Parêntesis (im)previsto | Um suporte urbano de tempos paralelos e encontros inesperados

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parĂŞntesis (im)previsto um suporte urbano de tempos paralelos e encontros inesperados Rebeca Pak . Abilio Guerra . Ă‚ngelo Cecco



parêntesis (im)previsto um suporte urbano de tempos paralelos e encontros inesperados Rebeca Pak . Abilio Guerra . Ângelo Cecco

São Paulo, 2017


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Rebeca Pak TIA 4110314-9 Orientação de monografia Abilio Guerra Orientação de projeto Ângelo Cecco Tiragem

/05

Impressão Papel Polen 90g/m² para miolo e Alto Alvura 120g/m² e 240g/m² para capa Tipografia Minion Pro e Vista Sans OT Texto Rebeca Pak Projeto Gráfico Rebeca Pak Capa Rebeca Pak Impressão BM3 Imagens e Impressões Encadernação Nara Diniz Trabalho Final de Graduação apresentado à Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie sob orientação do Prof. Dr. Abilio Guerra (monografia) e Prof. Ms. Ângelo Cecco (projeto) para a obtenção do título de Arquiteta e Urbanista São Paulo, 2017


Pensei num labirinto de labirintos, num sinuoso labirinto crescente que abarcasse o passado e o futuro e que envolvesse, de algum modo, os astros. Absorto nessas ilusórias imagens, esqueci meu destino de perseguido. Senti-me, por tempo indeterminado, com percepção abstrata do mundo. O vago e vivo campo, a lua, os restos da tarde, agiram sobre mim; também o declive que eliminava qualquer possibilidade de cansaço. A tarde era íntima, infinita. O caminho descia e se bifurcava, entre as já confusas pradarias. Uma música aguda e como que silábica aproximava-se e afastava-se no vaivém do vento, turvada de folhas e de distância. (BORGES, 1999, p. 46)



Ao meu avô Agnaldo . . . . . . Deixo aos vários futuros (não a todos) meu jardim de veredas que se bifurcam. (BORGES, 1999, p. 48)



(...) pontos e linhas amalgamam-se na possibilidade de estruturação de outra relação espaço-tempo naquele território. Sobre um território do deslocamento, da passagem e da ligação, anuncia-se um território da tessitura, da costura, da articulação, da permanência. (GUATELLI, 2012, p. 70) . . . . . . . . . . Assim, a chatice de percorrer cada dia a mesma estrada é poupada aos habitantes de Esmeraldina. E não é tudo: a rede das passagens não é disposta sobre uma só camada, mas segue um sobe-desce de escadas, galerias, pontes, ruas suspensas. Combinando segmentos dos diversos trajetos sobrelevados ou em superfície, cada habitante se permite, a cada dia, a escolha de um novo itinerário para andar nos mesmos lugares. (CALVINO, 2015, p. 87)


12 Introdução

DIGRESSÕES

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Hipótese: o futuro do projeto nas entre-linhas de G. Perec

26

Deambular perambular (um encontro)

50

Dúvida (processo: território x uso)

72

Largo da Memória num encontro de tempos

90

Parêntesis da Metrópole

94

Anhangabaú, recortes:


CAPÍTULOS

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(Capítulo 1) Rastro e menir, marcas evidentes do tempo

56

(Capítulo 2) O projeto indeterminado e o rastro do outro

80

(Capítulo 3) Recortes (de uma narrativa)

Desenhos técnicos

112 Bibliografia


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Introdução

Quase de imediato compreendi; o jardim de veredas que se bifurcam era o romance caótico; a frase “vários futuros (não a todos)” sugeriume a imagem da bifurcação no tempo, não no espaço. A releitura geral da obra confirmou essa teoria. Em todas as ficções, cada vez que um homem se defronta com diversas alternativas, opta por uma e elimina as outras; na do quase inextricável Ts’ui Pen, opta – simultaneamente – por todas. Cria, assim, diversos futuros, diversos tempos, que também proliferam e se bifurcam. (...) Na obra de Ts’ui Pen, todos os desfechos ocorrem; cada um é o ponto de partida de outras bifurcações. (BORGES, 1999, p.48)


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Parece que Borges esclareceu, numa agradável leitura de seu conto, e fez persistir por tantos anos, o que pode ser entendido como tempo – acompanhado da inevitável presença do espaço –, em suas descrições de lugares, percursos, caminhos. Na explicação de um tema tão presente em diversas disciplinas, aqui ela caiu como uma luva: o pensar nos tempos paralelos – mundos paralelos – se entrelaça com o contexto atual da área de intervenção – Largo da Memória, centro de São Paulo –, onde o objeto de projeto vem a ser proposto. Esse projeto, portanto, trata-se do resultado de algumas reflexões sobre o tema da passagem no tempo e no espaço. Mesmo que seja evidente que o tempo e o espaço façam parte de questões tão elementares, logo frequentes no pensamento arquitetônico, refletir sobre tais, talvez, pareça ser algo infinito, onde seus confins parecem sempre levar algo mais adiante, e que neste caso, se entrelaça com um campo filosófico e literário. O jardim das veredas que se bifurcam, de Jorge Luis Borges, apresenta-se aqui não somente como uma metáfora de tempo, mas como uma ideia de amarração e entrelaçamento de outras proposições que seguirão no decorrer deste trabalho. A passagem, a bifurcação no tempo, o paralelismo de mundos, os diferentes e concomitantes planos, mesmo estando na condição do tempo, evocam inevitavelmente o espaço. No cruzamento de um plano espacial – a existência de múltiplos caminhos, percursos, que se cruzam ou não, que servem como conexão ou criam lugares ao longo de seus delineamentos – geram encontros inesperados e dá abertura ao imprevisível e por consequência, ao experimento.


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Do desdobramento de tempo, serão tratados conceitos de menir e rastro – seguidos dos preceitos de Francesco Careri, professor de Arquitetura da Universidade Roma Tre –, marcas evidentes do tempo presentes na paisagem. Do conceito de rastro, uma segunda condição será guiada pelas interpretações de Igor Guatelli sobre Jacques Derrida; e a abordagem de Ignasi de Solà-Morales sobre o conceito de terrain vague deve desencadear, por sua vez, no pensamento de Careri – dessa vez em sua segunda obra Pasear, Detenerse – sobre o projeto indeterminado, justificando a decisão do programa do projeto. Nessa mesma tentativa, questionamentos sobre o espaço produtivo e a utilidade da arquitetura são brevemente tratados segundo Lisette Lagnado (com referência nas obras de Olafur Eliasson). Da relação tempo-espaço que traz o objeto de projeto e da ideia de digressão – do romance Memórias Póstumas de Brás Cubas, do nosso consagrado escritor Machado de Assis –, é tratada a importância dos enquadramentos do projeto, juntamente com o auxílio da fotografia pelo fotógrafo italiano, Gabriele Basilico. Acompanham este trabalho as chamadas digressões – pausas entre um capítulo e outro – que auxiliam e complementam o entendimento desse processo. São reflexões através de textos e imagens que fazem parte de todo esse processo, misturando-se em diferentes tempos e seguindo de modo indeterminado aquilo que rege o projeto desse suporte urbano.


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DigressĂŁo 01

HipĂłtese: o futuro do suporte nas entre-linhas de George Perec (Em dez anos de um tempo que corre paralelo ao nosso, deitada de barriga para baixo)


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Da experiência de George Perec, em seus três dias na Praça Saint-Sulpic, são extraídos de sua obra Tentativa de deslocamento de um local parisiense, trechos da passagem do tempo. A combinação das palavras de seu tempo se fundem com a de outro tempo, paralelo, que talvez esteja por vir. A passagem a seguir, portanto, se trata de uma distração, de um esquecimento do tempo (LAGNADO, 2012, p. 177). Neste instante, desdobramo-nos em outro tempo. Eis aqui um suporte urbano.


