Espere pelo P么r do Sol
Para Henrique, Que sempre me mostra como usar a imaginação, E me encoraja com as idéias mais loucas...
2
“Cada Pôr do Sol é o nascer de uma nova experiência.”
3
Debbie Willians
Um viciado em morfina, música e literatura. Seria dessa forma que eu o descreveria agora. Há quem diga que tudo piorou no momento exato em que ele me viu partir, mas eu o conheço bem demais para acreditar em algo tão simplório. Não foi a morte que o transformou, muito menos a vida. Foram apenas as consequências de um destino maluco. Não foi a doença que ele tentou negar várias vezes, nem a espera da suposta cura que jamais viria. Particularmente, eu acho que o que os médicos diziam estar errado nele, era apenas parte de sua
4
personalidade. Eu gostaria de estar presente quando seus próprios pensamentos ficaram mais fortes do que ele pôde controlar, e quem sabe ajudá-lo em seus dias mais escuros. Ele riria se me ouvisse nesse momento. Riria, e mencionaria a expressão que um de seus autores preferidos adorava repetir. “A noite escura”. Uma risada irônica, muitas vezes forçada. Diria, pretendendo mostrar indiferença, “Isso não é apenas uma parte da minha personalidade, esse sou eu. Tem que aprender a conviver com isso”. Ele mesmo ainda não tinha aprendido. Sua terrível mania de se vitimizar. Nós dois sabíamos que ele já não era tão inocente assim, e por mais que insistisse, tinha deixado de ser o garotinho assustado que rezava pelo primeiro raio de sol. Imagino com riqueza de detalhes o que me descreveu numa noite qualquer, quando parecia
5
estar
entrando
em
pânico
de
novo.
O
quarto
parcialmente escuro, o menino que esperava sentado na cama, agarrando o travesseiro. Ele fechava os olhos e movia os lábios numa oração muda. O homem abriria a porta, e ele veria a luz amarelada do corredor entrar no quarto, suave e silenciosamente. Apertaria os olhos com mais força, e faria uma prece aliviada quando a manhã viesse pela sua janela. Haveria superado mais uma noite, estaria superando mais um dia. Martelava a idéia de que as horas não passavam durante o dia. Superava mais uma manhã na escola. Mais uma tarde. E então imaginava que as horas passavam rápido demais, e ele haveria de voltar pra casa de novo. Era noite outra vez. Quando penso nisso, acho estranho que ninguém tenha perguntado o que eu fiz para curá-lo. Ainda bem, porque eu não gostaria de ter que
6
responder Não fiz absolutamente nada. Gosto de imaginar que foi o amor que o fez. Da mesma forma que o amor constrói, ele destrói. Posso estar enganada, mas acho que fomos ingênuos demais simplificando tanto a vida. Ele abandonou o sofrimento essencial para sua existência, e eu minhas ideologias. Talvez tenha sido por isso que tudo terminou assim. A vida não gosta de ser desafiada.
Provei ser verdade esse negócio de amor á primeira vista. Reconheci nele a salvação da minha vida chata e sem surpresas, no momento exato que nossos olhos se encontraram pela primeira vez. Eu, de um lado de jardim, segurando uma taça. Ele, sentado no banco de madeira branca. Respirei fundo antes de tomar a decisão de me aproximar. Ele me ofereceu um sorriso quase
7
psicótico, que estranhamente me encorajou a sentar do seu lado. —Por que está aqui, longe de todo mundo? —Perguntei. Eu não disse meu nome, e ele tão pouco se apresentou. Era como se fôssemos amigos há anos, a conversa soaria natural para quem passasse e por acaso nos ouvisse. Ninguém podia ver meu coração batendo forte, numa expectativa que nem eu mesma entendia. Ele parecia muito relaxado, não parava de olhar para mim por nem um segundo. —Não gosto de multidões. Não havia multidão alguma. Era a festa de casamento de uma ex colega de faculdade. Havia anos que eu não a via, por isso achei legal ter vindo á festa. Mas sempre odiei gente rica e seus costumes. O lugar bonito e com tantos tipos diferentes de comidas já começava a me entediar. Tenho certeza de que ele sentia o mesmo.
8
—Conhece Maggie? —Perguntei, em busca de um assunto para começar. Ele balançou a cabeça em negativa. —Sou amigo de um amigo do noivo dela. Nem conheço ninguém aqui. —Então é por isso que se isolou. —Pode me fazer companhia se quiser. Eu dei risada. —Vai ser uma honra. —Então, menina bonita... —Ele tentou também. Vários garçons passavam por nós. Como ele não aceitava nada do que era oferecido, eu também nada peguei. Embora estivesse louca para tomar um drinque. —O que você faz? —Tenho uma lojinha de flores aqui por perto. Estudava Medicina, mas decidi parar. —Trocou a Medicina pela natureza? Isso me parece uma decisão sensata.
9
—A mais sensata que já tive em toda minha vida. — Acompanhei o seu novo sorriso. —Nunca acreditei na Medicina. —Deve-se acreditar na Medicina? Se eu tenho dor, tomo um remédio. Não preciso acreditar em nada. —Meu avô era médico; Meu pai e meus irmãos também. Acharam que esse era o caminho para mim, mas dessecar defuntos não era bem o que eu queria para minha vida. E não posso imaginar que drogas fabricadas por mãos humanas possam curar alguém. Tanto aquilo que nos cura quanto aquilo que nos deixa doentes vêm de dentro, nunca de fora. —Desculpa, moça, mas tenho que discordar. Todos os meus sentimentos, quero dizer todos mesmo, foram causados por fatores externos. Já ouviu falar que o inferno é os outros? —Mas isso só se você se deixa levar. Gosto de pensar que sou forte demais para deixar que os outros
10
influenciem em minha personalidade, na minha forma de ver a vida. Pois antes de tudo, sou uma sonhadora. E o mundo dos sonhos é a minha primeira opção. Ele já não me olhava daquele jeito. Agora conversava comigo como uma pessoa que ele tinha acabado de conhecer, mas percebia ter muitos assuntos em comum. Não mais como uma mulher bonita, que ele precisava conquistar. Os homens sempre acham que precisam conquistar, mas acabam ficando na defensiva quando a coisa começa a acontecer. —Qual é o seu signo? —Eu perguntei. —Capricórnio. E, sim, eu leio horóscopo. —Não parece do tipo supersticioso. —Não me conhece. Meus amigos dizem que sou crente até demais. —Deu risada e tirou do bolso um chaveiro com a forma de pé de coelho. —Isso prova alguma coisa?
11
—Sim, está provado. E me deixa muito contente. Também carrego esse tipo de coisa na bolsa, e acendo incensos em casa. Além de trazerem boas vibrações, espalham um cheiro maravilhoso. Estendeu a mão para mim. —Jon Jordison. Ele não era propriamente bonito. Pelo menos não no nível da sociedade. Para mim, eu conseguia ver sua alma através de seus olhos castanhos. Quando sorria, seu dente tinha a pontinha quebrada, um acidente de infância, quem sabe. Era o sorriso mais lindo que eu já tinha visto na minha vida. Um sorriso de criança maliciosa. Muitas vezes, ele realmente não passava de uma criança maliciosa. —Debbie Willians. É religioso, Jon? —A religião divide as pessoas, uma vez que Deus as aproxima. Religião é sinônimo de hierarquia, e não de espiritualidade e paz.
12
—Matou milhares na Idade Média. —Concordei. —E ainda mata nos países do Oriente. —Fora aqueles que morrem aos poucos, porque acreditam tão piamente em suas crenças arcaicas, e sofrem desperdiçando suas vidas, sem ao menos se dar conta disso. —Quantas
mulheres
foram
queimadas
vivas
na
fogueira, julgadas por auto denominados servos de Deus? —Suspirei. Era a primeira vez que eu conversava esse tipo de coisa com alguém. A existência de um ser superior, nossa existência, e até a queimada das bruxas há mais de mil anos atrás. Que tipo de cara fala dessas coisas em seu primeiro encontro? Talvez ele tentasse me impressionar; Talvez estivesse sendo sincero, pois, assim como eu, nunca tinha encontrado alguém para conversar sobre a vida. —Minha família é católica. Quando eu era pequena, ia á igreja e até sonhava em me casar ali, vestida de branco, caminhando de encontro ao
13
padre. Mas de repente, tudo isso me pareceu vago demais. —Mas ainda acredita em Deus? —Não sei. Quem é Ele pra você? —É alguém que está sempre olhando por mim, principalmente quando eu me sinto sozinho. Eu olhei ao redor, esquadrinhando os rostos conhecidos. Todos riam, conversavam e bebiam. Maggie estava casando. Tudo aquilo também me pareceu vago e vazio naquele momento. —Então, Jon, que acha da gente dar uma volta lá fora? —Está entediada aqui? —Não gosto desse comida estranha. Passei minha vida inteira ouvindo que era isso o que comia as pessoas importantes. Coisas estranhas com nomes franceses, ou complicados. E que na verdade, não passa de lesma comestível. Ele riu e levantou. Eu o acompanhei.
14
—Que tal um hambúrguer? —Perguntou. —Cheio de condimentos e gordura. Com muito refrigerante, é claro. —Me parece irresistível.
Nossos
encontros
tornaram-se,
inevitavelmente,
frequentes depois do nosso primeiro beijo, no banco de trás do carro dele, antes mesmo que chegássemos á lanchonete. Ele aparecia em casa algumas vezes por semana, de surpresa. De início, sempre me surpreendia vestindo minha camisola, ou quando já tinha ido dormir, e atendia á porta com aquela temível cara de sono. Acabei ficando mais precavida, e sempre tinha á mão uma roupa especial, e estava maquiada. Ele trazia uma garrafa de vinho, ou um filme, sempre de terror. Passava a noite comigo, na maioria das vezes, mas
15
nunca mencionava o lugar onde ele morava, ou com quem dividia sua vida. Embora relutasse em admitir, eu sabia que ele tinha uma esposa. As mulheres sempre sabem. A prova irrefutável foi naquele dia, quando vi uma entrevista sua na televisão. Usava uma aliança. Apenas dessa vez eu mencionei a outra mulher de sua vida, depois, nunca mais. Paramos em frente á uma floricultura, eu examinava as flores, muito bem cuidadas. Uma loja sem dúvida muito maior e melhor do que a minha. Ele odiava quando eu pedia que me acompanhasse para fazer as compras, mas eu o fazia assim mesmo, pois queria sua companhia. —O que prefere? —Perguntei. —Rosas ou orquídeas? Ele deu de ombros. Nada entendia de flores, e não lhe fazia diferença uma rosa e uma
16
orquídea. Recoloquei o buquê de rosas no vaso, junto ao vaso de orquídeas. —Você a ama? —Perguntei de repente. Ele baixou a cabeça. —Não sei. —Ele estava sendo sincero. Tenho certeza disso. —Ás vezes, odeio ela sem motivo algum. Odeio tanto que chega a me sufocar. Quando olho para ela, penso no porquê de eu ainda estar ali. E não encontro uma boa resposta. —E em que momentos você a ama? —Quando a observo dormir. Fico pensando no motivo para tantas brigas, e desejo poder recomeçar e fazer direito. Amanhece, nós discutimos por qualquer coisa ridícula e eu dou o fora de casa porque não aguento sua presença. Eu tive vontade de chorar. Tive vontade de estrangular ele ali, na calçada, em frente a todos. Não
17
fiz nada disso. Disse a mim mesma para controlar-me, e continuei a parecer relaxada. —Ela sabe sobre mim? —Acho que sim. Ele recomeçou a andar, sem se preocupar se eu iria querer entrar na loja e comprar alguma coisa. Chegamos ao carro em silêncio. Ele colocou as sacolas no banco de trás do automóvel, sem o cuidado que eu teria com os vasos de imitação de cristal que eu colocaria na minha sala de estar. —Sinto muito. —Eu arrisquei, quando sentei no banco do passageiro. Jon assentiu lentamente e ligou o rádio. Demorou um segundo para que recomeçasse a falar. —Está com fome? Eu nunca mais toquei no assunto, odiando a mim mesma por ter perguntado coisas que não me diziam a respeito. Ele não exigia nada de mim,
18
eu nada exigia dele. Ás vezes me pegava pensando em Jon e sua mulher, ocupando o lado da cama em que eu deveria estar. Então, imaginava eu matando ela, lenta e dolorosamente. Não gosto desses pensamentos, e tratava de afastá-los do meu mundo. Mas não podia deixar de rir de minha infantilidade. Um dia ele vai ser meu, eu era obrigada a repetir para mim mesma, para não enlouquecer a cada vez que o via partir. Enquanto espero, vou viver intensamente cada segundo, como se fosse o último. Porque tudo era mágico quando eu estava com ele. E o amanhã simplesmente não existia.
Passava
minhas
tardes
cuidando
da
lojinha,
conversando com minhas amigas, e de vez em quando brigando com meus pais pelo telefone. Nunca eram brigas sérias, apenas o suficiente para que eles não me
19
retornassem a ligação por uma semana, no máximo. Algumas noites, eu saía para um bar, ou ia comer pizza com velhas colegas em qualquer lugar, apenas para não me sentir solitária quando ele estava viajando. Tenho a impressão de que ele passou a metade da vida viajando, sentindo falta de quem tinha deixado em casa, e fazendo com que os outros sentissem sua falta. Mas ele estava realizando seu sonho, aquilo pelo que batalhou a vida toda, e eu o respeitava por isso; Respeitava e admirava. Eu mesma nunca tive um sonho de verdade para perseguir, e nunca conquistei nada além de liberdade. Ele entrou na lojinha. Meu coração deu um salto ao vê-lo de surpresa, mas isso sempre acontecia. Sorriu para mim enquanto eu terminava de atender uma cliente, e colocou a mala em um canto perto do sofá verde. Lá fora, a noite caía.
20
—Veio direto do aeroporto? —Eu perguntei, antes de beijá-lo. Não queria que percebesse o quanto eu tinha sentido saudades, mas ás vezes era impossível de não deixá-lo notar. E eu sentia que com ele também acontecia o mesmo. Jon sentou-se no sofá depois de um longo momento, quando o libertei. Ele parecia cansado. Fui até a cozinha pegar um copo de água. —Aconteceu alguma coisa? —Pressenti. —Não exatamente. Eu só queria... Só queria conversar com você. Eu assenti e comecei a fechar as portas da loja. —Não. —Ele quis me impedir. —Não precisa fazer isso por minha causa. Vou ser rápido, prometo. —Não há problema. Estava quase na hora de fechar, mesmo.
21
Puxei uma cadeira de madeira e sentei ao seu lado. —Acho que você vai pensar que eu sou um completo idiota. —Começou. —Você sabe que eu nunca pensaria isso. —É que... Bom, antes de voltarmos para São Francisco, fomos visitar um garotinho que estava no hospital. Nem sei como foi que George o descobriu, mas nos disse que estava doente e desenganado da vida. Tinha câncer, imagina só. Uma criança de doze anos. —Eu ouvia com atenção. Ele não olhava para mim enquanto falava, e eu percebia que estava realmente perturbado.—Vai receber alta essa semana, porque não há nada mais que se possa fazer. Vai morrer em casa, junto com os pais e os amigos. Eu não queria entrar no quarto. Sou um fraco, não queria entrar. Mas George insistiu que era importante que eu o fizesse. O nome dele é Justin. —Ele parou por um momento. —A mãe dele nos contou que
22
ele tem a coleção completa dos nossos álbuns, e vários pôsteres espalhados nas paredes de seu quarto. Estava ciente de tudo, mas se não fosse pela sua aparência doentia, qualquer um diria que se tratava de um garoto normal. Chorou quando nos viu, mas chorou de emoção, pois o sonho dele estava sendo realizado. Ele não mencionou sua doença uma única vez, e ficou rindo com as piadas do Reg. A gente podia sentir o cheiro da morte naquele quarto de hospital. Mas o menino sorria. Eu pintava a cena em minha imaginação como um quadro. Admito que fiquei um pouco surpresa com a reação de Jon ante á situação de um menino que não conhecia. Não é falta de sensibilidade dizer isso, mas eu teria ficado impressionada na hora, mas depois acabaria esquecendo. Ele viera direto do aeroporto até minha casa só porquê a história ainda engasgava em sua garganta.
23
—Eu não fui capaz de dizer absolutamente nada em toda visita. Só correspondi com um sorriso idiota enquanto ele disse que eu era seu ídolo, e tal. Eu invejava sua força. Olhava para mim mesmo, com saúde, sem estar á beira da morte. E vivendo desse jeito... Medo. Eu tenho medo o tempo todo, e nem sei do quê. Mas, ele não. Seu único pesar era não ter ido a um show que fizemos em sua cidade, pouco tempo depois de ter descoberto sua doença. Saímos daquele quarto arrasados. Nem conversamos durante o caminho de volta. Até Reg ficou abalado. Silêncio por alguns instantes. Achei que ele fosse começar a chorar. —Sinto muito, Jon. —Fiz. —Isso me faz pensar em como essa vida é injusta. Droga, era só uma criança! —Mas sempre há uma esperança.
24
Ele me olhou, condescente. Palavras vazias. Não era o que ele precisava naquele momento. —Por que me contou isso? —Eu quis saber. —Achei que pudesse me explicar. Não respondi, sem querer admitir que eu não tinha essa resposta. Entendi que era daquele silêncio que ele precisava. —Preciso ir. —Ele levantou-se, alguns minutos depois. Senti um aperto no coração. Achei que ele fosse ficar comigo. Mas assenti e lhe desejei boa noite.
Eu me sinto egoísta pensando desse jeito, mas não queria que nada ferisse o meu garoto. Aquela mulher não saberia compreendê-lo enquanto ele sofria por causa de um garoto que tinha acabado de conhecer. Eu sim o entendia perfeitamente, seus medos sem sentido e suas excentricidades. Sabia o quanto gostava de
25
crianças, e queria ter um filho. Eu esperava que fosse eu a conceder isso a ele. Vi crianças pedirem autógrafos quando passávamos na rua, e elas eram as únicas fãs que Jon atendia de bom humor. Era fascinante. Tanto ele como o amigo de banda tinham um ímã que atraía os jovens fãs. Penso que é a pureza de seus coraçãozinhos que consegue enxergar muito além do que somos capazes de ver. Ouvi uma conversa de Reg e Jon um dia desses, quando passeávamos em algum lugar. —Acho que a maior parte de nosso público é composto por crianças. —Reg brincou. —Será que entendem nossas letras? Jon riu. —Espero que não. Eu desenvolvi uma linda amizade com Reg. O baixista da banda era um cara mente aberta, e sempre conversava comigo quando eu precisava. Era o
26
melhor amigo de Jon, por isso não posso imaginar que não pudéssemos nos dar bem. Nossa perfeita sincronia não falhava, ainda que dividíssemos tantas diferenças. Estávamos na minha sala de estar, numa noite de quarta feira. Jon tinha saído para comprar a pipoca que acompanharia nosso filme de terror. Reg dissera que estava triste por causa de uma briga com sua mulher, e pediu companhia aquela noite. É claro que eu teria preferido ficar somente com Jon, mas não pude recusar. —Mais
um
filme
de
terror...
—Reg
comentou,
estendendo as pernas sobre minha mesinha de centro. —Jon precisa de um pouco mais de criatividade. Coloquei o vídeo no aparelho, enquanto esperávamos que Jon voltasse. —Pode me responder uma coisa? —Reg indagou, inclinando-se um pouco mais para a frente. —O que você fez com Jon? Magia?
27
Eu dei uma risada curta e sentei-me ao seu lado. —Por que essa pergunta louca? —Não sei... Ele ficou tão... Normal depois que te conheceu. Não bebe mais, nem toma calmantes. É incrível. —Eu o incentivei a isso. Ele não precisava realmente daqueles comprimidos, e a bebida... Bom, sinto muito. —Dei risada. —Não, não há problema que você tenha tornado meu amigo um completo careta. Ele me parece saudável agora. Estava preocupando a todos nós com aquelas crises de depressão. Decidi que aquela era minha chance de abordar o assunto. —Morre aqui minha pergunta. —Comecei. —Mas acha que tenho chances com ele? Quero dizer, chances de verdade?
28
Não precisei deixar claro. Ele baixou a cabeça, e eu pude acompanhar enquanto ele elaborava sua resposta. —Ele está inseguro. Tem medo de deixar Renée. Acha que vai acabar sozinho, ou você vai terminar por deixá-lo. —Reg batia as pontas dos dedos no braço do sofá. —Entendo. Ele percebeu que eu precisava saber mais. Ponderou se deveria me falar o que tinha em mente. Não é traição, tentei encorajá-lo, como se ele pudesse ler meus pensamentos. Pode dizer, só vai ajudar. —Eles
não
estão
bem.
—Soltou.
Vi
certo
arrependimento. Eu queria que ele continuasse. Tenho uma certa impressão de que as pessoas podem ler meus pensamentos quando quero que elas o façam.
29
Também
sou
uma
ótima
ouvinte.
Consigo
compreender expressões. Nem meu garoto, um auto denominado perito na arte de mentir, não é capaz d e fazê-lo sem que eu descubra. Já peguei algumas de suas mentiras, porque ele sempre sorria sem jeito depois de terminá-las. Não duravam nem um segundo. Não aprovo essa atitude. Nunca dei a ele um motivo para mentir. —Não estão bem, mesmo. E já faz um tempo. Sempre que os vejo juntos, é a mesma coisa. O menor dos detalhes faz com que briguem. Sabe aquele olhar cheio de ódio, obviamente não apenas por causa de um objeto qualquer que sumiu dentro de casa? —Acha que é por minha causa? Ele assentiu, dessa vez sem hesitar. Talvez achasse que eu adoraria saber que era eu o motivo de suas brigas. Não vou negar que havia
30
uma parte suja dentro de mim que se alegrava. A única coisa que eu quero é que meu garoto seja feliz, eu repetia pra mim mesma. —Em todos os sentidos. —Reg estava mais confiante agora.—Ela sabe, de alguma forma. Jon pensa em você sempre que olha para ela. Por isso, sente tanto ódio. Penso qu é do tipo: Quem está ali, dividindo o mesmo teto e uma aliança com ele é Renée, e deveria ser você. Deve pensar isso o tempo todo que está em casa. É o que eu acho, o que eu vejo. Tenho certeza de que meu garoto disse isso pra ele, apenas pela forma de Reg enfatizar a parte “É o que eu acho, o que eu vejo”. Não crie esperanças, continuei advertindo a mim mesma. O coração é enganoso demais, e depende muito dos outros. Se ele se ligasse ao que Reg dizia agora, acabaria por criar coisas que não existiam. Ou pelo
31
menos ainda não. Espere um pouco da vida, mas tenha paciência. Não fui abençoada com essa virtude. Não aguento esperar, e aquela espera em especial me matava. —Tenho dito para ele se resolver logo. Repito todos os dias. — Reg deu uma risadinha, assumindo a expressão brincalhona de quem está cansado. —Ele não faz nada, pelo amor de Deus! Só reclama. O tempo todo. Mas atitude que é bom, nada! —Continue a encorajá-lo, Reg. —Eu deixei-me dizer. —Diga pra ele o que você acha. Ele assumiu um ar conspirador. —Certo, Deb. Pode deixar. Vou tentar, mas não prometo conseguir. —Ele vai te ouvir. —Eu não teria tanta certeza. —Ele riu.
32
Ouvimos o barulho da porta. Jon comentou alguma coisa sobre o preço da pipoca. Reg olhou para ele quando respondeu para mim. —Jon tem a cabeça dura como uma pedra.
Ele esperava eu terminar o jantar, com a cabeça apoiada nas mãos e o cotovelo na mesa. Me observava distraído. Desliguei o fogão, interrompendo a água que fervia numa panela. Ele levantou os olhos para mim, surpreso. —Vamos para o quarto. —Comecei a puxá-lo pela mão. —Quero ler nosso futuro. Abri a mesa montável, e puxei duas cadeiras almofadadas. —Está me deixando nervoso. Espalhei as cartas pela mesa, e percebi que tanto eu quanto ele prendíamos a respiração. Aprendi com minha falecida avó a ler tarot. E recebi de
33
herança aquela caixinha artesanal pintada á mão, que continha as cartas mágicas. Tarde da noite, quando eu ainda era uma adolescente cheia de planos e sonhos, em sua casa da praia, ela me dizia que os espíritos sempre ouviam e ajudavam aqueles que acreditavam. Fiquei me perguntando o que Jon temia. Que eu descobrisse alguma coisa? Ou, como eu, temia que nosso futuro não estivesse traçado no mesmo caminho? Um enorme alívio tomou conta de mim. —Veja, exatamente como eu imaginava. Vamos ficar juntos até a velhice. Teremos dois filhos. Qual vai ser o nome deles? Ele ficou mais aliviado também. —Você pode escolher. —Pirata, para o menino. E Lua para a menina. —Um pouco diferente, não é? —Ele riu. —Vai ser um casal?
34
—Sim. —Eu continuei a observar as cartas. —Vamos nos casar em breve. Vi a apreensão passar pelos olhos dele, e ir embora rapidamente. —Maravilhoso. —Ele disse, inclinando-se um pouco sobre a mesa, como se pudesse ler também o que as cartas diziam. —Tem mais alguma coisa aí? Comecei a recolher o baralho. Estava com medo de estragar mais alguma surpresa que a vida nos reservava. —Por enquanto é só, meu garoto. Já passa das sete, e eu preciso terminar o jantar. Dei um beijo rápido em seu rosto, e desci até a cozinha. Ele voltou á posição inicial, me observando novamente. —Certo, Déb. Lua, eu até posso entender. —Ele riu. — Mas Pirata? —Não é bonito?
35
—Acho que sim! Mas, tem uma explicação? —Gosto de piratas. —Eu larguei a colher na pia. — Ladrões do mar, sempre corajosos. Não são como os outros bandidos, que só tem a temer á Polícia. Eles tem a Natureza ao seu redor, mas enfrentam o mar bravamente. —Vou te considerar justificada. —Ele me deu uma piscadinha. —Isso é muito bom. Porque acabei de inventar.
Eu já tinha ouvido todas suas músicas, várias vezes. E toda vez que escutava cada uma delas, tentava imaginar de onde vinha tanta dor. Não conseguia encontrar, e algumas vezes me senti tentada a acreditar que nada daquilo era real, apenas parte da arte de sua vida. Tentei pensar isso porque era mais fácil. Sempre é mais fácil deixar de acreditar que a dor existe.
36
Ele dizia que escrevia para abafar a dor, tirá-la do coração e deixá-lo na folha de papel. Quando cantava, pegava tudo de volta, e enterrava em algum lugar sombrio e esquecido de seu coração. Em minhas tardes vazias, eu pegava alguns vídeos da Peas e colocava no meu aparelho de vídeo, na esperança que pudesse abafar minha saudade enquanto ele fazia turnês. Parecia que ele estava ali comigo, embora o vidro frio da televisão nos separasse. Eu vi ele chorar uma vez, quando cantava a respeito de sua mãe. Era uma letra carregada de ódio, e eu me sentia mal ouvindo esse tipo de coisa. Quando
a
música
terminou,
Reg
abraçou ele, enquanto Jon voltava lentamente á realidade.
Ele
riu,
brincando
que
se
sentia
envergonhado, como todas aquelas pessoas olhando para ele. Eu sempre soube que ele precisava parar com aquilo; Precisava parar de rir quando sua vontade era
37
gritar. Mas ele era teimoso demais, e quem sabe tenha sido esse a causa de todas as coisas que aconteceram com ele. Desliguei a TV. Eu sempre fui fraca, e por mais que relutasse em admitir, nem eu fui capaz de desvendar a confusão de sua mente, e ajudá-lo para que não
enlouquecesse.
Encontrei
um
bilhete
sem
destinatário no meio de suas coisas no dia em que ele se mudou para minha casa. As palavras não faziam sentido algum, e eu não tive coragem de perguntar a ele o que significavam.
“Chama a polícia. Eu acho que tem alguém aqui. Talvez eu tenha exagerado no Prozac, mas a verdade é que essa dor não passa! Ah, espera! Não é uma dor comum... Acho que agora ele está dentro de mim. Deus! Será que um dia isso vai
38
passar?Eu estou ficando com medo, começando a tremer de novo. É como se uma corrente elétrica passasse pelos meus nervos e sacudisse meu corpo. Mas ele não é tudo que eu tenho. Tem algo mais... Droga, é ele mesmo!”
Coloquei o papel junto com suas coisas na gaveta da cômoda que passaria a ocupar. Não sei se ele soube que eu li, mas gostaria que ignorasse esse fato. Não gosto da idéia de ser uma bisbilhoteira, uma invasora de seu espaço. Aconteceu naquele tarde maravilhosa. Ele apareceu na porta de casa, com apenas uma mala, um dia depois do Natal. —Se incomoda? —Ele perguntou.
39
Eu não sabia se a pergunta era “Se incomoda se eu colocar a mala em cima do sofá”, ou “Se incomoda se eu passar a morar com você?” Optaria pela segunda opção. E estava certa. Sentou-se no sofá, com o braço apoiado na mala. Eu sentei á sua frente, aguardando explicações. Tentei parecer relaxada, mas não sei se fui bem sucedida. Talvez ele nem prestasse atenção á isso. Estava preocupado. Puxava o próprio cabelo em seu tique nervoso. Não fazia isso suavemente, mas dava longas e fortes puxadas. Tive medo de que acabasse arrancando um tufo de mechas. Eu ia brincar “Você vai acabar ficando careca se continuar a fazer isso”, só para quebrar aquele clima ruim. Ele finalmente resolveu falar. —Não quero mais ficar naquela casa. Não quero, não quero.
40
—Aconteceu alguma coisa? Ele
balançou
a
cabeça
veemente.
Vi
desespero em seus olhos, e meu coração deu um pulo dentro de mim. O que teria acontecido de tão grave para deixá-lo com tanto medo? De alguma forma, não parecia meu Jon que estava ali á minha frente, parecia estranho. Começava a me assustar. —Se importa? —Ele repetiu, com urgência. —Você
sabe
que
eu
sempre
esperei
que
isso
acontecesse. Por que eu iria querer saber mais? O importante é que ele estava ali, e agora seria meu. Tanto quanto uma pessoa pode pertencer á outra, e isso não significa muito, realmente. Pensei em abraçá-lo e pedir que olhasse para mim. Estava fitando o vazio, e daquela vez, não tinha a menor idéia do que pensava. Jon assentiu de repente, meio para si mesmo, e começou a levar suas coisas para o quarto. Eu
41
disse que não se incomodasse, eu guardaria as coisas para ele. Deixei que descansasse aquela tarde. Nunca perguntei nada. E era como se a outra mulher nunca tivesse existido. O
único
problema
do
meu
novo
hóspede era a falta de incensos. Gostava de acender incensos perfumados em todos os cômodos, mas ele reclamava que aquilo atingia profundamente seus pulmões. Não sei se realmente tinha a ver com sua asma, ou se apenas o incomodava, mas resolvi que era melhor não arriscar. Ele comentou comigo aquela noite, quando nos preparávamos para dormir. —Eu não vou me sentir daquele jeito, agora. Encontrei a verdade, e tudo que eu precisava. Voltei a pensar no bilhete. Fiquei tentada a perguntar quem era ele Eu desconfiava de ser o padrasto, mas pareceu-me algo espiritual. Será
42
que Jon via “coisas”? Até hoje acho que sim. Fora de seus sonhos, e quem sabe essa fosse a loucura de que todos falavam. Poderia ser verdade, por que não? Ninguém sabe o que acontece do outro lado, além da imaginação humana. Eu segurei a sua mão por baixo das cobertas. Ele correspondeu com firmeza, me fazendo acreditar que nada poderia nos separar agora. Observei enquanto dormia profundamente. Fiquei daquele jeito por quase uma hora, e pela primeira vez, senti medo. Ele disse que ficaria bem. Talvez tenha sido o peso da responsabilidade que depositou em mim. Não vou negar que me senti pressionada. Mas eu fechei os olhos também, ao seu lado, e repeti mentalmente que aquele era o começo do resto de nossas vidas, e todas as noites eu poderia abraçá-lo daquele jeito. Não havia motivo para
ter
medo,
e
eu
consegui
me
convencer
absolutamente disso.
43
Ledo engano. Não sei se tinha sido uma premonição, ou qualquer coisa assim. Eu deveria saber que aquilo tudo era perfeito demais para ser verdade. Mas eu calei meu coração. Não deixei que ele me dissesse que aquela noite era o prelúdio, não o começo. Simplesmente não ouvi. O que eu queria que fosse minha realidade, transformei na verdade. Desprezei todo o resto, e não importava mais que eu estivesse vivendo um sonho. Não pude sustentar minha quase mentira, de qualquer jeito. Acordei muito depois do sol nascer. Ele ainda dormia.
Tentei levá-lo ao cinema numa noite de verão. Estreava um filme baseado na história de um livro que ele tinha lido. Eu não gostava dessa sua mania de basear algumas de suas idéias e
44
experiências nos romances, mas eu também gostei da história que me contou quando terminou de ler. Tratava-se de uma mulher e um manicômio, quando todos achavam que ela era louca. Na verdade, sua “loucura” era revelações divinas sobre o Apocalipse. Ela morreu no hospital psiquiátrico, quando este foi engolido pelo fogo, uma estrela que caiu sobre a Terra. Ele dirigia, e eu sabia que estava apreensivo. Pouco antes de chegarmos ao cinema, ele comentou. —Não sei se vai dar certo. Talvez fosse melhor esperarmos o filme sair nas locadoras. —Pelo amor de Deus —Brinquei, abaixando o volume do rádio. —Você ficou falando desse filme a semana inteira! Você está comigo.Eu queria ter dito. Vai superar seus medos de infância, um por um.
45
Ele suspirou. —O que eu não faço por você? Compramos pipoca e entramos na sala de projeção. Escolhemos assentos do fundo, para qualquer tipo de emergência. Ainda passavam os traillers que antecediam o filme, quando senti que ele apertava minha mão, e começava a ficar gelado de medo. Ele sussurrou para mim antes de levantar. —Vou beber água. Eu não queria estar errada. Precisava ajudá-lo, e aquela era uma ótima maneira de começar. Gostaria que ele voltasse, e aguentasse por duas horas. Enfrente seu medo. Saí da sala alguns minutos depois. Ele esperava na frente do banheiro, parado sobre o carpete vermelho, como se me esperasse. Sabia quwe eu viria. —Sinto muito.
46
Ele falou. Peguei sua mão enquanto deixávamos o lugar. —Eu falei que não ia dar certo. —Não havia acusação em sua voz, apenas uma certa vergonha. Senti-me culpada. Não deveria tê-lo forçado a isso. Essas coisas não se resolvem desse jeito. —Vamos para casa. —A tela é maior do que eu imaginava. — Comentou. —Tudo é maior se visto de perto. Tomamos
o
caminho
de
volta
ao
estacionamento. Ele se viu na obrigação de me explicar. —O barulho estava muito alto. —Eu não deveria tê-lo forçado. —Pra falar a verdade, eu tive uma esperança de que não fosse tão escuro.
