Estudos de Solfejos

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João Evangelista

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Sobre João Evangelista

Natural de Itapecerica, João Evangelista de Carvalho se formou na Escola Estadual Padre Herculano Paz, em Itapecerica. Desde cedo apresenta habilidade na escrita, mas somente a partir de 1999, quando participou do concurso literário Arte de Viver e teve o seu texto publicado, que passou a investir no desenvolvimento da habilidade da escrita com maior afinco. Em 1996, mudou-se para BH para tratamento psiquiátrico. A partir de 1999 se torna ativista do Movimento Nacional da Luta Antimanicomial. Participa de três edições da comissão organizadora do desfile de 18 de maio. De 1998 a 1999 é vice-presidente da associação Verde Esperança – Associação dos Usuários, Familiares e Amigos da Saúde Mental do Ipsemg. E em 2000 torna-se presidente da entidade. Participa em 1999 do Encontro Nacional de Luta Antimanicomial em Maceió. Em 2000, participou da Oficina Loucura está no Ar, ministrada pela AIC. A partir das atividades realizadas na oficina, João Evangelista passou a fazer parte da Comissão de Memória e Cultura do Fórum Mineiro de Saúde Mental. Já em 2003, João participa em Belo Horizonte como suplente na Comissão Municipal de Reforma Psiquiátrica – do Conselho Municipal de Saúde, participa do Fórum Social Brasileiro, é curador da Mostra Parabolinóica de Arte e Loucura, organizada pela Associação Imagem Comunitária, no Centro Cultural da UFMG. No ano de 2010 passa a realizar atividades como bolsista da Rede Parabolinóica de Arte e Loucura, da qual participa desde 2000, quando esta era apenas série de oficinas de comunicação comunitária realizadas pela AIC, em centros de convivência para pessoas com sofrimento mental. Além de escrever prosa e poesia, João também fotografa e gosta muito de música.

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Ouro Branco, 02 de abril de 1979. Querida Senhorita Dee Dee, Tenho pensado muito naquele outono, a respeito de ficarmos à soleira do Hotel San Marino, observando pequenos redemoinhos de objetos que não eram desprezados nem por nós nem pelo vento. Asdrúbal vai bem e disse chegar de mudança ( desta vez a derradeira assim diz ele ). Pensar que o resto da família vai estar novamente reunida me traz uma idéia de voltar aos erros, como você mesma me disseste. Ele é um cara inteligente, porém, intolerante. Ah... Ele e sua medicina de tranqüilizantes para meus gatos, isto sim é algo intolerante! Acontece que passeei pela alameda central ontem: aquele prédio do antigo reformatório ainda abandonado. A única coisa que denota vida ali é o atrevimento das plantas ocasionais ( e alguma erva daninha é claro ). Havia deixado minha Polaroid no porta-luvas, sairia sem dúvida uma foto impressionista. Monet iria ter pintado meu espanto ao vê-la assim, como se não fosse natural... A arte como você dissera no largo são bento é algo tangível apenas quando a paixão apavora ou “abandona o estado de sentir fome e torna ao seu cativo o estado de mendicância do espírito”. Penso estas coisas à beira das árvores nuas a volta da igreja de santo Onofre, que fazem pensar terem me borrado os ouvidos quando repicam procissões e dobram óbitos aqueles malditos sinos. É como se eu tivesse nascido aqui, em ouro branco. Desde que papai aqui enterramos ( desde que Sofia perdeu o juízo ) sinto as torres deste templo cravadas em meu abismo órfão. Mamãe nos apareceu assim sorrateiramente com a pretensa figuração de praticamente uma carpideira. Não chorava, mas tornava lamento em ladainha e foi assim que Asdrúbal acabou a expulsando precocemente de casa. Sim ele queria se ver livre para seu estudo de clarinete, o sopro que Sofia passou a imitar era uma polifonia interessante para audição felina do meu querido e recém chegado Hubbard, que aliás, presumo, deve também sentir sua falta. Está velho, não arisco como antes, mas, ainda de olhos lépidos, ainda uma lápide de mistério e desleixo... Pois é, Asdrúbal terminou seus estudos no Rio, e como você previu: “ quando ele chegar a conclusão que seu jogo é apenas de desistências, voltará com o rabo entre as pernas.” Mais uma vez os sinos tocaram (para minha mãe desta vez). Assim como você a conheceu, tenaz. tinha um semblante obstinado a purgatórios. Não tive tempo e por isso durante muito tempo desejei apenas infernos a ela. Hoje é um pouco diferente, que Sofia vai sistematicamente à missa ou ao asilo, e que descobri a ciclovia para a estrada de são Rafael. Algum sopro ali me detém de mediocridades. Mesmo que desde cedo eu soubera que mamãe vendeu algumas identidades, na ciclovia eu adquiria quais me viessem ao caso. Dee Dee, é uma obra prima do José Afrânio ( conseguiu finalmente ser prefeito antes que o assassinassem, e projetou a ciclovia) A orla de são Rafael, eu e Sofia brincávamos ali, lembro-me de ter lhe contado que um dia empoçamos um siri rei da praia por que o mar havia trazido Arnaldo. Este que você Página 2


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não conheceu. Mas, que sabes que afanou minha irmã ( aquela cara de boa praça ). Virou mesmo notícia em toda a Praça João Feitosa quando desapareceu depois de ter causado em todos diversos equívocos. Disse a todos que era irmão de Maria risca pedra, devia mesmo ser, maldito seja Arnaldo que houvera de lamber todas as urinas que sua louca irmã mijou nas ruas. Tio Antônio me disse ter notícias dele, em mar de garças, disse que tinha virado sapateiro, haja benzedura para tantos pés meu deus! Parece-me que perdi todo o fôlego que são Rafael tem me dado. A certa altura da ciclovia tem afastado ao longe um ermo que é de onde te escrevo. Pois que das pedras reconheçamos mais uma vez Rodin, já Camille, deixemos de reserva para as pétalas. Sofia não vive mais em casa. Arranjou um modo de orar que virou nômade! Os clarinetes e os tranqüilizantes prestes a voltar ( nada contra eles, porém contra seu dono ). Realmente, para Asdrúbal, clarinetes e remédio só tinham ele como senhor de seu ministério. Esta administração, ou melhor, esta “posologia de entraves” é que me atrapalha para que ele me faça sua “anamnese”, estou farta! Olha que estou do cume do monte onde se tem a visão mais bonita de ouro branco. Às vezes, ouro branco tem poder e insígnia de universo ( e você sabe quando... penso que Hubbard também) Ele agora ensina estas abstrações comuns a nós duas a dois companheiros Wintom e Davis. Vejamos quando nosso Benny Goodman voltar, de vez quando prefiro que esta não seja a última volta, prefiro que isto tudo vire um eterno circunlóquio ( como nos terços de Sofia ). Queria saber como vai Robert, o tio preferido que eu não tenho entre os que me dizem ser, bem como tia Ingrid sua amável esposa em meio a poesia e novelos, por fim estas cores opacas de Europa, que me fazem inventar o vento de minha tristeza. Queria saber se ainda trabalhas como enfermeira e se ainda tens o hábito de criar coelhos na cozinha, ainda deves preparar bons cookies para tia Ingrid com sua voz que parece ter acabado de ler Oscar Wilde. Por falar nisto, queria saber se gostaste do exemplar de Cortázar que lhe enviei ano passado. Para fecharmos este preâmbulo literário: aqui em Ouro Branco, os dias passam ao sabor de um Joyce. Temos ainda o cinema aqui! Esqueça o James Dean, precisas conhecer o Glauber! Terra em Transe foi realmente algo que aconteceu! São. O transe de muitos cânhamos nossos! A polícia tem vindo atrás de muitos por aqui. Falo de plantas, mas também falo de homens, poderíamos estender a conversa a pássaros e cães num futuro nem tão impossível ou improvável de se imaginar. Eles andam a censurar todos os timbres, andam a criar porões. Kerouack é realmente idílico, face de estes acontecimentos. America, este lugar insólito. Dee Dee queria saber se quando trouxeste minha mãe para cá não me omitiste nada, vem ao meu destinatário muitas cartas nada gentis para ela, nossa finada interlocutora de quinze anos atrás.

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Há um senhor, Donald é o nome dele, querendo vê-la urgentemente, precisava saber se eram dele aquelas cartas que receberas quando papai falecera e ficavas sem jeito de me falar... Este senhor, Donald, pudera ter tido qualquer relação com mamãe em seu suposto exílio que eu não poderia saber naquela época, mas agora algumas coisas precisam vir à luz. Voltaste a Londres sem ela, e sem mim ( o que na época poderia ser mais importante ). Desculpe-me a arrogância pois eu sabia que estavas apaixonada como sou até os dias de hoje. Pois bem. À Donald, o meu desprezo! Mas, o que ele traz de ti, o meu pesadelo mais doce, toda a atenção do mundo! Venha a mim, Dee Dee, com ou sem este velho rabugento ( mesmo que sejas seu parente é isto que aparenta ser em sua escrita de Walt Whitman ). Não podemos mais nos corresponder apenas por Caetanos Velosos e em London London. Preciso saber o que anda andando por baixo destes seus pântanos e destas suas anáguas ( que daqui as sinto em amônias ) estas anêmonas e águas vivas em seu universo Sylvia Plath... Preciso que afogues cada palavra que este Donald escreve em meu clitóris, entenda-me!

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Ouro Branco, 14 de maio de 1979. Olá Alana, saudades. Andei triste ultimamente, algo parece agir contra minha vontade ( perdoe-me a soberba, mas, sou como qualquer outro que quer ver sua vontade feita ). Não, não virarei uma justiceira, mas não queria colecionar os desaforos que venho recebendo... Internaram Sofia mais uma vez, foi semana passada. Atordoara-se um pouco com a vinda de Asdrúbal. Este que é outro que sempre pergunta por você. Diz sempre que não há dedos melhores para o piano que os seus... Ora, convenhamos que ele os apreciou para outras finalidades também. Não sei o que tanto te agradou naquela grande vergonha roxa, a mim nunca me causou nenhum desvario ou delírio de puta velha, comigo nunca foi assim. Fiquei sabendo da morte de Coltrane, eu sabia que morreria de idade, aquele bafo velho nunca me enganou. Sebastião Cabeleira anda tendo um dos melhores que vi por aqui, não sei se se lembraria dele. Sei que se chegasse a sua mão este fumo nunca se esqueceria. É um tapa e pronto! Imagino Coltrane te lambendo sob esta lira de orgasmos idílicos, estes espamos etílicos. Ah Sebastião Cabeleira! Bem aventurada sua plantação! Queria muito que viesses, Alana! Não apenas para abrandar um pouco o Asdrúbal: anda tendo idéias revolucionárias que, segundo tio Antônio, já chegou aos ouvidos do Sargento Julião, este que sempre anda por aí querendo pegar os outros com a calça nas mãos. Decerto não se simpatiza por ele desde que expulsou minha mãe de casa. Surpreende-me o fato do sargento saber que meu marido teve minha aquiescência para assim fazer e que ele, um homem de chumbo, tivesse realmente desejos afetivos para com a minha mãe. É bem verdade que ela voltara da Inglaterra com todos os arquivos queimados e que Asdrúbal não fez o que fez por qualquer discordância ideológica. Talvez até mesmo a repulsa que eu sentia por ela no início, mais o tivesse motivado. Tomamos então, esta atitude e, algum tempo depois, supus que era esta a maneira que ele encontrara para que eu me aproximasse dele. E você bem sabe que quem se aproximou dele foi você. Minha única mágoa nesta história é: porque justo ele Alana! Foste um homem que eu tivera um dia amado ficaria orgulhosa por você! Tenho asco dele, Wintom e Davis já estranham o comportamento de Hubbard. Esta orientação dos gatos como um oráculo de desastres. Tens viajado muito com Kafka e Dostoiévski, suponho. Este maná que escondes entre as pernas parece carregar a culpa de todos os homens. Transmutações sempre foram de castigos em frutas demasiadamente doces. Assim as escrituras dizem ser a perdição. Confesso que me perco em seus subterrâneos de dramaturgia do leste europeu e seus vestidos verdes. Mas, o caso que te digo é que sacrifiquei meu prazer em ti por todas outras dores de te ver deitando com o homem que conheço por ser dos mais cafajestes. Volte por que eu te prefiro e volte por que ele também te prefere. Em nome desta resina verde que te sustenta, em nome de um Beckett ou de um Elliot, das lambidas de Coltrane Que te sopraste o melhor caminho para o delírio.

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Em nome da minha mãe, que em ti, achou uma mulher verdadeira. Em nome de meu pai que te alimentou as fantasias quando tentou te violentar. Em nome de todos os escárnios de Sofia que sempre te amou sem nunca admitir. Por ter alertado a Tio Antônio que Arnaldo não prestava. Tio Antônio, o mesmo que também achava que meu pai não prestava. Por você, Alana, que presenciou todos estes martírios entre reconciliações e mortalhas, todas estas idas e voltas, um caminho em círculo que me levou à Dee Dee, me levou à loucura, por exemplo. Volte que tenho planos para você! Tenho premonições de ventania.

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Ouro Branco, 23 de julho de 1979. Querida tia Amarílis, Deixaste tio Antônio muito cedo e dizes-me que ele era deixado de si. Bradou se pela última vez este homem que conheci ao dizer que te amara todo um inverno de solidão. Incrível como nossos homens são amados apenas por nós mesmas. Ah... Tia Amarílis, pude ver a amargura do mar quando sorriste teu sorriso de despedida para todos nós. Nossa louvável linhagem masculina. Digna do nosso respeito cristão. Digna de dogmas que eu sei tia Amarílis, que sua paixão por Alana, não aceitava; Foste ser uma mulher de lã e botões comportados, alpendre de jardim recatado com uma contida cadeira predileta a bordar. Deixaste os lábios lancinantes das rosas sem espinho e sem gozo. Deixaste lascívias para seus escarnecedores morando no som das conchas das praias de são Rafael. Era aquele sal vindo de fora do continente a beijar nossas saias de Billie e Gal; Éramos todas muito insaciáveis, tia Amarílis, tio Antônio era um homem de silêncios, de lacônias. Éramos realmente outra coisa como Torquato Neto. Mas foste para um exílio Geraldo Vandré... Somos todas hoje um bordado de helenas desavisadas do fim da espera. Assim como a mutação das rochas também é algo natural, entendo os ciclos de Asdrúbal, que desta vez se mantêm tranqüilo na companhia de tio Antônio. Finalmente me parece que o sopro de seu clarinete lhe esmoreceu os machismos. Assim como, inevitavelmente defendo-o agora também o falo com seu ex marido ( o que não te destitui de minha afeição ) Justamente por isso te escrevo, talvez pudesses passar um tempo conosco, trouxesse também Luigi Tenco, com seu aprendizado de cânticos. Ainda considero seu livro Tratado Musical em Mi Bemol algo num nível Baudellaire. Ainda anda escrevendo sonetos, suponho. Toda sua vanguarda não a eximiu de apreciar os motetos na Praça João Feitosa ( quando da semana santa ou mesmo depois, mais tarde, no terreiro. Reconcilio-me com as águas de são Rafael, na ciclovia e ainda tenho muitas saudades de Dee Dee faz nove anos que não a vejo, aquela cabeleira ruiva entre as pernas. Incessantemente Asdrúbal vai e vem, conheço sua maresia refizemos a casa e os planos infinitamente, só hoje consigo ver algum esboço de paz de espírito em seu semblante. Conheceu um homem, Altamiro, que cata lixo. Confessou-me que vê um pouco de si nele. Entender futuros é um delírio essencialmente masculino, a nós, cabe intuir Sim sua culinária de alho poró e broto de feijão me pede Ella Fitzgerald ou Paulinho da Viola quando vai limão ( vinagre e picles são mais lisérgicos ) Cessaria todas as querelas se Dee Dee me dissesse quem é este tal Donald que te falei. Você, tia, concunhada nada tem a ver com isto. Mas este mistério cheirando estelionato pede vaginas mais experientes. O homem tem desejos insanos, depravados, alguma psicose minha mãe lhe provocou... Conheces muito bem Alana e sabes que não anda tendo paciência para estas coisas, se trancou no engano de Leminski ser hermético. Já eu, igualmente prolixa e promíscua. Este Donald tem o fogo na escrita, às vezes penso nele como sem roupas e com bigodes tingidos de nicotina. Penso e peso que Asdrúbal não teria mais ciúmes de ti. Altamiro lhe ensina generosidades além de seu tempo. Sinto que já é capaz de me deixar cuidando dos instrumentos enquanto fosse procurar Alana. Página 7


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Tem sido um inverno de conhaque e chocolate, penso em ti. Tem sido um tempo de pensar em ti e em suas ressalvas anti-térmicas. Pensar tem me custado ultimamente muito dienpax. Madrugadas vão silenciosas encontrar o mistério que gastamos a vida para dormir, para exercitar a morte e suas aniquilações congênitas. Teria sido ultimamente um tempo de fazer a vida mais calmamente, não fosse a presença tão viril deste verbo Donald.

