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Rebecca Dellape

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TALENTOS DA LITERATURA BRASILEIRA

S達o Paulo, 2014

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Copyright © 2014 by Rebecca Dellape Coordenação Editorial Diagramação Capa Preparação Revisão

Nair Ferraz Edivane Andrade de Matos/Efanet Design Monalisa Morato Denise Di Camargo Rita de Cássia Costa

Texto de acordo com as normas do Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (Decreto Legislativo no- 54, de 1995) Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Dellape, Rebecca Entre Outubros / Rebecca Dellape – Barueri, SP : Novo Século Editora, 2014. – (Talentos da literatura brasileira) 1. Ficção brasileira I. Título. II. Série. 13-13825

cdd-869.93 Índices para catálogo sistemático: 1. Ficção : Literatura brasileira 869.93

2014 IMPRESSO NO BRASIL PRINTED IN BRAZIL DIREITOS CEDIDOS PARA ESTA EDIÇÃO À NOVO SÉCULO EDITORA LTDA. CEA – Centro Empresarial Araguaia II Alameda Araguaia, 2190 – 11-o andar Bloco A – Conjunto 1111 CEP 06455-000 – Alphaville Industrial – SP Tel. (11) 3699-7107 – Fax (11) 3699-7323 www.novoseculo.com.br atendimento@novoseculo.com.br

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Aos meus ídolos – um herói que me ajudou a encontrar uma última razão para acreditar, e à miss sexta-feira rosa, por me ensinar que é fazendo sucesso que se afronta os inimigos com uma generosa dose de bom humor; aos meus fieis amigos, por me proporcionarem a motivação mais efervescente já inventada; à minha faculdade, por me disponibilizar suas salas de informática – caso contrário eu ainda não teria finalizado a história e a estaria escrevendo escondido por madrugadas a fio; e, ipso facto, à minha mãe, por me transferir geneticamente sua garra e ousadia.

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As pessoas nos levam às experiências, as experiências nos levam ao crescimento, e o crescimento nos leva à f e l i c i d a d e.

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CAPÍTULO UM

olhar o mundo com a coragem de um cego O vento havia varrido todas as nuvens do céu naquela manhã ensolarada de outono. Os reflexos da luz matinal escaparam pelas frestas da cortina do meu quarto, iluminando o ambiente. Aquela claridade habitual e agradável se enalteceu diante dos meus olhos. Eu me preparei para levantar, recolhendo uma singela presilha roxa do criado-mudo, prendendo assim meus longos cabelos loiros ao topo da cabeça. Toquei os pés no chão e respirei fundo, reunindo forças para mais um dia. Mamãe havia deixado um bilhete sobre a mesa de jantar. Li o pequeno papel com curiosidade. Holly, querida. Deixei sua camiseta da escola na secadora. Estarei de plantão no Hospital Geral até as cinco horas. Não se esqueça de me mandar uma mensagem dizendo que chegou bem. Sabe que fico preocupada. O dia vai ser lindo. Eu te amo. Ps.: FELIZ ANIVERSÁRIO! Aproveitei a existência de um livro qualquer sobre o aparador à frente da mesa e guardei a folha de papel entre algumas páginas aleatórias. O calendário preso à parede da cozinha anunciava 17de outubro de 2008. Eu até estava muito animada para um dia comum, mas nem tanto para o dia do meu 16o aniversário. Eu apenas me preocupei em lavar o rosto e escovar os dentes. Não estava nem um pouco interessada em maquiagens ou adornos. 9

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Usei a mesma presilha roxa para prender algumas mechas da minha franja e sorri para o espelho quando acabei. Minha mochila estava jogada no sofá desde o dia anterior. Revisei os cadernos e adicionei algumas apostilas para as aulas de sexta-feira. Quase me esqueci do livro que a Sidney havia me emprestado no começo da semana. O título era surreal demais para minha memória. Tratei de enfiá-lo na bolsa e encaixei as alças dela em meus ombros. Passei a chave na porta de casa e fui até a garagem pegar minha fiel bicicleta. Entre pensamentos e tranquilas pedaladas, imaginei que havia esquecido meu celular. Freei rapidamente e o cacei na mochila com alguma esperança, mas ele não estava lá. Droga. Olhei em meu relógio de pulso e me conformei que não haveria tempo para buscar. Subi novamente na bicicleta e me preparei para seguir o caminho cotidiano até a escola. A rua da minha casa costumava não ter movimento naquele horário. As residências eram térreas e de médio porte. Todas de cores e formas diferentes, sem perder sua estrutura padrão. O silêncio instaurado era avassalador. Eu olhava desatenciosamente para a frente, até ouvir pneus cantarem como se anunciassem um acidente. Retomei a atenção e me assustei com um Audi Coupé preto parando bruscamente a alguns centímetros de mim. Desequilibrei-me e quase caí da bicicleta. O automóvel, perfeitamente brunido, parecia recém-retirado de uma concessionária. Os vidros escuros reluzentes refletiam o perfeito azul do céu, completamente lívido de nuvens. Exasperei-me diante da suntuosa abordagem. Ninguém se pronunciou de início. Travei um impasse entre esperar ou dar o fora. Fiquei com a segunda opção e, finalmente, quando estava prestes a alcançar a porta do motorista, o vidro elétrico se abaixou lentamente até a metade da janela de um modo sinistro. Tentei ao máximo não olhar, mas àquela altura meu pânico se misturou com a curiosidade. 10

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Não se enxergava quase nada lá dentro. Não pude ver com clareza os olhos do sujeito, e apenas um sorriso grande e branco surgiu diante da escuridão do interior do automóvel. Era um rapaz pardo, com seus braços musculosos estendidos ao volante preparados para arrancar o carro a qualquer momento. – Desculpe-me. Acho que peguei a rua errada – o homem misterioso falou com sua voz benevolente, numa tentativa amistosa de puxar papo. – Mais atenção da próxima vez – redargui e voltei a impulsionar minha bicicleta. Com alguns metros de distância, olhei para trás e analisei o carro, que continuou ali, parado. A placa não era da Califórnia. Levantei uma sobrancelha e balancei a cabeça, tentando afastar os pensamentos negativos. Para todos os efeitos, virei algumas vezes a cabeça para trás a fim de observar os movimentos do estranho. E o carro permaneceu inerte. São Francisco definitivamente não era uma cidade com referência de segurança. Fiquei cabreira com o evento e apressei a velocidade das minhas pedaladas. De repente, pensei que eu era uma garota muito forte, de 1,73 metro de altura, o que poderia muito bem afastar a probabilidade de um fato trágico. Eu estava bem próxima da esquina na qual deveria entrar. Dei a última olhada para trás, e o carro havia sumido misteriosamente. Fiquei perplexa por meros segundos. Segundos esses que foram suficientes para tudo acontecer. Algo robusto me derrubou da bicicleta. Quando senti meu corpo ser rebatido contra o chão, notei que eu havia sido atropelada por um furgão. Diversos pares de olhos me enquadraram funestamente, mãos fortes tentaram me ceder. Senti meus braços serem repuxados. Eu lutava para escapar. Um grito de horror aqueceu minha garganta, mas fui incapaz de expressá-lo. Uma mão grossa tampou 11

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minha boca. Movimentei meus dentes para mordê-la, mas isso só culminou para que ela pressionasse com toda força meu maxilar, deixando minha respiração insuficiente. Tudo ficou mais difícil, pois foi complicado conciliar as tentativas de recomposição do ar e os movimentos bruscos. Não me conformei que nenhuma alma viva testemunhou o meu sequestro. Em questão de segundos, fui jogada na traseira de um furgão velho e barulhento, com os vidros novamente escurecidos. Nunca ninguém veria nada e sequer desconfiaria.

* Todas as lembranças só ficaram claras quando abri os olhos após um breve desmaio. O balançar rude do automóvel fez com que meus braços batessem contra a lataria dura e fria do furgão. Havia um pano enroscado entre minha boca e a minha nuca, deixando-me em silêncio eterno. Eu estava toda retorcida em um porta-malas. Tentei me mexer, mas não consegui. A dor que se difundia pelo meu corpo era grande, embora suportável. Senti uma corrente de gelo se espalhar centímetro por centímetro do meu corpo e fechei os olhos, rezando para que aquilo tudo fosse um pesadelo. Quando os abri novamente, eu continuava no mesmo lugar. Minhas mãos estavam levemente adormecidas, e algo enregelado contornava meus pulsos, trucidando minha pele. Eram algemas. Uma lágrima de agonia desceu pelo meu rosto e acabei soluçando ruidosamente. – Nossa garotinha acordou! – Uma voz vinda do banco do motorista se propagou. Havia outros homens que a acompanharam com risadas. Acabei soluçando de pavor novamente. – Cala a boca, magrela! – Um deles chutou a divisão de plástico improvisada que separava o porta-malas do resto do furgão. 12

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Onde eu estava, onde eu estava. Choraminguei em meus pensamentos. Os vidros completamente encobertos me deixaram aflita, já que não se podia ver nada em função da escuridão. Havia apenas um pequeno jato de luz vindo da parte frontal do carro. Como a fronteira que nos separava não se estendia até o teto, pude notar que eram quatro homens. Pelos cantos dos olhos, vi apenas cabeças e ombros. Vestiam longos suéteres escuros e mantinham os rostos encobertos por capuzes alargados que possuíam uma fenda para os olhos. Eu tentava me recompor lentamente e senti a temperatura esquentar ali dentro. Enquanto arriscava desvirar meus braços, acompanhava o movimento daqueles caras, só para garantir que eu não estava sendo monitorada. Até que um dos rapazes levantou o capuz em protesto à alta temperatura. Por descuido, achou que eu não perceberia. Olhei de soslaio e vi por singelos segundos toda a sua feição, guardando detalhadamente cada característica. A pele clara, as bochechas arredondadas, a boca desenhada em uma linha reta e pequena, o cabelo alongado em cachos desarrumados. Enquanto permaneceu de perfil, pude observá-lo. Desesperou-se ao notar que estava sendo espiado furtivamente. Num rompante, subiu o capuz, escondendo-se. Torci para que tivesse dado tempo suficiente de desviar meus olhos. E não foi o que aconteceu. O sujeito me fuzilou com a raiva ardendo em sua expressão. Uma ameaça evidente, com um toque de repressão. Naquela altura, não deixei de encará-lo. – Sabe que estou louco para apagar você, garota? Meu estômago se contraiu, tenso. Eles não poderiam estar fazendo aquilo comigo. Não mesmo. Acabei por abaixar o olhar pacificamente. Só se ouvia o rugido do motor daquela lata velha. Concentrei-me por alguns segundos. Eu precisava reorganizar meus pensamentos. Eu não era do tipo de garota que se contentava com a sorte e muito menos com o azar. O começo havia sido desesperador, mas 13

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eu não poderia perder o controle, e precisava de austeridade. Sempre agi com muito equilíbrio em situações tensas, até naquelas em que fariam qualquer um desabar. Agora não poderia ser diferente. Pensei nas possibilidades: o que queriam? Dinheiro? Ah, certamente não sairia do bolso da minha mãe – da coitada da minha mãe –, uma médica plantonista não ganhava muito. Afinal, nossa casa no subúrbio de São Francisco era alugada e nosso carro acabou de ser quitado depois de diversas prestações. O que mais poderia ser? Eu não sabia de nenhum segredo, ou de senha megassecreta, ou então a codificação do cofre do Banco Central, nem tinha ligação com o narcotráfico da cidade. Será que a crise que estava assolando o país havia chegado naquele ponto? Das duas, uma: ou me pegaram por engano ou por ilusão. O que fariam? Me matariam? Nunca tive medo da morte. Eu morreria um dia, não morreria? Para mim, tanto importava. Eu só me preocupava com minha mãe, pois eu sabia que perderia o chão se tomasse ciência do que estava acontecendo. Eu queria poupá-la, pois não merecia de nenhuma maneira passar por aquela tragédia. Em meio aos meus pensamentos, o furgão brecou de uma forma abrupta e acabei batendo a cabeça na lataria. Exclamei a dor em um nível alto, mas o grito foi amenizado pelo pano que me amordaçava. Os homens riram com tom de ironia. – Ela não sabe o que é dor, rapazes. O motorista devia ser o líder daquele grupo. Foi o único a se pronunciar até a nossa chegada a algum lugar. Ouvi um guincho forte, como se um grande portão fosse deslizado por roldanas enferrujadas, seguido de um estrondo ao se fechar contra o batente. Como as janelas estavam todas escuras, não pude enxergar absolutamente nada, mas senti um cheiro industrial inconfundível. Eu estava em algum bairro alfandegário de São Francisco, aliás, eu não poderia estar fora da cidade, já que nesse horário de rush matinal levaríamos horas para sairmos dos limites urbanos. A viagem foi curta. Até demais. 14

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Então tudo ficou mais escuro ainda. Devíamos ter entrado em algum galpão abandonado, porque o barulho do motor se multiplicou, como um eco fundo e infinito. Alguém viria me retirar daquele porta-malas estreito. Com certa força, um dos homens destravou e ergueu a porta. Endireitei-me, ficando sentada. As cãibras se estalaram pelo meu corpo. Naquele momento, dei por falta da minha mochila e da minha bicicleta. Onde as teriam deixado? Levantei a cabeça e pestajenei para os três sujeitos que me enquadravam com cordas nas mãos. Eles estavam prontos para me amarrar, mas o primeiro homem que eu havia visto naquela manhã – o qual dirigia o Audi preto – se aproximou. Apenas seus olhos estavam visíveis em razão do capuz. – Esperem, esperem, esperem – ele disse pausadamente em um tom sereno, aproximando-se de mim sorrateiramente. Sua mão bruta tocou meu queixo com propriedade. Semicerrei os olhos. – Não precisamos ser violentos. – Deu uma longa pausa enquanto me olhava de cima a baixo e continuou. – Não agora. Vamos deixar o melhor para o final. – Virou meu rosto de leve para a direita, como se me desse um tapa em câmera lenta. Ouvi a risada maléfica sair abafada de sua garganta, em tom baixo em função do capuz, como se a vitória fosse um objetivo iminente. O sujeito me recolheu pelas mãos e virou-me de costas. Percorreu lentamente suas mãos pelos meus braços contorcidos e descobertos. A ira, o nojo e a exaltação fizeram meu peito inflar de agonia. Aquilo estava se tornando insuportável. Fechei os olhos em pura raiva. Alguma lágrima deve ter saído em consequência. Ele desamarrou o pano que me amordaçava num rompante e eu pude sentir o alívio ao recuperar os movimentos do meu maxilar por ligeiros instantes. O homem misterioso levantou o capuz até o nariz e recostou seus lábios próximos do meu pescoço, fazendo um bafo aquecido se espalhar pele minha pele enquanto repetia a frase lentamente. 15

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– Não se esqueça de um detalhe: nada fará nosso plano falhar. – Suas mãos pressionaram meu corpo contra o seu, numa tentativa de me imunizar. Rapidamente, algo lanoso tocou meus lábios e meu nariz. O odor químico penetrou em minhas narinas, inebriando minha mais profunda consciência. Foi difícil resistir à tentação doentia de fechar os olhos e abandonar as forças do corpo. Um último pensamento sobrevivente se fez presente. Ele só não contava que eu teria o meu plano também.

* Meus olhos estalaram. O choque da realidade foi algo incalculavelmente... abissal. O terror me consumiu por breves instantes, até eu conseguir retomar o fôlego e associar todas as lembranças que se lançaram em minha memória freneticamente. Caminhos extensos. Escuros. Intermináveis. Escadas. Enquanto eu era canhestramente carregada, minhas pernas estavam dormentes, os braços latejavam. Tudo ainda rodopiava enquanto eu tentava restaurar minha visão. Vagarosamente, percebi que havia sido trancafiada em algum tipo de calabouço. Ali não possuía mais do que quatro metros quadrados. Uma porta pesada de puro ferro aniquilava minhas expectativas de fuga. Apenas um pequeno basculante no alto iluminava debilmente o ambiente sujo. Eu ainda não conseguia sentir minhas mãos. Era impossível querer movimentá-las. Tudo culpa daquelas algemas. E lá se foi mais uma dezena de lágrimas. Respirei fundo, tentando estabilizar as emoções, tentando organizar os pensamentos. Lutei contra aquela astenia momentânea e tentei me erguer, falhando por duas sofridas vezes, até que lancei as pernas para frente e me sentei. Joguei as costas por cima das minhas mãos atadas e me revirei em alguns movimentos. Raspei toda minha mão com força para que as algemas se esmagassem. Repuxei fervorosamente de um 16

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lado, de outro. Elas só ficaram ainda mais apertadas. Desesperada, coloquei a maior força que pude para tentar retirar minhas mãos pelos buracos. Em um ato mutilador, contorcí-as ao máximo para que elas se espremessem. E com toda a minha fúria transbordando pelas veias puxei as mãos rapidamente para saltarem dos orifícios. Um barulho rascante estalou. Meu pulso direito abriu, e uma das argolas se arrebentou. Contraí-me junto ao chão, gemendo de agonia. Arquejei e fiz o impossível para não me concentrar na dor. Lágrimas permearam meu rosto incontrolavelmente. Segundo por segundo, a dor se amainou, mesmo que insignificantemente. E então sorri. Já havia avançado algumas etapas. A glória momentânea me serviu como anestésico. Ergui-me com certa dificuldade do chão, encostando as costas na parede, ficando sentada. Analisei minhas mãos. A menos prejudicada ainda carregava a argola restante. Grandes vergões inflamados contornavam toda a extensão dos meus pulsos. – Quer dizer que a mocinha está querendo bancar a rebelde? Aprumei-me ligeiramente. Colei as costas à parede, em extasio. Quem estava ali? Foi quando eu percebi que havia uma câmera suspendida na extremidade da sala e um singelo alto-falante. Minha garganta secou e pensei que desmaiaria novamente, pois o equilíbrio do meu corpo falhou com o terror repentino. O sujeito riu pelo áudio. – Não se ache tão esperta, senhorita Armstrong. Achou que conseguiria algo com isso? Talvez esteja mais confortável agora. Mas não importa. Posso observá-la durante todo o tempo. Esqueceu-se do que conversamos? Não faça mais coisas que irão me aborrecer, porque quando eu fico aborrecido... nem minha mãe quer estar por perto. – A voz do sujeito era quente e firme. Aterrorizadamente firme. Mesmo com apenas um alto-falante, eu ouvia o áudio em bom som, como se houvesse algum outro aparelho próximo de mim. Mas não havia. 17

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Levantei uma sobrancelha e fiquei calada. Eu precisava poupar minhas palavras. Eu queria pensar em algo, bolar o meu plano. Abaixei a cabeça para que tudo ficasse mais claro, mas a voz do sujeito me interrompeu. – Sabe, Holly... Falando em mãe, ligarei para a sua em breve. Não está com medo? Uma pulsação doentia de sangue corrompeu meu corpo ao ouvi-lo pronunciar a palavra mãe. Detive o torpor e pensei para responder. Foi quando me veio uma revelação. Eu precisava parecer frágil. Eu deveria mostrar que era alguém incapaz e fraca. Assim nunca desconfiariam de mim. Balancei a cabeça com um sim pacato. Ele riu e continuou. – Você quer saber por que está aqui? Por que sequestramos você? Repeti o lance de balançar a cabeça, afirmando. Tentei expressar medo nos olhos. – Não agora. Se por acaso você vê-la novamente, talvez ela lhe conte. Minha mãe? O que minha mãe tinha a ver com aquilo? Eu preferia morrer a fazer minha mãe padecer daquela forma, vendo-a perder qualquer coisa, como dinheiro ou bem material, para me resgatar. Não conseguiria viver com a ideia de que minha mãe perdeu tudo para me tirar daquela situação. Eu era mais forte. Eu era Holly Armstrong, eu tinha força até no sobrenome. Tinha 1,73 metro de altura, sete anos de treino de tênis, algumas aulas de boxe feminino e muita inteligência. Eu apenas precisava juntar tudo isso e ter a escapada perfeita. – Não se preocupe que logo, logo irei lhe fazer uma visita. Não é muito agradável da minha parte deixá-la sozinha desse jeito. Você vai gostar. – Ele e seus risinhos biltres, pensei O nojo me possuiu de forma estonteante. Gritei em pensamento. Mas nem morta aquele sujeito encostaria um dedo em mim. 18

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A transmissão do áudio foi interrompida, mas ele continuaria me vendo. As coisas estavam ficando difíceis, mas não impossíveis. E eu só queria saber: como eu abriria aquela porta? Como eu sairia dali? Como eu atravessaria aquele labirinto de escadas e corredores e conseguiria escapar dos diversos homens prontos para impedir qualquer erro? Cambaleei para o lado e joguei as costas no chão, deitando-me. Senti algo repuxar meu couro cabeludo e passei a mão. Era minha fivela roxa que prendia uma mecha de franja. Segurei a fivela na mão e passei a observá-la. Eu a girava entre os dedos, esperando ter alguma ideia. Minha cabeça começou a ficar pesada. Eu sentia um frio escorrer pelas minhas veias de forma doentia. Era minha pressão. Fechei os olhos para acalmar meu organismo. Eu estava me sentindo tão distante, minhas mãos formigavam, as pernas tremiam sozinhas com calafrios. O sono bateu em minhas pálpebras e não resisti. Em alguma dimensão paralela à realidade, ouvi um tossido grave. E ouvi novamente. Já estava me comportando como se estivesse em algum sonho. Mas despertei. Pulei da posição em que eu estava voltando a me sentar. Senti uma dor latejar em meu pulso. Olhei para os lados esperando que alguém abrisse aquela porta. Pestanejei para o basculante, e a luz do sol refletia mais forte. O meio-dia estava se aproximando. Passaram-se alguns segundos, mas nada aconteceu. Recostei a cabeça na parede, uma lágrima se formou e deslizou pelo meu rosto parando em meus cílios. Forcei os olhos para que a lágrima caísse. Houve outro tossido. Prontifiquei-me em uma posição de alerta. Segui meu instinto auditivo e o som vinha do lado direito, abaixo. Foi quando visualizei uma pequena grade no canto da parede. Passei a mão pelas frestas. 19

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Ali era uma tubulação de ar. Tão pequena que não havia visto antes. Então ouvi: – Ei, Roger, qual o telefone da vagabunda aí? Sim. Era uma tubulação de ar, que dava acesso à sala onde estavam meus sequestradores. Agora eu escutaria tudo que estivessem planejando. Não me aproximei para não perceberem minha descoberta pela câmera. – O número está salvo aqui no celular da garota. Como conseguiram meu celular? A imagem daqueles homens invadindo minha casa e destruindo tudo que viam pela frente se apossou da minha mente, deixando-me enlouquecida. – Escobar, coloque no viva-voz para mim. Vamos ouvir o que essa vaca vai dizer. Um telefone começou a tocar, dando três toques. Não, não poderia ser. – Holly! Onde você está? Tentei ligar para você um milhão de vezes. O timbre preocupado da voz da minha mãe torturou meu coração. Ele estava ligando para ela. Um aperto assombroso sufocou meu peito. Tive vontade de gritar, só que tudo que eu falasse seria ouvido; então, engoli todo o horror e esperei a conversa terminar. – Holly está ocupada agora, dona. – Quem está falando? Onde está minha filha? – Está bem. Por enquanto, senhora. Por enquanto. – Escuta aqui, seja lá quem estiver falando, CHEGA DE BRINCADEIRA! COLOQUE A HOLLY PARA FALAR COMIGO AGORA! EU SOU A MÃE DELA. – Eu sei muito bem, doutora Catherine. A senhora tem uma filha linda. E, poxa vida, ela herdou aquele maravilhoso par de pernas da senhora? 20

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– CALE A BOCA! Você é doente? O que você quer? Minha mãe estava transtornada. E eu ali, ouvindo tudo, sem poder fazer nada. Não podia chorar nem me rebelar. – Se a senhora quer encurtar nossa conversa... – Seu tom de voz ficou amedrontador. – OITOCENTOS MIL DÓLARES EM MINHAS MÃOS e a sua filha vivinha sem nenhum arranhão. Ouvi minha mãe urrar. O pânico em sua voz era angustiante. – VOCÊ ESTÁ COM A MINHA FILHA? EU QUERO MINHA FILHA AGORA! Se você me conhece, sabe que não tenho esse dinheiro! – Ué, eu preciso mencionar a palavra a-man-te para a senhora? – Havia displicência. – Amante? Você é louco? Nem sou casada! Nem sei se o pai da Holly está vivo! Pelo tom, minha mãe estava prestes a chorar. – A senhora sabe de quem eu estou falando. Bom, lhe dou dez minutos para me dar uma posição. Caso contrário, serei obrigado a dar uns arranhãozinhos na Holly. Se é que a senhora entende o tipo de arranhão. – VOCÊ NÃO TEM ALMA, SEU DESGRAÇADO! Ele riu e desligou o telefone, sem esperar uma resposta. Uma lágrima escorreu pelo meu rosto. Não era medo nem preocupação. Era minha ira se fortalecendo. As coisas estavam apertando. Eu tinha de colocar meu cérebro para funcionar. Tomar qualquer atitude, mesmo que imprudente, seria melhor do que ficar parada vendo minha vida escapar pelos dedos. Olhei em volta. Eu forçava algum pensamento, qualquer que fosse. Fitei a câmera, o alto-falante. Levantei minha mão, fitei a presilha. Tão pequena e inútil. Parei por alguns segundos. As ideias começaram a clarear. Coloquei a presilha no chão de alvenaria frio. O sujeito riu em sua sala, pois o ouvi pela tubulação 21

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de ar. Permaneci inerte, porque ele não poderia perceber que eu ouvia todos os seus planejamentos. – Roger, você já preparou aquela dose? Precisamos de provas agora. Sedaremos essa menina. Ela se acha esperta. – Riu em tom sádico. – Acabou de acordar. Assim que a apagarmos, tirarei uma foto e mandarei para aquela vadia. Vai pensar que a torturamos. Isso irá adiantar as coisas. A cadeira em que ele devia estar sentado guinchou como se ele tivesse se levantado. Ouvi seus passos curtos. Fez-se o silêncio. – Tem certeza de que isso aqui vai funcionar? – Ouvi falar. – Olhe isto. Está perfeito. Os homens ali presentes riram após uma pequena passagem de tempo. A cadeira guinchou novamente como se alguém se sentasse. – Não se esqueça de monitorar, Roger. E, Escobar, cubra a área externa junto com Theo enquanto isso. Vou dar um trato naquela garota. A porta se abriu, e a sala ficou silenciosa. Enquanto esperava algum novo som, olhei aquela câmera. O alto-falante. O rapaz que sobrou na sala deu um bocejo alto. Deve ter se recostado confortavelmente à cadeira, conforme os ruídos que eu pude ouvir. Seria a minha hora de agir. Fiquei descalça de um dos pés. Peguei meu tênis e ataquei-o primeiramente no alto-falante para cortar o áudio. Não adiantou. Saltei para alcançá-lo com a mão, assim o arranquei com a maior força que pude. Depois, recolhi o tênis do chão e o mirei no vidro da câmera. Ela se espatifou no chão logo em seguida, fazendo um barulho alto. Usei a extremidade pontuda da presilha para desparafusar um dos pregos da grade da tubulação de ar. Tão nervosa, tive dificuldade de acertar até conseguir desparafusá-lo. Era comprido e estava todo enferrujado, a ponta era bem afiada. 22

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Meu tempo estava se esgotando; eu conseguia ouvir escadas rangendo, passos se aproximando, pés desajeitados batendo contra os entulhos presentes nos corredores que imaginava existir. Busquei meu tênis que estava jogado com os restos da câmera e o coloquei no pé. A presilha apliquei de volta ao cabelo e tentei parecer inocente ao máximo. Coloquei as mãos para trás como quem não quer nada. O parafuso permaneceu escondido entre as palmas das minhas mãos. Permaneci inerte. Apenas sentada. É AGORA. É AGORA. É AGORA. Fechei os olhos e respirei fundo. A fechadura começou a ser destravada lentamente. O homem moreno que eu havia visto naquela manhã surgiu por detrás da porta. O sorriso malicioso em sua expressão, os olhos tendenciosos, tão claramente descobertos pela primeira vez. Eu sentia aquele cheiro de perfume de catálogo enjoativo. Ele se aproximou deixando a porta semiaberta, a um metro de mim. – É, Holly. Enquanto sua mãe não vem buscar você... Que tal nos distrairmos um pouco? – Deu um passo à frente. Eu afastei um pouco as pernas e deixei meus pés bem flexionados contra o chão. Assim eu teria apoio para me levantar rapidamente sem usar as mãos. A sorte é que ele entendeu meu gesto corporal de outra forma. – Quer dizer que a garotinha da mamãe gosta de uma sacanagem? Semicerrei os olhos e apertei minha boca, censurando possíveis palavrões. Olhei para a câmera quebrada, e ele logo seguiu meu olhar. Virou-se ficando de perfil. Foi quando percebi que havia uma arma encaixada num coldre preso à sua calça. Ele parou e olhou o estrago com desprezo. – Que coisa feia, Holly. – Estalou a língua três vezes, balançando a cabeça em negação. – Você acha que isso significa algo para mim? Espere até ver o que eu vou fazer com você. 23

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Ele cravou seus olhos em mim, tentando entender ou decodificar minha expressão insondável. De repente, ficou furioso. – Você acha que está lidando com quem, hein, garota? Eu prossegui em silêncio e acabei por levantar uma das sobrancelhas, duvidando que ele fizesse algo contra mim. O sujeito se aproximou de uma forma cavalheira. Agachou, ficando a minha altura. Olhei bem dentro dos seus olhos. Usei os cinco segundos de silêncio entre nós para observá-lo. Juro que se eu visse aquele cara na rua jamais diria que ele seria cotado como um sequestrador, traficante ou o que fosse de caráter criminoso. Talvez as aparências enganassem mesmo. Ele possuía a pele perfeitamente asseada de um homem de trinta anos, os dentes perfeitos, o cabelo bem cortado, mas, mesmo assim, estando ali, frente a frente, eu podia notar uma única diferença. Talvez eu só a notasse pelo medo envolvido, pelo contexto desesperador, no entanto seus olhos me diziam tudo. Eram secos. Eu podia sentir a maldade que contornava a expressão de seu olhar. Era uma falta de receio. O prazer em estar prejudicando alguém; uma vida. O prazer em estar ganhando com isso. A consistência de seu olhar descrevia tudo. E eu tinha certeza de que ele estava querendo transmitir suas vontades para mim. Fatalmente, ele só conseguia enxergar uma jovem de cabelos tingidos, com um corpo bonito, burra e inútil. Mas era engano. Eu poderia ser mais inteligente que ele. Além do mais, eu me mordia de curiosidade em saber como ele poderia ser tão cordial nas palavras. Por que ele parecia tão poderoso e instigante? – Eu ainda não ouvi sua voz. Aliás, eu odeio gente que não fala. Parece que está guardando tudo o que pensa para reverter a situação. Não consigo ver medo nos seus olhos. Aonde pensa que quer chegar? Você não sabe quem eu sou... Muito menos o que planejo fazer. – Seu rosto estava próximo do meu. Eu mal respirava. Tanto ele como eu ficamos em silêncio novamente. Resolvi arriscar. 24

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– Se você vai me matar, eu só lhe peço que me conte... Quem é você? O que você ganhará com isso? Por que está fazendo isso? Ele riu com displicência. – Como sabe que eu vou matar você? Gelei. Senti uma gota de suor descer pelas minhas costas, arrepiando-me. – Ora, ora, ora. Pela primeira vez uma reação correspondente. Riu novamente. Virou a cabeça e passou a mão pelo queixo tocando a barba serrada de um modo pensativo. – Eu acho que você não merece saber – deu uma pausa – de tudo, obviamente, mas... – Deu outra longa pausa. Retirou a mão do queixo e levou até a minha coxa, alisou-a devagar até minha virilha. O encarei com firmeza, até sentir-se desconfortável com meu olhar e tirar a mão de mim. – Posso lhe garantir que não sou nenhum idiota. – Voltou a ficar sério. – Fui policial durante alguns anos. Uma hora alguém precisa de um favor seu. Você faz e acaba ganhando com isso. Tudo é oportunidade. E aí as coisas começam a fazer sentido, sabe? O mundo está tão encardido por essa podridão do tráfico, da corrupção. E não há nada a fazer senão seguir com o movimento. Só que não podemos nos esquecer de certas regras. E eu sinceramente não sou muito simpático com quem descumpre as minhas. Não entendi muito bem a história que ele me contou. E novamente o sujeito levou sua mão até minha perna, começando a me bolinar suavemente. Eu resisti e fiquei imóvel. Prosseguiu com suas afirmações. O rosto continuava muito próximo do meu. Seus lábios se recostaram em meu pescoço e minha respiração ficou sobressaltada. A vibração da sua voz sussurrante se reverberou sobre minha pele. Uma lágrima de horror escorreu lentamente pela minha bochecha. – Ou seja... Eu não sou nenhum marginalzinho ladrão de galinha. Se você pensa que quebrar a porra dessa câmera vai me 25

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atrapalhar... Pode ter certeza de que não. – Seus olhos me analisaram com distância. Eu já estava traumatizada o suficiente. Ele finalmente se levantou, amainando a minha tensão. Ele virou o corpo raivoso para evitar alguma agressão naquele momento. Encarou a câmera logo em seguida ficando quase totalmente de costas. Tentava rearranjar os cacos com a ponta dos pés, apoiando-se com a mão no batente da porta entreaberta. – Oportunidades. Ele tinha dito oportunidades, não é? Pois é. A minha acabara de chegar. Era agora ou nunca. Eu me preparava para um salto. Mas eu precisava tripudiar antes. – É como os indianos dizem. Não tropeçamos nas coisas grandes porque as vemos. Já nas pequenas e insignificantes... Ele riu de leve como se banalizasse o sábio ditado. Continuou na mesma posição. Arrastei minhas costas pela parede ficando quase agachada. Lentamente, firmei o pé no chão. Uma contagem regressiva mental me encorajava a levantar. Mas eu fiz melhor que isso. Pulei da minha posição em um salto largo e me joguei com toda a força contra a porta de ferro, esmagando seus dedos, que estavam apoiados ao batente. Ele urrou de dor. Teve um reflexo e virou o braço que estava livre para me acertar. Eu tratei de me abaixar e envolvi meus braços entre suas pernas para que perdesse o equilíbrio e caísse, mas ele continuou em pé. Acabei dando espaço para que me socasse as costas. Quando senti que estava sendo atacada, rolei até o outro canto da sala. E isso só piorou a dor. Perdi um pouco de força durante cinco segundos. Levantei a cabeça e vi que havia dado tempo suficiente para que tirasse seus dedos da porta, levasse sua mão até o bolso e sacasse uma seringa. Eu tentei me recompor e estava quase totalmente sentada quando senti uma leve pontada da agulha em meu antebraço esquerdo. 26

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Acabei sendo mais veloz. Fechei minhas duas mãos em punho e as bati contra sua cabeça. Ele ficou atordoado e meti os dentes em seu braço que tentava me imunizar. Isso o fez se afastar alguns centímetros, até cair sentado para trás, parando com as tentativas. E aí, o xeque-mate. Engatinhei rapidamente e enfiei o prego que estava em minha mão em algum lugar de seu rosto. Afastei-me quando ouvi um berro de horror culminante. Foi em cheio em seu olho e nem quis tentar ver em qual. Ao restabelecer minha visão, ele já estava perdendo os sentidos e tombou completamente para trás, com o sangue escorrendo feito lágrimas. E por fim bateu sua cabeça na parede. O pânico havia tomado conta de outro corpo. Como uma última saída, ele deslizou seus dedos com dificuldade até a arma presa em sua cinta. Coloquei força nos meus joelhos novamente e me arrastei de um modo acelerado. Joguei-me contra seu corpo, amortecendo a queda. Deixei minhas pernas pressionando seus braços, fazendo o maior esforço para mantê-los imunizados. Vi que sua cabeça havia batido sobre os cacos da câmera quebrada. Eu precisava sair logo dali, antes que os demais ouvissem e fosse tarde demais. Ainda com os braços presos, retirei sua arma e apalpei seu bolso, que estava recheado com algo. Era um molho de chaves com variados modelos e tamanhos. Levei comigo. Levantei-me com dificuldade, e o sujeito gemia baixo, tentava se levantar. Não consegui fechar a porta, pois havia muitas coisas em minhas mãos, então apenas a encostei para que suas lamúrias fossem abafadas. Ao chegar ao lado de fora, o choque foi terrível. Eu não fazia a mínima ideia de onde estava. Dezenas de caminhos e saídas alternativas começaram a surgir. Foi quando minha mente me guiou pelos caminhos das minhas recentes lembranças. Eu deveria estar semiconsciente quando cruzei aqueles corredores pela primeira vez nos braços de algum comparsa qualquer. Apostei seguir uma rota que me levasse a uma grande escadaria. Com um alívio transbordante ao ver os degraus me levarem à garagem principal, 27

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comecei a descer sem cogitar quem pudesse me esperar lá embaixo. Então senti os corrimãos tremerem. Era um sinal de que havia gente demais subindo por aquela escada. Pensei rápido e decidi retornar dois pavimentos superiores. Pulei de três em três degraus de cada vez, chegando ao andar de cima em um átimo. Fiquei camuflada pela escuridão. Pude observar a movimentação dos homens no corredor de baixo que correram para socorrer o chefe da quadrilha. Quando senti os corrimãos aquietarem, comecei a descer novamente, possuída pelo ritmo apressado. Eram quatro degraus a cada salto. Faltando um último lance de escada, sem pensar, pulei alto para ultrapassar todos os degraus e chegar até o térreo o quanto antes, mas não deu muito certo e acabei rolando nos últimos até o chão. Ali, jogada na alvenaria, vi pés se mexerem entre os espaços da escadaria do segundo bloco daquele galpão há uns vinte metros de onde eu estava. Sorte que estava escuro, e seria difícil me verem de primeira. Arrastei-me para detrás da escadaria. Sentei e suspirei com minha respiração intermitente. Senti a pele do meu rosto queimar. Tentei organizar o próximo passo. Olhei em volta. O enorme saguão possuía muitos portões, e a Kombi estava parada ao norte. Ao olhar para todos os lados, vi que os homens se espalhavam ao sul tentando me procurar. Olhei para o molho de chaves. Eu perderia tempo demais experimentando cada uma delas nos portões. Balancei-as para que eu visse todas em uma grande angular. A chave com o logo da Volks reluziu diante dos meus olhos. Não havia opção, a não ser arrombar um daqueles portões com algo bem forte e duro. Deixei a frescura e a dor de lado e levantei, voltando a correr com dificuldade em direção ao furgão. A porta do motorista estava trancada. Coloquei a chave no segredo, mas a trava não abriu. Que inferno! Agora nada poderia dar errado, eu estava quase chegando lá. Ouvi as escadas rangendo alto, eles estavam se aproximando. A arma estava em minha mão ainda, então dei uma coronhada no vidro, estilhaçando-o. Puxei a trava. 28

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Os homens que estavam na espreita pularam de suas posições e apontaram as armas em minha direção. Sentei-me naquele banco caindo aos pedaços e tateei no câmbio procurando a ignição. Olhei para frente e vi pelo para-brisa cinco homens descendo as escadas loucamente, já colocando as mãos para sacarem suas pistolas. Abaixei a cabeça quando ouvi o barulho de um tiro. Coloquei a chave na ignição com dificuldade. Carros nunca foram o meu forte e agora eu usaria todo meu transtorno automotivo para escapar. A chave virou e eu lutava para a Kombi pegar. – Não! Qual é?! Vamos lá, pelo amor de Deus! Ela deu um coice e morreu. Os tiros começaram a se multiplicar, e o barulho da lataria da Kombi se difundindo me desesperou. Fiz mais uma tentativa. Dei a marcha ré e fui com tudo no acelerador, pegando velocidade num rompante. Fechei os olhos para não ver. O barulho foi estrondoso, graças àquele portão velho e arruinado, tudo se partiu, abrindo a passagem. O furgão continuou a pegar velocidade, subiu sobre os escombros de ferro retorcido e atravessou a enorme avenida. Não sei como não houve um embate com os carros que trançavam a rua enlouquecidamente. Só ouvi freios e buzinas sendo acionados. Como eu estava sem o cinto de segurança, acabei por rolar furgão a fora quando a porta do motorista acabou por cair no último embate. A luz do dia chegou a ofuscar meus olhos, que estavam acostumados à escuridão. Foi como um choque ouvir sons que eu pensei jamais ouvir novamente. Acho que dei até uma cambalhota no asfalto, mas me levantei, pois ainda precisava correr. Naquele momento, eu não sabia se chorava, gritava ou reprimia toda a agonia e o terror que se instalara em minha garganta. Comprimi toda a dor, fechei os olhos e retirei tudo em uma lágrima. Uma única lágrima, que congelou ao sair de meus olhos 29

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com a corrente de vento que transpassava pelo meu rosto vermelho, ardente, desesperado. Comecei a ter a visão embaçada pela lágrima que se guardava nas minhas pálpebras. Eu estava me sentindo hipnotizada, o ar estava me faltando. Estiquei as pernas em mais alguns passos largos. A dor esmagava meu pulmão a cada tragada de oxigênio. Então eu caí. Senti o asfalto raspar em meus joelhos e gemi, e não foi pela dor, mas pelo alívio. Aquela dor me deu a maior prova de que eu ainda estava respirando, de que eu ainda estava viva. Jogada ali na calçada com a barriga para cima, o sol feriu meus olhos. Então os fechei. Comecei a soluçar me sentindo afogada. Respirei bem fundo, tentando armazenar o máximo de ar nos meus pulmões, que já estavam doloridos. Tudo estava sumindo, meus ouvidos já não ouviam com clareza e o último som que ouvi foi uma sirene lá longe, apitando enfurecidamente.

* Eu não estava ligada ao externo. Somente ao meu interno. Eu não ouvia, enxergava, sentia ou percebia nada do que estava acontecendo ao meu redor. Era como se eu estivesse presa ao meu subconsciente. Eu só conseguia pensar de olhos fechados. Estava buscando definições. Explicações. Ou qualquer outra coisa que preenchesse minha mente, agora totalmente vazia. Ela havia se tornado um campo lívido de mim mesma. Onde estava eu? Minha mente já buscava novas respostas. E agora? O que aconteceria? Tudo mudaria? De qual forma? Será que eu seria grande e forte para superar tudo? Ou será que eu me tornaria uma deficiente, com sérias sequelas de um acidente trágico? Porque não basta você ser forte, a ponto de conseguir fazer coisas incríveis referente à sua resistência. Você precisa ser forte por inteiro. Até o fim. Para você mesmo. 30

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Forte a ponto de ter sua capacidade racional equilibrada e dignamente forte. Saber conviver com extremos, sem danos, e saber parar, para poder seguir em frente. E ainda assim eu me sentia afogada, com a sensação traumatizante de ser colocada em um pesadelo em que você não enxerga o despertar. Onde não existe um despertar. Nem volta, muito menos uma vitória. E para falar a verdade, eu não me via como uma vitoriosa. Aquilo não poderia ser triunfo para ninguém. Eu não precisava passar por aquela tragédia para ser consagrada uma vitoriosa. Eu desejaria nunca ser considerada como tal, não por aquela circunstância. Eu cansei minha mente com múltiplos pensamentos. Mas só um ficou claro o bastante para se destacar entre todos. A única certeza que estava evidente era o modo de olhar a vida, o mundo. Não seria tão diferente de anteriormente. Mas seria mais profundo, menos efêmero, do ponto de vista de uma garota de dezesseis – recentes – anos. Como se eu olhasse o mundo não só com os olhos. Eu usaria minha mente, meu coração, eu escutaria durante mais tempo, de uma forma bem codificada. Eu olharia o mundo como um cego. “Fuja. Fuja de seus limites. Fuja de seus medos. Alcance o risco, alcance a saída. Feche os olhos para seus maiores obstáculos. Apenas os ultrapasse. Não há tempo para hesitar. Não pense, apenas fuja. E você vai superar, pois o grande prêmio é conseguir respirar.”

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CAPÍTULO DOIS

o tempo não para Eu não havia visto luz alguma. Em um reflexo de percepção, senti que meus batimentos cardíacos pareciam altos e enervantes, mas talvez fosse apenas a exaltação por eu ter despertado. Embora eu continuasse de olhos fechados. Era difícil me concentrar em algo. Relutei contra todas as limitações e senti que minha respiração não era suficiente diante do meu desespero. Eu queria me mexer, eu queria provar a mim mesma que eu estava viva. Que eu havia sobrevivido. Sobrevivido a quê, afinal? Tentei resgatar em minha memória possíveis recordações recentes. Apenas rostos surgiram e desapareceram diante de repentinas imagens distorcidas na minha imaginação. O horror instintivo emergiu pela minha garganta, fazendo-me gritar. Pude ouvir minha própria voz, pois o ruído de pânico ecoou em minha mente, como se ela estivesse vazia. Gritei novamente para espantar aquela confusão interna. E então minhas pálpebras descolaram rapidamente. Inicialmente, não houve grandes mudanças. Tudo ainda se resumia à escuridão. Instante por instante, minha visão alcançou o espaço inóspito. A luz da lua era a única iluminação naquele ambiente. Adentrava pelo vidro da janela que ficava a minha esquerda, fazendo reflexo no granito branco do chão. Avistei um sofá-cama branco a minha frente com alguns armários também brancos contornando aquele quarto. Senti-me melhor, como se estivesse em um lugar familiar. Embora não fosse definitivamente meu lugar. Eu estava em um quarto de hospital. Havia um relógio preso à parede. O silêncio profundo que se reservava não só ao ambiente, mas a minha alma e a minha mente, destacou o tique-taque dos 32

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ponteiros. Eram exatamente onze horas da noite. Analisei minhas pernas por debaixo dos lençóis e tentei me mexer. Desejei loucamente poder descer daquela maca e correr, sem haver nenhum lugar específico em mente. Uma sonda de líquido escuro ainda estava conectada a minha veia do antebraço. Meus olhos então lampejaram para a porta do quarto, que se abriu num rompante. A única pessoa que eu realmente precisava ver; minha mãe. Seu jaleco branco balançou enquanto tentava chegar o mais rápido até mim. Tentei inutilmente abrir os braços para abraçá-la, sem obter êxito. – Mãe! – choraminguei. E então seus braços me envolveram de uma forma fraternal, aninhando-se a meu lado no estreito espaço que sobrava do leito. Eu chorei por longos minutos, ali apoiada em seu ombro, como um desabafo, em completo silêncio. Ela alisava meus cabelos com suas mãos sutis. – Holly! – Soluçou. – Eu te amo tanto, filha! – Ela repetia as palavras como se transbordassem de seu coração. – Achei que iria perder você! Eu rezei tanto para que você voltasse viva para mim! – Ela chorava copiosamente e eu fazia o mesmo. – Você é uma heroína, Holly! Você é minha heroína! Seus braços se soltaram do meu corpo. Minha mãe fitou-me profundamente e sorriu, recolhendo uma lágrima logo em seguida. – Rezei para que nada lhe acontecesse. E olhe para você! Está melhor do que nossas expectativas. – Ela passou a mão pelo meu rosto, e acabei por fechar os olhos. Ver seu semblante foi definitivamente a pior parte. Desmanchada em lágrimas, a dor no fundo de seus lindos olhos azuis era evidente, mas ainda assim me admirava com orgulho. – Eu não poderia me conformar em perder você, mãe. – Sussurrei aos soluços. – Acabou, Holly! Acabou. Você está respirando! – Ela se afastou mais um pouco, secando minhas lágrimas com zelo. – Acabou. 33

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– O rosto dela se aproximou do meu, e eu senti seus lábios selarem um beijo carinhoso em minha bochecha. Ela sorriu, rearranjando uma mecha da minha franja atrás da orelha. – Sei que você é uma garota forte, vai superar tudo isso. Só que antes de cicatrizar todas essas feridas. – Passou os dedos por algumas cicatrizes em meu braço com cuidado antes de me olhar fixamente. – Você precisa cicatrizar suas lembranças, seu emocional. – Eu estou bem, mãe! – respondi rapidamente, mesmo sabendo que era mentira. Meus olhos denunciaram o óbvio. Minha mãe suspirou. – Isso me preocupa tanto. Agora você terá tantas coisas novas para enfrentar... O chefe da investigação precisa lhe fazer algumas perguntas. Nem todos foram presos, Holly. – Ela suspirou de um jeito que eu nunca havia visto. Um pesar tão grande que chegou a inundar sua expressão de frustração. – São Francisco não é mais segura para nós. Lembrei do único rosto que eu havia visto totalmente. Jamais me esqueceria. – O que você quer dizer com isso? – Solucei. – Talvez você não faça ideia do quanto esse acontecimento ganhou repercussão. A CNN divulga vídeos e imagens a cada cinco minutos. Fiquei extasiada. Não havia sobrado muitas reações, então ri. E a última coisa que pedi foi ser lembrada como uma pobre vítima de um sequestro. – Quê? E me mostraram nas imagens? – Não! – Garantiu-me com veemência. – Fique tranquila, nosso advogado pediu direito de preservação em relação a isso. – Nós temos um advogado agora? Ah, eu quero ver! Cadê o controle? – Movimentei meu braço livre com certa dificuldade, querendo alcançar o controle da TV. – Mãe, me ajuda! Eu quero ver! – Filha, isso não é para você. – Ela me olhou diretamente como se quisesse me acalmar. – Talvez você precise de algumas visitas à 34

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doutora Susan, sabe que ela é uma especialista, além de ser uma grande amiga minha. – Eu não preciso de uma psicóloga! – Roguei alto. – Eu mesma irei me entender sozinha, mas preciso de minhas velhas lembranças. – Abaixei a cabeça. – Parece que está tudo... Apagado. – Isso faz parte do processo traumático, mas melhora em alguns dias. – Quero ir para casa, mãe. – Levantei a cabeça, analisando seu rosto. Ela deu uma longa pausa como quem se preparava para um discurso. – Por favor, mãe. – Uma lágrima de súplica escorreu pelo meu rosto. – Lembra quando eu lhe disse que São Francisco não era mais segura para nós? – Aquela cautela nos olhos, na voz. Em silêncio, esperei pelo pior. Realmente, eu não havia perdido somente minhas lembranças. Acabara de perder minha vida. Eu consegui deduzir perfeitamente o sentido daquela frase. Tudo seria desfeito. Minha rotina, meus sonhos, minhas expectativas. Aquilo seria o preço de uma segunda chance? – Então, é isso? Vamos ter que nos isolar agora? – O desprezo da ideia me congelou por dentro. – Vamos esperar a sua alta do hospital para irmos embora, Holly. As palavras sempre tiveram um poder muito grande para mim. Ir embora. Tudo ficaria para trás. – Já tenho tudo planejado. Alguma cidade menor, onde possamos ter paz e discrição. – Ela completou a sentença com uma animação discreta. As lágrimas se formaram em meus olhos. Refestelei-me com vontade ao leito e me fechei em meus pensamentos. Nunca havia 35

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me imaginado em outro lugar. Outra casa, outra escola, outros amigos, outra vida. Eu queria a minha vida, a vida em que eu era feliz. Juro que desejei mudar tudo naquela manhã e ter me entregado à morte. – Sua vida só acabou neste lugar, Holly. Não para sempre. Querer recomeçar nesta cidade com esse histórico não adiantará nada. Aqui não é o melhor lugar para nós. Escute sua mãe, como você sempre escutou. Eu não poderia discordar, mas também não poderia aceitar com um sorriso enorme no rosto, por mais que eu soubesse que era inevitável. Mamãe colocou a mão sobre meu ombro, seu olhar era firme. – Você sabe que não pode evitar. Só precisa se acostumar à ideia. Vai dar tudo certo. Confie na sua mãe. Sei que errei e sou um pouco culpada por isso ter lhe acontecido. Sinto-me no direito, e inclusive no dever, de proteger você. Ela estava ficando inquieta e irritada com meu silêncio. – Mãe. – De olhos fechados, levantei uma das mãos para que ela cessasse de falar. – Holly, nós não temos mais nada que nos prenda aqui. Não temos nossa casa, nossas coisas, não temos nossa liberdade. Tiraram tudo de nós. Aquilo me atingiu como um punhal em meu peito. Agora não haveria mais nada que pudesse ser feito. Eu colocaria na cabeça que seria bom viver em um novo lugar sem lembranças. E, mesmo assim, nada seria esquecido. Nada. – Eu não falei uma palavra em relação a discordar, mãe. Você consegue entender como tudo é difícil para mim? Como uma vida pode ser posta de cabeça para baixo em apenas um dia? – Uma lágrima escorreu. – Você acha que está sendo fácil para mim? – Ela foi categórica. Fiquei recolhida em minha posição. Uma batida leve na porta nos distraiu da discussão. A maçaneta girou devagar, e a porta se abriu calmamente. Feixes de luz se 36

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propagaram na escuridão. A sombra de alguém que eu conhecia se formou diante de meus olhos. – Ainda não é meia-noite! Feliz aniversário, Holly! A penumbra de um senhor grande e robusto surgiu. – Doutor Andrew! – A surpresa se derreteu em meus olhos. Uma técnica de enfermagem prestativa vinha logo atrás. Com um pouco mais de luz naquele quarto, percebi que ele carregava um largo pedaço de bolo em um prato pequeno, equilibrando-o com esmero. Eu já podia sentir o cheiro de chocolate mesclado com nozes se infiltrar no ambiente. Aquilo despertou meu estômago. Doutor Andrew foi o primeiro médico com quem minha mãe trabalhou. Andrew sempre pertenceu a nossa pequena família desde que eu era criança, foi meu pediatra e depois se tornou um pai que eu nunca tive. E a única coisa que mudara era o aumento de cabelos brancos conforme a passagem dos anos. Os dois se aproximaram de nós, e a técnica se reservou a erguer meu leito em alguns níveis, retirando a sonda do meu braço, fazendo um breve curativo para estancar a inserção da agulha. Meu braço ficou livre novamente. Logo descobri que a mesma sonda estava conectada a um aparelho de transfusão de sangue. Tentei ignorar tal fato repugnante. Nunca gostei da ideia de precisar receber sangue alheio em meu próprio corpo. – Como o senhor adivinhou? Estava morrendo de fome! – Puxei assunto para desvirtuar os pensamentos e sorri. Ele se aproximou me dando o prato na mão. – Nada como nossa comida favorita quando se está doente... – Ele abaixou a voz enquanto eu me preparava para garfar o bolo furiosamente. – E esta comida daqui é horrível, não é? Não tem quem aguente! – Riu simpaticamente alisando sua barriga por cima do jaleco branco. A técnica finalmente se retirou por completo, nos deixando sozinhos. Doutor Andrew apoiou a mão no ombro da minha mãe, 37

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os olhos demonstravam preocupação. Com os anos que eu os conhecia, sabia que conversavam pelo olhar. Ela o fitava como se quisesse dizer: “está tudo bem agora”. Ele puxou uma cadeira que estava encostada no pé do leito e se sentou. Doutor Andrew era bem esbelto, rechonchudo e sempre usava aquele jaleco cor de gelo, com um bordado no bolso esquerdo escrito “pediatria”. – Graças a Deus foram embora. Pensamos que dormiriam aqui – disse enfurecido à minha mãe. – Quem estava aí? – perguntei antes que ela comentasse. – Aqueles malucos da imprensa! Achei que passariam a noite toda de plantão na porta do hospital. – Eles vão voltar – mamãe acrescentou com a frustração beirando seu olhar. – É, Holly... – Olhou para mim. – Todos querem lhe ver, saber se está bem. Muita gente ainda não acredita no que aconteceu. Fiquei boquiaberta, perplexa e mergulhada em uma expressão de desgosto. – Mas tenha calma, querida. Você vai sair daqui. Aliás, vai adorar San Diego. Olhei para minha mãe. De repente ela ficou impaciente e não sabia se falava ou se ficava quieta. – San Diego, mãe? – Sorri para tentar tranquilizá-la. Doutor Andrew percebeu. – Você não contou ainda, Catherine? Achei que Holly soubesse que... – Eu ia contar, só estava esperando o momento certo. – Olhou para mim, esperando uma reação desagradável. Voltei a garfar os últimos pedaços do bolo. Abaixei a cabeça e permaneci em silêncio durante alguns segundos. Sinceramente, não entendi o porquê de se preocuparem com uma suposta reação minha. Por mais que eu estivesse destruída por 38

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dentro, jamais descontaria meus pesares em alguém. Era grande o suficiente para lidar com meus problemas. E não teria jeito, se não fosse San Diego, poderia ser qualquer outra cidade. Eu teria que me esforçar da mesma forma. – Achei que quisesse uma cidade pequena. – Sorri. Senti que os dois não sabiam o que falar. – Mãe, calma. Acho que não há muitas alternativas agora... E, aliás, acho que vou adorar San Diego. Dias ensolarados, praias e... Antes que eu terminasse o raciocínio, ela me abraçou com alívio em sua respiração. Suspirou e senti a leveza em suas palavras. – Que bom, Holly! Mudaremos logo que receber alta! – Por que tão rápido? Já temos para onde ir? Quer dizer, uma nova casa? – Afastei-me. Mamãe e Andrew se entreolharam. Levantei uma sobrancelha. – Hmmm. Algo que não queriam que eu soubesse, provisoriamente ou não. – Bom, está quase tudo pronto. – Tentou disfarçar. – Não se preocupe. Tombei a cabeça para o lado em silêncio, demonstrando minhas dúvidas. – Holly, estou tentando poupá-la da parte mais difícil. Nossa prioridade maior agora é superar esse caos e seguir em frente. Suspirei, concordando. Inclinei-me para dar a última garfada no bolo. O que me proporcionou uma vertigem implacável. Senti que o ambiente a minha volta acabara de perder as dimensões reais. Apoiei minha testa com as mãos e gemi. Uma ânsia doentia emergiu pela minha garganta. – Filha, está tudo bem? – Estou... bem tonta. – A voz saiu grogue. – Seu corpo ainda está reagindo aos remédios. Encoste a cabeça para trás e respire fundo. Você perdeu um pouco de sangue hoje. Tente ficar relaxada. 39

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Mamãe adicionou mais um travesseiro atrás das minhas costas. Recostei-me confortavelmente. Puxou meu lençol para que eu ficasse totalmente coberta, segurou minha mão e recolocou uma mecha de franja atrás da minha orelha. – Vai poder dormir melhor agora. Não há com o que se preocupar, sabe disso. – Obrigada, mãe. – Apertei sua mão e ela assentiu com a cabeça. – Obrigada pelo bolo, doutor Andrew – agradeci, vendo-o sorrir amavelmente através das minhas pálpebras quase fechadas. Bloqueei os pensamentos da mente. Eu só queria acordar no dia seguinte e conseguir não me recordar de nada. Foram quase treze horas de sono profundo. E é claro que, ao acordar, muitas das lembranças que eu desejava ter deletado da mente fizeram questão de passar lentamente por trás dos meus olhos. Mas, no geral, eu não conseguia refletir muito bem sobre o ocorrido. Nem conseguia assimilar todas as outras coisas que haviam acontecido. Inconscientemente, eu sabia que algo havia mudado. Algo me remetia a sensação perturbadora de que uma grande parte de mim havia se perdido naquela manhã trágica. Como se eu... Não me encaixasse em mim mesma... Como se... Tudo aquilo em que eu fosse empenhar minhas forças não surtiria efeito algum. Mas eu sentia que todo aquele transtorno ainda consumiria – mesmo que indiretamente – minha vida por muito tempo... Eu não tinha auspiciosas expectativas acerca das possibilidades de conseguir superar o trauma. Eu apenas cogitava que, com o tempo, eu fosse adormecer o incidente, de forma que ele diminuísse, que simplesmente perdesse sua importância. Embora não fosse isso que eu queria. E, provavelmente – tentando definir tal lapso de tempo –, 40

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poderiam se passar anos até que isso acontecesse. E eu nunca quis me tornar refém de meus próprios medos. Porque... vamos ser sinceros, o tempo não cura tudo. Aliás, o tempo não cura coisa alguma. Ele apenas desloca o incurável do centro das atenções. Esse tal de tempo só serve para nos envelhecer, nos amargar. Faz com que gerações se distanciem, se desconheçam. Torna o conhecido meramente estranho; e o estranho, nunca antes existido. Se você não o usa a seu favor... o jogo acabou. De repente você perdeu a oportunidade de aproveitar o melhor momento, a melhor oportunidade. Passou. Afinal, o tempo não faz uma pequena pausa para você arrumar sua vida. Não existem contestações contra ele. O tempo simplesmente corre, não importa se você está atrasado, se precisa recomeçar tudo outra vez ou se precisa de algum tempo para colocar tudo no lugar. E, por mais que eu tivesse consciência de todos aqueles fatores, eu não sabia para onde e muito menos como o tempo me levaria a chegar a algum lugar. Afinal, a gente nunca sabe até onde pode chegar. Foi então que eu decidi dar meu primeiro passo. Levantar daquele leito e provar a mim mesma que eu podia superar todos os meus traumas. Minhas pernas não se mexiam com tanta facilidade. Talvez a inércia prolongada do meu corpo tivesse complicado meus movimentos, mas isso não era tudo. Com as minhas tentativas forçadas de descer minhas pernas, uma dor insuportável abalou meus músculos ao tocar os calcanhares no chão. Usando os móveis como apoio, arrastei-me até o banheiro. Eu queria ver meu rosto, queria me reconhecer. O reflexo no espelho mostrou a triste figura de uma jovem garota branca como neve, com olhos secos do tamanho da Lua. Enrolei o cabelo para livrar meu rosto e conseguir lavá-lo com sabonete erva-doce do hospital. 41

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Bochechei os dentes com um pouco de água e senti falta da minha escova de dente. Como era horrível não estar em casa. Voltei ao quarto e vislumbrei a presença de algumas bagagens de mão ao lado de uma pequena quantidade de caixas de papelão empilhadas ao lado da porta. Puxei uma das cadeiras que esgueiravam a parede frontal e me sentei à frente daqueles pertences. Alcancei uma das malas, apoiando-a sobre meu colo. Lá dentro havia itens de higiene pessoal, como meu desodorante favorito, xampu para cabelos tingidos e outras futilidades femininas. Devolvi a pequena bolsa ao chão e me preparei para buscar a outra. Ao abaixar, notei que havia um pequeno pedaço de papel entre as mochilas. Era um bilhete. Um gelo tomou meu coração de repente. As lembranças eram mais automáticas do que minha própria percepção externa. Era um recado escrito pela minha mãe. Ainda não sei como começar este bilhete... Mas só sei que não tenho boas notícias. Está aí tudo que nos restou. Eu voltarei à noite, querida. Estou resolvendo os preparativos para nossa viagem. Você terá exames a maior parte do dia, seja forte. Mamãe ama você, acima de qualquer coisa. Ler, naquele silêncio abissal, palavra por palavra, foi difícil de não conter as lágrimas. Difícil não sentir um aperto sufocar o peito diante de tamanha impotência. Nada poderia ser feito. Engoli a decepção e respirei fundo. E o sábado foi o mais neutro possível. Até o clima contribuiu para aquela apatia toda. O céu em um cinza apagado e as gotas de chuva escorrendo loucamente pelo vitral da antessala de ressonâncias repercutiu em mim uma sensação tensa do período pós-acontecimento trágico. Naquela mesma noite, eu virei alguns canais de TV buscando notícias sobre o sequestro. Era impossível não sentir irresistíveis 42

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pontadas de curiosidade acerca do caso. Mas infelizmente naquele horário não havia nada a respeito. Frustrada, desliguei o aparelho sem delongas e me encolhi. E se eu não precisasse ligar a TV, muito menos abrir os jornais mais célebres do mercado para descobrir os precedentes da minha própria tragédia... Eu poderia muito bem saciar aquela minha ignorância. Eu tinha tantas dúvidas. Eu simplesmente precisava saber. Algo não preenchido dentro de mim buscava respostas, e eu tinha a breve impressão de que eu poderia ir atrás delas. Respirei fundo diante dos meus questionamentos. Minhas pálpebras relaxaram sombriamente e eu fui levada pelo efeito avassalador do sono.

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CAPÍTULO TRÊS

forças ocultas, indefinidas e inexplicáveis O tempo estava sendo injusto comigo, apressando coisas que eu queria um pouco mais de tempo para aprender a lidar. E não teve jeito. A segunda-feira amanheceu apagada. Nuvens rechonchudas completaram o céu de outono. Naquele dia, logo pela manhã, os investigadores me visitariam para fazer algumas perguntas. Mamãe havia me garantido que o chefe de investigação cuidaria do caso com uma preocupação diferenciada. Quando acordei de um sono profundo, três homens me encaravam perplexamente curiosos. Mamãe também estava presente, mas reservada no canto norte do quarto, apenas observando. Os dois detetives brutamontes permaneceram em pé. Já o senhor Freelemann, o superior responsável pela investigação, sentou-se na cadeira ao lado do leito com intimidade. A cada pronunciamento prolixo, ou informação sem muito sentido que eu pronunciava, o homem de olhos afundados me encorajava com uma expressão de extrema compaixão. Eu contei tudo de que consegui lembrar. Contei exatamente tudo que minha mente havia guardado com riqueza de detalhes. O detetive mais robusto, senhor Tucker, limpou a garganta aflito e colocou as mãos nos bolsos quando acabei. – Então o cara que estamos procurando é um ex-policial. – Segundo informações do sujeito... – Levantei uma sobrancelha. O segundo detetive, cujo nome eu não me lembrava, sacou um envelope marrom que estava debaixo do braço. Retirou alguns documentos e os colocou esticados sobre meu colo, o que em seguida descobri serem fotografias. 44

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– Preciso que você os reconheça. Estes foram pegos no local do cativeiro. Eram cerca de seis fotos. Virei o rosto vagarosamente até me deparar com elas. Um nó entalou na minha garganta. – Qual deles você consegue identificar? – insistiu. Levei a mão sobre a testa e fechei os olhos, criando força. Senti uma gota de suor frio descer pelo meu pescoço sombriamente. Olhar aqueles rostos resultou numa vontade doentia de vomitar. – Este. – Recolhi a terceira foto exposta. Nela estava um rapaz grande, pele clara, cabelos encaracolados. Traços finos. – Eu o vi no furgão. – Você viu o rosto? – perguntou desconfiado. – Sim. – E quanto aos outros? – Apontou para o restante das fotos. – Não tenho certeza. É melhor parar. – Virei o rosto, rejeitando as imagens. Houve um momento de silêncio. Acho que eu não estava ajudando muito. O detetive recolheu as fotos e se afastou um pouco, insatisfeito. – Ok, senhorita Armstrong. – Senhor Freelemann suspirou, antecipando despedidas. – Não se preocupe que iremos encontrar esse corrupto desgraçado. Uma hora esses caras terão de abrir a boca. – Os três ali se entreolharam sombriamente. – Mas já vou avisando... – O velho de voz benevolente se virou para minha mãe. Um tom de advertência em seus olhos maduros me deixou desconfiada. – É possível que precisemos da reconstituição ainda esta semana. E Holly terá de nos acompanhar. Mamãe não pareceu aprovar muito a ideia. Senhor Freelemann prosseguiu sem se preocupar com a reprovação dela. – Bom, Holly. Por hoje é só. – Ele repousou sua mão em meu ombro com certo apreço. – Amanhã o legista virá para terminar o seu laudo. 45

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Assenti rapidamente, e ele continuou, um pouco sem jeito. – E saiba que você está de parabéns. – Ele me olhou lisonjeado. – Obrigada! Estou tentando... Como é mesmo que vocês dizem? Superar. – Você tem uma força que pouquíssimas pessoas desenvolvem, garota. – Sinceramente... Eu preferia que nada disso tivesse acontecido. Preferia nunca ter de desenvolver qualquer tipo de força. – Imagino o quanto está sendo difícil. Eu tenho uma filha da sua idade e fico pensando no quanto o mundo dela é pequeno. Limitado. Acho que se algo do tipo acontecesse com Molly ela jamais se recuperaria. Não há esse seu fortalecimento emocional. – Agradeço mais uma vez pelo reconhecimento. E... mande um abraço por mim à sua filha. – Pode ter certeza de que falarei de você hoje. E finalmente apertou minha mão com um sorriso afável no rosto. Ele e sua equipe se retiraram logo em seguida. Mais uma etapa ultrapassada. Eu ainda tinha um longo dia pela frente, com diversas sessões de intensa fisioterapia me esperando. Pensar na hipótese de voltar àquele lugar não me amedrontava tanto. Eu realmente considerava essa ideia como uma boa oportunidade para saciar meus questionamentos mais densos. Pior mesmo seria receber a visita do legista na terça-feira, como havia me garantido o senhor Freelemann. O legista era um japonês mal-encarado, baixinho e usava óculos fundo de garrafa. Não falava e muito menos olhava diretamente para as pessoas. Coloquei aquele avental de cor verde-claro de hospital e me preparei para ser examinada. Ele tocou o topo da minha cabeça e sentiu meus galos. Testou meus reflexos nos joelhos e contou cada hematoma das minhas costas. Mexia-me para um lado e perguntava se doía. E, cara, doía 46

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em todo lugar! E nem tinha percebido. A pior dor que senti foi no ombro direito. Perguntei o que era. – Foi um corte. Os pontos estão cicatrizando – respondeu formalmente. – Quantos pontos, exatamente? – Catorze. – Parece que há mais cicatrizes a cada dia. – Ri. Ele continuou calado. Fiquei tão sem graça que mal consegui abrir a boca para falar algo de novo. Esperei ele terminar em silêncio. Virou-me a prancheta para eu assinar. Dei um visto grosso e olhei firme, mas ele nem me deu atenção. Saiu em seguida sem se anunciar. Se tem uma coisa que eu não suporto neste mundo é o tal do mau humor. Desci da maca e voltei a vestir a roupa que estava antes. Eu teria uma tarde cheia de testes cardíacos no quinto andar. Na manhã do dia seguinte, mamãe recebeu uma ligação que a deixou revoltada. Notícia: a reconstituição teria de ser feita. E o mais rápido possível. Eu tive de passar duas longas horas tentando convencê-la de que eu realmente tinha capacidade e estrutura emocional para enfrentar aquela medida necessária. Minha alta não havia saído, mas eu já conseguia andar sem muita dificuldade, meu corpo ainda estava fraco, mas minha mente funcionava perfeitamente. Eu precisava fazer aquilo. E sozinha.

* Na quinta-feira, dia vinte e três de outubro, toda a trupe pericial me esperava no estacionamento do hospital, antes mesmo do início da alvorada, para despistar a imprensa e a grande quantidade de curiosos. 47

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A viatura da polícia que nos acompanhava iluminava as ruas do Tenderloin pela sirene. Eu olhava tudo com muita precisão. O galpão estava todo isolado pelas fitas de segurança, o que fez alguns carros se espremerem pela calçada. O moletom de capuz escondia meu rosto, e não olhei em volta, mas aparentemente as coisas estavam correndo bem. O dia começava a surgir acanhado nos prelúdios do imenso céu de São Francisco. Eu olhei a edificação daquele galpão abandonado com um aperto sufocando meu peito. Eu não sabia como eu reagiria ao entrar naquele lugar novamente. E, embora estivesse sentindo a aflição de vivenciar aquela realidade transgressora tão recente pela segunda vez, esforcei-me e segui em frente. A história se corroborava por fragmentos. Os estilhaços de vidro no chão da garagem principal, as marcas dos pneus cantados, gotas de sangue pelo caminho. Tudo foi coletado. As escadarias pareciam mais empoleiradas, e os corredores, mais atolados que antes. Estar de volta àquela atmosfera me remetia a um déjà vu, assim como um pesadelo antigo que você deseja nunca mais relembrar, mas sabe que as imagens aterrorizantes continuarão por um bom tempo intactas em suas lembranças. A equipe da perícia era grande. Havia pessoas responsáveis somente pelo andar térreo, outras pelo superior, a outra parte só fotografava e alguns se espalhavam atrás de novos vestígios. Dois agentes me acompanhavam exclusivamente. Ambos tinham seus olhos vidrados nas lentes da câmera. A sala onde eu tinha sido trancafiada estava aberta. Manchas de sangue, que escorriam pela parede sul, chamaram a minha atenção. Era o sangue do sujeito. Com um breve aceno, o agente deduziu meu gesto em um instante. – Ótimo. Era isso que estávamos procurando. – Ele retirou alguns utensílios de sua maleta prata. 48

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Nas extensões da parede, ainda estavam as marcas dos meus dedos. Encarei meus pulsos enfaixados e me recordei do momento em que forcei as algemas para me soltar. Eu ainda os sentia doloridos. – Holly... – Alguém me tirou dos meus pensamentos. – Oi. – Sorri simpaticamente para o perito uniformizado que me espreitava. Era um rapaz alto e um bocado forte. – Venha ver o que achamos. – Ele fez sinal para que eu o seguisse. Descemos as escadas até o térreo, onde se concentravam algumas divisórias que formavam salas improvisadas. O tal agente de investigação me guiou até uma delas, onde a quadrilha permaneceu durante o meu sequestro. Luzes fluorescentes iluminavam um ambiente completamente revirado. Certamente houve uma tentativa de incêndio ali. As paredes escurecidas por fuligem denunciavam a circunstância. Ainda assim, documentos se perdiam sobre as mesas, sacos plásticos lotados de lixo estavam espalhados pelo espaço e restos de entulhos de construção cobriam parte do chão, pois na parede norte uma fenda havia sido aberta, talvez para uma possível fuga. Analisei o lugar desordenado com mais atenção e denotei algo peculiar. Havia uma pequena grade no alto da parede esquerda. A tubulação de ar. Enquanto eu me perdia naqueles infindáveis detalhes, espiando curiosamente o conteúdo daqueles documentos espalhados pelas mesas, o perito se aproximou. – Quem é Christopher Fields? Parei por um momento. Ele detinha um papel nas mãos. – Não faço a menor ideia – respondi. – Sua mãe trabalha no Hospital Municipal de São Genaro? – leu o papel. – Aos sábados, no plantão da emergência – respondi. O agente sacou o rádio do bolso e contatou algum colega. Forneceu os dados e ficou aguardando a resposta. 49

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Durante esse tempo, meus olhos rolaram de volta às folhas. Havia mapas, vários nomes, telefones, folhas rasuradas, havia até uma foto minha do tempo da formatura da oitava série. Diante daquelas provas, comecei a concluir que o sequestro havia sido muito bem planejado. Eles haviam pesquisado os principais dados da minha vida e da vida de minha mãe. Atrás de mais papéis, havia um relatório muito peculiar. Reli-o algumas vezes. Foi quando percebi que eram diversos horários. Os desgraçados estavam à minha espreita desde setembro. Sabiam quando eu saía de casa e quando retornava. E eu nunca havia percebido nada. Que data mais desgraçada para se marcar um sequestro. Meus raciocínios acabaram junto com o telefonema do agente. – Consegui uma informação. Esse Christopher Fields é dono da rede São Martin de hospitais. Vamos entrar em contato para saber como o nome dele surgiu no meio de tudo isso. – Minha mãe deve conhecê-lo, se bobear. – E esses papéis em suas mãos? – Apontou. – Oh, sim. – Inspirei com pesar. – Todo meu histórico de saídas, lugares, horários... – Olhei com tremenda frustração para as evidências. O rapaz percebeu minha expressão ressentida e tratou de recolher os documentos. Suspirou rapidamente, tentando me confortar. – Você agiu na hora certa, não houve tempo desses caras apagarem nada. – Devolveu os papéis à mesa e começou a fotografar. – Posso pedir um favor para você? – Estou atrapalhando, não é? – Fui óbvia. – Que é isso? Só queria que avisasse o detetive Tucker para desligar a chave de luz. O pessoal vai entrar aqui daqui a pouco com o luminol. – Pode deixar. – Sorri, já me preparando para sair. – Olha – ele disse alto, impedindo-me de continuar. – Se quiser, pode esperar no carro da viatura – sugeriu atenciosamente. 50

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– Positivo – brinquei batendo continência e terminei por me retirar. Falei com o detetive Tucker e me enfiei no carro da polícia. Às nove horas da manhã ainda não haviam chegado. Sentei no banco traseiro e recostei a cabeça. Acho que trinta segundos se arrastaram como uma hora. Avancei o braço sobre o painel e liguei o rádio. [...] Bom dia, você está ouvindo a mais uma transmissão do Jornal da Manhã, com Larry Fray. Depois do último dia dezessete, em que um sequestro foi desarmado no bairro Tenderloin, hoje chegou o grande dia da reconstituição. O galpão que está sendo investigado foi cenário de um dos crimes mais bem planejados da história de São Francisco. Mas os bandidos não contavam que sua vítima, uma adolescente de dezesseis anos, fosse capaz de desarmar todo um esquema e salvar-se do crime quase perfeito. Escute a cobertura completa desde o primeiro dia pelo nosso jornalista correspondente. Um som de multidão começou a aumentar de volume. Eu imaginava a rua apinhada de pessoas, as viaturas de polícia isolando a avenida e os diversos criminosos sendo presos. Os curiosos de plantão batiam palmas para a tática da polícia em resolver mais um crime. Um repórter narrara as movimentações. Holly Armstrong foi sequestrada às oito horas desta manhã ao sair de casa no bairro de Potrero Hill, indo para a escola em que estuda, até que os meliantes a abordaram e a levaram para o cativeiro. Acompanhe com nosso correspondente alguns depoimentos. Segundo os colegas da escola, havia uma comemoração no dia de hoje em razão do seu aniversário. – Vocês estudavam com a vítima? – o repórter perguntou a alguém. Reconheci a voz logo de cara. Minha amiga Danie chorava muito e sua voz sumia de acordo com as respostas que dava. – Ela é nossa melhor amiga! Havíamos preparado uma surpresa, mas tudo aconteceu tão rápido! Amiga, esteja onde estiver, nós amamos muito você! O repórter continuou a fazer perguntas. – Holly já havia sofrido algum atentado desse tipo anteriormente? 51

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– Nunca! Ela não tem nada que chame a atenção para ser alvo de uma barbaridade dessas, ainda não conseguimos entender como pôde acontecer. – Distingui a voz de Sidney logo que completou a frase. O repórter, não satisfeito, insistiu com mais questionamentos. – Qual é a ideia que vocês têm dessa história? – Não queremos especular nada! Só queremos ver a Holly bem, queremos que nos deem notícias. Ansiedade e dúvidas estão nos matando. E sabemos que ela precisa de nós. – Sidney! – As lágrimas escorreram desenfreadas pelos meus olhos. Aquilo havia sido tão diferente para mim. Inesperado demais. Ouvir meus amigos ali, longe. Queria tanto poder abraçá-los, dizer que estava tudo bem e avisá-los que ficaria longe por um tempo. Agora ouça a situação que se segue nesta manhã, dia da reconstituição. – Daniel, como está a movimentação por aí? Recolhi as lágrimas e me virei para analisar os portões que escondiam a situação acontecendo do lado de fora. – Até agora ninguém saiu de lá de dentro. Os policiais que estão escoltando a equipe legista não nos dizem nada. Parece que a garota está participando da reconstituição, Larry. Vamos apurar novas informações. – Ok, Daniel, estaremos aqui aguardando mais notícias. E agora temos a presença do xerife Thompson, da décima quarta divisão de... Eu desliguei o rádio. Não precisava ouvir mais nenhuma palavra. Desci do carro e fui em direção ao portão. Os agentes que estavam ali espalhados me olharam firme. – Não vou sair lá fora, não se preocupem. Só quero espiar – garanti. Pela fresta do portão, a imagem de uma multidão surgiu. Muitas vans de televisão e rádio deixavam a rua interditada. Como o repórter havia descrito, os policiais que nos escoltavam permaneciam inertes, como estátuas diante do terreno do galpão. Aquele alarido, barulhada, pessoas batendo palmas às vezes. Uma celeuma instaurada. Comecei a rir por não haver outra reação. Que ridículo. Os policiais 52

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afastavam as pessoas para trás, mas não adiantava muito, em meio tempo, as faixas de segurança estavam se esticando de novo. – Como está aí fora, Holly? O agente alto e forte responsável pela sala dos documentos apareceu por trás e recostou a mão sobre meu ombro. – Já foi a um circo? É muito melhor que isso. – Dei uma risada sarcástica. – Veja pelo lado bom. A opinião pública sempre piora a barra dos culpados. Não tenha dúvida que você ganhou muitos fãs. – Fãs – ironizei. – Se eu tivesse acabado com a fome na Somália ou criado um acordo de paz em Israel. Eu só salvei minha própria vida. Não tem nada de heroico nisso. – Revoltei-me. – E nem sei se consegui. – Esse é o seu ponto de vista. A sociedade sempre precisa de ídolos. – Seus olhos me fitaram e eu fiquei em silêncio. – Já terminamos. Quando quiser ir... Virei-me em sua direção. Não havia reparado no seu crachá que levava seu nome. Perito Nicholas. – Podemos ir agora, Nicholas. Ele tocou em seu crachá, percebendo a procedência da minha descoberta. – Pode me chamar de Nick. Tenha certeza de que pertenço ao seu fã-clube oficial. Eu ri sinceramente e assenti. – Será que posso lhe pedir um favor? – Repousei meu dedo indicador sobre os lábios, pensativa. Nick levantou uma sobrancelha. E lá fui eu no banco de trás da viatura. Com colete preto, boné da perícia, cabelos presos e um óculos escuro. Pedi para me camuflarem. Eu não queria ser vista. Não tão recentemente. 53

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Saímos despercebidos pela multidão. Assisti a tudo aquilo com certo humor. Eu me sentia a Britney Spears ou até mesmo nosso governador. Alguns carros ainda continuaram lá para despistar a atenção. Demos várias voltas pelo quarteirão até entrarmos no estacionamento do subsolo do hospital. Nick me acompanhou. Retirei minha camuflagem e entreguei-a em suas mãos. Agradeci. – Acho que foi um dia difícil para você. Precisa descansar. – Nick puxou papo. – É... Digamos que sim. Não é muito bom reviver tudo outra vez, mas eu levo isso como uma meta, sabe?! Tentar entender as coisas também é uma forma de aprender a superá-las. – Admiro. Não sei se teria a mesma coragem. Dei de ombros. – Bom, até qualquer dia – despediu-se de forma atenciosa. – Senhor Freelemann a deixará a par das investigações. – Obrigada mais uma vez, Nick. – Aquele silêncio se firmou no ar. Permaneci segurando a porta do meu quarto. – Então, até qualquer dia. – Sorri sem graça. – Até mais. – Ele acenou e eu fechei a porta. Minha perna estava doendo mais do que o normal. Preparei-me para me virar e andar até meu leito, imaginando umas boas horas de descanso, quando fui tomada pela surpresa. – Mãe?! – Avistei-a encostada à cama, assinando alguns papéis. – Achei que estivesse trabalhando. Ela percorreu a distância entre nós, aproximando-se de mim rapidamente. – Filha, já está tudo pronto! Estou tão feliz! – Abraçou-me repentinamente. Eu fiquei um pouco deslocada, mas mantive um sorriso no rosto por precaução. – Iremos embora na próxima semana! Ah, querida! Estou tão feliz por você, por nós! Agora tudo vai dar certo! A confiança dela me surpreendeu. E de uma maneira positiva. 54

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– Que ótimo, mãe. Parece que seu dia foi produtivo. – Sorri, sentando-me na cadeira que espreitava a cama. Eu já não aguentava o desconforto pelas dores. – Ah, tenho tanta coisa para contar para você, Holly! San Diego é tão linda! Você vai amar! Já consegui dois hospitais para trabalhar! Tem uma escola ótima para você! Nosso apartamento é perfeito! – Vamos morar em um apartamento? Como ele é? Ela suspirou para falar. – Ah, é bonito. – Você já viu? – Ainda não, mas está tudo acertado, Holly! Não importa que por enquanto só tenhamos uma cama e uma geladeira em nosso novo apartamento. Estaremos em paz, querida. – Abraçou-me novamente. – Pelo jeito não sobrou nada da nossa casa, não é. – Deduzi. Mamãe desvirtuou o olhar. Suspirou ligeiramente e voltou a abrir a boca para tentar se contentar. – Mãe, nós vamos ficar sem nada dentro de casa. Vamos usar o dinheiro que você estava guardando para comprar meu carro. – Não, querida. Não vá abrir mão de seus sonhos por causa disso. – Ah, mãe! Por favor... – Revirei os olhos. – Isso foi ideia sua, mesmo eu não gostando muito de carros. Mal sei ligar um. Nós duas sabíamos que quem dirigiria esse suposto carro seria a senhora. Fique tranquila. Quando chegarmos em San Diego a gente providencia tudo. – Eu te amo tanto! Seremos tão felizes de agora em diante! – Ela se ajoelhou à minha frente e segurou minhas mãos. Logo deitou a cabeça entre meus joelhos. – Eu te amo, mãe. – Passei as mãos sobre seus cabelos louros e finos. Ela se afastou, e eu pude perceber um resquício de lágrima em sua pálpebra. 55

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– Não quer saber como foi meu dia hoje? – Sorri. – Acho que não é necessário. – Fitou-me profundamente, como se estivesse reunindo as palavras certas. – Sabe, minha filha... Acho que devemos enterrar muitas coisas agora. Apenas deixar de falar. Será mais fácil. E, ah! – Alegrou-se por um instante. – Andrew quer falar com você mais tarde. Apenas assenti, sorrindo. E então mamãe me sorriu de volta, complacente. Doutor Andrew apareceu no início daquela noite para me parabenizar pela recuperação. Seus olhos afáveis me analisaram com preocupação enquanto eu, repousada sobre o leito, curtia o efeito do sono em razão dos remédios. – Mamãe disse que o senhor tinha algo para me falar – afirmei com minha voz grogue. Ele arrastou uma cadeira para perto da cabeceira. – Nada com que você tenha que se preocupar, querida. É só um convite. Nesses últimos dias que ficará por aqui, você pode muito bem visitar a pediatria quando se sentir muito entediada. Sua mãe já lhe falou da previsão? Sorri antes de responder. – Sim... – Meus olhos estavam prestes a fechar, mas prossegui. – Na próxima semana, começo de novembro. Parece uma criança falando. – Ela realmente está muito feliz. Você não sabe como essa situação a abalou. – Suspirou com pesar. – Mas voltando a um bom assunto... Quero lhe ver qualquer dia no segundo andar. A não ser que não se dê muito com crianças. – Eu até que gosto de crianças – Sorri. – Só não tenho muito apego. Senti sua mão delicada tocar minha testa suavemente. Doutor Andrew riu convencido. 56

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– Não se preocupe com isso, você é uma delas ainda. – Ri sem forças. – Tudo bem, você ganhou afinal – confessei, deixando-o orgulhoso.

* Assim como em minhas mais fúnebres lembranças, eu olhava o calendário pregado à porta do quarto do hospital com certo ressentimento. Sete dias haviam passado rápido, mesmo que eu não sentisse dessa forma. Eu sabia que minha vida estava respirando os últimos momentos do meu passado remoto. Dentro de alguns dias, tudo seria deixado para trás. Eu assumiria uma nova identidade, pois eu não seria mais a Holly Armstrong. Meu nome se tornaria um fardo, um passado carimbado em minha própria existência. Eu também sabia que as maiores lembranças que eu guardava dentro de mim deveriam ser apagadas. Mesmo duvidando da minha capacidade para fazer isso. Seria apenas uma medida necessária para amenizar a dor pelas minhas maiores perdas. E, ainda assim, eu nutria dúvidas em minha consciência. Mas tudo voltaria ao normal. Eu tinha de acreditar nisso. Pela madrugada, eu acordei atônita de um sonho indefinido, mas agitado. Olhei em volta pelo quarto e não encontrei minha mãe. Ela deveria estar em um dos seus últimos plantões. Em cima do sofá em que ela costumava repousar entre um intervalo e outro, estavam presentes aquelas caixas de papelão que mamãe resgatou da nossa casa. Não eram muitas. Cinco ou seis no máximo. Desci da cama com certa dificuldade e decidi bisbilhotar por mera distração. Levantei as abas rapidamente. Mordi os lábios em exaltação. Não acreditei. Comecei a abrir todas com desespero. Uma lágrima caiu de felicidade. 57

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Naquela última semana, eu havia esquecido completamente quem eu era, as coisas que eu amava e eram importantes para mim. Havia esquecido da Holly que tinha dezesseis anos e muitos sonhos. Eu havia apagado uma boa parte de mim mesma e sequer tinha percebido. Amontoei com cuidado minha coletânea de CDs do Guns N’ Roses. Agradeci por aqueles itens ainda estarem intactos. Mais a fundo, havia meu álbum da escola, alguns desenhos antigos e várias fitas cassetes. Como “Aniversário Holly 1995”, “Ação de Graças em Chicago”, além de diversas fotos soltas que reuniam vários momentos da minha vida com minha mãe. Eu viajei a lugares na minha mente que eu imaginava que tivessem sido apagados. Havia uma foto perdida no fundo da caixa. Era grande e amarelada pelo tempo. E havia algo escrito. Mas prestei mais atenção à imagem antes de ler a dedicatória. Era minha mãe, muito jovem, ao lado de um rapaz, também jovem, que a abraçava. Eu sabia muito bem quem estava ali. Era meu pai. Eu sempre fui tão acostumada a estar vinculada familiarmente apenas à minha mãe que uma hora optei por nunca conhecer o homem que um dia havia se apaixonado por ela, quando ambos ainda eram calouros em uma faculdade de Chicago. Desde pequena minha mãe sempre me deixou grandes escolhas na vida. Uma delas era conhecer meu pai. O destino e algumas circunstâncias de orgulho e amor fizeram essa ideia se distanciar por muito tempo. E, para ser sincera, depois de longos dezesseis anos, não haveria mais tempo para reconstruir qualquer tipo de elo. Havia também uma caixinha de cartas que eu guardava há muito tempo. As primeiras retratavam uma infância generosa; as últimas não eram muito agradáveis. A risada irônica que se instalou na minha mente me fez fazer uma careta terrível. Os relacionamentos que não deram certo, as ilusões. Aquilo tudo parecia tão distante de mim. Distante do meu presente. Agora que havia um divisor 58

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de águas, tudo parecia estranho. Mas eu ainda reconhecia aqueles acontecimentos como meu. Eu sei que não vi a hora passar. Eu estava recordando minha própria vida. Assim como alguém que sofre um acidente, perde toda sua memória e tenta reconstruí-la por fragmentos, como peças de um enorme quebra-cabeça. E, na real, a vida é um quebra-cabeça mesmo. Você passa seus dias atrás de elementos para completá-lo, às vezes se esquece ou desiste de continuar tentando. Encaixa pessoas, paixões, viagens; pensamentos. Monta teorias, muda de opinião, de amor; de casa. E isso faz com que mais peças apareçam e sumam ao mesmo tempo. Acho que é um desafio muito grande conseguir organizar um quebra-cabeça desse tipo. É um objetivo que pode ser seguido só para ter o que fazer e, às vezes, se torna a nossa única opção, para que possamos compreender o verdadeiro sentido de estar respirando. Só que para tudo isso... é preciso ter força, mas ela tende a nos abandonar de vez em quando. Assim como muitas coisas da vida, a força deve ser conquistada. Afinal, o que tem a fazer com ela? Vai ajudar alguém? Vai ajudar a si mesmo? Ou vai fazer essa sua força inexplicável ir contra você? Indefinida a ponto de não conseguir reconhecê-la... Tão pequena a ponto de se tornar oculta. Descobrir a força que vinha de dentro seria um dos meus maiores desafios. E eu teria de estar expressamente pronta para todos eles.