47
Ele me abraçou e me presenteou com aquele sorriso de criança. —Você sabe que qualquer coisa vale a pena com você. Olhei para o estacionamento vazio, e de repente tudo pareceu muito triste. Estava frio. Talvez fosse por isso. Ele estaria saindo em turnê em duas semanas. Estremeci e abracei ele com mais força. —Vou cozinhar algo bem especial. —Eu disse, afastando tudo o que não fosse presente da minha cabeça. Entramos de volta no carro. —Para obter o seu perdão.
Peas - Mais um esconderijo Durma em paz, sem medo Está perdoado por todas as coisas que fez Talvez dessa vez você consiga
48
Parar de pensar, enfim compreender. Ignore o que está acontecendo É tudo o que não existe, ou pelo menos não deveria existir Deixe de acreditar, não permita que domine você Você quer ser forte e pagar pra ver. Agora se sente capaz de me deixar assumir o controle? Consegue fechar os olhos? Se sente melhor agora? ( Por que seu coração está apertado? Acha que vai acontecer de novo? ) Fique quieto, e tente ouvir o que as palavras nunca poderão dizer O silêncio desse lugar é tudo o que você precisa E aos poucos, vai parar de sentir Devagar, você está cada vez mais calmo
49
Você pode sorrir de novo.”
Conheci Jack Hoppus no meu segundo ano de Medicina. Ele tinha o cabelo loiro encaracolado, como se fosse um anjo. Na verdade, atuou como um durante aqueles anos em que eu me sentia terrivelmente sozinha e triste. As coisas em casa não iam bem, eu vinha reclamando do curso para meus pais. Era meu pai quem mais se incomodava com os comentários. —Isso não é para mim. —Comentei, durante o jantar. —Está ficando cada vez mais nojento, a cada dia que passa. Não aguento mais ouvir falar de sangue, tripas, víceras. Ver cadáveres, enfiar a mão nas suas entranhas e... —Pare,
Deborah.
—Minha
mão
interrompeu,
largando o garfo em cima do prato ainda cheio. —
50
Será que não podemos conversar sobre isso mais tarde? —Não há nada para conversar. —Meu pai disse, irritado. —E se vai continuar fazendo esses comentários grotescos, é melhor que se retire da mesa. Eu o encarei, demonstrando a raiva que sentia. Sempre tão altivo, tão seguro de si. Achava saber o que era melhor para si mesmo, e para os outros. —Retire-se. —Ele disse, como se pudesse ler meus pensamentos. —Por que acha que eu devo ser médica? —Disse, em voz alta, largando o guardanapo em cima do meu prato. —Para ser igual a você? Tratar pessoas doentes por dinheiro? Para fazer como você, despedir uma velha de oitenta anos de seu maravilhoso consultório, porque ela não tinha
51
dinheiro para pagar a consulta? —Postei-me de pé. Ele me observava, impassivo. Minha mãe pedia para que eu me calasse, a voz baixa. —Você não dá a mínima se ela vai morrer, ou se não vai. Não se importa, porque não é problema seu. É assunto do Governo, dos hospitais públicos. Enquanto isso, você deita á noite no sua confortável cama, com os bolsos cheios de dinheiro, e consegue dormir em paz. E chama isso de felicidade. Mas eu nunca vou ser como você! Não esperei resposta, e ignorei a voz da minha mãe que pedia que eu voltasse. Bati a porta da frente e fui procurar Jack. —Não consigo mais! —Eu chorei, enquanto ele me abraçava, sentados na cama de seu quarto. —Não vou aguentar aquela escola nem mais um dia! —Eu entendo, Deb. Mas será que não consegue suportar mais algum tempo? Pelo menos até que
52
convença seu pai de que isso não é o melhor para você. Eu sabia que Jack não entendia. Como poderia, realmente? Vinha de uma família pobre, se preparara durante anos para conseguir a sonhada bolsa na universidade. Era seu sonho, e ele o seguia com afinco. Mas eu deixei que me abraçasse. Deixei que minhas lágrimas caíssem em seu ombro. Ele levantou a minha cabeça para que eu olhasse para ele. Então, disse a frase que deve ter ensaiado durante semanas. —Eu amo você. Fiquei sem reação. Não esperava absolutamente essas palavras, não naquela hora. Eu vinha pensando a respeito há algum tempo, mas ainda não era capaz de entender meus sentimentos. Só tinha amado uma vez, quando ainda era uma criança. Disse para o rapaz na quinta série que
53
íamos casar e ter filhos, mas nosso namoro terminou quando ele encontrou outra garota para namorar. Uma menina mais bonita, sem dúvida, para minha absoluta inveja. Ele me beijou, e naquele momento, esqueci todo o resto. Entregamo-nos um ao outro sem restrições, como se aquele beijo fosse tudo que tivemos por toda vida. Ficamos em silêncio depois que aquele momento mágico acabou. —Por favor, Deb... —Ele tentou, falando baixo, e hesitando em pegar minha mão. —Namora comigo? Cometi um dos maiores erros da minha vida. Confundi um amigo e um momento de dor com um amante. Disse que sim, e prometemos que seríamos felizes para o resto da vida. Nosso namoro durou sete meses, que pareceram sete anos. Deixei a escola nesse período,
54
fui morar na casa de uma colega por um tempo, até que meu pai me aceitasse de volta. Passei a sair mais com minhas amigas. Encontrei novos garotos, os quais Jack apenas desconfiara que existiam. Eu o evitava da melhor forma possível, pois não queria magoá-lo. Ensaiei várias vezes as palavras que colocariam fim em meu falso romance. Usaria clichês, do tipo o problema não é você, sou eu. É uma questão pessoal, tenho que resolver uns assuntos antes de continuar com um compromisso tão sério. Mas as coisas se complicam muito mais quando se trata de um velho amigo, que conhece você mais do que qualquer um, e desvenda suas mentiras com um olhar. Ele tinha essa capacidade. Eu continuei com nossa relação, ainda que soubesse que estava magoando ele ainda mais com essa atitude. Até que um dia ele veio até minha casa, antes do horário combinado. Tinha os olhos
55
cheios de lágrimas, e disse as palavras que eu queria ouvir, mas ainda não estava preparada para isso. Está tudo acabado. Fui reencontrá-lo anos depois, naquela festa de Samara, nossa amiga em comum. Jon estava em turnê havia cinco meses, e eu cometi o segundo maior erro da minha vida.
Aconteceu tudo tão rápido que eu mal pude acompanhar. Pela primeira vez desde que o conhecera, eu não pensava nele. Pela primeira vez, eu me divertia sem ele. Jack e eu rimos juntos. Fizemos piadas a respeito das roupas e dos acompanhantes de nossos inimigos em comum. Falamos sobre nossos antigos amigos, nossas travessuras de quando éramos
56
crianças, de nossos pais, do quanto que era diferente ser adulto, ter nossa liberdade, nossas próprias responsabilidades. As taças de vinho e champanhe passavam por nós, e eu nunca me senti tão descontraída. Então Jack me perguntou se eu estava casada. Eu disse que não. Nem sequer mencionei a existência de Jon. Não sei porquê fiz isso, pensei não ter necessidade, mas já não tenho tanta certeza se foram esses meus motivos reais. Tínhamos bebido demais. Ele me levou para casa no final da festa. Ficamos
um
quarto
de
hora
sentados dentro do carro, ouvindo a chuva fina cair no vidro fechado. Ele me contou como era sua nova vida
de
jovem
médico,
eu lhe
contei
sem
entusiasmo como era minha vida de floriculturista.
57
Então ele me abraçou e disse que era muito bom me rever. Sei que eu deveria ter recuado naquela hora, antes que fosse tarde. Ele me beijou, e eu correspondi, sem entender, mais uma vez, que aquilo não era amor. Meu coração estava confuso, porque Jack me lembrava minha adolescência, as escapadas, os esconderijos, as festas, a alegria. Mas ele se esqueceu de que tinha sido Jack que me fizera descobrir que uma hora a paixão adolescente esfria, e então nós temos que sair em busca do verdadeiro amor. Eu tinha encontrado a minha outra parte, mas meu coração insistia em ignorar sua existência naqueles longos momentos. Sua outra parte não está aqui. Meu coração fazia questão em me fazer lembrar. Onde deve estar? Em qualquer lugar entre a Ásia e a Europa. Pedi para que Jack entrasse comigo.
58
Não abri os olhos quando acordei. Tive medo que tivesse sido real. Minha cabeça doía antes mesmo que eu enxergasse a luz. Meu coração estava apertado,
arrependido
pelo
que
tinha
feito.
Desculpe, Jack. Adorei sua companhia, mas preciso ir para casa. Meu marido está viajando, e não tem hora para ligar. Vai me ligar a qualquer hora. Mas Jack estava ali, deitado em minha cama. Senti sua mão encostar em mim. Levantei-me, tão tonta que pensei que fosse despencar no chão. Ele sentou-se, encostado na cabeceira da cama. Sorriu. Ia me dizer alguma coisa, mas eu não permiti. —Por favor, Jack. Acho que é melhor você ir embora. —Não está se sentindo bem?
59
Balancei
a
cabeça
em
negativa.
Ele
começou a se vestir e calçou os sapatos. Eu não saí da minha posição inicial. Ainda não era capaz de acreditar que tinha realmente acontecido. Como eu poderia ser tão tola, tão maluca? Como eu me deixei levar,
como
uma
muda,
uma
mulher
ser
escrúpulos? Eu sabia que nunca seria capaz de me perdoar. Fiquei muito tempo sentada na cama depois que ele saiu, sem um número de telefone, sem uma promessa de que voltaríamos a nos ver. Forcei-me a levantar, arrumar a casa e abrir a loja, fingir que aquele era um dia comum. Respirava profundamente a cada minuto, e sentia um arrepio quando me lembrava do que tinha acontecido. Sorri para as pessoas na rua, mas meu sorriso
nunca
tinha
sido
tão
vazio
assim.
Cumprimentei meus vizinhos, e atendi meus
60
clientes. Até conversei com alguns deles, sobre qualquer assunto trivial do nosso dia a dia. No final da tarde, eu me sentia exausta. Mas tinha conseguido convencer a mim mesma que tinha sido um erro, que eu nunca mais cometeria. Decidi esquecer aquela noite, aquela manhã, aquele dia confuso e vazio. Se eu simplesmente não me lembrasse, aqueles fatos deixariam de existir. Mais uma vez enganei a mim mesma ao escapar para a terra dos sonhos, onde meus planos dão certo, e minhas idéias são as leis. Eu sabia que estava grávida antes mesmo de comprar o teste na farmácia, e repeti-lo duas vezes. A todo momento, eu sentia o gosto dos lábios de Jack nos meus, e revia com clareza as cenas. Jack conversava comigo, nós bebíamos, ele me levava para o carro, e depois eu permitia que entrasse na minha casa. Meu próprio santuário. O
61
lugar onde todos os meus sonhos se tornaram realidade, o lugar onde eu tinha encontrado minha felicidade. Desperdicei tudo em uma noite. Quando o santuário de um homem é profanado, sua vida está acabada. Ignorei a campainha do telefone. Tocou a tarde inteira naquele domingo. Não levantei da cama, me recusando abrir os olhos, e deparar de novo com a realidade. Acho que tirei alguns cochilos, porque as horas passaram rápido demais. Já era manhã de segunda feira. Eu não queria fazer o almoço, ou limpar a cozinha. Tudo o que eu desejava era matar aquela coisa que crescia do meu ventre. Não é uma criança, eu pensava. É um monstro que veio para destruir a minha vida. Um ser estranho, um filho do demônio. Que precisa ser morto.
62
Mal percebi que já era noite de novo. Meu corpo implorava por comida, mas eu sabia que se comesse, estaria alimentando aquele ser. Havia alguém á porta. Eu não atendi. Deixei todas as luzes da casa apagadas, para que pensassem que eu havia saído. Devia ser uma das vizinhas fofoqueiras, preocupadas com o fato de eu não ter aberto a lojinha, nem dado às caras na rua. Esperei paciente, sentada na cama. Eu já sabia o que devia fazer. O telefone tocou de novo. Eu tateei pelas paredes até chegar á porta que me levaria ao porão. Acendi a luz do pequeno corredor, pois não havia janelas ali para que as pessoas da rua pudessem ver. Hesitei com o ranger da porta que há muitos anos não era aberta.
63
Não desci o primeiro degrau. Recuei para atender ao telefone que tinha recomeçado a tocar. Dessa vez eu sabia quem era. —Debbie, onde é que você estava? Engoli em seco, e senti as lágrimas salgadas queimarem a pele do meu rosto. —Eu te amo, Jon. Repus o fone no gancho lentamente. Ele ainda insistiu, mas dessa vez me apressei em descer as escadas do porão frio. A lâmpada que iluminava o lugar era fraca. Mal permitia que eu enxergasse o outro lado do aposento. Logo encontrei o que eu procurava. Como que tivesse sido predestinado para aquele momento, lá estava a grossa corda, quase encostada na escada de mão. Usei a escada para alcançar o teto.
64
Juro que até cheguei a ficar pendurada pelo pescoço, mas meus pés encontraram o topo da escada novamente, e eu pulei de volta para o chão, arfante. Não, não poderia fracassar novamente. Uma voz interna gritava. Dizia para que eu parasse com aquilo, que para tudo havia um jeito, e eu estava percorrendo um caminho sem volta. O caminho pra o inferno. Esquadrinhei o porão, da melhor forma possível. Devia haver alguma coisa que me matasse além da corda. Um rato passou por mim, mas eu não me importei. Lembrava das histórias que eu ouvia ainda garotinha, que envolviam o inferno e os demônios. Mas naquela hora, eu não temia. Estava disposta a pagar pelos meus erros. Encontrei o que procurava, e quase rastejei até a caixinha com as bolinhas brancas. Engoli todos de uma vez, e me atirei no chão,
65
desejando que ele se abrisse e me tragasse naquela hora.
Eu não faço idéia de quem foi que me encontrou daquele jeito. Jon não estava no quarto quando abri os olhos. Alguém deve ter mandado chamá-lo. —Você acordou. —Ele disse, sentando ao meu lado, e pegando minha mão. Eu não podia acreditar que tinha fracassado. Gostaria de chorar, mas sabia que ia doer muito mais se eu o fizesse. Por que não me deixaram morrer? Ficamos de mãos dadas, exatamente como fazíamos quando ele tinha medo. Daquela vez, quem temia era eu. —Você acordou. —Ele repetiu, vagamente.
66
Demorou
muito
até
que
eu
conseguisse juntar forças para falar. Então, entendi que não havia fracassado; O idiota que tentara me salvar só tinha adiado algumas horas a minha morte. —Você pode me perdoar? Ele balançou a cabeça, indignado. Desejava que ele já soubesse. Do contrário, eu precisaria me confessar. —Você não vai morrer. —Ele tentou. —Eu não mereço que você fique aqui, nesse lugar horrível.
—Cada
palavra
demorava
alguns
segundos para sair. —Você não merece ficar aqui. —Pare! —Ele sussurrou. —Apenas diga que me perdoa. —Nós vamos casar. —Ele começou a chorar, debilmente. Não sabia que não adiantava? Tudo que tinha de fazer era dizer o que eu precisava
67
ouvir. Afinal, era para isso que eu havia recebido uma segunda chance. —Vamos nos casar, e teremos dois filhos. Um casal. Você não lembra? —Você... Você sabe o que aconteceu? Ele não respondeu e entendi que seu silêncio era uma afirmativa. Ele sabia. De alguma forma, sabia. —Eu estava sozinha. —Eu tentei, embora soubesse que o que devia fazer era me desculpar, não me justificar. —Muito sozinha. Por favor, apenas diga que me perdoa. Eu conseguia ouvir meu coração. Uma batida longa, muito lenta para a normalidade. Ouvi de novo a voz dentro de mim. Você vai morrer. Precisava de sua resposta para poder descansar os olhos. Eles começavam a ficar pesados demais, e fui tomada pela pressa. —Por favor, apenas diga.
68
—Nós ainda vamos ser muito felizes juntos. Minha vontade era sacudi-lo pelos braços,
e
fazer
com
que
entendesse
minha
necessidade. Fiquei ouvindo ele chorar por longos minutos. Estava com frio, e nunca me senti tão cansada. Eu sabia que precisava lhe dizer alguma coisa, mas não conseguia me lembrar o que era. Terminei cedendo, e fechei os olhos. Eu devo ter dito eu te amo mil vezes. Gostaria de tê-lo feito mil e uma vezes.
Observei ele colocar minha mão sem vida sobre o lençol branco, e apenas sair quando o médico pediu, praticamente tendo que arrancá-lo para fora. Fiquei com ele aquela noite. Do mesmo jeito que ele tinha ficado comigo, ao meu lado na cama. Não conseguia dormir, fitava o teto, sem mais
69
lágrimas. Tive que resistir á vontade de tocar-lhe o rosto, e lhe prometer debilmente que tudo ficaria bem. Tinha medo de que ele se assustasse ao sentir o meu toque. Tive que partir em silêncio. Era
chegada
a
minha
hora.
Caminhava em direção ao desconhecido, mas ainda tinha esperança. Não sabemos o que há do outro lado, e quem sabe eu pudesse continuar velando por ele onde quer que eu estivesse. Até que pudéssemos nos encontrar novamente. Senti o toque frio no meu braço, me avisando que eu precisava me apressar. De alguma forma, aquela mão invisível me fazia sentir estranha e acolhida. Aquele quarto nunca tinha me parecido tão escuro e frio. Ainda lhe dei uma última olhada. Você não foi capaz de me perdoar.
70
Sarah Thompson
Eu não morei com Jake por muito tempo. Na verdade, tenho poucas lembranças do tempo que dividimos o mesmo quarto. Ele saiu de casa antes que eu completasse cinco anos. Jon chorou naquele dia. Agora eu entendo que se sentia abandonado. Na época, tudo o que eu pensei foi “Que pena, as brincadeiras de Jake vão fazer muita falta”. Mamãe também chorou e pediu para que ele ficasse. Apenas papai não disse nada. Papai sempre ficava calado. Na verdade, Jake não ia para tão longe, não. Foi morar há algumas quadras lá de casa. Mas o suficiente para que eu percebesse que Jon chorava muito mais do que antes durante a noite.
71
—O papai te machuca? —Eu interrompi a brincadeira com bolinhas de gude. Costumávamos brincar no quintal, na mesinha de madeira poída que o papai tinha construído para mim. Jon desistiu de lançar uma das bolinhas no meio da jogada. Demorou um pouco para responder. —Não. —Eu achei que sim. —Quem foi que te disse isso? Ele mexia a bolinha de gude entre os dedos. Eu estava quase arrependida de ter começado aquele assunto, mas há algum tempo eu planejava perguntar isso a ele. Pensei que talvez devesse ter ido perguntar direto ao papai.
72
—Não sei. Eu só... Pensei nisso. —Está sendo uma boba, Sarah. Sabe muito bem que seu pai não poderia fazer mal para mim. Assenti, embora não acreditasse. Sim, eu perguntaria para o papai uma outra hora. Mas agora eu só queria continuar o jogo. Esperei que continuasse a brincar, mas ele permaneceu imóvel. —Jon? —O que é? —Pode continuar jogando agora. Ele
fez
que
sim.
Mas
continuou
pensativo, olhando para as bolinhas verdes. Sacudi a mão que apertava uma delas. —É a sua vez! —E se nós... Brincássemos de outra coisa? Cansei dessa idiotice de ficar acertando bolinhas. Ele espalhou as bolinhas sobre a mesa.
73
—E do que vamos brincar, então? —Eu o segui até os degraus que nos levariam do quintal á rua. Sentei ao seu lado. Havia acusação em minha pergunta. Estava implícito “Se não as bolinhas de gude, o quê? Você não pode brincar de basquete ou futebol, porque vai ter um acesso de tosse”. —Vamos jogar xadrez. —Eu não sei jogar essa idiotice. —Cruzei os braços sobre o peito. —Está aprendendo. —Não gosto de xadrez. —Isso porque você é burra, e não sabe jogar. Arranquei uma pedrinha do chão e lancei longe. —Eu não sou burra! —É, sim. Você é muito burra. —Eu sei jogar damas. —E daí? Perde sempre.
74
—Isso é mentira! —É mesmo? Quando foi a última vez que me venceu? —Eu sempre deixo você ganhar! Ele riu. Eu odiava quando ria ao me ver nervosa. Levantei num salto, desafiadora. —Vou buscar o tabuleiro. E te provar que posso vencer. —Vai lá, magricela. Vamos ver do que é capaz. —Magricelo é você! Corri para o quarto, a procura do jogo. Voltei e coloquei o tabuleiro no degrau, como uma mesa improvisada. Estava decidida a provar que era uma vencedora. Ele ganhou aquela partida.
Eu fui conversar com papai quando me lembrei do assunto, no final daquela tarde.
75
—Por que você não é pai do Jon? Estávamos na oficina, ele tinha o capô de um dos carros aberto, e observava atentamente o conteúdo lá dentro. Suas mãos estavam pretas de graxa. Sentei na caixa de ferramentas. —O quê? —Ele perguntou, distraído. —Quero saber como é que pode você ser meu pai, mas não ser pai do Jon. Ele amaldiçoou baixinho, concentrado na peça do automóvel de seu cliente. Coçou a cabeça, tornando o cabelo loiro parcialmente negro. —Dá o fora, Sarah. —É que eu quero saber! —Estou ocupado. Vai perguntar para sua mãe. —A mamãe na vai querer conversar agora. Está preparando
a
janta.
—Ele
tirou
uma
peça
do
carburador, e a examinou. —Você machuca ele?
76
—Ele quem? —Papai recolocou a peça no lugar, irritado. —Jon. —Claro que não. Por que faria isso? —Tirou a atenção da peça mecânica e olhou para mim. —Ele comentou algo com você? Dei de ombros. —Ouço ele chorar á noite. —Sarah, escute. Ele chora porque é um bobão, entende? Nunca encostei um dedo nele, nem pretendo fazê-lo. Certo? Eu não estava satisfeita, mas concordei com a cabeça. —Entendeu mesmo, Sarah? —Ele quis confirmar. — Vamos esquecer esse assunto. —Tudo bem. —Então vai brincar.
77
Dei um beijo nele e saí. Talvez Jon sentisse falta do pai. Estava sempre falando a respeito. Meu pai, quem sabe, poderia entrar no quarto é noite para confortá-lo, dizer que estava tudo bem, como fazia quando eu tinha um pesadelo. Fiquei pensando no assunto o tempo máximo com que uma criança é capaz de se preocupar. Papai nem conversava com Jon. Só se dirigia a ele se precisasse de alguma coisa, ou na necessidade de repreendê -lo. E o que eram os barulhos que eu ouvia á noite? Não, não poderiam ser simplesmente um consolo. Eram pancadas, tenho certeza. Por outro lado, não conseguia imaginar papai batendo em alguém. Pelo menos, não até aquele dia.
78
Eu adorava meu pai. Acho que é dessa forma que a maioria dos filhos vêem seus pais, como super heróis, que vão sempre estar perto quando elas precisarem, no colo de quem podem dormir e sentir-se protegidas. Aquele que ouve suas manhas e conhece suas manias, e está quase sempre disposto a conceder privilégios. Pelo menos quando somos crianças; até que entendemos que eles também são seres humanos, e erram como nós. Geralmente, ele deixa de ser aquele super herói, e passa a representar mais um dos seres fragilizados que vemos todos os dias, diante dessa vida enorme. Então, passamos a amá-lo mais ainda, porque ele teve a coragem de se fazer parecer um herói, e nos ter protegido da vida real, a qual somos obrigadas a enfrentar sozinhos, porque exigimos nossa liberdade, muitas vezes ignorando seu amor e preocupação. Ele me decepcionou naquele dia, e eu era muito nova para assumir a realidade. Acho que entrei
79
um pouco no mundo de Jon, e pela primeira vez, quase entendi porque ele tinha tanto medo da vida. Jon e eu voltamos da escola, largamos nossas mochilas no sofá. Comecei a ouvir a gritaria que vinha do quarto. Era uma briga. Os gritos tinham a voz do papai. Senti um aperto no coração. Era medo. Comecei a subir as escadas em direção ao som. Jon me deteve, segurando meu braço. —Por que papai está brigando? —Eu sussurrei para ele. —Não sei. Mas é melhor ficarmos aqui, quietinhos. Ele me puxou para baixo, mas eu resisti. Meus olhos se encheram de lágrimas. Detestava chorar na frente dele, pois sempre me chamava de chorona. Mas não consegui me conter. —Eu quero saber porquê papai está bravo! Soltou
meu
braço,
dando-se
por
vencido. —Então, vai.
80
Hesitei, mas recomecei a subir devagar. Discernia as palavras do papai agora, e ele dizia muitos palavrões. Jon permaneceu onde estava, e não parecia mais assustado do que eu. Pedi com um gesto para que me acompanhasse, mas ele fez que não. Já tinha me aproximado da porta quando ouvi a pancada. Houve um grito da mamãe. Papai gritou mais ainda. Eu corri escada abaixo, tropecei no último degrau. —Ele bateu na mamãe! —Não consegui controlar minha voz quando gritei para Jon. Ele me ignorou, e se sentou no sofá. —Ele bateu na mamãe! Demorou até que ele levantasse os olhos para mim. —E o que eu posso fazer? Fiquei olhando para cima das escadas por alguns instantes, mas sem escutar nada. Imóvel e aflita. E de repente, tudo ficou calmo. O silêncio sempre é
81
perigoso. Papai desceu as escadas cambaleante, julguei ter visto uma mancha de sangue na sua roupa. Ele não olhou para mim. Bateu a porta da rua sem olhar para trás. Deixou um rastro de cheiro de álcool. Procurei apoio em Jon. Ele não se moveu. “Devemos subir para ver o que aconteceu?”, quis perguntar. Eu subi, já que não houve resposta. Entrei no quarto. Mamãe tinha um olho machucado, e estava deitada na cama. Chorava. Eu quis falar, mas minhas próprias lágrimas sufocaram minha garganta. —Saia daqui! —Ela gritou quando me viu. Não esperei segunda ordem. Corri para meu quarto, fechei a porta. Se tivesse a chave, me trancaria ali para sempre. Era a sensação de que tudo de ruim ficava fora do quarto; ele tinha feito com mamãe? E por quê? Parecia a mim que estava vivendo um pesadelo, e desejei acordar logo.
82
Mamãe não fez o almoço, Jon desapareceu durante toda a tarde. Papai só voltou á noite. Daquela vez, não me consolou porque eu estava triste. Eu também já não tinha certeza de gostaria e ser consolada por ele. Não houve qualquer sinal de que houvesse mais alguém na casa, até que as luzes foram apagadas, e todos os moradores da casa foram para a cama. Exceto papai. Entrou em nosso quarto, sem fazer ruído com a porta. Como sempre, ou não tive coragem de levantar a cabeça das cobertas, e descobrir porque Jon chorava. Não foi possível conciliar o sono, mesmo depois que os barulhos cessaram, e Jon fez silêncio. Ele bateu em minha mãe. E agora, ela tinha um olho roxo agora. Não consegui encará -lo na manhã seguinte. Essa foi apenas a primeira vez.
83
Jake veio nos visitar. Perguntou do olho roxo da mamãe. —Estava meio sonâmbula, fui descer para beber água. —Ela deu uma risadinha. —Dei com a cara na porta! Era a desculpa mais velha que alguém de olho roxo poderia dar, mas Jake não insistiu. Resolveu abordar o assunto com Jon, enquanto o acompanhamos até sua casa, como fazíamos todas as vezes que ele vinha á nossa casa. —Javier bateu nela? Jon baixou a cabeça imediatamente. Uma coisa que não tinha aprendido ainda era a mentir. — Não sei. —Eu sei que bateu. —Então por que pergunta? —Eu gostaria de poder ajudá-lo, Jon. Gostaria mesmo. —Ele
suspirou,
chutou
uma
garrafa
plástica
84
abandonada na calçada. —Mas mal estou conseguindo me sustentar. E minha garota. Jon aproveitou para mudar de assunto. — Como vai a Courtney? Faz tempo que não a vejo. —Vai bem, vai bem... Estamos bem. —Ele riu. Nós sabíamos que poderíamos adjetivar a relação deles com qualquer termo, menos “bem”. Nunca gostamos dela. Era uma chata, e tenho a impressão de que não gostava da gente. — Bom saber. —Jon riu também. —Acha que consegue superar mais um pouquinho? Ele insistia em falar a respeito. Jon devia estar tremendo por dentro. O medo era muito óbvio quando alguém lhe falava do papai. —Sim. —Sinto muito, Jon. Gostaria mesmo de poder ajudar. — Paramos na esquina da casa dele. Eu o puxei para baixo para que pudesse dar-lhe meu beijo de despedida. —
85
Mas assim que eu ficar estável em meu emprego, vou levá-lo comigo. Isso é uma promessa. Jon assentiu e retomamos o caminho de volta. Não sei se acreditou nas palavras de Jake. Mas o dia prometido nunca chegou.
Meu dia preferido era o Haloween. Eu saía para pedir doces com a fantasia que mamãe me ajudava a improvisar. Jon não ia comigo. Dizia que os meninos da rua iriam tirar sarro dele. Eu perguntei o que fazia com que pensasse isso, já que nunca tinha brincado com os vizinhos. Ele não soube me responder, mas insistiu em não ir.
86
—Problema seu. —Eu me irritei. —Está fazendo calor, você vai perder uma noite divertida e não vai ganhar doces. —Não estou a fim, mesmo. —Ele deitou na cama, pegou o controle remoto. —Vai passar um filme que eu não quero perder. Dei de ombros e saí. Me irritava essa sua mania de se trancar em casa, enquanto todas as crianças estavam lá fora. Até mesmo Heitor nos acompanhava. Eu adorava Heitor. Minha mãe pedia para que tomasse conta de mim, mas ele me dizia que eu era livre para fazer o que bem me aprouvesse. Ele tinha o cabelo preto enroladinho, e olhos verdes que estavam sempre sorrindo. Era um viciado em figurinhas, e usava um óculos grosso que eu achava ridículo. Morava na mesma rua que eu, e tinha se tornado o primeiro e único amigo de Jon.
87
Nós perseguíamos os doces, alucinados, junto com uma turma enorme. A cada ano aparecia duas ou três crianças novas, e alguém sempre acabava caindo e se machucando em nossas corridas perigosas, depois de praticar alguma travessura. Nunca foram acidentes sérios, e a alegria do Haloween era muito viva, ainda que nem soubéssemos seus verdadeiros significados. Naquele ano, eu trouxe balas e pirulitos para ele, porque fiquei com pena por causa do seu braço quebrado. Ele contou á mamãe e ás crianças da escola que tinha caído da escada, com o peso sobre o braço direito. Acho que as pessoas acreditaram, mas eu sabia o que tinha acontecido de verdade. Já devia passar das três da madrugada. Ouvi papai sussurrar para Jon, depois de uma enorme
88
pancada que derrubou o criado mudo que suportava o abajur. Começou com o grito abafado de Jon, e ele começou a chorar antes mesmo que papai deixasse o quarto. Papai disse: “Droga! Tente mexer isso aí”. Um segundo de silêncio. “Tente de novo”. “Droga!” Um longo suspiro. Jon conteve o choro. “Aguente, garoto. Pela manhã eu te levo no hospital. Vamos dizer que você caiu da escada. Entendeu?”. Silêncio. “Entendeu?”. “Ótimo. Tente dormir um pouco. Isso deve passar logo, está bem? Pense em outras coisas, coisas boas, certo? E vai parar de doer. Lembre-se: Você caiu da escada.”. Afundei o rosto no travesseiro, na tentativa de não ouvir mais nada. Papai sempre me dizia isso, para pensar em coisas boas quando eu sentia alguma dor e não conseguia dormir. Respirei fundo, e engoli
89
algumas lágrimas. Esperei um tempo depois que papai saiu do quarto, para perguntar. —Vocês está bem, Jon? Ele reproduziu um som que significava sim, mas sua voz estava cheia de dor. Eu senti pena dele, e pela primeira vez, ódio do papai. A única coisa que eu encontrei para deixá-lo mais contente, foi dividir meus doces com ele naquele final de Outubro.
Jake se trancou na cozinha com Jon. Eu sabia que eles conversavam sobre o que tinha acontecido, e colei o ouvido na porta para escutar melhor. Jake era esperto o suficiente para entender que Jon tinha mentido sobre a história da escada. De alguma forma, isso me fazia sentir melhor porque eu não era a única a saber, e não fazer nada.
90
—Por que acha que ele faz isso? Era a voz de Jake. Escutei um líquido derramar-se em um copo de vidro. —Não sei. —Jon respondeu, em voz baixa. —Nenhuma idéia? —Acho que ele fica deprimido. —Foi a resposta de Jon. Sem afetação. —Precisa descontar em alguém. Jake ensaiou uma risada —Entendo. Como uma terapia? —Ou o barulho de seu punho cerrado contra a mesa. —Nunca gostei desse imbecil. É ótimo não ter que morar aqui. —Sim, é ótimo. Eu esperaria ouvir alguma acusação na voz de Jon, mas não houve nenhuma. Jake tentou: —Já pensou em contar á mamãe? —Ela sabe. —Tem certeza? —Sim.
91
—Você já falou com ela? —Acha mesmo que ela seria tão cega assim? Jake o considerou por um instante. —Ela viu. —Jon completou. Novamente, o som do líquido derramando no copo. —Um dia desses, estava parada na porta. Viu que ele me batia. Eu ia chamá-la, pedir que me ajudasse, mas... Não sei. Simplesmente não sei. —Jon esperou que Jake dissesse algo. O irmão permaneceu calado por vários segundos. —A verdade é que ela sabia desde o começo. “Então, por que ela nunca fez nada?”, devem ter os dois perguntado-se mentalmente. “Porque ela tinha medo”, foi a resposta que achei, refletindo nisso, anos depois. “Tanto medo quanto Jon”. —E a Polícia? — Jake indagou vagamente. —Sem chances! —Jon baixou o tom de voz ainda mais. Eu mal conseguia discernir suas palavras. —Ele disse
92
que me mataria se eu dissesse alguma coisa. Nem deveríamos estar tendo essa conversa. Prometa que não vai dizer nada, por favor. Prometa! Jake não respondeu imediatamente. —Está bem, eu prometo. Ouvi o barulho de cadeiras arrastadas. Corri até o sofá, e apanhei o controle remoto, fingindome interessada num programa de televisão qualquer. Os dois passaram por mim, sem desconfiar de nada. E se Jon tivesse reagido? Permitido que Jake comunicasse as agressões á Polícia? Se tivesse fugido de casa, saído mais cedo do seu inferno particular? Até que ponto sua vida teria sido diferente?
Quando papai não estava, eu achava a casa muito entediante. Ás vezes brincava com Jon no quintal, ou nos sentávamos á mesa da cozinha para estudar.
