Entre Outubros 2

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rebeccadellape

entre outubros


“A mais genuína forma de justiça é uma espécie de amizade.” Aristóteles


I AVALANCHE “– Você sempre acreditou que eu fosse apenas uma pedra no seu sapato. Mas não. Eu sou uma avalanche.”


[a casa de madeira] por Rebecca Dellape Ausência é algo que nos destrói. E aos pouquinhos. Ausência de pessoas que são importantes, ausência de sorrisos. Ausência de notícias. Você acorda um dia após o outro e descobre que não tem respostas para perguntas simples, até então óbvias sobre alguém que fazia parte da sua vida. Onde está? Fazendo o quê? Por quê? Eu deveria me preocupar? O que eu posso fazer? Bem típico da minha parte dizer que eu estava sentindo falta da Holly. Aliás, eu poderia muito bem dizer que não via minha melhor amiga há meses. Era como se agora houvesse milhares de Hollys querendo se apossar da ausência daquela que eu realmente queria de volta. Mas em meu arsenal de ferramentas não havia mais nada a que eu pudesse recorrer para fazê-la parar de me rejeitar. Lucas já não atendia meus telefonemas e nem respondia minhas mensagens há mais de uma semana. De fato, ele estava longe demais de todos aqueles problemas, e eu era um deles. Holly, então, outro dos grandes. Por diversas vezes me peguei pensando na possibilidade de ter perdido os dois para sempre. E, mais além, que cada um havia se perdido um do outro. E não havia nada que eu pudesse fazer. Por enquanto, claro. Meus resquícios de esperança ficaram em êxtase quando as aulas começaram. Último ano, um bando de adolescentes frenéticos com a pressão da faculdade, anseios a ponto de ebulição sobre a formatura e aquela baboseira toda sobre despedidas, cartões decorativos, comissões de eventos e uma porção de outras palhaçadas que eu mal conseguia distinguir se faria diferença na minha vida. Eu só queria ver minha melhor amiga entrando pela porta da sala vinte e cinco e me dando, no mínimo, um sorriso. Isso seria o suficiente para recomeçarmos.


Minhas expectativas só me levaram a ingerir um tremendo veneno. A decepção. Holly não apareceu na segunda, nem na terça, muito menos quarta, quinta ou sexta. Permiti que minha consciência se remoesse horrores enquanto eu travava um impasse entre ligar ou não, visitá-la ou não. Eu poderia levar um telefone na cara ou uma fechada de porta. Seria inútil demais. Naquela primeira semana de aula, durante os almoços, Miranda rondou minha mesa de forma proposital. Anos de amizade no passado fizeram com que nos entendêssemos pelo olhar, mesmo que estivéssemos de relações cortadas há tempos. Ela sempre foi uma garota que tinha algo a dizer, e isso era algo que refletia claramente em sua expressão Era algo como desabafe–comigo ou sei–pelo– que–está–passando–e–apenas–me–dê–uma–chance. Mesmo após suas tentativas diárias, permaneci em estado de incompatibilidade. Ignorei, fingi que não vi e desviei todos os olhares. Fiquei com a minha turma nos intervalos, por mais que eu quisesse me trancar no banheiro e socar as paredes em meio a milhões de lágrimas. Até porque eu não conseguiria desabafar com nenhum deles. Todos ficaram traumatizados e ressentidos demais com as últimas atitudes da minha melhor amiga. Jodi, Ian e Michael demorariam ainda algum tempo até esqueceram o que aconteceu há um mês atrás no campo de beisebol. Eu também estava incluída. Eu sei que Miranda não desistiu. Com sua ousadia desmedida, sentou–se a minha mesa na quinta-feira. O chiclete que estava em minha boca começou a saltar. Eu mascava com força. Era impossível desconsiderar sua culpa, afinal... Quem acobertou aquela amizade destrutiva entre a Holly e a Solara? Quem deixou que as duas fugissem pra casa da tia Mercedes no México? Quem omitiu pra geral que ambas estavam pegando o carro da mãe da Sol pra atravessar a fronteira atrás do Edgard? Sem nenhuma das duas ter habilitação para dirigir? Ela poderia ter colocado freio nas inconsequências de ambas, ou apenas ter me alertado na hora certa, ter avisado a Catherine. Mas não. Acabei descobrindo por meio de terceiros. E muito tempo depois. Quando já era tarde demais. – Como anda sua prima? Anda se divertindo muito às custas da minha amiga? Ela ficou afônica diante da minha acusação. – Você não sabe? – Seus olhos se aturdiram. Quase tive uma síncope. – O que aconteceu com a Holly? – Já pensei no pior. – Não! Não estou falando dela. Mas, espere. Tem algo que poderia acontecer?


– Está vendo Holly na escola? Então. Ela sumiu. Miranda ficou arrasada. E prosseguiu. – Minha tia mandou Solara para Tijuana na semana passada. Matriculou a filha num colégio interno. Era a última saída. – Então Holly e Solara não estão se encontrando? – Nem tem como. – Um sorriso amarelo tomou seus lábios. – Como assim? Isso não faz sentido algum. Será que Catherine tomou alguma providência em relação a ela? Por que Holly sumiria desse jeito? Tenho certeza que eu ficaria sabendo. – Eu já estava bem desesperada. Nem me importava com o fato da Miranda estar ali, bem à minha frente. Isso era insignificante. Pra me chocar, sua mão se estendeu pela mesa e alcançou a minha. – Sei que está passando por um momento difícil, se quiser ajuda... – Deu de ombros. Pensei bem. – Olha. – Cerrei os olhos. – Pode ficar tranquila. Sei muito bem me virar sozinha. – Fiquei séria. Que jogo era aquele? “Ela só está sendo quem é de verdade. Uma garota sincera.” A voz ecoou na minha cabeça e quase que blasfemei internamente. Eu segurava sua mão ainda. Cobri com a outra e olhei em seus olhos. – Mas se quer mesmo saber... – Abaixei a cabeça, me sentindo derrotada. – Está tudo de cabeça pra baixo. E não tenho ninguém com quem eu possa dividir isso. Sabe que sou acostumada a carregar as barras sozinha. Sempre. Só que dessa vez não estou conseguindo manter o controle. – Eu entendo. Mas Holly está bem, notícias ruins sempre chegam rápido. Deve estar querendo se recuperar. Dê um tempo a ela.

* Acordei cedo no sábado seguinte, como de costume. Abri as janelas, tomei banho, estendi a roupa no varal, reguei o jardim, deixei Luke passear pelo quarteirão e antes do almoço, verifiquei minha caixa de correspondência. Lá dentro, entre panfletos promovendo a nova lavanderia do bairro e alguns cupons de desconto do Wal–Mart, havia um envelope estreito, com vários carimbos sobre o papel azulado. Voltei pra casa quase de imediato, sem conseguir reconhecer a procedência da suposta carta. No caminho, consegui localizar o remetente. Era nada menos do um telegrama enviado por Catherine Armstrong.


Quase tropecei quando subi os degraus da escada. Rasguei as bordas do papel com desespero. A cabeça latejou involuntariamente. Li a mensagem numa única tragada de fôlego. Rebecca Dellape, por favor, fique longe da minha filha. Ela não precisa de gente como você. Caso desconsiderar esta mensagem, tomarei as medidas cabíveis e comunicarei a polícia. Espero que tenha sido clara. Catherine Armstrong.

– Mas o quê?! – Engasguei. – Vá falar isto pra turminha marginal que anda com a Holly! – Revoltei-me ali, no meio da sala, ainda sem conseguir processar o que tinha acabado de ler. Amassei o papel, desejando destruí-lo. Gritei alto, bufei. Recolhi o papel que já estava ao chão e o desamassei. Troquei de roupa e saí arrancando com meu carro até a casa dela. Nada de racional passava pela minha cabeça. Alguém deve ter finalmente desconfiado do odor de erva nas roupas da filha, dos olhos avermelhados, da magreza progressiva dos últimos meses e fatalmente bolsas foram revistadas. Gavetas reviradas. Celular inspecionado. Medo do que Catherine pode ter encontrado. Mas a raiva começou a me consumir novamente quando a imaginei deduzindo que eu estava ligada a tais influências. Avancei pela recepção do edifício sem me preocupar em ser cordial ou educada. Catherine não autorizou minha entrada e então decidi pegar o elevador sem permissão, no fim das contas. O funcionário permaneceu inerte e aterrorizado quando ameacei quebrar o hall de entrada caso ele me impedisse. Cheguei ao corredor do décimo oitavo andar e a avistei saindo do apartamento. Completamente transtornada. – Como você tem coragem de aparecer aqui? – Ela bradou com as sobrancelhas unidas. – E como a senhora tem coragem de me acusar de influenciar sua filha se eu sou a única pessoa que quer protegê-la? – Gesticulei, inconformada. – Proteger? Eu cansei de você, Rebecca! E principalmente da sua hipocrisia. Você soube me enganar direitinho, não é? Deixei você entrar na minha casa, entreguei minha filha em suas mãos. Confiei cegamente em todas as coisas bonitas que você disse. E pra quê? Pra agora ver a Holly definhar numa cama de hospital? Ser obrigada a mandá-la pra uma clínica de reabilitação? Suas afirmações me deixaram sem chão. Mas que droga estava acontecendo? – Eu não estou sabendo de nada disso. A senhora está muito enganada. – Balancei a cabeça, não havia outra reação.


