Universidade Aberta do Brasil Universidade Federal do EspĂrito Santo
Artes Visuais
Licenciatura
E
ste texto pretende fazer uma introdução ao problema da interpretação das obras de arte. Interpretar uma obra de arte é o mesmo que fazer uma leitura dela. Mas, para isso, não basta que nos perguntemos qual é o efeito que a obra em questão produz particularmente em cada um de nós. Não basta fazermos uma lista das nossas próprias impressões e sentimentos pessoais com relação a ela, como se esses correspondessem aos seus conteúdos e significados. É preciso que se tenha em mente que a obra foi produzida em uma época e local específicos; que a sua produção respondeu a certas demandas sociais; que esteve condicionada às possibilidades técnicas, convenções, valores e necessidades dessa mesma época e local, e que todos estes dados devem ser considerados no momento da interpretação.
UNIVERSIDADE F E D E R A L D O E S P Í R I TO S A N TO Núcleo de Educação Aberta e a Distância
TEORIA DA LINGUAGEM VISUAL Lincoln Guimarães Dias
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Dias, Lincoln Guimarães, 1962Teoria da linguagem visual / Lincoln Guimarães Dias. - Vitória : Universidade Federal do Espírito Santo, Núcleo de Educação Aberta e à Distância, 2011. 106 p. : il. Inclui bibliografia. ISBN: 978-85-64509-03-0 1. Arte. 2. Arte - História. 3. Crítica de arte. 4. Desenho. I. Título. CDU: 7.01
Copyright © 2011. Todos os direitos desta edição estão reservados ao ne@ad. Nenhuma parte deste material poderá ser reproduzida, transmitida e gravada, por qualquer meio eletrônico, por fotocópia e outros, sem a prévia autorização, por escrito, da Coordenação Acadêmica do Curso de Especialização em Filosofia e Psicanálise, na modalidade a distância. A reprodução de imagens de obras em (nesta) obra tem o caráter pedagógico e cientifico, amparado pelos limites do direito de autor no art. 46 da Lei no. 9610/1998, entre elas as previstas no inciso III (a citação em livros, jornais, revistas ou qualquer outro meio de comunicação, de passagens de qualquer obra, para fins de estudo, crítica ou polêmica, na medida justificada para o fim a atingir, indicando-se o nome do autor e a origem da obra), sendo toda reprodução realizada com amparo legal do regime geral de direito de autor no Brasil
SUMÁRIO Introdução
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unidade 1.
Arte e linguagem 13 O conceito de arte e sua relatividade 15 Uma aproximação ao conceito de arte 20 unidade 2.
A história e a crítica de arte 25 A literatura sobre arte A história da arte A crítica de arte Notas sobre desenho, esboços para uma história Para uma história do desenho Exemplo de texto crítico: o cenógrafo e o pintor
27 28 34 35 41 52
unidade 3.
As diretrizes metodológicas fundamentais dos estudos de história da arte 63 O método sociológico O método formalista O método iconológico O método estruturalista Exemplo de estudo a partir da metodologia estruturalista
67 71 77 82 83
Referências 101 Índice remissivo de imagens 103
Introdução
Este texto pretende fazer uma introdução ao problema da interpretação das obras de arte. Como se sabe, é possível vivenciar com a arte uma relação de prazer espiritual sem a necessidade de grande conhecimento específico sobre o assunto. Estamos habituados a visitar exposições e a contemplar obras, emitindo nossas opiniões e impressões sobre as mesmas. Não há nada de errado nisso, porém quando se deseja conhecer em profundidade os fenômenos artísticos, as coisas não são assim tão fáceis. O que chamamos genericamente de “arte” envolve um conjunto extremamente vasto de objetos com características diversificadas, produzidos por diferentes povos, para atender a necessidades sociais também distintas. Compreender este conjunto de variáveis requer muito tempo de estudo e dedicação. A compreensão aprofundada dos objetos e dos fatos artísticos é imprescindível para o estudioso da arte. Ao indivíduo leigo, mas que se interessa por arte, esse conhecimento proporciona-lhe uma relação sensível e intelectual mais profunda com as obras de arte e pode servir também para refinar a sua percepção. Quanto mais se conhece da obra que se está vendo, maiores são as possibilidades de se estabelecer com ela uma experiência estética mais rica e prazerosa. Este conhecimento servirá também para a educação do gosto, pois o gosto pode se transformar a cada experiência, tornando-se, pouco a pouco, mais refinado e profundo. Interpretar uma obra de arte é o mesmo que fazer uma leitura dela. Ler implica interpretar. Mas, para isso, não basta que nos perguntemos qual é o efeito que a obra em questão produz particularmente em cada um de nós. Não basta fazermos uma lista das nossas próprias impressões e sentimentos pessoais com relação a ela, como se esses correspondessem aos seus conteúdos e significados. Seja o observador um leigo ou um estudioso, é preciso que se tenha em mente que a obra em questão foi produzida em uma época e local específicos, que a sua produção respondeu a certas demandas sociais, que esteve, em maior ou menor grau, condicionada às possibilidades técnicas, convenções formais, valores e necessidades dessa mesma época e local, e que todos estes dados devem ser considerados no momento da interpretação. A história da arte e a crítica de arte estão entre os empreendimentos intelectuais que mais se notabilizaram na tentativa de elucidar as questões ligadas ao fenômeno artístico. Várias teorias interpretativas foram concebidas a partir do século XVI até os nossos dias. Desnecessário dizer que, apesar delas, o mistério continua. No entanto, o Teoria da linguagem visual
Figura 1 Grupo de arqueiros de Valltorta. Arte rupestre neolítica.
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Figura 2 Cristo
Detalhe de mosaico Século XIII
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Introdução
conhecimento desses campos de estudo e dos critérios adotados pelos estudiosos para abordar o objeto artístico ampliam enormemente a consciência que se pode ter da arte e das suas implicações. As teorias da linguagem envolvem um universo extremamente vasto de pesquisa e indagação. Muitas delas trabalham especificamente com a linguagem verbal, mas existem aquelas que se arrojam a estudar todo e qualquer fenômeno de comunicação e ato de linguagem. Os objetos artísticos, evidentemente, são também fenômenos de comunicação, produzidos por atos de linguagem. No entanto, a complexidade das teorias da linguagem exigiria um espaço mais amplo e que é mais adequado para os estudos de pós-graduação. Por esta razão, optei por tratar da própria arte como campo linguístico. Neste sentido, uma obra de arte é um objeto de comunicação, que produz significado e que necessita ser interpretado. A história da arte, a crítica de arte e as teorias da arte aqui discutidas não são, especificamente, “teorias de linguagem”, mas constituem os principais campos de estudo que buscam interpretar, cada um ao seu modo, as obras de arte. Apesar de sua presença em todas as épocas e locais, de fazer parte do sistema cultural de todos os grupos humanos de todos os tempos, não se pode dizer que a arte seja uma “linguagem universal”. Não há uma característica comum, que esteja presente em todas as produções artísticas de todas as épocas, e que nos permita elaborar, a partir dela, um conceito universal de arte. Não se pode dizer sequer que a arte seja uma linguagem: mais exato seria dizer que a arte compreende muitas e variadas linguagens que, em cada caso, se combinam e se reinventam de modos diferentes. Este texto pretende oferecer uma breve introdução ao estudo destas diferentes abordagens. Embora seja voltado para a formação de arte-educadores em nível de graduação, espera-se que ele sirva também de estímulo ao hábito de apreciar obras de arte de um modo mais crítico e com mais consciência. Espera-se que, por meio dele, o estudante possa ter uma primeira ideia do que diferencia, em termos de intenções, métodos e resultados, as diferentes abordagens da história da arte e da crítica de arte. Espera-se também mostrar que a história da arte não é um conjunto coerente e unificado de conhecimentos acabados e inquestionáveis. Diferentes autores apresentam diferentes pontos de vista, não raro discordantes entre si. As diferentes metodologias teóricas de abordagem da arte partem de questionamentos diferentes e chegam também a resultados distintos. Teoria da linguagem visual
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Figura 3 Sem titulo Fábio Miguez Óleo e cera sobre tela 200 x 230 cm 2002
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O primeiro capítulo procura apresentar uma breve discussão a respeito do conceito de arte, que, em si mesmo, já é por demais complexo. O segundo capítulo, apresenta, em linhas gerais, as principais características do discurso da história da arte e da crítica de arte, procurando apontar as diferenças básicas entre esses dois tipos. O terceiro e quarto capítulos apresentam dois estudos que produzi no ano de 2010 e que cumprem aqui o papel de exemplificar, respectivamente, o texto de caráter historiográfico e o texto de critica de arte. Espero que esses exemplos ajudem o leitor a perceber as diferenças, e também o que há em comum, entre esses dois grandes gêneros de escritos sobre arte. O primeiro, “Notas sobre desenho, esboços para uma história”, trata da complexidade da noção de desenho na arte e de como essa noção foi se constituindo, pouco Introdução
a pouco, ao longo da história, por meio do embricamento de ideias concebidas por diferentes autores em diferentes momentos. Discute particularmente o entendimento que se tinha da ideia de “desenho” no renascimento italiano e o valor que, naquela época, era creditado a esse tipo de trabalho. O segundo, que se chama “O cenógrafo e o pintor” compreende uma reflexão crítica a respeito do trabalho de um jovem artista residente em Vitória - ES. O quinto capítulo trata especificamente do campo da história da arte e procura apresentar resumidamente as características das abordagens metodológicas mais influentes desta disciplina. Essas são chamadas sociológica, formalista, iconológica e estruturalista. É importante dizer que, além de não serem as únicas, muitos autores contemporâneos trabalham conjuntamente com mais de uma abordagem. De modo semelhante, a diferença entre história e crítica de arte não é absoluta e mutuamente excludente: para fazer a sua pesquisa, o historiador, em muitos momentos, será forçado a fazer um trabalho de crítica de arte para tornar possível certas escolhas. Do mesmo modo, o crítico deverá basear-se em dados históricos para fundamentar certos posicionamentos. O sexto capítulo apresenta o texto “A construção da continuidade”, que foi parte de minha Dissertação de Mestrado e cumpre, aqui, a função de exemplo de texto de abordagem estruturalista.
Figura 4 Sem titulo
Hilal Sami Hilal Papel de trapo e pigmentos 200 x 180 cm 1998
Teoria da linguagem visual
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Arte e linguagem
O conceito de arte e a sua relatividade É possível afirmar que todas as pessoas são potencialmente dotadas de sensibilidade e inteligência para apreciar obras de arte, desde as mais instruídas e experientes até as mais humildes e de pouca instrução. As preferências e inclinações pessoais permitem a cada indivíduo eleger este ou aquele objeto artístico como sendo de sua preferência, mesmo sem o apoio de uma sólida formação intelectual ou de conhecimentos específicos do campo das artes. Com frequência, falamos a respeito de nossas experiências com quadros, esculturas, filmes, livros, fotografias etc., pontuando os motivos pelos quais alguns nos atraem mais ou menos que outros. Em que nos baseamos, para tanto? É certo que há algo nas obras de arte, que as fazem apreciáveis para nós e que há também algo em nós mesmos, que nos faz gostar delas. No entanto, não é nada fácil compreender com profundidade uma determinada obra de arte ou explicar, com precisão, as motivações do nosso gosto ou as razões de nossa escolha individual por esta ou aquela obra. Aquilo a que chamamos “arte” é de extrema complexidade, assim como o conjunto que envolve nossas predisposições e reações com relação a ela. É muito difícil explicar, com um grau satisfatório de objetividade, de que modo um objeto artístico nos afeta, bem como explicitar os motivos pelos quais somos suscetíveis de nos deixar afetar por ele. Tentar dizer o que é arte é já uma tarefa delicada: muitos autores dedicaram-se a essa pergunta, mas ela nunca foi satisfatoriamente respondida. Logo, esses estudiosos se deram conta de que é impossível formular uma definição de arte que seja unívoca, objetiva e isenta de contradições, capaz de identificar e descrever um conjunto de características supostamente comuns a todas as obras de arte já produzidas e que, portanto, nos permitiria distinguir, dentro da totalidade dos produtos humanos, aqueles que podem e que não podem ser considerados arte. Em todas as épocas e locais houve a produção de artefatos dotados de qualidades estéticas notáveis e que hoje são chamados vagamente de “arte”. Os achados arqueológicos, as pesquisas antropológicas e uma grande quantidade de textos do passado atestam que todas as sociedades humanas produziram artefatos desse tipo e que eles eram componentes essenciais de seus sistemas culturais. Teoria da linguagem visual
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Unidade 1
Arte e linguagem
O homem ocidental contemporâneo, por hábito e por comodidade, refere-se a esses diferentes objetos como sendo “obras de arte”. Para isso, fazem abstração das funções e significados que esses objetos tinham em seus contextos históricos de origem e levam em conta prioritariamente as suas qualidades plásticas e formais. Tais objetos sempre foram alvo de particulares atenções, tanto por parte das sociedades que os produziram, quanto pelo homem ocidental contemporâneo. Por vezes foram celebrados, admirados, expostos, conservados, protegidos e transmitidos de geração a geração como bens de elevado valor e importância social. Outras vezes, foram proscritos ou violentamente destruídos e seus produtores perseguidos. A dificuldade de se formular um conceito de arte começa na própria delimitação do que pode ou não pode ser chamado de arte. O olhar do homem ocidental contemporâneo considera artísticos objetos e atividades muito diferentes entre si, que, no contexto de suas culturas de origem, possuíam outros significados, funções e valores e não eram chamados de arte, embora fossem também tidos como objetos de elevada consideração. Esta produção inclui objetos díspares como uma pintura e uma máscara ritualística, artefatos de grandes proporções, como basílicas e fortalezas e de pequenos formatos como iluminuras e jóias. Variam também os usos a que se destinaram – e se destinam – cada tipo de produção dentro da cultura que lhe deu origem, bem como o tipo de consideração social de que gozava – e goza – o indivíduo que os produziu. Muitas pessoas jamais se preocuparam ou se deram conta das questões colocadas acima. Mas isso nunca as impediu de vivenciar com as obras de arte uma experiência de fruição que seja válida. Nunca as impediu também de reconhecer uma obra de arte quando estão diante dela: mesmo as pessoas de pouca formação não terão dúvidas que um retrato de Van Gogh (fig. 5) ou Van Eyck (fig. 6) são obras de arte, assim como um trabalho de Jacson Pollock (fig. 7) ou Piet Mondrian (fig. 8). É possível que muitos se sintam confusos com relação aos temas, significados e as razões que as fazem valiosas, sobretudo, no caso das duas últimas. Alguns simplesmente se deixarão seduzir por sua beleza – ou estranheza – , enquanto que outros irão rejeitá-las por não compreendê-las. Mas, tanto num caso quanto no outro, dificilmente deixarão de reconhecer que se tratam de objetos de arte. A contemplação desinteressada e prazerosa é, portanto, acessível a todos. Podemos admirar as obras citadas acima tanto quanto Teoria da linguagem visual
Figura 5 Retrato de Trabuch (detalhe) Van Gogh Óleo sobre tela 61 x 46 cm 1889
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podemos nos emocionar com uma máscara da Oceania, um templo dórico ou uma vaso marajoara, por exemplo. Mas se nos perguntarmos porque razão todos esse objetos são considerados obras de arte, apesar de sua disparidade, não encontraremos uma resposta tão facilmente. Tais objetos possuem diferenças evidentes e nada que seja comum a todos nos permite considerá-los como exemplos concretos de uma noção abstrata.
Figura 6 Retrato do cardeal Niccolo Albergati Jan Van Eyck Óleo sobre madeira 34,1 x 27,3 cm 1432
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Unidade 1
Arte e linguagem
Figura 7 1 / 1949
Jackson Pollock Esmalte e tinta metálica sobre tela 160 x 259 cm 1949
Figura 8 Composição I
Piet Mondrian Óleo sobre tela 41,2 x 33,3 cm 1933
Teoria da linguagem visual
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Uma aproximação ao conceito de arte
Figura 9 Touro na gruta de Lascaux - França
Pintura rupestre paleolítica, período madalenense médio 15.000 – 10.000 a.C
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Sabemos que o termo “arte” é usado cotidianamente nas ruas e nas mídias com um sentido por demais elástico e esgarçado. Quando se quer promover um determinado produto, é comum associá-lo ao prestigioso universo da arte, por meio de slogans e imagens publicitárias. Quando se trata de hotéis, lojas de móveis ou empreendimentos imobiliários já vimos um bom número de vezes expressões como “arte, requinte e conforto”. Nestes discursos, o uso do termo “arte” tem uma função adjetiva e quer nos persuadir de que os produtos e serviços em oferta compartilham do mesmo tipo de “nobreza” e “dignidade” que se acredita que os objetos artísticos possuam. Há outros bordões muito recorrentes como “futebol é uma arte”, “a arte de fazer amigos”, “a arte de falar em público”, “a arte de receber bem” e assim por diante. Nestes casos, o termo aparece como substantivo e pressupõe que quaisquer práticas profissionais ou cotidianas, mesmo as mais triviais, podem ser qualificadas como “artísticas” quando exercidas com um elevado nível de refinamento. A rigor, não há porque se contrapor a este uso amplo do termo. Mas é necessário ter em mente que este uso nada tem a ver com o conceito de arte tal como ele é estudado nos textos teóricos e no ambiente universitário. Nestes casos, obviamente, o entendimento do termo é mais estrito: considera-se arte um dos principais gêneros de produção cognitiva e material humana, ao lado da ciência, da filosofia e da religião. Arte é também um campo conceitual, uma área geral de estudo. Nela atuam historiadores, teóricos, críticos, museólogos, peritos, curadores e outros pesquisadores, que buscam identificar, descrever e elucidar as questões ligadas ao universo da arte. Entre as suas atividades estão definir e discutir o conceito de arte, identificar e descrever os objetos artísticos e historiá-los, identificar, em cada caso, o seu valor e dizer em que ele consiste. Incluem-se também neste grupo filósofos, sociólogos e antropólogos que se propuseram a usar os saberes próprios de seus campos originais de estudo para lançar diferentes luzes sobre os fenômenos artísticos. O trabalho desses estudiosos sempre envolveu a necessidade de se tomar por base uma definição de arte e critérios que permitam Unidade 1
Arte e linguagem
dizer o que pode e o que não pode ser considerado arte1. Para contar a história da arte, o historiador precisa ter em mente uma definição de arte, eleger as obras consideradas mais representativas e descrever os nexos históricos entre elas. É sobretudo nos textos que se propõem apresentar uma história abrangente da arte que as contradições ligadas a esta definição e a estes critérios aparecem de modo mais evidente. Na maioria das vezes, os historiadores adotam um entendimento de arte demasiado genérico e abrangente, que lhes permite falar de diversos tipos de objetos, cuja dimensão plástica contém um elevado nível de elaboração e refinamento, ainda que, eventualmente, possam não parecer belos ao olhar do homem médio contemporâneo. Abarcam, assim, a produção de qualquer tempo, local e cultura, desde que esta seja dotada de qualidades estéticas notáveis2. Assim, são levados em conta e considerados como arte, pinturas rupestres, monumentos megalíticos, cerâmica, máscaras e indumentárias indígenas, pintura corporal, mausoléus, sarcófagos, urnas funerárias, jóias e ornamentos, odres para armazenar óleos e cereais, pinturas e esculturas que narram eventos de ordem religiosa ou política, imagens devotas e várias outras produções manuais que apresentam arranjos de formas, cores, linhas, texturas e volumes com um elevado grau de elaboração e refinamento. O problema é que, na maioria dos casos, tais artefatos não foram produzidos com a finalidade de “serem obras de arte”, com o sentido que nós, em nosso tempo, atribuímos à expressão. Eles possuíam outras funções e atendiam a necessidades de grande importância nos seus sistemas sociais de origem: eram monumentos em homenagem a deuses ou para imortalizar a memória de homens poderosos, indumentária ritualística para invocar forças da natureza, cestos e vasos para transportar e armazenar alimentos etc. A ideia de “arte” não fazia parte do imaginário dos indivíduos que produziam pinturas de touros e cavalos na gruta de Lascaux (fig. 9) ou máscaras ritualísti-
Figura 10 Máscara da tribo Dan - África ocidental Museu Rietberg, Zurique
1. A obra de arte nunca é um objeto por si, mas sempre o resultado de um julgamento, de uma atribuição. Nunca podemos dizer que uma coisa é arte, por sua própria natureza, e sim que certos setores da sociedade, considerados autorizados, atribuem a esta coisa o estatuto de arte. Além desta primeira e básica atribuição, existem outras, que vão agregar valores específicos e hierarquizados a cada um desses objetos, incluindo preço de mercado. 2. Podemos citar como exemplos as obras de GOMBRICH, E.H. A história da arte. 15. ed. Trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1993. 543p.; JANSON. W. H. História da arte. 5. ed. Trad. J. A. Ferreira de Almeida e Maria M. R. Santos. São Paulo: Martins Fontes, 1992. 824p. e UPJOHN, Everard M. Et al. História mundial da arte. Trad. Rui M. Gonçalves. São Paulo: Martins Fontes, 1979. Teoria da linguagem visual
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Figura 11 Máscara ritual - Alasca
Staatliche Museen, Museum für Volkerkunde, Berlin
Figura 12 Cabeça de homem - Ife, Nigéria Bronze altura: 34 cm Séc. XII
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cas na África (fig. 10) e no Alasca (fig. 11). Eles eram, sem dúvida, dotados de habilidade e talento, mas os demais membros de suas comunidades não os consideravam como “artistas”, na mesma acepção que o mundo ocidental confere hoje a esta palavra. Suas produções tampouco eram tidas em consideração como “obras de arte”, simplesmente porque os conceitos arte, obra de arte e artista não existiam naquelas culturas. Tais objetos não eram, portanto, feitos simplesmente para cumprir a finalidade de serem vistos. É inconcebível a ideia de que as cabeças humanas conservadas por nativos do Rio Sepik na Nova Guiné pudessem servir de espetáculo visual ou para oferecer deleite sensorial. Tampouco havia, nessas comunidades, pessoas interessadas em observar objetos, quaisquer que sejam, com a finalidade estrita de se encantarem com suas qualidades formais e plásticas. Isso não quer dizer que os membros de uma tribo como essa não tivessem sensibilidade e não reconhecessem e se deixassem afetar pelas qualidades deste tipo de artefato, e sim que esse gênero de experiência sensorial estava longe de ser prioritário na relação que estabeleciam com eles. O ato de observar certos objetos com a finalidade de admirar as suas qualidades plásticas e poéticas, fazendo abstração de suas possíveis funções práticas, corresponde ao que é chamado, em nossa cultura, de “contemplação desinteressada”, ou fruição. Este tipo de exercício da sensibilidade é uma invenção do ocidente cristão, surgida entre os séculos XIV e XV e só existe nesta civilização. De modo semelhante, somente nesta cultura houve a produção de objetos com a finalidade única ou prioritária de servir de objeto de contemplação. Quando chamamos de arte uma máscara ritualística ou uma peça de cerâmica marajoara, estamos nos apropriando de objetos de outras culturas e atribuindo a eles significados que só existem na nossa. A palavra arte, que tanto empregamos hoje, vem do termo latino ars, que corresponde de perto ao vocábulo grego techne, sendo que ambos se aproximam da nossa noção de “técnica”. Para o grego e o romano antigos, a ideia de arte estava associada à noção de trabalho produtivo, de operar transformações da matéria com inteligência e habilidade. Fazer arte nesta acepção significa fundir o trabalho braçal ou manual com a aplicação de conhecimento, inteligência e destreza pessoal. Tanto a ars romana quanto a techne grega indicam graus elementares de trabalho técnico, numa acepção extremamente larga e genérica. Dito de outro modo, o conceito de arte dos antigos incluía todo e qualquer trabalho que dependia de algum grau de Unidade 1
Arte e linguagem
conhecimento e de habilidade técnica. Nesta acepção, o trabalho de um marceneiro ou de um pedreiro não se distinguia essencialmente do trabalho de um pintor ou escultor. As obras de arte, por sua vez, incluíam não só pinturas e esculturas, como também pontes, aquedutos, jardins, mesas e sapatos. É certo que a generalidade excessiva desta noção logo exigiu uma distinção hierárquica destinada a reconhecer e a valorar o trabalho dos chamados homens livres em detrimento do trabalh dos servos e dos escravos, o que gerou os termos artes liberais e artes servis3.