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Altamiro veio à minha casa com outro homem, Aníbal, que pescava. Asdrúbal tinha Ido comprar umas verduras do outro lado da baía, demoraria todo o tempo do convite dos dois, fui. Chamaram-me para um trabalho na pedra de santa Marta. Diziam que iam tirar quebrantos em algo quiromancia. As raízes e o fogo, um exorcismo que o universo ainda tem os trabalhos do parto. Parto de alvoradas, diziam Altamiro e Aníbal, homens de folhas e chás, ungüentos, lamentos e parcimônia ao praguejar. Homens oblíquos como aqueles desde sempre muito me interessaram, supus que começavam a interessar meu marido. Pela primeira vez senti que estivesse a traí-lo. Mas de súbito veio-me definitivamente a idéia que nunca estive com ele, mas, que por isso mesmo ele dera-me esta liberdade sempre. Ali, na pedra de santa Marta, fui a consumação das cinzas, fui a liquefação daquele desejo de dois homens de minha breve intimidade. Assim foram, depois de todos os emplastros, de todo aquele lastro de gametas calmos. Os dois assim me tiveram assim silenciosa consciência de ser coisa besta, de ser fermentação de brevidades da alma, este líquido que tece a concordância dos encaixes ou de entraves indeléveis, indissolúveis, indissociáveis. Este é um mistério que se abstêm com pernas bambas, compassos soltos, fragmentos de música como fossem os espermas na urina recente. Asdrúbal voltara encontrando-me em espreguiçadeira de mãe em meio à insolência matinal de Hubbard e a imitação Wintom e Davis. Pularam das redes da varanda quando, sem falar uma palavra, pegava mais uma vez o clarinete. Absorvi aquela música pelas entranhas, pelo fumo que sopra os deleites, língua e palhetas, língua e bocetas. O som ejaculava das lapelas daquela clarineta, daquele chapéu panamá, lembranças de Iaiá, minha mãezinha d’água que era iemanjá. Quimera clave de sol e lá... Um silencio elucubrando devaneios. Conjeturando, confabulando, ensaiando desmaios. Decidi que era tempo de viver em paz, que fosse página virada Dee Dee e também Ronald, este caralho em forma de ficção! Voltei a pensar em meu pai. Depois foi Alana que chegou. Para abrir as pernas pro Asdrúbal e comer dos meus quitutes ao som de Janis Joplin, às vezes, atrás de Sebastião Cabeleira: o pai do mel. O pai do melaço que nos lubrificava a percepção das virilhas e nos compunha redondilhas ao trago ébrio das canções.

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Ouro Branco, 3 de agosto de 1979, Caríssima tia Alba, Espero que esteja tudo bem em São Paulo, também espero que sua botica encontre novas fragrâncias. Sua sensibilidade Marcel Proustiana me diz que estás prestes a elaborar outros perfumes. Já eu, me cansei da literatura francesa ( não que tenham apenas narizes grandes ). É que me veio à mão um manuscrito de um senhor de Mar de Garças chamado Aristides Bocamorta. Dizem que ele passa a vida a cultivar pássaros e observar borboletas e colher pimentas e outros condimentos naturais numa capoeira naquela cidade de águas paradas. Voltando aos franceses, a franqueza de seu Aristides é alguma coisa análoga à Antonin Artaud. É muito preciosa sua tentativa de perfumar o mundo com boticas pré ciosas do óleo da poesia de um Rilke para mudar um pouco a geografia e como os homens a percebem Peço que leia o senhor Bocamorta e terás a confirmação que observar borboletas ou retirar perfume das coisas não é nem um pouco um ato inocente. Existem tantos poetas que preferem agir como Drummond, Que Aristides Boca morta me soa mais natural e mais visceral, posto que seja um auto-ditada falando verdades, espero que gostes! Alana chegou e se distrai com Asdrúbal, enquanto deixa Aníbal e Altamiro falando sozinhos. Pois que se falam para mim ou falam sozinhos ou falam para uma pedra. Deixemos esta compreensão para Hubbard e seus dois aprendizes. Espero receber notícias logo!

ARISTIDES BOCAMORTA: 1 AS POSSESSÕES DO MUNDO:

O mundo da grande indústria finou-se em seus dias contados. Os homens estão a infernizar os ratos deste porão, chamado ocidente. Não há como negar a covardia de sentarmos em nossos rabos sujos, bem em cima de nossas democracias. A cultura das bundas foi como uma febre antes da hecatombe e, no meio dessa confusão, assistimos ao bom cinema iraniano esquivar-se do aiatolá e ao escárnio na boca do hemisfério norte. É esta a contemporaneidade que a ciência de Freud nos ensina como nós a negamos. Embargos diplomáticos, bioética, eutanásia, terrorismo... Outras coisas que inflamam os sermões. Outras pastilhas de cianureto para a América. Algo muito antigo como a encenação é hoje burlado por quem propriamente encena e não se percebe assim fazendo, a quem pertence este engano! Os parlamentos ainda proclamam engodos muito depois de Kafka e Orwell. Por onde transitam as possessões do mundo depois que as sentimos roubadas de nós!

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Ora nos vendem idéias românticas de que estamos no tempo de confirmar a então promissora ficção científica do século vinte. Ao passo que devemos afirmar senão as androginias, mas, esta aurora de chumbo a subverter a libido. Subverter deixará a página policial e estará no segundo caderno. Pois que meus amigos alheios de sua perversão chamem-me de puritano. Pois que assim não fazem outra coisa a não ser afirmar o que digo do mundo. Vejam como exemplo de hoje, a tão obvia ambigüidade do anti-semitismo. Qualquer indivíduo além de ser a representação de sua opinião (e isso, a meu ver, é o que a arte tem de melhor) é também a representação de quem o declara livre. Liberdade. Talvez, seria realmente melhor nos privar dela antes que outrem o faça. Neste ato estaria contida a renuncia ao mundo sem a premissa do reino de outro mundo. Corporações mantêm aparências em cremes emolientes, sabonetes esfoliantes e causas pretensas. As urgências são o melhor negócio e os negócios são os melhores anúncios. Esperemos Balaão e seu rebanho de bestas falantes: opinião virou óculos de sol e vestido. Antes que me peguem pela vertigem da sintaxe eu subo até o cume para gritar: As idéias vêm como o anzol a nos fisgar para a vida das dúvidas. Eis que estou aqui, nas possessões do mundo, no chão do oceano e no mar da crosta, em meio a prateleiras confusas: os barrocos, os budistas e os trotskistas, meus amigos de incompreensão. A frente das periferias tomarão o leme das políticas e bagunçarão a pauta do noticiário, andarão rejeitando todos os relicários de vários cristianismos e profanando as tumbas dos helenistas. As praças e os populares são o que os acadêmicos descrevem para os sucessores de Noés. Nosso IBGE e o advento de Darwin. É a humanidade sempre mensurando o impacto dela sobre ela mesma. Regurgitando a liberdade da qual se alimentou com vinho de despacho, hóstia ou Buffet Catarina. São como armadilhas, as possessões do mundo. São muros por que são quintais, são bombas por que são muros e são quintais por que são terra. Terra que sempre foi objeto de lua, objeto de sol. Platão ligou a vitrola e os homens entenderam antropocentrismo, depois etnocentrismo... Já no final da festa contentam se com o egoísmo apenas, companheiro e redentor. (assim, ganha-se amizade com o fisco e os oficiais de justiça)

A fluoxetina é um fenômeno natural da pesquisa. Enfim pesquisam problemas. A marca que as possessões do mundo nos deixa é a marca da utopia. Às vezes se dispersam em ejaculações e movimentos sindicais. Diluem-se as possibilidades de fraternidade na massa faminta e na multidão a esmo Página 11


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As brechas são a dialética da loucura. Esta que começa a arrastar os filósofos por seus cabelos brancos. O tempo nos diz para passarmos por ele mais depressa e pensando menos e preocupando menos com contradições. Um dia saberemos se o que nos acomete agora como anarquia e orgia (este alumbramento de nossos confins). Será realmente a oportunidade de redimir nossos lapsos e nosso azougue para com os lapsos e azougues. Liberto meus fetiches e ainda pedem que eu seja o mais desleixado o possível neste delito. São os deleites do corpo na cidade de estanho. A pele e o amianto se roçam em ar dor. Há uma parede de lodo em meu sexo, uma sílica no pulmão viscoso. Seremos, por fim, tabeliães de nossa própria mentira. Escreveremos os inventários mais absurdos em nome do desejo da posse, seremos testemunhas do próprio crime de viver e simular sua ciência. A concordância com os desafetos da carne penso eu ser justificável para tornar as possessões algo mais destituído de suas insígnias, de suas misérias. Pois que as mazelas do corpo só a morte deseja. Pois que as perfeições da matemática dos mesmos também só à morte são endereçadas. Brado estas palavras, acreditem, para defender certa libertinagem, mas, que se introduza em sua ceia o existencialismo, tão caro aos signos mais poéticos. Saber da solidez da pedra e da agrura de pisá-la não a redime da poesia e do escracho, ambos neste tempo nosso. Reservamos às pedras às vezes poesia, mas, sempre explosivos. Hoje, podemos ter uma relação mais sincera com as pedras. Alguns tendenciosamente dizem que tudo veio a partir do magma, tudo veio de nada, é isto! O verbo veio de sopro, que já era alguma coisa, e estava no mundo desde o chimpanzé à pedra polida (a história é uma coisa injusta, estamos escrevendo sobre o que serão injúrias em nossos túmulos) Pois que no verbo testemunhou-se a paixão. E dentro dele perfurou-se boca e narina. Depois, fez-se música, e fez-se algodão. Assim as possessões do mundo começaram numa faixa de terra que é hoje o continente africano. Inevitavelmente tudo que tem sido posterior a estes adventos são arbitrariedades e improbabilidades. Precisamos estar certos de nossas dúvidas. Como se estar no mundo não fosse tão desimportante como é para os monges no Tibete, E nem tão valioso quanto àqueles que querem o retorno do califado. Paradoxalmente, o som das cidades no mundo é decupado apenas pela faculdade mental da loucura. Assim como escrevem em seu chão e suas paredes, uma história inenarrável, pois é feita com a amônia que tinge tudo o mais de dinheiro Página 12


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O interesse, na semântica da loucura ganha leituras de devoção por possuir a maturação e a morte num só tempo de verbo. 2 HEMORRAGIA

Sim, nós humanos raciocinamos. Nostradamus inaugura empirismos que não mais carecemos. Hoje, a loucura é o principal argumento da razão. Não teríamos outro objeto nas mãos a não ser pedra e loucura. Descartes, do alto de sua penumbra: penso, logo existo... Seria como dizer hoje: penso e preciso de prescrição médica. Além das invectivas, a loucura pede diálogo com os loucos mais recentes. Sim, aí está Zaratrusta. O pudor é algo banido da pós-modernidade que é a interlocução da própria insanidade. O absinto de nossa pré-história, embebeda o homem moderno que pisa na lua, mas, tem sede de petróleo. Nossas cidades projetadas para clonazepan são uma hemorragia de gasolina construindo desditos adulterados. De verdades absolutas em verdades absolutas mentimos descaradamente e o tiro sempre sai pela culatra. De um sobrado da Rua dos Douradores Bernardo Soares sentiu o mundo. Já eu, prefiro a taverna dos românticos. Os investidores internacionais são a tecnocracia enquanto expectoramos ácido sulfúrico. Não precisamos deles assim como não produzimos mais prolactina ou estrogênio. Nossos amigos de vermelho supõem que os donos do mundo especulam idéias e confabulam pensamentos. Antes eles tivessem esse senso. Assusta-me pensar no pragmatismo das ações dos donos do mundo. Antes eu fosse (como todos podem pensar) um apocalíptico.

Talvez tenha me tornado um bruxo por tentar compreender o mundo e saber que nada pode ser feito... A humanidade tem a tecnologia que julga ser suficiente para sua proliferação pacífica, mas, não passamos de uma praga, um desequilíbrio que Alberto Caeiro previra. Deixássemos árvores como sendo apenas árvores e rios apenas rios, tendo assim diagnóstico mais condizente com a força da gravidade. Mas, a máquina que movimenta a cidade e seus semáforos quer mais espaço. Assim o mundo quis expandir a cidade. Assim o dinheiro faz do ser humano um maratonista de sua própria derrota. Os confins do mundo ainda aguardam outra civilização, esta que tornaria a cidade mais viável e menos louca de pisadas ligeiras e passadas largas para sua incerteza. Página 13


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Definitivamente, não faremos isto! E tudo vai fartar-se, será o colapso do homem (e não o do capitalismo). Este não tem nada a ver com nossas pretensões de a ele aliar sem lermos o que ele escreve. Temos este contrato conosco, este acordo tácito que faz do manicômio um lugar louvável, e o mundo sim, é este lugar de covardes emudecidos ante a ignorância. Não há céu nem inferno que mereça tantas bestas. Há um mundo inteiro, de dor, mas um mundo inteiro a disposição de argumentos em favor desta loucura que escarnece. Para este escarnecer, precisamos atentar para o proselitismo das pessoas que deitam sobre seus pesadelos e saem para passear com seus cães. Antes este faro comedido fosse vencido por falta de biperidenos. Vermífugos são necessários, para melhor entendimento, funcionaríamos melhor com o verbo e, na falta dele, a bolsa de valores sempre subirá. Em tempo, não alfabetizaria soldados, e sim, flores e urubus.

3 A SEMÂNTICA DAS CORUJAS As digressões e a parcimônia estão a serviço da obscuridade. Não se assumem das sombras este povo que de tanta penúria não esconde mais sua hipocrisia. Clarice observou bem este estado viscoso segundo GH. A comunhão com a terebintina de nossas falsas aparências é a moldura para este quadro de horrores cuja face grita um silêncio inadmissível. É tudo um burburinho antigo de rosas desidratadas. E este meu manifesto é minha compleição para pólvora e refino de tabaco. As associações ao anti-psicótico não diluem o mercúrio cromo em meu sangue de pujança. Labutamos sempre o perfume da noite, esta que acolhe o orvalho casulo de mistério. O acaso não nunca se confunde com a barbárie das ogivas (como se não fosse suficiente a barbárie da arte). Correndo por pocilgas e subterrâneos, conspira um mundo que não existe. Exangues de compreensão os sentidos aceitam o ópio da peleja que mora debaixo dos rios e dentro das seivas de veneno. A botânica da loucura gira os astros com o devido langor de suas quimeras. Meu soro aguarrás dilui o látex de novos dias, mareja e dilata minha visão. Meu fôlego sopra tempestades nos assentamentos e campos minados. Da bonança às enchentes os homens resolvem o gesto violento do verbo sol quente. Estamos embriagados. Qualquer quimera de hoje será amanhã julgamento. E as vontades da loucura não são imunes a falta de critério para tal. Página 14


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Mesmo com seu hímen de bromélia brotada. Esmorecemos o orgasmo das massas com televisão e matrimônio. Os sacramentos povoam a boca infalível do místico e o domingo (além de pensamentos obscenos e incestuosos) também para o perdão. Perdoem-me, portanto, as lascívias deste pequeno burguês proto-fascista que, inexoravelmente prosseguirá suas querelas. Suas porraloquices de quiromancia. Um cânhamo de palavra macia refaz-me as vistas na superposição idílica do horizonte Algo ilícito e etílico consegue me alcançar a madrugada. Adquiro a semântica das corujas

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Ouro Branco, 23 de novembro de 1979, Tio Adamastor, Saudades da sobrinha! Queria vê-lo antes de se aposentar, pois imagino a dor da perda... Ravi me parecia ser um anjinho mesmo iluminado... Rosa não poderia mesmo ter feito o que fez! Não se culpe pelo acontecido! Não vá para Bem Posta! Estamos te esperando aqui... tio Antônio quer vê-lo, presumo que seja para curtirem um fumo de rolo e colocarem tudo em dia... Cuidado com o conhaque demais e também o aguardente. Penso que Asdrúbal gostaria de jogar cartas contigo e nossa amiga Alana tem o desejo de finalmente cumprir a promessa de conhecê-lo. Não ando tendo notícias de Dee Dee, mas, peço que não tenha ciúmes do tal Donald ( deve ser um sujeito desequilibrado ) Estou mandando algum dinheiro para que possas vir nos visitar assim que possível. E também lhe envio um manuscrito de sua prima Adelina (ainda escrevendo como ninguém ) ela que aqui idealizou no personagem Zequinha Bilico seu sonho de paz. É isto que lhe desejo agora... Zequinha Bilico tinha o desejo que o sol me aquecesse. E que eu conseguisse isso num banco de praça com orvalhos amanhecidos desse jardim contendo o verbo esperar. Tinha a vontade que abríssemos um livro em volta de árvores. E que recebessem nossa respiração sob forma de luz. Zequinha Bilico queria a esperança palpitando palavras boas e que pudéssemos dizer que tínhamos saudades do nosso futuro. Nosso futuro de brisa e descanso. Pretendia que seu sorriso fosse afago. Pretendia abrir as janelas e não saltar. Zequinha Bilico gostava do céu, mas, não desprezava o chão. Ele queria que respeitássemos as pedras. Tudo nos servia de formas (mesmo quando formos). Eu vou respirar este perfume, pois ele se desmancha como um suspiro de quem, por um segundo, compreende existência. E não exigiu dela mais que isso. Desmanchar da vontade o medo. Esvair da beleza seu segredo que nos foge de compreensão. Zequinha Bilico deseja-me flores como quem as beija e as lança na espuma do oceano, na sua parte mais continente. Tal qual marejam o globo e os olhos, as folhas no chão e a confusão das formigas. A generosidade natural das relvas é seu aprendizado poético: Ar dor nesta brisa de ungüentos resolvendo os homens. Arte fato numa quentura dos adventos com cândida sujeira Arte ofício, ladainha rebentando de noite solene. Hora, ofício, escândalo que exprime saudades derramando bálsamos. É de piano a água que trago entre os braços. De amantes, topázios, adágios, contágio por látex de tinhorão. Verde vagar as arvores gritando silêncio. De soluções iniciais. Deste lado na bruma de um cânhamo duvidoso Com solo de fertilidade com lágrimas. Com sumo brotado das polpas e das gemas escurecidas. Haja untar o trigo e o tabuleiro Amam então o ofício de chamar leite pelo pranto. Página 16


