pelo trabalho mineral. Não é por acaso que a mineração ao longo da história sempre foi um
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dos setores com índices mais altos de acidentes, doenças ocupacionais e mortes. Segundo o Ministério da Previdência Social houve, entre 2002 e 2010, o registro de 33.641 acidentes na indústria da mineração, levando ao óbito 341 trabalhadores. Esse lamentável contexto situa a mineração como o segmento que mais provoca acidentes, mata e mutila no mundo. O Brasil fica apenas atrás da África do Sul entre os países em número de óbitos registrados no trabalho na mineração. A história e padrão do modelo mineral brasileiro esteve, desde sempre, ligado a uma lógica de saque mineral. Apresenta-se como uma das faces mais violentas e excludentes da nossa história, excluindo historicamente qualquer possibilidade do povo decidir soberanamente na mineração. O modelo de mineração imposto no Brasil não se trata de um movimento conjuntural, mas sim estrutural. Desvela muito da formação socioeconômica brasileira. E corresponde, neste momento, a uma das faces mais destrutivas do capital. Construir caminhos de superação das contradições exige da classe trabalhadora, de forma organizada, assumir seu papel histórico na construção de novos rumos para a sociedade brasileira através de um Projeto Popular para o Brasil, que tenha no seu âmago o controle soberano e popular sobre os bens da natureza, no qual a mineração é fundamental.
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O que é uma Assembleia Popular? A característica da formação socioeconômica brasileira foi a negação de participação popular em qualquer processo de decisão sobre os rumos do país. “O complexo institucional Estado-Nação foi engenhosamente empregado para perverter, debilitar e bloquear o desenvolvimento da democracia” (FERNANDES, 1971, p. 66). Todos os momentos em que o povo se organizou reivindicando participação e ampliação da democracia foi golpeado pela classe dominante num momento de congelamento dos processos democráticos e de ruptura, isto é, de modo preventivo, a burguesia brasileira, por sua natureza de formação de classe, sempre impediu qualquer processo de mudança social desencadeado pela pressão das classes populares, a fim de manter o status quo. As assembleias populares sempre foram para o povo instrumentos de organização popular. Os trabalhadores não tendo espaço neste Estado, constroem mecanismos que tensionam pela pressão de fora para dentro da ordem. Esses momentos são espaços em que o povo articula-se em debates, troca de experiências, reflexão dos problemas, proposição de ações, tendo como característica a solidariedade, fraternidade, rebeldia e sede de justiça. As assembleias populares nada mais são do que a expressão do povo no seu cotidiano. Não é por acaso que as assembleias têm como característica os mutirões que articulam e envolvem a diversidade do povo brasileiro. Sujeitos que historicamente não foram reconhecidos pelo Estado-Nação. É o espaço onde o povo pode dar sua opinião, sugerir, aprovar decisões do interesse da comunidade. Por isto, em vários momentos da história brasileira o povo se organizou para exigir e decidir os caminhos que concretamente representam os interesses populares, através de assembleias populares sobre o Projeto Popular para o Brasil, assim como em plebiscitos, a exemplo do plebiscito da ALCA e o plebiscito contra o leilão da VALE, entre outros. Neste momento, o povo mais uma vez se coloca como protagonista da construção de um novo Brasil, reivindicando e propondo construir soberanamente quais devem ser os destinos dos nossos bens minerais.