Figura 13 Crânio gessado do rio Sepik - Nova Guiné
Cabeça de antepassado ou inimigo conservada, com búzios substituindo os olhos Séc. XIX
3. Sobre este assunto, ver Renato BARILLI, Curso de estética. Lisboa: Estampa, 1992, p. 19-24. Teoria da linguagem visual
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A hist贸ria e a cr铆tica de arte
A literatura sobre arte No mundo ocidental, o interesse dedicado à produção humana que chamamos de “arte” se manifesta no esforço de conservá-la e estudá-la sob os mais variados aspectos. Certamente, não raro, houve e há também o interesse em destruí-la e distorcê-la, tanto pela supressão ou aniquilamento dos objetos propriamente ditos, quanto pela projeção sobre eles de conteúdos que uma análise mais criteriosa não verificaria. É na esteira desta confluência de motivações conflitantes, que, desde a antiguidade, produziu-se a vasta literatura extremamente diversificada que busca descrever, interpretar ou simplesmente comentar a arte em seus diferentes aspectos. Os textos mais antigos sobre arte remontam à antiguidade greco-romana e incluem memoriais, crônicas e manuais com prescrições técnicas e morais. A partir do século XVI, aparecem textos que procuram compreender a arte por um viés mais erudito e filosófico. Deles se ocuparam literatos, filólogos e historiadores conscientes da importância das obras de arte como objetos de valor estético e documental na história da cultura4. No século XVIII a literatura sobre arte tomou forma de disciplina crítica, ganhando embasamentos teóricos e ares de cientificidade5 e desenvolvendo-se nos níveis historiográfico, filosófico, filológico, literário, jornalístico e polêmico. No século XIX, este gênero de literatura alcançou um alto grau de especialização e de peso cultural que só fez crescer no decorrer do século XX e até os nossos dias. Atualmente, é efetivamente impossível compreender o alcance e o sentido dos objetos e dos fatos artísticos sem ter em conta a produção literária que a eles se refere. Um dos primeiros gêneros de estudos sobre arte é o tratado, espécie de manual, para uso dos artistas, que fixa normas de estilo e dá instruções técnicas no campo da arquitetura, pintura e escultura. Na idade media, a tratadística dedicava-se essencialmente aos materiais e às técnicas e tinham caráter normativo. O Libro dell’arte, de Ceninno Ceninni, um dos mais célebres deles, descreve os processos técnicos da pintura, suas origens e finalidades e chamava a atenção 4. G. C. Argan & FAGIOLO, Maurizio. Guia de história da arte. Trad. M. F. G. de Azevedo. Lisboa: Estampa, 1992, p. 15 5. G. C. Argan. Arte e crítica de arte. Trad. H. Gubernatis. 2. ed. Lisboa: Estampa, 1993, p. 127. Teoria da linguagem visual
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para o fato de que as técnicas nele descritas eram usadas pelo mestre Giotto e por seus discípulos. No renascimento italiano, os tratados assumem um caráter mais teórico. Eram destinados aos artistas em formação e que ansiavam por evitar erros e por se aproximar da arte que, em sua época, era considerada perfeita e ideal. Em geral, o autor era um artista, praticante das normas e técnicas que ensinava em seu livro. Mas ele era também, com muita frequência, um indivíduo de grande erudição, que além das prescrições sobre técnicas e materiais, identificava e organizava em seu livro os dados a respeito das convenções e critérios de gosto estéticos dominantes em sua época. Assim, ele esperava fundamentar a práxis artística, tanto do ponto de vista técnico quanto filosófico. Os tratados de arquitetura, que são os mais numerosos, dedicavam-se a descrever e a analisar os modelos arquitetônicos antigos e, com base nesses modelos, ditavam regras para a construção de novos edifícios. Leon Battista Alberti, um dos mais influentes eruditos e humanistas do renascimento italiano, também pintor e arquiteto, escreveu três importantes tratados, que são Da pintura6, Da escultura e Da arquitetura. Um caso específico e de grande importância histórica é o Trattato della pittura, de Leonardo, que não tem uma estrutura teórica própria, mas apresenta as reflexões do artista a respeito de sua prática7.
A história da arte A partir do século XVI, além de estudos eruditos e filológicos de vários tipos, apareceram também dois dos gêneros de escritos sobre arte que alcançaram maior reputação: a história e a crítica de arte. De fato, até aquela data nada havia sido escrito que se parecesse com o que chamamos hoje de “história da arte”. O conceito de “história da arte” constituiu-se ao longo do tempo, passando por diversas transformações. Poderíamos dizer, de modo muito simplificado, que o discurso histórico implica, basicamente, 6. B. Alberti. Da pintura. Trad. A. da S. Mendonça. 2.ed. Campinas: Unicamp, 1992. 161p. 7. CARREIRA, Eduardo (Org.). Os escritos de Leonardo da Vinci sobre a arte da pintura. Trad. do Org. Brasília/São Paulo: UnB/Imprensa Oficial, 2000. 234p.
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Unidade 2
A história e a crítica de arte
uma organização da memória do passado. A descrição desta memória no texto historiográfico envolve o relato dos chamados acontecimentos históricos, mas não só: envolve também análises que procuram enxergar as relações que encadeiam e dão sentido a esses acontecimentos. É possível dizer que os textos historiográficos, em geral, operam filtrando a infinidade contínua de fenômenos humanos, reconstituindo-os como “dados históricos” e organizando-os em cadeias diacrônicas e sincrônicas de determinações mútuas. Eles buscam, essencialmente, a partir da construção dos dados e de um encadeamento coerente entre eles, repropor discursivamente “passado” e “presente” e estabelecer conexões inteligíveis entre ambos. A história da arte, especificamente, no eixo da sincronicidade, busca, no estudo da produção artística, encontrar as relações entre esta e as condições materiais e espirituais gerais de seu tempo. Ela procura descrever as características plásticas dos objetos artísticos, identificar os seus usos sociais e o tipo de consideração e valor que o homem de seu tempo nutria por eles. No eixo diacrônico, ela produzirá o efeito de “fluxo temporal” ao encadear os sucessivos períodos históricos, por meio da demonstração dos liames que os unem. Certamente, nem a dita “produção artística” nem as referidas “condições materiais e espirituais” possuem existência conceitual prévia na condição de “objetos” e “contextos” já constituídos. Forçosamente, o próprio discurso historiográfico deverá responder pelos critérios que lhe permitirão eleger as manifestações artísticas merecedoras desse nome e as variáveis, heterogêneas por definição, que, em conjunto, serão tomadas como quadro contextual pertinente. Nesse sentido, a história da arte, antes de lidar com o valor específico de obras já consagradas como tais, vai responsabilizar-se, a partir da prospecção do passado, pela escolha e hierarquização das manifestações que, segundo seus próprios critérios e juízos, podem ser consideradas “artísticas”. Essa operação exige, sem dúvida, a intervenção da interpretação e da avaliação, o que nos reenvia à relação estreita, já apontada por Argan, entre história da arte e crítica de arte. Apresento, a seguir, cinco aspectos que derivam do que foi dito e que são constitutivos do discurso da história tal como concebido e praticado em nossos dias. Por eles, é possível perceber por que a história da arte é tão controversa e os autores divergem em tantos pontos importantes. São eles:
Teoria da linguagem visual
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1.
A história vivida é diferente da história narrada. A história vivida, isto é, o momento passado, é constituído de miríades de acontecimentos, dentre os quais o historiador vai selecionar os que ele supõe serem os mais importantes e que melhor o representam;
2.
A história do passado é relatada sob a ótica do presente, isto é, do momento em que o autor escreve. Sabemos que muitos estudos historiográficos procuram eximir-se ao máximo dos valores e preconceitos de sua própria época para compreender e descrever com clareza a mentalidade e o clima espiritual da época e local estudados. Mas é inevitável que este esforço nunca venha a alcançar um êxito completo;
3.
O autor escreve sob o seu ponto de vista específico. Ao selecionar os fatos históricos tidos como importantes, o seu juízo próprio o levará a fazer certas escolhas que talvez outro historiador não faria. De modo semelhante, ao proceder uma análise que mostre a relação entre dois fatos, ele chegará a conclusões que podem não ser as mesmas a que outros autores chegariam. Isto não quer dizer que o historiador simplesmente escreve baseando-se em suas opiniões e impressões pessoais: os diferentes pontos de vista entre autores são decorrentes de suas diferentes formações e orientações intelectuais. Por esta razão, o trabalho de certos autores é marcado, por exemplo, pelo marxismo ou pela teoria crítica, enquanto o de outros o é pelo estruturalismo ou pela psicologia da percepção. Disso resulta mais dois aspectos ligados à história da arte;
4.
O historiador trabalha com fontes, que são os documentos que podem ser invocados para comprovar ou justificar as suas afirmações. No caso da história da arte, estes documentos são de diferentes tipos, que podem ser sumariamente divididos da seguinte maneira: a. os próprios objetos considerados artísticos, como pinturas, esculturas, arquitetura, cerâmica etc.; b. desenhos, esboços, rascunhos, anotações e outros registros realizados pelos próprios artistas durante o processo de concepção e realização das obras; c. testemunhos contábeis e administrativos como inventários, contratos de trabalho, de Unidade 2
A história e a crítica de arte
encomendas, de compra e venda de trabalhos e outros documentos que registram negociações entre artistas, comitentes, fornecedores de materiais, colecionadores etc; d. A chamada fortuna crítica, isto é, o conjunto dos textos já escritos a respeito das obras, artistas ou período estudado, o que inclui a crônica da época, bem como textos de comentaristas, historiadores, críticos etc. As fontes são a base do trabalho do historiador e um dos itens que conferem o caráter de validade e de cientificidade aos seus textos; 5.
Além da diferença de formação teórica, os autores possuem interesses de estudo variados. Por isto, enquanto uns se interessam pela sociologia da arte, outros se interessam pela história dos estilos ou das formas. Um historiador pode se interessar mais pela excelência do trabalho de um determinado artista e seu texto se encarregará de descrever as qualidades deste trabalho para mostrar as razões estéticas de sua importância. Outro pode interessar-se mais pelas condições de trabalho dos artistas numa época e local específicos.
Se tomarmos, por exemplo, a História natural, de Plínio, o Velho, as Vidas ... de Giorgio Vasari e a História da arte italiana de Giulio Carlo Argan, para citar três obras de três autores italianos distantes no tempo, verificaremos que cada um deles trabalhou, de maneira mais ou menos consciente, com uma concepção distinta de história. Escolhi estes exemplos porque eles ilustram três momentos distintos da formação da ideia de história da arte. A obra de Plínio, escrita entre 23 e 79 de nossa era, pretendeu ser, pela intenção do próprio autor, um grande catálogo com todo tipo de informação acumulada em seu tempo. Inclui os mais diversos assuntos, como mineralogia, botânica, geografia, política, feitos militares, costumes de diferentes povos etc. O seu texto reflete o fato de que não havia na sua consciência, na do homem de seu tempo e nem na antiguidade em geral a divisão de campos de conhecimento delimitados tal como, pouco a pouco, passou a ser construído a partir do século XVI e que hoje nos são tão familiares. Sendo assim, não havia, também, evidentemente, a ideia de um campo do conhecimento específico chamado “arte”, que deveria – e merecia – ser estudado e historizado separadamente de outros campos de atuação e reflexão humanas. A sua obra, portanto, tratava dos mais variados assuntos, entre eles o que chamaTeoria da linguagem visual
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mos hoje de arte. Não pretendia ser uma história da arte, tampouco, tratar especificamente de arte, mas incluia dados que os historiadores posteriores consideraram importantes para compreender o ponto de vista da antiguidade sobre os seus próprios objetos estéticos. A ausência de uma classificação das áreas de conhecimento levou Plínio a dividir a obra por assuntos, ordenados segundo o seu próprio juízo e intuição. Assim, há livros dedicados à cosmografia, animais terrestres, zoologia aquática, entomologia, anatomia comparada, botânica, agronomia e farmacologia. Os escritos dedicados à pintura, escultura e arquitetura se encontram nos volumes 34, 35 e 36, que não tratam de questões de estética, beleza, composição ou qualquer outros aspectos que atualmente consideramos relacionados à arte. Nesses volumes aparecem também textos que tratam de metais e pedras preciosas. Por serem, em parte, a mesma matéria-prima utilizada pelos artistas, Plínio considerou adequado colocá-los juntos8. Plínio trabalhou a partir da compilação de inúmeros textos de autores romanos e estrangeiros. O que para nós é curioso é o fato de que ele tomava nota de uma infinidade de pormenores relativos aos objetos e práticas artísticas a que se referia, mas sem a preocupação de organizar os dados coletados numa ideia central que desse unidade ao seu estudo. Plínio reuniu uma quantidade extraordinariamente rica de anedotas sobre a vida dos pintores, escultores e arquitetos, sobre as técnicas por eles empregadas, desde a fabricação das tintas e o preparo das cores até as propriedades físicas das pedras, metais e demais minerais utilizados em sua composição, transmitiu receitas de pintores e pontuou os países de origem de tais materiais. Plínio se dedicou também a nos informar detalhes a respeito da remuneração irrisória cabida aos artistas, o que acabou por oferecer à posteridade um importante testemunho a respeito da pouca consideração social da qual gozavam em seu tempo. Plínio é frequentemente citado como um autor esdrúxulo, colecionador obsessivo de dados desarticulados e simples disparates. Mas ele observava conscienciosamente as fontes, evitava apoiarse em sua própria experiência e procurava despersonalizar o texto. Nesse sentido, não era um autor isento de critérios. Ao contrario da maioria dos atuais historiadores da arte, Plínio nutria pelas pinturas e esculturas uma certa desconfiança largamente 8. Ítalo CALVINO, “O céu, o homem, o elefante”. In: ______. Por que ler os clássicos. Trad. Nilson Moulin. São Paulo: Cia das Letras, 1993, p. 43.
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partilhada pelo homem romano do seu tempo. Ele estava pouco preocupado com juízos de valor a respeito delas, optando por avaliá-las a partir de critérios morais e práticos e não propriamente “artísticos”9. A obra de Vasari, As vidas dos mais excelentes pintores, escultores e arquitetos, publicada pela primeira vez em 1550, é reconhecida como a primeira história da arte específica. Ela seleciona e articula fatos artísticos de um período de cerca de três séculos, enfatizando as contribuições originais dos artistas deste período, compreendidos entre Cimabue, e Miguel Ângelo, onde se inclui Giotto, Masaccio, Piero della Francesca, Leonardo, Rafael e outros. Cada uma das biografias é acompanhada de uma lista de obras comentadas e passagens dedicadas a dissertações teóricas e técnicas10. Uma ideia decisiva e inovadora, que havia na base do pensamento florentino desta época, da qual Vasari foi um dos humanistas defensores, era o entendimento de que o artista não era um trabalhador humilde e inculto, e sim um homem de ideias, capaz de expressar o seu pensamento e visão de mundo por meio de sua arte. A pintura, a escultura e a arquitetura, por sua vez, não eram atividades servis, baseadas no labor físico do trabalho operário, mas obras do espírito, baseadas na potência do intelecto. A História da arte italiana, de Argan, editada pela primeira vez em 1968, como a de Vasari, tem objeto específico, porém, muito mais amplo: Argan trabalhou em nossa época, quando a história da arte é entendida como uma reorganização de todo um passado visto como base de compreensão do presente. Assim, para falar das especificidades da arte italiana, o autor precisou recorrer a dados de outros lugares que serviriam como base para a compreensão da arte italiana, como a arte grega antiga e o gótico francês.
9. LICHTENSTEIN, Jacqueline, A pintura: textos essenciais, vol. 1, O mito da pintura, Coordenação da tradução: Magnólia Costa. São Paulo: 34, 2004, p. 73. 10. LICHTENSTEIN, Jacqueline, A pintura: textos essenciais, vol. 1, O mito da pintura, Coordenação da tradução: Magnólia Costa. São Paulo: 34, 2004, p. 100. Teoria da linguagem visual
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A crítica de arte Como processo de interpretação e avaliação – e também como literatura artística, a crítica de arte surgiu no século XVI nos testemunhos literários das reações emocionais diante de obras de arte por parte de indivíduos particularmente sensíveis. Se se considera que a feitura das obras de arte deva ser regida por princípios teóricos e preceitos normativos e técnicos, o papel da crítica seria o de verificar se as obras estão em conformidade com eles. Os seus primeiros atos dizem respeito à pintura veneziana e à sua independência com relação aos princípios teóricos e normativos da pintura toscana e romana. A Partir do século XVII, a critica é, sobretudo, apreciação da situação artística contemporânea, com a manifesta intenção de apoiar esta ou aquela corrente11. Nas práticas culturais, existe uma diferença entre a história da arte e a critica. Esta última estaria interessada na produção artística de seu próprio tempo, assumindo abertamente um partido favorável a alguns setores e não a outros e procurando orientar as opiniões dos interessados na direção que lhes parece melhor12. Hoje, a crítica de arte é uma disciplina autônoma e especializada, que opera segundo metodologias e vocabulário próprios e tem como fim a interpretação e avaliação de obras artísticas. Na situação atual da cultura, a crítica se impõe como necessária à produção e à afirmação da arte, o que indica a comunicabilidade difícil – ou ao menos não imediata – das obras, o que se ampliou no modernismo e chegou ao paroxismo na contemporaneidade. A crítica desempenharia, assim, uma função mediadora entre as obras e os seus fruidores. A crítica pode ser considerada, por isso, uma espécie de prolongamento da própria arte, um dos tentáculos por meio dos quais ela busca se afirmar e um dos modos específicos com que ela manifesta o seu sentido. O seu papel seria facilitar o acesso da arte ao público, agindo de modo a explicá-la e a divulgá-la. Esta ideia parte do princípio de que a crítica age conscienciosamente, a partir do princípio de que a arte deve ser acessível democraticamente a toda a sociedade. Em que pese o pensamento político 11. G.C.Argan & FAGIOLO, Maurizio. Guia da história da arte. Trad. M. F. G. de Azevedo. Lisboa: Estampa, 1992, p. 16. 12. Uma distinção verdadeira entre critica e história da arte só sobrevive se pensamos no conceito de “público”, um grupo de pessoas suscetíveis de ter os seus gostos e opiniões orientados para esta ou aquela direção.
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de quem escreve crítica, observa-se que o texto crítico, no mais das vezes, é caracterizado pelo uso de vocabulário próprio e argumentação complexa, cujo entendimento é tão ou mais difícil que a compreensão das próprias obras de que trata. O próprio estatuto da crítica de arte de “ciência” ou “gênero literário” já indica um certo grau de complexidade e, portanto, uma inacessibilidade relativamente difícil de se evitar. A necessidade da crítica deriva das peculiaridades do tipo de relação que a arte contemporânea estabelece com o sistema cultural e a vida social em geral. No passado, a arte ligava-se funcionalmente às outras atividades sociais. Suas técnicas pertenciam ao sistema tecnológico do artesanato, de modo que a relação arte-sociedade se dava organicamente no seio das relações entre demandas sociais e produtividade. Essa relação se rompeu com a revolução industrial e com a instauração de uma tecnologia estruturalmente diferente, com a nova relação econômica e social, com a mutação radical da morfologia dos objetos e do próprio ambiente material da existência social. A relação passou a ser, então, entre a arte, como atividade em que a função estética é dominante e as outras atividades produtivas, seja as não estéticas ou as estéticas, porém, não artísticas.