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Cantarem mim e o sândalo das revoluções Corpo exangue, cio e sacrifício, redenção e gozo Amem! Sol Lá se vai. “ O homem verdadeiro é o homem de dentro. O que se olha do pé descalço na folia simples. Na terra, por ter sido arada por ele em enxadas, em mãos tratadas pela capina. Confirma-se em ser o ventre de suas eternidades. Assim é o homem interior cujos pudores provincianos vingarão como lisura de caráter. Sua retidão altiva é própria de velório, é típica de procissões. Seu intuir é a laboração de sabedoria singular, silêncio plural. Não consente em calar. Seu calar é sinal de contrário, é polêmica. Rumina o procedimento, o andamento, o andor em cortejo triste. Homens de dentro calados contrariam um continente inteiro. E o mar sempre lugar de dissoluções é onde a peleja do chão se aniquila. Sua pujança são olhos pasmados, aí há o consentimento. Como ignorar o fato de o homem trafegar. O horizonte não se finda. Nem na goiabeira, nem na pedra grande, o horizonte é fora da visão. Sal e água nas mãos é translucidez. O nada é traduzido em belzebu, o barco sem remo, a tristeza sem rumo... o vento traz destinos que não são mais compreensão. Eis a roda do mundo! Mas o entendimento ainda é rio, pedra cortada, madeira talhada. Paz é fumo de rolo a esmo. Em nenhum salitre quaisquer de seus homens entenderia destas profundezas centrais e agruras equatoriais. Não enquanto houver luz e o carvoeiro trouxer sua escuridão ao dia. Na boca da noite minha boca pequena se cala. Galo haja para cessar silêncio.” Zequinha Bilico

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Ouro Branco, 5 de janeiro de 1980, Querido amigo Agamenon, Escrevo já sabendo que seu caso com Juliete Beltrão vai na mesma: você apaixonado e ela sem saber, ela ao sabor do absinto e você decupando tudo isto em poesia. Recebi as fotos de sua série de esculturas, espero que consiga expô-las quando abrirem novos editais. Sei que deves estar também apaixonado pela Elis, como canta esta mulher! Sei que sabes que este país está explodindo. Peço que antes que abandonemos nossa sujeição a pequenos burgueses de Cassavetis ou mesmo Godard ( quando convier ) e nossa afeição por bebidas baratas e fumos duvidosos como se fôssemos ainda adolescentes. Todo nosso civismo até hoje apenas soou como paixões juvenis. Estamos velhos Agamenon, apenas os anos chegam novos depois nos matam sem nos sabermos com a mesma esperança. Descobrir isto não me faz nem um pouco mais idílica... Saiba que Juliete deve saber disto antes que nós, pobres intelectuais pensando-se malditos, não passamos de homens e mulheres bem ou mal criados. O novo ouro do Brasil, como previra Drummond, está por vir. Encontrei-me com este homem Altamiro, um catador de lixo, pudera o ouro estar justamente no lixo. É tudo condizente com o que vivemos hoje. Altamiro recolhia lixo na boa viagem. Em 75 houve uma enchente que afetou a casa de Chico prosa, que de tanta desgraça partiu-se embora. Altamiro apanhou alguns volumes que sobraram da biblioteca deste homem prosa... Ao conhecê-lo nas águas de são Rafael e na pedra de santa Marta, ele me disse de sua predileção por Jean Paul Sartre e Júlio Cortázar. É o que fica obvio em sua escrita que lhe envio datilografada de seus garranchos, São quatro contos fantásticos e um exercício dramatúrgico que me soa como uma diluição de “Entre quatro paredes”. É um fôlego novo para reinventarmos e livrarmos de velhas figuras. Sim, Juliete tem seu sopro de argila, posto que Altamiro me tem em ressacas de são Rafael! Um beijo!

NOME 1 Desde sempre, Monteiro quis ter um cavalo. Sua afeição por estes animais vinha da ânsia insignificante do signo infantil. Monteiro possuía a estética em desenhá-los, com sua disposição muscular, proporções e o porte elegante dos eqüinos e também quando potros. Monteiro morava em um subúrbio de tristes luzes cinzentas cujo verniz de suas madeiras, de suas mobílias tinha o brilho do óleo das coisas sem nome que se perdem na aguardente. Quando houve uma oportunidade, ele adquiriu um cavalo, incitado pelo desejo de cavalgar ventanias. Em sua montaria, obteve boa oratória. No trotar de seu cavalo, aprendeu boa retórica.

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Monteiro passou a desbravar rebanho galopando com suas palavras. Seu tio não concordava com sua doutrinação à sela e arreio. Não adiantou, Monteiro, montado, conquistou a vizinhança e o que ela pensava. Com mais este desgosto, seu tio definhou até sonhar do sono em finitude. Monteiro, seu único herdeiro, ficou com sua vistosa residência. Além da fachada central, havia uma construção retangular de dois andares, onde se espalhavam os aposentos, pousando no descanso de um pátio a céu aberto com um lago artificial. O cavaleiro decidiu derrubar a estrutura da fonte de água, quebrou o concreto e deixou crescer um pasto para seu cavalo amado. Corajoso, ele avançou em suas conquistas, comprou terras que circundavam seu prédio e passou a incentivar seus seguidores a virem morar em suas propriedades, em nome de uma nova prática religiosa. Todos eles aceitaram, mesmo sem ter noção alguma sobre qual conduta iriam responder, apenas questionaram por que Monteiro não comprava outros cavalos Este prontamente determinou a proibição de mais cavalos, não em suas terras. No entanto, todos eram unânimes em felicidade advinda da bondade dele. No entanto, o ilustre cavaleiro era dono absoluto de sua própria felicidade. Afinal, Monteiro comungava da alegria de seu cavalo. Que, afinal, pastava e balançava do rabo as moscas. Monteiro, sabiamente, observou todas estas bem aventuranças e concluiu que já era tempo de instituir o primeiro rito de seus cultos de rara autenticidade. Pensou isso, por bem, sabendo da alegria de seus fiéis. Sugeriu delicadamente que seus súditos pastassem junto a seu cavalo. Não houve discordância. Todos sabiam que era muito importante pastar. Muito sutilmente e bastante ponderado, consultou seus apóstolos se eles não achariam correto pastar à direita do cavalo. Todos entenderam com profunda resignação e muito respeito Com todo cuidado, perguntou a todos se pastar à esquerda do cavalo poderia ser considerado uma heresia, pois era preciso que todos soubessem que pastar à esquerda poderia causar uma punição severa. Portanto Monteiro logo comunicou isto a todos porque não queria punir ninguém. Todos acharam sensata e maravilhosa a idéia. Todos estavam plenos de bons sentimentos enquanto pastavam. Nem por isso, Monteiro deixava de recomendar, todos os dias, prudência ao ato de pastar.

NOME 2 Nunca imaginei que um dia eles pudessem vir. Chegaram. Aqui já estavam. Tanta saudade desde não conhecê-los. Especificamente, o senhor P. e a madame G. . O senhor P. tinha no timbre de sua voz uma dignidade de usar paletós verdes. Madame G. era uma pérola em sua gargantilha. Presumi que ela deveria gostar de espumantes. De maneira que assim supus os dois, provavelmente um casal que apreciasse bons charutos e também cachimbos.

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Madame G. estava cansada, parecia que vinha de longa jornada. Não consegui conceber o conteúdo do que trazia em suas malas mas, certamente havia pequenos frascos de perfume entre os vestidos . Seu cansaço sugeria aparatos mais densos que perfumes e vestidos em sua bagagem. Ofereci à madame G. quarto e sono, naturalmente aceitos. O senhor P. tinha uma aparência gasta, um sofrimento antigo na barba descuidada. Um júbilo ofegante entre os olhos e as rugas da face. Logo constatei que o senhor P. sentia vontade de que falássemos de futebol. Passamos a falar de futebol. Enquanto isso, madame G., fazia uma leitura interior de sua presença ante os objetos que ainda a estranhavam. Percebi que madame G. procurava sintonia, e às vezes encontrava. De fato, harmonia é uma coisa mais natural ao gênero feminino. Nunca imaginei que eles viessem. Vieram. O barracão do cortiço onde eu moro se alegrou com as cores de madame G. e os timbres do senhor P. Depois de algum tempo, devidamente instalados, observei várias vezes, madame G. na sacada, que dava acesso ao pátio, que por sua vez, dava acesso à rua. Madame G. convenceu o senhor P. a me convencer de que precisávamos derrubar a escada e, que, no lugar do pátio, construíssemos uma piscina. Em nenhum momento pensei que isto poderia atrapalhar os outros moradores. Pois eles eram muito respeitosos. E em nenhum momento cogitei a hipótese de contrariar o senhor P., este que era tão gentil e cordial. Construímos a piscina e tiramos a escada. Agora, além de jogar cartas, podíamos exercitar saltos ornamentais. Contudo, algum tempo depois, o senhor P. começou a olhar para a piscina com um tom um tanto quanto melancólico. Preferi respeitar o senhor P. em suas reflexões consigo. Logo ele resolveu convencer madame G. a me convencer de que precisávamos criar jacarés na piscina, precisávamos de um pouco mais de extravagância. Levei em consideração que outros moradores tinham boa índole e não iriam se opuser. Concluí que não poderia desapontar madame G.. Pobre madame G. tão sensível e solícita! Então comprei um casal de jacarés e os coloquei em sua nova morada. O tempo passou e os jacarés procriaram, já contavam sete, quando madame G. ouviu no rádio o anúncio da apresentação da orquestra local, no centro da cidade. Ela ficou muito triste, pois, não podíamos nos deslocar. Se pulássemos na piscina seríamos devorados. Fiquei muito compadecido com a lamentável situação de madame G. e peguei uma escada emprestada com o vizinho para que ela pudesse sair pela janela. Já eram onze jacarés quando o senhor P. decidiu usar do mesmo expediente para sair atrás de madame G. que, até então, não voltara. Hoje são vinte e nove jacarés na piscina. Se eu não tivesse que alimentá-los a todo o momento, certamente recorreria ao método da escada pela janela para saber notícias dos dois. Estou com muita saudade deles. Estou deprimido. Sinto a falta deles, é como se eles nunca tivessem vindo.

NOME 3 Alcebíades estava farto, tinha que descansar de novo, ele não se preocupava com gravatas ou sapatos apertados. Procurava não. Nem sapatos nem gravatas. Havia outros nãos mais imperativos. Preocupava-se com o calor e com a bagunça de objetos espalhados na mesa de sua sala. Era isso que assolava sua madrugada. Nunca tentou tranqüilizantes ou whisky. Esses seus momentos eram só vasculhar gaveta. Página 20


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Ao tentar abrir uma, escorregou e caiu com o olho direto na maçaneta. Foi um êxtase repleto de vazio na lucidez, que o fez abrir os olhos novamente e, com a mão na cabeça, levantar. Alcebíades percebeu o caruncho debaixo do assoalho do armário em vazão caudalosa. Adotou o precaver de pisar o pé cauteloso. Estes rios de caruncho são perigosos. Ele hesitou um pouco em descer a escada. Preferiu fazê-lo sentado, prevendo a correnteza, procurava o corrimão. Tudo era caruncho em queda livre. Ao chegar ao térreo, apoiou suas mãos contra a parede e encontrou uma imensa poça de caruncho na soleira da portaria. Nesta hora sentiu medo de ser levado pela corredeira, não era apenas uma mera preocupação em não molhar a barra da calça com caruncho. Quando Alcebíades abriu o portão, é que ele viu a enchente. Um senhor altivo e circunspecto fez menção de lhe direcionar o gesto. Era Baltazar que andava cuidadosamente pelos canais alagados tentando se equilibrar. Muitos já tinham se afogado, quando Baltazar chamou Alcebíades para ajudar os homens que construíam diques de pedra para estancar as inundações. E foi assim que fizeram uma cidade de pedra para minimizar os infortúnios.

NOME 4 A senhora C. era muito agradável. Seria uma injustiça pensar nela lembrando apenas de seus horrores. Pois justo ela tão simpática e delicada! A sua família não seria capaz de cometer este engano. Aliás, não seriam capazes de cometer engano algum a seu respeito. Apesar de tantos terrores na existência da senhora C. Aproveitando o advento de sua morte, os familiares da senhora C. agiram, mais uma vez, com isenção. Procuravam, todos eles, o que fosse melhor para ela, para seu cadáver. Uma vez que a senhora C. tinha pavor da idéia de consumação por meio de vermes subterrâneos, e essa ojeriza foi transmitida sistematicamente a seus filhos, não havia nada mais adequado que respeitar o medo dela, bem como o medo de todos, agora presente no corpo esvaído da mãe. Acharam melhor não enterrá-la. Depositaram seu corpo numa urna aberta em cima de uma mesa numa das ante-salas. A intenção era, além de respeitar o medo da mãe decrépita, entender este mesmo medo que a senhora C. inocentemente tentou não incutir em seus filhos abandonados. Resolveram então, entre si, estudar a morte, um curso intensivo sobre a morte. Através da dissolução do corpo da senhora C., seus entes poderiam repensar sobre seu temor original acerca da finitude. Poderiam também, projetar suas aflições de quando deixassem de respirar, observando a decomposição de seu corpo. Era a única maneira de saber o que lhes ia acontecer um dia. Mas, seus filhos sabiam exatamente que não poderiam compreender o ato praticado por eles, como egoísmo ou ignorância. Era como se mãe, deitada solenemente em urna lhes desse a última lição: Como deixar de viver. Procuraram então uma metodologia na observância da evolução dos estágios e também dos fenômenos que viessem a conhecer e estavam ávidos em conhecer Isto que chamaram dissolução completa do corpo. Página 21


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O fato de descobrirem que os corpos não se dissolvem por completo e o que se anula demora em anular os deixaram desconcertados. A primeira providência após o método foi esterilizar toda a casa e implicitamente se desinfetarem. No princípio tentaram sentar-se à mesa, onde repousava a mãe, durante as refeições. Com o tempo foi impraticável repetir o ritual. Mas bem que tentaram borrifar a antesala com amoníaco. Vã tentativa. O mau cheiro e a aparência tenebrosa da senhora C fez com que vedassem o cômodo e isolassem todas as suas frestas e fendas. Antes ainda deixaram um vidro impermeabilizado para que pudessem dialogar com a eternidade daqueles restos. Aquilo assolou a todos de tal forma que, ao final do processo, sofreram muito para chegar a alguma conclusão. Mas enfim, combinaram todos vender a casa da senhora C para que eles, os filhos, Pudessem contratar os serviços de seguros funerários que previssem a cremação.

O MANTRA INEFICAZ DA TARDE Mulher perdida- Ah... Enfim, luz! Mas, onde estou? Criança sábia- Onde estiveste não havia luz? Mulher perdida- Oh menino! Não caçoe! Sabe como sair daqui? Criança sábia- Não, não sei. Mas, mal chegou já queres sair? De onde vieste? Por sua vontade de voltar deve ser um bom lugar, conte-me! Mulher perdida- Criança! Não tem a idade suficiente... Criança sábia- Não sabes, mas tenho a idade de todos os homens e de todos os mundos! Mulher perdida- Qual o teu nome? Criança sábia- Ainda saberá meu nome ele está dentro de ti Mulher perdida- Tudo bem, menino espirituoso! Adentrei-me em corredores intermináveis um findava aí começava outro, tudo na penumbra, eles pareciam estender até a linha do juízo final. Criança sábia- Corredores intermináveis... Entendo. Mulher perdida- Não, não entende Senhora que estava dormindo- Calem-se não estão vendo que eu estava dormindo! Acordaram-me! Estive dormindo este tempo todo e esquecendo de mim mesma, aí veio a presunção estúpida de vocês dois! Acordados inutilmente... Mulher perdida- Quem é esta senhora? Criança sábia- esta senhora estava dormindo e eu não a atrapalhava mas, você veio e... Senhora que estava dormindo- Aí veio você, mulher perdida, atribular ainda mais minhas lamúrias. Preferiria dormir, mas já que me acordaram ouvirão sempre o meu escárnio! Não vi nada no mundo que não merecesse meu escárnio exceto o sono! Tudo que me tornou estúpida é mais estúpido que tudo que eu digo. Criança sábia- Agora ela não parará de nos infernizar... Senhora que estava perdida- Não mesmo, toda a humanidade merece a agonia. Vocês são hipócritas, tentam fugir da agonia, fingem não saber que não há saídas! Como é o nome desta senhorita que se veste tão mal? Mulher perdida- Sou uma mulher perdida Senhora que estava dormindo- Ora deixe de se lamentar! Estamos todos perdidos! Criança sábia- Não, não digamos isto, nós... Página 22


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Senhora que estava dormindo- cale-se peste!