93
Eu tentava aprender, Jon tentava me ensinar. Batia o caderno fechado na minha cabeça, ou me espetava com a ponta do lápis. —Droga, Sarah! Será que eu vou ter que repetir vinte vezes até você entender? —Certo, Jon, desculpa. Eu estava prestando atenção. Só me fale mais uma vez. Ele fazia questão que eu notasse sua impaciência, mas repetia todas as vezes que eu precisava. Não que eu gostasse de estudar com ele, mas foi graças á essas sessões de tortura que eu passei nos exames de Matemática. Se ele resolvia passar a tarde sozinho no quarto, me expulsava de lá. Eu ficava na sala de estar, brincando de boneca ou ajudando mamãe com o serviço de costura. Eu não sabia costurar, mas ela pedia que eu contasse os enfeites de cortina ou as roupinhas de
94
bebê já produzidas, para depois colocá-las numa caixa de papelão. No fim da tarde, antes do papai voltar da oficina em nossa garagem, a dona da loja vinha pegar as encomendas. “Conte de novo, Sarah”, mamãe insistia. “Eu preciso entregar exatamente setecentos desses aí”. Jon ficava assistindo televisão. Eu ainda batia á porta do quarto, e implorava para ficar com ele, pelo menos um pouquinho. —Não. Quero ter a liberdade de assistir o programa que eu quiser, e você vai ficar me importunando com seus desenhinhos de bebê. —Ele gritava lá de dentro. Como se houvessem muitas opções. Ele assistia aos programas da tarde, esses projetados quase que exclusivamente para donas de casa. Não prestava realmente atenção ás receitas caseiras e dicas de limpeza, e, ás vezes, acabava pegando no sono. Tudo mudava quando papai voltava pra casa. Eu ficava contente com sua presença, e corria pro
95
seu colo assim que ele cruzava a porta. Para Jon, o medo substituía o ar dentro de casa, e era o sinal de que outra noite iria começar. Foi numa dessas tardes que ele descobriu sua vocação, por acaso. Era uma quarta feira, e mamãe saiu para fazer a manicure de uma vizinha. Pediu a Jon para tomar conta de mim. —Se precisar de alguma coisa, vai me chamar na casa da Mary, ou ligue pro seu irmão. Deve estar em casa, é um vagabundo e não faz nada o dia inteiro. Jon comentou que achava a casa bem mais sossegada sem os gritos histéricos da mamãe. Faça isso, faça aquilo. Venha até aqui, saiam já daí. Eu concordei, e nós dois rimos. Ficamos na sala de estar, e ele até brincou um pouquinho com minha nova casa de bonecas.
96
Uma barata saiu de dentro da caixa de papelão onde eu guardava os brinquedos. Pulei em cima do sofá, e comecei a gritar, histérica. —Mata, Jon! Mata logo esse bicho, ou eu vou me mudar daqui. Ele
reclamou.
Não
tinha
simpatia
alguma por insetos, e sei que sua vontade era subir no sofá junto comigo. Mas a sociedade exige que sejam os homens a matar as baratas para as mulheres, então ele obedeceu. Lançou-se á caçada. Foi parar no quarto da mamãe, com meu chinelo na mão. Eu o segui, com os pés no chão gelado. —Você é tão devagar! —Parei á porta do quarto, ainda histérica. Não sossegaria enquanto ele não encontrasse o animal. —A barata até etrou dentro do armário! Meu deus, ela está dentro do armário.
97
—Não está. —Ele disse, dando a volta no enorme guarda roupas de madeira escura. —Veio parar aqui atrás. Ele verificava o espaço entre o armário e a parede. Ali encontrou o violão, todo empoeirado. Ele tirou o instrumento com reverência. —Olha só isso! Passou os dedos pelas cordas, fazendo um barulho que estava muito longe de ser música. Espirrou com o pó. —Como pode ficar assim, esquecido? Revirei os olhos. —Vai matar a barata! Foi para o banheiro com o violão, e começou a limpá-lo com um paninho molhado. Ainda insisti para que ele matasse a barata, mas ele me ignorou deliberadamente.
98
Sentou-se na tampa fechada no vaso, e começou a tocar. Até tinha pose de violonista, mas não acho que tenha saído alguma nota certa. Dei risada. —Você é péssimo. —Espera só até eu pegar o jeito, sua magricela.
Duas vezes por semana, mamãe ia fazer a manicure da tal vizinha. Jon aproveitava esses dias para praticar com o violão roubado. Começou a usar também as manhãs de domingo, quando todos estavam dormindo. De vez em quando, permitia que eu escutasse. Achei que ele realmente estava pegando o jeito, e sabia cantar. Até que foi descoberto pela mamãe. Ele
dedilhava
“Get
a
Grip”.
Fico
orgulhosa de pensar que fui sua primeira grande fã, na longa jornada que ele teria pela frente, fazendo o que mais amava. Papai estava na oficina, mamãe deveria
99
estar dormindo. Era uma manhãe de sábado, estava fugindo um pouco de sua rotina. Ela foi atraída pelo som. Abriu a porta da frente, e nos pegou sentados no quintal. A música parou imediatamente. Mamãe voltou-se diretamente para Jon. —O que está fazendo? Ele engoliu em seco, e apertou o braço do violão com mais força. —Eu... Eu não... Desculpe. Ficamos
observando
enquanto
ela
pensava por um instante. Ainda usava o roupão, e protegia os olhos da luz do sol. —Onde aprendeu a tocar? —Eu... Não sei. —Não sabe? —Sozinho. —Mentira.
100
—Eu ouço... Acho que... Rádio. —O quê? —Ouvindo música. No rádio. Eu acho. —Esse violão era do meu pai. Ele se levantou e estendeu o instrumento para ela. —Des... Desculpa. —Ele tentou me ensinar uma vez, mas... —Sorriu. Não pegou o violão da mão dele. —Não consegui aprender. Ele ficaria feliz se te visse tocar. Jon mordia o lábio inferior, e ainda mantinha o braço estendido para ela. —Se prometer tomar conta dele —Ela empurrou de volta. —Pode ficar com você. Ele hesitou. —Eu prometo.
101
—Certo, mas vê se consegue encontrar uma musiquinha melhor, da próxima vez. E tente ser mais afinado com a voz. Só depois que ela já tinha se retirado ele respondeu. —Tudo bem, mãe. Obrigado. Eu sorri para ele, entendendo sua sorte. —Agora você pode tocar a qualquer hora! —Vai brincar, Sarah. Eu tenho muito o que fazer. Antes que eu pudesse retrucar, ele virou as costas. Fechou-se no quarto. Ficou tocando sozinho durante horas a fio. Tive medo do papai, quando retornou para casa, á noite. Mas ele pareceu nem ouvir a música. Apenas quando o relógio mostrou onze horas da noite, ele interrompeu. —Pára com essa droga, eu quero dormir.
102
Claro que Jon parou no mesmo instante. E dali para frente, só tocaria quando papai não estivesse em casa.
Ele me contou que estava montando uma banda. Ele e Heitor. “Uma dupla”, eu pensei. Perguntei qual nome teriam, e ele respondeu que não haviam escolhido ainda. Penso que foi graças á essa banda inexistente que Jon perdeu seu medo de sair na rua, pois passou a frequentar a casa de Heitor. Quando ele completou catorze anos, a banda finalmente tornou-se uma banda, e a fobia social de Jon melhorou consideravelmente. O grupo foi batizado com o nome de Loveartist. Nunca vi a banda completa, tocando na garagem que os pais de Heitor permitiram que transformassem em estúdio. Os outros integrantes
103
ficavam por conta da minha imaginação. De vez em quando ouvia Heitor e Jon tocar em nosso quarto, e achava o nome da banda um pouco romântico demais para o som que eles tocavam. Para mim, na verdade, era só barulho. Mas quando mencionei minha opinião, ele mandou que eu me calasse, pois nada entendia a respeito de música, muito menos de arte. Mamãe não gostava dos pôsteres e revistas que Jon guardava na gaveta, nem dos discos que passou a comprar com sua mesada. Ela dizia que aqueles músicos tinham pacto com o demônio. As músicas que cantavam era pura invocação e culto ao demo. Ele nada respondia á ela, mas continuava a ouvir as músicas escondido. Eu perguntei se mamãe tinha razão. —É apenas uma forma direta de se expressar. —Ele respondeu, com surpreendente paciência. —Um jeito
104
direto, sem eufemismos. É a maneira de ser você mesmo, sem se preocupar com a sociedade. Jon dizia que a música libertava sua alma. Eu acho que o deixava ainda mais deprimido. Não demorou muito até que Heitor e ele passassem a se vestir igualzinho o cara do pôster. Compraram até um estojo de maquiagem. Mamãe gritava quando via ele sair de casa daquele jeito, para ir á escola. Ele se afastava o mais depressa possível, e íamos encontrar Heitor na esquina. Eu
percebia
os
olhares
quando
passávamos pelo corredor, antes de entrar na sala de aula. Alguns riam deliberadamente, outros mais disfarçados. Eu tinha vergonha de estar com eles, gostaria que mamãe deixasse eu ir á escola sozinha. —Veja só. —Gritava alguém. —Já chegaram as bichinhas de maquiagem!
105
Jon não os encarava, como fazia Heitor, em sua expressão de desafio. —Não se pode ser diferente. —Jon reclamava, fazendo o possível para ignorar os outros. —As pessoas têm que ser todas iguais, umas ás outras, para que sejam aceitas. —Respira fundo, Jon. Que se danem os olhares.
—
Heitor dizia. —Pense no Pistols. O que você acha que esse pessoal diria se Sid Vicious estudasse aqui? —Eles ririam. —Jon considerou. —Eu tenho vontade de gritar e se eu fosse um anarquista? O que pensariam essas pessoas normais e mecânicas? Heitor deu uma risadinha. Paramos em frente aos armários. —Não seja tão pretensioso, Jon. Nós somos apenas uma banda de garagem. Isso não que dizer que vamos mudar o mundo. —Se eu fosse Sid Vicious ou Steven Tyler? Eu seria mais rico do que todos vocês juntos. Não seríamos?
106
—Acha mesmo que continuariam nos enchendo o saco? Ele riu. —Não mesmo! Bando de superficiais... Eu olhei ao redor, ansiosa para pegar minhas coisas e seguir para minha sala. Não conseguia encontrar meu livro de Inglês. Então por que você não diz isso ás pessoas que vêm zombar de você? Optei por ficar calada. Sam estava acenou para nós. Estava vindo em nossa direção, quando grupo de garotas a fez parar para conversar. Eram as famosas e medíocres líderes de torcida do colégio. —Faz um tempinho que não vejo a pequena Sammy. — Heitor comentou, observando a menina conversar animadamente. —Está trabalhando muito ultimamente.
107
—Oh céus. —Ele zombou, enquanto Sam lançava um sorriso na direção de Jon.
—Está se sentindo
abandonado? —Imbecil.
Sam nunca tinha entrado em casa. Jon e ela ficavam no portão, conversando, ou saíam para tomar sorvete. Toda vez que ela via o papai, lhe lançava um olhar mortífero. Sempre foi muito legal comigo, e de vez em quando me ajudava a convencer Jon a me levar pra passear com eles. Ela era a completa antítese de suas amigas. Fazia parte do clube de dança e das animadoras de torcida da escola, mas não por status, simplesmente porque gostava. Ela nunca teve esse negócio de fazer as coisas pelos outros, pensando no que iriam achar. Isso
108
era o que mais me fascinava nela. E também o seu cabelo. Decidi que seria igual á ela quando crescesse. Jake dizia que ela estava apaixonada por Jon. Eu achava que não, não seria possível. Sam era linda demais. Tinha olhos verdes, e usava as melhores roupas da escola. Havia vários dos jogadores de futebol que queriam namorar com ela. Que Jon estava apaixonado por ela, eu não tinha dúvidas. Quando Jon me contou que estavam namorando, eu fui obrigada a acreditar em Jake. Sam salvou a vida de Jon. Sam e a música.
109
Samantha Paige
Não nos demos conta de quando nossa amizade de criança passou a ser amor de adolescente. O fato era que tanto eu quanto ele estávamos perdidos, e nos encontrávamos um no outro. Conheci Jon na quinta série. Ele sempre foi tímido, mas eu consegui fazer com que ele falasse comigo. Eu era a única pessoa com quem ele conversava em nossa classe. Eu não acho que ele era tão diferente e estranho, apesar do visual que adquiriu mais tarde. A verdade é que se tratava de um egocêntrico. Sempre preocupado com que os outros iam pensar, sempre se sentindo perseguido pelas outras crianças. Sim, eles
110
zombavam de Jon. Mas só o faziam porque ele deixavase ofender. —Ignore esses otários. Simplesmente ignore. —Eu tentei dizer várias vezes. —E você acha que eu me importo? —Ele tentava parecer displicente. Sei que chorava quando chegava em casa.
Era aula de História. Eu estava compenetrada na lição atrasada, quando aconteceu. Jennifer lançou uma bolinha molhada de saliva em Jon, através da carcaça do que um dia tinha sido uma caneta. Ela fazia parte da “turma do fundo”, e eu sempre a odiei particularmente. Usava roupas e atitude de meninos, e cuspia chiclete mascado no chão. Os outros meninos riram.
111
Eu tentei me controlar, respirei fundo três vezes. Mas aí ela gritou, motivada pela risada dos outros garotos. —Sua bichinha! Jon viu quando eu cerrei os punhos e levantei. —Não, Sammy. Por favor, você disse para eu ignorá-los. Não ouvi o que ele dizia, enquanto avançava para o fundo da sala. —Espero que não esteja falando de Jon. Não esperei resposta. Acertei ela na orelha, enquanto ele tentava puxar meu cabelo. O professor correu para acionar a diretoria, e todos os alunos já tinham formado uma roda em volta de nós. Dei meu último soco, fazendo o seu nariz sangrar, antes que os inspetores nos afastasse, e arrastasse as duas para a diretoria.
112
Jon estava assustado em um canto da sala, e eu acenei para ele, vitoriosa, enquanto me afastava. Esperei quase uma hora no banco da Diretoria. Não faço idéia de onde Jennifer esperou. Foi bom que estivesse bem longe de mim, pois minha vontade de arrebentar-lhe os dentes ainda não tinha passado. Meu pai finalmente apareceu, com aquela expressão carrancuda de sempre. Um pouco mais acentuada dessa vez. Não tinha sido boa a conversa com a diretora. —Vai me pagar por isso. —Ele disse, enquanto me puxava de volta para o carro. —O que foi que ela disse? —Perguntei, como se fosse necessário. Acomodei-me no banco do carro. —Está suspensa por três dias. Isso porque queria te expulsar, Sam. Suspirei, aliviada.
113
—E quanto ao grupo de dança? —Ainda está nele, Sam. Eu sabia que minha mãe ficaria louca se soubesse que eu tinha sido expulsa do grupo, porque bati numa garota no meio da sala de aula. “Quando eu era jovem”, ela diria, como sempre. “Fazia parte das líderes de torcida da minha escola. Eu era a mais bonita de todas. Você é igualzinha a mim, Sam. Não sabe o quanto me orgulho”. —Não quero mais você metida em confusões. —Meu pai
continuou.
Eu
começava
a
ficar
levemente
entediada. E imaginava o que faria com meus dias livres da escola. —Da próxima vez, não vou perdoar. Está entendido? Eu assenti antes de saltar do carro. Minha mãe perguntou o que tinha acontecido, meu pai explicou tudo com riqueza de detalhes. Eu revirei os olhos e tentei sair da conversa.
114
—Ela merece um castigo, Morty! —Minha mãe pediu. —Dessa vez, vou perdoar. —Ele respondeu, dando uma olhadinha para mim. —Mas da próxima... Bom, já estamos conversados. Esperei a permissão para ir para o meu quarto. Entendi que tinha escapado por pouco dessa. Mas não pude deixar de rir, lembrando de como deve ter parecido a cena aos olhos dos outros.
No dia seguinte, encontrei com Jon em nosso esconderijo. Costumávamos ficar em um beco em nosso bairro, conversando sobre tudo e sobre nada. Ríamos á toa, e mesmo que fizesse frio, ficávamos lá, muitas vezes encolhidos sob um toldo velho para não tomarmos chuva. Naquela tarde fazia sol.
115
—Onde foi que você aprendeu a lutar assim? —Jon riu, quando nos encontramos na mesma tarde. Tirei uma lata de refrigerante vazia do caminho, e encostei na parede. Dei um sorriso, orgulhosa. —Essas coisas não se aprendem. Nem se ensinam. —Foi incrível! —Acha mesmo, Jonny? Pois bem. É que não vai ser você a perder o exame de Geografia amanhã, não é? —Vamos, assuma. Está adorando a idéia de uns feriados, não é? Dei risada. —E aquela vadia teve o que mereceu. Você viu a cara dela quando eu parti pra cima? —Você deveria ter visto a sua cara! Achei que fosse matá-la. —Não tanto. Só queria lhe quebrar alguns dentes.
116
Ficamos rindo por alguns instantes. É incrível como uma risada pode durar entre dois velhos amigos, que se entendem tão bem. Muitas vezes, começávamos a rir de qualquer coisa boba, e no final, já nem sabíamos do que estávamos rindo. O que, obviamente, era motivo para mais uma risada. Ele levantou-se. —Que
tal
um
refrigerante?
—Ele
perguntou,
começando a contar as moedas que tinha tirado do bolso. Eu levantei atrás dele, e arranquei as moedas de sua mão. Dei risada. —São minhas! Comecei a correr, ele me perseguiu. Quase fomos atropelados no caminho. Ele parou de correr em algum ponto, e eu já tinha perdido ele de vista. Esperei na porta da mercearia até que ele finalmente surgisse, caminhando arfante. Eu também estava cansada.
117
—Isso aqui não vai dar pra nada. —Eu dei risada, devolvendo as moedas para ele. —Quanto é que tem aí? —Oitenta centavos. —E quanto custa o refrigerante? Eu dei de ombros. O dono da mercearia já começava a olhar torto. Resolvemos entrar e perguntar. —Um dólar. —Ele respondeu, mal humorado. —Acho que nós vamos levar balas de caramelo. —Jon pediu, sem deixar de dar uma risadinha pra mim.
É certo que eu já havia visto os machucados, mas ele nunca queria falar a respeito. Da primeira vez, ele disse que se tratava de um acidente qualquer. Mas eu sabia que acidentes não aconteciam com tanta frequência.
118
—Ou você é muito azarado. —Eu sugeri, enquanto andávamos pelas ruas conhecidas do nosso bairro. — Ou está mentindo para mim. —Você sabe que eu não mentiria para você. Eu fiz ele parar. —Jura? —Juro. Olhei para ele por um longo momento. Ele não desviou os olhos dos meus. Por um momento, quase acreditei. Não fosse pelo olhar cheio de medo quando Javier estava perto, e a forma que gaguejava quando ele se dirigia a Jon. —Chega de perguntas. —Ele abriu um sorriso, que não deixariam dúvidas quanto á legitimidade de suas afirmações, se eu não o conhecesse tão bem. Pegou minha mão, e lá estávamos de novo, caminhando sem rumo, conversando bobeiras.
119
Eu sabia que era Javier. Não importava o quanto seu rosto demonstrasse inocência, e aqueles seus cumprimentos polidos estavam longe de ser sinceros. Parecia tão mentiroso quanto Jon. Estive planejando secretamente uma forma de puni-lo, de fazê-lo ver que estava pecando. E eu ainda não imaginava a que consequências estava levando a saúde de Jon. Eu mesma só fui saber muito mais tarde, pela Internet. Passei a ignorar os acenos simpáticos de Javier, quando ele passava por mim acidentalmente. Julguei que já tinha esgotado minha cota de falsa simpatia para aquele velho bêbado. Várias
vezes
me
peguei
chorando
pensando nisso. A pior sensação do mundo é a impotência.
120
Devo admitir que quase me apaixonei por Nathan. Em alguma época da minha vida, eu estive próxima de fazêlo. Ele era um dos jogadores de futebol do time da escola. O melhor dos goleiros que a Ethan Martin já tinha visto. E era louco por mim. Teríamos tornado real mais um clichê adolescente perfeito, o jogador de elite e a animadora de torcida loira. Ao contrário da maioria dos meninos que eu conhecia, ele era doce e sensível. Sempre me trazia presentes e elogios. Certa vez, me pediu em namoro. Passei a noite em claro remoendo o assunto. Quase me decidi a aceitar, mas embora eu ainda não soubesse, estava apaixonada por outra pessoa. Minhas colegas de dança, obviamente, achavam que Nathan era o cara ideal para mim. Tive minha primeira discussão séria com minhas melhores amigas por causa disso, naquela tarde de sábado.
121
A noite do baile de formatura da oitava série aconteceria em algumas horas. Como qualquer adolescente, queríamos estar lindas e perfeitas. Alice enrolava meu cabelo com bobies. Kate pintava as unhas dos pés, sentada na cama de Alice. Ela usava um dos esmaltes cor lilás da amiga, que deveria combinar com o vestido e as sandálias que tinha comprado no dia anterior. —Nathan ia te convidar para o baile. —Alice comentou. —Mas ficou sabendo que você já tinha acompanhante. Coitado, deve ter ficado desapontado. —Que pena. —Murmurei, tentando não entrar em detalhes. Observava meu reflexo no espelho da penteadeira marfim, imaginando em que tipo de maquiagem eu deveria apostar naquela noite. Mais escura, mais discreta? Eu escolheria um vestido branco e a maquiagem leve. Não queria chamar a atenção naquele dia.
122
—Por que não aceita o convite de Nathan? —Porque ele não me convidou. Senti a voz de Alice se alterar. —Se você não tivesse espalhado pra escola inteira que iria ao baile com aquele nerd maluco, ele teria ido falar com você. Levantei
da
cadeira
em
um
pulo,
derrubando o estojo de bijuterias que estava no meu colo. As jóias falsas se espalharam pelo chão, diante do olhar perplexo de Alice. —Se quer ser minha amiga, vai ter que me respeitar. — Eu não me importava que a mãe de Alice estava no andar de baixo da casa, e poderia me escutar.—E nunca mais quero ouvir você mencionar meu melhor amigo, nem fazer cara de nojo quando me vê com ele. Ou vou ter que te dar uma surra, exatamente como fiz com Jennifer.
123
Kate, sentada na cama, interrompeu o ato de pintar as unhas, e tinha a expressão perplexa. Acho que mais por eu ter enfatizado as palavras melhor amigo do que pelo fato de estar gritando. —Sam... —Alice disse, em voz baixa, como que tentando me apaziguar. —Sinto muito se te ofendi, mas é que Nathan está realmente apaixonado por você. E ele é tão bonito e inteligente! Como sua amiga, não gostaria que desperdiçasse sua vida dessa maneira. Não é verdade, Kate? Kate baixou a cabeça e voltou sua atenção ás unhas
coloridas,
murmurando
qualquer
coisa
ininteligível. Eu suspirei, um pouco mais sob controle, e me sentei de novo. Alice retomou o seu trabalho. —Eu gosto dele, e vocês não podem mudar isso. —Fiz. — Nunca. Alice hesitou. —Está apaixonada por ele?
124
—Não. —Eu disse sem pensar. —Mas se estivesse, isso não seria da conta de vocês. Ela assentiu longamente, enquanto eu a observava pelo espelho. Demorou um minuto inteiro até que voltasse a falar. —Só espero que um dia você perceba o que está fazendo consigo mesma. O assunto nunca mais foi mencionado.
Jon me esperava na esquina de casa. Estava distraído com o nó da gravata. Nunca tinha usado uma antes, e sua mãe tinha comprado essa especialmente para o baile. Ele achava complicado demais, e antes mesmo que eu me aproximasse, percebi que começava a se enfezar. Tampei os olhos dele, de forma que ele não podia saber quem o segurava por trás.
125
—Minha princesa Sammy. —Ele adivinhou, afastando minhas mãos e voltando-se para mim com um sorriso. —Você está lindo. —Eu disse, tomando espaço para ajeitar sua gravata. —Esses sapatos estão me matando. —Não seja manhoso. —Olha só para você. —Ele brincou, pegando minha mão quando começamos a andar. —Linda e confortável, ainda que esteja com esses saltos enormes. —Percebeu que estou quase do seu tamanho? —Não seja boba. Você ainda tem que crescer muito. O clima passou de descontraído para pesado quando nos aproximamos do salão. A música estava alta, a conversa animada e a risada jovem inundavam o lugar. Eu sabia que ele estava com medo, e só tinha vindo por minha causa. —Droga de sapato. —Ele tentou, ciente de que eu sabia que não era esse o motivo de seu descontentamento.
126
Abrimos caminho entre a multidão. Fui obrigada a parar diversas vezes para conversar com conhecidos. Eu sentia a impaciência de Jon ao meu lado. Procuramos um lugar afastado, e encontramos algumas cadeiras encostadas na parede. Estávamos longe das caixas de som, portanto a música chegava baixinha aos nossos ouvidos. —Seus amigos agem como se eu não existisse. —Sinto muito. —Eu disse, na falta de palavras. Ele estava certo, e eu não tinha como retrucar. —Deixa pra lá. A noite é sua. —Nossa. —Ele sorriu, com condescêcia. —O que quer fazer? —Vai dançar comigo? —Perguntei, de brincadeira. Nem sei se ele sabia dançar, mas obviamente nunca aceitaria fazê-lo na frente de tanta gente. Ele riu, em vez de responder. —Eu também só quero ficar aqui. —Eu declarei.
127
Porque estar com ele era tudo o que eu precisava. Alice olhou em nossa direção algumas vezes, e quando nossos olhos se encontraram, ela sorriu e acenou. Estava linda naquele vestido, acompanhada de Billy, um garoto baixinho com cara de enfezado. Alice podia ter muitas qualidades, mas a escolha de parceiros para o baile não era o seu forte. Ainda que, apesar de feio, e sabe-se lá por qual motivo, Billy fazia parte da turma dos garotos mais populares da escola. —Heitor vai vir? —Perguntei. —Não. —Ele riu. —Não encontrou alguém que quisesse acompanhá-lo. —Coitado. Eu percebia, e sei que ele também, que algumas pessoas olhavam para nós, com curiosidade, com empatia. Sei que não conseguiam enxergar o que eu via nele, mas isso porque eram criaturas superficiais,
128
cegas de espírito. Jon notou que eu encarava com ódio um dos transeuntes que tinha passado por nós, um garoto bem mais velho, com cabelo comprido e calçando um sapato barulhento. —Isso é ridículo. —Esbravejei. —Eles estão sempre apoiados em estereótipos. Não sou como essas meninas. Nunca vou ser. Jon sorriu para mim. —Eu sei que não. Você é a minha Sammy. Estava certo. Para sempre eu seria sua Sammy. Á certa hora, levantei para ir ao banheiro. Já fora das vistas de Jon, Nathan me alcançou no caminho. Me pegou de surpresa, puxando meu braço com delicadeza. —Boa noite, Sam. —Olá. —Eu queria dar o fora, odiaria que Jon nos visse conversando.
129
—Faz tempo que não nos falamos. O que tem feito ultimamente? —Nada
de
interessante.
—Me
afastei
alguns
centímetros, pronta para sair. —Ainda tirando fotos para as revistas? —Sim. —Não vi mais nenhuma. —Que pena. Ele arqueou uma sombracelha. —Algum problema? —Só estou com um pouco de pressa. —Ah desculpe. —Exibiu um sorriso amarelo. Senti sua raiva disfarçada. —Está com seu namorado, não é? —Sim. —Bom, foi um prazer revê-la. —Me deu um beijo no rosto. Escapei para o banheiro rapidamente, e procurei por ele quando saí de lá. Não o encontrei. Á
130
essa altura, meu humor para festa já havia terminado, e eu só desejava dar o fora. Voltei para nosso lugarzinho. Joguei as palavras seguintes. —Vamos lá para fora. Eu estava com vontade de chorar; Por que a humanidade tem que ser tão supérflua? E confesso que fiquei chateada com Jon, mesmo que não admitisse. Por que ele tinha que ser tão diferente, tão anti social? Por que tinha que usar maquiagem, e não se vestia como os meninos de sua idade? Ele não perguntou o que tinha acontecido. Ao invés disso, me abraçou, enquanto eu enterrava o rosto nas mãos e chorava. Encostamos em um carro, num ponto um pouco distante do baile. Ainda éramos capazes de ouvir a música do DJ. Pensei em deixar o grupo de dança da escola. Pensei até em mudar de escola. Senti vontade de
131
abandonar tudo o que conquistei. Até mesmo minha pequena carreira de modelo. Tudo que eu tinha, tudo que eu era, apenas me afastava de Jon. Ficamos
naquela
posição
por
vinte
minutos. —Quer entrar? —Ele perguntou, quando eu me acalmei e o silêncio reinou entre nós. —Não está com frio? Eu assenti e limpei o rosto, sabendo que os outros perceberiam que eu tinha chorado, e haveria rumores. Pela primeira vez, não me importei com isso. Voltamos ao salão. Não estava mais divertido, e eu nem sentia vontade de dançar. Perdi a noção de quantas taças de ponche eu tomei, mesmo sabendo que algum idiota sempre batizava as bebidas em festas escolares. Comecei a ficar mais alegre, e de repente não me importava aquela mágoa da sociedade. Descontraía, eu testei a paciência de Jon.
132
—Vamos dançar, por favor! —Eu repetia sem parar, puxando o artigo “o” da palavra por favor com capricho. Ele fazia que não, e pedia para que eu parasse de fazer escândalo. Já não sabia onde tinha parado meus sapatos quando Jon disse que tínhamos que ir para casa. —Procure para mim, meu príncipe encantado, sim? Quando ele finalmente os encontrou, de baixo de uma mesa, passava da meia noite. Ele praticamente me carregou até minha casa. —O que acha que seu pai fazer se vir você desse jeito? Ele perguntou. Estávamos na frente de casa, eu apoiei uma mão na grade, e outra em seu ombro. Um degrau acima dele, eu ficava mais alta. Dei uma risada extravagante. —Vai me matar, é claro! Mas não importa, você é muito cavalheiro. Sabia disso? Muito cavalheiro! —Ah é?
133
—Sim, sim, sim. Achei que fosse tropeçar, mas tinha sido apenas um reflexo falso. Ele me segurou pela cintura, de impulso, e ficamos cara a cara, muito próximos. Dei um largo sorriso. —Você é tão lindo, Jon. —Você está querendo me agradar. —Não estou. Você é maravilhoso, em todos os sentidos. E muito mais. Eu poderia ter voltado á minha antiga posição, mas continuamos daquele jeito. Eu literalmente pendurada nele, meus pés quase pendendo dos degrauzinhos que levavam á minha varanda. —E o que mais? —Ele provocou, com um ligeiro sorriso cheio de malícia. —Bom... —Achei incrível o sabor das palavras quando se puxavam as vogais. Dei risada. —Você é inteligente e legal. E sexy.
134
Ele riu. Soltei outra gargalhada. —E agora fica todo sorridente! —Então me diga, Sammy. Já se apaixonou por alguém? —Hum hum. —Eu fiz, observando-o por um instante. —Estou apaixonada. —Será que eu posso saber por quem? —Não vou contar! —Só me dá uma pista. —Ele olhou ao redor. Não havia ninguém na rua. —Eu conheço? —Sim, muito bem. Ele fez um ar pensativo. Dei risada. —Muito bem, mesmo! —Está na nossa classe? —Você está chegando perto. —Com que letra começa o nome dele? Não resisti e soltei uma gargalhada. —A maioria das pessoas o conhece como Jon.
135
—Que coincidência! Estou apaixonado por uma garota que todos conhecem por Sam. —Eu sorri e esperei que ele continuasse. —Eu conheço ela por Sammy. Juro que não ia fazer nada, Mas antes que eu pudesse me controlar, o puxei e beijei. Não sei quanto tempo durou meu beijo desajeitado de bêbada, mas meu pai surgiu na porta justamente quando finalmente o soltei. —Entre. —Ele disse, obviamente nervoso. —Agora. Jon tirou a mão de mim, e foi sorte eu estar dividindo meu peso com a grade da varanda também. Murmurou
um
adeus
rápido
e
se
afastou
imediatamente. Meu pai me impeliu até o quarto. Minha mãe ficou parada ao seu lado, encolhendo-se sob o roupão. Deitei na cama, imaginando que aquele tinha sido o primeiro beijo de Jon. Sorri, e eles nem sequer perguntaram do que eu sorria.
136
—O que aquele garoto estava fazendo com você? —Meu pai perguntou. Dei uma longa risada. —A pergunta é o que eu estava fazendo com ele.
—E qual foi a sua sentença? —Jon perguntou, depois que eu contei de minha pequena discussão com meu pai na noite anterior. Estávamos sentados em nosso esconderijo, e dessa vez fazia frio. Muito frio. Era inverno na Califórnia. Mascávamos chicletes ruidosamente. —Mesada cortada. —Declarei, dando de ombros. O cheiro de pão quente que saía da cozinha da padaria despertava minha fome. A padaria do sr. Georges dava as costas para o beco. —E estou proibida de sair de casa. —É impressão minha ou você está aqui?
137
—Estou. —Dei risada. —Meu pai está trabalhando, e minha mãe nem vai notar minha falta. Eles estão ocupados demais para me educar. Ele ficou em silêncio por um instante. Mesmo os melhores amigos ficam sem palavras de consolo de vez em quando. Eu resolvi arriscar as palavras que ensaiei durante a manhã inteira. —Posso te fazer uma pergunta? —Sempre pode dizer o que quiser. —Ele brincou, mexendo no meu cabelo. —Já esteve apaixonado? Ele mudou de posição levemente. Era exatamente a reação que eu esperava. —Por que a pergunta? —Deu uma leva estremecida, e me abraçou. —Nossa, que frio! —Estou curiosa. —Dei de ombros. —Acho que já estive, sim.
138
—Ah... —Fiz uma pausa. Tinha começado a ventar. Fiquei com medo de que ele pegasse um resfriado. Ele começou a falar, tão direto que me deixou sem resposta por um segundo. —Você se lembra do que aconteceu ontem? —Sim. —Respondi, timidamente. —Eu sinto muito. —Ele passou a fitar os próprios sapatos. —Sente? —Aventurei. Deu uma risada nervosa. —Não tanto assim... —Que bom. Por que eu não sinto muito. —É... Nem eu. Tirei uma pedrinha do chão e comecei a brincar com ela. Eu também não tinha coragem de olhar para ele. —Na verdade, eu adorei. —Ele alegou. Silêncio.
139
—E
seu
pai?—Ele
tentou,
retomando
o
tom
descontraído. —Ficou bravo? —Já tenho quase dezesseis anos. Não tenho mais idade para ficar levando bronca de papai. —Sim, sim. Dezesseis. É praticamente adulta. —Bobo. Ele riu. Como odiei aquele silêncio! —Era verdade? —Arrisquei. —O quê? —Quando disse que gostava de uma menina ...? —Ele nada disse, tentando parecer confuso. —Sammy? Sim, eu conheço uma certa Sammy. —E está apaixonado por ela? —Não tenho certeza, mas acho que ela me disse que estava apaixonada por um certo Jonathan. —Jon. —Eu fui sincera. —Sim, ela está.
140
Rimos simultaneamente, por muito tempo. Depois o silêncio prevaleceu sobre nós. Não há nada há dizer quando não sabemos exatamente o que sentimos. Tudo o que sabíamos era que os dois sentiam o mesmo. Ele me puxou para mais perto, e dessa vez foi sua a iniciativa de me beijar. Notei que ele era bem talentoso para um iniciante. Por um momento, meu mundo girou duas vezes mais rápido, e as estrelas brilharam no meu céu há muito tempo sem vida.