– Você pensa que eu não sei o poder de influência que você tem sobre ela? Depois que você invadiu a vida da Holly, ela simplesmente se destruiu! – Vida? Que vida? – Cruzei os braços. – QUE VIDA? – Repeti devagar, ironizando. – Essa vida estúpida que ela tem? O que você ensina pra sua filha, pelo amor de Deus? Você está mais preocupada em aproveitar sua juventude fora de casa do que observar o que a Holly realmente quer! Onde você estava quando ela passou dias sem voltar pra casa? Vai me dizer que nunca percebeu como ela mudou nas últimas semanas. É impossível que não tenha notado que havia algo de errado nela, nos horários em que ela retornava pra casa, nos aspectos das roupas. No que ela trazia de novo na bolsa, mesmo sem ter saído com um dólar no bolso. – Ergui as sobrancelhas, deixando-a irritada. Impedi que ela me interrompesse e prossegui de imediato, aumentando o tom de voz. – Olha, eu continuo sendo a melhor amiga dela, mas ela não me ouve. Eu passei esse tempo todo acreditando que haveria uma mãe com disciplina suficiente pra repreendêla. Mas não! – CHEGA! Chega! Saia já daqui. Ninguém precisa me ensinar como cuidar da minha filha. Cansei de você! – Eu também cansei de ser a mãe que a Holly não tem. A senhora acha que ela seria forte o bastante pra não lhe incomodar com os problemas que andava passando? Só que ela estava sozinha! – Choraminguei. – E quer saber? Acho ótimo que a mãe dela assuma as responsabilidades. Não tenho mais com o que me preocupar. E pense muito bem quando for precisar de mim. Não garanto nenhum tipo de solidariedade. – Esqueça que minha filha existe. Ela vai ficar muito bem sem você. Foi o bastante pra mim. Não fazia mais sentido continuar ali. Aquela gritaria ainda se contrastava com o silêncio súbito do interior do meu carro. A mente projetava todas as indolências em alto e bom som, como se eu ainda estivesse discutindo com Catherine. Meus olhos umedeceram lentamente. Escorreguei minhas mãos pelo volante e desabei sobre o mesmo. Chorei por alguns minutos. Eu não via uma maneira de consertar tal desastre. E isso estava me enlouquecendo. As consequências haviam chegado longe demais. Retomar aquilo que tínhamos estava cada vez mais impossível.

*


Deitei-me sobre minha cama naquela noite com muito pesar. Deixei as cortinas fechadas. Eu não conseguia cultivar nenhum outro sentimento pela Holly senão amor. Eu a entendia perfeitamente. E eu também conseguia enxergar minhas falhas. Minha negligência em relação a ela também foi um fator que corroborou. Todas as mentiras, omissões, palavras que não foram ditas. Verdades que não eram minhas e optei por esconder. Escolhas erradas. Pessoas erradas. Mas, sinceramente, eu não nutria nenhum tipo de dó pela Catherine. Qual era a ideia dela sobre criar filhos? Não se põe simplesmente no mundo e os deixa viverem como querem. Ela pensou que a Holly fosse suficientemente capaz de lidar sozinha com todas as suas deficiências emocionais? Nem a mais sábia e experiente pessoa do mundo conseguiria. Aliás, os pais acreditam tanto que a educação dada para seus filhos é eficiente, que duvidam que algo dê errado no meio do caminho. Preocupam–se tanto em fornecer segurança e conforto, que perdem tempo demais se focando nesses anseios e acabam se esquecendo dos próprios filhos. E o pior, os pais dificilmente estão dispostos a ouvi-los. E cara, sempre temos tanto a dizer. Muitos podem não saber exatamente quais palavras usar, quando usar. E se estas, talvez, expressem com clareza seus sentimentos. Isso faz com seus atos sirvam de desabafos, para compensar a falta de diálogo. Não culpo expressamente os pais por esse reflexo inconsciente que transmitem aos seus filhos. Não, de forma alguma. Não nos tornamos pais e imediatamente pensamos “oh, meu Deus! Quero ser o pior pai de todos.” Muito pelo contrário. Entendo perfeitamente como deve ser difícil superar os problemas do cotidiano e ainda ter que desenvolver estrutura para suportar os devaneios infantis das crianças ao longo dos anos. Mas parece automático quando os pais noticiam a real situação decadente de seus filhos que cresceram sozinhos. Resta aquele pensamento quase que unânime: “eu sempre deibarrafiz tudo!” Crianças não querem casas monstruosas com churrasqueiras, querem apenas seus pais. E quando crescem, apenas desejam ser reconhecidos pelo que são, pelo que fazem. Precisam se sentir importantes, precisam de propósitos. Só que alguns pais não estão preparados para compreender todas essas convicções modernas, e muito menos, cultivá-las, lapidá-las e adaptá-las em parâmetros aceitáveis. Com isso, essas crianças agora crescidas, se veem a frente de um mundo insano pronto para tragar suas aspirações mais selvagens e desgovernadas diante de princípios adquiridos sem nenhum esteio, sem nenhum limite.


Todos esses fatores podem desencadear desastres. E aí, quando as coisas saem do controle de fato, só resta a culpa. Uma ferramenta destrutiva que sempre se alojará alguém. Geralmente no individuo mais fraco. As crianças. Elas tendem a assumir a culpa de não serem as melhores, de não agradarem, de não corresponderam às expectativas da sociedade, de não serem aquilo que esperavam. Chegam a suportar o próprio o fracasso dos seus pais. E poucas pessoas sabem deixar esse sentimento de culpa para trás. Talvez, muito provavelmente, seja ela responsável por destruir tantas famílias, tantos laços. É preciso sim, saber a consequência dos seus atos e como ele reverbera sobre as pessoas que fazem parte da sua vida, mas isso não pode gerar um peso tão grande que te impeça de seguir em frente. Acredito que se você ama seu filho da forma mais pura, você não vai se preocupar onde deve colocar a culpa, nem pensará que você é a principal vítima. Você vai simplesmente acionar todo o seu amor e fornecê-lo. Fornecer o tipo de amor que rejeita estereótipos, que rejeita a própria rejeição. Vai reconhecê-lo e se colocar ao lado dele. Sem cobranças, remorsos ou arrependimentos. Porque você não quer apenas um filho bom, você quer que seu filho, aquela grande parcela de você mesmo, se sinta feliz, para você se sentir feliz. Apenas.