Senhora que estava dormindo- Diga-me, mulher perdida, como andam os homens? Mulher perdida- ah! Os homens, às vezes acho que respiro por causa deles não é possível imaginar a vida sem eles, não viveria sem sexo! Por falar nisso, onde eles estão? Senhora que estava dormindo- Não sei. O que sei é que agora que acordei, daria tudo para abrir as pernas para o primeiro que aparecesse... Mulher perdida- A senhora está sendo vulgar. Senhora que estava dormindo- Não estou. Sei das mulheres como você. Esconde a indignidade de espírito no decote dos vestidos pretos ou vermelhos estou falando de luxúria. Mulher perdida- a senhora está sim, sendo vulgar! Senhora que estava dormindo- Não mais que você, conheço-te bem, sua promiscuidade em seu perfume de mau gosto em seus óleos hidratantes... Veja, o sexo é natural, como estava dizendo, é só abrir as pernas! Mulher perdida- E, afinal o que é ser vulgar? Já não importa não é mesmo? Senhora que estava dormindo- estava falando de homens, e afinal o que é ser homem? Também não importa! Criança sábia- ah... Mulheres... Não sabem que a luxúria não vem de lugar algum senão delas mesmas, de dentro delas, acaso sabem o que é ser mulher? Mulher perdida- Cale-se criança tola! Senhora que estava dormindo- Acho que agora passaremos a falar de mulheres. Mulher perdida- Sim mulheres. Senhora que estava dormindo- Nenhum homem saberá o que é ser mulher... Mulher perdida- Bingo! Senhora que estava dormindo- o que não é vantagem alguma Mulher perdida- Achei que poderíamos começar a nos entender... Senhora que estava perdida- Você vê alguma vantagem em achar que entende alguém? Mulher perdida- Nenhuma, especialmente com pessoas como você! Senhora que estava dormindo- É o que fazem todos, acham que acham o certo... Criança sábia- enfim chegamos a uma conclusão: mulheres não se entendem! Mulher perdida- e quem se entende, seu asno? Criança sábia- Um dia vocês saberão, talvez este seja o motivo de estarmos aqui, para exercitar nossa compreensão Senhora que estava dormindo- Se eu pudesse ter sono com as bobagens que diz este menino...

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Criança sábia- Porque a senhora não tenta dormir novamente? Senhora que estava dormindo- Na verdade garoto estou acordada há milênios, esta é a sensação que tenho. Criança sábia- Mas, não estavas dormindo até agora há pouco? Senhora que estava dormindo- Não neste lugar. Criança sábia- Pois eu aguardo ansiosamente o dia em que eu dormirei no leito de minha finitude, o dia em que dormirei minha eternidade. Senhora que estava dormindo- Pobre infanto! Na há aqui este sono. Criança sábia- Sei que gostas de zombar as boas almas mas, como ousas blasfemar a tal ponto? Senhora que estava dormindo- Sonhe menino, sonhe seu pesadelo ele é tudo que temos aqui. Enquanto isso podes dormir. Criança sábia- Não é assim que quero dormir! Senhora que estava dormindo- Como queres dormir menino? Criança sábia- com os pássaros e com as nuvens. Senhora que estava dormindo- Não seja por isso, este pesadelo também os têm Criança sábia- Ora! Porque pássaros e nuvens habitariam pesadelos? Senhora que estava dormindo- Por que os fizemos eternos! Criança sábia- Ouça uma coisa que durma então somente a senhora! Senhora que estava dormindo- Mudei de idéia filho. Criança sábia- Então não atrapalhe meu sonho com sua insensatez! Senhora que estava dormindo- Então estás dormindo? Criança sábia- Não, não durmo. Senhora que estava dormindo- Há quanto tempo não dorme? Criança sábia- já não me lembro. Senhora que estava dormindo- Então durma! Criança sábia- Não, não durmo! Senhora que estava dormindo- Está vendo, é este o pesadelo, talvez seja por isso que estamos aqui. Mulher perdida- Ei! Estão atrapalhando minha masturbação, hein!

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Criança sábia- Elas não se convencem, elas precisam estar convictas comigo! Precisamos nos afinar! Precisamos compreender este lugar! Esta condição absurda, abissal. Elas não me ouvem. Elas precisariam me ouvir. Eu precisava convencê-las... Mulher perdida- Menino! Menino! Venha ver o que eu encontrei! Senhora que estava dormindo- Grite mais, mulher perdida! Mulher perdida- Acaso a senhora estava dormindo senão venha logo você também! Criança sábia- Vamos! Senhora que estava dormindo vamos! Vamos ver o que a mulher perdida encontrou. Mulher perdida- Vejam achei esta corda... Senhora que estava dormindo- Pronto! Agora se enforque! Mulher perdida- Olhem bem... Criança sábia- parece estender até a linha do juízo final, como nos seus corredores intermináveis mulher perdida! Mulher perdida- Sim, quem sabe encontraremos meus corredores! Senhora que estava dormindo- estou aterrorizada se seguirmos a corda, poderíamos estabelecer um vínculo com o nosso passado. Criança sábia- acho que sim. Mulher perdida- não! Agenor não me perdoa mais! Senhora que estava dormindo- sim, seu marido! Se assim for nunca te perdoará Mulher perdida- e a senhora? Existe alguém que a perdoaria? Senhora que estava dormindo- nem eu mesma me perdôo meus três filhos se foram na enchente enquanto tomava cachaça na esquina. Criança sábia- E eu só quero ver novamente os preceptores! Mulher perdida – preceptores? Onde os viu? Criança sábia- sou órfão, eles me criaram aqui, me ensinaram tudo... Senhora que estava dormindo- e desde quando eles foram embora? Criança sábia- desde quando me deram a tarefa de velar pelo seu sono Senhora que estava dormindo- há quanto tempo eu dormia? Criança sábia- eles me ensinaram a não contar o tempo Mulher perdida- se puxarmos a corda talvez tenhamos algumas revelações sobre os corredores e os preceptores, vamos? Senhora que estava dormindo- Vamos! Mulher perdida- pois bem, vamos puxá-la, a senhora tem dificuldades de locomoção, mas aparenta ter força. Você é criança, mas contamos com sua vontade. Já eu sou uma mulher frágil, mas meus desejos são os desejos de um leão, vamos.

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Criança sábia- estamos tentando já faz algum tempo, e em vão. Sugiro que, ao invés de puxarmos a corda, a sigamos para vermos até onde ela nos levará. Mulher perdida- aleluia! Uma criança sábia! Senhora que estava dormindo- amém! Mulher perdida- como eram os preceptores? Criança sábia- eram bons e se vestiam de preto. Mulher perdida- e o que eles faziam? Criança sábia – apenas me educavam. Mulher perdida- junto com você, além deles, havia outros? Criança sábia- diziam que eu era o primeiro. Senhora que estava dormindo- estou exaurida, não consigo mais caminhar! Criança sábia- estou com muita sede! Mulher perdida- estão desistindo? Senhora que estava dormindo- acho que já desistimos. ? – boa tarde! Criança sábia- afinal, é tarde? ? – é tarde! Mulher perdida- quem é você? Pode nos explicar o que acontece aqui? ?- sou um inquisidor e vamos dar início ao interrogatório Senhora que estava dormindo- e como isso se dará? ? – se dará com os três, cada qual separadamente. Criança sábia- começarás por qual de nós? ? – por você, peço às outras criaturas que se afastem.

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?- então pequeno, por que supõe que está aqui? Criança sábia- acho que estou passando por um processo de expurgo. Algo que, em minha breve existência... ? – existência? Criança sábia-ainda não me entendo bem e acho que se bem entender e interpretar este Lugar. Estarei em progresso com minhas indagações reflexivas ?- indagações? Criança sábia- não tenho medo em dizer estas coisas. ?- medo? Criança sábia- sim, acho que não. ?- vá, teu quinhão espera por ti! Criança sábia- mas é só? ?- sim, por favor, chame a senhorita. Mulher perdida- pois não senhor? ?- diga-me senhorita o sentido que reconheces em estar aqui. Mulher perdida- Nenhum, sinceramente nenhum ?- nenhuma sinceridade? Mulher perdida- Só me aumentam as perguntas ?- para que perguntas? Mulher perdida – por que isto é um absurdo! Tenho impressão que isso nunca acabará que nunca terei respostas! ?- acha que irá acabar se houver respostas? Em todo caso encontrará respostas? Mulher perdida- encontrarei? ?- sim Mulher perdida- devo chamar a senhora que encontrei dormindo? ? – sim Senhora que estava dormindo- aqui estou podemos começar? ? – sim Senhora que estava dormindo- então comecemos! ?- o que a senhora acha daqui? Senhora que estava dormindo- acho que tudo que deveria ser é.e acho que tudo que deveria estar de alguma forma, se faz presente também. ? se faz presente? Senhora que estava dormindo- sim. ?- vá. Senhora que estava dormindo- espero contar com a sua complacência. ?- sim. Mulher perdida- inquisidor!? Senhora que estava dormindo- ouçam, ouçam este som que parece sair de um cenário! Criança sábia- é um mantra! Mulher perdida- é o mantra ineficaz da tarde! Senhora que estava dormindo- belo título senhorita! Mulher perdida- até quando o ouviremos? Criança sábia- até quando durar nossa eternidade. Página 27


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Naquelas noites de fevereiro, veio-me Aníbal me preencher os vazios, os mesmos de Alana e Asdrúbal em seu leito que tornara-se eterno aos meus cuidados. Havíamos recebido a notícia da morte do tio Adamastor através de tio Antônio, que nos contou que não sobrevivera do acidente num ônibus que saía de Tamanduá para Bem Posta em estrada chuvosa. Aquelas coisas acontecidas ao finado tio eram por mim narradas ao Aníbal que tinha uma sensibilidade de urso hibernando. Não bastasse ter descoberto Altamiro, veio-me Aníbal, semanas depois, com uma novela, um folhetim que escrevera sobre meu tio. Realmente um comovedor relato! Altamiro e Aníbal verdadeiramente preenchem o vazio dos orifícios do espírito neste ofício vagabundo da alma. Arte fatos de lacunas nas quais começo a me formar por gases e fluidos espessos e obscenos. Estes poetas em meu corpo, apenas mais ou menos. Desventurança Adamastor iniciava a leitura como fazia religiosamente naquelas manhãs entre mofos (internos e externos). A diferença, desta vez, era que ele não havia acordado bem e, na dúvida, se era ou não uma passageira dor de cabeça... Quando se lembrou de uma das últimas vezes em que tinha escrito. Naquela ocasião era de madrugada e ele escrevia compulsivamente, sem se lembrar de que o chuveiro estava estragado. Ao final de todo êxtase, Adamastor então se regozijou tomando um lento, frio e prazeroso banho. Tentando recapturar aquele momento, pôs-se a escrever fechando assim a velha e amarelada edição da antologia de Jorge Luis Borges. Pôs-se a falar de Borges, de maneira confusa, mas com a salvaguarda de que Belmiro havia consertado o chuveiro. Esse tempo cósmico, o inútil instrumento para medi-lo, esse tempo místico e o irrevogável rio da memória e das agonias, essa agonia apenas temporal. Algum bronze, uma peça de bronze, talvez o centro desse universo, irradiando e sofrendo toda a pressão, todo o calor. E, no maior dos paradoxos, nesse bronze não havia tempo, ali repousando todos os tempos de todas as agonias. Irradiando dali alguma força oculta em círculos infinitamente concêntricos, como disse Einstein. De um centro partia uma espiral infinita como Drummond escreveu no Bolero de Ravel. Isso tudo num bronze central com sua carne suja (ou ferro, que nome tenha essa matéria-tempo, suja ou não), como disse Ferreira Gullar em uma de suas mais belas “sujeiras”. E todas essas agonias rumando em sua finitude para qualquer outra coisa mais misteriosa. Já não estou mais em círculos, agora são retas paralelas, agora são retas paralelas e transversais. Num dualisPágina 28


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mo, formam um tabuleiro de xadrez de cujo centro emerge um minotauro, o minotauro que eu nunca vou encontrar, nem em mim, nem em Borges. Ah! Como eu preciso de uma mulher para parar de escrever essas porcarias. A mulher para Adamastor era uma divindade. Uma divindade que ele sublimara, que ele colocara no seu altar pagão, onde ele oferecia sacrifícios e comungava com todas as mulheres que ele teve em suas masturbações. Belmiro batia à porta e iria assim salvá-lo de toda aquela prolixidade e daquela dor de cabeça. Belmiro era agregado de uma fazenda vizinha àquela casinhola em que Adamastor morava e ali havia se trancado há uma semana (não era à toa que todos o achavam louco). Belmiro lhe tinha uma afeição atípica, pelo fato de terem-lhe dado o nome de uma tia de Adamastor, Belmira, que tinha lecionado para seu pai. Ele quis se aproximar de Adamastor depois que soubera que a velha estava esclerosada. Chamado por Belmiro para tirar leite da vaca, Adamastor fechou sua casa e saíram pela única rua do povoado de Bem-posta. Desgarrava-se de algo doentio que havia naquelas paredes que o acompanharam durante mais de uma semana. E, quando bebeu o leite, sentiu que não tinha muito com o que se preocupar. Aquele fim de mundo estava definitivamente fora de qualquer labirinto de Jorge Luis Borges. Na semana seguinte, mais propriamente no ônibus das dezesseis horas, chegou para Adamastor uma correspondência. Obviamente, não seria de ninguém da família. Era uma carta da Caixa Econômica Federal. Que diabos a Caixa quer comigo? Já lhes mandei tantos requerimentos... Não deu outra, era o seu Fundo de Garantia que havia sido liberado. Adamastor poderia retirá-lo em Beiranopólis, a quarenta quilômetros dali. Decidiu, então, pegar o primeiro ônibus do próximo dia. Nos entremeios, Adamastor não quis nem folhear seus poucos e velhos livros. Não quis nem tomar um de seus muitos calmantes vencidos há mais de seis meses. Concluiu que, até lá, o radinho de pilha seria sua companhia. Este se mostrou mais estimulante que cafeína. Precisando de alguns documentos para o dia seguinte, Adamastor pôs-se a procurá-los. Não foi tão difícil. Em pouco mais de uma hora, ele reunira toda a papelada. Mas não se dando por satisfeito, empreendeu uma longa faxina pelas estantes, gavetas, enfim, por toda a casa. Um negócio que se estendia pela madrugada. Lá pelas tantas, numa das gavetas, achou um walkman com fone de ouvido e tudo, ainda na sua embalagem original. Que porra é essa? Nem me lembrava desse troPágina 29


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ço! Ao pegar a embalagem (muito provavelmente para jogar no lixo), outra surpresa: embaixo dela tinha uma pequena coleção de fitas K7. Deixe me ver: Space Oddity, Surrealisric Pillow, Metal Machin... minha periquita! Eu ainda tenho essa obra-prima! Referia-se ao disco “Metal Machine Music”, de Lou Reed. De fato, uma pequena obraprima. A manhã chegou e Adamastor entrou no ônibus. Logo foi ligando seu antigo walkman, perdendo sua virgindade com o Metal Machine Music, que realmente estuprava seu aparelho. O ônibus saiu então de Bem-posta para Beiranopólis. Ainda bem que em Bemposta não tem banco, se tivesse não estaria eu agora ouvindo esse som, esse som de vanguarda, Muito Seminal. Seminal é a palavra. Soturno, muito soturno também. Que bom! Que bom mesmo que estou com este fone de ouvido e tenho desculpas para ficar em silêncio e ser tão indiferente com essas pessoas. Do mesmo jeito que elas são comigo. Além disso, ninguém sabe, mas estou ouvindo essa doidera plena que se chamada Metal Machine Music. E, nesses devaneios, viajou Adamastor até que o ônibus chegasse ao seu destino. No banco, cumpriu todos os protocolos (que lhe custaram o resto da manhã). Enfim, recebeu o dinheiro. Adamastor odiava Beiranopólis. De fato, Beiranopólis é uma das mais importantes cidades do estado. Mas, realmente, aquilo era tudo muito feio, sem alma. Prédios sujos, malcuidados, velhos (e os novos eram de extremo mau gosto). Cidade sem espaços horizontais, mesmo sendo plana. Triste, muito triste. Como se não bastasse, ali não ventava. Tomado por toda aquela atmosfera claustrofóbica, Adamastor, de súbito, resolveu ir até alguma concessionária de carros. Achando a loja, como tudo nele fosse apressado, em vinte minutos fechou negócio. Comprou então uma caminhonete Toyota 78. Também, o que o seu dinheiro podia comprar era mais ou menos isso mesmo. Ao dar a partida, para sair daquele lugar que ele detestava, reparou que a máquina não tinha toca-fitas. E, ali mesmo, tirou o fone de ouvido de seu walkman e o fixou no painel do carro com Durepox. Que beleza de gambiarra! _ disse. Mais rangendo do que andando, a Toyota enfim chegou a Bem-posta. Aquela aquisição era mero capricho. Só serviria para fazer, todo mês, a feira do supermercado, a dezoito quilômetros dali. Página 30