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CAPÍTULO QUATRO

chuva de novembro

Numa determinada manhã ensolarada, decidi fazer algo diferente. Eu já conseguia andar sem sentir nenhuma dor, minha anemia estava quase controlada e eu acabara de retirar todos os pontos dos cortes que permeavam a pele dos meus braços e costas. Algumas cicatrizes ficaram bem à mostra, mas elas sumiriam com o tempo. Pois bem. Naquela quarta-feira, eu decidi fazer uma visita ao setor da pediatria, assim como o doutor Andrew havia me sugerido. Eu já pude vislumbrá-lo assinando alguns prontuários enquanto eu me aproximava da recepção. Seus lábios se ergueram em um sorriso orgulhoso quando me avistou ali. – Eu sabia que viria! – Sua mão repousou em meu ombro. – Pronta para conhecer a área mais feliz do hospital? – Sorri. Doutor Andrew começou a me guiar por alguns corredores. De longe, ouvia-se o barulho de brinquedos se espalhando pelo chão, atribuídos por aquela correria, com o timbre de voz infantil ecoando em coletivo. Não me assustei. Desafios, aí vou eu. Aproximamo-nos de um anexo daquele setor. Ele deslizou uma porta dupla de vidro que apartava a área fria do hospital do terraço colorido e bem arborizado feito especialmente para as crianças, que, naquela ocasião, estavam em grande número. Fiquei tensa. – Não fique apavorada, Holly. Você é uma criança como elas. – Ele se divertiu com a piada enquanto tentava me interagir. – Todos são pacientes? – perguntei. – Oh, não. Muitos ficam aqui enquanto os pais fazem exames, procedimentos cirúrgicos. Apenas para garantir que não fiquem correndo pelos corredores e causando algum estrago. – Sorriu como se já tivesse presenciado fatos parecidos. Correspondi, acenando com 60

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a cabeça e ele voltou a falar com seriedade. – As crianças que são pacientes, às vezes, não entendem a necessidade de ficar tanto tempo no hospital. Este lugar de recreação os remove da maior parte do sofrimento. – Sem dúvida – concordei com veemência. Eu poderia dizer o mesmo, já que me sentia próxima a realidade delas. Apenas um garoto solitário me chamou a atenção. Ele empurrava com cautela um carrinho amarelo em um canto qualquer. As outras crianças não se misturavam com ele. Quando deslizei a porta de vidro para fechá-la e me despedir do doutor Andrew, a algazarra foi desabafada. Passei direto pelos pequenos e fui em direção ao garoto solitário. Agachei ao seu lado, e ele apenas virou a cabeça. Não me olhou. Terminei de sentar e ele continuou no mesmo modo de incompatibilidade. Talvez fosse tímido ou não quisesse dividir seu brinquedo. O cabelo castanho-escuro escorrido até as orelhas escondiam sua feição. Sua pele chegava a ser translúcida de tão clara. Muito bem-arrumado, com a bermuda jeans combinando com uma camiseta polo listrada em tons de verde. Não vi motivos para aquele menino estar tão deslocado. – Você não gosta de brincar com as outras crianças? – perguntei com desvelo. Surpreso, ele moveu a cabeça para os lados, como se quisesse identificar onde eu estava. Acabei por tocar seu braço com as pontas dos dedos. O menino deu um pulo assustado. Foi quando ele direcionou seu rosto para mim. – Oi! – cumprimentei olhando para o fundo de seus grandes olhos. Ele esticou a mão para me alcançar, como se quisesse se certificar de que havia alguém ali. Foi quando percebi que seus olhos não apresentavam nenhum brilho. O garoto era cego. Um gelo tomou conta do meu coração. Ele sorriu como se quisesse me tranquilizar. Os dentinhos recém-crescidos 61

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emolduravam uma expressão doce e ingênua de um garoto normal de cinco anos de idade. – Oi! – respondeu-me empolgado logo depois que buscou a palma da minha mão e a apertou. Um sorriso brotou em mim aleatoriamente. Ele mantinha a mão firme segurando a minha. – Qual é o seu nome? – Puxei papo. – É Lucas! E o seu? – Holly! – Seu nome é bonito. Minha mãe diz que meu nome também é bonito. Sorri desengonçada, olhar para ele era estranho. Nunca havia visto uma pessoa com deficiência visual tão de perto. – Sim, sua mãe tem razão. – Sabe por que eu estou no hospital? O menino tagarelava ansioso, talvez não houvesse oportunidades de comunicação frequente com ele. – Por quê? – Vou ganhar um irmão! E depois eu vou ganhar um olho, sabia? Meu pai disse que meu irmão vai trazer um olho de presente, Holly! Ele já havia decorado meu nome, e as palavras saíam atropeladas, mas eu conseguia compreender. Era difícil pensar em assuntos para compartilhar. O mundo em que ele vivia era tão limitado. Já imaginou estar preso em uma vida no escuro? E mesmo assim ele possuía uma grandiosidade. Era possível perceber por aspectos simples o quanto ele se esforçava para viver. Tão pequeno, vulnerável, porém ficara nítido que Lucas era a criança mais sorridente daquele ambiente. Eu não queria falar nada que tocasse em assuntos desconfortáveis. Era um esforço danado permanecer ao seu lado querendo construir uma realidade bonita e saudável. Mas ele mesmo sabia de sua deficiência, e pelo jeito lidava muito bem com ela. 62

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Na primeira hora em que permaneci com Lucas, ele teve o trabalho de me contar todas as coisas que fazia em casa, como também relatou a última viagem à praia e o quanto gostava de sorvete de chocolate. Ouvi tudo com muita atenção até o Sol virar e sua luz começar a bater na área em que estávamos sentados no terraço. Esquentou nossas peles levemente. – Holly, como é o Sol? – Despertou-me com a pergunta. – Nunca descreveram para você como é o Sol? – Minha mãe não consegue explicar. – Abaixou a cabeça. – O Sol, Lucas... – Retirei-me para pensar. Revirei os olhos pelo ambiente e localizei uma bola. Trouxe até nós. Entreguei nas mãos dele com cuidado. – Você sente? A bola é um círculo infinito. – Ele a tocava com vontade. – Imagine uma bola dessa bem grande – falei calmamente. Suas mãos a seguraram mais firmemente. – Grande que nem você? – Riu. – Muito maior! Maior que sua casa, maior que nossa cidade. – Nossa! – abriu a boca em exaltação. – Agora, imagine que essa bola é muito quente! Muito quente mesmo, que não dá para tocar. – Soltou a bola e caiu na gargalhada. – E essa bola tem uma luz incomum. Tão forte que chega a esquentar. – Queria ver a luz do sol. – O pequeno emudeceu-se. Corri pelos meus pensamentos em busca de um consolo. – Mas você pode senti-la. Está sentindo o chão em que sentamos? Está quente. A luz do sol que fez isso. Não teria graça ver o Sol e não sentir o calor. Se apenas víssemos o Sol, talvez não existisse ninguém sobre nosso planeta Terra. Só existimos porque sentimos o Sol. 63

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Eu queria que ele se sentisse bem, mesmo com seus problemas. E, quando eu achava que ele era apenas um garoto, ele me surpreendeu. Lucas encarou o céu, com pesar. – Será que um dia eu vou poder ver o Sol? – Claro que vai! Seu pai não lhe contou que ganhará um olho de presente? – É. – Suspirou. – Mas já ouvi meu pai dizer que nunca vai dar certo. Mamãe fica muito brava quando ele diz isso. – Seus pais brigam muito? – perguntei sem pensar. – Acho que sim. É verdade que quando os adultos choram é porque brigaram com alguém? – Às vezes sim – respondi dando de ombros. – Então minha mãe briga muito. Ela sempre chora. – Havia pesar em seus versos abafados. Algo se retorceu dentro do meu peito. Um garoto tão pequeno suportando barras tão complicadas. Pelo jeito seu pai não era nenhuma referência de ternura. Fiquei terrivelmente chateada com essa possibilidade. A vida já é difícil, e as pessoas tendem a complicá-la ainda mais. Lucas permaneceu comigo no terraço até o fim do horário do almoço. Uma das enfermeiras se aproximou para buscá-lo. Avistei por detrás do vidro um homem de meia-idade que o observava com certa... impaciência. Devia ser seu pai. Isso era triste, muito triste. Eu encontrei o doutor Andrew logo depois. Ele veio verificar se estava tudo bem comigo e me senti na liberdade de lhe perguntar sobre o garoto. – Ele nasceu com essa deficiência, Holly. Apertei os lábios contra os dentes frustrada. Andrew prosseguiu: – A mãe dele tinha sua idade quando engravidou. Uma mãe solteira que tentou vários abortos até o bebê nascer prematuro. A família se sensibilizou quando descobriu que o menino tinha glaucoma. E então ela casou com um homem mais velho e está 64

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esperando o segundo filho. Ela vem sempre ao hospital, por isso o menino fica aqui. – Então o pai do Lucas... – Não é o pai de verdade – Andrew afirmou. – E ele não sabe, não é? – Suspirei fundo. – É. A família escolheu assim. Tantos problemas para explicar para o garoto. – Andrew deu de ombros. – E mesmo assim o menino sofre. – Balancei a cabeça inconformada. – Você já percebeu, não é? Eu vejo naquele pai uma falta de... afeto, como se o garoto fosse um monstro. Não dá para entender. À noite, minha cabeça pensava em mil coisas. Tomei um banho e me deitei. Fiquei me revirando de um lado para outro, pensando. Queria imaginar como aquele garoto poderia crescer, não pela deficiência, mas pelas consequências dela... as rejeições, os obstáculos. Eu havia me integrado tanto com o pequeno que havia esquecido dos meus próprios problemas, da deficiência das minhas lembranças. E parecia que tudo estava tão insignificante comparado ao mundo do garoto. E logo minha realidade me chamou de volta. Dormi pesado. E acordei com o telefone do quarto tocando às dez da manhã do dia seguinte. Era uma das recepcionistas avisando que Nick, o perito simpático que me acompanhou durante a restituição, me esperava no terraço de visitas do quinto andar. Arrumei-me rapidamente, escovando os dentes e jogando uma água no rosto amanhecido, saindo logo depois. Nick me aguardava sentado junto a uma das mesas. Uma sacola de plástico preta ocupava quase toda a extensão do tampo. Olhei desconfiada e sorri ao final. – O que é isso? – Olhei de forma pretensiosa para ele. – Abra, ué. Acho que você gostaria de recebê-la de volta. 65

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Sentei-me na cadeira e puxei a sacola, já arrebentando o plástico com as unhas. Desconsiderei a possibilidade de desamarrar o nó. Estava ansiosa. – Não! Eu não acredito. – Sorri com exaltação ao ver o que havia lá dentro. – Minha mochila! Eu achei que nunca mais a veria novamente. Ela estava praticamente intacta. Havia alguns livros ali dentro, junto com meu material escolar. Minha querida mochila preta da Hurley. – Bom, agora que a perícia está quase finalizada, não há mais necessidade de ficarmos com isso. – Trouxe a mochila para meus braços. – Você sabe que foi sua vizinha, a senhora Rivers, que a achou, não é? – Nick comentou. – É mesmo? – O fato me caiu como uma novidade. – Sim, foi um detalhe que os sequestradores esqueceram. Conseguiram dar fim na sua bicicleta, mas a mochila ficou para trás, jogada na rua da sua casa, até a senhora Rivers encontrá-la e estranhar o fato, o que a fez ligar para a polícia. – Nossa... – Sorri sem jeito. A mente vagou longe para uma memória não muito antiga. “Não prestamos atenção nas coisas pequenas porque não as vemos...” – Obrigada, Nick. E... você tem novidades sobre a investigação? Ele permaneceu em um silêncio particular e logo deduzi que aquele assunto poderia não ser muito bem-vindo. – Oh, desculpe. Você não vai falar. – E você não vai desistir, não é? – Pode contar com isso. – Pisquei. – Ok. – Ele olhou em volta, assegurando-se de que ninguém ouviria nossa conversa. – A única coisa que posso lhe adiantar – Nick abaixou o tom de voz – é que muitas pessoas estão sendo investigadas. Parece loucura, mas o sequestro foi apenas a ponta de um iceberg. 66

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– O quê? – Franzi o cenho, mais uma vez surpreendida. – Apenas isso, Holly. Deixe-nos fazer o resto do trabalho, por enquanto. – Nick tratou de reunir suas chaves para enfiá-las no bolso. – Preocupe-se em se recuperar. Tudo bem? – ele disse, antecipando despedidas. – Se cuida, garota. Até... qualquer dia. E assim eu permaneci inerte ali junto à mesa, com minha mochila no colo, absorvendo cada palavra, sem entender tudo o que eu queria. Ou até entendendo, mas sem querer aceitar. Subi para o quarto no fim das contas. Posicionei minha mochila sobre o leito. Analisei-a por alguns segundos intermináveis. Ela significava tanto. Comecei a tirar as coisas de dentro dela e me deparei com o livro da Sidney. Alisei a capa e sorri, mesmo com uma lágrima em meus olhos simultaneamente. Recolhi meu estojo de canetas e escolhi uma. Abri o livro na contracapa e escrevi uma dedicatória sincera. Selei minha assinatura no papel e uma dor se estabeleceu dentro do peito. Engoli em seco tentando controlar a emoção e, por fim, decidi guardar o livro novamente na mochila. Eu pediria à mamãe que entregasse aquele objeto a dona antes de partirmos. Estranhamente, estar perto daquelas evidências me deixava muito abalada. Fazia com que as aflições retornassem. Pressenti que eu teria que ser mais forte para me curar daquele trauma, pois tudo continuava ali, escondido em um canto de mim, adormecido por um sono muito leve. E acordar todas aquelas questões realmente poderia ser perigoso. Suspirei fundo diante daquela realidade. Para tentar isolar aqueles pensamentos, resolvi me arrumar e descer até a pediatria para passar o tempo, já que eu teria o último exame que me garantiria a alta do hospital logo na parte da tarde. Para minha surpresa, Lucas estava lá, todo enturmado com a enfermeira, conversando sem parar. Cheguei devagar e tomei-o pelos braços. – Como vai, garotão? – Afaguei sua barriga e ele gargalhou deliciosamente. 67

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– Tô bem! Estava falando para tia que meu irmãozinho chega no sábado. – Ah, é? – Olhei para a senhorita Sanders, que sorriu orgulhosa do garoto. Ela era a enfermeira responsável pelas crianças. Ela tocou em meu braço como se quisesse me advertir de algo. – Ainda bem que chegou. Doutor Andrew pediu para lhe avisar que o seu legista já está a caminho. – Ah... – Uni as sobrancelhas – Mas já? – Parei por um instante. Lembrar dele me trouxe insatisfação. – Acho que é a sua alta! – Ela me olhou empolgada. Suspirei fundo e tentei dispersar a frustração. Ter de olhar para cara daquele sujeito não era muito agradável. Fiquei ali brincando com Lucas no chão do terraço até alguém em particular se aproximar da recepção. Pelo vidro, analisei aquele homem que vi a algumas tardes atrás. Eu não deixaria escapar a oportunidade. Recolhi Lucas em meus braços e troquei ligeiras palavras com a senhorita Sanders. – Ele é o pai do Lucas? – perguntei baixinho. – É sim. Veio buscá-lo. – Deixa comigo. – Pisquei confiante e me dirigi até o homem alto de quase quarenta anos. Ele demorou a perceber minha presença ali, tão perto com o garoto no colo. Antecipei-me com minhas palavras. – O senhor é o pai do Lucas? – Olhei-o firme e senti que ficou levemente incomodado. Ele inicialmente ergueu as sobrancelhas, olhou em volta, certificando-se de que eu realmente estava falando com ele. – Sim, algum problema? – O sujeito estava visivelmente incomodado. – Não, muito pelo contrário. Lucas não tem nenhum problema. Aliás, ele é um garoto muito especial. – Sorri com sarcasmo, embora afavelmente. 68

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– Está na hora de levá-lo para casa. Deixei minha esposa aguardando no carro. – Parecia querer encurtar possíveis diálogos. – Lucas é uma criança incrível. – Analisei o garoto com carinho e encarei seu pai. – O senhor tem muita sorte de ser pai dele. – Fiz questão de dar certa ênfase ao termo tão subestimado. O tal homem me olhou incrédulo e tentou disfarçar. Desci o Lucas do colo e o pequeno tateou até achar a mão do padrasto. Eu senti tremendamente que o homem de meia-idade ficou sem graça e um sorrisinho amarelo brotou em sua expressão ao tocar os dedos do garoto. Lucas se despediu de mim e os dois se retiraram. Senti uma pontinha de orgulho dentro do peito. Logo em seguida me avisaram que o doutor Maoski já me esperava na enfermaria daquele mesmo andar. Preparei minha paciência e segui até a sala no final do corredor. – Eu já estava quase indo embora. – O legista disse com sua indolência costumeira ao me ver passar pela porta da enfermaria. – Suas mãos cairiam se esperasse dois minutos? Ele ficou em silêncio. Fui para trás do biombo e troquei minha roupa pelo avental. Ao voltar eu não aguentei e saí falando em disparada. – Eu demorei porque estava na seção de pediatria. Crianças precisam de voluntários. E eu sou um deles. Não foi por má-criação. Ele continuou a ficar de costas para mim, em silêncio. Apenas se concentrou em colocar suas luvas. Voltei a falar. – Uma dessas crianças é um garoto com deficiência visual. Quando o senhor chegou, eu estava conversando com o pai dele. – Bufei frustrada propositalmente. – Sabe esse tipo de gente que não se importa? – Olhei firme para seu rosto, que me sondava furtivamente. Havia sido uma (in)direta? Sentei-me na maca. Ele se aproximou de mim pronto para começar com os exames, mas, antes, parou por um segundo e retirou os óculos. 69

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– Eu vi o menino nos seus braços quando passei pela recepção. Ele é cego? – Sua voz era amena. Senti engolir em seco. – É! – respondi com austeridade. – Mas por que a surpresa? – Suspendi as sobrancelhas. Ele riu um pouco acuado e prosseguiu: – Eu tive esse problema quando era pequeno. – Suas mãos suspenderam meus braços, para análise das minhas cicatrizes. Havia decepção em sua expressão. Ele foi deslizando a ponta de seus dedos pelos contornos da minha cabeça, conferindo o fechamento do corte que havia em minha nuca, sem parar de falar. – Eu felizmente consegui fazer um transplante de córneas. E ainda assim não enxergo tudo, os óculos me ajudam muito. – Ele recolheu meus pés, girando-os para ambos os lados, conferindo os movimentos. – Dói? Surpreendentemente, já não doíam mais. As infinitas sessões de fisioterapia haviam surtido um ótimo efeito. – Está perfeito – respondi, dando liberdade para ele continuar o diálogo. – Sempre quando vejo uma situação dessas fico imaginando a vida que a pessoa vai enfrentar. A maioria das pessoas duvida de sua capacidade e não importa o quanto você seja bom. Nunca será o suficiente. Para certas pessoas, esse tipo de problema anula todo o resto. Olhei através daqueles olhos pequenos e senti uma dor oculta que estava guardada há anos. Ele tratou de alongar minhas pernas, garantindo que o movimento delas também estivesse perfeito, sem parar de falar. – Ninguém nunca está nem aí para seus problemas. Achei interessante da sua parte tratá-lo como um garoto normal. Antecipei minha opinião logo em seguida. – Mas ele não é um garoto normal. É muito mais do que isso. Sua vida é uma luta infindável. O que faz merecer uma consideração extrema por enfrentar a deficiência. Isso o torna especial. E não normal. 70

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Ele permaneceu em silêncio. Uma vontade de falar me corrompeu novamente. – E eu também concordo que ninguém nunca está preocupado em saber quem você realmente é. Muito menos se importa com as coisas que enfrentou e que, consequentemente, o deixaram assim. Eu entendo perfeitamente. Ele abaixou os olhos mais uma vez, distanciando-se do meu corpo para recolher o prontuário sobre a maca. Em seu silêncio habitual, rabiscou alguma coisa sobre o papel. – Você está pronta para receber alta, senhorita Armstrong. Ele deu um último visto conclusivo sobre a prancheta, virando o prontuário logo em seguida. Pediu que eu o vistasse. Peguei minha roupa no cabide e fui retirar o avental. Quando voltei, ele me entregou um papel assinado. Li silenciosamente. “A paciente encontra-se em bom estado de saúde, podendo retornar a sua vida habitual.” – Obrigada. – Ergui os lábios em um sorriso sincero. Ele saiu pela porta em silêncio. Balancei a cabeça. O homem que me trouxe a vida de volta. A partir daquele momento eu estava livre; e acho que eu não era a única. Os colegas mais próximos da minha mãe prepararam uma confraternização de despedida no sábado, antecedente ao meu último dia naquela cidade. Algumas pessoas importantes vieram me visitar, no entanto quem eu queria que tivesse vindo simplesmente não pôde comparecer. Eu sabia que dali para frente a minha vida social sofreria um hiato por tempo indeterminado. Isso me chateava, mas eu bloqueava possíveis lamúrias nesse sentido. Recebi alguns presentes especiais naquela noite, e até a diretora da minha antiga escola apareceu por lá para me desejar boa sorte. Eu aproveitei e pedi a ela gentilmente que devolvesse o livro a Sidney. Era o mínimo que eu poderia fazer para compensar meus amigos da minha ausência. 71

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Também houve uma surpresa especial nos últimos momentos da festa. Nick, que surgiu sorrindo e carregando uma caixa retangular muito bem embalada, despertou um sorriso em meu rosto de uma forma aleatória e repentina. Ele me abraçou compreensivamente. – Trouxe para você. Não é muito nova, mas é especial para mim. – Nick, não precisava. – Amoleci a voz. Ele passou a caixa para minhas mãos. – Posso abrir? – Mordi os lábios, entusiasmada com a surpresa. – Vá em frente. – Incentivou-me com seus olhos apertados e carismáticos. Puxei a fita vagarosamente. Abri a tampa e me surpreendi com uma câmera fotográfica de lentes profissionais. – Oh, meu Deus – disse pausadamente, lisonjeada. Ri um pouco constrangida. – Você gastou uma nota com isso! – Shhh! – Ele pegou em minha mão. – Essa foi a primeira câmera que comprei quando entrei para a investigação. Ela estava meio jogada em casa, então decidi consertar o multifocal, dar uma limpada. E está pronta para ser usada. Tem um valor muito grande para mim, assim como você. – Você quer que eu fique encabulada, não é? – Ruborizei. – Não aceito de volta. – Lançou-me com humor. – E você acha que eu seria louca de recusar? – Golpeei seu peito suavemente e ele riu prazerosamente. Analisei o presente, satisfeita. – Nossa, muito obrigada, Nick! De verdade. Vou usá-la muito. Ele sorriu para mim amorosamente e completou: – Só acho que você ainda me deve aquele autógrafo. Esqueceu que faço parte do seu fã-clube oficial? – O humor exalava dos seus olhos afetuosos. Nick retirou uma caneta do bolso da calça jeans e inesperadamente recolheu minha mão. Tratou de rabiscar alguma coisa sobre a palma da minha mão. – Esse é o meu telefone pessoal. Marque em 72

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algum lugar que ninguém saiba. Se você precisar de qualquer informação, ou estiver desconfiada de algo, ligue-me na hora. Entendeu bem? – Entendi, perfeitamente. – Sorri. – Muito obrigada! Você sabe que eu ainda vou lhe incomodar com muitas perguntas. – No momento certo, espero. – Sorriu de lado. – Claro, vamos deixar... a poeira abaixar, ok?! – Você é uma garota inteligente. Mas só peço que não deixe essa história subir à cabeça. Não destrua um reino inteiro apenas porque uma de suas batalhas deu errado. Não acabe com a sua vida. – Suas sobrancelhas se uniram, como se me implorasse para aceitar o conselho. Eu suspirei fundo, consentindo com a cabeça. E então Nick me beijou o rosto aleatoriamente e me olhou pela última vez. Ele acenou enquanto caminhou rumo à porta e eu fitei a câmera, embalada tão caprichosamente naquele pacote. Fitei o telefone marcado na correria e milhões de coisas passaram pela minha cabeça numa fração interminável de segundo.

* Um quarto de hospital. Seis horas da manhã de domingo. Dia dois de novembro. Eu olhei minhas bagagens amontoadas umas em cima das outras, prontas para serem carregadas. Mas o que realmente eu levaria para a viagem não estava ali. Estava dentro de mim. Eu estava levando todas as minhas expectativas dentro do peito, algumas aflições que não perdoavam meu coração, milhões de dúvidas, um pouco de insegurança, medo. Estava levando memórias, como a lembrança da voz dos meus amigos que ouvi no rádio, as luzes das viaturas iluminando o Tenderloin, o olhar inesquecível do Lucas, as palavras daquele legista, o telefone que o Nick havia marcado em minha mão. Guardaria o abraço apertado do doutor Andrew, não me esqueceria do chefe Freelemann e seu zelo... E minha mente jamais se esqueceria do tique-taque do relógio preso à 73

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parede, o qual eu sempre estive convencida de que só funcionava quando queria. Gotas de água bateram contra os enormes vitrais do quarto. Aquela típica chuva de novembro selou o primeiro interlúdio da minha vida.

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CAPÍTULO CINCO

tudo que aparece de repente tem uma ótima aparência Se não fosse a grandiosa placa verde-néon surgindo no quilômetro 82 da rodovia, eu nem perceberia que havíamos chegado. LIMITE DE CIDADE - SAN DIEGO Aquilo tudo ainda me deixava consternada. E pensar que há três semanas eu possuía uma vida completamente diferente. Como explicar a nossa vulnerabilidade em relação à vida? Uma questão que só o tempo me explicaria. – Como está se sentindo, querida? – mamãe me indagou ao pararmos no primeiro semáforo. Devíamos estar chegando em limites urbanos. – Um pouco de dor de cabeça, mas me sinto ótima. – Sorri. A cidade era realmente linda. Não havia como comparar a São Francisco. Eram metrópoles com atmosferas totalmente opostas. Mesmo estando em meados de novembro, pleno outono, o céu estava límpido, em um azul-celestial, sem a interrupção de sequer uma nuvem. O Sol brilhava por detrás das colinas ao norte, produzindo uma paisagem reconfortante. Os raios se multiplicavam em feixes dourados de luz. Talvez eu não me lembrasse de ter visto algo tão belo anteriormente. – Você já veio a San Diego antes, mãe? Fiquei surpresa ao ver a facilidade com que cruzava as rotas em uma cidade que, até então, eu julgava ser desconhecida para ela. Ela riu e logo voltou a falar. – Não, mas me informei muito bem. Digamos que não escolhi sozinha. 75

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Fiquei aérea com sua afirmação. Acho que isso refletiu em minha expressão. Ela sorriu novamente e prosseguiu: – É complicado explicar agora. Recente demais. Mas saiba que há pessoas que se preocupam conosco. Sem a ajuda delas seria inviável. Fiquei em silêncio esperando mais informações. – Jura que espera mais um tempo para me perguntar quem são essas pessoas? – Mamãe apertou seus olhos, aflita. – O quê? – Ri, desconexa. – Tudo bem. – Recostei-me confortavelmente ao banco e passei a observar as paisagens pelo vidro do carro. Havia uma pontinha de medo dentro do peito. É estranho você ficar imaginando sua nova casa, sem ter nenhuma referência. E eu sempre tive uma sensação muito peculiar em relação ao meu lar. Sempre o senti dentro de mim. E agora, passados todos esses transtornos, estava me preparando para preencher o espaço vazio que havia se estabelecido. Era tudo tão incomum para mim, mas até que estava achando interessante passar por aquelas mudanças. Afinal, descobrir novos horizontes e testar novos conceitos nunca deixa de ser bom, principalmente se você tem dezesseis – recentes – anos. Entramos na parte mais alta da San Diego Freeway e pude avistar a cidade de longe, o oceano margeando toda a costa. – Esta é Pacific Beach! – Minha mãe apontou para a praia. – Espero ter tempo para tomar sol. O verão daqui deve ser demais. – Não se preocupe com isso. Nosso prédio também tem uma piscina. – Ah, é? – Olhei-a com espanto. – O que mais tem nesse apartamento? Você tem certeza de que vai poder pagar um aluguel desses, mãe? Mamãe zombou da minha preocupação. 76

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– Não será necessário pensar nisso, Holly. O apartamento é nosso. Ela riu tranquila, e eu não compreendi. Explicou-se em seguida. – Quando eu disse que o apartamento é nosso, é porque ele realmente é. Está totalmente quitado. Surgiu um enorme “QUÊ” na minha cabeça e ela prosseguiu: – Lembra quando eu me referi a pessoas que nos ajudaram? Então. Só não se esqueça do nosso trato. Não é hora de esclarecer muito as coisas. Vamos tentar viver a partir de agora. Apenas isso. – Só quero garantir que não teremos mais problemas. – Encarei sua expressão cautelosa. – Pode ter certeza de que tudo ficará bem. – Piscou para mim. – Olha, filha! Estamos quase chegando. Quer conhecer sua futura escola? – É muito longe de casa? – perguntei. – Alguns quarteirões. – Nada que uma bicicleta não resolva. – Sorri. Minha mãe não ficou muito contente com a ideia. Seguimos pela avenida principal, por onde se avistava as embarcações que atracavam em um amplo píer. A cidade era bem movimentada. Tinha até um bonde andando por entre algumas alamedas. Continuamos por uma rua larga e avistei um conjunto de edificações sobre vastos campos de grama. – Seja bem-vinda a San Diego High School. – Mamãe reduziu a velocidade ao se aproximar do anexo de prédios. – Mãe! É... Enorme! – Arregalei os olhos tentando imaginar quantos alunos caberiam ali dentro. Mamãe riu despreocupada. – É porque, além do Ensino Médio, há um complexo de escolas superiores, fora a enorme biblioteca municipal. Observei aquela suntuosa estrutura. Era muito bonita, bem reformada, e havia uma placa enorme junto ao muro do primeiro prédio que dizia: “CONFIAMOS EM VOCÊS, CAVERS!”, que 77

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deveria ser o time de futebol. Senti até uma boa ansiedade pressionando meu peito com aqueles aspectos formosos. Mamãe retomou a velocidade e cruzou por algumas ruas até voltarmos ao sentido da marina de barcos. Descemos por uma rua recheada de prédios grandiosos e de alto padrão em estilo neoclássico. – Já estamos perto. – E começou a procurar a numeração dos edifícios. Havia ciprestes e nogueiras preenchendo as largas calçadas de uma forma charmosa. Fiquei até um pouco assombrada. Tudo era muito bonito. Mamãe manobrou o carro em frente de um portão automático. Enquanto ela esperava o portão se abrir por completo, logo deduzi. – Chegamos? – Olhei desconfiada. Ela confirmou com a cabeça. Tentei avistar a fachada do prédio pela janela do carro. Os apartamentos tinham uma ampla varanda, com vidros espelhados, e as pastilhas se misturavam em tons de marfim. Mamãe estacionou o carro na garagem completamente lívida de automóveis. O nosso seria o único. Ela desceu e eu fiz o mesmo. – Parece que não temos muitos vizinhos. – Bati a porta do carro, olhando ao redor abobalhada. Mamãe rumou para o elevador social e eu a segui. – É. O prédio é novo. Tem muitos apartamentos à venda ainda – respondeu, já pressionando o botão do 18o andar. O interior do elevador já anunciava para mim um requinte insólito. Tudo em um acabamento perfeito. Mamãe me olhou confiante durante o trajeto. Eu ainda me sentia anestesiada pela sensação de surpresa. – Quer ter o prazer? – Mamãe me repassou o conjunto de três chaves ao ouvirmos as portas do elevador se abrirem à nossa frente. Recolhi-as e, apressada, segui pelo corredor, descobrindo que só eram dois apartamentos por andar. Encarei o número rabiscado 78

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no chaveirinho e parei durante alguns segundos diante daquela porta, conferindo. Apartamento 182. Encaixei a chave na fechadura e ouvi com atenção o destranque. Uma luz ressurgiu com a abertura e entrei rapidamente. As paredes puramente brancas me trouxeram uma sensação revigorante. O chão era revestido por tacos de madeira cor de mogno, e todas as janelas estavam abertas, deixando uma corrente de ar passar entre os ambientes. Era possível sentir o cheiro de tinta recém-pintada. Abracei minha mãe, que estava logo atrás de mim. – Mãe, por que não me contou que tudo era tão lindo assim! – Gostou? – Ela se afastou do meu abraço e me olhou carinhosamente. – É claro que sim! É perfeito! – Ri. Corri pelo apartamento para conhecer o resto. A cozinha era grande e já possuía armários embutidos sobre os azulejos brancos. A sala em L era encantadora. Atravessei o ambiente, seguindo até a varanda. Apoiei-me no parapeito e observei a linda vista. Era possível avistar a baía de San Diego por completo com todas as suas embarcações. A linha do horizonte perfeitamente alinhada entre céu e mar me permitia uma belíssima paisagem. Vislumbrei o comércio da região e outros prédios ao redor. No fim das contas, eram apenas duas suítes. O que já estava de bom tamanho. Mamãe ficou com o quarto maior, e eu fiquei tremendamente contente pela minha suíte com banheira. Nossas coisas, que não eram muitas, chegaram ao fim da tarde. O pessoal da transportadora empilhou a pequena quantidade de caixas na sala e deixou alguns móveis desmontados pela casa. Era só o que restava. Havia poucas malas com roupas no carro que eu fiz questão de ir buscar. Larguei-as sobre a cama-box de casal da minha mãe e sentei ao lado delas logo em seguida. Dedilhei os tíquetes da companhia aérea que estavam presos às alças com certo pesar. 79

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Passei a observar aquele cenário; quer dizer, minha casa. Mesmo com tal definição ainda soando estranho para mim. O fato de estar começando a vivenciar minha nova fase de vida me distraía e, de certa forma, me reconfortava. Já dava até para imaginar um bom recomeço. Pois nada voltaria a ser como antes. Tudo apenas ficaria bem. Mamãe e eu decidimos sair para procurar um lugar para comprarmos um jantar prático, já que geladeira e fogão ainda não existiam em nossa casa. Demos algumas voltas pelos extensos quarteirões, até acharmos um supermercado. Fiquei esperando no estacionamento, até ela voltar com algumas sacolas com enlatados. Observei da janela as pessoas que cruzavam as calçadas. Tão independentes e pouco preocupadas. Ninguém percebeu minha presença ali. Eu era apenas uma garota anônima. E eu gostei disso. Depois do nosso jantar improvisado, decidi destrinchar a câmera fotográfica que o Nick havia me dado para esperar o sono chegar. E aquela foi minha primeira noite dormida em San Diego; na minha nova casa; na minha nova vida.

* Era dia quatro de novembro, terça-feira. Um dia quase comum, se não fosse pelas eleições presidenciais, e naquela manhã o tempo permaneceu nublado, com suas nuvens onipresentes e, de hora em outra, a chuva se alastrava pela cidade. Mamãe e eu havíamos combinado de tirar o dia para comprarmos as coisas para a casa. Passamos uma boa parte da manhã escolhendo móveis e eletrodomésticos. É claro que não pudemos comprar tudo que realmente queríamos, mas eu nem estava tão preocupada com isso. “Só precisamos de um pouco de paciência”, 80

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minha mãe dizia cautelosa, e eu repetia sua frase cantarolando uma música familiar. A loja ficou de entregar as mercadorias até quinta-feira. Só levamos a TV e alguns conjuntos de roupa de cama no carro. No dia seguinte, acordei perto do meio-dia com minha mãe chegando em casa. O barulho do destrave da fechadura foi o pivô do meu despertar repentino. – Aonde você foi, mãe? – As palavras saíram em meio a um bocejo quando ouvi seus passos chegarem ao quarto. Ela sorriu, largou a bolsa sobre a cama e sentou-se ao meu lado. – Bom-dia, querida. Estava visitando um dos hospitais em que vou trabalhar. Só para assinar a documentação de praxe. Começo na segunda. – Que bom, mãe. – Erigi-me dos travesseiros. – E quanto a mim? Quando vou voltar à escola? – Passei a mão pelo rosto, tentando despertar aquela sensação sonolenta. Ela coçou a cabeça, sem saber como começar a falar. Fiz uma careta. Sua reação assombrou minhas expectativas. – Precisamos... conversar sobre isso – ponderou as palavras. – Eu não vou voltar a estudar? – Apertei um dos olhos, deduzindo. – Claro que vai, mas você terá de esperar um tempo. – Defina tempo. – Fui categórica. – Um pouquinho, Holly. – Uma semana? – Desdenhei. – Mais. – Meneou os olhos de um lado a outro. – Duas semanas? – Dei um sorriso amarelo. – Mais um pouco... – Olhou-me com cautela. – O quê? UM MÊS? – exasperei-me. – Na verdade, dois meses – revelou por fim. 81

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– MÃE! – Bufei, tentando aliviar a frustração. – Vou perder muita matéria... Para que tudo isso? A senhora não acha que está exagerando? – A matéria é o de menos, querida. Conversei com a conselheira de ensino daqui. Ela vai fornecer a você todo o conteúdo semanalmente. Depois a escola lhe aplicará uma prova. Você não faz ideia do alvoroço que seria “a garota sequestrada” morando e estudando em San Diego. Dois meses é o suficiente para a poeira abaixar, minha filha. Ignorei aquele fato e corri os olhos até os dedos para começar a contar. – Cinco de janeiro... – Passa rápido, meu amor. – Ok. E o que eu vou fazer durante estes dois meses? Não vou conseguir ficar trancafiada dentro deste apartamento por tanto tempo. – Não pense que você vai poder bater suas perninhas por aí tão cedo. A situação é recente e há foragidos. Não queremos evitar mais problemas? Então. Você vai ficar quietinha estudando aqui em casa, pelo menos nas primeiras semanas. É o tempo do julgamento acabar, só assim ficarei sossegada. – Ela suspirou e eu flexionei os lábios contra os dentes. Tenso. – E não se esqueça do nosso acordo. – Mamãe voltou a dialogar cautelosamente. Eu sabia qual era o nosso acordo. – Nada de internet. – Eu sei, mãe. Não queremos ser rastreadas em hipótese alguma. – Reafirmei suas mesmas palavras usadas em uma discussão passada, só por precaução. Queria que minha mãe acreditasse que eu realmente andaria na linha. – Mas me conte, como será seu novo trabalho? – Ah, filha. É bem sossegado, sabe. Estou vendo que passarei mais tempo na sala de café do que na emergência. 82

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– Que maravilha. E os seus colegas de trabalho? São legais? Têm alguns bonitões? – Ri descontraída e vi sua pele translúcida se ruborizar levemente. Seus lábios se ergueram em um gracejo encantador. – Tem, sim – confessou com humor nos olhos. Minha mãe e seus formidáveis 34 anos de idade. Olhos azuis e uma silhueta perfeita em 1,65 metro de altura. Suspirei mentalmente. Nossos móveis chegaram na quinta-feira. Passei o resto daquela semana brincando de colocar as coisas em seu devido lugar, de um lado para outro, e assim por diante. Abri a última caixa que ainda estava empilhada na sala. Retirei alguns vasos de dentro e outros artigos decorativos. Coloquei-os sobre nosso novo aparador. E, então, um livro peculiar surgiu. Era o último item da caixa. Minha mente me lançou na memória um simples detalhe. Abri-o aleatoriamente e descobri um pedaço de papel guardado. Holly, querida... Era o bilhete, o último bilhete deixado em casa pela minha mãe. Meus lábios se espremeram e meus olhos aqueceram, então, funguei. Uma lágrima caiu discretamente. Ainda doía. Espanei aquela comoção e guardei o bilhete nas minhas coisas. Eu mexeria nele futuramente. Na segunda-feira que minha mãe começou a trabalhar, ela me acordou cedo para se despedir. O dia não estava lá aquelas coisas... Estava meio desanimador. Eu voltei a dormir em seguida. Acordei não muito tempo depois para tomar um ligeiro café da manhã e passar um tempo na varanda da sala observando a cidade. Disso eu não me cansava. Aquele foi meu primeiro primeiro dia. E os que viriam pela frente não seriam muito diferentes.

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CAPÍTULO SEIS

a detentora de perguntas “Se prepare para se acostumar com a palavra diferente, querida. Você irá usá-la como desculpa por uns tempos.” Achei que eu me comportaria diferente. Para mim, eu não me cansaria daquilo tão cedo. Mas as coisas estavam ficando difíceis. Cinco dias. Cinco dias que eu não colocava o pé para fora de casa. Minha mãe havia saído para trabalhar logo cedo, e dessa vez não voltaria lá pelas cinco como de costume. Não eram nem onze horas da manhã e eu já estava entediada, sentada ali no chão do meu quarto. Sabe quando sua mente tem mais pensamentos do que pode suportar? Eu deveria estar ficando louca. As ideias se atrapalhavam dentro da minha cabeça, e estava ficando complicado raciocinar. Mas havia um plano que piscava toda sua luz para a escuridão da dúvida. Levantei e fui olhar a janela. Analisei a cidade, cheia de vida, cheia de independência. Repleta de movimento, de problemas. Chovia só um pouco, mas havia um mormaço instaurado na atmosfera. Corri no meu armário e peguei um casaco de capuz. Troquei o short por uma calça jeans e enfiei os pés em meu par de tênis. Passei o cabelo todo para o lado e o deixei escondido dentro do moletom. Busquei a chave de casa. Não haveria nenhum problema, e eu nem estava querendo imaginar as consequências negativas em que aquilo poderia resultar. Peguei o elevador de serviço e saí pelo portão dos fundos do prédio. O funcionário nem me reconheceu. Ri em pensamento. Coloquei o pé na calçada e juro que não senti nenhuma emoção. Comecei a andar involuntariamente pelas ruas e ninguém me encarou. 84

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Fiquei bem mais tranquila e o medo passou. Talvez todo aquele quadro persecutório fosse apenas neura da minha mãe. Caminhei por uns quarteirões até parar em frente a uma loja de CDs. Retirei o capuz e bati os pés no tapete que antecedia a porta para me secar. Os funcionários que margeavam o balcão arregalaram os olhos para mim indiretamente e logo disfarçaram. Levantei uma sobrancelha e sorri, por mero contentamento. Fiquei um bom tempo permeando minhas mãos entre as prateleiras daquela loja. Eu oscilava minha concentração entre os títulos dos discos e alguns olhares coercitivos que as pessoas ali presentes me lançavam. Fator este que me fez voltar para casa com apenas alguns informativos sobre lançamentos debaixo do braço. Acabei esquecendo e entrei pela portaria convencional do meu edifício. O zelador que já me conhecia ficou extasiado quando me viu. Provavelmente haveria ordens proibindo qualquer saída minha. Ri abertamente para ele, tampando a boca com a mão. Entrei no elevador sem dizer nada. Eu ainda pude escutar sua voz ecoando enquanto o elevador pegava velocidade: “Essa menina vai dar trabalho”. Eu almocei e me joguei no sofá para ler as revistas que eu havia pegado na loja de CDs. Uma sensação de conforto me tranquilizou e eu acabei viajando nos caminhos da mente até pegar no sono. Um estalo de fechadura me despertou. – MÃE? – Aprumei o corpo sobre as almofadas. – Holly, onde você está? – chamou-me preocupada. Movimentei-me rápido, por fim fiquei tonta. Meu coração acelerou. Não deu tempo de pensar, ela se aproximou rapidamente até a sala. Eu ainda estava de tênis. Só consegui me sentar no sofá com prudência. 85

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– Holly. – Analisou-me ali, sendo pega de surpresa. Quase um flagrante. – Boa noite, mãe! – Cocei a cabeça. – Eu espero que você me explique corretamente o que aconteceu. – As palavras foram anunciadas categoricamente. – Mãe... – Tentei lhe objetar. – Holly! Você saiu de casa! Por quê? O senhor Willard bem que havia falado, mas eu não acreditei! Sobre o que conversamos? – Ele contou? Que fofoqueiro, filho da puta! – Tampei o rosto com as mãos, decepcionada. Pronto. Quer ver minha mãe enfurecida? Palavrão. – Quer dizer que se ele não me contasse você não me diria a verdade? Acabei por não responder. – Eu estou falando com quem? – Mamãe aumentou a voz diante do meu silêncio e eu fiquei trêmula. – Mãe, não aconteceu nada lá fora, as pessoas mal me olharam. E você também nem se importou em saber como eu estava me sentindo essa manhã. Claro que não. Você tem seu trabalho, sua vida. Já montou uma rotina. E quanto a mim? Estou trancafiada nesse apartamento. – E se tivesse acontecido alguma coisa? – Ela cruzou os braços, incrédula. – Como o quê? As pessoas me pararem para tirar fotos e pedir autógrafos? – Ri com ironia. – Convenhamos, seria a única coisa que poderia acontecer. – Não seja inocente, Holly. – Levantou mais um tom da voz. – Você acha que já não sabem onde estamos? E você não acha que o sujeito foragido não está morrendo de raiva? Além do mais, esse tipo de gente tem centenas de contatos espalhados por aí prontos para fazer qualquer besteira! Sabe o que aconteceria se algo desse errado com você? Culpariam a mim! 86

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– Então é com isso que se preocupa? No que os outros vão pensar? Na imagem de boa mãe que você tenta passar? – Fui sarcástica. – Por que está falando isso? Você não entende que como mãe nós assumimos uma responsabilidade? E, quando não conseguimos assumi-la, isso faz com que um enorme fracasso seja jogado sobre nossas costas? Ela me olhou fixamente, tentando não piscar. Algumas lágrimas se alojaram discretamente em suas pálpebras. Abaixei a cabeça. Aquilo foi muito desnecessário, tanto da minha parte quanto da dela. Ela inclinou a cabeça para o lado e posicionou as mãos na cintura. Eu me levantei e segui em sua direção para abraçá-la. – Desculpe, mãe. Por favor. Ela me fechou em um abraço apertado. Ouvi um soluço camuflado reverberar de seu peito contra o meu corpo e me senti péssima. – Você é tudo para mim, filha. Não posso permitir que outra oportunidade de perdê-la aconteça. – Fique tranquila, mãe. A senhora sabe que é tudo muito diferente para mim. – Segurei seu rosto nas mãos e a olhei. Selei sua face com um beijo. – Só quero o seu bem, meu amor. – Voltou à sensatez. – Vamos superar tudo isso, está bem? – Seus olhos me analisaram com ternura. – Claro que vamos. – Tentei sorrir. Tentei acreditar. Ela respirou fundo, tentando esconder um riso. – E não fale mais palavrão! – Completou com um projeto de austeridade, sem tirar aquele humor da expressão. Acabei por rir e não tocamos mais no assunto. Naquela mesma noite, eu encarei o calendário da cozinha com certo medo. Dia dezessete de novembro. Um mês havia passado, e 87

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eu poderia muito bem dizer que não caberiam tantos acontecimentos dentro de um mísero mês somente. Acho que minha mãe levou a sério a história de que eu não estava suportando mais ficar trancafiada em casa. Ela propôs que saíssemos no dia de Ação de Graças. Fiquei contente, já seria no fim da próxima semana. Aguardei ansiosa. Enquanto isso, recebi uma nova distração. Agora minha mãe trazia uma relação das matérias que eu deveria estudar e os exercícios propostos pela minha futura escola dentro de uma pasta roxa etiquetada com o meu nome. Fiquei bem ocupada por alguns dias. Na quarta quinta-feira de novembro, dia de Ação de Graças, minha mãe saiu cedo e disse que voltaria antes da meia-noite para me buscar. Era perto das onze e nem sinal dela. Ótimo, isso já era previsível. Andei pela casa buscando alguma coisa para concentrar qualquer tipo de atenção. Achei um par de revistas ainda embaladas. Era algum magazine da cidade. Arrebentei o plástico com as unhas e joguei o resíduo em algum lugar do chão. A capa da primeira revista elencava uma lista dos dez shoppings mais badalados para se fazer as compras de Natal. E a outra – que não era nenhum tipo de magazine da cidade, e sim um folhetim de caráter crítico – mostrava as notícias da última semana. A capa possuía um desenho antigo, pois já havia visto aquela imagem em algum livro de História. Estava mostrando o fantasma da crise que assolava o ano de 2008. Olhei o cabeçalho e notei que a revista era da primeira quinzena de novembro. Abri com curiosidade. Estávamos passando por uma crise, oh, sim. Mas isso não era de muita importância. Minha mãe e eu não éramos vítimas daquele rombo econômico proveniente da globalização. Folheei rapidamente aquele assunto que me passava batido. Também havia outros assuntos corriqueiros demais. A matéria maior era sobre nosso então candidato à presidência, e agora 88

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presidente efetivo no fim das contas. Passei por ela rapidamente. Prendi-me às últimas páginas, que mostravam conteúdo de entretenimento, como lançamentos de livros, diversos filmes em cartaz, centenas em DVD etc. Voltei a folhear a revista com mais rapidez. A última página era uma coluna policial com o caso mais comentado da semana. UM MÊS SEM RESPOSTAS. Aquilo me desnorteou como um grande balde de água gelada. A matéria era sobre mim. Li, reli e algumas afirmações me assustaram. Há boatos de envolvimento com o diretor do mais renomado hospital de São Francisco. Um crime muito bem planejado e inteligente, reflexo da sistemática meliante que trabalha camuflada sob nossos narizes. Fechei a revista e parei por três ou quatro segundos. Parecia que a ficha caía e não caía ao mesmo tempo. Era minha vida que estava envolvida. Minha pele. E, por metade desses segundos, perguntei-me o que deveria fazer. A realidade em questão era minha, eu não poderia simplesmente aceitar meu silêncio diante daqueles fatos. Não conseguiria dormir enquanto toda aquela história não fizesse sentido. Talvez fosse isto que estava faltando dentro de mim: explicações. Ou talvez a busca por elas. Eu havia me submetido a postergar qualquer tipo de esclarecimento, querendo evitar o sofrimento. Preferi ficar alheia a todos aqueles conflitos. Eu deveria abrir os olhos para a realidade e, principalmente... Aceitá-la. Porque é assim, quando você possui algo que é maior e mais forte do que você, é hora de aprender a seguir com isso. E, para ser 89

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bem sincera, minha vida parecia estar dependendo daquele enigma, estagnada pela falta do meu interesse. Era hora de mudar o rumo das coisas, novamente. Levantei-me do sofá e escondi a revista entre meus livros didáticos. Aquele seria o meu segredinho, por enquanto. Mamãe chegou perto da uma hora da manhã pedindo mil desculpas e imaginando que eu estivesse furiosa. Balancei a cabeça e discordei para que ela ficasse sossegada. Solidariamente, ela comprou um peru assado e uma garrafa de vinho no supermercado. Sentamos em nossa varanda e tivemos uma boa Ação de Graças naquela noite amena.

* Primeiro dia de dezembro. O Sol ressurgiu claro na segunda-feira, cobrindo toda a cidade. Como um auspicioso presságio. Mamãe havia saído para trabalhar, como de costume. Levantei-me logo depois que bateu a porta de casa. Tomei um banho, escolhi uma roupa confortável e tomei um café reforçado. Eu estava decidida. Saí tranquila pela porta dos fundos do prédio. Caminhei até uma loja de miudezas que ficava a uns metros dali e entrei para perguntar onde haveria uma banca de jornal por perto. A velha senhora, muito simpática, informou-me. Não era nem um pouco longe. Ela não havia citado como a banca era grande. Na verdade, era mais um magazine do que uma simples banca. Vendiam livros, acessórios de informática, entre outras coisas muito úteis. Fui para a seção de jornais. Todos eram recentes, e não me chamaram a atenção. Um homem, que provavelmente deveria ser o dono, se aproximou. Tinha lá seus quarenta e muitos anos, cabelos grisalhos e feições mediterrâneas. 90

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– Procura por algo específico? – Sua voz era condensada por um sotaque forte e arrastado. Eu me assustei de início e congelei sem dizer uma única palavra. – Desculpe incomodá-la. – Ele se recompôs de modo simpático. Acho que a minha rejeição lhe pareceu óbvia. – Ah... Na verdade não, mas pode ser. – Fiquei um pouco aturdida. Ele sorriu. – Pode dizer, nós temos tudo aqui. – Ele quis bancar o prestativo. – Ah, então... Vocês costumam guardar revistas e jornais mais antigos? – Claro, temos uma seção de ponta de estoque no final da loja. Caminhamos por mais uma gôndola e ele apontou o lugar. – Precisa de mais alguma ajuda? – Não! Não se preocupe. Caso eu precise, eu volto a lhe chamar. Ele sorriu e se retirou de forma cavalheira. Comecei a folhear alguns exemplares. Cheguei às edições de outubro. Abri muitos índices atrás de tópicos relacionados, mas diversas magazines fizeram questão de colocar a notícia em algum lugar da capa. Ao fim, acabei apenas levando quatro. Segui até o guichê para pagar e o mesmo homem estava lá. O valor foi irrisório, afinal, não passavam de revistas velhas. Dei meu cartão e ele voltou a puxar assunto. – Está fazendo algum trabalho, pesquisa? – Pareceu indiferente. Balancei a cabeça, confusa. – Estou procurando algumas matérias específicas. – Tentei despistá-lo. – Como quais? – Demonstrou interesse. Fiquei sem jeito. – Ah, investigativas. – Sorri. O homem passou o cartão na máquina e aproveitou para espiar as capas das revistas enquanto a transação era autorizada. 91

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– Sequestro? – Seus olhos se elevaram com uma essência de surpresa. Eu suspirei pesado e tentei disfarçar. – É. Sacanagem aquele sujeito. Para que tantas perguntas? Coloquei as quatro revistas debaixo do braço e voltei para casa. Joguei-me na cama e as espalhei sobre o edredom. A primeira que eu abri possuía uma matéria de sete páginas. Folheei-a rapidamente me apegando às imagens. Voltei ao início e respirei fundo. Holly Armstrong – apenas 16 anos – Sequestrada ... filha de uma médica – São Francisco – manhã de sexta-feira sem respostas

O que poderia ter acabado em um crime trágico se finalizou por um ato audacioso e heroico, planejado por uma garota de dezesseis anos Sequestradores Alexsandro Suarez, Enrique Garcia, John Spinnet, Theo Schmidt E o Foragido Forest Dempsay As fotos me assustaram. Era como se eu me visse refletida no olhar daqueles homens. Eu era a razão do transtorno, do grande erro. Eu precisava de novas informações. Descartei a revista e escolhi outra. O caso estava estampado na capa. Uma vida em seis horas A foto da capa mostrava minha mãe tentando esconder o rosto ao redor de muitas pessoas. O flash foi acionado em meio a uma 92

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correria e aglomeração pública na frente do hospital em que eu me recuperava. O conteúdo da matéria não era grande, e os editores trataram de copiar os fatos e posicionamentos da revista anterior. Não tive o trabalho de reler e logo peguei outra. De caráter crítico, a revista apontou assombrosamente certos fatos. E se posicionou por outros aspectos, que me deixaram surpresa. Em que porta baterá a culpa? Até agora não se sabe os reais motivos do monstruoso sequestro ocorrido na última semana. Assegurados pelo segredo de justiça, os réus não admitem, e muito menos fundamentam, o ilícito cometido. Mesmo após a reconstituição, o caso continua sem as devidas explicações. Catherine Armstrong recusou qualquer tipo de pronunciamento e, até o fechamento desta edição, ela não nos retornou para qualquer esclarecimento. Segundo especialistas, este é o tipo de evento misterioso que mostra um quadro de resolução fragmentada. Até onde vai a ganância e o comprometimento disfarçado entre falsos cidadãos de bem com as facções responsáveis pelas maiores barbaridades cometidas nos últimos anos? Até onde acaba o limite entre a proteção e a negligência? Qual o limite entre a culpa e a fatalidade? Respostas que a polícia tenta preencher e que a sociedade anseia em desvendar. Fechei levemente a revista com um pensamento em mente. De fato, o que realmente havia acontecido? Eu nunca parei para pensar a respeito daquela questão tão diretamente. Abri a quarta revista em busca de saciar minhas ignorâncias. ... Só peço que nos deixem em paz... Era uma frase da minha mãe estampada no rodapé da capa. Abri na página indicada e comecei a ler. 93

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Dia 23/10/2008 – R e c o n s t i t u i ç ã o Às 10h da manhã de quinta-feira, Catherine Armstrong se dirigiu SOZINHA até a San Toro High School, escola de sua filha. Muito emocionada, a mãe pediu paz aos jornalistas. Ela permaneceu por uma hora na secretaria da escola. Com o tumulto, os alunos perceberam a causa da situação e começaram a gritar pelo nome de Holly. Alguns colegas da jovem procuraram nossa equipe para apresentar opiniões, porém a diretoria do colégio proibiu qualquer tipo de veiculação ou pronunciamento, como também se recusou a informar os motivos que levaram a mãe da vítima até a instituição de ensino. Catherine saiu sem muita cerimônia logo em seguida. A situação permanece desconhecida e mascarada, todos buscam respostas e a maioria aguarda o laudo da perícia para obter conclusões específicas. O telefone de casa tocou, e eu tive uma síncope ligeira, dando um pulo assustada. Era minha mãe pedindo para que eu descesse e a ajudasse com algumas compras. Desliguei o telefone e corri até meu quarto. Recolhi as revistas e as guardei dentro de uma caixa embaixo da minha cama. Passei o resto daquele dia pensativa, mas tentei não demonstrar. Aguardei ansiosa a hora de dormir para que eu pudesse terminar com minhas investigações. Acordei no dia seguinte pensando no homem da banca de jornais e em como ele poderia me ajudar. Saí depois do meu lanche e parti em busca de cumprir meus planos. Quando cheguei à loja, o simpático senhor logo me deu um audível boa tarde, como se fossemos conhecidos de longa data. – Veio procurar mais artigos? 94

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– Sim. Posso pedir sua ajuda hoje? Arrastei-o para a gôndola de jornais. Olhei em volta, certificando-me de que não haveria clientes que pudessem nos escutar. Ele logo percebeu a seriedade e pulou na frente. – O que você procura exatamente? – questionou em baixo tom. Eu pensei para responder. Eu deveria abrir o jogo se eu realmente quisesse saber a verdade, mas fiquei no meio-termo. – Ah. – Hesitei para formular uma explicação bem-feita e que não o assustasse logo de cara. – Então, não faz muito tempo, não sei se o senhor se lembra, mas houve um caso que despertou minha atenção. Ele me olhava firme, mostrando interesse. Falei baixo. – O caso de uma menina que foi sequestrada e... – Ah, a garota de dezesseis anos que escapou? – Interrompeu-me. Arregalei os olhos, realizada. – Mas é claro que lembro! – Ele abriu um sorriso, como se estivesse satisfeito por estar ajudando. Parou por um segundo, pensando. – Acho que não irá encontrar muito material sobre ela nesta loja e dificilmente em outras bancas por aí. Aqueles exemplares venderam como água! Uma frustração se contorceu dentro da minha mente. Holly Armstrong, você vendeu como água! Realmente, ótimo. Realmente, deplorável. – Nossa! Então esse caso fez sucesso... – Liberei um sorriso amarelo. – E como, viu?! É que já passou algum tempo, mas você devia ter visto! Na semana em que a notícia estourou, todo mundo comentava. Eu deixei a TV da lanchonete ligada direto na CNN, a vizinhança do comércio passava aqui para saber os últimos acontecimentos. Eu tentei esconder qualquer expressão de choque, e não sei se consegui. 95

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– Onde você estava? – Ele riu deliciosamente e tratei de disfarçar. – Não dei muita atenção na hora, mas quando me contaram depois de uns dias eu me interessei. Ele parou por um tempo e finalizou. – Eu já sei como posso ajudá-la. Levantei uma sobrancelha e deixei-o prosseguir. – Eu fiquei bem chocado com essa situação, sabe?! Mas meu filho acompanhou tudo! Ele guardou todos os exemplares que saíram sobre o caso Armstrong. Não moro muito longe daqui. Se quiser, passe aqui na loja antes de eu fechá-la. A gente dá um pulo em casa para você dar uma olhada no material. – Que horas o senhor fecha? – Lá pelas sete horas. O horário seria impossível para mim. Fiz uma careta. – Bom, pelo jeito deve ser tarde para você, não é?! Pode ser no horário de almoço, assim você aproveita e conhece meu filho, Leonardo. – Como é o nome do senhor? – Feldmann, Antonio Feldmann, todos aqui só me chamam... – Senhor Feldmann! – Estendi-lhe a mão antes de finalizar. – Isso mesmo! – Correspondeu o cumprimento. – E o seu? – O quê? – Seu nome? Ocorreu-me um erro interno. Como um 404 em uma página da internet não encontrada. Inventei qualquer nome. – É Brenda... – murmurei. – Brenda de quê? – Willians, Brenda Willians. – Sorri desajeitada. – Ah, prazer, Brenda. E então? Espero você ao meio-dia? – Negócio fechado, senhor Feldmann! – Terminei de chacoalhar sua mão com entusiasmo. – Estarei aqui sem falta. Muito obrigada! – Que isso, Brenda?! É sempre bom poder ajudar. 96

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Distanciei-me e acenei. Ao me virar completamente e passar pelas grandiosas portas de vidro da loja, uma confusão invadiu minha cabeça, um tom de humor se espalhou por mim e ri internamente. Agora eu tinha uma personagem, uma vida clandestina. Brenda Willians. Gostei. Naquela noite eu tentei dormir, mas alguns pensamentos pairaram sobre minha mente e não me deixaram relaxar. Um medo começou a brotar levemente. Eu estava sendo muito atrevida, e por várias razões. Primeiro, por confiar naquele cara que eu mal conhecia. E segundo por estar correndo o risco de ser desmascarada. Eu iria até sua casa e poderia colocar tudo a perder se o filho fanático dele me reconhecesse. Quanta estupidez! Quanta estupidez, desnecessária. Esse era o pior detalhe. A necessidade. A minha necessidade exigia quebrar regras e superar desafios. “Assim como o medo pode nos despertar a vergonha e a covardia, ele também nos reserva a coragem e a ousadia.” Cinco para o meio-dia e eu já estava em frente do bazar de revistas. Empurrei a porta de vidro e chamei pelo senhor Feldmann. A loja estava vazia, adentrei com mais alguns passos e aumentei a voz. – Senhor Feldmann! O senhor está aí? – Oh, Brenda! Estou aqui, espere só eu pegar minhas chaves. Aguardei sua presença ali já próxima à porta, aproveitando para analisar o céu daquele início de tarde. Nuvens carregadas se arrastavam lentamente, cobrindo o sol coadjuvante de inverno. Talvez fosse chover. Senhor Feldmann finalmente trancou a loja. Nós descemos toda a West Ash e viramos à esquerda. Ele morava atrás de um parque em uma rua bem arborizada, sem aquelas grandes edificações e todo aquele movimento. Um sobrado azul simples com cerquinha branca. 97

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Entrei atenta em sua casa e não percebi nada demais – inclui-se algum tipo de ameaça criminosa ou homicida presente –, apenas um cheiro de frango pairava sobre a atmosfera doméstica. Havia uma mãe ali, isso era fato. Os livros na estante da sala maravilhosamente alinhados e a toalha de mesa impecavelmente branca me trazia uma aura pacífica. Fiquei mais tranquila e desativei meu instinto de CSI. – Querido? Já chegou? – Uma voz feminina emergiu pelo ambiente. – Sim, meu bem. E ainda trouxe uma convidada para o almoço. – Senhor Feldmann sorriu para mim. – Não, senhor Feldmann, não quero atrapalhar. – Prontifiquei-me rapidamente. A senhora Feldmann surgiu de avental florido pela porta da cozinha. Possuía os cabelos levemente acobreados e crespos, a pele cansada acompanhada de um sorriso brejeiro. Ela me olhou lisonjeada, eu sorri sem graça e não consegui formular uma frase muito eficiente. – Você que é a Brenda? – Ela se aproximou, beijou meu rosto e sorriu largamente. – Você é tão bonita! Não quero que vá embora antes de conhecer meu tesouro. – Eu ri encabulada, e o senhor Feldmann piscou para mim, tentando me deixar à vontade. – Bom, sei que você veio buscar algumas coisas, não é? Vou terminar minha salada de batatas enquanto vocês sobem até o quarto do Leo. – A dona de casa simpática secou suas mãos com um pano de prato. Eu e o senhor Feldmann subimos até o pavimento superior. Ele se aproximou de um dos cômodos e abriu a porta. Pela decoração logo deduzi que era o quarto do menino. Havia um pôster do Ramones na parede ao lado da janela, e me senti corrompida por uma hesitação. – O senhor não acha melhor esperar seu filho chegar? Ele não ficará bravo se souber que estamos mexendo em suas coisas? 98

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– Fique tranquila! Entre aí! Você que é jovem deve imaginar onde se guarda revistas, não é?! – Depende do tipo de revista. – Ri com um pouco de malícia. – Então é bom não olharmos debaixo da cama. – Estagnou seus olhos por detrás dos óculos de grau e sorriu de forma afável. Ri mais alto e apontei o armário. Fiquei escorada no batente da porta observando o pai revirar algumas gavetas. Ouvi passos se atenuarem pelos degraus da escada, até que alguém em particular se aproximou. – O que você está fazendo, pai? – O moleque nem notou minha presença e entrou irritado no dormitório. Andei dois passos para trás e permaneci calada. Eu bem que adverti. – Leo, não avisei que viria buscar as revistas? Você não deixou separado, meu filho? – Senhor Feldmann parou de cutucar as prateleiras. – Não tive tempo, pai. Mas podia me esperar só um pouco, não é? – O menino saiu recolhendo as coisas que o pai havia tirado do lugar. – Comporte-se, garotão. Não notou que temos uma visita hoje? Ele rapidamente estancou em sua posição e virou o rosto, percorrendo seus olhos até a minha presença. Os mesmos olhos, tenebrosamente azuis, paralisaram-se à minha frente. Um gelo tomou conta do meu coração. Sorri, e não sorri. Não sabia o que fazer. Ele deveria ter minha idade. Sua pele era tenra, com algumas sardas que caracterizavam sua feição juvenil. O corpo era insignificante, alto e magricelo de um garoto de dezesseis anos. Um cabelo louro acinzentado se dispersava de modo desorganizado e moldurava uma expressão angelical. – Esta é a Brenda, Leo – o pai recitou as palavras diante daquele silêncio mórbido. Estendi a mão e ele continuava a me olhar incrédulo. 99

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– O seu pai fala muito de você, viu – tentei dispersá-lo. Ele pegou em minha mão enquanto me secou descaradamente. – E você, parece que lhe conheço de algum lugar – disse, apertando um dos olhos. Eu respirei fundo disfarçadamente, tentando estabilizar os nervos. – Da onde, filho? – O pai pulou na frente. Ele sorriu abertamente com ar de bobo. – Acho que de algum sonho. Eu ri encabulada, retomando certo ar nos pulmões. Era alívio. Puxei assunto. – Então você ficou fascinado pelo caso Armstrong? – Ah, sim. – Desviou sua cabeça, tentando organizar os pensamentos. – Mostre para ela, Leo. Vocês podem ficar à vontade aqui em cima. Vou ajudar sua mãe no almoço. – Senhor Feldmann se retirou e sorriu confiante para nós. NÃO! Senhor Feldmann, não! Ah! Mas que droga! O garoto se mostrava um pouco tenso do meu lado e, paradoxalmente, falava de maneira clara sobre o assunto em questão. Como se fosse algo de muita sabedoria adquirida. Ele me fez sentar em sua cama e pediu para que eu esperasse alguns instantes. Apareceu com uma caixa grande e colocou-a do meu lado. Puxou a cadeira giratória de seu computador e sentou-se à minha frente. – Tudo isso aqui. – Abriu a tampa. Eram muitos exemplares. Peguei o primeiro e folheei. Mas comecei a ficar aflita. – O que você sabe sobre tudo isso? Depois de tudo que leu... O que você acha que realmente aconteceu? – Não foi pelo dinheiro. Disso tenho certeza. – Leo estava convicto. 100

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Ele puxou uma revista aleatória para fundamentar suas teses. – A mãe da Holly jamais teria esse dinheiro, ela não era o alvo. – E seria o quê? – lancei. – Esses bandidos tinham a intenção de assustar alguém, por isso o dinheiro não era o objetivo. Apenas um detalhe que fazia parte do plano. Eu não consigo inovar hipóteses. Está tudo tão obscuro, e as revistas só mostram redundância e redundância. Se ao menos a polícia tivesse liberado o laudo da reconstituição ou um relatório. Não é possível que não tenha descoberto nada. Apostei alto e lancei. – Uma vez, acho que foi na internet, li um resumo sobre a reconstituição. – Como? Você se lembra do site? Eu sempre procurei. – Bom, não vou lembrar, mas me recordo de alguns detalhes. Leonardo me olhou firme. – Parece que – hesitei. A linha de raciocínio estava se formando cautelosamente em minha mente – eles planejaram tudo ao menos três meses antes. E entre alguns documentos, encontraram o nome do diretor de um dos maiores hospitais de São Francisco. – A mãe da Holly é médica, por acaso você sabe o nome desse hospital? Ou se a própria Catherine trabalhava lá? Poderia ser um desafeto entre profissionais. Ou até mesmo um caso de amor mal resolvido. – Não! – objetei sem pensar. Um impulso involuntário me fez calar a boca e abaixei o tom de voz quando tentei consertar meu exulto. – Não, acho que não. – Eu não duvido de nada. Geralmente as mães são as primeiras a estender o caso no peito e correr mundos para tentar desvendar os culpados. Veiculam na TV e fazem aquele alarde. Ela não. E não tem nada a ver com aquele papo de querer buscar sossego. A falta de interesse dela soa como um comprometimento oculto com o evento. Nunca percebeu? 101

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Fiquei completamente aérea e uma arritmia desconcertou meu coração. – Sei que parece bárbaro. Mas não deixa de ser uma hipótese. Você vai querer levar alguma revista? – Leo perguntou enquanto folheava algumas para guardá-las de volta na caixa. Eu paralisei ali, sentada na cama. Que hipóteses seriam aquelas? Eu não estava gostando. Leo não parou. – E eu nunca consegui ver uma foto sequer da Holly, parece que os advogados pediram preservação de imagem e coisa e tal. Recusei-me a ouvir aquilo tudo. Sorri largamente para ele. O que foi muito bom. Consegui fazê-lo parar de falar. Olhou-me realizado. – Muito obrigada pela sua atenção. – Olhei no relógio do meu pulso. – Pelo jeito você precisa ir embora, não é? – afirmou desapontado. Aproveitei a deixa. – É, minha mãe deve estar preocupada. Preciso voltar para casa. – Não vai ficar para o almoço? Peguei em suas mãos. – Pode deixar que virei outro dia. – Soltei um sorriso encantador e vi um ar de alegria brotar no fundo de seus olhos azuis. Despedi-me do casal Feldmann com certa pressa, a surpresa e algum tipo de decepção os invadiram quando perceberam minha ansiedade em ir embora. Eu não estava bem. Meus pés tocavam o chão por mero reflexo. Meu corpo se movia involuntariamente pelas ruas, sabe lá Deus em qual direção. Eu mal sentia as rajadas de vento que anunciavam uma tempestade iminente transpassar por meu rosto cálido. Não! Não! Não! Eu só conseguia me concentrar em negativas para despistar todas aquelas hipóteses tenebrosas, improváveis e impossíveis. 102

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“Eu preciso mencionar a palavra a-man-te para a senhora?” Mamãe jamais faria isso, ela nunca seria capaz de me expor desse jeito. Não. Estava completamente fora de cogitação. “... Saiba que há pessoas que se preocupam conosco.” Livres lembranças menearam em minha mente e eu me desesperei tentando bloqueá-las. “Jura que espera mais um tempo para me perguntar quem são essas pessoas?” Mas era inevitável. “Sei que errei e sou um pouco culpada por isso ter lhe acontecido.” Linhas de raciocínio se formavam deliberadamente. Um pingo de chuva pesou-se no ar até ser lançado contra meu rosto. Apertei o passo e cruzei os braços contra meu corpo. “Há boatos de envolvimento com o diretor de um dos maiores hospitais de São Francisco.” Minha consciência começou a clarear. E se? E se de fato fosse verdade? E se de fato minha mãe tivesse sua porcentagem de culpa, mesmo que indiretamente? O que teria provocado a vingança ou o desafeto de um ser humano a submeter duas pessoas em tamanha atrocidade? O que minha mãe teria feito de tão cruel para sofrer essas consequências? Questões que não cabiam a mim responder. Com a chuva ganhando força, eu seguia com meus passos acelerados pelo caminho de volta para casa. Por alguma razão maior, eu não estava perdida, assim como minha mente já tinha me advertido diante da minha desatenção repentina anterior. Eu cheguei em casa tão aturdida que mal consegui posicionar a chave na fechadura, e tão encharcada pelo temporal que meus sapatos deixaram rastros de água sobre o chão de madeira do apartamento. Retirei minha roupa rapidamente e joguei-a na máquina de lavar. Sentia que meu corpo estava mais quente do que o normal. Sentia a circulação do meu sangue impulsionada pela exaltação recente. 103

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Eu toquei meu rosto, cobri minhas bochechas com as mãos e percebi que havia mais resquícios de água do que eu imaginava. Eram lágrimas. Apoiei as mãos na bancada da pia da lavanderia e solucei alto, uma dor lancinante golpeou meu peito profundamente. Solucei de novo, desejando aliviar a angústia. Mais lágrimas vieram em seguida. Imagens se lançaram por detrás das minhas pálpebras. Eu tinha a expressão amável de minha mãe me sorrindo, seus olhos me transmitindo uma confiança incontestável. Seus braços me guardando com afeto. Suas mãos agarradas firmes às minhas, as palavras que ela nunca se furtava de dizer. Eu amo você, querida. Eu amo você. Eu sabia que não tinha respostas. Mas eu tinha perguntas. Muitas perguntas. As respostas poderiam me matar. E as dúvidas me consumiriam até alcançarem o mesmo objetivo. Era hora de decidir.

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CAPÍTULO SETE

a caçadora de respostas e definições De volta à esquina. Na manhã de sexta-feira, o Sol lampejou seus raios em meus olhos desacordados. O primeiro foco de minha visão era o muro onde eu me apoiava. Cocei os olhos lentamente e revisei o ambiente com atenção. Amplamente familiar. A brisa leve da alvorada balançou minha camisola branca. Avistei com certa dificuldade um emaranhado escuro a alguns metros de distância. Agitei o passo e me aproximei até o objeto desconhecido. Era uma mochila. Minha mochila, para ser exata. Abri o zíper e retirei alguns cadernos e livros de dentro dela. Deparei-me com minha carteira de estudante. O nome HOLLY ARMSTRONG se evidenciou diante dos meus olhos. Levei as mãos à boca, contendo um grito de horror. Uma lágrima rolou pelo meu rosto. Eu enxergava ali o princípio do caos, a teoria do medo. Juntei todos os meus pertences trazendo-os para bem perto de mim, posicionando-os sobre meu colo. Não contive o sentimento de perda. Por mais simples que aqueles itens materiais significassem, aquilo tinha um valor sentimetal, a referência que eu havia perdido. E em breve pertenceria a um passado destruído, roubado. Sequestrado e nunca mais devolvido. Algumas viaturas de polícia cortaram a avenida principal furiosamente, descendo a rua da minha casa. Seguindo um ímpeto insólito, desvencilhei-me da mochila e acompanhei a movimentação de carros e pessoas que começou a surgir diante dos meus olhos, ali, circulando pela área. 105

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O engraçado era que ninguém me notava. Eu achei que as pessoas teriam uma reação inusitada ao verem uma garota completamente pálida com roupa de hospital vagando descalça pelas ruas de Potrero Hill. Eu estava me sentindo a loira do banheiro. Eu cruzava alguns corpos e andava mais rápido para me aproximar do ponto de atenção daquela celeuma instaurada. E eu me aproximei demais, rápido demais. Eu sabia para onde estava indo, o que iria ver, mas nem estava planejando uma reação. Do outro lado da rua, desmanchei meu corpo sobre as pernas e abalei aquele silêncio celestial com um grito desesperador. As lágrimas que escorriam furiosamente não eram suficientes para expressar a minha dor nem o buraco que aumentava dentro do meu peito, que avassalava minha mente, que marcava minhas lembranças. Era impossível descrever a situação. Eu relutei contra meus próprios olhos e, mais do que isso, contra a própria realidade. Minha casa estava sendo alvo de uma consternação completa. Diversas viaturas contornavam a área frontal com suas perturbadoras luzes vermelhas e aquela sirene ensurdecedora. Alguns policiais isolavam meu quintal com faixas de segurança, outros saíam pelos carros com pranchetas. Os vizinhos indignados contestavam a desorganização, outros lamentavam o fato. Curiosos preenchiam os espaços que sobravam. Havia um entra e sai pela porta da rua, as janelas tinham sido estilhaçadas e, para piorar, havia dois homens altos segurando microfones, rodeados por cinegrafistas e auxiliares de reportagem. Todos queriam aparecer, verificar, especular uma vida que eles nem imaginavam de quem era. Meu instinto não conseguiu permanecer calado. Eu soluçava a angústia pelos pulmões. Libertava todas as minhas emoções por lágrimas. O nervosismo me fez tropeçar várias vezes enquanto eu tentava atravessar a rua cheia de obstáculos. Ninguém chegava perto de mim, e, conforme eu me aproximava das pessoas, elas se afastavam sutilmente, como se desaparecessem, deixando assim o caminho 106

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livre. Levantei a faixa amarela de proteção e passei pelo portão. Eu via de longe a escuridão do interior da casa. O ar sombrio de um grave acidente estava instaurado. A porta estava escancarada. Havia tantas pessoas lá dentro. Senti um gelo subir pelos meus pés, pois havia água acumulada no chão. Quando olhei ao redor, vi tudo fora do lugar. Minha sala não existia mais. Havia sobrado a mesa e a estante onde se apoiava a TV, virados de ponta cabeça. Muitos estilhaços de vidro espalhados pelo chão. A louça fina que minha mãe guardava no aparador com tanto cuidado havia se resumido a lixo partido em milhões de pedaços. De longe, vi pelo passa-pratos nossa cozinha desmontada, o banheiro completamente detonado, inclusive a encanação, motivo de tanta água vazada pela casa. O marfim cor de mel do chão inchava diante da umidade. Andei um, dois, três passos. Eu teria de pedir durante todos os dias da minha vida, a partir daquele instante, para apagar aquela cena. Ao abrir a porta do meu quarto lentamente, ouvi o triturar de pequenos vidros. Os retratos de fotografias que ficavam sobre minha cômoda haviam sido destruídos, as fotos despedaçadas nadavam sobre a água empoçada. Agachei sobre o chão molhado e nem me importei se me cortaria com os resíduos. Recolhi a única foto que estava menos picotada. Ali, congeladas pela imagem, estavam eu e minha mãe. Borradas, manchadas, corroídas. Meu coração inflava de uma forma viciosa, em uma dor excruciante. Não havia mais nada no meu quarto além de buracos na parede, roupas espalhadas pelo chão e um pedaço de cortina rasgada, apenas sustentada por um único fio de seda no varão. Engatinhei até a janela e me recostei à parede enregelada. Repuxei o voil branco e o flexionei contra os olhos. A luz do sol entrou por completo pela janela e gritei, colocando para fora todos os monstros que eu havia absorvido. Chacoalhei as pernas e gritei novamente. 107

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Gritei tanto, até fazer minha voz sumir. Tossi e tossi. Recuperei o ar levemente pelas narinas. Deitei no chão úmido. Encolhi as pernas e alisei o chão poroso. Era como se tivessem... tirado meu chão, minha base, meu alicerce. Desmontaram uma vida, violentaram minha mente, minhas lembranças; e para sempre. Eu estava presa à escuridão. Sem saber se eu ainda me encontrava desacordada ou apenas movida pela inconsciência do sono, eu sentia meus olhos arderem levemente com uma sensação de inchaço. Um medo transgressor chacoalhou meu corpo, e eu acordei. O desespero recente me lançou imagens que eu não queria relembrar. As visões em dimensões perfeitas, como se eu ainda permanecesse naquela realidade paralela. Endireitei-me na cama e tentei respirar fundo. Minhas mãos tremiam ligeiramente, o coração pulsava alto, e eu ainda estava presa à escuridão do meu quarto. Pontadas de aflição me atingiram, e chorei em silêncio. Eu havia caído no sono no final daquela tarde, em meio a um turbilhão de pensamentos, consequentes das minhas descobertas. Mamãe ainda não estava em casa, e já eram quase oito horas da noite. Eu me encolhi junto aos cobertores e cantarolei baixinho uma música para atrapalhar as linhas de raciocínio da minha mente, que ainda estava abalada pelo sonho. Tudo se tornou confuso quando ouvi a fechadura da porta da rua se destrancar lentamente, atravessando o silêncio mórbido de minha casa. Era minha mãe. A sequência familiar dos toques dos seus saltos altos pelo carpete de madeira me trouxe uma sensação confortadora, involuntariamente. Os mesmos sons ecoaram até meu quarto, como sempre faziam todas as noites. Mamãe acendeu a luz do corredor, que adentrou e iluminou o ambiente sutilmente. Eu vi sua silhueta se aproximar da cama até sentar-se ao lado vazio do colchão. 108

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– Está acordada, querida? – Sua voz estava aquecida por uma preocupação materna. – Mãe... – respondi quase que inaudível e funguei discretamente. Ergui-me rapidamente e, por um ato involuntário, a abracei. Ela suspirou vagarosamente, envolvendo seus braços mais confortavelmente à minha volta, tentando confortar minha dor: – Eu sei que está sendo difícil. Eu sei. – Mãe... – De repente eu não consegui controlar as palavras. – Você jamais concordaria que alguém me fizesse mal de alguma forma, não é? E você nunca me esconderia nada, além das coisas que poderiam acontecer, não é? – Na disparada, até meu ar chegou a faltar. Mamãe ainda estava em transe. Os olhos apertados em uma expressão desnorteada, incrédula. – Do que você está falando, minha filha? Por que está dizendo isso? – Suas mãos seguraram meu rosto desesperado. – Porque eu não vou conseguir viver com essa dúvida. Eu não quero perder tempo com hipóteses. Você sempre afirmou que me protegeria, em qualquer situação, não é verdade? Mãe, você deixaria que alguma coisa acontecesse comigo? – Alguns soluços deturparam minhas falas. – Claro que não, querida. Acalme-se. – Ela me abraçou novamente. – O que você andou vendo? – Houve uma pausa. Ela então fixou seus olhos firmes em meu rosto desesperado. – Por que você fez isso, Holly? Nós não entramos em um acordo e não conversamos sobre espiar essas especulações? – Sim, mas... Eu não pude engolir o fato de que... E quando você falou para mim que também era culpada... – Shhhiii – disse ela rapidamente enquanto posicionou seu dedo sobre meus lábios. – Não pense no que os outros estão dizendo. O que vale é aquilo que ficou provado pela polícia, minha filha. E eu prestei todos os esclarecimentos possíveis. É isso que importa. E eu prometi que amaria, protegeria e faria tudo por você desde o dia 109

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em que a segurei nos braços pela primeira vez. Eu sou sua mãe... – Sua voz amoleceu, afinando-se em um tom de choro. – É isso que eu vou fazer até o meu último suspiro. Se eu errei alguma vez – seus olhos se encheram de lágrimas – foi por não ter lhe dado mais segurança, por não ter estado ao seu lado como eu queria... Mas agora nós temos uma nova vida, não é mesmo? – Tentou sorrir. – E você está aqui comigo. É só isso que importa agora. – Suas mãos caminharam pelo comprimento dos meus cabelos com apreço. – Eu amo tanto você. – Abraçamo-nos, e eu terminei de chorar minhas últimas doloridas lágrimas. – Me desculpe, mãe... Eu sabia que não devia desconfiar... Eu sempre soube... – Aninhei-me em seus braços e senti seus pulmões inflarem calmamente e despejarem um ar espesso de tranquilidade. – Eu tenho boas notícias para nós... – recitou as palavras com esperança após um pequeno espaço de tempo. – É mesmo? – Funguei e tentei sorrir. – No próximo sábado, vamos viajar, Holly. Você sabe que a mamãe sempre tira férias no final do ano, não é? Então. Eu conversei com meu novo diretor e poderemos ficar fora a partir da semana do meu aniversário até o finalzinho do ano. Tem uma associação de médicos um pouco afastada da cidade que será ótima para gente. Sei que ficar presa neste apartamento não está lhe fazendo muito bem. O que me diz? – Eu acho maravilhoso. – Um sorriso acanhado brotou no canto dos meus lábios. Mamãe estalou um beijo confiante em minha bochecha e me abraçou novamente. Então, eu tentei ignorar todos aqueles fatos. Aquele sonho e, paradoxalmente, aquela realidade. Alguns dias se arrastaram até que a semana do aniversário de mamãe chegasse. Foi em uma manhã amena de outono que nós partimos. Eu analisava a paisagem pacífica transcorrer diante dos meus olhos e tentava imaginar como andava a vida que eu tinha deixado 110

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para trás. Onde estariam as pessoas de que eu sentia falta, se os mesmos lugares que eu gostava de ir ainda possuíam a mesma graça e, principalmente, perguntava-me se todos ainda pensavam em mim, sentiam minha falta. Eu tentava imaginar minha nova vida sem aqueles questionamentos. O tempo seria suficiente para romper com a importância daquelas lembranças? Eu realmente não conseguia ver uma boa resposta. Eu fiquei em silêncio durante quase toda a viagem. Eu não tinha muitas palavras. Não palavras interessantes. Elas somente diziam respeito à minha melancolia. Passamos por uma estrada estreita e, quando me dei conta, já tínhamos alcançado um campo aberto e arborizado. Os galhos das imensas árvores recheados de folhas faziam sombra sobre alguns carros estacionados. Mamãe escolheu uma vaga e eu observei o ambiente sereno. Aquele silêncio. Os campos verdes em contraste com o azul límpido do céu faziam um par perfeito. Retirei a câmera que estava pendurada em meu pescoço e bati uma foto daquela virtuosa vista. Mamãe me repassou as chaves do nosso quarto. Tratei de retirar nossas malas do carro e desfazê-las logo em seguida, enquanto ela se encarregou de socializar com os seus colegas no saguão principal da hospedaria. Aquela decoração simples e rústica era bem aconchegante. Eu só desci na hora do almoço. Mamãe fez questão de me apresentar aos seus colegas, e todos foram muito simpáticos; além de evidenciarem o quanto ela falava de mim e que também não havia exagerado em nenhuma de minhas qualidades. Senti-me um pouco remota em certas ocasiões, pelo fato de eu ser a pessoa mais nova e estar tão distante daquele mundo, daqueles assuntos. Diante disso, conformei-me em me distanciar e permanecer sozinha na maior parte do tempo. Tratei de desvendar aquele lugar com a minha câmera e passei boa parte das manhãs na piscina mais vazia e distante. 111

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Na véspera de Natal, todos se reuniram na grande varanda. Havia um divino banquete, com vinhos à vontade, festões e um violão passando de mão em mão. A noite caiu de vez, e a temperatura esfriou. Alguns se enrolaram em mantas e permaneceram ali, conversando durante o passar da madrugada. Inicialmente, eu fiquei muito ocupada batendo fotos do pessoal. Eu me reservei aos degraus que antecediam a porta principal da hospedaria para conferir todas as fotos que eu havia batido até todos se retirarem. A noite estava bonita, e apenas um silêncio me fazia companhia. Completamente infiltrada na minha distração, ouvi leves passos se atenuarem sobre os tacos de madeira do chão da varanda. Uma moça de cabelos negros se aproximou e pediu licença. Estava de roupão e tirou um isqueiro do bolso junto com um maço de cigarros. Sentou-se no mesmo degrau que eu. Apertou seu roupão para se proteger do frio. Fiquei observando-a. – Quer um cigarro? – ofereceu com intimidade. – Não, eu não fumo. – Sorri por educação. – Ah, é claro que você não fuma. – Deu de ombros e rearranjou o cigarro entre os dedos, acendendo-o em seguida. Sorri novamente. Passado algum tempo, ela voltou a mexer seus lábios para falar. – Na sua idade eu também não fumava. – Ela olhou distante. – Bons tempos. – E tragou uma dose de tabaco com pesar. – Quer um conselho sincero? – A tal moça tagarelava sem delongas. – Nunca coloque um cigarro na boca. Sério. Eu ri sinceramente, e um silêncio transcorreu. – Feliz Natal – eu disse, sem graça. Ela aguardou alguns segundos, fitou seus dedos e respondeu: – Feliz Natal – finalizou a frase olhando para o céu. Segui seu olhar, e ela começou a conversar. – Está vendo todas essas estrelas? É impossível vê-las na cidade com tantas luzes ofuscantes. 112

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– É lindo, não é?! – Remeti minha atenção ao céu e observei tal vista. – É reconfortante – completou com certo pesar. As luzes ofuscadas das arandelas iluminavam levemente as feições daquela mulher. Ela era muito atraente, com seus cabelos escuros até os ombros, olhos expressivos e castanhos. Lábios cheios e o corpo perfeito. Eu apostaria que era mais nova do que minha mãe. Ela quebrou aquele gelo de silêncio. – Então você é a Holly. Sua mãe fala muito de você. – Todos aqui dizem isso. – Soou óbvio. – Ela tem muito orgulho da filha que tem, até eu teria. Qualquer um aqui teria. – Olhou-me, sorriu e eu correspondi fazendo o mesmo. – Você é uma garota especial. – Deu uma última tragada em seu cigarro. Fiquei sem palavras para concordar e ela continuou. – Quando Catherine contou que você viria, fiquei ansiosa para conhecê-la. Nós do hospital sabemos da história de vocês e a apoiamos muito. E eu sempre tive a curiosidade de saber como lidava com tudo isso. E você, pelo menos aparentemente, está vivendo. – Viver é a única opção, não é?! – eu disse um pouco remota. – Diz isso porque nunca imaginou outras opções. – Balançou a cabeça convicta. – Como assim? – Apertei um dos olhos, confusa. – Você pode viver, pode apenas viver por viver, pode tentar viver, viver por alguma razão... – A frase foi propositalmente reticente. Levantei uma sobrancelha, e ela sorriu. – Talvez isso não faça sentido para você agora, e posso dizer que não fazia para mim há um tempo. Só espero que você não demore para perceber isso como eu. – Ela olhou para baixo como se lembranças ruins a invadissem naquele momento. 113

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– Acho que vou dormir, não quero enchê-la de pensamentos mirabolantes. – Imagina. – Sorri, tentando contestá-la. A tal desconhecida se levantou séria e ajeitou o roupão. – Truly. – Estendeu-me a mão. Eu correspondi ao aperto de mão e sorri de modo sincero. Truly se retirou e eu decidi fazer o mesmo quando o amanhecer selou o início do horizonte. Na tarde do dia seguinte, cheguei um pouco tarde para o horário do almoço, e o restaurante estava praticamente vazio. Uma única presença sentada em uma mesa para dois me chamou a atenção. Era Truly. Senti a liberdade de me juntar ao espaço vazio à sua frente. – Está sentindo falta da cidade grande? – Tentei puxar assunto ao colocar meu prato sobre a mesa. Ela sorriu como se aprovasse minha companhia. – Da cidade grande nem tanto. Estou sentindo falta de trabalhar. – O que você faz no hospital? – perguntei curiosa enquanto desembalava meus talheres. – Trabalho na mesma equipe da sua mãe. E você? Só está estudando? – Por enquanto estudo apenas em casa. Não pude retomar à rotina escolar com essa loucura toda. – Suspirei. – Que barra. E você pretende fazer medicina também? – Não. – Fiz uma careta e tratei de cortar um pedaço do meu bife à parmegiana. – Por quê? – Ela riu ligeiramente. – Não gosta de biológicas? – Prefiro exatas. Dizem que sou boa em matemática. Ela riu alto. – Você não tem cara de quem gosta de matemática. Aliás, eu poderia jurar que você era alguma líder de torcida voraz ou uma dessas garotas que só sabem fazer contas de calorias. 114

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Ri mais alto do que pude. – Não mesmo. Nunca fiz parte dessas coisas. E eu tenho alergia a pompons. Doutora Truly gargalhou com satisfação. Seu sorriso era reconfortante. – De que planeta você veio, garota? – Do mais estranho de todos. – Ri com ela. – Mas não se incomode. Estou acostumada com estereótipos. – Sorri despreocupada. – Gosto de pessoas assim como você, que quebram esses estereótipos. – Ela ergueu sua mão para que eu lhe correspondesse um toque. Nós terminamos nosso almoço e caminhamos pela trilha de volta aos dormitórios. Uma chuva fina caía sob o gramado, molhando-o sutilmente. Como as camareiras ainda estavam fazendo o serviço de quarto, nós decidimos nos sentar em um banco de madeira protegido por um toldo no jardim de inverno atrás do conjunto de chalés. Truly não demorou para voltar a seus diálogos contundentes. – Na sua idade, os anos voavam para mim. – Sorte sua. Eu me sinto como se estivesse parada no tempo. Ela riu balançando a cabeça e tentando me contradizer. – Mas é justamente assim que funciona. O tempo gosta de enganar as pessoas, fazendo-as acreditarem que de fato está parado. E aí, quando você se dá conta... cinco, dez, quinze anos já se passaram e o que você conquistou? Nada. Porque bem, seu tempo estava tão parado, não é mesmo? Nada acontecia, nada mudava. – Ela riu incrédula e prosseguiu: – As pessoas tendem a culpar o tempo por suas maiores falhas. – Faz sentido. – Aquiesci com uma expressão não muito feliz. – Eu falo porque já estive nessa situação. Quando vi, já era uma velha de vinte e poucos anos que ainda morava com os pais. Completamente perdida, sem nenhuma qualificação, sem experiências. Eu bem que queria tomar decisões de efeito, sabe. Mas, naquele meu mundo vago, sem nenhuma perspectiva, era difícil pensar 115

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diferente. Até que eu comecei a perceber que a vida das pessoas à minha volta estava mudando. Minhas amigas trabalhando, outras casando, constituindo famílias, realizando sonhos, realizando suas felicidades. E continuou: – Então algo forte veio em minha cabeça. Era a necessidade de ter sonhos, metas. Logo procurei entrar na faculdade, para me formar em algo construtivo. E medicina se tornou instantaneamente fascinante aos meus olhos. Ter uma profissão cheia de anseios e incertezas, lidando com uma coisa tão séria e ao mesmo tempo tão vulnerável que é a vida das pessoas... – Eu sentia os olhos dela se encherem de orgulho enquanto falava. Truly prosseguiu: – Eu deixei de ser somente a Truly Reynolds, a garota que morava em Midtown, um bairro suburbano em Houston, no Texas... e passei a ser a doutora Truly, a médica que sempre procura ser a melhor, a mais competente. Que busca o reconhecimento pelo que faz, porque realmente ama o que faz. É nisso que eu foco. É isso que me faz viver, que me faz continuar. E essa é uma das opções, Holly. Eu poderia ser uma perdedora que ainda mora com os pais. Mas, não, criei minhas próprias oportunidades e escolhi a melhor para mim. Ela me olhou firme esperando que eu comentasse algo. Fiquei em silêncio, e Truly prosseguiu: – E quanto a você? Quais são seus sonhos? O que a faz querer continuar? Parei por um instante. A resposta não estava tão clara na minha mente. – Mas que droga de garota de dezesseis anos é você? – Ela levantou um pouco o tom de voz diante do meu silêncio. – É. Está bem longe de serem sonhos – respondi distante. – Então você não possui expectativas? Não quer nenhuma mudança? Você está completamente feliz? – Completamente feliz não. – Abaixei a cabeça. 116

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– Então você quer que algo mude ou aconteça. Ninguém quer ser quase feliz para o resto da vida. Aliás, é o “quase” que nos move. Nós acordamos todos dias para transformar esses “quases” em definitivo, em completo, em total. – Você é boa com as palavras. – Ri sem jeito. – E você ainda não respondeu à minha pergunta. Houve uma pausa da minha parte. E, dessa vez, Truly não me forçou. Eu respirei fundo antes de finalmente responder. – Talvez minha vida de volta. Gostaria de ser a Holly que eu era antes. – Você está no lado errado, querida. É impossível construir sonhos para o passado. Pense em seu futuro. Infelizmente, mesmo que você tente, daqui para frente nada poderá ser igual. – Não sei. – Ignorei. – Acho que desaprendi a sonhar ou talvez eu nunca soube, no fim das contas. – Você não tem expectativas para seus próximos meses? Não deseja que todo esse sofrimento que você carrega desapareça? Não diga que gosta de se automutilar com seus próprios traumas. – Lógico que não. Desejo com todas as minhas forças que tudo isso não me atormente tanto, mas parece que as marcas se tornam cada vez mais indeléveis – recitei o final da frase em suspiros. Era uma consequência que se fixava na minha mente como um pressentimento. – Então aniquilar esse sofrimento é uma meta. – Não foi uma pergunta. – Sim. – Encarei-a com certa descrença. – Você nunca vai conseguir mudar alguma coisa em sua vida se você não organizar seus objetivos e não delimitar suas prioridades. Apenas viver por viver vai fazer com que o seu tempo se desvaneça num piscar de olhos. E posso lhe garantir que esse é o pior fator. Você tem de viver por alguma coisa, lutar por alguma coisa. Caso contrário, não há razão para continuar respirando. Você será mais uma alma perdida vagando pelo mundo. 117

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– Eu nunca tinha parado para pensar nisso. Nunca. – Ri desacreditada. – Você é linda, Holly. Tem só dezesseis anos e uma vida imensa pela frente. Olhe o que você está fazendo com ela. Enterrando junto com uma marca do passado. Sua vida não acabou por causa desse fato. Muito pelo contrário! Ela acabou de começar. Centenas de pessoas morreriam por uma segunda chance como essa. Tenha certeza de que alguém lá em cima quer vê-la por aqui, lutando por algo forte, intenso, que faça sua vida valer a pena. E disse ainda: – É uma pena tão grande ver em seus olhos essa tristeza... – Seus dedos alinharam minha franja atrás da orelha com carinho. – Eu sinto o quanto você se remói por todas essas ocorrências trágicas. Você não tem a visão de alguém comum. Aproveite sua personalidade madura para descobrir quem você realmente é. Tente se recompor e viva. Não fique o tempo todo sobrevivendo, escapando de suas incertezas. – Doutora Truly posicionou seu braço entre meus ombros e me sacolejou levemente. Eu encarei o horizonte sem piscar para tentar impedir que uma lágrima caísse de meus olhos. Flexionei os lábios tentando amenizar a dor que se instaurou dentro do meu peito. Truly me abraçou, e eu me desmanchei em lágrimas. Não vou mentir que me senti bem depois daquela conversa. Eu estava em uma fase da minha vida em que as coisas não faziam muito sentido. A minha única certeza era de que estar nessa condição poderia ser altamente perigoso. Não sei por quê... Mas algo me incitava a acreditar veementemente nisso. E a vida real nos chamou de volta para casa. Permaneci acordada durante nossa volta e, quando estávamos quase chegando no centro de San Diego, minha mãe parou em um semáforo e pude avistar um muro abandonado, pichado com a seguinte afirmação: Antes de pedir para que algo aconteça em sua vida, peça algo em que acreditar. Definição. Às vezes é dela que precisamos. 118

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CAPÍTULO OITO

bem-vinda à selva!