* Trabalhei a maior parte do domingo no restaurante, aproveitando os últimos dias de verão que ainda rendiam uma ótima clientela. Fechei o restaurante antes do anoitecer e voltei pra casa. Minha mãe me ligou para contar as novidades, pois estava feliz fazendo seu tratamento de saúde em Santa Monica. Eu nem comentei sobre a Holly. Mamãe era definitivamente a última pessoa que poderia me ajudar em relação a minha melhor amiga. Ela sempre achava que eu me envolvia demais com as pessoas, e por isso coisas desagradáveis aconteciam. Senti–me extremamente sozinha naquela casa. Palavras corriam pela minha mente em um projeto de oração. Aninhei–me ao lençol e fiquei observando o espaço vazio da minha cama. Queria conseguir imaginar Holly bem. Eu sentia que logo eu teria que entrar em ação. Mas nem sabia como. Mais uma semana se passou sem novidades. Miranda começou a ficar em minha mesa durante os almoços e para minha surpresa, não brigamos em nenhuma ocasião. Nós compartilhávamos algumas matérias e horários e passamos a conversar novamente, como se nunca tivéssemos


deixado de ser amigas. Era algo tão forte, que eu me pegava tentando impedir que isso acontecesse, mas nossa amizade fluía desenfreadamente. Henrique me ligou na sexta de manhã para combinarmos um dos nossos programas. Eu sempre me encontrava com ele e com alguns outros amigos em comum para jogar vôlei na praia à noite. O verão é sempre muito intenso, então escolhíamos o horário para jogar a beira mar. Tyler e Mark estavam lá. No intervalo do primeiro set eu os enquadrei. – Escuta aqui. Lucas foi preso, assassinado, deportado, ou está evitando atender minhas ligações? Ambos riram. – Pô, Becky. Relaxa. – Disse Tyler. – Ninguém sofre no Brasil. Está começando a andar com as próprias pernas por lá. – Garantiu-me. – Até me ligou ontem. Contou que estava tudo indo muito bem. – Aquele filho da mãe. Ele não me retorna. – Abaixei a cabeça. – Você sabe que ele tem motivos pra isso, não é, Rebecca. – Por quê? Não foi ele que disse que queria esquecê-la? Não me pediu para que não tocasse no assunto? Não tenho culpa se ele soube por outras pessoas que a Holly estava batendo as asinhas por aí. – Fiz aspas com os dedos. – Bater as asinhas é muito sutil, não acha? – Essa gíria não é usada desde os anos 90, garota. Não me envergonhe. – Mark zombou. – Querem calar a boca? Tyler, o dia que você for uma garota e tiver passado por tudo que ela passou, talvez você tenha moral de dizer alguma coisa. E Mark, larga de ser babaca. – Rebecca. – Tyler revirou os olhos. – Não força a barra. Você tem que deixar os dois se resolverem. Só vão conseguir se tentarem sozinhos. Do jeito que ele gosta dela e, pelo jeito como ela gosta dele, tudo vai dar certo. Só precisam esperar um tempo. Enquanto conversávamos, Ian apitou. Henrique bateu no meu ombro e me passou a bola. – Estamos prontos pra detonar seu time agora. – Os dois disseram. Só resmunguei e voltei ao meu posto de saque. “Deixar os dois se resolverem...” Que idiotice. Alguém acredita que eles consigam isso? Claro que não! Soquei a bola o mais alto que pude. Dose concentrada de frustração. Ela foi longe e todos assobiaram para o céu. – Deus do céu, Rebecca! Vá com mais força da próxima vez – Mark riu sarcástico para mim. Mostrei o dedo do meio e voltei pra posição de ataque.


Cheguei em casa muito cansada para ver que horas eram. Tomei um banho e rumei para a cama sem pensar. O jogo havia ceifado todas as minhas forças. Eu só queria dormir.

* Algo aturdiu meus tímpanos. Chegava a doer. Um ruído que eu não conseguia distinguir se fazia parte de um sonho ou se realmente estava acontecendo na vida real. Segundo por segundo, deduzi que eram os toques do telefone de casa. Tocava ensurdecedora e ininterruptamente pelo ambiente silencioso. O display do aparelho DVD do meu quarto anunciava as cinco e pouco da manhã quando consegui decifrar os numerais azul-fluorescente. Xinguei tanto. Levantei da cama chutando tudo por onde eu esbarrava. – Alô. – Fui ríspida. Um silêncio quase que imperceptível transcorreu. O suficiente para eu ouvir um gemido de choro. – Rebecca... – Alô? Alô! – Fiquei desesperada. – É a Catherine, por favor, você tem que me ajudar! – Sua voz falhou. – O que aconteceu? – Balbuciei. – Não me deixe sozinha, eu não sei o que fazer. – O que está acontecendo? Estou ficando nervosa! – É a Holly, Rebecca. Ela conseguiu sumir. Desde ontem à noite. – Aguente firme. Tô indo pra aí. Tentei me vestir decentemente em um átimo. Nada passava pela minha cabeça. Exatamente nada. Eu estava completamente cega. Depois que estacionei na área de visitantes do edifício, questionei-me sobre como consegui dirigir até lá sem causar nenhum acidente. Catherine me recebeu com os olhos mergulhados em lágrimas. – Eu não fazia a mínima ideia de quem chamar. – Tá tudo bem. – Menti. Eu queria desabar ali mesmo. – Me conta exatamente o que aconteceu. – Ela... teve um surto há duas semanas. – Catherine engoliu o choro, já me deixando entrar no apartamento, me guiando pra sala de estar. – Encontrei-a no quarto, completamente desacordada na cama. Quase sem sinais vitais. – Ela respirou fundo e apertou o roupão contra o corpo. – Estava tudo revirado, destruído. Não entendo o porquê dela ter feito isso. E então Holly passou quase uma semana na UTI. Overdose de heroína. – Ela admitiu baixinho. – Assim que saiu do coma induzido, deixei que eles programassem sua internação numa


unidade de reabilitação. E lá ficou por mais uma semana. Ontem ela receberia alta, mas assim que cheguei para buscá-la, já havia sumido. Soube que ela chegou a passar aqui em casa, deve ter recolhido alguns pertences e saiu rapidamente, segundo o senhor Willard. – Sua voz transpirava horror. Uma dor interna sufocou meu coração. Peguei um copo de água com açúcar para ela. O dia estava quase amanhecendo. – Saí como louca pelas ruas tentando encontrá-la. Mas não consegui. – Tente se acalmar, ok? Vou pegar meu carro e nós vamos procurar. Sei de alguém que pode me ajudar. A senhora espera eu dar um telefonema? Miranda se colocou completamente a disposição quando liguei. Expliquei rapidamente e ela não deixou que eu continuasse, apenas me tranquilizou e pediu alguns minutos para se arrumar. Fui buscá-la em Chula Vista. Convenci doutora Catherine a esperar os paradeiros em casa. Seria torturante, eu sei. Mas sabe-se lá Deus em que estado conseguiríamos encontrar a Holly, talvez a mãe não suportaria. Eram quase sete horas da manhã quando eu e Miranda começamos a rodar pelos redondezas da ponte de Coronado Island. Ela sabia os lugares que Solara ficava quando passava dias sem voltar para casa. Batemos em todos eles. Nos abrigos, nos hospitais. Nos becos mais escuros, nas esquinas e principalmente, em vários pontos de tráfico. Nenhum sinal dela. Ninguém sabia dizer se havia visto qualquer garota alta e loira. Paramos até na casa de um tal de Will. Ele nos informou que ela poderia estar na Broadway ainda, em alguma porta de boate. E nada. Segui em direção a estação de trem, onde sabia que poderia encontrar pistas. Paramos um rapaz magro de vestes descuidadas no meio do caminho, debulhando uma lata de lixo em busca de um café da manhã. Fatalmente era um viciado da região. – A casa de madeira. No fim da rua. – Ele respondeu pra dentro e sem nos olhar nos olhos, sua cabeça tremia em intervalos curtos de tempo, como um tique nervoso. Algo me dizia que estávamos perto. Catherine ligava a cada dez minutos. Miranda tentava tranquilizá-la. Dirigi devagar até o final da rua, observando as diversas casas abandonadas que ali haviam. A maioria possuía a mesma aparência detonada, placas de venda já destruídas pelo tempo, desvalorizadas demais pra alguém ter interesse de compra. Completamente habitadas por muita sujeira, lixo e moradores de ruas. Um