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Para que a Assembleia Popular da Mineração? O modelo de saque mineral faz parte da formação socioeconômica brasileira, e em nenhum momento da nossa história o povo brasileiro pôde decidir sobre o controle da exploração dos nossos minérios. O domínio absoluto sobre os bens minerais foram sempre ditados pela classe dominante. Atualmente, os setores de classes que comandam o destino mineral são grandes transnacionais ou mesmo empresas nacionais que têm como principal acionista o capital internacional. Os bens minerais são estratégicos para a humanidade, sendo que o desenvolvimento das forças produtivas (tecnologia, comunicação, saúde) somente foi possível através da transformação da natureza por meio do trabalho. Toda a cadeia tecnológica brasileira depende da extração para se desenvolver e se sofisticar. Os bens minerais na atual sociedade capitalista assumem a lógica mercadológica, secundarizando a satisfação humana e transformando as atividades em fins potenciais lucrativos. A ganância da classe dominante pelo controle e saque dessas riquezas conduz conflitos de todas as ordens com as populações e trabalhadores na mineração. As populações em conflito com o modelo mineral e os trabalhadores da mineração são maioria e deveriam ser, por justiça, responsáveis por definir o controle e destino dos minérios. Essas populações, e todo o meio ambiente, são atropeladas pelas empresas que sobrepõem os interesses econômicos aos interesses coletivos, construindo uma herança injusta e desigual, na qual o povo fica com o passivo ambiental, econômico e social; e as empresas com as altas taxas de lucros. Mas já pensaram se o povo tivesse a capacidade de decidir como e onde explorar? Definir as taxas e ritmos de exploração mineral? Decidir sobre o destino dos lucros produzidos no país com a exploração mineral? E mais, se o povo decidisse qual atividade econômica desenvolveria nos seus territórios, sem a imposição de que “minerar é inevitável”? Em quantas áreas não teríamos o desenvolvimento de produção agroecológica com alimentos saudáveis? Quantas áreas teríamos para a preservação da natureza e dos modos de vida das populações? Quantas regiões teriam capacidade criativa de construir alternativas econômicas sem ficar na dependência da mineração?
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Quem participa da Assembleia Popular da Mineração? As Assembleias Populares da Mineração deverão ser protagonizadas por todos os sujeitos sociais que estão em contradição com o capital mineral: a classe trabalhadora da mineração, a população do campo e das cidades. Além desses, o conjunto de sujeitos e organizações que são instrumentos de organização ou de apoio nas lutas desse conjunto de espoliados. O primeiro grupo corresponde às populações que vivem em conflito com o capital mineral e até o momento não conseguiram, mesmo com muita luta, construir condições de decidir e controlar a mineração no Brasil; e também os trabalhadores da mineração que são impactados diariamente com a intensificação da exploração da força de trabalho pelo capital mineral. Aliadas a esses se encontram as organizações de classe e de apoio às lutas na mineração (movimentos sociais, sindicatos, pastorais sociais, instituições de ensino, núcleos de pesquisa, ONGs etc.), além de sujeitos autônomos, que contribuem no combate e enfrentamento ao capital mineral na batalha das ideias, como os pesquisadores da mineração.
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Como funciona a Assembleia Popular da Mineração? As Assembleias Populares têm como concepção de formação a Educação popular: o esforço de mobilização, organização e capacitação das classes populares para o exercício do poder (CEPIS, 2012) . Esse esforço exige uma pedagogia que parte do querer do sujeito, das demandas e potenciais da classe trabalhadora, seus anseios e reivindicações, seu contexto e da troca de experiências (CEPIS, 2012). Devem ser, portanto, um espaço para o povo opinar, relatar problemas, levantar desafios, expressar sua indignação, trocar experiências de organização e mobilização, e expressar sua criatividade nas formas de enfrentamento ao capital. Deve também ser um momento de formação e agitação de nossas bandeiras. Mas não existe receita pronta para se construir uma Assembleia Popular. Cada lugar, cada realidade e sujeitos exigirão uma maneira de organizar e conduzir esse momento. Apesar disso, há aspectos importantes, acumulados de diversas experiências, que devem ser pensados antes, durante e após a sua realização:
