Revista GEMInIS

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E x p e d i e nte Revista GEMInIS | ano 6 | n. 2 • jul/dez. 2015 Universidade Federal de São Carlos ISSN: 2179-1465 www.revistageminis.ufscar.br revista.geminisufscar@gmail.com Poítica Editorial Editor Responsável João Carlos Massarolo Universidade Federal de São Carlos - UFSCar Co-Editores Temáticos Eduardo Portanova Barros Universidade do Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS Fernanda Aguiar C. Martins Universidade Federal Do Recôncavo Da Bahia - UFRB Prof. Dr. André Gatti Fundação Armando Alvares Penteado - FAAP Editor Executivo Dario Mesquita Universidade Federal de São Carlos - UFSCar Conselho Editorial (Copo de Pareceristas): André Lemos Universidade Federal da Bahia – UFBA Antônio Carlos Amâncio Universidade Federal Fluminense – UFF Arthur Autran Universidade Federal de São Carlos - UFSCar Carlos A. Scolari Universitat Pompeu Fabra – Espanha Bruno Campanella Universidade Federal Fluminense – UFF Derek Johnson University of North Texas – Estados Unidos Duílio Fabbri Júnior Pontifícia Universidade Católica de Campinas – PUC-Campinas Erick Felinto Universidade Estadual do Rio de Janeiro - UERJ Francisco Belda Universidade Estadual Paulista - UNESP Gilberto Alexandre Sobrinho Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP Héctor Navarro Güere Universidade de Vic – Espanha Hermes Renato Hildebrand Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP João de Lima Gomes Universidade Federal da Paraíba - UFPB Luisa Paraguai Pontifícia Universidade Católica de Campinas – PUC-Campinas Marcos “Tuca” Américo Universidade Estadual Paulista - UNESP Maria Immacolata Vassalo Lopes Universidade de São Paulo - USP Maria Dora Mourão Universidade de São Paulo - USP Pedro Nunes Filhos Universidade Federal da Paraíba - UFPB Pedro Varoni de Carvalho Laboratório de Estudos do Discurso (Labor) - UFSCar Ruth S. Contreras Espinosa Universidade de Vic – Espanha Sheron Neves Escola Superior de Publicidade e Marketing - ESPM Capa Original Gi Milanetto Diagramação Renan Alcantara


Sumário

Apresentação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 04

D ossiê - Cinema

e

Tecnologia

A Imagem Velada: O Informe Luminoso Jacques Aumont. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 08 Cinema e Feminismos entre Poética e Devir: Por Uma Tecnologia Engendrada Fernanda Capibaribe Leite . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 30 “Are You Talking to Me?” - Expressão do Popular Midiático como Potência Política em Taxi Driver, de Martin Scorsese Bruno Costa - Thiago Pereira Alberto. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 57 Resenha: O Cinema (de) Segundo (de) Chomón Carlos Bicalho. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 76 Estética do Documentário S3D, o Enigma da Imagem Estereoscópica Prof. Dr. Hélio Augusto Godoy de Souza. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 82

A bordagens M ultiplataformas Identidades Culturales Migrantes Fernando Herraiz García - Juan Diego Andrango. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 102


Comunicação e Consumo nas Wearable Technologies Vicente Martin Mastrocola - Gilesa G. S. Castro. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 130 Vídeos Publicitários Interativos: Produção de Conteúdo e Relacionamento On-line Cláudio Aleixo Rocha - Rosa Maria Berardo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 148 Roteiros para Dispositivos de Mídias Móveis: Tela, Tempo e Trânsito como Elementos Contingentes Carolina Dantas de Figueiredo - Allison Ronaldo da Silva Mendes. . . . . . . 165 Panorama dos Modelos de Negócios Emergentes na TV Digital Aberta Felippe Souza de Lima - Danilo Leme Bressan - Francisco Rolfsen Belda Gisleine Fátima Durigan - Matheus Monteiro de Lima . . . . . . . . . . . . . . . . . 183

E spaço Convergente Novas Janelas de Circulação de Filmes Trazidas pelo Digital: O Caso Marley Liana Gross Furini - Roberto Tietzmann . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 197


Apresentação Dedicado a Mario Arturo Alberto Guidi João Carlos Massarolo Editor Responsável Eduardo Portanova Barros Fernanda Aguiar C. Martins André Piero Gatti Co-editores Temáticos

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com satisfação que apresentamos a 11ª edição da Revista GEMInIS, uma publicação do “Grupo de Estudos sobre Mídias Interativas em Imagem e Som” – PPGIS/UFSCar. Um número especial em homenagem ao professor Mario Ar-

turo Alberto Guidi, que tem como tema Cinema e Tecnologia, em um dossiê que traz reflexões que discutem por perspectivas distintas o estado da arte do cinema no âmbito de uma reflexão mais ampla, que foge de um olhar puramente técnico, explorando o cinema como uma tecnologia do imaginário contemporânea, e assim, pensando nos alcances e nos limites, nas transformações e nas permanências dessa forma de representação. Ao tratar do peso da representação, John Tagg adverte: “A câmera nunca é um mero instrumento, porque suas limitações técnicas e as distorções resultantes se registram em forma de significado”. De fato, não podemos tirar a razão dele. Da mesma forma, temos de admitir, seguindo Jacques Aumont em seu texto inédito para este dossiê que apresentamos agora, que “um filme depende de sua técnica”. Sim, concordamos. Porém, ainda resta uma dúvida: e a técnica, por sua vez, depende do quê? Ou surge do nada? Quando Luis Buñuel, por exemplo, nos mostra, em Un chienAndalou (1928), o corte num olho pela navalha, pode nos falar tanto de uma falência da visão (ou seja, é um sentido figurado), quanto de um simples gesto representado por esse gesto (repito propositadamente) mesmo, o corte da navalha. Um corte da navalha, e ponto. Fala-nos, assim como em qualquer filme, o que está na ponta da nossa percepção, e não de algu-


ma imagem homogênea a todos que a veem. Isso porque a técnica nos limita. O pensamento é maquínico, mas a criação é humana. Ainda conta o que há de humano em nós. Conta cada vez menos, é verdade. Imaginar um filme, portanto, não é, necessariamente, produzi-lo. Claro que não se interage no vazio, e é para isso que serve a técnica, para que nos comuniquemos através de uma imagem (mental e visual, tanto uma quanto a outra, revigorando a palavra da qual se origina, que é “imago”). Este corpo de artigos retrata, pois, uma perplexidade. A perplexidade maquínica. Muitos são os efeitos especiais, hoje em dia. Vai longe o tempo de um Léon Gaumont, um Charles Pathé e do cinematógrafo dos irmãos Louis e Auguste Lumière. Vai longe o tempo das trucagens meio que circenses de um Georges Méliès. Na primeira sessão dos Lumière, em 28 de dezembro de 1895, no Boulevard des Capucines, em Paris, cobrou-se 1 franco por pessoa. Total arrecadado: 35 francos. Logo, o cinema começou com 35 espectadores. A propaganda tratou de fazer o resto. A essa altura, como bem lembrou Mario Arturo Alberto Guidi, o teatro ótico de Émile Reynaud já era passado. E o que é passado, presente e futuro do cinema? Dentro de uma perspectiva circular do tempo, poderíamos afirmar: nada. Assim, concordaríamos com Nietzsche e sua tese do eterno retorno do mesmo de que o centro está em toda parte. Logo, aquele tempo que vai longe também é do nosso tempo. Um tempo mítico. É do mito que o cinema se origina. O mito é uma narrativa. Não existe cinema sem uma narrativa. Jean Cocteau dizia que a linguagem cinematográfica é uma “escritura de imagens”. O que nos motivou a lançar este dossiê foi uma interrogação filosófica. Esta interrogação parte do princípio de que a técnica é ambivalente. É uma ambivalência entre o ser-objeto. Morin fala disso em “O cinema ou o homem imaginário”. Ele pergunta: “Uma ciência será apenas uma ciência? Não será ela sempre, na gênese, filha do sonho?”. Parafraseando Morin, poderíamos nos indagar o mesmo: “A técnica será apenas uma técnica? Não será ela, na gênese, filha do sonho?”. Godard afirma, mais ou menos assim, que um filme expressa uma impressão e imprime uma expressão. Aqui, há um jogo entre a impressão subjetiva que também é materialidade. Ou da expressão, na sua subjetividade, que se imprime (fisicamente). Deixemos que Godard fale: “O que me chama atenção quando vejo meus filmes antigos é como dois movimentos distintos, o que se pode chamar de expressão, que consiste em pôr para fora alguma coisa, e depois, ao contrário, a impressão, que consiste em pôr para dentro alguma coisa. Nessa impressão há um grande movimento de impressão”. A técnica, ainda, nos faz lembrar que ao vermos um filme estamos diante de elipses constantes. Entre a imagem técnica e a nossa subjetividade, a elipse surge como


uma espécie de “terceiro incluído”. Godard, novamente, e para terminar, considera que há dois níveis de leitura em um filme, o visível e o invisível: “O que você põe diante da câmera é visível, mas só isso não basta. Os verdadeiros filmes são aqueles nos quais há uma espécie de invisível que só pode ser visto através daquele visível”. Esperamos que este dossiê consiga transmitir as inquietações próprias desta época, na qual o imaginário maquínico “denunciado” por Heidegger talvez prevaleça sobre o Ser. Cinema e tecnologia são modos e versões disso. Em seus artigos, o dossiê trata sobre esse tema por diferentes olhares. Em A Imagem Velada: o Informe Luminoso, o investigador francês Jacques Aumont discute sobre o uso e as propriedades da luz em diferentes obras cinematográficas, em que “ela tanto vela quanto ilumina” e “dissimula revelando – e sempre, com um abono simbólico manifesto”. Fernanda Capibaribe Leite, no artigo Cinema e Feminismo entre Poética e Devir: por uma tecnologia engendrada, busca contribuir para a construção de uma poética feminista no cinema e audiovisual contemporâneo, concebida na ideia de trânsito ou fluxos para sujeitos de gênero compreendidas/os fora da lógica dos binarismos “cis” e heteronormativos. Em “Are You Talking To Me?”- A expressão do popular midiático como potência política em “Taxi Driver”, de Martin Scorsese, Thiago Pereira Alberto e Bruno Costa analisam o filme “Taxi Driver” (1976), de Martin Scorsese, como um possível veículo de expressão dos meios de comunicação populares como um poder político. O autor Charles Bicalho traz uma resenha sobre o livro Do truque ao efeito especial: o cinema de Segundo de Chomón, de Paulo Roberto Barbosa, que traça a trajetória um dos primeiros mestres nas trucagens de efeitos especiais e visuais, e também pioneiro de colorização para o cinema, que trabalhou para Méliès e para a Pathé, além de fundar a primeira produtora de filmes da Espanha. E encerrando o dossiê, o artigo Estética do Documentário S3D, o enigma da imagem estereoscópica, de Hélio Augusto Godoy de Souza, discute a respeito da imagem estereoscópica em um patamar filosófico, como forma de compreensão do mundo sob um viés realista. Além dos trabalhos que compõem o dossiê desta edição, destacamos os artigos reunidos nas demais seções da revista: “Abordagens Multiplataformas”, com artigos que exploram temas contemporâneos da comunicação e das mídias audiovisuais, como a pesquisa de Juan Diego Andrango e Fernando Herraiz García que aborda as produções audiovisuais voltadas para imigrantes equatorianos em Barcelona, que tentam criar laços de unidade e apoio através delas; Gilesa G. S. Castro e Vicente Martin Mastrocola tratam sobre o as relações entre comunicação, consumo e tecnologia, através de dispositivos digitais que se hibridizam ao corpo humano; Cláudio Aleixo Rocha e Rosa Maria


Berardo falam a respeito da animação interativa presente no ambiente on-line através de peças publicitárias; os autores Francisco Rolfsen Belda, Felippe Souza De Lima, Danilo Leme Bressan, Gisleine Fátima Durigan e Matheus Monteiro de Lima tratam sobre os modelos de negócios emergentes aplicados à TV digital aberta; e Carolina Dantas de Figueiredo e Allison Ronaldo da Silva Mendes discutem sobre possíveis aplicações para o roteiro para dispositivos de mídia móveis, e suas implicações. Por último, a seção “Espaço Convergente” traz uma análise de Liana Gross Furinie Roberto Tierzmann sobre o documentário Marley (2013), que teve o Facebook como sua principal janela de circulação. Esta edição está nas nuvens graças ao trabalho generoso e árduo realizado pela Equipe de Editores. O agradecimento é extensivo a todos os autores que participaram deste número e também aos pareceristas e colaboradores pela leitura atenta e minuciosa, ajudando-nos na seleção dos artigos a serem publicados. A equipe editorial deseja a todos uma boa leitura!


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imagem velada : o informe luminoso

J acques A umont É crítico e universitário (professor emérito da Universidade Paris III - Sorbonne Nouvelle, diretor de estudos na E.H.E.S.S.), e ensina atualmente na École nationale supérieure des Be-aux-arts. E-mail: jacques.aumont@univ-paris3.fr

Tradução - Fernanda Aguiar C. Martins Revisão - Eduardo Portanova

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Resumo O cinema inventou, meio-século mais tarde, se vangloriou como sendo a mais perfeita repro-dução possível da realidade, do mundo. O velamento nos lembra que essa perfeição, em seu automatismo, está sujeita ao erro – um erro não humano e, além do mais, fascinante. O véu –e aqui, pouco importa que seja acidente luminoso ou acidente químico – é o que deixa advir, no tecido “sem costura” do filme ideal, uma falha, uma fissura. O que se vê nessa ruptura? O real? Nada? Um mundo de formas fantásticas livremente interpretáveis? Sente-se que a res-posta depende da ideia que se fez do cinema e até mesmo do cinematógrafo. Emprego essa palavra de modo intencional, a qual Robert Bresson e Eugène Green opuseram nitidamente, como se sabe, ao cinema vulgar, que se contenta em fazer encenar fábulas com atores. Nessa concepção extrema, o cinema é muito simplesmente o que revela o real sob a realidade , e para ela o véu é uma incongruência: seja, caráter pueril de luz, acentua indevidamente e faz significar um dado do mundo, essencial, mas por essência mudo; seja, mácula de dissolução física, autoriza a matéria a se manifestar no mundo também ilegitimamente. Palavras-chave: cinema; representação; técnica; luz.

RésuMé Le cinéma a été inventé, puis, un demi-siècle plus tard, vanté, comme la plus parfaite reproduction possible de la réalité, du monde. Ce que nous rappelle le voilage, c’est que cette perfection, dans son automatisme, est sujette à l’erreur – une erreur non humaine et d’autant plus fascinante. Le voile – et ici, peu importe qu’il soit accident lumineux ou accident chimique –est ce qui laisse advenir, dans le tissu autrement « sans couture » du film idéal, une faille, une déchirure. Que voit-on dans cette déchirure ? le réel ? rien du tout ? un monde de formes fantastiques interprétables ? On sent que la réponse dépend de l’idée qu’on s’est faite du cinéma, et même, du cinématographe. J’emploie exprès ce mot, que Bresson et Eugène Green ont nettement opposé, comme on sait, au vulgaire cinéma, lequel se contente de faire jouer des fables par des acteurs. Dans cette conception, extrême, le cinéma est tout simplement ce qui révèle le réel sous la réalité, et pour elle le voile est une incongruité : soit, poudre de lumière, il accentue indûment et fait signifier une donnée du monde, essentielle mais par essence muette; soit, tache de corruption physique, il autorise la matière à se manifester dans le mon-de, tout aussi indûment. Mots-clés: cinéma; représentation; technique; lumière.


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compreende o que nos é mostrado: não se trata apenas do retorno cotidiano do astro do dia. Algo de solene nesse nascer do sol faz pensar nessas civilizações

das quais fala Norbert Elias1, onde cada manhã um padre deve cuidar para que o dia comece bem: o sol aparece e é um milagre. Um pequeno disco laranja, que irrompe da montanha, muito lentamente se desprende dela, se transforma no mais claro, ergue-se ainda durante quatro minutos e finalmente inunda o céu, a imagem e nosso olho de uma pura intensidade tingida de amarelo. Nesse plano inicial de A Idade da Terra (Glauber Rocha, 1980), culminando em um banho de átomos dourados que deleitam a vista, sente-se outra coisa que uma simples fonte de luz ou a origem possível de uma lesão do olho. Esteve lá todo o tempo, antes de mim e antes da espécie humana, verá o fim, e se distancia da terra, a qual inunda, banhando tudo, desdenhosa ou soberbamente.

A Idade da Terra (Glauber Rocha, 1980)

“O sol tal como a morte não se saberia olhar fixamente”: o aforismo de La Rochefoucauld não nos diz mais, porque sua retórica é visível demais. A invenção da 1

ELIAS, Norbert. Du Temps (1984), France: Librairie Arthème Fayard, 1996, p. 63.

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um nascer do sol, nada mais. Tema comum, até mesmo banal, no entanto se

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O banho de luz: um “véu” luminoso


fotografia o renovou substituindo o sol, ao mesmo tempo muito unívoco e dotado de símbolos, pela ideia de que em geral é a luz que se pode olhar. De fato, é um paradoxo

a luz é um invisível. A história da fotografia, em seguida a do cinema e do vídeo, se depararam desde longa data (ou sempre) com esse dado opaco: eu não vejo a luz, eu vejo as coisas e as situações do mundo via a luz e sua ação sobre mim. As imagens, sobretudo, fotográficas (e aí inclusas as imagens moventes), que querem figurar a luz, são sempre particulares; o mais das vezes, elas são tomadas de viés, mostrando os efeitos da luz, dos reflexos, dos raios ou das faíscas luminosas. Olhar o sol com uma processo químico, como iremos verificar. A entrada frontal da luz na objetiva e na imagem foi sempre vivida como um acidente, uma falha técnica, um erro que somente os iniciantes cometem, ou então um projeto de tal modo particular que se concebe apenas em virtude de um desejo de expressividade. Quando no fim de A Morte num Beijo (1955), em plena guerra fria, Robert Aldrich quer metaforizar a explosão tão temida de uma bomba atômica, ele não encontra outra figura senão um excesso de luz. A caixa contendo o mineral mágico se abre como uma caixa de Pandora, inexoravelmente, e uma luz branca insustentável se apodera da imagem, queimando a figura e, eventualmente, a personagem. Trinta anos antes, na época muda, uma luz tão viva foi pensada como forte e absolutamente transcendente: no prólogo do Fausto (1926), de Friedrich W. Murnau, buscava-se romper as trevas do Mal, raios luminosos tocavam os cavaleiros do Apocalipse, em seguida de modo insistente faziam aparecer uma pura bola brilhante, pouco a pouco diferenciada em jatos luminosos até finalmente tomar a forma de um homem ou de um anjo. O que surpreendia não era o arcanjo com seu gládio, porém a audácia luminosa que substituía o arco elétrico de Deus mesmo, nos deslumbrando olhos e alma. As bolas de luz fascinaram ainda durante muito tempo. Em 1969, Federico Fellini adapta o romance de um velho autor latino. Após várias desventuras, Encolpio, um dos dois jovens heróis do Satyricon, é conduzido a um labirinto, não tem dificuldade para sair, cai no meio das festas de Momus, o deus do Riso, e desemboca em uma vasta arena empoeirada, onde deverá afrontar um gladiador mascarado de Minotauro, bem ao gosto dos espectadores. Na saída da caverna, uma esfera luminosa o cega, e nós com ele. À medida que avança brilha cada vez mais, atravessando a poeira e a vibração do ar queimando, no fim a imagem não é nada mais senão luz, uma névoa de luz propagada em todo o espaço. Como em Murnau, estamos em um filme de estúdio, com

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câmera é um tabu absoluto por várias razões, a começar pela ótica e a terminar pelo

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relação de conhecimento essencial para nossa existência (animal, mental e espiritual),

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muito antigo: a luz, que nos serve para ver, ou seja, para estabelecer com o mundo uma

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cenários e pesadas maquiagens, com uma ficção irrealista, que sublinha a densidade da enunciação. De Murnau a Aldrich e Fellini, através das épocas e dos estilos, uma Há muito tempo aí estavam os efeitos calculados. No final dos anos 1960, foi preciso um filme singular para se encontrar um valor estético comparável a um puro acidente luminoso. Para filmar a travessia do continente por dois bikers, o diretor de

Impala. E, em razão dessa bricolagem, em que a luz penetra a objetiva ao acaso - erro que Kovács e Dennis Hopper tiveram a feliz inspiração de conservar – confere-se a Sem Destino (1969) o ar de ter sido banhado por um fluido solar. O flare2, obsessão do fotógrafo bem formado, vem a ser de repente elevado ao nível de objeto estético e expressivo, de forma graciosa, dotado de um sentido subliminar, porém fácil de imaginar: se os dois heróis se movimentam, sob essa fonte maravilhosa de sol, é porque misteriosamente são abençoados.

Sem Destino (Dennis Hopper, 1969)

Na verdade, não foi preciso aguardar 1968 para se perceber isso. Já no ano anterior, um filme multiplicava os efeitos de banho luminoso, expondo a objetiva da câmera a um sol africano. Mesmo se o fotógrafo do filme, Giuseppe Ruzzolini, era quase um iniciante, os barbagli de Édipo Rei (1967) de Pasolini são ajustados perfeitamente. A 2 Segundo o dicionário Larousse on-line, o vocábulo “flare”, proveniente do inglês “flare”, a saber, “flamboiement”, significa uma variação rápida e irregular da luminosidade de uma estrela. Por sua vez, no Oxford Learner’s Dictionaries on-line, o termo “flare” consiste numa luz ou chama brilhante, mas instável, de curta duração. Doravante, a palavra “brilho” será utilizada para designar “flare”, o que não impede a retomada do termo.

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necessidade uma virtude, fixou sua Arriflex sobre uma prancha diante de um Chevrolet

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fotografia Lázsló Kovács, não podendo alugar um veículo equipado e fazendo da

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mesma ideia de figuração: a luz pode anular a visão e, por conseguinte, a figura.

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câmera olha o sol pela primeira vez durante o oráculo fatídico, introduzindo a cegueira imediata de Édipo, que se distancia tateando em uma multidão que ele não enxerga

Creonte. A luta selvagem de Édipo com cada um dos guardiões, o assassinato do idoso desarmado são pontuados de violentos clarões de luz, imprimindo à figuração um caráter incerto ao modo de pontilhados. No último golpe de espada, através do corpo do rei sem defesa, a luz má, sempre manifestadamente celeste, se torna azul: não é nem mesmo mais o sol, é a maldição em estado puro.

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ameaçador, de maneira sistemática e explícita, durante a longa cena do assassinato de

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mais. Esses golpes solares, que cegam, voltam como uma espécie de deus ex machina

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Édipo Rei (Pier Paolo Pasolini, 1967)

Murnau e Fellini tinham requisitado cada um a seu fotógrafo programar a invasão da luz; Hopper a aceita de modo acidental (como apontado anteriormente); de maneira genial, Pasolini opera os dois modos ao mesmo tempo. O efeito se produz diferentemente, seu valor é outro, apresenta-se como elétrico ou cai do céu ostensivamente, aqui benéfico, lá melancólico ou nefasto, e quase sempre conotando uma divindade ou ao menos uma espécie de além. Muito cedo, os filmes que imitaram essa figura buscaram se desfazer desses pesos simbólicos, porém isso ocorreu a fim de descobrir outros. Com trinta anos de intervalo, dois filmes descobrem a mesma inspiração figurativa, fazendo desses reflexos o meio de fabricar a mesma forma inesperada, a de uma esfera, na ótica complexa das lentes modernas. Em 1976, em A Morte de um Bookmaker Chinês, de modo cômico e fantástico ao mesmo tempo, John Cassavetes e


Al Ruban criam uma imensa esfera luminosa vermelha flutuando acima do herói, “o fenômeno figurativo o mais intenso e estupefato da sequência, a saber, do filme” (um uma forma que “associa economia plástica e figuratividade mítica” e “trabalha em uma virada simbólica3 ». Em 1997, em Felizes Juntos, Wong Kar-Wai mostra um jogo de futebol numa rua de Buenos Aires, filmado em contraluz, terminando ele também com a aparição de

A Morte de um Bookmaker Chinês (John Cassavetes, 1976)

Cassavetes e Kar-Wai, com suas esferas de luz sólida e leve, põem em princípio que o acidente luminoso é suscetível não apenas de inundar o campo e de compor a imagem ou de sugerir a intervenção de um além-sobrenatural, pagão ou divino, mas igualmente de produzir objetos. Objetos flutuantes, incongruentes, estranhamente inquietantes ou estranhamente familiares (uncanny ou eerie), aos quais dar-se-ão nomes 3 BRENEZ, Nicole. «Couleur critique. Expériences chromatiques dans le cinéma contemporain» (1995) In. :_. De la figure en général et du corps en particulier – L´invention figurative au cinéma, Paris-Bruxelles: De Boeck Université, 2000, p.15.

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poderia dizer quase a mesma coisa.

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uma enorme bolha translúcida, que fica por dez segundos ligada ao herói, e da qual se

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fenômeno de difração, avermelhado pelo filtro que recobre a objetiva nesse momento),

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de objetos reais ou que, ao contrário, deixar-se-ão na indeterminação de um puro acontecimento visual. Dario Argento retomou a ideia de Cassavetes de modo bastante literal:

nessa empresa perigosa. Quase na mesma data, em outro continente, Peter Weir (A Última Onda, 1977) se utiliza de faróis de um automóvel sob a chuva para dar à luz a forma esculpida de um pequeno tingimento protetor: a metáfora está criada e, dessa vez, sem ambiguidade, a luz é defesa e não agressão.

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duas vezes enredado em um círculo irisado e translúcido, que será seu escudo protetor

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quando explora a casa do crime, em Prelúdio para Matar (1975), o jovem pianista se vê

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Prelúdio para Matar (Dario Argento, 1975)

A Última Onda (Peter Weir, 1977)


Em todos esses exemplos, a luz é paradoxal: ela tanto vela quanto ilumina; ela dissimula revelando – e sempre, com um abono simbólico manifesto. Utilizar-se de é colocar sua mestria técnica a serviço da expressão, fazendo isso precisamente: transformar o que deve iluminar no que dissimula, no que vela. Algo diferente é o acidente feliz ou desejado, que se aprendeu a dominar. O brilho provém da lente da

técnico de algum modo. Ora, como todo médium, o filme depende de sua técnica para sua própria existência, a da imagem autômata ordinária, na origem de sua invenção, mas também para sua existência expressiva. As luzes excessivas encenadas como parte do cenário, os brilhos acidentais, logo desejados, são uma das manifestações dessa dependência, e não desapareceram com a evolução das técnicas, mesmo se privilegiei exemplos entre o fim da modernidade e o fim da película. Ademais, tornaram-se ainda mais desejadas, dominadas e conscientes. J. J. Abrams, discípulo de Spielberg obcecado como ele pelas iluminações surpreendentes, se obstinou a perpetuar esse jogo nos filmes rodados no formato digital (Super 8, Star Trek), onde ele próprio reconhece que não há uma mão morta, ao ponto de ter criado brilhos produzidos fora do campo e não na objetiva: “The flares weren’t just happening from on-camera light sources, they were happening off camera, and that was really the key to it. They were all done live, they weren’t added later. It became an art because different lenses required angles, and different proximity to the lens. Sometimes, when we were outside we’d use mirrors. Certain sizes were too big… literally, it was ridiculous. It was like another actor in the scene…4” “Outro ator na cena”: qual a melhor forma de resumir essas aparições luminosas, desejadas ou sentidas, pesquisadas ou aceitas? Com essas figuras, estamos a meio caminho das duas concepções majoritárias da imagem de filme: o índice e o simulacro. O velamento – luz e processo químico em sua origem Volto ao início dos anos 70, muito precisamente a 1972. Após ter realizado uma série de filmes que exumam páginas escondidas da história do Japão contemporâneo, o cineasta Shohei quebra um novo tabu, partindo em busca dos “soldados perdidos” da guerra: aqueles que se estabeleceram em um dos países, pelo exército japonês nos anos quarenta, e que foram considerados desertores ou desaparecidos. Dentre eles, um 4 WOERNER, Meredith. “J. J. Abrams Admits Star Trek Lens Are ‘Ridiculous’”. Disponível em: http://io9. com/5230278/jj-abrams-admits-star-trek-lens-flares-are-ridiculous. Acessado em: 11.10.2015.