cenário degradante que eu sabia que por muito tempo conseguiria me dar ânsia de vômito assim que lembrasse. A última casa da rua era a única toda revestida de madeirites. A grande varanda estava alambrada por cercas de ferro, já bem deterioradas e arrombadas. – É aqui. – Encarei aquela grande estrutura abandonada pelo tempo, esquecida pelo mundo. Era feia e intimidava. Desliguei o carro quando cheguei o mais próximo possível da entrada principal. Perguntei-me como alguém poderia ter coragem de ficar ali. A porta de entrada estava com uma fenda enorme. Era por onde se passava. Havia pouca iluminação lá dentro. O chão estava nitidamente podre, os tacos de madeira quase explodindo diante do mofo. Sombras negras começaram a aparecer a minha frente e percebi que eram pessoas escoradas as paredes, deitadas sobre cobertores velhos, algumas acordadas, outras chapadas demais para fazer qualquer movimento. Eram restos de cigarro, garrafas vazias, camisinhas usadas, roupas sujas acumuladas por onde se pisava. O cheiro de erva velha, mofo e urina estava impregnado no ar. Era deprimente. Nunca imaginei que existiriam lugares assim. Miranda estava logo atrás de mim. Em determinado momento, tocou meu ombro e apontou com delicadeza. Havia uma cozinha naquela casa, a parede que a dividia da sala estava esburacada, com seus tijolos aparentes. Reconheci Holly pelos sapatos. Apenas pelos sapatos. Os mesmos que eu havia dado para ela no dia em que conheceu Lucas. Holly era outra pessoa. Completamente outra pessoa. Estava magra, cheia de hematomas pelo corpo e com a aparência completa de um zumbi. Pernas e braços não se sustentavam. Segurei toda e qualquer emoção ao vê-la. Reprimi as lágrimas de horror e agachei para pegá-la nos braços. Ela estava encostada a outro rapaz de cabelos bem negros e curtos. Sua respiração era quase que inexistente. Miranda se agachou junto comigo e me ajudou com ela. Juntou seus cabelos desorganizados com cuidado. – Vamos levá-la pra casa, Rebecca? Solucei um choro sem lágrimas. – Vamos. Estacionei meu carro à frente de casa e parei por meros segundos, sem saber o que fazer. Analisei os antebraços da Holly antes de tirá-la do carro e tomei ciência da minha maior e mais temida suspeita: ela tinha se drogado com heroína. Por isso ela não respondia a nenhum estímulo. O barato ainda duraria algumas horas, então decidi com Miranda que a deixaríamos descansar no meu quarto até que ela acordasse.


Catherine ainda insistia em dizer que o melhor era levá-la para o hospital o mais rápido possível, mas não concordei. Uma intervenção hospitalar resultaria em mais remédios, mais química em seu corpo, mais traumas. Não era o caso de uma overdose, e sim de uma bad trip, em razão das duas semanas de abstinência. Deixei Miranda cochilar no sofá nesse meio tempo. Quando Holly abriu os olhos com certa dificuldade, não ousei dizer nada, muito menos conceder horas de sermão. Expliquei calmamente e sugeri que ela tomasse um banho, trocasse de roupa e comesse algo. No momento em que seus olhos me alcançaram, meu peito congelou com seu desprezo. Uma lágrima escorreu pelo seu rosto e pressenti que ali era o último lugar que gostaria de estar, mas ainda assim, o único que lhe restara. Ela não precisou dizer uma única palavra, mas eu senti como se tivesse dito em alto e bom som: “você é a última pessoa que eu gostaria de ver agora.” Amizade é isso. É lutar por algo, mesmo quando a outra pessoa já desistiu. É ficar, mesmo quando não se é bem-vindo, porque você sabe que é a última esperança, a última pessoa que restou capaz de ajudar. Holly não se obstou a nenhum dos meus pedidos e permaneceu em silêncio durante todo o tempo. Por diversas vezes, senti que eu possuía uma estranha dentro da minha própria casa. Ela deitou-se na cama assim que empurrou o prato de risoto que eu fiz, após ter dado algumas colheradas. Recolhi e deixei-a sozinha, pegando o caminho de volta pra cozinha. Miranda me esperava sentada à bancada do passa-pratos. – Como ela está? Pela primeira vez, eu me sentia vazia demais para dar alguma resposta. – Eu... não sei. Joguei um pano seco sobre meu ombro e me sentei sobre o azulejo branco do piso. Completamente derrotada. Não aguentei e desabei em lágrimas. Miranda se juntou a mim e me abraçou. Meu pulmão inflava de dor. – Calma, Rebecca. – Meu Deus, como dói. – Tentei soluçar alto pra desafogar o nó que eu sentia dentro do peito. – Agora é a hora que você tem que ser forte. Se você cair, ela nunca vai se recuperar sozinha. Holly definitivamente precisa de você. A dor se instaurou de novo. Eu não conseguia me conformar. – Por que, Miranda? Por que tem que tudo ser tão difícil? Miranda me abraçou forte. Seus braços finos me envolviam de uma forma que impediam que meu corpo tremesse ainda mais.


Só Deus sabe o quanto eu estava cansada. Dispensei Miranda e fiquei sozinha com Holly em casa. Estiquei–me na cama ao seu lado e liguei a TV. De hora em outra eu a observava. Ela continuava a descansar de forma tranquila. Por um momento consegui me sentir bem, tentando me concentrar no fato de que agora eu sabia onde ela estava. E principalmente com quem. Catherine ficou de passar na parte da noite para vê-la. Quando avisei a Holly que sua mãe estava a caminho, ela levantou-se da mesa de jantar e falou pela primeira vez, nervosa demais. – Eu vou embora. Não quero falar com ela. – Holly. Calma. – Eu. Não. Vou. E não me faça perguntas. – Bradou. Uma confusão interna me atingiu. Eu apenas sabia que não poderia deixá-la sair daquela casa. – Ok. Quando ela vier, digo que você está cansada demais para recebê-la. Tudo bem? – Tentei estabelecer o contato diretamente com seus olhos. Ela desviou rapidamente. – Mas pra isso, você tem que me prometer uma coisa. Não houve resposta. Prossegui. – Se você quiser embora, apenas me avise. Não saia na calada da noite. Seus olhos se fecharam, como se aceitasse a condição. Não falamos mais nada depois disso. Lidar com ela era o mesmo que estar com uma granada nas mãos. Qualquer movimento e boom! Tudo poderia ir pelos ares. Era melhor evitar. Joguei o seu jogo e não fiz perguntas. Tudo o que eu queria é que ela ficasse bem. E de uma forma que ela estivesse à vista, para ter certeza. Catherine sentou-se em meu sofá e conversamos por longos instantes. Ela sabia menos que eu sobre a repentina mudança de comportamento da filha. – Você está sendo uma das únicas pessoas que se ofereceu para cuidar dela. Eu só tenho você. – Holly sempre estará em boas mãos enquanto estiver comigo. Eu lhe fiz a promessa. – Dei uma pausa, enquanto reunia coragem pra tocar no assunto. – A senhora não consegue mesmo imaginar do porque dela estar agindo assim? – Rebecca. – Ela se ajeitou ao encosto e analisou o teto. – Holly sempre foi uma ótima filha. Mas, sendo sincera, ela nunca mais foi a mesma depois... Depois do que aconteceu em São Francisco. Em algum lugar, aqui dentro – seu rosto de afligiu e Catherine levou a mão ao coração – eu pressentia que passaria por algo do tipo. Que eu ainda sofreria, mais ainda por vê-la sofrer. Coisa de mãe. Mas eu confiava demais nela pra acreditar que pudesse ser possível.


[despedidas interrompidas] por Rebecca Dellape De noite Holly já estava retomando a cor da pele. Já não era mais verde amarelada. E embora sua aparência estivesse melhor, o diálogo continuava sendo zero. Liguei pra Miranda e consegui deixá-la bastante preocupada. Marquei para que passasse em casa no domingo, na hora do almoço. “Há coisas que você precisa saber, mas não por telefone. Não esse fim de semana.” Disse ela. Tentei por mais dez vezes ligar para Lucas, sem êxito algum. E então, tomei uma medida extrema. Liguei para o Tyler e exigi que ele fizesse com que Lucas me retornasse. O quanto antes. Caso contrário, Tyler poderia dar adeus à nossa amizade. Era questão de vida ou morte. A noite passou e nenhuma ligação foi registrada em meu celular. Quase liguei novamente, mas algo me disse para esperar mais um pouco. Passei aquela noite vigiando Holly durante o sono e observando seu corpo sofrer ligeiros espasmos. A fase de abstinência voltara com tudo. Acordei-a antes do amanhecer e lhe dei um calmante, o que a deixou relaxada para conseguir dormir mais profundamente. Eu havia acabado de receber Miranda em minha sala quando ouvi passos pesados se propagarem pelos degraus da escada de forma ruidosa. – Miranda! – Holly clamou atônita, seu corpo se aproximando do dela. – Oi, Holly. – Mimi olhou pra mim num relapso de segundo e deixou que Holly a abraçasse, por mais estranho e aleatório que o gesto pudesse ser. Nenhuma de nós entendeu aquela euforia. Não demonstrei, mas eu me revoltei. Na boa. – Você tem notícias dela? – Perguntou assim que se distanciou do abraço. Miranda e eu nos entreolhamos de novo, ainda abismadas. – Da Solara. – Holly completou. – Oh, sim. Ela está bem. Está em Tijuana.