Notas sobre desenho, esboços para uma história O tema “história do desenho” envolve um conteúdo muito vasto13. Uma explanação abrangente, que mostre as transformações do desenho desde os primórdios da humanidade até nossos dias exigiria um espaço mais abrangente que os limites deste texto. Além disso, efetivamente, uma história do desenho ainda está por ser escrita, apesar dos muitos estudos que abordam o desenho como tema. Por estas razões, optei por fazer um recorte centrado em algumas questões que julgo importante levar em conta no empreendimento de se pensar uma história do desenho. Para tanto, pretendo apontar alguns traços heterogêneos e ambivalentes que podem ser percebidos na noção de desenho, tal como ela circula hoje no imaginário do senso comum 13. Este capítulo foi originalmente produzido para o Projeto da exposição Tarsila sobre papel, apresentada no Museu de Arte do Espírito Santo – MAES – , em dezembro de 2010. Realização, concepção e Produção: Base7 Projetos Culturais / Grupoink; Patrocínio: Banestes, Cesan e Odebrecht; Parceria: Instituto Sincades; Apoio: Lei de Incentivo à Cultura e Ministério da Cultura. Teoria da linguagem visual
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e remetê-los a alguns testemunhos históricos relativos à sua origem em diferentes épocas e lugares. O termo desenho é, ao mesmo tempo, familiar e estranho: familiar porque é largamente utilizado no dia a dia, em diversos ambientes e situações, sempre com muita desenvoltura; estranho porque dificilmente se consegue descrever o seu significado exato e quase nunca se tenta fazê-lo. Fala-se em desenho na cotidianidade de maneira vaga e imprecisa, e isso parece bastar para que os diálogos sigam adiante sem grandes problemas de entendimento. Frases como “eu não tenho dom para desenho” e “tenho um amigo que sabe desenhar” são muito comuns nas conversações amenas. Elas mostram que, via de regra, o desenho é percebido pelo imaginário do senso comum como uma prática condicionada a uma destreza operativa, de grande complexidade, a qual poucos dominam. Neste caso, o senso comum não errou de todo: de fato, da antiguidade ao final da idade média, o desenho se fez notar e reconhecer, prioritariamente, como uma prática de grande aplicabilidade na lide com tarefas operacionais de diferentes ordens, ligadas à representação visual. Esta prática era vista somente como um fazer mecânico, sem fundamentos intelectuais e considerava-se que quem a praticava não necessitava mais que a perícia manual. O senso comum de nossos dias define o desenho também como o produto da prática referida acima: neste caso, desenho é um certo tipo de configuração visual, suscetível de ser interpretada, caracterizada pela presença organizada de elementos gráficos como pontos, linhas, hachuras e texturas sobre um espaço plano. Ele é realizado com lápis ou outro instrumento duro, capaz de fazer incisões ou deixar o rastro de sua própria matéria, que pode ser ouro, prata, cobre e platina ou outro. Nesta acepção, o desenho não é somente um fazer instrumental, mas um discurso autônomo, uma vez que pode ser interpretado, com finalidades e significados próprios e dotado de meios de expressão específicos e se define materialmente pelo uso de certos instrumentos e suportes. Neste caso, ele é entendido como tradução gráfica de estruturas visíveis ou pensáveis, que denunciam um modo de ver o mundo. Ele registra, representa e materializa ideias, expressa e presentifica sentimentos humanos, as qualidades dos materiais utilizados em sua feitura e o próprio gesto do artista ao produzir o desenho. Este corresponde a um entendimento de desenho surgido no período moderno, sedimentado nos primeiros anos do século XX. Aqui, 38
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reconheceu-se no desenho uma dimensão poética aliada à dimensão operativa, que o definia até o fim da idade media. O desenho passou a ser reconhecido também como dotado de meios específicos, que atendem aos seus próprios fins e não mais simplesmente como parte das etapas operativas de realização de outras coisas. As falas cotidianas sobre desenho também, por vezes, priorizam a sua dimensão cognitiva e abstrata, deixando em segundo plano o lado instrumental e poético. Esta visão leva em conta o tipo de operação mental que ele faz, independente de materiais, suportes e meios de expressão. Nesse sentido, é possível dizer que uma determinada pintura pressupõe um desenho que a concebeu e a planejou. Mas, aqui, o desenho não se reduz a um esquema gráfico que simplesmente orienta o pintor na tarefa de dar formato a imagens previamente concebidas e a distribuir as cores sobre o quadro. Ele corresponde, sobretudo, ao trabalho mental de concepção da pintura, que rege a escolha, distribuição estratégica e tratamento formal de temas e figuras em função da produção de certos efeitos de significação. Neste caso, a noção de desenho se relaciona à ideia de projeto. Projetar significa lançar-se para a frente, planejando os passos desse avanço, em função de necessidades, interesses ou desejos. A este entendimento de desenho, estão associadas as ideias de ordem, planejamento, racionalidade, essência, síntese etc. Desenhar, nesta acepção, é ordenar e planejar racionalmente, fazendo uso somente dos recursos essenciais e eliminando elementos e pormenores desnecessários. O reconhecimento da dimensão racional e projetual do desenho foi mencionada na Poética de Aristóteles e vai receber pleno reconhecimento no alto renascimento. Mas sabemos também que em muitos desenhos renascentistas, de antes e depois, aparecem ornamentos, detalhamentos, variedade e profusão. Pensemos, por exemplo, nos trabalhos de Archimboldo, Bosch e Rubens, para nos limitarmos a poucos exemplos dentre os mais conhecidos. A associação necessária do conceito de desenho às ideias de síntese e de essência só se fundamenta, portanto, como uma idealização. Em síntese, a noção de desenho que circula hoje no senso comum é um produto desarticulado e sem forma precisa, resultado da mescla de diferentes visões, surgidas em épocas distintas. Trata-se de uma noção composta, constituída de traços heterogêneos inter-relacionados; uma nebulosa de ideias associadas, que não conta com uma definição que lhe dê um significado articulado e unificado.
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Não há nada de estranho nisso: o próprio conceito de arte, assim como o de desenho, não comporta uma definição estável e unificada. Seus significados, usos e valores se transformaram no decorrer dos tempos e uma compreensão profunda e bem fundamentada do fenômeno arte não é possível se não se levar em conta a sua dimensão histórica. Muitos dos impasses e mal-entendidos sobre as noções de arte e de desenho devem-se à pouca consciência da complexidade do termo, acompanhada da pressuposição de que o seu significado é unidimensional, unívoco e destituído de ambivalências. Para ilustrar o que afirmo, cito um dos mal-entendidos: sabemos que o ensino da arte no Brasil, desde o século XIX, esteve alicerçado numa certa concepção de desenho e de relação entre desenho e arte que, em grande parte, é consequência da sedimentação histórica deste conceito. Até há bem pouco tempo, em decorrência disso, as aulas de educação artística nas escolas tinham a geometria como conteúdo, equívoco que vem sendo desfeito nas últimas décadas a custa de grande esforço. Cito agora um dos impasses: nos cursos de graduação em arte, discute-se hoje a pertinência do ensino do desenho. Há quem pense que ele é somente um ranço que restou da academia, que sobreviveu ao modernismo e que simplesmente deve ser abolido. Outros entendem que o conceito de desenho, como alguns outros conceitos em arte, transformou-se, mas que segue importante. No campo da produção poética e de sua crítica, uma série de questionamentos se coloca a respeito dos conteúdos e dos limites do conceito de desenho e de seus modos de presença na arte contemporânea. Os artistas hoje possuem uma maior consciência da necessidade de que faça parte de seus trabalhos uma consciência crítica dos conceitos em jogo, não para formulá-los ou elucidar os seus conteúdos, mas para problematizá-los, explicitar as suas contradições e investigar as possibilidades de colocá-los em discurso. É sabido que a dimensão cognitiva da arte se tornou prioritária à sua configuração material e plástica, a partir dos anos de 1960, e, por isso, fala-se hoje em desmaterialização da arte. A expansão e desmaterialização no campo do desenho também vêm sendo experimentadas pelos artistas e discutidas por teóricos e comentadores. Artistas trabalham com o desenho utilizando materiais dos mais diversos e em espaços tridimensionais e socialmente ocupados. Trata-se de uma negação do grau zero conceptivo, o espaço abstrato e neutro fornecido por uma folha de papel em branco. As linhas metálicas de Iole de Freitas, que atravessam paredes e vazam por janelas, ou as grandes 40
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superfícies curvas de ferro de Richard Serra podem ser classificadas como “esculturas” numa concepção tradicional, mas há pertinência em considerá-las como desenhos contemporâneos, instalados em espaços previamente ocupados e plenos de significado vivencial. O esforço de se escrever uma história do desenho é oportuno para elucidar aspectos do conceito e eliminar preconceitos. Contribuiria também para pontuar os traços ambivalentes constitutivos da noção de desenho, descrevê-los, analisá-los e situar as suas origens e pontos de inflexão em diferentes momentos históricos. Por fim, seria útil para identificar e para analisar os novos modos de manifestação do desenho na arte contemporânea e para se refletir sobre o seu lugar e importância no trabalho pedagógico de ensino das artes nos mais diferentes níveis.
Figura 14 Arco Inclinado
Richard Serra Aço cor-tem 3,66 x 36,58 x 0,06 m
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Figura 15 Instalação projetada para o Museu Vale do Rio Doce Iole de freitas Tubos de metal e placas de policarbonato.
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Para uma história do desenho Sabemos que desde a pré-história se fazem traços e incisões configurativos que chamamos vagamente de desenho. A história nos mostra que, na antiguidade e na idade media, o desenho aparece em muitos momentos sob a forma de um estágio preparatório na produção de obras que posteriormente são realizadas com outros meios expressivos. Essas obras não são necessariamente obras de arte no entendimento que hoje temos da palavra: podem ser pinturas, esculturas, basílicas, pontes, aquedutos, carruagens, máquinas de guerra etc. O desenho como etapa de produção desses artefatos e edificações continha um sentido estritamente técnico, ligado a um fazer manual, que depende de uma perícia, mas que nada tem de espiritual e transcendente. Não se produziu um conceito de desenho, assim como não se produziu também de pintura até a idade media.
Figura 16 Diagrama que mostra o método grego de lavrar a pedra no período arcaico e clássico.
É sabido que o conceito de arte como produto elevado do espírito humano surgiu no renascimento italiano. O mesmo se deu com o conceito de “artista”. Foi nessa época que os homens que produziam pinturas e esculturas, até então vistos como operários qualificados somente por sua destreza manual, passaram a ser vistos como homens de ideias e cidadãos respeitáveis, capazes de participar, com seu trabalho, do debate das questões filosóficas e políticas de seu tempo. Tendo isto em conta, a produção estética que ocorreu fora do âmbito desta consciência não pode ser considerada “arte”, no sentido estrito da palavra, dado que o próprio significado da ideia de arte não Teoria da linguagem visual
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Figura 17 Leão visto de frente
Villard de Honnecourt C. 1240
estava presente no momento daquelas produções. Assim, as pinturas paleolíticas, os relevos e pinturas parietais egípcias, os mosaicos bizantinos, a estatuária grega e romana etc. não são exatamente arte, no sentido estrito do termo, ainda que, por hábito de tradição e em razão de algumas vantagens estratégicas, os textos de história da arte os considerem como tais. Belting chama a atenção para isso, ao afirmar que a produção anterior ao renascimento deveria ser estudada numa outra disciplina, cujo nome adequado seria história das imagens14. Se aderirmos à visão de Belting e a aplicarmos ao desenho, a história do desenho só vai começar, de fato, quando se tem uma consciência do termo e um entendimento de seu significado. O que há antes disso, é, no máximo, uma pré-história. Desta pré-história do desenho, vale a pena considerar duas atitudes distintas com relação à atitude de desenhar e ao uso do desenho. A primeira pode ser exemplificada por um famoso desenho de Villard de Honnecourt, realizado por volta de 1240, que mostra um leão visto de frente15. O desenho apresenta uma curiosa mescla de esquematismo com detalhes aparentemente advindos da observação de um modelo natural. Segundo relatos, o desenho foi de fato realizado a partir da observação de um animal vivo, mas Honnecourt sentiu necessidade de traçar a figura sobre esquemas geométricos. Ele realizou um traçado geométrico e depois o preencheu com dados da observação. A imagem resultante não é convincente como uma representação de leão semelhante a um leão verdadeiro, mas como uma configuração que nos permite reconhecer o leão. Ela não pretende fazer o observador sentir-se como se estivesse vendo um animal de fato, mas sim “significar” este animal. Trata-se, portanto, de uma imagem que se dirige prioritariamente ao intelecto e não aos sentidos. A segunda atitude pode ser exemplificada pelos afrescos de Giotto di Bondone. O artista dotou as cenas da vida de Maria e de Cristo nos afrescos da Capela degli Scrovegni (1305-6), de modelado, volume, movimento, dramaticidade e outros elementos advindos da observação. Além disso, incluiu pormenores ambientais que situam o acontecimento num espaço unificado, compondo uma relação de figura e fundo sem precedentes na história da pintura, no que se refere à ve14. DANTO, Arthur C. Após o fim da arte. trad. Saulo Krieger. São Paulo: Odysseus/ Edusp, 2006, p. 3-5. 15. Caderno de apontamentos do arquiteto Villard de Honnecourt. JANSON. W. H. História da arte. 5. ed. Trad. J. A. Ferreira de Almeida e Maria M. R. Santos. São Paulo: Martins Fontes, 1992. 824 p
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Figura 18 A lamentação do Cristo Giotto di Bondone Afresco c. 1306
rossimilhança. Mas o elemento decisivo desta pintura não está nesses aspectos e sim no fato de ele ter situado o ponto de vista do observador na altura da metade inferior do afresco, portanto, na mesma altura das figuras humanas que nele aparecem retratadas. Isto significa que o observador foi levado em conta na concepção do espaço da pintura. Esta escolha implica uma concepção consciente de espaço pictórico, no caso, com uma relação espacial entre observador e quadro. O espaço do observador é pressuposto na pintura, como a sua continuação. Trata-se do nascimento, tanto na pintura quanto no desenho, do ponto de vista humano. Inaugura-se, assim, na arte, a ideia de investigação, concepção e ação no mundo a partir das possibilidades e interesses humanos, e não mais a aceitação passiva de uma ideia de mundo como criação de Deus. É possível dizer que a história do desenho como atividade operativa e intelectual, de valor reconhecido socialmente começa no renascimento, quando artistas, humanistas e eruditos se engajam no projeto político que consistia em impor a supremacia política, econômica e militar de Florença sobre as demais cidades independentes da Itália. Porém, o registro mais antigo da consciência de uma especificidade do desenho que se tem notícia aparece na Poética de Aristóteles. Teoria da linguagem visual
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A visão de Aristóteles, no entanto, não modificou o estatuto do desenho na antiguidade, que permaneceu como uma atividade laboriosa. Para ele, conforme Lichtenstein, [...] ao contrario da cor, cuja beleza resulta de um impacto simplesmente material, da simples habilidade manual, e até do acaso, como o comprova a história tantas vezes citada de Protógenes, o desenho remete sempre à ordem de um projeto; pressupõe uma antecipação do espírito que concebe abstratamente e representa mentalmente a forma que quer realizar, o objetivo que busca atingir16. No renascimento, surgem os escritos que atestam os passos sucessivos de recuperação deste reconhecimento. São, sobretudo, os textos de Alberti, Vasari e Zuccaro que deixam claro por que a história do desenho se deu paralelamente à história da pintura, explicam por que ele não teve uma trajetória independente dela, e não foi considerado uma arte autônoma. Eles ajudam a identificar e a compreender o papel específico que o desenho desempenhou na história da pintura, até que ponto ele teve as suas especificidades reconhecidas, ainda que se mantivesse subordinado a outras práticas, de que maneira ele era compreendido pelos homens que o manipulavam na pintura, que tipo de expectativa se tinha com relação a ele e qual o nível de consideração e valor era a ele atribuído. É Vasari, em As vidas dos mais excelentes pintores, escultores e arquitetos, de 1568, que propõe uma definição, explícita e voluntária, a conceber o desenho como uma atividade específica, a qual ele reconhece elevado valor espiritual. Ele reconhece um duplo sentido na palavra italiana disegno, que se referem, respectivamente, às ideias de projeto e concepção, por um lado, e à execução manual do traçado, por outro. O desenho é por ele definido como tendo uma dimensão teórica e prática e como sendo expressão sensível da ideia e fonte da invenção pictórica, conferindo a esta a dignidade de uma atividade intelectual17. Segundo Vasari, 16. LICHTENSTEIN, Jacqueline, “O desenho e a cor”, in ______. (Org.). A pintura: textos essenciais. V. 9: O desenho e a cor. Coordenação da tradução: Magnólia Costa. São Paulo: 34, 2004, p. 11-2. 17. LICHTENSTEIN, Jacqueline, “O desenho e a cor”, in ______. (org.). A pintura: textos essenciais. V. 9: O desenho e a cor. Coordenação da tradução: Magnólia Costa. São Paulo: 34, 2004, p. 19.
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Oriundo do intelecto, o desenho, pai de nossas três artes – arquitetura, escultura, pintura – extrai de múltiplos elementos um juízo universal. Esse juízo assemelha-se a uma forma ou idéia de todas as coisas da natureza, que é por sua vez sempre singular em suas medidas. Quer se trate do corpo humano, dos animais, das plantas, dos edifícios, da escultura ou da pintura, percebe-se a relação que o todo mantém com as partes, que as partes mantêm entre si e com o conjunto. Dessa percepção nasce um conceito, um juízo que se forma na mente, e cuja expressão manual denomina-se desenho. Pode-se então concluir que esse desenho não é senão a expressão e a manifestação do conceito que existe na alma ou que foi mentalmente imaginado por outros e elaborado em uma idéia18. Só tardiamente, em Zuccaro, aproximadamente quarenta anos depois, apareceu uma teoria elaborada, com uma descrição das características do desenho, conforme a visão do autor, e a exposição de seus fundamentos. Esse autor, como Vasari, reconhece o duplo sentido da palavra disegno e estabelece uma distinção entre o desenho interno e o desenho externo, relativos, respectivamente, a cada um desses dois sentidos. A partir disso, ele apresenta uma exposição sistemática do conceito de desenho interno como ideia19. Segundo Lichtenstein, Os autores que o precederam tinham atribuído à idéia uma universalidade abstrata, pouco suscetível de explicar com precisão a atuação intelectual do ato criador na pintura. Além disso, é justamente o que Zuccaro cobra de Vasari, que não tinha percebido que o desenho interior nada mais é que a própria Idéia. Ele também critica Armenini por ter dado uma definição do disegno interno que pode, sem dúvida, ser aplicada à arte em geral mas exclui a forma específica do desenho como atividade produtiva. O mérito de Zuccaro é ter desvendado um ponto 18. VASARI, Giorgio. “As vidas dos mais excelentes pintores, escultores e arquitetos”. In: LICHTENSTEIN, Jacqueline. (Org.). A pintura: textos essenciais. V. 9: O desenho e a cor. Trad. Beatriz Blay. São Paulo: 34, 2004, p. 20. 19. No entanto, os reconhecimentos de Vasari e Zuccaro não alteraram o estado de subordinação do desenho à pintura, escultura e arquitetura e nem era esta a intenção desses autores. Teoria da linguagem visual
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essencial da teoria da pintura, no caso, a função do desenho e o papel do pensamento na criação pictórica. Uma longa tradição estética, dos antigos a Alain, entre outros contemporâneos, tende a identificar o ato de desenhar com o pensamento em atividade, o gesto de produzir uma forma com o ato de conceber. A audácia de Zuccaro está em afirmar que o desenho é a própria idéia, que se produz no intelecto como signo divino20. A ideia de desenho como elemento constitutivo da pintura tinha dois sentidos distintos: o primeiro era como um trabalho puramente técnico, a primeira etapa do trabalho operativo de se construir a pintura: fazia-se um esboço, depois, organizava-se esse esboço de modo detalhado no espaço do quadro; em seguida, cobria-o com tonalidades de sépia para demarcar as regiões claras escuras e produzir os efeitos óticos de volume, para depois, finalmente, aplicar as cores. Assim, a pintura florentina dos séculos XIV E XV poderia ser vista, em grande medida, como um “desenho pintado”. Neste caso, o desenho se limitava a cumprir uma função operativa e não participava efetivamente do trabalho intelectual de conceber e projetar a pintura. No Da pintura de Alberti, a palavra “desenho” aparece somente em duas ocasiões. A primeira delas está no parágrafo 46 do livro II, em que ele diz: Eu, fazendo coro com doutos e não doutos, louvarei aquelas fisionomias que, como que esculpidas, parecem sair do quadro, e criticarei aquelas em que não vejo outra arte senão a do desenho. Gostaria que um bom desenho, com uma boa composição fosse bem colorido21. Mais adiante, no parágrafo 57 do livro III, aparece a outra menção ao termo: Meu conselho é que as pessoas se exercitem na pintura desenhando coisas grandes, quase iguais em grandeza às que se representam com o desenho. É que nos pequenos 20. LICHTENSTEIN, Jacqueline, “O mito da pintura”, in ______. (Org.). A pintura: textos essenciais. V. 1: O mito da pintura. Coordenação da tradução: Magnólia Costa. São Paulo: 34, 2004, p. 42. 21. ALBERTI, Leon Battista. Da pintura. trad. A. da S. Mendonça. 2.ed. Campinas: Unicamp, 1992, p. 121.