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No domingo, Adamastor resolveu pegar sua Toyota 78 e se aventurar nas terras da fazenda do vizinho Pinheiro, um homem tinhoso, sovina e, quando queria, maldoso. Pinheiro era viúvo e não tinha filhos. Colocava toda sua confiança em Belmiro, seu agregado. Sua fazenda tinha milho, café, um alambique e alguns cavalos, além de um pomar. Adamastor pretendia retribuir a visita que Belmiro lhe tinha feito. Adamastor contornava o canteiro da única praça de Bem-posta, que tinha, além de um coreto inacabado, uma igreja ao fundo. Ao final da volta, já atrás da igreja, ganhava as terras de Pinheiro. A praça tinha canteiros bem arrumados e podados, os cercados eram todos pintados de cal, as casinholas e os botecos estavam bem pintados. Toda casa tinha um alpendre e um jardim com roseiras e, atrás da igreja, também arrumadinha, era a “Pinheilândia”. Pinheiro, deitado na rede com um cachimbo na boca, proseava com Belmiro, que estava sentado na escada da porta da frente da sede da fazenda e que, logo se levantou, quando avistou a Toyota _ É Damastor! Pinheiro nem se moveu enquanto Adamastor saía da caminhonete. Não gostava dele e logo praguejou: _ Vejo que tem agora um jeito de ganhar a vida, Adamastor! _ Boa tarde, seu Pinheiro. _ Você entregando pinga e pamonha minha, em Godofredo Pereira, lhe pago bem. _ Tem festa do Divino lá esses dias... _ É... _ Belmiro, vamos apanhar umas mexericas... _ Agora, Damastor! No caminho até o pomar, Adamastor começou a pensar na sua amizade com Belmiro. Logo desistiu de pensar e perguntou: _ Belmiro, você gosta de maçã? _ Gosto, mas não temos maçã aqui. _ Não, por que... Veja bem, Deus criou o mundo e fez dele um paraíso. Depois Deus criou Adão e Eva e proibiu os dois de comer maçã, certo? _ Certo... _ Aí, Deus permitiu que o mal se instalasse na Terra. Em contrapartida, nos deu o livre-arbítrio, certo? Página 31


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_ Isso... _ Mas depois ele diz que todos nós temos que pagar a ele todos os nossos pecados. Conclusão: Deus é um filho de uma égua! _ Deus é o amedronto do mundo, Damastor! _ É, Belmiro... _ Olha essa aqui, ó, madurinha!... _ Belmiro, minha tia Belmira faleceu. _ Não me diga uma coisa dessas, Damastor! Adamastor foi interrompido quando olhou à sua direita e avistou uma égua em trabalho de parto, agonizando naquele cerrado feio longe do pomar. Para Adamastor, que nunca tinha visto isso... Ele tinha um problema: seus meios e entremeios não tinham mais fim, nem mesmo finalidade, em suma, não se justificavam. Estou falando aqui de um Maquiavel errante! Para Adamastor, em seus meios e seus finais, há muito tempo em sua vida nada tinha um começo; mas ali, em sua frente, alguma coisa ganhava existência, alguma coisa ali começava. _ Um verdadeiro filho de uma égua, Belmiro! _ Filha, Damastor, uma potrinha, Belmirinha. _ Não, Belmirinha, não. Belminha!

Voltavam os dois do pomar já avistando Pinheiro ainda na rede. Adamastor, de maneira imprevisível, disse a ele: _ Te entrego a pinga e a pamonha na festa do Divino. _ Tem que ser amanhã. _ Pois não. _ Quanto quer pela empreitada? _ Quero a égua que acabou de nascer. _ Égua? Qual? _ A que nasceu da “Oeste de Minas”, patrão _ disse Belmiro. _ É sua, quando desmamar. _ Vamos então encher a carroceria, Belmiro? _ Isso, cuida disso. _ Certo.

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No outro dia, Adamastor, com a carroceria cheia de galões de cachaça e caixas e mais caixas de pamonha, partiu com sua Toyota até Godofredo Pereira, a uma distância de cinqüenta quilômetros dali. Chegando ao destino, demorou precisamente duas horas entregando as encomendas, pois um estabelecimento era muito espaçado do outro. O lugar tinha mais pasto que gente. Já ao entardecer, Adamastor se lembrou de que havia recebido sua pensão do INSS naquele dia e viu um boteco com um pátio largo, o qual morenas enfeitavam com bandeirolas para o evento. Já com a carroceria vazia, Adamastor decidiu entrar. Uma cachaça, por favor! E assim começava a noite. Adamastor, enquanto bebia, olhava aquelas morenas com vestidos muito vistosos trabalhando. Uma caneta e um pedaço de papel, vocês têm? E já embriagado escrevia os versos de sua preferência: “Posso escrever os versos mais tristes essa noite. Eu a amei e às vezes ela também me amou Em noites como esta eu a tive entre meus braços Beijei-a tantas vezes sob o céu infinito Ela me amou e às vezes eu também a amava Como não ter amado os seus grandes olhos fixos Posso escrever os versos mais tristes essa noite Pensar que não a tenho. Sentir que a perdi Ouvir a noite imensa, mais imensa sem ela e o verso cai na alma como no pasto o orvalho...”

É hora de ir embora. A conta, por favor! Adamastor voltou a Bem-posta, Deus sabe como! Derrapou, deslizou... Só não capotou. Decidiu se enfurnar em casa até que Belminha desmamasse. Com certeza, um baralho ou um fumo de rolo o manteria mais ou menos no prumo. Quanto aos versos lembrados em Godofredo Pereira, a que se referiam? Quem? Qual mulher seria essa? Ainda haveremos de saber... Nesses dias todos em que esperei pela desmama de Belminha, não me dei conta de nada a um raio de dois metros do palmo do meu nariz. Tinha ao lado de minha cama fumo e palha suficientes, um rádio de pilha que só me falava asneiras e o exemplar de um livro que leio esporadicamente: a Bíblia. (Não por ser religioso, mas por entender Página 33


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que há nela um grande conteúdo social, humano e psicológico). Detive-me no livro de Eclesiastes. Realmente, não há nada de novo sob o sol, portanto, comei, bebei e alegrai-vos no trabalho. Como já me aposentei, embora previamente, mas já me aposentei, posso dizer: comei, bebei e engordai como porcos! Sobre aquela seqüência... tempo disso, tempo daquilo... O que posso dizer é: todo o tempo é tempo de tudo. Principalmente debaixo do sol, pois os filhos de Adão criaram sua própria lei... É hora de ir, tempo de esperar Belminha, tempo de buscar Belminha. Adamastor seguiu até a fazenda de Pinheiro e lá o esperavam Belmiro e Belminha, já com o arreio. Pinheiro, como sempre, assistia a tudo de sua rede e pestanejava: _ Quer dizer então que a potranca leva o nome de sua tia, Adamastor? _ Isso, seu Pinheiro... _ E o senhor vai cuidar dela como filha? Já que nunca se casou... _ Bom, se o senhor me achar mesmo um cavalo... Belmiro deu risada seca e Pinheiro tossiu um pigarro, engasgando com o cachimbo. Recuperou-se dizendo: _ Bem, cada louco com sua loucura. Cada macaco no seu galho, não é mesmo? _ E o senhor na sua rede. Vamos colocar a potranca na carroceria, Belmiro? _ Vamos, Damastor! As primeiras palavras de Pinheiro soaram como uma maldição. Mesmo havendo mato que Adamastor deixara crescer justamente para Belminha pastar e, havendo, além disso, grama com fartura no canteiro da praça em frente a sua casa, Belminha não se habituou ao novo lar. E não é que o povo caçoava dela e de Adamastor do mesmo jeito que Pinheiro caçoou? O coitado já era alvo da língua do povo do lugar, agora então... Diziam que Belminha era “a filha que Adamastor nunca teve e que levava o nome de sua falecida tia”. Adamastor gastou o resto de suas economias levando Belminha na carroceria da Toyota 78 até Beiranopólis. Deixou-a num haras por algum tempo. Parece que a potrinha sentiu. Nosso herói via-se tendo que se enfurnar de novo. Hibernava ao lado de uma garrafa de conhaque praticamente se escondendo da maldade alheia.

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Deu-se, na festa do padroeiro, uma verdadeira romaria de onde veio gente de todos os “patrimônios”, como são chamadas as comunidades rurais usualmente. Apesar disso, todos se conheciam como em qualquer festividade da igreja. Só não conheciam bem Adamastor que, naquelas ocasiões, fazia questão de fechar a porta e a janela da frente. E, se era incomum fazê-lo até à noite, que dirá em pleno dia e em plena festa significativa do calendário sem muitas novidades de Bem-posta? Porém, eis que surge um andarilho que ninguém nunca tinha visto antes por aquelas bandas. A figura tinha um cabelo crespo e grisalho até os ombros, uma barba volumosa e um pouco esbranquiçada, principalmente no bigode, e tinha uma considerável barriga. Andava maltrapilho com calça e agasalho puídos, uma bolsa onde guardava um caderno com anotações pessoais, uma sandália de couro surrada e calos nos pés. Porém suas mãos não evidenciavam nenhum trabalho braçal. Trazia consigo um vira-lata, carinhosamente chamado de Allan Kardec. Allan Kardec era amarrado por uma corda gasta ao pescoço (onde não mais lhe cresciam pêlos) e, assim, o andarilho o orientava. Casemiro das Léguas era seu nome. Ele gostava de contar a história de que era músico e tocava o Bolero de Ravel de ouvido, mas logo se esquivava quando alguma criança lhe trazia uma flauta doce. Mesmo com todas as limitações de vocabulário, gostava de filosofar pelos botecos e bancos da praça e dormia no coreto inacabado. Gostava de dizer que “vivia da misericórdia de Deus”. Alguns lhe proviam alimentos. Outros, bebida. Mas a coisa começou a piorar quando o maldoso Pinheiro espalhou o boato de que o andarilho era leproso. O povo de Bem-posta começou a reparar nas feridas em sua pele. Casemiro das Léguas aceitou com resignação a negligência das pessoas. Até que, Adamastor, como enfermeiro aposentado, foi assuntá-lo, descobrindo que o homem não tinha lepra, eram apenas “escaras de decúbito”, feridas, no popular. _ O senhor precisa se lavar, seu Casemiro. _ Mas onde? _ Eu lhe empresto o banheiro por esta noite. _ Oh... Que Nosso Senhor lhe dê toda bem-aventurança...

Adamastor não se segurava em ansiedade e curiosidade para saber de Casemiro, o homem das léguas, o que ele teria a lhe falar. O que este homem pensa de Deus? E da humanidade? Preciso saber! Mas por que cargas d'água preciso saber? Casemiro das LéPágina 35


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guas já tomara seu banho, agora estava no canteiro dos fundos dando comida para Allan Kardec. Logo depois chegou na sala, onde Adamastor o aguardava: _ O que o senhor pensa de uma humanidade sem Deus, Casemiro? _ Impossível de pensar, senhor. O que eu penso é que, neste século, duas linhas paralelas que caminhavam em direção ao progresso do ser humano... _ Mas... _ A linha da moral e da ética e a linha do conhecimento. Esta última destoou da primeira. _ Apego material, científico, tecnológico? _ Os cientistas acham que a matéria só tem três estados: sólido, líquido e gasoso. Mas há um outro, o estado fluídico, intermediando matéria e espírito. Em nós, este estado fluídico, dá um nó, juntando nossa alma ao corpo quando dormimos. Através de um estado de semiconsciência e de uma respiração desacelerada (onde não se inspiram tantas energias negativas), esses nós se afrouxam. Também quando envelhecemos, os nós se afrouxam. _ E o que o senhor me diria sobre as paixões humanas? _ São o apego, o aperto desses nós fluídicos. _ E as ideologias? _ Só a do amor tem fundamento, nenhuma outra. _ O senhor participou com entusiasmo da festa do padroeiro e agora me diz estas coisas! É espírita ou católico? _ Há em mim um sincretismo, senhor..., senhor... _ Adamastor. _ Isso, Adamastor! Quero que você me acompanhe até a praça. _ Pois não. Já era noite, algumas senhoras rezavam novenas em frente à igreja fechada. Alguns senhores acendiam uma fogueira. Um deles tocava viola. Mas tudo isso parou quando Casemiro das Léguas bradava. Adamastor já não sabia o que fazer. Casemiro, então, falava. _ Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo! Palavras do profeta Casemiro das Léguas: “Deus abençoe este homem que vês. Deu de comer ao enviado do Senhor, que tinha fome. Deu de comer das suas hortaliças. Página 36


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Senhor, Abençoe esta horta, Que ela alimente toda a prole deste homem digno. Digna é a sua descendência Que comerá das hortaliças E dali proverá o seu sustento. Muito obrigado!”

_ Olha a cachaça! _ Vagabundo, herege, profano! _ Toca o bolero de Ravel!

Passaram-se dois meses nessa nossa história e já era tempo de Adamastor buscar Belminha novamente. E assim o fizera logo cedo. Ela devia estar mais de uma arroba mais gorda. Pinheiro já havia assuntado com Belmiro que, naquele dia mesmo, Adamastor voltaria com a égua. Talvez por mera coincidência (ou não), Pinheiro resolveu ir até a praça, coisa que raramente fazia. E ali estava ele com uns três ou quatro moribundos a lamber sua bunda, jogando prosa fora, quando surge da estrada de Beiranopólis uma Toyota capengando. Parecendo ensaiado, Pinheiro e os vagabundos a cercam festivamente. _ Salve o bem-aventurado Adamastor e sua égua abençoada, que se alimentará da horta, da fonte da vida! _ Salve! Casemiro levantou-se de onde estava e partiu para questioná-los: _ Nem sabia eu da existência desse animal e já estais a dizer que eu o abençoara. Eu vos digo que não, senhores, e vos digo mais. Não vejo mal algum nisso. Abençôo, de fato, esta égua. Enquanto isso, o coro dizia: _ Salve Casemiro das Léguas! _ Salve Casemiro das Éguas! Foi quando se ouviu um tiro, possivelmente de um dos vagabundos da corja de Pinheiro. O tiro acertou Allan Kardec em cheio. O atirador fugiu enquanto Casemiro (agora “das Éguas”) corria em direção ao cachorro já morto numa poça de sangue. Página 37


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_ Meu tempo nessa sinagoga cessou! _ dizia Casemiro das Éguas aos quatro ventos enquanto a pequena multidão se dispersava e Adamastor se aproximava: _ Meu bom Adamastor, leve-me em seu automóvel. É só me deixar a uns trinta quilômetros daqui, depois ruminarei estes acontecimentos em minhas solitárias andanças. Enquanto isso, chegava Belmiro: _ O que aconteceu aqui? Como está Belminha? Oh, Allan Kardec... _ Casemiro das Éguas me pediu que eu o levasse de carro daqui, Belmiro. Estou muito nervoso. Você faria isso por nós? _ Claro. _ Aqui estão as chaves. Alguns curiosos assistiam à despedida de Casemiro das Éguas. E Adamastor, muito nervoso, ligava o rádio no último talo. Estavam tocando o bolero de Ravel. E, com esta trilha sonora, o povo assistiu à partida de Casemiro das Éguas. Alguns metros à frente, a Toyota capotou e vitimou o homem das éguas, que quebrou o pescoço. Da Toyota não sobrou nada. Adamastor nem seguro tinha. Mas Belmiro, milagrosamente, sobreviveu. Enterraram Casemiro no cemitério local e Adamastor pediu ao coveiro que, depois da cerimônia, abrisse a cova e enterrasse também Allan Kardec. Uma espécie de sebastianismo tomou conta do povo de Bem-posta. Expresso-me melhor, dizendo: uma espécie de casemirismo tomou conta do lugar. Alguns diziam que um dia ele voltaria, outros diziam que ele tinha virado santo. Em razão disso, até terminaram a obra do coreto da praça, onde Casemiro das Éguas dormia. Havia ali agora uma praça com o “Coreto Casemiro das Léguas”. Casemiro tornava-se uma lenda.

O velho Pinheiro estava sozinho em sua fazenda, pois Belmiro teve que ficar em observação numa enfermaria em Beiranopólis por uma semana. Pinheiro resolveu se aventurar por suas terras naquelas dias. Que falta me faz aquela peste do Belmiro! Tiro leite da vaca, guardo os garrotes, faço pamonha, que vida triste essa minha! Num dia, Pinheiro decidiu ir até o pomar para apanhar algumas bananas, quando foi surpreendido por uma cascavel, que estava de tocaia. Ali estirou sem ninguém por perto para o socorrer. Ali mesmo definhou. Página 38


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Adamastor já montava em Belminha, que já estava forte o suficiente para isso. E, todas as tardes, atravessavam a praça. Abria o portão do cemitério e, ainda montando em Belminha, que subia os degraus do portão, velava o túmulo de Casemiro das Éguas e Allan Kardec. Fazia isto todo dia e demorava uma meia hora. O povo de Bem-posta começava a respeitá-lo, pois uma dor muito forte o invadia e percebiam isso. _ Como vai, Damastor? _ Belmiro? _ Está melhor? _ Um pouco, mais ou menos. _ Pois é, perdemos Casemiro... _ É... _ Mas vejo que está melhor. Não fosse a morte de Pinheiro... _ Não é possível... _ Achei ele estirado no pomar, inchado e roxo, com uma penca de banana ao lado. As formigas tomaram conta das bananas e, as moscas varejeiras, do Pinheiro... Falei com ele que me esperasse, que eu demoraria pouco, que não ficasse na lida... _ Ele achava que era eterno... Deu no que deu. _ O velório ainda está acontecendo. _ E por que não ficou lá? _ Lá tinha uns quatro ou cinco... Não agüentei a prosa deles. _ Imagino. _ Vamos sair daqui, Adamastor, logo-logo o enterro chega. Belmiro e Adamastor, já puxando Belminha pelo arreio, atravessaram de novo a praça, quando o cortejo passou por onde eles estavam. _ É dono de fazenda agora, senhor Belmiro! _ Senhor, não, Damastor, senhor, não! _ Mas se você agora é dono da fazenda... _ Bem, acho que sou, né?! _ disse Belmiro rindo, mas logo se conteve, olhando a procissão que entrava no cemitério: _ É triste a vida. E a morte, então... Não é, Damastor? _ É... _ Mas, vamos falar de coisa boa, agora que sou dono de fazenda. Que presente você quer para você e Belminha? _ Imagina, Belmiro!... Uma coisa dessas... Página 39


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_ Faço questão... _ Olha que... _ Faço questão... _ Tá bom, Belmiro, tá bom. Dê-me, então, um rádio-amador. Por uns trezentos contos você acha um em Beiranopólis. _ Rádio-amador? Pensei em te dar uma caminhonete, o que eu te fiz perder. _ Nem pense nisso, Belmiro, onde já se viu uma coisa dessas? Vamos lá em casa. Vou coar café. _ Não posso, Damastor. A vida continua. A lida, também. Mas está feito o negócio do rádio-amador. Até mais. _ Até mais.