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uma ótica entre a realidade e a superfície que registra sua imagem analógica. Um velar

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objetiva: um véu recobre a imagem de modo parcial, em seguida pela interposição de

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dispositivos sábios de iluminação, como o fazem Fellini e Rotunno, Murnau e Hoffmann,

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retorna a seu país. O filme o mostra, fazendo parte de sua indignação, que se tenha podido o registrar como morto; um dos funcionários que o acolhe se desculpa: “as

sua margem direita, sobrevindo, desaparecendo, voltando, com insistência. Os cineastas amadores desses anos duvidavam desse véu involuntário, em geral fruto de um acidente, fora ou não do carregamento da película. Assiste-se a este nos filmes de família, e também em certos filmes pessoais de artistas underground. Quando, em meados dos anos 1960, Jonas Mekas vai ver seus amigos, Stan Brakhage em sua casa do Colorado, ele faz dessa visita um longo episódio de seu jornal filmado (Walden, ou a torna vermelha. Em um pequeno episódio onde Jane afaga seu cavalo, a imagem inteira se tinge de um marrom avermelhado e móvel, depois o plano muda, sempre na mesma tonalidade, e retoma as cores de um 16 mm normal. Mekas mantém esse acidente no filme, porque para ele o importante é o registro sem trucagem de uma realidade poetizada e não retocada. Em uma estética da manifestação do afeto, traz o traço visível desse imediatismo: é um indicador de verdade. É certamente assim que se entende Imamura: os soldados “sem retorno” não podem existir, uma vez que testemunham a possibilidade, para um soldado japonês, de não morrer a serviço do Imperador e de sobreviver ao fracasso. No momento mesmo em que aquele que está “de retorno” descobre que seu desertar com a morte foi dissimulado, um acaso magnífico faz com que essa cena crucial, em que “as lembranças são nebulosas”, seja habitado por um fantasma vermelho. Fantasia da História, e sangrando como ela: o acidente é belo demais para que um cineasta também amador de metáforas como Imamura sonhe se desfazer, ao contrário, forçosamente, ele terá experimentado a secreta ironia.

La brute revient dans son pays natal: les Philippines (Shohei Imamura, 1973)

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1973). Em várias retomadas, o sol filmado de face inunda a película, embranquece a tela

imagem velada : o informe luminoso

ela, não está fora de foco mas velada: um fantasma avermelhado amedronta longamente

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lembranças são nebulosas”. Ora o que surpreende nessa cena é que a película, quanto a

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O cinema registra de modo convincente, uma vez que dotado da aparência das coisas registra seu movimento. Conhece-se essa problemática teórica sempre retomada instante”5. Eis o tema da imagem cinematográfica como imagem indicial, quase no sentido forte de Peirce: ela compartilha certas qualidades com seu referente, antes de tudo a qualidade temporal. É também o coração do realismo fenomenológico, não

realidade filmada. Ora, o suporte mesmo da imagem – sua materialidade de médium –, se isso permite essa coparticipação essencial ou existencial é também o que a ameaça permanentemente: eis em que consiste a lição do véu de Imamura e daquele de Mekas. No mesmo momento em que Mekas ia ao Colorado, Andy Warhol filmava em seu estúdio uma série de longos beijos – longos como uma bobina de filme 16 mm, três minutos e meio. O respeito da indiciabilidade do filme era absoluto: uma vez escolhido o quadro e a iluminação, não se intervinha mais, e o contato dos lábios devia apenas se prolongar. Não “se” intervinha mais, porém o médium, quanto a ele, intervinha, e no final de cada bobina, como em Walden, um véu nascia, flutuava, lentamente invadia toda a imagem e o anulava; depois, pouco a pouco, dessa massa branca surgia uma outra imagem, se tornava precisa, finalmente se impunha na duração de uma nova bobina. Como habitualmente em Warhol, as qualidades do médium são expostas cruamente, ao ponto de se tornarem parte do projeto da obra; em Kiss (1963), trata-se tanto de filmar um gesto comum, o beijo na boca, quanto mostrar o que é a duração da imagem cinematográfica: um tempo contínuo, sem falha, de todo modo incessantemente ameaçado de anulação se se confere à materialidade do médium a possibilidade de se manifestar. (Kiss foi rodado quinze anos após A Corda, onde Alfred Hitchcock, que deixava igualmente passar a toda velocidade bobinas inteiras de filme, ao contrário, cuidava de dissimular a passagem de uma à outra.)

5 “O filme não se contenta mais em conservar o objeto tomado em seu instante como, no âmbar, o corpo intacto dos insetos de uma epopeia revolta (…). Pela primeira vez, a imagem das coisas é também a de sua duração e como a múmia da mudança.” BAZIN, André. «Ontologie de l’image photographique», 1945, Qu’est-ce que le cinéma ?, 1, France : Éd. du Cerf, 1958, p. 16.

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Kracauer: o filme me oferece uma imagem, mas essa imagem participa de “algo” da

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apenas de Bazin, mas antes dele, de Epstein e, ao mesmo tempo que ele, de Morin e de

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como, por exemplo, a famosa frase de André Bazin sobre o objeto “apreendido no

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19 A imagem velada : o informe luminoso

No caso de Imamura como no de Mekas ou de Warhol, um acidente de filmagem é aceito, conservado, transmutado em signo – ambíguo como todo signo visual, do qual nunca se sabe se ele se contenta em deixar ver, se mostra ou mesmo comenta. Integrar o acidente de filmagem a um filme é um gesto que se tornou corrente desde a modernidade, mas um acidente como esse vai se opõe, bem mais que o flare ou os barbagli, a uma ideologia baseada na correção técnica: o sol pode penetrar na câmera, pode-se o tolerar porque isso não põe em causa uma ideia da filmagem como passeio de um olhar sobre o mundo; mas a película, quanto a ela, não possui o direito de ver o dia (no sentido literal como no sentido segundo) de outro modo senão via a objetiva. O sol está lá quando eu filmo, mas a película se supõe a esquecer; a mostrar, mesmo indiretamente, em um filme, constitui uma transgressão, retirando o filme do contexto industrial, onde a perfeição técnica e sua demonstração permanente são garantidas. Um filme conserva velamentos, que se trate de um documentário ou, como no início de One PM (Jean-Luc Godard, 1971) um ensaio político, dá-se como um enunciado pretendendo violar as regras ou então cujo conteúdo é tão essencial, que pode justificar uma forma imperfeita, repleta de erros. De fato, é no cinema experimental e poético que se encontram esses véus da película em abundância. No fim do período underground, Fuses (Carolee Schneeman, 1964-67) multiplica os obstáculos no olhar; arranhões, raspagens, decupagens, negros, tudo serve para tornar difícil a percepção do que de todo modo se deseja dar a ver. Por encantamento ou por saturação, os véus chegam então como que naturalmente, sem que se os separe de todo esse trabalho de poetização. O véu possui uma sedução irresistível.

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Walden (Jonas Mekas, 1969)


Ainda em 1976, Roslyn Romance, o poema criado por Bruce Baillie, em memória de sua mãe, cede à sua atração, e declina dele toda a gama absolutamente: luz na objetiva explosões de luz desfiguradoras até o véu vermelho ou laranja6. É evidentemente no filme poético e pessoal, fora do institucional, que essas intervenções selvagens da luz e da química encontram seu lugar mais naturalmente, uma vez que tais filmes jogam

acidente: a película utilizada, sendo salva de um incêndio, resultava na revelação de imagens azuladas, salvo em seu centro onde as cores permaneciam puras. Isso, acrescentado ao emprego das sobreimpressões, contribuindo para fazer ‘de um dia na vida dos Brakhage […] uma selva de linhas móveis, corpos saltando, crianças correndo, bobinas de filmes em turbilhão, tudo isso em cores vivas”.7”

Roslyn Romance (Bruce Baillie, 1976)

6 Seu filme mais conhecido, All my life (1966), é um plano único, um travelling lateral de uma barreira de madeira onde se juntam rosas eglantérias, enquanto se escuta Ella Fitzgerald cantar a canção epônima; ele está em Kodachrome 16 mm, uma película cuja textura se reconhece entre mil outras, e um filtro amarelo recobre a película de modo incompleto (sobre um tanto de imagem não filtrada): o véu, dessa vez, é produzido, calculado, instalado; somos levados a interrogar o que ele significa. 7 NOGUEZ, Dominique. Une renaissance du cinéma. Le cinéma « underground » américain (1985), Paris: Paris Expérimental, 2002, pp. 104-105.

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de Noguez, An Avant-Garde Home Movie de Brakhage “vale, sobretudo, por um feliz

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com toda espécie de intervenções sobre a imagem. Como diz o comentário enfático

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através da folhagem, reflexos passando sobre fotos antigas e fazendo surgir fantasmas,

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Mas existe toda uma outra genealogia do velamento. Em 2013, a Coreia do Sul homenageia seu mais antigo cineasta vivo, o veterano Im Kwon-Taek, que realiza seu

matográficos, é uma realidade recente, encontramos apenas cerca de um terço de sua obra para essa retrospectiva, e certas reproduções sofreram com o tempo visivelmente. De Mandala (1981) ou de Genealogy (1978), a cópia que serviu para fabricar a edição DVD exibe, por vezes, uma respiração avermelhada, um sopro flutuante sobre a imagem: um véu, que provém, não de um acidente de filmagem, mas da preservação do filme. Visualmente, o efeito é o mesmo: uma camada colorida, com formas indecisas, propagada sobre a imagem desigualmente, a obscurece, e às vezes parece lhe imprimir um comentário irônico. Todavia, diante desses “antigos” filmes famosos, como tantos testemunhos, não se deve acreditar que foram retirados da ruína. Aqui o véu diz respeito ao conjunto dessas manchas claras, encontradas de modo frequente nos filmes ainda mais envelhecidos (em película de nitrato). Em um caso como no outro, a química da película, sua estrutura granulada à base de sais de prata fotossensíveis, é traída pelo véu, mas a morfologia da infração é muito diferente. O véu vermelho é uma espécie de viragem (no sentido onde se entendia a colorização dos filmes na época muda), cujas formas evocam uma ligeira bruma flutuante, quando as decomposições procedem por manchas parecendo sólidas, compactas, cedendo a um imaginário do ataque, da destruição ao invés do simples velamento. A cópia decomposta, a conhecemos, é boa para ser trabalhada. Outrora, acontecia que se a projetava em uma cinemateca (na de Paris em todo caso, na época de Langlois), quando o filme era tão raro que não se podia pensar em achar uma cópia melhor. Era preciso então assistir ao filme com esse suplemento indesejado, do qual todo o jogo consistia em fazer abstração o quanto possível. Velamento parasita, o qual não é surpreendente se a pós-modernidade tenha se empenhado em o tornar um objeto amável e modelável, como toda história e todo o resto. Uma obra típica desse ponto de vista é Decasia de Bill Morrison (2002), cujo título sintetiza decay e Fantasia significativamente: programa límpido, conduzindo o filme rumo a uma fantasia visual, renovando a de Disney na época da decomposição do nitrato. Na estética “acabada” da firma Disney se substituiu um estilo inquietante, onde o branco exerce uma conotação glacial de modo incessante, como se fosse um continente submerso do qual se gostaria de mostrar visões gerais.

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Fantasma ainda, e dessa vez, em um sentido literal.

imagem velada : o informe luminoso

onde a preservação das cópias de filmes, a saber, a simples existência de arquivos cine-

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centésimo primeiro filme, após pouco mais de cinquenta anos de carreira. Em um país

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22 Revista GEMI n IS | ano

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Decasia (Bill Morrison, 2002)

Não por acaso a decomposição do nitrato começou a fascinar nos anos 1980. Eis a época em que os grandes arquivos cinematográficos se conscientizam do caráter altamente deteriorável do suporte película, da necessidade de o preservar e de restaurar os filmes, mas também a época em que se redescobre um grande número de cópias tingidas (ou sob o processo de viragem) de filmes mudos, e quando a onda em reproduzir essas tinturas se propaga, em novas cópias com cores por vezes tão improváveis quanto aquelas que uma restauração violenta o fez no Retábulo de Issenheim ou na Última Ceia de Leonardo. Paralelamente a essas operações de salvaguarda, museológicas ou menos museológicas (firmas privadas começam a perceber o interesse comercial dessas reconstituições), alguns artistas pressentem que a química da decomposição do nitrato pode ser um magnífico agente de criação poética “automática”. Com efeito, o que surpreende é o caráter extravagante dessas formas informais que esboça o desgaste sobre a película e seu caráter imprevisível. O repertório é sempre um pouco o mesmo – ou talvez são os artistas que se revelam muito fascinados pelo mesmo gênero de efeito, sobretudo os que afetam a figura humana, em torno da qual ou sobre a qual passam as formas improváveis que a química inventou: cometas geométricos, cristais salinos… Eis a época na qual Jürgen Reble e o grupo Schmelzdahin8 experimentam (por uma vez, pode-se falar de “cinema experimental” de modo adequado) a decomposição provocada, 8 Esse nome poético é o imperativo do verbo dahinschmelzen, fundir (de alegria, de dor, ou fundir simplesmente); ele intima ou sugere no filme a ordem de fundir ou se fundir. (Grato a Christa Blümlinger.)


arquivando a metragem encontrada e, alguns meses ou anos mais tarde, voltando a descobrir os estragos ou as maravilhas de um processo que o envelhecimento terá

Do véu solar, ainda proveniente do mundo, ao véu químico, surgido das profundezas da matéria, não se trata do mesmo processo, nem do mesmo efeito. Ambos (e até mesmo o filtro, que eu apenas menciono) têm muito em comum: esses efeitos aqueles que não a ocultam absolutamente, e de algum modo acrescentam, flutuam sobre ela, hesitam a fazer parte dela verdadeiramente. No sentido forte, o charme dos véus luminosos e dos véus de película reside no fato de que, em ambos os casos, a imagem produz seu próprio véu. Em termos estritamente visuais, esses véus pressupõem ao menos dois modelos: um na própria visão, antes de toda imagem, o outro na arte prínceps da imagem, a pintura. O ato de ver não ocorre sem seus momentos de vertigem, nos quais se perde o ponto onde o campo visual é invadido pela neblina, onde o sangue da retina passa ao primeiro plano. E o véu vermelho do aviador ou do corredor de fundo, podendo ir até ao desaparecimento e o “véu negro”. Outros distúrbios, mais misteriosos, mais raros, mais graves, produzem um véu branco, que conduz sempre à opacidade e à perda do visível. O véu fílmico flerta com esses diversos efeitos fisiológicos, com esses lapsos ou esses maus da visão que modificam, instantaneamente ou para sempre. Em Dragões da Violência (Samuel Fuller, 1957), um marshall míope é confrontado a bandidos que persegue; um plano subjetivo nos mostra o rosto do mau totalmente fora de foco, simplesmente privado de definição. Noutro extremo, em Ensaio sobre a Cegueira (Fernando Meirelles, 2008), uma esplêndida ideia de roteiro: a humanidade inteira é contaminada por uma doença misteriosa que começa por uma brusca tontura, extrema e tão logo permanente; vê-se tudo apenas branco. Ambos os exemplos, e aqueles que se poderia acrescentar (os casos onde o ecrã se colore de vermelho para golpear ou provocar uma crise cardíaca) revelam algo mais simples: a imagem (de filme no caso) só pode produzir um fenômeno físico e fisiológico o simplificando, o caricaturando, o tornando simbólico. Observa-se que os velamentos mencionados são de outra natureza. Na pintura sempre se buscou um efeito comparável, que era preciso cada vez produzir, como todo o restante, deliberadamente, e “do exterior”: a simbolização é

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óticos e químicos ocultam a imagem parcialmente, porém os mais interessantes são

imagem velada : o informe luminoso

O véu fílmico: passageiro

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acelerado consideravelmente.

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inerente à própria empresa pictural. A primeira solução é se valer de um acessório transparente ou translúcido, os mais banais sendo a cortina de gaze que flutua perante pectivamente da pintura de interior e da de paisagem. Ainda no século 20, obras como Double portrait (1912) de Umberto Boccioni ou, em um estilo mais fotográfico, o poético Wind by the sea (1947) de Andrew Wyeth expõem sua virtuosidade de toque produzindo

estéticas mais opostas como Dias de Ira (1943), de Carl Theodor Dreyer, deixando Ana aparecer através da tela esbranquiçada de seu bordado, ou Fome de Viver (1983), de Tony Scott, onde uma gratuidade de efeitos de luz retorna como uma escansão com a tule branca da sala de música (para citar apenas esses dois). Em ambos os casos, o jogo de véu eficaz permanece marcado sobre a ação, visivelmente fabricado. A coisa se torna ainda mais interessante quando a pintura (cristã) concebe o véu como sendo um objeto fundamental, porém no registro do maravilhoso. Eis antes de tudo o mito, nascido na Idade Média, de Verônica – uma imagem obtida pela impressão, mas uma impressão mágica, que não mobilizaria nenhum pigmento. Hoje ainda, do “Santo Véu” de Manoppello pretende-se que não constitui nem pintura nem tecelagem, ademais, visível nos dois lados do tecido, do qual seria de algum modo consubstancial – ao ponto que alguns veem o Mandylion de Edessa, outros nada menos que um fragmento da mortalha do Cristo: estamos no sobrenatural ou na mística popular. Mais amplamente, para os pintores da imagem não produzida da mão do homem é um horizonte, e concretamente um desafio, que pouco relevou. A maioria das figurações do véu de Verônica mostra um rosto de face, bastante expressivo (aflito, sofredor, brilhante), mas ostensivamente pintado. O mais convincente de todos é Francisco de Zurbarán, cujas duas Santa Face, a de Estocolmo (ca.1631) e a de Valladolid (1658) conseguem confundir nossa percepção sugerindo a meia ilusão de uma imagem magicamente impressa. Ora, tanto uma como a outra exercem, para assim alcançar, o sfumato – técnica complexa que obriga a pintar em várias camadas deixando cada uma secar longamente. Assim sendo, em pintura, o efeito mais evanescente, a representação do mais impalpável são obtidos graças a um trabalho longo e meticuloso. Vê-se em que a imagem de filme difere radicalmente. O banho de luz, o véu a invadir a película são instantâneos. Nenhum trabalho, nenhum prazo; nenhuma magia, nada de sobrenatural. Isso se produz imediatamente e resulta da física ondulatória e da química. Certamente é sempre o velho topos da indiciabilidade e do automatismo: a imagem fílmica “se beneficia de uma transferência de realidade da coisa sobre sua

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o cinema pode ter a tentação de copiar. Encontramos tecidos de véus nos filmes com as

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“cortinas” leves, transparentes, móveis. Trata-se no fundo de uma ideia de cenário, que

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um objeto ou a névoa que o afoga, que vieram a ser no século 19 verdadeiros topoi, res-

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reprodução […] ela participa da existência do modelo como uma impressão digital9“). Não faltam exemplos de filmes que exaltam essa indiciabilidade e esse automatismo para

Da Vida das Marionetes (1980), e antes deles Dreyer, em uma cena chave de Gertrude (1964)10 ; ou o efeito de dissolução progressiva da imagem que Bergman imaginou para o final de A Paixão de Ana (1968), e que se reencontra em certos filmes “experimentais” como Freeze Frame (Peter Tscherkassky, 1983), o qual faz queimar a imagem ou Marylin Times Five (Bruce Conner, 1973), que aumenta o grão elementar; ou ainda os efeitos visualmente parecidos, porém profundamente diferentes em sua estrutura própria de gênero vizinho, os apagamentos de imagem em certos filmes fantásticos (por exemplo, A Guerra dos Mundos, versão Byron Haskin, 1953, que pela primeira vez realizou o truque do humano “apagado” pelos Marcianos).

A Guerra dos Mundos (Byron Haskin, 1953)

O digital não deixou escapar sua chance nesse domínio, permite até mesmo uma mestria ainda maior, conjugando as virtudes da cinematografia (capta-se a luz tal como ela se dá) e as do desenho (pode-se retomar, corrigir, acrescentar à vontade ou 9 BAZIN, André. «Ontologie de l’image photographique», 1945, Qu’est-ce que le cinéma ?, 1, France : Éd. du Cerf, 1958, p. 25. 10 AUMONT, Jacques.L’Attrait de la lumière, Belgique/France: Éditions Yellow Now/ les Belles Lettres, 2010, p. 55.

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vídeos como Chott-el-Djerid – a Portrait in Light and Heat (Bill Viola, 1979). Ou, em um

imagem velada : o informe luminoso

R. W. Fassbinder trabalha em O Desespero de Veronika Voss (1982), Ingmar Bergman em

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produzir efeitos luminosos expressivos, por exemplo, o excesso de brancura com o qual

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quase). Uma das primeiras obras-primas rodadas com essa nova tecnologia, Arca Russa comporta ao menos dois planos refeitos em pós-produção, a fim de lhes conferir um véu saindo no frio). Há apenas o mar, de repente aparecendo na base do Hermitage, que não evoca qualquer velamento inesperado. Para melhor precisar a figura do velamento, é preciso, pois, acrescentar à indicia-

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cinza melancólico (o atelier dos túmulos dos mortos da guerra de 1941-45, e Catarina II

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bilidade e ao aspecto automático, um terceiro traço: o aspecto acidental (e seu corolário,

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a labilidade). O velamento em cinema – o velamento do qual falo, o que consiste em não

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revestir toda a imagem de uma camada semi-opaca à la Bergman/Dreyer – constitui um efeito que muda no tempo, sem cessar, então um efeito eminentemente cinematográfico. Não se calcula melhor esse caráter acidental do que em filmes que o imitam. Em Desejo e Obsessão (Claire Denis, 2001), enquanto o jovem biólogo americano é recebido em um laboratório que detém talvez a chave de seu trouble, sua interlocutora lhe faz um discurso pouco amável e o plano termina com um velamento laranja – menos de meio segundo, mas inesperado nesse contexto e também o menos acidental possível. Ainda mais ostensivo, e ainda mais artificial, há o véu com tez castanha, que intervém ciclicamente durante a longa errância de carro do herói de Brown Bunny (Vincent Gallo, 2004). Apesar de tudo, esses filmes não puderam evitar lidar com as cartas mestras da pós-modernidade, o simili, revelando a contrario um traço essencial do que realizam um pastiche: isso não se domina. Velar O cinema inventou, meio-século mais tarde, se vangloriou como sendo a mais perfeita reprodução possível da realidade, do mundo. O velamento nos lembra que essa perfeição, em seu automatismo, está sujeita ao erro – um erro não humano e, além do mais, fascinante. O véu – e aqui, pouco importa que seja acidente luminoso ou acidente químico – é o que deixa advir, no tecido “sem costura” do filme ideal, uma falha, uma fissura. O que se vê nessa ruptura? O real? Nada? Um mundo de formas fantásticas livremente interpretáveis ? Sente-se que a resposta depende da ideia que se fez do cinema e até mesmo do cinematógrafo. Emprego essa palavra de modo intencional, a qual Robert Bresson e Eugène Green opuseram nitidamente, como se sabe, ao cinema vulgar, que se contenta em fazer encenar fábulas com atores. Nessa concepção extrema, o cinema é muito simplesmente


o que revela o real sob a realidade11, e para ela o véu é uma incongruência: seja, caráter pueril de luz, acentua indevidamente e faz significar um dado do mundo, essencial, mas

valoriza da imagem fílmica sua qualidade de simulacro fabricado e dominado, ocorre o inverso evidentemente: o velamento consiste em uma, entre várias outras, modalidades dessa fabricação e desse domínio. Quando um dos pilares mais extremos dessa definição da imagem cinematográfica escreve que “a imagem fílmica aparece não como uma representação, mas como uma configuração da luz12”, apenas diz: o véu, qualquer que seja a sua natureza, empoeiramento ou decomposição, configura a luz, ou seja, o que É inútil buscar reconciliar essas abordagens, inimigas desde sempre (desde que se faz teoria do cinema), mas pode-se tentar as atravessar. Como nota com justeza Georges Didi-Huberman, as imagens “não são ilusão pura, nem verdade total, mas esse batimento dialético que agita conjuntamente o véu com a fissura.13” O que ocorre nos fenômenos que descrevi envolve ao menos dois possíveis: • A imagem cinematográfica e fílmica em geral é destinada, não a me dar o mundo (como o quer a ideologia do índice e da presença), não a me dar o equivalente artificial do mundo (como o deseja a do simulacro), porém a me dar uma percepção – uma percepção nova e um tipo inabitual sobre algo que não é o mundo, porém um mundo. O que ocorre com essas imagens veladas? Elas marcam uma intervenção a mais se comparadas à imagem fílmica comum: a intervenção sublinhada, entre mestria e acaso, do operador (com os flares); a intervenção estúpida e indesejada do material, com os velamentos. Isso fait style, sem dúvida, mas não o gênero de estilo que corresponde à minha percepção natural. Esse estilo, como todo estilo fílmico, é uma experimentação da percepção. Parece se limitar a experimentar as margens, as condições raras, as falhas, os fracassos – mas de fato se situando no coração da perceptibilidade, mesmo que seja a fim de testar de uma maneira um tanto grosseira, um modo de responder à proposição seguinte de Merleau-Ponty: “Um filme não se pensa, se percebe.14” O que acontece quando o que se percebe não é mais o mundo tornado imagem, mas a imagem se manifestando no lugar do mundo? Ocorre que somos conduzidos à “experimentação controlada, e não à 11 “É no mundo concebido como realidade fechada que o homem contemporâneo escolhe os elementos a partir dos quais ele constrói para si ‘fantasmas’ […] O cinema lhe mostra esses mesmos elementos como fragmentos do mundo possuindo uma verdade intrínseca, mas lhe retirando a possibilidade de ‘fantasmar’” GREEN, E. Poétique du cinématographe, France: Actes Sud, 2009, p. 19. 12 BERTETTO, Paolo. Lo specchio e il simulacro. Il cinema nel mondo diventato favola, Milano: Bompiani, 2007, p. 95. 13 DIDI-HUBERMAN, Georges. Images malgré tout, Paris : Éd. de Minuit, 2003, p. 103. 14 MERLEAU-PONTY, Maurice. «Le cinéma et la nouvelle psychologie», Sens et non sens, Paris : Nagel, 1948, p. 10.