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desenhos facilmente se esconde toda sorte de grandes vícios, enquanto que nos grandes se vêem facilmente os mais pequenos22. Nas duas citações, o desenho é implicitamente considerado como um procedimento técnico, e o produto desse procedimento consiste em configurar com meios gráficos uma imagem de alguma coisa. Trata-se de um fazer mecânico, apenas uma das etapas operativas de produção da pintura, para a qual, o executante necessitava somente de destreza e não de capacidade e refinamento intelectual. Alberti foi um dos humanistas mais importantes no processo social de reconhecimento da pintura como atividade do espírito, mas ele não estende ao desenho este mesmo reconhecimento. No entanto, ele menciona insistentemente pontos, linhas, ângulos, convergências, margens, centro, extensões, quantidades, distâncias e toda uma série de termos que ele associa à matemática, mas não ao desenho. É curioso que, para Alberti, o trabalho de desenhar e o trabalho de colorir possuem o mesmo valor, coisa que, como se verá, terá, posteriormente, um tratamento diferente.
Os debates sobre o desenho e a cor O reconhecimento da dimensão cognitiva do desenho acabou por se dar, em parte, devido à necessidade de se justificar a consideração da pintura como atividade do espírito. Em vista disso, alguns humanistas se engajaram em exaltar as qualidades intelectuais do desenho para contrabalançá-los aos aspectos mecânicos da produção da pintura. Tais qualidades intelectuais pareciam mais visíveis se contrapostas à uma suposta condição puramente sensual da cor. Assim, no séc. XVI, desenvolveu-se um debate teórico acerca dos respectivos papeis desempenhados pelo desenho e pela cor na concepção e produção da pintura. Tal debate ganhou dimensões políticas, à medida que Veneza, cuja pintura se baseava fortemente na expressividade cromática, pretendia rivalizar com Florença, onde esta mesma arte era regida pelo primado do desenho. A discussão sobre a oposição entre o desenho e a cor na pintura, entendidos como valores antagônicos, tem sua origem na arena te22. ALBERTI, Leon Battista. Da pintura. trad. A. da S. Mendonça. 2.ed. Campinas: Unicamp, 1992, p. 134. Teoria da linguagem visual
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órica e ocorreu no interior das academias. A sua importância é certamente maior para compreender as ideias e discursos sobre arte da época e não as próprias obras dos pintores. Na verdade, esses debates, só interferiam nesta produção na medida e nos casos em que os artistas eram efetivamente pressionados para trabalhar em conformidade com as suas prescrições. Quando, por exemplo, Roger de Piles, no Curso de pintura por princípios, de 1708, insinua que a pintura realizada por Poussin e pela escola dos Carraci é limitada, devido à não observância adequada das questões do cromatismo e que Rubens, ao contrario, é grande, devido ao trato por ele dado a cor em seus quadros, esse julgamento diz mais respeito aos princípios que fundamentam a sua teoria da arte do que às qualidades mesmas da obra dos artistas que ele toma como exemplo para sua argumentação. Mesmo se alguns pintores, nas suas preferências e definição de seus estilos, pendiam para a cor e outros para o desenho, nenhum deles ignorava que um quadro é um conjunto de linhas e de cores dispostas numa certa ordem, antes de ser a representação de uma batalha ou de uma natureza morta. Entre as inovações cromáticas de um Ticiano e os discursos que se formaram para defendê-las ou condená-las as distâncias são grandes, pois as discussões acabam ganhando autonomia. As escolas de Florença e de Roma defenderam o primado do desenho e os documentos mais significativos desta defesa estão nos escritos de Vasari e Zuccaro. As escolas veneziana e lombarda, representadas, respectivamente, por eruditos como Lodovico Dolce e Lomazzo, defendiam que a arte da cor era mais importante do que a exatidão do desenho. Os discursos de defesa e legitimação do desenho consistiam em demonstrar que Platão estava certo ao condenar a dimensão sensível da experiência humana e os prazeres a ela relacionados, mas não ao condenar a pintura, já que esta não era, essencialmente, uma atividade sensível, já que os aspectos mais importantes que a definiam estavam no rigor do desenho e não na sensualidade da cor. Tal atitude equivalia a defender a pintura, justificando os critérios filosóficos e morais que haviam servido para sua exclusão. Em contrapartida, os defensores do primado da cor argumentavam que era esta que tornava os objetos dotados de “alma” e de “vida”; que era ela que permitia pintar a carne, representar o movimento, criar a ilusão do vivo. Era ela, enfim, que estava na origem do prazer que o
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espectador sente diante de um quadro. Ao desenho sublime e austero de Rafael, eles preferiam o exuberante colorido de Ticiano. Este elogio da cor incorria em certos riscos, que não passavam despercebidos pelos defensores do desenho, que se encarregavam de denunciá-los. Ao defenderem o primado da cor na pintura, os humanistas venezianos colocavam em perigo a condição de arte liberal que a pintura havia conquistado na cultura humanista graças ao primado do desenho. Ora, desde a antiguidade, a maioria das acusações dirigidas contra a pintura tinham por base principalmente a natureza sensível das imagens pintadas e o prazer que elas proporcionavam, ou seja, justamente aquele aspecto da pintura ligado à cor. Isso explica por que Vasari insistiu tanto na necessidade de afirmar que a pintura, assim como a escultura e a arquitetura, é uma arte que procede essencialmente do intelecto, isto é, da arte do desenho. Explica também por que, para Zuccaro, o desenho não é matéria, nem corpo, nem acidente, mas sim concepção, ideia, regra e finalidade, em suma, uma atividade superior do intelecto. Ainda que reconheçam a importância da cor, a maior parte dos teóricos continuará a privilegiar o desenho, que exige do artista e do espectador um ato de abstração, em contraposição à experiência sensível proporcionada pela cor, e um ato reflexivo para compreender a engenhosidade da invenção. Isso equivale a atribuir ao desenho qualidades autenticamente intelectuais, conhecimentos tão diversos como perspectiva, anatomia e história e a reportar-se a uma autoridade tão considerável como a atividade do pensamento para a determinação da ideia. O debate que opunha desenho e cor na Itália do século XVI transformou-se em uma querela doutrinária ainda mais fortemente polarizada na França no século seguinte. O conflito francês surgiu por volta de 1660 e se estendeu por quarenta anos e opôs os partidários de Poussin, defensores do primado do desenho, aos partidários de Rubens, defensores do primado da cor. Os franceses transformaram o que era uma divergência entre pontos de vista contrários, mas não inconciliáveis num antagonismo violento em que se chocam posições consideradas incompatíveis. Ainda que utilize argumentos da polêmica italiana, o debate francês não foi uma simples repetição ou continuação do que ocorreu na Itália no século anterior. Aquilo que na Itália era apenas uma corrente ou uma tendência de interpretação da obra de arte, tornou-se na França uma teoria dominante, a doutrina oficial da Academia. Teoria da linguagem visual
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O prevalência do desenho, defendido pelos poussinistas, era avalizado pela Academia Real de Pintura e Escultura da França, a qual eles dirigiam desde a sua fundação. Os motivos deste posicionamento, no entanto, eram distintos daqueles dos humanistas italianos e estavam alicerçados em interesses muito mais objetivos, ainda que possuíssem alguns fundamentos em comum. A Academia se incumbira de uma finalidade, a um só tempo, pedagógica, teórica e política: ela devia ensinar a arte da pintura e da escultura, produzir reflexões sobre a arte e contribuir para a difusão da imagem da monarquia absoluta e contribuir para a manutenção do seu poderio. A terceira finalidade era, evidentemente, prioritária, e sobrepujava as demais. Ela se expressava na hierarquia dos gêneros, que determinava a supremacia da pintura histórica, em detrimento dos temas religiosos, mitológicos, retratos e cenas de gênero. O privilégio dado à pintura histórica pressupõe, segundo o raciocínio acadêmico, o primado e a excelência do desenho, que permite transformar o relato em imagem, a história em quadro, ou, para usar uma expressão da época, narrar com o pincel. Compreende-se assim a desconfiança da academia em relação às doutrinas coloristas que haviam começado a se difundir na França na primeira metade do século XVII. A preferência pelo desenho recebeu também uma justificativa ligada às questões pedagógicas: para os acadêmicos, o desenho corresponde à única parte da pintura que se pode efetivamente ser submetida às condições de uma aprendizado escolar, supostamente porque o processo deste aprendizado pode ser ordenado segundo passos sucessivos e regras objetivas. Para eles, o trabalho cromático, contrariamente, escapa às regulamentações. Os séculos XVI e XVII foram os períodos anteriores ao século XX em que mais se escreveu sobre desenho. No decorrer do século XVIII e nos posteriores, a história mostra que a presença expressiva da cor ganhou cada vez mais espaço, até que a polaridade entre desenho e pintura se mostrou ultrapassada no modernismo.
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Exemplo de texto crítico: O cenógrafo e o pintor Julio Schmidt não é exatamente um pintor, embora muitos de seus trabalhos envolvam imagens confeccionadas com tinta. Tampouco se pode dizer que seja um escultor, apesar das várias peças tridimensionais que produziu. Os trabalhos que vem realizando desde 2001 incluem pinturas parietais que funcionam como ambientes, estruturas tridimensionais revestidas de cobertura pictórica e peças que imitam a aparência de objetos domésticos funcionais. Alguns são feitos com tinta acrílica sobre tela, outros com a tinta diretamente aplicada sobre paredes ou sobre suportes tridimensionais, produzidos com madeira, gesso, papelão, isopor, massa corrida e outros materiais. A despeito da diversidade formal, muitos deles têm em comum o fato de se apresentarem como imagens de objetos anódinos, tais como uma lata de sardinha, uma caixa de talco e um alicate de unhas. Embora não seja um pintor no sentido convencional da palavra, e apesar de se valer do meio tridimensional, é possível dizer que a sua obra tenha como tema central a própria pintura. Não por ela conter tinta em seu corpo físico ou por ser aplicada de modo a configurar imagens de objetos identificáveis, mas por enunciar, na sua configuração plástica e no modo como entretém relações com o observador, um discurso a respeito dos próprios poderes denotativos da imagem visual, coisa que a pintura, ao longo de sua história, sempre explorou. Dois de seus trabalhos mais antigos servem de baliza para a discussão desta ideia. São eles Atum sólido ao natural em água e sal e Aparador. O primeiro consiste na simulação, em proporções agigantadas, de uma popular lata de atum, de marca específica, que se pode encontrar facilmente nos supermercados. O artista usou lâminas de madeira para produzir uma caixa com o formato da lata e recobriu-a com uma pintura que imita as laterais metálicas, a estampa e letreiros do rótulo e os demais aspectos da aparência do modelo original. De fato, o resultado se parece muito com a conhecida lata de atum, salvo a diferença gritante de escala. O título, que corresponde ao nome do produto imitado, retoma uma estratégia tipicamente modernista para nomear pinturas, que consiste em fazer referência ao objeto imediato e óbvio que a representação mostra. Este tipo de título, descritivo e não explicativo, reitera o que a própria imagem explicita e deixa evidente que, portanto, não precisaria ser dito. Com isso, recusa uma informação nova a 54
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respeito das intenções do artista ou da própria imagem apresentada, para além de sua aparência imediata. Assim, ele recoloca em foco o próprio tema escolhido, a despeito de sua aparente insignificância, e reconduz a atenção do observador para a própria obra, enquanto fenômeno visual imediatamente presente. Aparador, apresentado em 2002 na Galeria de Arte Espaço Universitário, consiste numa peça que imita um pequeno móvel doméstico de parede, branco e decorado, instalado numa das paredes na mesma posição em que habitualmente esta peça de mobiliário aparece nas residências. Suas curvas lânguidas, ornadas na parte frontal com florões em relevo, sugerem uma evocação kitsch de mobiliário rococó. A uma certa distância, pode-se ver sobre ele, destacandose da alvura da peça, que se entende pela própria parede, um alicate de unhas e um removedor de cutículas. A primeira impressão é que estamos diante de uma daquelas peças decorativas de gesso, feitas em série, antes de receber um acabamento em pintura cuja função seria imitar madeira ou metal envelhecido. No entanto, esta primeira impressão é desfeita pela etiqueta que revela ser a peça de manufatura do próprio artista e não uma apropriação de derivação vagamente duchampiana. O material utilizado – papelão e isopor, arrematados com massa corrida – não se deixa revelar pela própria peça, e somos informados deles também pela etiqueta. Esta indica também a presença de tinta acrílica. Mas a esta altura, o observador já se deu conta de que o alicate de unha e o removedor de cutículas, que eram vistos de longe sobre o aparador, são, na verdade, pintados. No que se refere ao processo de produção, a peça se vale dos mesmos procedimentos utilizados na construção de certos cenários, nos quais os efeitos visuais do produto final se separam rigorosamente dos materiais e técnicas levados a cabo para estruturá-lo. Nestes trabalhos, Schmidt fizera com que um certo material ou objeto se fizesse passar por outro. Explorara também certos efeitos ilusórios que as obras de arte são capazes de produzir na percepção do observador. Mas é no conjunto realizado no período de residência na Galeria Homero Massena que o artista levou mais longe estes aspectos, essenciais no discurso de seu trabalho. Nesse sentido, esta última produção retoma coerentemente o fio discursivo da anterior, aprofundando e dando mais precisão às questões que nela vinham sendo maturadas anteriormente.
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II O trabalho realizado como artista residente inclui uma série de pequenas peças de madeira retangulares e achatadas que imitam interruptores elétricos. Uma pintura sobre suas superfícies planas imita a cor habitual desses objetos e simula o volume das teclas de ligar. Presas às paredes, elas facilmente se fazem passar por autênticos interruptores se o observador não tiver o cuidado de examiná-las de perto. Outros trabalhos foram executados somente com tinta diretamente sobre as paredes e o chão da galeria. Estes simulam novos interruptores de luz, calhas de fios elétricos, ralos de escoamento de água (fig. 21) e pregos aplicados desordenadamente sobre uma área da parede. Particularmente interessantes são algumas que mostram os buracos retangulares, cheios de fios e sujeira, que ficam expostos quando retiramos a tampa dos interruptores (fig 19). Tais trabalhos são feitos na mesma escala e com as mesmas cores que percebemos nessas instalações quando as vemos em espaços domésticos. Trata-se de uma pintura de grande simplicidade formal e extremama verossimilhaça, capaz de passar despercebida por provocar de imediato o mesmo desinteresse que habitualmente se tem pelos seus congêneres no cotidiano. Efetivamente, os visitantes não as percebem ao chegar à galeria; ou, ao menos, não as identificam como sendo pinturas e não se dão conta de que tais objetos constituem o material artístico posto em exposição. A primeira impressão geral é de que a galeria está vazia. As pinturas que mostram os buracos na parede são particularmente perturbadoras, pois passam a impressão de que, além de não conter “arte”, a galeria se encontra em período de reforma ou manutenção. É somente em um segundo momento, após uma advertência verbal ou um olhar mais atento, que o visitante se dá conta da presença dos trabalhos. De fato, as pinturas são convincentes o bastante para enganar o olho. Se vistas a poucos metros de distância, são facilmente confundidas com os interruptores, buracos e ralos que lhe serviram de modelo. No entanto, em que pese a boa execução técnica, elas devem muito de sua eficácia aos hábitos perceptivos do observador mediano. Este, com seu olhar condicionado pelo ordinário da vivência diária, tende a desprezar automaticamente a informação visual enviada por aquelas pinturas e objetos, que simplesmente não são percebidos ou são vagamente assimilados às instalações elétricas e hidráulicas próprias da galeria. Os trabalhos contrariam também a 56
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expectativa geral de encontrar no espaço de exibição de arte objetos distribuídos pelo chão ou pendurados no teto e nas paredes. A fruição consciente dos trabalhos tem início quando o engano se desfaz. É quando se pode admirar o requinte técnico da obra e identificar o jogo irônico com os automatismos perceptivos.
Figura 19 Série Instalações e circuitos: Buracos na parede Julio Schmidt Pva e acrílica sobre parede 1999
Figura 20 Série Instalações e circuitos: Interruptores Julio Schmidt Óleo sobre mdf 1999
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III
Figura 21 Série Instalações e circuitos: Ralo
Julio Schmidt Pva, acrílica e verniz sobre parede 15 x 15 cm 1999
O trabalho de Schmidt pode ser percebido como um certo desdobramento da tendência artística que se consagrou com o nome de pop art, especificamente do tipo de imagem representativa produzido por artistas como Warhol, Oldenburg e Rosenquist, a partir de 1960, após duas décadas de predomínio da arte abstrata. O trabalho destes artistas promoveu um retorno à pintura figurativa, porém, modificou muito o objeto da figuração, o seu significado essencial e, sobretudo, a relação intelectual e afetiva que se estabelece entre esta nova imagem, que se pretende artística, e o frequentador médio de espaços de exibição de arte. Verifica-se na nova imagem pop uma evasão das grandes questões político-sociais, estéticas e existenciais próprias do engajamento modernista, para se ater a aspectos notoriamente triviais do cotidiano dos grandes centros urbanos. O refrigerante engarrafado, o ford, a sopa enlatada, a macarronada, os postos de gasolina e o sabão em pó estão entre os ícones da nova cultura material que a pop art elegeu e transformou em imagens recorrentes nas obras artísticas. Em que pese a evidente intranscendência de tais temas, o que parece fundamentalmente demarcar uma diferença entre este repertório figurativo e aquele que antecedeu o modernismo é o estatuto de cada um deles. A pintura pré-moderna, entre outras coisas, interessava-se pela dimensão visível da natureza, e pela possibilidade de capturar a experiência do visível em imagens que possam ser, de alguma maneira, elucidativas desta experiência. Não por acaso, um grande paisagista como Constable declarou que a pintura é uma ciência, que deve ser praticada como uma investigação das leis da natureza, que o paisagismo deve ser considerado como um ramo da filosofia natural e que cada quadro realizado neste sentido deve ser encarado como uma experiência23. Os impressionistas parecem ter sido os pintores que deliberadamente levaram mais longe esta proposta, ainda que formulada em outros termos. A imagem pop, por sua vez, está longe de inspirar-se na natureza ou de conceber imagens originárias do mundo, que nos ajudem a percebê-lo ou a compreendê-lo. A natureza, agora fortemente domesticada pelos poderes da racionalidade tecnológica, parece ter perdido todo o interesse que despertara como matriz dos enigmas 23. E. H. GOMBRICH, Arte e ilusão: um estudo da psicologia da representação pictórica. Trad. Raul Barbosa. São Paulo: Martins Fontes, 1986, p. 27.
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da visibilidade. É na cultura, isto é, na produção material e cognitiva que se faz a partir dos dados da natureza, que se encontra a ênfase do pop, sobretudo, na sua vertente ligada ao entretenimento. Mas a cultura, por definição, já se estrutura como imagem, seja ela sensorial ou conceitual, enquanto que a natureza, para se fazer imagem – o que equivale a se tornar cultura -, necessita dos esforços da filosofia, da ciência e da arte. Os artistas pop, portanto, produzem imagens, não de fenômenos ou aparências naturais, mas de outras imagens já constituídas. A imagem pop difere também da imagem modernista. Os modernos também deslocaram o seu foco de interesse da natureza para a cultura, mas ao fazer isso, colocaram em causa os mais importantes aspectos da cultura contemporânea, com a finalidade de proceder, com os meios da arte, um exame crítico do mundo com vistas a transformá-lo para melhor. A imagem moderna é, portanto, uma imagem comprometida com um posicionamento ideológico que considera a importância de uma ação renovadora sobre o mundo social e considera também que a arte é capaz de atuar neste trabalho transformador.
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Figura 22 Série Instalações e circuitos: Agrupamento Julio Schmidt Óleo sobre mdf dimensões variáveis. 1999
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IV Em que pese a aproximação, a figuração de Schmidt não se reduz a um desdobramento da pop art. A diferença começa já no plano técnico, mas se estende ao modo específico como se relaciona com o expectador e ao modo como repropõe o estatuto da imagem artística representativa. Com relação à técnica, diferentemente da pop art, em que os artistas produziam pintura, gravura e escultura e não hesitavam em assim classificar suas obras, o trabalho de Schmidt resulta de uma mescla de procedimentos diversos e sua leitura não depende de um enquadramento em quaisquer desses gêneros. Tais procedimentos incluem técnicas análogas às da pintura e escultura, mas aplicadas com uma lógica absolutamente distinta. Esta lógica ordena o plano técnico de seu trabalho e confere um sentido comum ao conjunto. A sua presença indica, de saída, que o seu trabalho não se esgota numa retomada da pop art, nem pode ser descrito simplesmente como um arranjo aleatório de possibilidades dispersas. Como já foi dito, o trabalho de Schmidt tem como tema a própria pintura. Mais especificamente, ele discute as relações entre esta e um outro sistema de produção de imagens, que é conhecido como cenografia. Seus trabalhos possuem as características físicas do objeto cenográfico, mas são exibidos como arte, portanto, fora do espaço e do contexto habitual da cenografia. Eles se valem de técnicas cenográficas não para fazer cenografia, mas para discutir o seu modo de funcionamento e o seu sentido24. Vistas a uma certa distância, tanto a pintura quanto a cenografia podem ser entendidas como sistemas de técnicas que permitem a reprodução da aparência das coisas visíveis. Ainda que redutora, esta visão reflete o quanto da consideração social para com a pintura, no decorrer da história, baseou-se no seu potencial de produzir ilusões. Pode-se também intuir, a partir disso, o quanto o senso comum é 24. Vale lembrar que Schmidt trabalhou por muitos anos como cenógrafo. Entre as demandas mais comuns estavam as decorações para estandes de eventos comerciais, compostos de grandes estruturas que imitam os produtos oferecidos e as logomarcas que os representam. Também muito freqüentes eram as solicitações de painéis pintados para festas infantis, mostrando ambientes de contos de fadas, com os personagens preferidos pelas crianças aniversariantes. Tais painéis reproduziam a aparência das personagens tais como aparecem nos desenhos animados e histórias em quadrinhos, pois tinham a finalidade de atender à expectativa fantasiosa das crianças e não a de se constituírem como trabalhos autorais. A produção artesanal de enormes peças de papel machê, gesso, isopor e outros materiais, que imitavam a aparência de garrafas de vidro, painéis metálicos e embalagens de plástico funcionou como base técnica para os trabalhos artísticos, graças ao rigoroso exercício de formulação e resolução dos problemas técnicos que o trabalho com cenografia sempre exigiu.
