Livro - Ministério de Libertação - ICCRS

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MINISTÉRIO DE LIBERTAÇÃO

Direitos autorais 2017 International Catholic Charismatic Renewal Services Primeira Edição: setembro 2017 Publicado por: © ICCRS Palazzo San Calisto 00120 Cidade do Vaticano Tel.: +39 06 6988-7126/27 Fax: +39 06 6988 7230 Email: info@iccrs.org Website: www.iccrs.org Capa: Stacy Innerst, Pittsburgh, Pensilvânia, EUA

Revisão desta edição: Conselho Editorial - RCCBRASIL Comissão de Formação Nacional: Vicente Gomes de Souza Neto Tradução: Cristiana Coimbra Revisão: Vero Verbo Serviços Editoriais Diagramação: Priscila L. G. F. C. Venecian


Sumário

PREFÁCIO 7 APRESENTAÇÃO 11 1. INTRODUÇÃO

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1.  Discernindo os sinais dos tempos 1.2 Objetivo deste livro 1.3 Glossário de termos

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2. FUNDAMENTOS BÍBLICOS

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2.1 Satanás no Antigo Testamento 2.2 A vitória de Jesus sobre satanás 2.3 Os exorcismos no ministério de Jesus 2.4 O exorcismo na missão dos discípulos 2.5 O exorcismo na Igreja apostólica 2.6 Libertação e vida cristã

26 28 29 37 40 43

3. CONTEXTO TEOLÓGICO

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3.1 A libertação numa perspectiva mais ampla 3.2 Compreendendo o cativeiro espiritual 3.3 A origem do cativeiro espiritual 3.4 Compreendendo a opressão 3.5 Compreendendo o Ministério de Libertação

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4. EXORCISMO E LIBERTAÇÃO NA HISTÓRIA DA IGREJA

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4.1 Exorcismo nos escritos patrísticos 4.2 Regulamentação gradual da prática do exorcismo 4.3 Direito canônico 4.4 Um documento do Vaticano de 1985 4.5 Conclusão

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5. DIRETRIZES PASTORAIS

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5.1 Quem pode exercer o Ministério de Libertação? 98 5.2 Quando é apropriado exercer o Ministério de Libertação? 102 5.3 Libertação e cura 107 5.4 Elementos essenciais do Ministério de Libertação 108 5.5 Acompanhamento da libertação 122 5.6 O que deve ser evitado no Ministério de Libertação? 124 6. CONCLUSÃO

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Prefácio

O Ministério de Libertação é um dos dons do Espírito Santo que testemunham a abundância da graça derramada por Deus sobre toda a Igreja por meio da Renovação Carismática Católica. Onde quer que o Evangelho seja proclamado, aí o Reino de Deus espalha sua luz e sua paz e derrama seus imensos poderes de cura. Em suas muitas décadas de experiência, a Renovação Carismática experimentou que a proclamação da boa-nova do amor de Deus Pai, que perdoa a humanidade por meio de seu Filho Jesus, liberta as pessoas de seu pecado, faz que participem da natureza divina ao enchê-las do Espírito Santo e as chama à nova vida como filhos de Deus. Em outras palavras, o encontro com Jesus Cristo, que ressuscitou e vive, transforma a vida das pessoas. Consequentemente, quando estas adquirem maior consciência de sua dignidade como filhas de Deus, também chegam a uma compreensão mais clara dos pontos sombrios de sua vida que impedem a comunhão com Deus, com todos os homens e mulheres e com a vida cristã vivida em plenitude. Como o Evangelho nos lembra, a presença da luz do Verbo traz à tona a escuridão dentro de nós (cf. Jo 1,5). Muitas pessoas evangelizadas pela Renovação Carismática Católica logo se conscientizam de sua resistência interior e de