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cria forma a partir de um material paradoxal, o material luminoso.

imagem velada : o informe luminoso

no mundo também ilegitimamente. Para a concepção mais oposta a essa aqui, a que

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por essência mudo; seja, mácula de dissolução física, autoriza a matéria a se manifestar

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experiência ordinária15”: um mundo a perceber nos é dado como são dados os mundos de cinema, mas esse mundo de repente nos exige uma performance mental e perceptiva • De todo modo, essas infrações na imagem são também uma via desviada para repousar uma antiga questão: o que a imagem pode mostrar? E o que quer dizer exatamente “mostrar”? É para compreender como uma espécie de dizer implícito, de

imagem do mundo? Ainda aqui as respostas oscilam entre dois extremos: a desconfiança em relação à imagem “véu” que recobre o real, o deforma (para consolar ou para enganar), segundo o velho tema platônico; ou a confiança que se pode lhe fazer como instrumento de exploração e de conhecimento, no fundo igual à linguagem. Um véu que se vela é quase límpido demais: aceitando esses velamentos de origem múltipla, a imagem aceitaria se designar como o que oculta o real e renuncia, pois, a dizer o que seja (ao benefício da construção de um mundo outro). Uma concepção “construtivista” da imagem pode ao contrário sentir, nesses velamentos, uma real franqueza, consistindo em confirmar que a imagem é construída, que ela quer dizer algo (eventualmente a propósito de si mesma). O sol se ergue, interminavelmente, uma propagação de luz inunda os maus e arma os bons de poderosos escudos: são apenas interpretações, porque nenhuma imagem jamais fica sem algo a dizer (senão ao preço de uma perda). O suporte do filme vem assombrar a história, um dia toda matéria fará valer seus direitos na decomposição: sem mais nada a dizer, o velamento me apareceu, ele se manifestou em mim, revelando da obra de cinema o poder que toda obra possui: aparecer, vir me ver, se propor ao meu encontro16. O véu, o velamento são apenas um dos meios para o filme nos persuadir que ele está para nós. Referências Bibliográficas AUMONT, Jacques. L’Attrait de la lumière, Belgique/France : Éditions Yellow Now/ les Belles Lettres, 2010. BAZIN, André. «Ontologie de l’image photographique», 1945, Qu’est-ce que le cinéma?, 1, Éd. du Cerf, 1958. 15 ZERNIK, Clélia. Perception-cinéma - Les enjeux stylistiques d’un dispositif, Paris: Vrin, 2010, 48. 16 “A obra de arte não quer transmitir algo senão a si própria. Do mesmo modo que, quando eu visito alguém, eu não desejo produzir qualquer sentimento, mas antes de tudo visitar – e ser eu mesmo o bem-vindo.” WITTGENSTEIN,Ludwig. Remarques mêlées, Mauvezin: T.E.R., p. 76.

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muda? O que compreendemos quando pensamos ter entendido o que nos dá uma

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expressão visual? Ou a imagem não teria outro poder a não ser o de se nos apresentar

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inédita. Ele nos dá uma percepção nova.

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BERTETTO, Paolo. Lo specchio e il simulacro. Il cinema nel mondo diventato favola, Milano: Bompiani, 2007.

du corps en particulier, Paris-Bruxelles, De Boeck, 2000. DIDI-HUBERMAN, Georges. Images malgré tout, Paris : Éd. de Minuit, 2003. ELIAS, Norbert. Du Temps (1984), France : Librairie Arthème Fayard, 1996. GREEN, E. Poétique du cinématographe, France: Actes Sud, 2009.

psychologie», Sens et non sens, Paris : Nagel, 1948. NOGUEZ, Dominique. Une renaissance du cinéma. Le cinéma « underground » américain (1985), Paris : Paris Expérimental, 2002. WOERNER, Meredith. “J. J. Abrams Admits Star Trek Lens Are ‘Ridiculous’” Disponível em: http://io9.com/5230278/jj-abrams-admitsstar-trek-lens-flares-are-ridiculous. Acessado em: 11.10.2015. WITTGENSTEIN, Ludwig. Remarques mêlées, Mauvezin: T.E.R., 1990. ZERNIK, Clélia. Perception-cinéma. Les enjeux stylistiques d’un dispositif, Paris : Vrin, 2010.

• J acques A umont

MERLEAU-PONTY, Maurice. «Le cinéma et la nouvelle

imagem velada : o informe luminoso

dans le cinéma contemporain» (1995), De la figure en général et

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BRENEZ, Nicole. «Couleur critique. Expériences chromatiques

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Cinema

e feminismos entre poética e devir: por uma tecnologia engendrada

Fernanda Capibaribe Leite Professora do Departamento de Comunicação – UFPE; Doutora pelo PPGCOM-UFPE; Pesquisadora das relações entre imagens e sistemas sexo-gênero. E-mail: fernanda.capibaribe@gmail.com

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Resumo Esse artigo visa contribuir para a construção de uma poética feminista no cinema e audiovisual contemporâneo concebida na ideia de trânsito ou fluxos para sujeitos de gênero compreendidas/os fora da lógica dos binarismos “cis” e heteronormativos. Para tanto, atualiza a acepção em Lauretis (1987) de que o cinema se constitui como tecnologia de gênero, e aborda tal premissa no contexto das imagens tecnológicas e digitais através do conceito de percepto de devir feminista. Tal relação proposta engloba a ideia de que a poética feminista atualmente se alicerça cada vez mais na prerrogativa das experiências próprias de personagens subjetificadas/os, por um caminho patêmico no qual mulheres cis e trans não mais são colocadas sob o olhar do outro-homem-dominador, mas, ao contrário, se enunciam sob referências de seus próprios cotidianos e espaços de interlocução. Nesse sentido, a atualização da ideia de tecnologia de gênero para o cinema está ligada ao fato de que tais imagens configuram desterritorializações, devires, tanto no que toca a relação hegemonia-subalternidade no sistema sexo-gênero como no que se refere à própria ideia dos sujeitos legítimos e nomeados no feminismo. Como escopo investigativo, lanço um olhar sobre a produção Dude looks Like a Lady, parte da série de curtas em pornografia feminista intitulada XConfessions (LUST, 2013, 125min), oriundos de relatos em texto sobre fantasias e/ ou experiências enviadas pela internet. Apesar de tratar de tal realização em particular, a trago também como espaço de acionamento de outras produções na perspectiva do feminismo, que endossam ou potencializam o lugar da diferença em produções com foco nos sujeitos engendrados. Palavras-Chave: Poética Feminista; Tecnologias de Gênero; Perceptos de Devir

Abstract This paper aims to contribute to the construction of a feminist poetics in contemporary cinema and audiovisual, conceived on the idea of transit or flows to engendered subjects out of the “cis” and heteronormative binary structure. To do so, it updates Lauretis (1987) concept of films constituted as a gender technology, and addresses such a premise in the context of technological and digital images through the notion of feminist becomings perceptions. This proposed relationship encompasses the idea on which feminist poetics currently is founded increasingly on the prerogative of self-experiences told by subjected characters in the movies, what means the approach of affective relationships. By this meaning, cis and trans women are no longer placed under the gaze of the “other” domineering-man, but rather are enunciated from their own everyday references and spaces of dialogue. In this sense, the upgrade of cinema as a gender technology is linked to the fact that such images constitute deterritorializations – becomings –regarding both to the hegemony-subordinate relations in the sex-gender system so as to the very idea of legitimated and named feminist subjects. As investigative scope, I bring the production “Dude Looks Like a Lady”, part of the short-films series of feminist porn entitled XConfessions (LUST, 2013, 125min), produced from textual reports of fantasies and/or experiences submitted via the Internet. While treating such particular embodiment, I also bring analytic arguments placed in other productions on feminist perspective, to endorse or potentiate issues related to social and cultural difference focused on engendered subjects. Keywords: Feminist Poetics; Gender Technologies; Percepts of Becoming


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Primeira cena, a imagem de uma mulher em plano fechado. Vemos seu rosto através do espelho, sentada numa penteadeira tendo como primeiro plano, desfocado, parte das costas e cabeça. Ela passa blush na face, e o plano seguinte é um close de seu rosto em perfil, do qual a câmera se desloca para a mão segurando o blush e o pincel. Imagem volta a ser através do espelho: três reflexos simultâneos vindos de diferentes perspectivas refletoras, em plano mais fechado do que o primeiro. O som está ambiente, tranquilo, sem diálogo ou música, até que irrompe, em background, uma gaita em volume crescente. Através dos reflexos, ela sorri. Enquanto o som vai ficando mais próximo, o plano muda para outro reflexo, de espelho posicionado numa parede, e não mais os da penteadeira. Continuamos vendo a personagem pelo seu duplo, que adquire ar de expectativa por encontrar quem se aproxima tocando. Num jogo de cena, um vulto passa na frente do espelho e só vemos, nesse momento, sua camiseta branca,

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A pluralidade de identidades e de práticas amorosas e sexuais parece, hoje, mais visível. O que tal visibilidade indicaria? Que os ventos do “novo milênio” terminaram com as diferenças, saudando a multiplicidade? Que se aceita que as posições de gênero e de sexualidade não cabem mais nos esquemas binários? Que agora “vale tudo”? Uma série de questões e de respostas poderia ser ensaiada e, de qualquer modo, a complexidade desses “novos tempos” sempre escaparia. Talvez se possa dizer que, efetivamente, muitos já admitem que as dicotomias homem/ mulher, heterossexual/homossexual não dão mais conta das muitas possibilidades de viver os gêneros e as sexualidades. Embaralhamentos desafiam classificações. Fronteiras são, constantemente, atravessadas. Novas posições são nomeadas. Alguns não se contentam apenas em mudar de um “lugar” para outro e escolhem viver na fronteira, numa espécie de entre-lugar. Em vez de uma nova posição-de-sujeito, há quem prefira a não-acomodação, a ambiguidade e o trânsito (Louro, 2004). Uma série de condições culturais, sociais, políticas, econômicas vem, desde algumas décadas, possibilitando a multiplicação dos discursos sobre a sexualidade, produzindo a visibilidade das muitas formas de ser, de amar e de viver, embora se mantenham, de modo renovado, divisões, hierarquias, diferenciações. O cinema participa, também, deste processo. (LOURO, 2008, p. 87).

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1. Trilhas feministas: poética entre sujeitos e olhares através das câmeras


para, em seguida, reencontrar o segundo personagem através do reflexo com a mulher sentada. É um casal. Ele a abraça por trás e pergunta o que ela faz.

a acaricia, beija sua nuca. Depois, toma uma taça de vinho enquanto ela comenta sobre a maquiagem que está escolhendo. Pede que a ajude. Ele se mostra curioso, e a câmera foca em suas mãos pegando o blush, que está fechado. Em seguida, ainda em close onde só vemos as mãos, o personagem masculino abre o blush, pega o pincel e senta-se na cadeira ao lado da sua parceira. Pelo reflexo de um dos espelhos, o vemos olhando, sorrateiro, para a personagem, com blush e pincel nas mãos. Ela não está em cena, apenas o reflexo dele, mas a ouvimos dizer, a partir do olhar que recebe: “Eu acho1...”. No plano seguinte, ainda fechado, o casal encontra-se um de frente para a outra, plano frontal do rosto dele, seus lábios sendo pintados com brilho labial por sua parceira. Depois, ainda através dos espelhos, ela está em pé atrás e ele sentado à frente, passando base em seu rosto. Entra o título do curta: Dude Looks Like a Lady2. Ele fecha os olhos e aparenta gostar do movimento. E, continuando nesse jogo de close-ups e imagens de duplos, ela o maquia com rímel, lápis de olho, sombra, batom vermelho, blush. Breves diálogos acontecem, quando, por exemplo, ao passar o lápis em seu olho resposta é: “Wow!”. Figura 01: Sequência de frames extraídos do filme “Dude Looks Like a Lady”

1 Tradução minha para o trecho “I think”, retirado do filme XConfessions 2 (ERIKA LUST, 2014, 123 min). 2 Em minha tradução: O Cara se Parece com uma Moça.

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fechado, ela afirma ter ficado “muito legal”, pede que ele abra os olhos para ver, e sua

e feminismos entre poética e devir : por uma tecnologia engendrada

em cena e imagens diretas, percebemos a intimidade e o afeto entre as duas pessoas. Ele

Cinema

Sempre em planos fechados, intercalados em imagens pelo reflexo dos espelhos

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Assim vai se constituindo o jogo sedutor do casal em cena. Ela cada vez mais excitada por “montá-lo” mulher, e ele por ver-se sendo montado. Ela o perfuma, do parceiro e de gestos que solicitam passar logo ao ato sexual, ela estabelece que tirará uma peça de si para cada peça que colocar nele. Peças todas femininas. A câmera móvel mostra tal jogo sexual, passa dela a ele, dinâmica, movimentando-se como um/a

de Erika Lust, um dos curtas-metragens que integra a série XConfessions. Tal como é possível observar pela Figura 01, o que se segue a essa trama, como em todos os curtas que compõem a série erótico-pornográfica, são cenas de sexo, explícito, entre o casal heteroafetivo, mas não em conformidade com a norma. A cisgenereidade é questionada. Os lugares demarcados de poder no ato sexual também. Há uma transgressão dos caminhos normalmente observados para se chegar aos fins da trama pornográfica, isto é, a excitação pelo ato sexual. Para além da proposta discursiva do desejo, típica do que configura o gênero pornográfico de uma maneira geral, interessa abordar, portanto, tal narrativa a partir de como é enunciada nas imagens. O curta é parte de um projeto que seleciona fantasias vividas e/ou desejadas de “pessoas comuns”, que as escrevem e enviam ao website xconfessions.com, domínio da produtora Lust Films, responsável pela realização de audiovisuais erótico-pornográficos na perspectiva feminista. Na proposta descrita, a série defende que: “Personagens convincentes, temas no limite, tabus excitantes, estética elegante e sexo sensual são combinados para assegurar que você nunca mais verá a pornografia da mesma maneira3”. Na assinatura da direção, logo no início aparece o crédito: “XConfessions, By You & Erika Lust4”. Sem dúvida, uma proposta que surge como enfrentamento a várias questões, não apenas pela maneira como a pornografia vem sendo abordada enquanto gênero narrativo após o século XVII, mas também por vir a solicitar o/a espectador/a por um olhar que desvia da perspectiva da lógica de poder dominante do masculino. As histórias revelam transitoriedades nas vivências com o sistema sexo-gênero. Colocam mulheres na situação de voyeur-ativas onde não está pressuposto o orgasmo peniano como fim da trama (apesar também de estes não serem excluídos dos filmes). São abordadas através de um tratamento que visa a alocar as imagens num regime estético artístico, isto é, trabalhar uma proposta poética das imagens ― criação ― 3 Tradução minha para: “Compelling characters, edgy themes, titillating taboos, elegant aesthetics and sensual sex combine to ensure that you’ll never think about porn the same way”. Disponível em: http://erikalust.com/ films/XConfessions-vol-2/. Acesso em: fev 2015. 4 Em minha tradução: “Confissões Pornográficas, por Você e Erika Lust”.

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que ela fica nua, ele está vestido como uma moça, tal como sugere o título do filme

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personagem presente no quarto. E assim se desenrola o ato sexual. No momento em

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coloca-lhe uma peruca e pega no armário a lingerie para vesti-lo. Diante da excitação

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visando a determinadas experiências sensíveis nas/nos espectadoras/es. Baseiam-se em histórias “assinadas” por “sujeitos-comuns”, que dividem os créditos da direção, num

mentos consideráveis em relação a certo imaginário compartilhado do sexo e do gênero pornográfico e integram a proposta de uma pornografia feminista presente na referida série e em toda a filmografia/bibliografia da diretora/autora sueca Erika Lust. Uma proposta que interessa, assim, pela maneira como apresenta trânsitos no que toca as sexualidades narradas em imagens e os sujeitos que a experienciam, nas telas e para além destas. 2. O cinema como tecnologia de gênero ou sobre o que configura o prazer visual Lauretis (1987) traz o cinema como uma tecnologia que nos faz entender, na acepção de uma poética feminista, o que fica no entre: entre um conjunto de reiterações e produções de discurso numa lógica androcêntrica e uma potência de transgressão que prevê a saída dessa lógica pensando e vivendo espaços possíveis de transforte, ela nos propõe pensar o que seria da ordem do irrepresentável nas questões de gênero e quais efeitos suas tecnologias, tais como o cinema, vêm produzindo. “Para o gênero, como na vida real, não é apenas o efeito da representação, mas também do seu excesso - o que permanece fora do discurso como um trauma em potencial -, que pode romper ou desestabilizar, por não conter qualquer representação5” (LAURETIS, 1987, p. 03). O que está em jogo, para a autora, é a configuração de sistemas de representação e “projetos” que envolvam teoria e experiência feministas não perpassando simplesmente pelas relações de antagonismos entre os sexos referenciadas numa universalidade do masculino. A proposta de uma poética feminista no cinema para Lauretis, portanto, contempla a criação de narrativas que deem conta das brechas por onde escapam as contradições da representação de gênero para além de um determinismo oposicionista do feminino em relação de subalternidade com o masculino. Trata-se de uma estratégia de reconstrução do binômio poder-conhecimento, o que vem sendo uma tarefa difícil tanto para a análise feminista quanto para a sua prática política. A questão centra-se, 5 Tradução minha para: “For gender, like the real, is not only the effect of representation but also its excess, what remains outside discourse as potential trauma which can rupture or destabilize, if not contained, any representation”.

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mação. Considerando o gênero como representação e também processo subjetifican-

e feminismos entre poética e devir : por uma tecnologia engendrada

ato sexual por um viés afetivo-amoroso. Vários elementos que configuram enfrenta-

Cinema

sentido genérico, com a realizadora. Subjetificam suas/seus personagens narrando o

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assim, em como abordar uma poética feminista para além do previsível no histórico de desigualdades que provêm das categorias reiteradas de masculinidade e feminilidade. processo de absorção do sujeito em relação à representação dos gêneros. Essa relação funciona como um elemento de diferenciação de fora para dentro, mas também de dentro para fora, pois é uma nomeação que os sujeitos masculinos e femininos

quais formulações de gênero são reiteradas constantemente em “coisas de mulher” ou “coisas de homem”. O aparelho cinemático, portanto, configura-se como uma espécie de termômetro, através do qual visualizamos a demarcação de tais distinções como espaços restritos já assentados nas representações dos gêneros, ao mesmo tempo que abre espaços velados onde somos arrebatadas/os pela emergência do irrepresentável, principalmente no que toca os limites que cercam a divisão sexual “engendrada”6. Já algum tempo antes da publicação do volume I da História da sexualidade na França (La volonté de savoir, 1976), teóricas feministas na área do cinema vinham escrevendo sobre a sexualização das estrelas do cinema em filmes narrativos e analisando as técnicas cinematográficas (iluminação, enquadramento, edição etc.) e os códigos cinemáticos específicos (por exemplo, a maneira de olhar) que constroem a mulher como imagem, como objeto do olhar voyeurista do espectador; e vinham desenvolvendo não só uma descrição, mas também uma crítica dos discursos psicossocial, estético e filosófico, subjacentes à representação do corpo feminino como locus primário da sexualidade e do prazer visual. A compreensão do cinema como uma tecnologia social, como “aparelho cinemático”, se desenvolveu na teoria do filme paralela à, mas independentemente, de Foucault; pelo contrário, como sugere a palavra aparelho, essa compreensão foi diretamente influenciada pelo trabalho de Althusser e de Lacan. (LAURETIS, 1987a, p. 17).

Para a autora, o aparelho cinematográfico entendido como tecnologia de gênero vem se dedicando a dar conta de dois questionamentos, a citar: a) uma representação de gênero é produzida por uma tecnologia específica ou um conjunto delas e b) os sujeitos a absorvem, reiterando-a ou transformando-a. Sobre a segunda questão, Lauretis (1987) considera de maneira sobrescrita a importância do/a espectador/a. Isso significa afirmar que a forma como alguém é ou não interpelada/o por um filme no que toca as representações do sistema sexo-gênero propostas, o tanto que se deixa arrebatar por 6 Lauretis (1987) usa esse termo para expressar situações que são designadas, atravessadas ou implicadas por/ em questões de gênero. Na língua inglesa, a utilização linguística do termo parece mais forte, já que engendered incorpora diretamente o vocabulário associado ao gênero-gender como distinto do gênero-genre. Em português essa diferença não fica tão evidente, porque a mesma palavra remete aos dois sentidos.

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“M” em um formulário, até as relações mais subjacentes travadas na vida cotidiana, nas

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assumem para si desde situações burocráticas ou oficiais, como a marcação de “F” ou

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Lauretis (1987) parte de Althusser para mencionar a interpelação, como um

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elas, como as rechaça, como se sente pertencida/o ou se quer indiferente, vai depender intimamente de como as representações de gênero são autonomeadas e vivenciadas por

de suas/seus espectadoras/es nos fornece dados mais potentes para investigarmos as relações entre homens e mulheres, entre masculino e feminina, em suas reiterações e desconstruções, do que a definição de tecnologia sexual nas bases de Foucault. Isso porque, argumenta Lauretis (1987), Foucault não “engendra” a sexualidade, mas a coloca como “uma coisa só” para todo e qualquer indivíduo. E, assim, acaba por torná-la masculina, considerando que temos uma reiteração histórica do masculino como universal e que a própria nomeação excessiva do corpo feminino e dos espaços de desvelo e vigilância permanentes da corporeidade da mulher podem ser lidas sob a ótica do masculino, isto é, do discurso que parte do desejo e policiamento dos homens heteronormativos/cisgêneros. O que Lauretis aponta daí é que a construção histórica da sexualidade vem sendo uma questão de gênero, de sua construção e desigualdades vigentes, e, portanto, não pode ser observada fora do gênero. Ao contrário, a ideia de sexualidade vem se colocando historicamente através da distinção entre tais identidades: masculina e feminina. ser lidos de maneiras diferentes pelos diferentes “sujeitos do gênero”. Portanto, no contraponto da versão foucaultiana de que o poder constitui o conhecimento e engendra as práticas, as vivências e os valores de uma época para além de uma conotação positiva ou negativa, Lauretis vai trazer a contraproposta de que, ao não relacionar poder e opressão, Foucault negligencia o fato de que os sujeitos de gênero vão vivenciar as consequências de uma determinada conjuntura de poder colocadas sobre outras que não estão em voga, o que pode acarretar em experiências bastante nocivas àquelas/es fora do centro nos discursos de poder, que não são, portanto, quem efetivamente vem produzindo o conhecimento. Isso significa dizer que: [...] o que faz alguém se posicionar num certo discurso e não em outro é um “investimento” (termo traduzido do alemão Besetzung, palavra empregada por Freud e expressa em inglês por cathexis), algo entre um comprometimento emocional e um interesse investido no poder relativo (satisfação, recompensa, vantagem) que tal posição promete (mas não necessariamente garante). (LAURETIS, 1987a, p. 20).

Essa acepção é interessante para nos fazer perceber como o poder é um agenciamento que não pode ser reduzido simplesmente a uma escolha e que tal percepção

• Fernanda Capibaribe Leite

Até na prática heteronormativa, os discursos que envolvem a sexualidade vão

e feminismos entre poética e devir : por uma tecnologia engendrada

Essa relação entre representação de gênero nos filmes e autorrepresentação

Cinema

esse sujeito.

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leva à consciência do quanto uma determinada situação de opressão é fruto de um embargo colocado a quem não está na situação de “monopólio discursivo” da relação como as relações que envolvem questões como celibato, monogamia, frigidez, papéis sexuais etc. são vivenciadas de maneiras distintas por homens, mulheres transgêneras/ os e transexuais. Por sua vez, essa compreensão implica em perceber que as relações

Como as mudanças de percepção afetam ou alteram os discursos dominantes? Ou, em outras palavras, que investimentos resultam em maior poder? Por exemplo, se dizemos que certos discursos e práticas, embora marginais em relação a instituições, mas mesmo assim causadores de rupturas e oposições (e.g. as organizações coletivas de cinema e de saúde femininas, os grupos de estudos da mulher e de estudos afro-americanos que alteram o cânone literário e os currículos universitários, a crítica emergente do discurso colonial), têm o poder de “implantar” novos objetos e formas de conhecimento em certos sujeitos, pode-se concluir que tais discursos antagônicos podem se tornar dominantes ou hegemônicos? Em caso afirmativo, como? Ou será que precisam necessariamente se tornar dominantes para que as relações sociais se modifiquem? Em caso negativo, como poderão ser alteradas as relações de gênero? (LAURETIS, 1987a, p. 21).

Nessa acepção, em consonância com a que Laura Mulvey (2006) vem desenvolvendo desde a década de 1970 ― ainda que por trilhas distintas ―, a autora vai ressaltar que transformações efetivas nas experiências “engendradas” só podem ser postas em curso através de um desvio de caminho, afastando da lógica androcêntrica as narrativas de gênero, ou seja, saindo de sua construção enquanto narrativas contra o masculino ou exclusivamente de nomeação da opressão e direcionando-se àquelas mais assertivas, que trabalham com experiências próprias de mulheres (e incluo aqui também de outros sujeitos “à margem” da vivência com os gêneros, tais como transgêneros/transexuais), e potencializadas. O cinema, tanto quanto os discursos institucionais (onde se aloca a teoria feminista), é uma tecnologia que “constrói” os gêneros. Isso significa afirmar que um e outro detêm poder de controle sobre seus significados sociais. E de trnsição também. Portanto, assim como produzem, veiculam e sedimentam representações ligadas ao gênero, também apresentam “os termos” que demarcam novas construções, para além de um discurso heteronormativo, cisgênero e de linearidade do trinômio gênero-sexo-desejo.

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transformação.

