Palestras - Prof. José Teixeira Dias

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QUÍMICA-FÍSICA MOLECULAR Palestras

RÓMULO - Centro Ciência Viva Universidade de Coimbra

José J.C. Teixeira Dias

2020



Nota de abertura Esta publicação reúne os textos de um conjunto de palestras para o grande público apresentadas no Rómulo - Centro Ciência Viva da Universidade de Coimbra. Em cada um dos temas abordados descreve-se a evolução da ciência até aos dias de hoje, procurando ilustrar o papel essencial da ciência no progresso e bem-estar da humanidade. Estes textos visam não só proporcionar conhecimentos como desenvolver a curiosidade e o espírito crítico sobre o mundo em que vivemos, podendo ser úteis a estudantes de Química, Física, Bioquímica e Biologia. Termino exprimindo a maior consideração, estima e admiração pelo Professor Carlos Fiolhais e muita gratidão pelo excecional acolhimento que tenho recebido dele e deste Centro Ciência Viva, por tudo isto sentindo que nunca deixei de ser de Coimbra e da sua Universidade.



Palestras 1. Mistérios da Água 14 novembro 2017

2. Como foi descoberto o ADN 20 fevereiro 2018

3. Relógios Químicos 19 setembro 2018

4. Mistérios Quânticos 4 dezembro 2018

5. Poeira das Estrelas 12 março 2019

6. Mistérios da Origem da Vida 29 outubro 2019



1. Mistérios da água: propriedades de uma substância extraordinária

A água é, sem sombra de dúvida, a substância que nos é mais familiar. Será que a conhecemos bem e reconhecemos a sua influência no meio ambiente, nos fenómenos atmosféricos, nos seres vivos e, especialmente, na nossa própria saúde? Embora vulgar, a água tem propriedades de uma substância verdadeiramente extraordinária. A abordagem de muitas dessas propriedades não se compagina com uma simples palestra. Por isso, irei fundamentalmente ilustrar a sua imprescindibilidade nos seres vivos e, em particular, em nós próprios. Desde logo, a água é a única substância com que convivemos nos três estados físicos, líquido, sólido (gelo) e gasoso (vapor de água). Proponho, por isso, abordar os seguintes temas começando, necessariamente, pela molécula de água, caminhando progressivamente até ao líquido e finalizando com a hidratação de proteínas: 1. Molécula 2. Dímero 3. Gelo 4. Líquido 5. Densidade 6. Modelo simples de dielétrico dipolar 7. A água como dielétrico 8. Hidratação de proteínas 1. Molécula - Uma molécula de água, H2O, contém um átomo de oxigénio, que tem 8 protões no seu núcleo, e dois átomos de hidrogénio, cada um com um protão no núcleo. O protão é uma partícula positiva. - O eletrão é uma partícula negativa e uma molécula H2O tem 10 eletrões. Ao todo, existem 10 eletrões na região dos 3 núcleos que, no seu conjunto, neutralizam as 10 cargas positivas dos 3 núcleos atómicos. A molécula H2O é neutra.

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1. Mistérios da água: propriedades de uma substância extraordinária - Note-se que a massa de um protão é cerca de duas mil vezes superior à de um eletrão. Os núcleos atómicos têm massas muito superiores à massa de um electrão e, por isso, os podem considerar-se fixos nas suas posições de equilíbrio, se ignorarmos as vibrações moleculares (oscilações dos núcleos à volta das suas posições de equilíbrio). - A geometria de uma molécula é definida pela posição relativa dos núcleos atómicos quando estes se encontram nas suas posições de equilíbrio. - No caso de uma molécula de água, H2O, as duas ligações OH são equivalentes e, por isso, têm o mesmo comprimento. - Assim, a molécula de água tem dois parâmetros geométricos: o comprimento da ligação OH e o ângulo HOH. - Os valores aproximados destes parâmetros estão indicados na Figura 1. - Os resultados apresentados a seguir tanto para a molécula de água como para o seu dímero (Figuras 1 a 7) foram obtidos por cálculo computacional recorrendo ao sistema de programas Gaussian 09 e à sua interface gráfica GaussView 5.0.9 (Nota 1). Os valores obtidos R(OH)=0,961 Å, <HOH=104,53º (Nota 2, página 332) comparam-se muito bem com os valores experimentais R(OH)=0,958 Å, <HOH=104,48º diferindo apenas em centésimas (Nota 3).

< HOH ≈ 105o R(OH) ≈ 1 Å = 0,000 000 000 1 m Figura 1 - Consideremos uma molécula de água representada pela posição relativa dos núcleos e um sistema de eixos x, y, z (Figura 2):

2


1. Mistérios da água: propriedades de uma substância extraordinária

z y

x Figura 2

- Se considerarmos um ponto no espaço no centro de um cubo infinitesimal arbitrariamente pequeno, mas finito, não nulo (Figura 3), então, dividindo a carga eletrónica do cubo pelo seu volume, obtemos a densidade de carga eletrónica nesse ponto do espaço: densidade de carga eletrónica = carga eletrónica/volume do cubo infinitesimal - As unidades da densidade de carga eletrónica (unidade de carga / unidade de volume = unidade de carga / (unidade de comprimento)3 ) utilizadas nos cálculos efetuados (Nota 1) tomam, como unidade de carga, a carga elementar e, valor absoluto da carga do eletrão (Nota 2, página 399), e como unidade de comprimento o ångström, símbolo Å (ver Figura 1). - Para cada ponto do espaço de coordenadas

(x, y, z) à volta dos núcleos existe uma

densidade de carga eletrónica ρ.

z y

x Figura 3

3


1. Mistérios da água: propriedades de uma substância extraordinária - Temos, então, 4 variáveis, que são as 3 coordenadas do ponto (x, y, z) e a densidade eletrónica ρ. - Ora, a representação gráfica de 4 variáveis não é possível porque vivemos num espaço tridimensional. - Exige-se, por isso, que consideremos a densidade eletrónica ρ, não como variável que é de facto, mas como constante à qual é atribuída um valor arbitrário. - Então, o lugar geométrico dos pontos com esse valor da densidade eletrónica, designado por isovalor (do grego ísos, "igual"), é uma superfície (todos os pontos dessa superfície têm o mesmo valor da densidade eletrónica) que se designa por superfície de isodensidade eletrónica. - As superfícies de menor isovalor contêm no seu interior as superfícies de maior isovalor, como se de um conjunto de bonecas russas (matrioscas) se tratasse (Figura 4). - Das três superfícies de isodensidade eletrónica da Figura 4, com o respetivo isovalor indicado abaixo da superfície, a maior corresponde ao menor isovalor 0,000400, contendo no seu interior aproximadamente toda a carga eletrónica da molécula. - Por isso, esta superfície serve para representar com maior realismo a forma da molécula de água. Tornámos estas superfícies da densidade eletrónica ligeiramente transparentes para facilitar a localização dos núcleos da molécula (Figura 4).

Figura 4

0,0400

0,00400

0,000400

- Assim, a molécula de água pode ser representada por uma distribuição de cargas positivas dos núcleos atómicos em determinadas posições de equilíbrio (carga de 10 protões na totalidade dos núcleos) e por uma carga negativa total correspondente a 10 electrões cuja

4


1. Mistérios da água: propriedades de uma substância extraordinária distribuição no espaço à volta dos núcleos pode ser descrita por superfícies de isodensidade eletrónica.

Figura 5

+

- Contudo, existindo cargas positivas - os núcleos - e uma densidade de carga negativa devida aos eletrões, interessa também saber qual é o sinal e a ordem de grandeza da carga dominante em cada ponto de uma superfície de isodensidade eletrónica. - A resposta a esta pergunta é dada pelo chamado potencial eletrostático que pode representar-se sobre a superfície de isodensidade eletrónica através de uma escala de cores, como na Figura 5. - O vermelho escuro indica a região onde domina a carga negativa dos eletrões (diz-se região nucleófila, isto é, "amiga de núcleos" que são positivos). A região nucleófila da molécula de água situa-se no átomo de oxigénio. - A azul escuro estão marcadas as regiões onde dominam as cargas positivas dos núcleos (dizem-se regiões eletrófilas, isto é, "amigas dos eletrões"). Nesta molécula, são as regiões nos átomos de hidrogénio. - Assim, este mapa do potencial eletrostático da molécula de água diz-nos como esta molécula interage com outras moléculas, porque a região nucleófila de uma molécula é atraída pela região eletrófila de outra e vice-versa (cargas de sinal contrário atraem-se, como é sabido). 2. Dímero - Consideremos agora a interação entre duas moléculas de água (Figura 6), onde os átomos de oxigénio estão representados por esferas vermelhas e os átomos de hidrogénio por esferas brancas.

5


1. Mistérios da água: propriedades de uma substância extraordinária - Esta interação resulta do mapa do potencial eletrostático da molécula H2O, na medida em que a região nucleófila da molécula à direita, junto do átomo O, está mais próxima da região eletrófila de um dos átomos H da molécula à esquerda. - Os pontos a preto representam interação. - Pois bem, se variarmos a distância H...O, a energia do dímero (do grego di, por dis, "duas vezes" + méros, "parte") varia de acordo com o gráfico da Figura 6. - Cada ponto vermelho corresponde a um cálculo computacional (Nota 1) executado para uma determinada distância H...O no dímero de água indicada nas abcissas. A correspondente energia é o resultado do cálculo, estando representada em ordenadas (eixo vertical). Sobre o gráfico ver a Nota 4. - O mínimo ocorre para uma distância H...O aproximadamente igual a 2,0 Å, isto é, aproximadamente o dobro do comprimento da ligação OH numa molécula de água isolada. - Por sua vez, a energia da interação é cerca de 20 kJ mol-1 indicada, no gráfico, pela diferença de energias entre as duas setas e correspondente aproximadamente a 4% da energia de uma ligação OH. - Esta interação é designada por ligação de hidrogénio, O-H...O (Nota 2, páginas 349 a 353).

EêkJ mol-1

25

20

15

10

5

0 1.5

2.0

2.5

3.0

3.5

4.0

RHO êfi

Figura 6

6


1. Mistérios da água: propriedades de uma substância extraordinária - Usando a mesma escala de cores do potencial eletrostático da molécula H2O (Figura 5) obtêm-se os mapas do potencial eletrostático sobre superfícies de isodensidade com isovalor 0,000400 apresentados na Figura 7, onde está incluída a do dímero. - As superfícies de isodensidade mapeadas com potenciais eletrostáticos do dímero comparadas com as do monómero (Figura 7) sugerem que a atração eletrostática entre a região eletrófila da molécula HOH e a região nucleófila da molécula OH2 precede a formação do dímero. - As regiões eletrófila e nucleófila do dímero são mais extensas do que na molécula isolada, indicando uma polarização das moléculas de água no dímero (do grego di, por dis, "duas vezes" + méros, "parte").

è

Figura 7

+

- Além disso, o dímero não apresenta superfícies de isodensidade distintas para as duas moléculas de água que o formam, mas uma única superfície fechada, e o potencial eletrostático na região internuclear H...O é aproximadamente zero (cor verde), indicando uma contribuição covalente parcial para a ligação de hidrogénio. Daí talvez a razão pela qual a designação "ponte de hidrogénio" tenha sido preterida pela designação "ligação de hidrogénio". - A confirmação experimental da existência do dímero da água à temperatura ambiente surgiu, pela primeira vez, em 2013: M Tretyakov et al., “Water Dimer Rotationally Resolved Millimeter-Wave Spectrum Observation at Room Temperature”, Phys. Rev. Lett. (2013) 110, 093001.

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1. Mistérios da água: propriedades de uma substância extraordinária 3. Gelo - A estrutura do gelo é tetraédrica. Para compreendermos esta afirmação comecemos por desenhar um cubo e unir os vértices indicados na Figura 8 por segmentos de reta a vermelho para obter um tetraedro inscrito no cubo.

Figura 8

- Uma molécula tetraédrica como a molécula de metano, CH4, ocupa o centro do tetraedro pelo núcleo do átomo de carbono e os 4 vértices pelos núcleos dos átomos de hidrogénio a que o átomo de carbono se encontra ligado por 4 ligações químicas C-H equivalentes. - Vulgarmente, o tetraedro é apresentado como na Figura 9.

Figura 9

- No gelo, o centro e os vértices de cada tetraedro são ocupados por núcleos dos átomos de oxigénio de 5 moléculas de água unidas por ligações de hidrogénio (Figura 10, [1]). - Por sua vez, cada molécula de água que ocupa um vértice deste bloco de construção do gelo faz parte de novo tetraedro (ocupa o seu centro) e a estrutura continua em todas direções tal como indicado na Figura 11 (os tracejados indicam ligações de hidrogénio; foram omitidos os átomos H não envolvidos nas ligações de hidrogénio apresentadas na Figura 11) .

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1. Mistérios da água: propriedades de uma substância extraordinária

Figura 10

Figura 11 - A observação da estrutura do gelo segundo a direção da seta a azul revela um ciclo hexagonal cujos vértices são ocupados por átomos de oxigénio. Os tracejados representam ligações de hidrogénio.

Figura 12 - Para um elevado número de moléculas de água, a continuação desta estrutura em todas as direções do espaço origina a Figura 12, [2]. Os canais hexagonais vazios são os responsáveis

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1. Mistérios da água: propriedades de uma substância extraordinária pelo baixo valor da densidade do gelo, tornando-a inferior à da água líquida (o gelo flutua na água líquida). - Como se vê, o padrão tetraédrico conduz à formação de canais hexagonais no gelo Ih (I representa o número 1 em romano e o índice inferior h representa "hexagonal"). - Em diferentes regiões de pressão e temperatura podem formar-se outras variedades de gelo (mais do que dez) em virtude da flexibilidade das estruturas baseadas em ligações de hidrogénio O-H...O. Estas estruturas são distinguidas por numeração romana. - À pressão normal (1 atm), podem formar-se, a partir do líquido a temperaturas inferiores a 0 ºC, cristais facetados (Figura 13, [3]) de forma hexagonal

Figura 13 ou a partir da neve cristais dendríticos (do grego, dendron = árvore) (Figura 14, [4]).

Figura 14 4. Líquido - A Figura 15 ([5]) mostra um instantâneo do líquido obtido por simulação computacional usando dinâmica molecular.

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1. Mistérios da água: propriedades de uma substância extraordinária - Como se pode observar no instantâneo da Figura 15 relativo à água líquida, as ligações de hidrogénio nem sempre são lineares (O-H...O ≈ 180º) e muitas apresentam comprimentos diferentes.

Figura 15 - A escala temporal de cada ligação de hidrogénio na água líquida depende da temperatura e abrange várias ordens de grandeza, dos pico-segundos (1 ps = 0,000 000 000 001 s = 1x10-12 s), às décimas ou mesmo centésimas do pico-segundo (A. Mudi and C. Chakravarty, "Multiple Time-Scale Behavior of the Hydrogen-Bond Network in Water", J. Phys. Chem. B (2004) 108, 19607-19613). - Ao contrário do que sucede com um cristal Ih, onde todas as moléculas de água têm 4 ligações de hidrogénio e apresentam uma distribuição tetraédrica regular, num instantâneo do líquido, pode haver moléculas de água livres e moléculas com 1, 2, 3, 4 e até 5 ligações de hidrogénio. - O modelo simples de ligações de hidrogénio na água líquida descrito no artigo A. Luzar, S. Svetina and B. Zeks, Chem. Phys. Lett. (1983) 96, 485-490, admite 2 estados possíveis para cada eixo O-H O (com ou sem ligação de hidrogénio) e considera 4 categorias de moléculas de água (com 0, 1, 2, 3 e 4 ligações de hidrogénio).

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1. Mistérios da água: propriedades de uma substância extraordinária - Segundo este modelo, enquanto a 10 ºC, 40% das moléculas estabelecem 3 ligações de hidrogénio, a 90 ºC, a mesma percentagem estabelece apenas uma ligação de hidrogénio e há cerca de 20% de moléculas livres (Figura 16, Nota 4). - Neste modelo simples, a distribuição das ligações de hidrogénio depende apreciavelmente da temperatura, como se a variação de temperatura alterasse as caraterísticas do solvente água.

10 o C

50 o C

90 o C

40

40

40

30

30

30

20

20

20

10

10

10

0

0

1

2

3

4

0

0

1

2

3

4

0

0

1

2

3

4

Figura 16

- Por sua vez, uma das limitações deste modelo consiste na ausência de cooperatividade no estabelecimento de ligações de hidrogénio, isto é, segundo este modelo, o estabelecimento de uma ligação de hidrogénio entre duas moléculas de água não depende do número de ligações de hidrogénio já formadas por qualquer delas, o que é uma manifesta limitação do modelo. - O leitor interessado em prosseguir a nível mais avançado este modelo físico sobre ligações de hidrogénio na água líquida a diferentes temperaturas, poderá consultar a Nota 2, páginas 355 a 357. 5. Densidade - Num líquido normal, o sólido é mais denso que o líquido. Consideremos esse líquido exemplificado pelo benzeno (Figura 17, [6]), cujo ponto de fusão é 5,5 ºC e ponto de ebulição é 80 ºC. - Contudo, na água, o sólido (gelo) flutua na água líquida (Figura 17, [6]), quer dizer, é menos denso que o líquido.

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1. Mistérios da água: propriedades de uma substância extraordinária - As variações das densidades do benzeno e da água com a temperatura estão representadas na Figura 17, com dados extraídos de "CRC Handbook of Chemistry and Physics", on CD-ROM, W. M. Haynes, Editor-in-Chief, Version 2011. Os gráficos da Figura 18 foram obtidos com o software Mathematica®. - Como se vê, o benzeno tem um comportamento normal, com a densidade do líquido a diminuir com o aumento da temperatura. - O aumento de temperatura, conseguido, como se sabe, através do fornecimento de calor, provoca o aumento da energia cinética das moléculas e da amplitude dos seus movimentos, originando o aumento do volume e, consequentemente, a diminuição da densidade. - Este efeito é universal, sendo dominante para a água a temperaturas superiores a 4 ºC, onde o aumento da temperatura provoca a quebra de ligações de hidrogénio e o deslocamento da distribuição do número máximo das ligações de hidrogénio para valores mais baixos (na Figura 16, comparar novamente as distribuições obtidas a 10 ºC e 90 ºC). benzeno

água

Figura 17 ρ/kg m-3

ρ/kg m

-3

1000

990

880 860

980

840

970

820 960

0

20

40

60

80

T/o C

-20

20

40

60

80

100

Figura 18

13

T/o C


1. Mistérios da água: propriedades de uma substância extraordinária ρ/kg m-3 999.98 999.96 999.94 999.92 999.90 999.88 999.86 0

2

4

6

8

T/o C

Figura 19 - Contudo, a temperaturas inferiores a 4 ºC, a diminuição da temperatura (arrefecimento) e o consequente aumento da formação de ligações de hidrogénio passa a ser o fator dominante, como se vê para a água líquida a temperaturas negativas ou água sobrearrefecida (em gotículas muito pequenas de água pura em micro-emulsões, este estado metastável da água pode chegar a temperaturas inferiores a -30 ºC!). - À pressão normal, o máximo de densidade da água ocorre a 4 ºC (Figura 19), quando os dois fatores dominantes - o fator universal segundo o qual "o aquecimento dilata os corpos" e a formação de ligações de hidrogénio que aumenta com o abaixamento da temperatura se compensam.

6. Modelo simples de dielétrico dipolar - Consideremos um líquido modelo constituído por moléculas diatómicas e dipolares, não interatuantes com outras moléculas, não polarizáveis, a não ser por reorientação devido a um campo elétrico aplicado. A Figura 20 representa uma dessas moléculas num campo elétrico.

+

+

+

+

Figura 20

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1. Mistérios da água: propriedades de uma substância extraordinária - A ação do campo elétrico consiste em alinhar a molécula de modo a que o vetor do dipolo fique paralelo ao vetor do campo elétrico, com polaridade oposta à do campo elétrico pois é esta orientação que corresponde a estabilidade. - Designa-se por dielétrico uma substância isoladora de eletricidade, isto é, que não contém cargas livres móveis sob a ação de um campo elétrico. - A Figura 21 apresenta um instantâneo de um líquido dipolar modelo. - Consideremos um condensador de placas paralelas no vácuo. - A capacidade do condensador é definida pelo quociente entre o valor absoluto da carga total numa das placas sobre a diferença de potencial elétrico entre as placas capacidade = carga / diferença de potencial isto é, a capacidade do condensador é numericamente igual à carga do condensador quando a diferença de potencial for 1 V. - Ora, se introduzirmos o dielétrico modelo entre as placas do condensador, o campo elétrico criado pelas cargas das placas orienta as moléculas do líquido alinhadas com o campo elétrico, como indica a Figura 21. - Na realidade, as moléculas apresentam pequenas oscilações de orientação, embora a orientação média seja a de alinhamento com o campo elétrico. - O dielétrico no condensador diminui o campo elétrico entre as placas do condensador e, portanto, diminui a diferença de potencial. Deste modo, a capacidade do condensador com o dielétrico aumenta porque, mantendo a carga, diminui a diferença de potencial. - A constante dielétrica é o quociente da capacidade do dielétrico sobre a capacidade do vácuo, constante dielétrica = capacidade (dielétrico) / capacidade (vácuo) - Agora, em vez de um campo elétrico uniforme, consideremos um campo elétrico oscilatório com determinada frequência (por exemplo, o campo elétrico de uma radiação eletromagnética).

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1. Mistérios da água: propriedades de uma substância extraordinária - Como o nome sugere, a radiação eletromagnética compreende campos elétricos cujas amplitudes oscilam no tempo e no espaço e campos magnéticos que oscilam perpendicularmente aos campos elétricos.

− −

+ +

− −

+ +

− −

+ +

− −

− −

+ +

− −

− −

+ +

− −

+ + vácuo

+ + vácuo + + Figura 21

- Se esta radiação atravessar um polarizador (material cristalino que absorve a radiação em todas as direções dos campos elétricos e magnéticos, exceto numa determinada direção), origina radiação eletromagnética plano-polarizada, isto é, com o campo elétrico oscilando numa determinada direção (Figura 22, Nota 4).

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1. Mistérios da água: propriedades de uma substância extraordinária

Figura 22

- Podemos, então, variar a frequência de oscilação do campo elétrico da radiação. É o campo elétrico da radiação que interage com as cargas nas moléculas do dielétrico. - Como vimos, o modelo de dielétrico mais simples é o de um líquido dipolar, onde a polarização é unicamente devida à reorientação dos dipolos moleculares. - Cada dipolo molecular tem uma frequência própria para reorientação. Contudo, no líquido, as moléculas e os dipolos moleculares não se encontram isolados nem a grandes distâncias uns dos outros.

50 20 10 109

1010

1011

1012

1013

constante dielétrica vs (frequência / Hz) 50 10 5 1 0.5 109

1010 1011 1012 1013

perda dielétrica vs (frequência / Hz) Figura 23

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1. Mistérios da água: propriedades de uma substância extraordinária - Pelo contrário, as moléculas "roçam-se" umas nas outras (há "atrito" devido à viscosidade do líquido) e a reorientação de todas as moléculas não é um processo instantâneo, não ocorrendo a uma frequência única e bem determinada. Além disso esse "atrito" entre moléculas do líquido causa um atraso da reorientação dos dipolos relativamente à frequência da radiação eletromagnética que vai gradualmente aumentando. - À medida que a frequência da radiação vai aumentando e a reorientação dos dipolos moleculares vai ocorrendo, a constante dielétrica do meio vai diminuindo, porque o processo de reorientação dos dipolos moleculares vai ocorrendo e os dipolos reorientados já já se encontram alinhados com o campo elétrico. - Além disso, o processo de reorientação num campo elétrico oscilatório envolve perda de energia do campo elétrico para o dielétrico (designa-se por perda dielétrica) que atinge o seu máximo quando o declive da diminuição da constante dielétrica é máximo. - A Figura 23 (Nota 4; ver dados em http://www1.lsbu.ac.uk/water/complex_dielectric.html) mostra a constante dielétrica (a azul) e a perda dielétrica (a vermelho) como funções da frequência. - As escalas tanto das abcissas como das ordenadas são logarítmicas, isto é, são lineares no expoente de base 10 (a título de exemplo, ver as escalas das abcissas).

raios-γ

1020

raios-X

1018

600

500

400

UV

1016

µ ondas

IV

1012

1014

700 750 nm

1010

ondas de rádio

108

106

104

frequência / Hz Figura 24 - A escala logarítmica é usada quando a quantidade física que lhe corresponde apresenta valores que diferem por várias ordens de grandeza (ver Figura 24 com espetro da radiação eletromagnética).

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1. Mistérios da água: propriedades de uma substância extraordinária

7. A água como dielétrico - Como se vê pelo potencial eletrostático de uma molécula H2O mapeado sobre uma superfície de isodensidade (isovalor = 0,000400; Figura 25), os centros das cargas negativas e das cargas positivas não coincidem e, por isso, a cada molécula H2O está associado um dipolo elétrico (vetor a azul segundo a bissetriz do ângulo das ligações HOH, dirigido da carga negativa para a carga positiva).