Encontrei Jake na rua por acaso. Ambos estávamos indo á padaria. Ele estava acompanhado de Sarah. —Soube que está namorando. —Ele disse, enquanto ajustávamos nossos passos, e começávamos a caminhar juntos.
141
—Jon contou? —Sim. Sortudo ele, não? Sarah
sorriu
para
mim,
com
ar
de
cumplicidade. —Eu diria que a sorte é minha. —Claro que diria. —Ele riu. —E o que acham seus pais? —Meu pai ficou nervoso, mas eu nem ligo. E minha mãe se importa menos ainda. Entramos na padaria. Ele fez seu pedido no balcão. —Eu sempre soube. —Ele suspirou, brincalhão. —Soube, é? —Sim, que vocês se amavam. —Como poderia saber? Nem eu mesma sabia! —Crianças... —Ele pegou os pães da mão da atendente, agradeceu. —Até mais, cunhada. Fiquei imaginando até que ponto Jake teria razão. Caminhei a passos curtos de volta pra casa,
142
balançando o pacote da padaria. Decidi que ele estava certo. Sempre tinha amado Jon.
Naquele ano, minha carreira deu uma guinada. Pela primeira vez, acreditei que as chances de realizar meu sonho eram reais. Eu
tirei
minha
primeira
foto
para
a
publicidade de uma empresa de brinquedos quando tinha sete anos, e desde então, entendi que aquele era meu destino. A imagem da modelo famosa, dando autógrafos e sendo reconhecida por adultos e crianças na rua passou a povoar os meus sonhos, e para mim, eu já era uma modelo. Meus pais sempre me encorajaram a esse respeito, embora eu tenha sido apenas a esse respeito em tudo o que fiz e quis fazer. Até hoje eles são assim. Mesmo quando tive meu primeiro filho, eles não
143
pareceram se importar. Aliás, só vieram visitá-lo em Chicago quando ele estava próximo de completar dois anos de idade. Apesar disso, sei que não teria sido possível sem a ajuda e apoio deles. Eu chegava da escola, e ia direto para uma sessão de fotos, e muitas vezes, nem tinha tempo para almoçar. O que, diga-se de passagem, já tinha deixado de significar um problema, eu tentava comer o menos possível para manter a forma. Era bobagem, agora reconheço, pois eu não tinha tendências a engordar, tinha sido magra durante toda minha vida, e a família de meus pais não possuíam essas tendências também. Mas tudo estava dando tão certo, que fiquei com medo de estragar. Eu chegava tarde, á noite, muitas vezes. De vez em quando conseguia fazer um trabalho escolar, ou a lição de casa, mas outras vezes o cansaço era maior, e
144
eu ia direto para a cama. Foi um esforço enorme ser aprovada naquele ano. Jon reclamava que eu não tinha tempo para ele. E não havia justificativa, porque era verdade. Por mais que eu me esforçasse, era verdade. Mas ele também andava muito ocupado com sua banda, que agora estava completa e não mais fazia covers.
O
Loveartist
tinha
agora
suas
próprias
composições, o que me deixava orgulhosa. De alguma forma, eu sabia. Tinha certeza de que, como eu, ele também conseguiria. Nosso relacionamento ia bem. O mais engraçado é que quando começamos a namorar, não mudou muitas coisas entre nós. Aliás, olhando agora, nada mudou. Continuamos a ser aquelas crianças apaixonadas, mas agora declarávamos isso a nós mesmos, e um ao outro. E tínhamos o hábito de nos beijar.
145
Em 1997, Jon já tinha perdido cinquenta por cento de sua fobia social, e tinha mais alguns amigos. Seus parceiros de banda, Max e Gerald, além de Heitor, é claro. Max era o mais engraçado da banda, estava sempre de bom humor; Gerald, eu acho, era um cérebro incrível escondido atrás de óculos de arames grossos. E estava apaixonado por mim. Eu sempre soube, pelos seus olhares e pela forma cheia de timidez que se dirigia a mim. Não sei se Jon sabia, ou se descobriu mais tarde, mas não me importava mais. Tudo o que sei é que certo dia, ele não chegou mais perto de mim. Na minha opinião, ficou com medo de que Jon descobrisse. Fui a um show do Loveartist, em um bar em que a banda tinha sido aceita todas as sextas-feiras. Era um lugar amplo, cheio de jovens vestidos de preto, e de atitude displicente e indomável um pouco forçada. Era uma barulheira, mas o que eu não teria feito por Jon?
146
Eu tinha acabado de voltar de uma pequena viagem à Nova York, e estava bem cansada da longa viagem do dia anterior. Minha cabeça doía, mas dei o meu melhor para ficar ali até de madrugada. Sentei sozinha em uma mesa perto do palco, e fiquei observando Jon cantar. Já tinha visto ele nos ensaios, mas em cima do palco ele se superava. Jon não tinha pretensão de lugares maiores ou turnês mundiais. Estar ali era tudo que importava para ele, o palco e as pessoas eram apenas uma consequência. Ele cantava para ele mesmo, então não fazia diferença se as pessoas escutavam ou não. Ele desceu do palco e sentou-se ao meu lado. Já passava das duas da madrugada, e outra banda assumiu o palco. Eu não entendia muito desse tipo de música, mas sabia que a Loveartist era a melhor. —Está se divertindo? —Ele perguntou. —Vocês são muito melhores.
147
—Com certeza. Dez vezes mais. Gerald sentou-se com a gente. Em nada parecia com um “astro do Rock”, a não ser que estivesse em cima de um palco, atrás de uma bateria. Foi meu primeiro pensamento quando vi ele pela primeira vez, e depois em um ensaio. Ele pediu uma quantidade absurda de cerveja, e ficou me observando sobre a borda do copo. Fiz o possível para ignorá-lo, rezando para que Jon não percebesse. —Preciso te contar uma coisa. —Jon disse, erguendo a voz para ser ouvido através da música alta. —Aquele seu amigo, Nathan, veio falar comigo hoje. —Nathan não é meu amigo. —Achei necessário dizer. Senti que minhas mãos começavam a ficar suadas. —Ele disse para eu me afastar de você. Tomei um gole de cerveja. Ele fez o mesmo. —Não dê bola para Nathan. É um idiota.
148
—Eu disse pra ele se ligar, ele não tem a menor chance com você. E se alguém tem o direito de pedir para se afastar, sou eu. Falei de forma bem clara: Se afaste da Sam. —Está brincando. —Custei a acreditar. E até hoje, não sei se acredito. Era uma situação quase inimaginável. —Não estou. —Você não disse isso. —Disse. —Meu Deus! —Eu acho que ele não gostou muito. Mas não disse nada, não. Só concordou e saiu. Lembrei que Nathan tinha me cumprimentado de um jeito estranho na saída da escola essa manhã. Eu me inclinei sobre a mesa e dei um beijo nele. —Você é o meu herói. Ele deu risada.
149
—Faço o possível. Gerald observava. —Sabe, Jon... —Comecei, imensamente desconfortável. —O que acha de irmos lá para fora um pouco? —O quê? —Max surgiu, de repente, completamente embriagado. Não pude deixar de rir de sua repentina e absurda intromissão. —Vão nos deixar? —Vamos, bêbados malucos. —Jon riu também, pegando na minha mão para sair. —E nem vai tomar cerveja, Jon? —Já tomei. —Fracote. Só aguenta uma lata. —Um copo, imbecil. —Jon brincou, empurrando-o e abrindo passagem. —Está vendo alguma lata na mesa? —Está vendo alguma lata na mesa?—Max remedou, com uma
voz
engraçada
e
ridícula,
enquanto
nos
afastávamos. —“Vamos lá, Jonny.Vamos dar uns beijinhos lá fora”. “Claro, minha Sammy. Você é tão linda!”
150
Vi Heitor, do outro lado do bar, conversando com uma menina de cabelo tingido, metade de roxo, metade verde limão. Ele acenou para nós, e deu uma piscadela para Jon. Ganhei essa. Era o que ele queria dizer. Perguntei-me se Jon não queria ser como ele, solteiro. Poderia ficar com muitas daquelas garotas, e sei que elas dariam bola para ele. Percebia a forma que olhavam para ele no palco. Aquele era o seu mundo, o lugar onde ele era aceito. Ali, ele conseguia ser simplesmente Jon.Fui invadida por um sentimento de tristeza repentino. Éramos tão diferentes! Quando deixamos o salão, eu repensei. Éramos
diferentes
em
quase
tudo,
mas
nossas
diferenças se encaixavam tão bem que eu sabia que nosso amor seria para sempre. Pelo menos enquanto durasse. Caminhamos de volta para casa, e devo dizer que era um longo caminho a pé. De qualquer
151
forma, era bem mais seguro do que voltar com Max e o carro de seu pai, pelo menos naquela noite. Andávamos a passos curtos, olhando para estrelas. Naquele dia fizemos promessas. Dissemos um para o outro que estaríamos ali, juntos, sempre e sempre. Rimos quando nos imaginamos velhinhos, mas ainda discutindo sobre quem era o melhor jogador de pôquer dos becos de Bakersfield. Tudo terminou no final de maio daquele ano.
Era tarde de quinta feira quando meu pai me levou á sala de Mathew, aquele que seria meu novo empresário. Sentamos em seu escritório grande, e por mais que eu tentasse, não conseguia prestar atenção ao que ele dizia, depois de pronunciadas as palavras contrato, Chicago,
152
mês que vem, e o nome de uma empresa de cosméticos muito famosa na época. Confesso que não sabia quais eram as minhas emoções naquela hora. Nunca estive tão confusa. Eu pensava em Jon, e na distância de Chicago até a Califórnia. Um mês. Talvez tenha sido até bom, mas eu não tive escolha. Não tive, porque meu pai não me perguntou se eu queria ir. Fiquei muda durante todo o trajeto até nossa casa, enquanto ele tagarelava sobre o orgulho que ele sentia por mim. Depois minha mãe, que me abraçou e até chorou de emoção. Fui falar com Jon ainda naquela noite. Foi ele que atendeu a campainha. Desabei em seus braços, e comecei a chorar. Ele me arrastou para a calçada, e sentamos ao meio fio.
153
—O que aconteceu? —Perguntou. Respirei fundo várias vezes, antes de me sentir capaz de responder. —Estou indo para Chicago o mês que vem. Ele
ficou
imóvel
por
um
instante,
absorvendo a notícia, esperou que eu parasse de chorar. —Não tem outro jeito? —Ele indagou. —Não. Passou-me
pela cabeça pedir-lhe em
casamento naquele momento. Abracei ele, e chorei mais um pouco. —Eu já devia estar preparada. Eu sabia que isso poderia acontecer. —Apertei ele com mais força. —Sinto muito, Jon. Ele assentiu. —É que a gente nunca espera por essas coisas. — Tentou, com ar de quem sabe das coisas. —Não sei se vou suportar!
154
Ele esperou mais um pouco antes de fazer a pergunta a seguir. —E o que vai acontecer? “Com nós dois?”. Tinha sido isso que ele quis dizer? Eu não sabia.
Ele me abraçou com tanta força que quase machucou. —Por que você tem que ir? —Senti que ele ia começar a chorar. Tentei
explicar
da
melhor
forma
possível, e não deixei de enfatizar que meu pai tinha tomado a decisão por mim, embora eu não tenha tanta certeza do que teria escolhido se tivesse a chance. Mas tudo o que eu sabia era que nunca mais queria que ele me soltasse do abraço.
155
—Vamos aproveitar nossos últimos dias. —Ele se restabeleceu, mais rápido do que eu. — E rezar para que você volte logo. Tentamos fingir que não era o final. Passamos as férias sentados em nosso esconderijo, relembrando fatos antigos com nostalgia, e nos lamentando de que estivesse terminando, embora não verbalizássemos tudo o que pensávamos. Não tinha importância se eu voltaria a Bakersfield ou não. Tudo o que víamos á nossa frente era a partida.
Não houve muitas palavras em nossa despedida. Era manhã de domingo, ele ainda vestia o pijama e estava descabelado quando me atendeu á porta. Eu sabia que ele tinha chorado e não dormido, porque seus olhos estavam tão inchados quantos os meus. Ele me abraçou, e sussurrou no meu ouvido que não me deixaria partir.
156
Não nos importava mais que meus pais esperavam no carro para me levar ao aeroporto. E aquele abraço pareceu durar horas. —Eu vou voltar. —Eu falei, sabendo que mentia. —Se não voltar. —Ele tentou. —Vou ter que ir buscá-la. Eu sorri tristemente, e desejei que o tempo parasse naquele momento. Ele passava a mão no meu cabelo, quando eu voltei a abraçá-lo. A buzina do carro do meu pai nos trouxe de volta ao presente, e só naquele instante eu entendi que era real. Sim, aquele era nosso último momento. Acenei adeus enquanto o carro se afastava, deixando para trás um garoto parado á porta, que chorava, longe da minha presença. Eu vou voltar. Prometi a mim mesma. Vou voltar porque não posso ver minha vida sem Jon. Não podia, mas foi assim que teve que ser.
157
Heitor Lee
Os problemas de Jon formaram os ingredientes principais para que o Loveartist conseguisse seu lugar ao sol. Ele começou a escrever nossas letras assim que Max entrou na banda. Dizia que não existe artista sem confusões emocionais, e não existe arte sem dor. Eu diria que era apenas uma de suas maluquices, mas quando conseguimos vaga toda sexta feira em uma casa de shows importante, tive que concordar. Estudamos juntos na quarta série, eu era quase seu vizinho. Era a única criança com quem ele conversava. Acho que deveria ter procurado um bom médico, a sério, ainda nessa época, mas quem sabe as coisas não melhorassem? Claro que não comentei a
158
respeito, pois eu nem sabia o que fazia um psiquiatra até então. O fato é que ele mal saía de casa, e quando o fazia era só para ir á mercearia. Dizia que as pessoas lá fora observavam. Afora isso, acho que Jon era um garoto bem normal. Mamãe dizia que ele era estranho, e que eu deveria ter cuidado quando brincava com ele. Retruquei que Jon nada tinha de diferente. O único problema era que não gostava de brincar na rua, afinal, não podia jogar futebol. Hoje, penso que ele usava sua asma como uma boa desculpa para não sair de casa. Melhorou
bastante
quando
conheceu
Sam, a loira bonita. Diziam que o pai dela era dono de uma multinacional, mas desconfio de que ele fosse apenas o domo da fábrica de látex que ficava perto da escola. Crianças gostam de inventar boatos. As crianças de Ethan Martin mais ainda.
159
Sam ia conosco á escola quase todos os dias, e não se importava de ser vista com os plebeus, justamente quando tinha tudo o que queria. Ás vezes penso em Sam, e tento desvendar o mistério.Talvez estivesse cansada de ter tudo que a vida e as possibilidades lhe ofereciam. E precisasse de menos. As
aulas
de
Educação
Física
eram
também grande problema para Jon. Os garotos diziam que ele era magricelo. Ele chorava. Os meninos riam ainda mais. Eu acho que ele fazia muito caso disso, e ele nem era tão magro assim. Os mesmos garotos também caçoavam de mim, me chamavam de gorducho, e olhos de fundo de garrafa. Eu ria com eles, devolvendo um comentário maldoso. Jon levava tudo muito a sério. Fico feliz que tenha mudado nessa parte ao longo do tempo. Mas reconheço que daquela vez os alunos pegaram pesado. Viram uma marca roxa no seu braço e
160
começaram a fazer piada. Estávamos no vestiário, aquele lugar depois da Educação Física, tão temido pelos pré adolescentes, especialmente os mais tímidos. —O que é isso, cara? —Um deles perguntou. Tinha uma toalha enrolada na cintura. —Foi mordido por alguma espécie de vampiro gay, como voce? Era a piada mais inteligente que um garoto de onze anos pode fazer, e a risada foi geral. Jon correu, e se trancou em um dos banheiros.A algazarra no vestiário da escola foi tanta, que chegou aos ouvidos da professora mais distraída que tínhamos. —Saia já daí. —Ela deu um toque na porta, com rispidez. De início, Jon não respondeu. Como ela insistiu, ele finalmente gritou, com a voz embragada. —Não quero sair; Nunca mais. Eu sei que Jon falava sério. Os alunos esperavam do lado de fora, e alguns se atreviam a
161
observar o que acontecia, com a cabeça inclinada no batente da porta aberta. Procurei pelo agressor, mas ele já tinha escapulido. Só quando a diretora apareceu, Jon foi convencido a sair, e apenas sob a ameaça de convocação dos pais. Não sei exatamente o que aconteceu depois da visita á sala de diretora. Thomas desapareceu por três dias, e houve rumores de que tinha sido suspenso. Jon também não deu as caras por duas semanas, e eu suspeitei que algo grave tivesse acontecido. Tentei visitá-lo em casa, mas sua mãe dizia que estava doente e não podia sair para brincar. Ele reapareceu com um braço quebrado. Comecei a ouvir falar que Jon se machucava sozinho. Sinto um ódio corrosivo toda vez que penso nisso. Poderiam os adultos da época serem tão cegos? Claro, a viúva Sophia e o mecânico que adotara a família Jordison não seria capaz de machucar uma criança.
162
Principalmente quando tinha aquela fala mansa, e comparecia á missa todos os domingos. Tudo o que eu sabia na época era o que ouvia falar, e como as crianças inventam muito, não posso afirmar que era verdade. Mas ouvi dizer que Jon foi encaminhado a um psicólogo, conveniado da escola. Se realmente foi, não adiantou absolutamente nada.
Sam não ficava conosco todos os dias. Ás vezes ela faltava na escola porque tinha uma sessão de fotos ou qualquer coisa do tipo. Não me admira que ela tenha conseguido o que conseguiu. Além de linda e talentosa, ela
sempre
foi
muito
esforçada,
ficava
até
de
madrugada colocando as lições atrasadas em dia. Nós
voltávamos
sozinhos
da
escola
naquela tarde. O dia seguinte era exame de História, e vínhamos discutindo o que teríamos que estudar.
163
—Eu não sei a quem tento enganar. —Jon disse, diminuindo os passos. —Eu sei que vou acabar não estudando, e mais uma vez, fazendo a prova na raça. — Suspirou tristemente, como se não soubesse que ia passar no teste. Estereótipos geralmente estão certos. Jon sempre ia bem nas provas. —Não ande tão rápido, Heitor. Vamos acabar chegando em casa logo. —Estou com fome. —Justifiquei. —Você tem a vida inteira para comer. Passamos por uma igreja. Ele se deteve, especulando o que havia lá dentro. Fui obrigado a parar também. —O que é? —É tão bonito. —E daí? É chato, também. Terminei o catecismo ano passado, e, acredite, não é a coisa mais divertida para se fazer nas manhãs de sábado. —Vamos entrar.
164
Ele avançou a passos largos pelos degraus da pequena igreja, antes que eu pudesse detê-lo. Lá dentro estava escuro, o cheiro de velas acesas era forte. Jon estava fascinado, pareceu a mim que nunca tinha visto uma igreja antes. —Qual é, Jon? Não tem nada de mais. Avançamos pela nave vazia. Ele parou em frente á estátua de Jesus. Era a imagem do Senhor em tamanho real, deitado em um caixão. Os olhos fechados, mas não me parecia realmente morto. Dava a impressão que estava sonhando. Jon passou a mão na imagem. Há alguns metros, uma senhora estava ajoelhada ante a imagem de Nossa Senhora, e movia os lábios sem parar. Jon fechou os olhos. Ficou parado desse jeito por alguns segundos. Depois, recomeçou a andar. —Imagina só. —Ele disse, baixinho. —Todas essas pessoas, mortas. —O quê?
165
—Essas pessoas. Morreram. Todas elas. Eu olhei ao redor, tentando ver o que ele estava enxergando. —Esses que escutam nossas orações. —Ele explicou, percebendo minha confusão. —Quase posso sentir o espírito delas nesse lugar. Dizendo que não, não podem nos ajudar. Eram mortais, como nós. “O destino está em suas mãos. Ninguém pode fazer nada por você”. É o que dizem. Balancei a cabeça em concordância. Queria ir embora. Meu estômago começava a roncar. —Está vendo aquela velha? —Ele apontou a mulher ajoelhada. Agora ela lutava com um palito de fósforo, a vela branca á sua frente esperando para ser acesa. —Um espírito do lado dela está dizendo para que ela fique em paz. Porque ele está em paz. Como uma mãe pode ficar bem com um filho morto? —Indagou, mais para si
166
mesmo, ou alguém invisível, do que para mim. — Como? “Bom saber que agora você é vidente”, pensei, mas continuei calado. —Nossa... —Ele sentou-se no último banco. Eu o acompanhei, mas não sentei. Voltou os olhos para o altar. —A morte tem tanta vida aqui! Deixei ele com o olhar pensativo por alguns instantes. Depois arrisquei, de voz baixa, com medo de romper o silêncio sagrado. Confesso que Jon começava a me assustar. —Podemos ir embora? Inicialmente,
achei
que
não
tivesse
ouvido. Ia insistir, mas ele levantou-se e tomou a direção da rua. A luz do sol pareceu clara demais para meus olhos recém adaptados pro escuro. Nossos passos continuaram lentos.
167
—É claro que era só especulação. —Ele me acalmou, tentando diminuir ainda mais o ritmo. Não permiti que fizesse isso, começando a me revoltar. Meus passos mais rápidos venceram. —Não posso saber se era o filho da velha que tinha morrido. Eu olhei para o céu. Devia ser quase três horas de tarde. —Sério, Jon. Nunca estive com tanta fome.
A partir desse dia, eu sabia onde procurá-lo quando desaparecia. Sam e eu o encontramos em outra tarde, sentado no mesmo banco da primeira vez, olhando para a frente, do mesmo jeito vago e sonhador. Entramos daquela forma hesitante com que entram os não tão cristãos assim.
168
—O que está fazendo aqui? —Sam perguntou, perplexa. Já tinha feito a primeira comunhão também, e concordava que crianças não vão para a igreja por vontade própria. —Estava rezando. —Por que veio sozinho? —Eu queria ter uma conversa a sós com Deus. Dei uma olhada para a estátua de Jesus pela qual Jon tinha ficado apaixonado. Continuava ali, intacta, sem nenhuma diferença. Há quantos anos estaria ela naquela mesma posição, daquele mesmo jeito? Seria sacrilégio trocá-la de lugar? —Por que não foi rezar ali? Apontei para a estátua. Ele deu um leve sorriso, um pouco triste. Apontou para cima, indicando o céu. —Prefiro conversar com o de verdade.
169
Uma jovem passou pela porta; Olhou para nós, eu acenei polidamente. É estranho como nos sentimos próximos das pessoas que não conhecemos se estamos dentro de uma igreja. Acho que é porque descobrimos que temos a mesma crença, e, sim, aquilo nos torna irmãos. A menina sorriu timidamente e sentou-se num dos bancos mais á frente, abaixando-se para rezar também. Sam se sentou ao lado de Jon. —O que estava pedindo a Deus? Ele deu de ombros. —O de sempre. Fiquei me perguntando o que seria o de sempre. Aquilo que todos pedimos, sem realmente prestar atenção no que falamos? “Abençoe minha família, nos dê saúde e prosperidade”. Ou o que ele pedia? A respeito de Javier, provavelmente.
170
Ficamos parados ali por algum tempo. Ele pegou na mão de Sam e levantou.
Eu tinha para Jon um bom motivo para rezar. Na minha opinião de mero espectador, eram óbvios demais os olhares de Gerald para Sam. Eu já não tinha dúvidas a respeito, mas o baterista veio até a minha casa num fim de semana. Chorava tanto que pensei que alguém de sua família tivesse morrido. —Estou apaixonado por Sam. Sua notícia velha quase me decepcionou. —Não me diga. Gerald balançou a cabeça, em efusiva afirmativa. —Tenho certeza de que estou. —E percebeu isso de repente, é? —Não. Mas fui obrigado a admitir a mim mesmo uma hora atrás.
171
—Certo. Isso não é nada estranho. —O que eu faço, Heitor? Puxei ele pelo braço, o impelindo a sair da minha casa. Fomos parar no meio da rua; ele com os olhos marejados, esperando que eu tivesse a chave de seu enigma. Eu batia os dedos nervosamente na perna, com a mão enfiada no bolso. Homens não devem brigar por mulheres. Gostaria de saber até onde isso afetava o Loveartist. —O que eu posso fazer? —Imitei sua pergunta. Parecia que estávamos fazendo uma encenação. —Você sabe que ela gosta do Jon. —Gosta? —Não finja surpresa, é claro que gosta! Dei um tapa no braço dele. —Deixe de ser imbecil, Gerald. Escute bem, você tem que esquecer essa garota! —Não posso. Se eu mandasse no meu coração, já teria...
172
Interrompi sua frase com um novo golpe. Uma tentativa de trazê-lo de volta á realidade. —Não me importa, você tem que esquecê-la, porque vai ser melhor para todos nós, seu dramático. —Acho que você não pode me ajudar. —Ele virou as costas, obviamente cheio de rancor. —Não, não posso. —Gritei, enquanto ele se afastava. — Eu não sou nenhuma droga de conselheiro amoroso.
Passei pela porta estreita da garagem no momento exato que o corpo de Gerald atingiu o chão. Tapava a boca com a mão, e seus olhos estavam cheios de lágrimas. —Santo Deus! —Exclamei, antes de correr ao seu socorro. Jon esfregava os dedos da mão. Tinha sido um soco só. O suficiente para derrubar o magricelo Gerald de uma vez. Ajudei-o a sentar-se no banquinho
173
que servia como assento para ele quando tocava bateria. Ele começou a chorar, antes de se virar para Jon. —Isso
não
era
necessário.
—Ele
disse,
a
voz
entrecortada. Percebi um sorriso. Tenho certeza que vi Jon sorrir de leve. —Você é um idiota. —Falou, ligando o microfone como se fôssemos começar a ensaiar. —Eu só queria que entendesse isso. Estendi um lenço de papel para que Gerald limpasse o sangue que ainda escorria pelo seu queixo. Suas mãos tremiam. —O que foi que você fez? —Perguntei baixinho para Jon, como se Gerald, ao meu lado, não pudesse me escutar. Ele balançou a cabeça, indignado. —Só falei a verdade. —Menino burro!
174
—Sabe qual é a verdade? —Jon interferiu, apoiando-se no pedestal vazio. —Nosso amigo está apaixonado por Sammy. Dei um tapa em Gerald. —Você disse isso para ele? —Queria me desculpar! —Suas forças para chorar estavam renovadas. —Por quê? Você não fez nada de errado! Senti que Jon me lançou um olhar. —Não é minha culpa. —Se justificou novamente. Eu o sacudi pelos braços. —Se não é sua culpa, cale a boca e pare de se desculpar! Você não tinha que falar nada! —Me solte, está me machucando! —Que menino idiota... —Você sabe —Jon retomou a provável discussão que acontecera antes do soco atingir a cara de Gerald. —Que
175
Sammy não gosta de você, e jamais te daria uma chance. Sabe porquê? Olha só pra você. É um fracassado. —Deixa disso, Jon. —Eu me intrometi. —Está ficando ridículo. —Ah, você acha, traidor? —Ele começava a alterar o tom de voz. —Você sabia de tudo, não é? Levantei do sofá para encará-lo melhor. —Eu sabia do quê? Não há nada para saber. Ele deu um passo em minha direção. Nunca tinha visto ele nervoso, realmente. É verdade que ele estava sempre revoltado, mas nunca tão nervoso. De qualquer maneira, se ele quisesse me bater, eu estaria pronto para recebê-lo. —Você nem namora Sammy! —Esbravejei. —Namora? Não houve resposta. Ele olhou ao redor como se procurasse alguma coisa. Eu insisti. —Namora Sammy, Jon? Está nervoso desse jeito, como se a possuísse. Como sabe que ela não poderia se
176
apaixonar por Gerald, mas por você? Diga-me onde você é melhor do que ele. Vamos, me diga! Talvez eu tenha falado demais. Talvez eu devesse ter deixado quieto, não comprado uma briga que não era minha. Se eu aparecesse com um olho roxo em casa, meus pais fariam perguntas. Esperava que eles não ouvissem a discussão que acontecia lá em baixo. Parei para tentar ouvir algum ruído que viesse da porta. —Dane-se você, Heitor. —Ele quase gritou, cerrando os punhos numa tentativa de autocontrole. —Isso nada tem a ver com você. —Você o chamou de fracassado. —Olhei para Gerald, acompanhando a discussão com os olhos ansiosos. Ainda tremia. Por que é que ele tinha que ter conversado com Jon? O que diabos se passara pela cabeça dele? —O que é você então? Dê uma olhada na sua vida, Jon. Onde foi que obteve sucesso até hoje? —Á essa altura eu já tinha me arrependido, mas era tarde
177
para parar. Gostaria que Gerald se levantasse, e dissesse alguma coisa. “Qualquer coisa”, implorei mentalmente. “Desvie a atenção do Jon de mim”. Por um motivo que eu desconhecia, era impossível parar por ali. —Acho que deveria olhar para você antes de encher o Gerald de porrada. Ele avançou tão rapidamente que meu primeiro impulso foi o de defesa. Mas ele não vinha em minha direção. Deu mais um soco em Gerald, dessa vez o acertou na orelha. Eu pulei em cima, mas não a tempo de impedi-lo. —Vou te matar! —Gritou. —Vou te matar enquanto você estiver dormindo! Gerald levantou, derrubando o banquinho almofadado no chão. Correu escadas acima, com os braços se agitando. Achei que Jon fosse segui-lo, mas ele ficou imóvel, fitando o chão.
178
—Contente? —Indaguei, deixando-me cair sentado do outro lado da garagem, arfando de cansaço. Ele balançou a cabeça repetidas vezes. —Droga, droga, droga! Como foi me deixar fazer isso? Perguntei-me se ele estava realmente falando comigo. —Qual é, Jon? Está ficando maluco? —Maluco, eu? —Ele finalmente olhou para mim, e achei que ele fosse chorar. —Você não deveria ter deixado eu bater nele! Suspirei alto. Que se danasse Jon e sua loucura. Aquilo estava ficando estranho demais para mim. —Pega as suas coisas, e vai embora. Acho que não vai dar para ensaiar hoje. —Ele parecia confuso. Ironizei: — Que acha? —Não. —Ele respondeu, com simplicidade.
179
Balancei a cabeça em desaprovação. Resolvi não perder meu tempo com ele. —Amanhã nos vemos na escola. —Ele disse, antes de começar a sair. Fiquei com medo que fosse procurar Gerald. Considerei se devia impedi-lo. Mas nada fiz. Gerald que se danasse. Pelo menos tinha aprendido uma lição. Não se pode ser sincero o tempo todo, ou você pode acabar perdendo um dente. Max chegou meia hora depois de Jon ter saído. Contei para ele o acontecido. Ele deu risada enquanto afinava a guitarra vermelha que tinha ganhado do pai como presente de aniversário. Nada tinha a ver com a guitarra de Jimmy Hendrix, mas serviu para fazer sua felicidade completa nos anos que estavam por vir. —O que acha? —Eu sentei no chão, mais uma vez me perguntando como faria par comprar cadeiras para pôr na garagem.
180
—Jon deve estar usando drogas.
Sammy mudou-se para Chicago uma semana depois do acontecido. Acho que nunca ficou sabendo sobre Gerald. A idéia inicial do meu estúpido amigo de se declarar desapareceu no momento que viu que sua boca estava inchada, e sua orelha doía. No dia seguinte á briga, fomos ensaiar na minha garagem. Parecia que nada tinha acontecido na tarde anterior. Exceto pelos olhares vacilantes de Gerald na direção de Jon. Isso me deu medo, fiquei aguardando uma explosão que não aconteceu.
181
A justiça foi rápida a favor de Gerald, dias depois de Sam ter partido. Estávamos no corredor da escola, antes do início da aula de Matemática. Discutíamos um novo projeto de música, uma letra que ainda precisava de arranjos. Nossa maior dúvida era qual a parte que nos serviria de refrão. —Bom dia, Alice Cooper. Dois garotos estavam com Nathan. Acho que Jon se perguntou se Nathan se dirigia realmente a ele. Deve ter entendido subitamente o que aconteceria dali para a frente. Tentou se esquivar, mas um dos garotos o segurou. —Aonde vai, amigo? —O que tem aí? —Nathan tirou o papel da mão de Jon. —Devolve. —Jon pediu, hesitante. O outro garoto ainda tinha a mão pesando em seu ombro.
182
—Escuta só isso, Jeff. —Nathan pigarreou. Estendeu a folha á sua frente. —“Minha vida foi só uma série de situações, tudo que eu pude suportar, todos os muros. Eles caíram em cima de mim. Fiz o que tinha que fazer. Por favor, deixa, não me deixa morrer”. —Deu uma risadinha. —O que diabos é isso? —Por favor, me devolve. —Jon murmurou, debilmente. —Viu, só, Martin? —Ele se dirigiu ao menino que apertava o braço de Jon, esboçando um sorriso. —O garoto é um poeta! Eles riram. Eu permaneci calado, desejando que Nathan devolvesse a letra de música. —Diga-me uma coisa, Jordison... Ouvi dizer que você é sadomasoquista. É verdade? Jon tentou recuar, mas já estava contra a parede. Eu consegui escapar do semi círculo que os garotos tinham formado. —Pode... Pode me devolver o papel... Por favor?
183
—Diga, seu imbecil! —Ele empurrou Jon pelo ombro, quase derrubando ele no chão. —Não sei... Eu... —Tudo bem, cada um se diverte do seu jeito. Não é? Como Jon não respondeu, Nathan deu um tapa no braço dele. —Acho que sim. Ele limpou a mão que tinha tocado em Jon com uma repugnância forçada. —Talvez seja uma prática religiosa. —Tentou Jeff. —Ele deve fazer parte de uma seita, quem sabe. Como é que chamam aquilo? Autoflagelação. Todos riram. Recuei um passo. Decidi que se tocassem em Jon novamente, ia tentar comunicar alguém da Direção. —Está certo. —Nathan concluiu, finalmente. —Vamos nos ver na hora do almoço.
184
Eles se afastaram. Eu me reaproximei, hesitante. —Está bem? Jon assentiu, sem tirar os olhos de Nathan, que se afastava, bem á frente no corredor cheio de alunos. —Palhaço... —Sinto muito, Jon. Muito mesmo. Ambos sabíamos que aquele era só o começo.