Contagem regressiva. Faltavam apenas sete dias para minhas aulas começarem. Eu seria encarada como Holly Armstrong novamente, e algo me dizia que eu precisava me preparar para esse novo desafio. Dois meses tinham passado tão rápido. Mesmo eu sentindo meu tempo congelado. Antes do Ano-Novo, minha mãe comprou para mim duas camisetas da escola, alguns cadernos e uma mochila nova. Graças à sua escala de trabalho, ela passou a virada de ano no hospital trabalhando e eu fiquei na área de lazer do prédio assistindo ao espetáculo de fogos de artifício. Acabei exagerando na bebida e acordei muito tarde no primeiro dia de dois mil e nove. Feliz Ano-Novo! O inverno havia chegado de vez, e o primeiro fim de semana do ano foi molhado. Não parou de chover sequer um momento. O domingo foi tedioso, então, decidi ensaiar algumas apresentações na frente do grande espelho do meu quarto. Era provável que aquilo tudo não fosse necessário, mas eu não descartava a possibilidade de ter de prestar as temidas satisfações quando chegasse às minhas primeiras aulas. Analisei-me de cima a baixo e comecei a perceber que eu havia ganhado alguns quilos. Dois meses trancada em casa e comendo como uma porca para aliviar as tensões havia levado meu corpo atlético por água abaixo. Fiquei indiferente. Eu nunca fui do tipo garota magra de pernas finas mesmo. E também não estava preocupada em ser atraente e/ ou interessante para ninguém. Respirei fundo e cacei algumas palavras bonitas pela mente. 119

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– Bem, meu nome é Holly Armstrong. Eu vim de São Francisco e... – Bufei. Ninguém quer saber da onde você veio, idiota! Recomecei. – Meu nome é Holly Armstrong, tenho dezesseis anos e, bem, acho que todo mundo já me conhece pela TV, então... Dane-se. – Sorri sarcástica. Patético. – Sou Holly Armstrong, e há dois meses sobrevivi a uma tentativa de sequestro, mas só escapei porque ataquei o filho da mãe e estou aqui contando a história... Todo mundo vai sair correndo, ô Einstein. Parti para outra. Estufei o peito, limpei a garganta e olhei firme para o espelho. – Armstrong, Holly Armstrong. Mas me chamem de garota avalanche. É melhor correr, correr, correr, correr. – Fiz uma careta tentando parecer perigosa. Desde quando você é comediante? Inútil. Ri internamente das minhas iniciativas fracassadas. Nenhuma era eficiente o bastante. A única saída seria improvisar. E, então, a primeira segunda-feira do ano chegou. Naquele dia cinco de janeiro, meu despertador tocou impreterivelmente às seis horas da manhã. O céu escuro e nublado e a cidade fria e vazia foram as únicas coisas que vi ao olhar pela janela do meu quarto. Minha mãe tomava café em silêncio na cozinha. Era óbvio que estava perturbada com a minha volta à escola. Por mais que negasse, ela logicamente associava meu retorno ao último dia escolar trágico. Por essa razão, decidiu me dar uma carona. “É mais seguro na primeira vez”. Chovia, chovia e chovia. Fiquei contente até. Bicicleta e chuva não era uma combinação muito agradável. Vesti meu moletom escuro por cima da camiseta da escola, puxei o enorme capuz e cobri a cabeça. Eu estava perfeitamente camuflada. 120

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– Tira isso da cabeça, Holly! Parece uma maloqueira! – mamãe exclamou segundos antes de eu sair do carro ao chegarmos à frente da minha escola. – Você não precisa se esconder de ninguém, querida. Agora joga esse cabelo para frente e manda ver! Revirei os olhos e, insatisfeita, desci o capuz. Ela sorriu e eu me despedi, já abrindo a porta do carona. Observei mamãe manobrar o carro pela vaga e se distanciar, voltando para a avenida. Por fim, acenei levemente. Pingos finos de chuva caíram sobre minha cabeça. Encarei a edificação da minha nova escola com certo receio. Eu era a única alma viva pelas redondezas da instituição. Cobri novamente a cabeça com o capuz e avistei uma placa de identificação da secretaria. Apertei o passo para chegar aos grandes portões de vidro e poder me proteger da chuva amena. O vento úmido oscilou algumas folhas envelhecidas espalhadas pelo chão. Respirei fundo e criei coragem. Empurrei a porta e me surpreendi com o silêncio instaurado. Apenas uma funcionária encerava o piso do hall de entrada. Talvez fosse cedo demais. Um barulho oco ecoou quando eu fechei as portas. Os vastos corredores eram quase uma vertigem para meus olhos. Sentei em uma das poltronas à frente da sala da diretoria e olhei no relógio preso à parede de tijolos vermelhos aparentes. Faltava muito para as oito horas. Os segundos se arrastaram, e o tique-taque do relógio irritou minhas mais profundas lembranças. Coloquei a mochila sobre meu colo e saquei meu iPod com animação. Fiquei ouvindo meu Guns N’ Roses habitual durante algum tempo. Eu cantarolava mentalmente de olhos fechados minhas músicas preferidas e pude me distrair daquela tensão toda. Então algo me despertou. Algo muito alto. Era uma sirene. Olhei em volta e me deparei com a escola lotada de pessoas. Já eram mais de oito horas. Ergui minha cabeça do encosto da cadeira um pouco atordoada. Meu querido Axl ainda cantava em meus ouvidos pelos fones. 121

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Cheguei à secretaria e conheci a bendita senhora Ruth Means, a tal conselheira que preparou meus cronogramas de exercícios. Ela me deu um abraço apertado e um sorriso largo de boas-vindas. Explicou a minha grade de aulas e onde eram as respectivas salas, bem como onde eram os armários, o refeitório, os sanitários, a biblioteca, entre outras informações que fugiram da minha memória logo que me despedi dela. Coloquei a mochila nas costas e retirei o capuz. Chacoalhei os cabelos para fora da blusa e respirei fundo. Atravessei o primeiro corredor e tentei não olhar para as pessoas. E, mesmo assim, pude sentir que todos os olhares estavam voltados para mim. Isso me deixou um pouco aflita, pois não eram nada bondosos. Soaram mais como um ato de rejeição. As garotas fizeram questão de me encarar indiscretamente de cima a baixo, mas não revidei em nenhum momento até me aproximar da minha sala. Meus fones de ouvido ainda estavam funcionando. “You know where you are? You’re in the jungle, baby You gonna die. In the jungle1.” Entrei pela porta da sala 37 e a fechei com cuidado. O alarido dos alunos foi aquietado pela professora, e todos olharam para mim automaticamente. Eu deveria me acostumar com aquilo. – Bom-dia, senhorita... – Esforcei-me para lembrar seu nome que eu havia lido umas centenas de vezes na minha grade – Thurmann – recitei baixo chegando à sua mesa. Ela dava aulas de História. Com um sorriso afável no rosto, a jovem professora anotou minha presença em seu diário sem que eu me anunciasse. Acho que muitos já esperavam minha chegada.

“Você sabe onde está? Você está na selva, querida. E você vai morrer. Bem-vinda a

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selva”. Letra da música “Welcome to the jungle”, Guns N’ Roses.

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– Bem-vinda, Holly. Pode se sentar aqui. – Ela apontou para a primeira carteira da primeira fileira. Posicionei-me timidamente na cadeira. Senhorita Thurmann me emprestou seu livro enquanto falava sobre a Guerra Civil Americana. O sinal bateu inesperadamente. Corri para ler minha grade e tentei chegar o quanto antes na aula de Inglês. Em vão. Eu me confundi com as escadarias e cheguei atrasada. Abri a porta da sala silenciosa. A professora, senhorita Rose, também era jovem, com seus cabelos ruivos atraentes. Ela assinou meu documento de transferência e apontou a primeira carteira da primeira fileira para que eu sentasse. Não ousei espiar meus colegas. As aulas antes do almoço não foram muito diferentes. Sempre a primeira carteira da primeira fileira. Aquele clima constrangedor, aquela apatia, aquela incompatibilidade. A hora do almoço foi a pior. Eu não sabia onde enfiar a cara, onde ficar. Estava me sentindo uma intrusa em meio aos mais de três mil alunos reunidos no pátio. E então o sinal da última aula bateu. Ninguém havia vindo falar comigo, muito menos perguntar meu nome. Nada. Minha mãe estava na frente da escola me esperando. – Como foi seu primeiro dia de aula, querida? Eu lancei-lhe um olhar seco e mortal. Ela ficou paralisada. – O que aconteceu, Holly? – Seus olhos tentaram ler minha triste expressão. – Acho que eles não curtem novatos. – Bati a porta do carro fazendo certo drama. Joguei minha mochila no banco de trás e puxei o cinto de segurança. – Não fez nenhuma amizade? – Ninguém sequer se atreveu a sentar do meu lado. – Ah, Holly. É o primeiro dia ainda. Espere até o final da semana. Você vai estar toda animada me contando sobre as pessoas que 123

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conheceu, sobre os garotos bonitos... – finalizou a sentença animada, desejando me deixar para cima. Tentei me contagiar. Segundo dia. Algumas aulas se repetiram, e o único contato que tive foi com meus professores. Eles sempre estavam dispostos a me olhar nos olhos e ser atenciosos com minhas dúvidas. Mas, em relação aos meus colegas, eu continuava na estaca zero. Havia apenas um garoto não muito alto que usava óculos do estilo Ozzy Osbourne que parecia não ter vergonha de me observar com curiosidade, mesmo que discretamente. Fora isso, eu continuava a me sentir como um animal exilado, completamente fora de seu habitat natural. D E C E P Ç Ã O. Foi a palavra que encontrei para definir aquela primeira semana. Os dias seguintes foram todos exatamente iguais ao primeiro. Nenhuma alma viva se arriscou a olhar diretamente para mim e se apresentar. Eu via rostos repetidos, que frequentavam os mesmos horários que eu, e mesmo assim todos se recusavam a se sentar do meu lado. Não cheguei a contar para minha mãe todos os detalhes. Não queria preocupá-la. Será que era eu o problema? Seria mais uma questão para me atormentar? Passei o fim de semana chuvoso estudando para minhas prometidas avaliações e tentei não pensar naquela realidade. Mas era inevitável, e às vezes eu me pegava pensando involuntariamente sobre a situação. Os olhares das pessoas era de fato o pior detalhe. Eu os sentia como chicotes. E, sinceramente, achei que seria mais fácil. Ninguém mencionou a possibilidade de que: “Ei, ninguém vai gostar de você, caia fora” poderia acontecer. Droga. Ninguém dirigia a mim nem uma única palavra. Nem um oi, um bom-dia nem, sei lá, um vai se foder, eu odeio você, vadia! Nem isso. 124

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Dane-se! Eu não tomaria nenhuma iniciativa! Eu tinha a impressão de que se eu falasse algo para alguém correria o risco de levar uma vomitada ou uma cuspida na cara. E eu até imaginava o que pensavam a meu respeito, mas, bem, eu não gostaria de deixar aqueles pensamentos muito claros na minha mente. Em toda sala que eu entrava, o primeiro lugar da primeira fileira estava lá, vago e pronto para mim, me esperando. Trabalhos? Sempre sozinha. Laboratório de Biologia? Eu me sentava na bancada mais afastada, aquela que ficava ao lado das prateleiras recheadas de vidros nojentos com formol exalando até a boca, cheios de criaturas asquerosas. Os almoços? Solitários, constantemente regados de risinhos maledicentes à minha volta. E os olhares? Sempre se tornavam exasperados quando meu nome era pronunciado em voz alta. Ir à escola era um tipo de tortura. Minha mãe, sem saber muito da história, dizia que o anonimato ainda era o melhor efeito a ser recebido. “Imagina se as pessoas soubessem de toda a verdade e começassem a fazer um tumulto por sua causa? Fique tranquila, querida”. Até que era verdade, mas aquela realidade estava me cansando. Eu levantei na segunda-feira e tentei avaliar quanto eu ainda poderia suportar. Como a vida é realmente uma filha da puta, ela não avisa que quando temos esses questionamentos é sinal de que tudo vai piorar, mais ainda. Eu estacionei minha nova bicicleta no lugar indicado e tratei de correr para o meu primeiro tempo. E, naquele dia, antes do almoço, eu teria minha primeira aula de Educação Física. A treinadora da nossa turma se chamava Meg Roberts, mais conhecida como treinadora Roberts. É claro que a San Diego High School tinha um time de futebol. E, consequentemente, um time de líderes de torcida. Previsível demais. Entediante demais. Eu logo corri para me esconder na arquibancada depois de trocar de uniforme para ser deixada fora de qualquer jogo. Eu sabia 125

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que ninguém me chamaria para a formação de equipes e queria evitar humilhações maiores. A tal treinadora chegou atrasada para a aula. Ela era mais ou menos da minha altura, tinha lá uns quarenta anos e um corpo bem atlético, obviamente. Sua voz era firme, e os olhos pareciam capturar tudo. Inclusive a ausência da garota-alienígena-nova, vulgo eu. Seus olhos me buscaram pelo aglomerado, até me acharem com preocupação ali na arquibancada, abominavelmente sozinha. – Venha, Holly. A aula é para todos. – Ela acenou em meio à multidão, fazendo meu rosto ferver. Fechei os olhos e respirei fundo, já me preparando para descer os grandes degraus com precisão. Eu me aproximei da treinadora timidamente sem olhar para os outros alunos. Ela surpreendentemente passou seu braço sobre meu ombro, dando-me certo apoio moral. – Olha só, estava realmente precisando de uma garota como você no meu time de vôlei. – Sorriu, querendo me contagiar com seu espírito esportivo. Eu não reagi muito bem à sua tentativa de interação, e ela percebeu. Decidiu tentar outra tática enquanto o resto dos garotos se aproximava. – Bom, pessoal. Essa aqui é a Holly, ela é nova na escola... Espero que todos você a recebam bem. Acho que temos uma atleta em potencial. – Olhou para mim, com interesse. – Você praticava alguma coisa na antiga escola que você estudava, querida? Eu demorei a perceber que era uma pergunta. – Ah, não. Eu só jogava tênis pelo clube estadual. Eu fiz algumas aulas de boxe também, mas... Não cheguei a iniciar treinamento. Ela pareceu receber minhas palavras com fascinação. Logo eu me senti enclausurada por uma redoma de cobras, todas à minha volta. Com os olhos venenosos queimando em puro repúdio. – Incrível. Você já pensou em ser animadora de torcida? Abri a boca para contestar no mesmo segundo, mas uma voz rascante se sobressaiu antes de qualquer pensamento. 126

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– Você ficou maluca, Meg? Você sabe muito bem que líderes de torcida precisam voar. E para isso temos de ser leves. Se é que me entende... O tom de deboche da garota me desnorteou. Não acreditei no que ouvi. O ser feminino postou-se com braços cruzados a nossa frente. Ela vestia uniformes olímpicos sobre a pele translúcida que cobria um corpo esguio. Os cabelos naturalmente louros destacavam seus olhos pequeninos e castanhos, porém cheios de ousadia. – Hailey! – a treinadora Roberts a censurou, completamente incrédula. – Não se preocupe – tranquilizei-a rapidamente. – Eu sempre soube que líderes de torcida treinam para ficar parecendo tábuas. Só não sabia que faziam isso também com o cérebro. – Sorri com sarcasmo. A galera começou a vaiar devagar enquanto a tal garota tentou formular sua próxima defesa. – E quer saber? – completei enquanto já tratava de me afastar de todos. – Eu não preciso disso. Virei-me, caindo fora daquela palhaçada. Tirei a camiseta do uniforme de malha sintética rapidamente e joguei no primeiro degrau da arquibancada, ficando apenas vestida com a regata branca. Estava completamente farta. Retirei-me portão afora, voltando ao pátio central. Meus passos pesados sobre o chão. Quem era aquela garota para me chamar de gorda? Como se ela fosse muito gostosa para apontar os defeitos dos outros. Que inferno! Apertei as mãos em punho, desejando aliviar minha frustração. – Holly. – Alguém estava vindo atrás de mim. – Holly! – Certo desespero infiltrado na voz. Só poderia ser a treinadora. Ela me alcançou em um átimo. – Qual é o seu problema, garota? – Forçou-me a parar com o ritmo acelerado dos meus passos segurando meu braço com prudência. – Meu problema? – Explodi de raiva. – Quer dizer que eu sou obrigada a ouvir absurdos de uma patricinha estúpida? – Meus olhos ardiam em pura indignação. 127

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– Ei, eu realmente achava que você fosse mais forte, garota. Quer dizer que você se intimida com o que uma patricinha estúpida lhe diz logo na primeira vez? Fiquei em silêncio. As pessoas nunca sabem como eu reajo ao suporem ou colocarem à prova a minha força. Ela continuou: – Não precisa ser assim. Você sabe que é mais forte do que todas juntas. Continuei em silêncio por um tempo. Respirei fundo. – E o que você acha que devo fazer? – desafiei-a com serenidade. – Volte para aquele ginásio e prove quem realmente é. Aliás, você estuda aqui. Não permitirei que deixe de fazer as atividades com seus colegas. – Todo mundo aqui me odeia. – Fui categórica. – É porque ainda não a conhecem. – Como pode ter tanta certeza? Também não me conhece. – Eu tenho o dobro da sua idade, mocinha. Eu sei quando estou diante de pessoas especiais. E você certamente é uma delas. Agora venha. Ser forte também exige disciplina. Quando passar por aquele portão, não ligue para o que os outros acham de você. Pense que só você sabe quem realmente é. Sabe do que é capaz. E é isso o que realmente importa. Sua mão afagou meu ombro com familiaridade. Estufei o peito gradativamente. Os olhos negros e expressivos da treinadora me transmitiram segurança e nós caminhamos de volta ao ginásio. De volta à quadra, alguns alunos já arrastavam colchonetes enquanto outros distribuíam bolas entre si. A tal Hailey discutia inconformada com duas garotas do mesmo tipo físico, que vestiam o mesmo uniforme olímpico de listras amarelas e roxas. A menina de pele mais dourada tinha um corte de cabelo bem batido atrás, com a franja jogada para o lado que descia assimetricamente pela lateral da cabeça até a altura das orelhas. E a branquela possuía um ar mais infantil, com aparelhos nos dentes e cabelos castanhos bem cacheados até os ombros. 128

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Como a treinadora Roberts estava me guiando discretamente, nós começamos a nos aproximar das três garotas. – Ei, Jenny. – A morena se aprumou quando ouviu seu nome ser chamado pela treinadora Roberts. – Já fez sua série de alongamentos hoje? E Olivia... Acho que Chloe precisa de uma ajuda com a rede de vôlei... – Ela apontou o dedão para o outro lado do ginásio. As duas suspiraram entediadas e deram o primeiro passo para se retirarem. Hailey se preparou para segui-las. – Não, você fica. – Meg a surpreendeu com o olhar incisivo. Revirei os olhos discretamente. Hailey se aproximou com uma carranca mal-humorada. Treinadora Roberts nos posicionou uma de frente para outra. Ah, que ótimo! Eu levantei uma sobrancelha para sua posição arrogante. Ela não estava nem um pouco interessada com a sessão de desculpas. – Vocês estão no mesmo ano. Já são praticamente mulheres. E ambas são inteligentes. Então tratem de agir como tal, pelo menos dentro da quadra. Vocês não têm nada a perder com isso. – Ela nos olhou com preocupação. – Posso confiar em vocês? Eu aquiesci rapidamente e abaixei a cabeça. Hailey bufou impaciente antes de se pronunciar. – Claro que pode, Meg. – Incrivelmente, a criatura sorriu. – Estou liberada? – Sim, querida. – A treinadora lançou-lhe um olhar compreensivo e completou: – Só não vá ficar de namorico com o Seth. – As duas riram e Hailey se afastou. Meg colocou as mãos nos bolsos do moletom e suspirou aliviada para mim. – Não se preocupe com ela, ok?! Ela sempre foi assim – disse. – Olha, vou dar um tempo para você nas aulas de hoje. Vá tomar uma água, respirar um pouco. Se quiser aproveitar para ir estudar para alguma prova na biblioteca eu lhe dou uma autorização. Quinta-feira eu a rearranjo em alguma equipe. 129

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– Não, não precisa. Mas eu... Agradeço. – Sorri. – Fique tranquila. Pode contar comigo para qualquer coisa. E, ah, fiquei sabendo que você já está representando nossa escola na Olimpíada de Matemática! Parabéns! – Ela pareceu orgulhar-se do feito. – É... pois é. – Sorri encabulada. – Professora Meredith me inscreveu nesse fim de semana. A prova já é no mês que vem. – Que ótimo, Holly. Eu lhe desejo boa sorte, sei que vai arrasar. Treinadora Roberts me lançou um último olhar antes de se virar para a turma. Ela acionou seu apito e eu me preparei para sair do ginásio. Segui pelos corredores que levavam ao pátio principal. Aquele era definitivamente o melhor horário. Estava completamente vazio. Caminhei mais um pouco até alcançar os banheiros femininos. Eu lavei minhas mãos e me observei no espelho. Poderia ser eu alguém tão assustadora? Ri ligeiramente e corri os olhos aleatoriamente pelas paredes daquele ambiente. Nunca havia parado para observar os dizeres rabiscados. Enquanto secava minhas mãos com um pedaço de papel, analisei aquele conjunto de marcações. “Big Eddy” era algo que se repetia entre os rabiscos. Ora envolto de um coração, ora sobreposto a um xis, ora apenas escrito com uma letra romântica. Quem seria Big Eddy? Joguei o papel úmido na lixeira e saí. Caminhei de volta pelo corredor principal do pátio que dava acesso ao segundo pavimento de salas, onde também ficavam os armários. Eu precisava preparar meu material para a próxima aula. Em meio àquele ambiente abandonado, um único semblante perdido me encarou. Não demorei em reconhecê-lo. Leonardo. Parei sem conseguir auferir uma única tragada de oxigênio. O tal garoto filho fanático do dono da banca estava ali, na minha frente. 130

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Mas que droga! Não sei se consegui disfarçar minha reação comprometedora. Prossegui com mais alguns passos, e ele se aproximou rapidamente. – Brenda? Você estuda aqui? Deveria ter me avisado, garota. – Um sorriso realizado de orelha a orelha estava manifestado em sua expressão. – Pois é, devo estar um ano antes de você. – Sorri sem graça, querendo me mandar dali. – Nossa, que ótimo! San Diego é muito pequena. – Ele riu da própria afirmação. – Qual é a sua próxima aula? – Sala 25 – falei sem emoções. – Tenho aula na 26, olha que coincidência! Vamos juntos! – Ele nem para perguntar se eu queria, mas enfim. Não contrariei. – Você não estuda aqui há muito tempo, não é? Conheço a maioria do pessoal do Ensino Médio. – Puxou papo. – É... – Fui reticente. Eu estava completamente desconfortável com sua presença. Pedi licença para ir até meu armário para pegar meu livro de Matemática. Ele se ofereceu e veio comigo. Ai, que droga! Aquele garoto ficava me secando sem parar com seus olhos tremendamente azuis. Eu estava tão aflita que, no auge do nervosismo, ao tentar empilhar os livros sobre meus braços, acabei por derrubá-los. Meu livro de cálculo espatifou sobre o chão e algumas folhas diversas voaram para fora. Eu sempre tive o hábito de guardar exercícios corrigidos entre as páginas. Ele se abaixou para me ajudar a pegar e instantaneamente seus olhos correram pelos detalhes do papel. Era uma prova minha. – Caramba! Você tirou A+ em trigonometria? – Riu orgulhoso. – Achei que só eu fosse nerd o suficiente. – Seus olhos continuavam a caçar detalhes. E então... – Holly Armstrong? – Oscilou seu olhar entre o cabeçalho da prova e meu rosto. Seu semblante translúcido ficou levemente 131

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ruborizado por uma agitação desconhecida. Eu, que mal respirava, quase tive uma síncope ao vê-lo recolher o resto dos livros do chão e reconhecer o nome das etiquetas. Paralisei. Não havia o que dizer. Havia? Não. Rangi os dentes, e meu coração disparou. – Então você é a Holly Armstrong. – Não foi uma pergunta. Apenas a comprovação de um fato. Um riso conformado vibrou de sua garganta. – Como isso? – Seus olhos permaneceram fixados em meu rosto. Eram incrédulos. – Como eu pude não perceber naquela vez! Você é a Holly! – A certeza inundava sua expressão juvenil. A certeza de ter matado uma grande charada. – Leo, por favor... – Choraminguei, colocando as mãos em frente ao rosto, suplicando. Ele ficou em silêncio, estava absorvendo aquela realidade assustadora. – Recolhi uma lágrima, que havia se instaurado em meu cílio. – Calma. – Sua mão se posicionou em meu ombro. Um silêncio pairou ente nós. – Ainda não acredito nessa possibilidade – disse com humor. Peguei os livros recolhidos de suas mãos, devolvendo-os para dentro. Retirei a identidade da mochila socada no armário. Ele a pegou rapidamente. – Dezessete de outubro de 1992. – Seus olhos se alarmaram discretamente. Ele voltou a ruborizar. Sorriu sem graça ao olhar para mim com os olhos distantes. Eu queria desvanecer imediatamente. – Agora tudo faz sentido! Era impossível que você tivesse acesso a certas informações se realmente não fosse a própria Holly. Fechei meu armário com certa estupidez. – Está feliz agora? Enquanto você está vibrando com o fato, eu estou realmente tentando apagar esse passado. – Saí andando sem me anunciar. – Bren... Holly! – Ele se corrigiu rapidamente. – Me desculpe. – Ele veio em disparada atrás de mim. – Nossa, eu sou um idiota, não é?! 132

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Eu revirei os olhos ligeiramente. A presença daquele garoto me exauria. – Olha, desculpe por ter falado aquelas barbaridades naquele dia. Peguei pesado demais, eu sei. E também fui errado de julgar. Agora que nada foi comprovado, ninguém pode crucificar sua mãe. Paralisei à sua frente. – Como é? – Respirei intermitentemente. – Você não sabia? – Havia indignação em sua voz. – Ficou realmente provado que ela não teve nada a ver com o caso, muito menos provaram a ligação dela com aquele diretor milionário da rede San Martin de hospitais. Você não sabia disso? – repetiu a pergunta que eu mal tinha ouvido na primeira vez. Completamente absorta, engoli em seco, tentando equilibrar a consciência diante de milhões de linhas de questionamento. Acabou, Holly. – Você está bem? – Segurou meus ombros. – Sim. Estou – respondi depois de dar um tempo para minha mente. Olhei em seus olhos. Acho que sorri, um pouco abobalhada. Leo sorriu de volta, aquele sorriso largo, que mostrava seus dentes perfeitamente alinhados em um traço meigo. – Eu não acredito que ainda consegue olhar para mim, mesmo sabendo que sou uma farsa. Que enganei você... – Balancei a cabeça, incrédula. – Ah, que isso. Estou feliz por você ser quem você é. E não me importa se mentiu na primeira vez. Você está sendo a coisa mais louca que eu já pude viver. E, com suas circunstâncias, você não poderia se apresentar normalmente para todo mundo. – Leo... – Ergui meu dedo indicador, em um ato inquiridor. – Não ouse, muito menos pense em con... Ele me interrompeu, convicto. – Você acha que eu vou contar para alguém? Claro que não. Confie em mim, eu não dividiria você com os curiosos. – Sorriu. 133

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– Você me trata como se eu fosse uma matéria de revista exclusiva. Valeu. – Balancei a cabeça e voltei a apertar o passo. O infeliz voltou a me seguir. – Ei, garota. Você é difícil mesmo, hein?! – Dois segundos foram suficientes para ele me acompanhar novamente. Sua mão agarrou em meu braço. Olhei firme para ele, minha sobrancelha se ergueu, desafiando-o. – Você não imagina que é assim que é vista pelas pessoas? Como uma polêmica? Agora eu sei quem é a garota diferente que o pessoal andou falando na última semana. – Então você acha que eu quero ser sempre o centro das atenções? Eu só queria minha vida de volta, meu anonimato, minha consciência sadia. Ou você acha que é muito legal carregar um passado como o meu? Ele silenciou seus lábios, mas os olhos permaneceram fixados em mim. – Desculpe de novo. Não quero que fique chateada comigo. Eu devo ser a única pessoa que conversa com você nesta escola. – Isso não faz diferença para mim. Pode ir, antes que seus amigos zoem você por estar falando com a novata esquisita. – Usei um tom de deboche. – Não é nada disso. Todos daqui só estão surpresos. Você é muito... diferente. Diferente de todas as outras garotas. Não parece, mas você... exala um mistério que chega a amedrontar as pessoas. Ninguém sabe de onde você veio, o que você faz, pensa. Isso choca. Além de ser excepcionalmente bonita, inteligente e... um pouco perigosa. – Revirei os olhos, desconsiderando suas palavras. – Você sabe como as pessoas distorcem os boatos – finalizou seu pensamento. Abaixei a cabeça e permaneci em silêncio. O máximo que consegui foi pronunciar as primeiras iniciais de seu nome. 134

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– Leo... – Deixa eu ajudá-la? – interrompeu. – Se você quer esquecer seu passado... Precisa de um novo presente. Algo que se torne mais importante e mais forte do que lhe aconteceu. Se privando de viver e se isolando do mundo não vai resolver o problema. – Acho que você tem razão – correspondi seu sorriso otimista e esperançoso. – Quer companhia para ir para casa hoje? Também estou de bicicleta – sugeriu. – Como sabe que venho de bicicleta? – A chave da trava caiu da sua bolsa e você nem percebeu que eu a coloquei de volta no seu armário. Suspirei diante da sua atenção e completei. – Minha última aula é de Biologia, com o Newton. Encontro você no bicicletário? – Fechado – finalizou confiante.

* Mais uma quinta-feira amanheceu clara para uma manhã de inverno. Eu cheguei cedo à escola para minha aula de Educação Física, pois eu sabia que o dia seria longo. Troquei de uniforme, vestindo a legging azul-escura e a camiseta branca de malha sintética que usávamos nos treinos. Eu estava sozinha no vestiário quando os passos de alguém adentraram pelo ambiente desfazendo minha solidão repentina. Virei-me rapidamente e Hailey surgiu diante dos meus olhos amarrando os cadarços de seu tênis, apoiada aos bancos centrais. Ela não pronunciou uma única palavra. Apenas me encarou, sorriu descaradamente com tom de escárnio e se retirou. O dia seria longo. Eu voltei para o ginásio, e a treinadora Roberts logo se aproximou de mim com um ar de satisfação. Um garoto da minha idade 135

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a acompanhava, e, pela sua postura hesitante, parecia um pouco encabulado. – Ei, querida. Quero que você conheça o Ian. Agora nós estávamos frente a frente. Ela sorriu para o garoto que era um pouco maior do que eu. Ele não fazia o tipo muito atlético, mas parecia ser ágil com suas pernas magras e compridas. Eu sorri de volta. – Ele será seu parceiro no time de vôlei. Não se preocupe que ele é um bom garoto. Não é, Ian? – Meg estava realizada com o feito. O garoto de pele claríssima e lábios corados sorriu um pouco sem jeito, enquanto olhava diretamente em meus olhos, mas, quando viu que eu não era tão assustadora, ficou mais à vontade. E até parecia curioso com o fato de se tornar meu parceiro pelos próximos dias. – Bom, vou deixá-los se aquecendo. A Cinthia e o Chris disputarão com vocês na próxima rodada. A treinadora Roberts se afastou ligeiramente até a outra equipe, deixando-nos sozinhos. – Então... Você é amiga do Leo, não é? – Ele puxou assunto deliberadamente enquanto andávamos até a rede de vôlei estendida no meio da quadra. – Oh, sim. Nós já nos conhecíamos fora da escola – respondi. – Ele fala bastante de você. Agora eu entendo o porquê. – Ian riu de um jeito bem particular. As sobrancelhas inclinadas em um tom de convencimento, como se tivesse matado uma charada. – E vocês são amigos – afirmei. – Desde a quinta série. – Sorriu. Eu prossegui com o bate papo: – Mas e aí ameaçaram enjaulá-lo em uma cela cheia de ratos para se oferecer como meu parceiro? Ele riu do meu humor sarcástico e logo contestou com sinceridade. 136

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– Não! – Abanou a mão, desconsiderando. – É que minha parceira oficial está fora por uns tempos, então... Decidi arriscar. Você não parece ter dificuldades com jogos. Lancei-lhe uma piscadela rápida, confirmando seu pensamento. – Mas... Isso não vai dar problema para você, não é? – Arregalei os olhos discretamente. – As garotas daqui são selvagens. Ele riu alto. – Relaxa. Minha parceira seria uma das únicas pessoas a não se importar, de verdade. Ela definitivamente não faz esse tipo. – Bom para nós. – Sorri de leve. Ian tinha a cor dos olhos quase igual a minha. Aquele castanho-claro que não é nem mel, nem avermelhado. Os cabelos dele eram bem escuros e contrastavam de um jeito atraente com sua pele clara e uniformemente sadia, sem marcas de acne ou qualquer outro problema dermatológico. Nós fizemos nossa série até derrotarmos o outro time por três vezes consecutivas. Ian, surpreendido com o nosso desempenho, ergueu suas mãos para que eu lhe correspondesse um toque de vitória. Acho que havíamos nos dado bem. A aula de Educação Física acabou, e eu segui de volta ao vestiário para recolher minhas coisas. Com medo de me atrasar para a aula de Literatura, apanhei meus pertences rapidamente e saí. Alguns alunos ainda estavam espreitados perto do portão do ginásio e me perguntei se eles matariam o próximo tempo. Com essa distração, derrubei minha mochila, que estava em minhas mãos, e a deixei cair, fazendo com que meu estojo de canetas saltasse longe e alguns livros se espatifassem no chão. Droga, droga, droga. Abaixei-me para rearranjar tudo de volta e a penumbra de alguém se agachando para me ajudar me desnorteou. Era um garoto com feições perfeitas e um tipo físico bem avançado para a idade. – Não se incomode comigo – tranquilizei-o, querendo poupá-lo do esforço. 137

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– Que é isso?! – Um sorriso meigo alastrou-se por seus lábios delicados. – Não é nenhum crime estar atrasada. – Os olhos do rapaz eram de um tom bem escuro de azul, protegidos por uma camada espessa de cílios. Sua voz tão harmoniosa me fez esquecer onde eu estava. Consegui enfiar tudo na bolsa e me levantei. O estranho fez o mesmo. – Obrigada pela ajuda. – Sorri. O garoto me correspondeu o gracejo com amabilidade e me retirei. Alguém poderia me responder de onde saiu aquele cara? Já fora da quadra apertei o passo e me concentrei no caminho para a sala da professora Santiago no segundo andar. Na hora do almoço, eu precisei ir até a secretaria para resolver uns problemas burocráticos. Cumprimentei Leo de relance que voltava do treino de futebol. Afinal, ele fazia parte da equipe do time da San Diego High School, como havia me garantido em conversas passadas. Segui para a aula de Biologia depois disso. Entrei pelo laboratório e caminhei em direção à última bancada. O professor Newton preparava o retroprojetor. Acho que veríamos alguma apresentação interativa hoje. Fiquei observando ele manusear o equipamento durante certo tempo, até perceber que alguém me chamava por sussurros. Era Ian. Ele estava sentado logo na primeira bancada, sozinho. – Senta aqui – dizia, apontando o lugar vago ao seu lado. Uni as sobrancelhas, confusa. Era comigo? – Vem logo! – aumentou um pouco o tom de voz e sorriu. Repuxei meus cadernos da mesa e andei entre os espaços das outras bancadas com discrição até alcançá-lo. – Eu estava começando a ficar aflito de ver você isolada naquele canto – confessou-me enquanto eu me ajeitava com cuidado à banqueta vazia. 138

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–Você me salvou dos monstros do reino do formol. Obrigada – sussurrei rapidamente com humor. Ian tentou não rir alto. Olhei para a grandiosa lousa branca, tentando localizar o senhor Newton diante da escuridão momentânea da sala. O professor me piscou satisfeito, quase que imperceptivelmente, mas eu percebi. Só eu percebi. Sorri em resposta. Eu, Leo e Ian nos encontramos no fim daquele dia letivo e decidimos voltar para casa juntos. Ele também morava no centro, só alguns edifícios depois do meu. Montados em nossas bicicletas, prestes a descer a rua da minha casa, eu decidi fazer uma pergunta em meio a um assunto aleatório. – Quem é o garoto forte de olhos azuis que estava no portão do ginásio hoje? – Você está falando do Seth? – Leo tentou supor. – Não sei o nome dele. – Dei de ombros. – É o Seth, sim. Ele é capitão do time de futebol – Ian confirmou a suposição. – Seu parceiro de time, Leo. – Ah... – Aquilo me soou clássico demais. – E é namorado daquela sua amiguinha, Hailey – Ian completou. Espantei-me. – Estou falando sério. – Ian não entendeu minha inconformidade. Eu exasperei os olhos, ainda incrédula. – Nossa. – Apertei os olhos, confusa. – É que ele tem um ar tão... pacífico. Não parece ser o cara babaca do time de brutamontes que trata todas as garotas como vadias. – Realmente. Conheço-o há anos e posso garantir que ele nunca foi disso. – Leonardo acabou por concordar. Ian apenas piscou, aquiescendo também.

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Parece que em certos momentos da vida nós nos sentimos como animais. Nascemos, somos criados e aprendemos a conviver em certo habitat, onde cultivamos nossa rotina, nos acostumamos com nosso bando, somos reconhecidos pelas outras espécies e nos encontramos em perfeita sincronia natural. E então, de uma hora para outra, algum caçador o enjaula em um local sujo e apertado, e, enquanto você está ali, pensando nas mínimas possibilidades de sobreviver e lembrando dos seus semelhantes, seu instinto mais agressivo desperta. E faz com que você se liberte. De repente, solto em um lugar desconhecido e completamente fora do seu habitat natural, você se sente como um estranho no ninho, um estranho na selva. Apenas um mero forasteiro, exilado. Pronto para ser devorado por seres maiores e mais fortes do que você. E, mais uma vez, seu instinto de sobrevivência volta a despertar. Era assim que eu me sentia. E meu instinto de sobrevivência permanecia afiado durante todo o tempo. Preparado para enfrentar e resistir a qualquer perigo proveniente daquela selva recheada de feras impiedosas, funestas e nocivas.

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CAPÍTULO NOVE

golpe baixo!

Aquela escola era estranha. Porém, os dias começaram a não se arrastar como anteriormente. E ir à escola era um pouco menos torturante. Mas, ainda assim, ela não passava de uma selva ameaçadora para mim. Ian era meu parceiro na aula de Educação Física e compartilhava comigo os mesmos horários de Espanhol e Biologia, o que nunca deixava de ser interessante, mesmo que só enrolássemos a professora Malasartes enquanto caçávamos palavrões no dicionário de espanhol, ou quando puxávamos o professor Newton de lado para discutirmos infindavelmente as vertentes da teoria da evolução, o que fazia ele se divorciar da programação da aula e nos poupar de tenebrosos exercícios e relatórios. E os almoços nunca mais foram solitários. Certo dia de janeiro, Leo, Ian e eu estávamos sentados na nossa mesa de sempre, rindo de alguma baboseira qualquer. Enquanto eu tomava meu refrigerante de laranja em meio a gargalhadas sinceras, meus olhos encontraram a presença daquele garoto bonito, o tal do Seth. Ele estava a umas três mesas à frente, ao lado de sua amada Hailey Cooper, e estava olhando para mim, como se quisesse chamar a minha atenção para um aceno. Eu levantei as sobrancelhas e sorri, correspondendo um cumprimento amigável. – Seth não tem medo de você. – Ian me cutucou. Ele disse isso como se quisesse dar ênfase a sua teoria de que as pessoas não tinham lá tanto medo de mim, como eu sustentava. – Ele parece ser gente fina – eu comentei entre dentes. Enquanto eu conversava com Ian, Seth me piscou amavelmente, como se fôssemos velhos conhecidos. Eu achei estranho. Não que eu quisesse insinuar um suposto flerte, não mesmo; mas aquela 141

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intimidade toda me levava a um só pensamento. Nesse intervalo de troca de olhares e acenos, Hailey conseguiu captar nossos últimos movimentos. Previsivelmente, ela se levantou da mesa injuriada, após lançar um olhar mortal para o Seth, que a seguiu em ato contínuo. Ian caiu na gargalhada com a cena. – Eu sempre pensei em fazer um reality show dessas coisas, sabia? – Ele continuava a rir com sua risada autêntica. – Mas garanto a você que isso vai parar no blog do TheCaversExposed.com. – Ian! – O golpeei de leve, mas isso não deteve a graça da situação. Leo também ria discretamente. Voltei a encarar a mesa, agora com a ausência de Seth. Percebi que havia outro pessoal sentado, logo reconheci Chris – um dos caras que às vezes jogava no nosso time de vôlei e sempre estava portando seus fones de ouvido –, e visualizei aquele garoto que eu já tinha visto anteriormente, o qual usava óculos estilo Ozzy Osbourne. Ao lado deles, havia duas garotas. Uma com os cabelos bem tingidos de vermelho, toda pequenina com trejeitos graciosos, e a outra moça tinha várias mechas descoloridas em um corte desfiado no cabelo, fora uma maquiagem negra e protuberante nos olhos. Ela vestia uma camiseta do Green Day, e mesmo sem sequer saber seu nome achei-a incrível. – Eles estão no nosso ano também? – confidenciei-me com Ian, inclinando o rosto para a mesa cheia de desconhecidos, ao menos para mim. Leo retomou a atenção quando o amigo ficou em silêncio e completou: – Só a ruivinha está no primeiro. Os outros estão no segundo, como vocês. – Ah, é. Ela foi vizinha da Rebecca há uns anos. É a May – Ian prosseguiu analisando os demais. – O casal estranho é Michael e Jodi. – Eles são namorados? – perguntei despretensiosamente. – Ainda não – Leo interrompeu, rindo alto. – Jodi gosta do Michael desde a quarta série. 142

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– Terceira – Ian o corrigiu rapidamente. – Que seja. – Leo revirou os olhos, prosseguindo: – Todo mundo sabe, menos ele. Mas, se bobear, Mike se faz de desentendido para não machucar a garota. – Sei como é. – Suspirei conformada, levando minha lata de refrigerante à boca, finalizando o último gole. O sinal ecoou alto pelo refeitório. Levantei-me, carregando minha bandeja até as lixeiras. Os meninos me seguiram. – Preparados para a sessão de tédio? Palestra sobre doenças sexualmente transmissíveis com o secretário de saúde no auditório. – Eu tô pronto é para dar aquela cochilada. As cadeiras do auditório são bem confortáveis. – Leo lançou e Ian correspondeu-lhe um toque de irmandade. – Então encontro com vocês lá? – propus. – Preciso pegar aquele trabalho da semana passada de Biologia que está no meu armário. – Vê se não se perde no meio do caminho – Leo advertiu com humor enquanto já girava o corpo em direção ao corredor externo. – Cuidado com os monstros do reino do formol – Ian zombou, já a certa distância. – E cuidado para não cometer nenhum crime nesse meio-tempo, sabe como é. Garota perigosa. – Ian piscou para mim, mostrando suas mãos abertas em forma de garras. Eu mostrei o dedo do meio, fazendo-o rir em seguida. Os dois sumiram quando eu virei para a direção contrária e os perdi de vista. Balancei a cabeça, ignorando meus recentes amigos loucos. Decidi ir até o banheiro para lavar as mãos rapidamente. Quando entrei, a mesma garota de cabelos modernos – a tal da Jodi – estava secando suas mãos com delicadeza. Os olhos dela me alcançaram, e, para minha surpresa, a estranha criatura sorriu para mim. Ela jogou o papel usado na lixeira e retirou-se em seguida. Fiquei perplexa por meros segundos e comecei a imaginar uma era de paz se anunciando diante daqueles prenúncios auspiciosos. 143

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Eu enxaguava minhas mãos com sossego quando ouvi alguém limpar a garganta vorazmente. Ergui a cabeça até o reflexo do espelho e a imagem selvagem e completamente furiosa da Hailey me saudou. Eu continuei com a minha serenidade, ignorando sua presença, mas ela queria mais. Ela estava decidida a pôr seus pingos nos meus is. – Quem você pensa que é, hein? Holly Armstrong – pronunciou meu nome invocando asco em cada sílaba. Eu respirei fundo, mantendo o silêncio. Nunca fui de levantar a voz para ninguém. Afinal, briga é ferramenta de otário. O desprezo sempre me pareceu uma arma mais eficaz para acabar com qualquer idiota. – Você se acha demais, não é? – Ela estava se irritando com meu silêncio. Ri de leve e ela prosseguiu com sua discussão solitária. Puxei algumas folhas de papel com naturalidade para secar minhas mãos. – Acha que por isso tem direito de meter a mão no namorado das outras? Eu sabia desde o primeiro dia que você daria problema por aqui. Não é isso que você faz? Dar problema por onde passa? Não aguentei. Interrompi suas injúrias, sem perder a compostura. – Escuta aqui! – Ergui meu dedo indicador. – Você, sua patricinha estúpida, não faz a mínima ideia de quem eu sou, das coisas pelas que passei e muito menos daquilo que penso. E se você é tão insegura em relação ao Seth, me desculpe, mas o problema não é meu. Ela ardeu em raiva. – Eu quero que você, aquilo pelo que passou e tudo o que pensa vão para o inferno. E fique longe do meu namorado! Ou eu... – Ou o quê? – Cortei sua fala, me impondo contra seu corpo. Ela era meros centímetros menor do que eu. Senti que seus músculos se contraíram por um momento, tensos. – Eu não tenho medo de você – continuei. Meus olhos agora oprimiam os seus com uma 144

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expressão desafiadora. – E ainda não acredito que estamos discutindo isso, mas você merece ouvir... Eu realmente não sei como o Seth aguenta você. E o que aconteceu no refeitório só mostra que qualquer outra garota é mais interessante do que você... Até a aluna nova encrenqueira da qual todos têm medo. Vá para o inferno. E saí banheiro afora, largando-a ofegante lá dentro. Duas garotas estavam recostadas aos bebedouros, e eu não demorei a reconhecê-las, Jenny e Olivia, as fiéis discípulas da senhorita Cooper. Elas me olharam espantadas, como se eu fosse uma assombração. Passo após passo, fui tentando conter a raiva interna. Aquela garota sabia tirar os outros do sério. Busquei meu trabalho de Biologia no meu armário e corri para chegar ao auditório. Eu abri a porta com cuidado quando vi que o grande anfiteatro já estava cheio. O professor Newton permanecia sobre o palanque em meio a uma palestra entediante sobre métodos contraceptivos. Ele controlava as imagens que passavam no telão por um pequeno controle. Analisei a plateia até localizar Leo e Ian, que estavam nos últimos lances de cadeiras, esgueirados nos encostos, lutando para não fecharem os olhos. Subi rapidamente a escadaria lateral e caminhei entre as últimas cadeiras vazias para me sentar ao lado deles. – Achei que você tivesse ido matar aula sem a gente – Leo disse aos sussurros. – Nem me fale em matar, passei perto de cometer um assassinato agora há pouco. – Ri baixo enquanto me sentava na cadeira vazia entre os dois. Ian bocejou profundamente e aninhou a cabeça em meu ombro. Peguei o celular do Leo e comecei a me distrair com algum aplicativo qualquer. Eu mal consegui prestar atenção no que nosso secretário de saúde falou durante longos minutos. Quando vi, Leo já estava fazendo o mesmo que Ian, cochilando confortavelmente em meu outro ombro. Até que ouvi meu nome ser chamado de um modo repreensivo. 145

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– Holly – chamou meu professor de Biologia pelo microfone. – Diga, professor.– Tentei parecer normal e escondi o celular no bolso de trás. – Holly, quer acrescentar algo sobre o assunto em questão? – Qual assunto, senhor Newton? Algum grupo de alunos riu em coro. – Sobre o que estamos falando, querida. Era tom de sarcasmo? Era. – Ah. – Olhei de relance para o telão. Eram fotos repugnantes de fetos interrompidos. – Eu não pretendo acrescentar nada sobre aborto. – É mesmo, senhorita Armstrong? As pessoas gostam de me provocar. Ele prosseguiu: – Então queira responder a outra pergunta. Deu uma pausa. Encorajei-o acenando a cabeça. – A senhorita imagina a porcentagem da incidência de aborto recorrente dentro da sua faixa etária? E a senhorita poderia me explicar o motivo deste fenômeno? O anfiteatro emudeceu subitamente. Ele ainda não estava satisfeito. Continuou: – E, por acaso, não seria por que os seus coleguinhas estão desinteressados demais com o assunto em questão para se prevenir e seguir à risca as célebres explicações cedidas pelas instituições? Cutuquei Ian e Leo ao mesmo tempo, advertindo-os da bronca. Eles mal prestaram atenção. – É... – Ajeitei-me na cadeira, reunindo as palavras certas na mente. – Posso ser sincera? Ele concordou rapidamente. – Por favor. – Eu acho uma tremenda perda de tempo vocês preparem esse material programático quando o que menos as pessoas da minha idade estão interessadas em fazer é ouvir. 146

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Silêncio. Algumas pessoas se entreolharam e um burburinho baixo se instaurou brevemente. Professor Newton limpou a garganta, discretamente abespinhado. – Ah, então o que a senhorita sugere? Existe alguma coisa que realmente vocês levem a sério? – Ah, professor. Também não é motivo para perder a fé na humanidade. Ainda não. – Sorri. E um grupo maior de alunos da minha turma riu ligeiramente. Continuei: – Para mim seria tão mais fácil se todo mundo pudesse conversar abertamente sobre isso com pessoas de verdade, histórias de verdade. Teorias de livros e estatísticas não chegam nem perto de esclarecer metade das dúvidas de muita gente. Acho que vocês precisam aprender a ouvir. Tenho certeza de que todo mundo aqui adoraria discutir essas questões abertamente sem tantos termos técnicos. Porque na vida real nada é técnico, nem tão simples como esses slides manjados que vocês fazem questão de expor todos os anos. – Sorri de lado. – Se é que o senhor me entende... Professor Newton pôs suas mãos para trás e trocou olhares surpresos com o doutor Swan, o nosso secretário de saúde. – É uma boa proposta, senhorita Armstrong. – Olhou-me conformado. – É algo que colocarei em pauta no próximo bimestre. – Terminou a frase com um mínimo sorriso no canto dos lábios. Naquele mesmo instante, alguém abriu a porta do anfiteatro. Todos viraram a cabeça, inclusive o professor. Era a coordenadora Means. Newton pediu licença rapidamente. Ao lado dela, estava nosso diretor. Que, bem, eu não me lembrava do seu nome. Com a interrupção da palestra, os alunos deram início a um ligeiro falatório. E então Leo despertou por completo. – Perdi alguma coisa? – perguntei ao voltar a sua posição normal. – Nada de muito importante. Só uma bronca. – Desdenhei, respondendo a sua pergunta. Ian bocejou alto. – Vai rolar uma aula prática ainda? 147

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– Cala a boca, Ian. – Golpeei-o de leve. Nós três rimos. – Senhorita Armstrong. Meu nome ecoou como uma sirene pelo ambiente. Todos pararam com o falatório repentinamente. Avistei a fonte do chamado. Era a coordenadora. – Pode fazer o favor de nos acompanhar? – conduziu ela com sua voz plácida. Entreolhei-me com os meninos, completamente confusa. – O que você aprontou, garota? – Leo me analisou, buscando uma suposta reação minha. – Ainda não sei. – Minguei os lábios. – Acho melhor eu descer. Encontro vocês na saída, caso eu demore demais. Enquanto eu descia as escadarias, senti uma tensão permear a atmosfera. O diretor me olhava com cautela, e a senhora Means, completamente decepcionada. Havia dois grandalhões com uniformes de segurança que os acompanhava. Fiquei aflita. O senhor Turner estava mais perdido do que eu em relação à convocação insurgente. – O que está acontecendo? – questionei quando passamos pelas portas do auditório. Ninguém soube me responder. Eles mal olhavam para mim. Depois de certos minutos torturantes naquele silêncio esfolador, percebi que estávamos seguindo o caminho para o prédio administrativo. – Vocês realmente não vão me dizer o que está acontecendo? Eu disse, encarando o grandalhão de pele escura quando paramos em frente da sala da coordenação. Ele abriu a porta e permaneceu ali como uma estátua. – Queira entrar, Holly. Ordenou Ruth, ao passar ao meu lado, aproximando-se de sua mesa. Não tive outra saída fora segui-la. Ouvi a porta fechar-se atrás de mim. Logo me senti enclausurada naquele ambiente inquiridor. 148

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Ela sentou-se atrás da mesa de carvalho polida, e eu me instalei na poltrona a sua frente com um cuidado desnecessário. A expressão dela era algo inédito para mim. Uma decepção desmedida contornava seus olhos e seus lábios. – Eu acabei de falar com a sua mãe. – Analisou-me profundamente. – Ela fez a mesma pergunta que eu farei para você agora. – As palavras saíram cansadas, inconformadas. Suas sobrancelhas se uniram. – Como você pôde fazer isso? Meus olhos estagnaram à imagem da senhora baixa, com seus óculos de grau e os cabelos muito bem-arranjados em forma de coque no topo da cabeça. Meneei os olhos, completamente confusa. – Eu... eu realmente estou tão perplexa quanto a senhora. Ela pareceu indisposta com o meu comentário. Suas mãos estavam unidas à frente do rosto, como se não soubesse como proceder à situação. A senhora Means respirou fundo até recolher o telefone do gancho e discar algum ramal. – Carlos, venha até aqui, por favor. Ela desligou, e em meio segundo o grandalhão abriu a porta, os olhos queimando em minha direção. – Venha, senhorita Armstrong. – Sua voz era tão ameaçadora quanto sua figura impositiva. Oscilei os olhos entre os dois. A senhora Means mal levantou o olhar para me encarar, só balançou a cabeça, rogando para que eu o acompanhasse. Eu estava começando a me assustar com aquelas atitudes. Estava me sentindo uma gângster. Cheguei ao lado externo da sala, e o segurança fechou a porta. Ele apoiou sua mão em meu ombro e estremeci. Não entendi. Compaixão ou demonstração de autoridade? Só sei que não gostei. Com o gesto, ele me guiou pelo corredor durante mais alguns passos, alcançando a porta da diretoria, que por ocasião do momento estava aberta. O segundo agente de segurança estava lá, aguardando-nos ao lado da porta. 149

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Então tudo aconteceu muito rápido. Foi algo que saiu completamente do meu controle. No instante em que alcancei a visão completa da sala, a presença de Hailey sentada à poltrona com uma postura de vítima me horrorizou. Seus olhos me fuzilaram, queimando em pura insolência, jogando sobre mim o grande fardo da culpa. Levou meio segundo para eu perceber os vastos hematomas recentes que enodoavam a pele clara de seu rosto. E os olhos pequeninos, tremendamente inchados, como se ela tivesse sido surrada por mãos fortes, repetidas vezes. Minha mente clareou numa fração de segundo, juntando velozmente os fatos em uma linha de raciocínio óbvia. O sangue subiu para meu rosto de uma forma doentia. Minhas veias pulsaram loucamente sob minha pele. Surtei. – SUA... VADIA! – Avancei pela sala enquanto urrava. Mãos me detiveram em um átimo. – Você sabe que eu não encostei um dedo nessa sua cara nojenta! COMO VOCÊ PÔDE FAZER ISSO? – vociferei enquanto meus nervos dilaceraram minha respiração, o ritmo do meu coração. Mesmo atrás de sua máscara de pobre coitada, eu podia ver em seus olhos o ar triunfante de estar conseguindo me foder brutalmente. – Você está vendo, senhor Neil? Essa garota é uma ameaça para mim, para esta escola! – dialogou com o diretor, que estava aterrorizado com a minha reação. – Cale a sua boca! – eu a interrompi, gritando. – Como você pode ter tamanha audácia de mentir descaradamente? Quem você forçou a fazer essa obra de arte na sua cara, hein? Aquelas suas amigas cretinas? Foi? Sua desgraçada! – Agora sim eu estava imaginando minhas mãos descendo violentamente sobre seu rosto com força. Enquanto eu tentava me soltar, os seguranças, mesmo com seus músculos protuberantes, faziam certo esforço para deter a minha raiva descontrolada. Foi quando começaram a me arrastar 150

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para fora, mesmo eu relutando arduamente. Eles batalharam contra minha obstinação. Eu podia ouvi-la profanando outras besteiras lá de dentro. – Você vai voltar para o lugar da onde nunca deveria ter saído, Armstrong! Os seguranças ainda me arrastavam pelo corredor quando cedi a força dos meus músculos e me joguei no chão, terrivelmente exausta. Eu mal sentia meus braços. – Chega! – implorei. Meus olhos cheios de lágrimas começaram a doer. Então chorei em silêncio. – É, acredito que você não mediu as consequências quando decidiu fazer aquilo com a garota – articulou o menor, com sua pele rosada. – Você, cale a boca também! – gritei em meio a soluços desordenados. – Vocês são outros estúpidos! Por que preferem acreditar nessa patricinha idiota? – Eu ofegava desesperada. Arrastei-me até a parede de tijolos do corredor, protegendo-me com as pernas encolhidas. Eu queria desvanecer. Os dois ficaram ali na minha frente, sem saber o que fazer, em súbito silêncio. Apenas ouvindo meus arquejos, meus soluços conturbados. Na minha consciência, eu imaginava como aquilo poderia terminar. Se de fato ela conseguisse o que queria, eu fatalmente seria expulsa da escola e, na pior das hipóteses, poderia responder criminalmente pela suposta agressão. Alguém teria de acreditar em mim. Minha mãe sempre soube que eu jamais cometeria o extremo de atacar alguém. Eu nunca tive históricos em relação a isso. Como aquela garota estúpida poderia ser capaz de machucar a si própria só para prejudicar alguém? Que mundo era aquele? Quem acreditaria em mim? Quem teria visto que larguei Hailey naquele banheiro sem nenhum arranhão? Só aquelas imprestáveis garotas Jenny e Olivia, que jamais trairiam sua líder formidável. Eu fui surpreendida por uma voz, em meio aos meus questionamentos. 151

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– Holly. – Era o diretor Neil, a alguns metros de distância de mim. Ele pronunciou meu nome com cautela. – Sua mãe já está aqui. Levantei-me rapidamente, recuperando o fôlego. Funguei e limpei as lágrimas do rosto . Os seguranças se aprumaram e passaram a me seguir, mas não tocaram em mim. Foi quando observei de relance meus braços descobertos. Marcas avermelhadas contornavam a pele. Uma sensação de dor começou a se atenuar diante dos puxões. Limpei a garganta e apertei o passo para alcançar o diretor. Minha mãe me aguardava na recepção da secretaria. Sua postura era apreensiva. O jaleco branco estava dobrado sobre seu braço. Ela olhou para mim incrédula por um instante e no momento seguinte se aterrorizou quando viu meu rosto mergulhado em dor e lágrimas. Mamãe se levantou e correu até mim, envolvendo-me em seus braços. – Mãe, você precisa acreditar em mim! Só você sabe que eu jamais faria isso com alguém... Acredite em mim, por favor – atropelei minha defesa em meio aos meus arquejos. Qualquer outra pessoa no mundo não teria entendido sequer uma palavra. – Minha querida, acalme-se – sussurrou ela, quase que inaudivelmente. – Que diabos está acontecendo aqui? – perguntou minha mãe furiosa aos seguranças e ao diretor enquanto eu me aninhava em seu abraço. – Eu quero ver a senhora Means. Agora. – A condição dela foi urgente. Houve uma pequena pausa, mas o senhor Neil tratou de atender suas determinações. – Venha por aqui, doutora – ele disse. – Holly. – Ela segurou meu rosto, analisando-me com aqueles seus olhos afetuosos. – Espere aqui. A mamãe vai resolver tudo, está bem? Concordei aflita com a cabeça e ela seguiu com seus passos pelo corredor. Os toques familiares dos seus saltos diminuíram gradualmente. Os seguranças permaneceram ali comigo, como se eu estivesse 152

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sob custódia. Respirei fundo e tentei imaginar que houvesse algo que minha mãe pudesse fazer. Sentei-me em uma das cadeiras da recepção, completamente derrotada. Coloquei as mãos à frente do rosto, implorando por uma misericórdia. Um silêncio transcorreu por alguns minutos até que eu senti alguém se aproximar cavalheiramente. – O que você acha de esperar na minha sala? Girei o corpo para descobrir quem estava falando comigo. Era um senhor, com uns bons cinquenta anos. Olhos bondosos e voz afável. – Eu sou o conselheiro Asher. Desculpe não me apresentar. – Houve uma pausa até eu absorver as informações. – Venha, fique na minha sala. – Os olhos do senhor me encararam durante meros instantes, talvez tentando me passar credibilidade. Relancei os olhos para os seguranças, em um pedido involuntário de permissão. Eles nada obstinaram. Então decidi seguir o sujeito. Nós entramos em um gabinete pequeno, mas confortável. Perguntei-me se ele era algum tipo de psicólogo. Só uma pequena consideração. Eu odeio psicólogos. Todos eles. Sempre acham que possuem a resolução para todos os nossos problemas. Ah, fala sério. Eles sequer são médicos. – Então você é a Holly. – O senhor sentou-se a sua mesa de escritório de tampo de vidro. Tantos papéis e objetos interessantes por cima me desvirtuaram do seu comentário perturbador. Demorei a assimilar tudo aquilo e poder dar início a um diálogo. – É. Eu acho que ainda sou – respondi por fim. Ele, inconvenientemente, riu do meu humor seco. – Não se preocupe. Todos nós somos humanos. Cometemos erros. Meu sangue ferveu levemente. – Só para esclarecer, eu não fiz nada. – Fui categórica. – Ok – disse ele, tentando acalmar meus nervos irascíveis. – Então, se você não fez nada, como poderia explicar todas aquelas 153

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marcas na garota e o fato de ela estar afirmando com toda a certeza de que foi você que as provocou? – O senhor frequentou o Ensino Médio? – perguntei friamente. – Claro, querida. Sua placidez estava começando a me irritar. – Acho que isso já explica a sua pergunta. – A escola está sendo difícil para você? – recostou-se a sua confortável cadeira, como se estivesse se preparando para altos papos. Não gostei. – Já passei coisas piores, pode acreditar. – Pisquei-lhe com sarcasmo. – Quer falar sobre essas coisas? – Não mesmo. – Quer me explicar o que anda acontecendo entre você e Hailey Cooper? – Ela me odeia voluntariamente, assim como noventa por cento das pessoas desta escola. Só por haver boatos sobre um suposto passado transgressor meu. E também porque ela me acha uma ameaça... – Comecei a rir, um pouco nervosa e também inconformada, enquanto imaginava a hipótese. – Ela nos contou que você... – Senhor Asher recolheu uma folha de papel e em seguida posicionou os óculos de grau, para ler determinadas anotações. – Abre aspas: “Estava dando em cima do namorado dela”. – Isso é ridículo – rebati no mesmo instante. – Eu nem conheço esse garoto direito. Ele só me cumprimentou inocentemente hoje na hora do almoço. Isso tem uma grande diferença. Eu deveria imaginar que ela seria capaz de fazer isso; mas sabe como é, a gente insiste em dar segundas chances para pessoas erradas. – É, acho bom o senhor Neil saber disso. Espere só um minuto, querida. – Ele se levantou com cautela, os olhos um pouco abismados. 154

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– Vá em frente. – Respirei fundo e recostei-me à poltrona, vendo o conselheiro cruzar sua sala apertada e se retirar porta afora. Mas que inferno. Perguntei-me quanto tempo eu teria de suportar aquilo. E então os minutos seguintes foram uma eternidade. Até que eu decidi sair, chegando ao corredor vazio, tentando encontrar um sinal de discussão, de voz, de algo que pudesse me dar uma pista do que estava acontecendo. Ouvi risinhos discretos se atenuarem, até chegarem com precisão em meus ouvidos. Eu sabia que a enfermaria era ali do lado. Caminhei, passo atrás de passo, enquanto aquele timbre de voz estridente se descodificava na minha mente. Hailey estaria por ali com suas amigas, fatalmente. Aproximei-me devagar da enfermaria, avistando sua silhueta magra, recostada a um catre, enquanto emitia longas gargalhadas com as amigas a sua volta. Meu coração socou minha costela e senti meu sangue ferver no rosto. – Olha só quem eu encontrei por aqui! – fuzilei-as. Elas paralisaram, sem emitir nenhum som, sem reagir com qualquer movimento. Três figuras deprimentes congelaram-se a minha frente. Prossegui: – Se não é a cara de pau do ano! E veja só, suas duas fiéis escudeiras. Espero que vocês tenham se divertido batendo na cara da melhor amiguinha de vocês... – Dei um passo à frente, adentrando a sala inabalavelmente imaculada com suas paredes brancas. Hailey deu um grito abafado, horrorizada. – Conte-me, sua patricinha estúpida! Como foi apanhar das suas amigas propositalmente, hein? Ela deu um grito mais longo, espremendo-se contra o pequeno espaço do leito, em um ato de proteção. – Eu quero ver a sua cara quando a verdade vier à tona! E então será você a nunca mais colocar os pés nesta escola! 155

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– Ei, garota! O que você está fazendo aí? Inclinei a cabeça para trás, relançando os olhos pelo corredor, até encontrar os dois seguranças se aproximando rapidamente. Eu levantei as mãos, demonstrando minha pacificidade. E dessa vez eles não ousaram me arrancar à força. O moreno grandalhão apenas recostou sua mão em meu ombro e eu cedi aos desaforos imediatamente. O outro tentou acalmar as garotas lá dentro e fechou a porta de acrílico fosco para arrefecer os ânimos. Logo, nós três ficamos do lado de fora, quase recostados à parede. O agente de segurança maior parecia caçar a atenção dos meus olhos. Só depois percebi que ele estava prestes a me dizer algo importante. – Olha, se você realmente está dizendo a verdade... – Seu dedo indicador pôs-se com prudência à frente do meu rosto. – Não pode perder a razão. Pense que talvez seja essa a intenção da garota. Desestabilizá-la. Eu retirei uma boa quantidade de ar dos pulmões e fitei o chão, ficando em pleno silêncio. – Pelo jeito você já vai ser liberada. – Ele voltou a dialogar amigavelmente. – E por enquanto ninguém está duvidando de ninguém, entende? Balancei a cabeça, concordando. – Aguente firme. Sua mãe está fazendo o melhor por você. E a senhora Cooper também está aí – o segundo segurança de feições delicadas sob a pele rosada me informou com uma voz tranquila. – Venha conosco. O diretor Neil quer trocar uma última palavra com você. Os dois homens me acompanharam de volta ao gabinete do senhor Neil. A sala estava cheia, e era muito pequena para isso. Em sua mesa, o diretor repousava sobre a cadeira, e nas poltronas a sua frente estava minha mãe, acompanhada da presença de uma mulher desconhecida e da coordenadora Ruth. Então deduzi quem era a suposta desconhecida. Era simplesmente a senhora Cooper. 156

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A mãe da Hailey era jovem e até arrisquei que ela fosse da mesma idade da minha mãe. Ela tinha um corpo bonito, sem ser tão esguio quanto o da filha. A situação tinha realmente a aturdido. Ela não conseguiu me olhar nos olhos, como se estivesse envergonhada com o conflito. Dava para perceber que ela queria sair dali antes de todo mundo. Ela ostentava algumas joias onerosas nos dedos da mão. Um colar de pérolas ao redor do pescoço elegante e os cabelos cor de chocolate em um longo rabo de cavalo denotavam seu ar de opulência. Eu fiquei recostada ao batente da porta da sala. Um dos seguranças adentrou pelo ambiente, adicionando mais uma cadeira. Hailey passou por mim com uma expressão de puro desalento forjado e sentou-se na cadeira da ponta, ficando ao lado da mãe. A coordenadora Ruth me observava como se quisesse sugar cada expressão minha, querendo captar a verdade – ou até mesmo a mentira – em meus olhos. – Nós temos um grande problema aqui. – As palavras foram pronunciadas de forma lenta e pesada pelo diretor Neil. Era evidente que o impasse estava lhe causando grande frustração. – Como se trata de uma situação delicada, eu acho bom a senhora Cooper levar Hailey para dar um jeito nesse rosto. – Ele inspirou e expirou profundamente. – O que posso fazer por enquanto é apenas uma suspensão. Hailey vangloriou-se com o feito. – Para as duas – completou o diretor Neil, olhando diretamente nos olhos venenosos da garota. Eles de repente se exaltaram, completamente incrédulos. Seus lábios se separaram com desespero, querendo contestar a decisão. A senhora Cooper recolheu a mão da filha rapidamente, em um ato repreensivo, e ela não prosseguiu com o protesto, embora sua expressão estivesse mergulhada em indignação. O rosto do diretor voltou-se para mim. Os olhos cansados por trás dos óculos me analisaram intensamente. 157

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– Holly, pode ir buscar seu material. Sua mãe também já vai levá-la para casa. Carlos e Guy a acompanham até o seu armário. Eu descruzei os braços e abaixei a cabeça, soltando um inaudível obrigada por meio dos lábios. O último detalhe notório que passou pelos meus olhos antes de deixar a sala foi o olhar da minha mãe, afetuoso e satisfeito. – Ela não ficou nem um pouco contente com o resultado. Não acha? – murmurou Carlos, na tentativa de puxar assunto enquanto caminhávamos pelos corredores ermos. O segurança moreno parecia me compreender. – É – correspondi o diálogo, por mera função fática. Eu estava me sentindo desmontada demais por dentro para sustentar qualquer tipo de posicionamento. Recolhi meu material com calma. Os dois agentes me esperaram sem reclamar, talvez fazendo uma mesura do quanto o incidente havia me desacorçoado. Passei as alças da mochila nos ombros e retornamos o caminho de volta. Alguns pensamentos insignificantes povoavam minha mente quando percebi que estávamos próximos do banheiro feminino. O mesmo lugar onde alguns instantes atrás eu havia esbarrado com Hailey. “Se as paredes pudessem falar” – lamentei comigo mesma. Meus olhos varreram o lugar como uma atitude irrelevante. Numa fração de segundos, eles captaram um detalhe contundente. – Oh, esperem. Eu simplesmente não me movi. Tudo começou a fazer sentido. – Câmeras – murmurei, e soou mais como uma conversa interna do que um comentário. Os dois homens não compreenderam. – Câmeras – repeti, de forma decisiva. Eles se entreolharam. – Onde foi mesmo que aquela garota estúpida disse que eu a ataquei? – Instei a linha de raciocínio, piscando na direção das duas câmeras posicionadas nas colunas à frente da entrada dos sanitários. 158

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Carlos olhou para mim, inclinando a cabeça levemente, depois voltou seus olhos para o colega e logo nós três compartilhamos um pensamento unânime. – Eu quero ver as gravações – conclui. Cheguei deslizando pelos corredores até entrar ofegante na sala do diretor Neil com meu material entre os braços. – As câmeras. – Parei para tentar recuperar o fôlego. – As câmeras. É isso! – Apoiei a mão livre ao batente. Todos me olharam transtornados. Prossegui, logo após limpar a garganta. – Têm duas câmeras em frente dos sanitários femininos. As gravações mostrarão a verdade! – Meus olhos suplicantes pularam de expressão em expressão. Minha mãe continuava calma, o diretor Neil parecia não acreditar, Ruth permaneceu boquiaberta e Hailey, bem, Hailey quis se vaporizar naquele momento. A pele clara do seu rosto pareceu desaparecer de tão pálida. Mas acho que só eu percebi. – Ok, Holly – disse senhor Neil com sua voz tolerante após o súbito silêncio. – Vou requisitar as fitas ainda hoje. Abaixei a cabeça, agora sentindo o oxigênio penetrar cada espaço do meu pulmão, refletindo um ritmo sadio de batidas cardíacas. Oxigênio da salvação. Oxigênio da esperança. – Muito obrigada – agradeci aliviada. – Eu vou deixá-la em casa, querida. Preciso voltar ao hospital. Minha mãe explicou-se enquanto dirigia calmamente pelos caminhos que nos levavam para casa. Eu olhava distante pelo para -brisa até me sentir um pouco envergonhada com a situação. – Desculpe, mãe – falei baixinho. Ela não respondeu. Relancei os olhos para ela, imaginando que minhas lamentações tivessem ficado no vácuo. Seus lábios sorriram brevemente, como se banalizasse a necessidade das minhas desculpas. 159

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– Mãe, você acredita em mim, não é? – Minha voz e meus olhos agora suplicavam por uma resposta. – Claro, querida – confirmou finalmente, após um pequeno período em silêncio.

* Chegar em casa foi... desolador. A solidão parecia a mais nova etapa do meu processo de tortura. Joguei-me em minha cama, completamente exaurida emocional e fisicamente. Alcancei minha mochila e recolhi meu celular, por mero reflexo. Leo havia me enviado seis mensagens de texto. Perguntava por que todo mundo estava dizendo que Hailey tinha conseguido me colocar em cana; e por que todo mundo estava caçoando de mim, dizendo que me faria visitas na prisão. Queria que eu lhe retornasse, queria saber se eu estava bem. Ian também me mandou duas mensagens. Pensei que era brincadeira o lance do assassinato. Oh, mas olha só de quem eu sou amigo. Da garota perigosa. Acho que ri ao ler a primeira mensagem. Prossegui abrindo a segunda. É sério mesmo que você encheu a cara da Hailey de alegria? Pô, se for realmente verdade, mancada sua não ter me chamado para ver. Seria... divertido. Respondi e, com meu nervosismo transbordando, acabei usando muita ironia e sarcasmo. É, estou na cela agora. Pode me trazer algumas revistas pornôs e barras de snickers? Recomecei a teclar outra mensagem. Pô, Ian! É claro que não bati na Hailey. Sério. Confesso que tive uma breve discussão com ela no banheiro antes de ir para o auditório, mas me lembro muito bem de não ter encostado um dedo naquela cara nojenta. 160

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Amanhã eu terei o prazer de desmascarar a vadia. Avise o Leo que eu estou bem, antes que ele enfarte ou chame o serviço secreto. Não tenho condições de falar com ninguém. Joguei meu celular de lado. Meus olhos esquentaram com a sensação de impotência. Não só impotência, mas também inconformismo. Saber que todo o sofrimento poderia ser evitado, pelo simples fato de eu ainda estar morando em São Francisco, estudando na minha boa e velha escola, convivendo com meus bons e maravilhosos amigos... Os rostos deles ficaram claros na minha mente, e foi difícil não resistir à sensação de aprisionamento dentro do peito. Difícil não conter as lágrimas. Isso só provava – ou de um jeito mais efetivo, esfregava a verdade na minha cara – que eu estava no lugar errado. Levantei da cama e corri até minha prateleira. Havia uma caixa de papelão colorido na qual eu guardava coisas aleatórias de que eu nunca permiti me desfazer. Lá dentro ainda havia uma agenda antiga, do tempo que eu ainda sabia o que era acreditar nas pessoas. Havia o número de telefone de algumas das minhas melhores amigas. Retirei o telefone do gancho e disquei o número da casa da Danie, rezando para que ainda fosse o mesmo. Tentei caçar na mente palavras para poder dizer enquanto os toques se sucediam. – Alô. Era ela. Eu jamais me esqueceria do seu doce timbre de voz. – Alô? – falou novamente, diante do meu silêncio. As palavras que eu havia achado para dizer simplesmente não saíram. Eu só absorvi o efeito da sua voz dentro do peito e funguei levemente, tampando a boca para abafar os soluços. – Alô... – repetiu inocentemente, com um ar de preocupação. E eu não consegui dizer uma palavra. Uma única palavra. Logo comecei a identificar uma segunda voz pela linha. – Quem é, Danie? – A voz feminina dizia. 161

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– Não sei, mãe. Tá mudo. Eu poderia imaginar aquele olhar confuso da Danie quando eles tentam captar algo estranho. – Ah, mas quantas vezes eu já falei para o seu pai comprar um telefone decente com identificador de chamadas? – A voz da senhora Andrade ficou mais aguda. – Desliga esse telefone, Danie... Ai, esse pessoal que não tem o que fazer, viu... E então ela desligou. E eu senti que minhas chances haviam acabado. Era como se a linha que me ligasse às pessoas e às lembranças do meu passado tivesse sido cortada. Não havia como recuperar uma... conexão. Minha vida possuía um divisor de águas, e as duas realidades não se comunicavam... para meu maior pesar. “Golpe baixo é quando pessoas desvencilhadas de qualquer princípio de humanidade o chutam e conseguem derrubá-lo no chão, no momento em que você ainda está tentando recuperar o fôlego para se levantar da última queda.”

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CAPÍTULO DEZ

a garra dos inocentes Eu cheguei cedo à escola na manhã seguinte. Mamãe me acompanhava em silêncio. Senhor Neil não tinha muitas palavras para trocar comigo, apenas o necessário do necessário. – O responsável pelas filmagens está esperando por você na sala de segurança. Talvez ajude se você der uma olhada – disse ele, sem nenhuma emoção. Mamãe sugeriu que eu fosse sozinha. O espaço designado para a central de filmagens da San Diego High School era estritamente pequeno e mal iluminado. Aparelhos de TV em operação se espremiam em uma larga bancada, sendo a única fonte de luz formal do lugar. O rapaz que analisaria as imagens estava me esperando sentado em frente a uma dessas telas. Eu fechei a porta com cuidado e me ajeitei na cadeira, ficando ao seu lado. O sujeito pediu permissão para começar, e eu aquiesci com a cabeça. A gravação deu início no marco das 12h20. O ângulo da câmera captava uma vista aérea da entrada dos banheiros femininos. Ele acelerou o período da hora do intervalo, em que o fluxo de pessoas era maior; e, então, começou a cessar. Até que eu vi a imagem da Hailey entrando pela porta, sozinha. – Diminua o ritmo – solicitei. Segundos após a sua entrada, Jenny e Olivia seguem a amiga. Passados meros minutos, outra garota entra também. E ela não me era estranha. – Você conhece essa menina? – o rapaz de voz miúda perguntou enquanto colocava o teipe novamente para rodar. Analisei com precisão a garota de camiseta preta e cabelos descoloridos com mechas irregulares. 163

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– É a Jodi! – A revelação me exaltou. – Jodi Reamer, do segundo ano. – Lembrei-me da sua presença quando entrei naquele banheiro pela última vez. A lembrança do sorriso dela meneou em minha mente. O vídeo prosseguiu por alguns instantes. Jenny e Olivia saem, rumando no sentido dos bebedouros, que ficavam próximos à porta. – Essas garotas saem rapidamente, e chega o momento em que você entra. E sua colega Jodi se retira logo depois – confidenciou o responsável das filmagens para mim, adiantando o teor da gravação. Pelas imagens não dava para ver exatamente se eu descia o braço na Hailey ou não. Só se enxergava os movimentos dos nossos pés, inertes. Apenas estávamos intactas, paradas uma em frente da outra, pacificamente. Então eu saio nervosa. Passo pelas garotas, e as duas voltam a adentrar o banheiro, calmamente. As três somem lá dentro. E o tempo passa. Exatos 18min20s, até que as três saem juntas, formosamente, mas com uma única diferença: Hailey está com o rosto deformado por grandes hematomas. O funcionário incitou um posicionamento óbvio. – Se você fosse vítima de uma agressão, esperaria 18 min para buscar ajuda? Eu ergui a sobrancelha, mostrando minhas dúvidas e estabelecendo o ponto fraco do plano da Hailey. Ele acionou seu rádio, imediatamente. – Carlos, quero que você localize uma aluna chamada Jodi Reamer. Segundo ano. Mande-a para cá. Agora! A transmissão do rádio foi cortada, e nós dois permanecemos em silêncio durante alguns segundos. Ele me fitou firmemente. – Garota, se você estiver realmente falando a verdade... Posso lhe garantir que essa Hailey arrumou uma boa sarna para se coçar. 164

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Correspondi o olhar. Eu o encarei com uma expressão óbvia. Estava muito claro que o plano dela estava a um passo de ser descoberto. Enquanto aguardávamos a chegada de Jodi, Hailey já demonstrava seu desespero revelador. Eu permaneci do lado de fora, enquanto ela curtia seus últimos segundos de glória discutindo com o nosso diretor. Eu apenas assistia a sua decaída pelo vidro da porta. – Isso é ridículo! Vocês deveriam se preocupar em puni-la! E não em distorcer a realidade para jogar a culpa em mim! – Hailey se desestabilizou com o senhor Neil. – Não estão vendo minha cara? – Ela repuxou a pele do seu rosto para forçar sua imagem desfigurada. – Foram as mãos desse monstro que me deformaram! – bradou, apontando o dedo para o lado de fora, como se tal dramatização fosse corroborar para que a grande mentira não fosse desmascarada. – Calma, querida. Tudo isso só vai confirmar que você está falando a verdade – sua mãe a tranquilizou e falou rapidamente perto de seu ouvido, recolhendo a mão da filha. Jodi já se aproximava. Entrei de fato na sala, sentando-me ao lado de minha mãe, nas poltronas recostadas perto da parede da porta. Hailey respirava fundo para controlar seu ritmo cardíaco acelerado, e seus olhos estavam cegamente inflamados de ódio. Eles queimavam em minha direção. Ela até tinha um plano, mas não contava com a minha sagacidade. Então, a menina de cabelos modernos chegou. Hoje ela vestia uma camiseta branca com a imagem do Che Guevara. Os olhos possuíam aquela ousadia atenuada pelas linhas grossas do delineador. Ela era bem bonita com suas feições maduras para a idade e um belo nariz bem centralizado no rosto levemente bronzeado. A garota se mantinha complacente, contudo não deixava de estar incomodada com a presença de tantas pessoas com expressões 165

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inquiridoras numa sala tão pequena. Hailey mal respirava. Eu sentia. Só eu sentia. Achei nobre da parte da coordenadora Ruth sugerir que todos nós permanecêssemos para ouvi-la. Não haveria segredos, haveria? E foi o que aconteceu. Jodi sentou-se na poltrona em frente do diretor Neil. Ela encarou Hailey com pena por alguns segundos e tudo pareceu óbvio para todo mundo. Disse por fim: – Eu não posso ser injusta, Hay. – Sua voz foi serena ao encarar a colega. – Jodi... – Os olhos de Hailey suplicavam-lhe piedade. Ruth pareceu recolher o fio da história. – Eu não posso ser injusta, Hailey – repetiu, vagarosamente. – Nunca concordei com esse plano, e você sabe disso. Silêncio. Eu vi os olhos da Hailey perderem o brilho e estagnarem em uma expressão de pânico. Jodi prosseguiu após respirar fundo: – Quando eu entrei no banheiro... – tentou fitar os olhos inconformados da coordenadora Ruth por um momento, talvez para demonstrar a credibilidade da delação – ouvi as três conversando sobre... – Ela reuniu coragem para terminar a questão contundente – provocar a Holly. Elas tinham certeza de que se a irritassem de alguma forma, fariam com que ela perdesse a razão e partisse para cima da Hailey. Mas não foi bem assim. – Jodi de repente me encarou. – Eu não a conheço, Holly. Mas eu sempre imaginei que você não fosse capaz de um ato desses. E sei que não é. Muitos da nossa turma já viram como a Hailey lhe trata e você nunca ousou revidar no mesmo nível. Abaixei a cabeça. Ela continuou, muito tranquila: – E então elas decidiram partir para o plano b: causar os hematomas por conta própria e acusá-la. – Jodi... – Era um projeto de voz. Hailey derramou seus olhos para o chão, completamente derrotada. Ali, desvestida da mentira 166

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e completamente nua da verdade. Os olhos dela se encheram de lágrimas. Um sentimento paradoxal se misturou dentro de mim. Eu estava completamente recompensada e vangloriada emocionalmente por aquela atitude da Jodi, ao mesmo tempo sentia certa pena da Hailey. Sentia que eu não poderia fazer nada para evitar que o prejuízo não sobrecarregasse ninguém. Se não fosse Hailey a pagar pela falsa notícia de agressão, seria eu a sofrer pela armação dela. Então é assim, quando o mal é procedido uma vez, não tem volta. Alguém sempre tem de pagar pelo feito, mais cedo ou mais tarde. Houve outro momento de silêncio, mas dessa vez não durou muito. Senhor Neil e a coordenadora Ruth se entreolharam brevemente e uma leve golfada de ar intercedeu as novas determinações. A voz da senhora Means soou amarga. – Pode voltar para sua aula, senhorita Reamer. Acho que você falou tudo que precisávamos ouvir. Jodi respirou fundo e aquiesceu com a cabeça. Antes de se levantar da poltrona, ela afagou a mão da amiga uma última vez. Hailey mal se mexeu. Olhei aos arredores e tentei observar as expressões. Minha mãe estava cautelosa, como sempre, contudo, parecia surpreendida demais pelo rumo que a situação havia tomado. E, mesmo assim, seus olhos me transmitiam certo orgulho. Pareciam dizer “bom trabalho, minha garota”. E a senhora Cooper tentava encarar a filha, porém sem sucesso. – Holly – senhor Neil chamou a minha atenção. – Você quer tirar o dia ou... – Não. Eu faço questão de voltar. – Como preferir. Só espere o sinal do segundo tempo. Assenti rapidamente, sem nenhuma demonstração de felicidade aparente. Não seria a hora de tripudiar. Levantei-me, mamãe me deu um meio abraço. Recolhi minha mochila do chão e alcancei a porta da coordenação rapidamente, ainda com os pensamentos e a atenção lá dentro. 167

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– E Hailey... Você vai ficar mais um pouco. – Ouvi a senhora Means proferir com um tom autoritário. – Você e sua mãe.