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suscetível de não perceber as distinções de conceito entre os trabalhos do cenógrafo e do pintor. O trabalho de Schmidt, ao deslocar o procedimento cenográfico do contexto da cenografia e situá-lo no espaço da arte, propõe a problematização destas diferenças. É antiga a ideia de se produzir materialmente uma imagem capaz de provocar efeitos ilusórios nos observadores. São conhecidas as anedotas que circulavam na Grécia antiga sobre pinturas cuja excelência as fazia capazes de enganar o olho, não só dos observadores comuns, mas também de pintores experientes e até de animais25. Tais pinturas, conforme a lenda, faziam com que os observadores não percebessem o plano do quadro e acreditassem estar diante de objetos reais. Tanto a pintura quanto a cenografia são sistemas linguísticos capazes de manipular linhas, formas, cores e texturas para produzir uma vasta gama de efeitos visuais, incluindo eventuais artifícios ilusionísticos. No entanto, o uso e o significado do termo ilusão varia de uma para outra. É pouco provável que alguém, em condições normais, confunda uma imagem pictórica com algo do mundo natural. Tampouco se espera da arte esse tipo de efeito ilusório. É ingênua a concepção de arte que vise a reproduzir a realidade por meio de um simulacro suscetível de criar ilusão. A pintura figurativa, que busca um alto grau de verossimilhança, ainda que possa prestar-se a práticas de prestidigitação, tende a ser considerada prioritariamente como uma espécie de investigação empírica que lida com as possibilidades e limites da experiência do visível. Como tal, ela vai mostrar configurações visuais, mas também os modos de os produzir e, na medida do possível, discuti-los. Assim procedendo, atende a uma expectativa muito difundida na modernidade, segundo a qual caberia à arte o compromisso ético de mostrar-se combativa com relação aos seus fins e transparente com relação aos seus meios. A noção modernista de “verdade” na arte consistia nesta dupla postura. Caberia à pintura o dever de manifestar um discurso verdadeiro, como propôs Courbet. Mas não basta um conteúdo verdadeiro: é necessário que a forma de expressão também fosse verdadeira, que ela não ocultasse nada de si mesma. Foram os impressionistas que levaram mais longe a ideia de fazer uma pintura que não tivesse nada de cenográfica. A imagem que ela mostrava deveria corresponder, tanto quanto possível, à percepção retiniana. Os meios usados para isso, ou seja, a tinta, a tela e o gesto de aplicar a primeira sobre 25. OSBORNE, Harold. Estética e teoria da arte. Trad. Octávio M. Cajado. 3. ed. São Paulo: Cultrix, 1978, p. 54-5. Teoria da linguagem visual
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a segunda, deveriam ser claramente mostrados, o que tornaria explícito o meio pictórico. Além dos significados distintos da noção de ilusão, que se encontram vagamente implícitos nas práticas de pintura e de cenografia, estes dois sistemas possuem estatutos e considerações sociais muito distintos. Enquanto a pintura goza da reputação de atividade do espírito, capaz de produzir visões de mundo e de definir os seus próprios meios e finalidades, a cenografia, no mais das vezes, é tida como um trabalho prioritariamente técnico de concepção e execução de cenários para atender a finalidades que lhe são alheias. A peça cenográfica é destinada a se parecer ao máximo com o objeto que lhe serviu de modelo, ocultando, tanto quanto possível, os meios utilizados na imitação. Trata-se de mostrar os efeitos e ocultar as causas, um caminho que encontrou no cinema uma de suas expressões mais triunfantes.
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A história e a crítica de arte
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Não parece haver dúvidas de que as obras de arte possuem significados profundos, complexos e de difícil compreensão. A opinião geral, largamente aceita e que se constitui como uma certeza do senso comum, é justamente a de que as obras de arte “nos dizem algo”, ou que elas “contêm mensagens”. Mas quando se questiona quais são os critérios e meios teóricos mais adequados para explicitar esses significados com objetividade e precisão, respeitando tanto quanto possível as características e especificidades das obras tomadas para estudo, o consenso deixa de existir. Embora não haja controvérsia quanto à aceitação da existência dos significados, o mesmo não ocorre no que se refere às possibilidades concretas de demonstrá-los. Há sempre o argumento segundo o qual as obras de arte são por demais “abertas” e que sua riqueza de expressão e de significação é incomensurável, portanto, impossível de ser descrita e explicada. Ela se manifestaria simultaneamente em vários níveis e graus de intensidade, de modo que qualquer modelo teórico que propusesse explicitar a lógica responsável pela produção de seu sentido, bem como descrever esse sentido mesmo, diferente em cada caso, seria considerada inevitavelmente uma grade redutora. Uma outra linha de argumentação centra-se não na imponderabilidade das obras a serem lidas, mas na complexidade do próprio sujeito que a “lê”. Esta reconhece a primazia da subjetividade sobre o objeto que com ela entra em interação; aceita que cada sujeito tem intimamente suas inclinações de gosto e modos de julgamento e é, ainda, suscetível de impressionar-se de modos também distintos, conforme sejam sua história e experiência de vida. Essa largueza de espírito, assim reconhecida no sujeito, permite-lhe, e mesmo o obriga, pelas associações, voluntárias ou não, que faz no momento da fruição, a multiplicar as possibilidades de leitura, em si mesmas já muitas, que as obras oferecem. Em suma, aquilo que na obra de arte se manifesta concentra múltiplas perspectivas de significação, devido à sua própria complexidade, e estas estão ainda sujeitas a diferentes interpretações, de acordo com as subjetividades singulares dos indivíduos que as encontram. Sumamente, no primeiro caso, há o reconhecimento de que há algo no objeto artístico passível de ser explicado, muito embora não haja o crédito nas possibilidades concretas de fazê-lo. No segundo caso, reconhece-se as determinações que se devem ao próprio sujeito que o observa, mas concedendo a elas uma extensão dificilmente operacionalizável. Uma tomada de posição diante desses dois tipos Teoria da linguagem visual
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de argumento não implica necessariamente em negá-los. A variedade de leituras possíveis que uma obra oferece não impede que ela seja estudada adequadamente. Os estudiosos podem fazer interpretações diferentes de uma mesma obra, na expectativa de se aproximar o máximo de seus significados. A validade de suas interpretações dependerá da capacidade de identificar e de articular os dados oferecidos pela obra em questão, de relacioná-los com as fontes de pesquisa e do quão longe forem elas ao interpretá-los. Juntamente, estará em discussão a validade do próprio método e ponto de vista teórico que lhe dá suporte. Quanto às possibilidades, também potencialmente infinitas, de associação de impressões ou ideias que cada sujeito particularmente pode fazer diante de uma obra, estas impõem a discussão da validade dos diferentes tipos de observações que a respeito de uma obra de arte é possível fazer. Sem negar o interesse da fruição descomprometida, que pode ser descrita genericamente como um encontro fluido entre um objeto complexo e uma subjetividade profundamente modelada por uma história de vida particular, o tipo de estudo de obras de arte do qual se fala aqui implica algo mais profundo e elaborado que a percepção e compreensão que se tem a partir de uma fruição casual. É certo que os objetos “não artísticos”, por vezes, podem emocionar ou causar impressão e, portanto, podem ser também “fruídos”. Por outro lado, uma obra artística pode impressionar por razões não artísticas – a dramaticidade do tema, por exemplo. Não há nada de errado em se encantar com objetos quaisquer, não importa se são considerados artísticos ou não. No entanto, é desejável que o fruidor, em qualquer dos casos, esteja consciente do estatuto do objeto com o qual ele estabelece uma relação deste gênero. A complexidade dos objetos de arte e os múltiplos aspectos que os envolvem fez com que, no campo da história da arte, se desenvolvessem diferentes abordagens, cada uma privilegiando um ou mais aspectos específicos relacionados às obras e aos artistas, suas épocas e lugares. Apresento em seguida uma síntese das linhas de abordagem mais influentes em história da arte, com um resumo de suas ideias teóricas e principais estudiosos ligados a cada uma delas. A ordem com que estão expostas não é a mesma em que apareceram cronologicamente no decorrer da história, e sim aquela que – acredito eu – torna mais fácil o entendimento por um estudante iniciante.
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Método sociológico A abordagem sociológica prioriza o fato de que a obra de arte é produzida no interior de uma sociedade e de uma situação histórica específica. O artista, ao produzir suas obras, está realizando um trabalho socialmente integrado, como qualquer outro. O sociólogo da arte, não desconhece as qualidades estéticas, os conteúdos temáticos, e os significados, por vezes filosóficos, das obras de arte. Mas ele as considera prioritariamente como artefatos produzidos por trabalhadores que são remunerados para tanto e que atendem a uma certa demanda social. O seu trabalho consiste, basicamente, em identificar e descrever as características desta relação social entre o trabalho do artista e o seu tempo e verificar de que maneira esta relação social é determinante nas características propriamente estéticas de suas obras. De alguma maneira, que difere de época para época e de local para local, a obra de arte é demandada pela sociedade da qual ela faz parte. A posição social do artista dentro do sistema produtivo é também uma posição de classe; a classe artística, isto é, os artistas, de acordo com o sistema social de cada época e local, relaciona-se de modos diferentes com o comitente, o público, o patronato e as instituições que o subvencionam e que avaliam o resultado de seu trabalho. As características da demanda social, o tipo de relação existente entre artista e comitente, as formas de remuneração e o nível de prestígio concedido ao artista acabam por intervir nas características da linguagem, nas convenções de estilo e no valor estético de mercado das obras. O tipo de ideias e opiniões sobre arte que circula em uma dada sociedade também influencia a prática produtiva, as características estéticas das obras e os critérios de avaliação crítica. A abordagem sociológica contrapõe-se a um pressuposto muito corrente, segundo o qual a arte está sempre muito à frente do pensamento sistemático de seu tempo, com os críticos acompanhando os artistas a distância, procurando descrever e explicar, o melhor que podem, as manifestações de sua criação inconsciente. No prefácio de Norma e forma, Gombrich afirma que: Não há intenção alguma de minimizar a criatividade do artista, muito menos de negá-la: o livro tenta mostrar que essa criatividade só pode desabrochar sob Teoria da linguagem visual
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determinado clima, e que esse clima exerce tanta influência sobre as obras de arte resultantes quanto o clima geográfico sobre a forma e o tipo de vegetação. O leitor perceberá que essa metáfora desencoraja a idéia de um determinismo rígido. O melhor clima do mundo será incapaz de produzir uma árvore, se não houver uma semente ou um broto saudáveis. Além do mais, um clima bom para as árvores, das quais gostamos, também pode favorecer a disseminação de ervas daninhas ou pragas que abominamos. Portanto, qualquer que seja o número de mapas do tempo, não serão suficientes para que possamos predizer a flora de uma região, e menos ainda a forma individual das plantas. E contudo – deixando a metáfora de lado – parece legítimo estudar os padrões críticos explícitos, aceitos no âmbito de uma determinada tradição tanto pelos artistas quanto pelos patronos, e perguntar qual a influência dessas normas sobre as formas produzidas por mestres de talentos variados26. Entre os fatores considerados pelos historiadores-sociólogos como determinantes da obra de arte estão os mecanismos de encomenda, de avaliação e de remuneração, quer dizer, por que interesses, de que maneiras, com que fins, os expoentes do poder religioso, político e econômico encomendam ou adquirem obras de arte27. O historiadorsociólogo ocupa-se dos movimentos e mecanismos do mercado de obras de arte, dos mecanismos de patronato e também do colecionismo. Interessa-se pelo trabalho artístico e a sua relação com o mundo da produção e do trabalho, bem como a sua organização e valoração no quadro das atividades sociais. A este pesquisador interessa também o estatuto social do artista, quer dizer, o lugar que ele ocupa na sociedade e que tipo de reconhecimento, consideração ou prestígio social ele recebe dos homens de seu tempo. Em certas épocas, os artistas eram associados aos trabalhadores manuais e não contavam com nenhuma consideração social. Em outras, foram reconhecidos como artesãos qualificados, 26. GOMBRICH, Ernest. Norma e forma: estudos sobre a arte da renascença. Trad. Jefferson L Vieira. São Paulo: Martins Fontes, 1990, p. IX-X. 27. G. C. Argan & FAGIOLO, Maurizio. Guia da história da arte. Trad. M. F. G. de Azevedo. Lisboa: Estampa, 1992, p. 36.
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ora reconhecidos como profissionais liberais, ora reconhecidos como verdadeiros intelectuais nivelados com os literatos e cientistas28. Não é correto dizer que os estudos da arte de orientação sociológica consideram a obra de arte apenas como documento e desconsidera os seus conteúdos, temas, linguagem e qualidade estética. Não há contradição entre considerar um quadro como obra de arte e simultaneamente como documento de seu tempo. Não é tampouco correto acreditar num determinismo segundo o qual o meio histórico e social determinaria e explicaria por si só as formas de arte que surgiram dentro dele. O método sociológico tem a sua origem no pensamento positivista do século passado; e a primeira história social da arte, a de H. Taine, mais do que uma história da arte é uma história da sociedade vista no espelho da arte. A historiografia marxista orientou a pesquisa para os motivos profundos: mais do que nos conteúdos ou os temas, a relação entre arte e sociedade é procurada (Hauser, Antal) na própria estrutura da forma, na organização dos sistemas de representação. Antal, por exemplo, confrontou a Adoração dos magos, de Gentile da Fabriano, com a de Masaccio: o tema (o tributo dos poderosos da terra ao Deus nascido na pobreza) tinha um significado particular numa sociedade mercantil como a florentina do princípio do século XV; todavia, as duas obras são profundamente diferentes. De fato, Gentile, expoente da arte refinada e elegantíssima preferida pelas cortes feudais, desenvolveu o tema no sentido cavalheiresco: Masaccio, expoente da nova cultura burguesa, exprimiu nele a seriedade, a densidade do pensamento, a consciência histórica, a essencialidade despojada de qualquer ornamento. A análise e o confronto podem ser aprofundados, até explicarem a diferente estrutura formal das duas obras e o estilo diverso dos dois artistas. A qualidade é igualmente alta; mas se a obra pictórica de Gentile se enquadra numa realidade histórica em declínio, a de Masaccio insere-se numa realidade histórica nascente e tem uma carga ideológica muito mais forte. 28. G.C.Argan & FAGIOLO, Maurizio. Guia da história da arte. Trad. M. F. G. de Azevedo. Lisboa: Estampa, 1992, p. 36 Teoria da linguagem visual
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Figura 23 Adoração dos magos Masaccio Têmpera sobre madeira 21 x 61 cm 1426
Figura 24 Adoração dos magos
Gentile da Fabriano Têmpera sobre madeira 203 x 282 cm 1423
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A primeira é certamente mais atraente, a segunda mais importante. Eis um caso em que a análise de um ponto de vista sociológico levou a uma interpretação esclarecedora e, o que é mais importante, exaustiva29. Para o método sociológico, a prioridade é a relação entre a atividade artística e o mundo da produção e do trabalho; a sua organização no quadro de atividades sociais e a fruição artística nos diversos níveis sociais.
Método formalista O método formalista surgiu no final do século XIX, em Viena, com a linha de pensamento que ficou conhecida como “teoria da pura visibilidade” e teve Konrad Fiedler como principal teórico fundador. No que se refere à aplicação dessa teoria nos estudos de história da arte30, Heinrich Wölfflin foi o estudioso mais influente. O seu Conceitos fundamentais de história da arte gerou muitas discussões desde que foi lançado em Basel, em 1915, e é lido até hoje, sob o rumor das inúmeras adesões e críticas que recebeu ao longo de todos esses anos. Os formalistas da escola de Viena, além de Fiedler e Wölfflin, incluem Alois Riegl, Max Dvorák, Franz Wickhoff , Julius von Sclosser e o escultor Adolf von Hildebrand. No final do século XIX, muitos estetas e historiadores da arte são levados a procurar o sentido da obra de arte não mais em documentos, escritos antigos e outras fontes exteriores a ela própria, mas em seu próprio interior, em questões de forma e estilo. Para eles, as formas eram dotadas de uma força de expansão própria; eram capazes de passar por um processo de transformação e evolução através dos tempos, semelhante à da própria vida biológica, e orientada no sentido de uma utilização cada vez melhor de suas propriedades intrínsecas31.
29. G.C.Argan & FAGIOLO, Maurizio. Guia da história da arte. Trad. M. F. G. de Azevedo. Lisboa: Estampa, 1992, p. 37. 30. WÖLFFLIN. Heinrich. Conceitos fundamentais de história da arte. Trad. João Azenha Jr. 2a. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1989. 31. BAZIN, Germain. História da história da arte. Trad. Antonio de P. Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1989, p. 127. Teoria da linguagem visual
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A teoria da visibilidade pura foi uma reação a duas tendências nos estudos de história da arte, que eram dominantes na Alemanha desde o século XVIII. A primeira delas era um pragmatismo excessivo por parte de alguns historiadores da arte, que consideravam que um estudo adequado das artes deveria prioritariamente encontrar e organizar dados precisos a respeito das obras, com base no exame sistemático e rigoroso de documentos estritamente confiáveis. Eles se ocupavam de escrever a biografia dos artistas e inventariar as obras, estabelecendo a data de produção, a origem, a atribuição de autoria e situá-las na evolução dos estilos. Para tanto, valiam-se do exame sistemático de escritos de eruditos, dos próprios artistas e de cronistas do passado. Examinavam também documentos jurídicos e contábeis, como registros de acervo, inventários, contratos de compra e venda de obras e de contratação de artistas por instituições religiosas ou civis para a realização de obras de arte etc. Tais pensadores inclinavam-se a pensar que os fatos culturais – que evidentemente incluem os fatos artísticos – devem ser examinados e estudados com os mesmos métodos com que se estudam os fatos naturais. Entre os pensadores que se ligavam a essa tendência, destaca-se Wilhelm Von Bode, que considerava a história da arte um trabalho de erudição, que consistia em situar as obras em seu lugar histórico e atribuirlhes um autor, sem a necessidade do acréscimo de comentários. Para ele, os chamados comentários não passavam de retórica vazia e especulação pseudo-filosófica, vícios que ele atribuía a certos professores que ensinavam história da arte em sua época32. Os teóricos da visibilidade pura acreditavam que havia, por parte daqueles historiadores, um apreço excessivo pelo documento e pelos aspectos estritamente factuais ligados às obras de arte. Por ser possível identificá-los e descrevê-los com precisão, o seu trabalho era visto como tendo um caráter mais científico que propriamente historiográfico. Pensadores como Fiedler e Wölfflin acreditavam que coisas como origem, datação e autoria, apesar de serem dados de suma importância, são indícios exteriores às próprias obras. Para eles, era necessário considerar que a obra de arte é também, e prioritariamente, um fenômeno sensorial que se apresenta para o olhar e a consciência de um observador e que, portanto, é necessário proceder a uma verdadeira leitura visual das obras. Nessa leitura, mais importante 32. BAZIN, Germain. História da história da arte. Trad. Antonio de P. Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1989, p. 127.
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que os conteúdos figurativos, narrativos, temáticos e simbólicos são os aspectos relacionados à sua aparência imediata, que envolvem os modos como são organizadas as cores, formas, volumes, a relação figura-fundo etc. A segunda dessas tendências, oposta à primeira, era o idealismo estremado de estetas, que se ocupavam de especulações metafísicas, excessivamente abstratas e que acabavam por constituir uma barreira entre a realidade concreta das obras de arte e a perspectiva de estudá-las com objetividade33. Esta orientação vinha sobretudo das universidades alemãs, onde, no século XIX, havia uma preeminência maior do esteta que do historiador da arte. Mas a própria linha historicista-científica, referida acima, bastante influente em Viena, se posicionava contrariamente a ela. Para ela, o estudioso da arte deveria trabalhar a partir de fatos e indícios concretos e com o apoio da pesquisa e da crítica das fontes. O método formalista parte do princípio de que as formas que constituem uma obra de arte possuem e transmitem conteúdos significativos próprios, que não são os mesmos transmitidos pelas figuras eventualmente representadas, nem pelos temas que ilustram. Considera também que, mais que uma sucessão de figuras e temas, a arte manipula uma linguagem de formas e cores. Para esses teóricos, uma pintura pode comunicar um certo conteúdo que depende somente da organização de suas formas, seja ela uma cena religiosa, uma paisagem, um retrato ou uma natureza morta. O teórico formalista, ao analisar uma obra, procurava observá-la prioritariamente como uma aparência sensível, constituída de pontos, linhas, planos, formatos, volumes, cores, texturas e da combinação destes elementos em composições rítmicas, harmônicas ou contrastantes, simétricas ou assimétricas. Analisar uma obra de arte desta maneira exige do observador perceber e descrever as formas sem confundi-las com as figuras e temas e sem a intervenção de juízos de valor e de seus gostos e inclinações pessoais. Ilustremos com um exemplo de Argan: Tomemos um quadro de Rafael que representa Nossa Senhora com o Menino numa paisagem. Conhecemos inúmeros quadros com o mesmo tema; em muitos deles o pintor terá procurado manifestar os mesmos sentimen33. BAZIN, Germain. História da história da arte. Trad. Antonio de P. Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1989, p. 128. Teoria da linguagem visual
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tos, aliás bastante convencionais, por exemplo, a terna solicitude da mãe, a despreocupação da criança que brinca, a suavidade das linhas e das cores da paisagem. O que há então de especial no quadro de Rafael? Pondo de parte o assunto e os conteúdos afetivos, o estudioso verificará, por exemplo, que as figuras estão dispostas de maneira a formarem quase uma pirâmide e que se contrapõem como um volume sólido no vazio atmosférico do fundo; observará que as linhas dos contornos se curvam de maneira diversa e assim se harmonizam com as curvas delicadas da paisagem; notará por fim que os volumes são geralmente arredondados e que o efeito de relevo é obtido mediante a gradação uniforme do claroescuro. Estas características formais não se encontram somente naquele quadro, nem em todas as Madonnas de Rafael, mas também noutras obras do mesmo período, qualquer que seja o assunto, e aparecem já desenvolvidas em obras cronologicamente mais tardias. Existem, pois, modelos formais próprios de Rafael que não servem para comunicar os vários temas, mas algo de mais geral e profundo, uma concepção do mundo e do espaço; e aquilo que se desenvolve no curso da arte do mestre é justamente aquele sistema de representação global da realidade. As formas tem, em resumo, um conteúdo significativo próprio, que não é o dos temas históricos e religiosos que de vez em quando comunicam34. Mas é em Wölfflin, dentre os formalistas, que se pode encontrar a sistematização mais eficaz dos estudos da forma. Para ele, todo estilo resulta dos modos como os elementos formais estão sistematicamente organizados. Para “ler” nas obras esta organização, ele criou cinco categorias35, constituídas cada uma de um par de conceitos opostos entre si. São elas linear/pictórico, superfície/profundidade, forma fechada/ forma aberta, multiplicidade/unidade e clareza/obscuridade. 34. G. C. ARGAN. “Preânbulo ao estudo da história da arte”. In: ARGAN, Giulio Carlo; FAGIOLO, Maurizio. Guia da história da arte. Trad. M. F. G. de Azevedo. Lisboa: Estampa, 1992, p. 34. 35. A palavra categoria é usada aqui na acepção de A. J. Greimas, herdada do pensamento estrutural de F. Saussure, segundo a qual uma categoria indica uma relação entre dois termos polarizados. Pode-se falar, por exemplo, da categoria do gênero, articulando os termos masculino/feminino ou, no campo da visualidade, da categoria da iluminação, articulando os termos claro/escuro.