Verde Verde ĂŠ a cor de sua camiseta De um menino que corre pra cima e para baixo ( do obelisco do Largo da MemĂłria

Uma mulher passa por eles

)


Saia preta Camiseta de bolinhas brancas e fundo vermelho terra-cota Uma vassoura na mão esquerda, duas sacolas na mão direita Na mesma direção, um pouco mais adiante, três amigos de terno Viram a sua direita e seguem para o Terminal Bandeira ou Largo São Francisco? Num sentido oposto, um senhor sobe aos poucos a Ladeira do Piques, Rua Quirino de Andrade Na coronel Xavier de Toledo

Uma jovem desce pela mesma ladeira com dois livros na mão Saia canelada Ocre Desce e vira a sua direita, na Rua João Adolfo Por detrás de um prédio em formato “E”, de uns quarenta metros de altura, ela sobe as escadas e chega num nível quatro metros acima do nível da rua Um encontro


Uma amiga Um beijo doce e delicado Um dois três Segundos

Mudo de lugar, deslocando-me a minha esquerda Sento-me em um dos bancos ao longo da rampa Um assobio Cantarola Tempo, tempo, tempo, tempo, de Caetano Passa um vendedor ambulante – Água, suco, refrigerante, cerveja? – Uma cerveja – Uma é quatro, 3 é dez – Uma A esquerda, na última laje do suporte, o casal de meninas desce


A direita, numa cota de quatro metros mais baixa, descem umas cem pessoas pela Ladeira do Piques ( (

) no boteco

)

Aqui, Todos se extendem na rampa do suporte e um terรงo extravasa para o Largo

Na 9 de Julho

o final da passarela, mais perto, vejo os que chegam e os que vรฃo, recortados, enquadrados; ( ) boteco lotar (

)

) de uma poรงa de รกgua

Outro ambulante

(


Cheiro de manteiga Manteiga com milho Milho na manteiga Uma menina se aproxima – Oi tia, vc me compra um? – Me vê dois, por favor - peço – São 10 reais – Obrigada

Cambridge


Mais pessoas chegam Descem a ladeira Em aglomerado, permanecemos todos juntos Eu, você, ele, o outro Entre conversas e altas vozes, estamos enfim, num encontro Suportados por uma estrutura que articula essa dinâmica Que entrelaça E depois dispersa Que traz novos Ressemantiza Em processo Contínuo


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(1)


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(2)

(1) Vista aĂŠrea do suporte urbano (2) Vista do pavimento intermediĂĄrio: usos variados


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DigressĂŁo 02

Deambular, perambular (um encontro) (Meados de agosto de 2016, na cama)

(3)

(3) Croqui da Rua Formosa para o Largo da MemĂłria


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O terreno do projeto, localizado no Largo da Memória, encontra-se entre a estação do metrô Anhangabaú e o Terminal Bandeira. Atualmente, ele está fechado por muro de aproximadamente um metro e meio de altura, completado por gradis, chegando aos seus três metros. Em seu eixo longitudinal, existe uma passarela que leva o pedestre ao terminal de ônibus. De um lado da passarela, um prédio de aproximadamente 71 metros de altura, coloca-se fortemente presente, causador de uma potente e não tão desejável sombra. Do outro lado, dois prédios aproximadamente de 40 metros de altura, possuem uma testada livre de 20,5 metros entre si (Rua João Adolfo), sendo as laterais de ambos os prédios, duas empenas cegas. O terreno, portanto, possui duas saídas para a Rua Alfredo Gagliotti (devido à divisão da passarela do Terminal Bandeira); outra mais reservada, na Rua João Adolfo; e um último acesso, no Largo da Memória, área restritamente para pedestres. Procurando-se tratar do tema das passagens, do percurso, dos tempos paralelos, o trabalho de intervenção no território, começa com a descoberta do próprio terreno. Num perambular pelo Vale do Anhangabaú, com uma ideia antecipada de trabalhar nessa área – tão enigmática e com tantas discussões, concursos, projetos, teses e trabalhos finais de graduação – procurando ângulos curiosos na paisagem, zonas de conflitos (morfológicos e sociais), possibilidades de conexões e articulações preexistentes; pisou-se enfim, da Rua Alfredo Gagliotti, no que veio-a-ser o terreno


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(4)


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(5)

(4) (5) Croquis da visĂŁo do percurso de descoberta


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(3) p. 24 (4) p. 26 (5) p. 27

(6) p. 29

de projeto. No entanto, com algumas possibilidades de caminhos a seguir, a preocupação voltou-se diretamente para o atravessamento da passarela e para a curiosidade de qual seria seu destino. Nesse primeiro instante, a exploração do terreno, diga-se de passagem – como vale a expressão – foi parcial. A volta no Terminal Bandeira, levou-me ao Largo São Francisco. Entre outros pulos, de um lado e do outro do Vale, o meu cansaço finalmente havia chegado, acompanhado, porém de uma curiosidade anterior (na bifurcação entre seguir a R. Alfredo Gagliotti e subir a passarela), o que me levaria a passar pela Rua João Adolfo. Retornando por de baixo do Viaduto do Chá – sentido estação de metrô Anhangabaú –, da Rua Formosa, passou-se para a calçada do Largo da Memória. Ao girar o corpo para a esquerda, deparei-me com a simples pergunta (mas em estado de perplexidade) de alguém quem havia se perdido num lugar que pensava já conhecer: onde estou? Depois de percorrer três horas, finalmente um encontro, eu encontro: na forte perspectiva montada por duas linhas de edifícios e uma passarela, da qual mal se via o seu fim, deparei-me com um vazio. Meus olhos brilharam e ali, estava um segundo encontro com aquele espaço (dessa vez consciente) que viria a ser a escolha do terreno de projeto: sem muros e gradis, aquilo poderia compor uma infinidade de cruzamentos, fluxos, conexões, encontros.


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(6)

(6) Trajeto-deriva: descoberta do terreno


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CapĂ­tulo 01

Rastro e menir, marcas evidentes do tempo


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Se o tempo e o espaço são condições (?) inseparáveis do pensamento arquitetônico, na ideia dos tempos paralelos – como dito anteriormente – o tempo talvez seja descrito pela presença do espaço e aquilo que nele acontece. Isso, quando caminhamos, ou simplesmente quando vemos que o ponteiro do relógio andou e a luz do sol que entra no quarto já não é mais a mesma de 15 minutos, meia hora ou duas horas atrás. Aqui, temos uma situação em que estamos em movimento e outra, estáticos – em função do tempo e do espaço –, mas nesse instante, atenhamo-nos ao primeiro. Visto que o exercício de projeto nasce de um contexto – com a possibilidade de múltiplos caminhos que se entrelaçam – que se extende em outros dois pontos de mobilidade urbana da cidade (o terminal Bandeira e a estação de metrô Anhangabaú), é natural que esta discussão seja acompanhada pelo discurso do caminhar e seus desdobramentos: o trajeto, o percurso, o fluxo de pessoas. Já em 1996, Ignasi de Solà-Morales antecipara no artigo Presentes y Futuros: La Arquitectura en las Ciudades, que o movimento de fluxo passou a ser tema central na explicação da arquitetura e da cidade contemporânea, do qual fazem parte uma composição de nós, interconexões desses fluxos – sejam eles físicos como reais, materiais e imateriais, informais ou simbólicos – e por isso, esse conceito torna-se indispensável neste discurso. (SOLÀ-MORALES, 1994, p.14-15). O fato dos fluxos se multiplicarem em diferentes partes da cidade, é a evidência de que o meio urbano é formado através de malhas que reúnem essas interconexões (SOLÀ-MORALES, 1994, p. 15).


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Segundo o autor, As interconexões e cruzamentos são como os lugares em que se produzem acontecimentos da máxima densidade estética. (SOLÀ-MORALES, 1994, p. 15)

(7) p. 33 (8-14) p. 34-35

Em continuidade, os fluxos são como redes de distribuição, receptoras de intercâmbios (SOLÀ-MORALES, 1994, p. 15). Visto o que apresenta o autor, o projeto do suporte urbano propõe – com a possibilidade dos múltiplos percursos –, percorrer determinado espaço através dos diferentes caminhos que se cruzam e entrelaçam, e consequentemente, acaba gerando possibilidades de encontros. De tal forma, hipoteticamente, o ponto de convergência dos fluxos nesse espaço é caracterizado por uma abertura circular com uma rampa helicoidal que direciona o pedestre para três diferentes planos: 1. o mais baixo que faz a conexão direta entre a estação de metrô Anhangabaú e a rua Alfredo Gagliotti; 2. o plano intermediário que acolhe a passarela que conecta o Largo com o Terminal Bandeira, além do acesso para a rua João Adolfo; 3. e o plano


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Terminal Bandeira

Rua João Adolfo/ Largo da Memória/ Rua Coronel Xavier de Toledo

Rua Alfredo Gagliotti

Largo da Memória/ Rua Coronel Xavier de Toledo Remoção da torre de ventilação do metrô = liberação visual do percurso paralelo ao projeto

Mezanino estação de metrô Anhangabaú

(7)


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X av ier d

ier d e To ledo

e To ledo

bifurcação bifurcação / rastro / rastro / acessos / acessos / / concomitância concomitância de percursos, de percursos, usos usos

el

da go Lar mória Me

C R.