* E aquela foi a última vez que eu vi Hailey Cooper. Já havia se passado exatamente sete dias desde o incidente. E agora a escola havia se dividido em duas: a parcela de alunos que ainda acreditava que eu realmente havia dado uma boa surra nela, e a outra parte que tinha coragem de me encarar. E ainda assim eu continuava sendo temida. Jamais seria uma estudante normal para os olhos de todos eles. Nesse pequeno espaço de tempo alguns fatos notáveis se sucederam. O primeiro deles foi a aproximação de Jodi. Naquele mesmo dia, no qual ela havia deixado bem claro que Hailey havia armado tudo, a garota de cabelos modernos me procurou no fim da aula. Parecia satisfeita, talvez com o sentimento de ter feito a coisa certa. Ela se ofereceu para me acompanhar no caminho de volta para casa. Acho que ela tinha certo interesse em conhecer a garota que tinha salvado. Com isso, logo conheci Michael, o garoto de óculos estilo Ozzy Osbourne que sempre ousava me observar discretamente e mantinha uma amizade muito estreita com ela. – É o amor. – Ian me lembrava, e eu sorria ligeiramente diante da constatação. O segundo fato foi Seth Turner. Logo na segunda-feira ele me enquadrou enquanto eu guardava meus livros de cálculos em meu armário. – Oi – eu disse completamente atordoada com a abordagem inesperada. – Eu sei que aqui não é o lugar mais apropriado para isso, mas... Ergui uma sobrancelha ao ouvir sua voz educada ecoar baixo até meus ouvidos. Ele prosseguiu: 168

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– Eu acho que lhe devo desculpas... pela Hailey. Cedi os ombros, surpreendida com o contexto do diálogo. Analisei-o com atenção. Ele voltou a falar antes mesmo que eu pensasse para falar. – Você não tem nada a ver com isso. Sei que nada justifica o que ela tentou lhe fazer, mas receba minhas desculpas. – Olha, Seth... – Tentei interceder, mas ele logo me interrompeu. – Sei que é difícil. Nem eu mesmo consegui perdoá-la ainda. Acho que não vou conseguir vê-la por um bom tempo. Nós terminamos. Abri a boca para falar, mas a surpresa me atordoou novamente. – Eu fico... chateada que as coisas estejam assim. Não sei se já a perdoei... porque é tão recente. – Apertei os olhos. – E estamos falando de um alto nível de prejuízo, mas... Tente considerar o que ela fez como uma reação de medo. Medo de perder você. Acho que isso pode ser uma forma de demonstração de amor, por mais estranho que pareça. Ele permaneceu em silêncio, e nesse breve período fitou meus olhos com uma atenção desnecessária. – Acho que tem razão. Quem sou eu para julgar o que cada um sente, né? Sorri. – Eu aceito suas desculpas – consenti por fim. – Não se preocupe comigo. Eu consigo separar as coisas. E agradeço pela gentileza de me dar uma satisfação. – Amigos? – Ele me estendeu a mão. Correspondi o aperto e nós sorrimos em conjunto. Na sequência daquela mesma segunda-feira, houve outro fato considerável. Duas garotas se aproximaram da minha mesa na hora do almoço. Elas aproveitaram que eu estava sozinha, pois Leo e Ian haviam se retirado para repetir a porção de purê de batata com queijo. Eu logo as reconheci. Eram Jenny e Olivia. As duas se sentaram a minha frente em uma atitude pacífica. Entreolharam-se 169

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rapidamente e logo Olivia puxou assunto, sorrindo ligeiramente, deixando à mostra o sorriso metálico pelo aparelho ortodôntico. – Oi – disse ela, muito a contragosto. – Oi – respondi sem nenhuma emoção na voz. Queria ver onde elas gostariam de chegar com aquilo. – Bom, você não deve estar querendo muito olhar na cara da gente, mas viemos em paz para lhe pedir desculpas. Não precisa aceitar. – Ela respirou fundo antes de continuar. – É que, sei lá, não tenho dormido muito bem à noite e decidi fazer isso com a Jenny. – Entreolharam-se com pesar. Permaneci em silêncio, absorvendo as palavras da garota de cabelos encaracolados. – Tudo bem – respondi por fim. Elas respiraram aliviadas em seguida. Deve ter sido uma tortura esperar uma suposta reação minha. – Mas... me falem – incitei o diálogo com cautela. Analisei as duas criaturas temerosas antes de completar a pergunta. – No que vocês pensaram para conseguir bater nela? Porque, olha... – Soltei um sorriso maroto. – Só com muita raiva acumulada para o rosto dela ficar daquele jeito. Elas riram discretamente, pouco à vontade. – Podem falar. Já perdoei vocês – lancei. – Bom... – Jenny se entusiasmou e tomou a iniciativa. – Teve uma vez que a Hailey e eu combinamos de ir a uma festa aqui da escola. Isso foi no ano passado. Eu havia encontrado um vestido divino para vestir naquela noite. – Ela evidenciou a qualidade do vestido com trejeitos burlescos, o que me fez rir. Jenny então bufou ao lembrar-se. – Ela me fez desistir de usá-lo só porque supostamente seria da mesma cor do que o dela. Quando eu cheguei à festa, ela estava usando uma roupa que não tinha nada de parecido com o vestido que eu queria! Aí, eu morri de raiva, não é? Confesso que isso foi uma das coisas que passaram pela minha cabeça. 170

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Nós três gargalhamos, de repente. E foi sincero. – Está mais do que perdoada! – Levantei minha mão para que Jenny me correspondesse um toque de irmandade. Senti sua expressão se tranquilizar rapidamente. Olivia já me observava como se eu fosse um ser inofensivo. Eu parei para pensar em todos esses acontecimentos enquanto esperava sentada na bancada do laboratório de Biologia. Seria nossa primeira aula de quinta-feira. Completamente sozinha, em plena sala, todas as lembranças da última semana passaram pela minha mente como um filme. De repente, vislumbrei Ian adentrar pela porta enquanto a sala se enchia devagar. Ele deslizou até o meu lado com uma agitação indefinida e cochichou rapidamente. – Adivinha quem retornou? Alarmei os olhos para sua expressão tendenciosa. – Ela mesma, Hailey Cooper. Ainda dá para ver as marcas. – Seu rosto virou para a porta por onde a garota magra de cabelos naturalmente loiros passou com seu ar de altivez. Era a própria. Hailey não ousou encarar ninguém da turma. Seus olhos permaneciam em uma direção infinita. Ela sentou-se ao lado de Jenny, e as duas ficaram em tremendo silêncio. Eu sabia que nós nos cruzaríamos na última aula, Educação Física, mas eu tinha quase certeza de que ela não se atreveria a mexer comigo. Era algum tipo de intuição. A aula de Biologia não foi muito produtiva para mim. Não consegui me concentrar com a presença daquela garota, bem ali na frente. Ela parecia tão resumida à sua própria existência, tão distante. O sinal bateu quando eu menos esperava. Ian me cutucou para seguirmos para o ginásio de esportes. A treinadora Roberts nos passou a sequência do treinamento do dia e, de tempo em tempo, eu lançava meus olhos para os portões. Hailey não ousou aparecer por lá. Eu terminei minha série de partidas contra o time do Chris e decidi chamar Ian para uma pequena pausa. Andamos até os 171

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bebedouros e no caminho encontramos Meg. Ela nos olhou como se quisesse chamar a nossa atenção para um comunicado. – Vocês podem fazer um favor para mim? – ela perguntou enquanto dava dois tapinhas no ombro de Ian com certa pressa para se retirar. – Avisem para o pessoal do ginásio externo que no próximo tempo será alongamento coletivo. Não quero ninguém de fora, ok? – Ah, tudo bem, Meg. Avisamos sim – respondi. Nós logo nos afastamos dela, e Ian me cutucou. – Sua chance, Holly. Não compreendi. Ele completou diante do meu silêncio: – Sua chance de falar com a Hay, cara! – O fato lhe parecia óbvio. – Ela está com as outras líderes de torcida no ginásio externo. – Ele me cutucou mais duas vezes, certa excitação ao sugerir a ideia. – Você ficou louco? Eu não quero provocá-la. – Quem falou em provocar? Você já não se acertou com o Turner e as meninas? Então, vamos ver se o incidente a fez abaixar a crista. – Ok, ok. Eu vou lá dar o aviso, mas você fique à vista. É sempre bom ter testemunhas. Ian riu do meu comentário medroso, e eu o golpeei de leve em seguida. Nós saímos do perímetro do primeiro pátio e atravessamos o longo jardim que antecedia o segundo ginásio de esportes. Já era possível escutar o ruído familiar de alguma música dançante. O campo de futebol lateral estava repleto de alunos. Relancei os olhos rapidamente para o banco de reservas e avistei Seth, sentado ao lado de Leo, onde ambos conversavam abertamente, até que o garoto forte de cílios grossos me cumprimentou rapidamente em um aceno amável. – Achei que você não quisesse provocar a Hailey – Ian lançou com maldade. – Ai, como você é malicioso! Sabia que eles terminaram? – Ah! – Ele forçou uma expressão irônica de surpresa. – Não me diga. Sério mesmo? – Sarcasmo, muito sarcasmo. 172

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– Tô falando sério, Ian. – Nós discutíamos enquanto nos aproximávamos dos portões da quadra. – Só estou tirando uma com você. – Ele passou o braço pelo meu ombro, e eu fiz uma careta de desgosto. Ian sorriu por final. O som musical começou a entoar com mais exatidão, e eu abri o portão do ginásio. Algumas garotas combinavam passos e outras se exercitavam com piruetas do outro lado. Não avistei Hailey. – A professora Meg quer todo mundo para o alongamento coletivo no próximo tempo! – falei alto para que todas ali ouvissem. A maioria das garotas virou o rosto para me observar e acenou para mim, já acabando com os movimentos. – Cadê a Hailey? – Ian perguntou ao mesmo tempo que uma das estudantes desligou o som. – Ah... Deve estar lá fora, nos bancos. Parece que não estava muito disposta para o treino de hoje – Jenny respondeu. Pisquei um pouco atordoada e já tratei de me retirar. Agradeci rapidamente, Jenny sorriu para mim com intimidade e Olivia me olhou com apreço antes de me verem partir. Ian e eu saímos dos arredores do ginásio, quase chegando próximo ao jardim que o antecedia. Foi quando notamos a presença da Hailey sentada em um dos bancos de alvenaria, retirando os tênis dos pés, como quem fica exausta depois de um longo período de esforço. Ian me deu uma cotovelada. – Ai – queixei-me. – Vai lá – sussurrou. – O quê? – Uni as sobrancelhas. Ele já estava pedindo demais. – É, vai logo. Vou avisar os meninos enquanto isso. – Não! – clamei alto enquanto o via se afastar, sem me deixar escolha. Fiquei parada ali sozinha, reunindo certa coragem dentro do peito. Analisei a situação e observei a garota, tão frágil sobre o banco. 173

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Olhei em volta e segui em frente, passo por passo, alcançando sua presença. – Hailey... – recitei baixo, insegura. Ela não pareceu muito contente com a minha abordagem. Ignorou-me completamente. Travei um impasse interno entre continuar as tentativas ou dar o fora. – É que... Eu só queria avisar. E a Meg, bem... Ela pediu para avisar que o treinamento coletivo será no próximo tempo – enrolei as palavras, aflita. – Eu já vou. Pode deixar – ela disse com muita indisposição. Mordi os lábios, absorvendo sua resposta impaciente. Hailey tentava amarrar seus sapatos e parecia não enxergar direito os cadarços. Ela definitivamente não estava bem. – Você está bem? – Aproximei-me devagar, querendo olhar para seu rosto diretamente, pois ela fazia questão de escondê-lo de mim. Hay parecia não ter muito equilíbrio com os braços para tentar se levantar e se esquivar dos meus questionamentos. – É claro que estou bem – exaltou-se rapidamente e reuniu certa força para se levantar, mas acabou desistindo. – Só estou... um pouco cansada. Fazia tempo que não praticava minha série de exercícios. Só isso. – Ela tentou se erguer novamente e respirou com certa força, como se quisesse recuperar os sentidos. Não desisti de analisá-la. Permaneceu sentada por alguns segundos, os sentidos de equilíbrio falhando. – Você está bem mesmo? – Aproximei-me mais dois passos. Ela ficou nervosa. – Quer fazer o favor de parar de se preocupar comigo? – Hailey bradou, ofegante. Então a observei. Ela definitivamente não estava bem. Muito pálida, os lábios secos se confundiam com a cor da pele. Ela prosseguiu com as tentativas de se levantar, ficando de pé por meio instante e, de repente, eu vi seu corpo perder completamente a força e rumar para o chão numa fração de segundos. 174

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– Oh, meu Deus! Hailey! – Corri para amortizar sua queda. Ela era só um corpo molenga em meus braços. – Hailey! – gritei, sacolejando-a. Não houve resposta. – Hailey! – Sacudi-a com mais força. – Meu Deus! – SETH! IAN! – clamei, com o nervosismo fazendo-me tremer. Vi o rosto dela brilhar com o suor frio e estremeci. Reuni uma grande quantidade de oxigênio no pulmão e gritei novamente pelos meus amigos. A morte parecia esgotar a cor de seu rosto, a temperatura do seu corpo. – Seth! Leo! – choraminguei, com a voz comprometida diante do meu desespero. – Ian! Meg!

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CAPÍTULO ONZE

parabéns, você acaba de ganhar sua nova melhor amiga! PARTE I – Holly. Uma voz me chamava de outra dimensão. – Holly. A segunda vez foi mais forte. Era quase possível agarrá-la, mas eu não consegui. – Holly, querida. Acorde! Alguém me sacolejou levemente. – Mãe – a palavra saiu dos meus lábios antes mesmo que eu abrisse os olhos. E, quando o fiz, um cenário plácido e completamente níveo saudou minha visão desacorçoada. A princípio, eu não me lembrava de nada. Olhar para o rosto afetuoso da minha mãe fez meus sentidos retornarem. Ela, vestida em seu jaleco branco, trouxe-me à memória a realidade que eu havia esquecido. Ali estava eu, repousada sobre as cadeiras da sala de espera da emergência do hospital onde minha mãe trabalhava. – Hailey! – roguei pelo seu nome, e a imagem funesta de nosso último momento atordoou minha mente. Minha respiração sobressaltou-se. – Acalme-se, minha filha. – Mamãe segurou meus ombros com precisão. Seus olhos me fitaram profundamente. – Sua amiga acabou de acordar. Ela está bem. – O que aconteceu? Onde está Meg, Ian? Eles vieram comigo, eu lembro. – A treinadora Roberts e o seu amigo já foram embora, meu amor. Você quis esperar e acabou caindo no sono. 176

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– Quero ver a Hailey. O que ela teve? – Respirei fundo e molhei os lábios, um pouco aflita. Mamãe hesitou por um instante. – Ela está bem agora. Mas sua colega sofreu um tipo de parada cardíaca. Parece que Hailey andou exagerando nos remédios na última semana. Você quer mesmo vê-la? Levantei antes mesmo de responder. – Onde ela está? – No fim do corredor. Quarto 364. Assim que ouvi as informações, rumei para fora da sala de espera em direção ao fim do corredor. Passei a mão pelo rosto, eliminando qualquer resquício de cansaço. Em minha mente, os últimos fatos passaram sofregamente. O momento em que Hailey caiu em meus braços, a treinadora Roberts e Ian me ajudando a carregá-la, os olhares abismados dos outros alunos enquanto corríamos com ela até a ambulância e as tentativas perturbadoras de reanimação durante o longo caminho até o hospital. Lembro-me de seu rosto desacordado e de como eu sentia que naquelas condições ela não era mais a Hailey Cooper, e sim uma garota que precisava ser salva. Alguém que estava prestes a perder a vida, bem na minha frente. Aproximei-me do respectivo quarto e vislumbrei sua mãe fechando a porta com um cuidado prestimoso. A cabeça baixa, os olhos fechados em uma preocupação materna. – Ela já acordou, senhora Cooper? A jovem senhora assustou-se ao ouvir minha voz. Não esperava que eu ainda estivesse ali. – Holly! – Os olhos encararam-me surpresos. – Como ela está? – Aproximei-me por completo. – Está bem, está consciente. Eu até queria... – Elizabeth olhou para mim sensibilizada por meio segundo – agradecer você. – Então a mulher de tez perfeitamente impecável sorriu, muito sem jeito. – Muito obrigada por socorrer minha filha. E sua mãe também foi uma ótima profissional. Graças à equipe ela está respirando. – Ela 177

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afagou meu ombro. Um ar de choro permeava sua expressão. – Você quer vê-la? – Eu quero. Ela fungou rapidamente e recolheu a maçaneta da porta, abrindo-a lentamente. – Obrigada – sussurrei-lhe antes de entrar no quarto. Naquele ambiente desalentador, ouvia-se a máquina registrar os batimentos cardíacos dela, calmamente. Hailey repousava sobre o leito, apenas como uma figura inócua. Os olhos fechados, a respiração profunda, mas eu sabia que não estava dormindo. Caminhei até a beirada da cama e observei a pele do seu corpo. Estava mais avivada. Ouvi um suspiro fundo e analisei seu rosto cansado se movimentar com dificuldade. Os olhos se abriram devagar, logo percebendo minha presença. Sua expressão foi indiferente. – Você – ela disse e fechou os olhos novamente, com pesar. – Desculpe incomodá-la – falei baixinho. – Fiquei... Preocupada e... Queria ver como você estava. Você passou muito mal. – É. Eu tive um enfarte aos dezesseis anos. Legal, não é? – A empáfia destilada na voz. – Hailey... – Tentei censurar-lhe. – Olha, Holly, eu sinceramente não sei o que você está fazendo aqui, tá? Nós não somos amigas! – Ela se irritou, um tom rude na voz. – Você quer morrer de vez? Sabe que não pode exaltar-se desse jeito. A garota ficou em silêncio, os olhos jogados para o outro lado do quarto, evitando-me. – Afinal, por que você me salvou? – Nós agora nos encarávamos, quietas. Eu não consegui responder de início. – Porque... – Respirei fundo antes de continuar. – Porque acho que qualquer pessoa merece uma segunda chance. Seja ela quem for, a que tempo for. E por pior que sejam as consequências de uma 178

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segunda chance, ninguém pode desmerecer uma quando se tem a oportunidade de recebê-la. Os olhos apertados da garota se encheram de lágrimas. – Segunda chance... – ela disse em meio a soluços, com um tom de deboche. – Para que uma segunda chance? Me diga? Meu namorado me largou, minha mãe está falida depois do divórcio, meu pai arrumou uma madrasta quase da minha idade e eu estou praticamente morta numa cama de hospital? Para quê? – Sua voz ofuscou-se pelas lágrimas desordenadas. – Do que adianta uma segunda chance se eu não tenho opções para seguir com minha vida? Respirei fundo. – Sabe o que pessoas inteligentes fazem quando não têm opções? – Analisei sua triste expressão. Prossegui. – Elas as criam. – Era quase um sussurro. Hailey chorou alguns instantes em silêncio. – Desculpe – ela disse por fim, e foi sincero. A expressão desmanchada em tristeza me comoveu. – Não é culpa sua, nada disso. Eu só queria que as coisas fossem diferentes. Você não sabe como é humilhante ver minha mãe tentando sustentar nossa casa trabalhando com coisas idiotas. Eu só queria que meu pai entendesse que nós precisamos dele agora mais do que nunca. – Outra sessão de soluços interrompeu seu desabafo. – Sou obrigada a estudar naquela escola infeliz. – Hailey. – Peguei em sua mão. Ela me olhou com descrença. – Eu sei que nós não somos amigas, mas isso não impede que eu queira o seu bem, mesmo com tudo que aconteceu entre a gente. Todos nós passamos por momentos ruins. E às vezes até colocamos em dúvida nossa capacidade para suportar tantos problemas. Mas a única verdade é que nunca temos outra escolha a não ser enfrentá-los. “Agradeça que você está viva. Agradeça que ainda tem seu pai e sua mãe, sempre prontos para lutarem pela sua felicidade.” – Ela revirou os olhos, desacreditada. Agarrei sua mão com mais força. – 179

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É só você começar a repensar naquilo que carrega dentro de você. Acho que seu pai também adoraria ter uma filha que o entendesse, que passasse algum tempo com ele, que respeitasse suas escolhas. Tente não brigar com o mundo o tempo todo. Apenas tente. E dê uma segunda chance a você mesma. Uma lágrima compungida escorreu pelo seu rosto, ainda pálido. – Prometo tentar – assegurou baixinho em meio a um sorriso torto. Correspondi o sorriso, segurando com mais força sua mão exangue. Nesse pequeno instante de compaixão, alguém bateu à porta. Era a enfermeira. – Senhorita Cooper? Eu me virei rapidamente. Hailey seguiu o olhar até a porta, agora entreaberta. – Seu pai está aí fora. Veio lhe ver – a enfermeira anunciou a visita com certa satisfação. – Tudo bem. Estou esperando. – Hailey pareceu agitar-se. – Promete ficar bem? – indaguei-a ao ficarmos sozinhas novamente. Ela aquiesceu rapidamente. – E qualquer coisa que precisar , pode falar com a minha mãe. – Obrigada. – Os olhos pacíficos me analisaram com gratidão, como eu jamais imaginei. Eu me retirei do quarto e acenei para a senhora Cooper, que estava na sala da espera. O pai da Hailey passou ligeiramente por mim, completamente desnorteado. Era um homem de meia-idade, trajava roupas claras e seus cabelos eram levemente grisalhos. Os mesmos olhos pequenos e castanhos da garota. Pelo vidro da porta, espiei os dois se abraçarem por um longo tempo. Inerte diante daquela cena, uma lágrima caiu de meus olhos, silenciosamente. Eram quase seis horas da tarde e os raios alaranjados do sol ameno de inverno caíam sobre a cidade. Eu tentei convencer minha 180

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mãe que poderia muito bem voltar à escola para recolher meus pertences, mas ela não aceitou que eu atravessasse a cidade sozinha depois daquele fatídico dia. Reencontrei com a doutora Truly, e ela me ofereceu uma carona até a San Diego High School, para completa satisfação da minha mãe. Um aperto desconfortável sufocou meu peito durante o caminho. Truly parecia compreender-me e, por longos minutos, deixou que eu me resguardasse num silêncio pessoal, poupando-me daquelas perguntas estúpidas sobre a escola, as novas amizades e os garotos bonitos. Nada estava bem. A escola, completamente vazia e lívida daquela atmosfera estudantil, me remeteu a um implacável sentimento de solidão. A cada passo dado, os corredores ermos pareciam se emudecer mais e mais. Recolhi meus livros e fechei meu armário em uma atitude automática. Decidi sentar-me ao chão e recostei as costas à parede. O silêncio e aquela apatia entediante contribuíram para que eu me sentisse enclausurada dentro da minha própria mente, sem ter nenhum lugar para correr. – Mas que droga de segunda chance é essa? – questionei alto para mim mesma. Revoltei-me com a realidade. Onde estava tudo aquilo que os outros diziam para mim? Desde quando passar por dificuldades deixa a gente mais forte? Desde quando ralar os joelhos deixa você mais humano? Desde quando sofrer o torna mais sábio? Quem disse que só aprendemos a valorizar aquilo que temos quando o perdemos? Eu não acreditava em nenhuma daquelas teorias. Ter passado pelos obstáculos só havia contribuído para que eu me tornasse uma pessoa cada vez mais melancólica, mais sofrida e muito mais decepcionada com as pessoas. Nada daquilo que eu havia enfrentado contribuiu de forma positiva. Eu me sentia em uma redoma de 181

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sofrimento, em que a dor gera a dor, o trauma gera o trauma, a tristeza gera a tristeza e a minha força em lutar contra esses fatores só me levava a uma decaída sem-fim da minha própria consciência. Já não era possível saber quem eu era. A única certeza que eu tinha era que eu havia me tornado uma outra Holly Armstrong. E isso não estava nos meus planos, muito menos havia me trazido coisas boas. Aliás, só havia me tirado do foco. Eu não vivia minha vida. Eu vivia aquela realidade tensa, como se eu continuasse presa em um galpão abandonado, ainda tentando encontrar a saída para meus maiores problemas emocionais; percorrendo caminhos infindáveis em busca da minha libertação, mas sem nenhum êxito.

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CAPÍTULO ONZE

parabéns, você acaba de ganhar sua nova melhor amiga! PARTE II Era um dia chuvoso de fevereiro; apenas a primeira segunda-feira do mês. A cidade amanheceu úmida, encoberta por nuvens cinzas de inverno. Os carros deslizavam enfurecidamente pelo asfalto molhado. Coloquei meu melhor moletom com capuz e busquei o guarda-chuva no armário. Os pingos de chuva que escorriam pela janela do meu quarto me desencorajavam a sair de casa. Venci a preguiça e me despedi da minha mãe. Parecia que não havia sido só a mim que a chuva tentou desafiar. Eram quase oito da manhã, e poucos alunos se concentravam nos pátios. Subi para a primeira aula daquele dia. Abaixei a cabeça sobre a carteira e fechei levemente os olhos, buscando relaxar os pensamentos. As duas aulas da professora Santiago passaram batido, até demais. Quando me dei conta, todos os alunos já haviam se retirado da sala, restando somente eu, ali com a cabeça entre os braços, recém-acordada de um cochilo. Blasfemei internamente diante do meu deslize. A professora Meredith odiava, com todas as suas forças, possíveis atrasos. Recolhi meus pertences e corri para a sala 25. Antes de abrir a porta, me olhei no reflexo do vidro. Eu realmente estava com cara de quem havia dormido. Passei a mão por todo o rosto, tentando me sintonizar. – Com licença – recitei baixinho, entrando pela sala e rezando para que ninguém notasse minha aparição repentina. Caminhei 183

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entre as carteiras, sem perceber que a professora Meredith havia estancado em sua posição, renegando minha entrada não autorizada oficialmente. – Senhorita Armstrong... – Meu nome ecoou como um palavrão. Respirei fundo e cessei com meus movimentos discretos. Os olhos dela por de trás dos óculos de grau eram repreensivos, mas cautelosos. Deixei-a prosseguir: – Se não fosse pela sua colocação na primeira fase da Olimpíada de Matemática Estadual, eu não aceitaria seu atraso. Continuei parada, naquele impasse de seguir ou não. A sala se emudeceu subitamente. Odiava quando pronunciavam meu sobrenome publicamente. – Sente-se, querida – a professora enunciou a permissão amavelmente. E então voltou a fitar seu livro de exercícios como o fazia antes da minha chegada. Passei calada pelos trechos das carteiras. Ouvi murmúrios que soaram como um aviltamento. – Como chama aquela princesa mesmo? Bela adormecida? – Sei lá. Eu só gosto da parte que ela acorda com um beijo. Os garotos riram para outros três idiotas que se sentavam adiante. Apertei os olhos e segurei a língua na boca. Preocupei-me em rumar para meu lugar habitual. Só que dessa vez não era a costumeira primeira carteira da primeira fileira que me esperava, e sim, a última. Havia alguma garota ocupando minha cadeira de costume. Sentei-me à carteira disponível e joguei meus livros sobre a mesa, repercutindo um grave ruído. Todos me olharam, inclusive a professora. Empurrei a cadeira para frente, seguindo o modus operandi barulhento. – Desculpe – falei baixo e sorri sarcástica. Meredith analisou-me brevemente e voltou a fitar seu livro. Virei-me de lado e olhei de relance os outros alunos. Os garotos ainda me encaravam exasperados. Levantei uma sobrancelha e 184

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balancei a cabeça. Abri minha apostila de álgebra quatro. Resmunguei algo em volume baixo e tentei me concentrar nos exercícios pedidos pela professora. Os números me distraíram até o sinal do almoço bater. Preparei-me para sair o quanto antes daquela sala. Eu sabia que naquele dia eu almoçaria sozinha. Ian havia entrado para o grupo de estudos de cidadania, o que o manteria ocupado até as duas da tarde. E Leo havia viajado com o time para os treinos do campeonato interescolar de futebol. Segui para o refeitório pensando no meu cardápio de segunda-feira. Aquela salada completa com muito sal e limão. Peguei minha bandeja e escolhi qualquer mesa vazia para me sentar. Salpiquei alguns sachês de sal sobre minha porção. – Olha, sem querer bancar a chata, mas sal demais faz mal. Parei em minha posição por alguns segundos. Quem estava falando comigo? – Pressão alta, retenção de líquido... – A voz prosseguiu amavelmente. Então era realmente para mim. Levantei os olhos para reconhecer a origem daquela voz feminina. Era uma garota. Devia ter a mesma idade e altura que a minha. Quadris encorpados e uma pele levemente bronzeada. Os cabelos cor de chocolate escorriam até os ombros. Suas sobrancelhas afiadas se ergueram para mim em um olhar convidativo. Fiquei paralisada com a abordagem repentina. Organizei os pensamentos e respondi sua pergunta inicial. – Ah... É, na verdade... Eu tenho pressão baixa, bem baixa mesmo, e... – Enquanto eu me preocupava em tentar achar as palavras certas para dizer, a desconhecida tratou de puxar a cadeira com intimidade. Sorri desajeitada, confusa. – Me desculpe. – Foi se sentando a minha frente. – Meu nome é Rebecca, muito prazer. – Estendeu-me a mão. 185

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– Holly – correspondi ao aperto. Acho que já havia ouvido aquele nome em algum lugar. Rebecca. – E não ligue para o que eu falei. Sempre exagero no tempero também. – Ela recolheu três dos quatro sachês restantes da minha bandeja e os despejou com gosto na porção de salada, que por acaso era idêntica a minha. – Então você é a Holly. – Não foi uma pergunta. Custei a perceber que ela iniciou um diálogo. Perdi-me ao observar a criatura de trejeitos tão peculiares. – Pois é... – Sorri, encabulada com seu olhar persuasivo. Nenhuma pessoa daquela escola havia me encarado com um interesse tão nítido como ela. Alguns segundos de silêncio se estenderam até ela voltar a falar. – Todos falaram muito de você – Rebecca lançou, cheia de humor. – Sério? – Quase cuspi a garfada de salada que eu havia colocado na boca. – Sobre o que eles falaram? – Engoli a comida para falar. – Nada de muito interessante. – Ela deu de ombros. – Apenas me contaram boatos irrelevantes, como a bela surra que você deu na cara da Hailey. – Seus olhos se encheram de graça, como se estivesse orgulhosa do feito. – Eu não bati nela – falei entre dentes, apreensiva. Rebecca riu, completamente despreocupada. – Relaxa. – Deu de ombros novamente. – Acredito que não tenha batido nela. Você me parece confiável. – Ela sorriu. Respirei fundo, arrefecendo meus ânimos. – É bom ouvir isso. Principalmente de uma... – hesitei. – Estranha – completou a frase sem delongas. Seus olhos me fitaram com uma compreensão autêntica. Prosseguiu: – Fora isso... Só algumas fofocas sobre sua conduta, mas, sendo sincera, é só uma questão de medo por não a conhecerem. Demorei a associar a hipótese. Rebecca concluiu o pensamento diante do meu silêncio. 186

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– Eu sei, pode falar. Esses idiotas não são muito receptivos. – Ela revirou os olhos, apontando o dedão para trás. Ri levemente. A franqueza dela me divertia. – E, então, está gostando de San Diego? – a garota puxou assunto. – É. – Suspirei. – É diferente de onde vim, mas gosto de morar aqui. – Ah, qual é?! Viver nesta cidade deve estar sendo horrível para você. – Recomeços sempre são difíceis – confessei por fim. – Você parece chateada com a mudança. Sentindo falta dos seus amigos, do namorado... – Sorriu ao final. Assenti silenciosamente e olhei para baixo. – Sinto um pouco. Depois de vários anos convivendo com as mesmas pessoas. – E do namorado? Não sente falta? – Ela ergueu a sobrancelha. – Eles não eram tão importantes. – Pisquei, desconsiderando. – Eles? – Riu alto. – Adorei você! – disse convicta. – Aliás, você é linda demais para ter um namorado só. Acabei por corar e sorri. – Que nada. – Fiquei encabulada e tentei contornar a conversa. – E você? Está em qual ano? – O mesmo que o seu. Eu estava na sala 25, inclusive. E, cara... Parabéns pela colocação, você quebra um grande estereótipo. Os nerds do último ano devem estar se remoendo por não serem melhores do que a caloura bonita. Sorri distintamente. Ela sabia como me deixar sem jeito. Rebecca voltou para sua salada. Um sorriso de lado permeou seus lábios. – E me diga uma coisa, eu pareço tão selvagem quanto as outras garotas dessa escola? – ela lançou, enquanto colocava uma colherada na boca. 187

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Num fio estreito de raciocínio, uma lembrança se relançou em minha mente. – Você por acaso é a... – comecei a deduzir. – Parceira do time de vôlei do Ian. Isso mesmo, vadia. Fiquei boquiaberta de repente. – Eu sabia que seu nome não me era estranho! – Tudo fez sentido, e eu ri, aleatoriamente. – Ele contou para você! Claro que contaria – afirmei. Rebecca deu de ombros, displicente. – Coisa de velhos amigos. – Piscou, de um jeito amável. – Ele havia me dito que você estava fora por uns tempos. Algum tipo de curso? – Não mesmo – refutou a ideia. – Encompridei minhas férias. Estava viajando. – Destino? – perguntei. – Passei o mês de janeiro no Brasil. – Brasil? Que... exótico. – É tão fantástico! – Rebecca declarou com uma pontada de nostalgia. – Eu nunca saí do país. – Fiz uma careta. – Depois que você conhece lugares diferentes aqui se torna entediante. – Então pelo jeito você tem costume de viajar por aí. – É, tenho alguns carimbos legais no meu passaporte. – Seu pai é algum diretor da Microsoft? É traficante internacional, como é que é? Rebecca riu alto. – Que nada, meu pai é só um fodido mesmo – respondeu convicta. Ri descontraída diante da sua sinceridade. Ela voltou a falar. – Tempos atrás rolou um concurso de crônicas, promovido por um festival de artes aqui em San Diego. Minha professora na época 188

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me inscreveu, mas nem achei que ganharia. O prêmio era um amontoado de milhas para viajar. – Que demais! E como você fez com hospedagem, alimentação e todas as despesas? – Querida, o bom de ser jovem é poder cair no mundo com uma mochila nas costas e a língua na boca. Não devo ter gastado o valor que o Chris investiu no seu último iPhone 3G. – Mister iTunes – corrigi. – Acho que alguém está andando demais com um tal de Ian Curtis – Rebecca gargalhou e eu não me contive. – Mas, bem, enquanto se tem boas pernas... Você pode ir para qualquer lugar. – Você acabou de se tornar “minha ídola”, sério – eu disse, lisonjeada. – Ah, assim não vale. Você que é a minha, oras. – Ela parou por um momento, resguardando sua respiração para um suspiro reflexivo. – Sei lá, só pela revolução que você fez nesta escola, já se tornou uma heroína para mim. Apenas uma pancada bem forte na cabeça da Hailey a faria mudar de conduta drasticamente, mesmo que indiretamente. – Vocês por acaso... são amigas? – perguntei com cautela. – Não gosto de ser inimiga de ninguém. Isso responde a sua pergunta? Parei para pensar. – Faz sentido. – Sorri satisfeita e ela me correspondeu com o mesmo gesto. O sinal do término do almoço tocou e tivemos de subir para a sala, que infelizmente não era a mesma. Eu sentia algo estranho pressionar minha barriga e só mais tarde fui perceber que era uma discreta dor, causada pelo excesso de risadas do almoço. Eu só revi a Rebecca na hora da saída. Ela estava no estacionamento da escola, destravando a porta de um carro. Gritou para mim de longe no meio daquela bruta chuva: 189

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– Quer uma carona? – Sua voz atravessou a atmosfera chuvosa. Olhei aos arredores, indecisa. – Você nem sabe onde moro! – respondi rindo. – E de que isso importa? Vem! – Acenou para mim, terminando de entrar no carro. Corri pelo jardim principal e entrei no seu Focus Hatch vermelho rapidamente. – Não importa onde você mora, pegar esta chuva é sacanagem. – Foi colocando a chave na ignição. Comecei a rir sozinha dentro do carro. Gotas de água escorreram por algumas mechas do meu cabelo. – Que foi? – Ela me olhou preocupada. – Nada. Isso só é um pouco suicida, considerando as recomendações da minha mãe. – Nunca pense em pegar carona com estranhos! – Rebecca repetiu as palavras manjadas com tom de deboche. – Quem inventou isso não sabe a emoção de correr perigo de vez em quando. – Ela apertou os olhos, de forma caricaturada. Passei o cabelo para trás, contorcendo-o em forma de coque, rindo. – Eu não sei você, mas estou com a leve sensação de que já nos conhecemos há muito tempo – ela disse enquanto conferia o espelho retrovisor, preparando-se para manobrar o carro. – Sabe que sinto a mesma coisa? – admiti. Nós duas compartilhamos um olhar de afeição. Rebecca terminou de deslocar o carro do estacionamento até cair na avenida principal. – E aí, me diga onde você se esconde. – No final da West Ash – falei. – Ah! Perto do Petco Park! Sei onde é. – Petco Park? – Flutuei diante da informação. – O estádio de beisebol, antes da marina. Você não sabe? Você mora do lado e não sabe? – Rebecca olhou-me incrédula. 190

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– Não mesmo. – Demonstrei indiferença. – E você, onde mora? – Pacific Beach. Fiquei remota. – Vai dizer que também não conhece? Dei um sorriso amarelo, aquiescendo. – Sabia que é bom conhecer um pouco a cidade onde a gente mora? Ri alto. – Estou falando sério, Holly. – Você tem razão. – Suspirei, com pesar. – Não andei fazendo muitos tours pela cidade. Aliás, acho que não fiz nenhum ainda. – Fique tranquila. Vamos dar um jeito nisso. – Ela me lançou uma piscadela, transferindo-me uma segurança incontestável. – Eu e minha mãe temos um restaurante bem típico no centro histórico da cidade. Bastante gente frequenta lá. Qualquer dia eu a levo para conhecer. Um tempo de silêncio transcorreu. – Você dirige bem. – Puxei assunto. – Tá falando sério? É a primeira pessoa que me diz isso. – Riu. – Por quê? Você não dirige bem? – Uni as sobrancelhas, confusa. – Suponhamos que eu tenha um passado automotivo bem transtornado. – Bem-vinda ao clube. – Ergui a mão. – Mulher ao volante um perigo constante não é apenas uma teoria. – Definitivamente – concordei com veemência. Ela sorriu e prosseguiu a falar: – Eu sinceramente tive de aprender a dirigir na marra. Quando se faz determinadas escolhas, é preciso arcar com outras responsabilidades que as acompanham, não é?! Parei por um segundo, refletindo sobre suas palavras. No fim das contas, aquiesci. Naquela altura, já havíamos entrado na rua da minha casa. 191

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– Bem aqui. – Apontei o edifício de pastilhas cor marfim e sacadas de vidro. Rebecca estacionou seu carro na frente da minha garagem. – Vejo você amanhã? – perguntou enquanto eu liberava o cinto de segurança. – Claro. – Sorri para a minha mais nova estranha amiga. – Até amanhã. – Olhei para seu rosto e a vi acenar pela última vez. Retirei-me em seguida, rumando para a portaria do meu prédio rapidamente, esquivando-me da chuva. Com os cabelos levemente molhados, analisei meu reflexo no espelho do elevador e ri, sem nenhuma razão específica. Eu poderia estar feliz. Talvez fosse só a agitação do momento ou a sensação que demorou tanto para chegar que estava me desnorteando. Era um dia frio, sem graça e completamente apático de fevereiro, mas eu me sentia imensuravelmente bem. Eu não havia conquistado um prêmio, uma oportunidade e muito menos um presente, e sim uma luz. A luz no fim do túnel. Uma luz que não só iluminava, mas também aquecia, guiava, inspirava. E eu acordei para o mundo no dia seguinte com uma disposição incomum. Os olhos da Rebecca me alcançaram com intimidade quando adentrei a sala de Espanhol, nossa primeira aula daquele dia. Ian estava ao seu lado e ria como uma criança. A professora Malasartes ainda não havia chegado. – Posso saber qual é a graça? – Sentei-me em uma das carteiras vazias e a indaguei. – Nada demais. É só esse meu hábito de curtir com a cara dos outros. Ela fuzilava as costas de uma garota sentada a nossa frente. A silhueta magra de pele levemente corada não me era estranha. Rebecca respirou fundo, frustrada. Ian limpou a garganta, recuperando-se das risadas exageradas. 192

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– Então Holly está oficialmente fazendo parte do nosso clã? Rebecca riu, revirando os olhos para a infantilidade de Ian. – Eu já ficaria contente se ela aceitasse ser nossa amiga, de início. – Seus olhos se voltaram para mim. – Onde eu assino para oficializar isso? – propus com humor. Nós três rimos rapidamente. – Ian já deve ter apresentado para você o resto da turma, não é? – Rebecca tratou de tirar seu estojo de canetas para fora da mochila enquanto falava. – Ahn... – Ian hesitou. Apresentações não eram seu forte. – IAN! – Rebecca revoltou-se, dando-lhe uma cotovelada. – Que tipo de amigo é você? – É que sei lá... Nunca se sabe a reação das pessoas ou da Holly – Ian defendeu-se. – Cinco minutos para guardarem o material para início das avaliações. Nós três fomos surpreendidos com a presença repentina da professora Malasartes atravessando a sala. Seu tom de voz agudo se propagou de forma impositiva. Eu mal tinha notado que o ambiente já havia se enchido de alunos. – Nada embaixo das carteiras e, claro, desliguem a droga desses celulares – a professora advertiu com seu humor ácido. Rebecca abaixou a cabeça e cochichou rapidamente, voltando ao assunto. – Deixa de ser estúpido, Ian. Holly almoça conosco hoje. – Ela recolheu minha mão, com confiança, sorrindo com seus olhos afetuosos. – Prometo que eles não serão tão idiotas quanto parecem. Nós nos aprumamos, conforme a senhora Malasartes ordenou. – Buena suerte, guapas – Ian zombou, fazendo sua graça habitual, enquanto a professora Malasartes distribuía as provas de carteira em carteira. Rebecca esperou ela se afastar e o fuzilou, tirando um sarro. 193

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– Gracias, cabrón. – Terminou por sorrir com deboche. Segurei o riso diante da palhaçada dos dois e me concentrei em analisar meu teste de Espanhol.

* – Acho que agora nosso grupo do Projeto de Ciências está completo. Não é, Jodi? – Rebecca incitou a questão durante o tão prometido almoço. Em uma mesa qualquer do refeitório, Jodi, Michael, Ian, Rebecca e eu dividíamos nossas refeições em meio a conversas e apresentações. A garota atraente de cabelos modernos hesitou por um momento, os olhos cautelosos captando reações adversas. E, enfim, deliberou. – Ah, eu vou achar ótimo. – Seus olhos encontraram meu rosto. – Nada melhor do que uma finalista de olimpíada no nosso grupo, não é? – Sorriu satisfeita. Ian afagou meu ombro com apreço, garantindo a mim que as coisas estavam começando a caminhar em seus devidos trilhos. – Só precisamos de um lugar para nossas reuniões – Michael completou, já encarando Rebecca indiscretamente. E então todos fizeram o mesmo. Ela paralisou. – Ah, não. Minha mãe está na área. Tirem minha casa de cogitação. – Rebecca ergueu as mãos, eximindo-se da responsabilidade. – Pô, Rebecca! – Jodi chateou-se. – Eu não tenho culpa. Já tenho eventos marcados neste mês e agradeçam que minha mãe não barrou. – E, agora, qual vai ser? Que tal na minha? – Michael propôs. – Muito longe – todos os outros disseram. – Se quiserem... – Ian ofereceu. 194

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– Não... Eu tenho medo da sua irmã – Rebecca falou e todos riram. – Por que não fazemos na minha? Mamãe adoraria conhecer todos vocês – sugeri, em alto e bom tom. Todos se entreolharam. – Por mim... – Ian deu de ombros. – Pode ser. – Jodi sorriu. – Então fechou – Rebecca finalizou, satisfeita. E em seguida ela pareceu detectar algum rosto conhecido na área. Logo acenou. – Olha quem chegou! – ela anunciou a chegada do estranho com certa alegria. Demorei para localizá-lo até se aproximar por completo. – Fala, Leo! – Michael ergueu uma das mãos, recebendo um toque de irmandade. Havia uma garota toda pequena e graciosa ao seu lado, de cabelos bem vermelhos. Ela logo se sentou ao meu lado. Os olhos esverdeados eram de uma essência tão infantil que me perguntei se era mais nova que nós. – Holly, esta é May, uma grande amiga minha – Rebecca nos apresentou. Ela sorriu e logo tratou de beijar meu rosto, à vontade. – E aí, Leo, conhece nossa mais nova integrante? – Jodi o cutucou. Ele sentou-se ao lado da Rebecca. Os olhos dele se encontraram com os meus, tentando fingir não me conhecer. – Eu tenho a breve sensação de que já a conheço de algum lugar... – Leo disse, reticente. – Da onde, garotão. – Rebecca ficou curiosa. – Talvez... de algum sonho. – O sorriso perfeito se abriu em uma linha doce para mim. Corei ao pensar em nossa primeira lembrança. – Ahhh! – A galera vaiou alto e nós dois rimos, encabulados. – Cala a boca, Leo! – Rebecca o golpeou de leve, rindo alto. – Então... o que vocês estavam organizando sem nós? – May voltou ao diálogo, após recuperarmos o fôlego. – Uma simples reunião... Na casa da Holly. Querem ir? – Rebecca os convidou. 195

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– Oh, claro! – May e Leo disseram ao mesmo tempo. – Então está decidido: todos na casa da Holly na sexta-feira depois da aula. Jodi, Michael, Ian. VAMOS MANDAR VER NA FEIRA DE CIÊNCIAS, VADIAS! – Ela ergueu sua mão e trocou toques com nós quatro e finalizou me dando um meio abraço. – Obrigada – agradeci falando em seus ouvidos. Eu tinha a plena certeza de que seria demais receber meus mais novos e estranhos amigos em casa. E com Rebecca ao meu lado tudo era mais fácil. Parecia que aqueles olhares selvagens e impiedosos perdiam toda a importância. Minha percepção receosa era apenas um detalhe, quase imperceptível. E mesmo que todos ao meu redor nutrissem por mim um ódio mortal, apenas tê-la segurando minha mão já era o suficiente para manter minha confiança estabelecida para não me deixar desanimar. “Parabéns, você acaba de conquistar sua primeira melhor amiga. Ou melhor, ela acaba de lhe conquistar.”

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CAPÍTULO DOZE

sujeito oculto PARTE I

– Oh! – Levantei rapidamente do sofá após finalmente ouvir a campainha de casa tocar. – Ela chegou! – falei entusiasmada para minha mãe, rumando para a porta de casa. Rebecca me esperava do lado de fora, enquanto segurava a tão esperada torta de maçã embrulhada em papel manteiga numa travessa generosa. – Sabe que eu ainda estou emocionada com o fato de você morar no apartamento 182? – Rebecca me saudou com um beijo no rosto, rindo. – Nada pessoal, mas eu gosto tanto desse número. Revirei os olhos rapidamente, fazendo graça. Dei espaço para que entrasse, sem tirar os olhos do pacote. Como combinado, Rebecca chegou um pouco antes das quatro horas naquela sexta-feira. O resto do pessoal apareceria logo depois. –Acho bom pôr na geladeira. – Ela me repassou o embrulho, e eu o segurei, fechando a porta de casa ao mesmo tempo. Caminhei pelo corredor de volta à sala. – Mãe! Venha conhecer a Rebecca! Mamãe se levantou rapidamente, os olhos apreensivos à procura da minha melhor amiga. – Nossa, Holly. Você não me disse que tinha uma irmã. – Rebecca piscou para mim e sorriu simpaticamente para minha mãe, que ficou sem jeito diante do elogio inesperado. Ela pareceu relaxar a postura. – Oh, que isso. Seja bem-vinda, querida. – Mamãe a recebeu com um abraço. 197

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– Vou dar uma adiantada nos sanduíches. – Esquivei-me para a cozinha. – Quer ajuda? – Rebecca se ofereceu. – Não, fique tranquila. – Pisquei tentando imitá-la. Eu queria que as duas ficassem um tempo juntas. Seria importante para minha mãe ver que meus amigos não eram nenhum tipo de bicho de sete cabeças. Quando eu contei que os receberia em casa, mamãe pareceu ansiosa em conhecê-los. É claro que ela não se sentia à vontade com a ideia de ter estranhos invadindo minha vida, tão vulnerável, em seu ponto de vista preocupado, mas ela logo se acostumaria. E bastou alguns minutos com a Rebecca na sala para ouvir longas gargalhadas. Eu sabia que a adoraria no primeiro momento. Aproximei-me da sala com os refrigerantes. – Holly, você tinha razão. – Mamãe sorria sem censuras. – Rebecca é ótima! As duas compartilharam uma risada sincera. – Ah, que isso. Não sabia que sua mãe era tão jovem e com uma cabeça tão aberta. Você tem sorte. – Rebecca suspirou com pesar. – Não posso dizer o mesmo da minha. Eu revirei os olhos e minha mãe se sentiu enaltecida. – Você tem de se inspirar na sua amiga, meu amor. Rebecca é tão nova e já é tão decidida em relação ao futuro. – E lá vamos nós com esse papo... – Posicionei os copos sobre a mesa de centro, entediada. – É que a Holly ainda não se decidiu, não é filha?! – ela disse com seus olhos cautelosos voltados para mim. – Ah, mãe. Também não é assim. Só quero encontrar algo de que eu goste e saiba fazer, de verdade. Odeio coisas óbvias do tipo, “oh, você é tão boa em matemática, faça engenharia”. Ah! – Banalizei. 198

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– Não precisa se preocupar com isso. Escolhas são relativas. Nem sempre precisam ser rápidas. Tem coisas que você pode escolher na última hora e dar certo. E há quem planeje tudo tão sistematicamente e no fim nada sai como esperado. Fica tranquila, amiga. – Rebecca piscou. – Vou ajudar a Holly a se encontrar. – Promete ser meus olhos? – mamãe perguntou, como se já soubesse a resposta. – Tem a minha palavra. Mamãe a encarou confiante, satisfeita. E a campainha de repente tocou. Eu me apressei novamente, correndo para a porta. – Chegou o resto do clã! Abri a porta num rompante e me deparei com a presença de todos os meus colegas, que me saudaram fervorosamente. Ian me abraçou forte e Jodi aproveitou para fazer o mesmo. Ri involuntariamente, feliz. – Eu trouxe os famosos biscoitos da senhora Reamer! – Jodi sacudiu levemente um pote retangular que segurava em suas mãos ao passar pela porta. – Fiquem à vontade. – Dei espaço para que May e Michael também prosseguissem. – Mãe, estes são Jodi, May, Michael e Ian. – Apresentei todos rapidamente. – Olha só! Vamos sentar, crianças. Sejam todos bem-vindos. – É impressão minha ou está faltando o Leo? – perguntei confusa. – Ah, sim. Leo teve uns compromissos com o Seth. Jogos da temporada, sabe como é. Mas ele ainda vem, só vai atrasar um pouco. – Jodi me garantiu, procurando sentar-se em um dos lugares vagos do sofá. – Então, já que vocês estão todos aqui e bem seguros... vou deixá–los à vontade. Querida, mamãe estará no plantão hoje. Qualquer coisa... Você tem o telefone de lá. 199

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– Já vai? – Rebecca questionou. – Hora de trabalhar um pouquinho, querida. – Mamãe sorriu. – Mas sempre que quiser, pode passar aqui em casa, viu? – Ela foi recolhendo as chaves do carro. – Até mais, crianças. Divirtam-se! – Valeu, Dra. Catherine. Bom trabalho para senhora – Ian lançou, acomodando-se ao lado de Rebecca, que estava em uma das poltronas. Mamãe se retirou por completo. O pessoal começou a se servir dos refrigerantes postos em cima da mesa de centro. – Você tem uma bela casa, Holly. – Jodi percorreu o ambiente com seus olhos astutos. Sorri, agradecendo. –Você não se sente sozinha aqui, com sua mãe trabalhando o dia todo? – perguntou. – Me sentia. Agora nem tanto. – Pisquei para Rebecca. – Mas então, conte-nos. Como era em São Francisco? Aliás, por que você se mudou para cá? Nunca conversamos sobre isso – Michael levantou a questão indiscretamente. Respirei fundo, rearranjando mentalmente as palavras que pretendia usar. – Circunstâncias da vida, né. Às vezes recebemos oportunidades. – Então vir para cá foi uma oportunidade? – Uma pergunta retórica, mas contundente feita pela Rebecca. Ela recolheu um sanduíche. – Com certeza – respondi sem delongas. – Boa ou ruim? – Jodi evidenciou a dúvida. Parei para pensar. – Boa. Muito boa. – Sorri de lado. – E você tinha muitos amigos na sua cidade? Desculpa perguntar. É que, sei lá, você parece ser daquelas garotas bem populares, que geralmente saem com os caras mais gatos e vestem as melhores roupas. Ri alto, desconsiderando o pensamento estúpido dela. 200

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– Não faço o tipo Hailey Cooper. Gargalhamos e expliquei-me na sequência. – Sinceramente, eu nunca gostei de ser o centro das atenções, e respondendo à sua pergunta, eu tinha poucos... mas grandes amigos. – É verdade que em São Francisco quase metade da população masculina é gay? Rimos despretensiosamente diante do comentário – muito peculiar – da Rebecca. – Pô, sério. Sempre quis saber – confessou. – Provavelmente. Alguns amigos meus eram – confirmei. – E você fala com eles ou perdeu contato? – May alcançou um dos biscoitos ao levantar a pergunta. – Não. Nunca mais nos falamos. – Bufei. – É uma historia longa e complicada. Mas sinto tanta falta de todos... É como dizia uma amiga minha... “Você nunca sabe quanto tempo vai ter com as pessoas de que gosta’’. Meus olhos se aqueceram. – Que triste, mas agora você tem a gente – Ian me confortou. – Não acredito que existam amigos como nós. – Ele piscou convencido. – Você tem razão, Ian. Todos vocês são de fato únicos. Mas essa minha amiga, assim como todos os outros, era muito especial. Conhecíamos-nos há anos. Ela não fazia o tipo “amiga–topa–tudo”, muito menos era supercomunicativa como a Rebecca. Mas, por ser muito tímida e introspectiva, eu sabia que tinha sua confiança. E era algo exclusivo. Só pelo fato de ela estar ali, segurando minha mão, mesmo que em silêncio, eu sabia que ficaria tudo bem. Esse sentimento era... especial. – Ela era gostosa? – Mike! – Jodi o censurou. – Perguntar não ofende. – Ele ergueu as mãos, sem entender. Eu ri, o que impediu que uma lágrima se instalasse em meus olhos. 201

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– Danie é linda sim. Cabelos longos e negros, a pele translúcida, olhos doces. – Cabelos negros, hmmm – Ian atiçou Rebecca com segundas intenções. – Ela por acaso tinha olhos azuis? – Ian – Rebecca o repreendeu, o olhar impaciente. – Porque, se tiver, faz o tipo da Rebecca – debochou. – Cala a boca, Ian! – Rebecca revoltou-se. – Mas que mentira! E como fica o conjunto de perigo com suas tatuagens? – May caçoou, toda briosa. – Eu ouvi um Big? – Michael recitou como se cantasse de um jeito burlesco. – Que tal um Eddy? – May completou. – Querem fazer o favor de calar a boca? – Rebecca se enfureceu, jogando uma almofada em direção a May e Jodi, que se exaltavam com risadas. Os garotos então se emudeceram. Fiquei sem entender. – Esqueceram do trato? Aquele–que–não–podemos–mencionar? – Rebeca os fuzilou. – Opa. Desculpa aí. – Ian resguardou seus risinhos sarcásticos por um momento. – É bom mesmo. Não gosto desse tipo de brincadeira. Ela ficou indisposta com os comentários e eu fiquei sem saber o que fazer diante da inconveniência. Para meu alívio, a campainha tocou de repente. Levantei-me rapidamente. Era o Leo. – Oh, Holly! Desculpa por chegar só agora. – Ele logo me deu um abraço acalorado, de forma desajeitada. Ri diante do seu exagero. Leo estava tão entusiasmado. O sorriso amplo, cheio de graça. – Como você está? – Seus olhos azuis me fitaram com preocupação. – Muito bem. – Sorri, tentando garantir a condição. – Achei que não viesse. 202

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– Ah, eu não furaria com você. E eu só vim para não fazer desfeita mesmo. Vou ter que sair daqui a pouco. – Fala, Leo – os meninos chamaram a atenção dele, interrompendo nosso papo reservado. Indiquei o caminho pelo corredor e ele prosseguiu: – E aí, gente. – Leo já puxava papo com o Ian e o resto dos garotos. Fechei a porta e voltei a minha poltrona, ao lado da Rebecca. – Nossa, você tinha de ver a cara do meu pai quando disse que ia na casa da Holly. Ele ficou sem entender nada. – Leo começou a falar na disparada, sem medir as palavras. Aterrorizei-me por um instante. – Aí tentei explicar que na verdade era Brenda e depois contei sobre você e, cara, ele não acreditou, quer dizer, ainda não está acreditando! Fuzilei-o. Leo demorou alguns intermináveis segundos para perceber a besteira que havia falado. O tom rosado de sua pele se esvaneceu ligeiramente. Os olhos azuis extasiados desfocaram sem saber para onde olhar. Tentou contornar, o que não deu certo. – Mas, bem... Sabe como é... Acho que meu pai tem um problema em decorar o nome dos meus amigos. E desde aquele dia que você foi em casa, quer dizer, na banca, e... Sabe como é. Ele te confundiu com a... Brenda... Ah, sabem. Engoli em seco. Leo foi perdendo a voz gradativamente. Quanto mais falava, mais se perdia. Os garotos se entreolhavam, completamente confusos. – Leo, você está louco – eu disse; e ri alto. Ele riu em seguida e Ian deu uma quebrada na situação. – Nem se incomode. Ele sempre foi! Aliás, ninguém aqui bate bem da cabeça. Todos riram, para meu alívio. Embora um clima discreto de tensão estivesse ainda pairado no ar. Leo terminou de se sentar, completamente sem jeito. Envergonhado. Mal me olhava. Então percebi que Rebecca lançava seus 203

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olhares para mim, para ele, como se estivesse trabalhando com deduções. Os olhos dela então pairaram em meu rosto, insondáveis. Sorri, tentando despistar sua preocupação. Ela deu um sorriso amarelo, pouco convencida. May retomou a atenção do grupo. – Então... Animados para minha super, quentíssima e tão aguardada festa no mês que vem? – A expressão contagiada pela emoção do fato. – Oh... – Michael revirou os olhos, entediado. – Ela parece uma criança falando sobre isso. – Dezesseis anos, May? – Aproveitei o fio solto da conversa. – Sim! – Ela bateu palminhas, excitada. – Hmmm. – Cocei a cabeça. – Isso significa que precisarei pensar em um presente para você. Sou péssima nisso. – Fiz uma careta. – Ah, que isso. Não precisa se incomodar. Você tem bom gosto. – Sorriu, com sua amabilidade inocente. – Não se esqueça de me fornecer a lista de convidados – Rebecca a advertiu. – Não se esqueça de que a festa é minha e os convidados também – ela retrucou. – E não se esqueça de que sua avó me pediu para organizar essa festa. – O sorriso frio e sarcástico estampado em seu rosto desmontou a teimosia de May. – Por que você faz isso? – A pequena de cabelos vermelhos ficou inconformada. – Ah, por falar em festa... Ainda está de pé o dia de São Valentino na sua casa, Becky? – Leo perguntou. – Semana que vem? Claro! Tinha até esquecido de confirmar com vocês. – O que vai ser? – cochichei com ela. – Ah, não é bem uma festa. – Deu de ombros. – Só um encontro de amigos próximos. – Sorriu para mim. – Vai ser bom para você. Quero que conheça minha outra turma. 204

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– Duas horas, não é? – Leo retomou sua atenção. Rebecca se refestelou na poltrona. – Isso mesmo, vadia. – Ótimo. Só queria confirmar mesmo. – Leo levantou-se, apressado, recolhendo do bolso as chaves do carro. – Vou indo nessa, galera. Vejo vocês na segunda. – Mas já? – Mike e Jodi assustaram-se. – Você mal se sentou! – A garota de cabelos modernos não compreendeu a pressa. – É. Vou ter de voltar para o... bem. Vou indo nessa. Ele trocou rapidamente acenos com o pessoal, já se dirigindo para a porta da rua. Acompanhei-o. – Me desculpe – ele sussurrou antes de selar meu rosto com um beijo. Olhei para baixo, ainda constrangida. – Não tem problema. – Balancei a cabeça e tentei sorrir. – Até segunda. – Suspirei fundo e o vi partir. Quando voltei à sala, os garotos riam, sem pudor algum. – Acho que alguém está apaixonado. – Ian e Michael assobiaram. – Ah, que isso. Parem de besteira. – Não estamos falando de você, querida. E sim do “segunda divisão”. – Segunda divisão? – Gargalhei com vontade. – Que tal “banco do reserva”? – Rebecca terminou de caçoar e a galera riu alto. Era público e notório que Leo não era nenhum exímio jogador de futebol. – Ai, gente. Que maldade! – Ainda não tinha conseguido conter o riso. – Sinal de que não é recíproco – Ian afirmou. – Leo é um bom amigo – defendi-me. –Ihhhhhh! – a galera vaiou em coro. – Sinto cheiro da zona da amizade – Mike dramatizou a afirmação. 205

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–Ele não... “faz meu tipo”. – Fiz aspas com os dedos, apertando-me ao lado da Rebecca. – Ah, vocês garotas e esse tal de “meu tipo” – Mike afinou a voz ao final da frase, revirando os olhos. – Não tem essa, cara. – Recompôs-se. – Claro, não é. Você encara qualquer coisa. – Jodi cruzou as pernas, levantando uma das sobrancelhas, fazendo bico. – E qual o seu tipo, Jodi? – Ian lançou, todo brioso. Antecipei-me antes de ela responder. – Que tal garotos que usam óculos estilo Ozzy Osbourne? A galera riu alto, sem censuras. Jodi ruborizou-se. – Nada mal, hein?! Para quem deixou de ser BV com o Chris na sétima série no banheiro feminino... – Ian lançou. Jodi ficou incrédula diante da confissão. – Olha só! Você nunca contou isso para nós! – Rebecca ficou boquiaberta. – Que coisa, não?! Ele pelo menos tirou os fones de ouvido na hora, né? Deve ter sido cabuloso. – Gente, por favor. – Jodi queria cessar com as confissões. – Que nada. Deve ter sido hilário. – Ian levantou-se em direção a Jodi, jogando o corpo ao seu lado, tentando lhe abraçar. Ela esquivou-se, sem controlar o riso. – Imaginem que eu sou o Chris. – Ian começou a balançar a cabeça levemente, imitando os movimentos baratinados do nosso colega, quando sempre estava ouvindo suas músicas de hip-hop. Todos nós caímos na gargalhada, imaginando a cena. Jodi ria, mesmo com a vergonha brotando em sua expressão. Ian a abraçava, todo carinhoso, cessando com as zombarias. E o papo durou até o entardecer. Rir não era mais um sacrifício, muito menos uma obrigação, por mera função fática. Mas, sim, uma consequência de um sentimento que me libertava. E essa foi a primeira vez que recebi meus amigos em casa. E mesmo estando tão perto do meu passado... Eu me sentia distante dele, o bastante para me sentir bem. 206

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CAPÍTULO DOZE

sujeito oculto PARTE II

O segundo sábado de fevereiro amanheceu como eu esperava. Um dia iluminado, sem nuvens que atrapalhassem a grandiosa presença do atípico Sol de inverno. Rebecca passaria em casa por volta das treze horas para me buscar. Ela me levaria para o encontro do dia de São Valentino em sua casa. Naquela manhã, uma ansiedade saudável permeava minhas expectativas. O evento que parecia tão inócuo, para mim, significava mais um desafio. Acordei cedo diante das inquietantes aflições corriqueiras, o que me fez ficar rolando na cama de um lado para outro, alternando cochilos passageiros, dando espaço para a mente vagar pelos caminhos obscuros da minha consciência por algumas horas. Comecei a pesar a realidade, analisando todos os fatos da minha última semana, vez ou outra rindo internamente das coisas que havia vivenciado. Até que me levantei, decidida a me aprontar. Enquanto eu escolhia uma combinação de roupas e preparava meu banho, nada me afastava da realidade de que, quando eu estava ao lado da minha mais nova melhor amiga, era difícil pensar nas vicissitudes que assombravam meu presente. Mas ao ficar sozinha, diversos questionamentos rodeavam minha mente. Até quando eu levaria aquele passado em segredo adiante? Por que era tão difícil falar sobre aquilo, se eu mesmo já havia admitido que confiava em Rebecca veementemente? Ela descobriria sem mesmo eu dizer uma única palavra? Para meus temores, minhas mais intrínsecas intuições diziam que ela já desconfiava. Seus olhos sempre me sondavam em busca 207

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de indícios – mesmo que insignificantes – por detrás dos meus sorrisos monótonos, dos meus olhares vazios, das minhas palavras melancólicas. Parecia tão difícil convencê-la de que estava tudo bem. Só não era mais difícil do que me convencer da mesma coisa. Eu só não sabia até onde aquilo iria chegar, aliás, nunca sabemos até onde vamos chegar. E essa era uma das únicas verdades que eu ainda acreditava. Toda a divagação interna foi aproveitável até. O tempo passou voando e, quando me dei conta, o interfone de casa tocou. Dei aquela última conferida no espelho do meu quarto e respirei fundo. Despedi-me da minha mãe e fui ao encontro da minha melhor amiga, que me esperava em seu carro. – Preparada? – Rebecca questionou logo quando entrei. – Deveria estar? – Bati a porta e joguei minha bolsa para trás. Ela riu alto, daquele jeito confiante. – É sempre bom. – Becky começou a manobrar o carro, analisando o retrovisor. Fiquei em silêncio. – Não me diga que está com medo. – Medo? – Analisei a alegria costumeira da sua expressão. Ela se concentrou em seguir adiante pela larga avenida que margeava a praia. – É... Você às vezes parece ter medo das pessoas. – Quê? – É sério. Eu me lembro do nosso primeiro dia. Eu tentando puxar papo, para desfazer aquele seu olhar cabreiro. Você me encarava como se eu fosse lhe transmitir uma doença infecciosa. Totalmente surpresa, emudeci. Ela riu diante da lembrança. Tentei me explicar. – Acho que estou um pouco traumatizada. – Dei uma pausa, estudando suas reações. Ela esperou que eu continuasse. – Traumatizada com a rejeição. Antes de você, ninguém se ofereceu de primeira a se sentar ao meu lado, a conversar. 208

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– Ah, é?– Ela me olhou abismada. – Não sabia disso. Pensava que era você a antissocial da história, mas eu me perguntava se realmente o problema era esse. E no final era apenas uma questão de entrosamento. – Eu fiquei muito abalada depois do que aconteceu com a Hailey. – Abaixei a cabeça. – Os dois episódios foram... Assustadores. Juro que até questionei minha utilidade neste planeta. – Credo, garota! – Rebecca refutou minha ideia suicida. – Pelo jeito apareci na hora certa. Acho que a salvei de uma possível depressão. – Não só isso. – Analisei a paisagem praiana paradisíaca pelo para-brisa. – Me salvou de um monte de outras coisas. – Respirei fundo, acreditando em minha própria afirmação. Nós duas trocamos um sorriso de satisfação. Rebecca passou a diminuir a velocidade e adentrou em uma rua residencial. Seu carro seguiu adiante, logo estacionando em frente a um sobrado amarelo suave, embelezado por um singelo jardim de plantas comuns. – Vamos lá? – Ela destravou o cinto de segurança. Parei, analisando o ambiente ao redor. Alguns carros preenchiam lugares aleatórios da rua. Apostei comigo mesma que poderia ser o resto do pessoal. Abri a porta e me preparei para sair. Rebecca adiantou-se a minha frente, já alcançando os pequenos degraus da entrada da sua casa. Alguém a recebeu antes mesmo de ela se pronunciar. Era Ian. – Finalmente chegaram! – Ele abriu aquele vasto sorriso satisfeito e completou: – Henrique ligou, disse que vai se atrasar um pouco. Ouvi uma sequência de latidos rápidos. E então um golden retriever de pelagem caramelo surgiu correndo porta afora, em direção a Rebecca, completamente desvairado. – Luke! – ela gritou rindo quando o cachorro pulou em seu corpo, quase a derrubando com a força das patas. Rebecca se ajoelhou, 209

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abraçando-o. – Mas que bagunça é essa?! – Alisou os pelos viçosos do cão. – Crystal está com ele? – Becky voltou ao assunto enunciado por Ian. – Provavelmente – respondeu. Alcancei os dois. – Esse aqui é o integrante mais especial da família! – Rebecca recebia carinhos do seu animal de estimação. – Mas como eu sou lindo! – Agachei para acariciar os pelos lanosos do Luke. Ele ficou todo faceiro com a minha atenção. – É Luke de Luke Skywalker? – perguntei. – Não – Rebecca contestou a ideia na hora. – É Luke de Lucas mesmo. – Lucas não é nome de gente? – questionei. – Eu prefiro acreditar que Lucas é nome de cachorro. – Ela pareceu não ficar muito contente em ter de explicar o critério do nome. Ian por alguma razão desconhecida riu alto da careta insatisfeita que ela fez. Levantei, indo ao encontro de Ian. – Feliz dia de São Valentino! – ele sussurrou em meus ouvidos enquanto me abraçava. – Olha, trouxe isto para você. Ian me repassou um papel de cartolina decorado. – Olha só, um cartão! – Entusiasmei-me com a lembrança e já me adiantei em abri-lo. – Não! – Ian me deteve rapidamente. – Leia só quando estiver sozinha. É mais emocionante, pode acreditar. Ri diante do seu zelo. Rebecca me pegou pela mão, guiando-me para dentro da sua casa. – Vem, quero lhe apresentar o resto da galera. Rebecca morava com sua mãe e um irmão mais velho que viajava constantemente a trabalho naquele sobrado aconchegante a duas quadras da praia de Pacific Beach. O ambiente estava parcialmente cheio. Avistei Mike e May próximos a um passa-pratos bem amplo que delimitava a cozinha da 210

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sala espaçosa. Uma moça de pele marfim e olhos miúdos se empoleirava sobre o sofá de lugares extensos ao lado de um rapaz pardo de sorriso cativante. Jodi e Leo trocavam risadas com dois rapazes, um alto e ou outro nem tanto assim. E, ah. Eles eram muito bonitos. Ao chegarmos mais perto, as pessoas presentes se aproximaram de nós duas. – Mas que festa é essa sem a presença da dona? – O rapaz de pele morena alcançou Rebecca rapidamente, dando-lhe um abraço, todo sorridente. – Acalmem-se, oras. Aqui tem Rebecca para todo mundo. – Ela riu daquele jeito descontraído, correspondendo ao abraço do jovem do sorriso legal. – Holly, esse é o Gus – Becky nos apresentou. – Ele é meu anjo da guarda lá no restaurante. E aquela moça bonita que vem vindo é a Laura. Trabalha comigo também. Ela apontou rapidamente para a garota clara que eu havia visto antes. A moça me beijou o rosto, os dentes pequeninos se evidenciaram em um sorriso doce. – Rebecca fala muito de você, estava curiosa. – Ela recolheu minhas mãos por um segundo. Notei um breve sotaque britânico em seu modo de falar. – Estes são Tyler e Mark. Parceiros do peito. – Ela trocou toques de irmandade com os dois bonitões que estavam ao lado de Leo e Jodi anteriormente. Tyler era charmoso com seu tom claro de pele, levemente bronzeado pelo sol. Um físico naturalmente avantajado e um sorriso perfeito. Já Mark era de estatura um pouco mais baixa, olhos de um azul-escuro e profundo, cabelos negros como a noite. Ele usava alargadores nas orelhas, o que evidenciava seu estilo descolado. – Quando Rebecca me contou que você era bonita achei que fosse blefe para nos deixar na expectativa. Acho que ela foi modesta até. Muito prazer. – Tyler me cumprimentou com um beijo no rosto. Acho que ruborizei e acabei rindo. 211

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– Seu idiota, deixou a menina sem jeito. – Rebecca passou o braço pelo meu ombro, dando-me certo apoio moral. Todos nós rimos. E então a campainha tocou, o que fez Rebecca se afastar ligeiramente. Laura permaneceu ao meu lado, resolvendo puxar papo. – Então... Está se acostumando com a cidade? – Oh, certamente. – Sorri. – Mas... desculpa falar, você também não é daqui, não é mesmo? – Dá para perceber, né?! – Ela apertou ainda mais os olhos, fazendo uma careta amável. Eu sorri, afirmando sua pergunta retórica. – Eu vim para fazer um intercâmbio há cinco anos e não consegui voltar. San Diego me conquistou, mas ainda não perdi minhas raízes. Sou de Reading, na Inglaterra. – Está feliz aqui? – indaguei-a. – Como sempre quis estar em um lugar. – Ela sorriu o máximo que pôde. – Isso que importa. Ali, enquanto conversava com Laura, eu ainda mantinha a atenção em Rebecca. Foi quando observei as pessoas que entraram pela porta. Uma surpresa congelou meu peito, causando-me um desconforto. Hailey Cooper... Ao lado de Seth Turner, de braços entrelaçados. Hay logo notou que eu a analisava e travou por meio segundo, sorrindo de lado logo em seguida, o que me fez relaxar, mesmo que parcialmente. Ela veio em paz. – Você quer alguma bebida, Holly? – Laura ofereceu a gentileza diante do meu silêncio repentino. Custei a responder. – Ah, obrigada! Mas não. – Sorri, educadamente. – Agora não. Pode ficar à vontade, Laura. – Com licença. – A jovem mulher se retirou delicadamente, permitindo-me voltar às minhas observações anteriores. 212

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Rebecca, como sempre muito diplomática, a saudou com um abraço. Pareceu elogiar sua aparência e contemplar o casal por terem voltado. Mordi o lábio cogitando as reações que ela teria se eu também a cumprimentasse. Fazia semanas que eu não a via. Ela havia definitivamente sumido. Teria restado rancores? Para acabar com meus questionamentos medrosos, ela decidiu caminhar em minha direção antes de fazer qualquer coisa. Altiva e confiante me sorriu, pacificamente. Permaneci inerte, até um pouco abobalhada. – Tudo bem? – ela perguntou com o tom de voz completamente sereno. Demorei a assimilar as ideias. – Nossa, você está ótima! – Respirei fundo depois de analisá-la. – Obrigada – Hay sussurrou, vangloriada. – Acho que você seguiu meu conselho – eu disse por fim. Ela desviou o olhar para o lado, suspirou e voltou a ler minha expressão. – Acho que era minha única opção. Os olhos castanhos agora possuíam um brilho peculiar. Ela prosseguiu: – Segundas chances, não é?! Sorri, verdadeiramente. Seth me observava do outro lado da sala, orgulhoso. Piscou-me daquele jeito afável, como se quisesse me agradecer. – Mas olhem só, finalmente vejo um dos Payne fora da toca! – Hailey passou por mim, alcançando Tyler. Os dois trocaram risadas de afinidade, dando início a uma conversa. – Como está sua irmã? Ela conseguiu ser aprovada em Oregon? – De primeira! – Tyler respondeu todo brioso. Dei tanta atenção à conversa corriqueira dos dois que mal percebi a presença de alguém peculiar puxando papo comigo. – Está muito brava comigo ainda? 213

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A voz do Leo então me despertou a atenção. Virei-me para ele, já tão próximo de mim. Fiquei em silêncio, vendo a ousadia do seu olhar me divertir. Tombei a cabeça, fazendo um drama. – Claro que não – banalizei, golpeando-o levemente no peito. – Sabe que gosto de você. – Olha... – Ele trouxe as mãos para frente, como se tentasse esconder algo entre as palmas.– Pensei muito em algo para lhe dar, e acho que essa seria a melhor das escolhas possíveis. – Ai, Leo. – Derreti a voz, lisonjeada. Era um pacote de forma quadrada e de espessura fina embalado em papéis brilhantes. Parecia um CD. – Posso abrir agora ou vai dar uma de Ian? Ele riu de repente, negando. – Vá em frente. – Repassou-me a embalagem. Coloquei meus dedos entre as dobraduras, tirando os lacres do embrulho. Uma logomarca muito peculiar atiçou as batidas do meu coração ao desvendar o pacote. Era um CD do Guns N’ Roses, o tão aguardado último lançamento. – Não acredito! – Terminei de tirar os papéis, realizada. – Nossa, Leo! Muito obrigada! – Abracei-o sem pensar. – Muito, muito, muito obrigada! – Beijei-o no rosto, já me afastando. Os olhos dele pareciam hipnotizados. – Agora só falta eu lhe retribuir. – Pisquei. – Sabe que não precisa de nada disso. É só não sumir da minha vida. – Aceito o desafio. – Pisquei. – Ei, Holly! Venha conhecer meu irmão de coração. Rebecca apareceu, em meio à nossa confraternização particular. Já tomou posse da minha mão, arrastando-me para o outro lado da sala. Ri para Leo, que ficou sem entender nada. Nós nos aproximamos de um casal muito bonito que havia chegado recentemente. 214

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Afinal, eu ainda não os tinha visto. Quando os observei de perto, percebi que eram irmãos, diante das semelhanças bem características. – Henrique e Crystal! – ela nos apresentou. O rapaz me olhou interessado, mas um tanto quanto surpreso. A irmã deveria ser alguns anos mais velha do que ele. E como era linda! Os cabelos castanhos, cheios de ondas volumosas até os ombros, combinavam perfeitamente com seus olhos cor de esmeralda. Ela parecia uma dessas garotas que participam de concursos de beleza. Fiquei estonteada quando a criatura me sorriu simpaticamente. – Então essa é a mais nova caverninha? – A jovem moça lançou o comentário. Rimos. – Prazer, Holly. Sou Crystal. – Ela me cumprimentou com um meio abraço. – Crystal e Henrique também estudaram na San Diego High School – Rebecca explicou. – Mas há muuuito tempo. – É, tipo há muito tempo mesmo. Na época em que o professor Newton tinha cabelo e nada de barriga – Henrique zombou e nenhum de nós segurou o riso. – É brincadeira. Não faz tanto tempo assim. – Seus olhos procuraram minha expressão. – Mas, então, garota estranha, me disseram que você era uma ótima jogadora de tênis. – O rapaz que já estava todo à vontade tomou a liberdade de puxar papo comigo. Ele tinha uma voz gostosa. Dessas calmas e firmes, que prendem sua atenção. Os olhos dele também eram bonitos, de um tom castanho-claro com reflexos esverdeados e sobrancelhas que destacavam seu olhar perspicaz. Os lábios bem desenhados escondiam um sorriso atraente. – É. Eu participava de alguns torneios regionais, mas nada muito profissional. – Ah, ela vai aceitar, Ricky. Manda ver – Rebecca lançou. Fiquei aérea e ela riu com Crystal. – Você já vai descobrir o que é, Holly. – Tyler está por aí? – Crystal confidenciou-se com Becky. – Oh, sim. Venha, eu a acompanho – Rebecca se ofereceu. 215

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– Nós já voltamos. Trate bem de nossa caloura. – Escutou bem, senhor folha de bananeira? Nada de gracinhas com a minha amiga – Becky o alertou. As duas se afastaram, e ele desconsiderou o comentário ligeiramente, retomando a atenção para meu rosto. – Então... Treina desde pequena? – É, sempre foi meu esporte favorito. – Bom, não sei se Rebecca contou para você, mas a minha família tem um clube de tênis há muitos anos. É bem perto daqui. Acharia ótimo se você topasse uma partida comigo. – Olha só. E não é que é um pedido irrecusável mesmo?! – Sorri de lado. – Vou amolar a Rebecca para irmos visitá-lo qualquer dia. – Pisquei. – Você leu meus pensamentos. Vou ficar esperando. Nós compartilhamos um sorriso de exultação. E então eu ouvi alguém limpar a garganta. Procurei a origem do som e percebi que Leo sondava nosso flerte. Agi com naturalidade. – Fala, Leo – Henrique o saudou descaradamente. – Como vai o time de futebol? Esperando a tão aguardada escalação? – É. Acho que terei sorte desta vez – ele respondeu, mesmo que fosse a última coisa que quisesse fazer. – Holly, quer me ajudar a trazer as bebidas? Hesitei, revezando os olhares dos garotos. Acabei por topar, por mera educação. – Claro. – Sorri para o Leo. Apressei o passo e me postei ao lado do Leo. Ele tentou esconder a insatisfação, mas era amplamente notável. – Eu não gosto dele – confessou por fim. – Nunca gostei. – Ué, por quê? – Ri, achando mera babaquice aquele ciúme desnecessário. – Um dia você vai entender. Henrique não é tão gente boa quanto parece. 216

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– Ele fez alguma coisa contra você? – Não, comigo não. Mas eu não curto pessoas que... Bem, pessoas que fazem coisas que não podem. – Leo, seja mais objetivo. – Paralisei quando cheguei à cozinha. Estávamos sozinhos agora. – Está bem. – Ele olhou para os lados, garantindo que ninguém ouviria. – Ele gosta de... bolar de vez em quando. Ri alto. Leo se exasperou, querendo que eu não fizesse tanto alarde. – Ah, Leo! – Comecei a sussurrar, mesmo com um tom de inconformidade. – E qual o problema se ele gosta de fumar maconha de vez em quando? Ele faz mal a alguém? – Diretamente, não. – Ah, relaxa. Cada um cuida da sua vida, faz suas escolhas. Se não faz mal a ninguém... – Dei de ombros. – Estou com medo de você. Revirei os olhos. – Quer parar de bobeira? Vem, me ajuda com as garrafas. – Recolhi um engradado e Leo recolheu outro. O encontro continuou muito agradável, com todos nós reunidos na sala, empoleirados nos sofás, rindo de conversas alheias. Em determinado momento, Rebecca se aproximou com mais uma bandeja de sanduíches para colocar junto à mesa. Ela logo se juntou ao meu lado, onde May repousava sua cabeça em meu colo. – Já fez sua lista de convidados, querida? – Becky instou o assunto com um pouco de rispidez. May pareceu entediar-se de sua aparente insistência. – Cara, não é mais fácil você me perguntar se aquele-que-não-devemos-mencionar está incluído? – Ela revoltou-se e até levantou a cabeça para olhá-la, impaciente. – Pelo jeito vai – Rebecca frustrou-se. 217

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– E qual o problema? Você sabe que nós somos conhecidos de longa data e ele nunca vacilou comigo. – Rebecca bufou, sem dizer uma única palavra. – Nem adianta fazer essa cara. Já enviei os convites ontem. – O quê? – Isso mesmo, vadia. – Ela imitou os trejeitos burlescos de ironia que Rebecca costumava usar. – Ah, para de drama, Rebecca. Fique feliz! – Ian a cutucou, mas com tom de zombaria. – Vai finalmente fazer as pazes com seu amor. – Como vocês são estúpidos... – Ela revirou os olhos e cruzou os braços. – Becky está com medo de se entregar. Conheço a fera. – Tyler gargalhou alto. E eu fiquei mais uma vez sem entender. Então Rebecca tinha um caso mal resolvido? Ela nunca ousava abrir a boca para tocar naquele assunto. – Ela está com medo é da Miranda! – Hailey debochou com gosto, e todos caíram na gargalhada. Rebecca não ficou nem um pouco contente. Ela terminou por se retirar do sofá, injuriada. Um silêncio discreto se evidenciou. Achei que eles realmente haviam pegado pesado demais. Os garotos se entreolharam, levemente arrependidos. – Pô, galera. Isso não foi legal – completamente desapontada, falei. – Relaxa. É uma longa história. Ela fica assim porque sabe que é verdade. – O que é verdade, Mike? – Encarei-o. Ele hesitou de primeira. Jodi se adiantou às explicações. – Nada demais, Holly. É só que... Às vezes a gente se envolve com pessoas não muito legais, e acabamos por sofrer com isso. – Valeu, Jodi – Mike agradeceu pelas palavras, que, pelo jeito, foram bem convenientes. 218

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– Então vocês deveriam apoiá-la, não é? – Levantei-me, inconformada com a insensibilidade. Fui atrás da minha amiga. Eu me lembrava de tê-la visto subindo as escadas. E foi o que eu fiz. Cheguei ao pavimento superior e me senti perdida. O primeiro andar possuía diversas portas, e a maioria delas permanecia fechada. Segui até o fim do corredor, deixando-me guiar por um feixe de luz solar alaranjado. A última porta estava aberta. Passo a passo, desvendei o meu destino. O interior do cômodo surgiu aos meus olhos, remetendo-me a uma implacável sensação de conforto. Era o seu quarto. Uma parede ao leste na cor lilás carregava em sua extensão uma diversidade de fotos, pôsteres e lembranças. Havia uma persiana rosa clara que combinava simultaneamente com o edredom de mesmo tom sutil e com os armários brancos. Parei em frente daquele conjunto de memórias que embelezava a parede, tentando decifrar cada momento. Toquei em algumas fotos com desvelo. Uma festa de aniversário, uma viagem, amigos. Cartas. Dedicatórias, autógrafos. Um desenho, sonhos, um tíquete de avião. Uma capa de revista antiga. – Minha vida em uma parede. – Rebecca se aproximou, colocando sua mão em meu ombro. – Você está aí! – Surpreendi-me com sua presença repentina. – Fiquei preocupada e... Desculpa por chegar assim, invadindo seu quarto. Ela sorriu despreocupada. – Que isso... E nem ligue para esses idiotas. – Piscou, conformada. Analisei seu rosto, ainda possuído pela frustração até trocarmos um sorriso. – Eu amei seu mural. – Voltei a analisá-lo. – Tom DeLonge dominando geral. – Ri. Rebecca se aproximou mais um pouco de mim, passando a observá-lo também. – E, olha só, você tem um pôster do Clint Eastwood! Adoro os filmes dele. 219

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– Sério? – Ela ficou feliz com minha confissão. – Os dois são meus maiores ídolos. Influenciaram diretamente em quem eu sou hoje. Nós duas perdemos nosso olhar entre os detalhes daquela parede. – Quem é ela? – Sobrepus meu dedo sobre a imagem de duas garotas. Uma delas era a Rebecca. A outra era uma menina de cabelos longos e negros, extremamente lisos. Seus olhos eram perdidamente azuis e penetrantes. A foto havia sido batida enquanto as duas riam em um abraço desajeitado. – Apenas alguém bem especial. – Rebecca sentenciava com o peito inflado de nostalgia. – Conheci essa garota quando me aventurei pelo Canadá, no ano passado. Melinda foi uma grande amiga, durante tão pouco tempo. Destinos completamente diferentes fizeram com que a gente perdesse contato. Mas escolhas têm de ser feitas, não é? – Rebecca finalizou desapontada. – E essa aqui? Por acaso eu conheço essa garota? Ela não me é estranha. – Apontei para uma foto de um aniversário. Havia três crianças: Rebecca, a tal garota de pele morena e outro menino magricelo, um pouco mais velho. Unidos, rindo diante de um bolo de festa. – Ela estuda na escola. Está no mesmo ano que a gente, aliás. – Bufou frustrada. – É a terrível Miranda... Você ainda vai ter o desprazer de conhecê-la. E esse cara aí da foto também. Agora somos apenas ex-amigos. – E por que diabos você ainda têm fotos dessas pessoas aqui? Eu já teria queimado! – Ri. – Ah, eu não penso assim. O que importa para mim é o que vivemos, sabe. Não quem nos tornamos. Enquanto éramos apenas três jovens recheados de inocência e respeito tive a melhor época da minha vida. Eu e Miranda éramos amigas assim, como eu e você. 220

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Agora ela é só mais uma vadia daquele colégio. E Lucas sempre foi um garoto honesto, de uma família boa. – Suspirou. – E minha nossa... Ele mudou tanto nos últimos anos. Agora não passa de um grande idiota. Apenas um perdedor. – Triste. – Tentei apoiá-la. – Você nunca sentiu isso? – Seus olhos encontraram os meus. – O quê? – Arrependimento pelas mudanças da vida? – evidenciou a pergunta com um ar de seriedade. – Ah... – Pensei para responder. – Algumas vezes. – Então você sabe como é ter uma realidade fantástica e vê -la ser corroída pelo tempo, pelas consequências que mudam nossa vida drasticamente... O que me conforma é saber que não há outro jeito senão me conformar. E de alguma forma aprender com isso. Deixa-nos mais fortes, sabia? – Um riso brotou leve em seus lábios. Olhei-a distante. Eu via uma realidade desejável refletida em suas palavras. – Tem razão. Também já passei por fases... difíceis. Frustrei-me em pensamento. Difíceis, Holly? Difícil não era um nome para definir meu passado. Era uma característica muito leviana. – Ah, é? Achei que você fosse uma garota sem histórias. Você dificilmente se abre. – Sorriu de leve. Eu fiquei inerte. Rebecca voltou a falar para me desvirtuar, parecia sentir a mesma tensão que eu. – Todos nós somos feitos de histórias. Eu sempre digo que o que me move é contá-las. Gracejei reconfortada. – Você é incrível, sabia? – eu disse por fim. – Que isso. Só tenho uma coisa que me difere das outras pessoas... É uma coisa chamada esperança. Sei lá, mesmo que o universo despenque sobre minha cabeça, eu vou tentar analisar a situação 221

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de uma forma positiva. Vou tentar manter uma esperança queimando dentro de mim para me fazer continuar. Prometi isso a mim mesma em algum dia perdido da minha infância. – Riu. Uma lágrima inconveniente se estabeleceu em meu cílio. – Que foi? – Rebecca me analisou preocupada. Respirei fundo, confiante. – Nada não... Pessoas como você me fazem enxergar o quanto eu sou idiota e insignificante às vezes. – Ah, não fale assim. – Ela pegou uma mecha da minha franja e colocou atrás da minha orelha com zelo. – Você só precisa se desprender um pouco mais. Sem nutrir esses medos e traumas sobre o que pode ou não acontecer. Mesmo que não dê certo no final, não importa. Só depende de você aprender alguma coisa com isso. – Piscou. Fiquei sem palavras. – Vem cá, me dá um abraço. – Seus braços se envolveram ao meu corpo de uma forma acolhedora. Apoiei a cabeça em seu ombro e respirei fundo facilmente, como se tal gesto de amizade aliviasse todas as minhas aflições. Senti que meus olhos se aqueceram. Na tentativa de despistar as lágrimas, olhei para o alto e engoli em seco. Rebecca se afastou. – Vamos descer? Acho que estamos perdendo uma ótima festa lá embaixo. Pisquei e me uni a ela para o caminho de volta. Os garotos acabaram por se desculpar, mesmo que para Rebecca não fosse necessário. Ela sabia que tudo não passava de brincadeira, em razão da grande intimidade entre todos. Como sempre, Leo teve de ir embora mais cedo. O casal recém-reatado também se despediu sem demoras. Henrique postou-se ao meu lado, com ares de interesse. May continuou sonhando com os detalhes da sua festa, vez ou outra provocando Rebecca com algumas exigências, mas não tocamos mais no nome daquele que não sei o quê. 222

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À noite, já em casa, dirigi-me à varanda do meu apartamento por mera distração, o que me permitiu admirar a ampla vista da cidade. Tudo parecia tão mais agitado, colorido; vibrante. Instintivamente, coloquei a mão no bolso, sem lembrar que, há algumas horas, eu guardei ali um pedaço de papel. Meus dedos puxaram o cartão do Ian, ao passo que meu coração bateu mais forte ao relembrar do seu sorriso satisfeito ao me dar a singela lembrança. Sua caligrafia infantil muito bem alinhada na cartolina lilás me fez sorrir inesperadamente. Olá, garota perigosa! Saudações do Reino do Formol. Ainda me lembro – mesmo que tenha sido há muito pouco tempo, mas parece que já nos conhecemos há anos – do dia em que fomos apresentados pela primeira vez. Eu achava que você seria mais uma dessas garotas estúpidas de cidade grande. E, no fim, você só era uma tal de Holly Armstrong. A garota perigosa, temida, divertida e mais estranha que eu já conheci; e que em pouquíssimo tempo se tornou uma das minhas melhores amigas. Não sei se você se arrepende de ter se mudado, de ter deixado para trás seus amigos, sua vida etc. Mas de uma coisa você pode ter certeza: eu não me arrependo de ter conhecido você. Porque para mim pouco importa se as pessoas abaixam a cabeça ou cochicham pelos cantos a seu respeito quando você passa. E sabe por quê? Porque isso é a Holly Armstrong, essa é a garota surpreendente que eu vou ser amigo e admirar para sempre!!! Amo você! Feliz dia de São Valentino! Ian Curtis. – Eu também não me arrependo, Ian. – Recolhi uma lágrima rapidamente. 223

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Aliás, eu jamais poderia me arrepender. Eu deveria me preparar para desistir. Isso mesmo. Desistir. Porque desistir é deixar para trás. É abandonar todas as chances de se colocar um fim ou um começo. É se abster de tentar, de sofrer. Mas nem sempre desistir significa fracassar. Às vezes nossa última saída é deixar para trás aquilo que não podemos investir nossas forças. Aquilo pelo qual nunca valerá a pena lutar. E isso não nos rotula de covardes. Quando se faz necessário, desistir pode ser a medida mais corajosa de nossas vidas, porque além de deixar para trás, de abandonar... É a sua única chance de conseguir seguir em frente, de se libertar. No entanto, desistir não é, consequentemente, aniquilar tudo aquilo que o assombra. Não. Muito longe disso. Desistir é apenas uma forma sutil de você jogar para um canto esquecido todas as questões com as quais você não quer lidar; onde você pensa que jamais passará novamente. E você só pensa. Porque, ali, tudo estará adormecido. Oculto. E a princípio meu passado era apenas um fator oculto. Desistir dele seria outra história. Assim como para Rebecca o oculto parecia lhe assombrar em conversas corriqueiras, o meu passado me atormentava em noites solitárias. “E o oculto sempre se insurge. Sempre vem à tona. Porque você sabe que está ali. Apenas não o vê.”