Figura 25 - Passando agora da molécula isolada para o líquido água, sabemos que as moléculas de água no líquido estabelecem ligações de hidrogénio com tempos da ordem dos picosegundos (1 ps = 0,000 000 000 001 s = 1 x 10-12 s) ou frações do picossegundo, a que correspondem frequências da ordem de grandeza do terahertz (1 THz = 1000 000 000 000 Hz = 1x1012 Hz), dezenas ou centenas de terahertz. - Ora, para que o campo elétrico oscilatório da radiação eletromagnética transfira energia para a água é necessário que tenha frequências iguais ou aproximadamente iguais às frequências dos múltiplos modos de polarização da água. - A título de ilustração, consideramos apenas dois modos de polarização principais associados, por um lado, a moléculas de água com várias ligações de hidrogénio (relaxação lenta a cerca de 8 ps) e, por outro, a moléculas de água livres ou apenas com uma ligação de hidrogénio (relaxação rápida a cerca de 0,2 ps). - Usando estes tempos de relaxação são obtidos os gráficos da constante dielétrica e da perda dielétrica como funções da frequência apresentados na Figura 26 (Nota 4; ver dados em http://www1.lsbu.ac.uk/water/complex_dielectric.html). Na perda dielétrica, a curva a vermelho é a soma das curvas correspondentes a estes dois tempos de relaxação dielétrica.

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1. Mistérios da água: propriedades de uma substância extraordinária - Como o nome sugere, a perda dielétrica corresponde a energia transferida do campo elétrico da radiação eletromagnética para o dielétrico, neste caso, a água. - Para aquecer alimentos num forno de micro-ondas, é vulgar ser utilizada uma frequência inferior (2,45 GHz ≈ 65 ps) à frequência do máximo de perda dielétrica da água a ≈ 20 GHz (≈8,3 ps) para que o aquecimento dos alimentos ocorra gradual e uniformemente de fora para dentro e não de modo rápido ou brusco na camada exterior do alimento, como seria se

constante dielétrica

fosse utilizada a frequência correspondente ao máximo da perda dielétrica.

50 20 10 5

perda dielétrica

109

1010

1011

1012

50

1013 frequência / Hz

8 ps

10 5 0,2 ps

1 0.50 0.10 0.05 109

1010

1011

1012

1013

frequência / Hz

Figura 26

- O leitor pode consultar espetros dielétricos da água com mais modos de polarização e, por isso, mais realistas, nos artigos referidos na Nota 5.

8. Hidratação de proteínas - Quase todas as macromoléculas biológicas - proteínas (enzimas) e ADN - são inativas na ausência de água. Em especial, para as proteínas exercerem as suas funções biológicas requerem a sua hidratação e o adequado enovelamento da cadeia proteica construída a

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1. Mistérios da água: propriedades de uma substância extraordinária partir de aminoácidos (Figura 27, dentro de curvas fechadas a ponteado, estão indicados o grupo ácido COOH e o grupo amina NH2). - Esta compreende: i) moléculas de água ligadas à cadeia proteica por ligações de hidrogénio no interior da cadeia proteica, com tempos de residência longos, e ii) uma camada de hidratação que envolve a proteína, onde os tempos de residência das moléculas de água são da ordem de grandeza dos encontrados no interior da água líquida (V.A. Makarov et al., "Residence Times of Water Molecules in the Hydration Sites of Myoglobin", Biophys. J. (2000) 79, 2966-2974).

R

Figura 27 - As cadeias laterais R dos aminoácidos podem rodar em torno das ligações R-C, deste modo originando um número incalculável de diferentes formas ou conformações da proteína. Se admitirmos 100 aminoácidos e duas posições estáveis para cada grupo R, teremos então 2100 conformações o que é um número inimaginável, da ordem de 1030, isto é, 1 seguido por 30 zeros! Assim, a proteína é um sistema dinâmico, comandado em grande parte pelas flutuações da rede de ligações de hidrogénio da água nas camadas de hidratação da proteína e no interior da água. - Além disso, perante grupos R hidrófobos da cadeia proteica como, por exemplo, a fenilalanina, onde R=C6H5CH2-, a água forma superfícies envolventes das cadeias laterais ao estabelecer ligações de hidrogénio entre moléculas de água, desse modo contribuindo para alterar a conformação da proteína (S.K. Pal and A.H. Zewail, "Dynamics of Water in Biological Recognition", Chem. Rev. (2004) 104, 209-2123; R. Gosh, S. Roy, and B. Bagchi, "Solvent Sensitivity of Protein Unfolding: Dynamical Study of Chicken Villin Headpiece Subdomain in Water-Ethanol Binary Mixture", J. Phys. Chem. B (2013) 117, 15625-15638). - A mioglobina (do grego myós, "músculo") exerce a função de armazenar oxigénio nos músculos necessário à atividade destes.

21


1. Mistérios da água: propriedades de uma substância extraordinária

M.Perutz (1914-2002)

J.Kendrew (1917-1997)

Figura 28

- Esta proteína é formada a partir de 154 aminoácidos e a sua estrutura foi determinada por

Max Perutz e John Kendrew usando cristalografia de raios-X (J. C. Kendrew and M. F. Perutz, ied model of protein dynamics

"X-Ray Studies of Compounds of Biological Interest", Annual Review of Biochemistry (1957)

ldera,1, Guo Chena, Joel Berendzena, Paul W. Fenimorea,1, Helén Janssonb, Benjamin H. McMahona, e ec, Jan Swensond, and Robert D. YoungEstes 26, 327-372). cientistas (Figura 28, [7], [8]) receberam o prémio Nobel de Química em

nal Laboratory, Los Alamos, NM 87545; bThe Swedish NMR Center, Göteborg University, SE 405 30 Göteborg, Sweden; cDepartment Department of Applied Physics, Chalmers University of Technology, er Polytechnic Institute, Worcester, MApelos 01609; dseus 1962 estudos sobre a estrutura de proteínas globulares. g, Sweden; and eDepartment of Physics and Astronomy, Northern Arizona University, Flagstaff, AZ 86011

ns Frauenfelder, January 15, 2009 (sent for review December 5, 2008)

s require conformational motions. We show here ant conformational motions are slaved by the and the bulk solvent. The protein contributes the ary for function. We formulate a model that is ments, insights from the physics of glass-forming e concepts of a hierarchically organized energy plore the effect of external fluctuations on protein easure the fluctuations in the bulk solvent and the with broadband dielectric spectroscopy and comnternal fluctuations measured with the Mössbauer tron scattering. The result is clear. Large-scale are slaved to the fluctuations in the bulk solvent. lled by the solvent viscosity, and are absent in a nt. Internal protein motions are slaved to the beta the hydration shell, are controlled by hydration, n a dehydrated protein. The model quantitatively d increase of the mean-square displacement above that the external beta fluctuations determine the nd time-dependence of the passage of carbon gh myoglobin, and explains the nonexponential e of the protein relaxation after photodissociation.

ectric ! hydration ! solvent

Figura 29

Fig. 1.

The hydration shell of myoglobin (Mb). Diagram of myoglobin (blue

surface) with 1,911 water molecules (CPK model), the approximate number dynamic systems that interact strongly with their needed for optimal function (h % 2). The waters form a shell !5 Å thick around t (1). Most texts and publications show proteins the protein. Approximately 200 water molecules are distinguishable from rmations and naked, without hydration que shell and background with high-resolution X-ray crystallography. - Note-se a mioglobina tem um momento dipolar (E.H. Grant and G.P. South, "The while fluctuations are rarely mentioned. The of protein dynamics presented here is a radical Dipole Moment of Myoglobin", Biochem. J. (1971) 122, 765-767) que é cerca de 80 vezes o this picture. In this model, the protein provides The ! and " Processes (20, 21) or the biological function, but it is dynamically liquids two(1,855 types ofD, equilibrium momento dipolar uma molécula dehave água Nota 3;fluctuations, 1 eÅ = 4,80 D, Nota 2, página ctuations in the bulk solvent power and control de Glass-forming ! and " .* One tool to study these fluctuations is dielectric motions and shape changes of the protein in a relaxation spectroscopy (21). The sample is placed in a capacitor, er (2–4), whereas the fluctuations in the hydraa sine-wave voltage U1(#) of frequency # is applied, and the and control the internal protein motions such as into a voltage U2(#) that characn (5, 6). The hydration shell consists of !2 layers resulting current is converted 22 terizes the dielectric spectrum. Our spectra exhibit two promiround proteins as shown in Fig. 1 (7–12). Protein nent peaks that characterize !, or primary, and ", or secondary, nd on the degree of hydration, h, defined as the relaxations. The ! process describes structural fluctuations. The water to protein. Dehydrated proteins do not proteins begin to work at h ! 0.2 (11) but full mechanical Maxwell relation,


1. Mistérios da água: propriedades de uma substância extraordinária 400). Sendo uma macromolécula, a sua interação com o campo elétrico da radiação eletromagnética situa-se na escala das dezenas ou centenas de nano-segundos (1ns = 0,000 000 001 s = 10-9 s). - A Figura 29 ([9]) ilustra um instantâneo de um cálculo computacional sobre um modelo da mioglobina com uma camada de hidratação (ver H. Frauenfelder et al., "A unified model of protein dynamics", Proc. Natl. Acad. Sci. USA

(2009) 106, 5129-5134). A superfície que

envolve a proteína apresenta regiões hidrófobas e hidrófilas. - As moléculas de água ligam-se às regiões hidrófilas através de ligações de hidrogénio. Por sua vez, estas moléculas de água estabelecem novas ligações de hidrogénio com outras moléculas de água. - Nas regiões hidrófobas da proteína, as moléculas de água formam superfícies envolventes ao estabelecerem ligações de hidrogénio entre moléculas de água (Nota 2, Fig. 7.32 e páginas 361, 362, 365, 366). - A lisozima é uma proteína que existe nas lágrimas, na saliva, no suor e noutros fluidos do nosso corpo e tem por função combater bactérias que tentam entrar no corpo através destes fluidos. - A dinâmica de relaxação da solução aquosa de lisozima, investigada por espetroscopia dielétrica (M. Wolf et al., "Relaxation dynamics of a protein solution investigated by dieletric spectroscopy", Biochimica et Biophysica Acta - Proteins and Proteomics" (2012) February 15, 1-11), permitiu identificar três máximos na perda dielétrica atribuídos à i) reorientação da proteína a 16 ns, correspondente à frequência a cerca de 10 MHz, ii) reorientação de moléculas de água ligadas à proteína por ligações de hidrogénio a 1,6 ns, correspondente à frequência de 100 MHz, e iii) reorientação da água a cerca de 8 ps (este último máximo já foi referido no espetro dielétrico da água e corresponde à frequência de 20 GHz).

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1. Mistérios da água: propriedades de uma substância extraordinária

Notas 1. As representações moleculares apresentadas nesta palestra foram obtidas com GaussView 5.0.9, interface gráfica do sistema de programas Gaussian 09, http://gaussian.com . Todos os cálculos de mecânica quântica foram efetuados pelo sistema de programas Gaussian 09. - Gaussian 09, http://gaussian.com , Revision A.02, M. J. Frisch, G. W. Trucks, H. B. Schlegel, G. E. Scuseria, M. A. Robb, J. R. Cheeseman, G. Scalmani, V. Barone, G. A. Petersson, H. Nakatsuji, X. Li, M. Caricato, A. Marenich, J. Bloino, B. G. Janesko, R. Gomperts, B. Mennucci, H. P. Hratchian, J. V. Ortiz, A. F. Izmaylov, J. L. Sonnenberg, D. Williams-Young, F. Ding, F. Lipparini, F. Egidi, J. Goings, B. Peng, A. Petrone, T. Henderson, D. Ranasinghe, V. G. Zakrzewski, J. Gao, N. Rega, G. Zheng, W. Liang, M. Hada, M. Ehara, K. Toyota, R. Fukuda, J. Hasegawa, M. Ishida, T. Nakajima, Y. Honda, O. Kitao, H. Nakai, T. Vreven, K. Throssell, J. A. Montgomery, Jr., J. E. Peralta, F. Ogliaro, M. Bearpark, J. J. Heyd, E. Brothers, K. N. Kudin, V. N. Staroverov, T. Keith, R. Kobayashi, J. Normand, K. Raghavachari, A. Rendell, J. C. Burant, S. S. Iyengar, J. Tomasi, M. Cossi, J. M. Millam, M. Klene, C. Adamo, R. Cammi, J. W. Ochterski, R. L. Martin, K. Morokuma, O. Farkas, J. B. Foresman, and D. J. Fox, Gaussian, Inc., Wallingford CT, 2016. - GaussView 5.0.9, http://gaussian.com . Autores: Roy D. Dennington, Todd A. Keith and John Millam, Semichem Inc., Shawnee Mission, KS, 2009. 2. José J.C. Teixeira-Dias, "Molecular Physical Chemistry - A Computer-based Approach using Mathematica® and Gaussian, 2017, Springer International Publishing, ISBN 978-3-31941092-0 (eBook, ISBN 978-3-319-41093-7). 3.

Computational

Chemistry

Comparison

and

Benchmark

DataBase

(CCCBDB):

https://cccbdb.nist.gov . 4. Os cálculos efetuados com modelos físicos simples e todos os gráficos foram obtidos com o software Mathematica® (www.wolfram.com). Autor: Wolfram Research Inc. Champaign, IL., USA. 5. Para descrever a constante dielétrica e a perda dielétrica da água, com vários modos de polarização, em função da frequência, consultar

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1. Mistérios da água: propriedades de uma substância extraordinária "Origin of the fast relaxation component of water and heavy water revealed by terahertz time-domain attenuated total reflection spectroscopy". H. Yada, M. Nagai and K. Tanaka, Chem. Phys. Lett. (2008) 464, 166-170. - Segundo esta publicação, a curva da perda dielétrica da água pode ser decomposta em quatro componentes interpretando-as como a) relaxação lenta relativa a agregados de moléculas de água ligadas entre si por ligações de hidrogénio com máximo a ≈ 9,5 ps no domínio temporal, correspondente à frequência ≈ 17 GHz na região de micro-ondas (Figura 24; 1 GHz = 1000 000 000 Hz) b) relaxação rápida relativa a moléculas de água livres ou com uma ligação de hidrogénio com máximo a ≈ 0,25 ps no domínio temporal (corresponde a frequência na região do InfraVermelho ≈ 0,64 THz; Figura 24) c) vibração de elongação intermolecular nas ligações de hidrogénio, com máximo no número de ondas a 154 cm-1 (corresponde a frequência na região do InfraVermelho a ≈ 4,62 THz; Figura 24) d) vibração de libração ou balanceamento a 472 cm-1 (corresponde a frequência na região do InfraVermelho a ≈ 14,2 THz; Figura 24). - Sobre este assunto, ver também A. Beneduci, "Which is the effective time scale of the fast Debye relaxation process in water?", J. Molec. Liquids (2008) 138, 55-60.

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1. Mistérios da água: propriedades de uma substância extraordinária Endereços eletrónicos [1]https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/c/c6/3D_model_hydrogen_bond s_in_water.svg/1200px-3D_model_hydrogen_bonds_in_water.svg.png (fonte: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:3D_model_hydrogen_bonds_in_water.svg) [2] http://www.openscience.org/~chrisfen/Pages/Research/iceImages/ice1h/1h100.html [3] http://www.its.caltech.edu/~atomic/snowcrystals/faceting/prisms.jpg (autor: Kenneth G. Libbrecht, Physics, Caltech) [4] http://www.snowcrystals.com/photos/f0118a176Asm.jpg (autor: Kenneth G. Libbrecht, Physics, Caltech) [5] https://www.nyu.edu/pages/mathmol/textbook/water_hbond.gif (fonte: https://www-ssrl.slac.stanford.edu/nilssongroup/pages/project_liquid_structure.html) [6] https://images.slideplayer.com/38/10810951/slides/slide_63.jpg [7] https://www.nobelprize.org/images/perutz-13152-portrait-mini-2x.jpg [8] https://www.nobelprize.org/images/kendrew-13151-portrait-mini-2x.jpg [9]https://www.researchgate.net/profile/Jan_Swenson/publication/24146177/figure/fig3/AS:6 67807788331015@1536229192136/The-hydration-shell-of-myoglobin-Mb-Diagram-ofmyoglobin-blue-surface-with-1-911.jpg

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2. Como foi descoberto o ADN

A determinação da estrutura do ADN no século XX talvez tenha sido a descoberta científica de maior impacto no conhecimento do ser humano em toda a história da humanidade. Esta descoberta culminou com a sequenciação do genoma humano concluída em 2003 como a maior realização das ciências biológicas alguma vez conseguida através de um projeto internacional que envolveu um grupo interdisciplinar de cientistas - biólogos, físicos, químicos, cientistas computacionais, matemáticos, engenheiros - e tecnologias avançadas. Muitos foram os cientistas que, a partir do fim do século XIX, contribuíram para essa descoberta. Esta palestra visa homenagear todos, independentemente de aqui não serem explicitamente referidos. Os temas abordados serão os seguintes: 1. Difração de raios-X 2. Descoberta do ADN 3. Simulação ótica da difração de raios-X

1. Difração de raios-X - A difração de raios-X é um método experimental essencial para a determinação da estrutura de cristais tendo sido decisivo na determinação da estrutura do ADN. - Em que consiste este método? Consideremos um feixe de raios-X de comprimento de onda definido (da ordem de 1 Å (ångström) = 0,000 000 0001 m) a incidir numa das faces de um cristal e uma chapa fotográfica sensível aos raios-X (Figura 1). Verifica-se que o feixe inicial é desdobrado em múltiplos feixes que deixam marcas em diferentes posições do ecrã (a palavra “difração” vem do latim diffringere que significa “quebrar em pedaços”). Como o feixe mais intenso dos raios-X difratados é o que não se desvia da direção inicial, devemos impedir que tal feixe incida no ecrã, para não o danificar. Por isso, utilizamos um bloqueador do feixe de raios-X (uma pequena placa de chumbo, por exemplo, ver Figura 1).

1


2. Como foi descoberto o ADN

Figura 1 - O físico que primeiro mostrou a difração de raios-X por cristais foi Max von Laue em 1912, tendo recebido o prémio Nobel da Física em 1914 (Figura 2, [1]).

Max von Laue (1879-1960)

Figura 2 - À data desta descoberta, a sua importância residia fundamentalmente no facto de ter mostrado que os átomos de um cristal difratam radiação de comprimento de onda da ordem dos espaçamentos entre planos de átomos (1 Å).

Figura 3

2


2. Como foi descoberto o ADN - Ora, sendo os raios-X radiação eletromagnética, devem interagir com os eletrões dos átomos. Quanto maior for o número de eletrões de um átomo, tanto mais intensa será a radiação difratada. - A interação de uma onda eletromagnética de raios-X com um átomo transforma esse átomo numa fonte secundária que irradia radiação eletromagnética com o mesmo comprimento de onda em todas as direções do espaço (Figura 3). Se existir outro átomo vizinho, as radiações reemitidas por estes átomos interferem. - Ora, se duas ondas interferirem em fase, a interferência é construtiva e a onda resultante tem uma amplitude que é a soma das amplitudes das ondas interferentes (Figura 4). Portanto, a amplitude máxima duplicará. Na interferência destrutiva, a amplitude resultante da interferência é constante, não variando no tempo. Assim, nas direções do espaço em que a interferência é destrutiva, não existe radiação eletromagnética porque esta é um fenómeno ondulatório.

Figura 4

Figura 5

3


2. Como foi descoberto o ADN - A Figura 5 mostra que as direções do espaço em que há feixes de raios-X difratados correspondem a direções de interferência construtiva (Figura 5, à direita) e, a manchas na chapa fotográfica dos raios-X .

W.L. Bragg (1890-1971)

W.H. Bragg (1862-1942)

Figura 6 - Em 1915, o prémio Nobel da Física foi atribuído a dois cientistas, pai e filho, William Henry Bragg e William Lawrence Bragg, pelos seus trabalhos na “análise da estrutura cristalina por meio dos raios-X” (Figura 6, [2], [3] ). - Como curiosidade, convém referir que William Lawrence Bragg foi orientador da tese de doutoramento do Prof. Dr. João de Almeida Santos, professor e diretor no Departamento de Física da Universidade de Coimbra (ver Carlos Fiolhais, António José Leonardo, Décio Martins, “A Física na Universidade de Coimbra de 1900 a 1960”, Gazeta de Física (2011) 34, 9-14, Sociedade Portuguesa de Física). O Prof. Dr. João de Almeida Santos foi meu professor na disciplina de Mecânica Física. - Pai e filho Bragg encontraram uma explicação simples para resolver os diagramas de raios-X, isto é, obter as estruturas cristalinas que os originavam. Para tal, consideraram que cada plano de um cristal constituído por átomos do mesmo elemento químico “reflete” os raios-X como se de um espelho plano se tratasse e determinaram as direções dos feixes difratados por lhes corresponderem a condição de interferência construtiva. - Esta impõe que a diferença de caminho percorrido por dois feixes “refletidos” por planos de átomos paralelos deva ser um múltiplo inteiro do comprimento de onda dos raios-X para que as ondas “refletidas” pelos dois planos de átomos se mantenham em fase. - O leitor interessado em chegar às equações matemáticas associadas à interferência construtiva nos casos mais simples pode ver a Nota 1, páginas 308 a 310.

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2. Como foi descoberto o ADN - Para um cristal simples (por exemplo, cloreto de sódio, cloreto de potássio, blenda de zinco), as equações de Bragg podem ser resolvidas à mão. Hoje em dia, os diagramas de raios-X de cristais de macromoléculas biológicas, com dezenas ou centenas de milhares de átomos, só podem ser resolvidos computacionalmente recorrendo a transformações matemáticas designadas por transformadas de Fourier. Além disso, a interpretação dos resultados requer elevado grau de especialização em Cristalografia de Raios-X e meses ou mesmo anos de trabalho.

Figura 7 - A Figura 7 apresenta um pormenor de um difratómetro de raios-X moderno (Nota 2). Vê-se o feixe de raios-X, o bloqueador do feixe que não é difratado, o detetor e um cristal microscópico na ponta de uma fibra montada num goniómetro com possibilidade de rotações em dois planos e de um movimento de translação. A conjugação destes movimentos com o auxílio da câmara de vídeo permite colocar o cristal no caminho do feixe. O sistema de arrefecimento cria um fluxo de vapor de nitrogénio líquido (temperatura de ebulição -196 ºC) que incide no cristal e baixa a sua temperatura para diminuir as amplitudes dos movimentos dos átomos e melhorar a definição na determinação da posição dos átomos no difratograma de raios-X.

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2. Como foi descoberto o ADN - A Figura 8 apresenta o diagrama de difração de raios-X de uma enzima cristalizada [4]. A determinação da estrutura de macromoléculas biológicas, especialmente enzimas, é essencial para o desenvolvimento de novos fármacos. - A complexidade deste diagrama cuja resolução, isto é, determinação da estrutura do cristal, requer a utilização de meios computacionais apreciáveis, softwares sofisticados e a qualificação e experiência de um ou mais cristalógrafos de raios-X. Uma das dificuldades resulta de os átomos de hidrogénio praticamente não difratarem os raios-X, em virtude de terem um só eletrão. Como foi dito, a difração de raios-X resulta da interação destes com os eletrões dos átomos.

Figura 8

Figura 9

6


2. Como foi descoberto o ADN - Criado em 1971, o arquivo Protein Data Base (PDB) [5] é um repositório das estruturas 3D de proteínas, de ácidos nucleicos e de estruturas de complexos sistemas biológicos, determinadas por difração de raios-X, devidamente validadas e disponíveis à comunidade global de ciência e tecnologia em todo o mundo. - A Figura 9 ilustra o número total de estruturas em cada ano (barras a vermelho) e o aumento por ano (barras a azul). À data da apresentação desta palestra (20 de fevereiro de 2018), esta base de dados já continha mais de 130 mil estruturas.

2. Descoberta do ADN - Vou remontar agora ao século XVI para apresentar uma pequena evolução histórica, sem pretensões de ser exaustiva, mas que permite compreender o caminho da ciência relativamente longo até à descoberta da estrutura do ADN. - Em primeiro lugar, refiro o primeiro microscópio (Figura 10, [6]), com uma ampliação de 6 a 10 vezes, construído por volta de 1595. É vulgarmente atribuído ao holandês Zacharias Jansen (Figura 10, [7]).

Zacharias Jansen (c. 1588- c. 1632) Figura 10

- O início da microscopia (uso do microscópio para aumentar o conhecimento científico) é atribuído a Antonie van Leeuwenhoek (Figura 11, [8]), também holandês, que utilizou microscópios já com fatores de ampliação de 270 vezes.

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2. Como foi descoberto o ADN

A. Leeuwenhoek (1632-1723)

Figura 11 - Outra descoberta importante, a da célula biológica, é atribuída ao inglês Robert Hooke (Figura 12, [9]), em 1665. A designação de “célula” resultou do que o próprio Robert Hooke viu ao microscópio em cortes de cortiça e desenhou em figura (Figura 12, [10]) e da semelhança que estabeleceu com as células habitadas por monges em mosteiros cristãos. - Uma célula biológica tem uma dimensão compreendida entre 1 e 100 milésimas de mm (1 micrómetro = 1 milésima de mm). - A célula biológica surgiu pela primeira vez em 1839 como unidade estrutural, funcional e biológica de plantas e animais, com Mathias Jakob Schleiden (alemão, botânico) e Theodor Schwann (alemão, fisiologista) (Figura 13, [11], [12]). A Figura 14 apresenta um corte de cebola com células em várias fases do seu ciclo [13].