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seus problemas não resolvidos. Essas pessoas passam a ver que há amarras espirituais que as prendem e experimentam uma dificuldade — ou até incapacidade — de se libertar desse fardo. A caridade inspirada pelo Espírito Santo fez surgir um desejo no seio da RCC, desde o início, de orar para que esses homens e essas mulheres se libertem de seu cativeiro espiritual e de ajudá-los em sua luta interior que os oprime. A luz que vem da oração, o discernimento prudente e a experiência mostraram que, em alguns desses casos, o cativeiro espiritual que aflige as pessoas se deve à influência direta do demônio. É precisamente aqui que entra o Ministério de Libertação. Este é um dom do Espírito Santo que está presente entre nós desde os tempos da Igreja primitiva. Embora o Ministério de Libertação seja muito diferente do exorcismo maior ou público (reservado a bispos ou a padres designados por eles e que segue um ritual apropriado), este gera um entendimento do imenso poder de cura e libertação que emana da pessoa de Jesus, Filho de Deus, em cujo nome a libertação é invocada. Também é uma redescoberta confortadora da riqueza de nosso batismo, visto que este faz de cada fiel um membro do corpo de Cristo e participante, até certo ponto, das prerrogativas divinas de Cristo como Cabeça. A esse respeito, o Ministério de Libertação ajuda a enfatizar o importante papel que o fiel leigo pode e deve desempenhar na evangelização, na missão materna da Igreja de curar as feridas da humanidade e de espalhar o Reino de Deus por todos os lugares e em todas as esferas da sociedade. A missão dos 72 discípulos que tomaram parte no poder de Cristo de expulsar os demônios (cf. Lc 10,17) prefigura o envolvimento de todos os fiéis leigos na pregação do Evangelho e no trabalho de libertação da interferência espiritual de satanás, que aflige tantas almas.

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Alguns anos após a publicação do documento “Oração por Cura”, tenho agora o prazer de ver este novo documento produzido pela Comissão de Doutrina do ICCRS sobre o “Ministério de Libertação”. O benefício que vem deste livro vai em duas direções, uma das quais pode ser expressa como “da Igreja para a Renovação Carismática Católica”, considerando que a Comissão de Doutrina manteve uma ligação estreita com a Igreja ao preparar este texto. A Comissão aceitou as indicações dadas pela Congregação para a Doutrina da Fé, bem como os conselhos de vários teólogos e especialistas nessa área, e teve o cuidado de basear todo o seu tratamento do tema em um sólido alicerce bíblico, patrístico e magisterial. Dessa forma, o patrimônio da doutrina e da prática pastoral da antiga tradição da Igreja reforça a experiência da Renovação Carismática, e o Ministério de Libertação se enraíza no solo seguro da fé da Igreja. A outra direção pode ser descrita como “da Renovação Carismática Católica para a Igreja”. A reflexão renovada sobre o Ministério de Libertação, estimulada pela longa prática da Renovação Carismática, pode agora auxiliar toda a Igreja — leigos, clero e religiosos — a ser mais sensíveis a esse “dom batismal” dado a todos os discípulos de Cristo, que deve ser apreciado em todo o seu valor no acompanhamento espiritual dos fiéis. Espero que este documento sirva como um guia confiável, particularmente para aqueles da Renovação Carismática Católica que exercem regularmente o Ministério de Libertação para servir seus irmãos e irmãs na fé. Também espero que seja um instrumento para descobrir e abraçar esse ministério em nosso tempo, na alegre missão da nova evangelização. Cardeal Kevin Farrell Prefeito do Dicastério para os Leigos, a Família e a Vida

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1 Introdução

Ele nos arrancou do poder das trevas e nos transportou para o Reino de seu Filho amado. – Colossenses 1,13

O Papa Francisco surpreendeu muita gente ao falar frequentemente sobre um assunto que algumas pessoas pensavam ser uma relíquia do passado: o demônio. Em suas homilias, o Santo Padre falou repetidamente sobre as estratégias de satanás, sobre como devemos combatê-las e como obter a vitória sobre o maligno em Cristo. Ele chamou a atenção de que o que está em jogo nessa luta não é nada mais, nada menos que o destino das almas. Disse ele: Jesus veio para nos dar a salvação... do cativeiro em que o demônio nos colocou... Sobre isso não há meios-termos. Há uma batalha, e é uma batalha em que a salvação está em jogo: a salvação eterna. Devemos estar sempre atentos, atentos contra o engano, contra a sedução do mal.1

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Papa Francisco, homilia de 11 de outubro de 2013. 13