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CAPÍTULO TREZE

o fim programado, o escolhido, o forçado e o necessário De todas as minhas lembranças, uma em especial se instalava em minha mente com frequência. Lá estava eu, em um peculiar quarto de hospital, repousada de uma forma que meus olhos alcançavam o relógio preso à parede. Os ponteiros tiquetaqueavam lentamente, quase que de forma proposital. Meu coração se irrita com a lentidão. O som tão insignificante chega a ser um barulho dissonante para meus ouvidos e para minhas expectativas tão ansiosas. Na memória da cena, logo percebo que o tempo não passa. E me revolto. Passo a questionar tal circunstância, de modo que meus raciocínios me levam a uma breve teoria: o tempo realmente não cura tudo; apenas desloca o incurável do centro das atenções. Ao relembrar um passado não tão distante, remeto-me a fazer uma colocação óbvia: como eu poderia definir centro das atenções? Será que eu já estava dentro dessa fase em que todos os eventos ocorridos já pertenciam a uma memória remota? Seria estúpido da minha parte dizer sim. Mas do que adianta o passar do tempo se você continua acordando dia após dia em uma realidade assombrada pelo trauma? É preciso dar vida a um plano que substitua, ou pelo menos desfoque, todas as suas maiores aflições. E, então, você dá vida a um novo centro das atenções. O que pode ser traduzido como uma válvula de escape, uma nova realidade, um novo modo de ver a vida ou até mesmo novos problemas. Tudo isso possibilita que você continue sobrevivendo, escapando de suas incertezas; mas não garante 225

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que você viva, no final das contas. O que faz com que o tempo passe despercebido, pois você o está apenas sabotando com falsas perspectivas. Porque há uma grande diferença entre estar vivo... E se sentir vivo. É aquela velha história de que rir de algo engraçado não é o mesmo que rir quando se está feliz. E eu estava empenhando todas as minhas forças para isso. E, melhor, eu sentia que não estava sozinha. Minha mais nova melhor amiga, mesmo que inconscientemente, conseguia me ajudar a alcançar meu principal objetivo. Porque seu sorriso sempre me divertia. Fazia-me esquecer dos pesadelos das minhas lembranças e sua voz me remetia a uma sensação de conforto, como se estar ao seu lado significasse estar em casa. E mesmo que nós apenas nos conhecêssemos há ligeiros dias, nossa amizade já beirava os mais estreitos limites da cumplicidade, da lealdade, da devoção. Espontânea e voluntária. Não foi nada difícil nos darmos bem. Rebecca também era de outubro e fazia aniversário uma semana depois de mim. Compartilhávamos os mesmos gostos e pensávamos acerca de vários assuntos de forma semelhante. Ela era boa com palavras e eu com números. Uma troca muito justa. Nunca fui de produzir brilhantes dissertações e muito menos de possuir criatividade para tal. O que para ela era mera diversão. Meu negócio eram os algarismos. Sempre os achei mais atraentes pela objetividade, pela certeza de seus resultados. Nossa grade de aulas era quase que idêntica. Já tínhamos nossos esquemas durante as provas e, vez ou outra, matávamos umas aulas desnecessárias para passear pelos bairros turísticos de San Diego com nossas bicicletas. O que nunca deixava de ser divertido, mesmo que fosse debaixo de chuva e tempestade. A paisagem litorânea jamais perdia sua majestosa beleza. Ian era o único que nos acompanhava, embora fosse algo raro. Ele preferia fazer seus passeios com seu fiel skate. Nós gostávamos 226

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de visitar alguns mirantes no norte da cidade e assistir ao pôr do sol de inverno. Parávamos em praias para observar os surfistas quebrando suas manobras nas ondas e passávamos as tardes em parques verdolengos perto da escola, fitando as grandiosas nogueiras e suas folhas serem sacolejadas pelo vento. Logo depois, seguíamos direto para o restaurante da Becky, onde eu me ocupava com meu temido hábito de observar as pessoas que por ali cruzavam, enquanto Rebecca ajudava Laura e Gus com o expediente. Naquela última semana, vi Mike e Jodi brigarem pelo menos três vezes. O que estava começando a parecer normal para mim. Eles sempre tornavam a fazer as pazes depois de discussões banais. E, ah, também descobri que Mike tinha uma banda amadora com outros colegas da escola. A turma sempre se organizava para se encontrar durante os ensaios. É o amor, como dizia nosso grande amigo Ian. May andava cada vez mais animada com sua festa. Já Leo tinha aderido ao costume de arrumar desculpas para ficar isolado do resto da galera. Seus olhos sempre me seguiam, em silêncio. Impossível não mencionar a primeira fase da Olimpíada Municipal de Matemática. Consegui passar em todas as provas. A segunda fase ocorreria dentro de um mês e meio. Eu teria de me concentrar nos estudos, principalmente nos exercícios de produto notável, pois estes andavam me dando muito trabalho. Não era algo que acontecia com muita frequência, mas Hailey fazia questão de dividir seu horário de almoço em nossa mesa. Era impossível não notar sua drástica mudança. E não digo isso somente em relação a mim, pois seus olhos já haviam perdido aquela essência pretensiosa há tempos. Era notável e surpreendente a sua nova forma de pensar, de agir, o modo como se referia aos outros. Havia cautela. Como se ela trabalhasse suas opiniões para um lado oposto; para um lado mais compassivo. Às vezes ela puxava papo comigo, despretensiosamente, como se fôssemos colegas normais. Eu ainda não havia me acostumado 227

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com sua amabilidade repentina, o que me fazia ficar aérea diante de suas tentativas de diálogo; mas ela parecia não se importar. Ria com seus dentes pequeninos, sem nenhuma maldade evidente. É claro que Seth sempre estava ao seu lado durante esses momentos. Eu nunca havia convivido anteriormente com ambos para sacar a dinâmica do casal. Eles pareciam mais amigos do que qualquer outra coisa. Era estranho vê-los conversando. Não havia em seus olhos aquela paixão em si, apesar da intimidade excessiva. Não era comum vê-los aos beijos ou em momentos acalorados. Isso era uma raridade. No máximo andavam de braços entrelaçados, compartilhavam risos, tinham aqueles trejeitos próprios, com suas piadas internas e o linguajar codificado. Elementos estes que já me deixavam em dúvida há certo tempo. E agora me levavam a uma certeza. – Seth é gay, né? – O QUÊ? – Rebecca quase cuspiu o suco de laranja que acabara de ingerir ao ouvir meu comentário aleatório. Nós já havíamos nos retirado da mesa do almoço e caminhávamos em direção à sala 25. – Ele é tão doce, amável, sensível. Delicado e lindo como uma flor. – Pisquei os olhos várias vezes, admirada. – Cara, você está louca? – Ela mirou o copo vazio na cesta de lixo, acertando. – Ele namora a Hailey desde o primeiro ano do colegial. – Como se isso significasse alguma coisa. Olhe para os dois. Está na cara que ele apenas faz o tipo “melhor amigo para sempre” dela. Vai dizer que nunca percebeu? Sua expressão aturdida me analisava em silêncio, incrédula. Ri alto. – Braços entrelaçados, segredinhos para lá e para cá. – Hailey jamais saberia disso e aceitaria assim, numa boa. 228

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– Ela não sabe, querida. E aposto que ele também não tem certeza. Confusões da idade. – Eu tenho medo de você – Becky confessou. Sorri convencida e prossegui: – Sei lá, eu tenho um tipo de radar para essas coisas. É tipo um “gaydar”. – Ok. – Rebecca levantou as mãos, farta. – Olha, sabe aquele boato de você ser de outro planeta? Está começando a fazer sentido. – Ela me fitou séria, mas seus olhos denunciavam a graça do comentário. – Ah, Rebecca! – Golpeei seu braço, desconsiderando. Ela riu prazerosamente, como sempre fazia para me divertir. O gracejo foi recíproco. Rebecca recolheu minha mão rapidamente, apontando para os arredores do corredor, em direção a outras pessoas, imitando um sinal robotizado. – Atenção! Gay detectado. Permaneça afastado com segurança. – Ela ficou com a voz fanha enquanto forçava minha mão a apontar para alguns garotos. Censurei-a rapidamente, sem conter o riso. – Sua idiota! – Retraí o braço, afastando-me dela. Rebecca me deu um meio abraço. Não reneguei. – Adoro você, sabia? – confessei. Ela piscou, vangloriada. – Está a fim de ir para praia comigo amanhã? Não tenho nada para fazer. – Ah, por mim, tudo bem. – Sorri, agora com o braço sobre seu ombro. E então senti algo se esbarrar contra mim. Só depois percebi que havia sido uma pessoa em meio àquele corredor apinhado de alunos. Nada menos do que uma garota. O olhar mortal seguiu em minha direção quando busquei a razão do embate. Olhar de chicote sob a expressão ameaçadora. 229

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Era ela, eu a reconheci. Foi o primeiro rosto antipático que vi quando cruzei os corredores no meu primeiro dia naquela escola. Rebecca compreendeu o ocorrido em um instante. – Ah, eu quero bater na cara dessa garota! – Ela de repente se revoltou. – Rebecca! Calma. – Essa... Vadia! Você já viu o jeito como ela olha para você? – O inconformismo brotava em seu rosto. – Como se você fosse uma ameaça. Uma inimiga declarada! Vi o ser dissimulado se afastar sem delongas corredor afora. Sua pele levemente acobreada e os cabelos negros naturalmente lisos se estendendo até a cintura me certificaram de um fato. – É quem eu estou pensando que é? – Miranda. – Seus olhos queimaram em repúdio. – Ela por acaso é filha da... – Nossa professora de Espanhol. – Oh! Que ótimo! – Revirei os olhos, bufando com pura ironia. Muitos garotos morriam pela Miranda Malasartes. Ela tinha uma beleza comum. A pele morena acobreada, pernas magras e finas e não usava sequer um pingo de maquiagem. Ela era completamente diferente de mim, pois fazia o estilo pacata e puritana. E eu, com meus cabelos tingidos de louro claríssimo, alguns excessos de curvas e outras saliências, a incomodava, e muito. Rebecca a odiava por acontecimentos do passado; e com todas as suas forças. Mas, sinceramente, eu pouco ligava para aquela animosidade toda. Nunca fui chegada a essas intrigas fúteis de escola, pois nunca levavam a lugar algum. E tal suposta disputa me entediava. Uma perda de tempo desmedida para mim. Acho que tudo aquilo não passava de ciúme por eu estar íntima da sua ex-melhor amiga. Miranda andava com outro grupo de garotas que não se misturava. E estranhamente sequer faziam parte da equipe de líderes de torcida da Hailey. 230

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Quando me dei conta – já que viver faz seu tempo voar com o dobro da velocidade –, estávamos terminando a primeira semana de março. Era um sábado claro, o tom azul-celeste embelezava o céu de San Diego formidavelmente. Eu e Rebecca combinamos de ir à praia logo cedo. A água salgada rutilante sob a luz incipiente do sol da manhã nos deixou fascinadas por um momento, até estendermos nossas cangas sob a areia fina de Pacific Beach e nos sentarmos. – Eu tinha certeza de que hoje faria um dia lindo assim – afirmou Rebecca ao tirar o protetor solar da bolsa. Passei as mãos para trás, deixando-as apoiarem meu corpo. Ainda admirada pela paisagem esplendorosa, reconheci dois semblantes a alguns metros de nós, próximos à margem do mar. Um casal de jovens esperava pequenas marolas de água alcançar os pés, enquanto riam e conversavam. Foi então que o rosto de ambos se viraram de perfil e eu consegui reconhecer os irmãos Meyer, Henrique e Crystal. – Olha só! Não são aqueles seus amigos do dia de São Valentino? – Apontei com a cabeça para que Rebecca os encontrasse. – Nossa, tem razão. – Ela sorriu contente. – Henrique! – Rebecca bradou, mas nenhum dos dois ouviu em função da distância. – Idiota. Nem ouviu. – Ela deu de ombros. Eu ri rapidamente e passei a analisar os dois ali, unidos. A silhueta da garota me chamou a atenção pela perfeição. Crystal era proporcionalmente magra e alta. Os cabelos ondulados lanosos brilhavam com os raios de sol e o seu sorriso parecia terminar de iluminar sua beleza angelical. – Como a Crystal é bonita, não é?! – comentei, admirada. – Ninguém nunca disse a essa garota que ela poderia ser modelo? Dessas bem-sucedidas? Ainda mergulhada em observar os traços perfeitos da jovem, nem percebi que Rebecca ficou em silêncio por um momento. 231

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O que era de se estranhar. Olhei então para seu rosto e decifrei uma breve sensação de incômodo. – Que foi? Falei algo de errado? Ela prosseguiu em silêncio, retirando os óculos escuros para me encarar, com insatisfação. – Pejo jeito não contaram para você, não é?! Fiquei aérea e ela prosseguiu: – Há uns anos, Crystal bem que tentou entrar nessas aí. Mas era jovem demais... – Rebecca sentenciava as lembranças com um pesar inédito para mim. – Imagina, uma garota de dezessete anos que passou a vida toda sendo resguardada pela família de qualquer perigo, de repente se muda sozinha para o exterior em busca de conquistar seu lugar num mundo tão sujo, cruel e traiçoeiro que é o da fama? – Rebecca olhou distante através da paisagem. – Ela não tinha estrutura nenhuma. No começo todo mundo acreditou que ela fosse realmente desabrochar... Mas aí as coisas começaram a desandar. Péssimas companhias, nenhuma assistência... Ela se envolveu com um cara que não era do mundo dela. E então os trabalhos não deram certo, as amizades não estavam lá para apoiá-la. Crystal não lidou muito bem com o fracasso e acabou exagerando em bebidas e drogas. Foi... trágico assistir a esse caos e não poder fazer nada. “Sabe como é que é... Deram a ela um vaso mais pesado do que conseguiria carregar. E ele se quebrou em milhões de pedaços. Sonhos e amor em doses exageradas às vezes destroem as pessoas.” – E ela parece... estar tão bem agora. – Foi tudo o que consegui dizer. – Ah, acho que nessas horas não podem faltar pessoas que acreditem em nós; que não desistam de nós. A família dela a apoiou e continua a apoiando até hoje. Depois daquelas palavras eu observei a garota com outros olhos. Foi então que Henrique notou nossa presença e se aproximou rapidamente junto com a irmã. 232

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– Disfarça. – Rebecca me cutucou, já montando um sorriso convincente. – Fala, meninas! Nem acredito que vocês estão aqui. Tão cedo. – Crystal abaixou e nos beijou o rosto com carinho. Henrique fez o mesmo, mas foi mais acalorado com Rebecca. – Eu sabia que hoje seria meu dia de sorte – exclamou o rapaz com os cabelos esvoaçados pela brisa do mar. O sorriso alto, brioso. – Aliás, acho que alguém ficou me devendo um desafio. – Seus olhos me fitaram carinhosamente. – Eu sabia que não esqueceria – eu disse, apertando um dos olhos. – A gente poderia ir lá amanhã, não é, Holly? – Rebecca propôs. Eu anuí na hora. – Com certeza. – Sorri, sem tirar os olhos de Henrique. – Mas que ótimo encontrar vocês por aqui! Não querem beber alguma coisa com a gente? – Crystal nos convidou com sua alegria cintilante. Nós recolhemos rapidamente nossas coisas e os acompanhamos até um quiosque que ficava ali perto. Eu realmente me surpreendi com o fato de Crystal parecer tão feliz agora. Mesmo com um passado transgressor, seu sorriso era sincero, fácil. Então a superação não era uma utopia. Na volta para casa, decidi contar a Rebecca o que o Leo havia me confidenciado anteriormente sobre Henrique, apenas para descartar – ou não – o boato. – O Leo é um idiota – ela disse entre dentes, pouco confortável. – Então é verdade. – Deduzi. – Tecnicamente. – Ela meneou a cabeça, enquanto se concentrava com a próxima curva. – Defina tecnicamente. 233

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– Ah, sabe como é. Um tapa aqui, outro ali. Dentro dos limites. Eu fiquei calada por meros segundos. – Limites. – Repeti o termo, não achando apropriado. – Nós somos jovens. Essa é a nossa realidade. Acho que pode sim existir uma “tolerância”. – Então... Isso significa que você...? – Ah, Holly. Eu já viajei muito por aí. É impossível não experimentar alguma coisa, mas não significa que eu seja uma delinquente irresponsável. – Ela ficou em silêncio, com os olhos distantes através do para-brisa. – Vai me dizer que você nunca, nunquinha, experimentou nada? – Não – respondi categoricamente. – Ah, vá. – Tô falando sério. Posso gostar bastante de beber, mas drogas, nunca. Não acho interessante, uma vez que você está contribuindo para o funcionamento de todo um sistema. – Realmente, nisso concordo com você. Rebecca riu alto depois de um momento, mas eu não soube por quê.

* No domingo, eu e minha melhor amiga nos dirigimos ao tão cogitado clube de tênis do Henrique. Chegamos um pouco antes da hora do almoço. Até aí, sem problemas. Mas, pelo pouquíssimo tempo que eu conhecia Rebecca, eu senti que ela estava diferente. Suas palavras eram reticentes, distantes; como se ela estivesse engasgada com algo. Eu não me atrevi a perguntar o que poderia ser, por puro medo. Um milhão de possibilidades passaram pela minha cabeça para tentar justificar aquele comportamento incomum enquanto nós alcançávamos o perímetro do clube. Eu sabia que, se realmente fosse importante, no momento certo ela abriria o jogo, pois Rebecca era uma garota muito franca. 234

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O lugar não era nada do que eu esperava. Em São Francisco, o clube estadual de tênis tinha o triplo do tamanho e era todo alambrado por altos portões com cercas elétricas. O simples Limoncino Tennis Club ocupava um terreno mediano em uma rua estreita e sem saída. Rebecca parou seu carro no pequeno estacionamento de três vagas em frente da recepção, que nada mais era do que uma casinha que antecedia as quadras. Henrique estava lá para nos recepcionar com seu sorriso efervescente e contagiante. Ele era só três anos mais velho do que a gente, então conseguíamos compartilhar os mesmos assuntos. E era incrível como ele nutria um carinho imenso pela Rebecca. Os dois eram cheios de piadas internas, de trejeitos próprios e principalmente de histórias. Muitas histórias. Todas as partidas da tarde foram regadas de muitas gargalhadas sinceras. O que me permitiu esquecer até daquela breve preocupação em relação ao comportamento estranho da minha melhor amiga. Na volta para casa, com o Sol se despedindo do horizonte, e eu me sentindo anestesiada demais diante da tarde gloriosa, nem percebi que Rebecca parou em frente ao seu sobrado mergulhada num profundo silêncio. Seus olhos pareciam inquietos, e as mãos pressionavam o volante com certa violência. Mas foi só após um grande lapso de tempo que resolvi questionar tais atitudes, apenas a encarando de forma alarmada, sem entender nada. Seu rosto não encontrou o meu e apenas pude ouvir sua voz suplicante. – Você poderia abrir o porta-luvas? Hesitei por um momento, sem compreender a brincadeira. – Por favor – ela reiterou o pedido, engolindo em seco. Pressionei a trava do compartimento do painel e tudo que enxerguei lá dentro foi uma folha de sulfite dobrada ao meio. Instintivamente, recolhi o papel e o abri. Ler o conteúdo fez com que minha mente se preenchesse com um milhão de lembranças, imagens distorcidas e aflições. 235

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Jovem garota de São Francisco escapa ilesa de um megasequestro. – nesta manhã, 17 de outubro de 2008. Era uma simples notícia impressa de um famoso jornal on-line. Meus ouvidos bloquearam por meros instantes. – Por que não me contou antes? – As palavras foram ditas cautelosamente, com compaixão. Os olhos da Rebecca agora me vigiavam, mas não correspondi. – Por que você fez isso? – Revoltei-me debilmente. – Você não faz ideia do quanto isso me faz mal. – Não consegui encará-la. Algo continuava a trucidar meu peito internamente. – Holly, me escute. – Sua voz era um som harmonioso. – Por que você fez isso? – explodi. – Foi o Leonardo, não foi? – vociferei antes de dizer qualquer outra coisa. – Foi ele quem lhe contou, não é? – O quê? Leonardo? Não foi o Leonardo que me contou – ela refutou a ideia na hora. – Mas... espera! Aquele babaca sabia de tudo? E você não teve confiança de contar para mim? – ela enfatizou a última palavra da frase. – Argh! Eu não contei para ele! Que droga! São longas histórias... – Então você não é a garota-sem-histórias que eu conheci. Você tem um passado, Holly – ela decretou sombriamente. E aquela havia sido uma das afirmações mais assertivas que eu já tinha ouvido em toda minha vida. Rebecca me deixou em silêncio por segundos intermináveis. Algumas lágrimas não se contiveram. – Eu apenas joguei seu nome na internet – ela confessou, por fim, arrebatada pela minha reação. – São milhares de citações a seu respeito. – Ouvi Rebecca suspirar fundo. – Eu suspeitava que havia algo de errado com você. Quando conversamos no meu quarto e seus olhos se aqueceram, eu passei a ter certeza. Eu só não apostaria que fosse algo tão monstruoso. 236

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– Chega, Rebecca. – Holly, me escute! – Não preciso disso. Pode me levar para casa. – Não – ela me desafiou. Eu estava completamente vulnerável. Golpe baixo. – Não vou deixá-la assim. Não nesse estado. – Então eu vou sozinha – resmunguei, acionando com toda a força a trava da porta do carona, saindo carro afora. – Holly. Ela me seguiu mais rápido do que eu imaginei, alcançando meu braço e me barrando abruptamente. – Quer parar de ser ridícula? – Seus olhos me encararam com firmeza. Hesitei. – Eu tentei lhe dar um milhão de oportunidades para você se abrir... Para você tentar se libertar disso. – Suas sobrancelhas se uniram, numa expressão de pena. Ela soltou meu braço. – Eu imagino o quanto isso faz mal a você. Vejo nos seus olhos. Sem saída, calei-me. Ela pegou em meus ombros, dando-me uma leve sacolejada. – Vem, vamos entrar. Em completo silêncio, concordei. Apenas sequei minhas lágrimas, embora fosse insuficiente para contê-las. Sua casa silenciosa me acolheu como um velho agasalho do qual eu não conseguia me desfazer. Permaneci inerte no meio da sala. – Sobe lá para o meu quarto, só vou colocar comida para o Luke – Rebecca me sugeriu, com a voz exausta. Não havia ninguém naquele sobrado além de nós. Eu sentei na cama da Rebecca, completamente derrotada. Minhas mãos segurando a cabeça, enquanto eu pensava como ela poderia ter me colocado contra a parede daquele jeito. E pior... Por que meu passado ainda me atingia com tanta intensidade. Eu tinha tanto medo de que aquilo mudasse o rumo da nossa amizade. Que nunca mais conseguíssemos nos olhar da mesma forma... 237

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O céu quase tomado pela escuridão da noite deixava que apenas as luzes da rua iluminassem o quarto pelas frestas da persiana. A mente vagou até que Rebecca surgiu pelo quarto, aproximando-se da poltrona que ficava em frente da cama. Não esperei ela começar. – Por que você fez isso? Eu tento ao máximo manter esse detalhe do meu passado enterrado para me proteger! Para proteger as pessoas que convivem comigo! Por que, Rebecca? – Holly, você não pode simplesmente enterrar um detalhe que faz parte do seu roteiro de vida. – Ela sentou-se, cruzando uma das pernas. – E você acha que é legal ser lembrada como a “garota que escapou de um sequestro”? – Eu adoraria o fato de estar nas estatísticas. Me orgulharia, até. – Minguou os lábios, inundada por uma certeza incomum. – Você fala isso como se estivéssemos tratando o fato como um prêmio. – E você acha que escapar dessa não foi um prêmio? Que melhor prêmio existe do que ter a própria vida de volta? Do que uma segunda chance? – Você nunca vai entender. – Revirei o rosto, farta. – Você que nunca vai entender – redarguiu, trazendo o corpo mais para a frente. – Olhe em volta, olhe para essas pessoas vazias que nos rodeiam. Todas elas nem sequer imaginam pelo que você passou, as coisas que você aprendeu e com as quais está aprendendo a lidar. E eu tenho certeza que muitas dessas pessoas adorariam ter essa força que você tem. – Eu conheço muito bem essas teorias para fracassados. Eu não me importo de ser ou não forte. De possuir algum crescimento emocional com tudo isso, porque, se eu tenho, ele é negativo. Não é nada disso. É uma questão de estarmos falando do mesmo contexto de vida. 238

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– “A vida a que eu me refiro é a MINHA vida. A vida que eu estava acostumada a ter, a vida em que eu era feliz... Como você se sentiria se estivesse fora de sua própria vida? E, pior, se estivesse fora de si mesma?” Para minha surpresa, Rebecca não se intimidou com a pergunta. Ergueu seu rosto confiante e respondeu: – Eu faria de tudo para me adaptar aos novos contextos. Se me deram uma segunda chance, é porque ainda estou valendo alguma coisa aqui na Terra. É porque querem realmente que eu viva. Era isso que eu faria. As palavras delas me feriram, por serem verdadeiras, e mais ainda por serem inalcançáveis. Recuperei o fôlego por um momento e continuei: – Aliás, por que você quis ser minha amiga? Por que não agiu como todas as outras pessoas estúpidas daquela escola? Apenas me ignorou? – A voz começou a falhar, então parei. Eu já havia perdido o controle da emoção. – Não. Acho que a pergunta certa é por que eu acreditei que você poderia ser minha amiga... – Solucei. Ela permaneceu em silêncio. Serena. E por um longo tempo. Quando imaginei que ela teria ignorado meus devaneios, Rebecca prosseguiu com sua destreza habitual: – Por quê? Você quer saber por que eu não agi como os outros? – Agora ela me vigiava, como se tentasse deduzir cada fragmento de reação minha. – Porque eu me coloquei no seu lugar. – Ela parou por um momento, fazendo minha consciência estalar. – Todos falaram de você. E você não imagina quanta coisa ouvi. Criminosa, fugitiva, estrangeira, filha adotada, repetente, uma simples vadia, drogada... E eu fiquei curiosa de saber quem era você. Quem era você de verdade. – Ela deu ênfase na condição. – No fundo, eu sempre soube que, por trás da sua figura imponente e aparentemente perigosa, havia apenas uma garota de dezesseis anos que gostava de muito tempero na salada e tinha alguns pôsteres colados na parede, 239

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assim como eu. Que poderia estar se sentindo deslocada, perdida. E quando eu olhei para você pela primeira vez naquele refeitório recheado de jovens vazios, eu a enxerguei. Senti que você não estava bem, que ali era o último lugar em que você gostaria de estar. Apenas senti que você precisava de alguém que acreditasse em você. Alguém que enxergasse o quanto você é especial e diferente. Só decidi virar sua amiga porque eu sabia que você é muito mais do que aparenta ser. E, ao contrário do que você pensa, ser diferente não é um fardo. É a forma mais pura de expressarmos nossa felicidade. E é por essa razão que eu queria que você me escutasse. Porque sei que você ainda não é feliz. – “Não deixe que as mudanças sejam um marco de sofrimento. Você estará sofrendo por ir contra uma natureza incontestável. Há momentos em que precisamos ser maiores e mais fortes para aceitarmos as mudanças.” Eu olhei para baixo, tentando desanuviar certas aflições. – Não guarde isso dentro de você. Isso só vai piorar a situação, querida. – Rebecca. – Fitei-a com toda a minha dor transbordando pela alma. – Eu só não queria envolvê-la em tantos problemas... – Chamá-los de problemas é opcional. Você pode muito bem defini-los como crescimento. Só depende de você. E eu estou com você. Não quero que reprima suas dores, porque, se somos realmente amigas, dividiremos tudo. Por mais que eu nunca tenha dito, sempre notei que seus sorrisos eram apenas um disfarce para sua tristeza... Não deixe que tudo isso a mate por dentro aos pouquinhos. Se você acha que não há mais motivos para se levantar todos os dias, imagine que você ainda precisa lutar. Lutar para conseguir ser feliz, de fato. E se quiser alguém para ajudá-la a não cair, eu estarei aqui. Sua luta será a minha luta. É isso que melhores amigas devem fazer. E eu farei isso por você. 240

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Uma lágrima escorreu calmamente pelo meu rosto. Rebecca se sentou ao meu lado e me chamou para um abraço. Não recusei. As lágrimas não se contiveram. – Você pode ficar aqui se quiser – ela disse enquanto afagava meus cabelos. – Vou ligar para sua mãe e dizer que você está bem. Não trocamos muitas palavras após nossa longa discussão. Não era necessário tocar mais naquele assunto. Eu deveria me conformar com as novas condições. Eu era Holly Armstrong. Uma garota que tinha sim um passado transgressor, péssimas lembranças e uma linha perdida entre quem eu era e em quem eu havia me tornado. Era hora de assumir minha verdadeira personalidade.

* Duas semanas se passaram rapidamente após aquele domingo revelador. Eu e Rebecca continuamos amigas. E se eu possuía algum receio de que nossa amizade pudesse mudar de rumo... ela de fato mudou. Intensificou a relação de cumplicidade mais verdadeira que eu já pude ter em toda minha vida. Agora não havia mais segredos e às vezes eu achava que minha melhor amiga me conhecia muito mais do que eu mesma. Num sábado chuvoso, Rebecca e eu decidimos ir até o shopping próximo à minha casa para comprarmos o presente da May, já que seu aniversário ocorreria na próxima semana. Sem ter nenhuma noção do que eu poderia dar a ela, nós partimos a peregrinar pelos corredores em busca de alguma loja de presentes. O que resultou em continuarmos de mãos vazias. Rebecca já havia lhe comprado uma mochila muito estilosa da Victoria’s Secret. – E se eu der uma bolsa também? – sugeri. – Larga de ser copiona! – Rebecca riu. – Vamos, você consegue melhor do que isso. 241

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Suspirei, exausta e desanimada. Ela tentou me inspirar. – Pense em algo que você gostaria de ganhar, acho vocês bem parecidas. – Ah, não sou dessas. Não tenho nada em mente no momento. – Então pense em algo que você ganhou nos últimos tempos e que gostou. Parei por um momento. Um insight iluminou minhas ideias. – Já sei! Lembra da festa de São Valentino que você fez na sua casa? O Leo me deu um CD do Guns N’ Roses. May gosta bastante de algumas bandas. – Ela é louca pelo Paramore. – Rebecca revirou os olhos, como se o fato lhe entediasse. – Então deve ter alguma loja de CDs por aqui. – Entusiasmada, apressei Rebecca a puxando pelo braço. No terceiro piso, encontramos um grande armazém que vendia de milhares de álbuns a todos os tipos de instrumentos musicais. Revirei algumas prateleiras atrás de títulos enquanto Rebecca trocava altas conversas com o atendente. Caminhei por um corredor estreito e visualizei uma coleção de discos de vinil organizadamente empilhados. Esses sempre foram os melhores. Ao passar um a um, surpreendi-me quando um em especial chegou às minhas mãos. Era uma edição limitada de um dos álbuns em versão LP do Paramore, banda preferida da May. E ainda vinha com um megapôster como brinde. Ela definitivamente adoraria! Rebecca aprovou totalmente minha escolha e nos retiramos da loja assim que eu o comprei. Com o presente em mãos, partimos para a casa da avó da May, que ficava próximo à praia de La Jolla. Seria naquela espaçosa casa de frente para praia que se realizaria a tão aguardada festa. Nós havíamos combinado de ajudá-la a embalar umas lembrancinhas que seriam entregues ao final da festa. Fora a decoração de um grande cartaz, em que todos os convidados deixariam mensagens. Henrique também havia prometido ir. Aliás, nas últimas semanas, ele esteve 242

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muito próximo de mim e da Rebecca. Como eles eram praticamente vizinhos, sempre que eu ficava por lá, Henrique tratava de aparecer, acompanhado de seus sorrisos agradáveis e irresistíveis. O que sempre resultava em boas risadas durante tardes afora. Por mais que às vezes rolasse um clima de flerte entre nós, Henrique era um ótimo amigo. – May também já passou um pedacinho difícil tempos atrás. Agora ela mora com a avó e ficou tudo bem. Mas ela já sofreu muito. – Acho que você realmente tem um ímã para amigas problemáticas. – Ah – ela banalizou. – Todo mundo tem problemas. O que não é comum são pessoas dispostas a ajudar quando você precisa. – Tem razão – concordei. Pois bem, no fim da noite, acabamos por afastar o sofá de módulos e nos estirar ao chão da ampla sala de estar para espalharmos os embrulhos. May e Rebecca ficaram responsáveis pelo cartaz. Eu ainda não havia entendido a finalidade do item decorativo, então questionei: – May, o que você vai fazer com um cartaz tão grande como esse? A jovem menina de cabelos vermelhos, que na ocasião estavam presos despojadamente ao alto da cabeça, se entreolhou ligeiramente com Rebecca, como se quisesse omitir algo. – Acho que você pode contar para ela – Rebecca instou. – Bom, está vendo essas canetas coloridas que vocês estão embalando? Vou dar uma para cada convidado para escrever dedicatórias e assinar direto no cartaz, como um mural... Eu pretendo digitalizar tudo e colocar como papel de parede em algum lugar do meu quarto. – Nossa... É um bom jeito de recordar. As duas se entreolharam novamente, mas ficou por conta do silêncio. 243

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Após conseguirmos terminar o serviço de embrulho, fomos para casa. Eu me deitei na cama antes de Rebecca e me reservei a um silêncio particular, dando asas à minha consciência. Era possível dizer que longos períodos de tempo se passavam até que eu voltasse a ter aquelas velhas lembranças... Como sempre, aquela realidade paralela me desviava da vida ao meu redor e, quando vi, Rebecca já havia se deitado. – No que você está pensando? – ela perguntou, admirando meus olhos distantes. Suspirei antes de responder. – Coisas sem sentido. Ela ficou em silêncio. – Coisas que lhe fazem mal – ela completou. – É impossível querer mentir para você. Ela sorriu um pouco desapontada. – É que, sei lá, você não está com os olhos jogados como quem pensa “nossa, como eu amo manteiga de amendoim!”. De repente eu a interrompi com uma boa risada. Sua franqueza sempre me desmontava. – É como se... existisse algo mais forte. Algo que realmente a incomodasse, a ferisse. Permaneci em silêncio. Suas palavras tinham sido suficientes. – Você quer conversar? – Não sei. Às vezes eu me sinto tão bem, como se nada tivesse acontecido. E às vezes algo consegue despertar a minha atenção... E faz com que um filme longo passe na minha cabeça. É estranho. Ela ficou em silêncio, como se estivesse raciocinando. – Sabe o que é realmente estranho? – Aguardei. – Desde quando procurei na internet sobre o que aconteceu com você, um detalhe me deixou intrigada... Continuei quieta, aguardando. 244

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– Não é um tanto quanto redundante você se mudar para cá, sendo que o Forrest chefiava – ou ainda chefia – um dos maiores cartéis da cidade? Ela disse o nome com tanta impassibilidade, mas isso não impediu que eu sentisse meu coração socar a boca do meu estômago. – O quê? – Tudo bem que ele está foragido, mas duvido muito que ele abandonaria os negócios. – Você fala como se o conhecesse. – E eu o conheço – Rebecca então contornou, ao ver meu semblante pasmo. – Quer dizer, o vi na TV inúmeras vezes. Ele foi criado aqui. Muita gente o conhece. Figurinha repetida. Continuei em silêncio, incrédula. Muitas informações novas. – Ei, não fique assim. Você tem de pensar que daqui a um tempo vai rir de tudo isso. – Como se fosse fácil – redargui. Ela se refestelou aos travesseiros, impaciente. – Sabe, amiga, tudo isso precisa de um fim. O tipo de fim necessário. – Como assim? – Levantei uma sobrancelha. – É. Existem vários tipos de fins. Abri um pouco os olhos, queria prestar atenção naquilo. Ela prosseguiu: – Têm situações na vida da gente em que sabemos quando algo vai acabar. É tipo um fim programado. Já em outras ocasiões, quando temos dilemas para esclarecer, o fim é uma opção, então temos o fim escolhido... E às vezes o fim vem tão de repente. Vem sozinho, sem ninguém perceber. Acaba com tudo. É forçado. – E o fim necessário? – É o seu fim. Holly, pôr um fim em tudo isso é a única forma de você conseguir retomar sua vida. Por isso é um fim necessário. O fim que irá salvar sua vida. Apenas pense a respeito. 245

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Rebecca me olhou uma última vez antes de se virar e me desejar boa noite. Eu apenas consenti, mas seria impossível que minha cabeça se desligasse depois daquelas informações. Era óbvio que eu precisava concluir a minha própria teoria sobre fins. Se eu precisava colocar um fim naquela história, seria preciso dar início a outra fase. Nenhum fim, por mais necessário, programado ou forçado que fosse, seria suficiente sem um começo. Eu estava pronta para a nova fase, mesmo eu ainda não sabendo para onde empenharia minhas forças. “Como se preparar para o indefinido, para o desconhecido, quando não se pode imaginar o que lhe espera? Você não sabe quem estará a seu favor. É hora de se preparar para o oculto. Notá-lo é o seu mais novo desafio.”

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CAPÍTULO CATORZE

produto notável

– Então posso ficar tranquila? – mamãe advertiu Rebecca enquanto me deixava em sua casa na noite de sexta-feira. Estávamos paradas em frente à porta do sobrado. Em algumas horas, ocorreria a festa da May. – Tomarei conta dela, não se preocupe. – Rebecca sorriu confiante ao olhar para mim. – Divirtam-se, meninas – mamãe se despediu rapidamente, seguindo para seu carro. – Até mais tarde, Catherine – minha amiga retribuiu o cumprimento, trazendo-me para dentro em um instante. – Mas aonde você pensa que vai vestida assim? – Rebecca me olhou de cima a baixo e disparou, já trancando a porta. Não entendi. – Como assim? – Analisei-me primeiramente. Eu estava tão satisfeita com meu short jeans curto, camisa xadrez e tênis... E então encarei Rebecca, que estava muito bem produzida em um vestido tomara-que-caia de cetim amarelo-canário, que se estendia até a metade de suas coxas e deixava suas curvas salientadas. – Holly, nós não vamos a uma festa de aniversário de criança comer bolo com refrigerante para você se vestir assim. – Está feio? – Fiz uma careta. – Está lindo... Para você passear no parque, andar na praia... Não para ir a uma festa noturna. Vem, você deve usar o mesmo tamanho do que eu. Ela saltitou pela escada até o andar superior. Não tive outra saída a não ser acompanhá-la. Rebecca abriu seu armário e começou a revirar os cabides, sem parar de falar. 247

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– Se eu soubesse teria pedido algo emprestado a Crystal. – Ela riu de repente. – Aquela garota tem um guarda-roupa invejável. – Rebecca puxou uma das gavetas apressada. – Mas acho que se eu colocar isso aqui... – Ela alcançou algo, sem tirar os olhos da próxima peça – Com isso aqui... – Olhou-me como se já me imaginasse vestida. – Vai ficar DIVINO! – Ela jogou uma combinação em cima de sua cama, ao lado de onde eu estava sentada. Era nada mais do que uma saia de cintura alta preta bem justa e uma regata branca de malha sintética. Rebecca terminou de adicionar um colar de prata e um par de saltos altos. Eu hesitei por um momento, entediada. – Vamos, Holly. Experimente! Não temos todo tempo do mundo. Suspirei e, embora contrariada, sorri diante de sua preocupação habitual. Preparei-me para trocar de roupa. – Só quero que você seja a garota mais bonita daquela festa. Ela segurou meus ombros, olhando-me orgulhosa. – Vou tentar. – Sorri singelamente. Admirei-me no grande espelho que havia em frente da cama logo depois que consegui encaixar os sapatos nos pés. Alisei a textura firme daquela saia que se ajustava exatamente às curvas do meu corpo. Rebecca me espiou pela porta e se aproximou. – Holly... – Seus olhos se perderam em um lisonjeio distinto. – Você está radiante! – Ela bateu palminhas, feliz. Virei-me para conferir a roupa. – Estou me sentindo tão madura. Nem pareço uma garota. Isso é bom? – Claro que é! Agora senta aí na cama. Vou dar um jeito nos seus olhos com um pouco de maquiagem. Ela terminou rápido. Levantei e analisei o resultado no espelho. Minhas pálpebras estavam destacadas por uma linha caprichada de delineador. 248

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– Não sabia que você tinha dotes de maquiadora. Aliás, você não tem cara que curte essas frivolidades. Rebecca riu deliciosamente. – Isso foi um elogio? Você gostou? – Se eu gostei? – Ri ironizando. – Está maravilhoso – falei convicta. – Pronta para a melhor noite de todas? – Seus olhos desafiadores me encararam por um breve momento e eu assenti. Completa e indiscutivelmente confiante, recolhi o presente da May e partimos. O tempo estava levemente abafado. Um céu limpo e estrelado se estampava no céu negro, embelezando nosso trajeto até La Jolla. Adentramos pelo portão automático, e Rebecca estacionou o carro. No vasto quintal da casa, havia diversas mesas belamente ornamentadas e distribuídas ao redor da piscina para recepcionar os convidados. Um palanque discreto estava posicionado ao leste do jardim. Nenhum convidado estava presente, já que o horário marcado nos convites era onze horas. A sala principal onde antes havia dado lugar para centenas de embrulhos, recortes e cola branca no sábado anterior, agora possuía diversos sofás estrategicamente posicionados ao redor do ambiente, deixando o espaço central livre para uma possível pista de dança. Algumas pessoas que estavam organizando a festa esperavam pela Rebecca. Inclusive uma moça alta de cabelos louros naturais. Minha amiga passou a caminhar pelo ambiente em busca de prováveis falhas, sem parar de falar. – E aí, o cara do som já instalou os equipamentos? – Saiu agora. Tá tudo pronto – a jovem mulher respondeu sem hesitar. – As ajudantes do bufê? – Já estão na cozinha. – E May? Ela está bem? 249

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– Fazendo os últimos ensaios lá em cima. As outras meninas também. – Ótimo. Parece que tudo está sob controle. – Rebecca de repente se virou, notando minha presença. – Holly. – Ela suspirou. – Desculpe a correria. – Ela sorriu largamente. – Bem, essa é a Hellen, tia da May. Está me dando uma força com os preparativos. – Estamos tentando. – A moça riu e me olhou simpaticamente. – Tudo bem? Rebecca encheu meus ouvidos falando sobre você! – Essa garota me ama, não é? – Sorri convencida e rimos em conjunto. – Só um pouquinho – Rebecca então confessou, piscando um dos olhos. – Holly, não quer entregar seu presente a May? Eu vou ficar aqui embaixo, por enquanto. Hellen leva você até lá em cima, não é, Hellen? – Claro, venha comigo. – Ela se dirigiu até as escadas e eu a segui. Logo tomei liberdade de puxar papo com a moça de traços delicados. – É impressão minha ou vai rolar alguma surpresa? Aquele palanque lá fora foi montado para alguma apresentação? Hellen riu, percebendo que eu havia matado a charada. – Isso mesmo. Como a May não queria valsa, e convenhamos que é muito ultrapassado – ela fez uma careta adorável –, nós resolvemos substituir por uma apresentação. May adora danças exóticas. Ela decidiu fazer uma indiana. – Realmente é a cara dela. – Sorri, já estávamos no andar superior. Passamos por alguns corredores e logo reconheci a porta do quarto da pequena garota de cabelos vermelhos. Ela estava sentada em frente de sua penteadeira, encaixando alguns adornos nos fios dos cabelos, que estavam bem presos em um rabo de cavalo lateral. A maquiagem negra protuberante destacou seus olhos verdes exuberantes. – Quem é a aniversariante mais bonita de todas? – chamei a sua atenção, dando dois toques na porta semiaberta. Hellen se 250

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afastou, deixando-nos sozinhas. Quando May me viu, seus lábios se abriram em um sorriso encantador. Abri os braços para recebê-la como um cumprimento. – Feliz aniversário, querida! – Ela se fechou em meu abraço. – Obrigada por vir. Como estou? – ela perguntou, já afastada. Segurei em suas mãos e admirei seu semblante produzido. – Deslumbrante. – Sorri. – Olha, trouxe isto para você. – Entreguei o embrulho do presente. – Meu Deus! Você realmente conseguiu escolher. – Nem foi tão difícil. Vamos, abra! Com seus dedos delicados, ela rompeu o lacre do celofane brilhante. – Não acredito! – May abriu o maior sorriso que pôde ao vislumbrar a edição limitada de um dos álbuns da sua banda favorita. Ela voltou a sua penteadeira, sem tirar os olhos do LP. – Nossa! Onde você conseguiu encontrar este tesouro? Já fazia um tempo que eu esperava achar um desses! Obrigada mesmo! – Sabia que adoraria. Ela posicionou o disco de vinil em cima da sua penteadeira com um carinho desmedido. Logo percebi que seus olhos se refletiram no espelho com ares decepcionados. – O que foi, amiga? Você não parece muito feliz. May retirou a tiara de brilhantes por um momento, com a mente distante. Aproximei-me. – May, você esperou o mês inteiro por essa festa. O que aconteceu? – Rebecca deve ter contado, não é? – Sobre o lance difícil entre a sua mãe e seu pai? Ela me disse por alto. May suspirou. A imagem da menina com alegria efervescente se desfez diante dos meus olhos. Deu lugar a uma expressão madura e desiludida. 251

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– Meu pai conquistou finalmente a minha guarda. Não vou mais morar com a minha avó. – Mas isso é ótimo. – Tentei animá-la. – Ele mora na Austrália, Holly – revelou friamente. – Ah. – Tudo fez sentido naquele momento. – Por isso o lance do cartaz e das dedicatórias? – A festa não é apenas a comemoração do meu 16o aniversário. – É uma despedida – deduzi. – Não quis espalhar logo de cara, porque imaginei que dificultaria ainda mais. Apenas a Rebecca sabia de tudo. Queria poupar todos vocês. – Ah, May. Não fale assim. Você não está feliz por saber que alguém vai realmente cuidar de você? Que alguém realmente quer cuidar de você? – Com certeza, né, mas é tudo tão diferente. É tão difícil quando não se sabe o que virá pela frente. Principalmente quando sua vida parece que finalmente engatou nos trilhos certos... – Bufou, desviando seus olhos lentamente; pensativa. Reprimi um sorriso. Minha memória me remeteu a uma lembrança própria daquela frase: “É tudo tão diferente”. – May... Não foram pelas mesmas circunstâncias, mas posso dizer que já passei por isso. E sei muito bem que culpar as mudanças não é o caminho. Às vezes só nos resta nos adaptarmos a elas, porque é o melhor a se fazer. – Sorri tentando reconfortá-la. E, mesmo assim, ainda havia um pouco de dor no fundo dos seus olhos. – Você é uma garota linda. Todo mundo vai gostar de você. É sério que eu falei aquilo? Holly, cala a boca! Como se isso realmente fosse confiável. Mas estávamos falando, ainda assim, de circunstâncias diferentes. Esse papo de “você é uma garota linda, vai se adaptar” às vezes não funciona. – Obrigada! – Sorriu sombriamente. 252

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Uma lágrima se formou em minha pálpebra; e nas de May também, mas ela tentou disfarçar puxando outro assunto. – Todas nós temos problemas demais, não é? – Ela tentou sorrir. Correspondi. – Acho bom nós secarmos essas lágrimas. – Funguei e passei a ponta dos meus dedos em suas bochechas com desvelo. – Antes que borre a maquiagem. Ela riu. – Que tal trocar de roupa e se preparar para a melhor noite de todas? Para a SUA noite? – Repousei minha mão sobre seu ombro. – Acho uma ótima ideia. – E então ela finalmente sorriu, de verdade. A garota terminou de se arrumar, colocando um lindo vestido de seda rosa, com pregas volumosas acima das coxas. Ajudei-a a fechar o zíper traseiro e logo ouvi a voz retumbante de Rebecca se infiltrar no ambiente. – O que as bonitinhas estão fazendo aqui ainda? O fotógrafo acabou de chegar! – Ela adentrou no quarto, vendo May já pronta. Rebecca abriu um sorriso ao ver a amiga. – Você está incrivelmente linda, May! – ela disse as palavras pausadamente. – Aprovada, então? – Sem sombra de dúvida! Aliás, Will! Venha aqui – ela exclamou para alguém que estava no corredor. Um homem de meia -idade surgiu com uma câmera pendurada ao pescoço. – Pode bater uma foto nossa! Rebecca se aproximou de nós duas, e May se posicionou ao meio. O flash foi acionado enquanto fizemos uma pose descontraída e acabamos saindo fazendo careta. Já muito próximo das onze horas os convidados começaram a chegar. Quando me dei conta, havia mais rostos do que minha 253

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capacidade de memória poderia reconhecer. Eu fatalmente não me recordaria daquelas pessoas assim que saíssem dali. Eram garotos, garotas, casais, adultos, alguns professores da escola. Uma música leve tocava ao fundo da casa enquanto o bufê rolava solto no quintal. Rebecca passou a circular pelos cômodos, socializando geral. Eu me reservei a um canto, mais especificamente ao minibar montado, apenas apreciando a companhia de uma boa dose de bebida. Foi entre um gole e outro que avistei Ian entre os rostos sorridentes e dançantes à minha volta. Ele parecia meio perdido. – Ian! – Fiz um alarde desnecessário para que ele me notasse. Ele sorriu daquele seu jeito sarcástico, achando minha demonstração de afeto muito exagerada. – Olha só! Alguém está vestida para matar hoje. – Ele me abraçou e eu acabei caprichando no gesto. – Mais do que o normal. – Ele caçoou. – Você também! – Sorri com segundas intenções. Não posso negar que minha percepção já estava levemente alterada pelo álcool, mas Ian estava muito atraente vestindo calça jeans apertada e camiseta polo branca. – E May? Por onde anda a aniversariante? – Ah, querido. É mais fácil conseguir um autógrafo da Britney Spears do que falar com ela esta noite. Ela é a estrela.– Pisquei. – Cara, se liga! Não é a Jodi? – Ele de repente se surpreendeu. – É a Jodi, sim! Ei, miss Guevara! Aqui! – Acenamos e ela logo se contorceu entre os corpos agitados para nos alcançar. – Gente! Isso aqui está uma loucura! – ela confessou, rindo. – Eu quase não a reconheci! Você está linda, garota! – Analisei-a por completo. Nunca imaginei ver Jodi montada em um salto alto e em um vestido curto como aquele. Ele deixava suas pernas coradas à mostra. – É... – Ian concordou, olhando para a amiga. – Até que enfim esse Pokémon evoluiu. 254

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– Seu idiota! – Jodi o golpeou com a bolsa de mão rapidamente, sem conseguir deter o riso. – Ah, não dê ouvidos a esse pateta! Você está perfeita! – elogiei-a novamente. – Obrigada! – Ela sorriu levemente acanhada. Ao passar os olhos pelo ambiente, notei a presença de outras garotas que circulavam por ali. Aqueles olhares hostis que subiam e desciam não me intimidaram. Eu não estava mais sozinha. Minha galera estava bem ali. – Cara, preciso beber – declarei. – Estou com medo desses olhos – Ian revelou, pasmo com minha declaração. – Ah, Ian, vá descolar uma gata. Aliás, você se comporta como se fosse bom demais para qualquer mortal. Jodi caiu na gargalhada. – Tô tranquilo – confessou. – Gay – fuzilei-o. Jodi não se conteve diante da nossa discussão boba. – Acho que alguém bebeu demais. – A expressão de Ian me repreendeu. Cerrei os olhos e alcancei mais uma dose, virando de uma vez. – Sou mais forte do que isso, vadia – desafiei-o, imitando os trejeitos da Rebecca. – Manda ver! – Ele ergueu as mãos, farto. – Querem fazer o favor de parar com isso? – Jodi interveio. – Vamos curtir. – Henrique! – De repente, o rapaz de olhar charmoso surgiu à nossa frente. – Cumprimentei-o primeiramente e depois Jodi fez o mesmo. Ian pareceu enciumado. – E aí, folha de bananeira? – Ian zombou, mas Henrique não se deu por vencido. – Tudo na boa, fritas? 255

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Jodi riu, e eu saí falando em disparada. – Ah, vocês são muito estraga-prazer. – Encarei Henrique. – Isso, Holly. Fala mais perto, nem estou sentindo o cheiro do álcool. – Ricky se impôs contra meu corpo, e Ian riu da ironia do rival. Jodi interveio novamente. – E cadê a Crystal? Ela não vem à festa? – Ah, ela tem uma prova substituta para a faculdade amanhã. Está em casa enfiada nos livros. – Henrique sorriu amavelmente. – Gente, vão jogar o Mike na piscina! Um dos garotos da turma de Educação Física se aproximou de nós e anunciou a peripécia com exaltação, fazendo Jodi se animar estranhamente. – Vem, Ian! Vamos ver! – Ela o recolheu pela mão, apressada. – Vocês vêm? – Ian perguntou antes de se virar completamente. – Não, estou muito bem aqui – respondi ignorando a brincadeira. E então os dois me deixaram sozinha com Henrique. Um rapaz que portava uma bandeja de bebidas passou, e eu alcancei mais uma. Henrique me viu beber aquela dose e logo recolheu o copo antes que eu terminasse a bebida. – Acho bom a senhorita diminuir o ritmo, não acha? – Estou me sentindo ótima. – Claro. – Ele foi irônico. – Quero você bem consciente até mais tarde. – A voz sedutora dele me fez derreter por dentro. Senti sua mão tocar minha nuca com um toque de êxtase. Sorri desmontada, sentindo seus lábios tocarem minha bochecha. Nossos corpos começaram a se aproximar. – Mas que pouca vergonha é essa? – Reconheci a voz da Rebecca. – Fica esperto, Henrique! Tô vendo esse abuso aí. Há menores de idade aqui. – Ah, agora a senhora aparece, não é? Nem para me dar boa noite. – Henrique se revoltou e chamou-lhe a atenção – Depois eu falo com você, tá. – Ela foi ríspida. – Agora devolve minha amiga. 256

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Rebecca me pegou pela mão e trouxe-me para perto de si, já me guiando para sair dali, atravessando aquela multidão. – Eu não quero ir embora – choraminguei. – Você não vai embora, criatura. Já viu seu estado? Não quero ver você vomitando suas tripas pela casa. Poupe escândalos. – Está bem, mãe. – Bufei. Rebecca me conduziu até a antessala, onde havia várias poltronas e lugares para sentar, e estava totalmente ocupada com um pessoal se entravando em beijos e abraços calorosos. – Eu não quero ficar aqui – afirmei desoladamente. – Muito menos eu. – Ela voltou a segurar em minha mão e atravessamos a sala novamente. – Ei! – Empaquei no meio do caminho, fazendo com que Rebecca parasse também. – O que é agora? – questionou sem paciência. – Você está ouvindo? Ela levantou uma sobrancelha, forçando seu senso auditivo. – O que é, Holly? Henrique ofereceu alguma coisa para você fumar? Bati em seu braço, refutando a ideia. – Não, escuta! Por acaso está ouvindo um som familiar? Não é a música dessa sala. É lá no fundo. – Semicerrei os olhos, tentando avistar algo pela multidão. – Ah, deve ser o pessoal brincando de karaokê. – Sim! E alguém está tentando cantar Guns N’ Roses, Rebecca. Estou quase convicta. – É “Paradise City”, eu acho – Rebecca completou. – ESSE CARA CANTA MUITO MAL! – gritei. – Vamos ir lá ver? – Seus olhos estavam com aquele brio ousado novamente. Seguimos o som e chegamos a um anexo daquela sala. Havia uma TV grande com vários moleques em volta, observando um 257

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garoto magricelo de óculos tentar debilmente acompanhar a letra da música tão superestimada. – Ei! – Cutuquei-o. – Se o Axl estivesse morto, iria se remexer no caixão neste momento! Os outros garotos caíram na risada, ridicularizando-o. – Por que não canta você, então? – provocou-me. – Eu? – Balancei a cabeça, negando. – Vai lá, Holly! Eu sei que você conhece a música de cor – Rebecca me encorajou. – Mas e se... – Vem, vai ser divertido! – Ela se empolgou num átimo. – Eu faço a segunda voz! Pega os microfones. – Ela já tratou de me empurrar para o meio da sala. Meu rosto se ruborizou. Eu desejei por um momento desvanecer. Para piorar, várias pessoas começaram a se aproximar. Inclusive a May, que já chegou caindo na gargalhada. Testei o microfone e a música começou a tocar. Aquela bateria inicial de “Paradise City” foi me dando ânimo. Até que comecei a cantar baixo. Rebecca me acompanhava. Eu mais ria do que qualquer outra coisa. Então as pessoas começaram a bater palmas no ritmo da melodia. – Take me down to the paradise city, where the grass is green and the girls are pretty! – cantei sem imaginar nenhuma plateia. – Oh, won’t you please take me home! – Rebecca prosseguiu: Tentei soltar um agudo, e ela riu alto. Acompanhei a segunda parte da música sem erros. A música corria sozinha pela minha mente. Voltamos a cantar a segunda parte do refrão, com um pouco mais de entonação. Então eu comecei a me soltar. Já estalava os dedos na terceira parte. Quando vi, estava dominando o microfone sozinha, em alto e bom som. Soltei os braços e comecei a pedir ajuda do pessoal. Eu já nem sabia o que estava fazendo no alto da minha embriaguez. 258

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Já na preparação do final da música Rebecca passou seu braço pelo meu ombro e cantou comigo algumas estrofes. – Vou buscar uma coisa, fica aí! – Ela saiu tropeçando entre as almofadas ali na sala de TV, rindo e rindo. Eu fiquei sem entender e continuei a cantar alto. Uma consternação estava instaurada. Todos ali estavam sob uma vibração insana e se remexiam de acordo com a batida da canção. Rebecca chegou já envolvendo minha cabeça em uma bandana vermelha. – O que você está fazendo! – Eu ria descontroladamente. – Não encontrei nenhum modelo aviador, então vai um Wayfarer mesmo! – Ela posicionou o óculos escuro sobre minha cabeça por cima da bandana. Passou os braços pela minha cintura e voltou a cantar comigo no mesmo microfone. Nós seguíamos para o último refrão da música. Rebecca e eu estávamos no ápice do êxtase. Todo mundo já assobiava, batia palmas e ria. Ao final, jogamo-nos sobre as almofadas, cansadas e sem nenhum fôlego, mas ainda havia sobrado uma porção de risos sinceros. Rolei até a Rebecca, e ela me abraçou, rindo. Olhou para mim com seus olhos afetuosos. – Tá feliz? – MUITO! – Estalei um beijo em sua bochecha. – Te amo, Becky! – Também me amo! – Ela gargalhou da própria piada. – Sua sem graça! – Você sabe da verdade. É lógico que eu te amo também! – Terminamos de nos abraçar. E eu guardaria aquela boa lembrança por muito tempo junto com as melhores memórias da minha vida. Rebecca me auxiliou a levantar, já retirando os adornos que ela havia colocado. A galera se dispersou, dando espaço para outras pessoas interagirem no karaokê. – Vou até o banheiro, já volto – despedi-me rapidamente. 259

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Eu sabia que embaixo da escadaria havia um toalete. Eu queria jogar uma água no rosto, pois me sentia quente e um pouco tonta. Mas, antes de chegar ao meu destino, não consegui me equilibrar e, se não fosse por um par de braços solidários, eu teria ido ao chão num rompante antes mesmo de abrir a porta. Ao subir os olhos, a surpresa me desnorteou. Um par de olhos azuis penetrantes me encarou com preocupação. – Leo! Você veio! – Aproveitei a aproximação repentina e o abracei. – Você está bem? – Ainda preocupado, ele fez questão de verificar meu rosto. – Graças a você. – Sorri agradecida e ele me retribuiu o gesto, com aquela essência juvenil que eu tanto admirava. Os olhos derretidos numa expressão doce e amável. Nossos corpos estavam pertos demais. Leo de repente ficou afônico, sem reação. Num súbito da minha consciência, eu terminei por alcançar seus lábios, num beijo intenso e descabidamente intolerável. Não era o beijo que eu esperava, mas aconteceu. Ele me agarrou forte, talvez esperasse por aquele momento muito mais do que eu. Um pouco de sensatez acabou por me invadir e eu me afastei subitamente. Olhei para seu rosto, completamente boquiaberta, desnorteada. Não. Estava errado. Estava muito errado. – Que foi? – O medo tomou sua expressão. A rejeição lhe parecia óbvia. – Não devia ter feito isso. Não, não devia. – Tentei me afastar. – Holly... – Ele tentou me impedir. – Espera, vamos conversar. – Não, eu não quero enganar ninguém. Não posso. Sem querer prestar atenção em futuras reações, eu me retirei sem olhar para trás. Eu precisava respirar um pouco de ar. Precisava poupar meus ouvidos daquela algazarra. O silêncio me permitiria uma calma que me colocasse no controle da emoção. 260

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Saí por uma das portas da casa para tentar chegar ao quintal, só que acabei alcançando a rua de trás. Fiquei um pouco perdida e apoiei o corpo no capô do primeiro carro que avistei. Passei a mão na minha testa, confusa. Inspirei, tentando armazenar o máximo de oxigênio. O barulho da casa estava distante. Senti o gosto inconfundível de uma ânsia iminente. Sentei junto ao meio-fio, embaixo de uma árvore, completamente sem forças. O tronco serviu para eu apoiar minhas costas e poder sentir a brisa do mar adentrar pelas minhas narinas. A tontura cessou por um momento. Quando imaginei que nada poderia atrapalhar meu momento de relaxamento, meia dúzia de gritos femininos estridentes provocou meus ouvidos sensíveis. Levantei-me com muita dificuldade, motivada pelo ímpeto de saciar a curiosidade. De quem seria aquele escândalo? À medida que eu me aproximava, as injúrias se tornavam mais claras. Você não poderia ter feito isso comigo! E houve uma sequência de soluços. Como você pode entrar lá dentro e ainda devorar aquela vadia com os olhos? Aproximei-me sorrateiramente, caçando a origem dos berros. Era um casal. Uma moça morena tinha seu semblante desmontado em lágrimas e encarava um rapaz não muito mais velho encostado ao capô de uma SUV preta. Ele parecia impaciente. E, então, tudo ficou mais visível. A moça era nada menos do que Miranda, e estava enfurecida com o tal cara. Eles estavam a alguns metros de mim. Ela choramingava, implorava e às vezes gritava. Aquela vadia tinha namorado? Não consegui vê-lo direito. Era um sujeito alto e tinha metade do braço fechado em tatuagens. Estava de costas, então só consegui ver seu tênis absolutamente branco. O que me chocou mais foi a expressão da Miranda. Completamente desmontada. 261

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Coitada. Balancei a cabeça e até um breve sentimento de pena me corrompeu. Fiquei mais alguns segundos ali observando, camuflada pela sombra de algumas árvores. Ela se afastou logo em seguida, aos prantos. Ele nem tentou correr atrás. Pelos movimentos do sujeito, deveria voltar à festa logo. Saí rápido antes que eu pudesse ser descoberta. Entrei na casa e nenhum sinal do Leo. As pessoas estavam me olhando... Estranho. Um sujeito louro de braços musculosos se colocou à minha frente, fazendo gracinhas. Empurrei-o com certa força e continuei andando, mas antes tirei o copo de cerveja da sua mão, que felizmente estava bem cheio, e acabei bebendo tudo em alguns goles. – Idiota – resmunguei. Onde estava Rebecca? Comecei a buscá-la pelo aglomerado. – Olha só, é a menina do Guns! – Ouvi tal frase com certa frequência e nem me importei, já que o que eu queria mesmo era encontrar minha melhor amiga. Vi jovens em rodas disputando apostas de quem bebia mais, casais pelos cantos dançando colados e muita gente para lá de bêbada... mas nenhum sinal dela. Já passava da meia-noite. Não sei quando, mas uma garrafa de vodca acabou parando em minha mão. Eu me servi com uma boa dose, adicionando logo depois um pouco de gelo e suco de limão. Entornei boas quantidades, até sentir um braço me puxar. – Escuta, dá para parar de sumir desse jeito? – Rebecca me virou rapidamente e eu quase caí. Seus braços firmes impediram que meu corpo se estirasse ao chão. – Puta que pariu, Holly! Você tá muito bêbada! Onde você estava? Comecei a rir alto, sem forças. – Quero vomitar. – Mas que droga! Ian! Me ajuda aqui! Holly tá passando mal! 262

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Só me lembro de ter escorregado dos braços da minha melhor amiga naquele momento e sentir meus joelhos tocarem o chão. Eu ria descontroladamente e não sentia meu corpo. Aquela sensação de ânsia emergiu pela garganta. – Banho de água gelada ou glicose na veia, doutora? – Ouvi Ian conversar com Rebecca e sua voz estava distante demais para eu contradizer suas palavras. – Casa da piscina. Pede para Jodi levar algo para essa garota comer. E água. Muita água.

* – Eu estraguei tudo, não é? – Ei, acalme-se. Você vai ficar bem. Deitada sobre uma aconchegante cama de casal, Rebecca e eu conversávamos dentro da casa da piscina. Aquele ambiente pequeno era apenas um anexo do restante da propriedade. O espaço era rodeado por janelas de vidro, que na ocasião estavam tampadas pelas cortinas escuras. E ainda assim era possível ver o reflexo das luzes fluorescentes do quintal. – Você ainda vai ser minha amiga amanhã? – Eu me sentia um lixo. Rebecca riu por um momento diante dos meus devaneios. – A melhor de todas. – Tenho tanto medo de perder você. Já perdi tantas coisas nos últimos tempos, e você é tão importante para mim – choraminguei. – Shhh. – Ela passou sua mão delicada pelo meu rosto rindo suavemente. – Você fica tão engraçada bêbada. – Rebecca terminou de rir e me olhou com apreço. – Eu prometi que ficaria do seu lado, não prometi? Assenti por um momento, sem forças. 263

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– Estarei sempre aqui. Mesmo se for para subir numa mesa para ajudá-la a cantar, para segurar sua mão durante uma boa ressaca ou para fazer você se sentir a garota mais bonita da festa... Sempre. – Eu amo você – confessei, com uma lágrima alojada em minha pálpebra. – Eu também. – Minha melhor amiga sorriu confiante. – Qualquer coisa eu estarei na festa. Se estiver se sentindo bem o suficiente, levo você para assistir à apresentação da May. Até lá você tem umas horinhas para descansar. Rebecca apertou minha mão, despedindo-se. Fechei os olhos e senti a dor de cabeça, que antes pulsava forte, se suavizar. Eu me encaixei confortavelmente aos travesseiros e uma sensação prazerosa emanou sobre meu corpo. Entreguei-me ao sono antes mesmo de ver Rebecca fechar a porta e partir de vez.

* Acordei com uma enxurrada de palmas entusiasmadas. O som me remeteu a um fato óbvio. Sim, eu havia conseguido perder a apresentação da May. Revoltei-me inutilmente e tentei erguer a cabeça. Parecia que eu tinha sido atropelada por um caminhão. Acostumada com a escuridão do ambiente, meus olhos se incomodaram com o surgimento inesperado da claridade. Quem havia acendido a luz? Quase que peguei o travesseiro e tampei a cara, mas eu não tinha forças para isso. – Está melhor, senhorita Jack Daniel’s? A voz não me pareceu estranha. Alguém tinha adentrado o ambiente. – Henrique – sussurrei seu nome ao ver sua penumbra se aproximar da cama. Ele sentou-se num espaço vago, colocando sua mão sobre meu braço, verificando se eu ainda dormia. Eu ri, ainda levada pelo efeito das bebidas. 264

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– Rebecca me contou que você estava aqui. Você sumiu durante a festa. – É. Houve um pequeno contratempo. Mas estou ótima. – Finalmente ergui a cabeça e analisei seu rosto. – Perdi alguma coisa? Além da apresentação da May? – Acho que não. – Sua expressão não era muito satisfeita. – Hmmm. Por que essa decepção? A festa estava cheia de garotas bonitas. Henrique riu desconcertado e acabou por não responder. – Ficou no zero a zero mesmo? – Deduzi diante do seu silêncio entregador. – O que eu posso fazer? Essas garotas bonitas só estão a fim de encher a cara e desmaiar por aí. A indireta dele me fez ruborizar. – Poderia ser pior, acredite – eu disse, desapontada com o meu histórico. – Ah, é? E qual foi o seu placar? Ergui o corpo, desejando ficar sentada. Equilibrei-me sobre o colchão, sem tirar os olhos da expressão gulosa do Henrique. – Não sei. Quebrei alguns corações. Gol contra. Ele riu alto. – Acho que você precisa adotar uma nova tática – lançou. Fitei seu rosto. Nós estávamos perto demais. O brilho esverdeado dos seus olhos relampejava suavemente diante da luz fraca. Henrique não se moveu. Suas mãos pararam sobre minha perna e ali ficaram. – Posso estar diante de uma boa oportunidade de mudar isso. – Ah, é? – Sua sobrancelha se ergueu, desafiando-me. Por uma fração de segundo, analisei sua expressão hesitante e não esperei para alcançar seus lábios doces e firmes, deixando que um beijo intenso me incendiasse por um longo momento. Segurei sua nuca com destreza, embalando uma segunda velocidade, mas fui 265

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impedida a continuar diante de uma crise de riso do Henrique. Ele não se continha. – Que foi? – Parei à sua frente, sem saber o que fazer. – Eu sou um idiota – afirmou, em meio a risadas descontroladas. – Agora que você percebeu. – Ignorei sua síncope inconveniente e tratei de jogá-lo contra o colchão, dando-me espaço para alcançar seu pescoço e distribuir beijos, descendo até a pele rígida do seu peito. Inexplicavelmente, Henrique segurou meus ombros, como se quisesse deter as carícias. – Holly. – Henrique pareceu suplicar para que eu parasse. – O que é? – Revoltei-me, impaciente. – Não quero continuar com isso. – Seus olhos me encararam, sérios. Rolei para o outro lado do colchão, completamente frustrada. – Eu sou uma vadia – choraminguei. – Não! Não é isso. – Ele continuou a rir. – Estou fora de controle, eu sei – confessei debilmente. – Boba, olhe para mim. Fiquei de costas para ele, escondendo o rosto entre os travesseiros. – Não precisa se esconder, Holly. Vamos, olhe para mim. Voltei a fitar seu rosto. – Você sabe que eu gosto muito de você, não sabe? E então quem não aguentou fui eu. Comecei a dar risada. – Tô falando sério. Posso estar sendo o cara mais gay de todas as galáxias dizendo isso, mas... Eu já fiz o mesmo com a Rebecca. Só que nós somos apenas grandes amigos. E você é uma garota legal demais. Tão legal que não posso ficar com você. Eu sou apenas um idiota. Não quero estragar nossa amizade. As palavras dele demoraram a se processar em minha mente. No entanto, elas acabaram por fazer sentido. Sorri, aliviada. 266

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– Você tem razão. Eu amo você, Henrique. Ele riu novamente, banalizando minha demonstração de carinho ainda muito afetada pela embriaguez. E então nós nos abraçamos, ali jogados sobre a cama. Uma batida à porta nos despertou. – Vocês estão vestidos? Posso entrar? – Era a voz inconfundível da Rebecca. Nós rimos, e ela adentrou logo em seguida. – Becky, não seja idiota. – Tentei lançar um dos sapatos que estava no meu pé em sua direção. – Ei, esse sapato é meu, sabia? Nós três gargalhamos. – Tô atrapalhando alguma coisa? – Não... A gente só estava conversando. Fazendo um balanço de como foi nossa noite. – Gente! Eu tenho tanta coisa para contar! – Rebecca correu para se empoleirar na cama, junto a nós. Ela carregava uma garrafa de refrigerante. – Jodi e Mike! – Ela deu uma pausa dramática. – Os dois se beijaram! – Rebecca riu com as mãos na frente do rosto. Não acreditei. – Como assim?! – Entreolhei-me com Henrique, abismada. – É! Depois de vários copos de cerveja, ele cedeu. Filmaram e tudo mais. – Pô, pelo menos houve um final feliz, não é?! Eu só consegui quebrar um coração. – Leo. – Minha melhor amiga decifrou a razão da minha lamentação. – Eu o vi saindo da festa... – Rebecca manteve seus olhos distantes, como se a triste figura do garoto invadisse suas lembranças. – Cabeça baixa, poucas palavras, sorriso desmontado. – Droga – lamentei-me novamente. – Ah, desencana. O Leo é só mais um idiota. Ele não é o tipo certo de garoto para você. – E você sabe qual é? 267

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Ela sorriu convicta antes de responder. – Nada contra o Leo, mas... Você merece um homem de verdade. Garotas fortes precisam de homens fortes; e não de garotos, simplesmente. Depois de tudo pelo que você passou. Precisa de alguém a sua altura. – Tenho medo quando ela fala assim – Henrique confessou e Rebecca o censurou. – Estúpido – ela resmungou, sem perder o humor. – Mas, bem, fora isso... Lembra daquele papo sobre o Seth ser gay? Holly, você estava certa! – Opa, opa, opa, Becky, que viagem é essa? – Henrique não compreendeu e atravessou a conversa. – Tudo culpa do “gaydar” da Holly. Eu ri alto e Ricky continuou sem entender. – Seth é gay. Acredite – afirmei com veemência. Ele continuou incrédulo. Rebecca passou a perna por cima de seu colo. – Que marca é meu sapato, Henrique? – Ah. É... – Ele não soube responder de imediato. – É... preto? – Tá vendo! Seth estava sentado ao meu lado na apresentação da May. Eu cruzei uma das pernas e ele na hora fixou seus olhos no meu sapato. “É Jimmy Choos não é?” – imitou os trejeitos delicados do rapaz. Eu estalei os dedos, convicta das minhas suspeitas. Henrique não se convenceu. – Pô, que besteira. Ele tem namorada. Quando se convive com mulheres a gente acaba aprendendo. Eu, por exemplo, provavelmente sei a maioria das marcas que a Crystal usa. Se bem que... Sapato é meio difícil de decorar. – Tô falando, Ricky! Nem eu entendo de moda assim – Rebecca admitiu. – Será mesmo... – Ricky deu de ombros. – Mas sendo sincero... Eu seria gay por ele. Seth bem que faz meu tipo. – Henrique zombou e nós caímos na gargalhada. 268

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Ian e May adentraram pela porta sem cerimônias. Ela já havia soltado o cabelo e trajava roupas mais confortáveis, a saia jeans clara com uma camiseta solta de estampas animalescas. Ian parecia estar um pouco alto. Alguém havia bebido. – Despertou do coma alcoólico, garota perigosa? – Estou viva, irmãos. – Ergui as mãos e ambos me corresponderam com toques. – May, já que você está aí... Qual foi o melhor da festa para você? A pequena de cabelos vermelhos sentou-se na cama, tomada pela excitação da conversa. – Ver a Miranda ser barrada! Foi DEMAIS! Explodi em risadas. – Aquela vadia! – Miranda realmente achou que eu fosse convidá-la? Nem morta! Nós acabamos com ela! – May e Rebecca riram, realizadas com o feito. – E o Ian, melhor apresentação da Lady Gaga do ano! – Rebecca fez com que todos ali rissem. – Ninguém perguntou nada, ok?! – Ele foi seco, mas ninguém largou mão de caçoá-lo. – Como era mesmo aquele passinho, Ian? – Rimos ao ver Rebecca tampando um dos olhos, fazendo caras e bocas. – Vai lá, mostra para gente. – Ela o cutucou, desmanchando sua expressão amarrada. Ian riu conosco. – Acho que esse momento merece um brinde! – Rebecca pegou os copos descartáveis e os encheu do refrigerante restante da garrafa que ela portava desde o momento em que entrou na casa da piscina. Repassou as doses para cada um de nós. Erguemos os copos, sem conter as risadas. – À melhor noite de todas – incitou. – À melhor noite de todas! – Então dissemos em coro, rindo ao unir nossos copos. 269

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* Já passava das cinco da manhã quando nos dirigimos à área externa. Tons escuros da madrugada agora se mesclavam com os primeiros raios da alvorada. Eu me deparei com o grandioso cartaz exposto em um dos muros da casa, em que muitas pessoas já haviam deixado suas mensagens e assinaturas. Recolhi um dos embrulhos que continha a caneta personalizada e me agachei, pronta para dedicar algumas palavras a May. – Mas é um filha da puta mesmo – Rebecca resmungou logo atrás de mim, afastando-se em direção a alguém. Fiquei sem entender. Havia um tom de humor entre seus lábios. Ignorei e logo tratei de esboçar minha dedicatória. “Aqueles que passam por nós não vão sós, não nos deixam sós. Deixam um pouco de si, levam um pouco de nós.” Antoine de Saint-Exupéry Amo você. Holly Armstrong Assinei minha rubrica habitual e admirei as demais dedicatórias. Toda aquela demonstração de carinho preencheu meu peito de uma forma reconfortante. May poderia estar indo embora, mas com certeza ela levaria todos os seus amigos em suas bagagens, literalmente. A festa tinha oficialmente acabado. Eu me levantei dali, pronta para me despedir do pessoal e me unir a Rebecca para podermos finalmente ir embora. Entrei novamente na casa e não a avistei, o que me incentivou a aproveitar para me dirigir até o banheiro. Como o toalete da sala de estar estava 270

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ocupado, subi as escadas e usei o de cima. Joguei uma água no rosto após lavar as mãos e me analisei no espelho. Até que eu ainda estava com uma boa aparência, mesmo depois dos meus excessos. Destravei a porta e instantaneamente ouvi meia dúzia de palavras furiosas. Algo estava acontecendo no pavimento inferior. Caminhei até o início da escada e identifiquei o timbre de voz exaltado. Era Rebecca. Travei, pois queria prestar atenção no que estava acontecendo. – Como você tem coragem de colocar seus pés aqui? Não! Como você ainda tem a audácia de olhar na minha cara? – Você continua sendo a mesma criança estúpida. – Alguém retrucou. A voz era masculina. – Cale sua boca! – Ela aumentou o tom de voz. – Vem me fazer calar. – Saia da minha frente, Lucas. – Ela estava serena, porém muito irritada. Achei melhor eu me mexer. A situação estava ficando realmente tensa. Desci os degraus e comecei a vislumbrar gradualmente o sujeito que a importunava. O par de tênis incrivelmente branco chamou a minha atenção instantaneamente. Subi os olhos lentamente para o rapaz. Seu braço descoberto evidenciou as tatuagens que eu já tinha visto anteriormente. Era o mesmo sujeito que eu havia visto com a Miranda. Palavras fugiram da minha boca. Molhei os lábios e ergui uma sobrancelha. E as injúrias não cessaram. – Por quê? O que você vai fazer? – Ele deu um passo à frente, desafiando-a. Rebecca se desestabilizou e o rapaz acabou por recolher seu pulso. – Me larga! – Ela se agitou tentando se soltar, mas não obteve êxito. Antes de o desejo cegar minha mente, eu respirei fundo e estufei o peito. Era hora de intervir e socorrer minha amiga. Desci rapidamente os últimos degraus. Limpei a garganta de forma sonora. 271

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– Tá precisando de alguma ajuda, Rebecca? Os dois pararam em suas posições. Um silêncio intimidante se instaurou por um breve momento, o que foi muito desconfortável. Os olhos desconfiados do sujeito se perderam diante da minha expressão imponente. Seus lábios se apertaram, como se quisesse deter possíveis ofensas. Rebecca me encarou e fechou os olhos, terminalmente agradecida e aliviada. Ela puxou a barra do seu vestido e secou possíveis resquícios de lágrima dos olhos, recompondo-se da exaltação. – Eu vou terminar de guardar as coisas e... Tirar o carro da garagem – Rebecca disse com ares decepcionados e se retirou, passando por mim com seus olhos cheios de intuição. Enfrente-o. Não ceda. Era quase telepatia. Então nós ficamos sozinhos. Caminhei mais alguns metros, aproximando-me de sua postura altiva e orgulhosa. Meu coração bateu mais forte quando nossos olhos se encontraram. O rapaz bem que tentou se fazer de durão, mas foi impossível não perceber o interesse brotando em sua expressão sedutora. – Você poderia ter evitado isso, não poderia? Ele revirou o rosto, banalizando minha repreensão. – Você pode ser a melhor amiga dela hoje – foi categórico –, mas eu a conheço há muito mais tempo. Então era ele. Lembranças menearam em minha mente. Tatuagens, a fotografia do aniversário, as declarações entrecortadas sobre “aquele-que-não-podemos-mencionar”. – Acho que isso não significa muita coisa – retruquei, ironizando. – Eu sei quem é você. – Ah, sabe. – Ele cruzou os braços e sorriu todo sarcástico. – O suficiente para não ir com a sua cara. Ele pareceu não acreditar no que ouviu. Prossegui: – Você acha que também não é difícil para ela? Você deveria se envergonhar de tratá-la desse jeito. Pessoas mudam e nem sempre 272

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podemos reverter isso. Mas, se pudesse, ela gostaria de nunca ter conhecido você. – Olha, eu sinceramente não preciso ficar ouvindo baboseiras de uma garota tentando defender sua melhor amiguinha. – Eu não estou defendendo ninguém – contestei de imediato. – Só acho que você não tem mais idade para se comportar como um moleque teimoso. – Tudo bem. – Ele ergueu as mãos, farto. – Você fala com tanta propriedade... Pessoas mudam, realmente. Assim como eu. Não sou mais o idiota de anos atrás. E também mudaria uma centena de coisas em minha vida. Mas, e quanto a você? Duvido que também não mudaria. Pela primeira vez, silenciei-me. – Vamos, diga. – Parecia já estar contando pontos de uma suposta vitória. Olhei para o fundo dos seus olhos marrons. Parecia que minha consciência só conseguia se concentrar em algo específico. A imagem do Lucas ficou gravada na minha mente e só obtive uma resposta objetiva e concreta. Recitei convicta. – Eu não mudaria nada. – Sorri sombriamente ao final. Lucas me olhou como se decifrasse cada pensamento da minha cabeça. – Então eu acho que suas habilidades vão muito além do que dominar um microfone. – Lucas riu, de repente, me desmontando. Ele fez meus olhos arderem de raiva. E, em seguida, o vi partir com seu rosto transbordante de cinismo e com seu sorriso malandro de lado. – Estúpido – resmunguei, mas ele provavelmente não ouviu. Como ele podia ser tão babaca? E convencido! Cerrei os punhos, contendo a ira momentânea. Respirei fundo e me retirei daquela sala, caminhando para a garagem. Vislumbrei Rebecca terminando de organizar seu porta-malas. Ela guardava algumas aparelhagens de som em caixas de papelão. 273

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Ela suspirou ao ver que eu me aproximava. – Bom trabalho! – Ela parecia satisfeita. A piscadela confiante habitual não faltou. Eu bufei, desarmando-me da postura presunçosa. – Como você consegue suportar esse cara? – Eu não consigo – confessou por fim, decepcionada. – O pior é saber que por anos fomos melhores amigos. Sei de sua vida mais do que ele mesmo. E hoje nos comportamos como inimigos. – Agora entendo por que vocês o chamavam de “aquele-que -não-podemos-mencionar”. Imagino o quanto ele a aborrece. – Recostei-me na lataria do seu carro e cruzei os braços. Rebecca sorriu de forma fria, e minha mente vagou para longe. – O pior... É que ele é perfeito. – Pensei alto e minha melhor amiga riu diante da minha admissão inconsciente. – Bem-vinda ao clube! – Ela agora passou a me encarar. Os olhos estavam inconformados. – Mas o pior mesmo... foi o jeito que ele olhou para você, como se você fosse um bom pedaço de carne que estivesse ao alcance de suas mãos. Involuntariamente, meu rosto se aqueceu e meu corpo também. A mente continuou muito distante para perceber detalhes externos. – Holly. Rebecca já havia me chamado mais de uma vez. Pude perceber sua irritação ao olhar para seu rosto impaciente. – Amiga... Seja sincera. Você gosta dele? Porque se for o caso... – perguntei, mas ela refutou a hipótese sem hesitar. – Não mesmo! – Ela deu uma pausa e logo passou a fitar meu rosto de uma forma impositiva. – Mas escute bem o que eu vou dizer para você. Não ousei abrir a boca. Deixei-a falar. – Lucas é o tipo de cara que enquanto faz a barba pela manhã pensa no quanto é foda e pegador. O quanto consegue conquistar 274

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qualquer mulher. Então... Se você estiver realmente disposta a entrar nessa... Confronte-o. Quebre o ego dele em milhões de pedaços. – Ela estufou o peito. – Mostre a garota forte e diferente que você é. – Suas sobrancelhas se ergueram e ela recolheu meus ombros. – Não seja mais uma, assim como todas as outras garotas desta cidade. Você não precisa se sujeitar a isso. Não consegui responder. – Entendeu? – Ela me sacolejou levemente. O que me fez despertar. – Positivo, mestre. Então eu sorri. Conscientemente satisfeita e levada pela emoção do desafio. Rebecca correspondeu-me aquele olhar confiante, como se previsse algo que lhe agradasse. Minha amiga recolheu uma mecha da minha franja, recolocando-a atrás da minha orelha. – Vá se despedir da May. Ela está na praia. Nós já vamos embora. Ela fechou o porta-malas, e eu rumei para sair da casa, em direção à praia. Avistei um grupo de jovens próximos da beira do mar, divertindo-se com a água gelada que tocava seus pés descalços. Caminhei com alguma dificuldade com meus sapatos pela areia. O Sol começava a nascer, acanhado. Tons de rosa dourado se espelhavam em uma linha horizontal bem ao fundo, fazendo um dégradé de cores naturais. A água salgada do mar refletia exatamente a tonalidade do céu. Senti o vento da alvorada balançar meus cabelos e fechei os olhos quando parei. Uma sensação renovadora fez minha pele se arrepiar. Meu corpo estremeceu diante de um espasmo peculiar, como se alguém em especial se aproximasse. Espiei de soslaio. Lucas me alcançava com passos serenos. Virei-me tranquilamente para sua presença e afastei algumas mechas do meu cabelo que escondiam meu rosto. Sorri altiva para ele. Reflexos alaranjados de sol iluminaram seu perfil perfeito, enaltecendo seu tom de pele bronzeado. Seus olhos marrons agora eram pontos brilhantes de desejo. 275

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– Acho que essa não foi a melhor forma de sermos apresentados. – Sua voz estava aquecida por um charme exímio. Pensei naquela sua afirmação e, enquanto meu raciocínio se formava em minha mente, vigiei-o com capricho. Lucas era o tipo de cara excitantemente bonito. Tudo nele se traduzia em desejo. Seus olhos, sua boca levemente cheia que escondia um sorriso reluzente e primoroso, seu cabelo organizadamente bagunçado, um perfume quente que tomava conta da minha consciência, fora aquela pele levemente bronzeada e rígida sobre músculos definidos, além de tatuagens coloridas que contornavam seu antebraço. Quando sorria, suas maçãs do rosto se erguiam, deixando seus olhos apertados, fazendo até covinhas. E, no fim das contas, não cedi. – Você não precisa bancar o educado agora. Não perca seu tempo. – Virei-me, sem dar-lhe atenção. Um breve momento de silêncio sucedeu-se e até cogitei que o sujeito acabaria indo embora, mas ele não desistiu. – Me desculpe. Continuei quieta. Lucas prosseguiu: – Eu não deveria ter falado daquele jeito. – Houve uma pausa. – Não com uma garota como você. Sua voz ecoou fundo em minha mente e acabou por provocar minha curiosidade. – Como eu? – Virei-me, caminhando um passo em sua direção. – E que tipo de garota você acha que eu sou? – prossegui com mais um passo lento. Nós estávamos próximos. – Você não me conhece – afirmei com indiferença, dando de ombros. – Eu não sou nenhum moleque. Você é diferente das garotas daqui. Não sei em quais aspectos, mas já percebi. – Hmmm. Gosta de problemas? – Ergui uma sobrancelha. – Sou um conjunto deles – recitei orgulhosa, estufando o peito disfarçadamente. 276

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– Achei que eu era o único. Isso pode ser perigoso. Sorri tendenciosa. Ele olhou para mim com pretensão e continuou: – Mas eu tenho uma atração forte por coisas perigosas. Ri sensualmente. Olhei para o grupo de pessoas e me aproximei de seu corpo, com cuidado. Lucas era um pouco mais alto do que eu. – Você não precisa de uma carona até em casa ou... – sugeriu, acreditando que a armadilha da carona seria suficiente para me fisgar. Sorri e terminei por apoiar minha mão em seu ombro, o que me deu equilíbrio para retirar meus sapatos dos pés. Lucas ficou imóvel diante da minha atitude aleatória. – Muito obrigada, mas... – Ainda com a mão apoiada sobre seu ombro, levantei minha perna para conseguir alcançar o outro par – deixa para a próxima vez. Conjunto de problemas. – Nossos rostos estavam próximos. Ri suavemente, vangloriada. Não tirei os olhos de sua expressão atônita. Voltei a caminhar pela areia e me afastei. Ele me analisou, completamente incrédulo. – E obrigada pelo apoio. Você não imagina como esses sapatos incomodam. – Pisquei, despretensiosamente. Senti o gelo da areia amanhecida tocar a sola dos meus pés e me virei de vez, sem olhar para trás. May me aguardava ali na calçada. Ela estava molhada da cabeça aos pés. Provavelmente lhe deram um bom banho de mar. Eu a abracei sem censuras e caminhamos para a casa novamente, onde Rebecca já me esperava com o carro para fora da garagem. Ela ligou o motor e vi seus dedos pressionarem o volante com destreza. Seus olhos fuzilaram o retrovisor. Por ali se conseguia observar Lucas adentrar em seu 4x4. Ela terminou por sorrir com ares de vingança e me encarou, a expressão insondável. Estava tudo se encaixando. – É... Você acaba de encontrar seu produto notável – Rebecca sentenciou. Seus lábios se ergueram em um sorriso incontestavelmente confiante e me transferiram uma segurança inabalável. 277

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CAPÍTULO QUINZE

destrinchando um conjunto de problemas Acordar sem saber que horas eram e sem fazer a mínima ideia de onde eu estava foi inevitável depois daquela festa. O gosto amargo da ressaca infiltrado na minha boca me remeteu às lembranças da noite anterior. Beber daquele jeito realmente não tinha sido uma boa ideia. Eu consegui perder os melhores momentos do evento, não vi todas as pessoas que gostaria de ver e muito menos me diverti com meus melhores amigos o tanto que eu esperava. Nunca mais vou beber! Pensei alto e, por um momento, imaginei que algum dia eu já havia prometido o mesmo. Mas, apesar dos vexames, excessos e arrependimentos, eu me sentia bem. Sem uma razão específica. Apenas me levantei e, diante das memórias recentes, sorri satisfeita. Eram quase três horas da tarde, e eu estava na casa da Rebecca, para variar. É claro que eu não poderia ter ido para casa naquele estado. Mamãe me dedicaria uma boa bronca. Agora tudo começava a fazer sentido. Mais tarde, eu e minha amiga fomos jantar em seu restaurante, e Rebecca acabou por me deixar na porta do meu edifício no final da noite. Mamãe me recebeu com um bom abraço, achando que eu já estava há muito tempo longe de casa. É claro que a festa renderia muitos comentários pela San Diego High School na segunda-feira. A nossa mesa do almoço ficou cheia, e não faltaram assuntos sobre escândalos, revelações e, principalmente, a inesperada descoberta da mudança da May. Ela partiria de verdade na próxima semana e a ficha ainda não havia caído para 278

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nenhum de nós, mesmo para Rebecca, que, apesar de estar sabendo desde o começo e muito antes de nós, ela ainda se ressentia pela perda da amiga. Não vi o Leo durante o dia todo, o que corroborou para eu me sentir ainda pior. Era notório que ele estava tentando evitar a turma e, consequentemente, me evitar. Jodi e Mike agora pareciam dois estranhos. Estavam lá, sentados um ao lado do outro, como sempre permaneciam nos horários de almoço, mas algo havia mudado. Era desconfortável observar os dois se esforçando para conversar, para rir. Acho que a experiência de sexta à noite não rendeu bons rumos para aquela estreita amizade. E o que dizer de Ian? Agora lá estava ele, grudado a seu celular, teclando loucamente mensagens de texto com não sei quem. Os olhos vidrados no visor, os ouvidos bloqueados para nossas conversas. Rebecca chegou um pouco depois. May era a única que conversava comigo de verdade. Jodi fingia prestar atenção, mas ela estava mais preocupada com os olhares aflitos de Mike. Ian ocupado demais com o bate-papo. – O que está acontecendo aqui? – Rebecca parou por um momento na frente da mesa, assistindo à nossa reunião monótona e desinteressante. Ela se aproximou de Ian, revoltada com sua displicência. – Me dá isso aqui. – Ela retirou o celular de sua mão, o que o fez pular para impedi-la. Ela o deteve e passou a ler em voz alta as conversas. – O que você acha, pequeno panda? Não quero que as meninas descubram. J responde. Quem é J? – ela prosseguiu com a leitura. – O que você decidir estará decidido. – Pequeno panda! – Rebecca caçoou do amigo, rindo alto. Ninguém ali se segurou. – Quem é essa vadia? – Ela finalmente devolveu o aparelho e se sentou à mesa, bem ao lado da May, ficando à minha frente. – Você não precisa saber. – Ele foi seco. – Hmmm. Agora temos o novo pegador da turma. Como foi sua primeira vez, pequeno panda? – Ela riu e todos nós ficamos 279