Robert Hooke (1635-1703)

Figura 12

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2. Como foi descoberto o ADN

M.Schleiden(1804-1881)

T.Schwann(1810-1882)

Figura 13

Figura 14

- Em 1859, Charles Darwin, naturalista inglês, publicou o livro “A Origem das Espécies” (Figura 15, [14], [15]). Baseado em extensas observações experimentais colhidas em várias partes da Terra, concluiu que a diversidade da vida tem origem na evolução das espécies e que deve existir um mecanismo de transmissão das características específicas de cada ser vivo aos seus descendentes. - Este livro talvez seja o que congrega conhecimento científico que maior influência teve e continua a ter no modo como se olha hoje para o Homem.

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2. Como foi descoberto o ADN - Darwin está sepultado na Abadia de Westminster, em Londres, onde também está sepultado Newton.

Charles Darwin (1809-1882)

Figura 15

F. Miescher (1844-1895)

Figura 16

- Em 1869, Johannes Friedrich Miescher (Figura 16, [16]), médico e biólogo suiço, isolou moléculas a partir de células (leucócitos e esperma de salmão), e observou a existência de um ácido com H, O, N e P (fósforo) que designou por nucleína, na altura, supostamente uma proteína. - Em 1878, Albrecht Kossel (Figura 17, [17]), bioquímico alemão, isolou as cinco moléculas orgânicas genericamente designadas por bases nitrogenadas, a adenina (A), a citosina (C), a guanina (G), a timina (T) e o uracilo (U), que se encontram nos ácidos nucleicos, tendo

10


2. Como foi descoberto o ADN recebido o prémio Nobel em Fisiologia ou Medicina em 1910, por ter determinado, pela primeira vez, a composição química do ADN. - Nesta macromolécula, o açúcar é a desoxirribose e as bases nitrogenadas são A, C, G e T (no ARN, o açúcar é a ribose e a timina é substituída pelo uracilo).

FOSFATO

BASE

AÇÚCAR

FOSFATO

BASE

AÇÚCAR

FOSFATO

BASE

A. Kossel (1835-1927)

AÇÚCAR

Figura 17

O.T. Avery (1877-1955)

Figura 18 - Sessenta e seis anos mais tarde, em 1944, o médico norte-americano nascido no Canadá Oswald T. Avery (Figura 18, [18]) e colaboradores realizaram uma experiência, designada por experiência Avery-MacLeod-McCarty, em que mostraram que o ADN purificado causava alterações genéticas nas bactérias, quando ainda se pensava que eram as proteínas que tranportavam a informação genética.

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2. Como foi descoberto o ADN

E. Chargaff (1905-2002)

Figura 19 - Erwin Chargaff (Figura 19, [19]), bioquímico austro-húngaro que se naturalizou americano, emigrou para os EUA durante o período nazi, e realizou experiências, em 1950, que permitem concluir que, no ADN de qualquer célula de todos os organismos vivos, as quantidades de guanina e citosina são iguais (C=G), bem como as quantidades de adenina e timina (A=T). Estas afirmações são hoje conhecidas por regras de Chargaff. - Em 1952, a experiência designada por Hershey-Chase (nomes dos cientistas que a realizaram) permitiu concluir que o ADN de uma bactéria é o que lhe confere a capacidade de se reproduzir. Quando um bacteriófago (ADN + proteínas) infecta uma bactéria é o ADN que entra na bactéria, as proteínas não.

M.Delbrück(1906-1981)

A.Hershey(1908-1997)

S.Luria(1912-1991)

Figura 20 - Em 1969, o prémio Nobel em Fisiologia ou Medicina foi atribuído aos norte-americanos Max Delbrück, Alfred Hershey e Salvador Luria pelas suas descobertas relativas ao mecanismo de replicação e as estruturas genéticas dos vírus (Figura 20, [20], [21], [22]).

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2. Como foi descoberto o ADN

- A Figura 21 ([23], [24]) apresenta o primeiro diagrama de raios-X do ADN obtido com qualidade suficiente para, a partir dele, ser possível extrair informações importantes sobre a estrutura do ADN. Os seus autores foram a inglesa Rosalind Franklin e o então seu estudante Raymond Gosling. - Rosalind Franklin, nascida em Londres, de família judaica, teve boa educação (nessa altura, havia poucas escolas para raparigas), passou por Sussex e iniciou estudos em química, em 1938, em Cambridge. Foi assistente de investigação em várias instituições trabalhando em carvão e grafite e concluiu o seu doutoramento em 1945. Em 1951, entrou no King’s College de Londres, num grupo dirigido pelo neozelandês Maurice Wilkins, com quem não se deu particularmente bem. - Raymond Gosling foi físico inglês e, a partir de 1984, professor jubilado em Física Aplicada à Medicina no Guy’s Hospital, Londres.

R.Franklin(1920-1958)

R.Gosling(1926-2015)

Maio 1952

Figura 21

- A Figura 22 ([25]) apresenta um modelo da estrutura do ADN construído por James Watson em colaboração com Francis Crick. - James Watson foi um ornitólogo norte-americano (ornitologia é o estudo de pássaros), doutorado em microbiologia em 1950. - A partir de Outubro de 1951, Francis Crick entrou no Laboratório Cavendish em Cambridge e aí veio a conhecer James Watson e com ele realizar estudos sobre o ADN.

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2. Como foi descoberto o ADN - Francis Crick, físico inglês, interrompeu a preparação do seu doutoramento entre 1939 e 1949 devido à Segunda Grande Guerra, tendo passado a lidar com radares e minas magnéticas, neste período. Concluiu em Cambridge, em 1954, o seu doutoramento sobre difração de raios-X de polipetídeos e proteínas. Em 2016, em Londres, foi fundado um centro de investigação biomédica em sua memória (Instituto Francis Crick).

Watson (1928-)

Crick (1916-2004) Figura 22

- Em 25 de Abril de 1953 surgiu na revista Nature um artigo da autoria de James Watson e Francis Crick intitulado "Molecular Structure of Nucleic Acids - A Structure for Deoxyribose Nucleic Acid". Neste artigo, os autores começam por referir estruturas previamente propostas para o ADN (nomeadamente por Linus Pauling e Robert Corey) e apresentam uma proposta que dizem ser radicalmente diferente das anteriores. Nos agradecimentos, os autores dizem ter sido “estimulados pelo conhecimento da natureza geral dos resultados experimentais ainda não publicados e das ideias do Dr. M. H. F. Wilkins e da Dr.a R. E. Franklin e seus colaboradores, no King’s College, Londres” (ver diagrama de raios-X da Figura 21).

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2. Como foi descoberto o ADN - Por sua vez, em 30 de Maio de 1953, James Watson e Francis Crick publicaram na revista Nature um artigo intitulado “Genetical Implications of the Structure of Deoxyribonucleic Acid”. - Neste artigo, os autores escrevem “A importância do ADN no interior das células vivas é inquestionável. Encontra-se em todas as células que se dividem, em grande parte, se não na totalidade, no núcleo, onde é um constituinte essencial dos cromossomas” e “Muitos indícios indicam que [o ADN] é o transportador de uma parte (se não na totalidade) da especificidade genética dos cromossomas e portanto dos próprios genes”. - Rosalind Franklin publicou o artigo intitulado “Evidence for 2-Chain Helix in Crystalline Structure of Sodium Deoxyribonucleate”, em colaboração com o seu estudante Raymond Gosling, em 25 de Julho de 1953, na revista Nature. - Nele escrevem que “Watson e Crick propuseram uma estrutura do ADN que consiste em duas cadeias helicoidais e axiais. Nós mostrámos que os aspetos principais da sua estrutura estão de acordo com os nossos diagramas de raios-X.”

Ligações de hidrogénio

ADN

segmento ADN planificado

Figura 23

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2. Como foi descoberto o ADN - A Figura 23 ([26], [27]) apresenta à esquerda uma ilustração da estrutura do ADN. Cada cadeia helicoidal corresponde à sequência fosfato-açúcar-fosfato-açúcar-... , onde, à direita, o grupo fosfato está representado a vermelho e o açúcar (desoxirribose) a azul. Por sua vez, a cada açúcar está ligada uma das quatro bases nitrogenadas representadas pelas letras A = adenina, C = citosina, G = guanina, T = timina. As bases nitrogenadas de uma cadeia helicoidal estabelecem ligações de hidrogénio com as bases nitrogenadas da outra cadeia. - Portanto, a confirmação experimental da estrutura do ADN foi efetuada pela primeira vez por Rosalind Franklin. Esta morreu de cancro do ovário em 1958, não recebendo, por isso, o prémio Nobel de 1962. No seu lugar, ficou Maurice Wilkins, chefe do seu grupo no King’s College Londres. Assim, o prémio Nobel em Fisiologia ou Medicina de 1962 foi atribuído a James Watson, Francis Crick e Maurice Wilkins pelas suas “descobertas sobre a estrutura molecular dos ácidos nucleicos e o seu significado sobre a transferência de informação em matéria viva” (Figura 24, [28], [29], [30]).

F. Crick (1916-2004)

J. Watson (1928- ) M. Wilkins (1916-2004)

Figura 24 - Já em 1958, o prémio Nobel da Química tinha sido atribuído a Frederick Sanger “pelo seu trabalho sobre a estrutura das proteínas, especialmente a insulina”. Este trabalho consistiu em determinar, em 1951 e 1952, as sequências de aminoácidos das duas cadeias peptídicas da insulina. Estas cadeias estão ligadas por duas ligações dissulfeto

(-S-S-, onde S é o

símbolo do elemento químico enxofre). - Frederick Sanger foi o único cientista a receber dois prémios Nobel em Química. O segundo prémio Nobel foi recebido em 1980, com Walter Gilbert e Paul Berg. Paul Berg recebeu metade do prémio pelos seus “estudos fundamentais sobre a bioquímica dos ácidos

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2. Como foi descoberto o ADN nucleicos”. Frederick Sanger e William Gilbert receberam, cada um, um quarto do prémio, pelas “suas contribuições para a determinação das sequências de bases nos ácidos nucleicos” (Figura 25, [31], [32], [33]).

P. Berg (1926- )

W. Gilbert (1932- )

F. Sanger (1918-2013)

Figura 25

- A sequenciação do genoma humano (sequência de bases nitrogenadas que integram os genes humanos) representa a maior realização na história das ciências biológicas. Foi concluída pela primeira vez em 2003, com a identificação de cada um dos genes humanos. Liderado pelos Estados Unidos, este projeto internacional envolveu o Reino Unido, o Japão, a França, a Alemanha e a China, foi realizado por um grupo interdisciplinar de cientistas (biólogos, físicos, químicos, cientistas computacionais, matemáticos, engenheiros) e recorreu a tecnologias avançadas. - De todo este gigantesco projeto (quatro mil milhões de dólares de investimento, impacto económico de oitocentos mil milhões de dólares, trezentos e dez mil postos de trabalho) têm decorrido enormes avanços no conhecimento científico, em novas tecnologias e serviços, na Saúde Humana e na Medicina, na Medicina Veterinária, na Agricultura e Alimentação, na Biotecnologia Industrial, em Aplicações Ambientais, na Segurança, Justiça e Ciência Forense. 3. Simulação ótica da difração de raios-X - Como vimos, a difração de raios-X é um método experimental essencial para a determinação de estruturas cristalinas. Contudo, a resolução de um diagrama de raios-X é um processo relativamente complexo mesmo para cristais simples. Além disso, este método experimental não permite experimentação, pela perigosidade dos raios-X e pela

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2. Como foi descoberto o ADN impossibilidade de introduzirmos alterações sistemáticas e metódicas nas estruturas cristalinas expostas ao feixe de raios-X. - Como terá sido então possível que a simples observação por Francis Crick e James Watson do diagrama de raios-X de uma fibra de ADN obtido por Rosalind Franklin (Figura 21) e mostrado por Maurice Wilkins, chefe do grupo que integrava Rosalind Franklin, tivesse confirmado a proposta teórica de uma estrutura do ADN com duas cadeias helicoidais com ligações de hidrogénio entre as bases nitrogenadas de cada uma das cadeias, apresentada em artigo da revista Nature por Francis Crick e James Watson? Esta proposta veio a ser confirmada experimentalmente em linhas gerais pela própria Rosalind Franklin num artigo publicado dois meses mais tarde na mesma revista científica. - Quais são as principais particularidades do diagrama de raios-X (Figura 21) que induziram tais conclusões? - O artigo de G. C. Lisensky, T.F. Kelly, D. R. Neu e A. B. Ellis, “Simulating Diffraction Experiments in Introductory Courses”, J. Chem. Educ. (1991) 68, 91-96, propõe uma mudança de escala na experiência de difração de raios-X e uma redução das dimensões de um cristal real (3D) para um “cristal-2D”.

Figura 26 - O feixe de raios-X é substituído por um feixe de laser no visível (Figura 26) com uma radiação cujo comprimento de onda é da ordem de dez mil vezes superior ao dos raios-X e a unidade repetitiva do cristal real é substituída por um "cristal-2D" constituído por motivos

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2. Como foi descoberto o ADN simples, com dimensões da ordem de dez mil vezes superiores às dos átomos, dispostos regularmente em diapositivos. - O feixe do laser é difratado por motivos simples colocados no diapositivo a cerca de 10 cm do laser e os feixes difratados são observados num ecrã a cerca de 10 m do diapositivo (Figura 27).

Figura 27

- Nestas condições, o ângulo de desvio da radiação no ecrã é igual ou inferior a 0,01 radiano. Ora, para ângulos tão pequenos como estes, o seno do ângulo de desvio é praticamente igual ao próprio ângulo (sin 0,01 ≈ 0,01, com erro inferior a 0,000 000 2), o que torna as equações dos diagramas de simulação ótica muito mais simples. - A Figura 28 ilustra, em esquema, a incidência de dois raios em dois átomos do mesmo elemento químico. A diferença de caminho percorrido pelos dois raios, indicada pelo segmento a vermelho, deve ser um múltiplo inteiro do comprimento de onda para que haja interferência construtiva. No caso do feixe difratado com maior intensidade, a diferença de caminho é igual ao comprimento de onda da radiação do laser. Ora, o segmento a vermelho é um cateto de um triângulo reto sendo, por isso, igual ao seno do ângulo vezes a distância entre os átomos. Como o seno do ângulo pode ser substituído pelo ângulo em radianos, podemos escrever comprimento de onda = distância x ângulo - A distância tem a ver com a estrutura do cristal, o ângulo com a direção de difração e, portanto, com o difratograma, e o comprimento de onda da radiação do laser é uma constante da experiência.

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2. Como foi descoberto o ADN

Figura 28 - Portanto, quanto menor for a distância entre os motivos do diapositivo, tanto maior será o ângulo, isto é, a separação das correspondentes manchas no difratograma (Figura 29, Nota 3).

Figura 29

- A Figura 30 (Nota 3) apresenta um diapositivo com uma distribuição regular de pequenos quadrados pretos com motivo indicado à esquerda e o respetivo difratograma à direita. A introdução de um quadrado preto no centro tem, como efeito, o desaparecimento de quatro manchas do difratograma resultante de interferências destrutivas. Diz-se que há uma ausência sistemática no difratograma.

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2. Como foi descoberto o ADN

Figura 30

- A Figura 31 (Nota 3) permite comparar o difratograma do segundo diapositivo da Figura 30, onde a introdução de um quadrado preto no centro causa o desaparecimento de quatro

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manchas do difratograma resultante de interferências destrutivas, com um diapositivo em que

a

o quadrado central é de lado maior e, por essa razão, já não produz ausências sistemáticas.

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e····················· .. ••••• ."." .. ~e····················· .e····················· e····················· . ••• Figura 31 JI. • ••••••••• ..• •."." • ..• •.. • • • • • • • ..................... ..................... ..................... ..................... ..................... ..................... ..................... ..................... .•...................:.:."::"::-'::" "::"::-'::" .•................... .•................... .•...................:.:."::"::-'::" "::"::-'::"

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- No artigo de A.A. Lucas, P. Lambin, R. Mairesse, M. Mathot, “Revealing the backbone

e····················· ..................... . . . . Educ. (1999) 76, 378-383, os autores aplicam as ideias expressas no artigo de G. C. Lisensky et ..................... al. em 1991 à estrutura planificada das cadeias do ADN-B. .•................... :. "::"::-'::"

structure of B-DNA from laser optical simulations of its X-ray diffraction " diagram”, J. Chem.

Figure 22 (left). (left). Some Some two-dimensional two-dimensional unit 2 cells. (a)Some centered pixel square; square; (b) (a) Figure unit cells. (a) centered 22 xx 22 pixel (b) 22(a)xxcentered 2 pixel square; (c) square; Figure 2 (left). Some two-dimensional unit cells. cells. centered pixel square; (b) (b) 22 x Figure (left). two-dimensional unit 22 xx 22 pixel pixel square square with with two two different different spot sizes; (d) 33with pixel square; spot (e) 2sizes; 2sizes; pixel 33 xx 33 pixel sizes; (d) xx 33two pixel square; (e) xx 44 (d) pixel (f) pixel square with two different spot (d) 33 xrectangle; x 33 pixel pixel square; square; (e) 22 xx 44 33 xx spot 33 pixel square different (e) monoclinic, 22 xx 44 pixel pixel with with -63° -63° angle; angle; (g) 44 xx 5522pixel pixel rectangle with angle; glide; (g) (h)44 hexagonal monoclinic, (g) rectangle with glide; (h) hexagonal array, equivalent monoclinic, pixel with -63° -63° angle; (g) pixel rectangle rectangle with glide; glide; (h) (h) hexagona hexagon monoclinic, xx 44 pixel with xx 55 pixel with 1 grid). Beside 1 1 1 to aa5.28 5.28 xx 5.28 5.28 pixel pixel with with 60° 60° angle angle to (actual size is 22 x 22 pixels in a 300 into a 5.28 x 5.28 pixel with 60° angle (actual size is 22 x 22 pixels in a 300 ingrid). Be to (actual size is 22 x 22 pixels in a 300 ingrid). Beside each array is a x 5.28 pixel 21 with 60° angle (actual size is 22 x 22 pixels in a 300 in- grid). Bes (see text). For ease of viewing,a 5.28 unit cell cell (see these portions of the masks are considerably expanded unit cell (see text). For ease of viewing, these portions of the masks are considerably unit text). For ease of viewing, these portions of the masks are considerably expanded from the unit cell (see text). For ease of viewing, these portions of the masks are considerably actual masks masks (see (see text text for for true true size). size).actual actual masks masks (see (see text text for for true true size). size). actual


2. Como foi descoberto o ADN

Figura 32 - Comecemos então por considerar a estrutura do ADN (Figura 32, à esquerda) e a planificação simplificada das cadeias helicoidais (Figura 32, à direita). Cada círculo a preto representa um segmento fosfato-açúcar.

Figura 33 - Para compreendermos o difratograma das duas cadeias de ADN, seguindo a sugestões dadas pela Figura 33 (segmentos verdes com declive positivo e segmentos vermelhos com declive negativo) comecemos por considerar diapositivos formados por segmentos

22


2. Como foi descoberto o ADN horizontais (A), segmentos com declive positivo (B) e segmentos com declive negativo (C) e os respetivos difratogramas (Figura 34, Nota 4).

Figura 34 - De notar que o diapositivo A com segmentos horizontais (declive nulo) apresenta uma regularidade vertical evidenciada no respetivo difratograma. Por sua vez, o diapositivo B com segmentos de declive positivo origina um difratograma com declive negativo e vice versa para o diapositivo C. Em qualquer dos casos, o difratograma surge na direção da "periodicidade" expressa no diapositivo, isto é, perpendicular aos segmentos, quer o diapositivo seja A, B ou C. - Da observação das Figuras 33 e 34, podemos então concluir que curvas sinusoidais originam difratogramas em X (Figura 35, Nota 4)

Figura 35

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Figura 35

2. Como foi descoberto o ADN

- Interessa agora considerar os difratogramas originados por diapositivos contendo curvas - Interessa agora considerar os difratogramas originados por diapositivos contendo curvas sinusoidais com diferenças de fase distintas, nomeadamente, 2/8, 4/8 e 3/8 (Figura 36). sinusoidais com diferenças de fase distintas, nomeadamente, 2/8, 4/8 e 3/8 (Figura 36, Nota 4).

Figura 36 Figura 36 - A diferença de fase de 2/8 (por simetria, o mesmo que 6/8) origina ausências sistemáticas

nas linhas 2 e 6 (Figura 36, F). Cada linha é horizontal e a linha 1 é a linha seguinte, para cima - A diferença de fase de 2/8 (por simetria, o mesmo que 6/8) origina ausências ou para baixo, à linha 0 cujo centro corresponde ao centro do feixe do laser não difratado sistemáticas nas linhas 2 e 6 (Figura 36, F). Cada linha é horizontal e a linha 1 é a que (mancha central branca mais intensa). - Por sua vez, a diferença de fase de 4/8 origina ausências sistemáticas nas linhas ímpares, isto

é, linhas 1, 3, 5, 7 (Figura 36, I).

25

- Por último, a diferença de fase de 3/8 origina ausência sistemática na linha 4, como se observa na Figura 36, L.

Figura 37

24


2. Como foi descoberto o ADN - Voltemos então ao diagrama de raios-X do ADN-B obtido por Rosalind Franklin e o seu estudante em Maio de 1952 (Figura 37). Como é possível observar o diagrama apresenta manchas em X – indicação de que a estrutura é helicoidal – e uma ausência sistemática na linha 4 – indicação de que as duas cadeias helicoidais do ADN apresentam um desfasamento de 3/8. - A Figura 38 apresenta em esquema duas cadeias helicoidais planificadas do ADN com desfasamento de 3/8.

8 3/8

Figura 38

Notas 1. José J.C. Teixeira-Dias, "Molecular Physical Chemistry - A Computer-based Approach using Mathematica® and Gaussian, 2017, Springer International Publishing, ISBN 978-3-319-41092-0 (eBook, ISBN 978-3-319-41093-7). 2. Fotografia tirada pelo autor ao difratómetro de raios-X do Departamento de Química da Universidade de Aveiro quando era professor catedrático neste Departamento e o Doutor Luís Cunha Silva desempenhava as funções de cristalógrafo de raios-X. 3. "Optical Transform Kit - Simulating Diffraction Experiments in Introductory Courses", Institute for Chemical Education, University of Wisconsin-Madison [34].

4. "DNA Optical Transform Kit - Simulating DNA Diffraction", Institute for Chemical Education, University of Wisconsin-Madison [34].

25


2. Como foi descoberto o ADN Endereรงos eletrรณnicos [1] https://www.nobelprize.org/images/laue-12898-portrait-mini-2x.jpg [2] https://www.nobelprize.org/images/wh-bragg-12901-portrait-mini-2x.jpg [3] https://www.nobelprize.org/images/wl-bragg-13858-portrait-mini-2x.jpg [4] https://cdn.britannica.com/02/147302-050-3F732246/X-ray-diffraction-pattern-enzyme.jpg [5] https://www.rcsb.org [6]http://1.bp.blogspot.com/__ABw39Lak58/SMw2DLBObrI/AAAAAAAAAAc/zeru6vy8sNA/s3 20/tube+microscope.JPG [7] https://encrypted-tbn0.gstatic.com/images?q=tbn:ANd9GcTLoEWqoV5fQmepyHA5GuP1Movu_rfB3WLMyus7vJK4SJFGAQ8nA&s [8] https://i.pinimg.com/originals/ee/69/51/ee695197b4707ad7185188eb69213205.jpg [9] https://i.pinimg.com/originals/00/18/40/001840bef5a6690faa7724cf3387a9f1.jpg [10]https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/f/fe/RobertHookeMicrographia1 665.jpg/800px-RobertHookeMicrographia1665.jpg [11] https://encrypted-tbn0.gstatic.com/images?q=tbn:ANd9GcS4jxpX5nP6T-hjptkwu4BAfMzXixoGicQzKIav2Vhbb1s95K2&s [12] https://encryptedtbn0.gstatic.com/images?q=tbn:ANd9GcQjrWpX3ooKPLJuNC67A46RRQL3vny4OWDOFhg7 Urwvex8_NvAK4w&s [13] https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/3/37/Wilson1900Fig2.jpg [14]https://www.esa.int/var/esa/storage/images/esa_multimedia/images/2003/09/charles_dar win/10037806-2-eng-GB/Charles_Darwin_pillars.jpg [15]https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/c/cd/Origin_of_Species_title_pa ge.jpg/250px-Origin_of_Species_title_page.jpg [16] https://www.fmi.ch/img/content/miescher_dna_540.jpg [17]https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/e/eb/Albrecht_Kossel_nobel.jp g/220px-Albrecht_Kossel_nobel.jpg [18] http://www.dnaftb.org/images/17/17bio.jpg [19] https://upload.wikimedia.org/wikipedia/en/thumb/a/a1/Erwin_Chargaff.jpg/220pxErwin_Chargaff.jpg [20] https://www.nobelprize.org/images/delbruck-13212-portrait-mini-2x.jpg

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2. Como foi descoberto o ADN [21] https://www.nobelprize.org/images/hershey-13213-portrait-mini-2x.jpg [22] https://www.nobelprize.org/images/luria-13214-portrait-mini-2x.jpg [23] https://encrypted-tbn0.gstatic.com/images?q=tbn:ANd9GcRVEsVKlG80344gOhOqkut2OfnSBjFn3H_tgMZ6g05YJq9um4z&s [24] https://d3i71xaburhd42.cloudfront.net/0e4ab850e8dad185e56c09f2122d7796149f756e/2Figure1-1.png [25]https://media.sciencephoto.com/image/h4000039/800wm/H4000039Watson_and_Crick_with_their_DNA_model.jpg [26] http://www.apsubiology.org/anatomy/2010/2010_Exam_Reviews/Exam_1_Review/0221b_DNAStructure.JPG [27] https://scienceaid.co.uk/biology/genetics/images/dnasequence.jpg [28] https://www.nobelprize.org/images/crick-13154-portrait-mini-2x.jpg [29] https://www.nobelprize.org/images/watson-13155-portrait-mini-2x.jpg [30] https://www.nobelprize.org/images/wilkins-13156-portrait-mini-2x.jpg [31] https://www.nobelprize.org/images/berg-13321-portrait-mini-2x.jpg [32] https://www.nobelprize.org/images/gilbert-13322-portrait-mini-2x.jpg [33] https://www.nobelprize.org/images/sanger-13323-portrait-mini-2x.jpg [34] https://ice.chem.wisc.edu

27



3. Relógios químicos

Vulgarmente, as reações químicas são vistas como a conversão dos reagentes nos produtos, atingindo o equilíbrio no fim da reação. Esta situação, realizável em laboratórios químicos, pouco ou nada tem de realista. De facto, os processos naturais, especialmente os que ocorrem nos seres vivos e no nosso corpo, funcionam longe do equilíbrio, são processos irreversíveis, isto é, neles o tempo tem uma seta! Além disso, manifestam longe do equilíbrio caraterísticas muito diferentes das que constam das reações químicas próximas do equilíbrio, únicas consideradas na maioria dos manuais do ensino secundário e até mesmo universitário. O cientista que mais contribuiu para estudos de processos irreversíveis longe do equilíbrio foi o belga Ilya Prigogine (Figura 1, [1]) que, por essa razão, recebeu o prémo Nobel da Química em 1977.