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que se estabelecem dessas diferenças são tanto espaços reiterativos quanto potências de

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poder-conhecimento. No que toca os sexos-sexualidades, propõe um entendimento de

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essas propostas só se mostraram mais evidentes nas últimas décadas. O que podemos observar no histórico dessa autorrepresentação são tais tecnologias acompanhando as propostas de construção subjetiva vigentes nos diferentes períodos do feminismo. Um exemplo interessante para pensarmos tal configuração é o curta-metragem, no formato de cine-panfleto, idealizado e dirigido por Agnès Varda. Em resposta à pergunta “O que é uma mulher?”, feita pelo canal de TV pública francês Antenne 2, Varda realizou o filme intitulado Resposta de Mulheres: Nosso Corpo, Nosso Sexo (1975, 08 min), no qual demarca contextos e reivindicações que, apesar de questionarem embargos vigentes às mulheres e seus corpos, igualmente reforçam o imaginário da mulher inserida numa lógica cis-heteronormativa e androcêntrica. No filme, as mulheres endereçam-se aos homens e legitimam seus corpos, apropriando-se do poder de decisão sobre eles. Há a tentativa de dissolução dos estigmas do discurso que envolve os direitos sexuais e reprodutivos, principalmente os que abordam questões relacionadas à maternidade. Ou seja: a condição de mulher-mãe, que engendra a construção do imaginário da mulher na psicanálise, está em evidência. Gravado como resposta, o filme parece ainda muito focado no imaginário de um outro-homem, onde há menos construção de um olhar próprio e mais um recado literal direcionado a esse outro. Nesse endereçamento, não ficam ressaltados os escapes do contrato social heterossexual e para um olhar majoritário. Parece-me, assim, que a ideia de uma poética feminista que Lauretis vai propor, através da tecnologia de gênero do cinema, vem trabalhar um outro escopo de possibilidades. Para ela, o escape ao contrato heteronormativo significa também desvio do olhar centrado no masculino em busca de um formato próprio. Mesmo que adiante eu vá trilhar caminhos distintos e em alguma medida discordantes da abordagem dessa poética por Lauretis, é importante contextualizar seu ponto de partida e certa “virada” na sua forma de articular uma teoria fílmica feminista, para além do excesso de peso que tem a psicanálise na maioria das abordagens que tratam de filmes nessa perspectiva. Isso porque ela parte da constatação de que, afora a teoria crítica feminista, a psicanálise foi o único campo a tratar da questão de gênero pensando as configurações do sujeito através dessa distinção. Contudo, aponta, é uma abordagem que não

• Fernanda Capibaribe Leite

que conectam a condição de ser mulher ao desejo masculino, bem como a apropriação

e feminismos entre poética e devir : por uma tecnologia engendrada

No que toca a produção cinematográfica enquanto tecnologia de gênero,

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Propostos de fora do contrato social heterossexual, e inscritos em práticas micropolíticas, tais termos podem também contribuir para entendermos como a construção do gênero e seus efeitos ocorrem ao nível “local” de resistências, na subjetividade e na auto-representação. (LAURETIS, 1987a, p. 23).


consegue dar conta da experiência própria do feminino para além de um olhar masculinizante, pois a abordagem psicanalítica de como um sujeito se torna mulher está mulheres, portanto, são definidas através da categoria essencialista mulher, que, na psicanálise, não escapa da nomeação da Mãe. E Lauretis propõe ir adiante. Mantendo alguma afinidade com essa abordagem, o artigo de Laura Mulvey

construção dos filmes narrativos em Hollywood ou, de maneira mais abrangente, no cinema narrativo do mainstream. Mulvey defende a abordagem psicanalítica enquanto “arma política” ao ressaltar o quanto um inconsciente patriarcal veio norteando a forma de se fazer filmes. E, mais, o quanto a discussão sobre o imaginário do masculino pela crítica feminista, no que toca as análises sobre o cinema, não consegue sair dessa centralização do falo, ou melhor, de sua ausência. O paradoxo do falocentrismo, em todas as suas manifestações, consiste no fato de depender da imagem da mulher castrada para dar sentido ao seu universo. A ideia sobre a representação da mulher funciona enquanto um pino na engrenagem do sistema: é o que está ausente nela que promove o falo enquanto presença simbólica; é o seu desejo que dá valor à significação de ausência do falo. Abordagens recentes envolvendo psicanálise e cinema não trouxeram à tona de maneira satisfatória a importância da representação da figura feminina numa ordem simbólica na qual, em última instância, se fala de castração e nada mais.7 (MULVEY, 2006, p. 342).

Publicado inicialmente em 1975, esse trabalho passou a ser referência para a teoria fílmica feminista por tratar de certa reiteração das imagens na tela através de uma passividade do feminino e consequente secundarização da construção subjetiva das mulheres em relação ao olhar predominante do masculino. Assim, as mulheres, seus corpos e sujeitos possíveis nas narrativas clássicas estariam sempre objetificadas e fetichizadas por e para o olhar de gênero que não lhes é “próprio” e, num entendimento simbólico, de soberania do falo. Apesar de tal abordagem da autora nesse primeiro artigo ter sido por ela mesma revista em outras ocasiões, tal como explicita em entrevistas e publicações posteriores, a publicação serviu de referência, nas três últimas décadas, 7 Tradução minha para: “The paradox of phallocentrism in all its manifestations is that it depends on the image of the castrated woman to give order and meaning to its world. An idea of woman stands as linchpin to the system: it is her lack that produces the phallus as a symbolic presence, it is her desire to make good the lack that the phallus signifies. Recent writing in Screen about psychoanalysis and the cinema has not sufficiently brought out the importance of the representation of the female form in a symbolic order in which, in the last resort, it speaks castration and nothing else”.

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uma crítica ao sistema falocêntrico, que permeou e ainda vem permeando a lógica de

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Visual Pleasure and Narrative Cinema (2006) desenvolve, através do aporte na psicanálise,

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definida majoritariamente por uma concepção da mulher em relação ao homem. As

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para muitas outras análises envolvendo cinema e questões de gênero/feminismo, e por isso vale discorrer um pouco sobre a argumentação que Mulvey desenvolve num

Por essa leitura, Mulvey argumenta, o desejo da mulher está subjugado a um desejo que existe apenas na castração e não é possível para além da existência do falo. Resta às mulheres, portanto, duas saídas: tomar a figura do Pai como o sujeito do direito ou manter-se no lugar da invisibilidade, “à meia-luz”. Isso significa dizer, tal como o faz Lauretis (1987), que, em seus imaginários representados, as narrativas sobre mulheres estão presas ao referencial de um outro, homem, e essa subjugação veio impedindo historicamente, pareceu restar o silêncio e a reiteração do passivo. No curta-metragem de Erika Lust aqui descrito, no entanto, essa reiteração passa por uma lógica de desestabilização ou mesmo subversão. Subversão dos lugares de desejo que “regem” o ato sexual e dos próprios papéis engendrados que são desempenhados pelo casal heteroafetivo que vão das preliminares ao ato sexual explícito mostrado em tela. A ação de travestir-se para o homem não se coloca, no contrato heteronormativo e cisgênero, como possibilidade. Ainda, o ato sexual patemizado, no qual os sujeitos se personificam e estabelecem relações mediadas pelo afeto não parece fazer parte do sistema de visibilidade que vigora para caracterizar uma produção pornográfica. No entanto, ambos os aspectos estão presentes e destacam-se como mote narrativo no filme Dude Looks Like a Lady. Mulvey (2006) ressalta que o cinema narrativo veio contribuindo para a sedimentação de um imaginário fetichizado da mulher através da erotização de sua imagem, que tenta convencer o/a espectador/a, por via da câmera subjetiva na 8 Tradução minha para: “[…] the function of woman in forming the patriarchal unconscious is twofold, she first symbolizes the castration threat by her real absence of a penis and second thereby raises her child into the Symbolic. Once this has been achieved, her meaning in the process is at an end, it does not last into the world of law and language except as a memory which oscillates between memory of maternal plenitude and memory of lack. Both are positioned on nature (or on anatomy in Freud’s famous phrase)”.

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mulheres de tornarem-se sujeitos ativos dos imaginários que as constituem. A elas,

e feminismos entre poética e devir : por uma tecnologia engendrada

[...] a função da mulher na formação do inconsciente patriarcal é dupla, ela simboliza primeiramente a ameaça da castração pela real ausência de um pênis e depois, como consequência, vai cuidar de sua criança por meio do simbólico. Uma vez que isso tenha sido alcançado, seu significado no processo está no fim, e ele não perdura no mundo do direito e da língua, a não ser como uma memória oscilante entre a memória da plenitude materna e memória da ausência. Ambas estão posicionadas na “natureza” (ou na anatomia, de acordo com famosa frase de Freud).8 (MULVEY, 2006, p. 342).

Cinema

primeiro momento. Para ela:

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perspectiva do masculino, de que não é a câmera que se encontra ali, e sim o próprio olhar do outro-homem, voyeur. Essa experiência fetichizada teria contribuído para o que reforça a mulher e suas corporeidades possíveis no lugar de passividade e permissividade. É o que configura uma estética patriarcal nas imagens, que, por sua vez, alimenta o prazer visual de espectadores/as atrelado a esse imaginário de subalternida-

aparece visibilizado no homem heteronormativo, que é montado nas preliminares do ato sexual por sua parceira. A câmera subjetiva sob o olhar falocêntrico é substituída pelo duplo dos reflexos nos espelhos. A/O espectador/a é quem olha, e não há engendramento focado no masculino nessa mirada. O próprio jogo de miradas que enunciam a prática sexual do casal se mostra através dos reflexos. O espelho é também a imagem que retorna para nós. Assim, o reflexo da prática não convencional do casal em cena também pode ser das nossas próprias vivências com o sexo. Para o ator e a atriz, os duplos fazem com que um olhar se refleta no outro: homem e mulher. No entanto, quando engendramos tal reflexão temos: feminina e... feminino. O retorno do duplo não aloca a relação de gênero em lugar de subalternidade, mas antes desterritorializa os lugares demarcados na fruição do sexo através da pornografia, que talvez seja um dos gêneros onde mais seja possível observar o olhar fetichizado no falocentrismo que Mulvey (2006) vai criticar. Em seu texto, Mulvey (2006) propõe uma interpretação crítica sobre a estética da narrativa, a fim de que o prazer voyeurista seja desnaturalizado e ressignificado. Considerando que o cinema é constantemente atravessado por mudanças, tanto política quanto esteticamente, tanto da perspectiva de sua produção quanto de sua fruição, a autora aponta como estratégia possível o desenvolvimento de um modo de produção de cinema feminista alternativo ao padrão de uma lógica capitalista em cuja mise-en-scène está atrelada ao conceito ideológico dominante do patriarcado. Que rompa, portanto, com as “necessidades neuróticas do ego masculino” (MULVEY, 2006, p. 352). Nesse sentido, dentro do engendramento que o filme de Lust propõe e associando-o com o imaginário linear de homem-masculino-heterossexual que integra a lógica cis-heteronormativa, a prerrogativa de Lust cumpre com a proposta de Mulvey. E vai além, por não alocá-la na dicotomia dominador-oprimida e principalmente por devolver as imagens às/aos suas/seus espectadoras/es. Esse último aspecto é reforçado, ainda, pelo fato da narrativa ter efetivamente advindo de um relato publicado por um/a usuário/a “comum” na rede.

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No filme que aqui apresento, na contramão de tal perspectiva, o lugar fetichizado

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de do gênero feminino ligado ao corpo-mulher.

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isolamento do processo de produção do cinema em relação ao imaginário simbólico

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Recapitulando tal proposta apresentada em Visual Pleasure and Narrative Cinema, Maluf, Melo e Pedro (2005) pontuam que a obra de Laura Mulvey, referenciada

prazer visual do cinema narrativo clássico através do falocentrismo, do silenciamento e da passividade da mulher, tal como abordada acima. A segunda, menos trabalhada enquanto uma obra de referência nos estudos feministas sobre cinema, mas que foi retomada e enfatizada nos últimos anos pela autora, é justamente a proposição de uma outra apropriação, olhar e endereçamento das imagens pelas mulheres de modo a criar um cinema alternativo. Nesse segundo ponto, podemos dizer que tanto Mulvey quanto Lauretis se encontram, pois ambas trabalham com a proposição de transição dos mecanismos subjacentes e mesmo inconscientes que relacionam imagem e olhar. 3. Por um olhar “transengendrado” como poética feminista Em termos de produção imagética, modificar as relações entre proximidade e distanciamento no gênero constitui deslocar o posicionamento da câmera para um olhar subjetivo feminino, ao qual eu acrescento também “transengendrado”. Isso significa fora do discurso de poder sobre o gênero “em voga”, ou seja, do masculino. Pois no filme em questão, ao montar o personagem masculino como feminino, Lust propõe ambos os deslocamentos, feminizando o personagem em cena por via do transengendramento. E para além do próprio filme, podemos, de fato, observar que este vem sendo um exercício regular na filmografia mais recente, especialmente na pós-década de 1990, desde quando as questões relacionadas ao gênero têm emergido de forma sistemática e crescente, não apenas em filmes de nicho, mas em produções maiores e de maior circulação. Um dos exemplos dessa emergência é o longa-metragem A Excêntrica Família de Antonia, da diretora holandesa Marleen Gorris (1995, 100 min). O filme narra o retorno de Antonia à pequena vila natal no interior da Holanda, juntamente com sua filha, Danielle. Nesse retorno, são narrados encontros, estranhamentos, adaptações e inadequações de ambas, mãe e filha, a um local permeado por uma forte moral religiosa e relações desiguais. Uma narrativa que poderia ser convencional não fosse por seu deslocamento no que toca os arquétipos de gênero. Antonia é a matriarca de uma família que vai crescendo pelo acolhimento da diferença. A partir de seus laços de sangue, o filme se desenrola no tempo narrativo de quatro gerações de mulheres:

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realocar os modos de endereçamento e estabelecer exercícios possíveis de prazer visual

e feminismos entre poética e devir : por uma tecnologia engendrada

das narrativas no cinema, duas vertentes principais. A primeira é a crítica instituída ao

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de uma maneira geral na psicanálise e no feminismo, tem, no que toca a abordagem

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Antonia, Danielle, Thérèse e Sarah. Elas são as protagonistas, e os conflitos com suas soluções possíveis não ocorrem através de um olhar da alteridade, o homem, mas das narrativa, os homens adquirem papel secundário. Mas a família se expande para além dos laços sanguíneos, pois a matriarca e suas descendentes vão incorporando outras/os personagens que, antes marginali-

no que toca as vivências possíveis do trinômio gênero-sexo-desejo. As condutas “desviantes” são naturalizadas, incorporadas. O que a narrativa nos propõe com isso é, em consonância com a definição de poética feminista que Lauretis (1987, 1987a) desenvolve, um imaginário das relações sociais nas quais as desigualdades de gênero não proliferam e as fobias e intolerâncias relativas ao sistema sexo-gênero ficam de fora. Em meu olhar como espectadora, propõe pensarmos o mundo possível fora do padrão masculino e heteronormativo. E não é que na narrativa esse padrão não apareça, mas sua dissolução é a condição para o pertencimento na família. O filme, portanto, é menos denunciativo e mais propositivo; aborda menos a relação de dominação e mais a perspectiva da diferença articulada. Nessa narrativa, o filme engendra a relação ruptura-incorporação como potência e promove uma conexão direta dos sujeitos ficcionados com sujeitos de uma realidade vivida por dissociação, que podemos associar com a descrição dos regimes de ficção tal como os define Rancière, para quem: O que está em funcionamento são dissociações: rupturas de uma relação entre sentido e sentido, entre um mundo visível, um modo de afeição, um regime de interpretação e um espaço de possibilidades; ruptura dos referenciais sensíveis que possibilitam a cada um seu lugar na ordem das coisas. (2012, p. 67).

Saindo da circulação no ambiente de nicho, “A Excêntrica Família de Antonia” venceu o Oscar de melhor filme estrangeiro em 1996. Um exemplo de escape, nas narrativas que abordam as relações da tríade sexo-gênero-desejo, do contrato heterossexual, propondo outras articulações do desejo não perpassadas pelo (e também não medidas pelo) homem-masculino. Tal proposta endereça um caminho trilhado pela própria Mulvey em produções fílmicas e escritos desse mesmo período, a exemplo de Fetishism and Curiosity (1996), onde a autora desenvolve a ideia de uma “estética da curiosidade”, a partir da qual propõe que o universo da sexualidade “velada” do feminino seja “desbravado” pelas próprias mulheres sob o ponto de vista de uma au-

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a integrar a família. Na “Excêntrica Família de Antonia” não há lugares de abjeção

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zadas/os num contexto externo ao lar de Antonia, tornam-se sujeitos quando passam

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próprias personagens, estendendo-se às mulheres num sentido mais amplo. Nessa

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todescoberta. Há, ali, a inversão do mito de Pandora e a mulher, ao abrir a caixa, não estaria mais desvendando os males do mundo, e sim apropriando-se de si como sujeito.

defesa do cinema de vanguarda como modo de produção fílmica, é questionada por algumas autoras, tal como Lauretis (1987), que problematizam o abandono do cinema narrativo. Lauretis argumenta que podemos trazer uma perspectiva mais otimista, “[...] ao indagar o quanto o cinema de vanguarda deveria ou não abandonar a narrativa, ponderando que os trabalhos mais interessantes atualmente no cinema não são nem anti-narrativos, nem antiedípicos” (apud MALUF; MELO; PEDRO, 2005, p. 346). Vide o Tomando as vias dessa ressignificação e associando-a ao trabalho aqui proposto, cabe abordar, em termos de modo de produção do cinema, os termos ou suposições que podem alocar uma poética feminista atual a uma proposta narrativa para os filmes que visam ao modelo cunhado por Mulvey, mas não necessariamente estão engajados em propostas de vanguarda. A pergunta que me chega, ao conectar a reflexão de Mulvey com a produção fílmica aqui analisada, é: ao se nomearem como feministas, ou mesmo ao assumir seus pressupostos na construção narrativa, necessitam os filmes vincularem-se à ideia de um contracinema? Ainda, e fazendo ligação com a acepção desenvolvida por Lauretis: não estaria, contraditoriamente, essa vinculação de um cinema feminista a uma proposta de vanguarda sedimentando um status de permanência do feminismo como posição secundária e não desvinculada de uma lógica de dominação? Penso que assim é possível abordar por que vias um olhar feminista nas produções fílmicas recentes tem tentado abrir “brechas”, propondo articulações que não abandonam a narrativa, mas a reorientam no tempo. 9 Tradução minha para: “While curiosity is a compulsive desire to see and to know, to investigate something secret, fetishism is born out of a refusal to see, a refusal to accept the difference the female body represents for the male. These complex series of turnings away, of covering over, not of the eyes but of understanding, of fixating on a substitute object to hold the gaze, leave the female body as an enigma and threat, condemned to return as a symbol of anxiety while simultaneously being transformed into its own screen in representation”.

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exemplo do filme de Gorris vencedor do Oscar, ou mesmo a narrativa proposta em Lust.

e feminismos entre poética e devir : por uma tecnologia engendrada

Essa proposta de reposicionamento em Mulvey, contudo, marcada por sua

Cinema

Enquanto a curiosidade é um desejo compulsivo de ver e saber, investigar algo secreto, o fetichismo nasce de uma recusa a ver, a recusa de aceitar a diferença que o corpo feminino representa para o masculino. Esta complexa sequência de virar as costas, de cobrir, manter distante não dos olhos, mas da compreensão, de fixar-se em um objeto substituto para estagnar o olhar, deixa o corpo feminino como enigma e ameaça, condenado a retornar como um símbolo de ansiedade, ao mesmo tempo em que vai sendo transformado em sua própria tela na representação.9 (MULVEY, 1996, p. 64).

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Ao abordarmos a pornografia, as questões se mostram ainda mais complexas. A partir da maneira como comumente ficamos acostumadas/os a ver filmes pornô, à distância, flâneurs, numa mirada através da qual importam os fins relacionados ao prazer e não os meios pelos quais os personagens chegam no sexo. Nesse sentido, e parafraseando Sontag (1987), a imaginação pornográfica está ligada a um sentido de

associado às distinções de gênero que se fizeram exacerbadas na cultura pornográfica por um discurso de e para homens, levou a um tipo de imaginário compartilhado do gênero pornô que, de maneira quase perversa, compartimenta as esferas sociais passíveis de serem retratadas em suas narrativas. Assistir à pornografia é concessão. Assistir às narrativas que desalojam o olhar falocêntrico é uma dupla concessão. Como Sontag (1987) coloca, no histórico da pornografia sentimento se confunde com comportamento e comportamento se resume ao ato sexual, princípio e fim da trama. Quando o ato não está em curso, sua intenção já foi deflagrada. A intenção é a fase preparatória e não se complexifica em termos de sentimentos ou afetos, pois a trama pornográfica relaciona-se sobretudo à ação. A complexidade está nas ações postas em jogo fora da tela, na/o espectador/a. Assim, o sentimento que queremos pôr em ação é o da luxúria, mas este vem acompanhado de outros que não gostamos ou queremos ver emergir, relacionado à vergonha, receio, ou repulsa. Na poiesis pornô: Não existem sentimentos gratuitos ou não-funcionais, não há devaneios, especulativos ou imagísticos, que sejam irrelevantes ao assunto em questão. Assim, a imaginação pornográfica habita um universo que é, por mais repetitivos os incidentes que ocorrem em seu interior, incomparavelmente econômico. Aplica-se o critério de relevância mais estrito possível: tudo deve apontar para a situação erótica. (SONTAG, 1987, p. 29)

O “assunto em questão” refere-se ao ato sexual, e tal economia apontada, no imaginário constituído da pornografia, intende garantir que o público espectador não seja confundido, ou ludibriado com relações próximas, ou afetivas, de empatia para além do sexo com seus/suas personagens. A despersonificação dos corpos em sexo na pornografia advém do dispositivo histórico da sexualidade e, contraditoriamente, mesmo quando a carne é requalificada, precisou ter mantida sua condição de sujeição das performances corporais em cena. E por quê? Pelo motivo simples de que, ao nos vermos em relação de pertencimento e posição-de-sujeito com personagens de determinada trama, somos levados a nutrir sentimentos em intensidade, que chegam

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não podem aparecer. Ou não podiam, até bem pouco tempo atrás. Tal regime visível

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maculação e suas formas de visibilidade funcionam como concessões, onde os sujeitos

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passamos a desarticular sujeitos e ato sexual, de modo que nos seja permitido observá-los

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no/a personagem e retornam a nós. No entanto, no caso da pornografia, subjetificar tais personagens, as/os eleva à condição de seres da experiência, como nós, e nos retorna o

Cinema

sentido repulsivo do sexo que compõe o seu legado moral.

A complexidade da pornografia, portanto, reside no fato de que sua narrativa veio de uma história atrelada a algo necessariamente em desconexão com a experiência por um sentido de pertencimento. Apesar de não podermos desconsiderar que a pornografia engendra nossas experiências enquanto consumidoras/es, tal consumo é comumente fixado no ato sexual, desconectado de outras formas sensíveis relacionáveis. E tal compartimentação é reiterada pelos não-sujeitos vistos em cena. Uma vez alcançado o êxtase, não há mais sentido em manter a narrativa em curso. Uma estratégia de isolamento da potência do desejo? Provavelmente sim. Contudo, “[...] a sexualidade para, em seguida, revelar o contrário” (SONTAG, 1987, p. 22). E nesse sentido, há mais o que dizer da pornografia do que aplainá-la no compartimento dos gêneros fílmicos “menores”. Enquanto sujeitos sexuais, somos também sujeitos de seu ato. E tais atos atravessam as experiências para além do sexo. Podemos viver o sexo através do objetivo do prazer, mas também permeado por outros escopos de sensações e afetos que vão além. Quando voltamos a Erika Lust, através de sua filmografia e particularmente da proposta fílmica descrita, é possível perceber como há um empreendimento de esforços no sentido de tornar a narrativa do sexo também uma narrativa do amor, dos encontros/desencontros e da luxúria. Uma subversão mais intensa porque tais conexão são realizadas subjetificando seus/suas personagens ― pode acontecer com algum/a de nós ― e desarticulando os lugares demarcados de poder masculino-feminina, homem-mulher, heterossexual-homossexual. Em “Dude Looks Like a Lady”, bem como em todos os curtas das três edições até agora realizadas da série XConfessions, a trama vem de nós e retorna a nós, e a tecnologia de gênero do transgressão.

de

• Fernanda Capibaribe Leite

parece ser algo, como a energia nuclear, que se pode provar passível de domesticação

e feminismos entre poética e devir : por uma tecnologia engendrada

A civilização ocidental se desenvolveu a partir da dicotomia do mesmo e do diferente, procurou uma verdade transcendental que balizasse seus referentes, garantindo uma epistemologia fundada nos princípios de perfeição, estabilidade, permanência, unidade e racionalidade. A partir de tal modelo, construiu-se um corpo ideal em oposição a um corpo monstruoso ou abjeto, uma sexualidade normal vs a pornografia. (VILLAÇA, 2007, p. 06)

cinema se conecta à outra tecnologia do gênero, da internet, como potência

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4. Novos modos de prazer visual: o evento de endereçamento como percepto de devir feminista

no caso de Erika Lust abordar seus filmes como um percepto de devir feminista, porque vêm desestabilizar as compartimentações da trama sexual em relação a outras esferas onde transitamos como seres de vivências e compartilhamentos. E nos inquietam com imagens que não apenas explicitam o ato sexual, mas o fazem indo além. Em Dude Looks Like a Lady, os sujeitos emergem, agora numa ficção-documental, baseada em relato narrado. Uma maneira de enquadrar o sujeito na cena pornográfica por via de fabulação autonarrativa. O ser da sensação, o bloco do percepto e do afecto, aparecerá como a unidade ou a reversibilidade daquele que sente e do sentido, seu íntimo entrelaçamento, como mãos que se apertam: é a carne que vai se libertar ao mesmo tempo do corpo vivido, do mundo percebido, e da intencionalidade de um ao outro, ainda muito ligada à experiência — enquanto a carne nos dá o ser da sensação, e carrega a opinião originária, distinta do juízo de experiência. Carne do mundo e carne do corpo, como correlatos que se trocam, coincidência ideal” (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 229-230).

É nesse interstício, entre “carne do mundo” e “carne do corpo”, que a diretora Erika Lust promove o agenciamento dos sujeitos no filme. Espectro de trocas e correlações que aproximam mundo percebido, mundo vivido e mundo intencionado. Agenciamentos múltiplos, trânsito em curso. Devir que vem do território da pornografia englobando recortes de outros territórios, outras espécies de acionamentos. Percepção que extrapola a paisagem.

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condições dos sujeitos sexuais nas narrativas pornô-eróticas que realiza, podemos,

ano

Pela maneira como aborda as experiências de vida readequadas através das

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O que não se tem salientado sobre os produtos típicos da imaginação pornográfica é o seu pathos. Quase toda a pornografia (e as obras aqui discutidas não podem ficar de fora) aponta para algo mais amplo que o simples dano sexual. Trata-se da traumática incapacidade da sociedade capitalista moderna de fornecer saídas autênticas ao perene instinto humano para as obsessões visionárias inflamadas, assim como de satisfazer o apetite de modos de concentração e de seriedade exaltados e autotranscendentes. A necessidade dos seres humanos de transcender “o pessoal” não é menos profunda que a de ser uma pessoa, um indivíduo. No entanto, nossa sociedade atende pobremente a tal necessidade. Ela provê sobretudo vocabulários demoníacos onde situá-la e a partir dos quais iniciar a ação e construir ritos de comportamento. Oferece uma opção entre vocabulários de pensamento e ação que não são meramente autotranscendentes mas autodestrutivos. (SONTAG, 1987, p. 32).