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pasmos. Ian sempre desprezou a possibilidade de se envolver com garotas até então. – Só falo na presença do meu advogado – respondeu com seu tom sarcástico. – Poupe-me de suas perguntas. – Ah, agora você vai bancar o babaca mesmo? Então não fala mais comigo. Ela chateou-se, virando a cara. – Você é um idiota, Ian – May xingou. – Pô, é minha última semana aqui. Você ficou chato de sexta para cá. Independente do que tenha acontecido, não pode esquecer que é nosso amigo ainda. – Ok. – Impaciente, ele guardou o celular no bolso e ergueu as mãos. – Me desculpe. Só acho que existe algo chamado privacidade, só isso. – Depois daquela festa, querido, eu não sei mais o que é isso – lancei sem perder o humor. – Realmente foi insano – Jodi confessou, rindo suavemente. – Realmente foi muito insano – Mike então completou, refestelando-se na cadeira e levando uma maçã à boca. Seus olhos se encontraram com os de Jodi. – Bom, pelo menos eu fiquei sóbria a noite toda. Sou testemunha ocular de todos os babados. – Rebecca se gabou da condição. – Eu não posso dizer o mesmo... – Sorri de lado. – Você foi a atração principal, querida – Rebecca falou, rindo. – Alguém deu PT! – Ian e May disseram em coro e gargalharam. – Sério, não me lembrem disso. – Tampei o rosto, levemente arrependida. Todos nós ali rimos ligeiramente e, naquele momento, algo chamou a minha atenção. Era como se alguém nos observasse. Quando lancei o olhar pelo pátio, percebi que estavam nos rondando. Rebecca captou a direção do meu olhar num rompante. – Essa vadia vai dar uma de urubu agora? – Becky reclamou, furiosa. 280

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Era nada menos do que Miranda. Sua figura hostil parecia querer me intimidar. O olhar de chicote me concebeu um flashback instantâneo em minhas lembranças. Ela, desmontada em lágrimas, suplicava a atenção de um sujeito alto com tatuagens. Era ele. Era Lucas. Tudo fez sentido numa fração de segundo. – Não acredito que ela esteja tão enfurecida apenas pelo fato de não terem a deixado entrar na festa – Mike conjecturou. Mas Rebecca e eu sabíamos que o motivo ia muito além do que o tal impedimento. Nós ficamos quietas, e o sinal do término do almoço ecoou alto. Como em todas as segundas-feiras, eu só voltei a rever Rebecca no fim do período. A última aula acabou, e eu segui para o bicicletário. Minha amiga já me esperava sob sua bicicleta, com seu olhar perspicaz e desconfiado. – Ei. Demorei muito? – perguntei. Ela não parecia muito feliz. – Não. – Ela deu de ombros. – É só a Miranda que acabou de passar por aqui. Preciso me segurar para não voar no pescoço dessa garota. – Continuo sem entender totalmente. – Eu destravei o cadeado da minha bicicleta e me preparei para subir. – Até agora você não ousou tocar nesse assunto. – Quer mesmo saber? Não vale a pena. – Rebecca, eu não sou boba. Percebo quando algo a incomoda. Não contei para você, mas eu vi a Miranda e o Lucas discutindo do lado de fora da festa. Sei que eles têm alguma coisa. Rebecca riu alto, não acreditando. Ela deu as primeiras pedaladas. Fiz o mesmo para acompanhá-la, mesmo sem saber para onde iríamos. – Lucas e Miranda? Faça-me o favor, Holly. Você não faz a mínima ideia do que realmente aconteceu. 281

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– Então me conte. – Ok. Lucas é um filho da mãe. – Você já me disse isso – rebati entediada. – Uma vez não foi suficiente – retrucou rapidamente. Ri diante da sua espontaneidade. – Holly, é sério. – Rebecca me encarou firme. – Olha, eu sempre admirei tanto a sua franqueza. Se você quiser que eu esqueça o fato de ter conhecido esse cara naquela noite e não fale mais nele, tudo bem! Mas antes me diga o que diabos aconteceu entre vocês. – Não é nada disso. – Então abra o jogo. – Revoltei-me ligeiramente, parando a bicicleta. Ela hesitou por um momento, em dúvida. – Tudo bem. – Suspirou e acabou por parar ao meu lado. – Pode me bombardear com perguntas. Vou tentar responder a todas. – Não tenho tantas dúvidas assim – afirmei. – Pouco me importa quem ele é, o que faz. Mas queria saber... a história de vocês. Você fica sempre tão apreensiva e nunca revela tudo. Restaram tantas mágoas assim do passado? – É, pode ser. Pessoas mudam, não é?! Aguardei. – Eu e Lucas nos conhecemos há muito tempo. Nossas mães sempre foram amigas, então desde cedo tivemos uma convivência muito forte, apesar da diferença de idade. Quando eu tinha cinco, ele já estava com treze. Minha mãe sempre pedia para que ele me buscasse na escola e me ajudasse nos treinos de futebol, porque desde aquela época eu tinha um jeitão de menina moleca e valentona. – Rebecca riu com ares satisfeitos, como se as lembranças lhe remetessem a uma alegria remota. – Você sabe, daquelas que se metia com os garotos mais fortes e voltava para casa toda suja com um milhão de hematomas no corpo. Lucas me defendia, como um irmão 282

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mais velho que eu nunca tive. Pelo menos não tão presente como ele. Os anos foram passando e a gente passou a ouvir o mesmo tipo de música, compartilhava a mesma festa de aniversário... – Rebecca sentenciava cada lembrança com um ar sereno, distante. – Ele faz aniversário alguns dias depois de mim. Ri carinhosamente enquanto minha mente projetava a imagem daquelas memórias. – Ainda não consigo delimitar exatamente onde foi que nos perdemos, mas muito provavelmente foi depois de eu passar um tempo longe de casa, durante minhas viagens, no ano passado. De repente, ele não era mais o garoto de família boa que eu conhecia, ou talvez achava que conhecia. E, quando eu retornei do Canadá, Lucas sentiu que eu também havia mudado. Eu não era mais a menina levada. Já havia me tornado uma mulher, praticamente. Ela abaixou os olhos, levemente incomodada. – Aquele desgraçado... Eu devia ter percebido no primeiro momento em que me olhou – Rebecca se insurgiu, aumentando o tom de voz. – Ele começou a me sondar diferente, sabe? Com outros interesses! – Ela se acalmou e prosseguiu: – Ele me chamou para sair uns dias depois e ali constatei que Lucas estava definitivamente jogando todos os anos da nossa valiosa amizade para debaixo de um tapete sujo. – Você se sentiu traída de alguma forma, não é?! – É, quase isso. Mas não acabou, não. Eu me revoltei e decidi me vingar. Sabe o Tyler? – O loiro alto que estava na reunião do São Valentino? – Isso mesmo! Ele é o melhor amigo do Lucas. Então acabei o convidando secretamente para aparecer no nosso encontro. Por pura desforra eu fiquei com ele só para o Lucas sentir o gostinho de ser rejeitado. Só para pisar naquele ego de garanhão sedutor. Se ele achava que todas as garotas estariam ao alcance daquelas mãos nojentas, comigo seria diferente. 283

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– Uau... Estou começando a entender. E como ele reagiu? Rebecca riu em tom sádico. – Ah, querida. Ele não deixou barato. Quis me matar, né?! Mas ele fez pior que isso. Aquele filho da puta conseguiu ter acesso às minhas fotos da viagem e até hoje não sei como! – Ela cerrou os pulsos, furiosa. – Lembra da Melinda? – Aquela garota bonita de olhos azuis do seu mural? – É. Ela mesma. Tinha algumas fotos em que nós estávamos... Como posso dizer... Íntimas demais. – Vocês estavam se beijando? – Ri alto. – Quase. – Ela revirou os olhos, apreensiva. Ri mais alto ainda. – E aí ele trouxe isso a público – conclui. – É, e ainda afirmou que a razão de eu tê-lo rejeitado foi simplesmente porque eu gostava de garotas. – Rebecca revoltou-se. – Isso foi um caos! Minha mãe quis arrancar minha cabeça quando viu. Até eu contornar a história. Caramba! Foi por pouco que eu não meti aquele desgraçado em encrencas maiores... – Bufou. – Como assim? – Sua afirmação não fez sentido para mim. – É que... Bem, Lucas tem uns podres aí, mas como eu sou uma idiota indulgente resolvi deixar para lá. – Todo mundo tem podres – afirmei. – É... – Rebecca só concordou por conveniência. Seus olhos denunciavam contradição. – E então nós nos odiamos até hoje. – Ela sorriu sem nenhum humor. – E onde entra Miranda nessa história? – Ah, a gente também sempre foi amiga, desde a terceira série. Não demorou para ela conhecer o Lucas. Alguns anos passaram e Miranda acabou desenvolvendo uma paixão platônica por ele. Eu sempre refutava aquele comportamento, sabe? E, naquela época, eu mal imaginava que aquela sua loucura culminaria com o término da nossa amizade. Ela tomou a condição amorosa como uma disputa. 284

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Dentro da cabeça dela, nós éramos apenas adversárias. A gente passou a brigar mais do que qualquer outra coisa. Foi bem traumático para mim. Acho que foi a partir daí que decidi deixar tudo para trás e viajar mundo afora. E continuou: – Quando foi no começo desse ano me contaram que depois de inúmeras investidas da parte dela, Lucas acabou cedendo. É claro que ele jamais perderia a oportunidade de se aproveitar de uma garota cega e apaixonada, mas não teve futuro, obviamente. E é evidente que ela ainda o persegue, achando que vai conseguir colocar uma coleira naquele babaca. – Agora tudo faz sentido. Então Miranda já deve saber que trocamos olhares. Sou uma vítima em potencial, é isso mesmo? Rebecca riu. – Você foi a atração principal, já lhe falei isso. Lucas não tirou os olhos de você desde quando chegou naquela festa. – Ele não parecia muito feliz ao me ver defendendo você. – Acho que ele tinha outros planos para vocês dois. Rebecca sorriu de lado. – Olha, eu sinceramente estou pouco ligando para o que Miranda acha e para tudo o que esse Lucas pretende fazer daqui em diante. Minha única certeza é que não quero comprometer a nossa amizade. – Sei disso. – Minha melhor amiga me olhou profundamente e sorriu. Segurou minha mão com firmeza. – Sempre acreditei em você,mas não quero que se anule por mim. Se algum dia Lucas voltar – e eu sei que isso vai acontecer – não o ignore apenas para me deixar contente. Só mostre para ele que você não é a Miranda. Que você não é nenhuma dessas garotas que morreria por uma noite com ele. Porque eu já lhe disse e repito: você é muito mais do que aparenta ser. E ele só vai merecer sua consideração se provar que consegue enxergá-la além desse corpo atraente, dos olhos misteriosos e do seu sorriso bonito. 285

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– Você sabe que eu não ousaria renegar uma ordem sua – afirmei, com uma lágrima estancada em minha pálpebra. – E agora eu estou ocupada demais em estudar para a segunda fase da Olimpíada de Matemática... Quero lá saber de um tal de... Lucas? – Fiz uma careta e Rebecca riu satisfeita. – Essa é minha garota! Ela veio até mim e me abraçou com carinho. Eu jamais me permitiria perder a relação de cumplicidade mais verdadeira que eu já pude ter com alguém. Rebecca valia mais do que qualquer cara bonito, amigos novos e, principalmente, um passado transgressor. Naquela mesma tarde, nós fomos até o Balboa Park nos encontrarmos com a turma. Haveria um torneio local de skate e Ian participaria. – Essa eu quero ver de perto! Você dificilmente baterá o Mark. Ele é muito bom. – Rebecca conversava com Ian enquanto ele treinava algumas manobras nas rampas amadoras. May e Mike se divertiam com um aplicativo qualquer no celular enquanto eu e minha melhor amiga assistíamos às investidas de Ian. – Obrigada por me desejar sorte – ele agradeceu sem muita emoção, recolhendo o skate. Ian acabou sentando-se conosco, ali no chão de alvenaria. A noite clara começava a cair vagarosamente sobre a cidade. – Não estou participando para ganhar, é só por diversão – admitiu. – Ah, tá. Então por que você está treinando pesado desde a semana passada? – Mike o contradisse. – Vai ver ele está querendo impressionar alguém. – May piscou tendenciosamente um dos olhos. – É isso mesmo, pequeno panda? – Tirei uma onda e todos nós rimos, até Ian. – Tenho que admitir que não sou tão bom quanto o Mark, mas também o cara é patrocinado por um pancada de marcas. 286

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– Acho ele um gato, aliás – May confessou. – E, olhem só, ele já está se aquecendo ali na outra área. Rebecca assobiou alto para o garoto de cabelos negros escorridos. Eu tinha a leve impressão de que já o conhecia. – Ei, Mark! – Ela acenou e o rapaz fez o mesmo. Passou o skate para debaixo do braço e se aproximou. – E aí?! Achei que você tivesse se esquecido do torneio. – Ele trocou toques rápidos com Rebecca e nos cumprimentou ligeiramente. – Tudo bom, Ian? – O garoto de olhos azuis-escuros o saudou exclusivamente, com diplomacia. – É... Tudo em cima – respondeu pouco à vontade. – Boa sorte para nós, não é?! Ian não argumentou e eu resolvi me anteceder. – Ian não precisa de sorte. Conseguir uma boa posição é apenas uma questão de diversão, não é?! – Cutuquei-o e Ian se sentiu vangloriado. O tal Mark me analisou sem jeito, como se também me reconhecesse de algum lugar. – Melhor assim. Infelizmente eu não estou aqui apenas por diversão. – Sorriu sem graça. – Você é... – Ele apontou suavemente para mim. – Holly – respondi confiante. – Armstrong. – Ah, já ouvi falar de você. – Ele foi reticente. Seus olhos curiosos me fitaram por um momento, até se sentir incomodado com Rebecca o encarando sombriamente. – Bom, eu vou terminar minha série de treinos... Nos vemos na próxima rodada, Ian. Ele se virou devagar, ainda com o pensamento preso ali, entre nós. Rebecca cochichou tão baixo que eu quase não ouvi. – Ele é amigo do Tyler. O resto você pode imaginar. Mark, Tyler, Lucas? 287

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Pensei por um momento e me lembrei de onde seu rosto me parecia familiar. No dia da comemoração de São Valentino, ele estava lá ao lado do amigo loiro de físico avantajado. – Acho melhor eu treinar um pouco. – Ian se preparou para levantar. – Posso tentar? – perguntei. – Você? – Ele pareceu não acreditar e continuou sentado. – É, me dê logo isso. – Levantei-me e recolhi o skate da mão de Ian, colocando-o sobre o chão. Coloquei o pé sobre a prancha e deslizei um pouco, tentando me equilibrar. – Se você conseguir descer a rampa sem cair... – Ian se preparava para me desafiar. – Eu não apostaria nada se fosse você. – Ah, é? Então aguente essa. – Ele se levantou definitivamente. – Duelo! Duelo! – May e Rebecca bateram palmas. Ian pegou o skate, subiu sobre a prancha e a impulsionou pela rampa, chegando ao topo e girando para baixo, fazendo o mesmo movimento novamente do outro lado. – Faça igual e você pode levá-lo para casa. – Ian me repassou seu skate. – Prepare-se para comprar um novo então. – Encarei-o, sem perder o humor. É claro que eu não consegui completar a manobra. Acabei por impulsionar com muita intensidade e na hora de descer me espatifei no chão. Rebecca correu para me ajudar, mesmo com todos os outros caindo na gargalhada. Doeu de verdade. – Desista, senhorita Armstrong. Contente-se em ser boa apenas numa quadra de tênis. – Engraçadinho. Só me aguarde – revidei, ao mesmo tempo que Rebecca me concedia sua mão para me auxiliar a levantar. – Ian? Em meio ao nosso diálogo, alguém que não estava ali surgiu. Era uma garota. 288

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– Jenny? – Ele surpreendeu-se, e por um momento parecia aflito. – O que você está fazendo aqui? – Ian apressou-se para chegar perto da moça. Ela era Jenny, a amiga e fiel escudeira de Hailey Cooper, líder de torcida invicta do Cavers, assim como a colega. A jovem de pele bronzeada e cabelos curtos sorriu para ele. Jenny logo sentiu que nossos olhos estavam voltados para ela. – Olá, pessoal! Não houve reação por parte de ninguém. Jenny então me admirou com uma atenção desmedida. Certamente ainda havia restado muito peso na consciência desde aquele episódio da suposta agressão da Hailey. – Tudo bem, Holly? – Assenti calmamente e tentei cogitar o porquê dela estar ali. Nunca fizera parte da turma. May tratou de deduzir sua aproximação repentina. Ela conversou conosco rapidamente. – Agora sabemos quem Ian queria impressionar. – Ela indicou com a cabeça e Rebecca ficou boquiaberta. Jenny já se afastara e Ian retornava ao grupo. – Então é ela, Ian?! Por que não nos contou antes, pequeno panda? – Ela riu como se estivesse feliz pelo amigo. Ele coçou a cabeça, hesitando. – Seu safado! Agora eu sei onde você estava quando deu aquele sumiço repentino na festa da May! – Não se pode fazer nada nesta escola e ser discreto, não é mesmo?! – Ah, garoto! – Rebecca bagunçou seu cabelo e ele sorriu, sabendo que tal gesto era uma demonstração genuína de reconhecimento. – Você é um ótimo menino. Não vá me decepcionar. – Ela recolheu o skate da pista e o entregou. – Acho que já está na minha hora – Ian falou. – Então vamos indo para a arquibancada fazer aquilo que está ao nosso alcance: torcer. – Rebecca o abraçou. – Boa sorte, amigão! 289

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– Ian vai destruir esse torneio – Mike o incentivou, estendendo-lhe a mão para um toque de amizade. – Obrigado, gente! Outros meninos se apresentaram antes de Ian e Mark. Os dois certamente ficariam para o final. Eu sentei junto à minha turma, em um dos últimos degraus da arquibancada montada no pátio principal do parque. – Escuta, esses caras se multiplicam a cada minuto? Não acaba nunca, é? – Mike revoltou-se. – Estou com fome. Quem desce comigo para comprar cachorro-quente? – Eu vou! Tô morrendo de fome também – May se prontificou num instante. Rebecca olhou para mim e eu reneguei silenciosamente com a cabeça. – Bom, eu vou descer rapidinho com eles. Quem sabe a gente não encontra a Jodi, não é?! – ela se explicou rapidamente e se levantou. – Vou ficar aqui para guardar o lugar de vocês. – Sorri. Eles acenaram de volta. Os garotos desceram e eu fiquei sozinha ali, com um vasto espaço vago ao meu lado. Encolhi-me e me reservei a analisar o desempenho dos participantes na pista. Alguns caíam, enquanto outros executavam as manobras maravilhosamente bem. Tão desvirtuada com a interação, não percebi que alguém em especial se aproximou delicadamente e sentou-se ao meu lado. A respiração calma e pausada me advertiu que eu não estava mais sozinha. Girei o rosto e vislumbrei a expressão doce e juvenil de um garoto de olhos azuis penetrantes. – Leo. Por não haver palavras para dizer, sorri. Ele não parecia zangado, muito menos decepcionado comigo. Apenas me sorriu de volta, sem nenhum arrependimento evidente. 290

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– Achei que você estivesse me evitando. Você sabe que gosto muito de você. – Eu não deixaria de vir ao torneio do meu melhor amigo pelo que aconteceu. Abaixei a cabeça, recordando-me do erro. – E eu também não seria estúpido de estragar uma amizade como a nossa. Você sabe que eu gosto muito de você. – Ele foi terminalmente específico. – Amigos? – Propus com ares aliviados e vi sua expressão resplandecer confiante. – Amigos – Leo anuiu sem hesitar e passou seu braço pelo meu ombro, puxando-me para um abraço que eu não recusei. Naquela altura, anunciaram o nome do Ian. E não havia nenhum sinal dos meninos, mas foi só olhar para as margens da pista que visualizei Rebecca, May, Mike e Jodi se esgueirando para aclamar o amigo. Ian completou sua série numa perfeição excepcional. Todos nós ali na arquibancada aplaudimos. Quando Mark se apresentou, ficamos em dúvida sobre quem levaria o pódio. Os dois eram os mais cotados para o prêmio principal. E, no final das contas, nosso Ian levou o segundo lugar. Ganhou um skate novinho em folha e decidiu fazer algo diferente. – Esse vai ser seu. – Ele me repassou seu skate antigo. – O quê? – Eu sei que você vai aproveitá-lo muito bem. Como é mesmo? Nada é impossível para senhorita Holly Armstrong! – ele disse com seus olhos orgulhosos e eu o abracei, agradecendo pelo presente. – Você vai me ajudar a subir nisso aqui, campeão? – Bati em sua mão e pisquei. – Com toda a certeza.

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O dia seguinte amanheceu claro, e a primeira coisa que meus olhos avistaram foi o skate do Ian. Coloquei um tênis apropriado e uma calça confortável, preparando-me para ir à escola com meu novo meio de transporte. Não foi muito fácil e acabei me atrasando alguns minutos. Nos últimos quarteirões, eu já me equilibrava facilmente. Rebecca e Ian ainda me aguardavam no pátio principal, quase que totalmente sozinhos. A maioria dos alunos já havia subido para suas respectivas salas. – Eu sabia que ela chegaria em grande estilo. – Ian riu ao me ver deslizando com seu skate. – Até que você já está se virando bem para quem começou ontem. – Ela está com todos os dentes na boca. Tudo certo. – Rebecca me abraçou ligeiramente para me cumprimentar. Recolhi o skate do chão e o coloquei debaixo do braço. – Valeu. Acho que esse skate dá sorte. – Sorri. – É bom levá-lo para aula de Espanhol, então. Só Deus sabe a nota que virá dessa prova. – Rebecca ergueu as mãos para o céu, fazendo graça. Nós três rimos e seguimos pelos corredores. – Ou então você podia usá-lo para o seminário de Ciências Políticas. – Boa ideia! Nem comecei a montar essa apresentação. – Fiz uma careta. – E já é para o fim da semana que vem. – Hoje tem treino do Cavers? – Rebecca perguntou. – Não sei. O novo treinador só vem às quintas e sextas-feiras agora – Ian respondeu prontamente. – Então o que Seth está fazendo no almoxarifado de Educação Física? – Como você sabe? – Ele parecia confuso. – Olha, é a mochila dele. – Ela apontou para a porta fechada que ficava depois dos armários do primeiro ano, no corredor térreo. – E a outra mala é do Leo! – Analisei as duas bolsas encostadas na porta fechada. Dava para ver que a luz interna da sala estava acesa. 292

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Rebecca e eu nos entreolhamos, mas deixamos que o silêncio respondesse às nossas dúvidas. Ian não percebeu e tratou de continuar o caminho. – Eu só sei que estamos atrasados, e a professora Malasartes irá tocar las narices se chegarmos depois dela! – Tienes razón, amigo. Os dois não se aguentaram de rir. – Podem parar vocês dois. Vamos logo! Eu apertei o passo e meus amigos fizeram o mesmo.

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CAPÍTULO DEZESSEIS

[por trás de um conjunto de problemas] por Rebecca Dellape

– Beth! Manda duas porções de fini na manteiga, por favor! – exclamei para minha cozinheira pelo passa-pratos. O salão do restaurante estava do jeito que eu gostava: barulhento e repleto de clientes. Era mais um final de tarde agitado bem brasileiro. Já passava das quatro horas da tarde, e a cozinha ainda estava a todo vapor. Eu sempre passava a maior parte do tempo no balcão, para fechar o caixa e validar as comandas. – Laura, tira o pedido da mesa dois para mim? O cliente já deve ter decorado todos os pratos do menu. Corre lá, garota! Minha gerente era sempre muito ágil, e nós todos ali trabalhávamos motivados pelo real sentido de equipe. Um homem de meia -idade se aproximou para acertar a conta, e meu garçom apareceu logo atrás. – Gus, a água sem gás daquela moça com a filha. – Repassei a garrafa para sua bandeja e adicionei um copo com gelo. – É para já, patroa! – Não se esqueça de pegar limão para o senhor que pediu a salada. – Pisquei e ele correu com os pedidos. – Dinheiro ou cartão? – Voltei a dar atenção ao senhor. – Dinheiro. Muito obrigado! – O homem de feições maduras sorriu para mim satisfeito, repassando-me uma nota de cinquenta dólares. – Eu que agradeço. – Contei o troco e o entreguei em mãos. – Vinte e um dólares é o seu troco. Uma boa tarde! Laura recostou-se ao balcão, terminando por analisar o movimento. – Uau. Esses dias quentes fora da estação têm rendido uma ótima clientela. 294

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– Desse jeito nós vamos conseguir aquele selo do Gaslamp Quarter2 até o final do ano! – Bati eu seu braço, convicta do prognóstico. – Com toda a certeza. – Piscou. – Olha, fecha essa comanda para mim? É cartão. – Só um momento. – Agachei-me levemente, recolhendo o leitor do cartão de crédito. Num súbito instante, visualizei um carro peculiar estacionando em frente ao restaurante. Minha mão estremeceu, e eu quase derrubei o aparelho. Não poderia ser. A lataria de cor preta daquele SUV só me certificou de um fato: eu precisava sair dali. A porta do automóvel se abriu e eu não pensei duas vezes. – Laura, se alguém aparecer me procurando, diga que eu não estou. – Como? – Simplesmente esqueça que eu estou aqui. Abandonei Laura com uma expressão incrédula ali, sozinha no balcão. Lucas estava prestes a entrar em meu território. E eu deveria poupar escândalos. Que diabos ele queria agora? Tratei de me esconder na adega, que nada mais era do que um anexo da estante de bebidas que ficava atrás do balcão. Uma porta falsa na lateral jamais levantaria suspeitas. Não demorei a ouvir sua voz repugnante e dominadora. – Cadê ela, Laura? – Ela... deu uma saída. – Laura acabou por titubear, mas se manteve firme.

Gaslamp

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Quarter¹ – Centro histórico e principal quarteirão da cidade de San Diego, onde se localizam casas de shows, pontos de entretenimento e alta diversidade gastronômica.

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– Eu sei que Rebecca está aqui. O carro dela está estacionado do outro lado da rua. – É que... Ela foi fazer umas compras e... Foi aqui perto, então... Não precisou do carro. – Vamos ver se o celular dela ainda é o mesmo. Houve uma pausa. Num choque de pensamento, lembrei-me do meu celular. Apalpei meus bolsos e não o encontrei. Tarde demais. O aparelho tocava alto lá do balcão. Estava sob o tampo de madeira do caixa. – Ah, então agora vai me dizer que ela deixou o celular aqui? Vamos, Rebecca. – Não! – Laura tentou impedi-lo de alguma coisa. – Já estou com seu telefone. Só devolvo se você aparecer. Estúpido! Ele sabia me provocar. Abri a porta e decidi enfrentá-lo. – Me dá isso aqui. – Avancei para resgatar meu telefone, tirando-o de sua mão. Escondi o aparelho no bolso de trás da calça jeans. – Olha só quem finalmente deu as caras! Tudo isso é medo? Peso na consciência? Ou amor recolhido? – Ele foi sarcástico. – Lucas, saia daqui – solicitei em voz baixa, porém com fúria. – Não saio até você falar comigo. – Seu rosto cínico fez minha paciência desvanecer. – Eu não tenho nada para falar com você. Pode ir embora – roguei pausadamente, girando o corpo para não encará-lo. Tudo era mais fácil quando eu não precisava olhar para o seu rosto. Não obstante, ele deu a volta pelo balcão e me alcançou num átimo, empurrando-me para dentro da adega. Fechou a porta. – Pronto! Agora você é um bandido invicto. Vai me manter em cárcere privado? – Se for necessário para você me ouvir, eu vou. – Ele se impôs contra meu corpo, deixando-me sem reação. – Eu odeio você. – confessei, olhando no fundo dos seus olhos. 296

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Ele suspirou pesado, desfazendo-se da postura altiva. Suas mãos amassaram o rosto, como se ele se sentisse impotente diante da situação. Lucas se afastou até o outro canto do ambiente. – Rebecca, por incrível que pareça, eu não vim brigar com você. Não vim para tirar satisfações, muito menos para lavar roupa suja. Não revidei. Incrivelmente, ele parecia estar sendo franco, como há anos eu não via. – Você sabe que nós não precisamos nos odiar. - O que você quer? – perguntei. Era óbvio que aquele discursinho barato tinha alguma finalidade. – Eu só queria... conversar com você. – Ah, Lucas! Eu tenho cara de idiota? Você jamais viria até aqui se não tivesse outro assunto de seu interesse na jogada. – É impossível tentar falar com você, não é? – Ele rebaixou a cabeça, farto. – Agora que você percebeu isso? – Cruzei os braços e fiquei em silêncio. Ele se aproximou novamente. – Eu só acho que eu deveria pedir desculpas a você por tudo que fiz. – Ah... Desculpa? – explodi. – Sim! Mas você também deve me pedir. – Houve uma longa pausa. – Poxa, o que você fez com o Tyler foi golpe baixo! – Eu preciso mencionar a presepada que você armou para cima de mim com a história da Melinda? Lucas não conseguiu responder. – Me desculpe. – Saiu baixo, mas saiu. – Me desculpe. – ele repetiu, sem tirar os olhos do meu rosto, como se desejasse se certificar de que eu teria ouvido. Houve uma pausa. – E o que acontece... se eu perdoar você? Você vai voltar a ser o babaca convencido e mesquinho que eu tentei evitar nos últimos meses? Vai me tratar como se eu fosse uma dessas garotas que corre atrás de você, implorando por um segundo de sua valiosa atenção? 297

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– Minha expressão era de puro repudio e asco. – Se for para ser assim... Eu prefiro odiá-lo para o resto da minha vida. – Você sabe que eu nunca a tratei desse jeito. – Ah, não? Nem quando você me chamou para sair naquela noite, usando o pretexto de “celebrar as novas mudanças”? “Comemorar a nova fase”? – Imitei seus trejeitos sedutores e fiz aspas com os dedos ao mesmo tempo. – Quando você passou a me olhar como se eu apenas significasse mais uma garota que você consegue levar para cama? – As lembranças me doeram naquele momento. – Você não tem ideia de como eu me senti. Eu poderia esperar um milhão de coisas de você. Poderia aceitar todas as coisas erradas que você faz, me empenharia para entender o porquê de você ainda levar tudo isso adiante,mas admitir que uma das pessoas que mais significaram algo na minha vida havia se transformado num babaca sem noção... e que ainda estava disposto a jogar no lixo anos de respeito e consideração apenas em troca de uma noite? Nunca engoli isso. E, se algum dia desceu, desceu como um veneno. – Me desculpe. Eu sei que errei. Eu sei. Ele sentou-se em uma pequena banqueta de madeira que eu usava como escada para alcançar as prateleiras mais altas. Lucas parecia lívido de qualquer força. – Eu estou enlouquecendo. – Os olhos suplicantes me fitaram. Não entendi. – De verdade. – No que você se meteu agora? – Revirei os olhos, pronta para ouvir. – Nem eu sei. – Ele riu abobalhado e de repente seus olhos se preencheram de brio. – Acho que você já deve imaginar. – Eu acho que não. Vamos, diga logo. – É... sobre sua amiga. Cruzei os braços e levantei uma das sobrancelhas. Apenas aguardei. – Quem é ela? Onde mora? Da onde veio? Ninguém a conhece na cidade. Todas as fontes me levaram até você. 298

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Sua revelação fez meu sangue pulsar na cabeça. – Você ficou louco? – Apontei o dedo para ele enquanto falava. – A Holly não é garota para você. Seus olhos se rebaixaram. Ele não revidou. – Você tem razão. – Ele se levantou, aproximando-se de mim. – Eu estou louco, completamente louco. E mal a conheço. Já que ela se mostrou como a sua melhor amiga, decidi ultrapassar meu orgulho idiota e vir até você pedir desculpas e... ajuda. – Ajuda, Lucas? Faça-me o favor. Desde quando você se tornou sentimental e humilde? – Eu sabia que seria difícil. Você continua a mesma menina teimosa. É impressionante! Eu não vou cometer nenhuma barbárie se você disser como posso me aproximar dela. – Você sabe muito bem que isso não é improvável, não é?! O que você faz pode gerar riscos tanto para você quanto para as pessoas com quem se envolve. Lucas emudeceu, mas sua expressão dizia tudo. Ele estava prestes a implorar. – Sem chance. Holly é diferente. E eu tô na parada. Não vou deixar que qualquer babaca se aproveite dela e depois a decepcione. Ela não merece isso. – Passei as mãos pelos meus cabelos, colocando -os para trás. A temperatura lá dentro estava aumentando. Quando imaginei que Lucas teria desistido, ele começou a falar. Quase que tampei meus ouvidos, pois aquela discussão era irrelevante demais para ser levada a sério. – Eu não duvido de nada disso, mas você não imagina como tem sido... estranho. Sua amiga me deu um nó cabeça. – Ele riu. – Depois daquela noite, você acredita que ela apareceu para mim num sonho? Foi surreal. Os meninos vivem tirando onda só porque eu viro o rosto para toda garota loira que eu vejo, só para saber se é ela. Eu vi que realmente a coisa estava ficando séria quando parei em frente à escola de vocês e esperei que ela aparecesse. 299

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Foi inevitável não prestar atenção naquelas palavras. Vigiei as expressões de Lucas enquanto ele descrevia o que se passava pela sua mente. Era verdadeiro, por mais que a minha razão interior me ordenasse para desconfiar. Sem perceber, eu sorri suavemente enquanto admirava sua franqueza fluir solta através das revelações. Ele prosseguiu: – Por favor! – Ele recolheu minha mão. – Me dê uma oportunidade de conhecê-la, de falar com ela? Hesitei antes de responder e mordi o lábio, pensativa. – Ok! Vou ajudá-lo. – Peguei na gola de sua camiseta polo, alinhando-a. Seu semblante resplandeceu de triunfo. – Sob uma condição. – Com a mesma mão, repuxei a gola, intimidando-o. – Você vai prometer que fará diferente dessa vez. Não serei responsável pelas minhas atitudes se você ousar decepcionar minha melhor amiga. Completamente aturdido, Lucas não soube responder de início. – Entendeu? – reforcei a ordem. – Você quem manda. – Foi tudo (e o suficiente) que ele conseguiu dizer. Laura bateu à porta, abrindo-a em seguida. – Desculpa incomodar... Está tudo bem? – Sua voz cautelosa pareceu emergir daquela atmosfera conturbada. – Ninguém está ferido, Laura. Pode ficar tranquila. Nós nos afastamos rapidamente. – Eu não ia chamar você, mas é que não estou conseguindo dar conta do caixa sozinha – informou, abrindo um pouco mais a porta, permitindo que nós dois passássemos. – Ah, claro. Me desculpe – eu disse, já me retirando completamente da adega. Lucas veio logo atrás, dando a volta pelo balcão. – Vai, Lucas. Pegue uma mesa. Quer alguma coisa? – perguntei ao sentar na frente do caixa e vestir meu avental. – Então estamos bem novamente? Você me perdoou? 300

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Fechei a caixa registradora rapidamente e sorri com sarcasmo. – Cuidado que eu sou muito boa em mudar de ideia. O que você vai querer? Seus lábios se suspenderam em um sorriso satisfeito. – Ainda servem aquela bebida de guaraná com laranja? – É para já! – Sorri. – Gus, um guaraná com uma fatia de laranja, por favor. Pisquei um dos olhos ligeiramente para ele. Lucas sentou-se a uma mesa bem próxima do balcão. Internamente, eu sabia que aquilo não sairia do jeito que eu imaginava. Lucas não era mais o cara honesto em quem eu podia confiar. Crucifiquei-me por um momento. Como eu poderia estar entregando minha melhor amiga para um cara tão problemático como ele? Onde eu estava com a cabeça! Já fazia bem uns dois anos que Lucas andava se metendo com alguns caras perigosos da fronteira, fazendo coisas erradas, assim como eles. A cidade toda já sabia; mas, por trás do caráter duvidoso, Lucas era meu amigo. Era o irmão de coração mais valioso que eu já pude ter. Foi quem permaneceu ao meu lado em situações tão delicadas. Eu sabia que no fundo, no fundo, ele não era nada daquilo que aparentava. Eu só não sabia como fazê-lo renunciar à transgressão de personalidade que tinha assumido nos últimos tempos; mas talvez eu estivesse no caminho certo, mesmo não sabendo para onde tudo aquilo poderia nos levar. Em meio aos meus devaneios, meu celular vibrou no bolso da calça jeans. Pelo toque, eu sabia que era Holly. Lucas lançou seus olhos para mim, percebendo que a ligação havia me surpreendido. – Você não vai acreditar no que acabou de acontecer – ela disse com ares exaltados. – Seu “gaydar” apitou novamente? – comentei fazendo graça e depois abaixei o tom de voz. Eu sabia que estaria sendo ouvida. – Não, Rebecca! É sério! Acabei de perder todo o trabalho de Ciências Políticas. O que faço? Derrubei um puta copo de refrigerante de 301

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laranja no meu notebook. Tá tudo preto aqui! – Ela se desesperou e eu ri ligeiramente da situação. – Primeiramente, acalme-se. Eu sincronizei seus documentos no backup on-line, querida, desde a semana passada. – Tá falando sério? Você acaba de salvar minha vida. – Vamos deixar o drama para depois. – Ri. – Vá até uma lan house e imprima o que restou do trabalho. Depois eu indico para você um colega que mexe com eletrônicos. – Então vou dar um pulo naquela galeria do café do David. Eu te amo, Becky. Depois a gente se fala. Muito, mas muito obrigada! Não sei o que seria de mim sem você. – Vai com calma, garota. Amo você também. – Desliguei o telefone e parei por uma fração de segundo. Lucas me vigiava de soslaio, apenas estudando minhas reações. Senti minha consciência ser tomada por um impulso involuntário naquele momento. Dei a volta pelo balcão e me aproximei. – Lucas, sua oportunidade acabou de chegar. Seus olhos não compreenderam o meu chamado. – Levanta daí e vaza! – Dei dois tapinhas em suas costas. – Holly vai à galeria Platinum, no centro da cidade. – O quê? Mas onde, como vou achá-la? – Ah, aí você já está pedindo demais. Ache-a em alguma lan house. Agora vai! Ele recolheu as chaves do carro da mesa e se levantou, ainda atordoado. Puxei-o pela camisa rapidamente. – E não se esqueça do nosso trato – reforcei com os olhos cravados nos seus. – Tô na sua cola. – Pode confiar em mim. Acabei por soltá-lo e o vi partir porta afora, completamente tomado pela euforia do momento. Questionei-me por um instante. Tal impulso surtiria boas consequências? Cedo demais para responder. Tarde demais para reverter. 302

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CAPÍTULO DEZESSETE

destrinchando um conjunto de problemas - II – Muita calma nessa hora. Muita calma nessa hora, Holly. Repeti para mim mesma por diversas vezes enquanto encaixava meu par de tênis nos pés e recolhia meu cartão de crédito da carteira. A tragédia já estava feita. Eu realmente havia conseguido afogar meu próprio computador com refrigerante, mas tentei não pensar no fato. Mamãe me reservaria uma grandíssima de uma bronca. Soltei os cabelos e escovei os dentes rapidamente. Troquei de roupa e recolhi meu skate, pronta para partir. Agora eu já fazia a maior parte dos meus percursos com o presente inesperado do Ian. Já dominava o suficiente o equilíbrio e a coordenação para cruzar as ruas da cidade. Cheguei em menos de dois minutos na galeria Platinum, que ficava a um quarteirão e meio de casa. E pensar que eu já estivera com Rebecca ali anteriormente, numa tarde de inverno, para tomar o famoso cappuccino de doce de leite no café de um amigo dela. Agora a missão era encontrar uma lan house. E não foi nada difícil naquele vasto complexo de lojas. À frente do balcão do estabelecimento havia um rapaz obeso de aparência nerd que era responsável pela liberação das máquinas. Ele devorava uma barra de Snickers, tentava me atender e ainda jogava God of War em seu notebook simultaneamente. Aquele conjunto de detalhes burlescos me fez rir internamente por longos instantes. Pedi quinze minutos em um computador. Por uma graça divina, o trabalho estava do jeito que eu havia deixado. Fiz pequenas 303

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alterações e fui até a sala de impressão tirar algumas cópias antes do tempo esperado. Um som familiar ressoava pelo ambiente. Acho que eram os fones de ouvido do atendente que estavam no último volume. Deveria ser Avenged Sevenfold. Quase certeza. Assobiei de acordo com o ritmo da música enquanto fazia hora para a máquina terminar de copiar. Recolhi as folhas originais e me preparei para sair dali. Antes que eu me concentrasse na minha saída, a presença de alguém me impediu o pensamento. Estava muito perto. Só restou uma reação de choque. Paralisei quando o vi. Senti meu coração socar o início do meu estômago e depois voltar a bater normalmente. Pisquei atordoada algumas vezes até sentir o ar voltar para os pulmões. – O que você está fazendo aqui? – Encarei seu rosto, tão perto do meu. Ainda recostada à máquina reprográfica, Lucas terminou por pousar suas mãos sobre ela, enquadrando-me e impedindo que eu me esquivasse. Apertei um dos olhos e senti todos os fatos se encaixando dentro da minha cabeça. Ri disfarçadamente. Ele riu daquele jeito, excitante. – É algum crime frequentar lan house próxima da sua casa? Levantei uma sobrancelha diante da sua resposta furada. Ri incrédula. – Você realmente quer que eu acredite nisso? – Cruzei os braços e fiz cara de deboche. – Não gostou da coincidência? Ri alto. – Você poderia ser mais criativo da próxima vez. – Estou vendo que você é mais esperta do que imaginei. Semicerrei os olhos para ele. Eu estava convicta. Lucas tentou se consertar. 304

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– Ok. – Ele ergueu as mãos, farto. – Você ganhou. Apenas a vi sozinha andando por esses lados. Seria um pecado deixar você indefesa. – E eu lá tenho cara de garota indefesa? Sei me virar muito bem. – Exaltei uma pose de convencida e girei o corpo para a máquina, ficando de costas para ele. Recolhi novamente as folhas, que acabaram ficando sobre a máquina. – E, aliás, não estou tão sozinha. – Fuzilei o atendente nerd que nos observava com olhos abismados. Lucas riu. – Quer uma carona até em casa? – Seu braço se estendeu com mais firmeza pelo tampo da copiadora, querendo me encurralar. Sua voz estava naquele ápice galanteador. Senti-me constrangida. – Acho melhor não – fui cautelosa. Mordi a boca e analisei sua expressão pedinte. – Eu estou muito bem servida com o meu 4x4. – Recolhi o skate que estava apoiado à máquina de xerox. – Deixa para próxima... – Afastei-me sorrateiramente, andando de costas em direção à porta. – Olha, se você algum dia mudar de ideia... – Ele retirou um papel de textura firme do bolso de trás e entregou para mim. – Meu cartão. – Hmmm. – Analisei o papelão com seu nome e telefone impressos de uma forma elegante. – Vamos ver se você dá sorte. – Acenei, deixando-o sozinho ali, completamente sem reação. Saí rapidamente da galeria, sem olhar para trás. Joguei o skate sobre o asfalto e parti pelas ruas à minha frente. Um pensamento me corrompeu ligeiramente. Rebecca precisava saber disso! Mas eu contaria pessoalmente. Aproveitei que a luz do sol ainda reluzia sobre a cidade para correr até o quarteirão do centro velho, onde ficava o restaurante dela. Parecia que um furacão acabara de passar ao meu redor. 305

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Desci a avenida principal e me guiei pelos trilhos do bondinho, que me levariam até o Gaslamp Quarter. Passei pela grandiosa placa do bairro e segui a pé até o restaurante. Seu carro estava estacionado do outro lado da rua. Eu sabia que ela estaria lá, no balcão. Rebecca sorriu distintivamente ao ver que eu me aproximava do caixa. – Você não vai acreditar! – exclamei baixo ao chegar mais perto dela. Seus olhos me vigiaram felizes. – Lucas! Ele me seguiu até a lan house! Dá para crer nisso? – Ri alto. Foi então que percebi que minha garganta estava seca. – Ele apareceu como num passe de mágica! – Estalei os dedos. Rebecca ficou em silêncio total. Parecia abismada demais para dizer alguma coisa. – Eu sabia que você ficaria em choque! – Cutuquei seu braço. – É claro que ele veio com aquele papinho de carona etc. e tal. – Revirei os olhos. – E você não aceitou? – Recusei na hora, não é, capitã? – Hmmm... – Ela estava tão reticente. – Fiz algo de errado? – Não, você não. – Ela balançou a cabeça. – Fez muitíssimo bem. – Rebecca sorriu orgulhosa. – Ah! Ele me deu isso. – Retirei o cartão do bolso e entreguei-o para ela. – Caso eu queira fazer algo. – Fui sarcástica, mas Rebecca não riu da minha piada. – O que eu faço? – Aceite, ué. Veja qual é o jogo dele, mas não se esqueça de que quem vai determinar as regras é você. – Vou mandar uma mensagem de texto. – Recolhi meu celular do bolso. Ela pousou sua mão sobre a minha. – Vamos deixá-lo sofrendo até amanhã. – Ela piscou convictamente. 306

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– Ah! Você é realmente boa nisso! – Ri vangloriada para minha melhor amiga. Nós sorrimos em conjunto. – Mas e aí... – Eu limpei a garganta. – Não rola nenhum guaraná com laranja para sua parceira? Vim correndo da Platinum até aqui. Rebecca me interrompeu com risadas sinceras. – Seu pedido é uma ordem, querida. Vamos, sente-se. Gus leva para você.

* Era sexta-feira novamente. Eu e Rebecca já havíamos guardado nosso material e apenas esperávamos a chamada da última aula do período. – Você vai escrever para ele? Ela instou o assunto que já estava pairado em minha mente há certo tempo. – O que você sugere? – Peguei meu celular da bolsa e desbloqueei o visor. – Vamos testá-lo. Rebecca me fitou com seus olhos astutos antes de falar baixinho. – Diga: “E aí. Estou saindo da escola”. Vamos ver como ele reage. – Ok. – Mordi o lábio, estimulada pela adrenalina do momento. Digitei rapidamente e enviei. – Pronto. Deixei o aparelho sobre a carteira, sem tirar os olhos dele. Nós duas ficamos em silêncio nos segundos seguintes. E então meu celular vibrou, acendendo a tela. Rebecca e eu disfarçamos uma risada involuntária. – Onde posso te pegar? – Li o conteúdo para minha amiga aos sussurros. – Caramba, ele passou no teste! – Rebecca não se aguentava. Ela se recompôs rapidamente. – Diga que estará na saída Park Avenue, 307

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mas não agora. Espere uns três minutos para responder. Ele não pode achar que está no controle da situação. Respirei fundo e aguardei. A nossa professora de História iniciou a chamada e, logo após respondermos nossos nomes, eu e Rebecca saímos para o pátio. Já havia se passado mais de cinco minutos. Então, finalmente, respondi, dizendo onde eu estaria. Ele respondeu alguns instantes após: – Chego em dez minutos. – É disso que eu estou falando! – Rebecca balançou a cabeça com seus trejeitos sabichões. Nós andamos em direção à saída da avenida e eu segui até os bancos de alvenaria, onde nos sentamos. Passei a mochila para o colo e contemplei a paisagem serena de uma bela tarde de primavera. O céu em seu azul habitual me remeteu a uma velha sensação de conforto. Do outro lado da rua, vi Jodi e Mike caminharem lado a lado, seguindo o caminho de volta para casa. E eles se esforçaram para continuar sendo amigos. Mas a amizade nem sempre perdura depois que nossa vida sofre algumas mudanças. E disso eu tinha medo. A ausência repentina de pessoas em quem confiamos pode ser traumática, o suficiente para nos fazer perder o chão, o suficiente para perdermos a maioria de nossas esperanças, sonhos. Toda a linha de pensamento fez meu coração se afligir por um momento. – Será que eu estou fazendo o certo? – confidenciei à Rebecca, mesmo que a pergunta soasse mais como um pensamento em voz alta. – Como assim? Não é isso que você quer? – ela me respondeu, um tanto quanto preocupada. – Algo me diz que sim. Você sabe que eu não resisto a um bom desafio. Só não sei se é certo. Com você... e comigo. – Vigiei suas reações. – Também me faço a mesma pergunta... – Rebecca afirmou confusamente. – O quê? 308

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– Deixa para lá... – Ela abanou a mão, desconsiderando seu comentário. Nós compartilhamos alguns minutos de silêncio. – Mas... Quer saber mesmo? – Rebecca começou a falar com suas palavras firmes. – Não tem essa de certo ou não. Você só tem que ser você mesma. Não se preocupe em tentar construir uma imagem de alguém que você não é, apenas para agradar. Seja você mesma. – Ela foi incisiva em seus termos. – Tudo bem, mas acho que essas considerações não surtirão muito efeito. Isso aqui não vai nos levar a lugar nenhum. – Não mesmo? – Minha amiga recostou melhor as costas ao banco e olhou adiante, convicta. – O seu próximo destino acabou de chegar. Voltei minha atenção para rua e vi o SUV de lataria na cor preta se aproximar lentamente até a altura de onde estávamos sentadas. Eu acabei por sorrir involuntariamente. Lucas desceu do carro com seu sorriso iluminado, o óculos escuro escondendo os olhos gulosos. – Então quer dizer que hoje eu dei sorte? – ele brincou com ares carismáticos, se aproximando do capô do automóvel. – Quem sabe – respondi furtivamente. – Rebecca – Lucas pronunciou seu nome ao vê-la sentada ao meu lado. Ele apenas suspirou conformado, de um modo pacífico, colocando as mãos nos bolsos. Ela fitou-o desconfiada e lhe apontou os dois dedos, como um sinal de que permaneceria vigiando. Mas não houve embate, muito menos retruques, para minha surpresa. Despedi-me rapidamente da minha amiga e me aproximei. Respirei fundo e aquietei aquela agitação interna. Lucas abriu a porta do carona para mim com sua maestria clássica. – Sinta-se à vontade. 309

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Naquele SUV 4x4 eu me senti pequena. Enquanto ele dava a volta para entrar, permaneci inerte sentada na máquina. Lucas entrou animado, sorrindo para mim. Ligou o carro e eu me ajeitei no banco, cruzando as pernas. Por fim, ele soltou um riso descompactado, não sabia para onde olhar direito. Tomei a liberdade de puxar assunto. – Suas tatuagens são legais. Eu adoro essa arte. – Sorri sem graça. – Ah, é? – Ele pareceu interessado com meu comentário. – Eu também curto, principalmente em garotas. Você tem alguma? – Tenho sim. – Sorri, novamente sem graça. – Onde? – continuou interessado. – Uma menção de uma música do Guns N’ Roses na cintura. – Ah, claro. – Ele riu como se a resposta fosse óbvia. – Qual é a música? – Não sei se conhece. “Rocket Queen”. – Encarei-o enquanto estávamos em frente ao semáforo. Seus olhos me corresponderam. Um questionamento brotou de seus lábios com tom retórico. – Então é assim que se considera?! – Como? – Levantei uma sobrancelha. – Como uma Rocket Queen. – Os olhos tendenciosos me secaram. – Talvez. – Ri disfarçadamente. Lucas sorriu altivo após uma pequena pausa. – Esse foi o talvez mais convencido que eu já ouvi! Lógico que você se sente uma Rocket Queen – ele gesticulou de um jeito que me fez rir. – É... Eu disse talvez por que acredito que toda mulher tem que possuir uma Rocket Queen dentro de si mesma. Ser um pouco perigosa e impulsiva, assim como um foguete, mas feminina como uma rainha. Porém, não sei se sigo a teoria – gracejei confiante. Lucas admirou-me fascinado. Acho que as palavras soaram sérias demais. 310

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– Você parece ser bem determinada. Já sabe o que quer ser quando crescer? Além de uma eterna rainha foguete? – Ele riu deliciosamente. Acabei por me contagiar. – Ah, eu fui criada para ser médica, né?! Avós médicos, pais médicos – sentenciei entediada. – Mas não me sinto muito à vontade com a ideia. Eu me dou muito bem com números. Engenharia, quem sabe. – Eu sou formado em engenharia civil. – Ah, é? – Surpreendi-me. Ele confirmou sorrindo. – E eu nunca fui muito bom com números durante a escola. – Você deveria ser bom com as garotas. – Fui sarcástica, desmontando-o. – Pode parecer estranho, mas também não. – Lucas riu de repente. – Você é um bom mentiroso! – Apertei os olhos, completamente incrédula. – É sério! – Ele se recompôs ligeiramente. – Mas o que me influenciou mesmo foi o fato do meu pai ser engenheiro. A gente acaba escolhendo por osmose. – É, às vezes não tem como fugir disso – aquiesci com um sorriso. Houve uma pequena pausa antes de Lucas se pronunciar com ares prestativos. – E aí, quer ir a algum lugar? – Ah, eu não sei muito bem onde são os melhores lugares daqui ainda, então... – Ergui as mãos, humildemente. – Mas que inconveniência minha. Você está aqui há pouco tempo. Tinha me esquecido. Você veio de São Francisco, não é?! Como é ser linda desse jeito em uma cidade cheia de gays? Ri, repentinamente, pois não estava esperando por aquilo. – Ah, também não é assim. Acho que depois de um tempo o fato acaba passando despercebido para as pessoas que moram lá. É algo muito natural – expliquei. – Mas... Vem cá, eu não lhe contei que vim de São Francisco. 311

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– Tenho minhas fontes – revelou. – A Rebecca é sua fonte? – concluí, sem nenhuma sombra de dúvida. – Não, necessariamente. – Encarei-o surpresa. Ele riu alto. – Estou assustando você, não é?! – Não, imagina. – Arfei em ironia. – Primeiro você me segue, sabe onde eu moro, conhece dados da minha vida. Ah, ok. Isso é muito natural. – É que... as informações acabaram chegando até mim. Sabe como, é. – Seus olhos eram tão cínicos quanto seu sorriso conquistador. – Ah, tá. – Fitei-o enquanto estávamos parados em outro semáforo de alguma rua do centro. – O homem também pisou na lua em 1969. Conta outra! Lucas me olhou descrente. Um sorriso se formou largamente por seu rosto. – Vai me dizer que você também acredita na teoria da fraude do século? – Não só nessa, mas em várias outras teorias de conspiração. Eu adorava ler essas paradas. – Você não é normal – afirmou enquanto acionava o acelerador, com o humor umedecido em seus lábios. – Eu não sou normal. Tudo bem. – Suspirei. – Ok, você venceu. Não vou negar que corri atrás para colher essas informações. Me desculpe. Derreti os olhos para sua expressão amável. Como ele conseguia ser tão irresistível? – Mas, enfim, por que você se mudou de São Francisco? A pergunta me desnorteou. A partir daquele instante, um milhão de lembranças invadiram minha consciência. Disfarcei o desconforto e engoli em seco. Eu não poderia mentir. Mas eu não precisava assustá-lo. 312

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– Às vezes a gente se mete em encrencas. Quer dizer, algumas pessoas nos metem em grandes encrencas. Foi impossível continuar naquela cidade. – Hmmm. Machucou alguém com o carro da mamãe ou algo do gênero e decidiu se camuflar por um tempo? – Ele não parecia estar falando sério. O comentário não repercutiu muito bem para mim. Prossegui de um jeito brusco: – Não. Fui vítima de um sequestro no dia do meu último aniversário. Ele estancou em sua posição, sem conseguir reagir. A fala lhe faltou, e num súbito instante de surpresa Lucas parou bruscamente o carro no acostamento da avenida. Os olhos perderam a expressão por um momento. – O quê? – Lucas uniu as sobrancelhas, exasperado. – Como assim, seus pais pagaram o resgate e... Interrompi-o com um sorriso suave no rosto. Balancei a cabeça. – Não, eu consegui escapar. Por um momento, claro. Porque nem todos foram capturados. Lucas não ousou pronunciar uma única palavra por instantes intermináveis. Eu via uma linha de pensamento se formando diante da sua expressão inconformada. – Então, é você – Lucas ultimou. – Holly Armstrong. A garota de dezesseis anos que escapou sozinha daquele cativeiro no centro do São Francisco. Jamais imaginei que você poderia ser essa pessoa. – É. Tecnicamente não somos a mesma pessoa. Há um grande abismo entre a Holly de antes e a Holly a partir do evento. – Sorri friamente. Parecia que lembranças o incomodavam. Suas mãos seguraram violentamente o volante, demonstrando sua tensão. – Aqueles caras iriam matar você. – Lucas revelou com uma propriedade desmedida. – É claro que ele conseguiria fugir. Forrest 313

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jamais se entregaria assim, de mão beijada. – Ele balançou a cabeça, querendo se esquivar do sentimento de raiva. – Ele é um sádico! Eu me encolhi no banco, completamente sem forças. Lucas olhou distante pelo para-brisas e num rompante voltou a me encarar firmemente. – Eu só quero saber de uma coisa. – Sua expressão não era a mesma que eu havia conhecido. Estava transgredida pela ira. Levantei uma sobrancelha e o encorajei a perguntar. – Ele... tocou em você? – Lucas questionou com cuidado. – Ah... – Eu apenas arfei, sem conseguir responder. – Holly... Esse desgraçado tocou em você? Só me responda isso. Suspirei e mal consegui olhar para seus olhos. Minha reação foi entregadora. – Droga! Forrest é um desgraçado! – Lucas tomou-se em furor. – Filho da puta! – exclamou alto, inconformado com a revelação. Remoí-me, e ele notou. – Holly – ele se aproximou de mim –, me desculpe. Isso não foi nem um pouco legal com você, não é? Pestanejei, tentando fortalecer minha consciência e impedir que lágrimas se formassem. Recitei baixo: – Não, não. – Fechei os olhos e os abri lentamente. – Eu tenho que aprender a lidar com isso mesmo. – Montei um sorriso conveniente. Eu estava estragando tudo. Ai, Holly... – Eu sou um idiota, eu sei – admitiu debilmente. A questão não era essa. O meu passado sempre estragaria estudo. Essa era a verdade. Não ousei olhar para seu rosto. Eu temia desabar na sua frente. Mas tudo corroborou para que eu perdesse o controle das emoções definitivamente. Lucas recolheu minha mão, um pouco sem jeito. – Por favor, me desculpe por tocar nesse assunto. Eu entendo perfeitamente o que você está sentindo. 314

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Interrompi-o com um sorriso descrente e ele contornou a frase. – Pelo menos acho que posso fazer uma mesura. – Lucas tentou sorrir para mim. Eu recostei o corpo no encosto do banco, sentindo-me derrotada. Tentei impor alguma força na voz. – Olha, não quero ser um estorvo para ninguém. Só estou tentando reconstruir a vida que eu perdi. Eu que peço desculpas por não ser quem você esperava. – Ele tocou seus dedos levemente sobre meus lábios com perfeição, logo após minha última palavra dita. – Eu ainda não sei quem é Holly Armstrong completamente, mas já tenho certeza da minha primeira impressão. Você é diferente de todas as outras garotas. – Eu bem que avisei que era um conjunto de problemas. Lucas riu leve e convicto. – E você acha que eu sou um símbolo de pureza e estabilidade? Claro que não. E, sendo bem sincero, você está superando todas as minhas expectativas. Jamais imaginei que me tornaria seu fã logo na primeira vez que saíssemos. – Uma lágrima caiu dos meus olhos quando ri verdadeiramente. – É sério! O Chuck Norris chega a ser um perdedor perto de você! Não me contive e ri alto novamente. –Vou tomar isso como um elogio. – Mas é um elogio. Você é... Incrível. Sorri de modo sincero e ele ficou em silêncio, pairando seus olhos em mim. – Obrigada. – Funguei e apoiei minha cabeça em seu peito. Naquele momento, fui estonteada pelo cheiro agradável que vinha do seu corpo. Não era perfume, muito menos uma fragrância importada. Era o gostoso cheiro da sua pele. Sem muito jeito, ele passou seu braço à minha volta, num projeto de abraço. Então eu me toquei que aquilo estava caminhando para o rumo errado. Lucas não era o tipo de homem com que eu teria momentos fraternais. Onde estava a sensualização do negócio? 315

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Voltei a olhá-lo. Mordi o lábio lentamente. Ele piscou atordoado e se ajeitou no banco. Eu havia conseguido foder tudo. Estava na cara que agora ele não me veria mais com desejo, e sim com pena. – Acho bom eu levá-la para casa, não é?! Já lhe causei aborrecimentos demais. Eu apenas fechei os olhos, puta da vida. Bufei disfarçadamente. – Tudo bem – murmurei. Nós nos endireitamos no banco. Eu fiquei em silêncio profundo. Ele também. Chegamos à porta da minha casa rápido. Lucas estacionou o carro e eu larguei o cinto para sair. – Holly. Apenas o encarei sem dizer nada. – Me desculpe novamente. E... – Ele levantou os ombros, desvirtuou os olhos, tentando formular alguma frase e, por fim, se virou para mim. – Não sou o tipo de cara em que você pode confiar, mas não me queira mal. Você é uma garota legal demais. Não quero que você sofra. Conta comigo, tá? É o mínimo que posso fazer para recompensá-la das besteiras que falei. AH, LUCAS, QUER FAZER O FAVOR DE CALAR ESSA BOCA? EU VOU DIZER O QUE VOCÊ PODE FAZER PARA ME RECOMPENSAR. Fechei os olhos e sorri. Balancei a cabeça. – Não se preocupe. Vou ficar bem. – Inclinei-me e beijei sua bochecha devagar. Ajeitei as mangas do meu suéter azul de malha, recolhi minha mochila e abri a porta do carro. Lucas permaneceu imóvel. Subi para minha casa completamente... vazia. Joguei minha bolsa em cima da cama e sentei junto a minha penteadeira. Abaixei a cabeça e a apoiei nas mãos. O espelho parecia ter crescido metros e me encarava, desafiando-me. Subi minha expressão lentamente para 316

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ele. Olhei meu reflexo com... tanta dor. Onde estava Holly Armstrong? Perdida em algum lugar do passado? Morta entre lembranças e traumas? Uma dor irremediável tomou meu peito e solucei, as lágrimas vieram em consequência. Eu havia me tornado uma sombra de mim mesma e estava supostamente convicta de que estava me recuperando. E, novamente, eu havia pregado uma peça nos meus próprios progressos. A sensação de estar sobrevivendo, escapando e fugindo em vez de resolvendo alguma coisa. Respirei fundo para sossegar meu coração, que estava saltando pela boca. Uma luz ressurgiu. Na verdade, uma luz vibrou. Ali, bem guardada dentro da minha mochila. Era meu celular com algumas ligações perdidas da Rebecca. Engoli o choro e atendi o telefone. Mas foi impossível não desabar ao ouvir sua voz. – Holly? Onde você está? O que aconteceu? – Rebecca... – falhei a voz. – Não diga mais nada. Estou chegando.

* Deixei a porta de casa destravada. Eu havia me deitado na cama com desleixo enquanto esperava Rebecca chegar. Não demorou até que eu ouvisse seus passos ecoando pelo corredor. Minha melhor amiga caminhou até o meu quarto com um desvelo incomum. Senti sua presença encostar ao batente da porta do meu dormitório e me observar ali, deitada ao colchão, com uma preocupação desmedida. – Holly. – A voz cautelosa encheu meu peito de esperança. Eu me ergui para sentar e poder olhar para o seu rosto. Rebecca se aproximou, sentando-se ao meu lado. Sua expressão se transfigurou ao me ver desmanchada em lágrimas. – Agora você vai me contar o que esse desgraçado aprontou. Saio direto daqui para arrancar a cabeça dele. 317

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– Não, o problema não foi ele! – contestei aos soluços. – Holly, não tente protegê-lo. – Rebecca, me escute! – Encarei-a. – Lucas não fez nada de errado. Muito pelo contrário. – Sequei as lágrimas rapidamente. – Ele foi... muito gentil comigo. Até demais. Rebecca abriu a bolsa e tirou um pacote de lenços de papel, entregando-me. Eu tremulava as mãos em razão do desespero momentâneo. – Quer contar desde o começo? – Ela colocou uma mecha para trás da minha orelha com cuidado. – Vá devagar. Tenho todo o tempo do mundo. – Eu não poderia mentir, Rebecca. Eu acabei contando que eu fui seques... – contornei, pois eu não gostava de me lembrar do fato com tanta precisão. – Contando sobre o que tinha acontecido comigo, para justificar minha mudança repentina para San Diego. Ela afagava minhas costas, encorajando-me. – Mas eu não contava com a reação dele! Rebecca ficou em silêncio. Ela não compreendeu de primeira. – O jeito a que ele se referiu... Foi tão estranho! – Do que você está falando? – Do Forrest! – exclamei. – Lucas repetiu o nome dele diversas vezes com tanta... propriedade; como se o conhecesse. O jeito como ele se remoeu pelo fato não foi algo normal. Eu queria ter desvanecido. Fiquei muito mal na hora, eu estraguei tudo! – O que você está querendo dizer? – Os olhos dela se endureceram naquele instante. Parecia que um milhão de coisas passou diante de seus olhos e ela não conseguia assimilar nada. – Eu não sei. – Respirei fundo. – Mas... soou como se.... eles se conhecessem. E sendo um pouco paranoica, do jeito como ele falou, era como se Lucas se culpasse pelo que aconteceu. A raiva que vi brotando em seus olhos foi assustadora. 318

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Rebecca ainda não havia conciliado muito bem as informações. Sua respiração parecia ter estancado. Os olhos perdidos sem nenhuma expressão me afligiram. – Rebecca – sacolejei-a –, isso é tudo loucura da minha cabeça, eu sei! Por isso estou falando que o problema sou eu. – Não contive as lágrimas que vieram a seguir. – Pare de besteira, garota! Não há nada de errado com você. – Ainda se fosse só isso... – Assuei o nariz. – Você deveria ter visto o jeito como ele me olhou depois. – Lembrar da condição fez meu coração se apertar. – Com pena. Você acha que eu queria isso? Eu não preciso de um cara como o Lucas para sentir pena de mim! Chega a ser um crime! Rebecca parecia ainda permanecer mergulhada no estado de transe. – Você está me ouvindo? – Cutuquei-a. – Pena, Holly? – ela me indagou, para minha completa surpresa. Assenti desoladamente com a cabeça. Ela se levantou num rompante, rindo com sarcasmo. – Ah, tá explicado então. Não ousei dizer uma única palavra. O que havia se tornado óbvio para ela que eu não consegui descobrir? – Não faça essa cara, Holly. Você sabe muito bem por que você ficou chateada. – Mas é claro! Isso aqui não significa nada. – Apontei para mim mesma. – Só fico brincando de estar vivendo. – Vamos parar de se enganar? Seja prática. – Ela se agachou e recolheu minhas mãos. – Você estava esperando que Lucas pegasse você de jeito e a jogasse para trás daquele carro. Mas não! Ele foi mais homem do que isso. Apesar de ser um galinha sem caráter, ele a respeitou. Você estava vulnerável. Seria uma extrema covardia se aproveitar de você naquele momento. Mas não era isso que a bonitinha queria, não é? – Ela segurou meu rosto com as mãos, secando minhas lágrimas. Eu sorri sem jeito. 319

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– Para com isso, Rebecca. – Não adianta se enganar, querida. Foi isso que a deixou frustrada. Lembra do que eu lhe falei? Sobre o lance de ser apenas você mesma? Pronto. Você fez direitinho. Isso é tão genuíno, Holly. Mostrar-se verdadeiramente para as pessoas. Pode até ser chocante demais para quem não está acostumado, que foi o caso do Lucas. Você o pegou de surpresa. Levantei uma sobrancelha, e ela piscou daquele jeito. – Não há com o que se preocupar. Você tem a mim. E eu prometi que não a deixaria cair, não foi? – Assenti com a cabeça, sentindo seus olhos esperançosos encherem meu peito de consolo. – O que você passou é apenas uma etapa da sua vida. Triste, mas é. Que bela história não possui alguns capítulos tristes? – Você está certa. – Sorri. – Eu sou mais forte do que isso – admiti. – É assim que se fala! – Encorajou-me e acabou por me abraçar deliciosamente. E as lágrimas cessaram de vez. Eu mal imaginava o que viria dali para frente, mas para mim não tinha muita importância. Eu estava preparada para os próximos capítulos. Tristes ou não, eu os viveria um de cada vez.

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CAPÍTULO DEZOITO

[um jogo de baralho sem cartas] por Rebecca Dellape

Não é por acaso que algumas coisas deixam de fazer sentido para nós em determinado momento de nossa vida. Também não é por acaso que se leva certo tempo até descobrir todas as respostas. Às vezes nossa visão diante da realidade não está preparada para aceitar as circunstâncias de fato. E até mesmo, inconsciente ou não, às vezes não nos deixamos enxergar. Parece muito mais conveniente continuar fingindo que está tudo bem. Mas estava na hora de mudar isso. Sair ou não da zona de conforto era uma escolha que poderia custar a vida de alguém. E, quando a vida de alguém nada mais é do que a vida da sua melhor amiga, não se pode simplesmente ver o destino traçar seu caminho por conta própria e cruzar os braços. Seria preciso interferir. Era óbvio que ele não demoraria a aparecer; e eu não levantaria o assunto precipitadamente. Esperei os dias se arrastarem e me preparei para colocá-lo contra a parede. A verdade eu sabia. Sempre soube. Lucas e Forrest foram amigos desde os tempos da faculdade. O desgraçado nasceu e se criou na cidade, assim como a maioria dos meus melhores amigos. De tudo que pude ouvir a seu respeito, eu tinha conhecimento de que Forrest havia sido agente da secretaria de segurança por vários anos. Não posso afirmar exatamente quando foi que ele começou a se envolver diretamente com o narcotráfico da fronteira, mas sempre houve boatos de que ele foi afastado do cargo em razão de diversas denúncias de tráfico de informação. Ele se aproveitava da função para repassar antecipadamente possíveis operações de combate a narcóticos, protegendo e dando cobertura para os maiores 321

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chefes de quadrilha da região. É claro que não ficou apenas nisso. Uma vez que você oferece favores a esse tipo de gente, nunca mais estará livre de seus desmandos. É como um saco sem fundo. E foi mais ou menos assim. Se não fosse pelo caráter duvidoso do Forrest, claro. Pois ele nunca quis ser apenas uma peça substituível do sistema. Ele sempre almejou comandar o sistema. E Lucas esteve ao seu lado durante grande parte dos últimos tempos. Fatalmente foi por sua influência que Lucas se meteu em uma grande cilada. Agora tudo começava a fazer sentido. Em outubro do ano passado, quando retornei da minha última viagem, eu senti que Lucas realmente havia mudado. Lembro-me perfeitamente do dia do meu aniversário. Eu havia combinado com alguns amigos de fazermos uma pequena comemoração na noite do dia 25 e é óbvio que convidei Lucas, pois naquela época ainda não havíamos cortado nossa amizade de vez. Ele sequer me avisou que não apareceria. Liguei várias vezes, e tudo que consegui foi encher sua caixa postal com mensagens durante dias a fio. Sumir daquele jeito nunca foi um comportamento de seu feitio. A notícia do sequestro da Holly já enchia as programações dos noticiários de TV. E o nome do Forrest era anunciado incessantemente. Na época, eu me privei de imaginar que Lucas poderia estar de alguma forma envolvido. E agora eu pude desfrutar do amargo gosto de sentir a verdade ser esfregada na minha cara. Mesmo que Lucas não tivesse concordado diretamente com os planos de Forrest, eu colocaria minhas mãos no fogo ao afirmar que ele o ajudou com a fuga, isolando-o em algum lugar distante, o suficiente para que nunca mais fosse encontrado. Todas essas questões me consumiram por dias. Eu me pegava pensando em como conseguiria resolver a situação. Eu jamais me perdoaria se algo acontecesse a Holly, pois Lucas não seria capaz de protegê-la, caso Forrest descobrisse que seu melhor amigo estaria 322

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se envolvendo emocionalmente com a garota responsável pela sua drástica ruína. Eu apenas enxergava uma única saída. E Lucas teria que acatar, por bem ou por mal.

* – Rebecca? Um vidro partiu-se em pedaços ao cair sobre o chão ao mesmo tempo que ouvi meu nome ser pronunciado. Custei a perceber que o ruído provinha de uma travessa de vidro que eu carregava e que, com o nervosismo momentâneo pelo chamado insurgente, acabei deixando-o cair. – Está tudo bem com você? – Lucas abaixou-se comigo, ali no saguão de mesas do restaurante. Eu tentava recolher os cacos sem muito cuidado. Minhas mãos tremularam, e ele intuiu que eu não estava nem um pouco à vontade com a sua presença. Lucas me recolheu pelas mãos. – O que está acontecendo? – Ele me sacolejou levemente ao se afligir diante meu silêncio. – Apareça em casa daqui uma hora – adverti seriamente. – As paredes têm ouvidos demais para o que nós precisamos conversar. Lucas não ousou me contrariar e terminou por me soltar. – Como você quiser. – Ele limpou a garganta. – Não vou me atrasar. – Levantou-se, estendendo sua mão até a minha, para que eu me erguesse rapidamente. Lancei-lhe um último olhar seco antes de me virar. Respirei fundo, já delimitando em minha mente as palavras que eu usaria em discussões futuras. Cerca de uma hora se passou até que eu chegasse em casa. Avistei o temido SUV de lataria na cor preta em frente ao jardim e me preparei emocionalmente para evitar bater naquela traseira enorme. Lucas não estava no carro. Desci e rumei para a entrada da minha casa, chegando até a porta. E, para minha surpresa, ela estava 323

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aberta. Ao adentrar na sala, o vi sentado no meu sofá, enquanto acariciava Luke. – Quem deixou você entrar aqui? – questionei furiosa. – Você realmente deve mudar o esconderijo da sua chave, gata. Esqueceu que nos conhecemos há mais de dez anos? – Não me lembre dessa tragédia. – Fui ríspida, batendo a porta. Lucas apenas riu. – É um imprestável! – Revoltei-me e atravessei a sala, acendendo as luzes da cozinha. – Luke! Vem para casinha. – Não o trate assim. – Lucas afagou seu pelo. – Pode ficar, amigão. Não a ouça. Voltei ao centro da sala. – Lucas, eu não estou de brincadeira. – Parei à sua frente, cerrando os pulsos. – Eu alguma vez disse que estava? – Ele se levantou, impondo-se. Não redargui. Simplesmente abaixei a cabeça e recolhi Luke pela coleira, dirigindo-me para a área de serviço para repor sua ração e fechá-lo na varanda. Quando voltei, vi Lucas apoiado ao batente da porta da cozinha, com os braços cruzados. A imagem me remeteu a velhas lembranças, assim como quando éramos mais jovens e ele sempre fazia questão de ficar ali, enquanto me vigiava durante os meus deveres de casa. Seus olhos encontraram os meus em silêncio. – E então, aqui estou eu. O que você tem para me dizer? – Eu não tenho nada para falar. Você que vai me responder. Lucas não compreendeu. – Responda para mim. Ele ainda está vivo? Sua expressão cautelosa pareceu não processar a questão. – Você sabe muito bem de quem eu estou falando. – Fuzilei-o. Numa fração de segundo, vi seu rosto se ruborizar por um instante. Seus olhos se fecharam, como se confirmassem a minha dúvida. – Aqui ou no México? – Prossegui: 324

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– Fronteira. – Enfiou as mãos nos bolsos. O terror me desnorteou naquele momento. Por um instante, não senti o chão sob meus pés. Sentei-me à mesa da cozinha e apoiei o rosto com as mãos. – Como você pôde me esconder isso? – choraminguei, desolada. Ele continuou em silêncio, mas não por muito tempo. – Você também poderia ter me adiantado sobre o passado dela. – Ah, certamente! – explodi. – Você queria que eu falasse o quê? “Olha, Lucas! Essa garota em quem você está interessado é aquela mesma que seu melhor amiguinho tentou matar há uns meses, mas, não se preocupe, ela é gente fina!”. – Terminei a frase aos berros. – Eles vão querer a sua cabeça. – Eu sei me virar muito bem com todos eles. Ri, ironizando. – Lucas! – Juntei as mãos à frente do rosto, levantando-me. – Cai na real! – falei pausadamente. – Você é um deles! Minha melhor amiga está se sacrificando todos os dias para ficar longe de pessoas como você, para se esquecer do que pessoas como você fizeram a ela! – Você sabe que eu nunca concordei com o que Forrest fazia. – Não concordava, mas você esteve lá quando ele precisou de cobertura para se esconder no México – objetei-o na hora. – Você cuidou dos negócios para ele. Era lá que você estava enfiado durante aqueles dias que você sumiu depois do meu aniversário? Admita que você é tão marginal quanto qualquer um desses caras. Ficamos novamente em silêncio, até Lucas se pronunciar. – E não é isso que você faz? Você também não concorda com o que eu faço; mas ainda assim é minha amiga. Senti sua afirmação me rebater como um chicote. – Você é podre, Lucas. – Meus olhos se encheram de lágrimas. – Já imaginou que a vida da Holly está na sua mão? – Aproximei-me e abaixei o tom de voz. – Um passo em falso e o Forrest descobre que o seu fiel amigo está saindo com a garota que pôs tudo a perder. 325

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Um passo em falso e ele passará por cima de você, com a maior sede de vingança. Você não pensa nisso? Lucas suspirou e terminou por abaixar a cabeça. – Não, definitivamente você não pensa. – Antecipei-me diante de seu silêncio. – Aposto que você imaginou que continuaria investindo na Holly como se ela fosse uma garota qualquer. Como se não houvesse nenhum perigo iminente diante da aproximação de vocês. Mas olha só como é o destino. De repente o cara que gosta de jogos se depara com uma jogada impossível. Poderia até ser mais fácil, mas não há cartas que o façam vencer desta vez. – Eu sei que ela não é uma garota comum – Lucas me interrompeu. – E eu prometi a você que faria diferente. Que não... a machucaria. – Suas palavras soaram doloridas. – Isso não faz a menor diferença agora. – Fechei os olhos, farta. – O que você quer que eu faça? – perguntou, com seus olhos suplicantes. – O que for preciso para não arriscar a vida dela. A melhor saída é desaparecer. – Suspirei pesado. Sua expressão não estava nada contente. – Você não vai ser homem suficiente para conseguir protegê-la. – Afastei-me. – Cai fora e esqueça que um dia conheceu Holly Armstrong. – Algo sufocou meu peito naquele momento. O desconforto foi terrível. Respirei fundo e terminei por fechar os olhos. – Pode deixar que eu cuido de consolá-la depois que você sumir. Vai ser melhor para todos nós. Lucas não me respondeu, mas sua expressão não concordava com nenhuma de minhas palavras. – Não apareça mais. – Voltei a encará-lo. – Ouviu? – Tudo bem – ele consentiu, por fim. – Tudo bem? – repeti, debochando da resposta. – E quanto a você? Até quando vai levar essa sujeira adiante? Nunca vai conseguir se livrar disso? – Você sabe que não é tão fácil quanto parece. Não depende de mim. 326

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– Não depende uma vírgula! – Virei-me em direção à janela da cozinha. A mente vagou longe pela paisagem vibrante do jardim iluminado do vizinho. – A partir do momento que você enfrentar a realidade e ter uma razão para deixar tudo isso para trás, você vai conseguir. – Abaixei a cabeça, sem olhar para ele. – Eu só não quero minha melhor amiga na mira de um bandido filho da puta. – Não vou desafiá-la – confessou, por fim, conformado-se com a condição. – Só isso? – Só – respondi, ainda sem fitá-lo diretamente. De soslaio, vi Lucas partir cozinha afora. E, em seguida, ouvi a porta da rua bater ruidosamente. Seria melhor para todos nós. “Apenas um conselho: eu não acreditaria nisso se fosse você.”

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CAPÍTULO DEZENOVE

um jogo de baralho sem cartas Havia sido uma longa semana. Talvez tivessem sido as provas do fim daquele bimestre que deixaram o período tão exaustivo ou simplesmente o tempo havia decidido desacelerar um pouco, no final das contas. Era sexta-feira novamente, e algumas turmas foram dispensadas mais cedo. Eu esperava que a classe da Rebecca estivesse entre elas. Aguardei no pátio enquanto observava os alunos que cruzavam por ali. A turma do Ian foi a primeira a ser liberada depois da minha, mas nenhum sinal dele. Permaneci sozinha por breves instantes ali, sentada no banco, até Leo me avistar com seus olhos perspicazes. – Por onde você anda, garoto? – perguntei e ele me cumprimentou com um abraço acalorado. – Tenho estado ocupado nos últimos dias. – Leo terminou por sentar, apoiando sua mochila no colo. – Últimos jogos da temporada, campeão? – deduzi. – Quase isso. – Ele sorriu satisfeito e eu correspondi. – Ah! Consegui encontrar você! Ouvi a voz da Rebecca instantaneamente. Ela caminhou até nós e sentou-se do outro lado vago do assento, terminando por cumprimentar Leo rapidamente. – Cadê o resto da galera? Tá todo mundo saindo mais cedo. Tô a fim de ir para o Balboa. – Ainda não vi Ian. Mike e Jodi estão na prova de cálculo. – Ian já saiu. E faz tempo – Leo acrescentou. – Ele não passou por aqui – afirmei. Nós três nos entreolhamos. – Bom... Vamos esperar a May, não é? 328

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Fiquei um pouco indiferente. – Tudo bem. – Recostei-me melhor ao banco. – Olha só! Mike e Jodi conseguiram terminar a prova! – Acenei de longe para os dois, que nos avistaram. May também caminhava ao lado dos dois, enquanto carregava uma pilha de livros nos braços. – Ótimo! – exclamou Rebecca, contente. – Vamos todos para o Balboa. Está um dia lindo demais para chegar cedo em casa. Rebecca tinha razão. A tarde de primavera estava radiante com seu céu predominantemente azul, sem uma única nuvem que atrapalhasse a esplendorosa paisagem. Os demais se aproximaram e anuíram com a ideia da Rebecca na hora. May se entusiasmou com o programa. Ela se mudaria dentro de alguns dias, então qualquer segundo a mais com seus amigos significava uma grande realização. – Bom, só esperem por mim um pouquinho. Vou guardar este material no meu armário. Não vou ficar carregando peso até lá – eu disse. – Ah, devolve estes livros na biblioteca para mim, Holly? São os últimos que sobraram. – May sorriu sem nenhum humor. – Claro. É caminho. É só devolver? – É, é sim. – May os repassou com cuidado. Levantei-me, já me despedindo rapidamente do pessoal. Dirigi-me até o segundo andar do prédio, chegando até a biblioteca. Devolvi os livros da May e desci as escadas, em direção ao armário. Guardei minhas apostilas, ficando apenas com alguns cadernos na bolsa. O corredor silencioso me permitiu ouvir um murmúrio baixo, com risinhos discretos e palavras entrecortadas. Fechei meu armário cautelosamente e caminhei alguns passos, aproximando-me dos sanitários femininos daquele corredor. No hall de entrada, havia um casal abraçado, conversando baixo entre beijos e carícias. Espiei de soslaio e denotei que o rapaz era nada menos do que Ian. E Jenny era a garota que estava com ele. Sorri 329

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aleatoriamente e peguei o caminho de volta ao pátio antes que os dois me vissem. – Ian fugiu de nós – falei ao me juntar novamente com o pessoal. – Foi se encontrar com Jenny. – Ahhh! – Rebecca pareceu se conformar com a situação. – Ela é esperta. Ian é um bom garoto. – Deixe os pombinhos se divertirem. – Leo se levantou. – Vamos lá? Cada um recolheu seus pertences e partimos para a saída da escola. O Balboa Park não ficava muito longe dali. Ligeiros dois quarteirões nos separavam daquele grandioso espaço verde e florido. Rebecca passou correndo pelo Leo, que estava ao meu lado, levando seu boné consigo. – Vem pegar, seu bobão. – Ela o sacudiu, incitando-o ao desafio. Eu ri alto da situação e ele correu para alcançá-la. Logo, os dois corriam como crianças pela calçada, e eu fiquei alguns metros atrás, andando calmamente. May também entrou na brincadeira e, quando vi, todos já tinham chegado ao outro quarteirão. Fiquei sozinha. Ao passar por debaixo de uma grande árvore, senti o sol se amenizar sob minha cabeça. Uma brisa fresca transpassou pelos meus cabelos e pude até me sentir mais reconfortada. – Se não a conhecesse tão bem, até usaria a desculpa de semanas atrás. Ri ligeiramente sem olhar para seu rosto. Apenas absorvi o tom harmonioso da sua voz em minha mente. Prossegui com meu passo sossegado. – Fico contente que não me veja mais como uma garota indefesa – respondi confiante. Seu corpo alcançou meus passos, estabelecendo-se ao meu lado. Olhei-o de soslaio. As mãos estavam dentro dos bolsos da calça jeans. Lucas vestia uma camiseta de gola V cinza que cobria seu físico. 330

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– Pensando bem, acho que o indefeso nesse caso sou eu. Sei que estou correndo perigo por estar ao seu lado. Ri com seu comentário. – Você tem um bom senso de humor. Mas, por via das dúvidas, é sempre bom tomar cuidado comigo. – Entrei na brincadeira e o cutuquei sorridente. Meus olhos buscaram a turma, que já se afastara. Rebecca ainda tentava driblar o Leo de resgatar seu boné. Ele a pegou por trás em um golpe desajeitado e logo os dois caíram no chão, morrendo de rir em seguida. Ela gritava, sem parar de rir. – Faça um touchdown agora, campeão! Olhei aquela algazarra com um sentimento bom dentro do peito. – Ela não muda, não é?! – Lucas confirmou. – Definitivamente – concordei. – Você vai me enjaular e me torturar por dias se eu lhe oferecer uma carona? Seus olhos me enquadraram. Diante do seu olhar persuasivo, paralisei meus passos, ficando à sua frente. Oscilei o olhar para Rebecca. Ela acabou por avistar minha recente companhia e, pela sua expressão inconformada, eu deveria recusar. Ela o fuzilou, como se desaprovasse totalmente sua aparição repentina. Não entendi e por um momento hesitei em responder. – Eu não lhe obedeceria se fosse você. – Seus olhos se abaixaram, tendenciosamente irresistíveis. Analisei o rosto apreensivo do Lucas, esperando por uma resposta minha. Sorri antes de tomar qualquer decisão. – É, eu me entendo com ela depois. Você deu sorte. Sua sobrancelha se levantou. – Não vou enjaulá-lo. Não hoje. – Pisquei. – Vou aceitar sua carona. Estou sem minha bicicleta mesmo. – Admiti. Seus olhos se vangloriaram e refletiram um sorriso sincero. Sua mão se recostou em minha cintura, guiando-me para o caminho contrário. 331

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– Mas... Já que eu aceitei sua carona, você bem que podia me contar o que faz por aqui. Nós alcançamos seu carro com certa rapidez. Ele abriu a porta para mim. – Bom, se eu disser que foi coincidência você não vai acreditar... Coloquei minha mochila no banco de trás e me sentei. Ele deu a volta e ajeitou-se no banco do motorista. – Então serei sincero. – Voltou ao diálogo. – Vim ver você. – E eu achando que você não olharia mais na minha cara depois daquele incidente. – Sorri sem jeito e acabei por murmurar. – Que incidente? – Sorriu de um modo convencido. – Vamos esquecer aquilo, certo? Há tantas coisas mais importantes entre nós. – Ele levantou uma sobrancelha. Meus pensamentos voaram. Agora sim estávamos falando do próprio e tão conhecido Lucas Kennedy. Acho que a minha expressão momentânea denunciou certo incômodo. Nunca gostei de ser vista como objeto. – Que bom. – Foi o máximo que consegui dizer, sem olhar para seu rosto cínico. Mas, na real, minha vontade era de xingar sua mãe. Logo chegamos em frente do meu prédio. O trajeto era curto. Graças a Deus. Aquele silêncio estava me aturdindo. Ele estacionou na vaga de visitantes lentamente. Manobrou o carro com cuidado e desligou o motor. Paradoxalmente, eu queria sair dali, e também ficar ali. – Obrigada pela carona – entoei as palavras sem nenhum tipo de emoção. Puxei minha bolsa para frente, já me preparando para sair. Olhei de relance para sua expressão. Lucas estava visivelmente decepcionado, embora não fosse sua intenção demonstrar tal sensação. – Acho que isso é pior do que você me enjaular e me torturar por dias. Revirei os olhos. 332

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– O que é pior? – perguntei com descrença. Ele ficou em silêncio por, sei lá, meio segundo. E, de repente, seus lábios alcançaram os meus com versatilidade. Era um beijo? Um cala a boca? Algo como “eu não aguento mais”? Não entendi. E então um telefone tocou. Era o meu. Nós dois nos sobressaltamos, assustados. Não sei como foi possível, mas, com tal reação exaltada, eu consegui bater minha mão em seu nariz. – Ai! – Ele levou as mãos até o rosto rapidamente. Eu recolhi meu aparelho, visualizando quem teria me ligado. – É a Rebecca – concluí em voz alta. Lucas arfou, completamente irritado. – Tinha que ser! Isso só pode ser um sinal – sentenciou com a voz embargada. – Me desculpe! – Tampei o rosto com uma das mãos. – Não me diga que quebrei seu nariz. – Afaguei seu ombro em seguida. – Não – Lucas contornou. – Pelos menos acho que não. – Acho que não sei controlar minha força. – Dei um sorriso amarelo. – E eu acho que preciso de um papel. Pega para mim? Na segunda gaveta do painel. Abri o porta-luvas para pegar o papel. – Não, esse não – Lucas me advertiu. Eu virei para olhá-lo e ele tapou o rosto em desgosto. Abri a tampa do compartimento canhestramente e um monte de plástico colorido caiu sobre meus pés. Abri a boca em exaltação, e ele se lamentou em seu canto. Prestei mais atenção no que eu tinha deixado cair. Limpei a garganta, acanhada. – Uau! Você é realmente precavido. – Arregalei os olhos discretamente. 333

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Jesus! Ali havia muitas camisinhas. Eu fiquei sem graça, mesmo sendo tão desencanada para aquelas coisas. – Era para abrir a gaveta de baixo – Lucas disse sem nenhum humor. Abri a tampa de baixo com cuidado e havia várias folhas de papel. – Me dê uma. – Ele ainda segurava o nariz. – O quê, uma camisinha? – Eu ri tentando fazer a comediante. Ele não me olhou muito bem. Fiquei sem graça e dei um amontoado de folhas de papel em sua mão. Ele assuou o nariz e jogou as folhas no lixo. Sorri desajeitada. – Me desculpe – reiterei o pedido. – Por favor, não precisa ser agora, mas pense a respeito, ok? – Não... – Ele revirou os olhos, com desprezo. – Não tem problema. Droga! Odeio quando as pessoas fingem ser gentis. Estava na cara que era mentira, claro. Era evidente tamanho desgosto. Mordi os lábios e pisquei várias vezes os olhos, tentando implorar. Lucas acabou por amolecer os olhos e sorrir involuntariamente para mim. Busquei minha mochila, flexionei a trava da porta e me virei para sair. Mas antes eu precisava fazer uma coisa. Ligeiramente, inclinei-me até seu rosto e beijei suavemente o canto de sua boca. – Tchau. – Sussurrei, ainda fitando sua expressão admirada. Sorri e terminei por me retirar, sem olhar para trás. Lucas esperou até que eu entrasse por completo em meu edifício para ligar o carro e partir. Liguei para Rebecca assim que cheguei deslizando no corredor do andar. – Você nem sabe o que aconteceu agora! – falei aos risos. – E nem quero saber, sinceramente. 334

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– Eu, hein, Rebecca. – Mas o que ele queria? Holly, não dê asas para esse imbecil. – Não se preocupe com isso. Só acho que alguém lhe aconselhou a um bom “finalize com ela” à la Mortal Kombat. – Nós duas rimos alto. – Depois de hoje ele dificilmente voltará a me rondar. Pode acreditar – confessei, conformada com a condição. – É muito provável que isso aconteça. Mas sabe o que é melhor ainda? – Ahn, diga. – Coloquei a chave na fechadura de casa. – Consegui dois ingressos para o show do The Sounds para próxima sexta-feira! – Você tá brincando! – Paralisei ao ouvir suas palavras animadas. – Vinte e quatro de abril. Nove horas. House of Blues, gata! – Você é o máximo! Becky, acabei de chegar em casa. Não corro mais perigo. – Ri. – Amanhã você passa por aqui para irmos no Henrique, né? – Antes das dez, querida. – Fechado. Até amanha, amiga. Amo você. – Também! Abraços para sua mãe. Desliguei, voltando a abrir a porta. Ao desencostá-la, a voz da minha mãe foi desabafada e pude escutá-la com precisão. – Você já passou aquela papelada, Chris? Você prometeu. Eles podem me perguntar sobre isso futuramente. – Mãe? – Fechei a porta ruidosamente. Ela desligou o telefone num súbito. – Está tudo bem? – Aproximei-me dela, ali na sala de estar. – Ah, é só um pessoal de São Francisco, do hospital. Estou aguardando uns documentos importantes. – Ah. – Fitei sua expressão apreensiva. – Tudo bem. – Sorri, colocando minha mochila sobre o sofá. – Você chegou cedo. Achei que ficaria com seus amigos. – Seus dedos habilidosos esconderam um pequeno papel embaixo de outras folhas ao lado do telefone. Fingi não ter notado. 335

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– Acabei terminando a prova de literatura antes do esperado. – Dirigi-me até o banheiro, retirando a camiseta da escola e colocando-a no cesto. – Semana que vem eu e Rebecca vamos a um show, mãe. No centro da cidade – comentei enquanto amarrava os cabelos junto ao topo da cabeça e recolhia uma camiseta larga e mais confortável para vestir. – Será no House of Blues? – mamãe supôs e eu me surpreendi. – Como sabe? – Reapareci na sala, já vestida. Ela riu por um momento. – Apenas imaginei. Eu me lembro quando abriu uma em Chicago. Você ainda era pequena. Seu pai adorava ir lá aos sábados à noite. Acho que em anos minha mãe não mencionava meu pai em algum diálogo. Recebi o comentário com surpresa. – É... – Ela sorriu reticente, como se boas memórias lhe invadissem a mente. – Estou fazendo frango xadrez para o almoço, querida. Quer me ajudar? Hesitei, ainda absorta pelas novas informações. – Claro – aceitei, por fim.

