Artigos de ciência, saúde e tecnologia publicados no Correio Braziliense

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Ciência

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17 • CORREIO BRAZILIENSE • Brasília, quarta-feira, 6 de abril de 2016

Erradicar e preservar Estudo mostra que a eliminação de mamíferos invasores — como ratos e gatos domésticos — é uma estratégia eficiente para proteger a biodiversidade em ilhas. No entanto, a medida, que muitas vezes exige práticas extremas, divide especialistas a lógica da natureza, cada ambiente deve ter a conta certa de predadores e caças para manter a diversidade e o equilíbrio ecológico. Por isso, quando animais exóticos ocupam e se reproduzem em ambientes despreparados para recebê-los, espécies nativas passam a correr risco de extinção — segundo ambientalistas, essa é a segunda maior causa do desaparecimento de bichos, atrás apenas da perda de hábitat. Em grande parte das vezes, por trás dessa perigosa invasão, está o homem. Ao ocupar determinada área, o ser humano leva consigo mamíferos como gatos, cães e cabras, além de favorecer a proliferação de ratos. Com o tempo, o aumento desses bichos se torna um enorme problema, especialmente em áreas restritas como ilhas. Nesses locais, sem ter para onde correr, espécies originais se tornam presas fáceis. O que fazer nesse caso? A resposta pode soar digna de pessoas que não se importam com animais, mas é defendida por ambientalistas sérios: eliminar a presença desses mamíferos introduzidos pelo homem. A medida causa polêmica porque, muitas vezes, a única forma de fazer isso é por meio do uso de armas de fogo, esterilização e envenenamento, ao lado de medidas como a proibição de que os habitantes criem ou abandonem animais nessas áreas.

Stephanie B. Borrelle/Universidade do Nordeste de Illinois

pessoas, concorda Sérgio Lucena. Por isso, busca-se evitar técnicas cruéis, como armas de fogo e iscas envenenadas, mas há questões econômicas e a amplitude de cada caso a serem levadas em conta. “Onde há populações invasoras pequenas, é possível capturar, castrar e levar para adoção. Mas, às vezes, são milhares de animais invasores. Nenhum biólogo, nenhum protetor da biodiversidade, sente prazer em sair matando animais, mas, em determinados casos, é essa a solução”, enfatiza Lucena.

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Benefícios Um recente estudo, conduzido pela Universidade do Nordeste de Illinois em parceria com a organização não governamental Island Conservation, ambas nos Estados Unidos, traz argumentos para os defensores da intervenção radical. No trabalho, publicado na revista especializada Pnas, a equipe revisou pesquisas e dados de erradicação de animais invasores em dezenas de ilhas oceânicas, boa parte iniciada na década de 1970. Os resultados mostraram que 236 espécies nativas terrestres foram diretamente beneficiadas pelas 251 ações de erradicação de mamíferos em 181 ilhas. Com a medida, nenhuma espécie saiu da categoria de “risco de extinção” para “alto risco de extinção” na Lista vermelha, da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN, na sigla em inglês), o que, segundo os autores do estudo, sinaliza um ganho diretamente relacionado à erradicação. “Nós sabíamos que a erradicação de mamíferos invasores era uma ferramenta de conservação poderosa, mas essa é a primeira vez que os benefícios foram quantificados

Conscientização

A ave storm-petrel, típica da Nova Zelândia: animal foi classificado como criticamente em perigo depois da invasão de ratos em seu hábitat

Às vezes, são milhares de animais invasores. Nenhum biólogo, nenhum protetor da biodiversidade, sente prazer em sair matando animais, mas, em determinados casos, é essa a solução”

Se ações de mitigação tivessem sido instauradas a tempo, prevenir-se-iam o sofrimento e a morte de animais. O manejo não letal deve ser priorizado sempre”

Sérgio Lucena, biólogo e professor da Universidade Federal do Espírito Santo

Rosangela Ribeiro, gerente de Programas Veterinários da World Protection Animal Brasil

Biodiversidade As ilhas são um alvo importante de conservação porque abrigam cerca de 15% da biodiversidade do planeta. Elas também representam 61% dos registros de extinções causados por espécies invasoras. Na lista vermelha da IUCN, aproximadamente 37% das espécies classificadas como “criticamente em perigo” são nativas de ilhas oceânicas.

em escala global”, diz Holly Jones, líder da pesquisa e professora-assistente em ciências biológicas na Universidade do Nordeste de Illinois. De acordo com os cientistas, nos últimos 40 anos, foram feitas mais de 1,1 mil tentativas de erradicação de animais, das quais 700 deram certo. As espécies que mais colocaram outras em risco foram gatos, cabras e ratos, esses últimos presentes em 80% a 90% das ilhas do mundo. Nos casos em que a eliminação desses mamíferos foi eficaz, os pesquisadores observaram que houve recolonização, reintrodução e aumento de populações de animais, incluindo alguns seriamente ameaçados, como as aves storm-petrel, da Nova Zelândia, ameaçadas por ratos; e magpie-robin-de-seicheles, encontrada em Madagascar e vítima de gatos invasores.