Ilya Prigogine (1917-2003) Figura 1

Nesta palestra, proponho abordar os seguintes temas: 1. Reações químicas oscilantes 2. Alan Turing e a base química da morfogénese 3. Relógios biológicos

1


3. Relógios químicos

1. Reações químicas oscilantes - Observemos a solução que resulta da adição, para o mesmo balão de vidro, de volumes iguais das seguintes soluções aquosas incolores com determinadas concentrações (Figura 2): 1) solução de peróxido de hidrogénio; 2) solução de iodato de potássio com ácido sulfúrico; 3) solução de sulfato de manganésio (II), ácido malónico e amido (T.S. Briggs and W.C. Rauscher, “An Oscillating Iodine Clock”, J. Chem. Educ. (1973) 50, 49). Nota: o leitor não se deve preocupar com a composição química destas soluções aquosas.

Figura 2

- As soluções aquosas iniciais, antes de serem misturadas, são incolores, mas a solução do balão mistura das soluções 1), 2) e 3) - exibe alternadamente cores amarela e azul escura até que, a cerca de 10 minutos, estabiliza na cor azul escura (Figura 3).

...

Figura 3

2


3. Relógios químicos - Para compreender melhor o que se passa, comecemos por reconhecer que esta reação tem muitos reagentes. Reações como esta apresentam geralmente mecanismos complexos. - O mecanismo de uma reação consiste na sequência de passos elementares ou reações elementares que refletem o que na realidade se passa em tempo real à escala molecular e as espécies atómico-moleculares intermédias que se formam e se transformam. - Se estas espécies químicas intermédias tiverem tempos de vida suficientemente longos e exibirem cores distintas, então podem ser facilmente observadas. É o caso da reação que apresentámos. - Além disso, as variações das concentrações de espécies atómico-moleculares intermédias são oscilatórias. Por isso, reações deste tipo são designadas por reações oscilantes ou oscidores químicos. - As oscilações das concentrações de espécies químicas intermédias permitem concluir que a reação observada ocorre longe da situação de equilíbrio porque no equilíbrio não há oscilações de concentrações! O equilíbrio é um estado independente do tempo. - Ao contrário do observado na experiência acima referida, em que as oscilações amortecem progressivamente até estabilizarem finalmente na cor azul escura, é possível efetuar a reação oscilante em condições tais que originem oscilações indefinidamente.

reagentes

reação oscilante

produtos

Figura 4 - Para tal, basta que a reação ocorra num reator de fluxo com agitação da mistura reacional (Figura 4), com os reagentes a serem constantemente fornecidos de modo a manterem concentrações aproximadamente constantes, e os produtos removidos da mistura reacional de modo que a reação nunca se aproxime da situação de equilíbrio. - Vamos tentar compreender que se passa de essencial numa reação oscilante. Para tal, recorremos a um modelo de um processo oscilante muito simples, com duas espécies

3


3. Relógios químicos intermédias, concebido por dois cientistas no início do século passado (modelo de Lotka-Volterra ou da presa-predador, A. J. Lotka, "Contribution to the Theory of Periodic Reaction", J. Phys. Chem. (1910) 14, 271-274; V. Volterra, "Variazioni e fluttuazioni del numero d'individui in specie animal conviventi", Mem. Acad. Lincei Roma, (1926) 2, 31-113). - Como se depreende pelo título do artigo de Volterra, um processo oscilante também ocorre quando as espécies intermédias não são espécies químicas, mas são duas espécies animais conviventes em determinada zona e que interagem através da relação presa-predador. - O mecanismo de Lotka-Volterra consta das seguintes reações (processos) elementares (Figura 5):

A + X

2X

(X autocatalisador)

X + Y

2Y

(consumo de X; Y autocatalisador)

Y

P

(consumo de Y)

Figura 5 - As espécies químicas intermédias são designadas por X e Y. - No primeiro passo desta reação química modelo, X desempenha um papel especial porque, ao reagir com A, forma-se em maior quantidade. Por sua vez, esta maior quantidade de X (2X) reage com A desde que não haja falta deste reagente e origina 4X, e assim sucessivamente, X −> 2X −> 4X −> 8X −> 16X −> 32X −> 64X −> 128X −> ..., ou seja, X aumenta exponencialmente como potência de 2 (1 −> 2 −> 4 −> 8 −> 16 −> 32 −> 64 −> 128 −> ... ). - Diz-se que esta reação elementar é uma reação de autocatálise e X é um autocatalisador! - Na vida real, há muitos processos com as características essenciais da autocatálise: compras de determinado objeto que está na "moda" (quanto mais se vê, tanto mais vendido é) e outros processos do mesmo género que, no fundo, podem ser designados genericamente por “modas”. - Mas tal como numa "moda" que não pode durar sempre, uma reação de autocatálise tem que ser seguida por uma reação de consumo do excesso de X (ver segunda reação elementar na Figura 5); caso contrário o aumento exponencial de X só pararia quando se gastasse todo o reagente A.

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3. Relógios químicos

pendor crescente

pendor decrescente

X 3.0

2.5

2.0

1.5

5

10

15

Figura 6

20

tempo

- Supondo que A existe em largo excesso ou que a sua quantidade é constantemente reposta, então a conjugação da autocatálise de X com o seu consumo origina oscilações nas variações da concentração de X no tempo (Figura 6, Nota 1). - Os pendores crescentes correspondem às situações em que domina a autocatálise de X. Por sua vez, os pendores decrescentes correspondem ao predomínio da reação de consumo de X sobre a de autocatálise de X. - O leitor interessado em prosseguir este tema a um nível avançado pode consultar o artigo da Nota 2, páginas 96 a 101. 2. Alan Turing e a base química da morfogénese - É sobejamente conhecido o papel que Alan Turing (1912-1954) (Figura 7, [2]), a figura protagonista no filme “The Imitation Game”, 2017, teve na descodificação de mensagens encriptadas pelos alemães, durante a segunda grande guerra. O filme dramatiza toda essa situação, como muitos terão visto. Churchill afirmou que Turing tinha conseguido encurtar a guerra dois anos! - Turing foi um matemático de excepcional competência e um pioneiro da ciência da computação. O que é menos conhecido de Turing foi um artigo que ele publicou em 1952 (A.

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3. Relógios químicos Turing, "The chemical basis of morphogenesis", Phil. Trans. Roy. Soc. London, Series B (1952) 237, 37-72) sobre os fundamentos químicos da morfogénese (etimologicamente, génese das formas).

Alan Turing (1912-1954)

Figura 7 - O que intrigava Turing nessa altura era a existência de formas nos seres vivos, a possibilidade de uma célula se diferenciar em muitas células distintas com funções diferentes, como seria possível que tais formas surgissem? Por exemplo, qual o mecanismo de formação de listas nas zebras ou de manchas regulares nos leopardos, ou das listas de cores em muitos peixes exóticos, ou da transformação de um embrião em células diferenciadas de vários tecidos e órgãos com funções distintas, etc. Seria necessário recorrer a algum princípio vitalista para compreender a génese de formas ou bastaria aplicar os princípios da química usando a matemática? - Antes de descrevermos o mecanismo proposto por Turing no seu artigo de 1952, precisamos de falar sobre a difusão de matéria, ilustrada pela difusão de umas gotas de tinta num balão de erlenmeyer com água (Figura 8, [3]). - Como é sabido, a difusão (em português do Brasil, espalhamento) é um processo espontâneo que conduz à homogeneização da mistura que, ao fim de uns segundos, se transforma numa mistura homogénea da tinta na água, isto é, numa solução aquosa azul claro. - Se, por um lado, a difusão provoca homogeneização, por outro, uma reação química origina heterogeneização (converte reagentes em produtos).

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3. Relógios químicos

Figura 8 - O modelo proposto por Turing consistia basicamente em associar uma reação química autocatalítica à difusão das moléculas. Mas era preciso efetuar cálculos matemáticos para saber se matematicamente, isto é, sob o ponto de vista lógico, tal era possível, antes de proceder à experimentação. Foi isso o que Turing fez. - Turing parte de um ativador (ver ilustração esquemática do mecanismo da reação-difusão na Figura 9) envolvido numa reação de autocatálise (autocatalisador) que, por sua vez, catalisa a formação de um inibidor (o aumento da concentração do inibidor reduz a formação do ativador; por isso, se designa por inibidor). Neste sistema, o inibidor deve ter uma velocidade de difusão (em rigor, uma difusividade) 6-10 vezes superior à do ativador. - No segundo esquema da Figura 9 (Nota 1), vê-se a superfície do ativador e a do inibidor que se espalha mais rapidamente que a do ativador porque tem maior difusividade. O máximo do ativador resulta da competição entre a sua autocatálise e o seu consumo. O efeito de autocatálise no ativador produz o crescimento do inibidor, na medida em que o primeiro catalisa a formação do segundo, como se disse. - No terceiro esquema da Figura 9 (Nota 1), vê-se uma estrutura ou padrão de Turing, porventura o padrão de Turing mais simples. Muitos outros padrões de Turing podem ser obtidos, variando os parâmetros envolvidos no sistema reação-difusão (velocidades das reações, difusividades, etc.).

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3. Relógios químicos

Figura 9

- De notar que no tempo de Turing não havia computadores. Assim, no seu artigo sobre a base química da morfogénese, todas as equações matemáticas foram resolvidas à mão e só seria possível chegar a resultados qualitativos. Vinte anos mais tarde surge um artigo que simula computacionalmente várias estruturas de Turing (A. Gierer and H. Meinhardt, "A Theory of Biological Pattern Formation", Kybernetik (1972) 12, 30-39; Figura 10, Nota 3, [4]). - Contudo, a simples semelhança com os padrões da pele de um animal não permite concluir que o mecanismo proposto por Turing seja o mecanismo real nos seres vivos porque não existia ainda nenhuma reação química que gerasse os padrões de Turing devido à dificuldade de encontrar duas substâncias com velocidades de difusão tão diferentes como era requerido no modelo de Turing. - Mas, em 1990, praticamente 40 anos após o artigo de Turing, são obtidos na realidade padrões de Turing (Figura 11, Nota 3) numa reação química designada por CIMA, cujas letras correspondem às iniciais em inglês dos principais reagentes (Clorito, Iodeto, Ácido Malónico): V. Castets, E. Dulos, J. Boissonade and P. De Kepper, "Experimental evidence of a sustained standing Turing-type nonequilibrium chemical pattern", Phys. Rev. Lett. (1990) 64, 2953-2956 .

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V"#,"$#,-#&4,*$#/,+"/+'$"/$*#&4.&#/),1#21#*,#,-&$"#+"#*/+$"/$5#$%1$)+@$"&.0# - O principal autor deste artigo (De Kepper, um físico) disse então que o principal resultado do $(+'$"/$#-,)#&4$#*1.&+.0#1.&&$)"+"<#&4.&#.#/,@3+".&+,"#,-#)$./&+,"#."'#'+--2*+,"#

artigo de Turing tinha consistido em mostrar que não é necessário recorrer a nenhum princípio @+<4&#<$"$).&$#?.*#3$+"<#'+*/,($)$'#.&#&4$#($)=#&+@$#&4.&#>2)+"<#?.*#0.=+"<# vitalista para explicar o desenvolvimento biológico. Hoje, a reação-difusão passou a ser um modelo fundamental na Biologia do Desenvolvimento e na Biologia Teórica.

3. Relógios biológicos - Nos anos 80 e 90, no âmbito de colaborações científicas com investigadores no Canadá e nos Estados Unidos, fiz variadíssimas viagens intercontinentais para o National Research Council do Canadá em Otava, nos anos 80, e para a Universidade Estadual de Nova Iorque em Buffalo, nos

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3. Relógios químicos anos 90. Estas viagens correspondiam a diferenças horárias de 5 horas. Ora, nos primeiros dias da minha estada, era certo e sabido que acordava sempre por volta das 3h da madrugada, 8h em Lisboa, aparentemente sem sono! O meu relógio biológico continuava sincronizado com o ciclo dia-noite de Lisboa, dessincronizado com o ciclo dia-noite de Nova Iorque. - Ao anoitecer, a glândula pineal, comandada pelo núcleo supraquiasmático dos nervos óticos (do grego, quiasma significa “cruzamento”), produz melatonina, uma hormona que estimula o sono (J. Aschoff, “Circadian Rhythms in Man”, Science (1965) 148, 1427-1432; J. Aschoff, E. Poppel and R. Wever, “Circadian rhythms in men as influenced by artificial light-dark cycles of various periods”, Pfluger Archiv (1969) 306, 58-70 ) . - A melatonina é uma hormona existente naturalmente no nosso corpo. Pode ser produzida sinteticamente, sendo usada, por exemplo, para ajustar os ciclos circadianos em mudanças de fuso horário, ou para auxiliar pessoas cegas a estabelecer um ciclo dia-noite. - Além deste ciclo (dormir-estar acordado), outros ciclos circadianos existem no nosso corpo, o mais antigo talvez tenha sido encontrado por Gierse, em 1842, sobre a temperatura corporal. - No início dos anos 60, vários investigadores chegaram à conclusão que, mesmo na ausência de luz, o corpo humano mantinha o ciclo circadiano em muitas propriedades fisiológicas como a temperatura do corpo, a pressão arterial, o estado de alerta versus sono profundo, o que permitia concluir que deveria existir pelo menos um ciclo inato, independente de alterações no ambiente. - Várias questões surgiram então: 1. Quais são os genes responsáveis pelos ciclos circadianos no dormir-estar acordado, na temperatura do corpo, na pressão arterial, nos níveis de insulina no sangue, no ritmo cardíaco, na atividade motriz, etc.? 2. Como realizar experiências que permitam induzir mudanças de fuso horário sem sair do laboratório? - É aqui que surge a mosca-do-vinagre (Drosophila melanogaster, com aproximadamente 2-3 mm) porque prolifera rapidamente (facilmente podem ser utilizadas nas experiências milhares de moscas), têm um ciclo de vida curto (menos de duas semanas à temperatura ambiente) e os cromossomas “gigantes" quando vistos ao microscópio, das glândulas da saliva de larvas, podem ser usados em experiências com genes.

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3. Relógios químicos - Assim, podem ser produzidas mutações genéticas recorrendo a substâncias químicas, genericamente designados por mutagéneos e, ao fim de alguns meses, é possível observar os efeitos das mutações genéticas no ritmo cicardiano (M. W. Young, "The Tick-Tock of the Biological Clock", Scientific American, Março 2000 ). - Muitos estudos científicos foram efetuados nos anos 80 e 90, sendo alguns determinantes no conhecimento do mecanismo circadiano nas células do corpo. - Praticamente todas as células têm ciclos circadianos, desde as células do cabelo, às da pele, dos músculos, dos rins. Bem, há cerca de 37 milhões de milhões (37x1012) de relógios celulares no nosso corpo! - No ADN, o gene per (da palavra período) foi identificado nos anos 70 por S. Benzer e R. Konopka em estudos com a mosca-do-vinagre. - Este gene foi isolado em 1984 por Jeffrey Hall e Michael Rosbash (Universidade de Brandeis, Boston) em colaboração com Michael Young (Universidade Rockefeller, Nova Iorque). - Jeffrey Hall e Michael Rosbash descobriram que o gene per passa a informação genética para o ARN mensageiro que sai do núcleo para o citoplasma e codifica a proteína PER (letras maiúsculas são usadas para indicar proteínas) no ribossoma. - Ora, como foi mostrado por Jeffrey Hall e Michael Rosbash, para que a proteína PER, formada fora do núcleo pudesse bloquear o gene per, deste modo controlando a sua quantidade na célula e possibilitando um ciclo circadiano, teria que entrar no núcleo. - Foi Michael Young quem descobriu em 1994 um segundo gene de relógio celular designado timeless que codifica a proteína TIM. - Quando esta proteína se liga à proteína PER, o complexo das duas proteínas entra no núcleo durante o início da noite e bloqueia o gene per. - Este processo de retroação negativo (feedback negativo) que faz com que um novo ciclo circadiano possa ser reiniciado.

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3. Relógios químicos - A ilustração simplificada e esquemática do mecanismo molecular do relógio biológico de uma célula está apresentada na Figura 12.

PER TIM

Núcleo meia-noite

Citoplasma

TIM

meio-dia

PER

ARN m gene per(íodo)

Figura 12

- Os cientistas Jeffrey Hall, Michael Rosbash e Michael Young (Figura 13, Nota 4), cujo trabalho pioneiro conduziu ao esclarecimento do mecanismo circadiano das células, receberam o prémio Nobel em Fisiologia ou Medicina em 2017.

NEWS IN FOCUS

Like clockworkRosbash (from left): Michael JeffreyHall Hall and Michael Young. Michael (1944-)Rosbash, Jeffrey (1945-) Michael

Figura 13

Young (1949-)

MOLECUL AR BIOLOGY

Circadian clocks scoop Nobel prize 12

Jeffrey Hall, Michael Rosbash and Michael Young unpicked molecular workings of the daily rhythms of cells.

performed by physicist and molecular Seymour Benzer and geneticist Konopka, who found fruit-fly muta abnormal hatching rhythms. (Benz in 2007, Konopka in 2015.) At the t idea that behaviour could have a gene was controversial, says Wijnen. Yea two teams — Young leading one, H Rosbash working together to lead th — would clone the genes responsibl really changed the situation,” says “Since then, it has become clear ho served this system is and how concep could work.” The competition between the tw — each with ambitions to be first tify the gene — was initially inten Charalambos Kyriacou, a behavioura cist at the University of Leicester, U worked with Hall in the late 1970s. got older they mellowed,” he says. “Th good buddies now.” Subsequent work detailed how abu of the PER protein peaks at night a declines during the day. Researchers g pieced together a model in which the a lation of PER serves as a signal that r expression of the gene that encodes type of negative feedback loop would a prevailing theme in the study of ci rhythms, as researchers identified ad loops and clock proteins over the year Joseph Takahashi at the Unive Texas Southwestern Medical Ce Dallas and others extended the wo fruit flies to mammals, and showed system is remarkably conserved across Researchers have since tied the circadi to many aspects of mental and physi


3. Relógios químicos Notas 1. Cálculos e gráficos foram obtidos com o software Mathematica® (www.wolfram.com). Autor: Wolfram Research Inc. Champaign, IL., USA. 2. José J.C. Teixeira-Dias, "Molecular Physical Chemistry - A Computer-based Approach using Mathematica® and Gaussian, 2017, Springer International Publishing, ISBN 978-3-319-41092-0 (eBook, ISBN 978-3-319-41093-7). 3. Philip Ball, "Turing patterns", Chemistry World, 31 maio 2012. 4. Fotos extraídas de "Circadian clocks scoop Nobel prize", Nature News, 550, 5 outubro 2017.

Endereços eletrónicos [1] https://www.nobelprize.org/images/prigogine-13288-portrait-mini-2x.jpg [2] https://cms.qz.com/wp-content/uploads/2019/07/AlanTuring.jpg?quality=75&strip=all&w=410&h=492&crop=1 [3] https://www.thoughtco.com/definition-of-diffusion-604430 [4] http://animaisafricano.blogspot.com/2016/12/zebra.html

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4. Mistérios quânticos No início do século XX, a visão do mundo físico teve duas mudanças radicais desde Newton: a teoria da relatividade e a mecânica quântica. A teoria da relatividade penetrou mais facilmente na consciência pública, sempre associada à imagem de Einstein e à sucessiva confirmação experimental das suas previsões que ainda hoje se observa. A mecânica quântica é a descrição do comportamento da matéria e da luz à escala atómica. Com a compreensão da estrutura e propriedades da matéria à escala atómica, físicos, químicos e engenheiros físicos puderam inventar o laser, criar novos fármacos e novos materiais, produzir novas baterias elétricas com maior capacidade de carga e maior autonomia, desenvolver novos instrumentos de diagnóstico médico, viabilizar a comunicação em banda-larga, realizar muitas aplicações tecnológicas especialmente na área das telecomunicações e criar a Internet. A mecânica quântica é, sem sombra de dúvida, a teoria física de maior êxito no século XX. Contudo, os seus fundamentos continuam a suscitar grande interesse na comunidade científica, na medida em que os fenómenos e comportamentos à escala subatómica são totalmente estranhos à nossa experiência e intuição ao nível macroscópico e chegam mesmo a questionar a própria noção de causalidade. Talvez por isso, o desenvolvimento da mecânica quântica tenha constituído uma experiência intelectual única no início do século XX. - Começo por apresentar o plano dos temas que proponho abordar nesta palestra: 1. Experiências com partículas e ondas macroscópicas 2. Experiências com eletrões 3. Debate Einstein-Bohr 4. Entrelaçamento quântico 5. Desigualdades de Bell 6. Números aleatórios 7. Chaves Quânticas Secretas 8. Computador Quântico

1


4. Mistérios quânticos 1. Experiências com partículas e ondas macroscópicas - Comecemos por experiências de duas fendas e por balas projetadas contra essas paredes blindadas (Figura 1-a). - Estas podem passar pelo orifício 1 ou pelo orifício 2 da parede com duas fendas e, por isso, não apresentam interferência porque a probabilidade de passarem a parede é a soma da probabilidade de passarem pela fenda 1 ou pela fenda 2, P12 = P1 + P2.

Figura 1-a

Figura 1-b

- Pelo contrário, se considerarmos uma onda de frente particamente linear (por exemplo, numa piscina olímpica), a mesma onda passa simultaneamente pelas duas fendas, transformando cada uma delas numa fonte secundária de ondas que interferem mutuamente (Figura 1-b).

2


4. Mistérios quânticos - Assim, em certos pontos do detetor da amplitude das ondas surgem máximos e noutros pontos surgem mínimos, isto é, há interferência das ondas emergentes das duas fendas e a amplitude depois de passarem pelas duas fendas não é a soma das amplitudes após passarem por uma só delas, fenda 1 ou fenda 2, I12 ≠ I 1 + I 2. - À escala macroscópica, os comportamentos partícula e onda são totalmente distintos. - Para obtenção das Figuras 1-a e 1-b, consultar a Nota 1 e a Nota 2. 2. Experiências com eletrões - Passemos agora à escala atómica ou subatómica. - Os eletrões são partículas com carga negativa que existem nos átomos, girando à volta dos núcleos atómicos. A carga negativa associada a todos os eletrões de um átomo compensa a carga positiva do núcleo no átomo neutro. - A descoberta do eletrão como partícula de carga negativa existente nos átomos foi realizada, em 1897, pelo inglês Joseph John Thomson, prémio Nobel da Física em 1906. Em 1897, já eram conhecidos os feixes de raios catódicos, que são feixes de eletrões, ainda há alguns anos usados nos aparelhos de televisão e nos monitores de computadores. - Consideremos agora uma experiência de raciocínio (idealizada) com eletrões, duas fendas e um canhão de eletrões (Nota 3). - O principal resultado consiste em verificar que há interferência (Figura 2, à esquerda). - Podemos realizar a mesma experiência considerando um fluxo de eletrões tão fraco que corresponda a um eletrão de cada vez. - Após a acumulação de um elevado número de eletrões, o padrão de interferência emerge do ecrã! - Esta última versão da experiência (Figura 2, à esquerda, com um eletrão a passar de cada vez) mostra que cada eletrão interfere consigo mesmo, isto é, funciona como uma onda ao passar pelas duas fendas. Portanto, a experiência evidencia a faceta ondulatória dos eletrões, pela interferência. Quanto à sua faceta corpuscular, esta torna-se evidente pela incidência no ecrã fluorescente onde cada eletrão deixa uma marca de luz no ponto de embate no ecrã.

