BID ainda aposta na Desintegração Competitiva da América Latina Gabriel Strautman* Uma América Latina fragmentada espacialmente e inserida de forma passiva nos mercados globalizados. Estas são algumas das principais realizações efetivadas pela Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul Americana (IIRSA), plano de integração regional coordenado e financiado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). Esta mesma Instituição Financeira Multilateral está agora em plena fase de consulta sobre o seu novo plano para a integração regional, intitulado “Estratégia Setorial de Apoio à Integração Competitiva Regional e Global”1. Trata-se de um aprofundamento, sem qualquer cerimônia, da limitada e distorcida visão política e econômica sobre integração que fundamenta a IIRSA. No último dia 21 de fevereiro foi a vez do Brasil receber uma etapa do processo de consulta do BID sobre a sua nova estratégia. Ao todo, sete pessoas representantes de consultorias, instituições de ensino e organizações da sociedade civil estiveram presentes na reunião convocada com somente uma semana de antecedência, ou seja, sem o devido tempo de se prepararem adequadamente para discutir um tema de tamanha relevância. A formulação desta nova estratégia obedece a uma diretriz definida pela Assembléia de Governadores do BID após o nono aumento de capital do banco em 2009, e atende a uma demanda dos países da região por uma intensificação nos processos de integração regional. Ou seja, há uma determinação por parte dos Governadores do BID – os ministros de economia ou de planejamento dos países membros – para que a instituição reforce o seu papel de banco da integração latinoamericana. No entanto, o banco insiste em formular uma estratégia marcadamente liberal, alheia ao atual contexto político latinoamericano, às severas críticas feitas a projetos anteriores como a própria IIRSA e, principalmente, ao atual contexto marcado pelas crises globais (econômica e ecológica) e suas consequências, mesmo tendo sido a crise econômica o principal fundamento na argumentação dos 1
1http://idbdocs.iadb.org/wsdocs/getdocument.aspx?docnum=35582708
diretores do banco a favor da nova capitalização. A proposta em si desse “novo” plano de integração consiste numa retomada da defesa dos tratados de livre comércio como pano de fundo para a integração regional, e tenta apresentar como sua principal inovação uma visão que realça duas dimensões da integração, que segundo o BID devem ser combinadas: a do hardware (integração física) e a do software (marcos normativos e regulatórios). Na visão do BID, muito já se avançou em relação ao hardware, e a ênfase de agora em diante deve ser dada ao software. Apesar dessa nomenclatura bizarra, não se trata aqui de nenhuma novidade. Pelo contrário, os documentos da IIRSA há bastante tempo abordam estas duas dimensões, sendo que a integracão física foi priorizada em sua primeira etapa. Além disso, o BID apenas está seguindo a metodologia já adotada pelo Banco Mundial, que já não mais concentra seus esforços e recursos no financiamento dos projetos, mas sim, através de seus empréstimos setoriais, nas assessorias técnicas que levam à flexibilização de leis em busca da homogeneização de procedimentos, marcos normativos e regulatórios nos diferentes países, o que não tem outro propósito a não ser agilizar os processos de tomada de decisão e de realização de investimentos, agora por outros atores, sejam eles privados ou públicos. O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), por exemplo, já financia hoje mais projetos que o BID e o Banco Mundial juntos. Por conta disso, o BNDES acaba assumindo o nefasto papel que antes cabia aos bancos estrangeiros, já que o custo político inerente ao financiamento de muitos destes projetos polêmicos acaba sendo assumido pelo banco público brasileiro. Uma declaração reveladora do Sr. Paolo Giordano, economista chefe do Setor de Integração e Comércio do BID e representante do banco na consulta pública, explica a lógica da nova estratégia da sua instituição: o negócio do BID é colocar os países da América Latina a caminho do “investment grade”, ou do grau de investimento. Trata-se da classificação dada a um determinado país pelas principais agências de avaliação de crédito internacionais como Moody's e Standard & Poor's, dentre outras – sim, aquelas mesmas responsáveis por avalizar os chamados títulos tóxicos, causadores da crise global – e que qualifica um país por ter mais chances de honrar seus compromissos financeiros, ou de pagar a sua dívida externa. Graças ao grau de investimento, um país é considerado apto a receber uma enxurrada de capitais especulativos, que entram a título de Investimento Externo Direto mas, na prática, estão mesmo é atrás de boas e rápidas oportunidades de valorização. Na visão do BID, portanto, esse mecanismo de endividamento público irresponsável, que acaba de