Belmiro batia à porta de Adamastor com a encomenda embrulhada na mão. Ele tinha aproveitado sua ida à Beiranopólis para uma consulta ambulatorial de revisão, devido ao acidente que sofreu, e resolveu comprar o rádio-amador. Chegando à fazenda recebeu uma notícia desagradável. Por isso, decidiu procurar Adamastor. _ Belmiro! Entre! _ Estou trazendo uma encomenda. _ Vamos ver... Vamos desembrulhar isso... É este mesmo, Belmiro. Muito grato. E a lida, como vai? _ Damastor, saiu um papel no fórum, um tal de inventário. Inventaram que as terras de Pinheiro são da prefeitura. _ Meu Deus... Mas isso não foi “inventado”, Belmiro. Inventário é o nome que se dá ao documento que precisa ser lavrado quando o defunto não deixa testamento. _ Pinheiro sempre me falava que deixaria tudo para mim em testamento... Mas, como você mesmo disse, ele achava que ia ser eterno... _ E o que você vai fazer agora? _ Estou me despedindo de você, Damastor. Estou voltando para a casa de minha mãe. _ No Cafofo? _ É. _ E lá? _ Eu pretendo criar porcos. Posso ir até a horta para me despedir de Belminha? _ Belminha desapareceu. Página 40


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_ Deve estar num desses matos. Quer que eu a procure? _ Não precisa, Belmiro. Qualquer dia desses, ela acha o caminho de volta. _ Isto é. _ Tenho que ir... _ Pois que se cumpra o seu destino, Belmiro. Já são tantas as perdas... _ É. Um dia desses, eu volto para lhe visitar. Esse “um dia desses” para Adamastor teve um gosto de promessa que não será cumprida. Agora sim, Adamastor tinha fins justificáveis. É, e o que se há de fazer? Algo me proverá de inícios, algo me proverá. Por enquanto, tenho de cuidar de minha horta. Depois examinarei este aparelho que o pobre Belmiro me deu, talvez com seus últimos tostões do bolso... Hoje começa o “Setenário das dores de Maria”. São sete as dores, cada uma celebrada a cada dia. Vai de hoje, que é domingo, até sábado. Sábado este que antecede o domingo de Ramos. Quer dizer, estamos a uma semana da Semana Santa. A corporação “Nossa Senhora das Dores” (nome mais apropriado não há), banda de Tamanduá, irá tocar no coreto esta noite. O coreto “Casemiro das Léguas” será inaugurado de fato. Haverá uma missa campal na praça, que está toda enfeitada. Eu acho que vou a essa celebração. Acho, não. Eu vou à missa. Decidi agora começar a acreditar em Deus. Também não era para menos. Há uma canção católica muito bonita, a qual não sei cantar, nem sei a letra, tocada em velórios, enterros e afins. Mesmo assim, minha falecida mãe me ninava com ela. Uma música muito antiga. Só me lembro do primeiro verso, “Segura na mão de Deus e vai...” Lembro-me também que a melodia era muito bonita. Só mesmo segurando a mão de Deus e indo... Meu Deus, não me reconheço dizendo estas coisas! E ainda comecei este último pensamento dizendo “meu Deus”. É instintivo. O fato é que eu preciso de alguém, talvez um Deus, um Deus-mãe para me ninar. Primeiro foi Allan Kardec que desencarnou no coreto, o qual hoje leva o nome de seu dono, aquela dulcíssima criatura, Casemiro das Éguas, que morreu instantes depois. Até do Pinheiro sinto piedade. Como se isso não bastasse, o último e atualmente único amigo, Belmiro, saiu daqui com uma mão na frente e outra atrás. Nem sei se ele um dia voltará. E Belminha? Minha égua de estimação que sumiu. Meu Deus me dê pernas! Meu Deus, não estou me reconhecendo. É instintivo dizer estas coisas... Página 41


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Oh! Nem dei por mim e a banda já toca “Cantando coisas de amor”. Hoje celebramos a primeira das sete dores de Maria. São marchas fúnebres, portanto? Acho que estou me lembrando dessa triste marcha. Sim! “A morte do Justo”, uma das mais belas marchas fúnebres que eu já ouvi. Estou, enfim, me reconhecendo. Agora me lembro. A banda tocou essa marcha no enterro do meu pai. Foi de surpresa, o enterro já seguia entrando no cemitério, quando todos foram surpreendidos pela banda tocando essa marcha, “A morte do Justo”. Minha mãe sempre foi grata àqueles músicos desde aquele dia. Mas isso faz tempo. Hoje os músicos devem ser outros. Não deve estar ali mais nenhum daquela época. Meu pai! Meu pai adorava música. Tinha um violino e tocava bem. Coitado! Teve que vendê-lo para que eu pudesse estudar num internato (naquela época havia internatos), para que eu me formasse. Agora cai uma lágrima em meu rosto, mas há de passar. Tudo isso há de passar. E eu ainda nem saí de casa, eu ainda nem senti o cheiro dos arranjos de flores que estão na praça! Meu Deus, onde estão todos? Já se foram e eu nem notei, por que penso tanto? Agora se encontram na praça somente alguns músicos, guardando os instrumentos. Mas um ônibus os aguarda. Engraçado como todos já se foram! Cada um agora em sua casa. Como Chico Buarque de Holanda estava certo! Deixe-me fechar agora estas janelas e vamos testar o rádio-amador. Vamos ver: canal nove, normalmente usado pelos caminhoneiros. Vamos ver... _ Alguém na linha, câmbio... Alguém na linha, câmbio? _ Alô... Alô, câmbio. _ Temos alguém na linha. Module câmbio. _ Aqui é Rosa, falando da estrada, no estado do Rio de Janeiro, câmbio. _ Ora essa! Uma senhorita, câmbio. _ Senhorita, não. Já estou chegando aos quarenta, câmbio. _ Quantos anos tem a senhora, então? Câmbio. _ Que indiscreto o senhor, module, tenho trinta e oito. Câmbio. _ Desculpe-me a indiscrição. É que eu tento ser gentil com as mulheres como nos versos de Neruda, mas não consigo. Câmbio. _ Vejo que tem bom gosto na literatura. Câmbio. _ E a senhora para onde está indo? Câmbio. _ Para Visconde de Mauá. Sobre o mau tato com as mulheres, recomendo-lhe Chico Buarque. Câmbio. Página 42


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_ Ah, sim. Mas e a paixão pelo rádio, de onde vem? Câmbio. _ Meu ex-marido, foi ele quem me ensinou. Ele também gostava de Neruda. Câmbio. _ Engraçado! Minha ex-mulher também me recomendava o senhor Chico Buarque de Holanda. Câmbio. _ De onde fala o senhor? Câmbio. _ De Beiranópolis, câmbio. _ E qual é o seu nome? Câmbio. _ É.. Cláudio... Meu nome é Cláudio... Câmbio. A senhora está chorando... _ Desculpe-me, Cláudio. É que há uns três anos tivemos um bebê. E você o deixou cair no chão, meu Ravi! Adamastor! _ Rosa, por fav.. Rosa, não desligue... Rosa, me perdoe. Eu te amo! Rosa! Rosa! Adamastor, com toda a fúria, quebrou o aparelho. Procurou os livros na estante, jogou todos no chão. Depois, queimou-os todos, lentamente. E lentamente fumou todo o seu fumo e bebeu todo o seu café. Depois, a fúria voltou e Adamastor quebrou a casa inteira. Tentou se acalmar, tomando todos os seus calmantes vencidos. Não vendo efeito, de súbito bebeu o resto de sua cachaça e o resto de seu conhaque. Depois queimou seu baralho (lembrança de Rosa) e viu que só sobrava intacto o rádio de pilha. No ímpeto, tentou jogá-lo contra a parede e depois surpreendentemente ligou o rádio que, mais surpreendentemente ainda, tocava o bolero de Ravel. Começou a chover e Adamastor berrava: Ravi! Meu pequeno Ravi! Aí lembrouse das palavras de Casemiro das Éguas: “Deus abençoe este homem que vês, abençoe esta horta, que ela alimente toda sua prole, digna é sua descendência”. Aquelas palavras martelavam na sua cabeça e, de repente, lembrando-se da horta, abriu a porta dos fundos e lá estava Belminha, pastando tranqüila em meio à tempestade. Adamastor não pensou duas vezes. Montou em Belminha. Saindo pelos fundos, enveredou-se pela brenha naquele breu, naquela tempestade, naquela noite deixando tudo ali, aberto e destruído. E foi-se embora.

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Estudo de solfejos

Ouro Branco, 7 de fevereiro de 1980,

Ananias, meu cunhado, veio a meu pedido à Ouro Branco depois que seu irmão partiu com Alana em definitivo. Coincidiu que Hubbard estava em seu fim. E a casa não tinha nem clarineta nem piano. Davis e Wintom se desorientavam pelos alpendres quando parecia que não lhes pareciam aprazes os insetos e não lhes apetecessem os cios em quintais alheios. Meu cunhado fez muito bem a mim neste tempo. Sugeriu-me que talvez, o misterioso senhor Donald, pudesse ser a própria senhorita Dee Dee se passando por homem... A teoria fazia sentido, pois, a paixão por minha mãe contida nas primeiras cartas me seduziu a ponto de respondê-las como se ressuscitasse em mim a falecida. Ananias me fez pensar que seria possível e passível que Dee Dee tinha inventado esta armadilha para me atormentar. Talvez nunca Dee Dee acostumou-se com Asdrúbal e com meu pai e nunca tivesse entendido que expulsássemos mamãe de casa depois de ela ter a acolhido por quase uma década. Este homem Ananias também supôs que Dee Dee apenas tivesse feito isso por motivações passionais. Decidi escrever novamente à ela para esclarecer definitivamente o problema, mas, meu cunhado, antes que eu o fizesse mostrou-me um caderno de anotações que trazia sempre consigo. Dizia-me Ananias de sua escolha por escrever como mulher. Não sei se os fragmentos que consegui surrupiar são os melhores, pois, os recolhi apenas quando ele cuidava dos dois trompetistas remanescentes, haja vista que Ananias, era no mínimo um sujeito atencioso, e muito cuidadoso comigo. Peço a você, tio Antônio, que guarde estes rascunhos para um tempo mais revelador...

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Faz treze anos que resolvi ficar alheia em mim, decidi que as coisas fossem me acontecendo sem que eu acontecesse nelas. Prontamente estive ansiosa. Depois observei o sabor do tabaco mais táctil. Mas não estava emocionada. Escolhi não cobiçar o que é de pertencimento coletivo, abstrato. A realidade me deixou fascinada demais. Agora sonho a fantasia e ignoro as existências menos raras ao meu desprezo. Vou indo e aos tolos digo que estou cansada. Aos nobres, estou calma e indiferente. Não me servem tolices ou nobreza. Importa-me apenas saber tudo esvaindo do batom nos lábios

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Rio me das coisas que seguem seu curso de absoluta inutilidade. Mas estão todos animados para o talk show no auditório. Toda iniciativa privada implanta os cinco esses para licitar papel higiênico. As paredes cansaram de ter ouvido, agora falam para os esquizofrênicos. Disseram-me que era importante ir ao velório de Nicodemos. Então aqui estou rindo-me de minha importância no velório de Nicodemos.

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A vida não é nem um pouco importante. Ela é como um intervalo no meio da realidade concreta e inanimada. Ela é como um conjunto vazio, um parêntesis ou um entre aspas. Temos um tempo para viver, talvez para recobrar nossas ilusões e cultivar nossas esquisitices. Estas são as que nos dão alguma transcendência.

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Dizem que no México existe um observatório de répteis exuberante.

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Escamoteio-me em boates, galerias de arte e em festas inconvenientes. Também me escamoteio da minha reclusão. Céu aberto, praças, parques, salve! Página 45


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Minhas partes íntimas são miméticas. Comungam com a cor de seu lingerie brunido de corrimento.

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A colônia humana tem se mostrado muito sem polimento. Não anda me agradando muito não.

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Sei o caminho que meus sapatos devem pisar. Sou hermeticamente fechada e prossigo no batidão sem dirigir a palavra a ninguém.

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O veneno do mundo não está nos lábios da prostituta. A sedução é má, mas é bela e verdadeira. O veneno do mundo é a mentira que ele próprio conta.

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Minhas tias dizem duvidar de homens que pintam o cabelo.

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O tempo é um pêndulo com papoulas dependuradas nele. Suspensas e suspeitando das cantigas de amor e morte.

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Desconheço o motivo de minha boa compleição para as cinzas.

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O corpo veste o vermelho atrás do incêndio. É só o embaraço de reconhecer sua aclimatação e o contexto da silueta. Nada condiz com as descrições. As idéias estão carbonizadas.

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O contágio é uma troca de biologias que travam conhecimento há pouco tempo. O risco é um ofício de não saber. Relógios e despertadores são o vício da saúde.

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Os invernos setentrionais possuem instituições que pertencem à compreensão de suas maçãs endêmicas.

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Hamurabi, Artaxerxes, Nabucodonosor, exijo o reembolso postal!

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A ingerência de me saber morta sem algodões nos orifícios me cabe em salões de velório intransigentemente.

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Considero a música barroca uma música cenário. Numa sociedade humana ideal, caberia à música barroca ser tocada em elevadores ou motéis... Mas, numa sociedade humana ideal não haveria elevadores ou motéis... Pelo menos na minha concepção.

Conheci um monge que deixou de lado todas as suas litanias e desapareceu buscando imitar o canto dos pássaros que lhe aparecessem.

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Ressuscitei, sim ressuscitei, mas, sem boa nova, sem teogonia ou cavalo que fuja a galope.

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Já que curvei meu rosto, curvei meu dorso, como um feto, posso dizer que minha casa é um útero cheio de miomas. Posso dizer que minha cabeça está viciada em axiomas.

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De todas as soluções que os livros nos propõem prefiro as mais enfadonhas.

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Eu saio da sintaxe, eu entro na milonga. Depois me invagino em seus miasmas.

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Sylvia gosta de seu professor de música ele costuma dizer a ela que as partituras são como biombos. Isso me faz gostar mais ainda dela.

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Neste marasmo de almas dispersas. Nossos corpos parecem não ter gravidade. No espaço no espasmo, no sarcasmo, no sarcoma, no linfoma, no coma induzido da redoma de ratos no cio...

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O enredo do seu engodo não me excita mais. Hesito entre trama e cama. Caminho até a desordem da prateleira de seus discos, não há muito que se fazer.

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Não posso mais ouvir o grito do meu irmão carvoeiro, meu irmão cortador de cana, do meu irmão lenhador, do meu irmão da moenda. Cada um conseguiu comprar sua televisão. E a mim só me restou usar a minha também.

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E é assim que tudo me acontece, sei esperar. Sei também ignorar. Mas não fico tranqüila. Não estou em paz com o que me aparece, ou aparenta ser. Não há em mim naturalidades triviais. Deixo me humilhada por mim, a espontaneidade eu guardo no sorriso interior. A cidade inteira passa por mim e eu peremptória. Esperar é enrijecerme, despojar-me desse falso lirismo do qual fui vítima. A humanidade é poesia distraída e displicente. Fui machucada em ser este signo. Hoje o meu gesto é o de caminhar sem origem. Talvez o mundo não mereça minha preocupação. Pois, se merecesse seria constantemente irritada por boas intenções sem sentido e sem aplicação vindas dos outros. Confesso essa vida sem escolher destino prudente me deixou mais animada.

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Faz treze anos que ele é meu homem. Seu sexo é um ritual, mas não exalta nenhuma divindade, tampouco profanação. É repetitivo, mas eu gosto. Desde sempre usa chapéu panamá. Desde sempre acha que eu gosto de seu chapéu. Desde sempre o usa como se soubesse que eu gostasse. Ele não sabe. Mas eu gosto. Gosto de seu pulmão com sílica. Que é uma siderurgia bufando estanho em meus seios. Gosto de sua epiderme de amianto, de sua sensibilidade de chumbo. Desde sempre ele me usa como se soubesse que eu gosto. Ele não sabe. Mas eu gosto. Seu ócio de canivete, fumo de rolo e observar mormaço, me seduzem. Ele acha que sabe que me seduz. Mas ele não sabe. Mas eu Página 49


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gosto. Gosto de ele ir se equivocando em minha saia no quarto escuro. Fico aniquilada, sem palavras, perto de suas precipitações. Fico perturbada com seu perfume barato e seu suor bêbado. Ele acha que sabe. Mas eu sei. Ele não sabe. Seus braços me contornam e minhas pernas ficam tremendo. Faz treze anos que sou a mulher dele.