Ações realizadas no Brasil mira da erradicação, segundo artigo de Nilber Silva e Ruy Alves, publicado na revista especializada Rodriguésia, associada ao Jardim Botânico do Rio de Janeiro. Outro caso recente de eliminação de bichos é o dos búfalos selvagens na reserva do Vale do Gu aporé (RO). Em março, o governador do estado, Confúcio Moura, sancionou a Lei nº 3.771, que autoriza e regulamenta o abate de 5 mil búfalos. A lei é baseada em estudo de 13 instituições detalhando o desequilíbrio ecológico na região e destacando que os búfalos ameaçam mamíferos, répteis e a flora da reser va biológica, além de serem vetores da febre aftosa. Após avaliação sanitária, a carne dos animais poderá ser comercializada.

Apesar de inimaginável para alguns donos de gatos e cães, boa parte dos bichos domésticos conserva hábitos de caça instintivos. Se ficam livres, esses animais podem entrar em parques e reservas ambientais, causando sério desequilíbrio ecológico. Nas ilhas, são ainda mais ameaçadores. “As ilhas têm histórico evolutivo diferente. Grande parte das aves nativas não voa e não possui estratégias para se defender de ratos, gatos e cães”, explica Sérgio Lucena, biólogo e professor da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). Lucena, que ajudou a implementar projetos de conservação e recuperação da Mata Atlântica, lembra que é recente a atenção dada aos animais invasores como uma estratégia de conservação da natureza. Nas áreas nacionais

monitoradas por sua equipe, por exemplo, há pouco tempo foi descoberta a presença de cães. “Esses animais caçam determinadas espécies e se encontram em grande número. Muitas vezes são de pessoas que moram vizinhas a áreas de conservação.” Segundo Enrico Bernard, professor de biologia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), a erradicação de mamíferos é uma medida drástica, à qual se deve recorrer quando a situação foge do controle. “É a última alternativa, aplicada quando outras tentativas, como castração e criação de zonas livres, não dão certo”, explica. “As pessoas não entendem que, em algumas situações, é preciso erradicar, visando à proteção de espécies. Isso é quase um tabu”, completa. Por envolver animais domésticos, a erradicação é mesmo um tema sensível à maioria das

Antonio Cunha/Esp.CB/D.A Press - 26/11/13

Olhos D’água Em Brasília, o Instituto Brasília Ambiental (Ibram), em parceria com o Proanima, conseguiu realizar entre 2013 e 2014 a retirada total de coelhos abandonados no Parque Olhos d’Água, na 214 Norte. Foram aproximadamente 15 animais capturados, esterilizados e levados para adoção. “Muitas vezes esses animais são comprados para dar de presente a crianças na Páscoa e depois são soltos nos parques”, diz Ana Nira, coordenadora de Fauna do Ibram. Segundo ela, ainda há no parque uma superpopulação de tartarugas-tigre-d’água, naturais do Rio Grande do Sul e dos Estados Unidos, que disputam a sobrevivência com peixes e patos na pequena Lagoa do Sapo.

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Entre os casos de erradicação de espécies estudados pela equipe dos Estados Unidos, está o do arquipélago de Trindade e Martim Vaz, localizado a aproximadamente 1,2 mil quilômetros a oeste do estado do Espírito Santo, onde habitaram rebanhos de porcos, cabras e jericos abandonados por colonos açorianos em meados de 1780. Na Ilha da Trindade, apenas as cabras sobreviveram, até serem erradicadas por um programa da Marinha do Brasil em 2005. A partir dessa ação, pesquisadores locais notaram a regeneração da vegetação nativa, que havia sido devastada, e a recolonização de espécies de pássaros marinhos. Atualmente, permanecem no arquipélago apenas camundongos considerados invasores e que já se encontram na

Instinto

Na visão da bióloga Simone Lima, diretora-geral da Associação Protetora dos Animais do Distrito Federal (Proanima), a erradicação de animais é uma medida antiética, do ponto de vista dos direitos dos animais, e não é eficiente, uma vez que existe a irresponsabilidade humana. “Não adianta erradicar se o entorno da área de conservação é habitado por humanos. Os bichos invadem porque os humanos soltam lá. O que se deve fazer é conscientizar a população sobre a guarda responsável, fazer a castração dos animais.” Com posicionamento semelhante, a gerente de Programas Veterinários da World Protection Animal Brasil, Rosangela Ribeiro, destaca que as soluções de controle populacional de animais invasores devem ser acompanhadas do trabalho de conscientização para evitar o abandono de bichos. “É importante ressaltar que, se ações de mitigação tivessem sido instauradas a tempo, prevenir-se-iam o sofrimento e a morte de animais”, enfatiza. “O manejo não letal deve ser priorizado sempre, e qualquer abordagem escolhida deve seguir princípios éticos e humanitários. Não é justo que os animais sejam responsabilizados e punidos por problemas da nossa sociedade”. Holly Jones, autora da pesquisa publicada na Pnas, defende que, no caso das ilhas, a erradicação de animais invasores é a solução mais eficiente. “Você pode economizar muito da biodiversidade do mundo com uma intervenção relativamente simples”. Para Nick Holmes, coautor do estudo e diretor de Ciência da Island Conservation, nos últimos anos tem crescido o número de projetos de erradicações de mamíferos invasores em áreas insulares, pois aumentou o reconhecimento dos benefícios da intervenção. “Para algumas espécies, remover a ameaça de mamíferos invasores é tudo o que precisa ser feito para haver um impacto positivo.”

Ação de remoção de coelhos do Parque Olhos D’Água, na Asa Norte: abandono perigoso


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