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Figura 25 A virgem do prado – Rafael Óleo sobre tela 113 x 88 cm 1505
Figura 26 Pietà
Annibale Carracci Retabulo 156 x 149 cm 1599
A obra de Wölfflin é uma espécie de gramática das formas sem referência à história, mas está tão longe da estética quanto do historicismo. Ele não fazia nenhum julgamento de valor em suas afirmações a respeito das formas, e considerava que o exame das configurações formais das obras levaria a um conhecimento autônomo e específico, que deveria ser distinguido daquele que os dados historiográficos colhidos de documentos apresentam. Nos anos 20 e 30 do século XX, Henri Focillon deu continuidade à teoria da visibilidade pura com o seu A vida das formas361, outra obra de orientação formalista que se tornou influente. Nela, Focillon define a forma artística em oposição às definições de imagem e signo. Na obra de arte, estes aludem à representação de um objeto, com base em princípios convencionais e relativamente estáveis do local e da época em questão. A forma, por sua vez, não alude a ou36. FOCILLON, Henri. A vida das formas. Lisboa: Edições 70, 2001. 136p. Teoria da linguagem visual
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tra coisa que não seja a si mesma, podendo, em cada caso, reforçar, modificar ou esvaziar o significado da imagem e do signo. Nesta mesma obra, o autor reconhece nas formas uma autonomia que faz delas independentes de outros elementos da história e da cultura do grupo social que as produziu, como se fossem dotadas de vida própria. Por isso, as formas estão sujeitas a metamorfoses sucessivas, alternando momentos de estabilidade e de instabilidade. O estilo, para ele, resulta da tentativa de descrever o estado recorrente das formas da arte de um determinado artista, época ou local e explicá-lo com base numa lógica interna37. Outro autor importante, Alois Rigl, em Problemas de estilo, faz um estudo aprofundado da estilística da ornamentação em épocas remotas. O autor acompanha a gênese de certos motivos ornamentais desde “o velho oriente, onde aparecem através da arte grega, depois, romana, até as formas bizantinas e árabes”. Ele demonstra com isso que o arabesco islâmico decorre do ornamento floral da antiguidade. Nesta gênese, que refaz o percurso de migração e transformação de certos motivos ornamentais, ao longo de cinco mil anos, perpassando diferentes civilizações, ele julga encontrar a prova de que as formas obedecem menos ao desejo de imitar a natureza que a leis que lhe são internas e próprias38. Os perigos da teoria da visibilidade pura são evidentes: corre-se o risco de enxergar o processo histórico de transformação das formas artísticas como algo que depende somente de sua dinâmica interna, fazendo-se abstração das determinações sociais que incidem sobre o destino das formas. É importante lembrar que os interesses pela forma não significava que aqueles pensadores fossem desprovidos de qualquer sensibilidade ou preocupação histórica. Haviam entre eles os que ponderavam que, no estudo das obras de arte, faz-se necessário examinar tanto os dados interiores das obras, como as formas e os temas, como também a pesquisa dos dados exteriores, como a origem, a atribuição e a datação, que podem ser obtidos por meio da pesquisa de documentos e literatura. Pode parecer que os formalistas tinham um apego excessivo às aparências imediatas, negligenciando determinações sociais e his37. CALABRESE, Omar. A linguagem da arte. Trad. Tânia Pellegrini. Rio de Janeiro: Globo, 1987, p. 24-5. 38. BAZIN, Germain. História da história da arte. Trad. Antonio de P. Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1989, p. 131.
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tóricas. No entanto, é importante reconhecer a contribuição trazida por estes pensadores, que consiste em reconhecer a importância de olhar verdadeiramente para as obras. E, de fato, ver efetivamente as obras é mais difícil do que pode parecer: quando vemos um objeto qualquer, logo se desencadeia um mecanismo que consiste em acionar os vestígios que as percepções anteriores deste mesmo objeto deixaram na memória. É necessário um certo esforço para desembaraçarmo-nos desta ideia e concentrar a nossa atenção no momento presente. Por esta razão é importante desenhar quando se é um historiador da arte, ainda que o seu desenho careça de qualidades artísticas. Quando desenhamos algo que vemos, percebemos com mais acuidade os dados ópticos que se oferecem à nossa percepção e as formas que anteriormente pareciam aleatórias ou desordenadas, ou cuja estrutura não nos era percebida, se nos revelam como regidas por uma morfologia coerente e necessária.
O método iconológico O método iconológico foi primeiramente proposto por Aby Warburg e posteriormente desenvolvido principalmente por Erwin Panofsky para as artes figurativas e por Rudolf Wittkower para a arquitetura. Para dar apoio aos seus estudos, que se revelariam uma nova maneira de entender a história da arte, Warburg organizou, em sua própria casa em Hamburgo, uma biblioteca especializada em material iconográfico do renascimento. Fritz Saxl, seu continuador, transformou a biblioteca no Instituto Warburg, onde diversos pensadores se reuniam para realizar trabalhos de pesquisa coletiva conduzido pelo fundador. A biblioteca manteve atividades didáticas, debates, exposições e chegou a publicar um total de 33 volumes entre 1922 e 1933. O Instituto Warburg não funcionava em um regime de mestres e alunos e sim como um centro cultural para a comunidade de estudiosos, tendo Warburg e Saxl atuando como conferencistas e animadores e não como eminentes autores de livros de sucesso. Com a ascensão do nazismo, Saxl conseguiu transportar a biblioteca para Londres onde, após uma série de dificuldades, o Instituto recomeçou a funcionar. Mais tarde foi anexado à Universidade de Londres. Para falar das propostas de pensadores como Warburg, Saxl e Panofsky, é preciso antes pontuar a diferença que há entre iconologia e Teoria da linguagem visual
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iconografia. Interessado em ir além do estudo das formas, Panofsky define a iconografia como sendo o ramo da história da arte que trata do tema das obras em contraposição à forma39. Grosso modo, ícone significa “imagem” e o sufixo “grafia” advém do verbo graphein, que significa “escrever”. Isso posto, a iconografia pode ser entendida como o estudo que precede à identificação, descrição e classificação das imagens. Ela nos ajuda a reconhecer os temas típicos das diferentes épocas e locais e os modos como são tratados. Ela nos informa, por exemplo, em que tipo de representação – e em quais épocas e locais – o Cristo aparece usando um perisone ou uma veste comprida, que São João Batista, no alto renascimento italiano, era representado com uma veste de pele de ovelha, carregando uma cruz de haste longa e apontando com o dedo para o alto, quais elementos aparecem na representação de Maria nas diferentes circunstâncias etc. A iconografia descreve os elementos visíveis constitutivos das imagens, o que permite reconhecer os temas, as personagens e as narrativas. Ao fazer isso, a iconografia oferece o apoio indispensável para o estabelecimento de origens, datas, autenticidade e fornece as bases necessárias para qualquer estudo interpretativo posterior. Mas ela não se dedica ao estudo interpretativo propriamente. Este será levado a cabo pela iconologia. Assim como o sufixo grafia se refere à descrição, o sufixo logia, relativo ao logos, que quer dizer “razão”, está associado à interpretação. Nesse sentido, conforme Panofsky, a iconologia é como “[...] uma iconografia que se torna interpretativa e, desse modo, converte-se em parte integral do estudo da arte, em vez de ficar limitada ao papel de exame estatístico preliminar”40. Enquanto a crítica formalista se interessa pelas configurações formais e pelas soluções de estilo, a iconologia se interessa particularmente pelas figuras e temas que aparecem nas obras. Enquanto a primeira propunha uma história da arte como história das formas, a segunda a propunha como uma história das imagens. De fato, os conteúdos representativos que aparecem em uma obra, sejam eles ligados à Maria ou ao Arcanjo Gabriel, a um duque veneziano ou a uma paisagem, são sempre componentes importantes e que não podem ser desconsiderados em uma análise exaustiva. 39. E. PANOFSKY. O significado nas artes visuais. 3. ed. Trad. Maria C. Kneese e J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 1991, p. 47; e G. C. ARGAN & M. FAGIOLO. Guia da história da arte. Trad. M. F. G. de Azevedo. Lisboa: Estampa, 1992, p. 96. 40. E. PANOFSKY. O significado nas artes visuais. Trad. Kneese e J. Guinsburg. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 1991, p. 54.
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Panofsky dirá também, manifestando o interesse em ir além dos estudos formalistas, que a configuração das linhas e cores, da luz e sombra, dos planos e volumes e do arranjo da composição em geral, que constituem a forma de uma obra, deve ser entendido também, em seu conjunto, como portador de um significado que ultrapassa o plano puramente formal41. É preciso dizer que o interesse pelos estudos iconológicos teve precedentes em finais do século XIX, antes que os estudiosos de Warburg efetivamente fundassem a iconologia. Alguns pensadores franceses se interessaram pelo reconhecimento dos temas que se faziam presentes na vasta produção imagética do mundo cristão. Catedrais góticas como as de Chartres, Reims e Burgos continham centenas de milhares de imagens plasmadas em esculturas, pinturas, vidrarias e livros ilustrados, cujos conteúdos figurativos e narrativos, com a passagem dos séculos, não podiam mais ser claramente reconhecidos e compreendidos. Nas tentativas esporádicas de decifrá-los, não raro, os eruditos do século XVIII viam num sarcófago um templo de Ísis, ao invés da casa de Lázaro; ou interpretavam uma cena da vida de um santo como sendo um cortejo de Baco. Mesmo o reconhecimento dos temas cristãos na arte que se fez após o renascimento não era fácil, devido às muitas mudanças dos temas, de seus tratamentos e dos modos de devoção pública e privada no decorrer dos tempos. A arte de temática cristã dos séculos XVII e XVIII já não era mais compreendida pelos homens do século seguinte, que viam nela apenas exagero, gesticulação afetada e retórica vazia42. Nesse sentido, estudiosos como Émile Male e André Grabar se dedicaram ao trabalho de decifrar os emaranhados de imagens da vasta iconografia cristã medieval dispersa por antigas basílicas e catedrais, cujo sentido, em grande parte, havia se perdido. Os estudos de Male elucidaram e ordenaram o universo das imagens das catedrais do século XIII, bem como mostraram que os temas cristãos tratados na arte barroca francesa, na época tão desacreditada, contavam com 41. G. C. ARGAN; M. FAGIOLO, Guia de história da arte. Trad. M. F. G. de Azevedo. Lisboa: Estampa, 1992, p. 96. 42. Se pensamos, por fim, nos tempos atuais, verificamos que, devido à mundanização dos hábitos sociais, de um certo declínio do cristianismo e do fim dos estudos humanísticos, as pessoas pouco compreendem os motivos e temas de pinturas e esculturas de tempos passados, sejam estes de origem cristã, mitológica, histórica, alegórica ou de gênero. Mesmo nas escolas de arte, percebe-se hoje a necessidade de incluir, nos estudos de história da arte, lições sobre os temas das obras e suas características, sobre os quais os alunos, em geral, trazem pouca informação. Teoria da linguagem visual
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um grau de elevação espiritual tão alto quanto o atingido na idade média. O que era percebido como exagero procedia de renovações e transformações que temas e motivos sofreram no decorrer dos anos, para se adaptar aos novos tempos e às novas mentalidades. Em sua última obra, dedicada às origens da iconografia cristã, André Grabar mostra que a arte cristã apareceu dois séculos depois de Cristo e retirou as suas imagens e suas formas da tradição da antiguidade e que foi necessário algum tempo antes que estas formas e imagens perdessem as características antigas e se constituíssem como uma iconografia propriamente cristã. Em seu texto “Iconografia e iconologia: uma introdução ao estudo da arte da renascença”43, Panofsky explica o que é o “tema” na arte do ponto de vista da iconologia, distinguindo os três níveis em que ele deve ser apreendido na pintura e na escultura44. Em primeiro lugar, há o tema primário ou natural: neste nível, os temas aparecem como certas configurações que representam elementos reconhecíveis como seres humanos, animais, plantas, objetos, bem como as interrelações entre eles, que permitem reconhecer fatos, acontecimentos, situações. Por exemplo, podemos ver em um quadro três mulheres que dançam entre si, ou em uma escultura um jovem franzino de pé, com um dos pés apoiado sobre a cabeça decepada de um homem de porte muito maior. Tais figuras, independentemente de quem são, a quais narrativas pertencem ou a quais conotações simbólicas, valores morais ou sociais estejam associadas, compreendem, no caso destas obras, os seus temas primários ou naturais. Neste nível, pode-se reconhecer também algumas qualidades expressivas das personagens ou da atmosfera geral reinante. É possível dizer, por exemplo, que as três moças que dançam são plenas de movimento e exalam alegria e sensualidade, como também se pode dar o caso de dançarem com um aspecto mais austero e ritualístico. O jovem que se apresenta de pé na escultura citada, apesar de sua aparente fragilidade física, pode ostentar um ar de plena autoconfiança, ainda que discreta, no limite entre a serenidade e a arrogância. De todo modo, neste nível de reconhecimento, os temas ainda são de natureza elementar, apreendidos pela simples identificação de certas formas que podem ser associadas com coisas ou objetos já 43. E. PANOFSKY, O significado nas artes visuais. Trad. Maria C. Kneese e J. Guinsburg. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 1991, p. 47–87. 44. E. PANOFSKY, O significado nas artes visuais. Trad. Maria C. Kneese e J. Guinsburg. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 1991, p. 50-53.
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conhecidos. Uma enumeração do conjunto destes motivos presentes em uma determinada obra de arte consistiria numa descrição préiconográfica desta mesma obra. O tema secundário ou convencional compreende o reconhecimento do conteúdo denotativo das imagens apreendidas no nível anterior. É quando nos damos conta de que as figuras humanas que aparecem nas obras citadas não são pessoas quaisquer e sim personalidades específicas, lendárias ou que efetivamente existiram, que pertencem a narrativas já conhecidas, de ordem religiosa, mitológica, alegórica ou histórica e que tais narrativas contêm significados que precisam ser levados em conta na interpretação das obras. No caso dos exemplos citados, as três mulheres que dançam são as três graças e o jovem confiante que se põe em pé é David, retratado pelo escultor logo após o combate com o gigante Golias. O tema, em seu terceiro nível, corresponde ao significado intrínseco ou conteúdo. Corresponde ao reconhecimento dos significados mais profundos que um tema convencional pode possuir numa pintura ou escultura específica. A ideia de um significado intrínseco, que se oculta sob a aparência de um tema convencional, parte da percepção de que o sentido de uma obra de arte nunca se esgota no reconhecimento desses temas convencionais. Sabemos que a imagem de um rapaz jovem e franzino, que leva uma funda em uma das mãos ou se encontra apoiado sobre a cabeça decepada de um guerreiro gigante corresponde ao David. Mas até aí, estamos somente reconhecendo o assunto de que trata a obra, mas não o seu significado profundo. É possível dizer que o David de Donatello (fig. 27) buscasse representar a própria República de Florença, como dotada de qualidades de sabedoria racional e serena autoconfiança, diante de seus inimigos políticos, comerciais e militares, aqui tratados como bárbaros grotescos e destituídos das novas qualidades humanísticas. Sob este ponto de vista, a obra de arte é concebida como um depositário de sintomas ou como espaço de manifestação simbólica de crenças, mentalidades, atitudes de espírito e tudo o mais que compõe a visão de mundo de povos, países, grupos sociais menores ou mesmo de indivíduos específicos, nos casos em que as obras expressam as escolhas subjetivas do artista. Trata-se, em outras palavras, de considerar que as obras de arte são documentos capazes de revelar aspectos relativos à mentalidade da civilização ou da sociedade nas quais foram produzidas. Cabe ao iconólogo decifrar estes sinais.
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Figura 27 David
Donatello Bronze Alt. 158 cm.
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Método estruturalista Existem várias correntes interpretativas que têm o estruturalismo como fundamento. Estas priorizam o objeto artístico no seu todo, considerando temas, técnicas, configuração formal, e características de estilo. De certo modo, estas correntes abarcam os interesses dos métodos iconológico e formalista, porém, duas distinções devem ser apontadas: a primeira delas é que o estruturalismo toma os seus objetos de estudo como totalidades relativamente autônomas e dotadas de um modo próprio de ser. No caso da obra de arte, o que importa é o conjunto de relações internas que se estabelecem entre as suas diferentes partes. Do ponto de vista estruturalista, esta relação é mais importante que as origens históricas, as intenções do artista ou do comitente. Isso não significa que o analista irá desconsiderar os dados históricos. Estes são importantes para uma compreensão da visão estrutural. A segunda distinção está no fato de que o analista estruturalista leva em conta a relação imediata de contato entre o observador e o objeto artístico. É no contato com a obra, na experiência de com ela interagir, na fruição, como se diz, que se dá a emergência do significado. Por esse motivo, o sentido da obra se constrói não só pelo arranjo interno de seus componentes figurativos e plásticos e pelas suas temáticas, mas também pelos modos como se dá entre ela, na condição de objeto concreto, e o sujeito, no ato de fruição, um encontro interativo no qual ambas as partes assumem um papel ativo. Isso implica que o sentido da obra se constrói e se apreende na experiência de contato com ela. Implica também que o sentido da obra não está desde sempre e anteriormente construído no interior dela e que sua apreensão dependa simplesmente de tentar enxergá-lo por detrás da sua aparência imediata. E, por último, implica ainda que a cada encontro entre nós e as coisas, é possível construir – a partir das características nelas observáveis e dos modos como estas convocam em nós uma certa atitude sensível e cognitiva – uma rede de traços pertinentes cujas relações “façam sentido”, seja este sentido o das coisas mesmas ou do próprio encontro com elas, entendido como evento significativo. De modo semelhante ao fruidor casual de que se fala, o analista que adota o método estruturalista precisará aproximar-se da obra de arte não como o faz em geral, ou estritamente, um cientista, mas como o faz aquele mesmo fruidor, um sujeito que, antes de inter84
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rogar-se diretamente pela dimensão cognitiva do referido objeto, disponibiliza-se para senti-lo. Entretanto, se o analista não é propriamente um “cientista”, não tem também o estatuto de um fruidor casual. Se o seu fazer, em todo caso, aproxima-se, ao menos em parte, do fazer de ambos, é porque, em comum com o procedimento científico, a sua aproximação do objeto pauta-se por um rigor que muito difere do despojamento de uma fruição eventual e, por outro lado, em comum com o fruidor, ele não está, de modo algum, desconhecendo a dimensão estética do objeto em questão e, sobretudo, não a trata, esta também, como um “objeto do saber”. Ao invés disso, disponibiliza-se para entreter com ele uma interação do tipo que se tem com os “objetos do sentir”.