* Escuridão. Frio. Um gelo rascante emergia pelas minhas pernas. Inundava meu peito. O chão estremecia sob meus pés. Eu só me perguntava como eu conseguiria respirar no segundo seguinte. Questionei-me por um momento se haveria um segundo seguinte; uma segunda chance para tentar; para escapar. Como eu poderia ainda estar ali? Teria sido tudo um mero sonho? Minha mente teria se enganado durante os últimos tempos? Estaria eu ainda presa? E se eu nunca tivesse conseguido sair dali, afinal de contas? O terror inundou meu rosto, com um bocado de lágrimas doloridas. 336

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Corra, corra! – Alguém me disse, mas era impossível obedecer. Mãos me repuxaram com força. E eu gritei, assim como em milhões de ocasiões passadas. Despertar e ser obrigada a lidar com o choque da realidade e o terror das lembranças. Eu já deveria ter me acostumado com tal ato transgressor da minha consciência. Encolhi-me debilmente junto aos cobertores, cobrindo meu rosto. As lembranças tão visíveis e reais me renderam um longo período de lágrimas. Aos poucos, senti toda a angústia ceder gradualmente. Já era segunda-feira. O céu começava a se despedir de seus tons noturnos, dando vida aos primeiros raios da alvorada. Respirei fundo e decidi me levantar. Rebecca sempre me ensinou a não me entregar. Eu era mais forte. Resolvi ocupar minha mente com qualquer coisa que desanuviasse aquelas tensões sombrias. Comecei a organizar meu armário, livrando-me de papéis inúteis e separando todo o material das aulas daquele dia. Eu faria hora até as sete da manhã, horário que eu costumava levantar para me aprontar para a escola. Sentei-me na poltrona e comecei a tirar todos os pertences da minha mochila, até que um pedaço de papel firme e elegante chegou em minhas mãos. As letras dispostas sobre a cartolina creme fizeram meu coração bater num ritmo entusiasmado. Lucas Kennedy. Eu sorri aleatoriamente diante da sensação prazerosa de ter minha mente invadida por lembranças suas. Encarei o cartão, erguendo uma sobrancelha. – Você é um idiota. Sentenciei com a mente distante. Talvez sua ausência fosse responsável pela sensação perturbadora de estar parada no tempo. O tempo passa tão devagar sem você aqui. E se eu confessasse que 337

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sentia falta dele? E se eu admitisse que sua presença me fazia bem, o suficiente para que eu inconscientemente contasse nos dedos os dias para vê-lo novamente? Era impossível não se deixar balançar por um cara como Lucas Kennedy. Mais impossível ainda era tentar manter as emoções sob controle. E isso era um ótimo desafio para mim. Suspirei fundo e guardei seu cartão junto à minha caixa secreta. Quando me dei conta, já estava na hora de sair. Arrumei-me em ligeiros minutos e recolhi minha bicicleta no subsolo do meu prédio. Era mais uma manhã radiante de primavera. Poucos alunos se concentravam nos arredores da escola. Ainda era cedo, e Rebecca também não havia chegado. Guardei minha fiel bicicleta e caminhei até o prédio do Ensino Médio, em direção ao meu armário. O corredor estava sossegado. Alguns colegas passaram por mim, retribuindo breves cumprimentos, e eu tratei de recolher as apostilas necessárias para as aulas do primeiro período. Eu deveria ter ficado mais atenta aos olhares persuasivos que me vigiavam furtivamente. Mas não. Fui completamente pega de surpresa com a intimidante presença de Miranda, bem à minha frente, enquadrando-me com sua expressão hostil. Seus olhos se suspenderam num tom agressivo. Eu não ousei revidar e tentei me esquivar sorrateiramente. Olhei ao redor e não havia um sinal da Rebecca. A desgraçada havia me pego desprotegida. – Ela não está por perto agora – disse-me, um tanto quanto vangloriada. – Deve haver algum engano – murmurei, já fechando meu armário. – Não tem problema. Eu sei que você não quer falar comigo. – A criatura cruzou seus braços e aproximou-se de mim. Seu tom de voz estava quase que inaudível. – Você acha que Rebecca vai proteger você para sempre? Hunf. – ela ironizou, completamente farta. – Vai nessa! Até ela começar defender seus próprios interesses e deixá-la para trás. – Ela vigiou 338

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minhas reações. Não obstante, prosseguiu: – Digo o mesmo em relação ao Lucas. – Seus olhos se estreitaram. – Você realmente não sabe onde está se metendo. Só espero que não seja tarde quando descobrir. – Miranda ergueu a sobrancelha e me encarou uma última vez antes de se virar. Continuei em pleno silêncio. Eu sabia que cada palavra de suas ameaças não passava de mero veneno. Eu não me permitira me importar com nenhuma daquelas intimidações. Ainda perplexa diante da aparição repentina, mal percebi que Rebecca surgiu pouco tempo depois, inconformada com o atrevimento da garota. Eu apenas a tranquilizei, dizendo que tudo que ouvi entrou por um lado e saiu pelo outro. Minha melhor amiga acabou por dar de ombros, trazendo à tona um fato que por um momento havia fugido da minha memória. Aquela segunda-feira seria o último dia de May na San Diego High School. Todos nós nos encontraríamos no restaurante da Becky à noite para darmos o último adeus a nossa querida amiga de cabelos cor de fogo. Nós duas compartilhamos um sorriso sincero. E seguimos juntas para nossa primeira aula daquela manhã.

* – Olha, Holly! A May acabou de me mandar! – Rebecca disse entusiasmada ao verificar seu celular. – É uma foto de Sidney! Não é lindo? – Minha amiga virou seu aparelho de forma que meus olhos pudessem checar a imagem. – Uau! – Sorri. – Espero que ela esteja feliz – completei. Era sexta-feira e aguardávamos no carro do Henrique enquanto ele enchia o tanque com alguns litros de gasolina. Nós três havíamos combinado de ir juntos para o show do The Sounds naquela noite. Ele retornou ao banco do motorista rapidamente. 339

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– Ela chegou bem? – Ricky perguntou, pois estava ouvindo nossa conversa. – Muito bem! May já está arrumando seu quarto na casa nova. Ela ganhou uma madrasta legal – Rebecca respondeu enquanto encaixava o cinto de segurança. – Manda um grande abraço para ela depois, por mim. – Ele piscou, já manobrando seu carro para desembocar na avenida. – Henrique, preciso falar uma coisa séria com você – Rebecca instou. – Você me ama em segredo. Eu sei. Sempre soube, querida. – Estúpido! – Ela o golpeou levemente, sem perder o humor da situação. Não resisti e ri alto. – Quero apenas adverti-lo. – Os olhos dela cravaram na expressão despretensiosa do amigo. – Nada de dar os seus perdidos. – Rebecca falou pausadamente. – Onze horas já estamos pegando o beco, e não quero voltar para casa de táxi. Vi Henrique revirar os olhos como uma criança levada. Ele não deixaria barato. – Sim, senhora. Vai efetuar a taxa de serviço com cheque ou cartão? – Ah, larga de ser pentelho! – Nós três rimos em seguida. Henrique estacionou seu carro no lugar reservado para clientes. Rebecca e eu acabamos por nos separar dele, logo após passarmos pela bilheteria. A casa já estava lotada, muito antes das nove horas. O lugar era realmente muito bonito, com uma decoração moderna e requintada. Nós descemos até o saguão principal, aproximando-nos do palco. Certamente pegaríamos um ótimo lugar na pista, bem próximo da banda. – Você quer beber alguma coisa? – Rebecca perguntou ao chegarmos perto do balcão de bebidas. As prateleiras recheadas com garrafas sortidas e convidativas me entreteram por um momento. – Dois refrigerantes, por favor – ela requisitou ao barista com um tom de repreensão nos lábios. – Nem vem, Holly. 340

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Acabei por rir diante do seu zelo habitual. – Ok, acho que já aprendi a lição. – Recolhi o copo de vidro e levei à boca, tomando um gole de Coca-Cola. De repente, vi dois rapazes do outro lado do saguão, olhando para nós abismados. – Acho que aqueles caras a conhecem. Os dois pareciam ter visto uma assombração. Rebecca demorou até desvendar o foco do meu questionamento. – Ali! – Apontei suavemente. – Eles não tiram os olhos da gente. Por acaso também não estavam na festa da May? Rebecca ergueu a cabeça entre os corpos, tentando localizar os sujeitos. – É. – Ela acabou por acenar para os dois, que sorriram abobalhados. – São Tyler e Mark. – Você certamente vai se lembrar deles agora – ela disse com ares entediados, como se algo oculto lhe aborrecesse. É claro que eu me lembraria. Tyler era o melhor amigo do... Lucas; e Mark era o garoto que havia ganhado do Ian no torneio municipal de skate. Agora tudo fazia sentido. – Ei! Já estão fazendo a passagem de som! – Rebecca interrompeu os goles da bebida rapidamente ao ouvir o ajuste do amplificador. – Vamos correr para pegar um bom lugar! – Seus olhos astutos se encheram de brio. Quando percebi, sua mão recolheu a minha e partimos a nos apertar entre as pessoas que esperavam por ali. Depois de empenharmos nossos esforços desbravando aquela plateia, conseguimos nos encostar na grade e vimos a casa encher atrás de nós.

* – Por favor, alguém me diga onde está minha voz! – confessei a Rebecca, rindo loucamente após o show acabar. Nós caminhávamos uma apoiada a outra, sem poupar risadas sinceras. – Tocou a nossa música! – Minha amiga derreteu os olhos ao lembrar-se. 341

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– Realmente me acabei com “Underground” – concluí. – Essa Maja é incrível, não é? – Referiu-se à vocalista com admiração. – E aquelas pernas? – Gargalhei alto. – Uma legítima diva! – Grande noite! – Rebecca ergueu a mão, celebrando. – Agora temos que encontrar o Henrique, gata. Ou alguém vai perder os testículos. – Gargalhei, completamente sem forças. Recompus-me rapidamente ao passar pelas bilheterias, chegando ao lado de fora. O movimento era grande ali na calçada. Seria impossível encontrá-lo. Rebecca ligou incessantemente para o número dele. – Filho da mãe! – Relaxa, ele já, já, aparece – contentei-a, terminando por olhar ao redor. Rebecca fazia o mesmo, caçando seu semblante entre uma centena de outros rostos presentes. – Rá. – Ela balançou a cabeça, convicta. – Parece que alguém deu com a língua nos dentes. – O quê? – Não compreendi. – Espere só um minuto. – Ela soltou minha mão, deixando-me sem reação. – Rebecca! – Fica aí! – bradou, longe o suficiente para eu não conseguir alcançá-la. Respirei fundo, não gostando daquilo. Comecei a segui-la, mesmo sem saber a direção exata. Ela não poderia ter saído do perímetro da calçada. Não demorou muito até que eu conseguisse ouvir sua voz inconfundível. – Foi o Tyler, não é? – A cidade é pequena. Aceite isso. A segunda voz também era inconfundível. Lucas estava ali. – Pode me dizer o que você está fazendo aqui? Esqueceu do que a gente combinou? 342

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– Eu não consegui. Ok? – ele a interrompeu com propriedade. – Admito. NÃO CONSEGUI. – Seus termos soaram categóricos. Rebecca ficou em silêncio, e eu me aproximei por completo, terminando por virar a esquina e dar de cara com os dois. – Estou atrapalhando algo? Os dois olharam para mim instantaneamente, sem saber o que fazer. Rebecca terminou por abaixar a cabeça. – Está! Está impedindo que eu aperte o pescoço desse sujeito – ela respondeu com seu tom sarcástico. Eu sorri e Lucas me correspondeu o gracejo. – Quer saber? – Ela oscilou seu olhar entre nós. – Cuida dela para mim, Lucas? – Seu olhar foi desafiador. – Vou procurar o Henrique. – Ela terminou por se retirar, deixando-nos sozinhos. Ele caminhou suavemente até mim com seus olhos doces e irresistíveis. – Eu já falei que você é um idiota, não é? – falei sem pensar. – Sabe que eu estou descobrindo isso desde que a conheci? – Sua expressão cínica me desmontou. Lucas acabou por caminhar até o seu carro, encostando-se à lataria de forma despretensiosa. Dei de ombros, fazendo o mesmo e pondo-me ao seu lado. – Achei que você não apareceria mais. Depois... da última vez. – Você parece sempre ter essa impressão – comentou. – E não é para ter, senhor “instabilidade”? – Fiz aspas com os dedos e ele riu. – É... Eu fiquei um pouco debilitado depois de alguns reparos. – Ele coçou o nariz, fazendo graça. – Mas ficou perfeito, não é? – Seus lábios se suspenderam num sorriso iluminado. – Você é perfeito. – Suspirei, fitando seu rosto saboroso. – Não diga isso. – Ele pareceu esquivar-se do meu flerte. – Pode não parecer, mas sou um mero mortal. – Gargalhei inesperadamente, interrompendo-o. – Que apenas está querendo convidar uma garota legal para sair, de verdade. Sem coincidências – ele acrescentou. 343

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– Você quis dizer perseguições. – Tossi, rindo. – Você sabe. Sem jogos. – Então coloque suas cartas na mesa, campeão. – Eu não tenho nenhuma boa jogada. Não mais. – Seu olhar franco prendeu minha atenção. Lucas prosseguiu, muito sereno e determinado: – Parece estranho, mas eu pensei muito até decidir vê-la novamente. Você é uma garota muito perigosa. Acabei por rir, banalizando. – Ah, vamos lá. Não sou tão perigosa assim. Só escapei de um sequestro para salvar minha própria vida. Mas ainda não sei se deu certo. – Só isso? Só por isso? – ele repetiu, incrédulo. – Você desarmou uma quadrilha inteira, quase aniquilou o chefe e ainda saiu sem nenhum arranhão. Quem é o perigoso agora? Não contive a seriedade diante do seu humor contagiante. – Sou uma ameaça para você – declarei. – Acho melhor ficar longe. – Realmente, não discordo disso. Eu... realmente corro sérios riscos ficando ao seu lado. – Você é tão idiota. – Cruzei os braços, mirando o infinito. – Tô falando sério. – Ele foi categórico. Seus olhos me vigiaram interessados. – Mas eu já lhe disse que tenho uma atração muito forte por coisas perigosas e principalmente por correr riscos. As palavras ressoaram até meus ouvidos em um tom quente de sedução. Contemplei seu semblante convicto e deixei a mente vagar distante. – E, acredite em mim, você está sendo o mais agradável deles. Lucas me fez sorrir aleatoriamente, deixando-me sem jeito. Mordi o lábio, levemente estimulada pela atração que pairava entre nós. Ali, tão próximos, levei meus dedos até a fina corrente de ouro que ele ostentava em volta do pescoço, alinhando-o com desvelo. Era um lindo escapulário. 344

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– Gostou? – Sua mão afagou a minha, sobre seu peito. O calor da sua pele me desnorteou, por um momento. Aquele toque poderia durar uma eternidade. – É lindo – confessei, maravilhada. Lucas sorriu, inclinando seu rosto adiante, ficando a meros centímetros do meu. Era possível dizer que respirávamos o mesmo ar. Senti meu coração socar o início do meu estômago, aflito pela aproximação ardente. – Você desligou seu celular? – ele perguntou bem perto dos meus lábios, fazendo-me rir. – Olha só! Até que você serviu para alguma coisa! Não precisarei de um táxi para me deixar em casa. – Acho que não. – Terminei por responder, rindo diante da chegada da minha melhor amiga. Afastei-me de seu corpo. – Henrique furou novamente. Eu sabia que ele faria isso! – Rebecca disse, já se aproximando da porta do carona. Lucas riu conformado com a situação e suspirou alto. – Ah, nem venha reclamar comigo, Lucas. Dei tempo de sobra para vocês ficarem sozinhos. Cadê o Lucas furacão de garotas que eu conheço, hein? Nós dois rimos, desmontados pela sua franqueza habitual. Ele terminou por destravar as portas, e Rebecca passou para o banco de trás. Lucas assumiu o volante e eu sentei na frente, ficando ao seu lado. – Fala que não vive sem mim, Rebecca. Admita e seja feliz – ele ironizou, provocando-a enquanto já ligava seu carro. – Ainda não o desculpei, tá? – Ela deu dois tapinhas no seu ombro. – E pode ir tirando seu cavalo da chuva caso esteja acreditando que não iremos ter uma conversa séria depois. Holly, tampe os ouvidos. Instintivamente, eu lhe obedeci, fazendo graça. Do House of Blues até a minha casa não levava mais do que cinco minutos. Quando percebi, Lucas estacionou junto à vaga de 345

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visitantes do meu prédio e olhou ao redor, ainda que discretamente, como se conferisse movimentações diversas. – Está entregue, sã e salva. – Ele me fitou todo cauteloso, entreolhando-se com Rebecca em seguida. – Obrigada – sussurrei, sorrindo suavemente. – Becky, amanhã a gente se fala. Amo você. – Terminei por abrir a porta. – Também, querida. Boa noite! – Ouvi sua voz do banco de trás. – E, ah, um último pedido. – Eu analisei os dois, já do lado de fora do carro. – Tentem chegar inteiros em casa. Não se matem no meio do caminho... – Levantei uma sobrancelha e terminei por fechar a porta. Os dois riram, garantindo-me que se comportariam. Lucas permaneceu em seu carro até se certificar de que eu entrei no edifício. Peguei o elevador e não olhei mais para trás. Mamãe ainda não havia chegado. A casa silenciosa me remeteu a um milhão de pensamentos. Joguei-me na minha cama e fechei os olhos. O irresistível semblante do Lucas dançava atrás das minhas pálpebras, como um filme que eu não me cansava de rever. Recolhi meu celular do bolso da jaqueta de couro e escrevi uma mensagem para Rebecca. “Acabou, Rebecca. Estou gostando dele, de verdade. Não posso continuar jogando se eu não tenho mais cartas para ganhar.” Eu não poderia continuar me enganando. Era hora de aceitar.

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CAPÍTULO VINTE

[dando uma chance ao destino] Por Rebecca Dellape

– Vamos nos comportar, prometo! – Cruzei os dedos e sorri à minha melhor amiga, garantindo que eu cumpriria com o trato. Holly me sorriu de volta, despedindo-se de vez. Ela seguiu até a escadaria do prédio, sumindo pela portaria. – Vem, Becky. Pula para frente – Lucas pediu com ares pesados. Ele sabia que a bronca seria grande. Fiz uma pequena acrobacia para me sentar no banco do carona. Terminei por recostar-me ao estofado e suspirar. – O que eu faço com você, Lucas?! – Olhei-o de lado, sem esperanças. – Há outra saída – ele disse, sem me encarar diretamente. – Defina outra saída – repeti o termo, ainda descrente. – Pare para pensar. – Seus olhos me fitaram. – Você sabe. Meu coração se apertou, dando-me um desconforto assombroso. – Não, Lucas. – Confie em mim! – Você não vai apagar ninguém! Não se enrole ainda mais com essa sujeira. – Não estou falando disso, garota! – ele objetou, surpreso pelas minhas suposições. – Apesar que... chumbo trocado não dói. – Então do que você está falando, afinal? – interrompi-o. Ele arfou, preparando-se. – De você... considerar a possibilidade de eu e Holly nos conhecermos melhor. – Lucas... – repreendi-o. – Eu vou fazer o possível e o impossível para que nada aconteça a ela. Você sabe que eu sou capaz. 347

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Fechei os olhos, temendo que minha consciência titubeasse. Nós passamos por um ligeiro momento de silêncio. – Eu tenho tanto medo... – confessei. Senti meu celular vibrar, mas não dei importância. – Segurei a barra da saia jeans, tensa pelo dilema. Lucas recolheu minha mão delicadamente. – Você sabe que pode confiar em mim. – Seus dedos terminaram por se entrelaçar aos meus. Eu permiti por meros segundos, até me sentir envergonhada. Envergonhada por me sentir bem com o gesto. Tirei a mão de lado, impedindo que aquilo continuasse. Meu celular então tocou alto, desvirtuando-nos daquela discussão inconveniente. Atendi impaciente. – Tyler? O quê você quer? – Sua voz ressoava longe, pois um barulho dissonante impedia que eu o ouvisse com clareza. – Você pode falar para o bicha do Lucas atender a porra do telefone? – Onde você está? – Uni as sobrancelhas, confusa. Ele estaria nos vendo? – NA FRENTE DO HOUSE OF BLUES! – ele gritou e eu terminei por afastar o telefone da orelha. Até Lucas ouviu. – Tô chapado demais para voltar para casa dirigindo. Enquanto Tyler balbuciava palavras entrecortadas, fiz sinal para Lucas começar a dirigir. Ele obedeceu rapidamente. Coloquei o telefone no viva-voz. – Ok, campeão. Agora... como você sabe que ele está aqui do meu lado? – E eu sou idiota, né? Cheguem aqui que eu conto. – Agora eu sou disk-carona, filha da mãe? – Lucas interrompeu a conversa, rindo. Tyler riu alto sem cerimônias. – Estamos chegando. Fique perto da saída da bilheteria principal. – Valeu, pandinha. Amo você... – Tyler pronunciou as palavras docemente, influenciadas pela embriaguez. 348

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– Vá se ferrar, Tyler. – Ele riu uma última vez e eu terminei por finalizar a ligação. – Hmmm. Parece que meu amigo não serviu apenas para fazer parte daquele seu plano vingativo – Lucas provocou, atordoando-me instantaneamente. Seus olhos estavam tendenciosamente maliciosos através do para-brisas do carro. – Você sabe como ele fica quando bebe – falei. – Ah, é? – Ele parecia descrente. – Todo mundo fala que vocês saem... às vezes. – Lucas! Que absurdo – reneguei, tentando disfarçar. – Quem falou isso? – inquiri-o imediatamente. – Calma, mas sabe como é... Papos masculinos. – Ele riu com segundas intenções. – Seu estúpido. – Golpeei-o levemente. – Já entendi a de vocês. Amizade com benefícios, não é? Tá na moda. Bufei, brevemente irritada com os comentários infelizes. Ele parou no semáforo e passou a me encarar. Faltavam alguns metros para chegarmos no House of Blues. – Confesse, vocês já saíram mais de uma vez. E bem depois daquele nosso infame encontro. – Ok. – Ergui as mãos, farta. – Eu admito. Nós... saímos sim. Algumas vezes, talvez. Está feliz agora? Ele minguou os lábios, nada satisfeito. – Não muito. Sabe como é. – Não sei de nada – disse pausadamente, fitando seus olhos insondáveis que também me correspondiam. Alguém esmurrou o vidro da janela com pressa. Era Tyler. Lucas destravou as portas de trás e ele entrou de supetão, jogando-se no banco. – Exagerou mesmo, hein?! – lancei. – Já viu quem vai levar seu carro? 349

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– Mark – ele respondeu derrotado. – Aquele bicha ainda vai ficar por aí. Depois ele deixa na porta de casa. – Tyler tentou se recompor. – Mas caaaaara! Que noite INSANA! – Tyler amassou o rosto exageradamente. – Nossa, valeu mesmo, irmão. – Afagou o ombro do Lucas e depois se virou para mim. – Pelo menos sei que alguém vai cuidar de mim agora. – Ah... Pode tirar o cavalo da chuva. Já acabou minha cota de pessoas que preciso cuidar. Sério, Tyler. Ele riu, jogando a cabeça para trás. Lucas voltou a dirigir, segurando o riso diante da situação. – Mas, e aí grande chefe, conseguiu fisgar sua musa inspiradora hoje? Passou de fase, finalmente? Pesquei o assunto na hora. – Vocês estão falando da Holly? – protestei. – Você por acaso é dona da garota agora? – Tyler retrucou. – Ainda não entendi por que você a protege como se ela fosse um bebê. Olha só, ela já é bem grandinha para saber se virar. – Para sua informação, Payne, ela não é uma garota qualquer. Não fale do que você não sabe. – Primeiro, não me chame pelo sobrenome. Segundo... Tá achando que eu não sei? E daí que o Forrest tem a ver com o passado dela? Ela é uma garota normal, Becky. O que aconteceu na vida dela não pode impedi-la de se divertir, de sair e de ser mulher. – Ele deu de ombros, como se a minha preocupação não passasse de uma mera tolice. – Por algum acaso esse cara é o Lucas. – Vocês homens não entendem. – Você que não entende! Ele está apaixonado pela garota! – Tyler afirmou categoricamente. Abri a boca com exaltação e olhei para o Lucas. Ele parecia desconfortável. – Tyler – Lucas o censurou ligeiramente. – E não é verdade? Você não conseguiu sair com nenhuma garota depois que a conheceu. Só sabe pensar nela, lembrar dela, 350

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falar dela. Até pediu para que eu e o Mark a vigiássemos. Fala que isso não é estar apaixonado. – Lucas! – Ri abobalhada, ainda boquiaberta. – Não sabia que era tão sério assim. – Eu tentei avisar – ele murmurou sem muitas emoções. Ainda perplexa com a confissão, abaixei a cabeça, tentando processar os fatos. Agora tudo mudara. Tyler prosseguiu, mesmo diante da sua severa embriaguez. – Deixe-os se conhecerem, saírem, se curtirem. Pode muito bem dar certo o lance, como também não. Mas isso vai depender deles. – Ele foi terminalmente incisivo no termo. – E eu coloco minhas mãos no fogo por esse cara aqui. – Suas mãos sacolejaram os ombros de Lucas. – Ele não vai deixar que nada aconteça a Holly. Enquanto ele divagava, retirei meu celular do bolso novamente, por mera distração. Foi quando notei que havia uma mensagem não lida. Era dela. Não pensei duas vezes para abrir. Acabou, Rebecca. Estou gostando dele, de verdade. Não posso continuar jogando se eu não tenho mais cartas para ganhar. Olhei para Lucas, para Tyler. A questão não dependeria deles, mas sim de mim, exclusivamente. Estava em minhas mãos definir o destino de muitas pessoas se eu realmente desse o aval para que Lucas avançasse. Um milhão de coisas passou pela minha cabeça. Mas a imagem projetada pela minha mente da minha melhor amiga sorrindo satisfeita ao teclar aquela mensagem fez meu coração se encher de alegria. Sempre há tempo para dar uma chance a algo verdadeiro. Para dar uma chance ao que vai nos deixar feliz. Valeria a pena tentar. Embora fosse perigoso e arriscado, não havia mais como reverter. 351

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As consequências chegariam, de um modo ou de outro. O meu trabalho dali em diante era fazer com que elas se sucedessem da forma menos dolorosa. Umedeci os lábios, sorrindo involuntariamente. – Tudo bem! Lucas pareceu não acreditar. – Vocês venceram. – Sorri abertamente. Os dois comemoraram discretamente, e Lucas acabou por deixar seus dentes à mostra, num sorriso genuíno. – Mas... é bom ter cautela. – Eu sei. – Ele prestou-se numa postura responsável. – Muito além do que me prometer não tratá-la como todas essas outras vadias que passaram pela sua cama. São questões de segurança. – Ajeitei-me ao banco. – Nada de lugares que vocês possam ser vistos. Não fale dela para pessoas erradas, e você sabe muito bem quem são essas pessoas. Fique atento aos mínimos movimentos. E... saia sempre protegido. – Quanto a isso não se preocupe. Ela fica sempre aqui. – Ele tentou alcançar algo embaixo do banco num compartimento secreto. Eu sabia o que era. – Não! – impedi-o. – Não precisa me mostrar. Use-a para emergências. Tyler começou a resmungar e a gemer lá de trás. – Gente, desculpa interromper a conversa de vocês, mas acho que vou vomitar. – Nããão! – eu e Lucas gritamos em coro. – Seria uma boa parar no posto oito – sugeri. – Acho que tem uma loja de conveniência 24 horas. Esse menino precisa de água, muita água. Ele fez a manobra rapidamente. Seguiu em direção à avenida da praia, até subir a rampa do posto de gasolina, parando em frente da loja de luzes fluorescentes e prateleiras abarrotadas. 352

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– Vamos, Tyler. Saia do carro. – Vocês vão me largar aqui? – Não, criatura! Vou dar um jeito em você. Vamos, saia logo! – Terminei por me retirar do carro, chegando até a porta mais próxima de onde Tyler estava. Lucas ficou observando tudo, sem sair do volante. Ele mais ria do que qualquer outra coisa. Deixei Tyler sentado ao meio-fio, enquanto fui comprar duas garrafas de água e um pacote de folhas de papel. – Bebe, bebe tudo. – Abri a garrafa com pressa e passei-a para sua mão. Ele entornou longos goles, fazendo uma careta horrível depois. – Velho, eu vou vomitar. Na moral. – Se você for fazer isso, faça logo. Não tô a fim de passar a madrugada aqui. Ele riu, abaixando a cabeça e já sentindo pontadas de ânsia. Segurei sua testa, firmando seu rosto. Terminei por fechar os olhos. – Só falta por para fora suas tripas, campeão. Lucas caçoou de longe. – Ele é um idiota. Vamos, beba mais água. – Entornei a garrafa próximo à sua boca. – Eu sabia que poderia contar com você. – Tyler grunhiu, sem forças. Mas, ainda assim, parecia realizado. Eu ri, sem saber o que fazer. – Cala a boca, Tyler. – Afastei os cabelos que desciam bagunçados pela sua testa com certo desvelo. – Espere um minuto. Vou pegar uma coisa. – Lucas, alcança minha bolsa, por favor? – Apoiei-me à janela do carro, aguardando. Ele me repassou e eu comecei a remexer pelos bolsos. – O que você está procurando? – Acho que ainda tenho sachês de um efervescente por aqui. – Sorri. 353

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– Essa é você – ele me disse com um tom orgulhoso nos lábios. – Achei! E, ah! Me dá seu celular? – Quê? – Seu celular. Vamos, me dá. Lucas o retirou do bolso, ligando-o em seguida. Retirei o aparelho de sua mão. Abri a agenda de contatos. – O que você está fazendo? – Salvando o número da Holly, para você fazer a coisa certa. – Devolvi. Lucas sorriu e eu terminei por piscar um dos olhos, transmitindo convicção. – Rebeccaaaaa... – Tyler já delirava ali na calçada. Corri até me aproximar por completo, abrindo o sachê e o despejando dentro da garrafa. – Beba tudo. Tyler tossiu ao terminar, arrotando ruidosamente. Lucas e eu caímos na gargalhada. Logo, logo, ele melhora. Ajudei-o a se levantar para seguirmos para casa. – Força, homem! – encorajei-o. – Só não vá sujar minha roupa. – Nós três rimos. Lucas saiu do carro e me ajudou a colocar Tyler no banco de trás. O céu estrelado nos guiou até Pacific Beach. A brisa amena da madrugada parecia sussurrar entre as ruas desertas. Deixamos Tyler sã e salvo em casa, e Lucas percorreu por mais alguns quarteirões, parando em frente do meu sobrado. – Como nos velhos tempos. – Ele desligou o carro, admirando os arredores como se velhas recordações o atingissem. Sorri de lado. Não queria nutrir nenhum tipo de nostalgia em relação ao passado. – Pense muito bem no que está fazendo. E qualquer coisa, estarei aqui. – Recolhi minha bolsa, preparando-me para sair. 354

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– Não está brava? – Aproximou-se sutilmente antes que eu me despedisse. – Não mais. – Sorri ao admirar seu olhar preocupado. Lucas me puxou para um abraço. De início, não ousei me mover, ligeiramente impressionada pela espontaneidade do gesto; mas acabei por corresponder, sentindo que ele precisava da minha confiança para seguir em frente. – Muito obrigado – ele disse ao se afastar. Respirei fundo antes de dizer adeus, retirando-me por completo logo em seguida. Caminhei até a porta da minha casa com um pensamento em mente. Alcancei as chaves do bolso e tudo pareceu reluzir dentro da minha cabeça. Minhas razões para estar permitindo aquela união eram muito claras. Lucas precisava de um bom motivo para encontrar o caminho certo, e Holly também. Algo me dizia que eles se completavam, de alguma forma. E eu tinha a leve impressão de que os dois também já sabiam disso, mesmo que inconscientemente.

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CAPÍTULO VINTE E UM

porta aberta

Meus olhos se abriram com certa dificuldade. Eu respirei fundo, tentando me espreguiçar, a fim de buscar uma sensação de conforto. Mas foi em vão, pois meu corpo pareceu não corresponder e ainda me rendeu uma série de dores insuportáveis. Ao lançar os olhos ao redor, percebi que eu ainda vestia a jaqueta de couro com a calça jeans e calçava meu par de tênis. Eu havia deitado na cama e, em meio a milhões de pensamentos, me entreguei ao sono de súbito. Ligeiramente, uma sensação de arrependimento me corrompeu, mesmo sem saber exatamente por quê. Recolhi meu celular instintivamente e não havia nenhuma mensagem nova. A lembrança de ter enviado uma confissão por torpedo invadiu minha cabeça. Rebecca não teria me respondido? Talvez tivesse ocorrido algum erro no envio. Teclei para reenviar, mas antes de selecionar o comando final parei. Aquilo era loucura. Gostar do Lucas era improvável. Simplesmente uma imprudência desmedida, uma vez que eu sabia o caminho tortuoso pelo qual eu ousaria passar caso eu me entregasse àquela irresistível atração. Talvez o silêncio fosse a melhor escolha. Eu havia combinado com Rebecca de irmos ao Henrique naquela manhã de sábado, assim como fazíamos todo fim de semana. Eu poderia muito bem incitar o assunto para me armar diante do dilema. Era uma questão de me permitir. Permitir seguir em frente e correr os riscos ou simplesmente abandonar todas as possibilidades de tentar. Algo me dizia retumbantemente que a primeira opção não surtiria bons efeitos à nossa amizade. Algo me remetia à estranha 356

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sensação de que eu me arrependeria futuramente, que eu me machucaria. Seria difícil decidir entre deixar para trás o desejo... ou ceder a peculiar curiosidade em saber até onde poderíamos chegar. Ou eu realmente aceitava as condições ou terminava por seguir meus instintos racionais. Rebecca sempre sabia o melhor a fazer, mas aquele sábado definitivamente não foi meu dia de sorte. Minha melhor amiga passou em casa no horário de sempre e, ocasionalmente, mamãe a chamou para o café da manhã. Era interessante o fato de ver o quanto elas se davam bem. Conversavam e riam infinitamente, o que muitas vezes fazia com que eu ficasse de lado. Eu até que não me importava, mas, naquela altura, eu estava possuída por um turbilhão de aflições, com um oceano de dúvidas afogando minha garganta. Estava sem um pingo de paciência para tal confraternização. E mesmo enquanto partimos para o clube e ficamos a sós no carro durante o trajeto Rebecca parecia se esquivar das minhas tentativas de inserir Lucas no assunto principal. Ela definitivamente não estava com muita vontade de falar sobre ele. Era notável. Não tive coragem de ir mais a fundo e insistir. Rebecca teria seus motivos. E eu teria que respeitar, independentemente de não conhecê-los. O dia pareceu não ter nenhuma importância. Rebecca e Henrique se entenderam após o incidente do sumiço da noite passada, e ambos trocaram altas memórias do show. Nós três decidimos almoçar comida japonesa em um restaurante não muito longe do clube e em seguida Rebecca me deixou em casa. Mamãe havia saído para fazer umas compras. Joguei a mochila sobre minha cama e lancei os olhos ao meu redor. A casa solitária não contribuiu de forma positiva para o meu estado de espírito atordoado. Decidi tomar um bom banho para relaxar. 357

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Eu estava enrolada na toalha e terminava de secar meus cabelos quando ouvi meu celular tocar. Era uma mensagem. Caminhei até o meu quarto tentando imaginar quem poderia ser. Abri o torpedo e não reconheci o número. Li a mensagem em voz alta: O que você me diz de sairmos mais tarde? Vou levá-la para conhecer um dos meus lugares secretos. Ps: Leve seu 4x4. Sorri sem censuras, completamente desmontada. Lucas sabia me surpreender. Eram quase quatro horas da tarde. Respondi sem pensar. Hmmm. Estarei pronta em uma hora. Tudo bem? Permaneci ali, fitando o visor do celular em silêncio. A resposta não demorou. Perfeito. Prometo surpreendê-la. Ha-ha. Mal posso esperar. Teclei aos suspiros e aproximei o celular do peito. Olhei para o skate que havia ganhado do Ian há exatamente um mês. Meu 4x4. Ri baixo e me atrevi a me aprontar rapidamente. Vesti a primeira bermuda jeans que encontrei em meu armário. Ela acabou ficando um pouco justa, então escolhi uma longa regata branca para disfarçar as curvas salientadas. Joguei uma camisa xadrez por cima e finalizei escolhendo um bom par de tênis para andar de skate. 358

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Exatos 58 minutos se passaram até que eu ouvisse o interfone de casa tocar anunciando sua chegada. Pontualidade é umas das coisas mais excitantes que pode existir em um cara. Eu desci a escadaria do meu prédio e já pude avistá-lo aguardando recostado ao capô de sua SUV. Suas sobrancelhas se ergueram ao notar que eu me aproximava. O sorriso iluminado habitual me fez gracejar involuntariamente, correspondendo-o. Acabei por aquietar aquela agitação interna ao parar ao seu lado. Não fique com cara de retardada. – Olhando assim, você até que parece alguém inofensivo – ele disse com seu tom de cinismo. – Idiota. – Semicerrei os olhos, banalizando suas brincadeiras sem graça. Ele acabou por afagar minha bochecha com cuidado, deixando-me sem jeito. – Mas seja sincero. Estou tão ruim assim? – Fiz uma careta. Ele riu despretensiosamente e me olhou de cima a baixo, minguando os lábios logo após. – Você está linda. Tombei a cabeça, duvidando. – É sério. – Lucas riu novamente. – Mas é que eu nunca saí com uma garota que estivesse usando a mesma marca de tênis que eu. Relancei os olhos para nossos pés. – Ah, eu adoro Vans. – Dei uma pausa. – Você não esperava que eu estivesse montada num salto alto e num vestido curto, não é? – Claro que não. – Deu de ombros. – O que acha de guardarmos seu skate? Lucas me guiou até o porta-malas. Foi impossível não notar que havia uma prancha de surfe em cima do carro. – Alguém vai surfar? – Eu falei que iria surpreendê-la. – Ele abriu o compartimento, recolhendo o skate da minha mão e guardando-o em seguida. 359

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– Às vezes acho que eu deveria ter medo de você. – Nós trocamos olhares por um momento. – Mas só acho – completei. – Sempre soube que tínhamos muito em comum. – Lucas sorriu, vangloriado pela minha confissão. – Vamos lá? Eu pisquei, anuindo. E fiz o caminho até a porta do carona. Parecia loucura o fato de estar confiando em alguém desconhecido. Em uma pessoa que ainda era uma incógnita, uma incerteza. Foram com essas neuras que minha mente se distraiu enquanto Lucas dirigia pelas ruas da cidade, seguindo um trajeto incomum para mim. Ele tratou de puxar papo diante do meu silêncio desconfortante. Era por essas e por outras razões que eu gostava dele. Ele não desistia e se esforçava sempre para me arrancar um sorriso do rosto, para me entreter. – Quer saber para onde eu a estou levando? – Não sei. Não vai estragar a surpresa? – analisei sua expressão entusiasmada. – É uma praia muito pouco conhecida. – Hmmm. – Ergui uma das sobrancelhas. – Eu vou lá desde garoto. Faz alguns anos que um condomínio ali perto se apropriou do espaço, então acabou virando uma praia particular. Como foi a empresa do meu pai que incorporou a obra, eu tenho acesso livre sempre que quiser. Eu continuei em silêncio, ouvindo-o com atenção. Lucas prosseguiu: – Às vezes fico por lá. Sem ninguém por perto. – Você gosta de se sentir sozinho? – perguntei. Ele riu pouco à vontade antes de responder. – Tecnicamente, não. Mas às vezes preciso. Compreendi suas afirmações e o imaginei só. Talvez ele não fosse tão garanhão como muitas pessoas me asseguraram. – Pelo menos agora vou saber onde encontrá-lo. Você sempre some. – Sondei seu rosto com curiosidade. Os lábios se suspenderam 360

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num gracejo altivo, mostrando o sorriso iluminado e cheio de si. Lucas respondeu: – Mas eu sempre volto. – Nossos olhares se encontraram. Levemente encabulada, abaixei a cabeça. – E eu sempre espero – murmurei, com os lábios umedecidos de humor. Ele não se intimidou com o meu comentário e sorriu, aparentemente satisfeito. O trajeto não durou muito tempo. Lucas apenas seguiu a avenida que margeava a costa, no sentido sul. Nós adentramos com o carro por uma trilha estreita e pavimentada que nos levou à grandiosa entrada do condomínio. Ali, ele acionou os faróis por duas vezes, e os seguranças liberaram a chancela. Passamos por algumas ruas antes de chegarmos, o que me permitiu admirar as belíssimas casas do quarteirão. Conforme nos aproximávamos, era possível ouvir o barulho do mar quebrando suas ondas na areia. O Sol de primavera se despedia do céu com seus tons alaranjados refletidos sobre a água salgada. Maravilhada, contemplei a pequena baía ladeada por grandes morros pelo para-brisa, quando Lucas estacionou seu carro em frente à praia. Ninguém estava por perto; apenas nós e aquela paisagem paradisíaca. – Gostou? – perguntou, já destravando o cinto de segurança. – Realmente é um lugar perfeito para se esconder. – Sorri. – Vem, vai ficar mais legal ainda. – Ele desceu do carro num átimo com seu entusiasmo efervescente e eu acabei por fazer o mesmo. – Se eu soubesse teria trazido um biquíni – lamentei ao fechar a porta. – Eu pensei em sugerir, mas acho que não pegaria muito bem. Ri alto, inesperadamente. Lucas ficou um pouco sem graça. Tentei contornar. – Não se preocupe. Você pode pegar suas ondas tranquilamente. Serei uma ótima espectadora. 361

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Lucas retirou sua prancha de cima do carro e passou a caminhar ao meu lado até a praia. – Apenas por enquanto. Depois será minha vez. – Ah, é? Lucas enfincou a prancha na areia. Suas mãos hábeis ergueram a camiseta, deixando à mostra seu físico abençoado. Nada passou pela minha cabeça enquanto o vi se despir. Eu não sabia o que fazer. Ele retomou o assunto que eu já tinha até esquecido. – Não pedi para você trazer seu skate em vão. Tem uma pista ótima por aqui. – Seu sorriso se iluminou. – Guarda para mim? – Ele retirou o escapulário e entregou-o a mim junto com a camiseta branca dobrada ao meio. – Ah, as chaves também. – Lucas as recolheu do bolso da bermuda e terminou por tirar o par de tênis. – Boa sorte! – Foi tudo que eu consegui dizer. Meus olhos o seguiram enquanto ele corria até o mar e adentrava pela água rasa, aproximando-se da altura necessária para se equilibrar sobre a prancha. Sentei na areia e coloquei suas coisas sobre meu colo. Dedilhei o escapulário com cuidado. Estiquei-o e passei pela minha cabeça, deixando cair sobre o decote da minha blusa. Quando relancei os olhos para o mar, Lucas caíra algumas vezes. Ele sorriu para mim, e eu terminei por fazer o mesmo. Não demorou até que ele voltasse com seu cabelo molhado mais bagunçado que o normal e com gotas de água salgada escorrendo pela sua pele viçosa. – Como me saí? – perguntou, balançado a cabeça rapidamente para secar os cabelos. – Fez um bom trabalho. – Sorri de lado. Seu olhar se derreteu por um momento. – Olha só. E não é que ficou bom em você. – Lucas sentou-se ao meu lado, sem tirar os olhos do escapulário que caía pelo meu colo. – Oh, me desculpe. Fiquei com medo de perdê-lo na areia. – Toquei-o para tirar pela cabeça e Lucas me impediu. – Sei que está muito bem guardado aí. 362

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– Não vou esquecer de devolvê-lo – Recitei baixo, acanhada. Era tão desconcertante estar próxima dele. Parecia absurdo, ao menos para mim, mas eu não me sentia segura o suficiente para falar, sorrir demais ou fazer qualquer outra coisa. Eu ainda não sabia definir se isso era medo de não ser boa o bastante ou se toda a privação era resultante de algum fator desconhecido. Se simplesmente era pelo fato de nós dois sermos tão instáveis e com personalidades e passados tão indeterminados. Talvez eu não conseguisse confiar nas pessoas de forma completa. Mas eu já deveria ter me acostumado com isso. Todos os campos da minha vida estavam atrelados a um processo traumático. – Então... – Lucas interrompeu. Eu devia estar assustando-o com meus olhares vagos enquanto deixava a mente voar. – Você parece que não está com a cabeça aqui. Tem algo a preocupando? A vergonha inundou minha expressão. Sorri para despistá-lo. Eu não estava sendo uma boa companhia. Tentei camuflar minhas aflições com algo inútil e engraçado. – Apenas pensando em quantas garotas você já deve ter trazido a este lugar. – Sorri de lado. Mas a questão que não passava de estúpida para mim, causou-lhe reações adversas. Suas sobrancelhas se ergueram, emoldurando uma expressão incrédula. – Mentira que você estava pensando nisso. Não foi uma pergunta. Como ele poderia saber? Fiquei em silêncio e acabei por titubear, o suficiente para ser desmascarada. – Sabia – ele disse cheio de si. – Você não é o tipo de garota que perde tempo com essas baboseiras. Abri a boca, sem conseguir dizer uma única palavra. Então, meu sarcasmo habitual falou mais alto. – Escuta aqui, você por acaso baixou meu manual de instruções pela internet, é isso? Lucas riu de repente. Sem perder o humor, não parei: – Achou a “tutorial de funcionamento da cabeça da Holly”? – Fiz aspas com os dedos. – Que ótimo! 363

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Ele recuperou o fôlego rapidamente. – Não. – Ele tocou a ponta do meu nariz com esmero. – Você é mais fácil de decifrar do que parece. Seus olhos sempre são francos. Entregam seus pensamentos. Por um breve instante, emudeci. Lucas prosseguiu: – E eu adoro isso. Desdenhei e sorri ao mesmo tempo. – Mas se você quer saber... – Ele limpou a garganta rapidamente. – É a primeira vez que eu trago alguém aqui. Sempre vim sozinho. – Tá falando sério? – Ergui uma das sobrancelhas. – Mais do que sério. – Sua cabeça se abaixou. – Eu senti que eu deveria ser diferente com você, porque você é diferente. Foi impossível deter a vontade de sorrir distintivamente. – Você sabe surpreender. – Nossos corpos estavam tão próximos que acabei por deitar a cabeça em seu ombro e passei a admirar a majestosa paisagem. Percebi que Lucas se assustou ligeiramente pela espontaneidade da minha atitude, mas não ousou me impedir. – Você sempre foi assim... bom com as mulheres? Ele riu alto. Não entendi a graça. – Nem sempre – confessou por fim. – É uma longa história. Eu voltei a encará-lo, incentivando-o a continuar. – Quer ouvir? – Com o maior prazer. – Pisquei. Lucas respirou fundo. Algo me dizia que ele não estava acostumado a compartilhar aquilo. – Bem, na sua idade eu era um completo imbecil. – Ele deu uma pausa. – Era como se... garotas não tivessem a mínima importância para mim. Elas até que me perseguiam, mas sei lá. Parecia estúpido perder meu tempo investindo nelas, conquistando etc. Eu me achava jovem demais e tinha um monte de amigos. Era uma época boa. Não havia tantos problemas. – O olhar se perdeu no horizonte. Velhas lembranças o invadiram. 364

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– Engraçado, Rebecca diz a mesma coisa – falei sem pensar. Lucas estranhou. – Não sobre você ser um completo imbecil. – Ri. – Muito pelo contrário. Mas de como ela sente falta dessa época. Desse Lucas “misógino”. – Fiz aspas novamente com as mãos. – Então ela deve ter lhe contado tudo, não é?! – Ele pareceu não ficar satisfeito com a hipótese. – Com a maior riqueza de detalhes. Rebecca guarda as fotos de vocês até hoje; dos aniversários, das viagens. Lucas espantou-se. – É, eu também fiz essa cara quando soube. Mesmo depois de... tudo que aconteceu entre vocês – afirmei. – Rebecca é alguém que eu nunca vou entender. – Já olhou na internet? Se der sorte acha um bom tutorial. Rimos em conjunto, dissipando o clima melancólico da conversa. – Mas... onde eu parei mesmo? – Acho que você ia começar a explicar a teoria da metamorfose. – Ah, sim. – Lucas riu suavemente. – Acho que não vou saber delimitar exatamente quando mudei. Foi uma sequência de... – gesticulou – eventos, escolhas. Mas poucas garotas passaram pela minha adolescência. Consigo contar nos dedos de uma mão. E juro para você, nenhuma delas foi especial ou extraordinária. Lucas deu uma longa pausa. Não interrompi seu silêncio até que voltasse a falar. – Mas teve uma, apenas uma. E não era nenhuma garota. – Lucas vigiou minha expressão, certamente para se certificar de que eu estava realmente prestando atenção. – Eu estava no último ano do colegial. – Prosseguiu: – Lembro que logo no primeiro semestre nosso treinador foi transferido para outra cidade, e uma nova professora de Educação Física foi admitida no lugar. O nome dela era Anitta. – Hmmm. A história está começando a ficar boa. – Esfreguei uma mão na outra, empolgada. – Presumo que ela devia ser muito gostosa. 365

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– Você é uma garota esperta – entregou. Pisquei. – Você sabe como os garotos dessa idade são idiotas. Todos os meus colegas babavam. Hoje me lembro dela e sinceramente não sei se sentiria a mesma atração. Ela tinha uns trinta e poucos anos. Magra, longos cabelos castanhos. Nada muito inovador. Como eu ainda estava na minha fase de completo imbecil, juro que não entrei na onda dos meus amigos, a princípio. Mas aí ela começou a desenvolver certa... atenção por mim. Conversava comigo mais do que com os outros alunos e seus olhos sempre me procuravam primeiro. Aquilo pareceu tão instigante, para quem nunca tinha vivido algo especial. – Essa história daria um ótimo roteiro pornô, cara. Já tô imaginando tudo – eu disse, fazendo graça. Lucas não se conteve, mas prosseguiu em meio a risadas sinceras. – O pior é que demorou muito até rolar algo. Todos os meus amigos já desconfiavam de que eu estava na dela e ela na minha, mas eu negava até a morte. A maioria deles não sabe até hoje. Nunca confessei. – Lucas riu brevemente. – Uns meses se passaram e ela acabou sendo uma das professoras responsáveis pela organização da formatura e eu era o orador da turma. A gente se encontrava quase todo fim de tarde. Foi inevitável. – E aí vocês tiveram mil e uma noites de amor... – Supus. – Não, não. Foram só algumas vezes. Acho que Anitta se envolveu demais na relação. Eu até estava disposto a seguir em frente. Nas semanas seguintes, ela pediu transferência, implorou para que eu nunca mais a procurasse. Fiz uma careta decepcionada. – Então você nunca mais a viu? – Não. – E foi isso que contribuiu para você ser assim hoje? – Assim como? 366

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– Ah, a cidade toda fala. As garotas, principalmente. Você parece não se dar por satisfeito com nenhuma delas. Lucas não respondeu. Apenas riu, convencido de algo até então desconhecido para mim. – É, confesso que muita coisa passou pela minha cabeça depois disso. Me senti um pouco usado, até porque eu gostei verdadeiramente dela, muito mais do que daquelas garotas que tinha ficado anteriormente. Eu não conseguia entender por que eu só havia conseguido sentir algo mais com Anitta. Começou a não fazer muito sentido me envolver com outras garotas, até mesmo muito mais atraentes do que ela, e me sentir incompleto. Aí eu acabei concluindo que a grande maioria das mulheres se aproxima de você por interesse. Não tô falando apenas do lance financeiro porque esse já passa batido, mas sim de um tipo mais específico, mais egoísta. Algumas garotas querem você como troféu para esfregar na cara das outras, para se autoafirmar, se sentirem mais gostosas e espantarem aquele medo de ficaram sozinhas para sempre. E o pior: sem nada a oferecer em troca, a não ser sexo. Você não sabe como é patético vê-las se fazendo do que não são, apenas para se promoverem. Roupas, joias e mentes vazias. Valorizam-se por ter um corpo bonito e roupas desejadas. Aí eu volto a falar: sabe qual é a ideia que temos de garotas assim? Só tem uma coisa a oferecer: uma boa noite de sexo. Apenas. – Mas não seja louco de dizer isso a uma delas. Não, não. Vão dizer que você é machista, um mero cafajeste e aproveitador, um galinha! – É aquela velha história... A criação se sobrepõe ao criador, e a embalagem se sobrepõe ao conteúdo. É uma estúpida inversão de valores – acrescentei. – Bem por aí, capitã – Lucas concordou. – E respondendo à sua pergunta... Não é que nenhuma delas não seja boa o bastante. Só não tem nada a oferecer... Além de... – Lucas gesticulou, mas o interrompi. 367

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– Eu já consegui entender o recado. – Sorri. – Sabe o que é pior? Você está tremendamente certo. Isso só prova que a gente só deixa de odiar algumas pessoas quando passa a conhecê-las melhor. Jamais imaginaria que você pudesse ser assim... Apenas porque está procurando por algo especial. – Ah, você me odiava? – Os olhos inundados de uma surpresa cômica. – Quase isso. Você não imagina como você pareceu ser mesquinho e babaca na primeira vez em que nos conhecemos – resmunguei, nada satisfeita com a lembrança. – Você ainda tem essa impressão? – Essa não – contestei rapidamente. – Acho você um pouco idiota, às vezes, mas é um bom idiota. – Encarei-o e foi impossível não sorrir. – Então acha que eu procuro por algo especial. – E não é isso? Por mais que você tenha vivido um lance relâmpago com essa moça, foi verdadeiro. Houve uma... troca. Você só está procurando alguém que possa lhe oferecer isso da forma mais genuína possível. Deve ser frustrante não encontrar nada parecido nos lençóis por aí. Isso explica o porquê de você gostar tanto de ficar neste lugar. Às vezes nossa melhor companhia pode ser nós mesmos. – Ou alguém que consiga nos compreender – Lucas recitou as palavras tendenciosamente. – Nem tô acreditando que consegui conversar sobre tudo isso com uma garota. Meus lábios se ergueram num sorriso, sem tirar os olhos do mar à nossa frente. O Sol já se despedia por completo. Seu silêncio inesperado me afligiu por um momento. Olhei para seu rosto insondável e não consegui decifrar o que eu realmente queria. Eu tinha medo de me aproximar demais, pois Lucas parecia se esquivar das minhas investidas. Eu deveria tomar a iniciativa? Ele me arrancaria um beijo assim como aconteceu naquele dia no carro? Seu semblante amável pareceu não corresponder minhas segundas 368

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intenções, o que me repercutiu uma onda de vergonha. Controle-se, garota. Para acabar com minhas esperanças, ele cortou pela raiz qualquer princípio de interesse carnal de minha parte. – Acho que já está na hora de levá-la para casa, não é? Não sei como são seus pais. – Ah, minha mãe é bem de boa. – E seu pai? – Eu não tenho pai, tecnicamente. – Ele já faleceu? – Oh, não. – A pergunta me pegou de surpresa. – Quer dizer, não sei. – Não o conhece? Ri, não pela graça da questão, mas pela confusão mental que tal assunto me trouxe. – Eu não quis conhecê-lo. É uma longa história. – Como assim você não quis conhecê-lo? Para Lucas minha confissão parecia absurda demais para ser verdade. – Não quis, ué. Depois de tanto tempo convivendo apenas com a minha mãe, não achei interessante passar por um desdobramento desses. Sou muito satisfeita com ela. – Silenciei-me. Agora era a minha vez de tocar num assunto que eu não me permitia partilhar com a maioria das pessoas. Lucas ainda não entendia. – Parece estranho, eu sei. Mas é que eu sempre desconfiei de que eles não acabaram bem. Não queria forçar minha mãe a conviver com ele novamente apenas para satisfazer um capricho meu. – Sua mãe é bem jovem, não é?! – Ela é. – Sorri ao lembrar-me dela. – Meus pais se conheceram no Ensino Médio. Eles tinham dois anos de diferença, então, quando minha mãe entrou para Medicina, o Tom já estava fazendo Engenharia há dois anos. Foi nessa época que ela descobriu que estava grávida de mim. Os dois tinham problemas demais, eram 369

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jovens demais. Até os meus três anos eles ficaram juntos. Eu o via sempre, embora não morássemos todos juntos. Logo depois meus avós faleceram, e ele acabou passando num concurso para uma cidade distante. Minha mãe nunca mais quis vê-lo. Acho que a separação definitiva e as circunstâncias foram bem traumáticas. Eu sempre senti isso. Tenho leves lembranças dele, das discussões. Aí ela encontrou uma vaga de residente em São Francisco e nos mudamos. Lucas me interrompeu. – Então vocês não são de São Francisco? – Não... Nasci e fui criada em Chicago – respondi, voltando ao assunto. – Aí houve um dia em que ela me perguntou se eu sentia falta dele. Se por algum acaso tinha vontade de revê-lo. Eu disse que não. – Dei de ombros. – E também falei que a amava incondicionalmente o suficiente para que continuássemos assim, apenas nós duas. Sempre nos demos muito bem, o que me fez escolher evitar o desdobramento de forçar um convívio. Cresci com uma amiga que sofreu muito com isso. Ela ficava entre a cruz e a espada com os pais divorciados. Era triste, e eu concluí que não gostaria de correr esse risco. – Sabe que essa sua atitude não combina muito com sua personalidade? – Como assim? – De se afastar; do risco, do desafio. Pelo menos é essa ideia que tenho. Parei por um instante e deixei que sua reflexão fizesse sentido para mim. Acabei por pensar alto. – É... Você tem razão. Talvez se me dessem o poder de escolha hoje, eu pensaria diferente. Sempre senti que havia um abismo entre a Holly de alguns anos atrás e em quem eu me tornei. – Você deve ver pelo lado positivo. Ter passado pelo que você passou foi de fato muito difícil, traumático e assustador; mas eu acho que agora você enxerga as coisas com mais amadurecimento. 370

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Não a conhecia antes para dizer, mas posso sentir que você parece ser mais desprendida, do tipo que enfrenta, que não tem medo e assume ser quem é para quem quiser saber. Uni as sobrancelhas. Eu não passava de uma vadia medrosa. – Eu sei que você não se sente assim porque ainda está muito fragilizada. Mas tenha uma certeza, você é mais corajosa e perigosa do que pensa. Mais uma vez, ele me fez rir verdadeiramente quando algumas lágrimas tentaram se alojar em meus olhos. – Você é incrível – confessei. – Ah, deixo esse título para você, exclusivamente. – Ele sorriu do seu jeito cheio de si, convencido de suas afirmações. – Para provar isso, que tal me mostrar suas habilidades com o seu 4x4? Viemos para isso, não foi? – Oh, sim! Tinha até esquecido! – Levantei-me entusiasmada, batendo a bermuda jeans para retirar o excesso de areia. Lucas me guiou de volta ao carro, em que pegou do porta-malas uma toalha para secar-se e uma bermuda limpa. Ajudei-o a amarrar a prancha no topo do carro. Por um momento, eu vi todas aquelas baboseiras que rodeavam minha mente se esvanecerem. O medo inicial havia desaparecido e eu concluí que era impossível não me sentir bem ao lado de alguém que apenas estava preocupado em se mostrar verdadeiramente para mim. Nós chegamos na pista de skate que havia na área de lazer daquele condomínio, e Lucas me deixou à vontade para exercitar algumas manobras sozinha; até que eu o convidei para tentar um pouco, mas era apenas uma desculpa para que eu pudesse ficar mais próxima dele. – Sobe. – Eu segurei suas mãos para que se equilibrasse. – Acho que estou muito velho para isso. Faz muito tempo que eu não tenho dezesseis anos. 371

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– Para. É só não ficar com medo. O fato de cair não é uma possibilidade, é uma certeza. – Ok! Você ajudou muito. – Ele riu e eu também. – Mas acho que ainda me lembro como se anda. – Lucas impulsionou o skate e, quando vi, ele conseguiu ir e voltar, sem cair. – Eu já deveria estar acostumada. Não há nada que você não possa fazer. – Ah, você sabe que é muito melhor do que eu em algumas coisas. – Ele me repassou o shape. – Então contente-se com sua prancha, senhor Kennedy. – Pisquei, jogando o skate sobre o chão. Subi, empurrando até a rampa, fazendo uma manobra completa, por duas vezes. Nós ficamos por ali até vermos o tom negro da noite se estampar no céu. Centenas de pontos brilhantes embelezavam o horizonte. – Obrigada pelo passeio. – Eu disse vangloriada quando Lucas estacionou lentamente seu carro junto à vaga de visitantes. Mais uma vez, eu não sabia se tomava a iniciativa. Ele parecia não me dar nenhum tipo de abertura nesse sentido. Lucas desligou o carro e sorriu para mim, mas antes de conseguir pensar em qualquer coisa, sua expressão pareceu se recordar de algo. – Ah, quase me esqueci! – Ele levou a mão até uma pequena gaveta no painel e recolheu uma caixa quadrada de espessura fina. Entregou para mim. Foi impossível não disfarçar a surpresa. E, sem hesitar, abri a tampa e vislumbrei um CD em branco ali dentro. – Um CD? – Acho que tem muito a ver com você. Espero... que goste. Ri, um pouco desconsertada pela espontaneidade da situação. – Obrigada, de novo – respondi baixinho. Molhei os lábios rapidamente e me inclinei para me despedir. Alcancei o canto de sua boca e lhe beijei suavemente. Senti sua respiração se intensificar, 372

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mas não me permiti continuar. Lucas não ousou me deter, mas também não deu indícios de que gostaria de seguir em frente. Acho que alguém estava se fazendo de durão. Retirei o escapulário e o devolvi, terminando por alinhá-lo em volta de seu pescoço. Voltei à minha posição e apenas observei seus olhos gulosos aparentemente domados me secarem. Peguei o skate e abri a porta. – Até... qualquer dia. – Não esqueça de ouvir o CD – lembrou. Sorri e, sem mais delongas, me retirei. Caminhei até a escadaria do edifício e não o ouvi ligar o carro. Ele esperou até que eu entrasse de vez. Mamãe já estava em casa. Do corredor do meu andar pude avistar o reflexo das luzes acesas do meu apartamento pela fresta da porta. – Holly? – ela clamou meu nome ao ouvir a porta bater. – Você demorou hoje. Aonde foi? – Ah, eu... estava com a Rebecca – menti, eu sei; mas eu queria me poupar das perguntas e preocupações. – Hmmm. Fiquei preocupada. Você deixou seu celular aqui. Mas imaginei que estivesse mesmo com ela. Se divertiram? – Ah, como sempre. – Sorri ao me aproximar da sala vendo minha mãe assinar alguns documentos sobre a mesa. – Já preparei o jantar, querida. Pode se servir, se estiver com fome. Ela voltou a se preocupar com os papéis. Pensando bem, minha mãe sempre foi muito liberal em relação aos rapazes com quem eu me envolvia. Mas eu acreditava que agora eram tempos diferentes. E ela sempre foi muito restritiva ao fato de eu sempre acabar me interessando por caras mais velhos. Não seria o momento de incitá-la sobre algo que nem eu tinha certeza do que era. 373

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Guardei meu skate e fiquei com a pequena caixa nas mãos. Eu tinha que ter ficado sem meu computador justo agora? Como eu saberia o que tinha ali dentro? Frustrei-me por um momento e até pensei em ligar para Rebecca e contar sobre o encontro daquela tarde, mas a minha mente me lançou às memórias desconfortáveis daquela mesma manhã onde minha melhor amiga parecia incomodada com o fato de eu estar querendo falar sobre o Lucas. E disso eu tinha muito medo, de que ela nutrisse sentimentos por ele e que isso justificasse todo o seu comportamento estranho, além de todo o transtorno que envolvia os dois. Eu tinha medo porque não queria abalar nossa amizade. Eu jamais me permitiria trocá-la por alguém. E até estava disposta a desistir daquele lance para não decepcioná-la. Apenas para tê-la ao meu lado. Eu tentei ao máximo não pensar nisso durante o fim de semana, mas Rebecca me ligou na tarde de domingo. E ela fatalmente percebeu que algo me incomodava. Cheguei a contar resumidamente sobre nós e o encontro, mas deu para perceber que ela não se incomodou nem um pouco. Parecia entusiasmada com o fato, embora tenha ficado desconfiada diante da minha displicência. – Você não parece muito contente. Aconteceu alguma coisa, querida? Suspirei fundo. – Não sei... Sinceramente eu não sei. – Quer falar sobre? – Deixa para lá, amiga. Preciso... pensar sobre algumas coisas. Vou tentar estudar cálculo agora. Amanhã a gente se fala, tudo bem? – Sem problemas. Sabe que para qualquer coisa é só gritar, né? Sorri, verdadeiramente satisfeita. – Eu sei. Obrigada, Rebecca. Amo você. – Também. Até mais. Finalizei a ligação e caminhei até a varanda, recostando-me ao parapeito, o que me permitiu contemplar o fim de tarde que caía 374

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sobre a cidade. Não foi difícil me sentir invadida por uma onda de pensamentos sobre Lucas, mesmo que fosse involuntário. Por um momento eu o sentia nas mãos, mas em outro eu o sentia distante demais. Como se algo o bloqueasse de se aproximar. Como se Lucas se sentisse impedido de me tocar, de ir adiante. Será que toda aquela consideração e admiração nutrida por mim teria aniquilado suas intenções habituais? Eu tinha certeza de que ele me respeitava, me achava legal demais, mas... Eu poderia não passar disso. Talvez eu não fosse tão interessante quanto aquela centena de garotas fúteis com quem ele se relacionava eventualmente. Mas... quer saber? Eu não estava nem um pouco preocupada em mudar. Muito pelo contrário. Eu estava disposta a me mostrar verdadeiramente, por mais desafiador que pudesse ser. A porta estava aberta.

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CAPÍTULO VINTE E DOIS

enfrentando um conjunto de problemas

Entramos na última semana de abril. Não acordei com o melhor dos ânimos na segunda-feira. Atrasei-me para sair de casa e resolvi ir de bicicleta para a escola, ganhando assim alguns minutos. Não consegui ver ninguém no pátio e corri para a aula de História. Pouco tempo depois, a comissão de eventos da San Diego Hight School começou a passar de sala em sala para informar sobre a organização do baile de primavera. Recordei-me ligeiramente sobre o assunto que Rebecca havia citado há algumas semanas. Ela também havia confidenciado claramente que acharia divertido ajudar na decoração do evento. Alistei nossos nomes como voluntárias e vi que eu poderia incluir mais alguém. Jodi e Mike já estavam na equipe de som, e eu sabia que Leo, assim como Seth – que eram do último ano –, estava escalado para participar da recepção de dança. Por livre e espontânea vontade, inclui Hailey. Eu sabia que a garota andava muito solitária, já que estava afastada dos treinos, e sua melhor amiga Jenny agora só tinha olhos para Ian. Seth também estava ocupado demais com os campeonatos interescolares. A garota, que também participava daquela aula, surpreendeu-se com meu convite, mas acabou por anuir sem hesitar. Seria uma boa oportunidade de nos aproximarmos. Naquele dia, todos nós almoçamos juntos. Agora Jenny se sentava conosco. A mesa ficava pequena quando nos reuníamos, sem a ausência de ninguém. Rebecca chegou atrasada, pedindo mil desculpas. Seus olhos lampejaram para cada rosto presente, até encontrarem o meu. Não consegui sorrir e muito menos cumprimentá-la. O que a deixou aflita. Ela tratou de sentar-se na outra ponta da mesa. Senti 376

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que Rebecca desvirtuou suas preocupações trocando altos papos sobre o baile com o pessoal. Hailey comentou que eu havia incluído nós três na equipe da decoração, e esse foi o único momento que nos olhamos por um tempo maior. Não trocamos uma palavra. Confesso que foi um dos piores almoços da minha vida. Ao sinal do término do intervalo, levantei-me. Descartei a bandeja e segui sozinha para a próxima aula no bloco B. Eu já me aproximava da escadaria quando senti uma mão agarrar meu braço, detendo meus passos. – Ei, ei, ei! Você não vai fugir de mim. Parei de caminhar e fechei os olhos. Sua mão me segurava com força. Inconscientemente, agradeci por Rebecca ter tomado a iniciativa, mas não admiti para mim mesma de imediato. Virei-me. – O que está acontecendo com você? Fiquei em silêncio diante da pergunta. – Não me venha com essa cara de que não está a fim de conversar. É nítido que há algo de errado. Não vai conseguir resolver nada desse jeito. – Nem sei por onde começar. – Ergui as mãos. Houve uma pausa. – Olha... Não tenho nenhuma aula muito interessante agora. O que acha de pegarmos nossas coisas e parar em algum lugar para conversamos, a sós, e fora daqui? – Tá de bicicleta? – perguntei. Rebecca assentiu. – Me espere no bicicletário. Vou pegar as chaves no meu armário. Rebecca e eu estacionamos nossas bicicletas em um mirante que ficava próximo à escola. Sentamo-nos na grama, em frente à majestosa vista da cidade à nossa frente. – Eu vou bater em você se estiver assim por causa do idiota do Lucas. Eu ri alto, mesmo não querendo. Foi impossível deter o espasmo com sua franqueza habitual. 377

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– É impossível querer mentir para você – confessei. Rebecca fez uma careta, como se dissesse “é obvio, não é, querida?!” E eu ri novamente. – Não estou assim tanto pelo Lucas. – O que aconteceu no sábado que eu não fiquei sabendo? – Acho que a questão não se atém a algo que aconteceu, mas sim sobre o que deixou de acontecer. – Como assim? – Bem, isso tudo é bobagem da minha cabeça. Quer dizer, eu quero acreditar que é. Mas o que não entendo... É você ter certas atitudes de vez em quando. Você é honesta demais em dizer seus sentimentos, mas às vezes eu sinto que você não é sincera quando isso diz respeito ao Lucas. – O que você está insinuando? – Seus olhos se apertaram. Ela pareceu incomodada. Tentei encontrar as palavras certas, mas ela pulou na frente. – Quer saber a verdade? Quer mesmo? – Revoltou-se por um momento. – Pois bem... a verdade, a verdade mesmo, você não vai ouvir. Não agora. Eu aguardei em completo silêncio. – Mas posso adiantar uma coisa importante. – Seu dedo se ergueu, dando ênfase. – Lucas me procurou depois daquele dia que a conheceu. Queria saber quem era você, de onde vinha, como poderia se aproximar de você. Mesmo de relações cortadas, ele tentou se redimir, pedir desculpas por tudo que tinha acontecido entre nós. Apenas esperando que eu permitisse sua aproximação. A princípio, minha amiga... – sua mão recolheu a minha – confesso que não vi isso com bons olhos. A cidade toda sabe que Lucas não é nenhum cara exemplar, mas eu lhe dei uma segunda chance porque ele me prometeu que faria diferente. E eu permiti, porque acredito que ele lhe faz bem. Pelo menos percebo isso quando vocês estão juntos. Você se torna uma pessoa melhor. E eu prometi para você que a 378

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ajudaria a ser feliz, não foi? – Ela pressionou meus dedos com destreza, inquirindo-me a olhá-la diretamente. Sorri. – Eu só me sentia mal por estar fazendo tudo isso sem que você soubesse. Não era justo falar sobre ele, uma vez que eu poderia mentir, tentando despistar que o ajudei a se aproximar de você. E não. Eu não nutro nenhum tipo de sentimento recolhido por ele. – Você tá falando sério? – E eu sou de não falar sério, porra? – Ela se exaltou com humor. Abracei-a repentinamente. – Finalmente as coisas estão começando a fazer sentido! – roguei com a voz embargada. – Não vá chorar! Comecei a rir. – Tinha razão. Eu só me sentiria melhor se conversássemos. – Tá vendo?! – Nos afastamos. – Agora me conta... O que foi que não aconteceu no sábado? – Ah... – Fiz uma careta. – Eu espero novamente que seja paranoia da minha cabeça, mas eu sinto que Lucas se esquiva. Sendo mais assertiva, ele me evita completamente. Tá certo que a gente conversa, ri, fala sobre dezenas de assuntos com naturalidade. Mas, quando eu tento me aproximar, tocá-lo, ele parece que trava. Algo o bloqueia. – Recolhi suas mãos. – Por favor, diga que eu estou ficando louca. – Sinto muito, mas não está. Meus ombros caíram. Era tudo o que eu não queria ouvir. – Ei, tá tudo bem – Rebecca me consolou. – Vamos pensar que ele esteja com muitas preocupações rondando sua cabeça, que talvez tenha medo de fazê-la sofrer, de decepcioná-la, hein? Vamos pensar assim? Silenciei-me. Não engoli. – Por que não fazemos um acordo? Você trata de espantar essa cara tristinha que eu trato de pensar em algo até amanhã para reverter isso. Confia em mim? 379

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– E eu tenho outra opção? – Boba – Rebecca disse ao envolver meu corpo com seus braços fraternais. Um abraço seu era tudo que eu precisava para ficar bem.

* – Já tenho um plano. – Rebecca passou por mim incitando o assunto, antes de nos juntarmos à mesa com nossos amigos na hora do almoço. – Minha casa, hoje, depois da escola – Sussurrou-me, terminando por me lançar uma boa piscadela cheia de convicção. Aguardei o último sinal daquele dia letivo. Recolhi minha bicicleta e parti para Pacific Beach, chegando rapidamente no sobrado da minha melhor amiga. Ela já estava em casa há certo tempo, pois havia saído mais cedo. – Achei que tivesse se perdido no caminho – comentou toda sorridente ao abrir a porta. – Vim assim que liberaram a turma. – Nós adentramos de vez já pegando o rumo das escadas que nos levariam até seu quarto. – Qual é o plano? – Tá com o seu celular aí? Retirei-o da bolsa. – Liga para o Lucas – sentenciou enquanto se sentava confortavelmente na sua poltrona. – O quê? – perguntei. – Vai, garota! Agora ele não vai poder atendê-la. É só para deixar registrado. Não prossegui com os questionamentos. Dei de ombros e disquei o número. Aguardei três toques, finalizando a ligação logo em seguida. Vigiei a expressão ardilosa da minha melhor amiga. – Ele está ocupado demais para atender agora, mas vai retornar quando ver que você ligou. Quando atender, dirá que ele interrompeu seu banho. 380

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Ri alto. – Como é que é? – Confia em mim. Nós só estamos dando um empurrãozinho para sua imaginação devassa. Ele não vai resistir. – Rebecca piscou. – Escreve o que eu tô te falando. Mas... Preste atenção! Se você sentir que não é o suficiente, incremente mais coisas. É importante provocar esse desejo oculto. – Rebecca gesticulou com seu jeito burlesco. – Tudo bem, capitã – concordei, sem parar de rir. Nós havíamos combinado uma partida de vôlei na praia com os meninos naquela noite. Eu aproveitei para pegar emprestado o notebook da Rebecca, enquanto ela se arrumava para sairmos. Há dias que eu ansiava em descobrir o que havia naquele CD que Lucas tinha me dado. A caixinha ficou na minha mochila durante todo o tempo. Introduzi o CD no compartimento e aguardei o sistema executá-lo. Era um único arquivo de música chamado “Wouldn’t change a thing”. O título sugestivo fez minha curiosidade estalar. Recolhi meus fones de ouvido da bolsa e os conectei junto ao computador. Não reconheci os autores e logo coloquei para tocar. Era uma música eletrônica. As batidas começaram leves e eram altamente relaxantes. Eu já estava gostando. Uma voz feminina muito harmoniosa cantava suavemente, como se sussurrasse sensualmente uma melodia romântica. “Close the door, turn the light off and before you drop, come to me. I’m here when you wake up, please don’t ever stop. Stay with me.” Um sorriso sincero brotou no canto dos meus lábios. Concentrei-me nas palavras e deixei o poder da mensagem acelerar as batidas do meu coração. Era algum tipo de alegria se manifestando dentro do peito. 381

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If I could do it all over. I wouldn’t change a thing. If I could do it all over, I wouldn’t change a thing. Os versos sabiamente descritos permitiram que minha mente projetasse perfeitamente o momento em que nos vimos pela primeira vez. – Não sou mais o idiota de anos atrás. E também mudaria uma centena de coisas. Mas, e quanto a você? Duvido que também não mudaria. Olho no fundo dos seus olhos e minha consciência apenas se concentra em algo específico. A imagem do seu rosto fica gravada em minha mente. E eu respondo sem hesitar. – Eu não mudaria nada. A batida se manteve lenta e marchou progressivamente para um ritmo mais animado. Os versos se repetiram e senti me arrepiar. Tudo aquilo fazia sentido. Uma lágrima pairou em meus cílios. Acabei por sorrir, lisonjeada por tamanha sensibilidade. – Gostou da música? – Ai, caramba! – Assustei-me com Rebecca logo atrás de mim. Eu estava tão entretida com a canção que mal percebi sua aproximação repentina. Retirei os fones de ouvido e suspirei fundo, recuperando o fôlego. – Quase me mata de susto. – Sorri. – Desculpa pegar seu notebook assim. Mas é que eu fiquei... – Não se incomode com isso – Rebecca interrompeu-me. – Lucas havia me dito que lhe daria algo, mas não imaginei que pudesse ser tão simbólico. Sabe que até fiquei orgulhosa? – Riu. – Mas e quanto a você? Gostou? – Eu adorei, de verdade. Acho que isso prova que ele me entende... E que gosta disso. – É assim que se fala. Meu celular então tocou alto. Rebecca e eu pulamos de onde estávamos, exasperadas. 382

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– É ele! – ela confirmou antes mesmo de reconhecer o número. – O que eu falo? – Peguei o celular que ficou tocando na minha mão. – Porra, Holly! Segue o plano! – Tá, tá bom. Tudo bem! – Teclei para aceitar a chamada, mas minha amiga me deteve. – Não! Espera tocar um pouco mais. Vai dar mais credibilidade, afinal você tá saindo do banho, né?! – Você pensa em tudo mesmo, é incrível. – Ri alto. Esperei alguns segundos e limpei a garganta, preparando-me. Eu não poderia rir. Rebecca se afastou, sentando-se despojadamente na cama. – Alô? – Põe no viva-voz, caramba! – Rebecca exclamou, quase que inaudível. – Oi! – ele disse, com ares interessados. – Achei que não fosse me atender. – Oh, me desculpe... Eu estava no meio do banho. – Ri acanhada. – Ah... Ok. – Sua afirmação pareceu flutuar de tão distante e inconsciente. Mas ainda assim ele estava prestes a escapar das minhas mãos. Becky gesticulou para que eu desse mais corda. Era hora de jogar sujo. – Achei que não fosse dar tempo de me enrolar na toalha e vir atender o telefone. – Abri a boca, impedindo uma risada alta. Rebecca tampou o rosto com o travesseiro, se acabando de rir. – Você não faz um tipo de cara muito paciente. Ligeiros segundos passaram até que ele voltasse a falar. Rebecca já contava pontos de uma suposta vitória. – Você sabe que sou diferente com você. Mas... está tudo bem por aí? Fiquei preocupado imaginando que algo tivesse lhe acontecido. – Não, não. – Suspirei. – Está... tudo ótimo. Só estava sentindo sua falta. 383

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Ele riu suavemente do outro lado da linha, surpreendido pela minha confissão. Parecia satisfeito em ouvir aquelas palavras. Prossegui: – E eu também queria dizer que adorei a música. Muito obrigada! – Sério mesmo? – Ele parecia não querer acreditar. – Eu não quero forçá-la a nada, Holly. Você parece independente demais para conseguir convencê-la daquilo que não quer. E não seria certo voltar a persegui-la. Mas, se você aceitar, eu adoraria chamar você para sair de novo. – Não precisa ponderar tanto. Nem ter medo de mim. Sou só uma garota, um pouco incomum, que por acaso está enrolada numa toalha falando com um cara legal com quem adoraria sair novamente. Lucas riu deliciosamente pelo telefone. – Você é demais. – Ele recompôs-se. – Sábado, o que me diz? – Te espero em casa? – Duas horas, pode ser? – Perfeito. – Agora vá terminar seu banho, garota incomum – ele disse, e eu pude imaginar aquele seu sorriso brioso se espalhar pela sua expressão saborosa. Despedi-me de vez, desfazendo-me do celular. Mordi os lábios e joguei as costas sobre a cama, unindo-me a Rebecca, sem conseguir parar de rir. – Acho que deu certo! – Tampei o rosto com as mãos. – Estava me enrolando na toalha foi golpe baixo! – Rebecca gargalhava tanto que seu rosto se ruborizou. – Nada provocaria tanto um cara quanto imaginar uma gata como você tomando um bom banho. Nós trocamos um toque de irmandade. – Missão cumprida. Agora é partir para o abraço. 384

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– Isso mesmo, vadia – imitei seus trejeitos próprios e nos abraçamos. – Obrigada, Becky!