levar a economia internacional a uma das maiores crises de sua história, deve substituir o anseio legítimo do povo latino-americano por uma efetiva integração física, cultural e política. A desconsideração da crise global torna ainda a nova estratégia de integração do BID anacrônica pois não leva em consideração o refortalecimento do papel dos Estados e, principalmente, o papel de agente regulador. O BID pretende realmente empurrar aos governos da região uma proposta marcadamente liberal, quando todos os governos estão voltando a intervir nas economias? Qual é o sentido disso? A proposta do BID não está, portanto, de acordo com as prioridades definidas no atual cenário político, mas sim com o esforço da retomada o mais breve possível do “business as usual”. A nova proposta do BID para a integração regional não incorpora nenhuma crítica que tenha sido feita em relação às iniciativas anteriores do banco relacionadas à integração, como a IIRSA. Também não faz qualquer referência aos diferentes processos de integração em curso na região hoje. É claro que não se esperava que o banco fosse mencionar a Aliança Bolivariana das Américas (Alba), mas ao insistir pura e simplesmente numa visão liberal sobre integração desconsidera que em vários países da região este debate já superou há muito tempo uma visão “ricardiana”2, baseada apenas em vantagens comparativas. Não há na proposta do BID qualquer referência a uma efetiva integração produtiva entre os países da América Latina. Pelo contrário, o que se propõe é uma intensificação da reprimarização das economias da região, voltadas apenas para a exportação. Não há também qualquer referência ao contexto marcado pelas mudanças climáticas, sequer à tão falaciosa economia verde. Quando questionado em relação a essa ausência, o consultor do banco se limitou a dizer que um outro setor da instituição está encarregado desse tema e que, portanto, não lhe caberia incorporar o mesmo na proposta. Com isso, o BID dá mais uma prova da sua incapacidade crônica – tão comum entre as instituições financeiras – de fazer uma leitura transversal do problema, ou seja, de incorporar no conjunto de suas operações uma ênfase nas questões socioambientais. Uma última observação que importa fazer é em relação ao caráter da consulta realizada pelo BID. Não bastasse o fato do convite ter sido feito apenas uma semana antes da consulta, o representante do BID fez questão de afirmar várias vezes que a proposta dificilmente sofrerá mudanças. Ora, para que consulta, então? O representante se mostrou muito mais interessado em discutir estratégias de implementação da 2
Referência a David Ricardo, considerado um dos principais representantes da economia política clássica.
nova proposta do que debater o conteúdo da mesma, e também deixou isso claro. Lamentável também foi a visão xenófoba e preconceituosa demonstrada pelo Sr. Paolo Giordano que, ao ser questionado sobre a necessidade de se investir em cultura e educação como vetores essenciais para a integração regional, afirmou não ver muito sentido nisso pois “o que os jovens da Bolívia querem mesmo é estudar nos Estados Unidos ou na Europa”. Talvez seja justamente esta visão neocolonial uma das maiores responsáveis pela perpetuação das desigualdades sociais na América Latina. A orientação liberal do BID, tal como a de outras agências multilaterais de financiamento (como o Banco Mundial e o FMI), e também a arrogância de uma instituição que, embora subordinada aos países membros, não dialoga em absoluto com as realidades da região, não são surpresas. A novidade aqui é a consolidação de um processo de mudança de estratégia para a implementação da agenda liberal de forma cada vez mais silenciosa. O governo brasileiro, em especial a Ministra do Planejamento Miriam Belchior, Governadora brasileira do BID, tem o dever de rechaçar a nova proposta do BID para a integração regional. A menos que o país esteja disposto a ser cúmplice da intensificação deste verdadeiro processo de desintegração competitiva indesejável para a América Latina.
* Gabriel Strautman é economista e secretário executivo da Rede Brasil sobre Instituições Financeiras Multilaterais