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O Santo Padre vê a necessidade de despertar a Igreja para uma realidade espiritual que foi muitas vezes esquecida: nossa vida na Terra não é apenas uma peregrinação de fé, mas também uma batalha constante contra o mal e contra satanás, o príncipe das trevas, que continuamente busca nos afastar de Cristo e nos fazer cativos do pecado, da confusão, da amargura, do pessimismo e do desespero. Mesmo assim, em Cristo somos libertados do domínio de satanás e recebemos o poder de resistir à sua influência contínua. As advertências do Papa Francisco estão profundamente arraigadas nas Escrituras e na Tradição. O Novo Testamento tem muito a dizer sobre as obras do demônio e como derrotálas em Cristo. A tradição católica nos dá sabedoria e inúmeros exemplos de combate espiritual, desde os exorcismos feitos por Santo Antão, Santa Catarina de Sena e muitos outros até os princípios de discernimento ensinados por Santo Inácio de Loyola. Esse ensinamento bíblico e tradicional fornece os fundamentos essenciais para discutir o Ministério de Libertação como é praticado hoje.2 O objetivo deste livro é oferecer reflexões teológicas sobre o Ministério de Libertação e diretrizes pastorais para exercêlo de acordo com a fé católica. Ele dirige-se primeiramente à Renovação Carismática Católica, visto que a maioria daqueles que exercem esse ministério vêm dela.3 No entanto, temos a esperança de que essas reflexões se mostrem úteis para além da RCC e ajudem a ampliar a compreensão do Ministério de Libertação, bem como criar uma abertura a ele em toda a Igreja. 2

O termo “ministério de libertação” é explicado no glossário, na seção 1.3.

3  Um pioneiro nesse ministério, bem como no exorcismo, foi o padre Rufus Pereira, da Índia (1933-2012), um dos líderes da Renovação e fundador da Associação Internacional para a Libertação. 14


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1.  Discernindo os sinais dos tempos Por que o Ministério de Libertação é um tópico urgente para a Igreja em nossos tempos? As reflexões deste livro buscam examinar cuidadosamente os “sinais dos tempos” à luz do Evangelho, como nos pede o Concílio Vaticano II.4 O aumento significativo de Ministérios de Libertação nos últimos anos é tanto um fruto da renovação espiritual da Igreja quanto uma resposta a uma necessidade urgente na sociedade contemporânea. A Igreja, em algumas partes do mundo, está passando por uma renovação: um novo amor pelo Espírito Santo entre os católicos, uma mobilização dos leigos, maior sede de conhecimento das Escrituras, um fervor pela evangelização e maior comprometimento de tempo e energia em favor da justiça e da paz. Ao mesmo tempo, porém, há sinais de uma escuridão crescente. Na Europa, na América do Norte e na Oceania, um abandono generalizado da fé cristã e um secularismo cada vez maior e mais agressivo criaram um vácuo espiritual que muitas pessoas têm tentado preencher com práticas de ocultismo, espiritismo, maçonaria, espiritualidades neopagãs, Nova Era e até mesmo satanismo declarado. Uma enxurrada de materiais de ocultismo e espiritismo invadiu as livrarias e a internet. Muitos jovens foram expostos aos poderes das trevas por meio de músicas e videogames satânicos. Na América Latina, igualmente, ao mesmo tempo que a prática da fé diminuiu, houve um aumento nas superstições e nas devoções sincréticas, como a santería e o culto à Santa Muerte. Em outras áreas, especialmente em partes da África e da Ásia, é comum, mesmo entre os cristãos, recorrer à bruxaria, à magia, às maldições, ao 4

Cf. Concílio Vaticano II, Gaudium et Spes, 4. 15


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culto dos ancestrais, às sessões espíritas, à feitiçaria ou a outras práticas de ocultismo. Todas essas atividades podem levar as pessoas ao cativeiro demoníaco. Não são apenas as práticas ocultistas, porém, que oferecem perigo espiritual. A difusão de uma cultura global de hedonismo e materialismo contribuiu para um aumento de padrões de comportamento imoral que também podem levar ao cativeiro espiritual, incluindo a promiscuidade sexual, a pornografia, o consumismo excessivo e a dependência de drogas. Esses padrões de comportamento, por sua vez, contribuíram para a destruição da família a tal ponto que menos da metade das crianças hoje em dia vive em lares com ambos os pais biológicos. Aqueles que nunca experimentaram o amor de um pai ou uma vida familiar estável são, com muita frequência, profundamente feridos e, por conseguinte, vulneráveis ao engano e à opressão espirituais. Em certas regiões do mundo, grandes grupos de pessoas foram traumatizados por terrorismo, perseguição religiosa, guerra, limpeza étnica e migração em massa, o que os leva a uma vulnerabilidade espiritual ainda maior. Ao mesmo tempo que essas mudanças sociais têm ocorrido, tem havido um silêncio marcante entre os católicos com relação aos demônios e sua real influência na vida humana. Teólogos e pregadores da última metade do século passado tiveram muitas vezes a tendência de minimizar ou negar claramente a existência de satanás. Essa descrença persiste apesar das fortes afirmações do Catecismo e de papas recentes.5 Muitos padres foram educados numa forma de crítica 5  Ver, por exemplo, o Catecismo da Igreja Católica (CIgC), §§ 391, 395, 2581-2582; Papa Paulo VI, Audiência geral de 15 de novembro de 1972; Papa João Paulo II, Audiência geral de 13 de agosto de 1986; Papa Francisco, homilias de 24 de março de 2013, 11 de abril de 2014 e 29 de setembro de 2014.