Apesar do que ele que ele enfrentava na escola, a Loveartist ia incrivelmente bem, além das nossas espectativas. Era mais uma noite de domingo. Não tínhamos subido no palco ainda quando a vi entrar no bar. Procurei Jon com os olhos. Ele estava no outro
185
canto do salão, conversando com Max. Quis gritar para que ele largasse a garrafa de vinho, mas já era tarde demais. Sua mãe já tinha visto. Cheguei nele primeiro do que ela. —Sua mãe está aqui. —Quem? —Ele olhou ao redor, como se não acreditasse. Soltou um palavrão quando a viu aproximar-se. Largou a garrafa de vinho no chão, quase a espatifando. —O que diabos está fazendo nessa droga? —Ela gritou sobre a música alta, esforçando-se para ser ouvida da forma exata que pretendia. Irritadíssima. Como sempre fazia, Jon se pôs a gaguejar palavras que não respondiam absolutamente nada. —É só um show. — Eu entrevi, meio débil. Torci para que ela soubesse do Loveartist. Ela não prestou atenção em mim. Lançou mais um olhar ao redor, para o bar. Devia estar pensando no futuro que teria seu filho em um lugar
186
daqueles. Meu Deus, ele tinha começado com um inofensivo violão. —Vamos pra casa. —Ela pegou o braço de Jon e começou a puxá-lo em direção da porta. Vi quando Jon lançou um olhar cheio de ódio para Gerald. Desconfiei, mas duvidei de que Jon estivesse certo. Gerald era idiota demais para pensar nisso. E poderia colocar em risco a nossa banda, o que exatamente aconteceu. —Ele não pode sair agora. —Max interveio, confiante. Sem dúvida, sua coragem de encarar a sra. Thompson era três vezes maior do que a minha. Mas ela o ignorou também. Max os seguiu até a rua. Talvez para sentir que eu estava fazendo algo de útil, fui atrás também. Paramos na calçada. Ela ainda apertava o braço de Jon. —Não quero meu filho metido com vocês, entendeu bem?
187
—Nós temos um show para fazer. —Max puxou o outro braço de Jon, enquanto eu soltava uma expressão de espanto. —E vamos fazê-lo. —Quanta audácia! —Você é louca, sabia? Completamente louca. Jon estava em estado de choque. Não fez nenhum esforço para libertar qualquer um dos braços. Max estava realmente nervoso. A essa altura eu já sabia que ele não se referia ao show que corríamos o risco de perder. A raiva em sua voz era tanta que só podia ser de motivo
maior.
Todos
sabíamos
de
Javier.
Max
continuou, cuspindo as palavras. —Nunca deu a mínima pro Jon, não devia se incomodar em bancar a boa mãe na frente de todo mundo. Jon soltou finalmente o braço que Max puxava. Acho que rezava para que o amigo parasse de falar.
188
—Aliás, devia olhar para você mesma, e repensar alguns conceitos. Pensei em dizer para que Max parasse, mas não ousei interferir. Ele estava fazendo o que eu deveria ter feito há muito tempo. O dono do bar se postou atrás de nós, carrancudo. Se havia algo que detestava, eram brigas em seu estabelecimento. Tinha sido claro quanto a isso no primeiro show que o Loveartist fizera naquela casa. Max não se importou com sua presença. —Uma mulher que apanha do marido todas as noites não deve ter o menor amor por si própria. E permitir que batam em seu filho então, nem se fala. Sra. Thomsom levantou a mão como se fosse lhe dar um tapa. Não o fez. Cerrou o punho, deixou o braço despencar junto ao corpo. Eu estava apreensivo pela presença de Arvizu atrás de mim. A música lá dentro tinha parado. Era nossa vez.
189
Ela
girou
nos
calcanhares
e
andou
depressa, puxando Jon consigo. Olhei desolado para Max em busca de uma resposta. —Mulherzinha medíocre. —Ele disse, antes de tentar passar pela porta do bar. Arvizu, com sua barriga grande e seus furiosos olhos redondos o deteve. —Peguem suas coisas e dêem o fora. Max assentiu lentamente, depois de raciocinar por um segundo. Obedeceu, e começamos a guardar os equipamentos em silêncio. As pessoas nos olhavam com curiosidade e até um pouco de raiva. Onde está a música? Algum cliente do bar parou Max, no caminho da porta, para perguntar o que tinha acontecido. Eu fiz minha melhor cara de piedade para Arvizu.
190
—Será que não pode nos perdoar, só dessa vez? Prometo que nunca mais vai acontecer. —Desapareça. —Ele deu as costas, me deixando sem direito de defesa. Quanto exagero! A briga nem tinha sido tão feia assim. Lembrei de Gerald e fui procurá-lo. Estava escondido no banheiro. Obviamente tinha chorado. —O que foi que aconteceu? —Perguntou. —Fomos despedidos. —Tentei não soar acusador. —Não acredito! —Pois é, a mais pura verdade. E vai saber para onde aquela velha levou Jon. Só espero que não afogue ele se passarem perto do rio. Suspirei
enquanto
observava
sua
expressão de dor. Disse que era melhor irmos mesmo, antes que Arvizu se invocasse ainda mais. —Será que não poderemos voltar nunca mais? —Ele perguntou enquanto abríamos caminho pela multidão.
191
Balancei a cabeça em negativa. —Nem como clientes.
Não sei o que aconteceu com Jon naquela noite. Não sei se a doida de sua mãe bateu nele, ou se contou o acontecido a Javier. Tudo que Jon comentou no dia seguinte foi que precisaria ser mais cuidadoso da próxima vez. E estava chateado com nosso desemprego repentino. Modéstia á parte, nós éramos talentosos, e não ficamos muito tempo parados. Tocávamos bem, compúnhamos nossas próprias músicas, e teríamos dado certo se Jon não tivesse colocado tudo a perder, poucos anos depois. Conseguimos shows ás sextas e sábados num bar bem maior do que o primeiro. Seu ápice ali era aos domingos, mas outra banda,
192
provavelmente melhor do que a nossa, assumia o palco. Claro que ficamos contentes com o que tínhamos. O proprietário descendente de asiático, com piercings em toda parte do corpo, nos pagava um bom cachê por noite, e permitia que comêssemos de graça durante nosso expediente. Chegamos a procurar duas gravadoras. As duas
ficaram
de
retornar
uma
ligação.
Nunca
retornaram. Infelizmente, no meio musical é preciso ter mais do que talento. É necessário aparência e sorte. No nosso caso, a beleza é quase indiferente, o que nos trazia uma grande vantagem, porque não era o que nos sobejava exatamente. Era sorte o que nos faltava. No auge dos nossos quinze anos, o que tínhamos eram sonhos promissores, e isso constituía tudo o que precisávamos por enquanto. O Anjos Estáticos virou nossa segunda casa, e Robin um irmão mais velho para nós. Lá nós nos
193
divertíamos e alimentávamos nossas esperanças. Nunca houve nada melhor do que a atenção e o carinho da platéia do Anjos Estáticos. Á parte de tudo que ia bem para a Loveartist, Jon estava sempre assombrado pelos seus problemas pessoais. Ainda sentia falta de Sam. Mas acho que Javier já tinha deixado de atormentá-lo diariamente,
e
isso
significava
um
progresso
significativo. Ele parecia mais saudável, brincava mais, permitia-se sair com a gente de vez em quando fora de nossos horários de trabalho. Quase todos os finais de semana ficávamos até tarde no Anjos Estáticos, depois do expediente. Max e eu bebíamos bastante, e geralmente o trabalho de nos carregar até nossas casas ficava por conta dele e de Gerald. Jon ficou bêbado apenas uma vez naquela época. Foi adquirir esse vício depois de adulto, que eu também passei a conhecer tão bem. Mas ele ainda não
194
estava acostumado, e acredito que não tenha sido uma boa experiência para ele. Paramos em um beco escuro, depois que perdemos o resto do grupo de vista, e ficamos agarrados ás nossas garrafas vazias. Ele chorou tanto que achei que ia desintegrar. Ficou falando de Sam. Durante horas. Voltamos para casa pela manhã; Ele apanhou da mãe. Eu também teria apanhado se a minha mãe não estivesse acostumada com minhas bebedeiras. Havia também os garotos da escola. Nathan aparecia quase todos os dias, nos corredores ou na hora do almoço. Classicamente, como nos dramas americanos adolescentes, eles derrubavam livros e cadernos, e observavam enquanto recolhíamos do chão, humildes e calados. —Vi uma coisa no jornal e lembrei de você. Jon baixou a cabeça, obrigado a esperar que ele continuasse. Nathan tirou do bolso o recorte e
195
mostrou para os outros meninos. Eles riram juntos. Ele entregou para Jon. De onde eu estava não consegui ler direito. “... se interna em clínica psiquiatra”, era a parte do título da reportagem que consegui perceber. —Bichinha louca. Jeff e Martin riram novamente. Vi quando Jon respirou fundo, tomando coragem apenas para permanecer de pé. Os garotos já estavam saindo, quando ele disse, baixinho: —Tudo isso é por causa de Sam? Nathan voltou-se para ele, entre indignado e irônico. Sorriu, e se aproximou novamente. Eu senti que minhas pernas cediam ao peso do corpo, e tive certeza de que matariam Jon. —O que disse? —Você tem raiva porque a Sam não gosta de você. —Acha mesmo, frutinha?
196
Jon tentou escapar. Nathan o agarrou pela gola da camiseta. Deu-lhe um soco no pescoço, e no impulso fez com que ele caísse. As pessoas já começavam a se aproximar, curiosas. Nathan recuou, com um sorriso. —Aprenda a conversar como gente. Jeff deu um derradeiro chute antes de partir com seu mestre. —Está bem? —Eu fiz a pergunta inútil. Ajudei ele a se erguer. Ele assentiu, respirando forte. —Deixa estar. Ele ainda vai ter o que merece. — Amassou o recorte de jornal e o largou no chão. Abrimos caminho. As pessoas observavam, dessa vez Jon tinha razão. Abaixamos a cabeça enquanto seguíamos para a sala de aula. Foi um longo dia na escola.
197
Nathan fez quase exatamente igual no dia seguinte. Tentamos entrar na aula de Biologia o mais rápido possível, mas foi inútil. Ele conseguiu nos alcançar. —Olá, Alice. —Ele riu. —Como acha que devemos começar o dia? Estava acompanhado de uma garota ruiva, tão alta quanto ele. Ela sorria. Talvez ele quisesse provar alguma coisa para ela. —Me deixa em paz. —Continuamos a andar. Ele nos deteve, quase sufocando Jon ao puxá-lo pelo colarinho. Nova multidão já começava a se juntar para ver. Nathan não soltou o pescoço de Jon até que ele ficasse quase completamente sem ar. Quando o fez, continuou segurando ele pelo braço. Olhou ao redor para os idiotas de seus amigos que riam. Virou-se para a ruiva.
198
—Será que se importaria de me emprestar um grampo de cabelo, querida? Ela desmanchou o penteado, deixando que o cabelo caísse sobre os ombros. Estendeu o objeto dourado para ele. —Ela nunca gostou de você. —Disse.—Olhe pra você. O que ela tinha era pena. Enfiou o grampo de cabelo em seu ouvido. Houve alguns gritos dos espectadores. Aproximei-me dele quando Nathan o abandonou. Tive medo que tivesse perfurado seu tímpano. Acho que as palavras dele afetaram muito mais do que a dor. Sei que Jon ficou pensando nisso por muito tempo, embora parecesse óbvio demais para mim que Nathan sentia inveja. Ninguém é tão bom assim, a ponto de se comportar como Sam fazia por pena.
199
Estamos no mundo real, Jon. Mais uma vez tive vontade de dizer.
Não participamos da formatura no colegial. Decidimos comemorar só nós, e a banda. Max levou alguns de seus amigos estranhos, todos fumadores de maconha —e eu já tinha ouvido falar que eles saqueavam casas durante a noite. Fomos ao Anjos Estáticos no domingo á noite, só por diversão, planejando ficar até de madrugada, lembrando-nos de que não iríamos acordar cedo no dia seguinte. A banda em cima do palco era formada por homens adultos, obviamente profissionais. Tocavam um metal melódico irrepreensível, uma seleção de músicas ótima. Mas não deixava de ser mais uma banda cover. —Não quero que se preocupe. —Jon começou de repente, tomando um gole da Vodka, que naquele dia
200
estava custando a nós. —Com certeza eu vou voltar em oito meses. Não participamos da formatura no colegial. Decidimos comemorar só nós, e a banda. Max levou alguns de seus amigos estranhos, todos fumadores de maconha —e eu já tinha ouvido falar que eles saqueavam casas durante a noite. Fomos ao Anjos Estáticos no domingo á noite, só por diversão, planejando ficar até de madrugada, lembrando-nos de que não iríamos acordar cedo no dia seguinte. A banda em cima do palco era formada por homens adultos, obviamente profissionais. Tocavam um metal melódico irrepreensível, uma seleção de músicas ótima. Mas não deixava de ser mais uma banda cover. —Não quero que se preocupe. —Jon começou, de repente, tomando um gole da Vodka, que naquele dia estava custando a nós. —Com certeza eu vou voltar em oito meses.
201
—Do que diabos está falando? —Tentei compreender, enxergando através da nuvem de álcool que embaçava minha visão. Eram duas da madrugada. A pior hora para se dar notícias ruins dentro de um bar. —Consegui um curso em São Francisco. Acha que vocês conseguem levar a Loveartist sem mim durante oito meses? Eu encarei ele por alguns instantes, e não tinha certeza se falava sério. —Claro que não! —Dei risada. —Podemos achar alguém para me substituir por um tempo. Temos até fevereiro para isso. —E onde é que encontraremos um bom vocalista, que aprende rápido e que seja bonito como você? —Caí na gargalhada novamente. Era a primeira vez que Jon falava a respeito. Eu achava que a banda era nosso futuro, e
202
estranhei imensamente o fato dele estar procurando por outra coisa que não fosse a música. —Talvez Robin conheça alguém. —Sugeriu. —Não podemos, Jon. Você sabe disso. —Tentei parecer sério. — Seria suicídio para a Loveartist. —É só por um tempo, eu juro. Roubei uma batatinha de sua porção. —Por que não deixa esse curso idiota para mais tarde? —Mais tarde, quando? Preciso trabalhar. Eu trabalhava desde meus treze anos de idade, e não entendia esse sua necessidade repentina de ter que estudar. Ele não poderia trabalhar em um restaurante, uma loja, qualquer lugar em que não seja necessário um diploma, até que a Loveartist conseguisse seu lugar fora dos palcos do Anjos Estáticos? Como se lesse meus pensamentos, ele disse:
203
—Não posso basear meu futuro numa coisa tão incerta como nossa banda. —Fez silêncio por um segundo, planejando as palavras a seguir. —Nós sabemos que não vai dar em nada. —Ele me observou. Eu enchia de catchup uma batatinha frita que não tinha intenção de comer. —Não sabemos? —Eu ainda apostava na Loveartist. —Sorri, tristemente. —Apostaria essa batata que daria certo. —Vai chegar uma hora que vocês também vão precisar dar o fora. Não vamos poder sobreviver com quarenta e cinco dólares por noite. Ele me olhava com expectativa, esperava uma resposta. Desviei os olhos para Gerald, na parte extrema do salão. Conversava animado com uma garota. —Veja só. —Comentei. —Acho que Gerald encontrou a groupie da noite.
204
Max tentou convencer Jon a adiar o curso, mas nossos argumentos eram muito fracos. O pior de tudo era que Jon tinha razão, e nós devíamos na verdade fazer o mesmo que ele. Aqueles oito meses demoraram a passar. Já no segundo mês, perdemos a esperança da Loveartist ficar ativa de novo. Embora não declarássemos abertamente, mas a banda tinha morrido. Ainda me lembro como senti falta dos palcos. Era como se tivessem levado uma parte de mim para muito longe.
Não
encontramos
um
vocalista,
nem
sequer
procuramos. Foi decidido que esperaríamos, torcendo para que Robin nos aceitasse de volta mais tarde, embora tenha ficado razoavelmente irritado com nossa demissão com menos de um mês de antecedência.
205
Jon me ligou uma semana depois que começou o curso. Estava empolgado, instalado numa pensão velha, e, segundo ele, cheia de goteiras, mesmo que não chovesse. —Você não acreditaria. —Ele disse. —Esse curso é o máximo, exatamente como vemos nos filmes. —Você faz alguma coisa? —Por enquanto, não fiz nada. Só teoria mesmo. Estão ensinando pra que serve cada um dos instrumentos. —Já viu algum cadáver de verdade? —Já, e eles são bem mais assustadores de perto. Juro que tive a impressão de ver uma mão se mover. —Isso acontece por causa de espasmos. Ou pelo menos é o que ouço dizer. —Como estão as coisas aí? —Na mesma, visitamos o Anjos Estáticos só a passeio. Não sei se ele estava chateado com a falta da banda, mas sei que ele pretendia voltar. Fiquei abalado
206
naquela noite. Minha esperança era de que ele não gostasse do curso, desistisse e voltasse a Bakersfield. Sete meses mais tarde ele ligou novamente. Sua voz estava completamente diferente desde a primeira ligação. Não parecia mais empolgado. Pelo contrário, soou realmente deprimido. —Não sei se vou aguentar. —Por quê? —Ele me pegou de surpresa. —É terrível, as pessoas morrem! Não só os velhos e doentes, Heitor. As pessoas morrem! —Você precisa aguentar, seu maluco. Chegou até aqui, não pode voltar agora. Só falta um mês. E você sabia exatamente onde estava se metendo. —Não morrem só por morrer, são assassinadas! Crianças! Têm crianças que vêm parar nessas mesas frias, quando deveriam estar na escola, estudando, ou brincando na rua, fazendo planos para o futuro. Não é justo.
207
—Eu sabia que você não ia conseguir. Por que não escolheu outra coisa? Tantos cursos para escolher, meu Deus! —Eu achei que seria divertido. —Pensei que ele fosse chorar, e fiquei contente por não tê-lo feito. —Então volte para casa. —Cedi. Ele não respondeu dessa vez. Disse que pensaria no assunto, e mas tentaria sobreviver nos próximos meses. Ambos sabíamos o que aconteceria se ele voltasse sem seu diploma. Javier não haveria de gostar de ver seu enteado fracassar. Jon permaneceu até os final do curso.
Notei muitas diferenças em Jon quando ele voltou de São Francisco. Não só na aparência —Ele estava muito mais magro e abatido, como se não dormisse há noites.
208
Parecia ainda mais perturbado, e até mesmo assustado. Tinha pesadelos. Dizia que vinha á mente imagens de seu passado, que ele não conseguia afastar, e sentia que era como se estivesse sonhando acordado, quando estava dormindo. Vai entender as coisas que Jon falava... Olhava por sobre os ombros com frequência. Notei seu olhar perdido diversas vezes, e estava sempre distraído. Eu gostaria de ter percebido isso naquela época, reconhecer os sintomas da doença que acabaria por matá-lo. Mas, pensando bem, o que eu poderia ter feito, se soubesse? Acho que ninguém sabe exatamente como salvar uma vida. Eu tinha vivido esses oito meses no escuro, tateando em busca de algo que pudesse tapar o buraco que a falta da música fazia. Eu nunca tinha percebido o quanto amava minha música, até perdê-la. Acho que nunca pensei nisso antes, porque era algo natural, que sempre estivera dentro de mim.
209
O único apoio que encontrei me levaria para um abismo no futuro. Acabei cedendo ás drogas, deixei a maconha para a cocaína. Era minha preferida na época, me ajudava a permanecer ligado nas noites de fim de semana, e eu conseguia curtir um pouco. Minha namorada me largou quando descobriu que eu tinha me tornado um viciado. A gente nunca sabe o que o destino nos reserva, e isso pode ser excitante ou assustador. Na época, não me importava. Eu queria me divertir, sair, ir a bares e colecionar namoradas. Por isso, não me importei muito quando Stephanie me deixou. Mas, como eu disse, o destino é misterioso. Algum tempo mais tarde, Stephanie voltaria e salvaria minha vida. Isso só aconteceria algum tempo depois de Jon viajar definitivamente para Los Angeles, onde viveria o resto de sua vida.
210
Stephanie obrigando
a
ficar
me
tirou
internado
das
drogas,
me
clínica
de
numa
recuperação. Não vou dizer que foi fácil, mas eu sei que só teria conseguido com a ajuda dela. Passei anos lutando contra o desejo, passando em frente aos bares e pensando “Apenas um golinho de cerveja”, ou “apenas uma tragadinha”. São as vozes interiores que devemos ignorar, ou vamos voltar para o abismo. Posso assegurar que venci a tentação, e consegui levar a vida que há muitos anos atrás eu teria achado muito sem graça. No final de 1999, Jon e Max falaram com Robin assim que Jon retornou de São Francisco. Negociaram a volta da Loveartist, que foi aceita com o cachê reduzido pela metade. Robin alegou ter perdido clientes por causa do nosso sumiço no bar. Poderia ser mentira, mas aquilo nos encheu de orgulho.
211
Eu estava trabalhando como Office boy na época. Trabalhava para uma imobiliária, e acho que era o melhor emprego do mundo. Passava o dia inteiro na rua, almoçava na hora que bem me aprouvesse e voltava pra casa antes que a noite caísse. Jon realmente conseguiu um emprego como assistente de um médico legista, e garanto que passou no Instituto Médico Legal não foram os melhores anos de sua vida, ainda que não cortasse as entranhas dos cadáveres como desejava inicialmente. Juntamos nossas economias e alugamos um apartamento, onde nos veríamos livres de nossas respectivas famílias, e a liberdade seria nosso maior merecimento. Não era, de fato, uma mansão. Estávamos sempre com a impressão de que o teto ia cair nas nossas cabeças. Sempre vazava água de algum lugar, os corredores estavam sempre úmidos —Por qualquer substância que não sabíamos identificar. Ali era onde
212
ficavam os garotos do nosso prédio/pensão, carregando bebidas e cigarros estranhos. Mesmo assim, o aluguel estava caro para o nosso bolso, e diversas vezes Jon teve que implorar para que a sra. Ferguson não nos despejasse. Chegamos a ficar sem eletricidade por três meses, quando tivemos que escolher entre pagar a sra. Ferguson ou a companhia de energia. Aquele noite, Jon chegou depois das dez horas. Estava tão pálido que eu tive certeza de que ia desmaiar. Afastei as roupas sujas que cobriam a minha cama e fiz com que ele sentasse. Trouxe um copo de água. —Tinha alguém... Me seguindo. —Explicou. Fui até a janela e observei. A rua estava cheia de jovens rindo e falando alto, como sempre. Uma parte da veneziana quebrou na minha mão. —Seguiram você até aqui?
213
Ele assentiu, forçando mais um gole de água. Percebi que uma atadura cobria seu punho esquerdo. —Machucaram você? —Não. —Deu pra ver quem era? —Só as sombras. —Ele respirava com dificuldade. —Sombras? Fez que sim. Tirei o copo ainda cheio da mão dele, achando que fosse despencar no chão. Pela primeira vez, me perguntei por que alguém haveria de querer segui-lo. Que eu soubesse, não tinha inimigos, e éramos pobres demais para pensar em assalto ou sequestro. —O que aconteceu aí? —Apontei o machucado. —Não foi nada. Ele levantou de repente, para olhar pela janela também. Estava agitado, como eu nunca tinha visto antes.
214
—O que aconteceu, Jon? Precisa me dizer! Começou a chorar, completamente fora de controle. Tentei o copo de água novamente, mas ele ignorou. Deixou-se cair sentado, ali mesmo, frente á janela, encostado na parede. Sentei ao seu lado. —Foi Javier? —Indaguei. Há muito que não víamos o homem, mas nada é impossível. E me parecia a única alternativa. Ele fez que não. A imagem de Nathan na escola, há mais de um ano atrás, me veio á cabeça. Nem perguntei, era inviável. Eu não sabia ao menos se o garoto ainda estava vivo. Puxei a mão dele á força. A faixa branca mal colocada sobre o pulso estava manchada de sangue. —Alguém te cortou? —Senti-me desesperar. —Não, não foi ninguém. —Ele quase gritou. —Eu não sei o que aconteceu. —Ele olhou para mim, e percebi
215
que precisava de ajuda. Estava com aquela expressão de desespero, exatamente como acordava dos pesadelos. — Por favor, não pense que sou maluco! —Não vou pensar. Me diga! Tentei demonstrar confiança, mas já achava que ele estava ficando louco. Ele disse o que eu já esperava ouvir. —Fui eu. Assenti
lentamente,
esperando
que
se
acalmasse. Deixei que chorasse mais um pouco, mas acabou por alterar-se ainda mais em alguns segundos de silêncio. —Não pense que eu tentei me matar, porque não foi isso.
Não
foi!
É
que
alguém...
Eu
estava
descontaminando uma... Sozinho. Sozinho, Heitor! —Eu gostaria que ele falasse mais devagar. Emendava uma palavra na outra, em meio aos soluços descontrolados, e eu mal conseguia compreendê-lo. —Ninguém poderia
216
ter falado comigo, porque não tinha ninguém ali. Mas eu ouvi. Era uma voz estranha, me dizia para experimentar como se sentiam os... Quando o médico... Os cortava com... Eu cortei, mas não foi a veia, viu? Era só pra saber como era o corte de navalha. Mas eu não... Não quis... Não era pra ter me machucado. —Tudo bem, Jon. Acalme-se, certo? Precisamos refazer esse curativo, em primeiro lugar. Depois pensamos nisso. Levei ele quase carregado até o banheiro minúsculo. Senti que minhas mãos começavam a tremer. Eu nunca gostei de ver sangue, e não tinha idéia de como lidar com aquela situação inédita para mim. Tirei a atadura dele, e fiz com que ele colocasse o braço embaixo da torneira. O mais estranho é que ele não parecia sentir dor.
217
—É assim que você quer ser médico? —Brinquei, na tentativa boba de descontraí-lo. —Você nem sabe fazer um curativo simples! —Não tive tempo. O dr. Perry chegou bem na hora. — Agora ele respirava com mais leveza. Finalmente tinha parado de chorar. —Ele viu? —Eu me alarmei. —Não tudo. Só viu que eu tinha me machucado. —E o que disse a ele? —A verdade. —Você disse que a voz... O que foi que disse? Ele mentalmente
recomeçou a
mim
a
mesmo.
chorar. Não
Amaldiçoei deveria
ter
perguntado isso naquela hora. —Eu só disse que tinha... Que tinha... Me machucado sem querer. Peguei a bombinha de ar e dei para ele, uma prevenção básica e meio estúpida. Vasculhei por
218
alguma coisa que servisse de curativo, mas tudo que encontrei foi uma camisa velha para servir de esparadrapo. Fui dormir naquela noite com certo receio. E se alguém realmente estivesse a persegui-lo? Nunca se sabe. Ele não dormiu aquela noite. Alguns dias depois, encontrei Max na rua por acaso, depois do meu expediente na imobiliária. Contei a ele que estava horrorizado com o que tinha acontecido enquanto seguíamos de volta para nosso bairro, vizinho ao meu local de trabalho. —E quem é que estava seguindo ele? —Não faço idéia, já não sei se havia alguém de verdade. Ele pensou por um instante. —Vamos convencê-lo a sair daquele hospital. —E como é que vou bancar o aluguel sozinho? —Jon vai acabar ficando doente.
219
—Meu Deus... —Eu gostaria de saber o que fazer. —Pense, Heitor. Não deve ser fácil. Você vê uma pessoa em um dia. Ela te cumprimenta, ou te vende alguma coisa em um mercado. Reclama do tempo ou das notícias. No dia seguinte, aparece na cama de metal do seu legista. Aguardando a necropsia. —Eu sabia desde o começo que isso não era para o Jon. —Deixa comigo, eu vou resolver. Confiei em Max. Meu maior motivo para isso era minha falta de alternativas. Jon estava tendo pesadelos todas as noites. Dificilmente eu ia dormir depois dele, ou acordava enquanto ele estivesse dormindo. Max apareceu com a solução no dia seguinte. Foi até nossa casa, dizendo que tinha um emprego para Jon em um bar. —Não é o salário que você ganha. Na verdade, é um terço dele.
220
Jon riu. —Então você quer que eu largue meu emprego, aquele pelo qual estudei oito meses, para servir bebidas e ganhar três vezes menos? Max olhou para mim, em busca de apoio. —Vai ser melhor, Jon.—Eu disse. —Você não percebe que esse seu serviço não está te fazendo bem? —Deixe disso. Agradeço sua ajuda, Max. Mas realmente não estou interessado.
Em março de 2001, Jon conheceu Francie. Era amiga de uma ex namorada minha. Nunca tinha conversado realmente com ela. Não que nossos destinos não se cruzassem, mas sempre nos odiamos mutuamente. Se tratava de uma arrogante. Não era rica, mas agia como se fosse. Se me via na rua, não me cumprimentava. Eu
221
não fazia a menor questão que ela o fizesse. Jon teve o infortúnio de se apaixonar por ela. Aconteceu
numa
festa
de
minha
ex
namorada. Devo ressaltar que Cody estava explêndida naquela
noite.
Quase
reatamos
nosso
falecido
relacionamento. Jon me acompanhou á festa porque não queria ficar sozinho em casa, e tão pouco tinha lugar para ir. Afastei-me dele assim que entramos na casa de Cody, embora ele implorasse para não deixá-lo sozinho no meio de gente que não conhecia. —Vê se consegue ser menos gay. —Respondi, antes de dar o fora. Foi então que Francie salvou Jon e o levou para a garagem, onde passaram um bom tempo. Eles começaram a namorar em algumas semanas, e quando ela passou a frequentar nossa casa, ele ficou ainda mais exigente com a limpeza doméstica.
222
Detesto
essa
garota
absolutamente,
portanto sou suspeito a falar. O fato era que Francie dominava Jon completamente, como fazia com todo resto em sua vidinha medíocre como babá dos filhos dos ricos. Dificilmente eu permanecia em casa quando ela vinha visitá-lo. Max apostava que iam se casar. E devo dizer que meu alívio foi enorme quando eles terminaram, quase três anos depois.
Foi então que Francie salvou Jon e o levou para a garagem, onde passaram um bom tempo. Eles começaram a namorar em algumas semanas, e quando ela passou a frequentar nossa casa, ele ficou ainda mais exigente com a limpeza doméstica. Detesto
essa
garota
absolutamente,
portanto sou suspeito a falar. O fato era que Francie
223
dominava Jon completamente, como fazia com todo resto em sua vidinha medíocre como babá dos filhos dos ricos. Dificilmente eu permanecia em casa quando ela vinha visitá-lo. Max apostava que iam se casar. E devo dizer
que
meu
alívio
foi enorme
quando
eles
terminaram, quase três anos depois. Francie foi ver a banda algumas vezes, e ocupava a mesinha perto do palco onde Sam costumava ficar. Na aparência, ela era muito parecida com Sam. Mas não gostava do nosso som, e não fazia qualquer esforço para fingir que estava se divertindo. Por causa dela, devo admitir que Jon começava a ficar chato. Dava o fora assim que o show terminava, porque ela queria voltar para casa, ou porque ele tinha que encontra-la na casa dela.Víamos Jon olhar para o relógio com ar apreensivo, e correr sem nos ajudar a arrumar os equipamentos, ao encontro dela, de rabinho abanando.
224
Era patético, e juro que tentei abrir os seus olhos, mas Jon podia ser muito teimoso. Talvez ele não visse as coisas do jeito que eu via. Foi nessa época que ele começou a beber.
Eram quase de horas da noite quando cheguei em casa. Lembro-me bem de ter abusado das drogas naquele dia, e minha cabeça já não se encontrava muito boa. Estava acontecendo com frequencia e eu não tinha mais noção de quando parar. Parecia que minha mente pedia cada vez mais, embora eu sentisse que meu corpo estava desfalecendo. Tinha sido um dia difícil. Andava procurando emprego, perdi minha vaga de Office boy na imobiliária
porque
tinha
chegado
muitas
vezes
atrasado, e não conseguia mais realizar meu serviço corretamente.
225
Eu ia passar direto por Jon, deitado na cama, com os olhos presos no teto. Tinha aquele olhar distante de novo. —Heitor! —Ele chamou, como se eu tivesse muito longe, sem descravar os olhos do teto. —O que é? —Perguntei, mal humorado. —Tenho um problema. —Ah, é? Por que não vai resolvê-lo com um copo de vinho? —Porque não tenho dinheiro para isso. Fui demitido. Não pude deixar de rir com ironia. Era tudo o que precisávamos, mais um desempregado na casa. A sra. Furguson não ia gostar de saber disso. —Por quê? Pelo que Jon contava, o dr. Perry tinha ele em grande estima, tinha lhe dado um aumento de salário, e até o incentivava a fazer Medicina. Achei muito estranha a repentina mudança. Reforcei minha
226
pergunta, com impaciência. Joguei-me na cadeira, em desespero. Estava vendo o mundo ruir, e percebi que logo estaríamos morando na rua. Como eu desejei ter mais um cigarro naquele momento! Mas nem para isso eu tinha dinheiro. —Como
é
que
conseguiu
ser
demitido,
seu
inconsequente? —Esbravejei. Ele não se moveu, nem retrucou. Eu estava com vontade de quebrar alguma coisa, sabia que precisava extravasar aquela raiva, que não provinha apenas da notícia. Era algo superior, uma coisa com a qual eu tive que sobreviver até Stephanie salvar minha vida. Bati a porta atrás de mim quando sai de casa. Eu não tinha certeza para onde estava indo, mas sabia que tinha que chegar logo. Caminhei a noite toda, e apenas de manhã consegui raciocinar um pouco melhor.
227
—O que foi que aconteceu? —Perguntei, como se não tivéssemos interrompido a conversa da noite anterior. Jon ainda estava no mesmo lugar. E não me respondeu. Não sei se não me ouviu, ou ficou com raiva. Mas ele tinha aquele ar perdido de novo. Pensei a respeito do que tinha levado Jon a demissão do hospital, ainda que as causas não fossem meu maior problema na época; O que mais me perturbavam eram as consequencias. Despejei um pouco de água no pó de café que ainda sobrava. Teria o dr. Perry descoberto que Jon estava ficando doente? Era possível, ainda que sua doença tenha demorado algum tempo para avançar de grau.
Os dias avançaram, e a falta de dinheiro também. Jon teve que usar todo seu charme para convencer a sra.
228
Ferguson a ter um pouco mais de paciência, até que arrumássemos um emprego. Max apareceu com parte da solução, quando anunciou que ainda tinha aquela proposta de emprego para Jon. Era um bar, mas Jon não pareceu se importar realmente. Na verdade, eu acho que ele gostou muito mais de trabalhar com os bêbados do que com os mortos. A proprietária era uma velha gorducha, com o cabelo preto tingido. O bar era realmente um boteco. Não
havia
música
nem
comida.
A
venda
era
basicamente álcool. Não sei onde é que Max conhecia pessoas tão diversificadas como a sra. Holmes. Ela dizia ter trinta e cinco anos, mas não aparentava menos de cinquenta. Faltavam-lhe muitos dentes, e estava o tempo todo falando. Mas o peso que lhe sobrava fazia justiça ao carinho que Jon passou a sentir por ela. Acabou até por convencer-se de que o bar fazia-lhe
229
melhor no que seu outro emprego. Ele dizia que os melhores amigos que ele fez em toda sua vida foram os clientes, pois eram as pessoas mais sinceras desse mundo. Ele conhecia a história de todos os bêbados do bar, e entendia o motivo de cada um para cair na sarjeta quando o bar fechava. Contava sua história para eles, e muitas vezes se perdia nas mentiras que contava. Para cada um, era uma história diferente, e ele admitia que ficava difícil memorizar todas. Eu, no entanto, convencia meus “colegas” a me fazerem fiado suas mercadorias. Eu podia passar sem comida, mas não podia ficar sem elas. Mas ainda íamos ao Anjos Estáticos todas as sextas, e a nossa música ainda nos mantinha vivos.