Exemplo de estudo a partir da metodologia estruturalista: A construção da continuidade: análise de uma série de pinturas de Nuno Ramos Em 1988, o artista plástico paulista Nuno Ramos realizou uma série de pinturas entre si muito semelhantes, feitas com os mesmos materiais e os mesmos procedimentos. Como não possuem títulos e nem são numeradas, não se pode ordená-las numa sequência. Sabese apenas, pela sua aparência, que elas são, por assim dizer, seres de uma mesma espécie. Todos os quadros medem 220 x 250 cm, sendo que essas dimensões se alternam entre as posições horizontal e vertical. As distinções entre uma e outra se reduzem a pequenas variações na distribuição de cores, texturas e relevos pelas suas superfícies. A individuação de cada uma delas fica a cargo de variantes discretas que apresentam na sua manifestação visível. Segundo Oliveira, o olhar, diante de uma pintura, ao movimentarse continuamente entre a apreensão do todo e das partes, identifica traços distintivos de semelhanças e diferenças que, tornando visível o arranjo configurativo do conjunto, permitem-lhe elaborar o que vê45. É trabalhando desta maneira que Floch, ao proceder à análise da Composição IV de Kandinsky, observa que as duas linhas negras paralelas, que cortam o quadro verticalmente ao meio, funcionam 45. OLIVEIRA, Ana Claudia. “As semioses pictóricas”. Face: revista de semiótica e comunicação, São Paulo, v. 4, n. 2, p. 105. Teoria da linguagem visual
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como um primeiro e básico elemento segmentador. A partir da percepção do caráter operatório desta divisão, o pesquisador pontua passo a passo uma detalhada segmentação do quadro que, atendose à presença de traços diferenciadores, explicita efeitos de simetria, binaridade e outras combinações rítmicas, que permitem ao observador perceber o quadro como uma totalidade constitutiva de partes46. Nessas obras, o que se percebe de imediato é uma crosta espessa e rugosa que recobre por inteiro os suportes de madeira. Como uma epiderme plena de erupções ou um solo acidentado cheio de protuberâncias, esta crosta projeta-se para a frente fazendo notar o corpo tridimensional dos quadros. O ar em torno é fortemente pregnado pelos cheiros exalados, uma presença olfativa que é sentida ainda a uma certa distância. A mistura de cheiros inclui aquele da linhaça, característico de telas a óleo ainda úmidas, e também outros, provavelmente dos demais materiais oleosos. Esse composto matérico, caótico e volumoso, conjunta inúmeras e variadas qualidades sensíveis aglutinadas de maneira amorfa e heterogênea. O olho depara-se com um relevo contínuo, onde saliências e depressões, de corporeidade maciça, granulosa e oleosa, estendemse por toda a área visível dos quadros. Qualquer montículo rugoso, tomado como exemplo, apresentará formato e granulometria irregulares. Seus limites estarão mesclados com outras protuberâncias e sua cor será resultante de uma mistura indistinta de cores diversas. Tanto essa fusão de massas quanto a mescla de cores prolongar-seão continuamente por todo o espaço das obras, sem deixar cores puras ou áreas delimitadas (figuras 28 e 29). A consistência de cada um dos inúmeros acidentes presentes no composto matérico é um impasse para o olho. Pode-se adivinhar sob eles a planura regular do suporte de madeira, oferecendo um leito comum e invariante a toda aquela carnatura. O seu modo de ser, espalhado sobre essa superfície plana, frequentemente com marcas de dedos impressas, revela uma matéria modelável com erupções de grãos, como corpos pastosos acometidos do mal da brotoeja. Sendo assim, a sua consistência deverá ser, no geral, mole, com variações que dependerão da intensidade da granulação e da presença ou não de umidade. De qualquer modo, o que pode parecer mole ao olho pode ser duro ao tato, e vice-versa. 46. FLOCH, Jean-Marie. Petites mythologies de l’oeil et de l’esprit: pour une sémiotique plastique. Paris/Amsterdã: Hadès/Benjamins, 1985, p. 39-77.
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Essa pasta granulosa, plena de saliências e depressões, é o componente dominante em todos os quadros desta fase. Disposta nesta continuidade irregular, sem contornos e sem uniformidade, ela é, por vezes, seca ou úmida, mais ou menos espessa. O tamanho dos grãos se estende desde a areia fina até a formação de pelotas irregulares. Em alguns poucos pontos ela apresenta a plasticidade plenamente modelável da argila, sem estar contaminada pela granulação. A granulometria é esparsa e inconstante, de modo que nas mesmas saliências, a aspereza discreta de microgrãos convive intimamente com granulações pequenas e médias e pelotas de tamanho maior. Nessa variabilidade da pasta, que inclui granulação, consistência e umidade, o colorido se sobressai mais facilmente ao olho. Incorporadas na massa pastosa, as cores justapõem-se e sobrepõem-se mutuamente, nunca em tons puros ou homogêneos. São cores muito variadas, em geral terrosas, plúmbeas ou muito escuras. É certo que o olho pode identificar tons amarelos, azuis escuros, negros, vermelhos, ocres e várias tonalidades de terra, mas sempre manchados ou matizados com outras cores. Essas manchas e matizes irregulares rebaixam o valor47 das cores mais claras e as aproximam do aspecto turvo geral. É possível perceber, em alguns pontos dispersos, uma concentração maior de uma determinada cor, mas sempre com limites difusos e manchados por outras cores. Alguns panos aparecem em pedaços de tamanho e formato variados, deitados paralelamente ao plano do suporte, sempre amarfanhados e untados com algum óleo ou cera. Não estando plenamente esticados, eles formam pequenas ondulações e dobras irregulares, recobrindo relevos de pasta, sendo recobertos por eles, ou as duas coisas simultaneamente. Sua disposição pelo espaço do quadro é tão irregular quanto a das cores e do próprio corpo pastoso. Os seus tamanhos e formatos raramente podem ser bem precisados, pois, com frequência, suas bordas estão imersas na pasta. 47. A escala de valores refere-se a maior ou menor luminosidade das cores. Pedrosa apresenta uma escala com índices de luminosidade medidos em percentuais. Ao preto é atribuído 0% de luminosidade enquanto ao branco é atribuído 100%. As cores com um maior índice de reflexão luminosa, como o amarelo, possuem valores percentuais mais elevados na escala. Conforme a terminologia da teoria das cores, diz-se que elas degradam quando misturadas com o branco e rebaixam quando misturadas ao preto. No caso em questão, quando as cores mais claras são misturadas com outras mais escuras, trata-se mais exatamente de modificações tonais e não de valores, dado que, na maioria dos casos, as misturas não se dão com o preto e sim com outras cores escuras. Apesar disso, a expressão “rebaixa o valor” justifica-se porque o que se quer destacar aqui é a perda de luminosidade das cores. Sobre tons e valores ver Israel PEDROSA, Da cor à cor inexistente. 3ª. ed. Rio de Janeiro/Brasília: Léo Christiano Editoria/UnB, 1982, p. 146-150. Teoria da linguagem visual
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A sua presença mesma é sutil, pois suas ondulações produzem pequenos relevos que os fazem semelhantes à pasta. A supressão dos seus contornos, recobertos pela pasta, faz com que eles se integrem com ela sem romper a continuidade. O olhar, ao deparar-se com esses quadros, não percebe áreas que se oponham umas às outras pela forma, cor, luz ou textura. Do mesmo modo, não se enxerga delineamentos organizados de modo a direcionar o olhar e a conduzir o seu percurso no interior do espaço de cada obra. Os dados sensíveis se apresentam numa unidade que é, ao mesmo tempo, contínua e entrecortada, na qual o olho não para nem desliza com fluência. Apesar da presença abundante de contrastes e de reiterações, ele não encontra apoio para cindir em partes o espaço total de cada uma daquelas pinturas. O estado de estreita adesão em que se encontram as qualidades sensíveis resiste aos esforços do observador para perceber áreas diferenciadas no todo dos quadros. Os pequenos volumes de pasta, com suas cores e granulações variadas, os amarrotados e dobras dos tecidos, as marcas impressas de dedos interpenetram-se de modo que não se pode separá-los nem considerá-los distintamente. Não há como, ao menos no nível de uma percepção visual mais imediata, apreender aquela continuidade de dados amalgamados como um todo constituído de partes. Além dos panos, anteriormente citados, e do mesmo modo que eles, outros materiais flexíveis e não modeláveis aparecem irregularmente dispostos pelo espaço dos quadros. São feltros, cordas e papéis de seda. O olho pode distinguí-los em meio ao ambiente pastoso com alguma evidência, graças aos seus volumes e a esta sua plasticidade diferenciada. As cordas não são tão visíveis quanto os panos, pois quase toda a sua extensão está muito mais densamente encoberta pela pasta. O olho, antes de identificá-las como cordas, percebe o seu volume longelínio e sinuoso, que contrasta sutilmente com o relevo do ambiente em torno. São volumes de comprimentos variados e disposição irregular pelos espaços dos quadros. Sua identificação, como material específico, dá-se graças a alguns pontos que se encontram descobertos pela matéria pastosa, deixando ver pequenas partes das cordas. Em outros pontos, esta matéria se faz fina, oferecendo uma transparência que permite identificar a textura trançada das fibras das cordas.
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Figura 28 Sem titulo Nuno Ramos Vaselina, parafina, cera, pigmentos, terebintina, feltro e panos sobre madeira 220 x 250 cm 1988
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Figura 28 Sem titulo Nuno Ramos Vaselina, parafina, cera, pigmentos, terebintina, feltro e panos sobre madeira 250 x 220 cm 1988
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Cada pedaço de feltro está enrolado sobre si mesmo, formando volumes aproximadamente cilíndricos. Sobre eles o componente pastoso se espalha e se mistura, do mesmo modo como ocorre com as cordas. Os vários canudos resultantes são mais volumosos que aqueles formados pelas cordas, porém, bem mais curtos. O olho, do mesmo modo como acontece com aquelas, antes de os perceber como tais, percebe os seus volumes um pouco alongados. Em alguns desses quadros, a presença de gavetas produz contrastes com o ambiente em torno. Esta distinção deve-se ao seu formato de paralelepípedo e a sua espessura mais acentuada que a média predominante. Do mesmo modo que os demais elementos das obras, elas aparecem em meio e recobertas por crostas matéricas que, entretanto, não impedem a percepção da sua presença maciça e dura e de sua configuração geométrica mais regular. Como se pode ver, cordas, panos, feltros, papéis de seda e gavetas têm em comum o fato de estarem envolvidos e semiencobertos pela pasta. Mesmo as suas partes que permanecem visíveis estão untadas e tingidas por ela. O olho, ao percorrer o espaço do quadro, percebe a pasta em conjunção com cada um desses elementos e ocupando maciçamente os intervalos entre eles. Ela é expansiva e onipresente, não deixando ver linhas divisórias entre eles e ela mesma. Sendo unitária e expansiva, ela atua no sentido de conjuntar a si mesma e os elementos diversificados num corpo único. Isto cria um efeito de unidade e continuidade. Estão em jogo um componente unitário (a pasta) e um plural (os elementos diversificados, coesos e não modeláveis) que correspondem respectivamente a um envolvente e um envolvido. Cada obra constitui-se como um corpo matérico que, num primeiro nível de percepção, imediata e ainda inarticulada, apresenta-se como uma totalidade indivisível, mas que deixa ver, logo a seguir, o seu caráter composto e dual. É a onipresença da pasta, apagando fronteiras no espaço das obras, que impede o olhar de operar recortes e quebrar aquela continuidade. Porém, pode-se assumir que o composto matérico é constituído basicamente destes dois componentes: o primeiro deles compreende os elementos coesos e plurais, que são as cordas, os panos, papéis de seda, feltros e a gaveta. O outro, de caráter singular, mas não uniforme, conjuntando em seu corpo incontáveis variações qualitativas, é aderente, expansivo e envolvente. Se o componente expansivo atua no sentido de criar efeitos de continuidade, ele não é, em si mesmo, uniforme na sua corporeiTeoria da linguagem visual
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dade. O seu corpo elástico sofre graduações de espessura, cor, granulação, brilho, oleosidade e consistência, sendo, por isso mesmo, um composto à parte. No seu todo, é uma matéria que se encontra em algum ponto entre os estados de plena solidez ou liquidez. Os elementos que o constituem se situam, por sua vez, cada um deles em diferentes pontos dentro desta escala de consistência. As combinações entre as diversas graduações citadas criam uma infinidade de qualidades sensíveis discretas, entrecruzadas e entrecortadas. Assim, se a pasta, na sua atuação macrocósmica, ao criar uma continuidade entre ela mesma e os elementos diversificados do componente coeso, tenciona o olho em direção à percepção de um sentido de unidade, a urdidura microscópica do seu corpo, densamente graduado, tenciona o olho a perceber um sentido de miríade ou diversidade. Da mesma forma como é difícil perceber, no plano de fundo turvo de um retrato de El Greco, quais são as diferentes cores presentes que, misturadas e sobrepostas, o originaram, dificilmente se percebe clara e distintamente cada um dos materiais envolvidos nestas pinturas de Nuno. Pelas informações das legendas que as acompanham, pode-se saber que são compostas de vaselina, parafina, cera, linhaça, terebintina, cordas, feltros, panos, papéis de seda e gavetas sobre madeira. Mas o olho que as contempla não percebe nitidamente cada um desses materiais e sim a resultante das transformações físicas e químicas por eles sofridas e as marcas da ação que os manipulou em conjunto. Em não reproduzindo a aparência de nenhum objeto do mundo visível, conceitual ou imaginário, o que se percebe desses materiais são os seus estados físicos e os seus modos de organização em conjunto. Implicitamente, há um processo de transformação dos materiais, do qual a legenda explicita apenas o ponto de partida e a obra o de chegada48. Os materiais, a princípio, familiares e de características e funções bem conhecidas e definidas, uma vez conjuntados, originaram um todo composto, amorfo, estranho aos olhos. As suas potencialidades de transformação, aquelas que foram de algum modo ativadas, fizeram com que, em cada obra, esses materiais se reunissem em um amálgama caracterizado, entre outras coisas, pela unidade e continuidade.
48. O problema dos estados e processos de transformação da matéria é tratado semioticamente em A. J. GREIMAS. “A sopa au pistou ou a construção de um objeto de valor”. Trad. de Edith L. Modesto. In: Significação: revista brasileira de semiótica, 11/12, 1996, p. 157-169.
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A transformação da matéria pela ação humana pode ser motivada, entre outras coisas, por um interesse em funcionalizar as coisas corpóreas. É matéria, indistintamente, tudo que possui existência física, a substância de que são formadas as coisas, independente da sua forma. É, portanto, o modo mais abstrato e genérico de referir-se às coisas corpóreas, recobrindo duas grandes classes que podemos chamar materiais e objetos. Essas duas classes correspondem a dois estatutos sociais das coisas corpóreas, em oposição à matéria considerada genericamente. Quando se fala em material, refere-se comumente a uma matéria específica, cujas características são já conhecidas em função de um valor utilitário. A matéria é convertida em material essencialmente por uma operação semiótica que reconhece ou investe nela características e potencialidades com vistas a fazer dela algo utilizável na fabricação de outras coisas. O objeto corresponderia, por assim dizer, à classe que compreende as coisas úteis porém “prontas”, cuja destinação será cumprir uma função que não seja a sua própria transformação física para dar origem a uma outra coisa. Um violino, por exemplo, que por esse raciocínio tenderá a pertencer à classe dos objetos, poderá estar na de materiais se a sua madeira estiver sendo usada para alimentar o fogo. Neste caso, o que promove a mudança de estatuto do violino é o desinvestimento de sua função habitual e a sua destinação a uma nova função. De qualquer modo, ao se considerar uma coisa como matéria, o investimento semântico estará numa certa imanência dessa coisa, advinda da sua condição de substância enquanto que no material e no objeto este investimento estará relacionado a uma determinada destinação de uso. Essa distinção entre matéria, material e objeto, sem arriscar admiti-la como tendo validade fora do âmbito desta análise, é apresentada e utilizada aqui somente como estratégia para discriminar e relacionar as diferentes espécies de componentes físicos que fazem parte da urdidura destas pinturas. Nesta acepção, cordas e gavetas pertencem à categoria dos objetos, enquanto pigmentos, linhaça, terebintina e parafina são materiais tanto quanto feltro, papéis de seda e vaselina, sendo que os primeiros são de uso tradicional em certas técnicas de pintura e os últimos possuem, em princípio, finalidades outras. Não há dúvidas quanto ao fato de que, uma vez utilizados nas obras, estão todos os componentes convertidos ao estatuto de maTeoria da linguagem visual
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teriais. É certo também que a ideia de “materiais artísticos” e “não-artísticos” relativizou-se consideravelmente no século XX com o advento das práticas de colagens e assemblages e de poéticas experimentais e conceituais. De qualquer modo, não se pode desconsiderar nestes casos a origem e as especificidades dos novos materiais, incluindo aqui os seus estatutos anteriores, sob pena de fazer perder justamente a novos significados que estas práticas trazem para dentro da arte49. No exame das transformações ocorridas a partir da manipulação conjunta dos diferentes componentes das obras, deve-se verificar precisamente quais são e como são os desinvestimentos e aquisições de funções por que passaram, suas consequentes mudanças de estatuto e as decorrências disto em termos da produção de significação. A presença refuncionalizada de alguns componentes que são de uso tradicional na pintura faz com que, nessas obras, haja, em algum nível, uma referência aos próprios modos da pintura, como prática tradicional, de ser e de produzir sentido. Em princípio, os componentes listados na legenda, tais como são antes da sua aplicação, podem ser divididos em compactos e discretos, um dos pares de categorias de estados da matéria propostos por Bastide50. A categoria discretos compreende os estados líquido, pulverizado e gasoso e opõe-se à categoria compacto, na qual os materiais apresentam-se num estado de coesão que não poderia ser desfeito sem algum esforço mecânico. Os componentes listados que se incluem na categoria dos discretos são o pigmento (pó), o óleo de linhaça e a terebintina (líquidos). Os compactos são as cordas, panos, feltros, papéis de seda e gavetas. Há ainda aqueles que se intercambiam entre o estado compacto e o discreto-líquido, que são a parafina e a vaselina. O pigmento, o óleo de linhaça e a terebintina são comumente utilizados nas práticas tradicionais de pintura a óleo. Quando utilizados dentro dos preceitos técnicos exaustivamente descritos nos manuais de pintura, garantem a obtenção de certos efeitos consagrados pelo uso e pelo reconhecimento histórico. Segundo Motta e 49. A compreensão da colagem como descrita nesta passagem aparece em Ana Cláudia de OLIVEIRA, “Convocações multissensoriais da arte no século XX”. In: PILLAR, Analice Dutra (Org.). A educação do olhar no ensino das artes. Porto Alegre: Mediação, 2001, p. 85-98. 50. Françoise BASTIDE. “Le traitement de la matière”. In: Actes sémiotiques, IX, Paris, CNRS, 1987. 27p.
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Salgado, o óleo de linhaça, quando diluído na terebintina, na proporção suficiente e necessária para torná-lo mais fluido, resulta num aglutinante satisfatório para que, junto ao pigmento, se consiga a chamada pintura veicular. Disso depende também a quantidade de pigmento utilizada na mistura, que deve ter a proporção justa51. Isto quer dizer, uma proporção que resulte numa tinta capaz de oferecer uma camada de cor uniforme e sem granulação, cujo poder de cobertura pode ser variável desde que não exceda em transparência. O pigmento em pó, se umectado e diluído no óleo de linhaça em acordo com esta prescrição, converter-se-á na pasta uniforme que dá à tinta a cor e o poder de cobertura. À chamada pintura veicular, opõe-se, de um lado, à pelicular, cuja tinta é produzida com muito aglutinante e pouco pigmento e é caracterizada pela transparência, e, de outro, a granular, pastosa, em que muito pigmento é adicionado a uma quantidade pequena de aglutinante52. A terebintina e o óleo de linhaça podem ser diferenciados quanto ao modo de secagem, poder de aglutinação, brilho e grau de fluidez. A terebintina é quase tão fluida quanto a água e um de seus usos frequentes na pintura, entre muitos outros, é na diluição do óleo de linhaça, bem mais viscoso, aumentando a sua fluidez e facilitando o seu uso. Ela evapora quase que imediatamente após a sua aplicação em uma superfície qualquer e não é capaz, por si só, de aglutinar os pigmentos. O seu uso na composição das tintas contribui para aumentar a sua fluidez e confere a elas uma iluminação fosca. O óleo de linhaça, um dos mais conhecidos óleos secativos utilizados na pintura de tradição europeia, não seca por evaporação e sim pela oxidação ou absorção do oxigênio do ar. A película da tinta feita com óleo de linhaça, quando seca, torna-se sólida, flexível e brilhante, e não pode voltar ao seu estado original. O óleo de linhaça tem um forte poder de aglutinação dos pigmentos e quanto 51. MOTTA, Edson & SALGADO, Maria L. Guimarães. Iniciação à pintura. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1976, p. 167. 52. Como é comum nos manuais de técnicas de pintura, as prescrições para a produção e utilização dos materiais visam à conservação e durabilidade das pinturas prontas. Tanto Motta e Salgado quanto Mayer reprovam e criticam os modos de utilização dos materiais que desconsideram esses aspectos bem como desconsideram a possibilidade de aquisição de valores estéticos outros que poderiam advir destas subversões. Convém lembrar que tanto a pintura pelicular quanto a granular compreendem modos de uso aprovados por esses autores, observados certos cuidados. Na pintura de El Greco, por exemplo, nota-se a presença farta da tinta granular enquanto os claro-escuros de Rembrandt eram frequentemente produzidos pela sobreposição de dezenas de camadas peliculares.
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maior for o percentual de terebintina utilizado para dilui-lo, menor será o brilho da tinta resultante53. A volaticidade ou a oxidação são predisposições diferentes desses materiais quanto as suas possibilidades de transformação. O poder de aglutinação ou de diluição, mesmo sendo também uma predisposição a um modo específico de transformação, está diretamente relacionado à sua funcionalização. Os seus diferentes cheiros e graus de fluidez estão relacionados ao modo como são percebidos. Nessas obras de Nuno, o óleo de linhaça foi utilizado para amalgamar os pigmentos formando pastas. Elas são granulosas devido ao excesso de pigmentos não totalmente diluídos. Quanto à terebintina, a sua função na transformação dos materiais se limita à diluição da mistura resultante, em graus variáveis. Isso se deduz pela variação da intensidade do brilho que pode ser percebida em alguns pontos da pasta. Ela se faz notar também pelo seu forte cheiro, que é exalado pelos quadros em combinação com os cheiros de óleos e ceras. O que muda, quanto aos modos de uso tradicional desses materiais, é que aqui tanto a aglutinação quanto a diluição acontecem de maneira absolutamente irregular, afastando-se da pintura veicular. Sendo assim, elas aproximam-se ou de uma liquidez excessiva ou de uma umidificação e aglutinação escassa, que mantém o pigmento num estado sólido e pouco modelável, quase friável. Os materiais que se alternam entre o estado discreto-líquido e o compacto são as ceras, isto é, a parafina e a vaselina. As ceras são costumeiramente armazenadas em estado sólido mas podem ser liquefeitas e solidificadas quantas vezes forem necessárias sem sofrerem transformações químicas. A utilização de ceras na pintura dá-se na encáustica, na qual são levadas ao ponto de fusão numa paleta de metal aquecida e misturadas aos pigmentos, formando pastas coloridas. O calor as mantém liqüefeitas para que possam ser aplicadas com pincéis na superfície a ser pintada. Após o uso, com o esfriamento, elas retornam ao estado sólido. O trabalho pode ser deixado de lado e retomado sucessivas vezes sem prejuízo. Isto quer dizer que se as pastas se solidificarem antes de serem usadas, podem ser reaquecidas sem problemas. A proporção entre cera e pigmento pode variar bastante de acordo com o grau de saturação desejado sem
53. Mais detalhes sobre constituição química, propriedades e usos dos óleos secativos podem ser encontrados em Ralph MAYER, Manual do artista. Trad. Christine Nazareth. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 179 a 198.