or

R. João Adolfo

o

R. Alfredo Gagliotti

Av .9

Av .9

de J

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o

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R. João Adolfo

C R.

baú trô Me anga h An

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el

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R. Alfredo Gagliotti

al min Ter deira n Ba

al min Ter deira n Ba

(9)

e To ledo

(8)

de múltiplos caminhos

el

baú trô Me anga h An

on

(9) Diagrama de hipótese: fluxos, a possibilida-

X av ier d

(8) Diagrama de análise: contexto atual C R.

or

Memória

o

ulh

e espaço de respiro em relação ao Largo da

de J

(11) Diagramas de partido: Edifícios do entorno

R. Alfredo Gagliotti

Av .9

resultando no encontro, o conceito de menir

R. João Adolfo

(10) Diagrama de hipótese: ponto em comum,

(12) Diagramas de partido: Vencendo níveis através das rampas e provocando bifurcações (13) Diagramas de partido: Concretizando a

al min Ter deira n Ba

ideia de recinto e as sociabilidades (14) Diagramas de partido: Reforço do eixo principal e recortes visuais, proteção

(10)


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respiro para o largo

(11)

(12)

(13)

(14)


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mais alto que também faz acesso à rua João Adolfo através de uma escada e se caracteriza por ser uma área de permanência mais isolada do fluxo direto de pedestres. A partir da sobreposição das lajes, deparamo-nos não somente com a sobreposição de malhas urbanas, como também com a ideia de tempos paralelos, quando ao percorrer o espaço deparamos-nos com bifurcações, – além de que, através dos planos, é possível também pensar na concomitância de usos em níveis. Em outras palavras, o fato de se encontrar em uma situação de escolha entre um caminho e outro, traz para o projeto a reflexão sobre a metáfora de tempo tratada por Borges e consequentemente, poder pensar que variados usos estejam acontecendo ao mesmo tempo, a partir de um único ponto de partida (que se desdobra) e reflete tal condição de tempo. O jardim de veredas que se bifurcam é uma imagem incompleta, mas não falsa, do universo tal como o concebia Ts’ui Pen. Diferentemente de Newton e de Schopenhauer, seu antepassado não acreditava num tempo uniforme, absoluto. Acreditava em infinitas séries de tempos, numa rede crescente e vertiginosa de tempos divergentes, convergentes e paralelos. Essa trama de tempos que se aproximam, se bifurcam, se cortam ou que secularmente se ignoram, abrange todas as possibilidades. Não existimos na maioria desses tempos; em alguns existe o senhor e não eu; em outros, eu, não o senhor; em outros, os dois. Neste, em que me deparo com favorável acaso, o senhor chegou à minha moradia; em outro, o senhor, ao atravessar o jardim, encontrou-me morto; em outro, digo estas mesmas palavras, mas sou um erro, um fantasma. (BORGES, 1941, p. 50) Partimos de um entendimento de percorrer o espaço, a partir de um movimento macro, o de fluxos. Porém, analisando esse movimento de maneira mais próxima e de certa forma, individual, nos aproximamos novamente da


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(15) p. 38

ideia discutida anteriormente – de que múltiplos trajetos podem convergir num ponto único, de encontro – procurando explorar, o que, de fato, seriam tais encontros. Segundo Francesco Careri, em seu livro Walkscapes: o caminhar como prática estética, explica, através de John Brinckerhoff, que o atravessar, antes de exercer uma ação conectora, é um ato que define um espaço, que promove a construção de um lugar, devido à formação de encontros. Como defende Careri tantas vezes, a relação entre o caminhar e a arquitetura é de que, o primeiro serve como “instrumento cognitivo e projetual (...) do qual se inventar novas modalidades de intervenção nos espaços públicos metropolitanos, para pesquisá-los, para torná-los visíveis” (CARERI, 2012, p. 32); e que a arquitetura “teria nascido como necessidade de um espaço do estar em contraposição ao nomadismo, entendido como espaço do ir” (CARERI, 2012, p. 40). Assim, o percurso, através do caminhar, pode implicar em colocar espaços em evidência.

1

Em entrevista (janeiro

de 2017, em Roma).

Sobre evidenciar espaços, existem outros dois conceitos que fizeram parte do desenvolvimento desse projeto: o menir e o rastro. Ambos, são marcas evidentes do tempo, modificadores do espaço. Segundo Careri1, o primeiro a surgir foi o espaço e depois o tempo. Essa afirmação do autor se dá pelo fato de que o tempo passa a existir no momento em que um objeto no espaço passa a dar início a essa contagem. No caso do menir, ele se trata da primeira intervenção do homem na transformação física da paisagem e portanto, é a partir do momento em que ele é inserido, é que o tempo passa a ser contado (CARERI, 2012, p.52). Dadas tais condições, o conceito de menir é aplicado no projeto, segundo a hipótese de Careri, de que tal elemento fosse uma espécie de guia na paisagem, um condutor para o viajante (CARERI, 2012, p.54).


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(15) Diagrama percurso formador de lugares (16) Largo da Memória (vista da Rua Formosa), meados do século XIX (17) Largo da Memória (vista da Ladeira do Piques), 1860 (18) Largo da Memória (vista da Ladeira do Piques), década de 1950


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Ao longo da viagem, a presença dos menires chamava a atenção do viajante, comunicando-lhe a presença de fatos singulares e dando-lhe informações relativas aos outros terrenos à volta, informações úteis para a continuação da viagem, como mudanças de direção, pontos de passagem, bifurcações, passos e perigos. (CARERI, 2012, p. 54) Se em meio a tantas possibilidades de percursos e a sua marcação no tempo, o menir servia como um guia na paisagem, um ponto de referimento, de encontro, onde caminhos se cruzavam, podemos dizer que seu conceito não é só um condutor no desenho de projeto, como também pode se definir enquanto suporte, condizendo com o contexto simbólico e espacial, no qual o projeto se insere: o Largo da Memória. Esse discreto espaço na cidade de São Paulo comporta um chafariz e um obelisco. O último talvez seja o monumento mais antigo (1814) da cidade de São Paulo. Ali, segundo Maria Cristina Castilho Costa, era caminho de “tropas vindas principalmente da região oeste do Estado, bem como aquelas que partiam tomando a direção do vale do Rio Tietê” (COSTA, 1993, p. 9). O chafariz, por sua vez, abastecido pelas água do Ribeirão do Saracura, afluente do Anhangabaú, supria as necessidades tanto da população local, dos viajantes e de suas mulas, o que tornava o Largo da Memória, um lugar de constante movimento (COSTA, 1993, p.14). Na descrição de Costa, fica clara a relação do Largo da Memória e o seu natural exercício enquanto menir por determinado período histórico. Pelo contexto espacial (de múltiplos caminhos que podem se cruzar) e temporal (dada a história do Largo da Memória e o conceito de menir) de onde o projeto está inserido, pareceu interessante estender tais condições para o exercício projetual. Dessa forma, o projeto se insere na paisagem, podendo ser a extensão do Largo da Memória, retomando o conceito de menir talvez abandonado e esquecido nos últimos tempos. Entre fluxos e permanências, o espaço inscrito – completamente aberto, sem uma demarcação do que seja dentro ou fora –, com apenas quatro


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(16) p. 38 (17) p. 39 (18) p. 39

(19) p. 42-43

planos verticais, procura ser um ponto de encontro em meio a tantos caminhos que se cruzam e dissipador de outras direções, de “possibilidades de futuro” (CARERI, 2012, p.27) para onde o homem possa querer seguir. No desenho, é o conjunto dos quatro planos verticais que compõe a estrutura primordial do suporte. Desses quatro planos, dois são curvos e dois são ortogonais. Sobre os primeiros, tratam-se de planos concêntricos de uma mesma circunferência, que delimitam sutilmente a formação de um recinto, ao abranger o núcleo do suport urbano. Nesse ponto do projeto, é onde os encontros aconteceriam de forma mais intensa, pela ocorrência de grande parte dos cruzamento de rotas, como também, lugar de acomodação para o indivíduo que queira permanecer, independentemente de qual seja o seu tempo. Ao envolver o núcleo do projeto – onde estão as rampas helicoidais – o espaço criado ganha corpo, torna-se um guia na paisagem. Já os planos ortogonais, além de estruturarem os planos curvos, foram implantados de modo a direcionar e assim reforçam o eixo de maior fluxo do projeto. Além das formas – falamos brevemente de questões estruturais e de materialidade –, os planos verticais recebem destaque em seu conjunto quanto ao direcionamento das réguas das fôrmas de concreto. Os planos ortogonais tem sua demarcação na horizontal, enquanto que os planos curvos, posuem o direcionamento da régua na vertical. O resultado do encontro dos dois diferentes planos resulta numa discreta e delicada solução quanto ao desafio do plano curvo. De volta às questões de partido, nesse forte eixo articulador, vem simbolizado o rastro, conceito que apresenta duas condições: a primeira, o rastro enquanto pegada, marcação no território; e a segunda, o rastro enquanto devir. Para esse capítulo, atenhamo-nos somente a sua primeira condição. O rastro, enquanto segunda marca evidente do tempo no