– Quando ela volta? – Eu não sei, Holly. Você sabe que a tia Inês estava muito descontente e já não aguentava mais. – É tudo que nós somos, não é. Um grande peso. – Holly ironizou. – Você não pode lidar dessa forma, meu bem. Pessoas se machucam quando se envolvem com aquele tipo de gente. A expressão da Holly se transfigurou. – Miranda, não me force a falar do tipo de gente que eu não aguento mais me envolver. – Seus olhos se fecharam, contendo alguma ira momentânea. Ela estava falando de mim? Óbvio. – Ok, Holly. Não precisa se exaltar. Você... vai voltar pra escola amanhã? Ela ficou em silêncio. – Está todo mundo preocupado. Você tem muitos amigos que se importam. Seria legal reencontrá-los. – Depois de tudo, Miranda? – As pessoas fazem escolhas ruins. Às vezes. Mas isso não significa que não se deve dar uma segunda chance. – Duvido que Jodi queira me ver. Não sei você, mas me lembro muito bem da tarde no clube de beisebol. Holly olhou pra mim. E eu sabia porquê. Afinal, eu estava lá. Eu fiz o encontro. O desastre do aniversário da Jodi teve minha parcela de culpa. Miranda já não sabia o que falar. – Você não vai então. – Não foi uma pergunta. – Não sei. O que eu ganho? Olhares abismados, um monte de perguntas, comentários maldosos sobre minha aparência. Sério. Não faz sentido pra mim. – Você vai voltar pra casa? Ou quer continuar aqui? – Perguntei, finalmente. Holly me fuzilou. – De uma coisa tenha certeza, Rebecca. Não piso na minha casa ao mesmo tempo que minha... – Seus olhos cerraram – Mãe. Achei engraçado o jeito como ela disse "minha casa" e o reticente "mãe". Bang, bang! A treta era com a mãe! Difícil seria tirar uma explicação dela agora. – Só quero que você fique bem. De verdade. Não vou te repreender. – Miranda deu um corte, sentindo que o clima da discussão estava pesando. – Tenho muito o que resolver ainda. Pensar em escola e naquele bando de babacas é o de menos.


– Holly. – Miranda se aproximou dela com cuidado e passou a mão em seu rosto. – Só queria te pedir uma coisa. – Ela deu uma pausa proposital. – Faça tudo o que você tiver em mente. Sei que Solara estava te ajudando a encontrar uns caras. Mas não se destrua. Não fique no estado em que a encontramos ontem. Você não vai chegar a lugar algum assim, não encontrará respostas se perder o controle de si mesma. Não terá nem credibilidade por parte das pessoas pra conseguir algo. Ninguém confia numa pessoa... Que se... bem. Você sabe. – Eu sei. Eu sei. Mas é que... – Holly atropelou-se entre a emoção e algum tipo de raiva até conseguir se expressar. – É algo que me faz esquecer. Esquecer. Enquanto eu não finalizar o que pretendo, tudo isso me faz esquecer. – Podemos encontrar novas formas de esquecer, certo? Distraia–se. A escola é um grande passo, até porque você não pode fazer muito no momento. Se concentre em tentar, ok? E lembre–se que estou aqui para te ajudar. Miranda sorriu. E fez Holly sorrir, mesmo que minimamente. Ambas se abraçaram. Vi aquela cena e morri por dentro. Holly não confiava mais em mim. Eu havia perdido minha melhor amiga. E agora tinha que ver a pessoa que mais me desapontou na vida conseguir consolála bem na minha frente, dentro da própria minha casa. Era um bom castigo.

* Dez para a uma da manhã. Não acreditei quando vi seu número tocando no visor do meu celular. Corri para a sala, para que Holly não me ouvisse. Cheguei a varanda num átimo e atendi. Ele estava mudo do outro lado esperando que eu começasse. – Lucas! – Exclamei sussurrando. – Tyler me disse que era importante. Você deve ter o ameaçado com algo grave. Até imagino o que seja. – Lucas. Me escuta. Não desliga o telefone. As coisas saíram de controle. Você tem que saber de alguma coisa. – O que aconteceu com ela? – Holly está na minha casa no momento. – Graças à Deus. – Graças à Deus, meu pau, Lucas! Ela simplesmente está incomunicável. Algo pesado aconteceu. E muito provavelmente tem a ver com a Catherine. – Não sei tanto quanto você. – Disse, distante e pouco interessado. – Pensa, pelo amor de Deus. – Ela deve ter descoberto alguma coisa. – Supôs sem grandes emoções.


– Holly passou algumas semanas trabalhando pro Edgard. – O quê? – Sua voz endureceu. – Fazendo que tipo de trabalho? – E eu sei? Ela se meteu com a prima da Miranda e passaram uns dias no México. – Ela definitivamente perdeu a cabeça. Não deixe que ela saia da sua casa. Ou as duas vão morrer. – Solara está num colégio interno em Tijuana e ficarei monitorando a Holly. No momento não há perigo, mas não sei o que se passa na cabeça dela. – Bem-vinda ao clube. Também achei que a conhecia, mas nada saiu como eu esperava. – A questão é que não conseguirei segurá-la por muito tempo. Ela me odeia. – Não tenho muito o que fazer por aqui, você sabe. – Não lave as mãos, Lucas. Você tem sua parcela de culpa. – Tanto quanto você, querida. – Ah, é? Então me responda quem levou a Holly naquela fronteira e pôs quase tudo a perder. Me diga! Quem me garantiu mesmo que deixaria Forrest afastado o suficiente, que ele jamais saberia sobre vocês? Belo trabalho tentando protegêla. Cai na real, Lucas! Não sou eu a marginal da história. – Você está ajudando muito, Rebecca. – Olha, eu não pedi pra você me ligar para que brigássemos. Só tô tentando consertar as coisas. Lucas bufou do outro lado e não respondeu. – Você tem mais algo pra falar? – Sim. Nunca mais deixe de me atender. Ouviu bem? Nunca mais. – Ok. Mas me ligue quando for de extrema importância. Desliguei a ligação e parei por meio instante. Ouvi Holly limpar a garganta bem atrás de mim. Minhas pernas tremeram e o susto fez com que eu me desesperasse levemente. – Holly. – Alinhei meu cabelo para trás da orelha e me aproximei dela. – Quem era no telefone? – Perguntou com a sobrancelha arqueada. Ela já sabia a resposta. Não adiantaria mentir. – Um amigo. – Respondi, tentando parecer indiferente. – Hã. – Ela descruzou os braços, a expressão incrédula. – Tenho um recado. Pro seu amigo. – Deu ênfase no termo com certo deboche. – Diga ao Lucas que vai dar muito trabalho limpar toda a sujeira que ele deixou. Não ousei responder e/ou questionar. Do que ela estava se referindo? De que tipo de sujeira? Quem iria limpar essa suposta sujeira? Seu corpo virou-se e a vi sumir escada acima.


Permaneci inerte com o celular na mão, sem conseguir assimilar todos os fatos. Muita coisa não estava batendo. Aliás, sendo bem sincera, nada fazia o menor sentido. – Holly. – Chamei-a rapidamente enquanto a seguia pelas escadas. Eu tinha um milhão de perguntas e a certeza de que não obteria nenhuma resposta. Então optei por fazer a pergunta mais idiota de todas assim que lhe vi sentada no lado que ela preferia dormir em minha cama. – Você vai pra escola amanhã? Não houve resposta. Era uma pergunta idiota? Era. Mas um sim significaria um grande começo. Eu havia feito muitas escolhas erradas, esvaziei minha cota de mentiras aceitáveis e quebrei sua confiança por várias vezes. Restava tentar recuperar sua fé aos poucos. Então continuei. – Eu vou estar lá. Mesmo que não acredite. Estou do seu lado. Sempre estive. Ela desprezou a ideia. Deu pra ver em seus olhos jogados ao chão. Provavelmente Holly queria encontrar um argumento que me fizesse calar a boca em poucos segundos. – A escola é tudo que me resta, não é. – Seus olhos me fitaram na escuridão do quarto. Riu de repente. – Não tenho sequer um caderno. – Eu posso te emprestar. E se quiser, posso passar na sua casa pra pegar algumas coisas que vá precisar. Dou um jeito na sua mãe. Fizemos um trato, lembra? Silêncio. Vi seu peito inflar devagar. Ela estava pensando. – Só... me acorde na hora certa. Tem meses que perdi a noção dos horários. – Ok. Naquele momento, algo muito virtuoso se aqueceu dentro do meu peito. Eu quis sorrir largamente, mas me contive. Desci até a cozinha para colocar comida para o Luke e deixei que a emoção fluísse. Chorei em silêncio enquanto sentia o os pelos dele roçaram em minhas pernas. Seu rabo sacudia levemente e os olhos caninos cheios de afeto me encaravam como se soubessem exatamente como eu estava me sentindo. Abaixei ali e o abracei, rezando mentalmente para que tudo pudesse voltar a como era antes. Pensei na minha melhor amiga e desejei por tudo que é mais sagrado que ela voltasse logo. Algo me disse internamente que isso não dependeria de mim. E que eu jamais, em nenhuma hipótese, poderia perder as esperanças.

