Há sentido em uma integração desintegradora?

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Há sentido em uma integração desintegradora? Nós da sociedade civil brasileira, movimentos sociais e ONGs integrantes de redes e fóruns, abaixo denominados, engajados nas lutas por justiça socioambiental, por eqüidade de gênero, de raça e de etnia, por mudanças estruturais no modelo de desenvolvimento e pela consolidação da democracia e dos direitos humanos no Brasil, questionamos os fundamentos da estratégia de integração regional materializada na Iniciativa para a Integração da Infra-estrutura Regional Sulamericana, IIRSA. A IIRSA e outras iniciativas dos governos da região não contribuem para aproximar os povos da América do Sul. Ao contrário, ratificam a lógica histórica de utilizar a América do Sul como plataforma de exportação de produtos agrícolas e extrativistas e com eles criam as condições para que se dê – vem acontecendo desde que os europeus aqui chegaram – devastação ambiental, desrespeitos contra povos tradicionais, principalmente indígenas, aumento da concentração da renda e queda de todos os níveis de vida para a maior parte das sociedades de nossos 12 países. Propomos formas alternativas de integração. Queremos que, ao contrário do que preconiza a IIRSA, nossas regiões deixem de ser apenas parcelas nacionais, desconectadas da nação, e vinculadas a um espaço econômico internacional. Queremos que as populações impactadas por projetos que visem ao desenvolvimento econômico e social sejam também por eles beneficiadas e que este desenvolvimento seja solidário com outras regiões internas às nações e aos demais países vizinhos, respeitando sempre, o máximo possível, o equilíbrio sócio ambiental, de gênero e étnico-racial. O que é a IIRSA? A IIRSA é um plano voltado à constituição de um "sistema integrado de logística" na América do Sul que impulsione a inserção desta no mercado global. O que isto quer dizer? Significa que a IIRSA tem como uma de suas prioridades a integração da infra-estrutura dos setores de transportes, telecomunicações e energia na América do Sul, a fim de tornar a região mais atrativa às grandes empresas nacionais e transnacionais interessadas em ter acesso aos mercados e aos recursos naturais dos nossos países. Na área de transportes se pretende integrar as diferentes modalidades marítimo, fluvial, rodoviário, ferroviário e aéreo -, objetivando encurtar as distâncias e a diminuição do tempo para o transporte de mercadorias. Em relação ao setor energético se objetiva garantir o suprimento necessário à expansão das atividades econômicas que contarão com o apoio dos diferentes governos, como as indústrias eletrointensivas - de produção de alumínio, por exemplo - e outras com forte inserção no mercado internacional. Em decorrência disso, se prevê a construção de diversas hidrelétricas e de gasodutos que poderão “cortar” o continente, especialmente a Floresta Amazônica, mas, também, afetam negativa e fortemente outros ecossistemas, como o Pantanal, e regiões, como as maiores bacias hídricas do Cone Sul da América do Sul.


No que diz respeito às telecomunicações a idéia é instalar modernos equipamentos que possibilitem maior velocidade na circulação de dados instalação de cabos de fibra ótica para potencializar o uso da internet , redes de telefonia celular e tv digital em alguns pontos do território sul-americano. A implementação da IIRSA é coordenada pelos doze países da região, e conta com o apoio técnico e financeiro de três instituições financeiras multilaterais: o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), a Corporação Andina de Fomento (CAF) e o Fondo Financiero para el Desarrollo de la Cuenca del Plata (FONPLATA). O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES, Brasil) também tem destinado importantes recursos para o financiamento de projetos integrantes da IIRSA, mesmo sem ser uma das instituições formalmente integrante do Comitê de Coordenação Técnica da iniciativa e o Banco Mundial está analisando a possibilidade de sua inserção na em 2006, após solicitação do Presidente do Brasil, Luís Inácio Lula da Silva, diretamente ao Presidente do Banco Mundial, Paul Wolfowitz, em novembro de 2005, durante sua visita oficial ao Brasil. Fazem parte da carteira de projetos da IIRSA 335 projetos, atualmente, 31 projetos são considerados prioritários com investimento de aproximadamente US$ 23 bilhões. Por que não apoiamos este tipo de integração? 1

A IIRSA está voltada ao fortalecimento de instituições e dos mecanismos de mercado, estando, desta forma, em perfeita sintonia com as principais diretrizes de Instituições Financeiras Multilaterais (IFMs), como o BID, o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional - FMI, confrontando-se, assim, com toda e qualquer política pública baseada na universalização de direitos; 2 A IIRSA foi elaborada e está sendo executada enquanto a materialização da terceira etapa das reformas estruturais de caráter neoliberal. Ou seja, ela é compreendida como a consolidação dos processos de abertura unilateral (iniciada nos finais dos anos 1980) e multilateral (iniciada no princípio dos anos 1990) das economias de nossos países. Portanto, a integração da infra-estrutura física está associada à adoção de medidas estruturais pelos países sul-americanos, como a reforma do Estado, a desregulamentação da economia e a privatização de empresas públicas, posto que são faces da mesma estratégia; 3 A estratégia de desenvolvimento baseada na implementação de "cinturões de desenvolvimento" a partir dos "eixos de integração" tende a perpetuar a fragmentação espacial do desenvolvimento, através da concentração dos investimentos públicos e privados naquelas partes dos territórios nacionais que efetivamente interessam ao grande capital por disporem de melhores condições para conectar-se ao fluxo internacional de mercadorias. Em conseqüência disso, a IIRSA tende a agravar as disparidades no interior de cada região e entre as diferentes regiões de cada país;