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(19) SaĂ­da para Rua JoĂŁo Adolfo, com destaque para o conjunto do plano curvo com o plano ortogonal


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Destaque para a transformação do traçado do Largo da Memória: (20) Mapa do Centro de São Paulo, em 1905 (21) Ibidem, em 1930 (22) Mapa do Centro de São Paulo, em 1997


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(23) Rastros: marcações de diferentes tempos em evidência na areia (Wijk aan Zee, Holanda, 2017)


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espaço, é identificado no histórico do Largo da Memória. Segundo Careri, O caminhar produz lugares (...) é ato perceptivo e ato criativo, que ao mesmo tempo é leitura e escrita do território. (CARERI, 2012, P. 51)

(20) p. 44 (21) p. 44 (22) p. 45

(23) p. 46

A afirmação do autor se exemplifica com o próprio processo de transformação do largo: a área enquanto infraestrutura para viajantes, era um ponto de referência, cujo desenho se formou naturalmente, através dos caminhos distintos que modelaram um espaço triangular. Esses, posteriormente, designados como Rua Coronel Xavier de Toledo (anteriormente chamada de Rua do Paredão), Ladeira do Piques (Quirindo de Andrade) e a Ladeira da Memória (incorporado ao largo e atualmente, rua exclusiva para pedestres). (COSTA, 1993, p. 9) Devido a sua primeira condição, o rastro toma forma no projeto na ligação entre a rua Alfredo Gagliotti e a bifurcação para o Largo da Memória junto da conexão direta para a estação de metrô Anhangabaú, através de duas rampas posicionadas em direções opostas. O plano mais baixo, onde se encontram as rampas, levam o transeunte ao centro do projeto (uma área de permanência com a forte presença de uma rampa helicoidal que leva aos outros planos do suporte, o que transforma o rastro em “potente linha urbana” (GUATELLI, 2012, p. 74).


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Digressão 03

Dúvida (processo: território x uso) (27 de novembro de 2016, sentada convencionalmente em posição de trabalho)

Por que, na maioria das vezes, a arquitetura é validada por meio de sua utilidade? (GUATELLI, 2012, p. 37)


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2

Em palestra no espaço

Projeto Marieta, em agosto de 2016.

(24) p. 51

Depois de muitos questionamentos sobre o programa do projeto, considerando o seu entorno e o tema a ser abordado, pensou-se na ideia de desenvolver uma extensão do MAM (atualmente, no Parque do Ibirapuera), com base nos preceitos de um projeto de Álvaro Puntoni, O museu difuso e urbano2. A ideia de trazer essa extensão – de demanda real, para espaços educativos, workshops e até mesmo de alojamento para artistas – seria retomada, na localização inicial do MAM, na Rua 7 de Abril, que por coincidência, poderia ter sua extensão, ao cruzar a Avenida Coronel Xavier de Toledo, no próprio Largo da Memória. Pensando-se na multiplicidade de percursos que a zona das galerias do centro dão aos pedestres, pensou-se em levar a ideia adiante. No entanto, com o acompanhamento de leituras paralelas e reflexões, o percurso do exercício projetual tomo outro rumo. Perceber a ideia de se manter uma transparência, no eixo longitudinal do terreno - visto que a visibilidade de um lado para o outro era essencial – foi um primeiro parecer de que grandes volumes que ocupassem aquele recorte no terreno, poderiam não funcionar. Além disso, refletir sobre a possibilidade de que a localização do terreno em si, talvez pudesse bastar e determinar um programa para o território, foi outra


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forte questão. O fato de estar entre um terminal de ônibus de aproximadamente 65 mil passageiros/dia3 e uma estação de metrô que leva mais de 79 mil passageiros/dia4 não bastaria para tornar eficiente a conexão de um ponto a outro? Não, vista a existência de uma segunda passarela (coberta e de estrutura em treliças) na saída da estação do metrô, já faz essa função, de maneira mais rápida e objetiva.

(25) p. 52 (26) p. 52 (27) p. 53

3

Segundo site da Planser-

vi: http://www.planservi. com.br/Portfolio/Lists/ Portfolio/DispCustom. aspx?ID=118 4

Segundo site do metrô:

http://www.metro.sp.gov. br/metro/numeros-pesquisa/demanda.aspx 5

Questionamento discu-

tido nos capítulos 2 e 3 deste trabalho.

No entanto, na metade desse processo, observou-se que uma conexão direta pudesse ser feita entre o Terminal Bandeira e o mezanino da estação Anhangabaú. Com uma coleta de material do metrô, foi confirmada a sua viabilidade. Além disso, junto a um questionamento sobre o programa – em relação à necessidade de uma função – notou-se que em tais condições, o lugar estaria fadado a seguir uma relação espaço-tempo ao invés de espaço-uso5. A pergunta inicial de Igor Guatelli resume numa linha curta o processo de constante reflexão ao longo desse último ano, algo que se procurou entender minimamente para conseguir aplicar neste exercício projetual, aquilo que neste trabalho vem a ser acreditado enquanto espaços generosos, espaços de manifestação, espaços lúdicos, espaços de encontros, de encontros com o outro, um espaço outro e o ser outro.


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(24) Diagrama de estudo do territĂłrio, mĂşltiplos caminhos


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(25) Planta da estação de metrô Anhangabaú, nível Rua Formosa (26) Planta da estação de metrô Anhangabaú, nível mezanino da estação (27) Implantação da estação de metrô Anhangabaú, destaque para o eixo da linha férrea

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CapĂ­tulo 02

O projeto indeterminado e o rastro do outro


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6

Do curso Linhas do

devir ministradas por Igor Guatelli, em outubro de 2016, no TUSP.

No capítulo anterior, vimos que o rastro pode apresentar duas condições. A primeira, como já visto, marca na paisagem. A segunda condição, por sua vez, faz referência ao uso e às apropriações – através do conceito de devir, o rastro do outro –, tendo sido um dos aspectos de maior reflexão e desafio ao longo do desenvolvimento do projeto. O que pode ser um espaço, quando o outro ao se apresentar, pode subverter o significado daquilo?6 O rastro, dessa maneira, passa a ser uma promessa de possibilidades, uma esperança, um vir-a-ser. (GUATELLI, 2016). De acordo com Guatelli, o rastro é (...) nem presença, nem ausência, mas articulação e fluxo de acontecimento não previstos no tempo e espaço (...) é articulação, articulação como tensionamento e interferência, junção e ruptura ao mesmo tempo, reforço do em-si-mesmo e emergência do outrem. Em tempos de segregações urbanas e objetos autorreferenciais, a articulação é a diferença urbana, é a capacidade do entre ser algo além do ser-para-si-mesmo. (GUATELLI, 2012, p.77 ) Do ponto de vista do autor, podemos entender, primeiramente, o rastro enquanto conector – articulador em suas palavras –, uma marca evidente de que alguém partiu de um ponto e foi a


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outro, destacando um trajeto. De tal forma, um projeto arquitetônico tem a capacidade de enfatizar esse rastro, potencializá-lo, quando existe uma articulação entre projeto e o rastro existente. Nesse caso, o rastro do qual estamos falando é o próprio contexto do Largo da Memória e o terreno de intervenção, enquanto extensão territorial. O projeto do suporte urbano ao fazer amarrações com o contexto atual, possibilita o acontecimento de novas articulações e por consequência, anuncia o evento – entendido enquanto acontecimentos inesperados (Derrida apud Guatelli, 2012, p. 105). O projeto no rastro ganha potência estruturadora e dissipadora de um conjunto de articulações, agindo enquanto polo catalisador (GUATELLI, 2012, p. 73-74). Sim a construção do problema aqui passará sempre pela questão do espaço e seus devires, urbanos e arquitetônicos. O espaço, o lugar do hábito, de imprevistas habitabilidades momentâneas, será nossa questão, pois, como o foi para os pós-estruturalistas, é o lugar do evento, do acontecimento, da indefinição e do imprevisível, ‘daquilo que chega sem ser anunciado’, como diz o filósofo francês Jacques Derrida. (GUATELLI, 2012, p. 15) Ainda segundo o Guatelli, este conceito de rastro carrega o entendimento de ser “fundamentalmente a ideia de um ser-com, um ser que se fortalece ao se constituir com presenças além dele próprio” (GUATELLI, 2012, p. 68), o que acaba por consistir e poder alterar a dinâmica de um território. Assim, o rastro enquanto catalisador de eventos é uma constante e infinita marca no tempo, sempre à espera de contínuas ressignificações que ocorrem através de seu uso. Segundo Guatelli, não existe arquitetura sem um programa, mas o que se questiona em sua obra Arquitetura dos entre-lugares – através de exemplos dados – é que o programa consista em como se dão as apropriações. O autor, com base nos textos de Barthes e Derrida, afirma que o programa na arquitetura “poderia estar sempre em processo, nunca completamente terminado ou constituído; um programa que, ao menos em parte, pudesse ser constantemente solicitado, questionado, desfeito