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• é fundamental que a PREPARAÇÃO da Assembleia Popular da Mineração
seja um processo amplo, que envolva diversos setores e organizações. O grupo organizador deverá se reunir para escolher uma boa data, local e horário que possibilite a participação dos mais diversos sujeitos. Também deve pensar as questões estruturais, a divulgação, os conteúdos, construir a metodologia, pensar a animação, mística e elaboração de materiais que poderão contribuir com os debates. É importante que tudo isso seja pensado previamente, para garantir a participação, o debate e o cumprimento dos objetivos;
• é preciso ter clareza de quem se quer movimentar nessa iniciativa e pensar
formas de MOBILIZAÇÃO desses sujeitos. Para isso, construir estratégias de comunicação como: cartazes, rádio, redes sociais (criar eventos, produzir memes), e-mail, WhatsApp, panfletos, divulgação em eventos e locais onde as pessoas costumam frequentar etc. A mobilização deve ser feita com antecedência e as pessoas envolvidas devem ter clareza do espaço e seus objetivos. Sendo assim, uma boa conversa para apresentar a proposta às lideranças das comunidades, aos trabalhadores e organizações é indispensável;
• durante a Assembleia é essencial ter uma COORDENAÇÃO com o papel de
garantir horários, a condução dos espaços e o cumprimento de seus objetivos;
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•
que esteja presente a SIMBOLOGIA das organizações e da luta popular. A simbologia pode estar na ORNAMENTAÇÃO do local, na presença das bandeiras das organizações, imagens, objetos e materiais que remetam à cultura local;
• realizar um momento de MÍSTICA, que resgate os princípios, valores e as
motivações da luta popular, do enfretamento ao modelo de mineração e a construção da nova sociedade com soberania popular. É importante que esse momento alimente nossas convicções e compromisso. A mística deve estar casada com os objetivos do encontro e pode ser realizada a qualquer hora;
•
ser um encontro com muita ANIMAÇÃO e alegria, que cultive a esperança, através de músicas, leitura de poemas e dinâmicas. Uma boa dica é formar uma equipe responsável, que elabore um cancioneiro, resgate elementos da cultura popular, leve instrumentos e pense a agitação;
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•
ser um momento de FORMAÇÃO sobre o modelo de mineração. As Assembleias podem ser temáticas e seu conteúdo não deve ser engessado. Cada realidade demandará debates específicos. Mas é imprescindível IDENTIFICAR O INIMIGO E CARACTERIZAR O MODELO DE MINERAÇÃO, com o levantamento de informações e dados sobre o capital mineral, da empresa, projetos, conflitos e todos os dados relevantes da realidade local;
• realizar ANÁLISE DE CONJUNTURA global e local, que considere os aspectos
políticos, econômicos, sociais e ambientais. É essencial analisar a correlação de forças, as movimentações do inimigo e da classe trabalhadora, a fim de nortear propostas e ações que tenham fundamentos na realidade. Nesse exercício os sujeitos devem ser capazes de compreender como a situação local se insere na engrenagem do capital mineral, como este modelo de mineração afeta nossas vidas e territórios; levar em conta a realidade concreta, que as pessoas envolvidas •participem como sujeitos, que os sujeitos se apropriem tanto do
conteúdo como do método (CEPIS, 2008) . Para tal, pensar momentos de debates em grupo, com perguntas geradoras, que provoquem a discussão, o levantamento de desafios, demandas e propostas. É indispensável o uso de METODOLOGIAS PARTICIPATIVAS, dinâmicas e recursos que estimulem a expressão e participação dos mais diversos sujeitos, facilitem o entrosamento, o envolvimento e o debate das ideias;
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ser um espaço propositivo, que avance em relação ao denuncismo. A •educação popular se empenha pela aquisição, por amplos setores da