4 A integração da infra-estrutura de transportes, energia e telecomunicações objetiva favorecer fundamentalmente as empresas com forte inserção no mercado internacional. Portanto, não é preocupação da IIRSA garantir o acesso universal aos bens e serviços que serão instalados em algumas partes do nosso território. Ou seja, não é o/a cidadão(ã) comum, nem as atividades econômicas desenvolvidas por agricultores(as) familiares e por outros segmentos com pouca ou nenhuma incidência no mercado externo os verdadeiros beneficiários desse processo; 5 A IIRSA busca garantir a livre circulação de mercadorias e não de pessoas entre os diferentes países. Os/As cidadãos(ãs) dos países mais pobres ou aquele(as) com pouca qualificação profissional continuarão sendo vítimas de mecanismos para dificultar sua circulação; 6 A IIRSA tem o poder devastador de disseminação de conflitos políticos e socioambientais a todos os quadrantes da América do Sul, por conta do seu intento de garantir ao grande capital internacional, associado a poderosos grupos políticos e econômicos nacionais, o acesso e o uso das riquezas naturais disponíveis nessa parte do continente, em detrimento dos interesses de indígenas, agricultores(as) familiares e quilombolas, entre outros segmentos ; 7 O sentido da IIRSA é o mercado internacional. Ou seja, a exploração da imensa riqueza natural sul-americana por grandes conglomerados econômicos nacionais e internacionais com forte atuação no exterior como o agronegócio – deixando em segundo plano a implementação de políticas públicas para o fortalecimento do mercado interno dos nossos países e à valorização de produtos voltados ao atendimento das demandas das populações de baixa renda ; 8 Diferentemente do que apregoam os defensores da IIRSA esta não possui uma visão integral do desenvolvimento, posto que tal estratégia relega dimensões importantes da vida social, como os direitos humanos, o fortalecimento das instituições democráticas e o respeito à diversidade cultural, entre outras questões; 9 A IIRSA não é eco-sustentável. Pelo contrário. O que presenciamos em nossos países é o avanço da devastação ambiental resultante da homogeneização de atividades produtivas para atender o mercado externo, como a produção de soja e algodão trangênicos. A monocultura se expande com rapidez na América do Sul, tornando mais poderosas grandes empresas de produtos químicos, por exemplo; 10 A idéia de que a IIRSA é eficiente do ponto de vista econômico é questionável. O incentivo à construção de diversas grandes hidrelétricas, por exemplo, esconde o fato de que existe a possibilidade de repotencializar a rede já existente, com custos financeiros bem menores, bem como inserir outras fontes alternativas de geração de energia, como a solar que apontam para mudanças estruturais da atual matriz energética. Da mesma forma, a monocultura destrói imensos recursos biogenéticos criando obstáculos para o desenvolvimento de atividades


produtivas com maior valor agregado e mais compatíveis com o meio ambiente; 11 A IIRSA não fortalece a democracia na América do Sul por não prever a adoção de qualquer mecanismo para combater as disparidades existentes entre os diferentes países. A integração econômica que se está realizando é uma integração entre desiguais, reproduzindo em larga medida as relações assimétricas existentes entre os países capitalistas centrais e os nossos; 12 A sustentabilidade do ponto de vista social, afirmada nos documentos oficiais sobre a IIRSA, é uma peça de ficção dado o aumento exponencial de excluídos(as) em nossos países, comprometendo diretamente a consolidação democrática em nosso continente. Avançando na Construção de Alternativas para o Continente SulAmericano ! Milhões de sul-americanos(as) encontram-se desassistidos, sem transporte adequado, sem comunicação, sem energia e outros bens e serviços que deveriam ser de acesso universal, sem as restrições impostas pelo mercado. Não somos contra a integração regional. Todavia, nos opomos à IIRSA pelo que ela representa enquanto projeto de sociedade, fundado na mercantilização da vida e das relações sociais a partir do aprofundamento do modelo neoliberal. Reconhecemos a imperiosa necessidade da integração física sul-americana. Porém, a lógica desta deve estar baseada na promoção dos direitos humanos, na eqüidade de gênero, raça, etnia, na justiça socioambiental, no fortalecimento das instituições democráticas, na democratização das relações entre Estado e sociedade e entre os Estados nacionais, na justa distribuição de renda e das riquezas produzidas, na soberania dos nossos países e nas mudanças estruturais do modelo de desenvolvimento que compatibilize as especificidades regionais e as necessidades nacionais, entre outras questões. Nós da sociedade civil brasileira estamos firmemente empenhados na construção de um outro modelo que supere a fragmentação social e territorial, certamente um dos principais resultados da implementação da IIRSA na América do Sul. Nesse sentido, convocamos outras organizações brasileiras e sulamericanas a juntarmos esforços no intuito de desenvolvermos um vigoroso processo de articulação que envolva mobilização social, realização de estudos de casos em áreas de execução de projetos da IIRSA, fortalecimento de relações com instituições de ensino e pesquisa e frentes de parlamentares e do trabalho em redes e fóruns visando a construção de uma plataforma de desenvolvimento sustentável e democrático para a América do Sul. Brasília, 24 de janeiro de 2006 Fórum Brasileiro de ONGs e Movimentos Sociais para o Meio Ambiente Rede Brasileira pela Integração dos Povos Rede Brasileira de Justiça Ambiental Rede Brasil sobre Instituições Financeiras Multilaterais


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