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bíblica que interpretava as narrativas evangélicas de possessão demoníaca como sendo simplesmente uma maneira primitiva de falar sobre distúrbios mentais. O resultado é que muitos pregadores e catequistas se sentem desconfortáveis em falar sobre o demônio, com uma sensação de que tal tópico pertence a uma era pré-moderna mais supersticiosa. Esse silêncio criou uma situação em que muitos católicos, até mesmo padres, não têm uma compreensão do demônio e de suas estratégias. Em homilias, catequeses e formações na fé, muito pouco é dito sobre como afastar os ataques do maligno e se libertar de sua influência. Paradoxalmente, esse silêncio também levou a um medo doentio do reino demoníaco, especialmente entre pessoas que não são bem-educadas na fé. Todos esses elementos da situação contemporânea geraram uma grande necessidade não atendida de libertação de vários tipos de cativeiro e opressão espirituais. É trágico que os católicos, em alguns lugares, busquem a ajuda de médiuns e xamãs para ter um alívio dos sofrimentos causados por demônios por não acreditarem que a Igreja seja capaz de ajudá-los. Em alguns casos, buscam a ajuda da Igreja e não a encontram, visto que não precisam nem de um exorcismo maior nem de auxílio médico profissional, mas simplesmente de libertação. Em outros lugares, os católicos recorrem a ministérios pentecostais ou carismáticos independentes para obter ajuda.6 A falta de compreensão sobre a libertação também atrapalha a evangelização em locais onde os povos nativos têm uma compreensão mais fina do poder dos 6  Como afirmou o cardeal Walter Kasper, “em primeiro lugar é necessário fazer um exame pastoral de consciência e nos perguntar com autocrítica: por que tantos cristãos abandonaram nossa Igreja? Não devemos começar nos perguntando o que está errado com os pentecostais, mas quais são nossas próprias deficiências pastorais. Como podemos reagir a esse novo desafio com uma renovação litúrgica, catequética, pastoral e espiritual?”. (Discurso na abertura do encontro do Papa Bento XVI com o colégio cardinalício sobre o diálogo ecumênico, 23 de novembro de 2007). 17


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espíritos malignos em comparação com o conhecimento que os missionários católicos têm do poder libertador do nome de Jesus. Há uma necessidade urgente de que a Igreja desperte para essa grave situação. Embora alguns católicos tenham sido influenciados por certos padrões de ceticismo e secularização, a renovação bíblica, litúrgica e catequética que culminou no Concílio Vaticano II tem ganhado força. O fruto do Concílio é visto particularmente na nova evangelização e na Renovação Carismática Católica, e também em outros novos movimentos eclesiais. No coração dessa renovação eclesial estão os leigos, que assumem integralmente seu papel e sua dignidade como membros batizados do corpo de Cristo, chamado à perfeição da santidade e à participação plena na missão da Igreja.7 O Ministério de Libertação, em sua forma católica contemporânea, surgiu dentro da Renovação Carismática Católica, um movimento que começou com o derramamento do Espírito Santo em estudantes universitários na cidade de Pittsburgh, na Pensilvânia, Estados Unidos, no ano de 1967.8 A Renovação é caracterizada por uma experiência transformadora da presença e do poder do Espírito Santo, que é comum a leigos, clérigos e religiosos. Como “corrente de graça” (descrição reafirmada pelo Papa Francisco),9 a RCC proporcionou uma participação muito maior dos leigos na missão da Igreja, no ensino, na liderança comunitária e no ministério de oração pelos demais. Também fez surgir um impulso ecumênico, 7  Vide Vaticano II, Lumen Gentium 4 e 12; Decreto sobre o Apostolado dos Leigos (Apostolicam Actuositatem); Papa João Paulo II, Sobre a Vocação e Missão dos Fiéis Leigos (Christifideles Laici). 8  Para mais informações sobre a Renovação Carismática Católica, veja o livro Batismo no Espírito Santo (Roma: ICCRS, 2012). 9  Papa Francisco, discurso ao Movimento de Renovação no Espírito Santo, 3 de julho de 2015. 18