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e refeito pelos usuários” (GUATELLI, 2012, p. 115) e dessa forma ele se constituiria pela “programação de situações geradoras de acontecimentos” (GUATELLI, 2012, p. 115). A partir desse ponto, o rastro – enquanto o devir, vir-a-ser – não é regido por uma falta de definição em seu programa (porque a previsibilidade de um programa definido existe), mas pela abertura ao advento de apropriações inesperadas e o tempo em que cada uma delas pode durar. Em outras palavras, não se trata de uma falta de preestabelecimentos quanto a um uso e tempo específicos para se justificar o programa, mas o que o define no projeto é o seu caráter de estar em constante processo: uma situação, um evento ou uma troca que se inicia, pode vir a terminar em outro momento, recebendo um novo significado, de algo que ainda esteja por vir. O acontecimento de eventos inesperados é o que caracteriza um projeto indeterminado (CARERI, 2014, Blog Arti Civiche) ao que diz respeito a um uso do espaço sem limitações, com a coexistência de possibilidades múltiplas, regido pelo tempo. Portanto, aquilo que o define enquanto indeterminado, não se trata somente de algo incerto quanto a sua definição, mas incerto quanto ao fato de estar num processo de ressemantização constante. Dadas tais condições, assim vem definido o uso desse suporte urbano. Ainda, o conceito de projeto indeterminado, segundo Careri, se define enquanto: (...) completamente contextual, relacional e imprevisível (...) se pode permitir de corrigir a rota inesperadamente, de virar e também em decidir fazer uma pausa. Não se sabe nada sobre os seus resultados e é por natureza, incompleto. (CARERI, 2014, Blog Arti Civiche) O conceito de projeto indeterminado parece esclarecer, de certa forma, o que é o rastro na ideia do devir: a imprevisibilidade de seus eventos que determina a forma de suas apropriações e ao mesmo tempo, a sua total abertura, lhe dá o caráter de indeterminação e de indefinição quanto a ausência de programas já sabidos. O rastro, dessa forma, vem a ser forta-


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(28) Imagem do projeto: vista do jardim para o suporte urbano (29) Imagem do projeto: vista da transição entre pavimento inferior e intermediårio


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lecido gerando outras possibilidades (GUATELLI, 2012, p. 73) “A partir do ser-com, de um ser-para-além-si-próprio, a possibilidade de ser-em-simesmo um outro; nem apenas infraestrutura nem apenas superestrutura, mas um e outro ao mesmo tempo” (GUATELLI, 2012, p. 73). Tal definição perante o entendimento desse projeto, nos faz retornar a linha-base que sustenta o conceito sobre a metáfora do tempo de Borges, trazendo à tona os tempos paralelos. O rastro, dessa forma, pode coexistir em diversos tempos: coexistir porque a suposição de algo que estar por vir já o faz existir – num ponto de desdobramento de um tempo que corre paralelamente –, o que faz de si próprio, num tempo outro, uma promessa. Junto à ideia de indeterminação do programa, o conceito de terrain vague – segundo Solà-Morales – é complementar ao de rastro-devir e também base conceitual do projeto. Segundo o autor – assim como o rastro – o conceito de terrain vague apresenta uma dupla condição. A primeira, o sentido de vago (terreno vago) sugere o vazio e improdutivo. A segunda condição – aquela que nos interessa – é indicada por indefinido, sem limites, aberto a receber o novo, sem um horizonte de futuro (SOLÀ-MORALES, 1994, p. 21-23). Aqui, novamente, reforçamos a ideia da indefinição de um programa, mas uma indefinição causada pelas apropriações inesperadas, os eventos; a abertura para aquilo que está por vir, ao que pode vir-a-ser. Além disso, ao que se refere ao tempo, o terrain vague, atrela a presença e ausência de todos os tempos, onde podem ser questionados passado, presente e futuro: o que já foi aquele lugar, quem passou por ele, as evidências que nele permaneceram. O presente daquilo que é o terreno no momento atual, a continuação de seu passado e seu futuro, o mistério guiado pela incerteza, daquilo que ele pode vir-a-ser. Ainda, de acordo com Solà-Morales, o terrain vague se apresenta “como único reduto incontaminado para exercer a liberdade individual e a de pequenos grupos” (Solà-Morales, 1994, p. 23). Essa necessidade fica clara em exemplos próximos do cotidiano atual da cidade de São Paulo. O MASP, de Lina Bo Bardi, apesar de carregar uma instituição museal e


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7

Vide Homo Ludens,

Johan Huizinga.

ser por si só autorreferencial, evidencia um vazio (o vão). Esse espaço em evidência, nos dias atuais, é não somente símbolo de uma das principais avenidas da cidade, como também é palco de manifestações, principalmente, de cunho sócio-político. A própria avenida Paulista, aos domingos e feriados, é um exemplo da necessidade de exercer, cada um – seja enquanto indivíduo, seja enquanto grupo – a sua liberdade, manifestar-se, manifestar também uma face homo ludens7. Outro exemplo, é a marquise do Parque do Ibirapuera, onde percebemos o espaço do jogo, essencialmente. Logo, o projeto do suporte urbano em questão, pode se tratar também, de dar evidência a um dos resquícios dos vazios da área central da cidade, necessário enquanto espaço das manifestações de cunho sócio-político, cultural ou lúdico. Esse espaço indefinido quanto ao tipo de apropriação – quanto ao seu uso –, permite que o cunho experimental faça dessa reflexão (GUATELLI, 2012, p. 18). Uma vez que o vir-a-ser é algo inesperado e incerto quanto ao que será de fato, a abertura para um caráter experimental parece cabível, permitindo, por consequência, que as apropriações sejam heterogêneas, múltiplas e não hierárquicas, e este espaço seja rico em contradições e ambivalências (GUATELLI, 2012, p. 27), de tal forma que, o conflito possa ser algo desejável.

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Do curso Linhas do devir

ministradas por Igor Guatelli, em outubro de 2016, no TUSP.

É a partir desse ponto, que caracterizamos, portanto, um espaço aberto à alteridade, onde a presença do Outro é indispensável. A liberdade por sua indefinição permite que o espaço possa ser sempre do outro, um espaço outro (GUATELLI, 2012, p. 26). “Uma arquitetura (...) sempre aberta ao ser outro, ao vir a ser imprevisível” (GUATELLI, 2012, p. 133) que o indivíduo – enquanto um já outro – possa se ver no outro, uma possibilidade daquilo que ele possa vir a ser, e em diferentes tempos, ser um e outro, ao mesmo tempo (GUATELLI, 2016)8. A imprevisibilidade guiada pela indefinição de um programa,


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(30) Imagem do projeto: vista do pavimento intermediรกrio


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Vide Outros Espaços,

Michael Foucault.

de como se dão as apropriações, faz com que o espaço do projeto, sem controles, sem limites preestabelecidos, seja um espaço da liberdade, do manifesto, espaços outros9. Em uma época de desejáveis impermeabilidades urbanas, isolamentos, fechamentos, segregações, intensa muralidade, aprendemos, com Derrida, como habitar o outro. (GUATELLI, 2012, p. 134) Outra relevante questão em relação às apropriações para o desenvolvimento do projeto, foi a questão da pausa, da permanência. A partir desse ponto, vem a ser abordada, interferindo de maneira mais direta no desenho do projeto – decisão esclarecida anteriormente no conjunto dos quatro planos verticais. Careri traz, novamente, uma nova ideia que nos interessa, a de inciampo, o tropeço. Segundo o autor, As zonas de tropeço são aquelas no qual se chega o imprevisto e serve abandonar a rota pré-estabelecida, mas também aquelas no qual é maravilhoso colocar uma rede. São lugares onde decidir fazer uma pausa e perder tempo. (CARERI, 2016, p. 127) A importância da pausa e da questão da permanência às apropriações e ao uso do espaço, complementa-se com uma breve análise de Lisete Lagnado num artigo sobre o trabalho de Olafur Eliasson realizado no Brasil, em 2012 – O que torna um espaço produtivo? – , colocando em dúvida a produtividade, premissa fortemente imposta em nossa sociedade. Mesmo essa questão não tendo sido profundamente estudada aqui, vale uma rápida ressalva a esse pensamento para concluirmos o discurso das apropriações no espaço, enquanto o que define o programa.