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Para além do conteúdo específico em cada história narrada nas produções de Lust, há uma evidente iniciativa que as torna agregadas ao que ela e outras realizadoras

associado às suas propostas de construção das imagens, mas também direcionando um feixe discursivo que extrapola as produções fílmicas. Nesse sentido, a convocação em Lust está em seus audiovisuais, mas é reverberada também pelo manifesto que escreve e por como se posiciona publicamente enquanto realizadora de narrativas do sexo através do olhar que a contempla e a outros sujeitos (mulheres, gays, lésbicas, transgêneras/os etc.). Ainda, por via de suas publicações impressas, onde denomina um “bom pornô” (good porn) como alternativa e em contraposição à indústria do mainstream pornográfico. Tais eventos midiáticos correspondem à materialização de estratégias visando convocar a uma postura que Elizabeth Ellsworth (2001) define como posição-de-sujeito. Ellsworth (2001) parte da premissa de que existe um espaço que norteia os interesses e jogos de poder através do qual o prazer visual de um filme em relação com suas/seus espectadoras/es é direcionado. Um ambiente virtual10 e simbólico, ligado a certo modo de ser, ver e ter experiências com as narrativas fílmicas. De acordo com filme depende da distância entre, de um lado, quem o filme pensa que somos e, do outro, quem nós pensamos que somos, isto é, depende do quanto o filme “erra” o seu alvo” (2001, p. 20). Trata-se sempre, portanto, de um processo de negociação entre esses produtos culturais e quem os está assistindo. Um espaço, sobretudo, construído através de reiterações e pertencimentos. A partir de expectativas geradas entre realizador/a e seu público e de como são supridas ou não através dos filmes, temos modos de endereçamento constituídos ou rejeitados. Para que as produções feministas alcancem o público a quem estão endereçadas, portanto, é requerido que haja uma experiência sensível e particular de quem a assiste com a história e sistema imagético das narrativas. Se você compreender qual é a relação entre o texto de um filme e a experiência do espectador, por exemplo, você poderá ser capaz de mudar ou influenciar, até mesmo controlar, a resposta do espectador; produzindo um filme de forma particular. Ou você poderá ser capaz de ensinar os espectadores como resistir ou subverter quem um filme pensa que eles são ou quem um filme quer que eles sejam. (ELLSWORTH, 2001, p. 12). 10 Entendo aqui o virtual não por via de sua apropriação pelas novas tecnologia, mas através de seu significado mais geral, que indica aquilo que existe em potência, ou como faculdade.

• Fernanda Capibaribe Leite

a autora: “A maneira como vivemos a experiência do modo de endereçamento de um

e feminismos entre poética e devir : por uma tecnologia engendrada

de acionamentos nos filmes diz respeito sobretudo ao tipo de endereçamento fílmico,

Cinema

recentes de “filmes adultos” intitulam como pornografia feminista. Essa convergência

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Uma reflexão que parece bastante pertinente para pensarmos a filmografia de Erika Lust. O tempo do prazer expresso nos corpos não é o dos homens-dominantes. Ao após o gozo feminino, independente do orgasmo peniano, considerando que esta pode e efetivamente é uma situação vivenciada pelos sujeitos da “vida real”. São, sobretudo, situações criadas para legitimar a fruição do pornô através de aspectos fora do modo

na narrativa do sexo em Lust, podemos afirmar que o que está em jogo aqui é não apenas um modo, mas um evento de endereçamento (ELLSWORTH, 2001), que age no interstício entre a narrativa da pornografia feminista e a utilização que a/o receptor/a faz dela. Não há dúvida de que os filmes de Lust visam renegociar nossa relação com o dispositivo pornográfico, mas não devemos supor que há uma transferência imediata, que ultrapassa todos os cânones (e tabus) referentes à pornografia universal, fazendo com que o simples deslocar do a quem se destina, ou como se destina a alguém seja por si um fator de legibilidade para os produtos. Tal como Ellsworth (2001) desenvolve, o evento de endereçamento dessa nova produção da pornografia feminista requer posições-de-sujeito assumidas pelo público consumidor dos filmes e outras produções midiáticas que entram em cena. Tais eventos criam expectativas além do ato sexual em si e solicitam tomada de posicionamento do público. A questão, contudo, é que a/o espectador/a nunca é somente quem as imagens pensam que ela/e é. O fato dos filmes de Lust serem endereçados principalmente às mulheres, por exemplo, não significa que todas as mulheres se identifiquem com eles. São muitas as variantes possíveis. Pode não haver identificação com a romantização presente na narrativa deste tipo de filme; podem haver determinados tipos de fantasias que não se encaixam nas narrativas propostas pelo pornô em Lust. Falar de um determinado público ao qual um determinado filme ou conjunto deles é endereçado, portanto, não pressupõe que possamos partir do princípio de que haverá necessariamente pontos de convergência entre todos os indivíduos representantes desse público, ou seja, não existe um processo de identificação que seja único. Contudo, se tais ressalvas se constituem como aspecto importante para que não fiquemos focadas/os numa possível eficácia dos filmes, no caso da Erika Lust não dá para perder de vista a experimentação sob muitos formatos de desconstrução propostos, tanto no que toca suas sinopses – nas quais a introdução dos sujeitos na trama se dá de formas muito variadas e alocadas em imaginários do cotidiano –, quanto no tratamento dado às próprias imagens, de modo a desnaturalizar o olhar falocêntrico, a desperso-

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fato de forma mais complexa, se consideramos a maneira como as imagens operam

ano

de endereçamento atrelado aos gêneros em posição de desigualdade. Abordando o

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contrário, é comum, no filme aqui citado e em outros da diretora, que a trama termine

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nificação e a ideia de que pornografia é uma produto menos elaborado, uma fotografia menor, com pouca ou nenhuma preocupação em relação aos planos para além dos

mas o fazem através de muitas personificações possíveis, conectando-as aos formatos narrativos, composições, encadeamentos de planos e cenas que as enunciam. Tornando, assim, a experiência com seus filmes agradáveis não exclusivamente pelo sexo, mas sobretudo pelo produto imagético-sonoro que os filmes são. O prazer visual aí, portanto, articula o prazer sexual com o prazer através de uma via de pertencimento. E a proposta que tais produções apresentam enquanto potência é justamente uma guinada subjetiva da pornografia que não se faça apenas através do ato discursivo fora dos filmes, mas de distintos formatos inseridos na trama, “modificando a noção de sujeito e a hierarquia dos fatos, destacando os pormenores cotidianos articulados numa poética do detalhe e do concreto” (SARLO, 2007, p. 11-12). Filmes como os da série XConfessions propõem a inserção dos sujeitos na trama de maneiras diferentes, por caminhos distintos. O que permanece em comum e enquanto traço distintivo em sua filmografia são, efetivamente, os processos de subjetivação de tal convergência não parece querer se impor em toda e qualquer narrativa através do enunciado do não-homem, ou da condição de uma outra-mulher, estereotipada às avessas. Em Dude Looks Like a Lady, o jogo de excitação sexual começa a com o parceiro sendo montado mulher, sem hiperbolizações e situações irreais, mas através de gestos simples, o que desvela como as representações do ato sexual podem ser muito mais complexas do que as mostradas pela indústria da pornografia. São possibilidades potentes as que Erika Lust aborda. E por isso ela nos traz estranhamentos. Porque conecta tal fantasia com a de sujeitos “comuns”, ou ordinários, tal como Guimarães (2007) e Comolli (2007) vão se referir a eles. O homem travestido nas preliminares do sexo não parece ser algo representável pelo imaginário do pornô mainstream, mas pode ser algo que norteia nossas fantasias e nos mobiliza sexualmente como sujeitos. Lembrando que, quando enuncia a adaptação de uma história enviada por um/a espectador/a, Lust conecta experiência à representação pornografia e tal feito é trânsito. O percepto surge, assim, quando os filmes “gaguejam” nas palavras. Uma torção, que está para além do enunciado, que se relaciona aos modos de endereçamento tensionando sua previsibilidade rumo a outras experiências sensíveis possibilitadas.

• Fernanda Capibaribe Leite

personagens em cena, além da desapropriação da hegemonia do masculino. Contudo,

e feminismos entre poética e devir : por uma tecnologia engendrada

agenciam, na trama pornográfica, os sujeitos não focados no masculino-dominante,

Cinema

close-ups nas genitálias durante o ato sexual. E aí está a potência da diretora: seus filmes

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5. Considerações finais: pela emergência da diferença como demarcadora do devir na poética feminista

demarca uma fronteira, interstício através do qual o “fazer-se presente” implica numa postura de estranhamento (BHABHA, 1998). Não é à toa que há uma ressonância do

Está explícito, no discurso da pornografia feminista, essa postura revisionária, que pretende expandir o presente da experiência estrategicamente enquanto um posicionamento. E, com isso, inquieta, nos faz estranhar, porque não estamos acostumadas/ os a ver a pornografia com esse agenciamento. Contudo, para além dos regimes de identificação funcionarem ou não, nesse filme isoladamente ou no conjunto de sua filmografia, parece evidente que tal propósito nos desloca. Além disso, não podemos perder de vista que os filmes dessa nova pornografia feminista pela direção de Erika Lust também ampliam seu espectro de negociação para públicos não participantes do consumo de produtos pornográficos convencionais, visando à entrada do “texto” pornô nos cotidianos de sujeitos não antes inseridos em tal regime visível. Remeter a um determinado público ao qual um filme ou conjunto deles é endereçado não implica diretamente na premissa de que haverá pontos de convergência entre todos os indivíduos representantes desse público. Ou seja: não existe um processo de identificação que seja único, mas, ao contrário, as percepções e atravessamentos são múltiplos, acionados de forma não linear, ou sincrônica. Contudo, é justamente tal pôr em curso, que parte de uma perspectiva revisionária que tal proposta me chega como percepto de devir feminista. Por mobilizar fluxos entre zonas estáveis e aquelas “estranhas”, articulando subjetivações distintas e não formatadas. Está em trânsito aí, sobretudo, a própria ideia de prazer visual. Além de levar em conta que a consolidação de um determinado gênero fílmico perpassa por estruturas já demarcadas não facilmente modificáveis, os múltiplos modos de endereçamento ampliam as possibilidades de atravessamento de uma determinada proposta para um conjunto de filmes. Em grande medida, é uma relação que se

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As diferenças sociais não são simplesmente dadas à experiência através de uma tradição cultural já autenticada; elas são os signos da emergência da comunidade concebida como projeto ― ao mesmo tempo uma visão e uma construção ― que leva alguém para “além” de si para poder retornar, como um espírito de revisão e reconstrução, às condições políticas do presente (BHABHA, 1998, p. 22).

ano

estranho em narrativas que negociam os poderes da diferença.

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No embate das diferenças, o ato de negar uma condição socialmente estável

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estabelece entre uma determinada pratica social e as formas como ela cria vínculos com seus sujeitos através de uma (ou várias) identidade(s) cultural(is) e afinidades

Rancière, “E preciso primeiro provar que há algo a argumentar, um objeto, parceiros, um mundo que os contém. E é preciso prová-lo na prática, ou seja, fazendo como se esse mundo já existisse” (1996, p. 374). Tais reflexões me levam a crer que a proposta dessa pornografia vista como poética feminista potente pressupõe uma abordagem dos acessos e experiências que se tornam possíveis pelo remapeamento de relações sexuais e afetivas trabalhado na articulação da diferença. Numa perspectiva da sexualidade, tal proposta autoriza novos discursos a novos sujeitos sexuais em cena. E tal caminho não é simples ou direto.

Tal como coloca Louro (2008), o sentido da diferença engendrada no sujeito através de suas capacidades ligadas ao sexo e o gênero podem ser mais facilmente identificáveis do que transgressíveis. Erika Lust coloca em xeque a despersonificação do ato sexual na trama pornográfica, põe em diálogo os sujeitos sexuais através da não supremacia de uns corpos sobre outros, faz emergir a diferença através das distintas potências que esses corpos têm. Imprime sensações de trânsito, devir, através dos corpos sexuados e sexuais. Mas para tanto também negocia tais agenciamentos, lança mão de formatações instituídas para depois desestabilizá-las e, principalmente, fala sobre e produz imagens através da sexualidade conectada à própria condição de seu corpo cultural. Sob tal perspectiva, alguns aspectos são mais ressaltados, enquanto outros não se fazem tão evidentes. Por isso, os lugares onde chega também estão circunscritos pelas próprias zonas do desejo que a mobilizam. Nesse sentido, considero ser pertinente ir além da experiência com os sexos narrados em imagens pornográficas feministas, e dos próprios alcances pensados na perspectiva de sujeitos-mulheres de uma maneira mais geral. Em minha acepção, cabe aos feminismos também tratar de narrativas através do enfrentamento das performatividades possíveis nos corpos no que toca o sistema sexo-gênero. Me refiro mais especi-

• Fernanda Capibaribe Leite

Os discursos autorizados repetem a norma regulatória que supõe o alinhamento entre sexo-gênero-sexualidade; as práticas cotidianas reafirmam e naturalizam, ecoam e ampliam, em múltiplos espaços e situações, a seqüência que supõe que a identificação de um sujeito como macho ou como fêmea deve determinar seu gênero, masculino ou feminino, e também seu desejo pelo sujeito de sexo/gênero oposto. A norma encontra-se entranhada no tecido social, no cotidiano, no banal (LOURO, 2008, p. 90).

e feminismos entre poética e devir : por uma tecnologia engendrada

reproduzindo alguns cânones, até que novos se estabeleçam como tal. Como afirma

Cinema

(ELLSWORTH, 2001). A mudança, portanto, é processual e não raramente permanece

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ficamente ao proposto em Butler (2014) ou Haraway (2013), que se relaciona ao status dos gêneros, masculino e feminina, construídos enquanto radicalmente independentes do corpos torna-se um artifício imaginário e se, tal como Haraway (2013) aponta, os corpos estão inscritos, hoje, num sistema biótico ― através dos seus agenciamentos nos opostos, não-dicotômicos e não-excludentes ―, interessa refletir sobre como a própria noção de

enfrentamento, portanto, pertinente para pensarmos as figurações em audiovisuais para além de uma “moratória moral” (LOURO, 2008), que dá aos sujeitos possibilidades de experimentação das sexualidades desviantes regidas sob certos parâmetros de concessão. Referências bibliográficas A Excêntrica Família de Antonia (Antonia). Direção: Marleen Gorris, 1995, 100 min. Disponível em: https://www.youtube. com/watch?v=7wexPzXy7eU. Acesso em: mai 2013. BHABHA, Homi. O Local da Cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1998. BUTLER, Judith. Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014. COMOLLI, Jean-Louis. Ver e Poder. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008. _______. Os Homens Ordinários, a Ficção Documentária. In: SEDLMAYER, S.; OTTE, Georg (Orgs.). O Comum e a Experiência da Linguagem. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007. DELEUZE, Gilles. Conversações. São Paulo: Editora 34, 1992. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a Filosofia. São Paulo: Editora 34, 1992. ELLSWORTH, Elizabeth. Modo de Endereçamento: uma coisa de cinema; uma coisa de educação também. In: DA SILVA, Thomaz T. (Org.). Nunca Fomos Humanos: nos rastros do sujeito. Belo Horizonte: Autêntica, 2001, p. 9-76. Entrevista com Laura Mulvey. In: Revista Estudos Feministas. Florianópolis, 13(2): p. 256, maio-ago. 2005, p. 351-362.

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os masculinos. Ou ainda, aqueles com traços de feminilidade e masculinidade. Um

ano

“mulher” para o feminismo pode significar, hoje, igualmente os corpos femininos e

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sexo. Se, como afirma Butler (2014), o gênero entendido através de sua construção nos

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“A re you talking to me?” A expressão do popular midiático como potência política em taxi driver, de M artin S corsese B runo Costa Pós-doutor junto ao Programa de pós-graduação em Comunicação da PUC Minas. E-mail: brunocscosta@gmail.com

Thiago Pereira A lberto Mestre em Comunicação Social pela Faculdade de Comunicação e Artes da PUC-MG. E-mail: thiagopereiraalberto@gmail.com

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p.

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Resumo Este artigo analisa o filme “Taxi Driver” (1976), Martin Scorsese como um possível veículo de expressão dos meios de comunicação populares como um poder político, tencionando parte de sua representação de imagem através de um tabloide estética e radical, o regime de imagens dominante em Hollywood e percebendo em sua narrativa. Algumas táticas de subversão em relação ao sistema capitalista com a representação de um personagem anônimo; enquanto, sendo um produto da cultura popular, fala para um público grande e possíveis gatilhos decodifica. Palavras-chave: Cinema; Cultura Popular; Martin Scorsese; Subjetividade Rebelde; Taxi Driver

Abstract This paper analyzes the film “Taxi Driver” (1976), Martin Scorsese as a possible vehicle of expression of the popular media as a political power, tensing part of his image representation through an aesthetic and radical tabloid, the regime of images dominant in Hollywood and realizing in his narrative, some tactics of subversion in relation to the capitalist system with the representation of an anonymous character; while, being a product of popular culture, speaks to a large audience and possible triggers decodes Keywords: Cinema; Popular Culture; Martin Scorsese; Rebel subjectivity; Taxi Driver


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escreveu Pauline Kael (1968), uma das mais notórias críticas de cinema de todos os tempos. Com esta frase, a escritora norte-americana de certa forma sumariza a tática de dominação simbólica do sistema político hegemônico da contemporaneidade, o capitalismo, com seu mecanismo de absorção da crítica e posterior abdução da mesma com fins comerciais. Ela sinaliza aí a transformação do gesto rebelde em incorporação passiva, movimento apontado anteriormente pela Teoria Crítica, onde o sujeito se vê numa espécie de enquadramento político, social, econômico e subjetivo (o chamado processo de reificação), focalizado pela lógica de dominação que despotencializa discursos e ilhas rebeldes dentro do oceano da perpetuação da chamada indústria cultural. De certa forma, este é um início de análise possível e inspirador para avaliarmos o trajeto percorrido por Taxi Driver (1976), filme de Martin Scorsese, objeto de nossa atenção neste artigo. Talvez possamos afirmar que a obra nasce da visada crítica que o diretor impõe sobre um sistema de produção hegemônico, utilizando uma linguagem cinematográfica que transcende e provoca os padrões vigentes em Hollywood; algo que se materializa tanto na centralidade de sua narrativa (com o protagonismo rebelde e violento de um popular anônimo) quanto em parte de sua representação imagética (em escolhas estéticas agressivas, sombrias, de influência “tablóide”). O círculo se fecha no próprio filme com a incorporação do anti-herói em herói, através de sua ascensão midiática no final. Faz-se o jogo do popular midiático, com possíveis perdas e ganhos. O que sublinhamos aqui é a possibilidade e a força expressa do e no jogar. A frase de Kael soa pessimista, mas forte; sintética, mas duramente verdadeira, tendo em vista alguns movimentos típicos e/ ou históricos de contestação política sendo embalados para consumo massivo. Mas podemos também acreditar que existe uma objetividade e existe uma neutralidade em relação às coisas dispostas no mundo: o fato 1 “Attacks on the consumer society become products to be consumed.” (Tradução nossa)

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“Ataques à sociedade de consumo tornam-se produtos a serem consumidos”1,

ano

1. Introdução


do projeto capitalista, objetivamente estar em pleno andamento não significa que criações artísticas simplesmente serão passivamente domadas por estas regras estabe-

capitalista, e seu poder de programar o comportamento humano. Apesar de sua ação “que manipula e robotiza a vida em todos os seus aspectos, desde os gestos exteriorizados ao mais íntimo dos pensamentos, desejos e sentimentos”. (FLUSSER, 2002, p.67), se

1.1 Cinema e os jogos de poder A pontuação de Kael, dessa forma, pode soar provocativa com esta possibilidade utópica de se pensar o futuro, de fugir do presentismo, da “celebração do que existe porque não há nada além”, como sinaliza Santos (2007, p.58). Se estivermos diante de uma estrutura social que se apresenta por vezes como imposição cultural, de atuações hegemônicas, mais do que nunca são essas as questões que necessitam ser discutidas. Talvez seja possível buscar uma autonomia possível, onde se avalie e questione as estruturas de poder, enquanto busca-se construir uma alternativa a ela: “descolonizar nossas mentes para poder produzir algo que distinga o que é produto da hierarquia e o que não é” (SANTOS, 2007, p.35) e atacar essa engrenagem com as mesmas peças que ela oferece. Alinhamos a esta proposição a preciosa noção de Fiske (2009) de uma cultura popular politicamente ativa, capaz de reagir à onipresença da massificação da indústria estrutura: como lemos aqui, trata-se de tentar recodificar o aparelho, desafiar a máquina de programação contínua capitalista através do jogo, desfiar suas imposições, e tratar esses conhecimentos ou saberes como válvulas emancipatórias. Não à toa, é ao termo trickery (uma trapaça na uma forma de jogar) que Fiske vai recorrer como dispositivo possível da cultura popular no questionamento do status estabelecido, na tensão entre ordem e progresso, entre regulação e emancipação; tensão essa própria das relações culturais e até mesmo do mecanismo político2. Estas trapaças 2 Para falar com Eagleton (2003, p.14), a própria idéia de cultura compreende uma “tensão entre fazer e ser feito, racionalidade e espontaneidade, que censura o intelecto desencarnado do iluminismo tanto quanto desafio o reducionismo cultural de grande parte do pensamento contemporâneo” A essa dictomia ela entrelaça o fazer político: “Numa sociedade civil, os indivíduos vivem num estado de antagonismo crônico, impelidos por interesses opostos; mas o Estado é aquele âmbito transcendente no qual essas divisões podem ser harmoniosamente reconciliadas. Para que isso aconteça, contudo, o Estado já que tem que ter estado em atividade na sociedade civil, aplacando seus rancores e refinando suas sensibilidades, e esse processo é o que conhecemos como cultura” (EAGLETON, 2003, p.16)

M artin S corsese • B runo Costa - Thiago Pereira A lberto

cultural e da sociedade de consumo com golpes moldados dentro dessa própria

expressão do popular midiático como potência política em taxi driver , de

aparelho. A paciência lúdica da utopia tem que ser infinita.

A

faz necessário desvendar a caixa preta, decodificá-la, jogar com as possibilidades deste

you talking to me?”

às engrenagens pós-ideológicas (como a fixação pela descrença absoluta) do aparelho

“A re

lecidas, aceitando sua atuação. Para falar com Flusser (2002), não precisamos nos render

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estão nas políticas do dia a dia, que se espalham e se espelham na vida cotidiana e que também oferecem chaves para desvendar seus mecanismos de poder. Não devemos apenas a ponta de um iceberg que repousa sobre uma menos visível, mas muito real e politizada consciência; a consciência da, e na, cultura popular” (FISKE, 2009, p.126)3 Portanto, se faz necessário conviver e entrar em conflito com as hegemonias. Quando

estaremos reféns de uma “razão cínica” (SANTOS, 2007. p.58), uma acomodação simplória de que não há futuro dentro dessa estrutura. E talvez seja possível pensar que este futuro que esteja no resgate das diferenças, na força da voz inconformada, no desenvolvimento de uma “subjetividade rebelde” (SANTOS, 2007, p.58) Desenvolver subjetividades rebeldes e não apenas subjetividades conformistas. Assim, a questão fundamental é como intensificar a vontade, um problema também complicado para nossa construção teórica, porque há uma dimensão que chamamos de racional dos argumentos; mas há também uma dimensão mítica de todos os saberes, que é a crença, a fé, a validade de nossos conhecimentos. Todos os nossos conhecimentos têm um elemento de logos e um elemento de mythos, que é a emoção, a fé, o sentimento que certo conhecimento nos proporciona pelo fato de o termos, a repugnância ou o amor que nos provoca (SANTOS, 2007, p.58)

Pensando na inescapável gangorra entre realidade e sonho, o possível e o imaginário, essencial para a modulação desta subjetividade rebelde a que se refere Santos (2007), pensamos aqui o cinema como dispositivo de ataque possível, de alcance, influência e intensificação de vontades, com narrativas e representações que, ao se modularem no vaivém entre o limite e o ilimitado, entre o mythos e o logos, convocam e inspiram o espectador a uma nova noção de realidade, a um novo campo de possibilidades: o cinema, como diversas outras manifestações artísticas pode ser também o exercício da utopia.4 Posicionando a estética cinematográfica como uma consciência do poder de persuasão afetiva das imagens, próxima à noção einsenteiniana do 3 Como escreve Fiske (2009), ao contrário de serem valorizados por essas resistências do cotidiano, “as pessoas são humilhadas como ingênuos culturais por encontrar prazer ou satisfação neles”. Assim, parece fazer eco ao pensamento de Hall no sentido de não perceber o povo apenas como tolos culturais, “como uma força mínima e puramente passiva” (HALL, 2003, p. 254) ou à percepção de Williams onde não há massas, e sim apenas formas de se ver as pessoas como massas. 4 Segundo Scorsese, grande parte de Taxi Driver surgiu de sua convicção de que “os filmes são realmente uma espécie de estado-de-sonho, ou como tomar droga. E o choque de sair do cinema para a plena luz do dia pode ser aterrador. Vejo filmes a toda a hora e é-me sempre muito difícil acordar. Cada filme é isso para mim – esse sentido de estar quase acordado” (THOMPSON e CHRISTIE, 1989)

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sujeito histórico é a massa, o operariado, parece reforçar que, através desta percepção,

ano

Santos (2007) sugere que devemos evitar o extremismo do pensamento crítico, onde o

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resumir nossas definições de política a uma ação social direta ou prática: “isso seria

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encadeamento imagem/sentimento/ideia que ele proporciona ao espectador, temos com Barros (2008), a noção de que filmes também podem ser estudados como “produtos

que o produz”, isto é,

um dos centros hegemônicos capitalistas, a máquina de produção e consumo da sétima arte, Hollywood5, mas que aciona por vezes a possibilidade de subjetividades rebeldes, tanto na figura de seu autor, no caso, Scorsese, quanto na sua expressão autoral, o filme em si. É como desvendar o aparelho através do próprio aparelho, já que o extenso alcance e campo de atuação da obra, seu caráter de recepção popular massiva, também nos leva a vê-lo, através de decodificações diversas, como transmissor de potencialidades transgressoras. Embora “as indústrias culturais tenham de fato o poder de retrabalhar e remodelar constantemente aquilo que representam”, como assegura Hall (2003, p 254), impondo e implantando, na audiência, definições próprias do que seria o popular, esse mesmo público, embora em posição irregular e desigual com relação à cultura dominante, também demonstra potenciais para desorganizar e reorganizar a cultura popular, através Essa negociação com o poder hegemônico é uma turbulência assumida pelo diretor: O que é preciso para ser um cineasta em Hollywood? Mesmo hoje em dia ainda me pergunto o que é necessário para ser um profissional, ou mesmo um artista, em Hollywood. Como você sobrevive à constante queda de braço entre a expressão pessoal e os imperativos comerciais? Qual é o preço que se paga para trabalhar em Hollywood? Você acaba com dupla personalidade? Você faz um filme para eles, um para você?(SCORSESE e WILSON, 2004, p.17)

No presente artigo, trabalharemos a possibilidade desta potência política contestadora, por vezes flutuante, nas chaves da negociação e da resistência, em 5 Observamos historicamente Hollywood aqui, como Žižek aponta, como também um “aparelho ideológico do Estado” (2003, p.31), convocado quando necessário pela política norte-americana no sentido de divulgar e transmitir seus interesses.

M artin S corsese • B runo Costa - Thiago Pereira A lberto

de constantes formações de pontos de resistência e aceitação, de recusa e de capitulação.

expressão do popular midiático como potência política em taxi driver , de

Nossa leitura de Taxi Driver é a de uma obra que foi produzida no “coração” de

A

(...) a sociedade que o contextualiza, que define a sua própria linguagem possível, que estabelece os seus fazeres, que institui as suas temáticas. Por isto, qualquer que seja a obra cinematográfica – seja um documentário ou uma pura ficção- é sempre portadora de retratos, de marcas e de indícios significativos da sociedade que a produziu (grifos nossos) (BARROS, 2008, p.52-53)

you talking to me?”