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Unidade 3
As diretrizes metodológicas fundamentais dos estudos de história da arte
prejuízo técnico54. Uma diferença entre a linhaça e a cera como veículos para produção de pasta é que a última, devido a sua consistência, é capaz de produzir pastas muito mais volumosas. A cera de abelha é tradicionalmente considerada o mais adequado aglutinante da encáustica, devido a sua grande plasticidade, podendo ser utilizada tanto em películas finas e transparentes quanto em camadas espessas sem o risco de rachaduras. Seu poder de aglutinação de pigmentos e de aderência ao suporte é satisfatório e a sua versatilidade permite ainda a adoção de qualquer gênero de acabamento em pintura. A adição de cera de carnaúba ou parafina à cera de abelha é recomendada, em proporções menores, para dar maior dureza à pasta resultante55. Uma significativa inovação nas pinturas de Nuno é a utilização da vaselina em lugar da cera de abelha para aglutinar os pigmentos num procedimento de encáustica. Embora tenha poder de aglutinação, a vaselina não possui aplicação tradicional na pintura devido ao seu ponto de fusão baixo e consistência mole. Em Nuno, é ela o principal componente da pasta colorida, dando corpo aos pigmentos depois de diluídos no óleo de linhaça e na terebintina. A parafina comparece misturada a ela, estabilizando minimamente a sua consistência, evitando que a mistura derreta nos dias mais quentes ou que desabe tencionada pelo seu próprio peso. A vaselina aparece também pura, recobrindo sutilmente partes da pasta e de alguns panos, formando películas transparentes e foscas. Quando pura por sobre a pasta que ela mesma dá corpo, atua como uma cortina fosca que intercepta o brilho próprio do óleo de linhaça. Os componentes compactos podem ser divididos, quanto a sua plasticidade, em flexíveis e rígidos. Somente as gavetas, feitas de madeira, apresentam-se como componente rígido. Os flexíveis, todos formados por fibras, podem ser divididos em fibras trançadas (cordas), fibras tecidas (panos) e fibras prensadas (feltros e papeis de seda). Eles foram enrolados (feltros), amarrotados e dobrados (panos) e curvados (cordas), operações possíveis de acordo com os seus graus de flexibilidade, sem haver rompimento do estado de coesão. Todas as partes visíveis desses componentes fibrosos se encontram untadas devido à absorção e posterior ressecamento dos óleos e ceras. 54. Ralph MAYER, Manual do artista. Trad. Christine Nazareth. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 389 a 394. 55. Edson MOTTA & Maria Luíza Guimaraes SALGADO, Iniciação à pintura. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1976, p. 33 e 34. Teoria da linguagem visual
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Ao final dos processos de transformação, os componentes discretos estão convertidos num colóide heterogêneo (a pasta) que, envolvendo os componentes compactos e expandindo-se por entre os seus intervalos, estabelece com eles a relação envolvente/envolvido. É esta relação que rege e dá estrutura a todo o complexo matérico dessas obras. Desta relação, na qual os componentes compactos e o colóide ao conjuntarem-se perdem parte de sua individualidade, advém os efeitos de unidade e continuidade. Mas o que se vê à superfície destes corpos em relação é a imensa variação de colorido, granulação, umidade, brilho e consistência, isto é, uma aparência entrecortada, multivariada, plural e descontínua. Esta contradição é a principal consequência da atuação refuncionalizada dos componentes das obras. Na pintura veicular e mesmo na pelicular e granular, os materiais atuam no sentido de produzir películas de tinta que vão se estender sobre superfícies. No primeiro caso, a película resultante será caracterizada basicamente pela opacidade e, no segundo, pela transparência. No terceiro caso, além da opacidade, ela terá também uma textura granular. Em todos os casos, os efeitos criados são fenômenos de superfície e a película de tinta que lhes dá suporte não é mais que uma membrana que se faz notar também como superfície. Na maioria das vezes, a atuação da tinta dá-se no sentido de recriar imagens do mundo visível, imaginário ou conceitual, o que faz com que a superfície das pinturas atue como campo bidimensional de projeção para essas imagens. A condição corpórea e tridimensional do objeto pintura é dessemantizada pelo fato de que o interesse fundamental volta-se para a superfície da tela, onde eventualmente as películas de tinta sobrepostas reinstauram uma tridimensionalidade simulada. Em Nuno, este modo tradicional de atuação dos materiais é modificado graças a sua refuncionalização. A terebintina não dissolve totalmente o pigmento. A linhaça não o aglutina dando origem à tinta, apenas o umedece irregularmente, proporcionando-lhe algum brilho e viscosidade. A vaselina, material aflitivamente mole, aparece em quantidade bem maior que a necessária para exercer somente uma ação aglutinadora e assim atua paradoxalmente no sentido de avolumar a massa de pigmentos. A parafina, misturada a ela, atua elevando o ponto de fusão da mistura, oferecendo minimamente uma sustentação para esses volumes. O pigmento, por sua vez, não se abstém de sua corporeidade granulosa para tornar-se so-
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Unidade 3
As diretrizes metodológicas fundamentais dos estudos de história da arte
mente um fenômeno cromático e cumprir a função de colorir. Sendo assim, ele não dá a cor, ele é matéria que possui cor. Os materiais, ao invés de encobrirem a sua própria materialidade para dar origem a imagens, reapresentam-se eles mesmos após sofrerem uma série de transformações físicas. Sua atuação não cria superfícies e sim corpos. São pinturas que se apresentam como corpos matéricos e não como superfícies funcionalizadas como anteparo sobre o qual linhas, formas e cores se organizam originando imagens. A própria relação entre envolvente e envolvido se dá na corporeidade das obras. É o corpo coloidal da pasta que se encontra expandido e envolvendo os corpos contraídos das cordas, feltros, panos e as gavetas. É esse relacionamento entre corpos espessos que produz o efeito de unidade e continuidade em todo o espaço das obras. Ao final dos processos de transformação e estabelecida a relação envolvente/envolvido, aquilo que anteriormente possuía o estatuto de material ou objeto é convertido a uma condição amorfa e unificada de matéria. Embora as pinturas de Nuno sejam essencialmente corpóreas, o que o olho pode efetivamente ver é somente a superfície das coisas. Os seus interiores podem ser apenas intuídos ou, quando muito, entrevistos quando a matéria é transparente. Aqui, ao contrário, a matéria mostra-se absolutamente opaca. E o que o olho vê à sua superfície é a crosta porosa, a todo momento rompida pelo entrecortamento de saliências e depressões e pela variabilidade de grãos, cores, umidade e brilho. Se por um lado, a superfície dessas pinturas é imensamente variada e irregular, por outro, a ação subjacente de seus corpos, de envolver e deixar-se envolver, é bastante definida e tende para a unidade e estrutura. Assim, pode-se dizer que, nessas pinturas, paradoxalmente, os corpos atuam no sentido de uma tensão estruturante para a unidade e continuidade, enquanto as superfícies atuam no sentido de uma tensão amorfizante para a pluralidade e descontinuidade.
Teoria da linguagem visual
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Referências bibliográficas BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria semiótica do texto. São Paulo, Ática, 1990. 96p. BASBAUM, Ricardo. “Pintura dos anos 80: algumas observações críticas”. Gávea, Rio de Janeiro, 6:39-57, 1988. BASTIDE, Françoise. “Le traitement de la matière”. In: Actes sémiotiques, IX, Paris, CNRS, 1987. 27p. CALABRESE, Omar. A linguagem da arte. Trad. Tânia Pellegrini. Rio de Janeiro: Rio Gráfica, 1987. 251 p. FIORIN, José Luiz. Elementos de análise do discurso. 4. ed. São Paulo: Contexto, 1994. 91p. FLOCH, Jean-Marie. Petites mythologies de l’oeil et de l’esprit: pour une sémiotique plastique. Paris-Amsterdã, Hadès-Benjamins, 1985. 226p. GREIMAS, A. J. Semântica estrutural: pesquisa de método. Trad. Haquira Osakabe e Isidoro Blikstein. São Paulo: Cultrix, 1976. 330p. ______. “As aquisições e os projetos”. Trad. Norma Tasca. In: COURTÉS, J. Introdução à semiótica narrativa e discursiva. Coimbra: Almedina, 1979, p. 07-34. ______. De la imperfección. Trad. Raúl Dorra. Puebla/Cidade do México: Universidad Autónoma de Puebla/Fondo de Cultura Económica, 1990. 98p. GREIMAS, A. J. & COURTÉS, J. Dicionário de semiótica. Trad. Alceu Dias Lima et al. [s.d.]. São Paulo, Cultrix, 493p. GREIMAS, A. J. & COURTÉS, J. Semiótica: diccionario razonado de la teoría del lenguage (tomo II). Trad. Enrique Ballón Aguirre. Madrid, Biblioteca Románica Hispánica/Gredos,1991. 322p. KEANE, Teresa. Figurativité et perception. Limoges, Pulim/Universite de Limoges, 1991. 30p. LANDOWSKI, Eric. A sociedade refletida: ensaios de sociossemiótica. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Educ, Pontes, 1992. 213p. ______. Présences de l’autre: essais de socio-sémiotique II. Paris: Presses Universitaires de France, 1997. 250p. ______. “Viagem às nascentes do sentido”. In: SILVA, Ignacio Assis (Org.). Corpo e sentido: a escuta do sensível. São Paulo: Unesp, 1996, p. 21-43. LANDOWSKI, Eric, DORRA, Raúl; OLIVEIRA, Ana Claudia (Eds.). Semiótica estesis estética. São Paulo/Puebla, Educ/Uap, 1999. 278p. MAYER, Ralph. Manual do artista. Trad. Christine Nazareth. São Paulo: Martins Fontes, 1996. 838p. MERLEAU-PONTY, Maurice. “A dúvida de Cézanne”. Trad. Nelson Alfredo Aguilar. In: CHAUÍ, Marilena. (Cons.). Merleau-Ponty. São Paulo: Abril Cultural, 1980 (Os Pensadores), p. 113-126.
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Unidade 3
As diretrizes metodológicas fundamentais dos estudos de história da arte
______. “O olho e o espírito”. Trad. Marilena Chaui. In: CHAUÍ,. Marilena (cons.). Merleau-Ponty. São Paulo: Abril Cultural, 1980 (Os Pensadores), p. 85-111. NAVES, Rodrigo. El Greco: o mundo turvo. São Paulo, Brasiliense, 1985. 100p. OLIVEIRA, Ana Claudia de.; LANDOWSKI, Eric. (Eds). Do inteligível ao sensível: em torno da obra de Algirdas Julien Greimas. São Paulo: Educ, 1995. 269p. PANOFSKY, Erwin. A perspectiva como forma simbólica. Trad. Elisabete Nunes. Lisboa, Edições 70, 1993. 131p. SILVA, Ignácio Assis da. “O projeto da semiótica planar”. In: OLIVEIRA, Ana Cláudia; SANTAELLA, Lúcia. (Orgs.). Semiótica da cultura, arte e arquitetura. São Paulo: Educ, 1987, p. 153-167. WITTKOWER, Rudolf. Escultura. Trad. Jefferson L. Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 1989. 301p.
Teoria da linguagem visual
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Índice remissivo de imagens 07
Figura 1
Fonte: HILAL, Hilal Sami. Seu Sami. Curadoria
Grupo de arqueiros de Valltorta
e texto de Paulo Herkenhoff. Vila Velha:
Foto: Oxford University Press, New York.
Museu Vale do Rio Doce, 2007, p. 46.
Fonte: UPJOHN, Everard M. Et al. História mundial da arte. Trad. Rui M.Gonçalves. São
16
Figura 5 Retrato de Trabuch
Paulo: Martins Fontes, 1979, p. 44.
Van Gogh
08
10
Figura 2
Óleo sobre tela.
Cristo
61 x 46 cm
Detalhe de mosaico na Basílica
1889
de Santa Sofia, Istambul.
Kunstmuseum Solothurn, Dübi-Müller-Stiftung, Suíça.
Séc XIII
Foto: Instituto suíço para pesquisa artística.
Foto: Max Hirmer Verlag – Munique.
Fonte: HOCKNEY, David. O conhecimento
Fonte: JANSON. W. H. História da arte. 5. ed. trad.
secreto: redescobrindo as técnicas perdidas
J. A. Ferreira de Almeida e Maria M. R. Santos.
dos grandes mestres. Trad. de José M. Macedo.
São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 212.
São Paulo: Cosacnaify, 2001, p. 11.
Figura 3
18
Figura 6
Sem titulo
Retrato do cardeal Niccolo Albergati
Fábio Miguez
Jan Van Eyck
Óleo e cera sobre tela.
Óleo sobre madeira.
200 x 230 cm
34,1 x 27,3 cm
2002
1432
Coleção do artista.
Kunsthistorisches Museum, Viena.
Foto: Nelson Kon.
Fonte: HOCKNEY, David. O conhecimento
Fonte: TASSINARI, Alberto. (Org.). Fabio Miguez/
secreto: redescobrindo as técnicas perdidas
Deriva. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 138.
dos grandes mestres. Trad. de José M. Macedo. São Paulo: Cosacnaify, 2001, p. 79.
11
Figura 4 Sem titulo
19
Figura 7
Hilal Sami Hilal
Composição
Papel de trapo e pigmentos.
Piet Mondrian
200 x 180 cm
Óleo sobre tela.
1998
41,2 x 33,3 cm
Coleção particular.
1933
Foto: Daniel Coury.
Museu de Arte Moderna, New York.
Teoria da linguagem visual
105
Foto: Museu de Arte Moderna, New York.
Fonte: GOMBRICH, E. H. A história da arte.
Fonte: SCHAPIRO, Meyer. Mondrian: a dimensão
15. ed. Trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro:
humana da pintura abstrata. Trad. Betina
Guanabara Koogan, 1993. P.26.
Bischot. São Paulo: Cosacnaify, 2001, p. 2
22 Figura 12 19
20
Figura 8
Cabeça de homem
1 / 1949
Ife, Nigéria.
Jackson Pollock
Bronze
Esmalte e tinta metálica sobre tela
Altura: 34 cm
160 x 259 cm
Séc XII
1949
Coleção Oni – Ife.
Museu de Arte Contemporânea, Los Angeles.
Foto: Eliot Elisofon – New York.
Foto: Museu de Arte Contemporânea, Los Angeles.
Fonte: JANSON. W. H. História da arte. 5. Ed. Trad.
Fonte: GOODING, Mel. Arte abstrata. Trad. Otacílio
J. A. Ferreira de Almeida e Maria M. R. Santos.
Nunes e Valter Ponte. São Paulo: Cosacnaify, 2002, p. 68.
São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 39.
Figura 9
23
Figura 13
Touro na gruta de Lascaux, França (detalhe).
Crânio gessado do rio Sepik
Pintura rupestre paleolítica, período
Cabeça de antepassado ou inimigo conservada,
madalenense médio
com búzios substituindo os olhos, Nova Guiné.
15.000 – 10.000 a.C.
Séc. XIXI
Foto: Editions d’art Lucien Mazenod, Paris.
Museu Britânico, Londres.
Fonte: JANSON. W. H. História da arte. 5. ed. Trad.
Foto: Museu Britânico, Londres.
J. A. Ferreira de Almeida e Maria M. R. Santos.
Fonte: JANSON. W. H. História da arte. 5. Ed. Trad.
São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 42.
J. A. Ferreira de Almeida e Maria M. R. Santos. São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 36.
21
Figura 10 Máscara da tribo Dan
39
Figura 14
África ocidental.
Arco Inclinado
Museu Rietberg, Zurique.
Richard Serra
Foto: Wettstein & Kauf.
Aço cor-tem
Fonte: GOMBRICH, E. H. A história da arte.
3,66 x 36,58 x 0,06 m
15. ed. Trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro:
Instalado na Federal Plaza – New York.
Guanabara Koogan, 1993, p. 448.
Foto: Pace Wildenstein – New York. Fonte: ARCHER, Michel. Arte contemporânea:
22 Figura 11 Máscara ritual
uma história concisa. Trad. A. Krug e V. L. Siqueira. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 196.
Alasca. Staatliche Museen, Museum für Volkerkunde, Berlin. Foto: Preussischer Kulturbesitz - Berlin
106
Índice remissivo de imagens
40
Figura 15
55
Figura 19
Instalação projetada para o
Série Instalações e circuitos: Buracos na parede
Museu Vale do Rio Doce
Julio Schmidt
Iole de freitas
Pva e acrílica sobre parede.
Tubos de metal e placas de policarbonato.
Dimensões variáveis.
Museu Vale do Rio Doce.
1999
Foto: Vicente de Mello.
Galeria Homero Massena, Vitória.
Fonte: Iole de Freitas. Catálogo de
Foto: Luara Monteiro.
exposição. Texto de Sônia Salzstein. Vitória: Museu Vale do Rio Doce [s/ data].
55
Figura 20 Série Instalações e circuitos: Interruptores
41
Figura 16
Julio Schmidt
Diagrama que mostra o método grego de
Óleo sobre mdf.
lavrar a pedra no período arcaico e clássico.
1999
Fonte: WOODFORD, Susan. Grécia e Roma [História
Galeria Homero Massena, Vitória.
da arte da Universidade de Cambridge]. trad. Álvaro
Foto: Luara Monteiro.
Cabral. São Paulo: Círculo do Livro, 1989, 122.
56 42
Figura 21
Figura 17
Série Instalações e circuitos: Ralo
Leão visto de frente
Julio Schmidt
Villard de Honnecourt
Pva, acrílica e verniz sobre parede.
c.1240
15 x 15 cm
Bibliothèque Nationale, Paris
1999
Foto: Bibliothèque Nationale, Paris
Galeria Homero Massena, Vitória.
Fonte: JANSON. W. H. História da arte. 5. ed. Trad.
Foto: Luara Monteiro.
J. A. Ferreira de Almeida e Maria M. R. Santos. São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 340.
57
Figura 22 Série Instalações e circuitos: Agrupamento
43
Figura 18
Julio Schmidt
A lamentação do Cristo
Óleo sobre mdf.
Giotto di Bondone
Dimensões variáveis.
Afresco.
1999
C. 1306
Galeria Homero Massena, Vitória.
Capella degli Scrovegni, Pádua.
Foto: Luara Monteiro.
Foto: Index, Florença. Fonte: GOMBRICH, E. H. A história da arte.
70
Figura 23
15. ed. Trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro:
Adoração dos magos.
Guanabara Koogan, 1993, p. 152p.
Masaccio Têmpera sobre madeira. 21 x 61 cm.
Teoria da linguagem visual
107
1426
81 Figura 27
Staatliche Museen, Berlim.
David
Fonte: ARGAN, Giulio Carlo. Clássico anticlássico: o
Donatello
renascimento de Brunelleschi a Bruegel. Trad. Lorenzo
Bronze
Mammì. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 497.
Altura: 158 cm Museu Bargello, Florença.
70 Figura 24
Foto: Alinari. Florença.
Adoração dos magos
Fonte: JANSON. W. H. História da arte. 5. ed. Trad.
Gentile da Fabriano
J. A. Ferreira de Almeida e Maria M. R. Santos.
Têmpera sobre madeira
São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 399.
203 x 282 cm 1423
87 Figura 28
Galeria degli Uffizi, Florença.
Sem titulo
Foto: Ludovico Canali, Roma.
Nuno Ramos
Fonte: JANSON. W. H. História da arte. 5. ed. Trad.
Vaselina, parafina, cera, pigmentos,
J. A. Ferreira de Almeida e Maria M. R. Santos.
terebintina, feltro e panos sobre madeira.
São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 348.
250 x 220 cm 1988
Figura 25
Museu de Arte Contemporânea, São Paulo.
A virgem do prado
Foto: Rômulo Fialdini.
Rafael
Fonte: Nuno Ramos. Livro de artista. Textos de
Óleo sobre tela.
Nuno Ramos, Alberto Tassinari, Lorenzo Mammi e
113 x 88 cm
Rodrigo Naves. São Paulo: Ática, 1997, p. 31.
1505 Kunsthistorisches Museum, Viena.
88 Figura 29
Foto: Kunsthistorisches Museum, Viena.
Sem titulo
Fonte: GOMBRICH, E. H. A história da arte.
Nuno Ramos
15. ed. Trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro:
Vaselina, parafina, cera, pigmentos,
Guanabara Koogan, 1993, p. 15.
terebintina, feltro e panos sobre madeira. 220 x 250 cm
75 Figura 26
1988
Pietà
Coleção particular.
Annibale Carracci
Foto: Rômulo Fialdini.
Retabulo.
Fonte: Nuno Ramos. Livro de artista. Textos de
156 x 149 cm
Nuno Ramos, Alberto Tassinari, Lorenzo Mammi e
1599
Rodrigo Naves. São Paulo: Ática, 1997, p. 35.
Galleria Nazionale di Capodimonte, Nápolis. Fonte: GOMBRICH, E. H. A história da arte. 15. ed. Trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1993, p. 305.
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Índice remissivo de imagens
Lincoln Guimarães Dias Lincoln Guimaraes Dias é artista plástico e trabalha com pintura desde 1986. Formouse em Artes Plásticas no Centro de Artes da Universidade Federal do Espírito Santo em 1988 e concluiu o doutorado em Comunicação e Semiótica na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo em 2005. É professor de pintura do Departamento de Artes Visuais da Universidade Federal do Espírito Santo desde 1991.
Teoria da linguagem visual
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110
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