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à medida que os católicos experimentaram um novo nível de fraternidade espiritual com outros cristãos, baseado na experiência comum do Espírito Santo e numa conversão mais profunda a Cristo. Não por acaso, essa nova consciência acerca do Espírito Santo também gera uma nova consciência a respeito de espíritos que não são santos e de sua influência na vida humana. O Espírito Santo que revela Cristo também dá aos cristãos uma sensibilidade mais profunda sobre tudo aquilo que se opõe a Jesus e a seu Reino, bem como uma experiência existencial da vitória de Cristo. A RCC, portanto, contribuiu para a redescoberta de um elemento da tradição católica que há muito tempo tem sido negligenciado: que a vida cristã envolve um combate espiritual e de que a libertação de espíritos malígnos é parte da missão que Jesus confiou à Igreja. Os Ministérios de Libertação atuais surgiram com base no contexto do ministério de cura, em resposta às necessidades daqueles que estavam perturbados por várias formas de aflição demoníaca.10 Na imensa maioria dos casos, a influência do demônio era menor que uma possessão completa; portanto, um exorcismo maior não seria nem possível nem necessário. Em vez disso, havia uma necessidade de ajudar as pessoas a se libertarem daquela influência em certas áreas de sua vida. Os fundadores desses ministérios beberam da sabedoria da tradição católica e também das ideias e das práticas de outros cristãos 10  O Ministério de Libertação surgiu dentro do movimento carismático mais abrangente, especialmente entre carismáticos não denominacionais, anglicanos e católicos. Portanto, o Ministério de Libertação é uma área em que católicos e outros cristãos aprenderam uns com os outros, de acordo com a exortação do Papa Francisco: “Quantas coisas importantes nos unem! Se realmente acreditamos acreditamos na na ação livre e generosa do Espírito Santo, podemos aprender tanto uns com os outros! Não se trata apenas de estar mais bem informados sobre os outros, mas de acolher o que o Espírito semeou neles, que também deve ser acolhido como um dom para nós” (A Alegria do Evangelho, 246). 19


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carismáticos. Muitos desses ministérios eram sólidos e se encontravam em pleno acordo com a fé católica. Outros, porém, caracterizavam-se por abusos, sensacionalismo ou aberrações teológicas. Com o passar dos anos e o amadurecimento do Ministério de Libertação, muitas ideias e práticas insensatas foram abandonadas, mas ainda persiste uma necessidade de orientação, bem como de supervisão e discernimento prudentes por parte dos pastores da Igreja. O Ministério de Libertação está nitidamente suprindo uma necessidade espiritual imensa no mundo contemporâneo. Por meio dele, muitas pessoas experimentaram de maneira vívida e pessoal a verdade de que Jesus veio para libertar os cativos. Assim como a libertação era uma parte essencial da evangelização da Igreja primitiva, ela é também uma parte essencial da nova evangelização hoje. Apesar de vários problemas e desafios, o conselho de São Paulo continua válido como sempre: “Não extingais o Espírito. [...] Discerni tudo e ficai com o que é bom. Guardai-vos de toda espécie de mal” (1Ts 5,19-22).

1.2 Objetivo deste livro Como era de se esperar, dadas a diversidade de contextos culturais em todo o mundo e a riqueza inesgotável dos dons distribuídos pelo Espírito Santo, existe uma enorme gama de modelos e abordagens sobre libertação. Algumas pessoas usam métodos de libertação mais confrontadores; outras usam métodos mais suaves. Algumas integram a libertação mais intrinsecamente à cura interior; outras, menos. O objetivo deste livro é oferecer princípios e diretrizes gerais, e não endossar algum modelo ou abordagem específicos como sendo os únicos 20


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válidos. Ademais, este livro não é um manual de instruções e não pode ser usado como substituto para o treinamento e a experiência. Há vários livros disponíveis para dar instruções práticas mais detalhadas sobre o Ministério de Libertação.

O tema deste livro limita-se à libertação e não abrange o exorcismo maior.11 Este é um rito litúrgico da Igreja realizado por um bispo ou por um padre devidamente encarregado pelo bispo, com o propósito de libertar aqueles possuídos pelo demônio (CIgC, 1673; Código de Direito Canônico, 1172). A libertação, por sua vez, pode ser realizada por qualquer um dos fiéis em favor daqueles que experimentam formas de influência demoníaca mais brandas. Por fim, este livro não ignora nem substitui nenhuma das diretrizes estabelecidas por um bispo local ou por conferências nacionais de bispos. Todos os católicos devem seguir fielmente as orientações de seus bispos.