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4. Mistérios quânticos

Figura 2 - A experiência anterior (Figura 2) pode ainda ser alterada imaginando uma fonte de luz capaz de "iluminar" os eletrões para determinar por qual das fendas passa cada eletrão (Figura 2, à direita). - Nessa altura, passamos a ter uma experiência de duas fendas equivalente à das balas, porque cada eletrão ou passa por uma fenda ou pela outra, isto é, exibe a sua faceta corpuscular. Estas podem passar pelo orifício 1 ou pelo orifício 2 da parede com duas fendas. - Então, a probabilidade de passarem a parede é a soma da probabilidade de passarem pela fenda 1 ou pela fenda 2, P12 = P1 + P2 , ou seja, deixa de existir interferência (raciocínio lógico inquestionável). - As características partícula e onda excluem-se mutuamente no mundo macroscópico, enquanto no mundo atómico e subatómico coexistem na mesma partícula-onda, embora cada uma destas características (partícula ou onda) se evidenciem em condições experimentais distintas. - Na experiência real correspondente a esta experiência de raciocínio, um feixe de eletrões incide - num fino filme de um cristal metálico onde os espaçamentos entre planos de átomos correspondem às fendas na experiência de raciocínio. - Esta experiência real, designada por difração de eletrões, foi realizada pela primeira vez pelos ingleses George Paget Thomson (filho de Joseph John Thomson) e Clinton Davisson,

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4. Mistérios quânticos que foram prémios Nobel da Física em 1937 (G. P. Thomson, “Diffraction of Cathode Rays by a Thin Film”, Nature (1927) 119, 890).

Figura 3 - Um campo magnético não-uniforme desdobra em dois um feixe de eletrões. - A experiência real correspondente a esta experiência de raciocínio (Figura 3), foi realizada pela primeira vez por dois físicos alemães, Otto Stern e Walther Gerlach, em 1922 (W. Gerlach, O. Stern, Zeitschrift fur Physik (1922) 9, 349-352), usando um feixe de átomos de prata, que têm um eletrão desemparelhado (Nota 4). - Os resultados mostram que os eletrões interagem com um campo magnético, isto é, atuam como se fossem pequenos ímanes (para além da carga negativa, cada eletrão possui uma propriedade intrínseca designada por spin, proporcional ao seu momento magnético). - Em segundo lugar, no campo magnético, o spin só admite duas orientações, para baixo ou para cima. De facto, não é obtida uma mancha contínua circular no ecrã (previsão clássica), com os spins dos eletrões a tomarem todas as direções possíveis no campo magnético exterior. Isto não sucede! (Figura 3). - Na posição 1, antes de experimentar a ação do campo elétrico (Figura 4), qual será o spin do eletrão? - A mecânica quântica descreve este estado como a sobreposição dos estados "spin-paracima" e "spin-para-baixo". Matematicamente, o estado de sobreposição corresponde a a “spin-para-cima” + b “spin-para-baixo” sendo |a|2 e |b|2 as correspondentes probabilidades (neste caso, iguais por razões de simetria).

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4. Mistérios quânticos - Se, após a passagem pelo campo magnético, o eletrão 1 tiver a posição 2, diz-se que houve o colapso no estado “spin-para-cima”.

Figura 4 - Por sua vez, na posição 3, o colapso foi no estado “spin-para-baixo”. - O princípio da sobreposição de estados é fundamental em mecânica quântica. Está associado à indeterminação nos resultados e interpreta a medição como o colapso num dos estados sobrepostos. - Assim, em mecânica quântica, não há propriedades ("aquilo que é próprio de"), há observáveis, porque a medição de um observável, neste caso do spin do eletrão, pode dar spin-para-cima ou spin-para-baixo. Só realizando a medição que exige a realização de uma experiência apropriada (neste caso, a aplicação de um campo magnético não-uniforme) se fica a saber se o spin aponta para cima ou para baixo. O colapso pode ser em qualquer dos dois estados (indeterminação quântica). - Consideremos as experiências da Figura 5 que usam filtros de Stern-Gerlach (SG), isto é, campos magnéticos não uniformes. Na primeira, o primeiro filtro SG desdobra o feixe de eletrões como vimos na experiência de Stern-Gerlach, mas os segundos filtros SG, com a mesma orientação do primeiro, confirmam os estados obtidos (dizem-se estados próprios, representados aqui por |0> e |1>).

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4. Mistérios quânticos

Figura 5

- Por sua vez, na segunda experiência da Figura 5, os filtros SG têm orientações perpendiculares e, então, o segundo filtro origina um estado sobreposto. Os coeficientes a e b são, no caso mais geral, números complexos e o quadrado do valor absoluto de a traduz a probabilidade de se encontrar o estado |1>. 3. Debate Einstein-Bohr - Um dos marcos históricos do desenvolvimento da mecânica quântica no início do século 20 foi a quinta Conferência Solvay, realizada em 1927, em Bruxelas, sobre eletrões e fotões (Figura 6, [2] ). O nome atribuído a estas conferências tem a sua origem em Ernest Solvay (1838-1922), belga, químico industrial e filantropo. A primeira conferência científica foi efetuada em 1911. Hoje, as conferências Solvay continuam a realizar-se, tanto em física, como em química, embora já não tenham o protagonismo que tiveram no início do século XX. - Dos 29 participantes, 17 eram ou viriam a ser prémios Nobel. Na Figura destacam-se Planck, Einstein, Bohr, Schrödinger e Heisenberg, pelo papel essencial que desempenharam no desenvolvimento dos fundamentos da mecânica quântica. Planck por ter sido um dos fundadores da física quântica, prémio Nobel da Física em 1918, autor do quantum de energia eletromagnética

e

da

relação

entre

energia

e

frequência,

cuja

constante

de

proporcionalidade, a chamada constante de Planck, passou a entrar em todas as equações fundamentais da mecânica quântica. Einstein e Bohr pelos debates que tiveram sobre os fundamentos da mecânica quântica (Bohr também pelo seu primeiro modelo quântico do

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4. Mistérios quânticos átomo de hidrogénio). Heisenberg por ser o autor do princípio da incerteza, fundamental em mecânica quântica. Schrödinger por ser o autor da equação fundamental da mecânica quântica que corresponde, na mecânica newtoniana, à equação de Newton.

Figura 6

- Em Maio de 1935, a revista Physical Review publicou um artigo de Einstein, em coautoria com os seus colaboradores Podolsky e Rosen, intitulado

Can Quantum-Mechanical Description of Physical Reality Be Considered Complete?

- Neste artigo, conhecido por artigo EPR (iniciais dos autores), é apresentada uma experiência de raciocínio em que duas partículas em interação mútua durante um certo tempo (por exemplo, eletrões com spins emparelhados) foram afastadas uma da outra, na ausência de qualquer perturbação posterior. - Contudo, a experiência partia de dois pressupostos, realismo e localidade. Em palavras simples, o princípio do realismo afirma que as propriedades de um objeto são bem definidas e independentes da sua medição (“a Lua está lá, mesmo quando não se olha para ela!”). - Por sua vez, o princípio da localidade (qualidade do que é local, isto é, do que interage com o que estiver próximo, não com o que se encontra a quilómetros de distância!) afirma que as

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4. Mistérios quânticos propriedades de um objeto só podem ser afetadas por interações locais (não pode haver "assombração à distância" (no dizer de Einstein, "spooky action at a distance"). - Em Outubro de 1935, a mesma revista Physical Review, publicou um artigo de Bohr que tentava responder ao artigo EPR com um artigo subordinado ao mesmo título do artigo EPR (uma pergunta, como vimos). Neste artigo, onde não existe um única equação ou expressão matemática, Bohr analisava a expressão "physical reality" dando-lhe uma interpretação diferente da de Einstein. - Bohr adotava a chamada interpretação de Copenhaga segundo a qual os fenómenos quânticos são afetados por indeterminação quântica, isto é, os resultados de um observável são aleatórios (à escala quântica, não é possível falar de propriedades de um sistema, propriedade = o que é próprio de ). Esta aleatoriedade decorre do princípio da sobreposição de estados segundo o qual, sendo vários os estados quânticos possíveis, todos eles "coexistem", isto é, sobrepõem-se, com correspondentes probabilidades de ocorrência, originando um estado quântico único. 4. Entrelaçamento quântico - O ano de 1935 iria ser marcado também por outro artigo de Schrödinger, saído em Agosto, publicado no volume 31 de Mathematical Proceedings of the Cambridge Philosophical Society, intitulado "Discussion of Probability Relations between Separated Systems". - Este artigo retomava um aspeto interessante da experiência de raciocínio do artigo EPR segundo o qual duas partículas em interação mútua durante certo tempo se afastavam uma da outra, na ausência de qualquer perturbação posterior. Ora, segundo a mecânica quântica, o resultado intrigante residia no facto de, qualquer que fosse a distância entre as partículas, existia uma correlação impossível de explicar classicamente, segundo a qual a medição de um observável numa delas (resultado aleatório, como vimos) determinava o valor do mesmo observável na outra partícula! - Consideremos um par de eletrões com spins emparelhados (estado quântico com spin total = 0; por corresponder a um só estado quântico designa-se por singuleto; nos átomos e moléculas, os eletrões têm tendência a emparelhar os spins, com spins antiparalelos (opostos) e spin total nulo). Admitamos que esses eletrões se afastam um do outro na ausência de qualquer interação exterior (Figura 7, ver experiência semelhante em D. Bohm, Quantum Theory, 1951).

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4. Mistérios quânticos - É possível determinar o spin de um destes eletrões usando um filtro SG orientado segundo determinado eixo. Admitamos que essa medição do spin dá “spin para baixo” (situação a). - Então, o spin do outro eletrão, segundo o mesmo eixo, é necessariamente “spin para cima” (situação b). - Se o primeiro eletrão tiver “spin para cima”, o segundo terá necessariamente “spin para baixo”. - Assim, a medição do spin de um dos eletrões provoca o colapso do spin do outro eletrão, não importa a que distância se encontra do primeiro eletrão!

Figura 7 - Foi Schrödinger quem designou esta forte correlação entre partículas que foram preparadas num estado quântico único por entrelaçamento quântico. Para Einstein, era assombração à distância (“spooky action at a distance”) porque permitia transmissão de informação a velocidade superior à da luz. - Ora, segundo a mecânica quântica, a separação espacial das partículas que formam um estado quântico único e global não desfaz esse estado quântico e a correlação entre as partículas separadas é muito forte (não se trata de ação, mas de correlação) e não tem equivalente na física clássica. - O número total de publicações sobre experiências de entrelaçamento é, até à data desta palestra, à volta de quatro mil, segundo a Web of Science (Figura 8). Destacamos duas dessas experiências:

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4. Mistérios quânticos - R. McConnell, H. Zhang, J. Hu, S. Cuk and V. Vuletic, "Entanglement with negative Wigner function of almost 3,000 atoms heralded by one photon", Nature (2015) 519, 439-494 e - I. Marinkovic et al. "Optomechanical Bell Test", Phys. Rev. Lett. (2018) 121, 220404, que reporta o entrelaçamento luz-matéria com dez mil milhões de átomos de silício.

Figura 8

5. Desigualdades de Bell - Na altura em que surgiu o artigo EPR era impossível verificá-lo experimentalmente. Talvez por isso e porque a mecânica quântica funcionava, o artigo EPR foi votado ao esquecimento da comunidade científica até 1964. O gráfico que se apresenta a seguir (Figura 9) foi extraído da Web of Science e apresenta as citações ao artigo EPR ao longo dos anos seguintes até hoje (data desta palestra, 4 de dezembro de 2018). - O ponto fraco do artigo EPR viria a ser descoberto 29 anos mais tarde por um físico norte irlandês, de nome John Stewart Bell (Figura 10, [3]) num artigo intitulado "On the Einstein Podolsky Rosen Paradox", publicado na revista Physics (1964) 1, 195-200. - Neste artigo, Bell identifica os princípios que baseiam a experiência de raciocínio do artigo EPR, nomeadamente, o princípio do realismo e o da localidade. - Como iremos ver, estes princípios, indiscutíveis à escala macroscópica, não estão adequados às escalas atómica e subatómica.

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4. Mistérios quânticos

Figura 9

J. S. Bell (1928-1990) Figura 10

- O princípio do realismo, segundo as próprias palavras de Einstein diz que a “Lua está lá, mesmo quando não se olha para ela!”. - Ninguém discute, à escala macroscópica, este princípio que pressupõe que a observação de um fenómeno não tem qualquer influência sobre o fenómeno observado. - Pelo contrário, à escala quântica, o realismo é substituído pelo princípio da sobreposição de estados, pela indeterminação dos resultados de uma medição e pelo colapso num dos estados sobrepostos quando se procede à medição de um observável (a probabilidade do colapso pode ser 100% para estados próprios).

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4. Mistérios quânticos - O princípio da localidade, segundo o qual um objeto só pode ser influenciado pela sua vizinhança imediata. - Segundo este princípio é impossível a transmissão de informação a velocidades superiores à da luz, tal como afirma a teoria da relatividade. - Partículas entrelaçadas existem num único estado quântico comum a essas partículas, isto é, enquanto essas partículas estiverem entrelaçadas não será possível separá-las em estados quânticos individualizados. - Por isso, partículas entrelaçadas não requerem transmissão de informação entre elas porque existem no mesmo estado quântico. - Sendo assim, não há violação da teoria da relatividade. - O que existe de verdadeiramente surpreendente é que o entrelaçamento quântico continue a verificar-se quando as partículas entrelaçadas estão separadas por quilómetros ou milhões de quilómetros de distância! - Voltemos à experiência de pares de eletrões de spins emparelhados (Figura 11).

Figura 11 - No pressuposto do realismo local (os dois princípios juntos, realismo e localização), Bell mostrou que, para cada tipo de experiência, é possível chegar a uma desigualdade que exprime o máximo do valor absoluto da correlação. - Fizemos a simulação computacional desta experiência de raciocínio, e considerámos quatro milhões de partículas (menos de 20 s no tempo de computação) (Nota 2). - "1" corresponde a "spin para cima", -1 corresponde a "spin para baixo". Estes valores numéricos permitem a realização desta experiência por computador. Verde no filtro SG à

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4. Mistérios quânticos esquerda corresponde a verde no filtro SG à direita (caso a), o mesmo sucedendo com os resultados a azul (caso b). - Como se vê pelos resultados, a situação em que os resultados a e b são ambos aleatórios dá uma correlação nula, como é de esperar. - Por sua vez, se a for aleatório e b estiver totalmente correlacionado com a (b = -a), o valor absoluto da correlação é máximo (= 2). - A Tabela que reúne estes resultados foi obtida usando o software referido na Nota 2.

pressupostos

condições

|correlação|

realismo local

a e b aleatórios

0,00

realismo local

a aleatório, b = -a

2,00

Tabela - A desigualdade que exprime este máximo |correlação|max = 2 designa-se por desigualdade de Bell e, como iremos ver, é violada pela experiência real efetuada à escala microfísica (este é o campo da mecânica quântica, não da mecânica newtoniana aplicável a sistemas macroscópicos) experiência real → |correlação| max > 2 (A. Aspect, P. Grangier and G. Roger, “Experimental Realization of Einstein-Podolsky-RosenBohm Gedankenexperiment: a new violation of Bell’s inequalities”, Phys. Rev. Lett. (1982) 49, 91-94 ). - Em 1982, N. Gisin, investigador em física quântica, tinha trabalhado na Swisscom e, por essa razão, conhecia a rede subterrânea de cabos de telecomunicações na Suíça e dispunha de acesso para efetuar uma experiência sobre as desigualdades de Bell (W. Tittel, J. Brendel, H. Zbinden and N. Gisin, Phys. Rev. Lett. (1982) 81, 3563-3566). - Esta experiência envolvia fotões entrelaçados pela sua polarização que partiam de um ponto em Genebra, seguindo um para Bernex, outro para Bellevue (Figura 12, [4]), a uma distância em linha reta de cerca de 11 km.

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4. Mistérios quânticos - Os resultados desta experiência mostraram que as desigualdades de Bell tinham sido violadas, tal como a mecânica quântica previa. Mais de um milhar de experiências têm confirmado a violação das desigualdades de Bell. Einstein no seu famoso artigo EPR sobre a mecânica quântica não tinha razão!

Figura 12 - Até à data desta palestra, as publicações que descrevem violação das desigualdades de Bell são, segundo a Web of Science, em número superior a 2300 (Figura 13). publicações

ano

Figura 13 - Como tivemos a oportunidade de ver, a observação de um fenómeno à escala subatómica envolve sempre um aparelho de medição macroscópico (ver, por exemplo, a experiência de Stern-Gerlach). - Ora, segundo Bell, uma teoria que adicione parâmetros ou variáveis escondidas à mecânica quântica, seguindo as conclusões do artigo EPR por considerar a mecânica quântica uma teoria incompleta [5], deverá incluir um mecanismo que explique como é que o resultado de

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4. Mistérios quânticos um instrumento de medida macroscópico influencia o outro instrumento de medida, qualquer que seja a distância a que um se encontre do outro. 6. Números aleatórios - Como vimos, os processos quânticos são, em teoria, prefeitamente imprevisíveis. Ora, uma das aplicações tecnológicas da indeterminação de processos quânticos é o Gerador de Números Verdadeiramente Aleatórios (True Random Number Generator, TRNG, Figura 14, [6]). - Este dispositivo eletrónico usa fenómenos microfísicos de muito baixa intensidade, como o ruído térmico ou o efeito fotoelétrico, para obter ruído estatisticamente aleatório que uma vez convertido em sinal elétrico, amplificado e convertido de sinal analógico em número digital (vulgarmente uma combinação de vários 0 e 1) permite obter um TRNG.

Figura 14 - Dispositivos como este geram sequências de zeros ("0") e uns ("1") usados nas placas de computadores geram números aleatórios. - Os números verdadeiramente aleatórios estão na base de chaves criptográficas usadas em códigos secretos. - Por isso, têm inúmeras aplicações em assinaturas eletrónicas, no dinheiro eletrónico, em comunicações seguras na internet, em cálculos científicos, na lotaria e no jogo de sorte. 7. Chaves Quânticas Secretas - Um método designado por distribuição de chave quântica (Quantum Key Distribution, QKD) usa a mecânica quântica para garantir comunicação segura de informação. Segundo

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4. Mistérios quânticos este método, um emissor e um destinatário partilham uma chave secreta que apenas ambos conhecem e podem usar para criptografar e descriptografar mensagens (Figura 15, [7]). - O artigo de C. H. Bennett and G. Brassard, “Quantum cryptography: public key distribution and coin tossing”, Proceed. IEEE Int. Conf. on Computers, Systems and Signal Processing, (1984) 175, 8, especifica um protocolo que ficou conhecido por protocolo BB84 pelas iniciais dos seus autores (Figura 16, [8], [9]) e pelo ano da publicação. - Uma propriedade importante e singular da distribuição de chave quântica reside na capacidade de detetar a presença de terceiros a realizarem espionagem. Esta capacidade resulta da mecânica quântica, em especial, de o processo de medida de um observável geralmente perturbar o sistema. - Uma aplicação importante do entrelaçamento quântico é o teletransporte quântico segundo o qual informação quântica (por exemplo, o estado quântico de um fotão ou de um átomo) pode ser transmitido de um local para outro com auxílio de canal clássico de comunicação e do entrelaçamento quântico entre emissor e destinatário.

emissor

destinatário fotões

fibra ótica chave quântica digital secreta

Figura 15 - O protocolo BB84 permite concluir que um emissor e um destinatário podem partilhar uma chave secreta que apenas ambos conhecem e que é usada para codificar e descodificar mensagens. - Este método é designado por Distribuição de Chave Quântica e usa a mecânica quântica para garantir uma comunicação de informação segura. - Uma propriedade importante e singular da Distribuição de Chave Quântica reside na capacidade de detetar a presença de terceiros a realizarem espionagem.

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4. Mistérios quânticos - Esta capacidade resulta de, em mecânica quântica, o processo de medição de um observável poder perturbar o sistema, denunciando o espião.

Figura 16

Charles H. Bennett (1943-) Gilles Brassard (1955-)

- Recentemente foi publicado o artigo de A. Boran et al. “Secure Quantum Key Distribution over 421 km of Optical Fiber”, Phys. Rev. Lett. (2018) 121, 190502 que, como o título indica, consegue a transmissão por fibra ótica de uma chave quântica em mais de 421 km. - Há várias empresas a oferecer sistemas de Distribuição de Chave Quântica comerciais: ID Quantique (Genebra), MagiQ Technologies (Nova Iorque), QuintessenceLabs (Australia) e SeQureNet (Paris). - A primeira rede de computadores protegida pela tecnologia Distribuição de Chave Quântica (SECOQC = Secure Communication based on Quantum Cryptography) foi patrocinada pela União Europeia e inaugurada em Viena, em 2008. - Esta rede de computadores usa 200 km de fibra ótica que ligam seis locais entre Viena e St Poelten, a 70 km a oeste de Viena. - Em 2004, ocorreu a primeira transferência bancária, em Viena, a usar o método DCQ. - Em 2007, numas eleições na Suíça, foi utilizada pela primeira vez tecnologia criptográfica fornecida pela firma ID Quantique, para transmitir resultados de uma eleição no cantão de Genebra para a capital, Berna. - Em 2015: distância recorde para DCQ 307 km por fibra ótica. - A um mês da data desta palestra, foi efetuado o lançamento de um satélite chinês que pretende usar a tecnologia DCQ com comunicação pelo espaço (não por fibra ótica) a atingir cerca de 2500 km (ver jornal Público, 19/08/16).

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4. Mistérios quânticos - Até à data desta palestra, mais de seis mil publicações na Web of Science consideram a Distribuição de Chaves Quânticas.

8. Computador Quântico Num computador clássico, transformamos sequências de zeros e uns, os chamados bits de dígitos binários, noutras sequências (Figura 17). Os zeros e uns de uma sequência de N bits representam matematicamente o que na realidade podem ser potenciais elétricos alto e baixo, sentidos de magnetização ou direções de polarização e usam portas lógicas como AND, OR, NOT para processar o input e produzir o output.

output

AND, OR, NOT

input bits bits

Figura 17

- Na década de 60, um computador ocupava uma enorme sala e não dispunha da capacidade de processamento que ombreasse com a de um telefone inteligente de bolso nos dias de hoje! - A computação quântica usa os fenómenos da mecânica quântica como a sobreposição e o entrelaçamento de estados quânticos para processar dados. - Um computador quântico é um dispositivo capaz de manipular delicados estados quânticos de um modo controlado, a temperaturas inferiores a 1 K (kelvin) [10].

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4. Mistérios quânticos - Um qubit é a versão quântica de um bit. - O estado quântico de um qubit pode ter os valores |0>, |1> ou ambos ao mesmo tempo em percentagens indefinidamente variáveis (estado que é combinação linear de |0> e |1>; ver Stern-Gerlach). - A teoria quântica prevê que um computador com N qubits pode existir numa sobreposição de 2N estados quânticos distintos |00...0> até |11...1>. Por exemplo, a 2 bits (0,1) correspondem 22 = 4 qubits de base (00, 01, 10, 11). Do mesmo modo, considerando 6 bits num computador clássico correspondem, num computador quântico, 26 = 64 qubits de base cuja sobreposição pode originar um número extraordinariamente elevado de estados quânticos através da varição das percentagens de cada um dos 64 qubits de base. - Exponencialmente, isto é muito mais do que uma sobreposição clássica: por exemplo, N tons musicais tocados ao mesmo tempo só produz uma sobreposição desses N tons. - Por isso, a sobreposição quântica é muito mais potente do que as probabilidades clássicas. - Uma fila de N moedas, cada uma das quais pode ser “caras” ou “coroas” tem 2N estados possíveis, mas só existe num deles (não sabemos qual). - O entrelaçamento é uma propriedade da maior parte das sobreposições quânticas e não ocorre em sobreposições clássicas. - Num estado entrelaçado, o sistema total existe num estado definido, mas as suas partes não. - Cada uma de duas partículas entrelaçadas comporta-se aleatoriamente (indeterminação quântica) quando é observada, mas permite que o observador saiba o estado da outra partícula entrelaçada se uma observação semelhante for efetuada sobre a primeira. - Em virtude de o entrelaçamento envolver uma forte correlação entre duas partículas com comportamentos individualmente aleatórios, não pode ser usado para enviar mensagens. - Portanto, a expressão “ação instantânea à distância” é incorreta. - Não existe qualquer ação, apenas uma correlação que, embora misteriosamente perfeita, só pode ser detetada quando os dois observadores compararem os resultados que obtiveram.