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A pergunta sobre o espaço produtivo procurava salientar uma qualidade, arrancar-lhe uma mais valia. Esse valor é implícito é o da vivência coletiva – uma interrogação que se afasta da esfera das banalidades e coloca o dedo na ferida mais inflamada dos tempos atuais: a integridade do corpo social. (LAGNADO, 2012, p. 169)

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Mote de suas errâncias.

O artigo de Lagnado, ainda faz um referimento ao tempo, seguindo um raciocínio muito próximo ao mote de Careri “quem perde tempo, ganha espaço”10. Lembro-me de mencionar uma distração necessária para que a criação pudesse se dar. Mas será que há distração sem espera? Sair do tempo da contemplação é sair do tempo da atenção. É abdicar da duração. E eu preciso dela, duração, porque não há distração que não seja esquecimento do tempo. (LAGNADO, 2012, p. 177) O esquecimento do tempo, segundo Lagnado, pode nos remeter ao tempo que passa sem ser percebido e enquanto isso ocorre, a contemplação é o grande ganho. Na verdade é nesse momento em que se dá a chance para que ocorram os acontecimentos.


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Sem a possibilidade de entender o instante (do latim instans, “iminente, próximo, vizinho, ameaçador, urgente”), não haverá inscrição corporal. E sem inscrição corporal, que tipo de registro (recepção) pensar (imaginar)? Entretanto, sem espera não há acontecimento. Apenas catástrofes. A questão da espera produtiva tem seus dias contados. (LAGNADO, 2012, p. 179)

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Vide conceito de

homem lento, de Milton Santos.

A autora conclui seu pensamento de modo a afirmar que existe uma necessidade da inscrição do corpo – podendo ser entendida também pela participação do sujeito – no espaço, o que nos faz associar à necessidade de manifestação do indivíduo (seja de qualquer prática). Por isso, o tempo de contemplação e de apropriação do espaço, não se trata de um tempo perdido, mas a apreensão de um espaço e de seus outros que o ressignificam através do olhar do homem lento11.


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(31) Imagem do projeto: vista de acesso ao suporte do pedestre que vem do Largo da Memรณria


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(32) Imagem do projeto: vista da Rua Alfredo Gagliotti para o suporte urbano


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Digress찾o 04

Largo da Mem처ria num encontro de tempos (3 de outubro de 2016, sentada de modo n찾o convencional, em 창nsia)


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Esse pequeno texto procura retratar a descoberta do Largo da Memória para mim, mesclando-se com o que ele já foi, o que ele aparenta ser, as minhas percepções e hipóteses do que ele de fato é, e o que ele poderia ser. Dessa maneira, essa narrativa é nada mais, nada menos que uma compilação de algumas reflexões, pesquisas, leituras e suposições para esse pequeno e discreto lugar, numa linearidade de diferentes tempos que se cruzam, seguem paralelos entre si. Nesse percurso, torna-se possível perder-se, mas se encontrar também em alguns momentos. Antiga Sorocabana, ao chegar na cidade, nos tempos de agora, a Xavier de Toledo já aglomerada de ônibus nas proximidades do metrô, recebe-me com um quadro de Tomie e um buquê de árvores. Por de trás dele e um pouco mais abaixo, eu nem imagino até então, o que estou por descobrir. Aproximo-me do guardo corpo, e meu primeiro contato: um camundongo, dois. Pacotes de biscoito, restos de comida. Pixo, a fonte de Dubugras e um obelisco, um menir. Sim, um mehnir de uns duzentos anos atrás. Um momento de descanso, de pausa, onde os burros depois de carregar muita carga, se hidratam, matam a sua sede. Desço as escadas e um espaço para se sentar, muitos. Mas um cheiro desagradável, me faz só querer passar. Uma, duas amigas conversam. Um terceiro se aproxima. Ele vai embora ou elas é que se vão? Os três se foram. Mais embaixo, alguns degraus, quatro, cinco, seis. Uma senhora se espreguiça, se posiciona, muda de lugar, reposiciona. Ela se deita, não se ajeita. Há cinco metros, outro, mais jovem, imerge no virtual, é ali que ele está. Passa um à esquerda, descem dois à


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direita, uma mãe e dois filhos. Parece que passa e leva, que me leva. Um medo constante de me levarem, de me passarem. Assim, me fizeram sentir uma vez, talvez duas. Alguns passos adiante, de frente para onde estou, um vazio. Um vazio cercado, meio murado, metade alvenaria, metade gradil. Um portão fechado, não trancado. Uma olhada, uma espiada e por ele, passa um homem. Ele fecha a porta. É ali ao fundo que ele fica, dentro. Eu, fora. Dentro desse vazio murado, um caminho. Uma passagem, um percurso, um rastro. Em uma das pontas, uma banca de jornal. “Falta segurança! Onde estão os postes de luz? Depois das 18h você não passa, não atravessa”. Então o que se atravessa? Três, quatro, cinco policiais. Eu me aproximo, eles se afastam. Você não é o meu problema. Eu não sou o seu problema. Assim ficamos, um de cada lado. Um segundo giro aos arredores: saída do metrô, algumas lojas, serviços, botecos, conversas, encontros. Estacionamentos, mecânicos. É muito difícil de atravessar. Plaft! Tum! De um muro de mais de 70 metros, cai um pedaço de ferro no chão. Uma proteção: o ponto de ônibus. Percebo que as pessoas ficam mais embaixo, ali perto do camelô, das barraquinhas, da passarela na boca do metrô. Mais adiante, me surpreendo ao tropeçar no mesmo lugar por onde já passei. Desta vez, admirada com a mesma casa em sua essência, mas uma nova casa com seu outro caminho. Quando eu volto, ela já não é mais a mesma.


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(33)

(33) Imagem do projeto: suposiçþes de encontros de tempos, desgastes


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(34) e (35) Imagem do projeto: suposiçþes de encontros de tempos, desgastes


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(36) e (37) Imagem do projeto: suposiçþes de encontros de tempos, desgastes


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Capítulo 03

Recortes (de uma narrativa)

A imagem do lugar, baseada na ‘estável’ e ‘ajustada’ relação espaço-uso (específico), é substituída pela relação espaço-tempo, lugares cujas imagens vão se alterando no tempo em virtude das ações que ocorrem no espaço, um espaço sempre em processo, nunca estável. (GUATELLI, 2012, p. 31)


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12

Segundo Derrida

“(...) o conceito de Khôra, seria um espaço

A discussão do capítulo anterior quanto ao programa do projeto pode ser traduzida no início desse capítulo numa relação espaço-tempo e não a de um espaço-uso específico. A capacidade de um lugar estar sempre se ressignificando, podendo receber novas interpretações (GUATELLI, 2012, p. 32) – trata-se do conceito de Khôra12 –, faz com que o agente dessa condição seja o tempo, que permite que as imagens desse lugar façam parte de uma narrativa sem fim, imprevisível e instável.

aberto a interpretações e apropriações múltiplas e não correspondentes, capaz de absorver e registrar as marcas deixadas sem, no entanto, adquirir um sentido que pudesse ser adotado como o mais adequado, e, no momento seguinte, capaz de voltar a sua situação de significante, à espera de novos significados, interpretações, intervenções por parte dos usuários ativadores”. (GUATELLI, 2012, p. 32)

As imagens – parte de uma narrativa – caracterizam-se neste projeto enquanto recortes: recortes temporais e recortes visuais. Quanto aos recortes do tempo, a obra Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, foi uma grande referência, por sua narrativa ser fortemente marcada pelas digressões do narrador-personagem (já morto), Brás Cubas. Suas constantes interrupções ao longo do texto, funcionam como pausa no tempo para dar ênfase ao que ele quer dar destaque, enfatizar, diferenciar ou esclarecer. É como se um parêntesis recortasse aquilo que lhe interessa ao longo da narrativa e no contexto da cidade, a função de parêntesis viria a ser exercida para dar ênfase a determinado local, uma suspensão do tempo. A partir dos recortes no tempo, inevitavelmente são recortadas imagens – a talvez impossibilidade de dissociação entre tempo e espaço –, recortes visuais. Esses recortes visuais que podem também ser parêntesis – desse modo, dentro do projeto – dão, primeiramente, enquadramento ao inesperado, aos breves e