Como todo produto, o cinema trata-se de um excelente meio para observação do “lugar

“A re

da história”, pensando-os como forma de se analisar a sociedade que os produziram.

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Taxi Driver, através de dois eixos de análise, voltados a noções relativas ao que investigamos como popular midiático. Em sua representação imagética notamos uma mento de leitura clássico hollywoodiano. Taxi Driver incorre, provocativamente, a certa estética tablóide, especialmente no que se refere ao caráter espetacularizante na construção de suas imagens, assumidamente pela busca de uma fotografia “Weegee6”,

do filme: como assume o diretor, “a ideia fundamental (era) fazer como se tratasse de um percurso entre um filme de terror e o Daily News de Nova Iorque” (THOMPSON e CHRISTIE, 1989). Em conjunto a essa representação visual, temos na obra o foco narrativo voltado para o sujeito anônimo, que insurge de forma radical contra a sociedade a que se vê inserido, mas que tem esse movimento, ao fim, captado e louvado pela mídia. O que nos possibilita inferir aqui o que Turner (2010) chamaria de “virada demótica”, as pessoas do povo protagonizando e ganhando voz em seus discursos em narrativas na cultura midiática global- mesmo que, neste caso, através da ficção. Quando a mídia, no final da película, dá visibilidade à Travis Bickle, um protagonista sob as vestes cotidianas de um motorista de taxi anônimo em Nova York, a intenção parece justamente fazer do anti-herói um herói; negociar o posicionamento crítico contido naquele sujeito. Portanto a noção do popular midiático se dá aqui na visada ao sujeito anônimo através de uma grande suporte- o cinema- e nas possibilidades de uso político, contestador, que podemos perceber nessa troca: um jogo que se faz muito além do que se vê na tela, pois se refere também ao potencial político, autoral e transgressor que a arte (como produto, inclusive) e o artista (como hacker de caixas pretas), são capazes de questionar, no equilíbrio entre as percepções e uso de elementos erudito-radicais e populares. 1.2 Scorsese e as maquinações dentro do sistema: contrabando Tanto Scorsese quanto (boa parte) de sua filmografia parecem se filiar às táticas sugeridas como alternativas de crítica anti-estabilishment, mesmo que também através da lógica do entretenimento. Afinal trata-se de um filme, Taxi Driver, de comprovada 6 Termo utilizado para se referir ao estilo do fotógrafo norte-americano Arthur “Weegee” Feelig, famoso por suas imagens hiper realistas da sociedade norte-americana dos anos 1950. Essa estética seria plenamente assumida e buscada pelo diretor em seu filme posterior, “Touro Indomável”, como ele assume em Biskind (2009, p.335) “Nós tínhamos a idéia de fazer o filme visualmente como um tablóide, como o Daily News, como as fotografias de Weegee”

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jornais diários populares norte-americanos; proposta reconhecida pelo próprio diretor

ano

relacionada a uma estética grotesca, gráfica, sem maiores filtros sensíveis, típica dos

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visível crítica e um nítido posicionamento provocativo e contestador ao enquadra-

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vocação/comunicação popular, que encontrou recepção calorosa do público7, crítica e da própria indústria desde que lançado, atestado em diversos níveis de sucesso. Por

sentido de se comunicar com um público abrangente8. As possíveis fronteiras entre o popular e radical nos interessam aqui para localizar com maior precisão o campo de atuação de Scorsese em sua busca por uma

principalmente se pensarmos que um pouco de sua radicalidade pode ser filtrada pela arte popular e como isso aumentar sua progressividade. Essa troca parece mesmo fundamental para se equilibrar as criações fílmicas que se propõem densas e críticas, mas que ainda assim busquem alcance comunicacional. Foi justamente Kael uma das figuras responsáveis por esmaecer as fronteiras impassíveis entre o dito cinema sério ou erudito e o cinema popular, comercial, a partir dos anos 1960, praticando o que Martel (2012, p.166) classifica como um “elitismo populista”, onde a grandeza de uma produção fílmica estaria também na sua capacidade de mesclar possibilidades da alta cultura com a energia de uma arte popular.

7 Taxi Driver conquistou renda de 12,5 milhões de dólares em um ano, o que indica sucesso comercial nos parâmetros da indústria cinematográfica. Martin Scorsese receberia a Palma de Ouro para o melhor realizador no Festival de Cannes de 1976. O filme foi nomeado para quatro Oscar da Academia: Filme, Ator Principal (Robert De Niro), Atriz Secundária (Jodie Foster) e Música Original (Bernard Herrmann). Não ganhou nenhum, mas recebeu muitos outros prêmios. Seu poder simbólico também foi notável: como informa Biskind (2009, p.327), logo no dia de sua estréia em Nova York, no dia 6 de fevereiro de 1976, “havia uma fila dando à volta no quarteirão, repleta de sósias de Travis Bickle: rapazes muito pálidos com cabelo reco, usando jaquetas militares” 8 Pensamos aqui no cotidiano da comunicação, onde a inteligibilidade da mensagem é mais importante que a novidade estética. Falando com Coelho Neto (apud Cauduro, p. 8, 2006) “as formas redundantes, pela repetição de suas soluções, são bastante previsíveis, sem maiores novidades, monótonas. Em troca, tendo uma baixa taxa de novidade elas apresentam uma baixa taxa de informação. Quanto maior a originalidade, o repertório e a desordem de uma mensagem, maior sua taxa de informação, maior sua complexidade, maior sua rejeição pelo público e menor sua audiência. Ou seja, maior sua imprevisibilidade,maior sua entropia e mais artístico (no sentido de avant garde) enquanto que os designers de vanguarda estão mais preocupados em inovar, em criar novas soluções visuais, em surpreender as audiências com sua inventividade e imprevisibilidade, aumentando a entropia da forma (FISKE apud Cauduro, p.8, 2006).

M artin S corsese • B runo Costa - Thiago Pereira A lberto

(...) o cinema é a continuação da vida por outros meios. A ruptura provada por Kael na avaliação dos filmes, e, além disso, na apreciação da cultura popular é essencial. Ela rompe com a linguagem polida, ‘costa leste’, que venera os filmes delicados ‘que nos fazem dormir com todo seu refinamento’, como escreve ela. Em seu lugar, valoriza um cinema americano que leva em conta a vida do homem comum e, sobretudo, através de um estilo próprio, a energia, a velocidade, a violência. Ela gosta de um elemento pop de um filme (MARTEL, Frédéric, 2012, p.164)

expressão do popular midiático como potência política em taxi driver , de

Fiske (2009) assume que a arte radical tem um papel importante em um sistema cultural,

A

linguagem cinematográfica negociada, não totalmente radical, não totalmente popular.

you talking to me?”

e a moral), Taxi Driver parece se enquadrar em um cinema popular em sua emissão, no

“A re

mais que tensione temas caros à sociedade de então (a política, o contato social, a ética

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Talvez possamos dizer esse elemento pop sugerido por Kael se relacione com a proposição fiskeana de que a ausência do radical, não condiciona o popular ao reacionário, hegemônico. Essa visada para o popular, no sentido do prazer e da satisfação, habilita o criador a fazer o que foi chamado por Jencks (1977) de double coding, usar o cinema como uma linguagem de duplo entendimento, trabalhar com referências em um produto final

que Fiske chama de trickery, Scorsese chama, habilmente, de contrabando. Enquanto o contrabandista trabalha furtivamente, e sua subversão não é detectada de imediato, o iconoclasta ataca de frente as convenções e sua rebeldia provoca ondas de impacto por toda a indústria. Em Hollywood, os iconoclastas abrangem os visionários, os desbravadores e os renegados, que desafiaram abertamente o sistema e expandiram as fronteiras da arte. Muitas vezes eles foram derrotados; mas chegaram a fazer o sistema trabalhar a seu favor. Hollywood sempre teve uma relação de amor e ódio com aqueles que violam suas regras, exaltando-os num momento e queimando- os no momento seguinte (SCORSESE e WILSON, 2004, p.159)

Nesse sentido, e pensando na carreira do diretor como pautada por estes contrabandos (e não pela iconoclastia) acreditamos que podemos pensar em Taxi Driver como uma obra que não transita numa linhagem de arte radical, opaca, inflexiva ou hermética, no sentido de que se expressa e se comunica tanto em termos dialógicos com o grande público, quanto com alguns padrões clássicos da linguagem cinematográfica, mas que ao mesmo tempo a tensiona, a provoca, furtivamente. Não surpreende que a própria Kael (1994, p.463)9, em sua referencial crítica no New Yorker ao filme tenha o notado como “uma força feroz, uma versão crua, ‘tablóide’ de ‘Notas do Subsolo” de Dostoievski” que dá a “à vida nas ruas um rico sabor de coisa barata” ou Biskind (2009) perceber diálogos nítidos entre força narrativa do cinema norte-americano de Scorsese com a beleza e radicalização estético-imagética dos cineastas europeus. Se não podemos afirmar que estas referências saltaram aos olhos dos espectadores majoritários do filme; podemos considerar que elas estavam lá, plenas de intenção estética, e que reside na comunhão entre os dois mundos (o cotidiano legível aliado as referências possíveis à alta cultura) muito da força de Taxi Driver. Ao mesmo tempo, Scorsese assume inverter o código vigente da indústria (a leitura popular como 9 Já no filme anterior de Scorsese, “Caminhos Perigosos” (Mean Streets), Kael (1994, p.85) atentava para a audácia imagética do diretor, dizendo que ele mostrava uma “podridão de textura mais densa do que jamais vista em um filme americano, e um maduro senso de maldade”

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quanto o do popular. Podemos enxergar isso como mais uma tática dentro do jogo: o

ano

que tanto façam sentido e satisfaçam os desejos intelectuais tanto da alta cultura tanto

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a um lugar de repouso artístico, cúmplice, ou completamente incorporado ao sistema

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simples entretenimento) no sentido de trazer uma idéia de realismo para o que chama de “diversão sadia”.

ou classes estabelecidas10. A raiva e a tentativa de subversão parecem ser elementos naturais no diapasão produtivo do diretor; algo que se espalha por grande parte de sua cinegrafia. Biskind (2009) faz uma interessante observação pessoal a respeito da visão de mundo do cineasta: “Marty evitaria conflitos ao máximo, e aprendeu a deixar que outras pessoas- seu agente, seus amigos- lutassem por ele. Expressaria sua raiva nos filmes. Sempre viveria mais feliz em sua imaginação” (BISKIND, 2009, p.237). Essa parece mesmo ser uma das réguas que orientam o fazer cinematográfico do diretor

Essa busca pelo real vale dizer, não era exclusividade de Scorsese; assemelha-se a uma marca geracional11 já que diversos cineastas norte-americanos e contemporâneos 10 E, por muitas vezes, foi criticado por ambas as partes: quando teceu um retrato enegrecido e violento da comunidade italiana de Nova Iorque onde foi criado (Little Italy, uma subcultura cravada no Lower East Side), com seu longa “Caminhos Perigosos”, (Mean Streets, 1973), conseguiu desagradar os locais. “Quem ele pensa que é? Ele é um de nós” revela Biskind (2009, p 253), sobre as reações de membros da comunidade ítalo-americana ao ver o filme. Recentemente, em 2013, conseguiu reunir com habilidade tanto o lado de diversão quanto seu indelével traço crítico em “O Lobo de Wall Street” (The Wolf Of Wall Street, 2014), firme (e prazerosa, no sentido de entreter) crítica à ganância e a amoralidade ética dos “novos ricos” norte-americanos da década de 1980. 11 “Nós éramos só uns caras que queriam fazer filmes, e sabíamos que a qualquer momento poderíamos ser destruídos pelo pessoal dos estúdios”, assumiu Scorsese em entrevista a Peter Biskind (2009, p 13)

M artin S corsese • B runo Costa - Thiago Pereira A lberto

Não creio que haja qualquer diferença entre fantasia e realidade quanto à maneira como ambas devem ser abordadas num filme. Claro que se vivermos desse modo somos clinicamente doentes. Mas num filme posso ignorar essa fronteira. Em Taxi Driver, Travis vive isso até ao fim, vai mesmo até ao fundo e depois explode. Quando li o roteiro do Paul (Schrader) compreendi que era precisamente dessa maneira que eu sentia que todos têm esses sentimentos, portanto isso era uma maneira de abarcá-los e admitir, embora referindo que não me deixavam satisfeito (...). Era um modo de exorcizar essas sensações e tenho a impressão que De Niro sentiu isso também (THOMPSON e CHRISTIE, p.98, 1989)

expressão do popular midiático como potência política em taxi driver , de

nematográfica, frequentemente acompanhado de algumas diatribes contra convenções

A

de buscar referências do cotidiano, do ordinário) em grande parte de sua produção ci-

you talking to me?”

Scorsese constantemente moldou e trabalhou com a idéia de realidade (no sentido

“A re

A indústria do cinema frequentemente confundiu entretenimento com escapismo. Inspirar-se na vida real era considerado ou maçante ou subversivo- sobretudo se isso significasse investigar em profundidade. Mas desde a época do cinema mudo alguns poucos cineastas desafiavam os ideais de glamour e, como uma diversão sadia, injetavam uma dose de realidade em seus filmes, geralmente dentro da moldura do melodrama (SCORSESE e WILSON, 2004, p.159)

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de Scorsese viraram suas lentes para uma espécie de busca pela verdade, submergindo algo que se aproxima da idéia de que. “o importante não é ver como o conhecimento (SANTOS, 2007, p.33). Ou seja: trata-se de cinema como produto da historia. Esse período, que abarca cineastas e produções do final dos anos 1960 até o início dos anos 1980, foi chamado de “Nova Hollywood”, justamente por tentarem se equilibrar com a marca

e as companhias haviam sido absorvidas por grandes corporações gigantescas” (SCORSESE e WILSON, 2004, p.16). Não surpreende, portanto, pensar na quantidade de tramas políticas, sociais, jornalísticas ou investigativas que foram filmadas no período, por diferentes diretores. Desde o clássico da violência gráfica que de certa forma inaugurou essa geração, como “Bonnie & Clyde”, de Arthur Penn, passando por Alan Pakoula (“Todos os Homens do Presidente”), Sidney Lumet (“Um Dia de Cão”), Francis Ford Coppola (“A Conversação”); além do roteirista de Taxi Driver Paul Schrader; também diretor de filmes, notoriamente obcecado com a ideia do sexo marginal e anônimo em obras como “Hardcore- No submundo do sexo” e “Gigolô Americano. Filmes realizados em um mesmo período, o final dos anos 1970, época em que “a cultura do cinema permeava a vida americana como nunca havia acontecido e nunca mais aconteceria”, como lembra Biskind (2009, p.16). Isso diz de um terreno propício para os diretores transgredirem e encontrarem alguma interlocução com as audiências. A noção de cinema de autor era uma meta, um parâmetro, deslocando o telespectador menos para os grandes astros e mais para os filmes em si, filmes estes que buscavam uma assinatura autoral fortíssima. Como colocou Sontag (1996, p.61), tratava-se de um momento em que “ir ao cinema, pensar sobre cinema, falar sobre cinema tornou-se uma verdadeira paixão entre estudantes universitários e outros jovens. Você se apaixonava não pelos atores, mas pelo próprio cinema”. Uma comunhão ideal para o desejo natural de seus diretores por reconhecimento autoral- e neste processo estava implícito derrubar um “inimigo” ... o sonho da Nova Hollywood transcendia a individualidade de cada filme. Em seu aspecto mais ambicioso, a Nova Hollywood era um movimento determinado a libertar o cinema de seu irmão gêmeo do mal, o comércio, tornando-o capaz de voar alto, cortando a atmosfera rarefeita da arte. Os cineastas dos anos 1970 pretendiam derrubar os estúdios, ou pelo menos torná-los irrelevantes, por meio da democratização do processo de fazer filmes, colocando-os nas mãos de qualquer um com talento e determinação (BISKIND, 2009, p.16)

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próprio Scorsese, quando ele começou sua carreira “o studio system havia desmoronado

ano

autoral dentro da mudança do sistema de gerenciamento dos estúdios. Como nota o

Revista GEMI n IS |

representa o real, mas conhecer o que determinado conhecimento produz na realidade”

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Talvez possamos dizer que eles tentaram realizar essa façanha através de algumas leituras do que investigamos aqui como “popular midiático. Taxi Driver é

Essa safra pautada por uma busca pela representação realista gerou uma

protagonista de Taxi Driver. Em uma atuação memorável de Robert De Niro, a trajetória de Bickle ilustra essa necessidade dos autores da época de enquadrar subjetividades marginais e, a priori, anti-heróicas. Neste caso, voltando às lentes para o cotidiano de um taxista insone na cidade de Nova York como forma de ilustrar o contexto político dos Estados Unidos pós- Vietnã12 na década de 1970, em crise política, econômica e moral. A construção de um personagem como Bickle é onde Scorsese parece reconhecer o poder da micro-história, reduzindo a escala de observação social para encontrar importantes táticas de subversão. Se pensarmos, com Ginzburg (2007, p.263) que “a micro-história opta por tentar recolher os rastros (...) para jogar luz sobre uma série documental mais ampla”, é este olhar aproximado que nos ajuda a entender algo que ficou fora da visão de conjunto. Se pensarmos na noção de me generation como colocou Tom Wolfe, a respeito do fim dos sonhos contraculturais da década de 1960 e sequente egoísmo e evasão coletiva na década seguinte, talvez possamos enxergar Travis Bickle como a afirmação de que o senso de rebeldia abrasante dos anos 1960 permaneceu em amor, e sim pela violência e desilusão solitárias. Importa menos aqui o fato de Bickle ser um personagem ficcional do que a possibilidade dele ser um personagem- um ser humano- possível de existência. Ainda falando com Ginzburg (2007, p. 277), se “toda construção macro social é resultado de um emaranhado de incontáveis estratégias individuais”, é através de um taxista anônimo que o diretor tenta significar parte da cultura de uma classe subalterna, popular, excluída (a solidão tem seguido Bickle, que é como afirma, “o único homem de Deus”), que também repousa inquieta em nosso tecido social: o anônimo com potência da revolta, uma subjetividade rebelde. Não parece gratuito que, em dado momento do filme, a personagem Betsy, atenta à sensibilidade diferente do taxista, caracteriza 12 Essa temática do trauma pós-guerra do Vietnã seria trabalhada também em outros filmes, como “Olá Mamãe” (Hi Mom!, 1970) de Brian de Palma, “Amargo Regresso” (Coming Home, 1978), de Hal Ashby e “O Franco-Atirador” (The Deer Hunter, 1978), de Michael Cimino.

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algumas esferas, sob diferentes termos. A convulsão social não seria gerada pelo paz e

expressão do popular midiático como potência política em taxi driver , de

de contravenção em relação ao sistema, de onde destacamos aqui Travis Bickle, o

A

grande galeria de personagens cotidianos, anônimos, urbanos, e carregados de signos

you talking to me?”

2. Taxi Driver: “Aqui está alguém que se opôs!” ou a potencia política do anônimo

“A re

seguramente umas das maiores realizações desta geração neste sentido.

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Bickle (citando uma canção de Kris Kristofersson) como um “Profeta e um traficante/ meio verdade, meio ficção/ Uma contradição ambulante”. dejeto social da América no começo dos anos 1970, no contexto em que está inserido. Fica evidente o interesse e fascínio do diretor em dar voz a ele, como se ele acreditasse que, como vítimas da exclusão social, pessoas como Bickle “tornam-se os depositários do único

do marginal, do bandido- ou do contrabandista, para localizar o papel do diretor nesse encadeamento- parece contemplada nessa crença, em uma espécie de romantização, ou como Ginzburg (2006, p.18) aponta, “um populismo às avessas, um populismo negro, mas ainda assim, populismo”. Logo nas rondas iniciais, se destaca um letreiro em neon, gritando “Fascination”13. Esta ambigüidade perversa - a violência fascinante e nossas vidas tão normais, para citar a canção de Renato Russo14 - conduz o filme todo o tempo. No início da película, Bickle se explica na empresa de taxis onde vai procurar emprego, justificando sua escolha: “Só quero trabalhar muitas horas”, colocando o trabalho como cura para sua insônia crônica, um típico mecanismo da lógica capitalista, o labor como escapismo, mas que, podemos perceber durante o filme, é uma tentativa equívoca de escapar de seus questionamentos existenciais. No decorrer da história, Bickle percebe o jogo de forças que, silenciosamente, condicionava sua existência. Estes questionamentos repousam sob um diário onde ele escreve, e são estes escritos que de alguma forma roteirizam a alma e o estado de espírito do personagem durante todo o filme. “10 de maio” anota ele. “Obrigado Deus pela chuva que limpou todo lixo e porcaria das calçadas”. Essa sujeira persegue Travis, que toda noite tem de limpar “sangue e esperma” dos bancos de trás de seu carro, e ganha representação visual pelas lentes de Scorsese através de tomadas escuras contrapostas às noites néon nova-iorquinas; na predileção pela cor rubro-sangue da textura de algumas imagens, na agressividade exposta em relação às minorias sociais que desfilam pelo filme, como negros e gays. Soma-se a isso muitos quadros fechados no olho do taxista, autenticando a visão de Bickle como fio condutivo da narrativa, o flanêur obsessivo (numa tensa simbiose entre homem e carro), o voyeur amargurado que não consegue reprimir seus sentimentos mais obscuros. Em certo momento ele assume: “O que minha vida precisa é de direção. Não 13 Segundo Scorsese, “a construção do espaço urbano, a multidão, o caos,a cidade como portadora das maiores impurezas sociais, o acúmulo de lixo. Há um plano em que a câmara está montada no capô de um táxi e passa pelo anúncio de “Fascination” que fica mesmo por debaixo do meu escritório. É essa ideia de estar fascinado, deste anjo vingador flutuando através das ruas da cidade, que representa todas as cidades para mim” (THOMPSON e CHRISTIE, 1989) 14 “Baader Meinhoff Blues”, presente no primeiro álbum da Legião Urbana (EMI, 1985)

6 - n. 2

um discurso que passa pelo delito e pelo canibalismo” (GINZBURG, 2006, p.18) A figura

ano

discurso que representa uma alternativa radical às mentiras da sociedade constituída-

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Bickle inicialmente é posicionado como uma espécie de anomalia, um descartável

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acredito que a vida deva ser dedicada à morbidez do egocentrismo. Temos de nos tornar pessoas como quaisquer outras”. O que ele parece buscar é uma espécie de normalidade, diante

assistindo filmes pornográficos. Ou seja, Bickle parece automatizado a aquele habitat. Toda essa caracterização, espécie de auto-análise, enfatiza o fato de que o filme se constrói em seu olhar, e que

do sonho, constrói-se uma atmosfera de pesadelo acordado, o retrato paranoico de um sujeito que se mantêm constantemente em alerta, em estado de vigilância. Chama a atenção essa inversão: em um primeiro momento, não é o mundo que vigia o homem do povo; é o homem do povo que parece vigiar o mundo. Em uma cena marcante, o próprio Scorsese se junta como personagem desta fauna urbana, numa “ponta” como um passageiro no banco de trás que paga uma corrida para observar o adultério de sua mulher com um homem negro pela janela de um apartamento. “Já viu o que uma Magnum 44 faz com a cara de uma mulher?” pergunta, tanto a Bickle como ao próprio espectador, e segue, sublinhando seu recado aos que assistem ao filme: “Aposto que você pensa que sou doente, não?”. Em uma habilidosa gangorra entre opacidade e transparência, criador encontra sua criatura e ambos ali parecem passar uma mensagem de forma vulgar e explícita: tematizam uma espécie de falência do humanismo, onde a violência, a misoginia e o racismo são apenas algumas peças desse vaso quebrado. o senador e candidato à presidência Charles Palantine, parece encontrar ali um foco, um despertar. Ele descobre na bela loira interpretada por Cybill Shepherd seu “anjo no meio da porcaria” e garante que esta ali para “proteger ela”. A partir do momento em que o relacionamento fracassa, Bickle parece viver um momento epifânico, compreendendo a essência das coisas que o cercam: do político falsamente sanitizador (como ele ameaça para Betsy: “Você está no inferno, e vai morrer no inferno”), ao amor incomunicável. Essa virada pessoal também é ilustrada por uma imagem estranha e polêmica, absolutamente fora dos padrões e muito comentada até hoje: um plano detalhe em uma pastilha efervescente em um copo de água15, espécie de metáfora para a diluição daquela noção 15 Segundo Biskind (2009, p.320), Stanley Jaffe, vice-presidente-executivo de produção da Columbia , estúdio que lançou o filme, não gostava da cena em que De Niro ficava olhando a aspirina borbulhar em seu copo. “Jaffe não tinha o menor interesse em homenagens a Godard e outras frescuras de faculdade de cinema e chamava a cena de comercial de Alka-Seltzer”

M artin S corsese • B runo Costa - Thiago Pereira A lberto

Quando Bickle se encanta com Betsy, funcionária de um comitê político para

expressão do popular midiático como potência política em taxi driver , de

fantasia.Sua falta de sono provém uma espécie de onírico às avessas, onde ao invés

A

muitas vezes trata-se de um olhar que parece se pautar num embate entre o real e a

you talking to me?”

ao mesmo tempo em que tenta fugir desse mundo que o cerca, passa seu tempo livre

“A re

dos “animais noturnos” com quem circula: “putas, sodomitas, bichas, tarados, drogados”; mas

70


de “sanidade” do motorista de acordo com os padrões sociais hegemonicamente estabelecidos e, conseqüentemente, o início de seu despertar particular diante daquela Na seqüência, temos um diálogo revelador de algumas questões expostas na obra como ação e reação, popular e radical: o momento que Bickle desajeitadamente desabafa com um colega de profissão mais experiente, ironicamente batizado de

-“Só quero sair daqui e realmente fazer alguma coisa”, responde Bickle -“Veja, você pega um emprego. Esse emprego se transforma no que você é. Não temos chances, de qualquer forma. Estamos todos, mais ou menos fodidos sabe? Não é Bertrand Russel, sou apenas um motorista de táxi”. Bickle então parte para a (re) ação. Encontra-se com um vendedor, em busca de uma arma (pois pretende assassinar Palantine com as próprias mãos), e o que vemos a seguir na tela é um verdadeiro workshop de armas de fogo, onde durante alguns minutos o espectador é iniciado nas mais variedades de revólveres, pistolas, munições, acompanhados de adjetivos como “beleza”, com Scorsese assumindo sugestivos takes em cada uma; além disso, o traficante oferece um extenso cardápio de drogas e opiáceos. O caráter didático que o diretor imprime a cena soa provocativo. Outra cena, pouco depois, soa como outro recado ao sistema hollywoodiano, desta vez mais sutil. É o momento em que Bickle se entedia em frente à TV, assistindo uma espécie de novela melodramática em casa, se irrita e derruba violentamente o aparelho. Dessa constatação, Bickle se transforma em gestor de si, que precisa se limpar, buscar “organização total” e “colocar os músculos no lugar”, já que “ficar sentado durante todo esse tempo” (assim como o espectador do filme, nos perguntamos aqui?) o deixou muito mal. A violência é sua chave na busca por visibilidade e aquele anônimo crescentemente incomodado, mas passivo, se transforma na guerra de um homem só, o anjo exterminador, que passa parte de seus dias acoplando armas de fogo junto ao corpo planejando o atentado contra o político. Usando o recurso do olhar face à câmera, onde o ator (e o autor) se dirige diretamente ao espectador (que assim, brechtianamente, passa também a ser considerado não mais como uma testemunha passiva do filme, mas um sujeito “capacitado” a participar dos questionamentos morais do espetáculo) Bickle, arma apontada para a câmera, pergunta no espelho, “Are you talking to me?” (“Você está falando comigo?”). Sumariza-se nesta pergunta o que parece ser o núcleo central desse poder político do anônimo em “Taxi Driver”: sob o signo da violência o autor convoca o

6 - n. 2

-“Te deixaram abater”

ano

“Bruxo” (Wizard):

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loucura. O jogo começa a se inverter, sutilmente.