* – Como está se sentindo? – Perguntei assim que estacionei o carro no estacionamento da escola. Destravei as portas e retirei o cinto.


– Preferia estar morta. –Holly respondeu enquanto fazia o mesmo. – Não será tão ruim quanto seu primeiro dia. Saímos do carro e cacei na mente algum assunto que pudesse desviar daquele clima fúnebre. – Conversei com Seth na semana passada. Está muito feliz em Washington. Holly não disse nada. Apenas sorriu, feliz pelo amigo. – Ele também disse que sente sua falta. Quando puder, fale com ele. Saberá de muitas novidades. – Sinto falta dele também. – Ela disse distante. – Pena que só percebi agora. E Hailey? Está bem? – Sim. Mais focada do que nunca naquele intercâmbio voluntário. Começou com o treinamento hoje. – Ela já decidiu o roteiro? – Já. África do Sul. Dá pra acreditar? Hailey Cooper, África do Sul? – Sorri. – Você não tá falando sério. – Holly quase riu. – Sim, estou. – Isso é mágico. E... o Leo? – Faz muitas semanas que não o vemos. Não soube se foi aceito na UCLA. Acho que passará mais um tempo ajudando seus pais na loja. – Espero que dê tudo certo pra ele. – Ele foi um pouco babaca com o Ian, sabe. Por isso meio que nos afastamos. – Sério? – Sim. Leo andava estranho. Sempre irritado, sem paciência. Até que entrou numa pilha com o Ian, começou a falar da Jenny. Ian é louco por ela, você sabe. Não foi uma discussão muito madura. Minha amiga ergueu as sobrancelhas, surpreendida, mas não ousou comentar nada sobre. Nós já havíamos cruzado o pátio principal e seguíamos pelo corredor do último ano. Holly não fazia a mínima ideia da sua grade de aulas, então a guiei até a sala de química avançada e me despedi, combinando rapidamente de me encontrar com ela no laboratório de biologia antes do almoço. Minha aula de latim já havia começado. Entrei na sala e descobri que Miranda havia guardado uma carteira vazia ao seu lado para que eu me sentasse. – Preciso conversar com você. Tenho respostas. A gente mata a próxima aula, pode ser? – Cochichou inaudivelmente enquanto fingia buscar uma caneta que supostamente havia caído no chão. Pisquei, anuindo. Os minutos daquela aula se arrastaram. A ansiedade me fazia me remexer na cadeira a cada minuto.


Eu já havia guardado todo o meu material quando o sinal finalmente tocou. Pulei da carteira e Miranda veio logo atrás. – Vamos escapar pela sala dos professores. O velho e bom truque da sala dos professores. Miranda tinha total acesso para entrar e sair do setor administrativo, uma vez que sua mãe era professora. Quando a avistaram ali, ninguém se preocupou em inquisitá-la com perguntas. Saímos pela saída de emergência e descemos as escadas até o estacionamento dos funcionários. Miranda tinha uma cópia do Maverick da mãe, o que nos ajudou na fuga. Sua mãe só precisaria do carro no final da tarde, então jamais desconfiaria que ele teria saído dali. – Simplesmente não dá pra conversar sobre isso na escola. Miranda disse assim que passamos o primeiro semáforo. Joguei minha bolsa pra trás e coloquei o cinto. Mimi seguia o caminho para uma lanchonete onde íamos quando costumávamos sair juntas. Naquele horário, o lugar estaria desolado. Seria perfeito. Sentamos à mesa lateral próxima dos sanitários, no intuito de não ficar à vista. – Eu achei que a Solara estava delirando. – Ela começou, os olhos atentos a possíveis ouvidos curiosos. Os funcionários estavam preocupados demais com o enceramento do chão e distantes o suficiente. O barulho da máquina extinguiria todas as chances de sermos ouvidas. – Como assim? – Acho que tenho uma pista do que pode estar acontecendo. Se for, Holly está em perigo. – Ela deu uma pausa. – Na manhã em que tia Inês apareceu em casa pra buscar a Solara, ela surtou, Rebecca. Começou a gaguejar e balbuciar sem parar, e a princípio, não entendi nada. Eram coisas como “aquele desgraçado do Saul River não pode sair impune”, “Sanders precisa saber do atentado.” Ela gritava pra que eu não deixasse tia Inês levá-la, que ela ficaria exposta no México. Que iriam querer a cabeça dela. “Flike vai me matar”. Ela disse umas três vezes. Achei que era loucura. Mas pesquisei esses nomes no fim de semana e de repente o quebracabeça começou a se encaixar. Você quer saber quem é Saul River? É um chefe de polícia lotado na segunda divisão da fronteira. Ele foi responsável pela investigação daquela explosão provocada pelo Forrest, onde Lucas e Holly estavam. – Esse por acaso não é aquele que teve a casa invadida há uns dois meses? – Esse mesmo! E eu suspeito que Sol, Holly e uns meninos estejam envolvidos. Eles estavam atrás de algo. Lembro de ouvir a Sol contar pra alguém pelo telefone, toda aflita “a gravação está comigo, já demos um jeito”.


Na época fiz um monte de perguntas mas ela desconversou. E uns dias depois ouvi as duas conversarem sobre o Edgard. Ambas estavam cumprindo missões para ele. Só não sei a troco de quê. – E quem é Flike? Sanders? Soam familiares. – Um secretário de segurança se chama Louis Sanders. Não sei se trata da mesma pessoa. E Flike – Miranda se afligiu – tento resgatar a origem do nome e de quando ouvi algo do tipo pela última vez. – Holly foi atrás de respostas, Miranda. – Matei a charada. – Edgard é o traficante que atua há mais tempo na região. Sabe uma infinidade de segredos. Ele sempre quis ferrar o Lucas. – Sem perceber, eu já estava roendo minhas unhas, ansiosa. – Espera aí. – Algo se acendeu na minha mente. – Ele só faria esse tipo de parceria se estivesse com um plano maior na cabeça. Nós duas ficamos em silêncio. Em minha cabeça, eu tentava buscar a peça chave que explicaria aqueles fatos. – É uma emboscada, Rebecca. – Miranda socou a mesa, convicta. – Edgard usou da Holly como isca. Colocou-a na mira de muitas pessoas, fazendo com que ela praticasse essas missões. Tudo pra atingir o Lucas. – Edgard sabe que ela é o calcanhar de Aquiles. – O próximo passo seria machucá-la. É pior do que imaginamos. – Só uma pessoa pode resolver isso – Disse. – Lucas. – Sol deduziu num átimo. – Realmente, muita sujeira pra limpar. Foi tudo que consegui dizer. Alguém precisava urgentemente voltar pra casa. Mas no momento, eu precisava ver a Holly e saber exatamente o que ela tinha feito para o Edgard. Saber exatamente o que viria pela frente, o que teria que enfrentar. Porque eu ainda não fazia a mínima ideia. Voltamos pra escola e fizemos todo o esquema para que não desconfiassem da nossa saída clandestina. Agradeci em silêncio quando vi que conseguimos chegar bem no momento da troca de turmas. Ninguém percebeu nada. Alguém se aproximou sorrateiramente de mim durante o caminho. – Você conseguiu. Você sempre consegue. – Ian! – Abracei-o. – Tá indo pra direito cívico? – Isso mesmo, vadia. – Piscou, já me acompanhando. – Como conseguiu convencê-la a voltar? – Onde você a viu? – Eu e a Holly somos vizinhos de armário, esqueceu? – Oh, sim. Ela... te tratou bem?