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(38-40) p. 80-81 (41-43) p. 83 (44-46) p. 84 (47-52) p. 85

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Discussão durante

curso de fotografia na Faculdade La Sapienza de Roma, com o fotógrafo professor Mario Guerra, entre agosto e dezembro de 2014.

singelos encontros que acontecem paralelamente no movimento rotineiro da cidade. Esse enquadramento que é tanto um ponto de destaque, quanto uma pausa no tempo, poderia também ser traduzido como um scatto fotográfico, materializando-se no projeto através de pórticos. Tais elementos que configuram aberturas nas paredes do projeto, acabam seguindo o simples conceito da fotografia de que pausar um momento é capturar esse instante, o attimo fuggente, de Henri Cartier-Bresson13. Trata-se de um apêlo fotográfico que condiz com a captura do tempo junto a ideia de digressão. Gabriele Basilico – atraído pelas transformações da cidade e sua mutação no tempo – traz a questão do olhar lento na fotografia, junto de questões e conceitos abordados nos capítulos anteriores, o que sustenta o pensamento deste projeto através do instrumento fotográfico. Retomamos brevemente o conceito terrain vague que, segundo Basilico “o vazio não pode ser uma ausência, mas antes de tudo uma fase de silêncio que permite instaurar um diálogo autêntico com a realidade” (BASILICO, 2007, p. 86). Deparar-se com um vazio, pode ser uma possibilidade de se permitir estar aberto às surpresas do cotidiano, a inesperados e imprevisíveis parêntesis da metrópole.


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Não penso que fotografar o vazio tenha um sentido da falta de presença, mas fotografo o vazio como protagonista de si mesmo, com todo o seu lirismo, com toda a sua força, com toda a sua humanizante capacidade de comunicação, porque o vazio na arquitetura é parte integrante e até mesmo estrutural do seu ser. (BASILICO, 2007, p. 101)

Exemplifica-se no ensaio

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fotográfico Anhangabaú, recortes: p. 92

O projeto procura dar ênfase a um vazio da cidade, antes dele mesmo ser um projeto de cunho arquitetônico e urbano. A fotografia dá como possibilidade falar de projetação, enquanto metáfora (BASILICO, 2007, p. 144), uma vez que dentro de um caos urbano, contemporâneo, é possível a organização do espaço, a partir de seus limites visuais. Dada essa reflexão sobre o projetar, retoma-se a justificativa da intenção de se trabalhar com os pórticos neste projeto e de como seus limites, os enquadramentos – formam espaços, enfatizam lugares14. Os pórticos, ao fazerem a função de enquadramento da paisagem, não só selecionam um momento de pausa, como também, em seu conjunto, constroem uma narrativa, uma sequência fotográfica que dialoga com a mutação do espaço, com a passagem do tempo, determinando somente a relação espaço-tempo deste projeto. Talvez seja desde a década de 80 – para a Mission Photographique – quando foram colocadas em pauta, questões da fotografia referentes à modificação do território, sobre sua incoerência, sua constante fragmentação, não permanência e hibridismo (BASILICO, 2007, p. 26). O projeto do suporte tenta fazer referência a esse contexto que parece perdurar até os dias presentes, agindo enqunto estrutura articuladora e lugar de encontro, onde o inesperado vem capturado e se destaca num momento de pausa que é estar em parêntesis na metrópole.


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(39) (38-40) Enquadramentos de instantes capturados. A composição representa a passagem no tempo (apresentação original em GIF).

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(41-43) Enquadramentos de instantes capturados. A composição representa a passagem no tempo (apresentação original em GIF).


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(44-52) Enquadramentos de instantes capturados. A composição representa a passagem no tempo (apresentação original em GIF).

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Digressão 05

Parêntesis da Metrópole (2 de junho de 2016, na cama novamente)


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Se fosse feita uma analogia entre a cidade e um texto, em qualquer narrativa, talvez fosse possível encontrar algumas semelhanças. Assim como uma narrativa possui fluxos, ritmos, formas, dinâmicas, a cidade também compartilha dos mesmos fatores, mas qual poderia ser o instrumento que os direcionaria perante a esse movimento? Para esse momento, apreendo-me na pontuação. Quando penso numa metrópole como São Paulo, uma das características mais pensadas para essa grande cidade que me vem logo em mente é a de caos; e quando, de imediato penso num autor que me traz essa mesma sensação – de palavra após palavra e vírgula após ponto, dois pontos, ponto-e-vírgula – vaga em meus pensamentos José Saramago – especificamente com Ensaio sobre a cegueira. Ambos, São Paulo e Saramago, fazem-me passar, perder-me em meio ao caos de suas ruas e pessoas, palavras e “pontos”, respectivamente. Contudo, ambos também guardam surpresas, quando existe um olhar atento. Esse momento de deparo, encontro, são os momentos em parêntesis. Errando ainda em meus pensamentos, reencontro Clarice Lispector que, em sua obra Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres, começa a prosa com uma vírgula e a termina com dois pontos. O que isso poderia significar? Para essa analogia cidade-narrativa, eu arriscaria o dia após dia, as reflexões de continuidade – do antes e depois – e da possibilidade de esboçar do nosso imaginário o que veio primeiro e aquilo que está por vir. Retorno à questão da surpresa: alguma surpresa me vem de encontro? E se ela vem, o que acontece? Depois de uma sequência ritmada de pontos e palavras, a surpresa é uma quebra desse ritmo, ela é pelo menos a fração de uma pausa, o seu primeiro instante. Porém, ainda inquieta sobre a questão, Machado de Assis sentou-se ao meu lado e me resgatou no tempo de uns seis anos atrás, quando li Memórias


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Póstumas de Brás Cubas. No meio dessa discussão, o texto de Machado, tem uma dinâmica não linear, já que Brás Cubas, constantemente faz suas digressões na hora em que faz suas ressalvas, de percepções e comentários irônicos. Ou seja, ao longo de uma sequência de fatos, Brás Cubas faz diversos parêntesis daquilo que observa, pensa – enquanto está morto –, como se tudo que lhe acontecesse naquele momento, parasse no tempo, para que então, a personagem pudesse fazer as suas ressalvas. Em meio a um ritmo constante da metrópole, muitas vezes acelerado, duas coisas podem acontecer: infiltrar-se cegamento no fluxo de uma aceleração sem fim ou por discrepância desse ritmo acelerado, afrontar aquilo que se opõe, de maneira a se predispor ao esquecimento do tempo, e talvez simplesmente apreciar aquilo que se tem adiante. Acredito que a fotografia consinta, entre certos limites, de reordenar o caos que está diante dos nossos olhos, que é um aspecto comum e repetitivo da paisagem urbana contemporânea. (BASILICO, 2007, p. 144)


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(53)

(53) Imagem do projeto: suposições de encontros de tempos. Detalhe para incêndio do edifício Joelma (1974) ao fundo.


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Digressão 06

Anhangabaú, recortes: (Entre 17 e 19 de abril de 2017, Semana de Integração FAU-Mackenzie)

Equipe: Alexandre Biselli, Gabriel Henríquez, Gabriella Dias, Gabrielle Arakaki, Graciela Gomes, Isabela Trindade, Lucas Nuevo, Maira de Moura e Mariana Alves.

Durante a semana de integração foi realizado o ensaio Anhangabaú, recortes:, uma releitura sobre o Vale do Anhangabaú a partir da experiência fotográfica de cada integrante. Ao mesmo tempo que essa atividade foi um momento de pausa no desenvolvimento deste trabalho, ela também serviu como um complemento da reflexão sobre os enquadramentos para o mesmo. Além da questão do tempo – abordagem-guia deste trabalho – a série trouxe uma reflexão sobre os limites visuais, recortes e organização do espaço da cidade. O resultado final pode ser uma metalinguagem dos enquadramentos – a fotografia que enquadra as aberturas das placas, que por sua vez, enquadram a paisagem –, que aproxima, através do olhar, o observador e o observado, seja ele uma situação, um detalhe, uma pessoa.