classe oprimida, da capacidade de pensar e decidir sobre si mesmos (CEPIS, 2008). A Assembleia Popular da Mineração deve ser parte de um processo e não um evento com fim em si mesmo. Por isso, o cuidado de planejar a Assembleia com antecedência em conjunto com as organizações e comunidades locais. A sua construção deve contribuir para um processo de articulação duradoura, que concentre esforços para a organização e lutas que ampliem a consciência coletiva crítica ao modelo de mineração e encontre soluções para os problemas decorrentes dos conflitos locais com o capital. Nesse sentido, é fundamental que as assembleias sejam propositivas, prezando pelo consenso, e gerem encaminhamentos que deem prosseguimentos na articulação e organização;
•
não basta elencar tarefas, é preciso que esses encaminhamentos contribuam com o processo de organização e articulação. Podem ser montadas comissões para executar as tarefas e agendados outros encontros/reuniões/assembleias para debater e avaliar as atividades propostas;
• realizar o REGISTRO das falas, das pessoas e das decisões. É importante que tenham pessoas com esta tarefa, para fazer fotos e vídeos, que possam ser usados pelo MAM e outras organizações na divulgação e agitação para as próximas Assembleias. Fazer uma relatoria da Assembleia para que os debates e os encaminhamentos não se percam;
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• organizar um momento de PARTILHA e confraternização (pode ser lanche
e/ou almoço), dentro das possibilidades de cada localidade, em que os participantes levem quitandas, frutas e produtos regionais para compartilharem com os demais;
• ao final da Assembleia é sempre importante reservar um momento para AVALIAÇÃO e recolhimento de sugestões para os próximos encontros;
• pensar estratégias de SEGURANÇA. Esta é uma preocupação que deve ser
crescente em nossas ações, pois conhecemos a prática das grandes empresas em se infiltrar nesses espaços e passamos por um momento histórico em que se intensificam a criminalização e a repressão aos movimentos sociais. Existem formas criativas e discretas de garantir a segurança, como realizar cadastramento dos participantes, garantir uma apresentação para que todos se reconheçam, realizar o registro etc. Para elaborar essas estratégias pode-se montar uma comissão de segurança. Esse esforço de aglutinar sujeitos e organizações em contradição com o modelo mineral através da realização de Assembleias Populares da Mineração deve forjar processos de luta e organização nos municípios minerados. Elas devem ser o pontapé de um processo maior, que crie condições de ampliar o diagnóstico dos problemas concretos das populações em conflito com o modelo de mineração; e que crie condições para se planejar coletivamente os próximos passos, no trabalho de base, na formação, e nas ações de mobilização massivas.
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Abre-se uma janela histórica de construirmos caminhos para um controle soberano e popular na mineração, e as Assembleias Populares são ferramentas a serem construídas pelo povo brasileiro. Estamos vivendo a conjuntura do pós-rompimento da barragem do Fundão da Samarco, na cidade de Mariana. O maior crime e desastre socioambiental da história do nosso país! Esta situação dramática que afetou e tem afetado toda a bacia do Rio Doce serviu para tornar, pela primeira vez, o debate sobre a mineração em um tema nacional. Cabe a nós transformar essa maior sensibilidade em um debate POR OUTRO MODELO DE MINERAÇÃO BRASILEIRO, que se paute pela soberania popular. O que aconteceu no dia 5 de novembro de 2015 não foi um ponto fora da curva da história da mineração no Brasil. É, na verdade, a consequência maior desse modelo predatório, dependente, e que coloca o lucro acima da vida das pessoas. A construção das Assembleias Populares na Mineração é parte de uma luta para que nenhum outro capítulo como este se repita!
Por um país soberano e sério! Contra o saque dos nossos minérios!
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Referências BITTENCOURT, Carlos. Os Dilemas do Novo Código da Mineração . Rio de Janeiro: Ibase, 2013. BRASIL. Departamento Nacional de Produção Mineral. Sumário Mineral . Coordenadores Thiers Muniz Lima, Carlos Augusto Ramos Neves Brasília: DNPM, 2016. Disponível em: http://www.dnpm.gov.br/dnpm/sumarios/sumario-mineral-2015 PELOSO, Ranulfo (Org.). Trabalho e base: seleção de roteiros organizados pelo Cepis . São Paulo: Expressão Popular, 2012. Centro de Educação Popular do Instituto Sedes Sapientiae (Cepis). Caderno: Concepção de Educação Popular do Cepis . São Paulo, 2008. FERNANDES, Florestan. Poder e Contrapoder na América Latina . São Paulo: Expressão Popular, 2015.
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mamnacional.org.br