1.3 Glossário de termos A terminologia usada para as formas de influência demoníaca e para a libertação destas não é totalmente padronizada. Alguns termos são usados de formas diferentes em regiões diversas e por autores distintos. Este livro utilizará os seguintes termos e definições: Conjuração: invocar o nome de Deus ou de Jesus para induzir alguém a fazer algo. No contexto da libertação, conjurar

11  Este documento não pretende desenvolver uma demonologia nem demonstrar a existência dos demônios ou sua influência. Ele dá como certo o ensinamento da Igreja, com base nas Escrituras e nos Padres da Igreja, de que satanás e os demônios exercem uma influência real na vida humana (CIgC 391, 2113, 2854). 21


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os demônios significa ordenar-lhes em nome de Deus ou de Jesus a parar de afligir uma pessoa ou a sair. Demônio (ou espírito maligno): anjo decaído, que foi criado por Deus, mas pecou contra Ele ao se opor a seu reinado, e agora busca oprimir e destruir os seres humanos. Diabo: o príncipe dos demônios, também conhecido por satanás, belzebu ou Lúcifer. Deprecação: meio de oração a Deus (ou aos santos), que contrasta com o imperativo. Cativeiro espiritual: influência demoníaca interior pela qual uma pessoa fica escravizada ou coagida até certo grau, de tal modo que não consegue escolher livremente o bem em determinadas situações. O cativeiro espiritual envolve um grau de consentimento à influência demoníaca, enquanto a opressão não necessariamente o envolve. Exorcismo: num sentido mais estrito, a palavra “exorcismo” é sinônimo de exorcismo maior (ver abaixo). Num sentido mais amplo, “exorcismo” significa qualquer expulsão de demônios de uma pessoa, seja por meio de um exorcismo maior ou simplesmente de uma libertação. Exorcismo maior (também chamado de exorcismo solene ou simplesmente de exorcismo): expulsão de demônios de uma pessoa possuída por eles por meio da autoridade espiritual de Jesus confiada à sua Igreja, exercido apenas por um bispo ou um padre com a permissão do bispo, utilizando o rito litúrgico de exorcismo. Exorcismo menor: orações pela libertação de influência demoníaca que são parte dos ritos litúrgicos de catecumenato

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e batismo de crianças e adultos, usados antes da cerimônia batismal ou durante ela. Exorcismo privado: simples expulsão de um demônio em nome de Jesus, não realizada em nome da Igreja nem por meio de ritual preciso; portanto, sinônimo de exorcismo simples. Exorcismo público: exorcismo realizado em nome da Igreja, com ritual preciso. Inclui os exorcismos maiores (realizados por meio do rito de exorcismo) e os exorcismos menores (realizados durante os ritos de catecumenato ou batismo). Exorcismo simples: vide Libertação. Imperativo: uma ordem direta (nesse caso, a um demônio ou demônios). Libertação (também chamada de exorcismo simples): esforço de libertar uma pessoa de opressão e cativeiro demoníacas pelo poder do nome de Jesus. A libertação é exercida tanto por leigos quanto por padres e não envolve nenhuma fórmula estabelecida de oração ou rito litúrgico da Igreja. O termo Ministério de Libertação é usado (em vez de oração de libertação, simplesmente) porque esse ministério é mais abrangente que a oração. Frequentemente, inclui trazer a pessoa ao encontro com Jesus, ajudá-la a iluminar suas feridas interiores e receber a cura de Cristo, por meio de ordens e de orações. Opressão: qualquer forma de assédio demoníaco séria e contínua, podendo ser física (como as aflições de Jó, por exemplo) ou espiritual (por exemplo, pensamentos obsessivos, um sentimento profundo de condenação, medo irracional etc., quando esses pensamentos não resultam apenas de causas emocionais ou psicológicas). 23


Possessão demoníaca (ou possessão): forma extrema de cativeiro demoníaco em que o(s) demônio(s) consegue(m), por vezes, controlar o corpo, as palavras e as ações de uma pessoa. É importante evitar mal-entendidos com o termo “possessão”: um espírito maligno nunca consegue ter a propriedade de um ser humano, que pertence a Deus somente. Algum grau de liberdade sempre permanece na vontade da pessoa.

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