* A manhã de sábado se arrastou. Mamãe achou estranho que Rebecca não veio em seu horário habitual para me buscar e consequentemente se juntar a nós para tomar o café da manhã. Eu apenas respondi que naquele dia sairíamos mais tarde. Como mamãe partiria para um plantão extraordinário depois do meio-dia, não me preocupei em tecer mais comentários. Ainda não era a hora de esclarecer as coisas. Eu me arrumei silenciosamente e optei por um traje simples e confortável: uma regata florida e uma boa saia jeans. Lucas me esperava pontualmente às duas horas em frente do meu prédio. Seus olhos nunca deixavam de me observar com capricho. Eu sorri segura, mesmo ainda sentindo um leve frio na barriga. Ele estava em sua clássica posição, do lado de fora do carro, esperando para abrir a porta do carona para mim. O brilho do sol atenuou o tom bronzeado da sua pele viçosa, como também refletiu luzes douradas sobre seu cabelo castanho médio. – Você está linda hoje – disse enquanto me deixava entrar em seu carro. Derreti os olhos, agradecendo. Lucas deu a volta, logo assumindo o volante. – Posso ser curiosa? Ele riu. – Eu preciso lhe dar permissão? – Sei lá. É que eu queria saber... O que levou você a escolher aquela música. – Você não gostou? 385

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– Eu adorei – rebati de imediato. – Só fiquei... curiosa – confessei. – Gosto de saber o que se passa na sua cabeça, afinal... Não achei nenhum bom tutorial na internet sobre você. Ele riu mais uma vez com sinceridade. – Bom, essa música é um pouco antiga. Eu me lembrei dela há algumas semanas e, quando a ouvi com atenção, não consegui tirar você da cabeça. Era você todinha. – Ele sorriu ao mesmo tempo que mirou seus olhos nos meus. – Nunca imaginei que uma música pudesse fazer tanto sentido. Senti que deveria partilhar com você. – E você acertou em cheio. – Meus lábios se ergueram num sorriso franco. – Realmente fez muito sentido. Lembrei do momento em que nos conhecemos. Foi... instantâneo. – Essa era a intenção – ele disse, glorioso pela minha afirmação. Olhei de relance para a majestosa paisagem da costa litorânea que margeava o trajeto. O dia estava perfeito. O céu predominantemente azul, sem uma única nuvem que atrapalhasse o horizonte. – Posso saber para onde estamos indo? – Achei que gostasse de surpresas. – Só queria saber se é mais um dos seus lugares secretos. – Sorri. – Dessa vez não. Na verdade, o destino não tem nada de secreto. É um dos lugares mais conhecidos da cidade. Quase um cartão -postal. – Nossa... – zombei, toda altiva. – Você é bom guia turístico. Lucas riu. – E essa é apenas a primeira parada. O destino misterioso desvendou-se diante dos meus olhos assim que avistei as placas de localização que ficavam no perímetro do lugar. SEJA BEM-VINDO AO SEAWORLD – Como que eu não consegui desconfiar?! – eu disse assim que Lucas parou seu carro junto ao estacionamento do parque temático. 386

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– Presumo que você nunca tenha vindo aqui. – É a primeira vez – falei, admirada com a estrutura externa do lugar. Lucas passou a me guiar até a entrada, ficando ao meu lado. No impasse torturante entre pegar em sua mão ou não, decidi enfiá -las nos bolsos da saia jeans por precaução. Passamos pela bilheteria e me senti imergida no oceano. Um largo corredor azul nos levou até os aquários reluzentes e ofuscantes. – Estou me sentindo com cinco anos de idade de novo – confessei enquanto passávamos pelo reservatório de corais. Lucas riu. – Também me sinto assim. Eu vi esse parque crescer, praticamente. – Olha só, pinguins – eu disse afobada, apontando para uma grandiosa vitrine. – Puxei o braço do Lucas, na tentativa de trazê-lo comigo para conferir de perto. Aproveitei para alongar o contato. Ele não se incomodou. – Pinguins são legais. – Encostei minha mão ao vidro. Analisei um casal deles nadando junto à piscina, quase que de forma sincronizada. – Sabia que eles nunca se separam? Por mais que se percam um do outro, eles sempre vão esperar pelo par. – É bem romântico – ele disse descrente. – Não vejo por esse lado – refutei de imediato. – Às vezes só o amor não é suficiente. Acho que é uma questão de lealdade. Analisei os animais por um momento, em silêncio. Percebi que Lucas me observava cautelosamente. – Que foi? – Encarei-o. – Esquece. – Ele sorriu despreocupado. – Tá a fim de comer alguma coisa? Tem uma ótima praça de alimentação no caminho do reservatório de tubarões. – Uau! Eu vou poder nadar com eles? Senão não tem graça. – Acho que eles ficariam assustados em receber uma visita sua. – Lucas riu, guiando-me pelo largo corredor. – Acredito que não 387

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tenha isso por aqui. Tem um aquário muito conhecido no Brasil onde é possível nadar com tubarões. – Sério? – Sério. – Lucas pegou em meu ombro enquanto tagarelava empolgado. A partir daí foi muito fácil caminhar ao seu lado e esquecer onde eu estava. Nós passeamos por mais algumas áreas do parque até chegarmos à praça de alimentação. A mulher de meia-idade que servia os cachorros-quentes nos chamou de namorados, e isso foi realmente desconcertante. Eu tinha uma leve impressão de que poderia estar ficando paranoica, mas era possível perceber que Lucas se esquivava de mim quando estávamos rodeados por muitas pessoas, como também sentia que ele sempre despendia seus olhares à procura de movimentos suspeitos. – Quer ver uma coisa legal? – propôs. Ergui uma sobrancelha, em silêncio. – Vem, é por aqui. Lucas caminhou na minha frente, e eu o acompanhei rapidamente, seguindo-o por uma parte anexa da arena de apresentações. Ele parou em frente de uma escadaria, aguardando que eu me aproximasse por completo. Ao final, nós chegamos a um mezanino, onde não havia ninguém. Era possível observar uma vista parcial do parque, além de poder ouvir um suave barulho de água. Ele recostou-se ao parapeito, sem tirar os olhos do que havia lá embaixo. Observei-o de costas e acostei-me ao seu lado. Por um súbito, entrelacei meu braço junto ao seu, ficando próxima de seu corpo. Pude desvendar o que ele contemplava com tanta atenção. Era uma enorme piscina de águas reluzentes sob o Sol do fim da tarde. A água estava agitada, como se algo tivesse passado por ali. – Mas o que é... – Espere. – Ele sorriu. 388

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Apenas alguns instantes transcorreram até eu ser surpreendida pela presença de uma orca nadando agilmente pelas águas cintilantes daquela piscina. Abri o maior sorriso que pude. – Essa é a famosa Shamu? – A própria. – Presumo que aqui em cima seja mais um dos seus lugares secretos. – Você é uma garota esperta. – Lucas sorriu com os olhos e em seguida voltou a admirar o animal fazendo seus movimentos pela água. – Rebecca morria de medo dela quando era pequena. – Ele riu alto diante das lembranças. – Era um ótimo artifício de chantagem. Não contive a vontade de rir. – Por que vocês não voltam a ser assim? – Olha, se eu disser que nós temos nos dado muito bem nas últimas semanas você acredita? – Então eu estava certa. Ela era sua fonte – afirmei. – A principal. – Seu dedo se ergueu rapidamente e eu minguei os lábios, imaginando quem mais poderia lhe prestar informações sobre mim. – Desde que a conheci eu tive que deixar de lado meu orgulho para poder voltar a conversarmos, como nos velhos tempos. Eu precisei pedir permissão. Eu ri alto, lembrando do que Rebecca havia me confidenciado dias atrás. Então era tudo verdade. – É sério. Mas a princípio ela rejeitou de todas as formas, apenas querendo proteger a melhor amiga. – Acredito que tenha rolado uns acordos. – Ah, agora você lê mentes? Sorri. – Não, não. Ainda não. Mas isso é muito típico dela. Não a conheço há tanto tempo quanto você, mas a entendo perfeitamente. – Recostei o rosto em seu braço e intensifiquei nossa aproximação, cobrindo sua mão com a minha. 389

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– Obrigada pelo passeio – disse após um breve espaço de tempo, selando sua bochecha devagar. Lucas girou seu rosto com cuidado, sorrindo ao olhar diretamente para meus olhos. Recostei meus lábios sobre os seus, apenas testando sua aprovação. Terminei por abaixar as pálpebras e pude sentir sua respiração sobressaltar-se discretamente. Tomei por finalizar um beijo calmo e lento. Meu corpo se aqueceu com a aproximação de nossas peles e por um momento nada passou pela minha cabeça. Apenas o assobio melodioso da orca conseguiu nos distrair. – Acho que isso foi um sinal. Nós dois nos afastamos, acabando por rir despretensiosamente. Suas mãos hábeis tomaram posse da minha cintura com destreza. – Pronta para segunda parte do passeio? – E tem segunda parte? – Passei meus braços sobre seus ombros. Ele me envolveu num abraço empolgado. – Por mim teria terceira, quarta... Mas por hoje são apenas duas. Lucas embalou levemente meu corpo de um lado para outro, fazendo-me rir ligeiramente. Eram quase cinco horas da tarde quando voltamos ao estacionamento. Eu me distraí durante o caminho enquanto conversávamos sobre coisas alheias e ríamos a maior parte do tempo. Lucas dirigia despreocupado, como se aquele trajeto passasse batido. Tomei a liberdade de perguntar qual era nosso destino no fim das contas. Parecia que já estávamos perto. – Para casa. – Seus olhos me fitaram. – Para minha casa – completou com um largo sorriso estampado no rosto. Por um momento, não consegui dizer nenhuma palavra. Minha mente reproduziu a clássica música do Super Mario Bros, quando o jogador finalmente passa de fase. Ri internamente por segundos intermináveis. Quando realmente me preocupei em olhar os arredores, comecei a reconhecer aquelas ruas. Nós estávamos em La Jolla, bairro 390

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onde May morava com sua avó paterna antes de se mudar da cidade. O nível das casas começou a ficar alto, e Lucas prosseguiu devagar por uma avenida muito bem pavimentada e deserta. Devíamos ter entrado em algum condomínio residencial. Ruas se formavam à nossa frente e ziguezagueavam entre praças e belos campos. Tão ocupada com minhas observações costumeiras, demorei a perceber que Lucas estacionou seu carro junto a um espaço destinado a carro de visitantes. – Chegamos? – perguntei. – Vamos pelo caminho mais longo. – Ele destravou seu cinto, mergulhado num entusiasmo incomum. Fiz o mesmo e retirei-me. Um vento unificado cortou aquele espaço aberto, trazendo um aroma no ar, o qual não consegui reconhecer. Lucas já andava dois passos à frente de mim. Eu estava tão deslumbrada com a paisagem ao nosso redor que meu ritmo estava desacelerado. Quando ele percebeu, reduziu a velocidade para me acompanhar. Apoiou sua mão em meu ombro. – É tudo tão bonito. Deve ser triste passar por aqui todos os dias, não é?! – Meus olhos interessados correram pelo ambiente. – Você ainda não viu nada. – De repente, eu estava sendo guiada por sua mão, que segurava a minha. Caminhamos por uma pista que nos levou a uma trilha. Passamos por algumas árvores antes de chegar a um vasto campo repleto de flores amarelas. Reconheci aquele perfume. Era o mesmo que havia sentido anteriormente. Nós passamos a andar nos espaços entre elas. – Que flores são essas? – Deslumbrei-me novamente com a paisagem. Ele segurou minha mão com mais firmeza enquanto andávamos entre os punhados, até que parou e recolheu uma para mim. – É papoula da Califórnia. – São lindas. E olha que não sou daquelas que curtem flores. 391

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Ele riu, admitindo que aquele comportamento fosse previsível da minha parte. Lucas, da forma mais sutil possível, deslizou seu braço pela minha cintura e ficou à minha frente. Olhei-o, sem parar de sorrir. – Acho que nunca conheci uma garota que ficasse tão sexy envergonhada, assim como você. – Não estou envergonhada. – Uni as sobrancelhas, em tom de graça. – Você acha que consegue mentir com o rosto corado desse jeito? – Sua mão afagou meu rosto. Semicerrei os olhos. Por fim, mordi os lábios. Respirei profundamente, olhando para seus olhos, esperando-o. Mas não consegui prosseguir. Comecei a rir descontroladamente. Algo fazia cócegas nos meus pés e em minhas panturrilhas. Ele ficou assustado e liberou um espaço entre nós. Olhei para o chão e desvendei a procedência do incômodo. – Oh, meu Deus. – Agachei. – Você está perdido? – Recolhi um filhote de labrador caramelo. Ele se contorcia todo desengonçado e afobado. Lucas grunhiu, completamente frustrado. – Acho que alguém aqui não gosta de cachorros. – Eu puxei papo com o pequeno cão e encarei Lucas com tom de humor. – Você não sabe o quanto... – Lucas respondeu, passando a mão pelo rosto. Tentei desvendar se sua resposta havia sido irônica ou não. – Coitado de você. Está perdido, amiguinho? – Beijei o topo da cabeça do filhote. Ele tentava me lamber e balançava o rabo, possuído por uma alegria efervescente. Não demorou até eu ouvir chamados recorrentes. – Pepe! Onde você se escondeu, Pepe? – Houve uma pausa. – Pepe! Meus ouvidos se atentaram para a voz feminina que se aproximava. 392

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– Olha, só! Então seu nome é Pepe! Acho que encontramos sua dona. Os ombros de Lucas caíram, como um reflexo de puro desgosto, como se ele estivesse prevendo um desastre. Levantei a sobrancelha diante da situação. A garota se aproximou. Era branquela, magra, de cabelos escuros e levemente ondulados. Parecia mais velha. Possuía mais de vinte anos. – Obrigada por achar o Pepe! – agradeceu aliviada, mesmo sem identificar quem estava ali. Então, ao chegar mais perto, vi sua feição se resumir em total aborrecimento quando denotou a presença do Lucas e depois a minha. – Lucas... – Ela parou em sua posição, simplesmente boquiaberta. – Tudo bem, Michelly? – ele cinicamente a cumprimentou. Tudo fez sentido. Seria bom me livrar daquela inconveniência. Devolvi o cachorro ao chão. – Volte para sua dona, Pepe – ordenei baixinho para o filhote. Ele começou a latir, protestando. Agachei novamente e o coloquei mais à frente. Relutou, voltando para mim. Até que ficou estressado e passou a rosnar. – O que faz aqui, Lucas? – A tal moça cruzou seus braços, semicerrando seus olhos em pura raiva. Ihhh. Lavação de roupa suja agora não. – Nós já estávamos de saída. Acho bom você pegar seu cachorro e ir embora, Michelly – Lucas disparou. Ela o fuzilou ardentemente antes de rebaixar-se para recolher o pequeno Pepe. Como se não bastasse, o animal acabou ficando nervoso demais com a confusão e meteu uma dentada em minha mão. Gemi, exclamando uma dor suportável. – Acho que machucou. – Olhei para a fissura se abrindo, já me levantando. Pressionei o ferimento com a outra mão para deter o 393

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sangue. Michelly recolheu o filhote nos braços e nos encarou. Lucas olhou de relance para mim e percebeu que eu havia me ferido. – Holly, ele mordeu você? – É... Mas não foi nada. – Retirei a mão, apenas para garantir que era desnecessário se preocupar, mas o sangue voltou a escapar furiosamente. – Eu pelo menos acho – corrigi. Ele ficou exasperado. – Você tá doida? Precisa limpar isso. E agora! Vem, vamos para casa. – Ah, quanto vexame. – Fiz uma careta. Protestei sua preocupação e ele ficou impaciente. – Vou torcer para que o cachorro não seja tão venenoso quanto a dona – Lucas a afrontou. Michelly ficou furiosa, mas, antes de conseguir reagir, saímos rapidamente pelo campo e voltamos ao carro. – Deve ter água oxigenada em casa, enquanto isso fique pressionando – Lucas orientou ao encaixar a chave na ignição. – Ei, minha mãe é médica, esqueceu? Sei me virar sozinha. – Você se acha a fodona, não é? Que tal me deixar cuidar de você? Molhei os lábios, sem jeito. – Está bem. Nós chegamos à sua casa em um átimo. Lucas nem se deu ao trabalho de estacionar seu carro na garagem. Paramos na frente daquele sobrado de três pavimentos todo arquitetado em linhas modernas. Uma adrenalina saborosa me corrompeu ao entrarmos pela sala de estar. O ambiente térreo era espaçoso e decorado com muita simplicidade. Móveis claros e itens de decoração contemporânea compunham uma essência jovial. Lucas pediu para que eu o aguardasse no sofá. Não ousei questionar, mesmo não sabendo o que ele faria dali em diante. Sentei-me no grandioso estofado branco e olhei ao redor. Uma escadaria em madeira envelhecida dava acesso ao andar superior. Grandes janelas de vidro mostravam as residências vizinhas e os vastos campos do bairro. 394

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Tão envolvida com aqueles detalhes prestimosos, fui surpreendida por uma voz feminina que se deflagrou pelo ambiente. – Mas, meu filho, o que aconteceu? Onde está essa garota? Eu era a menina-desastre mesmo. A mãe dele estava em casa. A princípio, não os vi. Mas bastou levantar-me prontamente para dar tempo de vê-los se aproximando de onde eu estava. Sua mãe era uma senhora morena, com feições latinas e cabelos escuros completamente escorridos. Falava um inglês enrolado. Tomou um susto quando me viu, e eu também. – Ah, senhora Kennedy! Desculpe por... Ela se aproximou antes de eu terminar qualquer frase. – Ela machucou a mão? – Recolheu meu braço, sem tirar os olhos do filho. – É, o cachorro da Michelly fez um pequeno estrago – Lucas respondeu. – E você a deixou sozinha? – Seus olhos finalmente me olharam diretamente. – É preciso lavar, querida. Não conte com o Lucas para cuidar de ninguém. – Mãe... – ele tentou protestar. – Pode ficar quieto. Eu vou cuidar da moça. Eu ri confortavelmente para ele. Lucas apertou um dos olhos, fazendo uma cara feia. Chegamos à cozinha e ela colocou minha mão embaixo da água corrente da torneira da pia. A água se colorizou de um leve tom avermelhado ao passar pelo ferimento. Gemi em função do desconforto. – Isso é bom. Significa que está limpando. Lucas nos vigiava com preocupação. Senhora Kennedy voltou a falar em tom de repreensão. – Você deveria me avisar que traria uma moça para casa hoje, não é? Eu aprontaria alguma coisa. – Ela se abaixou, abrindo uma das gavetas do gabinete. – Lucas, alcança o estojo de primeiros 395

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socorros para mim? – Ela apontou para o armário mais alto sob a geladeira. – Não precisa se preocupar. Não queríamos incomodar – disse amavelmente. Ela riu, discordando. – Lucas nunca fez isso. Mas estava na hora, não é? Achei que você fosse me incomodar eternamente. Lucas não sabia onde enfiar a cara. Ele trouxe o estojo para perto, e sua mãe o abriu, recolhendo com destreza alguns frascos e terminando por esguichar água oxigenada sobre meu ferimento. Uma espuma branca substituiu o sangue. Segurei a dor. Ardeu torridamente. – É bom você tomar um anti-inflamatório. Vai ajudar na cicatrização. A mãe do Lucas limpou meu corte, borrifou um líquido laranja e depois o cobriu com um pó branco. Encheu de gaze e esparadrapo. – Agora sim. – Senhora Kennedy estava orgulhosa do curativo. – Minha mãe teria feito o mesmo – correspondi-lhe um olhar carinhoso de gratidão. – O que a gente não faz, não é minha filha? Mãe é mãe. – Ela olhou para mim e posicionou a mão em meu rosto. – Como você é bonita! Tem mais garotas assim como você onde o Lucas a encontrou? – Eu espero que não. – Ri ligeiramente e fitei o rosto atrevido do Lucas por um instante. Ele sorriu afetuosamente. – Chega de amolar a Holly, não é, mãe?! – ele tentou encurtar aquele diálogo fraternal. A senhora revirou os olhos, sem se importar. Ela estalou um comprimido da cartela de anti-inflamatórios em minha mão e repassou-me um copo d’água. – Fique à vontade, o remédio vai te dar um pouco de sono. Você pode descansar no sofá, se quiser. 396

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– Obrigada! – Sorri. – Lucas, vou sair com o seu pai. Vamos ao tio Jeff. – Suas mãos ágeis alcançaram a geladeira e logo recolheram algumas travessas da prateleira. – Você acredita que Jackie está grávida? Quero só ver quem arrancará os cabelos primeiro. – Ela riu como se imaginasse a cena. – Minha prima Jackie? – Lucas se surpreendeu. – Ela mesmo! Mas não se preocupe se demorarmos. Acho que ficaremos por lá essa noite. Cuide bem da menina, hein? – Oh, claro! – Lucas passou seu braço pelo meu ombro com desvelo. A senhora Kennedy beijou meu rosto e despediu-se apressadamente. – Como está se sentindo? – Lucas perguntou, já me guiando de volta à sala. – Muito bem! – Sorri diante de sua preocupação desnecessária. – Já passei por coisas bem piores. – Sentei-me despojadamente no sofá e dei dois tapinhas sobre o estofado para que ele se unisse a mim. Sem muito jeito, ele tentou reorganizar algumas almofadas para que eu me acomodasse com mais conforto. – Desiste, Lucas! – Puxei-o para mais perto, tendo um acesso de riso. Joguei o corpo sobre seu peito e o abracei, recuperando o fôlego. Seus braços me envolveram com intimidade em um abraço acalorado. Aninhei minha cabeça em seu ombro e respirei seu perfume peculiar. Sua respiração era densa e envolvente. Os últimos momentos passaram pela minha cabeça e eu não resisti a outro acesso incontrolável de riso. – Por que está rindo? – questionou confuso. – Aquela garota – finalizei uma boa gargalhada. – Achei que arrancaria sua cabeça. Ela estava furiosa! – Ri novamente, mas Lucas melindrou-se. Tentei contornar. – É mais uma delas? – perguntei, ficando séria. 397

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– Basicamente. – Ele terminou por responder sem nenhuma emoção. – Foi engraçado. – Ri suavemente. Lucas ficou quieto por breves segundos. – Sabe o que é engraçado? Suspendi os olhos para sua expressão sedutora. – Nós, assim, sozinhos nesta casa. Parece um déjà vu. – Seus lábios selaram meu rosto. Sem hesitar, repuxei seu lábio inferior, antecedendo um beijo pacato. – Vou fingir que você não mudou de assunto. – Sorri de olhos fechados, sussurrando sobre sua pele. Minha mão desceu lentamente pelo seu peito, alcançando sua barriga; mas algo dentro do bolso frontal de sua calça jeans vibrou, interrompendo nosso momento ousado. Arfei, completamente frustrada. – É meu celular. – Ele o retirou, atendendo a ligação rapidamente, sem se afastar do nosso abraço. – Fala. – Lucas foi ríspido. Algo referente ao teor daquela conversa o atormentou. Ele logo se afastou de mim, levantando-se preocupado. – Como assim agora? Não dá para subir depois? – Ele virou-se. – Droga. – Sua mão afagou a testa. – Tudo bem! Vou dar um jeito. Avisa que eu já estou a caminho. Endireitei-me, deixando as pernas sob os quadris. Um desejo doentio de bocejar me dominou e o fiz com gosto. – Ah, ok! Entendi. Eu vou pedir para retomarem o comando. – Ele recolheu as chaves do carro que estavam sobre a mesa de centro. Fiquei boquiaberta. E eu? Para sempre sozinha naquela casa? A ligação se finalizou. Suas mãos amassaram o rosto. Ele estava visivelmente tenso. – Você não parece muito bem – afirmei, mas ele não disse nada em resposta. – Quer que eu ligue para Rebecca vir me buscar? 398

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– Não, não! Você fica aqui. Vou ficar mais tranquilo. – Você vai demorar? – Acredito que não. Me espera? – Seus olhos me fitaram. – E eu tenho alternativa? – Deitei a cabeça sobre o encosto do sofá. Recebi um beijo na testa e vi Lucas partir. E aqui estamos. Tamborilei meus dedos sobre o braço do estofado. O silêncio da casa me causou uma aflição boa. Acabei por suspender as pernas e retirei o salto alto, relaxando os pés. Estiquei-me pelo sofá. Olhei aquela televisão enorme à minha frente e procurei pelo controle. Voltei à minha posição, ligando o televisor logo em seguida. Seja lá Deus o motivo daquela afobação toda, eu não havia achado nem um pouco normal. Era visível que algo tinha acontecido. Homens e segredos, quase uma regra instituída pela ONU. Zapeei e zapeei os canais. E de repente minha cabeça começou a pesar. Minha última lembrança foi olhar a hora. Cinco para as seis. Minha mente tratou de apagar antes que eu me concentrasse em qualquer outra coisa. O sono pesado me concebeu velhas imagens que se repetiram num sonho conturbado. Mas, desta vez, não passavam de sombras. E por incrível que parecesse, elas não me assustaram. Pareciam frágeis demais, distantes demais. Meramente insignificantes o suficiente para me fazer não temê-las. Ao retomar a consciência, senti que eu estava confortavelmente apoiada em algo rígido e quente. Abri os olhos devagar e suspirei. Senti aquele cheiro agradável de roupa nova. Relancei meu olhar até minha mão machucada, recaída sobre sua perna. Lucas havia chegado e eu nem percebi. Estávamos sentados ali no sofá. Seu braço contornava minha cintura e me deixava escorada junto do seu peito. Sorri. 399

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Sua respiração era suave. Ele havia adormecido ligeiramente. Alcancei sua mão, que repousava sobre minha perna, fazendo com que nossos dedos se entrelaçassem. Abracei-o com mais intensidade. Sua respiração se exaltou, despertando-o. Lucas olhou para mim, em estado de graça. – Está melhor? – perguntei. – Fiquei preocupada com o jeito que saiu daqui. – Bem melhor agora. – Seus lábios emolduraram um sorriso doce. – Não imagina como esperei voltar para casa. Fiquei com medo de deixá-la sozinha. – Medo que eu causasse algum desastre? – Ri alto. Mas, pela sua reação, claramente aquele não era o seu principal receio. – Boba. É que eu gosto de... proteger você. Gosto de pensar que está segura. – Bem, pelo menos agora a cidade toda pode falar que dormimos juntos. Literalmente. – Ri em tom de humor. Lucas riu alto, inesperadamente. –Você é incrível. – Selou-me um beijo na testa. – E o corte? Acho bom trocar essa gaze aí. – Lucas coçou seus olhos. – Vamos lá em cima, eu a levo ao banheiro. – Ele bocejou alto e em seguida deu dois toques em minha perna descoberta. Eu me levantei. Lucas não especificou exatamente para onde iríamos. No fim das contas, subimos as escadas e entramos na primeira porta do corredor. Era seu quarto. – Vou só conferir se meu banheiro está arrumado. Ri discretamente. Não muito diferente, o ambiente era grande. Havia uma cama de casal posicionada entre duas grandes portas de vidro que anunciavam uma varanda. O reflexo da luz da lua adentrava pelos vitrôs. Havia uma enorme estante embutida na parede lateral do quarto, com muitos CDs e livros. – Você tem todos os CDs do The Police. – Sorri, olhando para aquele acervo interessante. 400

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Ele voltou do banheiro, onde havia deixado a luz acesa, sendo a única iluminação oficial do espaço. – É, influência do meu pai. – E vejamos só! Blink-182! Só você e a Rebecca para adorarem esses caras. – Uma das únicas coisas que temos em comum, aliás – comentou. – Herança da nossa infância. Quer parar de enrolar e vamos lavar isso? – Quem disse que eu estou enrolando? – Segui para o banheiro e ele me acompanhou. Aproximei-me de uma cuba grande de cerâmica branca que estava sob um espelho retangular, abrindo a torneira. Retirei o curativo. A fissura do machucado estava completamente fechada. Um vergão contornava as extremidades do corte, somente. – Acho que não vai precisar fazer outro. Já cicatrizou – falei orgulhosa. – Isso faz parte dos seus superpoderes, é? – Olhou para mim incrédulo. Ri alto. – Sempre tive uma ótima saúde. – Deixei a água cair sobre o corte. – Dá para ver mesmo. – Lucas suspendeu as sobrancelhas, vigiando meu corpo discretamente. – Você me espera só um segundo? Vou verificar se eu travei meu carro. Acho que na correria esqueci. – Vai lá. – Sorri enquanto secava minha mão com uma toalha branca. Apaguei a luz. Já sozinha, retornei ao quarto. Coloquei uma de minhas mãos no bolso e amassei meus cabelos com a outra, pensando. Por fim, sentei-me na enorme cama. Um violão reluziu diante dos meus olhos. Estava encostada à lateral de uma estante. Recolhi-o sem hesitar e retornei a me sentar sobre o colchão. Encaixei o instrumento em meu colo, cruzando uma das pernas. Agora eu me lembrava do antigo violão que eu possuía quando morava em São Francisco. Havia anos que eu o deixara jogado em 401

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cima do armário, apenas tomando pó. E eu ao menos toquei uma última vez nele para me despedir. Não quis cogitar o fim que ele teria levado depois do evento. Comecei a deslizar a ponta dos meus dedos entre as cordas, fazendo algum som. Fechei os olhos, ouvindo aquela vibração harmoniosa. Forcei a memória, em busca de algumas notas que eu sempre soube de cor. Desafinei durante as primeiras tentativas, mas não demorou até que meus dedos conseguissem correr pelas casas com versatilidade, permitindo-me concluir uma série completa por duas vezes seguidas. Eu estava indo muito bem até ser surpreendida pela penumbra de alguém à espreita. Desafinei de repente. – Lucas. – Segurei a respiração. Ele estava recostado ao batente da porta, observando. Retomei o fôlego e me preparei para levantar e guardar o violão. – Me desculpe. – Ri ligeiramente. – Não resisti. – Não, continue tocando. – Seus olhos eram incentivadores. – Não, não. Estou sem prática. – Estava tocando muito bem até agora. Sorri acanhada. Ele me olhava interessado, quase implorando para que eu não parasse. Abaixei a cabeça. – Não vou conseguir tocar com você me olhando. Ele riu alto. – Por quê? Finge que eu não estou aqui. – Isso é quase impossível. Ele se aproximou devagar, puxando a cadeira giratória de sua escrivaninha para sentar-se à minha frente. – Vai. Feche os olhos. – Suas mãos repousaram sob meus joelhos. – Isso vai ser mais difícil do que eu pensava. – Ri, ao ajeitar o violão, preparando-me. Sua expressão lisonjeada me deixou um pouco apreensiva. Eu abaixei a cabeça e voltei a deslizar meus dedos pelas cordas. Sem sentir ou pensar, consegui tocar a introdução da música sem problemas. 402

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Já me preparando para o fim, molhei os lábios e diminui o ritmo. Sem resistir à tentação de observar suas reações, ergui os olhos para fitá-lo. Ele me analisava com uma pretensão de sorriso no rosto. As mãos ainda seguravam meus joelhos. Lucas se aproximou devagar, inclinando seu rosto para perto de mim. Não retirava seus olhos... dos meus. Era impossível me concentrar em qualquer outra coisa diante da aproximação ardente. Desci as pálpebras levemente e senti o calor de sua mão deslizar sobre minha perna. Meu coração palpitou agressivamente dentro do peito quando seus lábios tocaram meu ombro nu, meu pescoço, minha orelha. Ele os deslizou sensualmente pela minha bochecha e parou no canto da minha boca, como se aguardasse uma permissão. Desci o violão até o chão rapidamente e tomei seu rosto com as mãos. Alcancei sua nuca, dando-lhe um beijo avassalador. Finalizei mordiscando seu lábio inferior e sorrindo para sua expressão gulosa. Embalei um segundo beijo mais acelerado e deixei que minhas mãos caminhassem livremente por suas costas. Durante nosso beijo voraz, Lucas sentou-se na cama sem que eu percebesse. Tomou-me pelos braços e, do modo mais sutil possível, me suspendeu em seu colo. Agarrei as bordas de sua camiseta, erguendo-as para despi-lo. Passei minhas unhas de leve por toda extensão do seu braço. Lucas tomou minha cintura com suas mãos hábeis. Retirei minha blusa e trouxe seu corpo contra o meu, sugando o cheiro da sua pele. Ele voltou a beijar meu pescoço, fazendo-me erguer a cabeça. Os lábios quentes se resvalaram precisamente pelo meu colo. Seus dedos alcançaram o fecho do meu sutiã com exatidão, e Lucas aproveitou para acariciar a pele das minhas costas, deixando suas mãos subirem pelo meu ombro, afastando assim meus cabelos. Filha da mãe. Em determinado momento, uma de suas mãos descobriu uma das minhas maiores cicatrizes. Era uma profunda marca em minhas 403

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costas em que eu levei catorze pontos depois do incidente. Lembro-me de quando cacos de vidro perfuraram a pele ao me jogar automóvel afora durante minha fuga. Lucas voltou à mesma parte deformada, sentindo-a novamente. Os beijos cessaram. – O que você fez aqui? – perguntou. Sem acreditar que eu teria mesmo que responder àquela pergunta, acabei redarguindo com a maior frieza possível. – Foi inevitável não me machucar um pouco, não é?! – Ri, sombriamente, reaproximando-me dos seus lábios. – Você deveria ter visto o outro cara. – Sorri, mordendo o lábio e voltando a comprimir seu corpo contra o meu, na tentativa de desviar daquele assunto fúnebre. Lucas pareceu ficar desconfortável com a minha declaração. Seria hora de jogar pesado. – Vamos esquecer isso. – Levantei seu queixo e voltei a beijar seus lábios calmamente. Empurrei-o rapidamente, deitando-o sobre os travesseiros e ficando sobre seu corpo. Beijei sua barriga e deslizei meus dedos carinhosamente até o fecho de sua calça jeans, preparando-me para desabotoá-la. Mas não consegui. Lucas me deteve, como se quisesse dar continuidade aos beijos acalorados antes de partir para outro tipo de preliminar. Não entendi, mas não questionei. Apenas deixei que minha mão escorregasse até suas pernas e pudesse despi-lo da parte de baixo. Em vão, novamente. Decidi então começar por mim. Desci o zíper da minha saia jeans enquanto o deixava percorrer seus olhos por cada centímetro do meu corpo. Eu estava sobre seus quadris e terminei por me rebaixar, chegando à sua boca com um beijo sensual. Suas mãos pressionaram minha cintura e, em seguida, Lucas se ergueu num rompante, detendo-me com um abraço desesperado, antes mesmo que eu conseguisse continuar com o próximo passo. Sua respiração estava consternada. Ele inspirou a pele do meu ombro com tanta vontade que até me assustei. 404

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– Eu não posso fazer isso – murmurou entre ofegos conformados. Meus olhos se perderam, tentando achar uma solução. Arrisquei me soltar com delicadeza, mas seu abraço ainda me apreendia. – Lucas... – Tentei olhar para seu rosto. Ele diminuiu a intensidade do envolvimento, liberando-me. – Lucas! – Olhei para seu rosto, para seus olhos, mas não obtive correspondência. – O que eu fiz de errado? – Segurei seu rosto. – Você não fez nada de errado – bufou. Suas mãos amassaram o rosto, visivelmente derrotado. Balancei a cabeça, sem acreditar. Suas mãos afagaram meu rosto, numa tentativa de me consolar. – Você é perfeita... – Seus olhos se perderam em minha expressão. – Então, o que houve? – Meneei os olhos, aflita. – Fiz algo de que você não gostou? A gente pode tentar de outro jeito. Lucas continuou em silêncio, deixando-me mais aturdida. – Desse jeito eu vou me achar a razão do problema... – Tentei me afastar. Mas ele me puxou com força, detendo-me. – Não... – pestanejou. – Você não vai entender. – Eu não estou entendendo... Não é isso que você faz com todas as garotas? – ironizei. – Você não é qualquer uma dessas garotas, Holly. – As palavras foram ditas seriamente e de forma pausada. – E no que isso difere agora? – Recolhi-o pelas mãos novamente. – Lucas, por favor, você não sabe o quanto tenho fantasiado com isso... – Sorri por meros segundos. – Não me faça implorar... É ridículo – choraminguei. – Ei, não fale assim. E não me queria mal... Mas é que – ele engoliu em seco, fazendo uma pequena pausa – não posso simplesmente fazer isso com você, assim, sem que algumas coisas estejam esclarecidas entre nós. Vou estar sendo o cara mais imundo, aproveitando-me de você. 405

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– Então esclareça, querido. Você sabe que não precisa ter segredos comigo. – Fui amavelmente condescendente. – Eu não posso falar. Não aqui, não agora. Ri, com sarcasmo. Era um tipo de nervosismo evidente. – Por que diabos você está falando isso? Você pensa que eu sou uma garota idiota e iludida de dezesseis anos? Não venha querer bancar o falso moralista justo agora! – argumentei furiosa. Suas mãos seguraram meus braços, tentando me amansar. – Eu só achei que conseguiria ser mais forte para conseguir lidar com você e com... as nossas circunstâncias. – Lucas cuidadosamente passou a mão pelos meus cabelos. Deixou uma mecha atrás da minha orelha. – Essa foi a desculpa mais furada que eu já ouvi em toda a minha vida. – Levantei-me antes que pudesse me deter. Recolhi minha saia, meu sutiã e tentei encontrar minha blusa. – Eu sabia desde o começo! Você deve me enxergar apenas como uma garota legalzinha demais, bacaninha demais, mas que não passa disso! Lucas se preparou para me seguir, logo atrás. – Para mim chega! – Apontei o dedo para seu rosto. – Tô caindo fora. – Você não precisa ir agora. Alguém aqui está mandando você embora? – Não vou conseguir olhar para você nem mais um minuto, Lucas. – Vesti-me rapidamente, enfurecida. – Fique aqui, amanhã eu a levo cedo para casa. – Ele sentou-se na cama. – Para quê? Para dormir como sua irmã? Sua melhor amiguinha? Ah! Poupe-me. Não precisa nem me deixar em casa. – Você nem sabe onde está. Sabe que horas são? Eu levo você. – Não, eu ligo para a Rebecca. Lucas colocou-me contra a parede, seu corpo se impôs contra o meu. 406

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– Você ainda acha que eu a quero como uma irmã? – Seu dedo indicador recostou-se aos meus lábios, silenciando-me. Titubeei por um momento. – É uma pena não poder ler mentes nesse momento. – Abaixei a cabeça, nitidamente decepcionada. – Pode se afastar? – Resisti a tentação e agi com desdém. – Se você vai mesmo me encher o saco, pode me deixar em casa. – Agachei para recolher meus sapatos, colocando-os nos pés. Ele me deixou em casa, mas o evitei durante toda a viagem. Não deixei que trocássemos uma única palavra. Saí do carro sem me despedir, mas Lucas permaneceu parado até eu entrar pela portaria. Não olhei para trás.

* – Diga a verdade! – exigi em meio a uma discussão com Rebecca. Ela tentava me convencer com fundamentos levianos o fato de Lucas ter me rejeitado. – Holly! – ela rebateu imediatamente, censurando-me. – Ele tem pena de mim, é isso? Está sem coragem de simplesmente cair fora? – Ele gosta de você! – Parecia-lhe tão óbvio, mas para mim não fazia sentido. – Por favor, não me engane. – Uni as mãos à frente do rosto. – Você sabe que há algo por trás. Sempre soube. Por que não me conta? – implorei. – Não dificulte as coisas... – Dificultar? Eu só quero saber a verdade. Eu acho que é justo comigo. – E eu só estou tentando proteger você. Entenda isso. – Eu não quero que você me proteja! Não assim. – Uni as sobrancelhas, decepcionada pelo rumo daquela conversa. – Poxa vida, 407

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sempre a admirei tanto pela sua franqueza, pela sua sensibilidade. E agora você tem a coragem de mentir para mim? Eu não vou aceitar isso. Me desculpe. – Abaixei os olhos, já conformada em desistir de me acertar com minha melhor amiga. – Holly. – Ela tentou buscar minha mão. Eu recusei. – Se você tiver algo para falar... diga, mas diga por inteiro. E apenas a verdade. Eu não vou conseguir olhar para você e me sentir enganada. – Por favor, me entenda. – Rebecca, eu tô com tanto medo de dizer coisas horríveis e machucá-la. Vá embora. – Uma lágrima escorreu. – Por favor! Virei-me. Tudo seria mais fácil sem ter que olhar diretamente para os olhos dela. Só Deus sabe como me doía estar fazendo aquilo. Tudo se resumiu em silêncio, comprovando que ela havia seguido a minha ordem. E assim finalizou-se a nossa primeira briga. Eu não poderia aceitar o fato de minha melhor amiga estar omitindo coisas sobre algo tão sério. Isso não era nem um pouco leal, e muito menos verdadeiro. E eu não cederia até que me contasse toda a verdade.

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CAPÍTULO VINTE E TRÊS

a respiração amaldiçoada

Estar de relações cortadas com Rebecca era realmente torturante. Mas saber que ela escondia de mim fatos de meu interesse pesava muito mais do que a sua ausência em minha vida. Nós fomos obrigadas a participar das oficinas promovidas pela comissão de eventos da escola, mas isso não alterou nada. Nós não trocávamos uma única palavra sequer. Ela não correu atrás de mim e muito menos tomou a iniciativa para tentar esclarecer a situação, assim como uma boa amiga faria. Rebecca também tinha certeza de que, enquanto não abrisse o jogo, eu não cederia. Tudo isso só me garantia a gravidade do que ela estava me escondendo e não tinha coragem de me contar. Poderia ser paranoia, mas eu não tinha alternativa, uma vez que Lucas também havia sumido há cerca de duas semanas. Mesmo período em que eu e Rebecca já não nos falávamos. Eu continuava indo ao clube de tênis por conta própria, nos horários em que não corria o risco de cruzar com ela. Henrique não ousou se manifestar a favor ou contra ninguém. Aliás, nenhum de nossos amigos se posicionou diante da desavença, até porque ninguém sabia que o epicentro do caos era o Lucas. E, na verdade, alguns nem imaginavam que fosse verdade o boato de termos saído algumas vezes. Embora todos sentissem que nós duas estávamos distantes, eles nos respeitavam o suficiente para não nos inquirirem com mil perguntas. Naquela semana, descobrimos que o estande de comidas típicas de Miranda ficaria ao lado do nosso, onde venderíamos colares temáticos que serviriam de ingresso para o baile. Eu a vi várias vezes usando o laboratório de Arte durante os intervalos e, para meu espanto, Miranda sempre fazia questão de me olhar diretamente, 409

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mas agora não era o ódio habitual dos seus olhos que me alcançava, e sim um olhar de curiosidade, da mais serena possível. Talvez ela estivesse satisfeita demais com o fato de Lucas ter desaparecido da minha vida definitivamente. Só poderia ser isso. Leo e Seth agora eram inseparáveis. Ian e Jenny começaram a fazer parte do projeto de comunicação interativa da escola, em que passavam ainda mais tempo juntos, ajudando a assessoria do jornal da San Diego Hight School. Hailey ficava a maior parte do tempo sozinha, o que fez com que eu me aproximasse dela quase que totalmente. Apesar de não termos um histórico muito agradável, conviver com ela estava sendo fácil. Hailey era, a maior parte do tempo, muito reservada. Falava pouco, como se quisesse ser racional e coerente. A garota ainda estava fazendo uso de remédios para uma série de síndromes diagnosticadas, o que culminava totalmente para seu comportamento equilibrado. Certa noite, fui de bicicleta à sua casa no sul da cidade entregar grande parte do material que usaríamos no dia seguinte. Durante o trajeto, cismei que eu poderia estar sendo perseguida. Por diversas vezes, vislumbrei um carro antigo de lataria negra rondando minhas pedaladas. Eu quis afastar o medo, imaginando que aquela sensação não passava de pura alucinação da minha cabeça por fatores traumáticos. Voltei para casa com o coração sufocado. Na manhã seguinte, eu acordei apavorada por causa de um pesadelo recorrente e me senti péssima o resto do dia por duas razões. Uma, pela marca das lembranças que ficaram claras em minha mente e, outra, por não poder desabafar com quem sempre me ajudava com minhas aflições com um bom abraço. Estar sem Rebecca era de fato difícil. Eu já havia aceitado isso. Decidi a mim mesma que eu precisava arrumar novas tarefas, no intuito de amenizar a falta que ela me fazia. Não esperei muito tempo para colocar o plano em prática. Numa tarde ensolarada de maio, resolvi desencavar meu notebook 410

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danificado do armário e levá-lo a uma assistência técnica, apenas para tirar um orçamento e saber se valeria mais a pena comprar um novo. Arrumei-me rapidamente e recolhi meu skate. Eu sabia que poderia encontrar uma loja de manutenção de eletrônicos em alguma das dezenas de galerias que havia perto da minha casa. Acondicionei o aparelho em uma bolsa própria e parti pouco tempo depois com ele debaixo do braço. Eu adentrei a galeria Platinum e acabei me entretendo com algumas vitrines quase me esquecendo do que fui fazer lá. Distraída com tantas frivolidades, tive a sensação constrangedora de estar sendo observada. Uma certeza de que um par de olhos me seguia pelo ambiente brotou em minha mente. Mudei de setor e balancei a cabeça, desviando-me daquele comportamento psicótico recorrente. Subi para o segundo andar e logo avistei uma placa acima de uma loja estreita, onde anunciava que o estabelecimento consertava todos os tipos de dispositivos. Aproximei-me, mas não havia ninguém no balcão, e a porta de vidro estava trancada. Não havia nenhum aviso de “volto logo” ou algo do tipo. Frustrei-me por um momento, desistindo; mas a imagem de alguém à minha frente me fez perder o raciocínio automaticamente. – O que você está fazendo aqui? – Uma palpitação de desespero atingiu meu coração e foi tudo o que eu consegui dizer. Seus olhos cautelosos me analisaram com zelo, mas não disfarçavam um receio evidente. Mexi os lábios para objetar sua presença, mas fiquei em silêncio. Minha mente estancou diante daquela imagem extraordinariamente irresistível. Abaixei a cabeça, com medo de titubear. Engoli em seco. – O que você fez comigo há duas semanas não foi o bastante? Por que você voltou? – Semicerrei os olhos. Paradoxalmente, sua presença me causava efeitos bons e péssimos. E eu já havia decidido o que seria melhor. Não sofrer, de nenhum jeito. 411

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– Holly... Só me dê a oportunidade de lhe dizer algumas coisas... – Sua respiração falhou discretamente. – Olha, se é para vir com esses discursinhos apaziguadores como os da Rebecca, nem tente começar! Eu tô cansada! Seu corpo ficou a poucos centímetros do meu. Cruzei os braços e não revidei o olhar. Era difícil encará-lo diretamente. – Você não sabe como as coisas funcionam para mim. Quando eu lhe disse que precisava de um tempo para esclarecer as coisas... – Lucas recostou sua mão sobre meu braço, tentando me desafiar a olhá-lo – estava me referindo a nós. Têm coisas que me preocupam. Me sinto culpado só de pensar na possibilidade de decepcioná-la... Você é uma garota especial demais, diferente demais. Não quero perdê-la por estupidez minha. – Pois saiba que está prestes a conseguir isso – rebati confiante. Ele permaneceu em silêncio, e eu prossegui: – Parece que não é só a mim que meu passado resiste em assombrar. – Seu passado não é o problema. – Ele foi categórico. – Mas o que pode acontecer daqui para frente. – O quê? – Não compreendi. – Eu nunca quis decepcionar você. E não tenho direito de fazer isso. Demonstrei indiferença e ri diante do nervosismo momentâneo. – Rebecca realmente tem um poder muito grande sobre você, né? – confirmei. – Não é tanto por ela. – Ele riu, banalizando e se sentindo ligeiramente mais aliviado. – Mas por você. – Suas mãos recolheram meu rosto, repreendendo minha displicência. – Por tudo pelo que você passou. Não seria humano da minha parte fazer você sofrer mais ainda. – Eu sinceramente não entendo. – Permaneci absorta. – Não entendo aonde quer chegar. Tá, tudo bem... Aceitemos o fato do meu passado trágico, mas e daí? Qual é a relação com o que nós 412

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podemos viver daqui para frente? Tudo isso é pena? – Apertei um dos olhos, chegando numa questão que até então parecia ser a razão mais plausível para justificar aquele comportamento. – Você não precisa nutrir pena. Se fosse essa a minha intenção, eu daria uma longa entrevista à senhora Winfrey e deixaria a América sentir isso por mim. – Uma lágrima escorreu. – Holly... – Seus olhos se fecharam. – Eu estou sendo franca. – Fitei-o sem medo. – Você é um cara e eu sou uma garota que gosta de você, que sente atração por você. Que adora ficar ao seu lado. Ok, quer que eu confesse que conto os dias nos dedos até poder vê-lo de novo? Eu confesso. Mas você não imagina como me decepciona quando se esquiva, quando parece não se importar... – Minha voz embargou. Eu tinha medo de não estar conseguindo transmitir exatamente o que eu havia guardado dentro do peito para lhe dizer. – O que mais você quer de mim? – Aumentei o tom de voz, e, num rompante, suas mãos tomaram meu rosto, apenas para que lhe permitisse me tascar o maior beijo que alguém poderia ter me dado. – Por que você fez isso? – disse completamente ofegante, sorrindo devagar após seu beijo voraz. – Para provar que tudo isso que você sente tem importância para mim. E para dizer que é recíproco. – Seus lábios colaram aos meus novamente, embalando um beijo longo e quente. Senti minhas pernas enfraquecerem e ri, abobalhada pela sensação prazerosa. – Tem noção que você me amaldiçoou com a sua respiração? Eu estou completamente em suas mãos agora. Vangloriei-me diante da sua confissão sedutora e sorri. – Eu acho que o shopping inteiro deve estar olhando para nós agora – deduzi com humor. Lucas recompôs-se rapidamente, selando meu rosto com um beijo discreto. – Eu achei que você não fosse me perseguir mais. E, olha só, de volta onde tudo começou. 413

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– Não tive opção, não é? A bonitinha brigou com a minha principal fonte. Foi difícil localizar você. Achei perigoso fazer plantão na frente da sua escola. – Nem me fala da Rebecca... – Por um momento, meu coração se encheu de arrependimento. – Quer uma carona para casa? Quer dizer, nem sei se você tem outros planos para fazer agora, mas estou à disposição. – Ah, eu vim trazer, quer dizer... Tentar trazer meu notebook para consertar. – Apontei para a loja fechada atrás de nós. – Mas não dei sorte. – Então isso significa um sim para uma carona até em casa? Golpeei seu peito, com um sorriso de lado estampado no rosto. – Pode ser. Assim você não me escapa de responder a algumas perguntas. – Apertei um dos olhos, parecendo perigosa. Ele sorriu orgulhoso. – Quer ajuda? – ele disse, retirando do meu ombro a alça da bolsa do notebook. – O que aconteceu com ele? – Lucas perguntou, guiando-me para os elevadores mais próximos. – Com o aparelho? Ah, afoguei-o com um bom copo de refrigerante. Naquele dia... da lan house. – Entramos pelo elevador que já se encontrava no andar. – E você acha que vai conseguir consertar? – Ele apertou o botão do subsolo. – É, eu imagino que tenha dado perda total mesmo – lamentei. – Mas sabe como é, não desisto das coisas tão facilmente. – Sorri de lado. Lucas passou seu braço pelo meu ombro, dando-me um longo beijo no rosto. Era tão injusto quando eu estava ao seu lado. Eu simplesmente não conseguia colocá-lo na parede para que me falasse sobre todos aqueles segredos pertinentes. Era como se de repente fizesse sentido não saber, fizesse sentido não se importar com mais nada, além de me preocupar em aproveitar sua presença, afinal... Eu nunca sabia quanto tempo teria com ele. 414

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– Sã e salva – ele disse ao estacionar seu carro em frente ao prédio onde moro. – Obrigada! – E não sei se estou autorizado a falar isso, mas se quiser... passar um tempo comigo qualquer dia desses... mas só para um papo de amizade, sem pressão. Ri alto e descontraída. – Você sabe que eu não posso recusar. – Inclinei-me para beijá-lo. – Quando puder, é só me ligar. – Tentei alcançar seus lábios, mas ele me deteve. – E agora vem a parte chata – disse com seriedade. Não me movi. – Não é um pedido. É para o seu bem. Uni as sobrancelhas. – Rebecca – houve uma pausa – converse com ela. Interrompi-o revirando os olhos ligeiramente. – Ei. – Ele recolheu meu queixo. – Não me obrigue a fazer acordos com você. Sei que está sofrendo sem sua amiga. Vocês se amam. E você não imagina como ela também se culpa. Se não fizer isso por você, faça por mim. Tudo bem? Seus lábios então finalmente me puxaram para um beijo envolvente. – Tudo bem! Eu vou tentar. – Recolhi meu skate e meu notebook. – Até mais! Retirei-me, acenando. Mamãe ainda não havia chegado do trabalho. Devolvi meu notebook para o mesmo lugar no armário e guardei meu skate atrás da porta. Eu só conseguia me sentir indefinida. Lucas tinha voltado, tudo bem. Mas até quando? Ainda assim, eu continuava na estaca zero. Ainda me sentia enganada. Ainda não via fazer sentido nada daquilo que ele havia me falado. Por que Lucas se preocupava tanto com algo que só diz respeito a mim? Indo mais a fundo, eu não deixava de considerar a possibilidade. Ligando os 415

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pontos, todas as vezes em que deixei o assunto se manifestar entre nossas conversas e momentos, Lucas automaticamente transmutava. Assim como na primeira vez em que saímos, em que vi seu semblante se resumir a torpor e arrependimento ao tocar no nome do Forrest. Quando estávamos na praia e seus olhos captaram certa indisposição minha e quando ele sentiu minha cicatriz naquela fatídica noite. Não fazia sentido, uma vez que eu não sabia o que realmente existia por trás daquelas atitudes, mas eu não poderia avaliar como um fato isolado. Eu só sei que quando eu fechava os olhos e buscava pensar em coisas que me deixassem feliz, minha mente projetava seu rosto, sua risada, seu abraço. Não sei se isso poderia ser chamado de paixão, ou simplesmente de... amor. Eu sinceramente nunca me saciava de sua presença, nunca cansava de ouvir sua voz ou de apenas olhá-lo, mesmo que não nos beijássemos ou não dormíssemos juntos. Talvez esse pudesse ser um bom começo. O dia seguinte seria mais uma quinta-feira comum. Eu teria as últimas aulas de Educação Física no ginásio principal. Entre um intervalo e outro durante as partidas de vôlei, sentei-me com Ian e Leo na arquibancada. Discutíamos sobre o desempenho desengonçado de algumas colegas, sem parar de rir. – Ela acha que pega alguma bola assim? – Ian zombou alto para que a menina ouvisse. – Ei, Ginger, isso não é um testículo! – Ian! – censurei-o rapidamente, ficando vermelha de tanto rir. Leo também não se conteve. – E aí, Seth? – cumprimentei-o ao perceber que ele se aproximava. – Quase não o vejo mais. Estou até fazendo as vezes como namorado da Hailey. Os meninos riram. – É sério, você tem deixado ela muito sozinha – falei diante do seu silêncio repentino. Ele pareceu se constranger com minha repreensão. 416

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– Tem razão. Mas sei que ela está em boas mãos – Seth disse, sem outra saída. Pisquei, tentando lhe tranquilizar. Era quase que telepatia. Dado instante, eu senti que alguém em especial me olhava furtivamente. Rebecca passava lentamente do outro lado da quadra sem tirar os olhos de mim, embora ela não quisesse demonstrar que me olhava tão diretamente. Um segundo foi suficiente para minha percepção despertar. Alguém havia me dito para tentar uma reconciliação e ela aguardava por isso. O sinal ecoou alto, antes mesmo que eu conseguisse guardar meus pertences junto aos armários do vestiário. No caminho para a saída, alguém clamou pelo meu nome. E, pelo tom daquela voz feminina, parecia ligeiramente aturdida. Não quis acreditar ao identificar a procedência do chamado. – Miranda? – Permaneci à frente da sua presença, confusa. Seus olhos pareciam aflitos diante de um fator desconhecido. Era só o que me faltava. Eu não estava a fim de brigar com ninguém. Não hoje. – Você não vai embora sozinha, né? Olhei ao redor, pasma pelo questionamento inútil. – Tem algum problema se eu for? – Aproximei-me, impondo-me. – Vai de carona com a Rebecca. – Ela deu de ombros, sorrindo. Vadia! Ela só poderia estar querendo tripudiar. – Para sua informação, eu não preciso dela. Satisfeita? – Dei meia-volta. – Não, não... Não! Espera! – Ela riu sem jeito. – Preciso falar com você. – O que você quer? – Voltei a encará-la. – É que... – Ela revirou os olhos, como se caçasse algum assunto em mente. Tudo estava muito estranho. – Ei, olha, é a Rebecca! – Miranda a avistou instantaneamente e pareceu aliviar-se. – Rebecca! 417

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– Ela acenou para que sua inimiga se aproximasse. E, assim como eu, Becky não entendeu absolutamente nada. – Leva essa garota para casa? Você tá de carro hoje, não está? Rebecca atordoada e sem acreditar no que estava ouvindo não soube expressar nenhuma reação. – Eu não tô precisando de carona de ninguém – repeti impaciente. – Não! Você vai. Rebecca, ponha essa garota no carro – Miranda rogou com os olhos repletos de desespero. Por um minuto, senti que as duas conversaram em silêncio apenas pelo olhar, bem à minha frente. – Mas que droga está acontecendo aqui? – Revoltei-me. – Holly, vem comigo – Rebecca então ordenou sem hesitar. – Eu não quero. – Cala a boca, Holly! – ela gritou comigo, lívida de qualquer sentimento de compreensão. Fitei Miranda, tentando captar o significado daquela palhaçada. – Não é seguro você sair sozinha hoje, Holly. É só o que eu posso falar. Sem dizer uma única palavra, segui com Rebecca até o estacionamento da escola. As mãos tensas ao volante e um chiclete que rolava de um lado para outro em sua boca denunciavam sua apreensão. Nós parecíamos duas estranhas dentro daquele automóvel. Eu mal sabia para onde ela estava me levando. – Ainda não acredito que você me mandou calar a boca – protestei, tentando dar início a um diálogo, mas Rebecca não cooperou. – Você gritou comigo! – prossegui e ela continuou como se simplesmente não tivesse ouvido nada. Suspirei alto e levei minha mão até o interruptor para abrir a janela. – Não abra a janela – Chamou a minha atenção num rompante. 418

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Rebecca conduzia seu carro por ruas desconhecidas, como se estivesse traçando rotas alternativas. Olhava o retrovisor de instante em instante e acelerava à medida que carros passavam por nós. – O que significa tudo isso? – indaguei-a de imediato ao colocar meus pés em sua casa e vê-la fechar a porta. – Você não vai encher minha cabeça de palavras reconfortantes justo agora! – Holly! Se toca! A questão é bem mais séria. – Ah, agora me esconder as coisas tem outro nome? Rebecca passou por mim, aproximando-se do sofá para arrumar as almofadas que Luke tirou do lugar, ignorando-me por um momento. – Você quer a verdade? – Sentou-se ao sofá, refestelando-se com um tom de ultraje nos olhos. Respirei fundo, absorvendo seu olhar desafiador. – Vamos, o que quer saber primeiro? – provocou-me. Hesitei diante de inúmeras perguntas prontamente formuladas. Aproximei-me, reunindo coragem dentro do peito. – O que acabou de acontecer? Miranda jamais falaria comigo daquele jeito se não fosse algo muito, mas muito sério. – Realmente foi uma atitude muito nobre. Não esperava isso daquela vadia. – Sem devaneios, Rebecca. – Forrest está na cidade. – Ela lançou as palavras enquanto se levantava. – Alguém assoprou no ouvido daquele filho da puta que há uma garota loira e que por acaso se chama Holly Armstrong rondando pela região. – Seus pés caminharam de um lado para outro, afligindo-me ainda mais. Ela parou à minha frente. – Ele pediu que alguns de seus colegas confirmassem o boato. – Você não está falando sério. – Não senti o ar preencher meus pulmões. – Nunca notou nenhum carro seguindo você, nenhuma movimentação suspeita? 419

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Engoli em seco. – Já deve ter percebido – concluiu diante do meu silêncio. Imagens fúnebres e apavorantes dançaram por detrás dos meus olhos e um pânico inflamou meu peito. Eu quis chorar. – Mas isso não é tudo. – Uma lágrima finalmente escorreu ao olhar para seu rosto beligerante. – O que há entre você e o Lucas? Na verdade, por que ele se comporta assim? Ele tem pena de mim? Há outra garota na parada? – Senta, Holly. – Sua voz se amainou a partir de então. – Independentemente do que você vai ouvir e de como tenhamos nos tratado nos últimos dias, eu tô aqui para apoiá-la. – Suas mãos recolheram meus ombros, guiando-me para que eu sentasse na poltrona. Ela agachou à minha frente e colocou meus cabelos para trás da orelha com desvelo. – Talvez o que eu vá dizer agora você já saiba, ou ainda não teve coragem de admitir para si mesma. – Seus olhos eram pacíficos e acalentadores. – Lucas conhece o Forrest, há muitos anos – disse cautelosamente. – Na verdade, eles sempre foram melhores amigos, até um tempo atrás. Meu coração palpitou agressivamente dentro do peito, até doer de forma lancinante. – Como você pôde me esconder isso? – Parti a chorar copiosamente. Doía saber que aquele fato, por mais absurdo e bárbaro que fosse, fazia sentido. – Eu não cogitei que vocês chegassem tão longe... – Rebecca tentou se explicar. – Quer dizer, até pensei na possibilidade, mas Lucas me implorou para que eu não lhe contasse. Suas explicações não ajudaram muito. Eu continuei a soluçar. – Sabe por quê? – Suas mãos me recolheram com presteza. – Porque ele tinha medo de afligir você; de perder você. Medo que isso a levasse a enxergá-lo com outros olhos. Porque mesmo os dois sendo tão próximos, são pessoas completamente diferentes. Lucas tinha medo que você o associasse a ele. 420

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– Até quando eles foram amigos? – Arfei, buscando respirar melhor. – Até Lucas descobrir quem era Holly Armstrong. Olhei para cima, tentando despistar as lágrimas. – É horrível ter que admitir, mas isso explica tanta coisa... – Rebecca secou minhas lágrimas. – Agora eu entendo. Ele se sentia mal por ter que esconder isso de mim, por medo que eu o rejeitasse. Mas... como Miranda sabia sobre... Forrest... Sobre mim? – Terminei de enxugar as lágrimas. – A cidade é pequena. Mas não se preocupe com isso agora. Eu quero que saiba que durante todo esse tempo, minha amiga... – Rebecca voltou a alisar meus cabelos com cuidado – Lucas apenas quis construir uma boa imagem para que você soubesse que os dois são pessoas completamente diferentes. Ele nunca quis decepcionar você, por medo da sua reação quando descobrisse a verdade. Porque por mais que você pudesse ficar chateada, surpresa e indignada, pelo menos não se sentiria usada, traída. Apenas guardaria boas lembranças de alguém que se importou, que se preocupou com você, que lhe respeitou o tempo todo. Suas palavras me atingiram profundamente. – Estou me sentindo tão mesquinha neste momento. – Desabei. – Como eu pude ser tão estúpida de não enxergar isso. – Solucei. Rebecca me abraçou fortemente. – Me perdoe, por favor. – implorei. – É claro que sim. – Senti seus braços me envolverem fraternalmente. – Às vezes o amor nos assusta, minha querida. – Meu Deus... Eu achei que nunca mais poderia correr o risco novamente. Não vou aguentar passar por mais uma tragédia... – balbuciei entre lágrimas diante do nervosismo. – Não quero perder outra chance de ser feliz. – Não se preocupe! – Suas mãos recolheram meu rosto. – Vamos proteger você. 421

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– Como pode ter tanta certeza? – Funguei alto. – Lucas está monitorando os passos de Forrest. Ninguém melhor para saber os planos dele do que um falso melhor amigo. Ele não sabe que vocês dois estão juntos. Vamos despistá-lo, até porque Forrest está praticamente sozinho nessa. E, sendo um fugitivo procurado em todos os cantos do mundo, ele não pode simplesmente dar as caras assim, livremente. Confia em mim? Analisei seu rosto complacente através das lágrimas. Sorri verdadeiramente. Eu não poderia me sentir mais segura. De repente, minha consciência titubeou, cogitando que tudo aquilo não passava de loucura. Mas, dentro de mim, eu só conseguia me sentir invadida por uma felicidade desconhecida. Saber de toda a verdade só me fortaleceu. E me fez gostar ainda mais do Lucas. Chorei durante longos minutos nos braços da minha melhor amiga, sem me importar com mais nada. Como era bom sentir-me acalentada novamente.

* Depois daquela conversa reveladora, decidimos adotar algumas medidas necessárias para a segurança de todos nós. Agora, eu não iria nem voltaria para a escola sozinha. Mamãe estranhou que nos dois dias seguintes eu dormi na Rebecca. E essa foi outra questão pela qual decidimos não nos estendermos com ela. Seria muito complexo para que entendesse tantas coisas de uma vez só. Lucas voltou à cidade depois de passar o fim de semana fora durante suas viagens misteriosas. Ele me esperava em uma das saídas menos movimentada da escola para me buscar, logo no fim da tarde de segunda-feira. Como só faltava uma semana para o baile, eu e as garotas ficamos até o começo do anoitecer trabalhando nos preparativos. É claro que eu já havia feito um acordo com Rebecca. E eu garanti que não colocaria Lucas contra a parede para saber mais coisas que não fossem pertinentes ao nosso relacionamento. 422

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Desconfiança é algo que machuca as pessoas. Apenas viva com a certeza de que ele fará tudo para protegê-la e para fazê-la feliz. Isso já é o bastante. E eu segui piamente sua determinação. Lucas me recebeu com seu sorriso saboroso habitual. Ele não imaginava que eu já soubesse de toda a verdade. Foi impossível não olhá-lo de outro jeito. Agora eu me surpreendia constantemente e me lisonjeava com cada olhar carinhoso, cada gesto atencioso seu. E, em alguns momentos, era difícil de acreditar que um cara como ele pudesse estar sacrificando tantas coisas apenas por gostar verdadeiramente de mim. – Tenho um presente para você – ele falou com ares entusiasmados enquanto conduzia o carro pelos caminhos que levavam até a sua casa. Estávamos perto. – Um skate novo? – Supus. Lucas caiu na gargalhada. – Quase isso. – Uma prancha de surfe! – conclui confiante. Ele riu novamente. – Também não... Mas sabe que seria uma boa ideia? Arregalei os olhos discretamente enquanto Lucas estacionou junto à garagem. – Só espero que não sejam flores. Não gosto muito de flores. – Nós saímos do automóvel e Lucas riu sem censuras. – Não tem nada a ver com flores. Garanto! – Ele bateu a porta, trancando. Peguei minha mochila e fiz o mesmo. – É um cachorro de verdade? Eu sempre quis ter um cachorro – disse ao acompanhá-lo pela sala de estar. – Não! Você não acha que chega de cachorros? Quero você inteira. Fiz uma careta desapontada enquanto subíamos as escadas. Lucas me guiou até o seu quarto. Ele abriu a porta e acendeu a luz, esperando que eu notasse de primeira. Havia uma caixa de papelão decorada sobre sua cama. 423

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– Oh, uma caixa. Que ótimo! Ele riu incrédulo, já se aproximando do embrulho colorido. – É lógico que não é a caixa, garota. O presente está dentro. – Ele a segurou nos braços. – Vamos, abra. – Oh, meu Deus. Eu tenho medo dessas coisas. – Cocei a cabeça. Levantei a aba superior, segui para a inferior e, ao inclinar a cabeça para observar o conteúdo, notei várias minibolas de isopor protegendo algo. Afastei-as para desvendar. Havia outra caixa com letras fluorescentes e várias etiquetas. Eu apostaria que fosse algum produto novo. Impressionei-me quando vi o logo de uma marca famosa de itens tecnológicos estampado na caixa menor. – Eu não acredito, Lucas. – Olhei para seu rosto satisfeito. – É um notebook! – Bom, como foi graças ao seu velho computador que eu consegui perseguir você pela primeira vez, achei certo lhe dar outro. Agora você vai sempre se lembrar de refrigerante de laranja... E de mim. – Ah... – Derreti os olhos, mordendo os lábios ao fitá-lo com satisfação. – Você é louco! – Tirei a caixa e analisei o desenho ilustrativo da embalagem. Era um modelo tão recente que eu ainda nem conhecia. – E ainda gravei um monte de música nele para você, de brinde. Ri alto, exalando felicidade. Devolvi o embrulho na cama e o abracei voluntariamente. – Posso lhe dar um beijo? – Fitei seus olhos briosos. – É claro que... Não o deixei terminar. Silenciei-o com meus lábios num beijo acalorado. – Obrigada – sussurrei, sem tirar os olhos da sua expressão gulosa. – Vou pedir algo para gente comer, o que acha? – Lucas limpou a garganta, recompondo-se. Sorri, aquiescendo, conformada com sua reação conservadora. 424

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Lucas pediu comida chinesa, e nós nos sentamos em sua cama despojadamente, sem qualquer preocupação com regras de etiqueta e educação. Nós comíamos uma boa porção de yakisoba entre conversas e risadas. – Já sei! Vamos fazer um jogo. Eu pergunto, você responde. Depois você pergunta e eu respondo. O que acha? – Tá. Mas você começa. Não sou muito criativa para essas coisas. Lucas riu diante da minha humildade. – Não! Você que tem que começar. – Ok... Vou arrumar essa bagunça aqui. Assim vou pensando. – Recolhi as embalagens vazias de comida e fui até o banheiro despejá-las no lixo. Quando voltei, Lucas esticou suas pernas pela cama e recostou-se a um travesseiro escorado à cabeceira. Deitei as costas sob a cama, ficando ao seu lado. Cacei em minha mente algo interessante para perguntar. – Já sei! – Rolei o corpo, ficando de bruços. Ergui a cabeça para encará-lo. – Onde quer estar daqui a cinco anos? – Apertei os olhos, intuitiva. – Olha só, boa pergunta para quem não é criativa. – Ele levantou os braços, deixando as mãos apoiarem a cabeça. Pensou. – Bom, se você me fizesse a mesma pergunta há uns dois meses, eu responderia diferente. –Ah, é? E o que você diria? –Eu diria que... Gostaria de estar vivo daqui a cinco anos. Arregalei os olhos, impressionada. – Isso não é um pouco macabro? – Pode ser. Mas a gente nunca sabe o dia de amanhã, não é? – Hmmm. E agora? Onde quer estar daqui a cinco anos? Ele suspirou profundamente. – Hoje... Eu só quero estar feliz daqui a cinco anos. Não importa onde nem como. Só isso. 425

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– Grande resposta. Acho que eu também responderia a mesma coisa. – Sorri afetuosamente. – Agora é sua vez de perguntar! – Ok! Ahn... Um ano que você viveria de novo. – Um ano que eu viveria de novo... – repeti a pergunta com a mente distante. O questionamento deu impulso para minhas mais profundas lembranças. Rolei de volta, ficando de barriga para cima. Em todos os cantos da minha consciência, apenas uma época parecia ter importância. – Hmmm. Dois mil e oito. – Dois mil e oito? Mesmo? – Lucas desceu as costas, ficando ao meu lado. Seus olhos queriam me ver de perto. – Eu sei que parece estranho. – Meu sorriso esfriou. – Mas é que eu adoraria aproveitar meu último ano naquela cidade. Aproveitar cada pessoa que eu deixei para trás. A gente nunca sabe quanto tempo vai ter com as pessoas de que gosta. – Meus olhos se aqueceram por um ligeiro momento. Senti sua mão alcançar a minha com intimidade. Sorri diante do gesto. – Me desculpe. – Não tem nada do que se desculpar. Vem, deita aqui. – Lucas puxou-me para o seu peito. Eu respirei o cheiro do seu corpo e terminei por fechar os olhos, indescritivelmente agraciada pela sensação prazerosa de estar ao seu lado. – Isso só prova o quanto você é corajosa. – Ele riu. – Mas vamos pensar que... Agora é a sua vez de perguntar novamente. Ri sinceramente, impedindo de me sentir invadida por uma onda de tristeza, dando continuidade à brincadeira. As conversas se alongaram pela noite, até que nós dois acabamos por adormecer levemente. Acordei com a sensação maravilhosa de sentir o calor dos seus braços à minha volta. Respirei ruidosamente, despertando-me por completo. Minha mão envolvia sua cintura e eu aproveitei para abraçá-lo com mais força. O céu lá fora já perdia seus tons escuros, dando vida aos tons amanhecidos de um novo dia. 426

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Lucas relampejou seus olhos para mim, sorrindo em seguida. – Agora todos podem falar que eu dormi com Lucas Kennedy. E mais de uma vez. – Ri alto, fazendo graça. Lucas riu, como se não tivesse alternativa. Seus lábios selaram minha bochecha. – Sabe o que eu estava pensando? – Instiguei-o. – Acho que não posso aceitar seu presente. – Como assim? – Seu rosto vigiou-me preocupado. – Vai ser um problema ter que contar para minha mãe. – Ué, diga que eu lhe dei – disse sem receios. Eu gargalhei, imaginando o desastre. Lucas encarou-me desconfiado, apenas ligando os pontos. – Por acaso você já falou de mim para ela? – Não – confessei debilmente. – Então todas as vezes que saiu comigo... foi escondido? – concluiu. Fiz uma careta, confirmando sua afirmação. – Holly... – Lucas repreendeu-me. – Sei que é péssimo, eu sei. Mas... eu não sabia se isso teria muito futuro, então... – admiti. – É... você é mais perigosa do que eu pensava. Mas acho que posso lidar com isso. – Ele meneou a cabeça. – Diga a sua mãe que ela vai receber uma visita. Fiquei boquiaberta. Não acreditei no que estava ouvindo. – Qual é o problema? – Tá falando sério? – É claro?! – Ele pareceu não compreender meu inconformismo. – Você não acha que tenho direito de conhecê-la e vice-versa? – Não é essa a questão, querido. É que... Não precisa se obrigar a fazer isso. Não quero que se sinta pressionado. – Eu estou me propondo voluntariamente, não estou? – Sua mão afagou meu rosto. – Não quero de forma alguma deixá-la numa situação difícil. 427

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– Tudo bem. Só me deixe falar com ela antes, para amenizar o susto. – Você acha que precisarei de um colete à prova de balas? – Claro que não! – Ri alto. – Minha mãe é muito aberta. Não precisa se preocupar com isso. Vai ter tempo suficiente para se preparar. Privilégio que não tive, não é?! Fiquei um pouco assustada ao ver sua mãe, assim de repente. – Por quê? – Lucas riu, incrédulo. – Ah, eu não queria que ela tivesse uma primeira impressão ruim. Sabe como é, todas as mães têm expectativas para a vida dos filhos. Isso não seria diferente com as pessoas que a gente escolhe. – Você nem precisou fazer força para que ela gostasse de você. – Será? – Ergui uma das sobrancelhas. Lucas afagou meu rosto, confirmando. – Meu pai que não aguenta mais esse mistério. – Ah, ele já deve estar cansado de ouvir você falar tanto de mim. – Supus. – Não só eu. – Oh, Deus. – Tampei o rosto. – Você fica tão encantadora preocupada! Calma, depois que ele chegar da viagem eu o apresento pessoalmente. – Viagem? – É... Ele está abrindo uma filial no Brasil, por isso está fora por uns tempos. – Hmmm. Terei um tempinho para me preparar emocionalmente, então. – Abracei-o com mais intensidade. Lucas fez o mesmo. – Está amanhecendo – disse ao ver um suave feixe de luz matinal adentrar pelo dormitório. – Você tem algo mais interessante para fazer do que ficar aqui comigo? – Sabe que não? – Mordi os lábios, olhando-o tendenciosamente. – A gente podia voltar com as perguntas e respostas. 428

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– Ah, é? Então eu começo – Lucas propôs. – Sob uma condição. Faça perguntas interessantes. – Revirei os olhos. – Você já sabe que eu adoro bife à parmegiana e que dei meu primeiro beijo aos onze. – Ah... Quer perguntas mais interessantes? Então me diga um fetiche seu – Lucas disse sem delongas, desmontando-me. Ri alto. – Acho que meu maior fetiche é fazer amor com alguém que me pergunta qual é o meu fetiche... Ele riu desmontado diante da minha franqueza e partiu a encher meu rosto de beijos. Eu ri satisfeita. – Não sei por que você tem tanto medo. Não vou fazer nada que você não queira – falei, fazendo graça. Lucas não resistiu e gargalhou com gosto, abraçando-me em seguida. E eu nunca tinha parado para pensar no quanto poderia ser prazeroso passar horas sob uma cama, apenas jogando conversa fora e rindo interminavelmente. E ao lado de alguém especial que sabia exatamente como fazer todos os meus anseios e traumas perderem a importância.

* – Quer saber de uma coisa que estou morrendo de curiosidade em descobrir? Rebecca riu ao ouvir meu comentário. Ela vasculhava uma arara de vestidos. Nós fomos até uma loja no centro da cidade para comprarmos os trajes para o baile. O evento ocorreria na noite seguinte. – Até imagino o que seja – ela disse entre dentes, meramente entediada. – Você até agora não me revelou quem será seu par. Até achei que levaria o Henrique, mas aí resolvemos que ele me acompanharia. Estou confusa. 429

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Por um ligeiro instante, vi o rosto da minha melhor amiga se ruborizar suavemente. Ela sorriu, acanhada com a pergunta. – É o Tyler – revelou encabulada. – Ah! – Estalei os dedos, acabando com o mistério. – Bem que o Lucas me contou sobre o lance esquisito de vocês. Achei que vocês fossem só amigos. – Mas nós somos. – Ela riu alto. – Tyler é um amigo para todas as horas. – Cutucou-me. – Se é que me entende. – Finalizou o comentário com uma piscadela. Eu gargalhei, desmontada pela sua franqueza. Rebecca prosseguiu: – E depois... Henrique dança muito mal. – Fez uma careta. – Só agora você me diz isso? – Parei de caçar os vestidos e a encarei. – Você que o convidou. Boa sorte! – Eu não tinha muita opção, não é?! – Levei minhas mãos de volta à arara. – Até Leo descolou uma acompanhante. – Uma? Achei que o Seth fosse a acompanhante – Rebecca debochou. – Chega, garota – censurei-a, rindo. Mas eu sabia que a hipótese não era improvável. – Você sabe quem eu realmente queria comigo naquele baile. – Claro que sei. – Ela sorriu. – Lucas só precisou ficar fora por uns tempos. Ele vai voltar. – Ele sempre volta – afirmei confiante. – Acho que vou ficar com esse. Gostou? – Rebecca posicionou um vestido roxo sem alças à frente do corpo. – É perfeito. – Sorri, aprovando sua escolha. A noite da última sexta-feira de maio caiu pela cidade, trazendo a brisa quente do fim da primavera. Um céu estrelado embelezava o horizonte, dando vida a um auspicioso e agradável cenário. Mamãe me deu uma carona até a casa da minha melhor amiga. De lá, 430

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seguimos para a San Diego High School. A frente monótona e cinza da instituição estava embelezada por cartazes coloridos e adornos festivos. Horas antes, toda a minha turma havia se reunido para organizar as barracas temáticas no ginásio principal. Uma banda de alguns garotos do segundo ano tocava músicas conhecidas sobre o palco, animando o ambiente que se enchia gradualmente. Avistei Hailey e a recebi com um abraço acalorado. – Você está linda! – elogiei assim que a vi perfeitamente produzida em um vestido creme com ilhoses cintilantes. – Vocês também! – Ela parecia satisfeita. – Já viram como nossa barraca é a mais disputada? Estão adorando os colares – falou orgulhosa. – É melhor a gente ir ajudar. Logo, logo isso aqui vai ficar impossível – Rebecca quase que gritou, em razão do volume estridente da música ambiente. O estande de comidas típicas estava bem ao lado do nosso. Miranda também estava radiante em um longo vestido vermelho. Sua mãe, nossa professora de Espanhol, a auxiliava com os pedidos. Professora Malasartes nos cumprimentou, vangloriada. Aquele seu jeito durão parecia só se efetivar quando ela estava em sala de aula. Mike e Jodi deram as caras logo depois. Os dois pareciam possuídos por uma animação particular. O garoto excêntrico estava muito bem-apresentado num terno requintado. E Jodi estava linda em seu vestido justo verde-limão. – Vocês querem alguma ajuda? – ofereceram-se. – Por enquanto não. O resto dos meninos já chegaram? – Rebecca quis saber enquanto dava o troco para uma mãe jovem com a filha no colo. – Ah, Ian e Jenny estão cobrindo o evento lá fora, mas eles estão mais brincando de entrevistar os professores. E você nem vai acreditar! Chris descolou a maior gata. Ela nem estuda aqui – Mike respondeu. Nós ficamos boquiabertas. Chris era um cara muito discreto. 431

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Jodi confirmou o fato diante da nossa expressão surpresa. – É sério! Leo também já chegou com a Amanda – ela completou entediada. – Você conhece essa garota? – perguntei. – É a prima dele do interior. Mas não se anime em conhecê-la. Judiazinha chaaaata. – Ela fez uma careta de desaprovação ao falar dela. – E Seth, Hailey? – Mike perguntou diretamente à garota. Ela estagnou. – Por que está perguntando dele para mim? – Ué? Você deveria saber, não? Hailey parecia não entender a importância daquele questionamento. – Olha, eu cheguei sozinha. Seth ficou de chegar depois, para coroação do rei e da rainha – disse por fim. – Hmmm. – Jodi e Mike sorriram friamente, apenas por precaução. Rebecca e eu fizemos o mesmo, mas Hailey permaneceu inocente na história. Nós estávamos no melhor local do ginásio. Todas as pessoas que chegavam para o baile passavam por ali. Rebecca puxou papo com a professora Malasartes, trocando dicas e receitas da culinária mexicana que ela e a filha serviam no estande ao lado. Mas as duas inimigas não se olhavam. Hailey e eu continuamos com a venda dos colares. – Estou preocupada com Seth – confessou, sentando-se em um dos bancos. – Faltam 25 minutos para cerimônia do baile começar. – Ele já deve estar chegando. Fique tranquila – acalmei-a, já me preparando para guardar nossos pertences. – Ei, ei! – Ian se aproximou da barraca, saudando-nos fervorosamente. Hailey ligou para o celular de Seth. Fatalmente estava atrás de Seth. 432

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– Fala, grande campeão – zombei. – Achei que estivesse se esquecido de nós. – Quanto drama, garota perigosa. Só vim avisar que seu amigo folha de bananeira já chegou. E Tyler também – Ian disse alto, para que a informação chegasse aos ouvidos da Rebecca. Ela apenas assentiu agradecida. – Mas... sem querer ser indiscreto, o que está acontecendo com Hailey? – Ian reservou-se a falar baixinho, para que só eu pudesse ouvi-lo. – Tá preocupada com o Seth – expliquei. Ele de repente vigiou a situação, ficando desconfortável. Hailey se aproximou de nós num rompante. – Cansei. Eu vou procurá-lo – falou confiante. – Não, você precisa ficar conosco. Como vamos fechar o caixa? – Rebecca interviu no diálogo. Hailey olhou para nós três. – Ian, fica aqui para mim? Seth não atende o telefone. Preciso ir atrás dele. – Ela estava quase implorando. – Não, eu não posso. – Ian lançou-me um olhar astuto. “Impeça-a de sair daqui”. Eu adorava a arte de telepatia que eu tinha com meus amigos. – Hailey, não prefere que eu vá procurá-lo com Ian? – Pulei na frente. – Eu vou junto! – disse. – Não... Não! Fique aqui. Você toma conta do caixa melhor do que eu. – Sorri de lado. – Nós voltamos já, tudo bem? – Não dei espaço para que ela redarguisse. Recolhi Ian pelo braço e nos distanciamos do perímetro da barraca. – O que está acontecendo? – roguei por explicações. Ian hesitou. Seus olhos me vigiaram, estudando minhas reações. – Eu não posso falar nada. – Você vai falar sim! – Aumentei o tom de voz. – Se for algo que vá machucar Hailey... Você não tem o direito de fazer isso com ela! 433

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– Ok! Leo também sumiu – admitiu com ares pesados. – Serve? – Mas que merda! – esbravejei. – A gente tem que achar os dois, antes que ela os ache primeiro. Não conseguirei segurá-la por muito tempo. – Precisamos da Rebecca nessa. – Eu vou chamá-la. Vem comigo! Caminhamos de volta ao estande. E Rebecca já estava sozinha. – Cadê a Hailey? – perguntei ofegante. A possibilidade de ela ter ido atrás do amado por conta própria me desesperou. – Ué, ela disse que iria com vocês... Eu deixei – ela confirmou inocentemente. – Rebecca! – reprovei sua irresponsabilidade. Ian completou: – A questão é que Leo também sumiu. O resto você já pode imaginar. – Mas o que essas bichas estão pensando? Porra, não posso deixar a barraca sozinha – Rebecca enfureceu-se. – Eu tomo conta. Uma voz emergiu repentinamente em nosso diálogo. Viramo-nos. – Se não tiver problema, claro! Miranda disse com seus olhos cautelosos. Ela também deveria saber de algo. Rebecca a encarou com ares desconfiados. – É melhor vocês correrem. E... para o almoxarifado no bloco B. Eu vou guardar tudo aqui, caso vocês demorem. Entreolhamo-nos, sem saída. Precisaríamos confiar nela. – Obrigada, Mi – Ian agradeceu, ironicamente. – Isso tá errado! – minha melhor amiga protestou enquanto corríamos ginásio afora. – A gente tem que se dividir. Ian, peça ajuda a Jenny e tente achar a Hailey. Nós vamos procurar pelos garotos. Rebecca e eu ficamos a sós. – Pode não ser nada do que estamos pensando... – Parei de andar ao passarmos pelas portas do bloco B. Não havia ninguém ao redor. 434

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– E se for? – Rebecca induziu-me com seus olhos desafiadores. – Hailey não merece passar por uma humilhação dessas. – Então corre! – disse, já colocando força nas pernas para subir as escadas que nos levariam ao almoxarifado. Como um fantasma vagando desesperadamente por aqueles corredores ermos, vimos Hailey cruzar nossa visão quando chegamos ao andar superior. – Hailey! – clamamos e então ela parou, sem entender nada. – O que vocês estão fazendo aqui? – Viemos ajudá-la a procurar os garotos – Rebecca falou, sem pensar. – Garotos? Seth está com mais alguém? – revoltou-se, voltando a caminhar. – Não, não. Hailey! – Tentamos impedir de ela continuar. Ela estava muito perto. De longe, já pudemos avistar pelas janelas superiores que a luz do almoxarifado daquele andar estava acesa. Bingo! A garota foi com tudo na maçaneta da porta. Rebecca e eu não quisemos nem olhar, mas foi impossível. A poucos metros de nós, vislumbramos Hailey abrir aquela porta e berrar atônita. – Hailey, não... – lamentamo-nos. Tampei o rosto, constrangida pela garota. – Mas que droga está acontecendo aqui? – ela questionou com sua voz em níveis estridentes. Seus passos recuaram, tentando se afastar. Seth surgiu pela porta. As maçãs do rosto estavam vermelhas e ardentes e os primeiros botões da camisa desabotoados. Suas mãos se juntaram à frente do rosto, implorando para que Hailey se acalmasse. Rebecca segurou a testa com as mãos, como se estivesse planejando seus próximos passos. Seth olhou para nós, exponencialmente envergonhado. 435

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Lancei-lhe um olhar de profundo desprezo. Hailey passou correndo por nós com as pernas fraquejadas e sem conseguir conter as lágrimas. Seth tentou segui-la, mas Rebecca o impediu. – Eu deveria meter a mão na sua cara, Seth – ela entoou sombriamente. – O que eu faço agora, Becky? Não quero decepcioná-la. – Você já a decepcionou – bufou. – Holly, vá atrás dessa garota antes que ela faça alguma besteira... Eu vou me entender com essas bichas estúpidas – ela disse com seus olhos ardendo de repúdio na direção do Seth. Leo postou-se ao batente da porta, vigiando-nos. Não quis olhá-lo e dei meia-volta, seguindo a ordem da minha melhor amiga. Acelerei meus passos e atenuei os ouvidos, podendo assim ouvir os saltos pulados e desesperados de Hailey à minha frente. Ela havia descido as escadas. Ao chegar ao térreo, avistei-a indo para o jardim frontal. – Hailey, me espera – gritei. Ian e Jenny por acaso estavam por ali. Os dois vislumbraram a cena e conseguiram sacar tudo. – Quer ajuda, Holly? – ele se prontificou. – Não, Ian. Apenas um bom papo de garota para garota vai adiantar. Podem ir curtir o baile. Só, por favor... avise ao Henrique e ao Tyler que eu e Rebecca tivemos coisas mais importantes para resolver, ok? Vi meu amigo assentir, com uma dor inédita no fundo dos olhos. E por mais que Jenny fosse uma das melhores amigas de Hailey, ela não parecia nem um pouco à vontade com a ideia de consolá-la. Talvez seu distanciamento repentino tenha pesado negativamente para aquela amizade. Os dois caminharam de volta ao ginásio, de onde já poderia se ouvir a voz do nosso diretor, que abria oficialmente o evento. Luzes fluorescentes piscavam de longe. Enquanto eu me aproximava da triste imagem daquela garota, refleti internamente. Era realmente uma situação muito delicada e 436

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um tanto quanto degradante. Não pelo fato de os dois serem ou não gays, mas pela traição contumaz. Pela consequência que aquilo poderia surtir na garota. Era redondamente desnecessário. Com mais alguns passos, pude enxergá-la sozinha na escuridão da noite. Ela estava sentada na escada de alvenaria no meio do jardim frontal da escola. Caminhei devagar de cabeça baixa em sua direção e pedi a Deus para que Hailey me permitisse conversar com ela. Para que eu conseguisse lhe acalmar o suficiente e, assim, ela pudesse me ouvir. Agachei ali, sentando-me ao seu lado, em completo silêncio. A garota tinha seu rosto enfiado entre os braços, que se apoiavam aos joelhos. Eu ouvia sua respiração se suceder trepidamente. Ela pareceu não se importar com a minha presença. E eu agradeci imensamente a Deus por isso. – Hailey... se você não quiser conversar, eu vou entender. Eu sei que posso ser a última pessoa com a qual você desejaria conversar sobre isso. Sua postura permaneceu intacta por mais alguns instantes. Então, sua cabeça se ergueu, deixando à mostra seus olhos mergulhados em lágrimas. A maquiagem escura havia se derretido. A luz opaca proveniente das luminárias do jardim iluminou seu rosto levemente. – Vocês todos sabiam, não é?! – ela questionou sem esperanças. – Eu acho que você não merece mais mentiras. – Olhei dentro dos seus olhos negros e pungidos. – Eu sempre desconfiei, desde o começo, quando ainda ninguém imaginava. Hailey me fitou, ainda que insondável. Ela não compreendeu. Completei: – Naquela época em que você achava que o Seth podia ter interesse em mim, eu já sabia que ele era gay. O jeito como ele me cumprimentava, com aquela cordialidade e atenção toda. Sua delicadeza excessiva era entregadora. – Sorri. – Mas ninguém acreditou em mim, nem Rebecca. 437

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Ela riu alto, motivada pelo nervosismo. – E eu achando que ele me trairia com você! – Ela se martirizou. – O pior é ter que admitir que eu também não teria acreditado se você me contasse. – Ela soluçou. – Como eu pude ser tão cega?! – A culpa parecia sua mais nova ferramenta de sofrimento. – Ei, não se culpe. Se existe alguém que errou e não foi franco com você, foi ele. E digo mais... Seth não foi franco nem com ele mesmo. A garota começou a chorar com mais intensidade. Sacolejei-a. – Hailey, não se sinta tão péssima. Você é jovem. – Organizei os cabelos que escondiam seu rosto. – Já sabe o que quer para sua vida. E... quem nunca foi traído? Eu mesma já sofri com isso. – Sorri de lado, sem nenhum humor. – Mesmo? – Ela fungou, ao mesmo tempo que secou o rosto com a mão. – Sim, querida. Estamos sujeitos a isso a qualquer momento. É um risco que assumimos quando desejamos ficar com alguém. Mas pense que daqui para frente você tem a chance de namorar de novo e tudo isso vai ser apenas passado. – Silenciei-me de propósito. – Já para o Seth é muito mais complicado. É uma escolha que pode mudar a vida dele para sempre. Hailey deixou seus olhos mergulharem pelo infinito. Talvez ela ainda não tivesse pensado por aquele lado. Prossegui: – Não tenho dúvidas de que ele tem sentimentos por você. Ele ficou do seu lado nos momentos mais difíceis, não foi? – Quando mais ninguém quis estar... – ela disse com a voz embargada. – Pois então?! – Mas ele tinha que fazer isso comigo? Eu sempre falei que fidelidade era uma das coisas mais importantes num relacionamento. – lamentou-se. – Não pense assim. A questão nem é tanto fidelidade, amiga. – Levei minha mão até seus olhos, retirando o excesso de maquiagem 438

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derretida. – Mas sim lealdade. Ele poderia sentir o que quiser, fazer o que quiser, mas acho que seria leal da parte dele compartilhar tudo isso com você, uma vez que vocês eram, além de namorados, melhores amigos. Sua cabeça se abaixou. Hailey estava derrotada. – O que eu vou fazer agora... Toda a escola vai saber. – Seus olhos cerraram, impedindo que mais lágrimas caíssem. – Ninguém precisa saber. É uma questão que compete a vocês dois somente. – Sinceramente estou com nojo dele. Desejaria nunca mais olhar... – Ela hesitou, perdendo o controle da emoção em seguida. Hailey começou a chorar. – Você não pode agir assim. – Peguei em seu braço. – Você acha que vai aguentar passar por ele e desviar a cara? Apenas o ignorar? Você não vai suportar deixar as coisas assim, não esclarecidas. Eu sei que vai ser difícil, mas é necessário. Mesmo que seja para colocar um ponto-final. Afinal, vocês têm que se comportar como pessoas adultas. Se ele foi homem para fazer o que fez, precisa ser homem para assumir o erro e lhe pedir desculpas. – Você tem razão, Holly. – Hailey levou seus olhos ao céu, recuperando o fôlego logo depois. – Eu só me pergunto como é que eu nunca percebi nada. Sabe, eu tinha planos para nós dois... – Ela sorriu de repente com seus dentes pequeninos. – Eu gostava do jeito delicado dele, sempre achei o máximo o fato de conversarmos sobre coisas que eu não conversava com outros namorados. Ele sempre me entendia, sempre. Nunca brigávamos. Aquela vez... – Ela engoliu em seco. Ambas de nós sabíamos a que vez ela se referia. – Foi inédito. E mesmo depois de tudo, Seth permaneceu ao meu lado. – Hailey esticou as pernas. – Como eu pude ser tão cega?! – Ah... sem querer ser indiscreta... Mas... Vocês tinham momentos assim... Mais íntimos? – Fui cautelosa ao perguntar. – Quer saber se a gente transava? – Hailey refez minha pergunta sem delongas. 439

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Assenti. Ela riu, e não aparentava estar constrangida em responder. – É claro que sim. – Seu sorriso se clareou. – Não era algo muuuuito frequente, assim como era com meus outros namorados. Mas eu achava que isso fazia parte da nossa dinâmica, sabe? Por ficarmos juntos praticamente o dia todo e sermos mais amigos do que qualquer outra coisa. – Eu entendo. Têm casais que não colocam o sexo como prioridade no relacionamento. Às vezes o vínculo de companheirismo se faz mais presente. Hailey parou por meros instantes, sentindo a brisa da noite selar seu rosto e secar as lágrimas que por ali escorreram. Ela sorriu genuinamente e olhou para mim satisfeita. – Obrigada, de verdade! Não sei por quê, mas parece que você era a melhor pessoa com quem eu poderia desabafar. – Ah... Nesses momentos a gente nunca consegue esclarecer muito as coisas por conta própria. Eu senti que deveria lhe dar uma palavra. Hailey sorriu, agora mais à vontade. Os lábios se ergueram e mostraram seus dentes estreitos, abraçou voluntariamente. Não reneguei. Ao apoiar meu rosto em seu ombro, vi Rebecca caminhando em nossa direção. Sua postura parecia lívida de qualquer força. A situação também a desestabilizou. Seth estava logo atrás. Desfiz-me daquele abraço e, com a ponta dos meus dedos, retirei os últimos resquícios de maquiagem borrada. – Você acha que está pronta? Pronta para conversar com Seth? Hailey inspirou fundo e fitou-me profundamente. – Acho que não vou conseguir dormir se não fizer isso agora. Eu tô pronta. – Ela confirmou confiante. Rebecca se aproximou por completo. – Hailey – minha melhor amiga repousou sua mão no ombro da garota, como um ato de extrema compaixão –, ele está aí. 440

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– Tudo bem! Podem... nos deixar sozinhos. – Olha, o que eu tenho para dizer... é que foi MUITO melhor você descobrir agora do que mais para frente. – Rebecca fez uma careta. – Já pensou? Vocês casados, com filhos e tendo que enfrentar um dilema desses? Vá com calma. – Obrigada, Rebecca! Eu vou ficar bem. – Sua serenidade se restabeleceu. Recolhi suas mãos e lancei um olhar de extremo apoio. Levantei-me, mas antes de sair dali passei por Seth. Aquela beleza celestial estava compungida por um sentimento de arrependimento. Os olhos pareciam carentes e aflitos. Parei à sua frente e o encarei confiante. – Seth, não minta mais, nem para Hailey nem para você mesmo. Seus olhos se rebaixaram. – Ela deve estar muito brava, não é? – Agora nem tanto. Mas saiba usar as palavras certas. Não a machuque mais. Seth assentiu. Rebecca recolheu meu braço suavemente e saímos dali. – Que noite, hein?! – ela disse pesarosa. – O que faremos agora, amiga? – Nossos passos seguiam sem rumo pelo local. – Quer saber? Não tô nem um pouco a fim de voltar para aquele baile, dançar com nossos amigos e fingir que nada aconteceu. – Ela parou de andar. – Sabe que eu também? – Nossos olhares se encontraram. – Garotas? – A surpresa inundava uma voz masculina. Giramos. – Henrique! – exclamei animada ao vê-lo. Ele me deu um longo abraço. Meu jovem amigo estava exalando charme em um belíssimo terno cinza chumbo. – Você nem imagina o que aconteceu... – Rebecca tentou prestar satisfações, mas Henrique a impediu. 441

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– Não precisa dizer nada, Becky. Eu já... sei de tudo. – Ele parecia tão decepcionado quanto todos nós. – Tyler já foi embora? – Rebecca perguntou sem nenhuma esperança. – Tá te esperando na entrada principal – respondeu prestativo. – Ah! – Ela sorriu. – Então eu vou aproveitar para falar com ele. Você pode ficar com a Holly, Ricky? – Sem problemas. – Ele sorriu. Nós ainda estávamos abraçados. Henrique e eu caminhamos de volta ao perímetro da escola. Eu apoiava meu braço em seu ombro e ele fazia o mesmo. – E não é que você estava certa – afirmou. – É, acho que meu “gaydar” ainda funciona muito bem. Henrique riu alto. – Você tinha falado sobre o Seth. Mas o Leo... Não dá para acreditar. – Ele estalou a língua por três vezes. – Será que tudo isso foi rejeição? Uni as sobrancelhas e Henrique completou: – Ué, você não foi a miss quebra-corações? – Não me faça me sentir pior, Henrique. – Tudo bem. – Seus olhos arregalaram-se. – Não está mais aqui quem falou. – Quer saber de uma coisa? É bem feito. Leo é um hipócrita desgraçado. Falava tão mal de você. – De mim? – Henrique recolheu minha mão, guiando-me para os bancos de alvenaria que antecediam os portões do ginásio. O som dançante ecoava longe. – É... sobre seus lances. – Nós nos sentamos. Encarei sua expressão insondável. O brilho esverdeado dos seus olhos estava destacado diante da luz noturna. Henrique ficou em silêncio, apenas absorvendo meu comentário. Talvez ele não imaginasse que eu pudesse saber. – Que garoto idiota – disse por fim. 442

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– Então é verdade – concluí. Ele mais uma vez emudeceu. – Eu sei que não parece legal. – Justificou-se após uma boa pausa. – Até por tudo que minha irmã passou etc. Mas de vez em quando eu não vejo problema. E... sinceramente, de uma coisa eu me orgulho. – Fitou-me. – Eu não financio essa merda toda. Eu planto somente o que eu posso consumir. Não sustento traficante filho da puta. Silenciei-me. Por um momento, sua declaração pareceu honesta. – Desculpa se a ofendi. – Henrique sorriu de lado. – Como? – Deixa para lá. – Ele deu de ombros. Avistamos Rebecca e Tyler juntos há alguns metros de nós. Eles conversavam a ligeiros centímetros de distância, com muita intimidade. – É, acho que sobramos – deduzi, suspirando alto. – Quer uma carona até em casa? – propôs de repente. – Não tem outro jeito, não é?! Parece que eles já têm planos para mais tarde. Henrique riu suavemente, já se levantando. – Vem, vou buscar meu carro no estacionamento. O silêncio habitual da minha casa saudou-me agradavelmente quando entrei pelo apartamento. Mamãe já dormia profundamente em sua cama. Acendi a luz do meu quarto e, por um ligeiro momento, agradeci por eu estar ali, com todos os meus pertences em seu devido lugar. Tirei os sapatos e despi-me do vestido rosa-chá que eu havia comprado com tanto gosto para usar naquela noite. Retirei os brincos, os braceletes e um único anel do dedo. Enquanto eu lavava meu rosto e limpava o resto da maquiagem que sobrara nos olhos, eu só me perguntava como Hailey digeriria toda aquela confusão. 443

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Vesti uma camisola de algodão e me deitei na cama. O cansaço ainda era maior que o sono, o que me fez passar longos minutos de olhos abertos, dando espaço para a imaginação vagar. Eu tentava bloquear os pensamentos da mente para embalar o sono, quando senti meu celular vibrar embaixo do meu travesseiro. Já estou a caminho de casa. Já falou com a sua mãe? Estou pensando em passar aí amanhã. O que acha? – Lucas. Era uma mensagem. Ler suas palavras fez minha mente fantasiar sua voz, e isso desatou um nó que sufocava meu peito. Respirei fundo, agora mais aliviada. Ele sempre volta. E eu sempre o espero.

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