– Muito bem. Quer dizer, acho. Eu estava esperando, sinceramente, que ela me desse um bom soco, ou algo do tipo. Não a via desde aquele dia da boate. – Ela vai melhorar. Você vai ver. O importante é não tocar no ponto fraco. – Por mim. Você sabe que sou tranquilo. Mas Jodi está furiosa. Bem furiosa. – Ela quer que a garota faça o quê? Morra e suma de uma vez? – Acho que sim. Ela lembra daquele sábado como se fosse ontem. Quem apanha não esquece. Já ouviu isso? – Ela bem que mereceu. – Dei de ombros. – Mas não deixe ela saber disso. – Você é terrível, minha pequena psicopata. Quer um conselho? Deixe as duas longe uma da outra. – Pressinto que o almoço de hoje será difícil. – Finalizei o assunto, assim que nos sentamos em carteiras próximas. Depois daquela aula, encontrei-me com a Holly no laboratório para a aula de biologia, como havíamos combinado. Senti-me apreensiva até ter certeza de que ela não teria fugido. Essa sensação me acompanhava constantemente. – Podemos conversar sobre uma coisinha depois? – Que coisinha? – Ela perguntou séria. – Lembre-se que estou tentando te proteger, ok? – Como todas as outras vezes, sim. Vou lembrar. – É melhor falarmos disso longe daqui. – Disse, já escolhendo uma bancada vazia para nós duas. Ian chegou alguns instantes depois e se juntou a nós. Na cabeça, tentei bolar um plano para impedir que houvessem desastres no almoço. O mais certo seria ficar longe de Jodi e Michael. Ian, Hailey e Jenny teriam que me perdoar. Mas eu só poderia me unir a Holly e a Miranda. O sinal do término da aula bateu e deixei que todos os alunos saíssem. – Você conseguiu pegar a chave reserva do seu armário, Holly? – Ian perguntou. – Ainda não fui até a secretaria. Farei isso agora no almoço. – Respondeu. Seria a hora perfeita. – Quer companhia? – Ele se ofereceu. – Ian. – Chamei sua atenção rapidamente. – Temos que nos inscrever na turma de fotografia. É bom irmos logo. – Era um código para conversas particulares. – Pode ir, Ian. Não se incomode. – Holly o tranquilizou. Ian não compreendeu, mas não ousou em abrir a boca para me contrariar. – Encontro vocês no refeitório. – Ela disse, despedindo-se por fim. – Você tem certeza que é uma boa ideia deixá-la sozinha? – Ela não é nenhuma criança. E não vai gostar de se sentir monitorada vinte e quatro horas. Precisa de um pouco de liberdade. E quero falar com você. – Manda.


– Temos que dar um jeito na Jodi. Vou chamar a Miranda pra almoçar com a gente. É um reforço. – Você realmente vai nos trocar pela Miranda. Eu sabia que um dia isso iria acontecer. – Ian. Olha a situação. O grupo vai ter que se dividir. Pelo menos por enquanto. – Você venceu. Vou avisar aos garotos. Jenny e Michael estão saindo do ateliê de música. Fiquei de buscá-la. –Vou atrás da Miranda. Qualquer coisa nos vemos no refeitório. Apertei o passo assim que perdi Ian de vista. Eu sabia que poderia encontrá-la nos ginásios externos. Passei pelos corredores jardinados e peguei o caminho mais curto pelo prédio novo. Torci internamente pra que ela ainda estivesse lá. – Flike não é ninguém menos do que o Forrest. – Miranda me pegou pelos ombros antes mesmo que eu conseguisse reconhecê-la. Ninguém daquela multidão ouviu suas palavras, mas pra mim, foi como se tivesse berrado em altos decibéis. – O quê? – Como pude ser tão burra! – Ela rangeu os dentes. Eu ainda estava em estado de choque. – FLK, FLK, Rebecca! – Miranda sacolejou-me. – As iniciais dele enquanto serviu no Iraque. Lucas falou isso uma centena de vezes! – FLK, Flick. Sim. – Meus olhos tremeram. – SIM! Ele é conhecido como Flick por outros criminosos. – Se as meninas estavam trabalhando para o Edgard, era a troco de informações sobre Forrest. Isso explica o terror por trás das palavras da Solara. E liga Saul quase que instantaneamente. – Saul estaria acobertando ele. Então Forrest está mais forte do que imaginamos. O atentado que ela se referiu é uma nova ameaça. – Talvez estivessem tentando comunicar ao secretário. Está encaixando. Precisamos tirar a Holly o quanto antes de circulação. Não sabemos o que ele tem em mente. – Vamos achá-la. Recolhi Miranda pelo braço e desbravei os corredores do bloco de atividades recreativas, pegando um atalho pelo jardim para chegarmos a secretaria. Mas ela já não estava mais lá. – Ela deve ter ido pro refeitório. – Pensei alto, desviando os passos no sentindo contrário. – Você a deixou sozinha? – Miranda correu atrás de mim, tentando me alcançar. – Você queria que eu ficasse carregando-a no colo? – Encarei-a, ligeiramente nervosa.


– Não foi uma atitude das mais prudentes. Admita. – Quieta, Miranda. Apenas me ajude a localizá-la. O refeitório estava apinhado de alunos. Mas nenhum sinal dela. O desespero fez com que uma pontada pungisse meu peito. Centenas de rostos frenéticos, o alarido habitual que agora deturpava meus sentidos. Meus pés estavam me levando para o corredor dos armários do último ano, involuntariamente. – Holly está com você? Por favor, diga que sim. – Ian apareceu na minha frente, impedindo que eu prosseguisse. – O quê? Meus ouvidos bloquearam. – Eu falei pra Jodi não pegar pesado. Pra, pra ela deixar pra lá. – Ian se atrapalhou ligeiramente com as palavras. – Mas que porra aconteceu? – Calma. Ela não vai conseguir ir muito longe. – Eu vou surtar se você não me disser o que tá rolando. – Peguei-o pela camiseta. – Eu odeio ser fofoqueiro. – Seus olhos se apertaram. – Eu cheguei no final, não consegui ouvir tudo. Mas foi pesado. Ela disse à Holly que ela era igual ao... Bem, só deu tempo de ver a Holly caindo fora. – Temos que encontrá-la o quanto antes, Rebecca. Principalmente agora. – Miranda advertiu-me. Jodi brotou entre nós e tirou Ian do caminho num rompante. Seus olhos ardiam em repudio. – Você quer saber o que aconteceu? Saiba que eu apenas disse à Holly que ela era uma egoísta mimada! Aquela vadia arruinou meu aniversário, passou meses sem falar comigo e agora soube olhar pra mim e sequer pediu desculpas! Ela precisava saber que é tão delinquente quanto o cara que ela soube se envolver. Não faz a menor diferença na vida de alguém. Aposto que ela só voltou por insistência sua! Avancei sobre a garota, pegando seu rosto com as duas mãos, empurrando seu corpo contra os armários a minha lateral. O barulho foi estrondoso. O mundo a nossa volta parou. – Eu juro que se algo acontecer a ela eu vou acabar com você, lembre-se disso, Jodi. Ouviu bem? – Minhas mãos desceram até seu pescoço e ali concentraram uma força que eu não consegui controlar. Vi ela engasgar e não parei. – Rebecca! – Ian urrou pra mim. Alguém me enquadrou por trás e vi Jodi rumar para o chão. Mike e Jenny apareceram de repente, completamente afônicos. – Essas são as desculpas que você queria? Então faça bom proveito. – Gritei.