Foi estranho como as coisas aconteceram naquela noite em especial. Era como se tudo cooperasse para que o
230
show não acontecesse. Max se atrasou. Francie fez cena para deixar Jon sair. —Você prometeu que ia comigo! —Ela alterava a voz, no corredor de tijolos, frente ao nosso prédio/pensão. Pela primeira vez, Jon retrucou com ela. —Eu não disse que ia. Você sabe que estou sempre ocupado de sexta feira. —E eu devo ir sozinha? Eu saí do apartamento, deparando com eles. Tranquei a porta atrás de mim. —Onde ela quer te levar? —Eu me intrometi. —Á uma festa. —Ele respondeu, mal humorado. —Eu não disse que ia, droga! —Ele repetiu. Achei que Francie fosse ter um colapso. Não teve. Deu as costas e saiu pisando duro, com os saltos fazendo um barulho chato, e um eco enorme no corredor vazio. —Menina idiota. —Eu comentei.
231
Seguimos em silêncio todo o trajeto. Ele estava nervoso. Admira-me que tenha resistido á Francie, pela Loveartist. Apesar dos contratempos, o show correu bem. Uma garota ficou trocando olhares com Jon o tempo todo, e assim que descemos do palco, ele foi conversar com ela. Fiquei com Stephanie em um canto, mais uma vez tentando convencê-la de que pararia com as drogas. Foi só depois de um bom tempo que eu notei a presença de dois estranhos, em uma mesa afastada. Eu sabia que o gordo careca se tratava de um empresário, porque é o tipo de profissão que está estampada na cara. O outro que o acompanhava, usava dreads compridos, e tinha jeito de especulador. Procuravam alguma coisa, e torci para que tivessem gostado da Loveartist.
232
Minha expectativas falharam. Vi quando eles se aproximaram de Jon, trocaram algumas palavras com ele, e deixaram um cartão. Eu imaginei o que estava acontecendo, mas achei melhor acreditar que não. Perguntei a ele quem eram aqueles caras no dia seguinte, quando a bebedeira já havia passado, e tudo que restava era a ressaca. —Ninguém importante. —Ele respondeu, dando de ombros. —Gostariam de conversar comigo, mas eu nem vou. Deve ser mais uma dessas coisas com as quais você se empolga, mas acaba não dando em nada. Não quero esperar muitas coisas, e me decepcionar depois. Claro que ele estava mentindo. Demorou duas semanas para falar comigo, no Anjos Estáticos, igualzinho tinha feito da primeira vez, quando me contou que ia fazer o curso em São Francisco. Uma paródia, uma ironia do destino. Até hoje me pergunto se a Loveartist poderia ter tido uma chance.
233
—Assinei um contrato com uma banda. Uma banda iniciante também; A diferença é que eles têm uma gravadora e um contrato de verdade. Balancei a cabeça em negativa. —Você não fez isso. —Sinto muito, é que eu... Ele não terminou a frase, porque não tinha o que dizer. Demorei alguns segundos até digerir completamente a informação. Depois, fiquei de pé na cadeira, e levantei meu copo de uísque em um drinque. —Ei pessoal! —Nem todas as pessoas olharam, mas eu continuei, como se tivesse toda a atenção do bar voltada para mim. —Vamos fazer um brinde em louvor ao Jon e ao seu novo futuro. Um futuro que não inclui seus amigos, ou a banda que ele dizia amar. —Gerald e Max olharam para mim, confusos. Ainda não tinha recebido a notícia. —Um brinde —Dei uma risada. —A Jon Jordison, meu melhor amigo.
234
Jon deixou o estabelecimento, vi quando Max e Gerald o seguiram.
A conversa que tivemos no quarto desarrumado me fez lembrar aquilo que tínhamos conversado há quatro anos atrás. Mas dessa vez, ele não prometia voltar oito meses depois. E soava tão definitivo quanto possível. —A gente nunca sabe o que vai acontecer. —Ele justificou. —Pode dar certo, mas pode dar terrivelmente errado. —Então você vem com o rabinho entre as pernas, querendo voltar. —Deixei transparecer minha irritação, ainda que parecesse relaxado, esticado no sofá e comendo salgadinhos. Eu via
um sonho, construído
desde criança, desabar. —As coisas não podem ser sempre do jeito que você quer.
235
—Eu achei que você fosse entender. —Não consigo. —Mas é meu melhor amigo. Pelo menos tente! —Deixa disso, Jon. Você está sendo hipócrita. Não está dando a mínima realmente, pensando nos milhões que vai ganhar como rockstar. Não pense que é simples assim. Só porque eles têm um empresário. —E um contrato. —Grande coisa! —Nunca conseguimos um contrato. E o mais próximo que chegamos de ter um empresário era o maluco do Robin. —Você
está
absolutamente
certo.
Simplesmente
abandone seus amigos, aqueles que sempre te apoiaram por causa de dinheiro. —Não se trata de dinheiro. —Dinheiro e fama. Eu canto porque gosto, porque a música me entende. Não me venha com esse papo. Poderia
236
acreditar nisso se não abandonasse sua música para fazer a vontade dos outros. Ou pensa que vai ter a liberdade que tinha na Loveartist quando entrar na sua nova bandinha? Vai ser uma marionete nas mãos desses caras.—Forcei uma risada. —Você é sensível demais para a Cidade dos anjos. Não vai sobreviver um dia nesse mundo. —Max aceitou numa boa. Ele entendeu que meu futuro não pode depender da Loveartist, ou vou envelhecer e morrer nessa favela com você. —O que acha que Francie vai fazer? Viajar com você? Esperar que você volte? —Não tenho a menor intenção de voltar. Foi esse lugar que acabou comigo. E o que Francie e eu decidimos já deixou de ser da sua conta. Dei
de
ombros,
voltando-me
para
o
programa de televisão que eu já nem conseguia prestar atenção.
237
Ele aguardou uma próxima reação. Não me movi. —Tudo bem, então. —Tirou um cheque da carteira. Apoiou-se na cabeceira de sua cama para assinar. — Minha parte do aluguel. —Não preciso disso. —Irritei-me, a quantia pagava o aluguel inteiro e ainda sobrava um pouco. —Não quero a droga da sua caridade. —Dane-se. —Ele rasgou o cheque no meio. Deixou que os pedaços caíssem no chão. Eu ouvi Peas mais tarde, e achei o som bem diferente da nossa banda. Não vou dizer que era ruim. Mas senti que faltava alguma coisa. Um pouco de sentimento, talvez. Acho que é isso o que a fama faz.
Loveartist, Espere pelo por do sol
238
Um lugar escondido Voltando para onde comecei, todas as coisas que eu sei Nada muito complexo Não muito profundo, nada romântico Apenas a superfície vazia que restou Dentro da min da mente estou preso de novo Dominado, não há como escapar Nem sempre você sente Eu escondo isso e finjo que ninguém vê!
Irreal, é sempre igual Minha mente declara a morte da minha realidade Até o limite da minha sanidade
Mas aí tudo isso vai passar, E você vai achar que eu sou normal!
239
Patty Holmes
Jon tinha vinte anos quando começou a trabalhar para mim. Eu sempre soube que aquela espelunca não era seu lugar, embora ele insistisse que gostava de seu serviço. Soube que tinha trabalhado um tempo cuidando dos mortos, e que aquilo só serviu para deixálo mais deprimido. Foi Max quem me apresentou a ele. Conheço Max desde que usava fraudas, e corria pela rua brincando de Homem Aranha. Jon tocava na mesma banda que ele. Compartilhavam o mesmo sonho de ser artista. Fico feliz que Jon tenha conseguido. Eu vi um vídeo dele na televisão um dia desses. Minha filha estava comigo na sala. Eu disse que era aquele o garoto de quem eu já tanto falava, mesmo depois de tantos anos, me sentindo tão orgulhosa, como se fosse sua própria mãe. Liguei para Max, e ele falou
240
que já conhecia a banda. Comentei do quanto ele tinha crescido. Depois desse dia, nunca mais. Não sei se casou, se teve filhos, ou qual é o seu paradeiro até hoje. Demorou algum tempo até que ele se sentisse á vontade para conversar comigo. De início ele era muito tímido, conversava pouco. Em seus últimos meses no bar, ficávamos até tarde conversando, depois do expediente. Ele contava pra mim sobre sua namorada. —Ela faz com que eu me sinta contra a parede o tempo todo. —Explicou, enquanto tomava a dose diária de Vodca. Ele do lado de dentro do balcão, eu sentada numa cadeira do outro lado. Metade das luzes estavam apagadas.—Entende? Estou sempre impelido a fazer a sua vontade. —Meu marido era assim. —Fiz o sinal da cruz. — Que Deus o tenha! —Sorri, olhando para ele. Era um menino lindo. Eu gostaria de ter tido mais tempo com ele. —O
241
almoço saía ao meio dia. —Continuei a história, virando meu copo também. —Uma vez, atrasei dez minutos. Ele fez minhas malas e disse para eu ir embora. Ah, Cristo! Não se deve falar mal dor mortos. Mas ele foi a maior praga da minha vida. Afaste-se dessa menina enquanto há tempo. —Ela me levou numa festa ontem. Eu disse que não queria ir, estava cansado. Olha só pra mim. Estou morrendo de gripe! —Ele cruzou os braços sobre o balcão e apoiou a cabeça como se estivesse dormindo. —E como eu sou um idiota completo, eu fui! Aquelas meninas cheias de olhares superiores. “Francie, como pode estar com esse cara?”, eu posso ler seus pensamentos. Suspirei, em concordância. Já tinha visto a menina algumas vezes,e não tive boa impressão dela. Ela ficava na porta do bar, esperando que ele saísse, numa estranha pose de supervisora. Eu sabia que não era a pessoa certa para Jon.
242
—Eu fazia tudo que meu marido queria, e vejo minha filha indo para o mesmo caminho. —Contei. Foi incrível a forma de como nos tornamos próximos em apenas um ano. Chegou uma época que sabíamos tudo a respeito um do outro.—Veja só, o cara não faz nada o dia inteiro. Ela sustenta a casa, passa e cozinha, e ainda tem que cuidar do bebê. E sabe o que ele faz? Para não dizer que não ajuda, ele levanta os pés para Mary varrer embaixo do sofá. Ele riu, lembrando-se do episódio que lhe contei. Eu jogando um balde de água gelada pela janela, acertando bem a cabeça do meu genro. —Vamos combinar para matá-lo. —Brincou. —Certo. E depois matamos sua Francie.
—...Imaginar que isso é uma danceteria. —Jon falava com o Fantasma, um dos meus clientes diários, cara tão
243
pálido que dava a impressão que ia desaparecer. Entrei no bar, carregando algumas sacolas. —Ali estão as luzes coloridas. —Ele explicava, apontando para o teto. — Elas piscam tanto que te deixam tonto. —Indicou o cliente que dormia em uma das mesas, a cabeça abaixada apoiada nos braços. —Peixinho Dourado é uma das garotas bonitas. E a sra. Holmes é a garota que você quer conquistar. Fantasma assentiu. Coloquei as sacolas em cima do balcão, e ia passar para o lado de dentro quando ele me impediu.Pegou minha mão. Deu um beijo nela. —Com licença, mo...Moça. —Tentou, a voz embargada pela bebida. —Pode me con... Conceder essa dança? Sorri para Jon. —Claro, senhor. —Respondi, e ele me conduziu há dois passos, imaginando que me me levava para o meio do salão da discoteca.
244
Começamos a dançar no ritmo da música imaginária. Jon ria atrás do balcão. Parou para atender um cliente que acabara de chegar, mas Fantasma e eu não paramos a dança. É incrível como somos capazes de nos divertir em circunstâncias como essas —A dona de uma espelunca, clientes embriagados que nem sempre pagam o que devem, cada vez mais em decadência. Acho que fazemos isso para não enlouquecer. Depois que serviu a bebida do Tenente, Jon voltou á sua posição de DJ. —Agora, uma música menos dançante. Sintam essa baladinha. Dançamos colados, o hálito cheio de álcool dele batia em meu rosto, sem piedade. Ele pisou nos meus pés tantas vezes que fui incapaz de contar. Quando cansamos, eu fui para o lado de dentro do balcão. Esbocei um sorriso amarelo de brincadeira.
245
—Parece que se divertiu bastante, não é? —Perguntei para Jon. Fantasma tirou um chapéu imaginário em reverência a mim. —Até mais, bela dama. —Diga cherry. —Jon provocou. —Cherry. Ele foi sentar-se á uma das mesas, com uma garrafa de vinho aberta á sua frente. . Peguei os pratos sujos e comecei a laválos. A pia de barro estava manchada de gordura, porém bem mais limpa do que antes de Jon começar a trabalhar comigo. —Como está Francie? —Perguntei. —Na mesma. —Deu de ombros. —Pode deixar isso aí, eu vou lavar.
246
—Você devia conhecer minha filha. —Larguei o copo ainda ensaboado na pia. —Quem sabe dariam um belo casal. —Quem sabe? —A quem eu tento enganar? —Bati no balcão, nervosa de brincadeira. —Eu é que queria casar com você. —Ninguém sabe o que o futuro nos reserva. E você é muito mais bonita do que Francie. Pintado, o bêbado cheio de sardas, sentou-se frente ao balcão e fez o seu pedido. —Está melhor, Jon? —Ele disse. Jon pensou por um instante antes de responder. Suspirou. —Cada dia, uma nova luta. —Está melhor do quê, Jon? —Intervi, com um sorriso. Ele permaneceu sério. —Daquele meu probleminha de dupla personalidade. Dei uma longa risada.
247
—Dupla personalidade? —Sim, você não sabia? —Ele indagou, com surpresa. —Não! —Pois é. —Dramatizou. —Céus, como isso é difícil. Olhei para Pintado. Ele realmente engolia a história absurda. —Jon sofre de uma grave e rara doença. —Ele explicou, com ar sério. —Jon sabe que Jack existe, mas Jack nega a existência de Jon. —O maior problema —Jon completou, para mim. —São os relacionamentos amorosos. Jack tem uma namorada, e eu tenho outra. —Nossa, isso deve ser dificílimo pra você, não é? —Fiz. —Você nem imagina o quanto. Eu ri. —Você vai para o inferno. —Passei para o outro lado do balcão.
—Preciso
dar
uma
saída.
Cuide
desse
manicômio pra mim, certo.
248
Ele me deu um sorriso. —Será o maior prazer.
Fiquei muito feliz por ele quando me contou que estava indo para Los Angeles, e tinha acabado de assinar um contrato com a tal banda. Eu teria direito de ficar chateada, pois me avisou em cima da hora, e eu não tinha alguém para colocar em seu lugar imediatamente. Mas não fiquei. Acho que teria sido impossível ficar brava com Jon. Eu entendi que ele havia achado o que tinha procurado a vida inteira. Eu sabia que daria certo. Ele
trabalhou
apenas
meio
período
naquela terça feira, e veio despedir-se de mim e dos clientes na quarta feira, o dia de sua viagem. Ficamos algum tempo conversando no bar, como fazíamos sempre, antes dele partir.
249
Jon trabalhou apenas metade do período naquela quarta feira. Disse que estava indo para Los Angeles naquela tarde. Claro que fiquei chateada com sua partida, mas entendi
que
tinha
encontrado
o
que
estivera
procurando. —Por que é tão difícil fazer as pessoas entenderem? — Perguntou para mim, enquanto enchia o copo de uma cliente já embriagada. —Heitor não entendeu. Francie menos ainda. —Já falou com Francie? —Levei ela para almoçar ontem . Pela primeira vez, em um restaurante decente, esses cheios de talheres diferentes, e taças legais. —Deu seu habitual sorriso de criança. —Eu não sabia nem o que pedir quando li o menu. Graças a Deus ela sabia! —Ela não reclamou, pela primeira vez na vida? —Achou estranho. Mas imagino que tenha gostado. Pelo menos até a chegada da sobremesa, que foi quando
250
eu contei onde tinha arrumado o dinheiro para pagar a conta do restaurante. —Ela deve ter pensado que você considerava a idéia de fugir depois de comer. —Dei risada. —Não seria má idéia. A lasanha deles é ótima. —Comida italiana? —Muito chique. Você precisava ver. Vou te levar um dia desses. —Promete? —Com certeza. Seu olhar ficou perdido por um instante. Pensava em Francie. Eu sabia que ela não o apoiaria, se nem o próprio Heitor tinha feito isso. O que me preocupava era imaginar se Jon deixaria passar essa oportunidade por causa dela. —O engraçado, —Ele continuou, sentando-se em á das mesas. Eu o acompanhei. — É que Francie não queria que eu fosse naquele show. Não sei porque, mas é como
251
se pressentisse algo. Queria ficar comigo aquela noite. Insistiu tanto... Imagina só, eu disse não! Justamente naquela noite. —Existem coisas que foram feitas para acontecer. Ele concordou entusiasticamente. —Eu estava nervoso, tínhamos chegado atrasados, quase não nos apresentamos. Parecia que tudo cooperava para que não desse certo. Mas os caras estavam lá, a procura de um vocalista maluco. A partir desse momento, minhas dúvidas se dissiparam. Tudo iria sair bem, muito bem. Porque não tinha outro jeito. Porque eu estava vendo ele feliz, e isso pareceu a coisa mais importante do mundo naquela hora. —Francie disse que vou me arrepender. —A antiga insegurança voltou a assombrar-lhe. —Disse que essas coisas nunca saem do jeito que esperamos.
252
—Essa menina não sabe de nada. —Abanei a mão num gesto de quem não deve se importar. —O que vale é o que sente seu coração. —Eu nunca confiei no meu coração, é a última coisa em que devo confiar, acredite. Melhor, na minha mente, porque meu coração não passa de mais um músculo controlado pelo cérebro. —Suspirou. —Não, meus sentimentos não são confiáveis. O Poodle entrou no bar. O homem baixinho e atarracado tinha esse apelido por causa de seus tufos de emaranhados cabelos brancos. Jon ia levantar-se para servi-lo, mas eu o impedi. Fiz o serviço e voltei á mesa. Agora ele tinha a expressão triste. —O que foi? —Só estou pensando... Ei, você precisava ver. Teria sido cômico se não fosse trágico. Ela ficou nervosa quando disse que estava saindo de Bakersfield. Gritou no meio do restaurante, perdeu toda sua classe. —Deu uma
253
risada. —O pessoal ficou olhando. Nada mal para uma estréia em um lugar chique, não é? —O que ela disse? —Blá blá blá, “Pode ir se quiser”. O que frequentemente quer dizer: se sair daqui, vou te matar. Então ela disse que ia pra casa caminhando, estava cansada de andar comigo de ônibus. Problema dela, entende? Acho que cansei. —Acho isso maravilhoso, Jon. Mas não entendo... Esses caras te viram cantando uma vez, e, pumba! Você é o vocalista oficial deles? Ele apoiou o rosto na mão, o cotovelo na mesa. —Não te contei essa parte? São completos idiotas. Ligaram depois que eu voltei do bar que Max me levou, naquela comemoração, e disseram para eu ir até a casa de um deles. A casa era grande, tinha até um jardim. Acho que era dos pais do baixista. Sabe o que me
254
falaram? —Balancei a cabeça em negativa. —Pediram que eu cantasse. Imagina só, cantar para eles me avaliarem! Fiquei nervoso, muito nervoso. Estava prestes a sair de lá, dizer para que se ferrassem, todos eles. E eu tinha comemorado antes de assinar o contrato que deveria mudar minha vida!—Deu uma rápida olhada pro relógio de pulso. —O gordinho dono da casa disse que aquilo tudo era ridículo e desnecessário. ”Isso aqui não é um concurso de canto”. Bom, acabei assinando o maldito contrato sem cantar coisa nenhuma. Fui obrigado a comer um negócio que o tal do Reg chamou de camembert empanado. E até que não estava tão ruim... —Ele levantou e pegou a mala. —Eu perguntei por que ele me defendeu, sendo que nem tinha ido ao Anjos Estáticos, não sabia se eu era bom de verdade. “Procuramos muitos e não achamos ninguém. Eu cansei.” Quase que explodo de ódio, claro. Preciso ir, sra. Holmes.
255
—Será que até agora vai me chamar de senhora, pelo amor de Deus? —Patty. —Vou sentir sua falta. —Eu abracei ele. Sem pensar, beijei sua boca. Ele resistiu de início. Sei que não queria, mas não pude evitar. Sabia que era minha última chance. Marinheiro
e
Poodle
levantaram
e
aplaudiram. Soltaram vivas e assobios. Agora sim meu bar parecia um hospício. —Isso aí, Jon! —Fantasma gritou, quando eu liberei ele do abraço. —Se deu bem! Jon riu, meio em choque. Deu um abraço nos clientes. —Até mais, rezem por mim. —Sempre, amigo! —Poodle piscou. —Boa sorte. —Eu falei. —Obrigado. Vou precisar.
256
Foi muito triste vĂŞ-lo saindo. Passei a rezar por ele todas as noites.
257
Reg Levesque
Tornamo-nos melhores amigos quase imediatamente. Ele ficou nervoso quando duvidaram do seu talento, mas vi na sua cara que se tratava da pessoa que procurávamos. Ele hesitou antes de assinar o contrato, mas eu sabia que o faria. Tinha vindo até minha casa para isso. Ele mal conversava com os garotos da banda. Viajamos em uma quarta feira de natal, quando já planejávamos a gravação de um álbum que ainda nem existia, e pedimos para que ele escrevesse as letras. Nenhum de nós sabíamos escrever uma boa letra de metal, essa é a verdade que tivemos que admitir. Tentamos depois que nosso outro vocalista oficial desertou, sob a alegação de que tinha encontrado uma banda melhor. Não saiu absolutamente nada em nossas escritas, por mais que parecesse fácil. Tudo que
258
consegui foram algumas palavras divertidas, que falavam sobre álcool, mulheres e carros. —Não é isso. —Paul objetou, quando leu a primeira estrofe da minha obra. —Nós temos que falar sobre ódio e dor. Isso não tem nada a ver, seu imbecil. Eu xinguei de volta, embora concordasse. Escrevi alguma coisa, mas se o sentimento não é real, nem adianta continuar. Jon acabou por pegar algumas das letras de sua ex banda, por falta de tempo para escrever. Sei que não faria nada se o obrigássemos a fazer. Jon era o tipo de pessoa que não gosta de obedecer. De forma que eu nem mencionei mais o assunto de material inédito, deixei por conta dele. Estávamos
no
aeroporto,
prestes
a
começar o primeiro mês do resto de nossas vidas. George passou por nós. —Vamos, meninas. O avião já está saindo.
259
Caminhamos a passos largos pelo corredor cheio de pessoas de várias nacionalidades. Eu dizia a mim mesmo que era assim que deveria ser, precisava me acostumar. Pessoas diferentes, lugares diferentes. Minha vida nunca tinha sido tão excitante. Não seria esforço algum viver daquele jeito para o resto da vida. —Por que eles são assim comigo? —Jon indagou, referindo-se aos outros caras da banda. Não era momento para esse tipo de conversa, mas cedi. —Vão melhorar. —Assegurei, virando meu copo de café num gole só. —Não, não vão. —Como pode saber? —Perguntei.— Conheço esses caras bem melhor do que você. Só que acham você é um idiota arrogante. Percorremos o resto do trajeto em silêncio. Vi tanta gente diferente... Meu sonho estava se
260
realizando. Íamos mesmo gravar um CD, tínhamos mesmo uma gravadora, e até patrocinadores. —Nervoso? —Perguntei, quando tomamos nossos assentos dentro do avião. —Um pouco. —Nunca estive tão animado em toda minha vida. Recebemos a ordem de apertar os cintos de segurança. —Dá pra acreditar que estamos aqui? —Não, nunca. —Ele respondeu, um pouco vagamente. Não sei se prestava atenção em mim. —As únicas pessoas que acreditavam eram minhas irmãs. A contagem regressiva começou. Percebi que Jon respirava fundo várias vezes. —Já viajou de avião antes? —Não. —Sente-se bem?
261
Ele assentiu sem convicção. Já começávamos a decolar. —É muito seguro. —Garanti. —Não há tantos riscos assim, Jon. Se precisar vomitar, use aquele saquinho plástico ali, certo? É normal sentir-se enjoado na primeira vez. —É que fica meio difícil de respirar. —Não tem nada a ver. Tem ar de sobra aqui dentro. É só da sua cabeça. Espere até que o avião se estabilize. Vai parecer que estamos em casa. —Acho que sou meio claustrofóbico, não sei.
—Ele
agitou-se, puxando o cinto de segurança para a frente, como se tentasse libertar-se dele, mas sem abri-lo. — Acha que podemos voltar? —Trauma de infância? —Tentei distraí-lo. —Fiquei algumas horas presos em uma biblioteca escura.
262
Permanecemos em silêncio. Torci para que ele ficasse bem. Precisava ficar. Lembrei-me mais uma vez que aquele era o começo de nossas vidas. Não havia tempo para claustrofobia. Tudo que ouvíamos era o chiado baixo do avião contra o vento. A tontura inicial já havia passado. Eu me sentia realmente bem. Disse alguma coisa para Paul, sentado do outro lado de nossos assentos. Fiz uma brincadeira qualquer sobre ele estar pálido de medo. Jon estava em silêncio, olhando pela janelinha. —Sente-se bem? —Indaguei de novo. —Acho que não tenho outra escolha. Nossas viagens de avião não tiveram mudanças com o decorrer do tempo. Jon nunca perdeu seu medo infantil de voar, e sua mania de insistir na tal da claustrofobia. Mas sempre foi muito corajoso, pois
263
nossas viagens de avião se tornaram cada vez mais frequentes desde a primeira vez.
Os hotéis em Los Angeles com certeza são os melhores do mundo. Até mesmo em comparação com aqueles onde eu passava as férias escolares com minha família. Viajávamos para a Europa, uma vez fomos até a América do Sul. Saíamos o tempo todo, quando meu pai não estava trabalhando. Os passeios de família não falhavam nunca, jantares, festas ou eventos. E tudo o que eu queria era ficar em casa, para jogar futebol com meus amigos na rua. Nosso progresso com a Peas foi grande e rápido. Em menos de um mês, entregamos um álbum pronto para a gravadora, e começamos nossa primeira turnê em alguns estados nacionais.
264
Tínhamos uma Kombi que nos servia para as longas estradas entre um lugar e outro. Ela balançava muito, e por mais de uma vez, fomos obrigados a descer para empurrá-la, até que voltasse a funcionar. Nosso motorista nos abandonou na primeira semana de viajem, e George assumiu o volante, dividindo a função de empresário e motorista, até darmos sorte de conseguir alguém muito corajosos para enfrentar as longas estradas com nosso decadente carro. Quando começamos a ter o privilégio de nos hospedar dignamente, levávamos dentro da mala sabonetinhos
e
mini
garrafas,
ou
o
que
mais
pudéssemos roubar dos hotéis. Jon achava o máximo aqueles refrigeradores pequenos, porque eram iguais os que via nos filmes de Hollywood. Eu morria de rir, e diziam que eles eram pobres e deslumbrados, e nada poderia mudar isso.
265
A essa altura, a banda estava em perfeita união. Jon finalmente conseguiu convencer os rapazes, sem usar nenhuma palavra, que era um de nós. O engraçado é que aos poucos ele tomou a liderança da banda, sorrateiramente, e acho que nem ele percebeu isso. Simplesmente nasceu para isso. Para ser líder de uma banda internacionalmente famosa. Quando
conseguimos
um
trailler
de
verdade, queimamos nossa antiga Kombi em praça pública. Foi um dos melhores dias de nossa vida. Levamos uma multa por isso, mas não importava. Estávamos livres daquela ridícula lata velha.
A nossa primeira turnê internacional foi excitante, apesar de exaustiva e ansiosa. De início, estávamos com medo do público lá fora. Nossas expectativas foram superadas. Não importava que aquelas pessoas não
266
falavam nosso inglês. Conversávamos em nossa própria linguagem: A música. E essa língua eles entendiam muito bem. Em nosso primeiro show dessa turnê, o público foi extremamente caloroso, como se conseguisse ver o quanto estávamos nervosos, e foram bondosos conosco.
Fomos jantar juntos no salão do hotel. —Nunca mais ouviu falar de sua ex namorada? —Ryan perguntou a Jon. Nós sabíamos de Francie por causa das letras que ele tinha escrito para ela. Na verdade, forma apenas duas músicas com linguagem direta, e algumas outras que apenas dava a entender, e misturava outros assuntos, de forma confusa, como sempre tem que ser. Ele dizia que escrever libertava sua alma.
267
—Graças a Deus, não. —Ele respondeu, sem soar convincente. —A fila anda, não é? —Nosso baterista Joey riu. —E como anda! Eu não tinha certeza se Jon não gostava mais dela de verdade. Mas esse é um assunto que homens não conversam, por isso eu não poderia ter certeza. Mas sei que o ódio sempre está ligado ao amor, e da forma cheia de raiva que ele falava a respeito, despertava minhas suspeitas.
Jon não nos acompanhou em uma viagem extra oficial a Bakersfield. Ele não tinha nada mais a ver com a cidade que fazia com que tivesse pesadelos.
268
Devo dizer que foi estranho entrar em casa, carregado de lembrancinhas adquiridas em outros países. Minha mãe estava tão contente por mim quanto nunca imaginei que estaria. Sonhava para mim uma faculdade, que eu me tornasse advogado ou qualquer outra coisa cheia de burocracia. Meu pai comentou que viu um pôster da minha banda em alguma loja, e mal acreditava que era mesmo minha foto ali na parede. —Esse aí é meu filho. —Ele comentou com o comerciante, uma cena que eu não consigo imaginar. Era raro os integrantes da Peas serem reconhecidos na rua, mas acontecia. Em sua maioria de fãs, eram jovens vestido de preto, lotados de piercings e tatuagens, com aquela atitude forçada de quem odeia tudo e todos. Tal como víamos em nossos shows. Esses adolescentes malucos eram nosso maior orgulho. Com maior prazer, eu lhes dava um autógrafo ou dizia olá.
269
Dificilmente Jon parava para cumprimentálos. Odiava a idéia de ser reconhecido, talvez porque ficasse sem jeito, ou fosse mesmo um idiota arrogante. A não ser que fossem as crianças. Para elas, ele dava autógrafos de bom grado, mesmo quando não estava de bom humor. Sorria e conversava com elas. Eu também sempre as adorei, embora elas não pudessem ir aos shows. Eram nossas fãs mais sinceras. Eu tive Charlie, meu primeiro filho na época que Jon conheceu Renée. Ela era filha de um produtor francês que nos auxiliou na gravação de um vídeo. Tinha que ser loira; Até onde sei, Jon só namorou loiras. Talvez fosse um fascínio, ou uma tradição. Bom, Renée pintou o cabelo de preto alguns meses depois de conhecê-lo, mas nem por isso o casamento deixou de acontecer. Foi uma festa á fantasia,
270
em um buffet com poucos convidados. Ela se vestiu de fada, uma fada um pouco acima do peso, e ele do herói Zorro, para fazer jus áquele bigodinho horrível que usava. Eu gostava particularmente da nova esposa de Jon. Não era como Paula, minha esposa na época. Renée nos acompanhava quando íamos beber cerveja e whisky nos bares de Los Angeles.
Peas, Para achar a frase perfeita
Somos muitos Estamos sozinhos Esse mundo enorme – Tão fundo, tão cheio
Cheio de corações...
271
Corações diferentes que não sentem o mesmo Eu não sou igual O que é minha existência? Outro número, outro rosto Poder para os poderosos, esperança para os esperançosos Não é fácil, não é divertido As emoções mais profundas que já encontrei São aquelas que ninguém aceita existir Aquelas que todos disfarçam O ódio e a dor... A dor que rasga meu coração! A dor que eu aceito sentir! Ódio, aquele que encontrei Dor... Me faz sentir! Me permite respirar! O que impulsiona todos a fazer as coisas Mas ninguém vê Está dentro do coração de cada um A emoção mais sincera
272
Pura e sincera Do que essa vida e esse mundo são feitos
Talvez tenha sido exatamente ali que as coisas começaram a ficar erradas. Tínhamos
voltado
de
uma
turnê
mundial, referente ao segundo álbum da Peas. Dessa vez, passaríamos bastante tempo em casa. Umas férias merecidas depois de tento tempo fora. Acho que ficar muito tempo em casa acabou por entedia-lo, ou qualquer coisa assim. A verdade era que tudo cooperava para o mal de Jon. A começar pela casa que ele tinha arrumado. Uma mansão velha e mal cuidada, a três horas da minha casa. Os portões de ferro enferrujado, as tábuas de madeira que serviam como piso rangiam durante a noite, tudo era antiquado e estranho. Jon insistia que parecia com uma
273
mansão de filmes de terror, e estava fascinado com sua nova casa. Estava instalado no meio do nada, com sua esposa, longe da cidade. Nem mesmo o sinal de telefone ou da televisão funcionava direito. —Realmente —Brinquei.—Parece um filme de terror. E sabe o que vai acontecer? Vai começar a ver espíritos. Ou vai enlouquecer e matar sua mulher. Ás vezes, eu tinha a impressão de que Jon vivia em um filme de terror particular. Tinha ataques de pânico, achava que estava sendo perseguido. Suspeitei que ele estivesse doente desde o começo. Pensei na síndrome do pânico, ou na depressão, maus que parecem muito comuns hoje em dia. Renée me ligou, um tanto desesperada, e pediu para que eu fosse ver Jon em sua casa. Entrei no quarto. Renée estava lá, e também Tammy, a filha de seu primeiro casamento. De início, achei que Jon estivesse doente. Estava deitado na
274
cama, completamente imóvel. Puxei uma cadeira para sentar ao seu lado. —O que foi? Ele não respondeu. Virou o rosto para o outro lado do travesseiro. Olhei para Renée. Ela apoiava os braços na janela aberta, e observava o lado de fora, como se pretendesse ficar de fora da cena que acontecia lá dentro. Tammy foi quem me deu a resposta. —Mamãe disse que tio Jonathan está triste. —Sabe o que foi que aconteceu? Tammy deu de ombros. —Pensei que eu tivesse feito alguma coisa para magoálo, mas ele disse que não. Renée interferiu. —Está aí há horas. Recusa-se a falar com qualquer um. Por isso pedi para que você viesse. Será que pelo amor de Deus pode fazer alguma coisa?