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(54) Montagem de AnhangabaĂş, recortes:


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(55) Anhangabaú, flagra: (56) Anhangabaú, reflexo:

A imensidão do Vale extrapola a noção da escala. Generosos cinco metros podem se transformar em pedaço mínimo, quase imperceptível do lugar. O corpo chega a perder a referência de si e a percepção do espaço torna-se reduzida pela direcionamento do olhar, que mira somente a distância da travessia. As placas de papel com suas formas variadas, recortam a paisagem e referenciam elementos e situações cotidianas do Vale. Esta situação, de certa forma, aproxima o observador daquilo que parece tão imperceptível e disperso durante a passagem. Um breve contato, algumas trocas de olhares, uma atenção ao detalhe. Uma experiência fotográfica que varia conforme o olhar através da máquina ou sobre o olhar direto que pode também exercer a função do instrumento. Uma noção do entorno que possa ser dispertada pela sensualidade de cada um e que parte do Outro venha a ser recortada para dentro de nós.


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Desenhos técnicos (Plantas, cortes e elevações)


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-4.70

estação anhangabaú

norte

acesso +1.00

+5.00

rua joão adolfo

11

-3.00

oeste

leste

+1.00

10

+2.00

acesso

jul h

o

0.00

9

de

acesso

av

en id a

rua alfredo gagliotti - 1.00

sul

rua joão adolfo

07

0

5

1

30

10

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(57) Planta térreo nível -3.00 Conexão estação


100

estação anhangabaú

norte

acesso +5.00

+1.00

rua joão adolfo

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acesso

01 05

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leste

oeste

06

+1.00

02 acesso

03

+2.00

9

9

de

de

jul h

jul h

o

o

0.00

en id a

av

av

en id a

rua alfredo gagliotti - 1.00

rua joão adolfo

sul

0

5

1

(58) Planta térreo nível +2.00 Rua João Adolfo

30

10

50


101

estação anhangabaú

norte

+1.00

rua joão adolfo

+5.00

oeste

leste

+1.00

+4.00

+2.00

9

9

de

de

jul h

jul h

o

o

0.00

en id a

av

da

rua alfredo gagliotti - 1.00

rua joão adolfo

sul

0

5

1

30

10

50

(59) Planta de cobertura nível +6.00


102


103

+ 10.00

+ 6.00

+ 2.00

- 3.00 - 4.50

- 9.50

(60) Corte AA


104


105

+ 13.00 + 10.00

+ 6.00

+ 2.00

-3.00 - 4.50

- 9.50

(61) Corte CC


106

+ 13.00 + 10.00

+ 6.00

+ 2.00

- 3.00

(62) Corte BB


107

+ 13.00 + 10.00

+ 6.00

+ 2.00 0.00

(63) Elevação Sul


108


109

+ 13.00 + 10.00

+ 6.00

+ 2.00 0.00

(64) Elevação Leste


110

+ 13.00 + 10.00

+ 6.00

+ 10.00

+ 6.00

+ 2.00 + 2.00 - 3.00 - 4.50

- 9.50

(65) Elevação Norte


111

+ 13.00 + 10.00

+ 6.00

+ 2.00 0.00

(66) Elevação Oeste


112

Texto

Bibliografia

BASILICO, Gabriele. Architetture, città, visioni: Riflessioni sulla fotografia (a cura di Andrea Lissoni). Milano: Bruno Mondadori, 2007 BASILICO, Gabriele. Abitare la metropoli. Milano: Contrasto, 2011 BORGE, Jorge Luis (1889-1986). Ficções: Obras completas de Jorge Luis Borges (vol. 1) / texto O jardim das veredas que se bifurcam. São Paulo: Editora Globo, 1999 CALVINO, Italo. Città Invisibili. Milano: Bruno Mondadori, 2015 CARERI, Francesco. Walkscapes: O caminhar como prática estética. São Paulo: Editora Gustavo Gili, 2013 CARERI, Francesco. Pasear, deternerse. Barcelona: Editorial Gustavo Gili, SL, 2016 ELIASSON, Olafur. Seu corpo da obra. Your body of work/ artigo O que torna um espaço produtivo? de Lisette Lagnado. São Paulo: Edições SESC SP; Associação Cultural Videobrasil, 2011.


113

GUATELLI, Igor. Arquitetura dos entre-lugares: sobre a importância do trabalho conceitual. São Paulo: Editora Senac, 2012 PEREC, George. Tentativa de esgotamento de um local parisiense. São Paulo: Editora Gustavo Gili, 2016 SOLÀ-MORALES, Ignasi. Catálogo do XIX Congresso da UIA / Presentes y Futuros: La Arquitectura en las Ciudades (p. 1023). Barcelona, 1996. Largo da Memória (Cadernos da Cidade, vol. 6). Instituo Cultural Itaú / prefácio de Maria Cristina Catilho Costa. São Paulo: ICI, 1993 Blog Arti Civiche: http://articiviche.blogspot.com.br/2014/08/ glossaire-stopscapes-additionaldocument.html <<29/05/2017 00:42>>


114

Imagem

Bibliografia

(1) Acervo pessoal. (2) Acervo pessoal. (3) Acervo pessoal. (4) Acervo pessoal. (5) Acervo pessoal. (6) Google Earth (7) Acervo pessoal. (8) Acervo pessoal. (9) Acervo pessoal. (10) Acervo pessoal. (11) Acervo pessoal. (12) Acervo pessoal. (13) Acervo pessoal. (14) Acervo pessoal. (15) Acervo pessoal. (16) http://www.saopauloantiga.com.br/largo-da-memoria/ <<24/05/2017 15:46>> (17) Ibidem (18) http://www.ajorb.com.br/hb-1950-piques.htm <<24/05/2017 15:50>> (19)Acervo pessoal. (20) http://blogdogiesbrecht.blogspot.com.br/2011/01/rua-santo-antonio-em-tres-epocas.html <<24/05/2017 15:52>> (21) Ibidem


115

(22) Ibidem (23) Acervo pessoal. (24) Acervo pessoal. (25) Prefeitura do Município de São Paulo. Leste Oeste: em busca de uma solução integrada. Companhia do Metropolitano de São Paulo, 1979. (26) Ibidem (27) Ibidem (28) Acervo pessoal. (29) Acervo pessoal. (30) Acervo pessoal. (31) Acervo pessoal. (32) Acervo pessoal. (33) Acervo pessoal. (34) Acervo pessoal. (35) Acervo pessoal. (36) Acervo pessoal. (37) Acervo pessoal. (38) Acervo pessoal. (39) Acervo pessoal. (40) Acervo pessoal. (41) Acervo pessoal. (42) Acervo pessoal.

(43) Acervo pessoal. (44) Acervo pessoal. (45) Acervo pessoal. (46) Acervo pessoal. (47) Acervo pessoal. (48) Acervo pessoal. (49) Acervo pessoal. (50) Acervo pessoal. (51) Acervo pessoal. (52) Acervo pessoal. (53) Acervo pessoal. (54) Acervo pessoal. (55) Acervo pessoal. (56) Acervo pessoal. (57) Acervo pessoal. (58) Acervo pessoal. (59) Acervo pessoal. (60) Acervo pessoal. (61) Acervo pessoal. (62) Acervo pessoal. (63) Acervo pessoal. (64) Acervo pessoal. (65) Acervo pessoal. (66) Acervo pessoal.


116

Agradeço

Aos professores e funcionários da

À Luiza, pela admiração mútua.

FAU-Mackenzie, pela disposição, provocações

À Tamires, pelo acompanhamento nos primeiros

e entusiasmo. Em especial a Antonio Carlos

passos de uma nova descoberta.

Sant’anna, Celso Minozzi, Daniela Getlinger, Igor Guatelli e Vólia Kato.

À Claudia, pelos questionamentos. À Joana, pelos desconfortos e vitórias.

Ao Abilio pelas discussões únicas e severidade

À Pat Rocha, pelo aconchego e risadas.

necessária. Ao Ângelo pela sensibilidade,

À Paula, pela sinceridade e pelo amore.

respeito e humildade.

À Mari, pela parceria.

A Meglena Gospodinoff pelo encorajamento.

Ao Alexandre, pela intensidade nas trocas.

A Mario Guerra por ter ido sempre tão a fundo. A Ana Gabi, Dani, Gabi Antunes, Gabi Dal Secco, Pat Putz, Rica e Vini pelos acréscimos, diferenças e trocas. A Amandinha, Camilla, Pat Maccioni e Bró pela paciência. Também ao Tito e ao Roberto.

À família Garrubo por ser uma segunda família. À Gabriela, em especial, minha meia-irmã. À minha avó Marina e ao meu irmão Pietro, pelo aprendizado cotidiano. Ao Haraboji e a Harmoni, pela preocupação. Aos meus pais, por acreditarem.

Ao Matheus, pelo aprendizado e aventuras.

Minha eterna gratidão.

A Leti, Pat Beloni, Susinha, Gui, pelo carinho.

E, por fim, ao meu avô, Agnaldo, meu ícone.

A Camila Valladão e Íris, pela positividade e energia.




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