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4. Mistérios quânticos - A capacidade dos computadores quânticos (Figura 18) de existirem em estados entrelaçados é responsável pela maior parte da sua potência computacional e não tem equivalência clássica. As portas quânticas atuam sobre os qubits de modo semelhante ao que as portas lógicas clássicas atuam sobre os bits, um e dois ao mesmo tempo, para modificarem o seu estado de um modo controlável.

output

sobreposição de estados

+

entrelaçamento de estados

input Figura 18

qubits Figura 19

Muito Obrigado.

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4. Mistérios quânticos

Notas 1. "Fundamentals of Optics", Fourth Edition, F. A. Jenkins & H. E. White, 2001, The McGrawHill Companies, Inc., páginas 338-353. 2. Software Mathematica® ( www.wolfram.com). Autor: Wolfram Research Inc. Champaign, IL., USA. 3. As experiências de raciocínio retêm os principais resultados de experiências reais e têm a vantagem de não nos distraírem com tudo o que de meramente acessório ou secundário as experiências reais vulgarmente têm. Por isso, facilitam muito a discussão e a análise dos resultados. - Os resultados das experiências de raciocínio não são imaginados, mas provêm de raciocínios lógicos inquestionáveis ou/e de experiências físicas de facto realizadas e expostas a toda a comunidade científica para confirmação ou não dos resultados, das análises e conclusões dos mesmos. 4. Nesta experiência real foram utilizados átomos de prata obtidos por vaporização do metal fundido num forno apropriado (temperatura de fusão ≈962ºC, temperatura de ebulição 2162ºC, [1]). Cada átomo de prata tem 47 protões no seu núcleo. Portanto, um átomo de prata neutro tem 47 eletrões. Destes, só um está desemparelhado. Assim, cada átomo de prata funciona, perante o campo magnético, como se fosse um eletrão apenas, dado que cada par de eletrões emparelhados tem momento magnético nulo. De facto, o momento magnético de um de dois eletrões emparelhados tem a mesma direção mas sentido oposto ao do outro eletrão, deste modo anulando o momento magnético total dos dois eletrões emparelhados.

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4. Mistérios quânticos

Endereços eletrónicos [1] https://en.wikipedia.org/wiki/Silver [2] https://pbs.twimg.com/media/EKtSuSKWkAA2M0o.jpg [3] https://upload.wikimedia.org/wikipedia/en/thumb/a/a5/JohnStewartBell.jpg/220pxJohnStewartBell.jpg [4]https://www.google.pt/maps/place/Bellevue,+Switzerland/@46.225084,6.1485995,12.1z/dat a=!4m5!3m4!1s0x478c6435d5f5cbbf:0x400ff88401973b0!8m2!3d46.2557621!4d6.1471443 [5]https://en.wikipedia.org/wiki/Hidden-variable_theory [6] https://encrypted-tbn0.gstatic.com/images?q=tbn:ANd9GcQKtzO61Z3_PTld2K_eiUcqitJh8eGKTXBPKvj-KH4AXaXVGHL&s [7] https://encryptedtbn0.gstatic.com/images?q=tbn:ANd9GcSomYuKqgAptCV_JoDhlk11JcBqfH7vcHqb9d2kYv7I s2aLCxgB&s [8] https://i1.rgstatic.net/ii/profile.image/7031322459791391544651199862_Q512/Charles_Bennett7.jpg [9] http://www-labs.iro.umontreal.ca/~brassard/web/en/ [10] https://en.wikipedia.org/wiki/Quantum_computing

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5. Poeira das estrelas

Há cerca de 33 anos, mais precisamente no dia 24 de Fevereiro de 1987, vários observatórios astronómicos do hemisfério sul da Terra registaram a explosão de uma estrela, um dos acontecimentos cósmicos mais espetaculares no Universo (Figura 1, [1]). O autor destas imagens é o astrónomo e fotógrafo anglo-australiano David Frederick Malin. A imagem à direita indica a estrela antes da explosão.

Fevereiro 1987

Figura 1

Observatório Anglo-Australiano, Sydney D.F. Malin(1941-)

Observatório Anglo-Australiano / David Malin

https://www.aao.gov.au/news-media/media-releases/Supernova1987A-30

Nesta palestra, proponho abordar os seguintes temas: 1. As estrelas nascem, vivem e morrem ... 2. Explosão de uma estrela 3. Moléculas em espaços interestelares 4. Descoberta de moléculas de carbono 5. C 60 + em espaços interestelares 6. O grafeno Post Scriptum

1


5. Poeira das estrelas 1. As estrelas nascem, vivem e morrem ... - As estrelas são verdadeiras fornalhas nucleares. O nascimento, a vida e a morte de uma estrela são descritos recorrendo às forças atuantes, das reações nucleares que nelas ocorrem e à energia que libertam. - Como é sabido, o núcleo de um átomo é constituído por protões e neutrões (Figura 2, [2]). Num átomo neutro existem à volta do núcleo eletrões que compensam a carga do núcleo, isto é, em número igual ao dos protões do núcleo. O neutrão, como o nome indica, tem carga nula. - Um elemento químico é caracterizado pelo número de protões e ocupa uma posição na Tabela Periódica por ordem crescente do número de protões do núcleo. O átomo ocupa um espaço que é cerca de cem mil vezes superior ao diâmetro do núcleo, relação da ordem de grandeza entre a dimensão de um campo de futebol e de uma ervilha! O diâmetro de um protão (núcleo de um átomo de hidrogénio prótio) é aproximadamente 0,000 000 000 000 002 m e o de um núcleo de um átomo de urânio é cerca de 7 a 8 vezes maior, 0,000 000 000 000 015 m. - Como é possível que um núcleo seja estável quando há repulsão entre as cargas dos protões?

Figura 2

- Para explicar a estabilidade de um núcleo, a Física do século passado recorreu à força nuclear forte entre nucleões, uma força atrativa de curtíssimo alcance como se pode inferir pela ordem de grandeza da dimensão do núcleo, e à força eletromagnética que origina a repulsão entre as cargas positivas dos protões (Nota 1).

2


5. Poeira das estrelas - O decaimento radioativo de núcleos instáveis é explicado através da força nuclear fraca, também de curto alcance. Ora, uma destas reações nucleares, a de conversão de um neutrão num protão,

neutrão

protão+ + eletrão− + ?

suscitou grande atenção e estudo porque, aparentemente, não satisfazia o princípio da conservação de energia (não há criação nem destruição de energia; a energia total do primeiro membro duma qualquer reação, quer seja química ou nuclear, tem que ser igual à energia total do segundo membro). - Ora, não se sabia nem se conseguia detetar a que correspondia o ponto de interrogação do segundo membro desta reação nuclear para que satisfizesse o princípio de conservação da energia, válido tanto para processos termodinâmicos à escala macroscópica, como para reações nucleares.

neutrão

protão+ + eletrão− + neutrino

- Então, o físico austríaco Wolfgang Pauli postulou em 1930 a existência de uma partícula que necessariamente teria que ser neutra e não devia possuir massa ou, quando muito, possuir uma massa muito inferior à de um eletrão, para que fosse de difícil deteção (nunca ninguém até então a tinha detetado). Após alguma controvérsia sobre o nome a dar a tal partícula, o físico italiano Enrico Fermi sugeriu o nome de neutrino. - O percurso livre médio do neutrino em água é cerca de 1 ano-luz (aproximadamente, 1013 km, ou seja, dez milhões de milhão de quilómetros!).

Figura 3

F. Reines (1918-1998)

3


5. Poeira das estrelas - A deteção experimental do neutrino ocorreu em 1956 e foi conseguida pelos físicos norteamericanos Frederick Reines e Clyde Cowan Jr (1919-1974) que utilizaram reatores nucleares para obtenção de fluxos de neutrinos muito superiores aos obtidos na Terra a partir doutras fontes no Universo, das quais a mais perto de nós é o Sol. F. Reines and C. Cowan, "The Neutrino", Nature (1956) 178, 446. C. Cowan, F. Reines et al., "Detection of the Free Neutrino: A Confirmation", Science (1956) 124, 103. - F. Reines (Figura 3, [3]) foi um dos galardoados com o Prémio Nobel da Física em 1995 pela deteção do neutrino (Nota 2). Neste ano, C. Cowan já tinha falecido (como sabemos, o prémio Nobel não é atribuído a título póstumo). - Podemos agora comparar a estabilidade relativa dos núcleos atómicos. Teremos que comparar para sermos objetivos (a objetividade é uma característica essencial da ciência!). - Para isso, vamos considerar o valor médio da energia de um nucleão em cada átomo. Mas, nas reações nucleares, massa e energia são equivalentes, pela fórmula de Einstein de todos conhecida, E = m c2. Assim, massa e energia representam a mesma quantidade física, apenas expressa em unidades diferentes. Podemos então exprimir a massa média de cada nucleão em unidades de energia.

Figura 4 - A Figura 4 ilustra a variação da massa média por nucleão em função do número de nucleões, de um modo aproximado, não rigoroso, para salientar a variação destas grandezas em linhas gerais que permitam compreender as ideias fundamentais.

4


5. Poeira das estrelas - As setas indicam o sentido das reações nucleares de fusão que libertam energia e mostram que o ferro que está no mínimo da curva, isto é, já não é combustível nuclear. Note-se que a energia de uma reação nuclear é cerca de 10 a 100 milhões de vezes superior à energia de uma reação química. - Vamos agora ver como a curva da Figura 4 pode ser aplicada a estrelas de massas diferentes. Comecemos por uma estrela com massa da ordem de grandeza da do Sol. As setas a preto (Figura 5) indicam a força gravítica e as setas a verde indicam as força de pressão, que em parte são devidas à radiação libertada pela fusão do hidrogénio, proveniente de uma nebulosa, em hélio. O big-bang tinha feito hidrogénio e hélio.

Figura 5 - Consideramos agora uma estrela com massa da ordem de grandeza de 20 vezes a massa solar. A força gravítica é muito maior. Então, não haverá apenas conversão de hidrogénio em hélio, além disso o hélio converte-se em carbono, e posteriormente formam-se oxigénio, neón, magnésio, silício, enxofre e por último, ferro. - As reações nucleares que libertam energia originam camadas de cada um dos elementos químicos. A indicação do diâmetro total, da temperatura atingida na superfície de cada camada e na densidade do respetivo cor da estrela (cor como nome masculino, do latim cor, "coração", usado em expressões como "aprender de cor") são indicadas na Figura 6 (Nota 3). - Note-se que, quanto maior for a massa da nebulosa inicial de hidrogénio, tanto maior será a atração gravítica e, portanto, tanto maior será a energia cinética atingida pelos núcleos. Assim, são atingidas temperaturas e densidades extremamente elevadas especialmente no cor da estrela. Estas energias são tão elevadas que superam as repulsões eletrostáticas entre

5


5. Poeira das estrelas núcleos e originam novas reações nucleares até ao ferro, que não é combustível nuclear por se encontrar no mínimo da curva da massa média por nucleão.

Figura 6

massa média por nucleão

- O resultado é a obtenção de uma enormíssima cebola cósmica (Figura 7).

H

H

He Mg

C Ne O Si, S

He C O

Fe Figura 7

50

100

150

200

- Quando o combustível nuclear se esgota no cor da estrela (Figura 8), segue, em frações do segundo, o colapso do cor (a única força atuante sobre o cor é a força gravítica), a formação de uma estrela de neutrões, a erupção de neutrinos, uma onda de choque que caminha para as camadas exteriores ao cor impelida pela energia dos neutrinos e a projeção pelo espaço

6

250


5. Poeira das estrelas do material essencialmente nuclear das camadas exteriores, com formação de núcleos para além do ferro, na Tabela Periódica. Tal é a origem dos átomos que existem no nosso corpo e na Terra!

Figura 8 - Os pioneiros dos estudos realizados na primeira metade do século XX que nos permitiram chegar a este conhecimento científico - Subrahmanyan Chandrasekhar e William Fowler (Figura 9, [4]) - foram galardoados com o prémio Nobel da Física em 1983.

S. Chandrasekhar (1910-1995)

W. Fowler (1911-1995)

Figura 9 - Duas das suas principais publicações são M. Schonberg and S. Chandrasekhar, "On the Evolution of the Main-Sequence Stars", Astrophys. J. (1942) 96, 161-172.

7


5. Poeira das estrelas E. Burbidge, G. Burbidge, W. Fowler and F. Hoyle, "Synthesis of the Elements in Stars", Rev, Mod. Phys., (1957) 29, 547-650. - A abundância relativa dos elementos no Sistema Solar com especial ênfase para os mais abundantes (H, C, N, O) corresponde a mais de 99% dos elementos químicos existentes no nosso corpo. A Figura 10 (Nota 4) apresenta a fração de átomos no Sistema Solar em partes por milhão em função do número de protões mais neutrões de cada um dos nuclídeos indicados [5].

H 106 He

104 O

C N

Ne Mg Si

100

1

0

10

20

30

Fe

S

40

50

60

Figura 10

Figura 11 - O NASA Goddard Space Flight Center USA enviou para o espaço uma nave, em 1999, provida de robôs para recolha de amostras e dirigida para a cabeleira do cometa Wild2. O encontro ocorreu em 2004 e as amostras recolhidas e analisadas na Terra, entre outros resultados, revelaram a existência do aminoácido mais simples, a glicina (Figura 11). Ver J.

8


5. Poeira das estrelas Elsila et al., "Cometary glycine detected in samples returned by Stardust", Meteoritics and Planetary Science (2009) 44, 1323-1330 (NASA Goddard Space Flight Center, USA). 2. Explosão de uma estrela - Passemos ao segundo tema, a explosão de uma estrela, a supernova (SN) de 1987, "A", por ser a primeira desse ano (SN1987A). Foi Ian Shelton (Figura 12, [6]), um astrónomo canadiano da Universidade de Toronto no Observatório de Las Campanas, no Chile [7], quem realizou a descoberta (I. Shelton, "Supernova 1987A: photometry of the discovery and pre-discovery plates", Astronom. J. (1993) 105, 1886-1891; ver Figura 1).

Figura 12

- Esta supernova [1] ocorreu na Grande Nuvem de Magalhães (Large Magellanic Cloud, LMC), referência ao navegador português Fernão de Magalhães que há 500 anos realizou a primeira ligação entre os oceanos Atlântico e Pacífico. - A distância entre esta supernova e a Terra é cerca de 168 mil anos-luz (a luz proveniente desta explosão levou 168 mil anos (!) a percorrer essa distância; a luz do Sol leva apenas 8,3 minutos a chegar à Terra). - Em retrospetiva, o primeiro sinal chegado à Terra foi dos 10 neutrinos (Figura 13, [8]) detetados no Observatório Kamiokande-II, no Japão, em 24 de fevereiro de 1987, aproximadamente 2-3 horas antes da erupção de radiação ultravioleta (UV).

9


energia / MeV

5. Poeira das estrelas

tempo / s Figura 13

Figura 14 - Há 11 milhões de anos, "nasceu" a estrela Sanduleak (Sk, 18 M¤ = dezoito vezes a massa solar) na galáxia Grande Nuvem de Magalhães (LMC). A sua "biografia" segundo S. Woosley, T. Weaver,"The Great Supernova of 1987", Scientific American, August 1989, vem sumariamente descrita na Figura 14.

3. Moléculas em espaços interestelares - Os comprimentos de onda da radiação de uma estrela na linha de observação são absorvidos por moléculas no espaço interestelar originando Bandas Interestelares Difusas (DIB) (Figura 15).

10


5. Poeira das estrelas

Figura 15

- Designam-se por bandas porque dizem respeito a moléculas e, por isso, apresentam uma largura a meia altura significativa devida aos seus graus de liberdade vibracionais e rotacionais (os átomos isolados originam riscas ou linhas). - O efeito da atmosfera terrestre está indicado esquematicamente na Figura 16 ([9]) em função do comprimento de onda da radiação. - Como se vê, nas regiões em que a atmosfera é opaca à radiação (nível de radiação transmitida 0%), só é possível registar os espetros dessas radiações recorrendo a telescópios colocados em órbita acima da atmosfera terrestre, munidos de espetrómetros sensíveis em diversas regiões de comprimento de onda da radiação eletromagnética (Nota 5).

Figura 16

11


5. Poeira das estrelas 4. Descoberta de moléculas de carbono - Um dos investigadores que mais se dedicou aos espetros de moléculas interestelares, principalmente das que apresentam cadeias lineares de carbono, foi o químico inglês Harold Walter Kroto (1939-2016), da Universidade de Sussex, Reino Unido (Figura 17, [10]). L. Avery, N. Broten, J. MacLeod, T. Oka and H. Kroto,"Detection of the heavy interstellar molecule cyanodiacetylene" (HC5N), The Astrophys. J., (1976) 205, L173-L175. H. W. Kroto, "The Spectra of Interstellar Molecules", Internat. Rev. Phys. Chem. (1981) 1, 309376. - Kroto obtinha resultados experimentais especialmente através de colaboração científica com o telescópio de ondas de rádio, no Parque Algonquin, Ontario, Canadá (Figura 17), e interpretava esses resultados usando espetroscopias de foto-eletrão e de micro-ondas.

H. Kroto (1939-2016)

Radiotelescópio, Parque Algonquin, Ontario, Canadá

Figura 17 - Tendo em vista a simulação num laboratório da Terra das condições existentes num espaço interestelar próximo de uma estrela de carbono, Kroto realizou a experiência esquematizada na Figura 18, na Universidade de Rice, em Houston nos EUA, no laboratório de Robert Floyd Curl Jr. Esta experiência usou um equipamento desenhado e montado pelo químico norteamericano Richard Errett Smalley, extraordinariamente sensível, para vaporização de substâncias e formação de agregados ou cachos moleculares, cujas massas eram determinadas por um espetrómetro de massa com detetor de tempo de voo (Nota 6). Colaboraram nessa experiência H.W. Kroto, J.R. Heath, S.C. O'Brien, R. Curl e R.E. Smalley.

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5. Poeira das estrelas

- As massas dos agregados moleculares eram determinadas por um espetrómetro de massa. Neste caso (Figura 18), a radiação de um laser de impulsos incidia num disco de grafite que rodava em torno de um eixo vertical, produzindo vapor constituído por agregados de átomos de carbono que eram dirigidos por uma corrente de hélio para um espetrómetro de massa, com detetor de tempo de voo (Nota 6).

C60

L A S E R

número átomos C Espetrómetro de massa

hélio

grafite Figura 18 - Nas condições experimentais utilizadas (pressão dos impulsos de hélio a cerca de 10 atm e a outras pressões), este espetro de massa mostra que existe uma agregado ou molécula com 60 átomos de carbono cuja intensidade e, portanto, abundância, dominava sobre todos os outros agregados moleculares formados. O agregado com 70 átomos de carbono (o segundo mais intenso) tinha uma intensidade inferior a 10% da linha correspondente ao agregado com 60 átomos de carbono (Figura 18). - A abundância relativa do C60 sugeria uma molécula muito estável, pouco reativa, em que nenhum átomo de carbono tinha ligações por estabelecer. - Duas questões se levantavam: 1- qual é a estrutura (geometria) da molécula C60? 2- que nome lhe devia ser atribuído? - Quanto à primeira questão, Kroto tinha a ideia de, quando os filhos eram miúdos, tinha construído um poliedro que poderia ter (não se lembrava bem) 60 vértices. Através de

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5. Poeira das estrelas contacto telefónico com a esposa tentou encontrar o tal poliedro e obter uma imagem. Não conseguiu. - Lembrava-se, isso sim, de ter visitado a Exposição Universal de 1967 em Montreal, Canadá, e ter ficado maravilhado com a arquitetura do pavilhão dos EUA, da autoria do arquiteto americano especializado em abóbadas, Buckminster Fuller (à data da experiência da Figura 18, tinha falecido havia dois anos, em 1983) (Figura 19, [11], [12]). - Este pavilhão gigantesco tinha uma parte superior de forma esférica e na visão global dessa estrutura predominavam os hexágonos http://www.kroto.info/research/buckminsterfullerene/

Pavilhão dos EUA na Exposição Universal de 1967, Montreal, Canadá

Pavilhão USA na Expo de 1967, Montreal, Canadá

Buckminster Fuller (1895-1983)

Figura 19

Buckminster Fuller (1895-1983) arquiteto

Figura 20 - Contudo, uma estrutura construída apenas com hexágonos teria que ser plana (Figura 20, à esquerda). Richard Smalley tentou então a introdução de um pentágono no que, à partida, nada mais era do que um fragmento de uma folha plana de grafite. Como se vê na Figura 20, a estrutura resultante com um pentágono a substituir um hexágono adquiria curvatura! O problema da estrutura do C60 estava resolvido: cada pentágono tinha à sua volta cinco

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5. Poeira das estrelas

hexágonos! - Partindo de um icosaedro (do grego, icosa, "vinte" + edro, "face plana") e truncando-o ao retirar as pirâmides hexagonais a vermelho na Figura 21, obtém-se um icosaedro truncado com 60 vértices!

Figura 21 - Com uma bola de futebol das antigas (Figura 22) é possível contabilizar facilmente o número de pentágonos e hexágonos de um icosaedro truncado.

Figura 22 - O nome de C60, sugerido por Kroto, era uma homenagem a Buckminster Fuller e o artigo foi submetido à Nature: H.W. Kroto, J. R. Heath, S. C. O'Brien and R. E. Smalley,"C60: Buckminsterfullerene", Nature (1985) 318, 162-163. - Por ser muito longo, este nome não "pegou" na comunidade científica, tendo sido quase imediatamente substituído por "fulereno" seguido da fórmula da molécula de carbono (por exemplo, fulereno C60, fulereno C70).

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5. Poeira das estrelas - É interessante ler a resposta dos dois "referees" (ver http://www.kroto.info/research/ buckminsterfullerene/), especialmente a do "referee" A que fala num "stimulating paper" ... "extremely energetic paper full of ideas and speculations; in the spirit of stimulating scientific debate it certainly is a fun paper." - Estas afirmações trazem à minha memória uma frase escrita por um famoso frade dominicano do século XVI que foi astrónomo, matemático, filósofo, teólogo e poeta:

"Si non è vero, è molto ben trovato" Giordano Bruno (1548-1600) - O "referee" A afirmou ainda que "without more experiments or more discussion of experiments that the authors may have done it is impossible to prove the validity of the claim that C60 and possibly C70 are "magic number clusters" e continua dizendo que esta comunicação submetida à revista Nature "would certainly open up exciting new measurement opportunities, indeed new understanding of the chemistry and physics relevant to terrestial as well as astrophysics chemistry." Por isso, aceitou a comunicação, como aliás o fez o "referee" B. - Este artigo viria a ter reduzida repercussão no meio científico (poucas citações) nos cinco anos seguintes, porque a experiência realizada tinha utilizado uma montagem provavelmente única no mundo de então e a quantidade de C60 produzida era ínfima (provavelmente não seria mais do que uns milhares de moléculas o que é uma quantidade verdadeiramente exígua). Nessa altura (1985) poucos espetrómetros de massa existiriam com a mesma sensibilidade. - Em 1990, surge uma publicação que iria revolucionar este estado de coisas na medida em que possibilitava a produção de C60 e C70 em quantidades macroscópicas e a aparelhagem utilizada estava ao alcance de praticamente todos os centros de investigação em QuímicaFísica. - Tratava-se de uma simples descarga elétrica entre elétrodos de grafite num ambiente de hélio. A fuligem produzida, após dissolução num solvente adequado, era submetida a uma separação cromatográfica das componentes da mistura. O grupo que efetuou esta experiência foi dirigido pelo físico alemão Wolfgang Krätschmer (Figura 23, [13]), primeiro coautor da publicação que relatava a experiência e os seus resultados:

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5. Poeira das estrelas W. Krätschmer, L. Lamb, K. Fostiropoulos and D. Huffman, "Solid C60: a new form of carbon", Nature, (1990) 347, 354-357.

+

barras de grafite

hélio

W. Krätschmer (1942-)

fuligem

Figura 23 - Então, passava a ser possível obter espetros de absorção no infravermelho, de difusão de Raman e de ressonância magnética nuclear (RMN) de carbono-13 (Nota 7), com amostras dos fulerenos C60 e C70.

Figura 24

- Em especial, o espetro RMN de carbono-13 (R.Taylor, J. Hare, A. Abdul-Sada and H. Kroto, J. Chem. Soc., Chem Commun. (1990) 20, 1423-1425) só apresenta uma linha, clara indicação

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5. Poeira das estrelas de que todos os átomos de carbono no C60 são equivalentes, confirmando assim a geometria de um icosaedro truncado atribuída ao C60, onde cada átomo de carbono é comum a dois hexágonos e a um pentágono (ver Figura 24, onde alguns átomos de carbono estão marcados com círculos amarelos). - Recorrendo a uma aparelhagem semelhante à de Kratschmer, o físico japonês Sumio Iijima conseguiu obter várias camadas concêntricas de nanotubos de carbono (Figura 25, [14], [15]) a partir da grafite (estes nanotubos concêntricos formavam-se junto ao cátodo) e, dois anos mais tarde, camadas simples de nanotubos de carbono obtidas em fase gasosa.