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Faz treze anos que descobri que a falta de justificativas, seria melhor para a vida. . No entanto, estou aqui justificada não por julgar ser necessário. Ai de mim que, antes de escrever estas linhas, achava que seria uma satisfação inédita... Mesmo assim, digo obrigada a mim mesma.

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Ouro Branco, 15 de março de 1980, Tio Antônio, Obrigada por acolher Sofia em sua casa. Realmente deve estar melhor. Acho que ela exorcizou um de seus maiores demônios ao excomungar o coitado do Ananias... Ela sempre foi recalcada com meus amigos todos maconheiros. Toda a questão familiar que nela aflora os passados tristes estou também por colocar um fim, pois que desmascararei Dee Dee com este ridículo senhor que ela inventou... Ora não tenho mãe nem pai, irmã não devo ter mais, o mesmo com amigas, hubbard se foi, tio Adamastor se foi, não tenho marido, pois que não será do outro lado do atlântico que conseguirão destruir meu recomeço. Ananias me incentivou a escrever como homem, pela primeira vez me veio o gênero poético. Que aqui revelo apenas ao senhor em anexo. Um beijo!

Eu era um corrosivo opositor Às idéias mais tristes Eu era uma alegria Farta por ela mesma Até que um dia o aluguel venceu Cortaram minha luz Cortaram telefone Estou sem jeito Eu era com muito jeito Poderia passar Em frente ao boteco do Zé Risada Eu era a risada do Zé Risada Hoje o Zé me fecha a cara Eu não era meu sapato correndo Atrás do pão com ovo Do trocado na esquina Eu era Um compulsivo comprador de chinelos Minha obsessão Era por todas cores Minha predileção Era por números maiores Eu era meu pé confortável Em chinelos folgados Eu era minha preferência Em usar chinelos largos Nos quiosques E nas pizzarias Página 51


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Eu era essa bizarrice Eu era ócio Era alongar os dias Eu era alongar os ossos Os pés descalços na janela Eu era o deleite De um livro besta Um filme à toa no pathé Um atestado de quinze dias Quinzena bocejando Escrevendo poesias Eu era esta negligência E os cigarros A fumaça que esvazia Eu era esta covardia Sexo às catorze Televisão ( programa em reprise ) às duas Eu era o seu perfume O seu veludo Eu era um cigarro Entre os seus dedos Era seus banhos De rosa e leites Reparadores banhos Repara quanto manjericão Em sua culinária Eu era seu tempero E depois do almoço Eu era sua varanda Varando noites em cirandas Eu era seu alpendre Eu era as plantas de seu alpendre Alvejando lavanda e silêncio Eu era sua casa Eu era o ópio Decidindo que os fuzis Disparariam flores Psicodélicas Concluindo: Armas somente Disparariam o coração Em flores sorridentes Eu era o chá O alívio dos indigentes Eu era a noite e o aguardente Aguardando o sol Eu era o sol em seu pingente Era sentinela em céu corrente Ao léu Eu era o ópio Página 52


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Eu era sentimental Isto que não nos cabe mais Não me diz respeito Que fosse relevante dizer Eu era um idealismo Que não me coube ocidental Não me viu raiz de aquário Fruto de cisões no plenário Eu era o canto que cansou A flor que um distraído pisou Não me mereceria um poema Eu era a contradição De pão e sentimento Razão e fermento Que nos progrediram mais Eu era esta constatação Eu era o ódio Praguejando revoluções Esbravejando maldições Eu era este visgo de redenção Hoje não tem mais remédios Eu era uma esperança Era leal Hoje não tem Quem não seja previdente Não preferem São Paulo Nem o Rio de Janeiro Apenas têm medo De morrer sem dinheiro Eu também era o medo Desta minha coragem Quixotesca Era Cervantes Era Darci Ribeiro Eu era a orgia As celebrações pagãs Eu era este incenso Queimando o inócuo Essas coisinhas bobas Eu era este canto de mulher Cantadas Serenatas Serem natas da lua cheia Serem nada Eu era o leite gordo Pingando colostro No esterco Na invernada Eu era esta coisa vã Página 53


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Eu era o engano Era este desengano Do engano Esta desilusão Da ilusão Eu era sua própria enganação O engodo predileto De muitos A indagação Antes de abençoarem as águas Podiam ser ex-votos Podia ser esgoto Eu era esta dúvida Eu era um pseudo-intelectual Duvidoso E ciente deste pleonasmo Eu era o óleo vazando A gasolina Eu era o óleo de júbilo Em sua cava genital Eu era cretina No seu desejo de roer as unhas No seu delito de pintar o rosto Eu era a brecha Que encontrei em seus meandros Eu era seus antros Eu entro em seus mantras Eu era a vela queimando Anunciando Vaselina Eu era a mão no escuro da saia No escuro da sala Embaraçando cabelos seus Eu era na lousa Algo que já tinha sido Eu era quem ousa Alguma coisa já lida Eu era quem repetia Eu era quem pousa Na sua libido Era um pouco inibido Depois piorou Eu era só um gemer Um suor aflito de gozo Um suor de tempo ocioso Eu era uma coisa Em espera A mim ser atribuída Mas o IRA reivindicou Página 54


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O atentado Eu era um lapso de cores Um leque de esquecimentos Eu era uma gama dolorida Eu era um gomo de tangerina Um tomo do Jogo da Amarelinha Um tema para valsinhas Obscenas De lingerie curta Eu era uma rama de murta Um ramo de alecrim Um remar no seu jardim Eu era um lobisomem juvenil Eu era o veneno Eu era a convulsão O biperideno Eu era a combustão O nazareno e o iscariote Eu era a confusão Nos olhos de vidro De polietileno Eu era um verme Um mal pequeno A transfiguração E a transformação De tanto Em muito menos Eu era o verbo Em outro idioma Em outra língua Eu era o beijo Em outra boca Eu era porra loca Sem orifício Eu era nenhum ofício Mas isso me ajudou Em eu ser o que eu era Pois Eu era a vista Em outros olhos Outra visão Paravisões em transfusão Eu era vestir o vermelho Eu era o rio Eu era exu secando o rio A carcaça dos animais No cio dos urubus Eu era trincar espelho O sangue Eu era ferida no espelho Página 55


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O sangue rolando macio A cocaína Eu era ela em minhas fossas nasais Cheirando lâmina Arranhando espelhos d água Eu era um corte na carne Na água Eu era magenta Eu era oliva Eu era o verde Esquecendo seu orgulho Saboreando seu orvalho Amanhecendo uma ogiva Explodir manhãs quentes Eu era um plano suicida Eu era parasita Da própria vergonha Da maconha alheia Eu era a elegia Mais cinzenta em Artaud Eu era Uma ode aos desmaios Um éter aos insetos Eu era meu incesto favorito Eu era sua maior tragédia Sua melhor piada Eu era o berrante mudo Depois do aboio Depois do abate Eu era um abatimento Um preço alto Uma pechincha para a carne De churrasco Era padre professando ressurreições E carne apodrecendo o verbo Eu era o verbo carne estragada Carne de segunda Frango de domingo Eu era um pouco do Brasil também Eu era um pedaço de chã de dentro Eu era o mundo novo O que ainda não veio Eu era seu maior receio O mundo partido aos dois Pedaços sem recheio Eu era a união Depois das bombas Do pão de centeio Eu era açúcar de confeitaria O batalhão de infantaria Página 56


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Eu era sua barriga grávida Depois do aborto Eu era todo seu asseio Todo seu assédio Por coisas que não nos levam Lugares alguns Eu era o mundo novo Eu era a louça Que você partiu Em sete cacos de destino Eu era este desatino Era o mosaico De louça pontiaguda Fixada na parede Em formas assimétricas E em cores aleatórias Eu era este aparato Era sem função Era este artefato Eu com fabricação caseira Eu era o senhor Jogando o jogo da dama Eu era o xadrez Dos meus pijamas Passei a usar mais Aventais Por cima dos pijamas Depois quando eu era aposentado Eu era uma descoberta De perfumar as roupas de cama Eu era o senhor Depois quando eu era aposentado Eu era seus ais Eu era esta trama Eu era este colapso Eu era uma vez este colapso Depois fui surto mesmo Mais uma vez fui colapso Logo após esta doença poética Eu era um remédio Minha voz Pedindo licença Era um remédio Aparentemente sem contra-indicações Mas então vieram Os efeitos colaterais Trago de antemão este aviso, portanto Possuo efeitos especiais Mas não me usem Associado ao álcool Página 57


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Ou outras drogas lícitas Eu também era isto Eu era o que estou fumando Eu era o experimentar este fumo Eu era a tabacaria inteira Eu era um poema Entre nuvens de fumaça Eu era o enfisema Em fumaça de poesia Brasa de verso Queimava na língua Eu era o verbo Derramar Então eu derramava Eu tão eu declamava Eu era este derrame Eu era o desfazer da minha barba Em endereço fixo E em revistas de filosofia Eu era um diálogo quase permanente Quase pertinente Com filatelistas transoceânicos Eu era uma dialética com filólogos românicos Eu era tudo isto ao salão da barbearia E em outros assuntos Eu também me embebedava Eu enveredava confusões Eu também era minha barba feita Eu era quinta feira Já tinha sido cinzas Já tinha sido paixão Já tinha sido adventista Eu era um jeito de não descansar Aos domingos confeitava um bolo Com sumo de limão Confeccionava bombas E ia alfaiataria Ler os jornais distraído Os jornais esquecidos Entre moldes de risco errado O horóscopo de quinta-feira Tiros certos Eu era um homem De desfazer silêncios De ordenhar rochas Encher a praça Parar ventanias Chover cantorias Cessar meu cantochão Minha litania Página 58


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Abri um verso em cores E me calei nas cores Mas antes Reuni platéia Reuni palanque Arrastei multidão Até o palhaço mais próximo Sorri a idéia do choro

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Ouro Branco, 27 de abril de 1980 Prezado senhor Afrânio Cataguazes Escrevo recomendada pelo senhor Ananias Penaforte, em sua mais elevada estima, afim de submeter meus escritos ao seu crivo, bem como, todos os editores da Revista Literária Entrelaço no desejo de publicá-los nesta iniciativa benemérita das causas literárias. Desde já agradeço os cuidados. Saudações.

O ônibus já ganhava a estrada, já se inundava do habitual cheiro de pasto queimado pelo inverno. O ônibus já ganhava a estrada, e já estava eu indo embora mais uma vez. Como se nunca tivesse voltado ou como se estivesse fugindo de novo. Sem quase nenhum refugo. O ônibus ganhava a estrada. Poderia eu estar voltando, em definitivo, com um diploma e planos para abrir um consultório ou um escritório (como ali se fazia). Porém naquele lugar “tudo em mim foi naufrágio”. De lá até os dias de hoje encontrei várias vidas decepadas, outras se deceparam em meu coração. O ônibus já ganhava a estrada e eu, como se levado por um rio dos meus primórdios até uma ilha. Outra vez, minhas sensações jogavam uma âncora nesta ilha. Algo de mim sempre fica nesta ilha. Nove quilômetros submerso num rio sem peixes. Num rio de árvores e vacas pastando de baixo d'água. Uma faixa, alguns dizeres, selecionei aleatoriamente algumas letras (apenas as que a velocidade do ônibus me permitia). Esta faixa estava voltada para quem chegasse, e eu ia. Quando me lembrei de que o ônibus passava em frente à casa dela, minha memória não me traiu. Apesar de ter quase ficado com a âncora. Minha memória me valeu rapidamente, voltei à imagem da faixa ao avesso e lá esta o nome dela. A faixa para quem chegasse e eu saindo. Mais uma vez na contramão, mais uma vez um desencontro ou um encontro às avessas. Que dizia a faixa? Não sei. Mais uma vez eu saía pelos fundos. Como eu entrava? Como qualquer cão pedindo osso ou um pouco de calor. Um cão que sempre saiu pelos fundos! Que diria a faixa? Alguma congratulação? Algum alento solidário? Que diria a faixa? Mais uma mensagem dela que não decifro? O ônibus já ganhava a estrada. Depois de um rio, um rio de árvores e vacas pastando submersas, sentimentos submersos, uma ilha, um hiato, um cão, como se pedisse... , como se pedisse osso, um cão que saía pelos fundos...

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Um homem surge aos poucos, mancando, subindo uma alameda de terra batida que dá para o antigo casarão em pedaços do finado Cícero, patriarca de um pequeno império: a única funerária de Mar de Garças. Todas as casas num raio de uns cento e cinqüenta metros eram de seus herdeiros. Havia uma casa em que eu, Antônio, morava. E era a única que não fazia parte do patrimônio dos filhos do velho Cícero. Não por acaso, meu pai a vendeu para um deles quando minha mãe morreu. Desde então, eu nunca voltei a Mar de Garças. Os postes ficavam longe do casarão que se escurecia em abandono. Muitos morreram. No passado, era possível ver netos e bisnetos de Cícero brincarem de olhar a cidade do alto, se revezando entre as janelas intercalando as vistas da cidade. Coisa que faço, agora, na minha primeira volta à cidade, sobrepondo nas retinas pontos de vista, pontos de fuga do lugar que fragmento em paisagens, por tentar compreendê-la neste banco anoitecido ao lado do velho casarão onde se fabricavam caixões. O homem que surgia finalmente chega ao ponto de, lentamente, esboçar gestos no propósito de me reconhecer: _ Dimas? _ o saudei. _ Quem é? _ Antônio! _ Antônio? _ Antônio de Eliseu... _ Tonim? _ É! _ Você era um menino custoso... melhorou? _ Estou tentando. _ Tonim! _ O que foi na perna? _ Joelho... Trouxe esta vasilha para apanhar com minha cunhada um preparado que ela faz... _ Melhora? _ Ajuda... você entra? _ Não, Dimas... você ainda toca os sinos da matriz quando alguém morre? _ Do mesmo jeito Tonim... Não entra? _ Não, não, obrigado! _ Até mais, Tonim! _ Até... Os sinos... Era fascinado com eles na minha infância. Dimas os tocava a cada óbito. A impressão que tenho é que Dimas os toca desde sempre, desde quando eu gostava de me sentar neste banco em que estou agora. E o silêncio da cidade nessas horas já justificaria o luto. A qualquer hora que o sino tocasse, a igreja matriz de Sto. Onofre era imponente, diante o casarão. Como não se lembrar disso. As escadas que Dimas subia, as escadas das torres, eram de madeira do século XVIII. Uma coruja riscou o céu piando e, planando rapidamente, ganhou as ante salas da igreja.

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- Boa noite! É novo aqui? _ É... Digamos que sim! Prazer, meu nome é Antônio. _ É novo mesmo, nunca ouvi falar de você. Prazer sou Dimas. _ Você é filho do outro Dimas? _ Sim! _ Não me lembro de você! _ Nem eu... _ Você ouviu o pio da coruja? _ Sim. _ Me veio um nome, uma imagem: “Katyuchas riscando o céu de Strawberry Fields”. _ O quê? _ É como uma metáfora entende? _ Sim, mas não consigo ver significância nelas... O que são katyuchas e o que são strawberry fields? _ Esquece... _ Quer um cigarro de palha? _ Aceito. Cheira bem, onde comprou? _ Na venda de seu Zé Nonato. _ Não conheço. É nova? _ È, é sim. Bem, vou indo embora. Tenho que tocar o sino. _ Mas não é seu pai quem toca? _ Pai está debilitado. _ Quem morreu esta noite? _ De que adiantaria te falar, você não conhece nada por aqui mesmo! _ Tem razão. _ Até mais. _ Até mais, Dimas. “Katyuchas riscando o céu de Strawberry Fields!” A coruja piou novamente e ouviu-se também um grito de dentro do casarão: _ Dimas! Dimas!

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A porta rangeu novamente, como inúmeras vezes naquela noite. Os movimentos que fiz para cerrá-la, a fim de que o frio não invadisse o resto da casa (e dos indiferentes) não eram bruscos. Ninguém se lembra de quando a porta rangeu pela primeira vez. Mas isso, aos meus ouvidos, era uma lembrança de todas as vezes que ela rangeu. Havia uma fenda na parte superior. Ganhou a varanda e fez tremer a cadeira quando se sentou e a empurrou com suas costas. Pôs o cotovelo na velha mesa e a mão no queixo. Rodin devia estar se remoendo em seu túmulo. Na mesa havia um exemplar de Mensagem. Ai do crítico que não considere esta obra a única epopéia moderna! Pensou então olhando para aquela encadernação: eram três os reis magos, mas se fossem quatro? Se fossem zoroástricos? E se o oráculo deles lhes tivesse dito para seguir uma estrela e um discordou e foi seguir outra? E se este dissidente, ao final da viagem, tivesse encontrado um neto de Cleópatra? Daria um belo conto. Fumou o último cigarro. Apanhou o volume de Fernando Pessoa. _ Boa noite, vó. _ Já vai, meu filho? _ Vou. _ Vá com Deus. _ Amém.