– Acho melhor nos dividirmos. – Miranda disse logo atrás de mim. Ela ainda me segurava. – E rápido. Você vem com a gente, Ian? Ele hesitou por ligeiro segundo. Os olhos saltaram para Jodi e Mike. Jenny se aproximou de nós, antes mesmo que ele respondesse. – Nós vamos. – Ela deliberou instantaneamente. – Ian, vai com a Rebecca. Eu fico com a Miranda. Miranda finalmente me soltou. Respirei fundo, tentando recuperar o fôlego. – Acho melhor as garotas ficarem com a parte externa. Nós podemos procurar pelos prédios. – Sugeri. – Tem alguma possibilidade dela ter saído do campus? – Jenny perguntou. Amassei o rosto, incomodada. – Sim, tem. A segurança daqui não é das melhores. Matar aula não é nem um pouco difícil. – Entreolhei-me com Miranda. Suas sobrancelhas se uniram, numa expressão de desespero. – A gente se encontra na biblioteca daqui meia hora. Assim que o almoço acabar. Dei uma última olhada para trás e vi Jodi se levantar com o auxílio de Mike. – Espero que esteja feliz agora. Ela nada respondeu. Reuni força nas pernas e peguei a direção contrária das garotas. Ian estava logo atrás. – Vamos em todos os banheiros desse andar. É um bom lugar pra chorar. – Ela estava chorando? – Arregalei os olhos. – Pra caramba. – Então por aqui. – Desviei rapidamente, chegando até as portas dos primeiros banheiros do corredor. – Holly! – Ian entrou comigo chamando-a, sem se preocupar. Estava completamente vago. – Droga! Vamos pro próximo. Vistoriamos mais três sanitários do pavimento térreo e os restantes do primeiro andar. Não achamos nada. Mudamos de prédio, conferimos as secretarias, a enfermaria, o auditório – que estava trancado – a quadra coberta, os vestiários, as salas novas que ainda não haviam sido inauguradas, mas possuíam livre acesso, como também o ateliê de artes, o setor de grupos de debate, os almoxarifados do terceiro andar, a sessão de informática e tecnologia, como as salas dos primeiros e segundos anos. Rodamos todo e qualquer lugar possível que ela poderia estar. Eu já estava rezando para que Miranda e Jenny tivessem alguma notícia. As duas estavam sentadas ao sofá da recepção da biblioteca. Olhei duas longas vezes, na esperança de ver Holly com elas. Mas não. Assim que nos avistaram, levantaram-se apreensivas. – Nada. Em lugar nenhum. Ela simplesmente evaporou.


– Não sei o que fazer. Não dá pra simplesmente ficar caçando agora. Levaremos uma advertência se andarmos por aí sem autorização. – Jenny lembrou. – Vamos pro plano B. – E qual é o plano B? – Eles disseram em coro. – Não procurar mais por aqui. E sim na cidade. – Isso é loucura. Tenho apresentação de tese em ciências sociais agora. – Eu também. –Miranda lamentou desoladamente. – Tá, vocês ficam. Até porque ela pode estar por aqui ainda. Vou ficar com o celular ligado. Qualquer novidade nos falamos. – Posso... Ir com você. – Ian enfim falou. – Não vou te deixar sozinha.

* – Talvez a gente devesse acionar a polícia. Rebecca. – Queria fazer isso em último caso, Ian. – Acho que chegamos nesse ponto. Está escurecendo. Rodamos o centro inteiro. Estamos há uma hora sem um paradeiro atualizado. Sabe lá Deus o que aconteceu com ela. Se passou mal, se... fez alguma besteira. Não sei lidar com isso. As luzes da cidade se ascendiam gradualmente conforme pegávamos as rotas que muito provavelmente ela poderia ter escolhido. Ian ficou em silêncio no banco do carona. Comecei a pensar. Nós tínhamos duas pistas. 1. Holly esteve no seu apartamento há cerca de uma hora. 2. Ela saiu do edifício e seguiu o caminho costumeiro para a estação do Trolley. Eram sete estações até o ponto final. Não lembro se ela conhecia cada uma, mas entre todas, sabia que para ela Pacific Beach seria a mais familiar. Fiz uma manobra brusca quando vi que o último retorno para Pacific Beach estava ao meu lado. Ian se assustou. – Olha, eu ficaria feliz se conseguisse voltar vivo pra casa hoje, ok? – Cala a boca, Ian. Eu tô pensando. Ela só pode estar em Pacific Beach. Ultrapassei o limite de velocidade algumas vezes enquanto eu tentava pegar a avenida da praia. Quando avistei o primeiro farol, meu coração se afligiu. O píer da praia estava vazio. Continuei dirigindo até a estação. Algo me disse para aguardar bem à frente da plataforma de desembarque. Uma manada de turistas atravessou a faixa, mas nenhum sinal dela. – Você acha que ela viria pra cá? – Não sei. É provável. Ela sempre se sentiu muito bem aqui.


– Se ela quis sumir, fatalmente foi para um lugar desconhecido. Podemos passar nas outras estações e perguntar por ela. Como fizemos no centro. Deixamos os telefones e eles ligam, se souberem de algo. – Eu quero voltar pra casa com essa garota, Ian. E hoje. Não vou esperar ninguém me ligar. – Calma. Vamos estacionar o carro e fazer algumas perguntas por aí. Arranquei com o carro e dei a volta. Escolhi uma vaga bem larga a frente do calçadão da praia. – Quer começar por onde? – Ian perguntou ao sair. – Na estação. E depois vamos aos quiosques. Um único olhar ao redor da praia fez minha consciência estalar. Naquela préescuridão da noite, algo loiro esvoaçava-se ao sabor do vento. Senti aquela pontada desconfortável no peito. – Ian! É ela! – Onde? Meus olhos a seguiram. Holly se despiu do seu suéter azul e apertou os braços cruzados contra o corpo. Ela andava descalça pela areia com cautela. Parecia pensar a cada passo. A cabeça abaixada que guiava um corpo esguio e frágil. – Que diabos ela está fazendo? Afastei-me da porta do motorista para observar melhor. Holly estava definitivamente indo em direção ao mar. Sem olhar para trás, sem hesitar. Fiquei inerte ali, amparada à lataria do meu carro, vigiando–a. – Becky, isso não vai acabar bem. Ian partiu a caminhar apressado, já gritando o nome dela. – Holly! Volta! Os pés dela tocaram a água e ela continuou a adentrar, sem nenhum receio. Comecei a correr desvairadamente. – Holly! – Urrei. – PARE COM ISSO! Meus sapatos me impediam de correr eficientemente pela areia, então arranquei–os e continuei a correr. Holly continuava a adentrar na água que já alcançava seus quadris. Ian estava logo atrás. – Pelo amor de Deus, garota! Holly! – Ele gritou mais alto do que a primeira vez. E ela ouviu. A cabeça virou pra trás, os olhos sombriamente carregados com um ar de despedida. Seus braços se afastaram e vi seu corpo sumir na escuridão do mar. Recoloquei o dobro de força nas pernas e assim que senti a água tocar a ponta dos meus dedos, me atirei.


Era uma escuridão sombria e mortalmente gelada. Segurei a respiração até sentir meus pulmões pedirem socorro. Voltei a superfície e recolhi uma boa dose de oxigênio, retornando as profundezas logo em seguida. Concentrei-me em nadar desesperadamente naquele breu infinito, tentando equilibrar os movimentos para não ser levada pela corrente. Incrivelmente, com uma força descomunal, eu alcancei algo rígido e agarrei. Com precisão, recolhi seus braços imediatamente. Desesperei-me ao tentar me apoiar no solo e descobri que já estávamos fundo demais. Inclinei meu corpo e consegui boiar, nos levando a superfície rapidamente. Eu já não sentia minhas pernas e mãos. Assim que senti uma nova porção de oxigênio preencher meus pulmões, tossi ruidosamente, chegando até mesmo a expelir um pouco de água salgada. Encontrei a melhor forma de apoiar Holly nas minhas costas e nadei de volta até a margem. Ela estava desacordada. Ian esperava com a expressão transfigurada de medo. Arrastei a Holly para a areia. Caí sobre o chão e a abracei. Ela estava enregelada demais, seus membros tremiam fervorosamente. – Holly. Holly! – Sacolejei-a rapidamente. Nenhum sinal. – Ela não está respondendo, Ian! – Pressiona o peito dela! Já liguei pra emergência. Tentei fazer a massagem cardíaca, mas minhas mãos eram brutas e canhestras demais para aquilo. Eu poderia machucá-la ainda mais. Parti a chorar em desespero. – Acho que consigo. – Ian agachou e removeu Holly do meu colo, deixando-a reta sobre o chão. Seu corpo parecia estar desligado. Ele partiu a impulsionar seu tórax com as duas mãos em intervalos regulares. Não me restou nada ao invés de chorar. Foi então que seus olhos se abriram e ela tossiu. E voltou a ficar inconsciente. Ian intensificou os movimentos. Até que Holly disparou a cuspir água. Seu corpo ainda estava amolecido sobre a areia. Um gemido alto saiu da sua garganta. Vi seu peito inflar rapidamente, e uma outra série de tossidos se sucedeu. – Acabou, Holly. Acabou. – Alisei seu rosto. – Cadê meu celular, Ian? – Aqui. – Ele o retirou do bolso da calça jeans. – Graças à Deus não entrei com você na água. – Encarei o aparelho. – Tá na hora de todo mundo voltar pra casa. Todo mundo. Disse, já discando um número que prometera nunca deixar de me atender.


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