275
Notei que ela falava rispidamente. Talvez tivessem brigado. Tentei de novo. —Jon? Por favor, Jon, fala comigo. Demorou bons minutos de insistência para que ele levantasse os olhos para mim. —Pode me dizer, se sente mal? Ele assentiu e sentou-se na cama. Fiquei feliz com o progresso. Pegou um livro no criado mudo. —Vai começar a ler, e vai me ignorar? —Perguntei. Exatamente. Renée saiu do quarto. Eu a segui, e também Tammy. Pequei a menina no colo. —Não sei por quanto tempo vou suportar isso. —Renée disse, enchendo um copo de vinho. —Tem acontecido com frequência? —Ele deita naquela cama e não quer falar com ninguém. Ontem tentei conversar com ele. Começou a gritar que eu não sabia de nada, era uma idiota, burra, que nunca
276
conseguiria compreendê-lo. Fico me perguntando o que foi que fiz de errado. Nosso guitarrista veio vê-lo no dia seguinte. Jon continuava exatamente do mesmo jeito. Só sentava na cama para ler, se recusando a falar com qualquer pessoa. Eu sabia que começava a agir como louco. —Não está comendo? —Paul indagou. Renée fez que não. —Nem dormindo. —Completei. —Jon? —Ele chamou, sabendo que seria inútil. —É uma crise de depressão. Só um pouco mais acentuada do que das outras vezes. —Paul tentou explicar para Renée, com ar entendido. —A culpa não é sua, pode ficar sossegada. Ele tem estado assim com a gente também. —De novo para mim. — Lembra que ele chorou na França só por que gostaria que Renée estivesse com ele para ver a Torre Eiffel?
277
—Sim. —Concordei, recordando-me. —E não pense que foram só umas lágrimas derramadas. Chorou de soluçar, mesmo. Achei que ia derreter. —Ele precisa de um médico. —Paul sugeriu, como se nós não soubéssemos disso. Jon olhou para nós. Finalmente interagiu, gritando alguma coisa, de repente. Lançou o livro no chão, fazendo um barulho oco. —Por que ficam me ignorando? Odeio quando agem como se eu não estivesse aqui. Odeio, odeio, odeio! —Tudo bem, Jon. —Fiz, com voz calma, como se estivesse falando com uma criança contrariada. —Será que quer conversar agora? —Não! —Então por que diabos está reclamando? —Me irritei.— Não quer falar com a gente. Percebi que ia chorar. —Não me sinto bem.
278
Paul sentou-se ao seu lado. Ele tinha sido lutador no passado, e ainda conservava músculos que poderiam assustar qualquer um. Com certeza era nossa mina de ouro, nos casos de confusões em boates. —Só queremos te ajudar. —Tentou. — Vamos procurar um médico. Ele vai te prescrever algumas pílulas, e você vai ficar bom. —Não quero ficar bom. Isso só vai prolongar minha vida. —Pretende ficar nessa cama até morrer? Ele assentiu. Parecia mesmo uma criança. Paul levantou-se, como se desistisse. —Se trouxermos um médico aqui. —Arrisquei. —Você ouviria ele? —Ele quem? —O médico. Jon esboçou um sorriso. —Claro, o médico.
279
—Ouviria? —Depende. —Do quê? —Do que ele vai dizer. Se me chamar de louco, não. Estou cansado. Acho que tem alguém na porta. —Não tem. —Foi Renée quem respondeu. —Talvez seja o médico. Mande ele embora. Cadê meu livro? —Sua voz se alterou novamente. — Por que pegaram meu livro? Droga, eu quero meu livro! —Se quiser seu livrinho —Paul falou. —Vai ter que levantar para pegá-lo. —Não posso. Minhas pernas não funcionam mais. —Está mentindo. —Sim, estou. —Sorriu. —Olá, Tammy. A menina abriu um sorriso e pulou na cama com ele. —Acha que preciso de um médico, Tammy? —Mamãe acha que sim.
280
—Pois não preciso. Repita comigo: O tio Jon não precisa de um médico. —O tio Jon não precisa de um médico. —Muito
bem,
boa
garota.
—Jon
falou,
ainda
conservando um sorriso. —Ele só está um pouco cansado. Olhei para Paul e depois para Renée. Pensei que ele só estivesse querendo chamar a atenção. Não era possível que estivesse enlouquecendo. Era como se isso não pudesse acontecer na vida real. —É você quem sabe. —Fiz, caminhando para a porta. — Se quiser nossa ajuda, sabe que pode contar com a gente. Vamos, Paul. Antes de sairmos, ele disse: —Danem-se. Não quero a droga da ajuda de ninguém.
281
Jon desapareceu durante uma semana depois disso, e justamente quando íamos acionar a Polícia, ele retornou á sua casa, na maior inocência possível. Alegou não se lembrar de nada. Disse que acordou em um quarto de hotel, imaginando estar ainda em turnê com a banda. Voltou mais magro e abatido, e só Deus sabia por onde tinha estado. Não acredito que não se lembrasse realmente. Deve ter sentido vergonha, e achou a mentira a saída mais fácil. Para espantar seus demônios, ele voltou a beber. Eu via ele cair em um abismo, e me sentia impotente. Eu nada podia fazer para salvá-lo. Ele dizia não acreditar que havia algo de errado acontecendo com ele. Alegava estar apenas passando por uma fase difícil. Para mim e as pessoas que o rodeavam, era mais fácil acreditar que Jon estava certo, aquilo tudo ia passar. Ele recusava-se veemente a
282
ver um médico. E por mais que tentássemos nos enganar, sabíamos que havia uma tragédia eminente. Mas essa tal tragédia foi adiada no dia em que ele conheceu Debbie.
Meu casamento já não ia bem, e eu só o mantive por mais tempo por causa de Charlie. O mesmo estava acontecendo com Jon e Renée. Frequentemente, ele aparecia na minha casa, ou na casa de Paul para pedir um abrigo durante a noite. De vez em quando ele chorava, ou simplesmente decidia que se separaria dela. Não sei exatamente o que o impedia de fazê-lo, se era o medo de ficar sozinho, ou Tammy. Eu o aconselhava a deixá-la, ainda mais agora que tinha Debbie. Era uma perda de tempo, tendo
283
em vista que seu casamento não estava dando certo, mesmo. —Ela está brava porque não cumprimentei as amigas dela. —Ele disse, colocando a mala improvisada em cima da cama do meu quarto de hóspedes. —O quê? —Isso mesmo, meu amigo. Não parece loucura? —Acho que sim. —Arrisquei, sabendo como melhor amigo que Jon não era tão inocente quanto achava que parecia. Renée não ficaria brava á toa. —Minha casa estava cheia, aquelas vadias imprestáveis. Não gosto delas. Não disse nada quando passei pala sala de estar. Deveria ter dito? —E por isso Renée ficou nervosa? —Por isso, e porque eu disse que ela é uma vadia sem vergonha, que fica desperdiçando tempo com suas semelhantes, e depois só sabe me criticar. Dei uma risada rápida.
284
—Só por isso? —Sim. —Ele sorriu em sua auto ironia.—Estou cansado disso, Reg. Você não imagina como. —Claro que eu imagino. —Baixei a voz. Paula dormia no quarto ao lado, e logo eu teria que estar ao seu lado. —Não acha que também não estou louco para dar o fora? —Então por que não caímos fora simplesmente? —Ele indagou, deitando na cama. Cruzou os braços sob a cabeça. —Parece que sempre ficamos quando devemos ir embora. —Eu penso todas a s manhãs. Hoje é o dia, hoje eu vou embora. Pensei isso essa manhã. E veja, aqui estou eu. —Não posso entender. Nós nos amávamos tanto... Era tudo tão perfeito. E, pouco a pouco, nosso amor foi se transformando em ódio. —É uma pena. Renée é legal. —Pensei por um minuto na outra loira na vida de Jon. A garota de cabelo
285
encaracolado, e com um sorriso de anjo. — Se bem que entre ela e Debbie, acho que eu escolheria Debbie. —Porque ela é mais bonita? —Também por isso. —Já tentamos conversar, sabe? Esse negócio chato de sentar e expor nossos sentimentos. Cara, piorou tudo. Eu assumi coisas que não deveria ter assumido. —Isso nunca dá certo. Por isso que eu e Paula nunca tentamos. Acho que devemos simplesmente aceitar que vamos passar o resto de nossas vidas desse jeito. Condenados até envelhecer. E aí quem sabe as coisas não começam a funcionar? Ele assentiu e tirou um comprimido da carteira. Engoliu-o a seco. Balancei a cabeça em desaprovação. —Você não deveria se auto medicar desse jeito. Sabe o quanto isso é perigoso. —Por quê? Tem dado certo até agora.
286
—E ainda mais esses aí, com a tarja preta. São os mais fortes. —São os que viciam. Deixe disso, Reg. Eles ajudam a controlar minha loucura. —Enfiou-se em baixo do cobertor, e fez um sinal para que eu deixasse o quarto. —E me fazem dormir, também. —O problema é seu. —Dei de ombros. —Mas fique sabendo que não vou visitá-lo no hospital todos os dias, quando ficar internado e inválido por causa dessas coisas. —Abri a porta para sair. —E não vou te levar chocolate também. —Aí você pegou pesado! —Ele gritou, depois que saí.
Era inverno em Nova York. Reclamávamos o tempo todo, apesar de estarmos em lugares mais frios do que aquilo, estar em
287
nosso país nos instigava a vontade de estar de volta á Califórnia. Estávamos com Mike, um amigo que morava por lá, o qual conhecemos durante uma gravação qualquer. Ele não era do nosso meio, era um hip hopper famoso por conquistar as mulheres. Levounos á uma casa noturna. Jon achava barulhenta demais, a música repetitiva demais, o lugar escuro demais, mas o que não faria quando dizíamos que tinha a chance de conhecer novas garotas? Aproximei-me de uma das mesas do canto, um pouco mais afastada que as demais. —Oito. —Eu fiz o sinal com os dedos. Era mentira, tinha conseguido beijar metade desse número de garotas. —Sei. —Jon riu. —Você, garanhão? Quantas? —Não quero falar de números. —Vamos!
288
—Três. —Fracote. —Se liga só. —Mike interrompeu, de repente. Segurava um copo de conhaque que parecia pender de seus dedos. Chamou a atenção para uma ruiva muito alta que dançava sozinha no meio do salão. —Ela não dá mole para ninguém. Foi a única que me deu um fora em toda minha vida. Jon e eu trocamos olhares incrédulos. A única, claro. —Aposto que eu consigo. —Falei, de alguma forma, convencido. —Duvido. —Jon fez. —Ah, é? E o que faria no meu lugar, bonitão? Ele deu de ombros, desinteressado. —Está apostado. —Mike interrompeu. —Se um de vocês conseguir pelo menos uma dança, eu perco. Se não, a vitória é minha, porque eu estava certo.
289
—E o perdedor —Jon deu uma de suas idéias terrivelmente infantis. —Tem que correr pela Time Square gritando “Eu sou o cara”. Sem roupas, é claro. Mike riu. —Que comédia! Não quero realmente ver Reg com essa barriga de fora, mas está valendo. Boa sorte pra vocês. Eu já venci essa. Eu tentei primeiro. Vi que Jon e Mike assistiam á cena de longe, e estavam rindo. Pedi só por uma dança. Ela simplesmente me ignorou. Insisti. Ela olhou para mim com ar superior, e continuou dançando sozinha. Implorei, ela me afastou com um gesto. Arrisquei começar a dançar com ela. Deu as costas, e foi para outro lugar. Voltei derrotado. Jon certificou-se de que a ruiva não nos tinha visto juntos. Ele estava confiante. Eu não confiava muito nele. Mas minhas próximas
290
horas
dependiam
dele.
Comecei
a
torcer
fervorosamente. Ele falou com ela. Como se conversasse com uma amiga. Não
estava tentando nada. A ruiva
continuava a ignorá-lo, quando parou de repente de dançar. Agora olhava para ele com atenção. —Não acredito. —Murmurei. Ela olhou na nossa direção. Baixamos a cabeça insistivamente. Jon falou mais alguma coisa. Ela o empurrou, e saiu. —Eu não vou á Time Square. —Ele disse, assim que retornou. —O que diabos você disse á ela? —Repreendi, enquanto Mike nos arrastava para fora do clube. —Falou da aposta? —Ele não respondeu. —Cara, você é bem melhor quando mente! Entramos no carro do Mike, incertos de nossos destinos.
291
—Vamos a outro lugar. —Pedi. —Por favor, um pouco de misericórdia. A Time Square, não! —Certo. —Mike concordou, relutante. Parou ao meio fio de uma rua não tão vazia. —Vão dar a volta no quarteirão. Encontrem-me aqui de novo. —Deus do céu! —Fiz. —No quarteirão? —Devem ficar agradecidos. Era para estarmos na Time Square. Jon murmurou um palavrão, e começou a tirar a roupa. Ele arriscou: —Mike... De cueca? Por favor! —Está bem, está bem. —Concordou. —Está frio. —Sem mais! —Esbravejou, saindo do carro. Forçou-nos a sair. Terminei de me despir na calçada mesmo. Algumas pessoas observavam, atônitas. —Comecem a correr! —Mike riu.
292
Comecei, tentando ignorar os olhares. —Eu sou o cara! —Gritei. Jon tentava esconder o rosto. Rezávamos para que não houvesse algum paparazzi que pudesse nos reconhecer por ali. —Meu Deus... —Ele murmurou. —Vamos lá, Jon! Diga... Eu sou o cara! —Eu me animei, inexplicavelmente.
É
uma
estranha
sensação
de
liberdade. —Eu sou o cara. —Disse baixinho. Na certa, as pessoas julgavam que estávamos bêbados ou éramos loucos. Não que não tivéssemos bebido um pouquinho. —É isso aí! Eu sou o cara! Ele começou a gritar também. —Eu sou o cara! Já estávamos quase completando a volta quando ouvimos a sirene da Polícia.
293
—Essa não... —Eu pensei em voltar por onde viemos. Seria inútil. Estacamos no meio do caminho. Tivemos que entrar na viatura. O calor inicial tinha passado, e agora eu tremia de frio. —Será que vamos ser presos? —Jon perguntou, segurando uma risada. —Provavelmente. O policial mal humorado nos mandou calar a boca. O resto do trajeto foi feito em silêncio, risadas contidas. Na delegacia, graças a Deus, nos deram toalhas, e nos fizeram esperar por mais de três horas. Jon reclamou que era claustrofóbico, mas ninguém parou para ouvir. Algumas pessoas ainda olhavam com curiosidades. Eu já não estava de bom humor, e sustentei seus olhares com desaprovação. —Eles deveriam nos agradecer. —Eu falei, em voz alta. —Fizemos um favor á sociedade nova iorquina,
294
mostrando
a
eles
nossos
impecáveis
físicos
californianos. Jon não riu. Eu sabia que começava a sufocar de verdade, e torci para que Mike viesse logo ao nosso auxílio. Um policial apareceu nos dizendo que a fiança tinha sido paga. Entramos no carro de Mike, dessa vez vestidos com as roupas que ele trouxera. —Vocês vão me reembolsar. —Ele disse, assumindo o volante. —Não têm idéia de como foi engraçado. Nojento, mas engraçado. —Ah,
você
acha?
—Fiz.
—Quase
tivemos uma
hipotermia.
Paula convidou alguns amigos a seus familiares para a ceia de Natal. Eu sempre preferi as festas lá de casa, em meus tempos de solteiro, apesar de sempre exigirem os bons modos que eu não tinha. Minha mãe nunca deixou
295
de fazer festa no Natal, e geralmente toda nossa família comparecia. Cerca de trinta pessoas em nossa ceia. Eu ficava no jardim com meus primos. Eles sonhavam em ser médicos e advogados. Eu dizia que queria ser hip hopper. Agora, já não fazia sentido para eu receber pessoas em casa. É uma festa onde se celebra a união, e isso era algo que estava longe de ser a realidade da minha vida e de Paula como casal. Foi com grande alegria que abri a porta para Jon um pouco antes da meia noite. Quem sabe uma companhia me salvasse daquela monotonia anual? Ele estava ofegante. —O que diabos aconteceu? —Tenho uma... —Ele tomou fôlego. —Uma boa história pra contar. Vasculhei a rua vazia com os olhos.
296
—Veio andando? —Ele assentiu e deu risada. —Quer entrar? Deu uma espiadinha lá dentro. Fez que não. Fechei a porta atrás de mim, carregando Charlie no colo. —Você não vai acreditar no que acaba de acontecer! Sentou-se no meio fio, me instigando a fazer o mesmo. Tomou mais um pouco de fôlego e começou a me contar a história que haveria de mudar sua vida para sempre. —Eu estava na casa do pai da Renée, certo? —Assenti. —Estava chato, muito chato. —Nem me diga! —Pensei na festa lá dentro, e como eu desejei que o relógio marcasse logo a meia noite para começar a beber. —Tinha uma prima dela, uma garota, jovem mesmo. Ela sentou do meu lado no sofá e me mostrou uma pasta cheia de fotos. Ela disse que era fã da Peas, mas ali
297
só tinha fotos minhas. —Tornou a rir. —Imagina isso? Fotos minhas! Devia ter, sei lá, uns dezoito anos. —Não, você não...? —Sim. Quer dizer, mais ou menos. Ela disse para eu ir beber com ela lá fora, na varanda. Sabe como são as coisas? Eu não pensava em mais nada quando ela me beijou. —Mentira! —Quem é que se lembraria que a porta que dividia a cozinha e a varanda era de vidro? Ninguém. Muito menos eu. Era uma menina bonita, Reg. —Certo. E quem foi que viu? Renée? —Pior. O pai dela. Começou a gritar para que eu largasse sua sobrinha. Eu larguei, e quando percebi que o velho vinha para cima, pulei o portãozinho, e disparei em correr pra rua. Nem me lembrava mais que tinha asma. Nessas horas, até nosso pulmão ajuda.
298
Eu desatei a rir, imaginando a cena. Jon correndo de um velho, depois de ter traído sua mulher com uma garota de dezoito anos. —Por que correu de um velho capenga, Jon? Estava com medo? —Não sei, foi impulso. —E correu até aqui? —Corri até a avenida principal. Depois ele não aguentou mais. Deus, estou cansado. —Suspirou. Eu sentia que ele estava contente pelo acontecido. Eu entendia. Se ele não conseguira se libertar por ele mesmo, o destino o ajudou. —Acho que vou sentir falta de Tammy. —E onde está o seu carro? —Santo Deus! —Levantou, num pulo. —Meu carro! Deixei Charlie com Paula e seguimos até a casa dos pais de Renée. Os fogos nos avisaram que já tinha dado meia noite.
299
Quando parei meu carro a uma certa distância da casa dos pais de Renée, o velho tinha terminado de destruir o último vidro do Peugeot com um pedaço de pau. —Não saia do carro. —Alertei, antes que Jon abrisse a porta e descesse. —Velho maluco! —Ele gritou. —O que foi que você fez? O homem largou a arma no chão, e eu respirei aliviado. Saí do carro e me aproximei do carro destruído. —Espere, Jordison. —Ele disse, arfante. Com certeza tinha descontado toda sua raiva, e devia sentir-se mais aliviado agora. —Vou trazer as chaves para você. Cheguei á conclusão de que Jon tivera razão em fugir. O velho era forte e esperto. Jogou as chaves no meio da rua, e foi para dentro de casa. —Veja só isso. —Jon disse. Ajoelhou-se frente ao pneu furado. Passou a mão na lataria. Até a pintura estava
300
lascada em várias partes.—Eu ainda nem tinha terminado de pagar... Tive que arrastá-lo dali quando começou a chorar.
Jon passou a morar com Debbie, mas não creio que tenha contado toda a verdade á ela. Foi nessa época que parou de tomar os calmantes. Eu aconselhei ele a não fazer isso de uma vez, porque uma vez que tinha começado, seria difícil de seu organismo acostumar-se sem. —Debbie acha que é o melhor para mim. —Ele se irritou. —E por acaso você é médico para entender dessas coisas? Não sei o que foi que Debbie fez, mas o fato é que realmente o curou. Pelo menos por um
301
tempo, ele me pareceu feliz de verdade. Acho que ele estava feliz de verdade durante aqueles meses. Suas
habituais
crises
de
depressão
se
retiraram de sua vida, e ele não mais se jogava nas camas de hotel e nos sofás dos estúdios, recusando-se a fazer qualquer outra coisa. Mas, seu destino não era esse, por isso o pior aconteceu. Ele perdeu Debbie, de uma forma horrível, e bruscamente. Aquela felicidade que só tinha servido para mascarar sua dor desapareceu por completo naquela tarde, quando estávamos para fazer um show no Japão. Tínhamos acabado de descer do táxi para entrar no aeroporto, quando ele recebeu a ligação dos pais de Debbie no celular. Eles disseram que ela estava seriamente doente, e hospitalizada. Ele estacou no meio do caminho, e quase deixou o telefone cair. —O que foi? —Paul perguntou.
302
—Não é verdade. —Ele murmurou, simplesmente, sem explicar absolutamente nada. Ele entrou no aeroporto, e sentou-se em um banco, afundando o rosto nas mãos. Jon nem sabia o que tinha acontecido, mas recusou-se veemente a se mover, como se aquilo pudesse mudar o seu destino. Dizem que o primeiro sintoma da perda é a negação. Tivemos os shows restantes adiados, e ele voltou catatônico para os Estados Unidos. Ficou com Debbie nos seus últimos segundos, e deve ter visto seu último suspiro. Ele não quis comparecer no velório. Trancou-se no quarto e não permitiu que ninguém entrasse ali durante quatro dias. Confesso que fomos fracos, todos nós. Paul dizia para arrombarmos a porta, chamar um médico ou a Polícia. Mas ninguém fez nada. As pessoas têm medo de perturbar o silêncio da dor. Aguardamos com paciência até que Jon resolvesse que estava preparado
303
para enfrentar a vida. Ele se recuperou, e me ligou, pedindo que o encontrasse numa lanchonete que costumávamos frequentar. Á essa época, eu já tinha me divorciado de Paula, o que me fez sentir livre. Ser solteiro, para mim, era a melhor coisa do mundo. Voltava da minha visita semanal a Charlie. Jon parecia incrivelmente saudável. —Aconteceu tudo tão rápido... —Ele disse. Tomou um gole de café. —Não ficamos juntos nem um ano, mas parece que a conheço minha vida inteira. Parece que foi ontem que eu me mudei para sua casa, e pedi que tirasse os incensos do quarto. Sabe, é nessa hora que a gente sabe que está vivo. Precisamos da morte para entender que temos vida. —Sorriu tristemente. —Veja só, estou vivo. —Pensei que tivesse parado com o café. Ele deu de ombros. Ficou parado por alguns instantes, fitando o movimento da lanchonete.
304
Ele tinha razão, as coisas acontecem rápido demais. Debbie era uma boa garota, é muito triste que tenha terminado desse jeito. Bem que ela poderia ter se perdoado, e continuado com sua jovem vida. —Aconteceu uma coisa estranha. —Ela baixou o tom de voz, e se inclinou sobre a mesa. —Mas precisa me prometer que não vai contar a ninguém. —Sabe que sempre pode confiar em mim. —Era o terceiro dia que eu estava naquele quarto escuro, completamente incapaz de levantar da cama. Era como se mãos estivessem me impelindo a continuar deitado, entende? Mãos humanas, mas muito fortes. Por diversas vezes, quase me mataram sufocado. Mas eu resisti. —Ele esboçou um sorriso, e eu vi que ele já estava começando uma crise maníaca. Essas crises sempre se denunciavam com um sorriso. —Eu resisti porque sou forte. Muito forte. Mais forte do que eles. — Eu quis perguntar quem são eles, mas achei mais sensato
305
permanecer apenas ouvindo. —Então, o relógio passou de cinco e trinta e cinco da manhã para cinco e trinta e seis. Eu fechei os olhos, mas não dormi. Debbie me disse para ficar em paz, porque ela estaria comigo todos os dias da minha vida. Isso te soa amedrontador, não é? — Ele tinha começado a falar daquela forma que me assustava. Sem interrupções, de uma forma psicótica. Estava impaciente, ora batia os dedos na mesa, ora brincava com algum dos objetos. —Pois não. Isso é bom, Reg. Muito bom. Quer dizer que ela não me abandonou, simplesmente. Você acha que ela me deixaria assim, tão bruscamente? Acha? Não deveria achar. Ela está aqui, nesse exato momento. Eu sei porque posso sentir. —Talvez tenha sido um sonho. Ele bateu a mão na mesa com força. Tinha ficado nervoso com minha observação. —Não foi. —Tudo bem , não foi.
306
O movimento com os dedos tinha ficado rítmico, e ele pareceu se confortar somente com aquele barulho. —O que acha? Pensa que sou louco? —Claro que não. Só acho que precisa descansar um pouco. —Não posso dormir. —Por quê? —Não posso. Esqueça, certo? Vamos sair daqui. Ele ia levantou-se num pulo, e já estava deixando a lanchonete. Gritei para ele: —Seria legal pagar a conta, não acha?
Tanto eu como Paul pedíamos para que ele viesse passar um tempo em nossas casas, mas ele recusou-se, dizendo que estava bem. Parecia realmente saudável, um pouco animado demais, e não disse mais nada a
307
respeito de nossa conversa na lanchonete. Julguei que tivesse dito coisas sem sentido porque estava em maus momentos, e cada um reage de forma diferente em relação á coisas ruins. Resolvi guardar para mim mesmo o incidente, pois as coisas haviam melhorado. Ele não mais falava de Debbie, e eu julguei que tivesse se conformado. Saímos em uma turnê nacional, e tudo correu tão perfeitamente que deixou Paul inseguro. —Ele não deve estar bem. —Comentou comigo e com Ryan. —Acho que tem uma bomba se formando dentro dele, e vai explodir a qualquer momento. Na época, eu não sabia se Paul estava certo, mas a verdade era que Jon parecia bem, e eu não queria me preocupar. Estava sempre querendo nos acompanhar s boates durante as turnês, algo novo para ele, que sempre tinha odiado lugares lotados e barulhentos. Se nós não saíamos com ele, ia sozinho, e
308
desaparecia até a hora da partida, quando íamos para o próximo país. Perdemos muitos vôos por causa de seus atrasos, mas parecia a nós que lhe era impossível permanecer nos quartos de hotel, ou parado por muito tempo. Estava em constante agitação, falava e bebia muito. Por muitas vezes, notei que não tinha noção nenhuma de tempo. Fiquei com medo do que aconteceria quando ele voltasse á realidade que ele parecia ter abdicado. Muitas vezes não parecia o Jon que eu conhecia, de uma forma que não sei explicar. Mas a realidade ia voltar, uma hora ou outra, quando acabasse aquele seu estado de agitação. E acabaria com Jon. Eu não sabia ainda que se tratava de seu transtorno. Algum tempo mais tarde, os policiais encontrariam uma carta remetida á Debbie, em meio ás suas coisas. Acho que aquilo explicou alguma coisa.
309
Obviamente, a carta nunca foi entregue. A data constava depois da morte dela.
“Já faz tempo. Devo ter perdido a prática. Já se passaram muitos anos desde a última vez quer fiz isso, um quarto escuro, me sentindo sozinho e mal compreendido, com esse mesmo vazio no coração. Não sinto nada, só esse vazio... E um pouco de medo. Medo inexplicável, sem sentido. Antes de descobrir a música, era isso o que eu fazia. Sentava e escrevia. Deixava sair tudo o que me incomodava por dentro. No final, o que restava era o vazio. Porém, um vazio cheio de paz, e eu conseguia chorar —Tem horas que não me sinto capaz de chorar. Isso acontecia só depois que ele saía do quarto, e eu ficava sozinho de novo, sem mais motivos para rezar. Mas, afinal, com quem estou falando? Tudo aconteceu rápido demais.O que quer de mim? Ainda não consigo entender. E não vai ser um pedaço de papel que vai
310
me ajudar, não é?Por que não me dá outra chance? Fui sempre tão egoísta... E você nunca reclamou disso. Eu mereceria outra chance? Se eu preciso de alguém? Se eu queria que alguém estivesse aqui, comigo, agora? Eu queria que você estivesse aqui, e me ajudasse a dormir. Não esses comprimidos, eu queria você! Será que alguém além de você já me amou de verdade? Eu fui capaz de amar pra valer. Acontece que eles dizem me amar e sofrer junto comigo, mas cadê todo mundo agora? Onde estavam eles nos dias mais loucos da minha vida. Talvez seja simplesmente isso. Sou louco, e está tudo na minha cabeça. Eles sorriram para mim, gritaram meu nome. Sento minhas forças se renovarem naquele momento. Vou me lembrar para sempre. Como um momento qusae mágico, irreal. De fato, fui aclamado pela primeira vez na vida, por pessoas que não conheço, mas me amam de verdade.
311
Não quero culpar ninguém dessa vez. Acho que estou mesmo ficando louco. Você me diz que não. Eu não aguento mais. VAI LOGO! ACABE COM ISSO! Quer me matar aos poucos? ASSIM FICA MAIS DIVERTIDO? Por favor, se apresse, ficar falando e me confortando não é nada prático, Deb.Você sabe que eu quero dar o fora, mas não encontro as forças. Estou vivendo nessa montanha russa de emoções, e eu nunca sei se tem mais alguma coisa terrível para acontecer. Estou confuso, nem sei mais o que pensar. No que se resume minha vida, afinal? Em menos de um ano! Eu vivi menos de um ano! Ás vezes, eu desejo nunca ter te conhecido, então eu não saberia o que é felicidade. A gente não perde o que não possui, certo? Não quero mais tentar. Tentar viver, tentar morrer. Dessa vez eu me rendo. Sabe como me sinto agora? Ainda mais vazio, e um pouco mais em paz.”
312
Achamos que a carta foi escrita em Brixton, depois de um show onde Jon foi aclamado pela platéia, depois que os fãs ficaram sabendo de sua doença. É muito incoerente, e completamente confuso. Me mostra como devia estar sua mente enquanto escrevia, e isso me causa arrepios.
Foi no último dia de viagem, depois de um exaustivo show, que Jon conheceu Julia. A banda do irmão dela estava em turnê conosco, conhecíamos ele há algum tempo, era um grande amigo da Peas. Julia veio vê-lo aquela noite, e nos bastidores encontrou-se com Jon. Como
ela
também
morava
em
Los
Angeles,
prometeram-se encontrar mais vezes.
313
Não preciso dizer que ela era loira, mas acho que era jovem demais para Jon. Tinha vinte e um anos, e eu sabia que não estava preparada para um relacionamento sério. Estava apenas deslembrada com seu ídolo, e isso era perigoso. Mas com o passar do tempo, pude perceber que ela gostava dele de verdade, e até concordou
em
viver
com
ele
na
mansão
mal
assombrada. Ela engravidou dois meses depois de terem se casado informalmente. Eu ia visitá-los de vez em quando, e levava Charlie comigo. Meu filho ficava fascinado com o bebê. Mas eu via que as coisas começaram a esfriar entre Jon e Julia, logo depois do nascimento da criança. Era como se a história de Renée se repetisse bem diante dos meus olhos, e fiquei com pena que estivesse terminando mais uma vez.
314
Jon me ligou ás quatro e meia da madrugada. —O que é? —Perguntei, sonolento. —Tem alguém aqui em casa. —Ele sussurrava ao telefone. Não entendi o que ele falou, e pedi que repetisse. —Tem alguém aqui em casa! —Onde está Julia? —Sentei na cama, fazendo o possível para afastar a névoa de sono da minha cabeça. Tinha bebido demais na noite anterior, e ainda me lembrava da garota ruiva que eu tinha beijado na balada. Não fazia mais de duas horas que eu tinha vindo para a cama. —Julia? —Ele perguntou, como se estivesse ouvindo esse nome pela primeira vez. —Não está em casa. —O que é que está acontecendo, Jon?
315
—Eu disse para ela que não é mulher de verdade, pois nem sabe cuidar direito do bebê. Tony estava chorando, e ela, ouvindo música alta no fone, nem ouviu. Começamos a gritar um como outro, e ela decidiu ir dormir na casa da avó. —E quem é quem está aí? —Não sei, mas ouvi meu nome. Estava me chamando. Deve estar lá embaixo, escondido. Estou com medo, Reg. —Já ligou para a Polícia? —Polícia? Claro quer não. O que eles poderiam fazer? Não se trata de pessoas normais, entende? Escuta só, eu estava no estúdio, e coloquei café para esquentar na garrafa térmica. —Jon... —Tentei interrompê-lo inutilmente. O estúdio da Peas ficava em um dos cômodos da sua casa, e ele gostava de ficar lá mesmo que não estivéssemos ensaiando ou produzindo. Não
316
era de se admirar que alguém como Jon ficasse assustado em um lugar daqueles, até eu me sentia estranho quando entrava na sua casa. Mas ele parecia insistir em sua tragédia, como se precisasse dela, ou gostasse disso. É uma das coisas que jamais consegui compreender. —Julia me chamou lá do quarto, eu queria esquentar o café, mas ela encheu tanto o saco, e a garrafa estava demorando
tanto,
que
eu
desisti,
interrompi
o
funcionamento, e desliguei a garrafa. Ouviu bem? Desliguei a garrafa. Aí eu e a Julia discutimos, porque ela estava ouvindo música, e o bebê estava... —Jon! Você já disse isso. Quem é que está na sua casa? —...Resolvi voltar para o estúdio, e a garrafa estava ligada. E esquentando o café! Reg, não estou louco, tenho certeza que desliguei. Mas ela estava lá, funcionando perfeitamente. Alguém ligou ela depois de mim!
317
—Espíritos não tomam café, Jon. E veja pelo lado bom, seu café estava quente. Gostaria de voltar a dormir agora. —Eu saí de lá correndo, e ouvi barulho do corredor. Em um dos quartos, como se alguma coisa tivesse caído, ou sido arremessada na porta. Foi um barulho enorme! E agora tem alguém me chamando. Estou com medo. Você não pode me ajudar? —Você deve estar sonhando, Jon. O que quer que eu faça por você? —Não sei. —Onde você está? —No quarto. Ele começou a chorar. O telefone foi cortado por um momento, e percebi que o sinal estava fraquejando. Fiquei com medo. Jon estava realmente perturbado. Se estava começando a ter alucinações, era melhor eu me preocupar.
318
—Tomou alguma droga? —Perguntei, torcendo para que ele dissesse que sim. Jon não costumava usar drogas, e eu sabia que era uma pergunta boba. Sua resposta foi cortada por uma falha do sinal. Ele se desesperou. —Não desligue, não desligue, Reg! Por favor, não me deixa. —Calma, estou aqui. Olha, Jon, vai demorar até eu chegar aí. Então é melhor que você tome um calmante. Tem tomado os calmantes? —Não! —Ele gritou. —Não sou um maldito louco! Não preciso dessa drogas de remédios. Você mesmo me dizia isso, seu falso mentiroso! Entendi que era melhor eu tomar uma atitude. Tentei acalmá-lo pelo telefone sem fio enquanto me vestia. —Está tudo bem, Jon. Estou indo aí. Apenas mantenha a calma, tranque a porta do quarto, e não saia daí por
319
nada. —Meu maior medo era perder o contato com ele até que eu chegasse. Era óbvio que Jon era capaz de cometer uma besteira.—Escute, vou te ligar do celular, assim eu posso falar com você enquanto estou dirigindo. Atenda assim que eu ligar, certo? Entendeu bem?Vou desligar agora. —Não! —Ele me interrompeu. —Estão batendo na porta do meu quarto. —Começou a gritar, em pânico. Eu me desesperei também. Calcei os sapatos em tempo recorde, mas estava com medo de desligar meu telefone resisdencial. —Atenda quando eu desligar. —Não! Pelo amor de Deus, eles vão me matar. Vai me matar! Desliguei o telefone, largando-o no chão. Peguei o celular, enquanto tropeçava na escada antes de sair.