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espectador, através tanto da linguagem cinematográfica, quanto da narrativa fílmica, a compartilhar da potência rebelde que construiu em seu protagonista. É a crença de

popular, ordinário, que atenta o público para negociar os significados que estão sendo expostos na tela. Mas seus planos de assassinar o político falham, e a aparição da prostituta

própria, dejetos que ainda não foram devidamente varridos para debaixo do tapete, como o cafetão da criança, Sport. É quando Bickle se vê- e a vê- como uma última possibilidade de fuga de um mundo condenado. Percebe na garota a chance de impor alguma ordem e justiça num sistema que está falido eticamente, pois ela é mais uma desprotegida com quem se identifica e se sente protetor, um rastro de santidade que aciona sua captura pela sanidade. Quando Travis então promove a carnificina final, assassinando Sport, um funcionário e um cliente do bordel onde a menina trabalhava, ele parece estar, finalmente, “limpando a sujeira das ruas”, que o manteve acordado durante tanto tempo e que lhe dava “dores de cabeça”. É o momento mais gráfico e espetacular de Taxi Driver, oferecendo ao espectador um banho de sangue na tela, além de corpos espalhados pelo chão e planos-detalhe de membros feridos e cortados: a realização mais completa da estética tabloide ao qual o diretor de propôs desde o início. No último quadro desta cena, vemos Bickle, banhado em sangue, apontando um gatilho imaginário com os dedos contra sua cabeça,

3. Conclusão Um dos centros focais da revolta de Bickle é, obsessivamente, ilustrado pelo slogan de campanha do senador Palantine: “We are the people” (Nós somos o povo), durante o filme. A representação deste povo ganha leituras antagônicas nítidas na lente de Scorsese. Uma através de um sujeito oprimido, automatizado pelo trabalho; que em um primeiro momento, parece acampar a ideia de um poder político salvador que se alinha, se filia a este popular anônimo. A partir do momento em que ele se desilude com essa noção e percebe que o povo não está ali, passa a maquinar uma espécie de vingança: desloca a noção para outro âmbito, agora com um caráter de resistência -“Aqui está alguém que se opôs!”.

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depois de tentar se matar com uma arma de verdade e não conseguir.

expressão do popular midiático como potência política em taxi driver , de

ração. No meio da sujeira ele realiza uma nova possibilidade de “limpar”, por conta

A

mirim, Iris (interpretada por Jodie Foster) é o novo grande motivo de sua transfigu-

you talking to me?”

hegemônico; é a atuação de um contrabandista ideológico, por meio de um personagem

“A re

um fazer cinematográfico resistente, mesmo que produzido dentro de um sistema

72


Só que, apesar do final feliz, mesmo que enigmático, narrativamente falando, de “Taxi Driver”, é a frustração que parece dar o tom do encerramento do filme, como que não conseguiu “reprogramar” o aparelho, e tivesse de aceitar um encerramento mais “vendável”, menos entrópico, para a película. Pode ser até curioso pensar que ele atingiu o limite de representação junto com os tabloides- uma prática jornalística

Como sinalizou Kael, no início deste artigo, seu discurso e ação parecem capturados e vendidos como notícia de jornal e Bickle se transforma, momentaneamente, em um sujeito pronto para consumo e louvação provisória das grandes audiências, um dejeto que se reconcilia com a sociedade. O renovado interesse de Betsy por ele, na cena final, parece apenas confirmar isso. A despeito de toda a negação posterior, após uma espécie de embate, Bickle parece estabelecer uma negociação com o sistema, quando se vê iluminado pelas páginas do jornal. Pela mídia ele parece ter ganhado autorização para ter atuado da forma que atuou, como se ela autenticasse sua revolta e garantisse, finalmente, sua visibilidade. E se Travis está na capa dos jornais é porque ele, momentaneamente, ganha algum relevo. “Se você está na capa da Newsweek (importante semanário norte-americano), como Lynette Fromme (uma das assassinas da Família Manson), você é importante. O motivo pelo qual você está na capa não é importante” (BISKIND, 2009, p.328), disse o roteirista do filme, Paul Schrader. Quando o jornalismo, no final da película, troca as vestes cotidianas às raias da insanidade de Travis Bickle pelo cetro de um herói do povo, a intenção parece ser esvaziar qualquer possibilidade de posicionamento crítico contido naquele sujeito. Mas, ao mesmo tempo, podemos perceber a figura de Bickle sendo acionada por várias gerações posteriores de espectadores do filme, como referência de rebeldia anti-estabilishment, como se a fúria original dele se preservasse, decodificada como resistência ao longo dos anos. Transformou-se em ícone pop16, teve parte de sua radicalidade filtrada o que, acreditamos, nem sempre significa concluio ou aceitação passiva. “Are you talking to me?” é uma pergunta que de certa forma se transformou em afirmação, de uma cultura popular ativa, disposta a negociar sentidos. Se tanto o mundo real quanto o ficcional não “falam” com Scorsese e Bickle, nesta cenae em todo o filme- o diretor suplica ameaçadoramente um diálogo possível com sua audiência. 16 Impossível não lembrar aqui que, durante anos, era a figura de Travis Bickle pintada na porta, quem recebia os freqüentadores do bar A Obra, em Belo Horizonte, espécie de ícone da resistência underground da capital mineira

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se matar, o sistema, via mídia, recupera-o como herói fugaz, o homem do momento.

ano

comum é não noticiar suicídios. Em seqüência da tentativa não consumada de Bickle

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proposta política. Um sentido de falha e resignação, como se Scorsese assumisse

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Talvez possamos afirmar que esse movimento coincide com o papel não iconoclasta (e sim contrabandista) de Scorsese em Taxi Driver em relação ao sistema

um sistema de imagens mais opaco e radical, questionando a ideologia dominante através da experiência social de uma visão particular de um grupo, no caso, de um exemplar popular. O que temos em Taxi Driver, portanto, é a experiência do popular

codifica rebeldia em efemeridade; da recepção do público que recodifica esse jogo de forma ativa e crítica. Referências bibiliográficas BARROS, José D´Assunção. Cinema e história: entre expressões e representações. In: Cinema-História: teoria e representações sociais no cinema. NÓVOA, Jorge & BARROS, José D´Assunção. Rio de Janeiro: Apicuri, 2008 BISKIND, Peter. Como a geração sexo, drogas e rock n ´roll salvou Hollywood. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2009 CAUDURO, Flávio Vinícius. Comunicação gráfica e pósmodernidade. Revista da Associação dos programas de pósgraduação em comunicação social (COMPÓS),Abril de 2006

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M artin S corsese • B runo Costa - Thiago Pereira A lberto

EAGLETON, Terry. A idéia de cultura. São Paulo: Edirora UNESP, 2005

expressão do popular midiático como potência política em taxi driver , de

com a própria potência do cinema como produtora de sentidos; da visão da mídia que

A

midiático em diversas camadas; da potência política do anônimo que se amalgama

you talking to me?”

tabloides cotidianos e as referências a uma experiência cinematográfica que tangencia

“A re

que o perturbava artisticamente: uma leitura mediada entre a violência gráfica dos

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KAEL, Pauline. Metamorphosis of The Beatles, New Yorker, 30 de novembro de 1968

SCORSESE, Martin & WILSON, Henry. Uma Viagem Pessoal

Revista GEMI n IS |

pelo Cinema Americano. São Paulo: Cosac Naify, 2004.

ano

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Resenha: O cinema (de) (de) Chomón

segundo

Charles B icalho Doutorado pela Faculdade de Letras da UFMG em Literatura Brasileira. Pós-doutorado nos Estados Unidos, junto à Universidade do Novo México, com bolsa da CAPES, 2012-13. Professor de Design Gráfico na Escola de Design da Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG). E-mail: charlesbicalho@gmail.com

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ano

6 - n. 2 |

p.

76-81


Resumo O livro de Paulo Roberto Barbosa, Do truque ao efeito especial: o cinema de Segundo de Chomón (São Paulo: Terceira Margem, 2014), traça a trajetória do “maior operador de truques de todos os tempos”, como é reconhecido o espanhol que trabalhou para Méliès e para a Pathé, além de fundar a primeira produtora de filmes da Espanha. Colorista, fotógrafo, diretor, roteirista, documentarista, além de pioneiro na animação, Segundo de Chomón, que foi sobretudo um mestre nas trucagens de efeitos especiais e visuais, também desenvolveu métodos pioneiros de colorização para o cinema. O livro de Paulo Roberto Barbosa é não só uma biografia de um dos maiores talentos que o cinema já teve, mas também uma historiografia da arte cinematográfica. Palavras-chave: Efeitos Especiais; Cinema; Chomón.

Abstract The book Do truque ao efeito especial: o cinema de Segundo de Chomón (São Paulo: Terceira Margem, 2014) (From trick to special effect: the film according to Segundo de Chomón), by Paulo Roberto Barbosa, traces the trajectory of the “biggest cinema tricks operator of all times,” as it is recognized the Spaniard who worked for Méliès and Pathé. He found the first film production company in Spain as well. Colorist, photographer, director, screenwriter, documentary filmmaker, and a pioneer in animation, Segundo de Chomón, which was rather a master in special effects, also developed pioneering colorization methods for film. The book of Paulo Roberto Barbosa is not only a biography of one of the greatest talents that cinema has ever had, but also a history of cinematic art. Keywords: Efectos especiales; Cine; Chomón.


78 Revista GEMI n IS |

mesmo Thomas Edson, dentre outros. Mas, como se pode verificar em obras

clássicas sobre a historiografia cinematográfica, como O primeiro cinema, de F. Cesario da Costa, ou Do cinestocópio ao cinema digital: uma breve história do cinema americano, de A. C. Gomes de Mattos, ou Tudo sobre cinema, de P. Kemp, o nome do espanhol Segundo de Chomón sequer é citado. Daí a importância do trabalho de pesquisa e da publicação dela em livro por Paulo Roberto Barbosa. O livro do ilustrador, professor, escritor e pesquisador mineiro, intitulado Do truque ao efeito especial: o cinema de Segundo de Chomón, se inicia com uma introdução histórica sobre o início da atividade cinematográfica no mundo, que se confunde com a ida do espanhol Segundo de Chomón para a França em 1895, “à procura de oportunidades.” Tido como “o maior operador de truques de todos os tempos”, Chomón foi um visionário. Segundo Joan M. Minguet, no Prólogo ao livro, ele foi também “o cineasta espanhol mais internacional do período mudo.” Em Paris Chomón trabalhou para Georges Méliès e para a Pathé, antes de inaugurar sua própria produtora, a primeira da Espanha. Para o mestre francês, fazia o trabalho de colorista. E inovou, criando um método de colorização (“iluminação” como se dizia à época) que agilizava o trabalho. Após sua primeira ida à França, Chomón retorna à Espanha, onde, em Barcelona, cria a produtora Macaya y Marro, com Luis Macaya e Alberto Marro. Mais tarde, retorna a Paris para trabalhar para a Pathé Frères, onde assume a divisão de truques. São desse período, por exemplo, os filmes O rei dos dólares, O mergulhador fantástico, Uma noite apavorante e Ah, a barba, todos do ano de 1905. Nessas produções, Segundo de Chomón lançava mão de todo tipo de trucagem, como a pausa para substituição, o movimento reverso, a sobreimpressão, o cache (que consistia em filmar com uso de máscara, rebobinando o filme para filmar novamente sem a máscara). Como diretor, a obra de Segundo de Chomón nasce no período de transição entre o cinema de atrações e a tendência à narrativização. Daí seu acervo de filmes ser marcado por intensa experimentação, como reflexo do abandono de velhos procedi-

6 - n. 2

consagrados de George Méliès, dos irmãos Lumière, dos irmãos Pathé e até

ano

Q

uando se lê sobre o Primeiro Cinema, sempre nos deparamos com os nomes


mentos e a busca de uma nova linguagem. Barbosa nos conta que na primeira década do século XX, a Pathé dominava 60% do mercado de filmes nos Estados Unidos, sobretudo gráfica ao preço de um níquel. Nessa época, Chomón trabalhava, em ritmo frenético, truques da empresa francesa. Em 1908, Chomón faz uso, pela primeira vez, da técnica do stop motion, inspirado por O hotel assombrado (1907), do norte-americano Stuart Blackton, pioneiro da técnica. O filme de Chomón se chama A casa enfeitiçada. Usando a mesma técnica de animação Chomón”, em que ilustra escovas e flanelas a engraxar botas, sem a interferência humana, ou escovas animadas a pentearem sozinhas os cabelos da moça. Até uma escrita “automática” é realizada por uma caneta “viva” sobre um postal. Seu domínio da técnica era tal que chegou a ser considerado o maior estilista do stop motion à época. Filmes como O sonho dos cozinheiros (1908), Sinfonia bizarra (1908) e Escultor moderno (1909) corroboram a fama. Chomón passeou também pelo travelogue, gênero cinematográfico comum naquela época, que apresenta “registros visuais trazidos de terras longínquas”. A palavra vem do inglês: travel + dialogue. Ou seja, são filmes que comunicam experiências de viajantes, com acentuado toque de aventura. Méliès foi o precursor, com seu Viagem à Lua (1902), que chegou a ser imitado por Chomón a pedido de seu empregador, a Pathé (a refilmagem de grandes sucessos era prática corrente também naquela época). Mas Chomón realizou a sua própria obra-prima do gênero que, de certa forma, prenuncia os filmes de ficção científica: Excursão a Júpiter (1909), uma “mistura de conto de fadas e travelogue espacial (...) traz uma série de truques e pirotecnias do espanhol, numa fase em que o diretor experimentava em muitas direções.” Conforme Juan Gabriel Tarrats, citado por Barbosa, Chomón seria o primeiro a usar a animação de silhuetas no cinema. A técnica está a serviço do absurdo no filme Uma excursão incoerente (1909), sobretudo na cena do pesadelo de um dos protagonistas. Em 1909 chega ao fim a era do filme de atrações. Caem no gosto da audiência os filmes narrativos. A produção se torna massiva e esquemática, tomando o lugar do artesanal. Em 1910, Chomón deixa a França e retorna para a Espanha. Em Barcelona encontra na pessoa do empresário Joan Fuster Garí o sócio de que necessitava para abrir sua nova companhia. Nasce, assim, ainda em 1910, a Chomón y Fuster, “uma das mais importantes empresas cinematográficas do período mudo espanhol, não obstante sua curta vida de oito meses.” Finada a companhia, Chomón se torna realizador independente de

Chomón • Charles B icalho

quadro a quadro, ele realiza, ainda em 1908, Hotel elétrico, o “mais emblemático filme

cinema (de) segundo (de)

como fotógrafo, iluminador (colorista), operador de trucagens e diretor, na divisão de

Resenha : O

fornecendo as películas para os nickelodeons, que eram armazéns de exibição cinemato-

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documentários para a sucursal espanhola da Pathé. Esses filmes, que geralmente trazem imagens de cidades históricas e pontos turísticos da Espanha e Portugal, são coloridos Em 1911, surge, de uma parceria entre Chomón e Garnier, a Ibérico Film, outra produtora incumbida de fazer filmes de conteúdo espanhol para a Pathé francesa. É dessa fase Metamorfoses (1912), um pout-pourri de seus melhores truques para mostrar

visuais para o espectador, mas introduzi-lo numa realidade ficcional construída a partir de recursos estritamente cinematográficos.” Em 1912 vem a fase italiana, em que Chomón trabalhará como diretor, fotógrafo e operador de truques, até meados de 1920. O espanhol foi contratado pela Itala Film, com um salário de mil libras, quando a média na época ficava entre 125 e 150 libras. Grandiosos também eram os projetos da companhia, como Cabíria, visão histórica do terceiro século antes de Cristo (1914), superprodução originalmente planejada para durar três horas (a cópia disponível hoje em dia tem 126 minutos). Chomón inovou na iluminação do filme, considerado um marco em termos de luz artificial. Erupção vulcânica, pesadelo e cenas dançantes, também são contribuições da artesania de Chomón para o épico italiano. Com o fim da I Guerra, a Europa é assolada por graves problemas, como fome, desemprego, inflação, etc. O dinheiro é escasso e as produções cinematográficas não são prioridade. Sequer película virgem é fácil de se conseguir. O foco do cinema sai da Europa e migra para os Estados Unidos. O cinema europeu se desintegra e Chomón naturalmente não vive uma grande fase: trabalha para a companhia Albertini Film bolando trucagens acrobáticas para a famosa dupla Luciano e Linda Albertini. Em 1920, Chomón se une ao fabricante de câmeras suíço Ernest Zollinger para inventar um sistema de cores naturais para o cinema. A estreia do sistema Chomón-Zollinger foi com o filme Natura a colori (1923). Em busca de comercialização de sua patente, Chomón retorna à França e acaba tomando parte como colaborador independente em La bataille (1923), uma produção da Film d’Art. Após breve período na Itália, em 1925 transfere-se com toda a família para a França aceitando uma oferta para integrar a equipe da Société Generale du Filme en Couleurs Keller-Dorian, do industrial alsaciano Albert Keller-Dorian. Aí se dedica exclusivamente às pesquisas sobre sistemas de captação de cores naturais. É com o KBD, sistema da companhia de Keller-Dorian, que Chomón faz filmagens experimentais para o épico Napoleon (1927) do diretor Abel Gance. No Marrocos para filmar um documentário para a Keller-Dorian em 1928, Chomón contraiu uma doença desconhecida. Faleceu em 1929, ao que parece, de

6 - n. 2

Supersticion andalouse (1912), em que “a ideia não é mais desfilar uma série de prodígios

ano

uma série de objetos se metamorfoseando. Também da Ibérico Film é o drama

Revista GEMI n IS |

através de um novo sistema desenvolvido por Chomón, o Cinemacoloris.

80


pneumonia. Postumamente, um filho seu, num acesso de raiva, ateou fogo ao acervo particular de películas de Chomón. a leitura de seu livro é prazerosa, em suas mais de 200 páginas. Rico em historiografia do cinema. Deixo a sugestão para que se leia o livro buscando no Youtube os filmes de Chomón disponíveis, que não são poucos.

Referências

Chomón • Charles B icalho

BARBOSA, Paulo Roberto. Do truque ao efeito especial: o cinema de Segundo de Chomón. São Paulo: Terceira Margem, 2014.

cinema (de) segundo (de)

informação, além de uma biografia de Chomón, o livro é também uma

Resenha : O

A pesquisa de Paulo Roberto Barbosa é extensa. Sua escrita é cuidadosa e

81


estética Do DocuMentáRio s3D, o eniGMa Da iMaGeM esteReoscópica

Hélio a uGusto GoDoy

De

souza

Professor associado na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Leciona Fotografia, Documentário e Semiótica no Curso de Graduação em Jornalismo e no Mestrado em Comunicação. É Biólogo pela USP (1982), Mestre em Cinema pela USP (1991) e Doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP (1999). Desde 2003, desenvolve pesquisa a respeito da linguagem e da tecnologia dos filmes estereoscópicos, com ênfase para os documentários. Atualmente dedica-se à compreensão das relações entre a Imagem Estereoscópica, o Realismo Filosófico e a Teoria do Cinema. E-mail: helio.ag.souza@ufms.br

Revista GEMI n IS |

ano

6 - n. 2 |

p.

82-101


Resumo Durante mais de dez anos de pesquisa teórica e prática, foi possível analisar os avanços tecnológicos, metodológicos e artísticos da realização de filmes documentários estereoscópicos (documentários S3D). Documentários, em meu ponto de vista, são índices da Realidade e o S3D aponta para uma Realidade Metafísica. Este artigo tem por objetivo discutir a imagem estereoscópica em um patamar filosófico, como forma de compreensão do mundo sob um viés Realista, para isso considera dignos de análise autores como C.S.Peirce, Jacob von Uexküll, J.J.Gibson e Wolfgang Smith. O resultado é a retomada de aspectos da Metafísica como significado imagético. Palavras-chave: Estereoscopia; Filme; Filosofia; Metafísica; Cognitivismo; Realismo.

Abstract For more than ten years of theoretical and practical research, it was possible to analyze the technological, methodological and artistic progress towards achieving stereoscopic documentary films (documentaries S3D). Documentaries, in my view, are indexes of Reality and S3D points to a Metaphysic Reality. This article aims to discuss the stereoscopic image on a philosophical level, as a way of understanding the world under a realistic bias; for it considers worthy of analysis, authors such as C. S. Peirce, Jacob von Uexküll, J. J. Gibson and Wolfgang Smith. The result is the resumption of aspects of Metaphysics as an image meaning. Keywords: Stereoscopy; Movie; Philosophy; Metaphysics; cognitivism; Realism.


84 Revista GEMI n IS |

Federal de São Carlos, transferindo-os em 2005 para a Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, onde foi constituído um laboratório de produção audiovisual estereoscópica, dedicado ao documentário (LAPIS DIGITAL), financiado pelo CNPq, FINEP e CAPES; esse laboratório encerrou suas atividades em 20131. O desenvolvimento da tecnologia digital, na virada do século XX para XXI, possibilitou um grande surto de infraestrutura tecnológica e de obras audiovisuais estereoscópicas, dando prosseguimento histórico aos outros “surtos”, ocorridos anteriormente, tais como as fotografias estereoscópicas do final do século XIX; e os filmes S3D dos anos 1953 e 1954. Denomino-os de “surtos”, pois a estereoscopia ainda não se estabeleceu como uma paradigma tecnológico para o mercado audiovisual. Nos intervalos entre os surtos, a estereoscopia sobreviveu dentro dos clubes de amantes dessa arte, e também como sistemas técnico-científicos de visualização S3D. Isso permitiu um novo florescimento no mercado industrial de TVs e de Salas de Cinema na virada do século XX para o XXI. Posteriormente, a partir da segunda década do século XXI, outros desenvolvimentos tecnológicos voltados para o aumento da resolução da imagem digital (4K, 8K, ou Ultra High Definition Television) ganharam destaque no mercado audiovisual, relativizando o desenvolvimento da estereoscopia como modelo de imagem para o audiovisual. Porém é necessário considerar-se que, seja lá qual for a forma de produção da imagem estereoscópica2, as salas de cinema estereoscópico S3D continuam rendendo seus dividendos às “majors”, às distribuidoras e aos exibidores; e mais, esse fenômeno não apresenta sinais de retração, ou seja, há interesse do público e consequentemente retorno financeiro. 1 O trabalho desenvolvido nesse laboratório é descrito no seguinte artigo: GODOY-DE-SOUZA, H. A. ; Processos técnicos e artísticos para realização de filme documentário 3d estereoscópico. Revista de Radiodifusão, v. 03, p. 212, 2009. O filme documentário resultante do projeto (O Lago 3D) pode ser visto em: https://youtu.be/GyHsgwm_zs0 2 Imagem estereoscópica filmada por duas câmeras, ou produzida artificialmente por conversão de imagem 2D para imagem S3D.

6 - n. 2

A partir do ano de 2003 iniciei os estudos de estereoscopia na Universidade

ano

Desenvolvimento da pesquisa do filme s3d


A imagem estereoscópica

muitos fatores que atuam em sua configuração, o conceito de paralaxe é, sem dúvida contém cada uma, uma representação imagética distinta, referente à visão de cada um dos olhos; as diferenças entre uma imagem e outra é denominada de paralaxe, que é a ao olho direito e ao olho esquerdo. A paralaxe vem sendo tratada e discutida há tempos 1982). É a paralaxe que determina o fenômeno da imagem estereoscópica saltar à frente da tela ou se colocar atrás dela. Existem três possibilidades quanto ao posicionamento da imagem em relação à tela: paralaxe negativa (à frente da tela), paralaxe zero (sobre a tela) e paralaxe positiva (atrás da tela). Esse tema já foi exaustivamente explicado em artigos de minha autoria e co-autoria já publicados (Godoy-de-Souza, 2009, 2012, 2013, 2015; Godoy-de-Souza & Kubota, 2012; Godoy-de-Souza & Sampedro, 2014). demonstrado, em vários autores (Lipton,1982; Mendiburu, 2009, 2011; Cahen, 2011; Michel, 2013), uma tendência a incluir aspectos artísticos, tais como os efeitos provocados pela paralaxe, quando esses autores consideram os pressupostos técnicos para a produção da imagem estereoscópica. Destaque é dado para o fato de que a filmagem estereoscópica feita com duas câmeras tem como parâmetros principais: a relação entre a distância dos eixos ópticos das objetivas e a distância focal de suas lentes. São esses parâmetros

Em outra linha de estudos da estereoscopia, também considerada em minha epsquisa, é dada ênfase à questão do conforto visual (Ukai & Howarth, 2008; Howarth, 2011; Banks et all, 2011). Encontramos aqui experimentos que procuram determinar as características das imagens estereoscópicas, e novamente aparece a paralaxe, cujo excesso pode causar danos biológicos ao sistema nervoso e aos olhos do espectador. O desconforto visual poderá principalmente ser provocado pela paralaxe positiva (atrás da tela), pois ela é obtida através de divergência ocular (o contrário de “envesgar” os olhos) que é uma atividade ocular muito pouco utilizado em condições naturais. Já a paralaxe negativa (imagem à frente da tela), obtém-se com a convergência ocular (“envesgamento” dos olhos), esta por sua vez permite uma maior diferença entre os valores mínimo e máximo. A convergência é um tipo de atividade ocular frequentemente utilizada pelo

S ouza

pelas duas câmeras.

de

que determinam, em última instância, a paralaxe na imagem estereoscópica produzida

• Prof. D r. H élio A ugusto Godoy

O estudo da tecnologia de produção das imagens estereoscópicas tem

o enigma da imagem estereoscópica

pelos teorizadores da estereoscopia (Mckay, 1953; Galifret, 1954; Okoshi, 1976; Lipton,

S3D,

distância entre pontos equivalentes das imagens projetadas na tela, que correspondem

do documentário

o mais importante. A imagem estereoscópica é formada por duas imagens as quais

Estética

Do ponto de vista da caracterização de uma imagem estereoscópica, dentre os

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ser humano para visualização de objetos muito próximos da face. O desconforto visual estereoscópico foi o tema de artigo

3

de minha autoria, particularmente dedicado a

“handycam” (câmera de mão) estereoscópica, com duas lentes (Godoy-de-Souza, 2012). Os resultados apontam para se evitar o excesso de paralaxe, tanto negativa como positiva, embora a paralaxe negativa seja mais aceitável que a paralaxe positiva.

respeito dos tipos de imagens estereoscópicas: de um lado o controle e a determinação, por parte do diretor, da área imagética para a qual a atenção do espectador deverá voltar-se; por outro lado, uma outra possibilidade estética se abre através da não-determinação, por parte do diretor, de qualquer área para o interesse do espectador, que por sua vez poderia decidir para que parte da imagem ele prefere olhar. Infelizmente não encontrei nenhuma menção a essas duas vertentes em artigos que tratam da estética da imagem S3D. Os estudos técnicos e de conforto visual da imagem estereoscópica, que foram citados, não se referem a um objeto estético no sentido filosófico do termo. Assim, em 2013, realizei um levantamento de artigos4 publicados em revistas internacionais nos quais pudéssemos encontrar alguma referência ao termo Estética relacionada ao termo Estereoscopia ou Filme S3D. Como resultado, foram obtidos seis artigos (Higgins, 2012; Flueckiger, 2012; Ross, 2012 e 2013; Gurevitch, 2013; Klinger, 2013), sendo que, apenas três deles, possuíam o termo Estética no próprio título (ver Bibliografia ao final deste artigo). De modo geral, a análise dos textos acabou por apresentar visões bastante díspares a respeito da Estética e por fim nenhum deles tocou profundamente as questões filosóficas despertadas pelas imagens estereoscópicas, principalmente naquilo que diz respeito ao campo do documentário: a Representação da Realidade. De forma geral, as discussões apresentadas nesses artigos, referem-se à utilização da paralaxe negativa que, de acordo com Higgins (2012), poderia ser denominado de “protrusão” (protrusion5). De acordo com o autor, os efeitos de imagens de objetos invadindo o espaço entre a tela e o espectador, e que historicamente foram excessivamente utilizados, determinaria que, hoje em dia, os diretores cinematográficos vissem tal procedimento com certa desconfiança “estética”. 3 GODOY-DE-SOUZA, H. A. Conforto Visual Estereoscópico e Determinação de Valores de Paralaxe na Câmera 3D Sony HDR-TD10. Revista de Radiodifusão, v. 6, p. 01-06, 2012. 4 O levantamento foi realizado em 2013 utilizando-se o Portal de Periódicos da Capes. 5 Saliência, saltar pra fora, protuberância (dentre outros significados). Um efeito que consiste em fazer aparecer objetos sendo empurrados sobre a plateia da sala de cinema.