Já na quinta cerveja alguém perguntou: _ Cacá, qual o seu nome? _ Huáscar. _ Deus tem piedade. Falou o protagonista: _ Um imperador inca ou asteca... Não sei. _ É isso, disse Sofia. _ Huáscar traiu Ataualpa e depois foi executado pelos espanhóis. _ Não. Foi o contrário. Falou de novo o protagonista: _ Não, Sofia. Seu irmão está certo. _ Inácio, tem um livro aqui em casa. Eu te provo que não. Sofia passou o resto da festa procurando o livro sem sucesso. Página 63


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A porta bate: _ Sofia! _ Inácio, você estava certo sobre a questão de Huáscar e Ataualpa. _ Não te falei... _ Agora não venha me dizer que você está sempre certo... _ Quase... _ Posso fumar unzinho aqui? _ Acho que dona Wilma saiu com os cachorros. Pode. Veja este esboço de conto que andei rabiscando ainda há pouco. _ Deixe-me ver... Quatro reis magos... Dúvidas na escolha da estrela... Um dissidente... Neto de Cleópatra? _ É! _ Mas isso é estapafúrdio! _ O melhor elogio possível! Sofia levou a mão ao rosto de Inácio. _ Não ando fazendo a barba. _ O que é isso? _ É que eu tenho o hábito de comer bolachas debaixo da coberta. _ Que nojeira! Sofia começou a comer os farelos que se encontravam à altura das partes baixas de Inácio. _ Vai encontrar aí farelos de sexo solitário. O riso foi descabido. _ Caminhamos no bosque amanhã? _ Sim, disse ela saindo. E a noite dissolveu os homens.

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Ouro Branco, 16 de dezembro de 1980, Prezado senhor Adolfo Colaris Escrevo recomendada pelo casal Asdrúbal Penaforte e Alana Rios, ambos informaramme de seu trabalho como detetive particular, bem como ter exercido este ofício no interior da Inglaterra. Gostaria de contratar um serviço em Londres, sem obviamente fazer alardes. Tenho sido afetivamente ameaçada por cartas de um senhor que, supostamente, conheceu minha mãe em seus anos de exílio. Porém, suspeito que este homem possa ser a mulher que trouxe minha mãe de volta ao Brasil quando meu pai falecera e com a qual mantive relação amorosa. Prezo que o senhor mantenha sigilo e me sugira uma pessoa adequada. Não tenho problemas com o idioma. Grata.

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Ouro Branco, 10 de janeiro de 1981, Prezado senhor Afonso de Almeida, Escrevo-lhe para me inscrever no prêmio literário sob sua organização. O prêmio Antologia Discurso Direto. Trata-se de um esboço que posso melhorar. Segue o conto e os contatos. Desde já agradecida.

Condomínio Labor O prédio era bastante antigo, talvez tivesse uns cinqüenta anos. Vinte e três andares imensos que se dividiam em oitenta apartamentos, muitos dos quais, vazios. As escadas em espirais continham uns quarenta lances muito mal metrificados, claustrofobicamente metrificados. Os degraus vertiginavam. Aliás, todo o prédio e todo o seu assoalho em reforma vertiginavam, aprisionavam. Alguns moradores não se lavavam nem lavavam suas kitchenettes, nem seus lavabos nem a si mesmos. Tudo impregnado de mofo de roupas e mofo de gente. O último andar era trancafiado por um medonho cadeado. O que haveria ali? Simples, a resposta. O cadeado era para que nenhum maluco - e desses lá havia muitosnão se jogasse do alto. Uma brigada de incêndio evidenciava a falta de cuidado dos funcionários do condomínio e de seus moradores com o resto da cidade e o resto de vida que lhes sobrava naquele horizonte cinza. É certo que, se houvesse incêndio, a brigada do edifício muito pouco poderia fazer. Isso por causa da displicência de todos para consigo mesmos, cerca de três mil alienados. Naquela quadra, os transeuntes pareciam como deveriam parecer. E só se transformariam se ali houvesse uma implosão. Essa é a displicência contra a própria psicogeografia. A esquizofrenia dos espaços, das praças, dos semáforos. Assim era a vida. Por dentro e por fora.

Hernandez acabara de comprar um carro no bairro Bella Vista, um Fiat 147C, que tinha vindo do Brasil, talvez do contrabando, e ficara estacionado na frente do flipe-

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rama. Suado, Hernandez pensava no fato de que agora ele diminuíra a distância de sua bigamia. Chegando ao condomínio Labor, Hernandez abriu a porta do apartamento 2383 e Julia correu. Julia correu dois passos, justamente os passos que permitiam percorrer a pequena distância da mesa da sala até a porta da kitchenette. Julia correu para abraçar Hernandez, com as chaves do automóvel tilintando. Então agora eles poderiam colocar as verduras de sua mãe no porta-malas do Fiat e distribuir nos mercadinhos do subúrbio. Julia tinha que cuidar do pequeno Pablito, que sofria de asma. E Hernandez então faria o serviço. No entanto, todos os legumes e verduras terminavam na casa da outra mulher de Hernandez O que Hernandez fazia, em contrapartida, era vender maconha para sustentar Julia e seu filho Pablito.

Ainda no condomínio Labor, no apartamento 2115, morava Alejandro, um jovem que tinha distúrbios de ordem psicológica, os quais possivelmente lhe renderam uma atrofia nos músculos de suas pernas. Levanto essa hipótese psicossomática porque nenhum médico conseguiu diagnosticar a causa de ele passar meses de cama sem conseguir andar. O que piorava a situação de sua mãe, Alfonsina, cuja única fonte de renda era a venda de bijuterias. Um dia Alejandro resolveu pegar a muleta e começou a andar, já que nenhum funcionário do condomínio o ajudava a se locomover. Sua mãe, muito alegre, resolveu pagar o conserto de uma máquina de escrever, que seu falecido marido havia estragado. Esmurrando tudo num acesso de fúria e sensação de fracasso, mal saberia ela que, mesmo assim, seu filho ainda não perdera a esperança de escrever e ter paz. De fato, todo aquele ócio de Alejandro o levava a escrever, ainda que a mão. Mas agora Alejandro, já de muletas, tinha uma máquina de escrever. Sua predileção era escrever sobre os travestis do condomínio.

Alejandro passava pelo corredor do vigésimo-terceiro andar e, com certa habilidade, levava uma xícara de café. Ele havia feito o mesmo caminho numa primeira viagem para levar a máquina de escrever. Quem ali a roubaria? Colocou a xícara de café ao lado da máquina no chão, recostou as muletas na parede e sentou-se. Acendeu um cigarro enquanto bebia o café, observando o pôr-do-sol através daquelas janelas enferrujadas, buscando inspiração. Página 67


João Evangelista

Estudo de solfejos

Alejandro ouvia os sussurros de Hernandez com um membro da comissão de administração do condomínio. Ele se recusava a inscrever-se num programa de saúde pública temendo a descoberta de sua outra família. O membro da comissão passou pelo corredor rumo às escadas daquele labirinto, nem sequer percebeu Alejandro. Hernandez já estava decidido a acender um baseado, pois naquele momento os corredores eram desertos e começava a escurecer. Aproveitando que Pablito se compenetrava no videogame e Julia lavava os pratos, acendeu então a erva. Saiu pelo corredor e deparou com Alejandro. Teve certeza de que ele ouvira toda sua conversa com o membro da comissão de saúde púbica. Observou a máquina de escrever, conhecia os boatos de que Alejandro escrevia sobre os moradores do prédio. Não hesitou: _ Tava ouvindo minha conversa para escrever aí, pulha? Com um chute, Hernandez jogou a máquina de escrever contra a vidraça, quebrando-a e arremessando o objeto a uns cem metros, no chão de concreto. Alejandro tentou se levantar, quando Hernandez lhe tomou as muletas e quebrou-as. E quando Alejandro caía no chão, o outro chutou suas pernas atrofiadas. _ Bico calado, otário.

Juan, ou Mónica, como gostava de ser chamado, passou pelo corredor. Ele havia formado uma associação de travestis no condomínio, que contava com mais ou menos vinte e cinco adeptos. Vendo o infeliz ali, tentando se levantar, Mónica correu piedosamente para o apartamento de dona Alfonsina, que montou mais uma vez a cadeira de rodas. _ Você me acompanhe, por favor, Juan. Alejandro é muito pesado. De volta a casa, foi impossível que Juan contasse tudo o que aconteceu sem que Alfonsina não estufasse suas artérias e quase desmaiasse. Ela começou a jogar tudo o que estava em cima da mesa para o alto, histérica. Para sua infelicidade, foi cair ao pé de Mónica um manuscrito de Alejandro: “A noite dos Travestis”. Mónica, calmamente, quis recolocar o papel amarelado na mesa, tentando ainda acalmar Alfosina.

Na manhã seguinte, estava tudo consumado. Hernandez fora denunciado à polícia, que não pensou duas vezes em detê-lo. Ele já estava sendo procurado por tráfico, de qualquer maneira.

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João Evangelista

Estudo de solfejos

Juan resolveu consolar Julia dizendo a verdade sobre seu marido. Agora Julia não mais desconfiava da traição de Hernandez, nem do abuso de maconha. Agora ela sabia tudo. Porém, demonstrou-se forte, forte o bastante para agradecer Mónica. Juan despediu-se vendo um sorriso sensual nas entrelinhas dos lábios de Julia, carnudos lábios, e segundas intenções entre seus dentes de um raro branco. Julia parecia querer se libertar e Mónica há muito não se apaixonava por uma mulher.

Ao entardecer, com febre, Pablito delirava e dizia estar vendo seu pai morto a canivetadas. Julia chamou então Juan para tomar providências, mas Mónica estava no apartamento de Alfonsina cuidando de Alejandro. Então chega Julia com Pablito no colo, já desmaiado. Juan resolve acompanhar Julia ao pronto-socorro, onde internaram o menino. Já ao amanhecer, Mónica e Julia acordaram entrelaçadas no mesmo sofá. Foram acordadas pelo clínico responsável, que anunciou a morte de Pablito por dengue hemorrágica. Julia então desfaleceu no ombro de Juan que, num beijo de amor, acalentou-a por um instante. Após o luto de Pablito, Juan e Julia já dividiam o apartamento, amorosamente envolvidos.

Os dias e as semanas se passaram. Juan e Julia se amavam mais a cada hora. Já Alfonsina decaía sem qualquer equilíbrio emocional, nem mesmo para fazer suas bijuterias. Mãe e filho foram despejados, além disso, confiscaram toda sua mobília. O filho sugeriu à mãe que pedisse a Juan e a Julia hospedagem provisória. _ Isso mesmo. Julia precisa de companhia para superar o trauma da morte de Pablito _ concordou Juan. E assim passaram a viver os quatro, também em quatro cômodos, com alegria e estranheza. O mínimo de estranheza, diga-se de passagem, para tudo o que acontece no condomínio Labor. Hernandez mantinha um informante sobre os assuntos de Julia. Era Paredes, o açougueiro. Ele não se conformou quando soube da morte de Pablito e endoideceu quando descobriu que Julia agora namorava Juan. Por último, foi informado por Paredes que Alfonsina e Alejandro estavam morando onde ele um dia morou. A sentença tinha saído e Hernandez pegou seis anos de cadeia por tráfico de drogas. Página 69


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Guillermina, a outra mulher de Hernandez, o convence a tramar a morte de Julia. E assim combinaram com Paredes: _ A primeira carne que qualquer um deles comprar para churrasco, você coloque veneno. Paredes consentiu e, mais ou menos, um mês depois do combinado, Alfonsina apareceu no açougue de Paredes para comprar carne. O açougueiro disse: _ Faço questão de temperar! _ Mais tarde então passo aqui. _ Não precisa, mando lá o garoto. _ Certo. Obrigada. “Vamos lá fazer como Hernandez quer”. O aprendiz Diego foi chamado ao final do expediente. _ Entregue esta carne a dona Alfonsina ou a senhorita Julia, no edifício Labor. _ Tá entregue. Mas Paredes não percebeu que Diego o ouvira pensando alto sobre o combinado com Hernandez. _ Aqui está a carne, senhor. Desculpe, senhorita Mónica. _ Obrigada. _ Do jeito que encomendou Hernandez, senhorita... senhor Juan. _ Ah... Hernandez! Não levando desaforo para casa, saíram rumo à delegacia Julia, Mónica, a senhora Alfosina e Alejandro, levando consigo a carne. Lá chegando, começaram a gritar e a desacatar os policiais, chamando por Hernandez e atirando a carne nas paredes do estabelecimento. A gota d água foi quando Mónica tirou seu membro para fora da calça e todos foram presos. Por ironia, foram todos para a mesma cela onde se engalfinharam o resto do dia. De manhã, já mais calmos, foram surpreendidos por Guillermina. _ Ora vejam! Todos aqui! Ainda bem que, antes de ir visitar Hernandez, pensei ontem com meus botões: Irei ao açougue do Paredes. Está aqui: medalhão, costela, asa, pé de porco... Vocês são servidos? Famintos, todos aceitaram. Só Hernandez teve uma leve indigestão.

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Ouro branco, 28 de fevereiro de 1981, Prezado senhor Adalberto Alessandro de Pádua Henriques, É com satisfação que vejo o adiantamento de suas investigações! Estás a confirmar minhas suspeitas! Antes mesmo que não haja nenhum Donald neste endereço. Que não há movimentação de Dee Dee por lá não me surpreende, nem o fato de não haver nenhum homônimo nos contatos dela; queria que o senhor soubesse que embora me falando dela me cause imensa curiosidade de amante é preciso que o faça, pelo bem da verdade. Estranha me um pouco o fato de Dee Dee ironicamente manter seus velhos hábitos. Isto pode o fazer pensar que nada há de errado com esta jovem senhora, não vacile! Ou ela esgueira-se em suas pernas que aí sim saberás do que estou falando. Com um até já.

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Sua mãe não passava de qualquer pessoa dentro de qualquer padrão mediano, para ser literal, era medíocre. Nunca foi a mulher que não pode ter sido, isso nela em mim me agradava. Não por que tivera sido uma latino-americana refugiada da opressão de seu país. Eu sei reconhecer a geografia dos poderes hegemônicos no globo, incrivelmente são onde os civis de esquerda tem tido refúgio. Ela não era metódica como sempre pareceu para você. Penso que isto é mais coisa do teu pai, aquele que já conheci prestes à sepultura. Impressionante, como não se enterram ressentimentos! A salmoura do atlântico tem temperado a America de seu legado de misérias, é verdade. Quando vi teu pai no caixão estive certa dos pudores que tiveste que enfrentar, por isso mesmo Sofia, sua irmã mais velha não passa de uma beata depravada que seus tios escondem. Ah suas tias aptas ao bordado e à culinária, assim como aptas a língua quente das soleiras baixas, optas por este tipo de saudosismo... Este teu país que não entendo! Sua oratória inflamada de venezuelas, fidalgos e fidéis, Nicaráguas e Sandinos. Estas coisas como cantassem hinos como louvassem a própria derrota, num cristianismo tardio e perigoso. Donald esteve sim conosco, num ciclo de leituras de Shakespeare, cujo interesse foi de sua mãe participar. Mas, para lhe dizer a verdade foi o ar provinciano dela que o encantou, posso supor que ele também tinha este traço de atraso no espírito. Ajudavanos às vezes com provisões, mas nunca cobrara favor algum, se estás a me entender, sua mãe sequer o tocou. Embora tivessem, ambos, o mesmo desejo. Pobre homem o Donald! Já é morto, nem me lembro há quanto tempo! Acontece que tem um sobrinho com as mesmas taras de todos da sua família cujo delito invade o afeto dos outros com esta curiosidade mórbida que lhes alimenta a pobreza na alma. Sua mãe não foi senão mera escrava deste sentimento mesquinho e ultrapassado. Então nós europeus somos os arrogantes, pois que sejamos! Viste que tudo acaba debaixo do chão e não confundas que o seu ufanismo é o mesmo dos que governam seu país. Página 72


João Evangelista

Estudo de solfejos

Pobres de seus namorados e suas namoradas estão condenados a viver sua mentira ideológica, esta solidão mascarada de animais instrumentos e fumo, além é claro da pretensão intelectual. Tomem o poder e entrem também no jogo do hemisfério norte, este que já me causou tanto desgosto. Vocês, pelo contrário, tem o gosto pela pompa e pela circunstância. Nunca deixarão o estilismo de um padre Antônio Vieira. O que fizeram de novidade e está pegando por aqui foi tirar o privilégio dos políticos serem os únicos a se sujarem, aliás, padres, e até mesmo esta sua classe média. Todo o leste previu isto em suas comédias de comportamento, agora são tragédias nas mãos de alguns porcos. Registrei uma queixa contra ti em Londres. Verás que a Scotland Yard não foge à luta e levará a prisão seu detetive mequetrefe que bisbilhotou minha vida e não se dando por satisfeito resolveu usar como tática a difamação pública, você não terá o nome citado por que a incompetência de seu representante levou a mim e a polícia, aos fatos que te atormentam Tens a presunção de suspeitar de mim, você que fantasiou a meu respeito desde que me viu e depois que me teve por pouco tempo. Como podes te nutrir de tanta imaginação perversa, como podes me incluir em sua orientação pequeno-burguesa do mundo. Sinceramente não sei o que gira em torno de sua cabeça, que a democracia venha logo a seu país e que entendas algo que possas te melhorar ao menos um pouco. Aprendas tomara, que todas as verdades têm em seu prazo de validade uma grande mentira! Quis ver tudo com meus próprios olhos. É por isso que vim, Alberto!

Ouro Branco, 10 de abril de 1981.

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