320
Eu
não
consegui
completar
a
chamada. O sinal estava caindo. Pensei em ligar para a Polícia, mas aquilo poderia ter de grande repercussão, e acabaria por chegar aos ouvidos da mídia. Cheguei na mansão tão rápido que mal pude acreditar. Algo me dizia que era tarde demais, e hesitei antes de pular o muro. Cruzei a enorme garagem, forcei a porta da frente, mas descobri que estava aberta. Subi as escadas, e estaquei quando vi a porta do quarto escancarada. —Jon? —Chamei. Silêncio. Todas as luzes estavam acesas como de costume, mas não havia o menor indício de vida ali. Hesitei antes de entrar no quarto. Chamai mais uma vez.
321
Vasculhei todo o aposento, depois o resto da casa. Nenhum sinal de Jon. O fim estava começando.
Apareci na casa de Paul. Já tinha amanhecido, e ele também estava de ressaca. —Jon desapareceu. —Eu disse, simplesmente. —Como assim? Imitei
um
mágico
quando
faz
algo
desaparecer. —Já falei com George, ele está tentando entrar em contato pelo celular, mas acho que Jon deixou em casa. —Expliquei o telefonema de madrugada, e consegui deixá-lo tão preocupado quanto eu. —E Julia? Já sabe o que aconteceu? —George ficou de entrar em contato com ela. —E o que vocês estão achando?
322
—Não sei. —Sequestro? —Arriscou, incrédulo. —Não consigo imaginar. Tenho medo de que possa ter tido um surto. Pode estar em qualquer lugar desse mundo. —Não seria melhor chamar a Polícia? —Ele tentou. Eu assenti, sabendo que não faríamos isso. Comecei a caminhar em direção da porta. —Se eu tiver mais novidades, te ligo.
Duas horas depois Julia apareceu na porta. Estava assustada. Pedi que sentasse, e lhe dei um copo de água. —Tem idéia para onde ele pode ter ido? Ela sabia tanto quanto eu. George já não sabia onde procurar. Não sabíamos o que fazer. Julia esperou no meu apartamento pelo resto do dia, sem que obtivéssemos novidades. Eu
323
começava a me desesperar. Ela passou a noite com o bebê no meu quarto de hóspedes. Você não tem idéia de onde está entrando. Eu pensei. Pensei que seria melhor ela se afastar enquanto havia tempo.
Passamos duas semanas sem novidades. A campainha tocou ás onze da manhã, me despertando. Achei que fosse George ou Paul, e tive medo das novidades. Deparei com Jon na porta. —Bom dia. —Ele disse, simplesmente. —Te acordei? —Pelo amor de Deus! Onde é que você estava? —Andando por aí. Obriguei ele a entrar e sentar no sofá. Estava completamente despenteado, e a barba deixada por fazer fazia com que se coçasse o tempo todo.
324
—Estávamos preocupados! Ele recostou-se no sofá. —Por quê? —Como tem coragem de me perguntar por que, seu imbecil? —Fala sério. Que tempestade em um copo de água. Eu estava meio deprimido, e saí para andar. —Acha mesmo? Um exagero de nossa parte? Não é o que Julia pensa. —Contou á ela? —Você acha que ela não teria percebido? —Sério? —Ele parecia genuinamente surpreso. —Quanto tempo acha que ficou fora, Jon? —Não conseguia dormir, e fui andar. —Por uma semana? —Foi apenas uma noite! —Dê uma olhada no calendário. Completou quase uma semana.
325
Ele teve que conferir para acreditar em mim. —Eu... Sinto muito. —Ele disse. —Você precisa ver um médico, Jon. Tem algo de muito errado com você. Ele assentiu —Ligue para Julia, e diga que está tudo bem. Não quero voltar para casa agora.
Acordei com os gritos dele. O rosto molhado e as mão trêmulas me fizeram entender porquê ele tinha tanto medo de dormir. —Tranque a porta! —Ele saltou da cama e bateu a porta do quarto. Voltou ao seu lugar rapidamente. —A casa está trancada? —Ele me sacudiu pelos braços. —Tudo fechado? —Sim, Jon. —Tive que responder depressa. —Ms não há perigo algum. Era só um pesadelo.
326
Ele balançou a cabeça várias vezes em negativa. Encolheu-se no canto da cama e tapou os ouvidos com a s mãos. Seu corpo tremia por baixo das cobertas. —A porta está trancada? —Indagou, como se fosse a primeira vez. Eu assenti, torcendo para que aquela noite passasse logo. —Estou
com
medo.
—Ele
começou
a
chorar,
compulsivo. Aproximei-me,
hesitante.
Ele
teve
um
sobressalto quando eu o abracei, mas não se moveu. Continuou chorando. E pela primeira vez em muitos anos, eu chorei também. Ele olhou para mim, afastando-se do abraço. Parou de tremer, e seus olhos tinham perdido aquele brilho de insanidade por um momento.
327
—O que está acontecendo comigo? —Ele sussurrou, antes de fechar os olhos.
Paul o levou ao psiquiatra alguns dias depois. Jon já tina voltado para casa, mas eu alertei Julia para entrar em contato
comigo
se
houvesse
problemas.
Estava
preocupado com ela. Não sei se não havia riscos para ela ou para Tony. Liguei
para
Paul
em
busca
das
informações do médico. O que ele me disse não me deixou nem um pouco contente. —O dr. Perry deu um primeiro diagnóstico, mas ainda não é um diagnóstico definitivo. Ele acha que Jon sofre do Transtorno Esquizoafetivo.
328
—E que droga é essa? —Perguntei, custando a acreditar. Era um nome estranho, não me soava bem, e eu estava cansado demais para aceitar aquilo. —É uma doença, Reg. Quase uma mistura do Distúrbio Bipolar, e a famosa Esquizofrenia. O dr. Perry explicou que não é um transtorno reconhecido por todos os psiquiatras, mas acontece, e ninguém tem certeza do que chamar. Uma coisa ou outra, entende? —E o que é que temos que fazer? Tem cura? Ele demorou para responder. —Como a maioria das doenças mentais, não existe cura. Mas existe tratamento. Ele receitou antipsicóiticos. Não sei se vai dar certo. Estou realmente assuntado. Sabia eu Jon estava doente, mas não pensei que fosse tão sério assim. Não achei que estivesse patologicamente louco. —Quer dizer que vai ser assim pro resto da vida? Não posso acreditar. Como é que ele está?
329
—Está tentando parecer conformado, mas temo que essa novidade acabe com ele. Fui visitá-lo na tarde seguinte. —Ele me deu pílulas para dormir. —Explicou, sentando no sofá e estendendo os pés em cima da mesinha de centro da sala. —E mais uns doze tipos de comprimidos que ele chamou carinhosamente de anti psicóticos. —E você vai tomar, não é? Ele deu de ombros, e pegou uma lata de refrigerante. —Está
me
deixando
tonto.
Meu
braços
estão
adormecidos, minha mente parece estar há quilômetros de distância. Mas acho que só devo estar sentindo a falta da psicose.
Peas, Final Perfeito
330
Isso é dor, e você não pode me curar Se fosse só um sintoma, eu poderia pensar de novo É o problema, fiquei sozinho de novo Encontrei minha solução Se fosse para morrer agora, eu fecharia os olhos Eu sei que não vai doer Percebo que era tudo que eu procurava O fim da vida que estava me matando Meu coração começa a bater devagar Minha mente sedada não percebe
Os remédios fizeram o efeito esperado durante alguns meses. Isso nos deu grandes esperanças, e até começamos a gravar nosso novo álbum. Estávamos
com
problemas
com
nossa
gravadora na época. Acho que isso é comum em nosso meio, e não era a primeira vez que acontecia. O problema era que as idéias não batiam. Eles queriam
331
dinheiro, nós queríamos fazer música. Jon ficou nervoso, quase matou um cara lá de dentro, de tanto socá-lo, fora do controle. Nosso empresário entrou na briga, e acabou apanhando também. No final, acabamos perdendo, e as coisas continuaram a ser do jeito que a gravadora queria. Como sempre acontece. A lei de Darwin, Jon disse.
Ele não era capaz de lidar com as coisas que aconteciam rápido demais, ou com muitas novidades. E Ryan deixou a banda naquela mesma ocasião, devido á sua nova religião. Tentamos convencê-lo de que uma coisa nada tinha a ver com a outra, mas não adiantou. Acho que o baque de perder Ryan como amigo foi muito pior para nós do que perdê-lo como guitarrista base. O Peas logo se reergueu, mas nunca nos recuperamos de sua suposta traição. Digo suposta
332
porque pessoas abandonadas tendem a sentir-se traída, mesmo que não seja verdade. A pressão da gravadora também aumentou naquele ano, e as mudanças no próprio som da banda acabaram por ser inevitáveis. —Metal industrial. —Jon adjetivou, na sala de George. O empresário nos explicava as novas exigências impostas. —É isso o que querem da gente. Conseguimos
driblar
algumas
de
suas
vontades, mas se queríamos continuar em cima dos palcos e fazer o que amávamos, tínhamos que aceitar. —Vamos subir lá —Disse Paul, antes de um show em Acapulco. —Olhar para aqueles rostos inocentes e tocar. Simplesmente tocar! Não havia outro meio de sobrevivência. Tivemos três turnês em uma ano, as brigas de Jon com Julia aumentaram. Eu assistia a história de Renée se repetir. Dessa vez, eu o aconselhei a ir embora
333
de casa, mas ele descordou. Eu sabia, ele também. Não havia Debbie agora. Parece que a vida precisa nos colocar contra a parede, para que possamos olhar pra cima. Foi então que eu entrei em uma igreja pela primeira vez, e tive meu
encontro
espiritual.
Minha
vida
mudou
completamente. Ainda tinha problemas, mas minha capacidade
de
enfrentá-los
aumentou
de
forma
considerável. Mesmo o problema de Jon parecia ter menor gravidade. Mas isso não me impediu de cometer a maldade de ligar para Ryan e dizer: Viu? Eu também encontrei meu caminho, mas não tive que deixar meus amigos e minha banda por isso. Jon estava traumatizado com a história de Ryan, e tinha medo de que eu largasse a Peas. Me provocava o tempo todo, muitas vezes de forma
334
agressiva e hostil. eu tentava ignorá-lo ao máximo, e até arrisquei convidá-lo a ir na igreja comigo. Exatamente como eu previa, ele riu e ironizou. —Não, irmão. Muito obrigado.
Ele desapareceu mais uma vez em meados de dezembro. Dessa vez, não hesitamos antes de acionar a Polícia. Como uma repetição da primeira cena, Julia apareceu em casa, chorando. Sentou-se no sofá. —Sinto muito, Reg. Mas não sei quanto tempo vou aguentar. —Tenha paciência, nós vamos encontrá-lo. —Não é só isso. —Eu pude sentia a raiva em sua voz, e depois em seus olhos, quando ela levantou o rosto para mim. —Não é só essa maldita doença! Há dias não
335
conseguimos ter um diálogo sem que comecemos uma discussão. E são por coisas tão bobas... Como um molho de chaves deixado em lugar errado, ou o café que acabou. —Você precisa ter um pouco de paciência com ele. —Ele não quer tomar os remédios. Finge que toma, mas encontrei um comprimido enterrado em um vaso de plantas. E agora, ele some de repente! Eu ia dizer que a culpa não era dele, que era preciso cuidar dele. Mas a verdade era que eu também estava cansado. Por diversas vezes imaginei se não seria melhor se tudo terminasse.
George me ligou e avisou que tinham achado Jon em um hospital em nosso bairro. —Ele caiu de cima de um muro. —O médico explicou.
336
—Que droga de muro? O que quer dizer com isso? — George indagou. —Seu amigo sofre problemas com drogas? —Não. Eu julguei que era melhor dizer a verdade, não havia mesmo como evitar as consequências. —Ele
tem
um
problema
mental.
Transtorno
Esquizoafetivo. Se quiser, posso chamar o médico dele aqui. —Já temos um psiquiatra cuidando do caso. —E Jon está machucado? —George quis saber. —Arranhões superficiais. E quebrou a perna. —Só isso? —Bom, e onde é que ele achou um muro para despencar? —Indaguei, como se aquela história maluca não fizesse sentido. Eu já estava cansando dos sumiços de Jon. Aliás, tudo a respeito começava a me cansar.
337
—Seu amigo estava correndo da polícia. Não sei o que ele pensou que fosse, mas em seu desespero tentou invadir uma casa. Eu diria que teve sorte de cair antes que alcançasse o topo, porque a casa era protegida por arames farpados. —E ele está bem? —Perguntei, sempre com medo da resposta. —Temo que não, sr. Levesque. Sugiro que procurem uma clínica psiquiátrica. Entrei em contato com o psiquiatra que acompanhava Jon desde a primeira vez. O dr. Perry pediu que ele fosse transferido imediatamente para sua clínica particular. Tive medo de que demorassem demais para transferi-lo, e esse foi meu primeiro conflito com o dr. Perry. Eu preferia que Jon ficasse em um hospital convencional, embora soubesse que internar-lo em uma clínica psiquiátrica era a melhor
338
alternativa naquela situação. A palavra hospício me veio á mente, e causou-me arrepios. Quando
percebeu
que
George
e
eu
estávamos hesitantes quanto á nova decisão, o dr. Perry veio até o hospital onde estávamos. —Eles querem matá-lo aqui. —O dr. Perry quase sussurrou para mim. —Vai deixar que o matem? —Por que diz isso? —Posso levá-lo, ou vai deixar que injetem uma porção de calmantes? Seu amigo está sofrendo uma crise de asma, desesperado porque não consegue entender o que está acontecendo. Pelo pouco que pude entender, acha que se trata de uma conspiração espiritual, e talvez esteja em uma realidade paralela, onde querem matá-lo. Não, Jon não estava pensando isso. Não o meu amigo normal, que não possuía uma imaginação tão absurda.
339
—E vão matá-lo mesmo, porque Jonathan precisa de gente especializada. —Continuou. Engoli em seco e assenti, tomando a decisão. Logo, estávamos seguindo para o tal hospital do dr. Perry. Não parecia um hospício, pelo menos não na sala de espera. George pegou uma revista, e a folheava
sem
ver
nada
realmente.
Achávamos
realmente que aquele era ao fim. E agora eu orava para que não fosse, para que eu tivesse uma chance de me redimir dos pensamento errados. Uma enfermeira veio em minha direção e pediu que eu a acompanhasse. Fiz sinal para que George nos acompanhasse. Ela nos guiou até a sala onde o dr. Perry colocava luvas brancas, e preparava uma injeção. —Ele precisa voltar. —Disse para mim. —Você permite que eu o traga de volta?
340
Eu não soube o que responder. George também permaneceu calado. —Preciso de uma autorização. Ainda
assim
não
respondi.
Fiquei
lembrando das histórias de Jon a respeito de um aparelho de choque que o personagem de algum livro tinha
sido
submetido,
depois
de
uma
crise
esquizofrênica. Não, não permitiria que fizessem isso com Jon. Eu ia negar, dizer para que parassem com aqueles atos desumanos, mas o dr. Perry pediu para que os enfermeiros me tirassem da sala. Eu tinha demorado demais, e Jon precisava de uma resposta rápida. Sua vida dependia de minha decisão, e eu não era capaz de escolher. —Isso é proibido por lei. —Tentei, embora soubesse que o dr. Perry estava mais a fim de salvar Jon do que eu.
341
—Se não quer dizer agora, vou ter que responder por você. Não me importa se você quiser me processar mais tarde. Esperei por algumas horas que pareceram dias. Aquela sala de espera estava me matando. Não conseguia parar de pensar no pior, imaginar que Jon já devia estar morto por aquelas horas. Eu sei que George pensava o mesmo, mas não estava disposto a se deixar desesperar. Finalmente, o médico apareceu. —Você pode visitá-lo de manhã, está bem? Pode ficar despreocupado, Jon está bem e vai se recuperar logo. Entre em contato comigo sempre que achar necessário. Voltei na manhã seguinte, mas não sem antes pensar mil vezes. Estava com medo do que ia ver, nunca tinha passado por nada parecido em toda minha vida. É incrível como a doença mental ainda é um tabu, até mesmo
para
mim.
Pedi
para
que
Paul
me
acompanhasse.
342
Na verdade, eu esperava ir visitar Jon em um quarto, mas fomos encaminhados para uma sala de visitas. Jon estava esperando por nós. Era como a sala de uma casa qualquer. Havia televisão e livros. Sentei em uma poltrona, na outra extremidade da sala. —Onde está Tony? —Ele perguntou, obviamente decepcionado. —Julia não pôde vir. —Paul falou. Jon levantou-se e foi saindo da sala. Paul conseguiu puxá-lo pelo braço. —Queremos conversar. —Não tenho nada a dizer. —Eu sei que deve estar nos culpando, mas não fomos nós que decidimos colocá-lo aqui. —Não estou perguntando nada. Só achei que fossem meus amigos. —Por favor, Jon... —Interferi, mas não tive palavras para continuar.
343
—Quando é que vão me tirar daqui? —Quando o médico disser que já está bom. —Foi Paul que respondeu. —Ele não vai dizer isso nunca. É conveniente que permaneçamos loucos. Sabe como é, essa coisa toda que vemos na televisão. —O dr. Perry é confiável. —Eu disse. Não tinha certeza, mas precisava dizer alguma coisa. —Sim, plenamente confiável. Sabe o que aconteceu ontem, Reg? Me deu alguns choques na cabeça. Não que eu esteja reclamando, porque nada como um bom choque nas idéias pra gente ver tudo com mais clareza. Não respondemos. Já tinha começado com as ironias, e isso nunca foi bom sinal. —Vamos fazer de tudo para tirá-lo daqui o mais rápido possível. —George garantiu. Eu assenti, efusivo. —Certo. —Ele puxou a maçaneta da porta. —Então eu estarei
esperando
lá
dentro,
perto
da
ala
dos
344
esquizofrênicos. Quem sabe eu também não encontre um amigo invisível por lá? Aí eu prometo que não darei mais trabalho para vocês.
Julia me ligou e pediu que eu fosse até sua casa. Quando cheguei lá, estava arrumando suas malas. Tony dormia no berço, e com um aperto no coração me lembrei de meu pequeno Charlie. Tony estava assim destinado: Mais um filho de pais separados. —Você está de cabaça quente agora. —Eu tentei. Ela balançou a cabeça em negativa, e começou a chorar. Eu gostaria de ter as palavras certas que a fariam ficar. —Não consigo mais. Preciso me salvar, e tirar meu filho disso. Não quero que ele veja as coisas que está vendo.
345
—Se está pensando realmente em Pirata, considere que a melhor alternativa não é um lar despedaçado. —Jon nunca está em casa, mesmo. E sei que ele tem outras. —Eu arrisquei minha melhor expressão de surpresa. —quando vai á essas festas com vocês... Por favor, não pense que sou cega. —Ele está doente, Julia. Por favor, repense. —Não, Reg! Não consigo mais ouvir isso, não consigo. —Colocou a última peça de roupa dentro da mala. Não tenho certeza, mas acho que aquela mala era de Jon. — Eu espero que você me entenda, porque sei que ele é cabeça dura demais para entender. —Não vai ao menos dizer adeus? —Não é necessário. Creio que ele vai querer visitar o Pirata. Diga que sempre pode fazer isso. Estarei na casa da minha avó, pelo menos por um tempo. Entregou a chave de casa na minha mão, e saiu.
346
Por mais que tentássemos negar, Jon já não era capaz de cuidar de si mesmo e de seus próprios assuntos. Esquecia os horários, se perdia nas datas. Quando estava em casa, trocava a noite pelo dia. Não se alimentava direito, e só dormia porque os remédios eram mais fortes do que sua vontade de permanecer acordado. Tentamos dever tudo isso á sua perna quebrada, e que ele ainda se recuperava de sua estadia no hospital psiquiátrico. Ele dizia que os remédios contra dor receitados pelo seu médico eram fracos demais, e acabou encontrando o seu ideal por conta própria, o que finalmente aplacava as dores de seu osso que se calcificava, e as supostas dores de cabeça que o tornavam irritadiço. Eu dizia para que parasse com aquilo, o remédio era forte demais, e acabaria por viciá-
347
lo. Eu estava certo com minha predição, e obviamente, ele não me deu ouvidos. Jon não pareceu se importar quando anunciei que Julia tinha partido. —Eu já sabia. —Não sei se dizia a verdade, mas nunca mais tocamos no assunto. Paul e eu nos revezávamos para não deixálo sozinho, tanto em casa como durante as turnês. Não era grande sacrifício de nossa parte. Minha únicas companhias em casa eram meus cachorros, e meus únicos compromissos fora da Peas eram com a igreja. Paul era um fanfarrão, e nunca se importou com nada, além de festas e curtição. Acho que nunca pensou em casar. Aquele ano, em um todo, correu muito bem. Jon não teve poucas crises, e observávamos quando ele tomava remédio.
348
—Odeio isso. —Esbravejava toda vez que avisávamos que era hora do remédio. —Eu não sou uma maldita criança. —Então não tinha esquecido? —Claro que não! Programei meu celular, ele vai me avisar todos os horário, ouviu bem? O único horário que ele não perdia, eram os da visita a Tony. Julia permitia que Jon passeasse com ele, eu assegurei á ela que não tinha problemas, Jon me parecia completamente sob controle. Estávamos no estúdio naquela tarde. Os caras saíram para almoçar, Jon e eu ficamos esperando a pizza ali mesmo. Eu fumava um cigarro, sentado no sofá. —Odeio esse sentimento de gratidão. —Jon disse, de repente. Enchia um copinho plástico de café. —É a pior coisa que um ser humano pode sentir. —Do que está falando?
349
—De vocês. Dessa droga toda. Não são mais meus amigos, são minhas babás, meus enfermeiros. E o que ganham em troca? Porcaria nenhuma. Ou melhor, minha maldita gratidão. Respirei fundo. —Estou fazendo o que posso. —Eu sei, e esse é o problema. Por que são tão egoístas? Por que não me deixam morrer logo? Sentou-se pesadamente na poltrona que combinava com o sofá. Eu dizia a mim mesmo para manter a calma. São apenas palavras vazias de um cara cansado de depender dos outros. Eu entendia isso, mas nada impedia que minha raiva subisse á garganta. —Essa piedade —Ele continuou. —O jeito que todo mundo me olha. Coitadinho dele, não é? Está doente. Eu não sou nenhuma droga de retardado, entendeu? Quero que parem de agir como se eu fosse.
350
—Como pode saber se a gratidão é um mau sentimento se nunca sentiu? Não acho que você seja capaz. —Eu nunca pedi ajuda. Por que deveria me sentir grato? Não quero que me ajudem, entendeu? Só isso! Não pode ser tão difícil de entender. —Acontece que consideramos você. Nos preocupamos. —Então, parem com isso. Não estou fazendo mal pra ninguém além de mim mesmo. Essa maldita perna dói em mim, não em vocês. Levantei do sofá na vontade de espancá-lo. Ao invés disso, joguei as palavras das quais eu me arrependeria pro resto da vida. —Se quer tanto morrer, por que não se mata logo? Deixei o estúdio antes que ele pudesse responder.
351
A turnê do nosso último álbum, The Damage Done, teve início logo depois da retirada do gesso da perna de Jon. Por ordens do dr. Perry, não fazíamos mais longas viagens, sempre voltávamos para casa e deixávamos que Jon descansasse por um tempo. Conseguimos conhecer alguns pontos turísticos da América do sul, e Jon se divertiu um pouco, mesmo com seus horários restritos. Parecia a mim que já estava se acostumando com a nova rotina. A vida de rock star teve que ser deixada para trás.
Ele teve duas crises antes que voltássemos para casa em julho de 2007. Eu diria que foram dois surtos literários, como só Jon era capaz de ter. Paul me contou que ele surgiu durante a madrugada no seu quarto, chorando e gritando que
352
alguém estava perseguindo ele, e tentava matá-lo. Eu o encontrei encolhido junto á parede. Pedi explicações. —Ele quer me matar! —Quem? —O assassino. —Não me diga. —Ele me seguiu durante todo o trajeto até aqui. Eu tinha ido no... No... Correu atrás de mim pela escada. De início, eu achei que era só impressão minha, mas o cara não parava de observar. Ele e vestia um sobretudo preto, e botas de couro. —Nesse calor, Jon? —Isso. Ele correu atrás de mim... Pela escada. —Por que haveria de persegui-lo? Paul revirou os olhos deitou-se na cama. Esforcei-me para continuar paciente. Jon baixou o tom de voz para um sussurro.
353
—Ele vai arrancar meu coração. Vai arrancar meu coração e colocá-lo... Colocar numa caixinha. —Seus olhos molhados agora brilhavam, quase de excitação. Quando você abrir a porta amanhã, vai encontrá-lo ali, ensangüentado numa caixinha de papelão. Exatamente como no livro. Ouvi alguma exclamação de Paul. Passei as horas seguintes explicando que ele estava seguro ali, e implorando para que tomasse a pílula. Quando ele finalmente concordou e dormiu, fomos pegar o tal livro no quarto dele. Era um romance policial, e tratava da história de uma jovem detetive, que perseguia e era perseguida por um assassino em série. A cena a qual ele se referia acontecia mesmo em um hotel, e a protagonista recebia na porta de seu quarto uma caixinha contendo o coração de um de seus colegas de trabalho. Nós desaparecemos com o livro, como se aquela atitude resolvesse nossos problemas.
354
—Onde foi que deixei a droga do livro? —Ele perguntou a si mesmo, enquanto preparava as coisas para seguir para o próximo país. O segundo surto aconteceu na Bolívia, uma semana depois. Ele ligou para um amigo nosso em Los Angeles, que imediatamente me ligou de volta, preocupado. —Reg, Jon ligou aqui agora há pouco. —Fred contava. —E eu acho que é melhor ir atrás dele. —Ah Deus meu! E o que é que ele disse pra você? —Disse que você quer roubar as pedras mágicas dele. Não pude conter o riso. — Que droga...? —Não sei. Alguma coisa sobre umas pedras que são capazes de saber do futuro. Jon disse o nome, mas agora não me recordo. —Cara, temos duas horas antes que comecemos o show.
355
—Então é melhor se apressar. E tome cuidado com o que vai dizer. Afinal, é de você que ele desconfia. Levando em consideração essa advertência de Fred, pedi para que Paul e George fossem em busca dele. Foi sorte nossa que o tenham achado no jardim do hotel. Fico imaginando o que teria acontecido se ele tivesse se perdido em um país desconhecido, cheio de imaginações absurdas e idéias mirabolantes. O que faria eu
com
pedras
que
liam
o
futuro?
Não
me
interessavam. Prefiro surpresas. Mesmo porque eu sabia que acabaria por me assustar com o que o destino me reservava. Enquanto aguardava o retorno de Paul e George, segui para o quarto de Jon. A porta tinha sido deixada aberta. Revirei a mala de Jon e encontrei dois livros. Um deles tinha um marcador de páginas. Comecei a folheá-lo. Não era um livro grosso, as letras eram grandes, o tipo de história fácil. Eu não sou muito
356
fã de leitura, mas um livro assim eu até me atreveria a ler. Era um autor brasileiro, um dos grandes ídolos de Jon. Não demorou até que eu encontrasse a página que procurava. Um dos trechos que falavam sobre as pedras mágicas. Um sábio rei entregava para um humilde pastor duas pedras: Urim e Tumim. Elas eram a única forma de adivinhação permitida por Deus nos tempos de Moisés, e a busca da Terra Prometida. A pedra de cor preta significava “sim”, e a de cor branca significava “não”. Fiquei curioso para saber o que o jovem pastor desejava adivinhar em seu futuro, mas fechei o livro quando meu aparelho celular tocou. Era George, anunciando que tinha encontrado Jon. Pensei em dar sumiço nesse livro também, mas me dei conta de que não adiantaria. Recoloquei o livro dentro da mala.
357
Jon tinha os olhos vazios enquanto fitava o chão do quarto de Paul. George colocou nosso novo desafio: —Temos um show para fazer, e já estamos atrasados. Arriscaremos, ou não? Olhei para Jon. Não deveríamos. Não mesmo. Mas cancelar mais um show seria um prejuízo grande demais. Pagaríamos uma multa enorme, e ainda corríamos o risco de sermos processados. —Temos fãs que nos esperam. —Respondi. George assentiu. Conseguimos levar Jon meio catatônico até o carro, e depois até os camarins. Seu olhar perdido ás vezes se tornava assustado, mas logo voltava á impassividade. Subimos no palco, com o coração aos pulos. Não vai dar certo.É melhor desistir enquanto ainda há tempo. O milagre da música. O incrível milagre da música. Ele se empolgou no palco, muito mais do
358
que normalmente faria. O show correu quase natural, e acho que passamos perto de enganar a multidão de jovens, convencendo-os de que não havia nada de errado. Jon esquecia as letras, e improvisava qualquer coisa absurda. A platéia não pareceu se importar. Imaginei que parte dela não entendia o que dizia, e a outra parte simplesmente levou tudo numa boa. Há certa altura, Jon trocou a letra inteira de uma música, substituindo-a pela história da Cinderela e o seu sapatinho de cristal. Estava provocando riso na platéia, e nos deixando em pânico em cima do palco. Estávamos na penúltima música quando ele disse, interrompendo o som na metade, nos obrigando a parar de tocar. —Eu não quero mais fazer isso. Estou cansado e vou para casa.
359
Largou o microfone no chão e saiu. Paul usou o seu próprio microfone de vocal de apoio e se desculpou com a platéia. —Até mais, pessoal. Vocês foram incríveis. Voltamos para casa no dia seguinte. Aquele tinha sido o último show da Peas.
Eu tenho minha própria teoria. Sim, eu sei que foi encontrada uma suposta carta de suicídio em seu quarto, mas estou disposto a acreditar que foi um acidente, uma distração de Jon. Eu expus minha opinião aos médicos, e eles disseram que não era impossível que se tratasse de um acidente. Mas os legistas afirmavam sua teoria com tanto afinco, que foi essa a notícia que saiu na Internet no começo de 2008. Jon estava com vinte e oito anos. Não havia nada de errado com ele naquele noite. Pelo contrário,
360
ele parecia bem. Assistimos um filme de comédia em minha casa. Jon odiava comédias românticas, mas nos divertimos com comentários estúpidos á parte, mal consegui prestar atenção ao filme. Ele foi para o quarto de hóspedes que sempre ocupava quando dormia em casa, e eu nem desconfiei que algo estivesse para acontecer. Na manhã seguinte, encontrei seu corpo sem vida. Foi um dos policiais que identificou a possível carta de despedida, entre os outros inúmeros papéis de desabafo.
“Eu tenho muito pra sentir, mas pouco para dizer.Embora eu reconheça que devo me desculpar por tudo o que causei,não consigo encontrar as palavras certas. Acho que ainda não foi inventada a definição exata da palavras “loucura” e “dor”. O máximo que posso dizer é que tenho tentado da melhor forma possível, para abandonar a dor e suportar
361
sozinho, e mesmo mergulhando no fundo onde cheguei, não encontrei as linhas que dividem. Pensar “vai ser melhor amanhã” já não está funcionando, e aí eu vou chegando ao meu limite. E qual é o meu limite? Uma coisa que eu posso dizer é que, fora as noites passadas em claro, agarrando um travesseiro no canto da cama, esperando que a porta do quarto se abrisse, nunca me senti sozinho. Vocês nunca deixaram que isso acontecesse. Apesar de minha certeza de que ninguém além dela foi capaz de me entender. Vocês me deram forças para continuar. Agora já não parece tão estranho. Meu coração está batendo forte, mas não é tão assustador assim. Acho que hoje consigo ver tudo com mais clareza. Qualquer coisa que deixem minhas mãos livres. Então me julgue agora. Eu tinha medo de admitir, mas agora... Agora sim. Acho que não venci essa corrida. Ou venci? Afinal, cheguei até aqui. Tem mais alguma coisa para acontecer? Eu quero silêncio. Deixar o ódio e a dor, só o que vai restar é o vazio. Não permite que eu sinta absolutamente
362
nada. Ele está mais calmo agora. Batendo devagar. Estou esperando. Cada vez mais devagar... Sem outro amanhecer. Um vislumbre do meu lar seguro. Eu sinto muito, muito mesmo.
De braços abertos, estou chorando. De braços abertos, eu vejo o fim. De braços abertos, estou esperando.
Luz das estrelas do céu, guiem meu coração, e me diga porquê!”
Eu identifiquei alguns trechos das músicas que ele costumava ouvir quando estava triste. Sei que parece mesmo que ele escrevia enquanto esperava os calmantes fazerem efeito. Mas os peritos diziam que a carta poderia ter sido escrita muitas horas atrás, quem sabe até há alguns dias. Sinceramente, acho que era apenas mais um de seus papéis, embora pareça o derradeiro pedido de socorro e a despedida.
363
Eu observo que a carta não tem destinatário, nem assinatura. E não era a primeira vez que Jon escrevia sobre suicídio. Como prova disso, existem músicas da Peas. Consigo imaginá-lo sozinho no quarto, depois que eu fui dormir. Ele não conseguia conciliar o sono, a dor de cabeça devia estar piorando devido a isso. Uma dose de codeína. Mais uma dose reforçada de Valium. E ele conseguiu acidentalmente o que sempre quis. Pensei em me mudar para Bakersfield, enquanto via cada um de meus amigos seguirem o seu rumo. Apenas George e eu permanecemos em Los Angeles. Por causa de Charlie, e também porque me sentia na obrigação de visitar Tony como Jon fazia. Os primeiros dias foram os mais difíceis, como sempre acontece. Mas aos poucos, consegui me convencer de que tinha sido a única saída para Jon.
364
Passei horas relembrando o dia em que ele concordou milagrosamente em ir á igreja comigo, poucos meses antes de sua morte. Eu vi ele orar com tanta fé que chegou até a me invejar. Dessa forma, cheguei á conclusão de que ele estava espiritualmente em paz, e preparado para sua morte. Existem
coisas
em
que
precisamos
desesperadamente acreditar.
Peas, Para achar a frase perfeita
Eu estou aprendendo a lidar com a dor Vai ficando mais fácil a cada vez Vai te dando mais vontade a cada vez Vai te levando mais pra perto a cada vez
Odiar tinha sido divertido Até certo ponto, tem sido divertido Vai queimando, possuindo, controlando
365
Não há nada que se possa fazer
De uma forma nada física Por dentro da minha cabeça, fora de controle ( Estou fora de controle ) Não tente me alcançar agora Não queira me vencer agora
O que ainda te parece fácil Não me toque Já não é tão frágil Não me importa, não me importa Tudo faz sentido agora Se minha loucura faz sentido pra mim, Deixou de ser loucura pra mim!
O que eu vejo, o que eu sinto Me dê uma luz, ainda acredito Não me entende porque é mais fácil não entender...
366
367
368
Agradecimento pela imagem: Henrique Teles
369
370