S. Iijima (1939-)

Figura 25 S. Iijima, "Helical microtubules of graphitic carbon", Nature (1991) 354, 56-58. S. Iijima and T. Ichiashi, "Single-shell carbon nanotubes of 1-nm diameter", Nature (1993) 363, 603-605. - À data desta palestra (12 de março de 2019), tinham sido publicados na Web of Science mais de vinte e um mil artigos sobre os fulerenos, com especial incidência em várias áreas científicas interdisciplinares entre as quais a Química-Física, a Ciência dos Materiais, a Física da Matéria Condensada e a Nanociência e Nanotecnologia. - Em 1996, o prémio Nobel da Química foi atribuído aos descobridores dos fulerenos: Robert Curl [15], Sir Harold Kroto [16] e Richard Smalley [17], (Figura 26).

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5. Poeira das estrelas

Figura 26

- Advinham-se aplicações de enorme relevância especialmente na área da Medicina. O primeiro dos seguintes artigos é um artigo de revisão. O segundo ilustra a possível aplicação do fulereno C60 em exames por Ressonância Magnética. G. Lalwani and B. Sitharaman, "Multifunctinal Fullerene- and Metallofullerene-Based Nanobiomaterials", Nano LIFE (2013) 3, 1342003. L. Wang et al., "A multiple gadolinium complex decorated fullerene as a highly sensitive T1 contrast agent", Chem. Commun. (2015) 51, 4390.

5. C 60 + em espaços interestelares - Em 2010, é publicado o primeiro artigo que afirma ter sido detetado C60 e C70 numa nebulosa planetária a cerca de 3374 anos-luz da Terra, na Pequena Núvem de Magalhães (Small Magellanic Cloud, SMC), através de espetros na região do infravermelho. J. Cami et al., "Detection of C60 and C70 in a planetary nebula, Science, (2010) 329, 1180-1182. - A confirmação laboratorial só foi realizada cinco anos mais tarde pela dificuldade de detetar sinais espetroscópicos muitos fracos de espécies ionizadas em fase gasosa, a muito baixa pressão e temperatura a cerca de 6 K.

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5. Poeira das estrelas

Figura 27

E. Campbell, M. Holz, D. Gerlich and J. Maier,"Laboratory confirmation of C60+ as the carrier of two diffuse interstellar bands", Nature (2015) 523, 322-323. - Na Figura 27, a vermelho, encontra-se o comprimento de onda das Bandas Interestelares Difusas transportadas pelo ião C60+. Os pontos a preto correspondem ao espetro na região do infravermelho deste ião em fase gasosa a 5,8 K. As duas bandas de menor intensidade viriam a corresponder ao mesmo ião. Os autores deste artigo (Figura 28, [18]) encontravam-se, à data da experiência, na Universidade de Basileia, na Suíça.

Dieter Gerlich

Mathias Holz

John Maier Ewen Campbell

Figura 28

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5. Poeira das estrelas 6. O grafeno - As duas formas cristalinas mais conhecidas do carbono são o diamante e a grafite. O diamante apresenta uma estrutura cúbica que localmente é tetraédrica, como se vê na Figura 29 (Nota 8, página 307). 6.3 Crystal Structures

307

Fig. 6.30 Diamond structure with an illustration of the vector t. Figure obtained with Mathematica

Figura 29 crystalline forms of zinc sulfide, ZnS, consisting of two merged face-centered cubic lattices,- one for the possui sulfur atoms, other for zinc atoms. A grafite uma the estrutura dethe folhas planas de átomos de carbono com distribuição Figure 6.31 shows two distinct main cubes that schematically represent the same zinc blende The cube on the right from =the0,000 one on the000 left001 by shifting localcrystal. em hexágonos (Figura 30,results [19], 1pm 000 m) the latter by the vector t. This vector is directed along the diagonal of the cube, and its length is one-fourth that of the main diagonal [see (6.33) and Fig. 6.31]. The translation of the atoms of the main cube on the left by the vector t leads to the zinc blende structure on the right of Fig. 6.31. One of these main cubes (the one on the left) shows sulfur atoms represented by light gray spheres on the vertices and face centers and four zinc atoms (gray spheres) totally contained in the repeating unit. In turn, the cube on the right shows zinc atoms on the vertices and face centers and four sulfur atoms totally contained in the repeating unit.

Figura 30 - Cada uma destas folhas de hexágonos de carbono na grafite designa-se por grafeno Fig. 6.31 Zinc blende structure with an illustration of the vector t in the left-hand drawing: [20]) sulfur atoms, and gray spheres represent zinc atoms. Left- and light-gray(Figura spheres31, represent right-hand drawings represent two main cubes of the same crystal. Figure obtained with Mathematica

teixeiradias@ua.pt

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5. Poeira das estrelas

Figura 31 - A sua descoberta e caracterização conduziu à atribuição do prémio Nobel da Física de 2010 a dois investigadores russos a trabalharem na Universidade de Manchester, Reino Unido, A. Geim (1958- ) e K. Novoselov (1974- ) (Figura 32, [21]).

Figura 32

A. Geim (1958-)

K. Novoselov (1974-)

- O grafeno foi obtido por esfoliação da grafite e constitui um cristal bidimensional com propriedades térmicas e elétricas invulgares com possíveis aplicações em janelas e telefones inteligentes. - As publicações mais citadas destes investigadores são: K. Novoselov, A. Geim et al., "Electric field effect in atomically thin carbon films", Science, (2004) 306, 666-669 (com mais de 32 mil citações). A. Geim and K. Novoselov, "The rise of graphene", Nature Materials, (2007) 6, 183-191 (com mais de 23 mil citações).

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5. Poeira das estrelas A. Castro Neto, F. Guinea, N. Peres, K. Novoselov and A. Geim, "The electronic properties of graphene", Rev. Mod. Phys. (2009) 81, 109-162 (com mais de 13 mil citações).

Post Scriptum - Fora do tema central desta palestra, como simples Post Scriptum, permitam-me que mostre como o meu percurso de estudante universitário me levou em 1967 à Universidade de Sussex no Reino Unido, onde tive como um dos orientadores de doutoramento Harold Kroto.

Figura 33

Professor Fernando Pinto Coelho (1912-1999) Grande Oficial da Ordem de Santiago de Espada, 1992

- Iniciei os meus estudos na Universidade de Coimbra em Outubro de 1962 e rapidamente fiquei motivado para a Química pelas excelentes lições do Professor Fernando Pinto Coelho (Figura 33, [22]), professor catedrático na área da Química-Física do Departamento de Química da Universidade de Coimbra (antigo Laboratorio Chimico) e Diretor do Centro de Química Nuclear e Radioquímica. - Este professor, para além de eminente universitário, muito à frente do seu tempo em pedagogia e visão universitária, pessoa de excecionais qualidades humanas, orientou a minha formação em Química na Universidade de Coimbra, como estudante da licenciatura em Ciências Fisico-Químicas, e teve influência decisiva na escolha dos orientadores do meu doutoramento.

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5. Poeira das estrelas - Em Outubro de 1967, iniciei a preparação do meu doutoramento em Química (na especialidade Química-Física Molecular), na Universidade de Sussex, no departamento então designado por "School of Chemistry and Molecular Sciences". - Tive dois temas de doutoramento, "Interações Intermoleculares pela Mecânica Quântica" e "Interações Intermoleculares em Líquidos pela Espetroscopia de Raman", orientados respetivamente pelo Professor John Murrell e pelo Doutor Harold Kroto (Figura 34, [23], [24]).

Figura 34

John N. Murrell (1932-2016)

Harold Kroto (1939-2016)

Harold Kroto (1939-2016)

- Em Julho de 1970 concluí o meu doutoramento em Química (especialidade Química-Física Molecular) pela Universidade de Sussex, Reino Unido, com uma tese intitulada "Selected Topics in Molecular Polarizabilities and Intermolecular Interactions".

Figura 35

D. Buckingham (1930-)

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5. Poeira das estrelas - Na prova final de interrogatório e discussão da minha tese de doutoramento, estiveram um dos meus orientadores (Doutor Harold Kroto) e um examinador externo, o Professor David Buckingham (Figura 35, [25], [26]), australiano, nascido em 1930, Fellow of the Royal Society (FRS), hoje Professor Emérito da Universidade de Cambridge. - No início dos anos 90, após a descoberta dos fulerenos (1985) e a formação de quantidades macroscópicas de C60 sólido (W. Krätschmer, 1990), Harold Kroto veio a Portugal para uma conferência no Instituto Superior Técnico. Tinha reservado o regresso para dois ou três dias depois, tendo pernoitado uma noite em minha casa. - Lembro-me de uma manhã, na esplanada de Vilamoura junto ao que hoje é a marina, ouvir a descrição das constantes solicitações que recebia de universidades e institutos universitários em todo o mundo para proferir conferências, dar conselhos e orientações sobre novas investigações nos fulerenos e o entusiasmo que evidenciava.

Reitor

Reitor

H Kroto Administrador Figura 36 - Após a atribuição do prémio Nobel em 1996, a Universidade de Aveiro aproveitou o facto https://www.ua.pt/page/2950 de então eu ser professor catedrático desta universidade, para propor o doutoramento honoris causa de Sir Harold Kroto. A cerimónia realizou-se no dia 15 de dezembro de 1999, data do 26.º aniversário da Universidade de Aveiro (Figura 36, [27]). - A partir de 2004, Harold Kroto passou a ser Professor na Universidade Estadual da Florida, EUA (Figura 37, [28]). - A amizade que existia entre os nossos dois casais reforçava-se sempre que Harry Kroto e a esposa, que o acompanhava e secretariava sempre, vinham a Portugal.

25


5. Poeira das estrelas - A última vez que tivemos oportunidade de nos encontrar foi em 20 de Maio de 2012, quando Harry Kroto foi convidado pelo Laboratório Ibérico Internacional de Nanotecnologia em Braga para proferir um seminário subordinado ao tema "Carbon in Nano and Outer Space".

Sir Harold Kroto (1939-2016) University of Sussex (Professor Emérito),RU(1967-2004) The Florida State University, Tallahassee, EUA(2004-2016)

Figura 37

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5. Poeira das estrelas Notas 1. A Figura 38 indica o número de neutrões como função do número de protões dos núcleos atómicos [29]. Os pontos a preto indicam os nuclídeos estáveis e a reta a preto indica os nuclídeos com iguais números de protões e neutrões (casos do 12C (6 protões e 6 neutrões), O (8 protões e 8 neutrões), do

16

Ca (20 protões e 20 neutrões). À medida que aumenta o

40

número de protões, a estabilidade do nuclídeo requer um maior número de neutrões como se vê pelo gráfico. Por exemplo, 200Hg tem 80 protões e 120 neutrões.

massa média por nucleão

Número de neutrões

Número de protões

Figura 38

2. Em 2015, foi atribuído o prémio Nobel da Física a T. Kajita e a A. B. McDonald (Figura 39, [30], [31]) por terem descoberto transições entre 3 tipos de neutrinos e concluído que os neutrinos têm massa pelo menos um milhão de vezes inferior à massa do eletrão. "Evidence for Oscillation of Atmospheric Neutrinos", T. Kajita in Super-Kamiokande Collaboration, Phys. Rev. Lett., 81, 1562-1567 (1998).

27


5. Poeira das estrelas "Direct Evidence for Neutrino Flavor Transformation from Neutral-Current Interactions in the Sudbury Neutrino Observatory", A. McDonald in SNO Collaboration, Phys. Rev. Lett., 89, 011301(1-6) (2002).

T. Kajita (1959-)

A. McDonald (1943-)

Figura 39

- O mais recente limite superior para a massa do neutrino é 0,000 002 (2 milionésimas) da massa do eletrão. M. Aker et al., (KATRIN Collaboration), "Improved Upper Limit on the Neutrino Mass from a Direct Kinematic Method by KATRIN", Phys. Rev. Lett. 123, 221802 - Published 25 November 2019). 3. Dados extraídos de S. Woosley,T. Weaver,"The Great Supernova of 1987",Sci. Am., August 1989. 4. Software Mathematica® ( www.wolfram.com ). Autor: Wolfram Research Inc. Champaign, IL., USA.. 5. O telescópio espacial Hubble (Hubble Space Telescope, HST), construído em homenagem a Edwin Hubble (Figura 40, [32]) foi colocado em 1990 em órbita terrestre de aproximadamente 540 km, provido de um espelho com 2,4 m de diâmetro e detetores de radiação eletromagnética nas regiões do InfraVermelho (IV) próximo, do Visível (Vis) e UltraVioleta (UV).

28


5. Poeira das estrelas

Figura 40 - O telescópio espacial Spitzer, construído em homenagem a Lyman Spitzer Jr. (Figura 41, [33]) foi colocado em órbita heliocêntrica em 2003, munido com detetores nas regiões IV.

Figura 41

6. Em espetrometria de massa, moléculas de um composto são ionizadas originando iões com carga +1 que são acelerados por uma diferença de potencial entre duas placas de modo a ficarem com a mesma energia cinética (Figura 42).

Figura 42

29


5. Poeira das estrelas - O tempo t para percorrerem uma determinada distância (constante d) depende da massa do ião (M) e serve para a determinar: Energia cinética = M v2 / 2 = constante

d = constante

M v2 / 2 = M (d2 / t2) / 2 = constante

M = constante x t2

7. O carbono tem dois isótopos estáveis, carbono-12 (abundância 98,9%) e carbono-13 (abundância 1,1%). Contudo, o isótopo mais abundante do carbono não tem spin nuclear e, por isso, não é detetável por RMN, dizendo-se que é "silencioso" em RMN. 8. José J.C. Teixeira-Dias, "Molecular Physical Chemistry - A Computer-based Approach using Mathematica® and Gaussian, ISBN 978-3-319-41092-0 (eBook: ISBN 978-3-319-41093-7)

Endereços eletrónicos [1] https://www.aao.gov.au/news-media/media-releases/Supernova1987A-30 [2] https://chem.libretexts.org/@api/deki/files/16105/20.1.jpg?revision=1 [3] https://www.nobelprize.org/prizes/physics/1995/summary/ [4] https://www.nobelprize.org/prizes/physics/1983/summary/ [5] https://en.wikipedia.org/wiki/Abundance_of_the_chemical_elements ). Dados extraídos de D. Arnett,"Supernovae and Nucleosynthesis" (First ed., 1996). Princeton University Press. [6] https://en.wikipedia.org/wiki/Ian_Shelton [7] https://www.google.pt/maps/place/Las+Campanas+Observatory/@-29.0181509,92.0135818,3.75z/ [8] http://www-sk.icrr.u-tokyo.ac.jp/sk/sk/supernova-e.html [9]https://en.wikipedia.org/wiki/Radio_telescope#/media/File:Atmospheric_electromagnetic_ opacity.svg [10] http://www.kroto.info/spectroscopy-research-strategy/ [11] https://i.pinimg.com/originals/60/8c/77/608c77e375e83a9a7e9fcff05ce83cad.jpg [12] http://1.bp.blogspot.com/-Nc7BVS-NVIY/UoEikjIvCI/AAAAAAAAdA0/gZ8qQ7M_yt0/s1600/R.+Buckminster+Fuller+U.S.+Navy.jpg [13] http://www.kroto.info/c60-extraction/ [14] https://www.balzan.org/en/prizewinners/sumio-iijima/research-project-iijima [15] https://en.wikipedia.org/wiki/Robert_Curl

30


5. Poeira das estrelas [16] https://en.wikipedia.org/wiki/Harry_Kroto [17] https://history.aip.org/phn/11609027.html [18] http://www.kroto.info/dibs/ [19]https://s3mn.mnimgs.com/img/shared/discuss_editlive/4106723/2013_01_14_16_43_49/gr aphite-structure.gif [20] https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/9/9e/Graphen.jpg [21] https://www.nobelprize.org/prizes/physics/2010/summary/ [22] http://dererummundi.blogspot.com/2015/05/fernando-pinto-coelho-1912-1999.html [23] https://en.wikipedia.org/wiki/John_Murrell_(chemist) [24] https://en.wikipedia.org/wiki/Harry_Kroto [25] https://en.wikipedia.org/wiki/A._David_Buckingham [26] https://www.ch.cam.ac.uk/person/adb1000 [27] https://www.ua.pt/page/2950 [28] https://en.wikipedia.org/wiki/Harry_Kroto [29] https://en.wikipedia.org/wiki/Neutron_number [30] https://www.nobelprize.org/images/kajita-13649-portrait-mini-2x.jpg [31] https://www.nobelprize.org/images/mcdonald-13650-portrait-mini-2x.jpg [32] https://en.wikipedia.org/wiki/Edwin_Hubble [33] https://en.wikipedia.org/wiki/Lyman_Spitzer

31



6. Mistérios da Origem da Vida

À semelhança de todas as palestras que tive o prazer e a honra de apresentar no Rómulo Centro Ciência Viva, também esta é de índole exclusivamente científica, embora o tema e o cartaz possam eventualmente sugerir outras abordagens. O muito respeito que me merecem todas as vossas opções confessionais impede-me de considerar qualquer outra via de abordagem do tema "Mistérios da Origem da Vida" que não seja exclusivamente científica. Proponho abordar os seguintes temas: 1. Louis Pasteur 2. Átomo de carbono tetraédrico 3. Quiralidade 4. Homoquiralidade nos seres vivos 1. Louis Pasteur - Esta palestra irá ser, como as demais, uma história verídica sobre a evolução do conhecimento científico nas áreas da Química-Física, Bioquímica (subáreas da Química) e Astrobiologia. - Começa com Louis Pasteur (Figura 1, [1]) em meados do século XIX e termina no presente!

Louis Pasteur (1822-1895) Figura 1

1


6. Mistérios da Origem da Vida - Como é sabido, Pasteur entendia que as doenças que provocam infeções eram provocadas por micro-organismos numa época em que muitos julgavam que os germes das doenças surgiam espontaneamente. - Pasteur desenvolveu um método para eliminar tais micro-organismos designado por pasteurização, e foi um dos fundadores da bacteriologia. - As primeiras vacinas são também devidas a Pasteur. - Vou referir-me ao que teria sido o seu primeiro trabalho científico. - Começou pela observação ao microscópio de cristais de sais do ácido tartárico existentes na fermentação do vinho (Figura 2, [2]). Notar que a cor é artificial, pretendendo apenas evidenciar a tridimensionalidade dos cristais.

Figura 2 - Através dessa observação, Pasteur verificou que existiam três tipos de cristais e que dois deles não tinham qualquer simetria e surgiam aos pares, como se cada um fosse a imagem do outro num espelho plano. - Posteriormente, preparou soluções aquosas (o ácido tartárico e os seus sais são muito solúveis em água) dos cristais de cada uma dessas formas (designemo-las para já pela posição que têm na Figura 2, "esquerda" e "direita") e fez passar por cada uma destas soluções um feixe de radiação eletromagnética polarizado (Nota 1). - As experiências realizadas por Pasteur estão esquematicamente descritas nas Figuras 3, 4 e 5. - Em solução aquosa, não existem cristais mas moléculas dispersas no solvente (água). - Na Figura 3, a solução é constituída por moléculas dextrogiras (do latim dextru-, "direito") que rodam o plano de polarização no sentido dos ponteiros de um relógio.

2


6. Mistérios da Origem da Vida

Figura 3 - Na Figura 4, a solução tem dissolvidas moléculas levogiras (do latim levo, "esquerdo") que rodam o plano de polarização no sentido contrário ao dos ponteiros de um relógio).

Figura 4 - Por rodarem o plano de polarização da luz, estas moléculas dizem-se oticamente ativas.

Figura 5

3


6. Mistérios da Origem da Vida - Seguidamente, Pasteur realizou uma experiência (Figura 5) com pesos iguais de cristais de moléculas dextrogiras e levogiras na mesma solução (uma mistura racémica - do latim racemus = cacho de uvas). - Nesta experiência, o plano de polarização da luz não rodou em qualquer dos sentidos. - Este resultado entusiasmou bastante Pasteur ao ponto de o fazer vir para a rua exprimir esse entusiasmo! - Em 1848, publicou os resultados destas experiências em Comptes Rendus de l'Académie des Sciences (Paris), 26, 535-538, e nos Annales de Chimie et de Physique, 24, 442-459. - Naturalmente, surge a pergunta? O que faz que moléculas com os mesmos átomos e as mesmas ligações químicas, mas sem qualquer simetria rodem o plano de polarização em sentidos opostos? Pasteur designou estas moléculas por dissimétricas (do grego dís, do latim di, "duas vezes"). 2. Átomo de carbono tetraédrico - A resposta a esta pergunta só foi dada 26 anos mais tarde, simultaneamente por dois cientistas um holandês, van't Hoff, e um francês, Le Bel (Figura 6, [3], [4]).

Figura 6

van't Hoff (1852-1911)

Le Bel (1847-1930)

- De notar que, no século XIX, não se conheciam as partículas que formavam o átomo (Nota 2), nem a estrutura espacial de uma molécula. - Contudo, sabia-se que moléculas com a mesma fórmula química podiam corresponder a mais do que um composto.

4


6. Mistérios da Origem da Vida - Compostos diferentes com a mesma fórmula química são genericamente designados por isómeros (do grego isos, "igual", méros, parte) e podem distinguir-se por propriedades físicas e químicas. - Consideremos a fórmula química de um dos compostos mais simples, o metano, CH4. - Admitamos que tem uma estrutura planar (Figura 7, o átomo de carbono no centro da molécula ligado a 4 átomos de hidrogénio, Nota 3):

Figura 7 - Para esta estrutura, determinemos o número de isómeros de uma molécula de metano disubstituída (resulta da substituição de dois átomos de hidrogénio por dois átomos diferentes). Como se vê na Figura 8, são dois isómeros. - Contudo, na realidade, só é conhecido 1 composto di-substituído.

Figura 8 - Para a hipotética estrutura planar da molécula de metano, determinemos o número de isómeros de uma molécula tri-substituída. Como se vê na Figura 9, são três isómeros.

Figura 9

5


6. Mistérios da Origem da Vida - Contudo, na realidade, só são conhecidos dois compostos tri-substituídos. Portanto, a molécula de metano não pode ter uma estrutura planar! - Em 1874, van't Hoff publicou um artigo sobre as fórmulas de estrutura no espaço ("Sur les formules de structure dans l'espace", Archives Néerlandaises des Sciences Exactes et Naturelles, 9, 445-454), onde admitiu que a molécula de metano era tetraédrica com o átomo de carbono no centro do tetraedro (Figura 10).

Figura 10

3. Quiralidade - Consideremos então uma molécula de metano di-substituída e a sua imagem num espelho plano (Figura 11).

Figura 11

- A simples rotação de uma destas moléculas em torno do eixo vermelho (Figura 12),

Figura 12

6


6. Mistérios da Origem da Vida permite concluir que as duas moléculas são sobreponíveis, isto é, são a mesma molécula (Figura 13).

Figura 13 - Note-se que a "sobreposição de moléculas" é uma operação idealizada, meramente mental, uma vez que a matéria é impenetrável. - Passemos agora a uma molécula de metano tri-substituída e à sua imagem num espelho plano. - Rodemos a molécula da esquerda de modo a podermos sobrepor três átomos, neste caso, os átomos de carbono (cinzento), de hidrogénio (branco) e de flúor (azul claro) (Figura 14).

Figura 14 - Conclui-se que as duas moléculas, imagem uma da outra num espelho plano, não são sobreponíveis! O teste de sobreponibilidade, ainda que meramente idealizado, é o teste que

7


6. Mistérios da Origem da Vida permite afirmar que dois objetos são iguais, neste caso correspondem às moléculas do mesmo composto. - Portanto, as moléculas da Figura 14, como não são sobreponíveis, embora sejam a imagem uma da outra num espelho plano, deverão ter propriedades físicas e químicas diferentes. Aliás, já encontrámos uma propriedade física diferente nas duas moléculas não sobreponíveis, a rotação do plano de polarização da luz! - Assim, um átomo tetra-valente (normalmente o átomo de carbono, o átomo que mais compostos diferentes forma, muitos deles existentes nos seres vivos) ligado a quatro átomos ou grupos de átomos diferentes origina dois isómeros que estão um para o outro como um objeto e a sua imagem num espelho plano, mas não são sobreponíveis. O mesmo sucede com as nossas mãos (Figura 15, [5])!

Figura 15

- Por isso, em 1893, William Thomson, Lorde Kelvin, atribui a designação quiralidade (do grego kheir = mão) a este fenómeno de moléculas sem qualquer elemento de simetria que não se sobrepõem com as suas imagens num espelho plano. - Levanta-se agora a seguinte questão: a qual das mãos corresponde cada um dos enantiómeros (do grego enántios, "contrário" ou "oposto", tal como o objeto e a imagem num espelho plano; do grego merós, "parte")? - Atribuir um determinado enantiómero à mão esquerda ou à mão direita é uma escolha meramente convencional (Nota 4), isto é, não resulta de experiências concretas como as que Pasteur realizou.

8


6. Mistérios da Origem da Vida

grupo ácido

C

grupo amina

H

grupo R

Figura 16

aminoácido-D

aminoácido-L

- O grupo R distingue os aminoácidos. Se R=H, o aminoácido designa-se por glicina e não é quiral. Quando R≠H, o aminoácido é quiral. - A convenção que atribui as letras L (do latim levo, "esquerdo") e D (do latim dextru-, "direito") aos enantiómeros de um composto toma por referência a molécula de gliceraldeído. - Por ser a referência, a letra L é atribuída à molécula levogira [gliceraldeído-(−) ] e a letra D à molécula dextrogira [gliceraldeído-(+) ]. - Note-se que esta correspondência entre as letras L e D e os sentidos de rotação do plano de polarização da luz − e + só existe necessariamente para o gliceraldeído por ser o composto-referência. - Na Figura 17, apresentam-se as formas L e D de algumas moléculas e respetivos sabores. - A conclusão a tirar é que os recetores gustativos e olfativos no nosso organismo também são quirais (ver Figura 18)! - Muitos fármacos são quirais e possuem dois enantiómeros, um dos quais é ativo relativamente à ação médica do fármaco (Figura 19). - Por vezes, o organismo dispõe de enzimas capazes de transformar total ou parcialmente o enantiómero inativo no isómero ativo (caso do ibuprofeno).

9


6. Mistérios da Origem da Vida

limoneno-L (limão)

limoneno-D (laranja)

carvona-L (cominho)

carvona-D (hortelã)

Figura 17

recetor quiral

moléculas quirais Figura 18

10


6. Mistérios da Origem da Vida

Figura 19

ibuprofeno-D

ibuprofeno-L (anti-inflamatório)

- Há estruturas mesoscópicas (do grego mésos, "médio", entre o microscópico e o macroscópico) que são quirais. Uma das mais importantes é a hélice-α (Figura 20, [6]) porque ocorre em muitos segmentos de proteínas e enzimas. As duas formas de uma hélice dizemse enantiomorfas.

Figura 20

sentido anti-horário

sentido horário

- Matematicamente, é fácil obter uma hélice. Basta conceber dois movimentos simultâneos: o de um círculo ou de uma elipse e o de uma translação segundo o eixo da hélice. - O leitor interessado em prosseguir um pouco no tema da quiralidade pode consultar a Nota 5, páginas 272 a 277.

11


6. Mistérios da Origem da Vida 4. Homoquiralidade nos seres vivos - Estamos agora em condições de mencionar um dos maiores mistérios dos seres vivos existentes na Terra. 1) Só os aminoácidos-L constituem os blocos de construção das proteínas e das enzimas (homoquiralidade a 100% nos aminoácidos-L; Nota 6). 2) Só a ribose-D e a desoxirribose-D são os acúcares dos ácidos ARN e ADN, respetivamente (homoquiralidade a 100% nos açúcares-D dos ácidos nucleicos). 3) Só o sentido dos ponteiros de um relógio existe no enrolamento das estruturas helicoidais que se encontram nas proteínas e no ADN (homoquiralidade a 100%).

Figura 21

Hélice-α

Lisozima

- A proteína lisozima destrói componentes polissacarídeas das paredes celulares de bactérias existentes nos fluidos orgânicos, com nas lágrimas e na saliva. A Figura 21 ([7], [8]), representa esquematicamente esta proteína, onde se vêm alguns segmentos helicoidais com hélices dextromorfas, isto é, hélices-α. - O mesmo sucede com o sentido de enrolamento das cadeias de ADN (Nota 7) onde o açúcar é a desoxirribose-D (Figura 22, [9], [10]).

12


6. Mistérios da Origem da Vida - Compreender como a biologia emergiu de um mundo prebiótico presumivelmente racémico constitui um passo importante para a compreensão da origem da vida, tal como a conhecemos na Terra. - De facto, a homoquiralidade (100%) está presente em toda a vida na Terra, desde a bactéria ao Homem. - Será um fenómeno geral dos sistemas vivos, uma espécie de "assinatura da vida" no Universo? - Ou será apenas o resultado de uma situação acidental relacionada com o modo específico da formação da vida na Terra?

Ligações de hidrogénio

ADN

segmento ADN planificado

Figura 22 - Antes de tentarmos obter possíveis respostas plausíveis para estas questões, consideremos as idades do Universo, do Sistema Solar, da Terra e da Vida, tal como as conhecemos atualmente (Figura 23, Nota 8). - A idade do Universo é conhecida através da idade das estrelas mais antigas, quando o Universo já tinha cerca de um milhão de anos, e da velocidade de expansão do Universo e, a partir daqui, o tempo do processo de regressão até ao big bang.

13


6. Mistérios da Origem da Vida - A idade do Sistema Solar foi obtida utilizando decaimentos de isótopos radioativos ( Pb, meia-vida ≈ 704 M anos, e

207

U-

235

U-206Pb, meia vida ≈ 4,47 kM anos). O seguinte artigo

238

científico determina esta idade com erro de mais ou menos 50 milhões de anos. - A. Bouvier and M. Wadhwa, "The age of the Solar System redefined by the oldest Pb-Pb age of a meteoritic inclusion", Nature Geoscience (Advanced Online Publication) (2010) 22 August, DOI: 10.1038/NGEO941.

kMa

13,8

4,6

4,5

3,5

Universo

Sistema Solar

Terra

Vida

14

12

10

8

6

4

2

0

Universo S. Solar

Figura 23

Terra

Vida

- A idade da Terra foi obtida por datação com radioisótopos de meia-vida suficientemente longa (238U,

U,

235

K, etc.) e pouco difere da idade do Sistema Solar (algumas centenas de

40

milhões de anos). - Por sua vez, a única prova indiscutível até hoje da idade de micro-organismos encontrados na Terra foi obtida num sistema rochoso no noroeste da parte ocidental da Austrália (zona do Pilbara Craton, marcada aproximadamente a tracejado, através de fósseis desses microorganismos (Figura 24, [11]). - Nesta região encontram-se alguns dos mais antigos rochedos superficiais do mundo que, pela sua situação, não devem ter tido contaminação por atividades humanas e apresentam restos fossilizados de micro-organismos, identificados e taxonomicamente atribuidos com base na relação

C/12C (Figura 25, [12], Nota 9). Esta relação é diferente para rochas ou

13

fósseis de micro-organismos vivos e, entre estes, diferem consoante o respetivo grupo

14


6. Mistérios da Origem da Vida taxonómico a que esses micro-organismos pertencem (tipo, espécie, família, etc.). Consultar os seguintes artigos e ver a Nota 10. - J. W. Schopf, "Microfossils of the Early Archean Apex Chert: New Evidence of the Antiquity of Life", Science (1993) 260, 640-646. - J. W. Schopf et al., "SIMS analyses of the oldest known assemblage of microfossils document their taxon-correlated carbon isotope compositions", Proceed. National American Society (2018) 115, 53-58.

Figura 24

neutrão

Figura 25

protão

Núcleo de 12C

Núcleo de 13C

- A formação de um sistema solar como o nosso está longe de ser um processo linear. As imagens nas Figuras 26, 27, 28, 29 e 30 ([13]) apresentam as principais fases. 1) O esgotamento do combustível nuclear numa estrela, a enorme implosão provocada pela força gravitica centrípeta atuando sobre a massa da estrela, a erupção de neutrinos, a formação de uma fortíssima onda de choque que provoca a projeção de inimagináveis quantidades de elementos químicos no espaço.

15


6. Mistérios da Origem da Vida

Figura 26 2) A formação de uma nuvem de hidrogénio e hélio em forma de disco com movimento de rotação.

Figura 27 3) A ação gravítica durante milhares de milhões de anos originará um proto-sol e o início da formação de planetas.

Figura 28 4) A formação destes e respetivas luas.

Figura 29

16


6. Mistérios da Origem da Vida 5) A forma final do Sistema Solar que nós bem conhecemos.

Figura 30 - As fases 3) e 4) são caracterizadas pela incidência emorigin ínfimos Figure 1a. A basic concept of the of planetas the solarde números system. Scheme for the formation of the solar sys­ incalculáveis de meteoritos a velocidades elevadíssimas, na presença de fortes campos tem, from the collapse of a molecular cloud fragment elétricos e magnéticos.through the formation of the proto-Sun and proto­ planetary disk (1,2), followed by its breakup into in­ dividual ring clumps of solid eventually giv­ onde tais - Nestas condições, não existem átomos neutros masparticles, sim iões, isto é, os meios ing birth to planetesimals (3,4). Continuing collision­ fenómenos ocorrem são plasmas. Osofseguintes três artigos fundamentam al interactions planetesimals ultimately leads toesta hipótese the formation of planets (5). Adapted from Wikipedia. através de experiências realizadas em laboratórios científicos na Terra. - G. G. Managadze, "A new universal mechanism of organic compounds synthesis during prebiotic evolution", Planetary and Space Science (2007) 55, 134-140. - V. A. Davankov, "Inherent Homochirality of Primary Particles and Meteorite Impacts as Possible Source of Prebiotic Molecular Chirality", Russian J. Phys. Chem. A (2009) 83, 12471256. - G.G. Managadze et al., "Excess of L-alanine in amino acids synthesized in a plasma torch generated by a hypervelocity meteorite impact reproduced in the laboratory", Planetary and Space Science (2016) 131, 70-78. - Um dos meios de pesquisa de formação da Terra consiste na observação e estudo de muitos Page 4 of 54meteoritos

caídos neste planeta, especialmente os que tenham idade superior à da

PRINTED Terra. FROM the OXFORD RESEARCH ENCYCLOPEDIA, PLANETARY SCIENCE (oxfordre.com/planetarysci ford University Press USA, 2019. All Rights Reserved. Personal use only; commercial use is strictly prohibited (f Privacy Policy and Legal Notice).

- Entre eles, destaca-se o meteorito Murchison que caiu na Austrália (Figura 31, [14], [15]) em

Subscriber: Universidade de Aveiro; date: 31 August 2019

1969 e cuja entrada na atmosfera terrestre e queda na Terra pode ser observada na realidade. - A massa total do meteorito Murchison é cerca de 100 kg. Cada um dos múltiplos fragmentos caídos na Terra corresponde a uma massa de aproximadamente 7 kg. Este meteorito encontra-se atualmente no Smithsonian National Museum of Natural History, em Washington DC, EUA.

17


Murchison - Google Maps

16/08/19 17:00

6. Mistérios da Origem da Vida Murchison

Figura 31 - A contaminação com a bio-esfera terrestre foi devidamente despistada a) pela ocorrência no meteorito de aminoácidos não existentes na Terra, b) pelos significativos excessos enantioméricos e c) pelos valores encontrados para a relação de 13C/12C. Map data ©2019 Google

500 km

- Dois dos muitos artigos onde se encontram análises de amostras deste meteorito estão indicados a seguir. - K. Kvenvolden, "Evidence for Extraterrestrial Amino-acids and Hydrocarbons in the Murchison Meteorite", Nature (1970) 228, 923-926. - Z. Martins et al., "Extraterrestrial nucleobases in the Murchison Meteorite", Earth and Planetary Sci. Lett. (2008) 270, 130-13.

Figura 32

https://www.google.pt/maps/place/Murchison+VIC+3610,+Australia…86eb9d1e6d91f:0x40579a430a094c0!8m2!3d-36.616667!4d145.216667

asteróide Bennu ( 4,5 kMa)

- Outro método de estudo da formação da Terra consiste no envio de estações espaciais destinadas a atracar asteróides e a recolher amostras para serem analisadas na Terra.

18

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6. Mistérios da Origem da Vida - Por exemplo, a estação espacial OSIRIS-REx chegou a Bennu (Figura 32, [16]) em Dezembro de 2018, estando previsto o seu regresso à Terra em 2023. O nome Bennu designava, na mitologia egípcia, a deusa da criação, do Sol e da ressurreição. - Este asteróide tem cerca de 525 m do seu maior diâmetro e pesa 78 M toneladas. - Por sua vez, a estação espacial japonesa Hayabusa 2, JAXA (Japan Aerospace Exploration Agency) foi enviada em 11 de Julho de 2019 em direção ao asteróide Ryugu (Figura 33, [17]) devendo estar de regresso à Terra em Dezembro de 2020. Segundo a história da cultura japonesa, o nome Ryugu designa um palácio do Dragão existente debaixo de água. - Este asteróide tem cerca de 1 km do seu maior diâmetro e pesa 450 M toneladas.

Atracagem da estação espacial japonesa ao asteróide Ryugu Figura 33

- Por último, refiro os recentes prémios Nobel da Física (Figura 34, [18]) deste ano (2019) cujos trabalhos científicos também são úteis para a compreensão da origem da vida. - James Peebles, canadiano, atualmente professor jubilado da Universidade de Princeton, EUA, pelas suas descobertas teóricas no domínio da cosmologia física (metade do prémio). - Michel Mayor e Didier Queloz, ambos suíços, encontram-se atualmente na Universidade de Genève, Suíça (D. Queloz, também está na Universidade de Cambdrige, Reino Unido), por terem descoberto em 1995 o primeiro planeta fora do sistema solar (exoplaneta). Receberam um quarto do prémio cada um. A principal dificuldade na observação de exoplanetas reside

19


6. Mistérios da Origem da Vida no facto de estarem próximos de fontes de luz muito intensas que são as estrelas desses sistemas solares. - M. Mayor and D. Queloz, "A Jupiter-mass companion to a solar-type star", Nature (1995) 378, 355-359. - M. Mayor, D. Queloz et al., "The Harps Search for southern extra-solar planets. XI Super Earths (5 and 8 M⊕ ) in a 3-planet system", Astronomy & Astrophysics (2007) 469, L43-L47. HARPS é uma sigla que tem a ver com o método de pesquisa destes exoplanetas (High Accuracy Radial Velocity Planet Searcher).

J. Peebles

D. Queloz

M. Mayor

Figura 34 - Para terminar, relembro uma afirmação proferida pelo astronauta norte-americano Neil Armstrong (1930-2012) (Figura 35, [19]), o primeiro homem a pisar a Lua: "Mystery

creates

wonder

and

wonder

is

the

basis

of

man's

desire

to

understand"

Figura 35

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6. Mistérios da Origem da Vida Notas 1. Como é sabido, a radiação eletromagnética compreende, por ordem crescente da frequência, a radiação na região do infravermelho (IV), na região do visível (Vis) designada vulgarmente por luz, radiação ultravioleta (UV), raios-X e raios gama. - Como o nome sugere, a radiação eletromagnética de determinado comprimento de onda compreende campos elétricos cujas amplitudes oscilam no tempo e no espaço e campos magnéticos perpendiculares que oscilam em fase com os campos elétricos. - Por exemplo, a radiação eletromagnética emanada do Sol na região do visível (luz visível) apresenta campos elétricos oscilando em todas as direções num plano perpendicular à direção de propagação. - A cada um desses campos elétricos corresponde um campo magnético perpendicular em fase com o campo elétrico. - Se esta radiação atravessar um polarizador (material cristalino que absorve a radiação em todas as direções dos campos elétricos e magnéticos, exceto numa determinada direção), origina radiação eletromagnética plano-polarizada, isto é, com o campo elétrico oscilando numa determinada direção. - A Figura 36 (ver Nota 7) apresenta radiação eletromagnética plano-polarizada mostrando a variação das amplitudes do campo elétrico, a vermelho, e do campo magnético, a preto.

Figura 36 - De um modo geral, as interações dominantes da radiação eletromagnética com a matéria ocorrem entre o campo elétrico da radiação e as cargas existentes nos átomos e moléculas (eletrões, partículas negativas, e protões, partículas positivas dos núcleos). As interações com o campo magnético da radiação não são, de um modo geral, significativas. - Por isso, o plano de polarização da radiação eletromagnética é definido pelo plano de oscilação do campo elétrico (Figura 37).

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6. Mistérios da Origem da Vida

Figura 37 2. Em 1897, o físico britânico J. J. Thomson mostrou que os raios catódicos eram formados por partículas de carga negativa (recebeu o prémio Nobel da Física em 1906). - Em 1900, o francês Henri Becquerel verificou que as partículas emitidas pelo elemento rádio têm a mesma massa/carga que as partículas dos raios catódicos! Daí ter identificado umas com as outras, partículas de carga negativa designadas por eletrões. - Em 1911, o neozelandês Ernest Rutherford descobriu o núcleo atómico e, em 1917, provou que o núcleo do átomo de hidrogénio estava presente em todos os núcleos dos outros átomos (elementos químicos), o que foi entendido como tendo sido a descoberta do protão. - A descoberta do neutrão como partícula do núcleo atómico (exceto do hidrogénio prótio, que só tem um protão) foi feita por James Chadwick em 1932. Por essa descoberta foi-lhe atribuído o prémio Nobel de Física em 1935. 3. As representações moleculares apresentadas nesta palestra são do tipo esferassegmentos representando átomos e ordens das ligações, respetivamente. Foram obtidas com

GaussView

5.0.9,

interface

gráfica

do

sistema

de

programas

Gaussian

09

http://gaussian.com . As representações das moléculas de limoneno-L, limoneno-D, carvonaL, carvona-D, ibuprofeno-L e ibuprofeno-D apresentam geometrias que foram otimizadas pelo Gaussian 09 (correspondem a um mínimo da energia). - Gaussian 09, Revision A.02, M. J. Frisch, G. W. Trucks, H. B. Schlegel, G. E. Scuseria, M. A. Robb, J. R. Cheeseman, G. Scalmani, V. Barone, G. A. Petersson, H. Nakatsuji, X. Li, M. Caricato, A. Marenich, J. Bloino, B. G. Janesko, R. Gomperts, B. Mennucci, H. P. Hratchian, J. V. Ortiz, A. F. Izmaylov, J. L. Sonnenberg, D. Williams-Young, F. Ding, F. Lipparini, F. Egidi, J. Goings, B. Peng, A. Petrone, T. Henderson, D. Ranasinghe, V. G. Zakrzewski, J. Gao, N. Rega, G. Zheng, W. Liang, M. Hada, M. Ehara, K. Toyota, R. Fukuda, J. Hasegawa, M. Ishida, T. Nakajima, Y. Honda, O. Kitao, H. Nakai, T. Vreven, K. Throssell, J. A. Montgomery, Jr., J. E. Peralta, F. Ogliaro, M. Bearpark, J. J. Heyd, E. Brothers, K. N. Kudin, V. N. Staroverov, T. Keith, R. Kobayashi, J. Normand, K. Raghavachari, A. Rendell, J. C. Burant, S. S. Iyengar, J.

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6. Mistérios da Origem da Vida Tomasi, M. Cossi, J. M. Millam, M. Klene, C. Adamo, R. Cammi, J. W. Ochterski, R. L. Martin, K. Morokuma, O. Farkas, J. B. Foresman, and D. J. Fox, Gaussian, Inc., Wallingford CT, 2016. - GaussView 5.0.9 Autores: Roy D. Dennington, Todd A. Keith and John Millam, Semichem Inc., Shawnee Mission, KS, 2009. 4. Em ciência, o termo convenção tem significado diferente do que é por vezes utilizado na linguagem corrente, onde convenção está ligada a arbitrariedade, sendo possível convencionar de um modo, ou de outro modo qualquer. De facto, embora uma convenção em ciência não possua o grau de objetividade de um resultado experimental porque resulta de uma simples definição científica, deverá ser inequívoca, simples, conveniente e simplificadora, isto é, ser útil para o formalismo doutrinal da ciência que a adota. 5. José J.C. Teixeira-Dias, "Molecular Physical Chemistry - A Computer-based Approach using Mathematica® and Gaussian, 2017, Springer International Publishing, ISBN 978-3-31941092-0 (eBook, ISBN 978-3-319-41093-7) 6. Os primeiros aminoácidos foram descobertos no início do século 19. - Em 1951, Linus Pauling concluiu qual das formas enantioméricas dos aminoácidos eram preferidas pelos seres vivos, o que veio a ser confirmado por Robert Cahn em 1956. A homoquiralidade a 100% dos aminoácidos-L diz respeito às proteínas e enzimas, dos açúcares-D aos ácidos nucleicos (ARN, ADN) e do sentido dos ponteiros de um relógio às hélices-α existentes em cadeias proteicas e no ADN. - Experiências envolvendo reações químicas, interação com luz UV com determinado tipo de polarização, ou interação de misturas racémicas com superfícies quirais, permitem mostrar ser possível obter, a partir de um pequeno ou mesmo ínfimo excesso enantiomérico, largo excesso de um determinado enantiómero. - Todas estas experiências foram realizadas em condições locais especiais e diferentes umas das outras, o que não permite justificar a homoquiralidade a 100% dos aminoácidos-L, dos açúcares-D e do sentido horário, nas proteínas, enzimas e ácidos nucleicos, nos seres vivos existentes na Terra. - Por outro lado, estando nós no sistema solar, este não nos dá as distâncias para vermos através de telescópios o passado há milhares de anos.

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6. Mistérios da Origem da Vida - De notar que bastam 8,3 min para que a luz do Sol chegue à Terra (≈150 milhões de quilómetros). 7. A planificação do ADN mostra que cada cadeia de ADN corresponde à sequência fosfatoaçúcar-fosfato-açúcar-... , onde o grupo fosfato está representado a vermelho e o açúcar (desoxirribose) a azul. Por sua vez, a cada açúcar está ligada uma de quatro bases nitrogenadas representadas pelas letras A = adenina, C = citosina, G = guanina, T = timina. As bases nitrogenadas de uma cadeia estabelecem ligações de hidrogénio com as bases nitrogenadas da outra cadeia. O ARN é um ácido nucleico formado apenas por uma cadeia correspondente à sequência fosfato-açúcar-fosfato-açúcar-... e onde cada açúcar está ligada uma de 4 bases nitrogenadas representadas pelas letras A = adenina, C = citosina, G = guanina ou U = uracilo. 8. Gráficos obtidos com o software Mathematica® ( www.wolfram.com ). Autor: Wolfram Research Inc. Champaign, IL., USA. 9. Como é sabido, a posição de cada elemento químico na Tabela Periódica é determinada pelo número de protões do núcleo do átomo. Átomos cujo número tem o mesmo número de protões mas diferente número de neutrões dizem-se isótopos (do grego isos, "igual" + topos, "lugar"). - As ordens de grandeza das dimensões de um núcleo atómico e de um átomo estão aproximadamente como as dimensões de uma ervilha e a de um campo de futebol respetivamente! 10. Era Arqueana entre 4 mil e 2,5 mil milhões de anos. - Era proterozoica desde 2,5 mil milhões de anos até 575 milhões de anos. - Durante a era Arqueana a crosta da Terra arrefeceu suficientemente para permitir a formação de continentes e o início da vida. - Análises de microfósseis de organismos procariotas descobertos no noroeste da Austrália ocidental, com 3,5 mil milhões de anos, com composições isotópicas em carbono correlacionadas com a taxinomia.

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6. Mistérios da Origem da Vida - Em biologia, taxinomia é o ramo da sistemática que, considerando a semelhança e dissemelhança de características dos seres vivos, os descreve e agrupa em categorias organizadas e hierarquizadas (tipo, família, espécie, etc. ) .

Leituras Complementares 1- K. Soai et al., "Asymmetric autocatalysis and amplification of enantiomeric excess of a chiral molecule", Nature (1995) 378, 767-768. 2- A. Cordova et al., "Plausible origins of homochirality in the amino acid catalyzed neogenesis of carbohydrates", Chem. Commun. (2005) 2047-2049. 3- R. Shapiro, "A Simpler Origin for Life", Scientific American (2007) February 12. 4- J. R. Minkel, "Were Meteorites the Origin of Life on Earth?", Scientific American (2008) June 16. 5- D. G. Blackmond, "The Origin of Biological Homochirality", Cold Spring Harb Perspect Biol. (2010) 2:a002147. 6- H. Cottin et al., "Astrobiology and the Possibility of Life on Earth and Elsewhere …", Space Sci. Rev. (2015) Published online 8 September Springer Science+Business Media, DOI 10.1007/s11214-015-0196-1 .

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6. Mistérios da Origem da Vida Endereços eletrónicos [1] https://en.wikipedia.org/wiki/Louis_Pasteur#Molecular_asymmetry [2] https://en.wikipedia.org/wiki/Louis_Pasteur#Molecular_asymmetry [3] https://en.wikipedia.org/wiki/Jacobus_Henricus_van_%27t_Hoff [4] https://en.wikipedia.org/wiki/Joseph_Achille_Le_Bel [5] https://inspguilfoyle.wordpress.com/2012/06/28/left-hand-right-hand/ [6] https://biomedapps.curtin.edu.au/biochem/tutorials/prottute/helixfigures.htm [7] http://www.rsb.org.uk/images/SB/protein.png ) Diamond, R. (1974) J. Mol. Biol., 82: 371379 1LYZ.pdb [8] https://biochemians.files.wordpress.com/2014/02/al-h.jpg [9] http://www.apsubiology.org/anatomy/2010/2010_Exam_Reviews/Exam_1_Review/0221b_DNAStructure.JPG) [10] https://scienceaid.co.uk/biology/genetics/images/dnasequence.jpg [11] https://www.google.pt/maps/@-21.1895625,95.4746877,3z [12] http://www.propheticvoice.co.uk/images/creation/carbon-isotopes1.jpg [13] https://www.pmfias.com/wp-content/uploads/2019/09/formation-of-the-solar-systemnuclear-disc-model.jpeg [14] https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/4/4c/Murchison_crop.jpg [15] https://www.google.pt/maps/@-21.1895625,95.4746877,3z [16] http://www.nasa.gov/sites/default/files/thumbnails/image/bennu_rotation_20181104.gif [17] https://www.dw.com/image/45599642_303.jpg [18] https://www.nobelprize.org/prizes/physics/2019/summary/ [19] https://en.wikipedia.org/wiki/File:Neil_Armstrong_pose.jpg

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