6 - n. 2

Reside na discussão da paralaxe, a possibilidade de uma definição estética a

ano

Estética e semiótica da imagem s3d

Revista GEMI n IS |

questões de ordem técnica envolvendo experimentações controladas para um tipo de

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Além de afirmações como essa, os artigos procuram encontrar, de forma normativa (em especial Flueckiger, 2012), algumas características de imagem estereosintenso constraste entre figura e fundo, movimentos de imagem sem sincronismo no picas possuem regras claras, presentes em qualquer um dos manuais citados acima (Lipton,1982; Mendiburu, 2009, 2011; Cahen, 2011; Michel, 2013). Essas regras determinam suas imagens S3D, procedimentos padronizados que evitam o surgimento daqueles a discussão estética a uma análise de filmes, repleta de proibições imagéticas e de descobrimento de “erros” de importantes diretores de filmes S3D, sem a devida discussão sobre a função estética das imagens tridimensionais. A autora que mais se aproxima de alguma discussão de natureza filosófica e perceptual talvez seja Ross (2012, 2013). Essa autora toma de empréstimo o conceito de “visão háptica”8 usado por Laura Marks9, segundo a qual há uma “percepção visual táctil-cinesté-

S ouza

6 Par-estereoscópico, ou simplesmente par-estéreo, são as duas imagens que originam a imagem estereoscópica. 7 O estereógrafo é um membro da equipe técnica que juntamente com o Diretor de Fotografia, define e configura o equipamento nas condições ideias para a obtenção de uma imagem estereoscópica artisticamente aceitável e que promova o necessário conforto visual ao espectador. 8 “ ...percepção “háptica” refere-se à percepção do tato, na qual, ambas as sensibilidades, do tato e cinestésica, levam informações significativas sobre o objeto distal e eventos. A maioria das nossas percepções táteis diárias e tarefas controladas pelo tato pertencem a esta categoria.” (Tosetto, 2005, pag 07) 9 Laura U. Marks, The Skin of the Film. Durham, NC: Duke University Press, 2000. Citada por Ross, ao que parece, Marks extende o conceito de háptico para a visualidade e para alguns filmes. 10 “Certain films, such as action blockbusters and those involving chase scenes, invoke sustained bodily responses, for example holding on to the edge of the seat, inclining the body into the action, tensing muscles, andso on. Horror films and others that request visceral sensations in relation to the content they display also make use of affect to draw out more than ocular vision. These films mix the delivery of images with a flux betweendirect information and sensory impact. They exist somewhere between the traditional screen and the haptic screen, and the intensity of their affect is often dependent upon the viewers’ willingness to relinquish themselves to the processes produced on the 2-D screen.” (Ross, 2012, pag. 385) [minha tradução]

de

“Alguns filmes, tais como os blockbusters de ação, e aqueles que envolvem cenas de perseguição, invocam respostas corporalmente sustentadas, como, por exemplo, segurar as bordas do assento, inclinar o corpo para dentro da ação, tensionar músculos, e assim por diante. Filmes de terror e outros que pedem sensações viscerais em relação ao conteúdo exibido, também fazem uso da afetação de modo a usar mais do que apenas visão ocular. Estes filmes misturam a exibição das imagens com um fluxo de informação direta e impacto sensorial. Eles existem em algum lugar entre a tela tradicional e tela háptica, e a intensidade de seu efeito é muitas vezes dependente da vontade dos telespectadores deixarem se abandonar aos processos produzidos no ecrã dos filmes 2-D.” (Ross, 2012, pag. 385)10

• Prof. D r. H élio A ugusto Godoy

sica” presente na imagem, em alguns tipos de filmes projetados na tela de cinema 2D:

o enigma da imagem estereoscópica

“defeitos estéticos”. No entanto, Barbara Flueckiger (2012), usa essas regras para reduzir

S3D,

ao estereógrafo7, que controla eficientemente suas câmeras e monitora objetivamente

do documentário

par-estereoscópico6, dentre outras “preciosidades técnicas”. As técnicas estereoscó-

Estética

cópica que poderiam ser consideradas inadequadas para um filme S3D, tais como o

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Através de recursos textuais e estilísticos e por vezes pouco inteligíveis, a autora Miriam Ross transfere o conceito de “tela háptica 2D”, para o Filme S3D (filme isso explicasse a própria imagem tri-dimencional, todavia, explica apenas a reação dos espectadores, nomeando de forma elegante o tipo de percepção que estaria ocorrendo durante a projeção. Não há qualquer indicação de experimentos perceptuais que possam

aplicam teorias subjetivas a outros objetos, sem, nem ao menos, se darem ao trabalho de referenciar suas ideias em avaliações experimentais no campo da psicologia da percepção. Na verdade, tais procedimentos servem apenas para obscurecer o significado da imagem flutuante no espaço, entre o espectador, a tela e para além dela. O que podemos deduzir do artigo de Ross, é que, certas “Teorias do Cinema”, tornaram-se uma espécie de exercício retórico, repleto de suposições e pressupostos não verificados, que no máximo dariam boas hipóteses a serem testadas, e não Teorias completas que pudessem ser aplicadas a quaisquer objetos; é a aparência que decorre da afirmação de Mirian Ross citada abaixo: Filmes estereoscópicos, por outro lado, tem lugar dentro de uma tela de campo 3-D, que coexiste com as, e como uma evolução das tradicionais telas hápticas. Eles podem ser entendidos como a produção de uma avassaladora declaração, na qual o público é levado em direção ao espaço da tela e carregado através de planos de profundidade infinita. Às vezes, a paralaxe negativa sugere ao espectador que objetos existem entre eles e o plano tradicional da tela. Em outras vezes, o olhar é aspirado para dentro da paralaxe positiva, que sugere objetos e cenários recuados eternamente para longe dele. Ao invés de se encontrar à distância do ecrã e possuir uma sensação de domínio sobre as imagens, nós consideramos e reconfiguramos nossa colocação corpórea em relação ao conteúdo da tela. Esse fator, combinado com a expansividade da profundidade, significa que enquanto as imagens podem ser claras e inteligíveis, elas também nos convidam a uma exploração mais tátil. Significativamente, a proximidade de objetos no campo tela ameaça engolir o público, e isso afeta tanto a visão e outros sentidos. (Ross, 2012, pag. 386)11 11 “Stereoscopic moving images, on the other hand, take place within a 3-D field screen which exists alongside, and as an evolution of, the traditional and haptic screens. It can be understood as producing an overwhelming statement in which the audience is brought towards the screen space and taken through infinite depth planes. At times, negative parallax suggests to the viewer that objects exist between them and the traditional plane of the screen. At other times, the eye is drawn into positive parallax that suggests objects and setting recede forever away from it. Rather than finding distance from the screen and a sense of mastery over the images, we consider and reconfigure our bodily placement in relation to the screen content. This factor, combined with the expansiveness of depth, means that while images may be clear and intelligible, they invite a more tactile exploration. Significantly, the proximity of objects in the field screen threatens to engulf the audience, and this affects both vision and other senses.” (Ross, 2012, pag. 386) [minha tradução]

6 - n. 2

certos teóricos do cinema preferem fazer: inspirados em ideias subjetivas de outrem,

ano

fundamentar as afirmações da autora; e ao que parece essa autora apenas cumpre o que

Revista GEMI n IS |

estereoscópico) apenas acrescentando-lhe um prefixo “hiper” (“hyperhaptic”), como se

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Os artigos recolhidos, no Portal de Periódico da CAPES, não desenvolvem o tema que realmente importa à Filosofia sob um viés Realista, ou seja, não se atinam cinematográfico”12, promovido pelas interpretações “pré cognitivistas”, dos enganos seria obtido através do uso determinístico de “efeitos visuais” ou de “figuras de linguagem cinematográfica”, cujas consequências para os espectadores, seriam muito

que a linguagem cinematográfica não exista, mas o que falta na interpretação acima é algo que importa: o porquê desses “efeitos” causarem aquilo que eles causam nos espectadores. Felizmente, a Teoria Cognitivista do Cinema, vem explicando que os sistemas cinematográficos funcionam, pois nos seres humanos existem funções perceptuais ecológicas (e evolucionárias) que são estimuladas a cada deflagrador imagético de nos traz o livro “A Realidade da Ilusão, uma abordagem ecológica para a Teoria Cognitiva do Cinema”13, de Joseph D. Anderson (1998):

S ouza

12 Refiro-me aqui ao ponto de vista que trata a questão cinematográfica, como se, pelo fato de nosso cérebro não funcionar muito bem, estaríamos sujeitos a ilusões, e que por causa disso é que o cinema funciona. Minha proposição é que, ao contrário, pelo fato do cérebro do ser humano funcionar bem, e estar adaptado ao seu ambiente, é que o cinema funciona, repetindo funções que são também executadas pelo cérebro. Trata-se de inverter o ponto de vista “ilusionista”. Ver em Godoy-de-Souza, 2013. 13 Disponível apenas na lingua inglesa: Anderson, J. D. The reality of illusion, an ecological approach to Cognitive Film Theory. Carbondale, Southern Illinois University Press, 1998.

de

“Então, quanto sabemos sobre a interface entre cinema e a mente humana? Acontece que o estudo científico da mente humana, até agora, rendeu apenas um esboço de todo o projeto, e nosso conhecimento no momento é fragmentário, mas alguns insights foram alcançados que podem informar sobre nossa capacidade de compreensão das imagens em movimento. No topo da nossa lista está o insight de que toda a percepção, toda cognição, está referenciada no meio ambiente no qual ele se desenvolveu. (...) Existe ainda o insight de que o cérebro é um processador muito lento, e que os atalhos internos foram desenvolvidos em uma série de áreas, desde a percepção visual para reconhecimento de pessoas e atribuição de caráter, que permitem o processamento de proceder a uma taxa suficientemente rápida para permitir a possibilidade de atuar sobre a informação assim obtida. Mas o aumento da velocidade de processamento foi adquirido a um preço: a abertura da

• Prof. D r. H élio A ugusto Godoy

percepções, de excitações perceptuais existentes no filme. É esse o significado que

o enigma da imagem estereoscópica

para obter respostas determinadas, ou pré-programadas na plateia. Não posso afirmar

S3D,

bem conhecidas dos diretores cinematográficos, que, portanto, utilizariam os efeitos

do documentário

que os sentidos determinam aos seres humanos. O pressuposto é que tal “ilusionismo”

Estética

à representação do mundo ou da Realidade, mas apenas ao famigerado “ilusionismo

89


possibilidade de ilusões.” 14 (Anderson, 1998, pag 161)

também funcionamos do mesmo jeito para coletarmos as fundamentais informações da Realidade, e sobrevivermos nesse ambiente, repleto de informações. Ainda nas palavras de Joseph D. Anderson:

medida em que se admite que a ação do filme é perfeitamente compatível com as capacidades perceptuais, herdadas de um processo ecológico evolutivo; e que o filme é, afinal de contas, um signo da Realidade. Consideremos também as ideias de André Bazin (1918-1958) frente ao Realismo Cinematográfico, que nunca foram ingênuas, vide a frase de um antigo texto de Bazin, no qual ele analisa a indicialidade fotográfica: “Não se acredita mais na identidade ontológica de modelo e retrato, porém se admite que este nos ajuda a recordar aquele e, portanto, a salvá-lo de uma segunda morte espiritual”16 (Bazin, 1991). A imagem fotográfica17 representa seu objeto, está no seu lugar. Em um artigo de minha autoria 14 So how much do we know about the interface between motion pictures and the human mind? It turns out that the scientific study of human mind has so far yielded only a rough sketch of the entire project, and our knowledge at present is fragmentary, but some insights have been achieved that can inform our understanding of motion pictures. At the top of our list is the insight that all perception, all cognition, is referenced to the environment in which it developed. (…) And there is the insight that the brain is a very slow processor, and that internal short-cuts have been developed in a number of areas, from visual perception to person perception and character attribution, that enable processing to proceed at a rate fast enough to allow for the possibility of acting upon the information so obtained. But the increased processing speed has been gained at a price: the opening up of the possibility of illusions. (Anderson, 1998, pag 161) [minha tradução] 15 “The postulates here proposed are the following: first, that from viewer´s side, a motion picture is an illusion (with illusion defined as nonveridical perception); second, that the viewer voluntarily enters into the diegetic world of a movie by means genetically endowed capacity for play; and third, that the motion picture is a surrogate for the physical world (a surrogate being an actual substitute for something else, as distinguished from an arbitrary symbol that stands for something else).” .(Anderson, 1998) [minha tradução] 16 Ontologia da Imagem Fotográfica, In O cinema – ensaios (Bazin, 1991). Texto originalmente composto a partir de Problèmes de La peinture de 1945 17 Uso a palavra fotográfica no sentido amplo do termo: uma imagem produzida e fixada por ação da luz sobre um suporte, que pode ser visualizado a qualquer momento, pouco importando se é fotoquímico ou eletrônico, analógico ou digital.

6 - n. 2

Assim o “ilusionismo”, na concepção dos defeitos cerebrais, é superado, na

ano

“Os postulados aqui propostos são os seguintes: em primeiro lugar, que a partir do lado do espectador, uma imagem em movimento é uma ilusão (com ilusão definida como uma percepção não verídica); segundo, que o espectador entra voluntariamente no mundo diegético de um filme por meio de uma capacidade para o jogo, geneticamente dotada; e terceiro, que o filme é um representante (surrogate no original) do mundo físico (sendo um representante, um substituto real para outra coisa, diferentemente de um símbolo arbitrário que representa outra coisa)” 15.(Anderson, 1998, pag 162)

Revista GEMI n IS |

Ou seja, o cinema funciona de um determinado jeito, pois nós, os seres humanos,

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(Godoy-de-Souza, 2007)18, deixei claro os motivos matemáticos e físicos da indicialidade (ou indexalidade) das imagens eletrônicas, sejam analógicas ou digitais; portanto, cas sejam um signo de algo Real que ainda não conseguimos explicar apropriadamente, Essas imagens estereoscópicas ocupam o espaço tridimensional à frente do observador promovendo um sentimento de “estar dentro das imagens”; essas imagens nos remetem a uma visão fantasmagórica, a qual é visivelmente volumétrica, mas esvaziada

clareza, ou de perceber a volumetria de acidentes geográficos nas imagens de paisagens, mas tudo isso com uma imaterialidade típica das alucinações e, a depender da distância da tomada, assumirmos também uma visão “liliputiana” de um “mundinho” em relevo, através do qual a Realidade é representada. Esse “mundinho” apresenta-se ao espectador em uma tal configuração, que não é percebido da mesma por aeronautas, acostumados com as altitudes. Ainda mais: da observação de imagens estereoscópicas percebemos os relevos anatômicos de animais e vegetais, também imateriais, e dispostos de tal forma, Ora, frente a todos esses espantos perceptivos, surge inevitavelmente uma pergunta: o que essa imagem localizada no espaço tridimensional representa? Para iniciar a resposta tomemos a ideia de representação a partir da definição de signo, tão cara à Semiótica Peirceana:

S ouza

18 Godoy-de-Souza, H. A. Documentary realism, sampling theory and Peircean Semiotics: electronic audiovisual signs (analog or digital) as indexes of reality. Doc On-Line: revista digital de cinema documentário, v. 02, p. 05, 2007. Versão em português publicada em Godoy-de-Souza, H. A. Realismo Documentário, Teoria da Amostragem e Semiótica Peirceana: os signos audiovisuais eletrônicos (analógicos ou digitais) como índices da realidade. In: Mariarosaria Fabris e João G. Barone Reis Silva. (Org.). Estudos Socine de Cinema - Ano III. 1ed. Porto Alegre: Editora Sulina, 2003, v. 3, p. 157-170. 19 O termo CP refere-se ao Collected Papers de C.S.Peirce e a numeração é codificada para que a citação seja encontrada nessa publicação. “A sign, or representamen, is something which stands to somebody for something in some respect or capacity. It addresses somebody, that is, creates in the mind of that person an equivalent sign, or perhaps a more developed sign. That sign which it creates I call the interpretant of the first sign. The sign stands for something, its object. It stands for that object, not in all respects, but in reference to a sort of idea, which I have sometimes †1 called the ground of the representamen. “Idea” is here to be understood in a sort of Platonic sense...” (Peirce: CP 2.228) [traduzido por Nöth, 1995]

de

“Signo ou representamen, é tudo aquilo que, sob um certo aspecto ou medida, está para alguém em lugar de algo. Dirige-se a alguém, isto é, cria na mente dessa pessoa um signo mais desenvolvido. Chamo este signo que ele cria, o interpretante do primeiro signo. O signo está no lugar desse objeto, porém, não em todos os seus aspectos, mas apenas com referência a uma espécie de ideia, a qual tenho às vezes chamado de fundamento do representamen. Ideia é aqui para ser entendida no sentido Platônico do termo...” (Peirce, CP 2.228) 19

• Prof. D r. H élio A ugusto Godoy

que mesmo a observação a olho nu não nos permitiria verificar.

o enigma da imagem estereoscópica

reoscópica permite-nos estabelecer relações de distância entre os objetos com primorosa

S3D,

de massa (uma incoerência perceptiva); verificamos também que a visualização este-

do documentário

principalmente quando se trata de filmes documentários S3D.

Estética

podemos concluir que há uma possibilidade razoável de que as imagens estereoscópi-

91


Assim como já havíamos verificado na afirmação de Anderson (1998) (acima citado) em relação à função do filme enquanto “substituto real de outra coisa”, temos está no lugar de alguma outra coisa, e essa outra coisa não é definitivamente a materialidade do objeto representado. Se consideramos a imagem 2D (fotográfica, cinematográfica, videográfica) com um signo, a imagem S3D não poderia deixar de ser um signo,

S3D, é mediada pelos óculos usados pelos espectadores, e dessa interação entre óculos e sujeito, percebe-se uma imagem etérea, evanescente, imaterial, sem um suporte físico... A tela é o suporte e a base para que tudo aconteça, mas tudo se passa como se a tela não estivesse ali, o máximo que existe é uma moldura, que se confunde com a moldura da própria tela, e que delimita a abrangência horizontal e vertical dessa imagem estendida na profundidade de espaço tri-dimensional. Tudo que foi apresentado até aqui nos coloca o problema da representação sígnica da imagem estereoscópica na condição de um dos enigmas intelectuais que mais tem me interessado ultimamente. Para avançar na definição do índice (índex) fotográfico, cito novamente C.S.Peirce: “De natureza completamente oposta é o tipo de representamen denominado de índice. Isso é uma coisa real ou fato, o qual é um signo de seu objeto em virtude de estar conectado com ele como uma questão de fato e também por se intrometer à força sobre a mente, bastante independentemente de ser interpretado como um signo. Pode simplesmente servir para identificar seu objeto e assegurar-nos de sua existência e presença. Mas muitas vezes, a natureza da conexão factual do índice com o seu objeto é, como para excitar na consciência uma imagem de algumas características do objeto, e dessa forma proporciona evidências de garantia positiva de como a verdade do fato pode ser desenhada. Uma fotografia, por exemplo, não só excita uma imagem, tem uma aparência, mas, devido à sua ligação com o objeto óptico, é uma evidência de aparência que corresponde a uma realidade.” (Peirce, CP 4.447)20

20 “Of a completely opposite nature is the kind of representamen termed an index. This is a real thing or fact which is a sign of its object by virtue of being connected with it as a matter of fact and by also forcibly intruding upon the mind, quite regardless of its being interpreted as a sign. It may simply serve to identify its object and assure us of its existence and presence. But very often the nature of the factual connexion of the index with its object is such as to excite in consciousness an image of some features of the object, and in that way affords evidence from which positive assurance as to truth of fact may be drawn. A photograph, for example, not only excites an image, has an appearance, but, owing to its optical connexion with the object, is evidence that that appearance corresponds to a reality.” (Peirce, CP 4.447) [minha tradução]

6 - n. 2

forma que uma única imagem 2D é obtida. Diferentemente da projeção 2D, a projeção

ano

pois esta, por sua vez, é formada por duas imagens 2D, obtidas por câmeras, da mesma

Revista GEMI n IS |

aqui uma questão incontornável, ou a imagem estereoscópica não é um signo, ou ela

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Não pretendo avançar a discussão em relação às definições e discussões a respeito da indicialidade da imagem estereoscópica, tomo isso como pressuposto que se estabelece como objeto dessa imagem S3D. Para tal, considero que a imagem mas o faz de forma diferente da imagem estereoscópica. Portanto é nessa diferença que reside a diferenciação também do objeto que a imagem estereoscópica representa.

Anderson (1998), quando esse autor descreve de forma bastante objetiva a influência dos trabalhos de James Jerome Gibson (1904 – 1979) no campo da percepção visual; uma influência que foi incorporada na proposta de uma abordagem ecológica para a Teoria Cognitiva do Cinema proposta por Anderson. Gibson desenvolveu uma abordagem teórica que alterou significativalongo de toda sua vida acadêmica. Na condição de um jovem psicólogo, durante a Segunda Guerra Mundial, trabalhava na tarefa de auxiliar os pilotos a alçarem voo e aterrissarem adequadamente suas aeronaves. Nessa tarefa ele verificou que os resultados de experimentos laboratoriais em condições controladas, com o sujeito preso a uma cadeira, com sua cabeça imóvel e o olhar em um ponto fixo, pouco podiam auxiliar os pilotos em situações reais de planeio. Esses experimentos muito diziam sobre a óptica e comportamento da luz, mas não produziam efeitos práticos para a

Gibson propõe uma Teoria Ecológica contendo conceitos como “especificidade da informação, percepção direta e affordances21” (Fonseca et. All., 2007), que explicariam um tipo de percepção presencial e direta a qual não dependeria de um grande processamento cerebral. A teoria de Gibson estaria relacionada com um Realismo que poderia ser classificado como Realismo Direto sem a interveniência da razão (tal como o Racionalismo) ou dos sentidos mais elaborados e controlados (tal como o 21 “Affordance” refere-se às doações oferecidas por elementos do ambiente ao ser vivo que as percebe, uma “affordance” estabelece uma relação entre a propriedade de um objeto e o uso feito dela por um sujeito. É interessante verificar a semelhança desse conceito ao conceito de Umwelt, de Jacob von Uexküll, mas isso já seria motivo suficiente para outra discussão. Mais informações sobre Umwelt podem ser obtidas em Godoy-de-Souza, H. A. Documentário, Realidade e Semiose, os sistemas audiovisuais como fontes de conhecimento. São Paulo, AnnaBlume/ FAPESP, 2001.

S ouza

muito acima daquela para a qual ele está referenciado naturalmente (Anderson 1998).

de

atividade de pilotar um avião que ocorre com um ser humano real, em uma velocidade

• Prof. D r. H élio A ugusto Godoy

mente a ciência da psicologia da percepção a partir de experimentos realizados ao

o enigma da imagem estereoscópica

A continuidade desse raciocínio leva-me novamente ao texto de Joseph D.

S3D,

Percepção direta e metafísica

do documentário

cine-fotográfica 2D, em sua condição de índice, é capaz sim de representar o mundo,

Estética

baseado nas asserções acima apresentadas. Dessa forma minha tarefa é encontrar aquilo

93


Empirismo). A dificuldade de disseminação desse tipo de pensamento seria explicada pela tradição de teorias perceptivas amplamente utilizadas pela Ciência, como nos

utilização da Teoria dos Indutores Visuais, como denominei, em vários artigos de minha autoria 23, ou Theory of Cues (em inglês); tal assunto coloca o tema Filme S3D em situação delicada, pois, quaisquer um dos livros que explique a formação da imagem estereoscópica parte dessa teoria como um pressuposto científico. Mas e se pudéssemos acessar a informação espacial através de outra forma, não seria demasiado insistir em uma explicação, que por mais eficiente que seja, continua a explorar a ideia de que a estereocopia é “apenas” uma ilusão? A posição de James J. Gibson é esclarecedora: “A Teoria dos Indutores Visuais (Theory of Cues) como explicação de nossa percepção do mundo, provou ser, nos oitenta anos desde que Helmholtz a aperfeiçoou, mais convincente do que as teorias alternativas. Complicado como é, ela parecia, para os americanos, pelo menos, ser a única explicação científica, pois fez manter (o assunto) em aberto, impossibilitando qualquer experimentação para investigação sobre a intuição. Foi assumido que sentir e conhecer eram duas coisas diferentes e que todo o conhecimento vinha através do sentido. Muitas frases de senso comum na psicologia são reflexos dessa suposição; as “mensagens” dos órgãos dos sentidos, ou a “informação” ou “fatos” que fornecem à mente, implica em um conjunto de indutores e um processo de interpretação. Foi assumido que a mente inteligente age sobre as sensações mais ou menos como um geômetra ou um lógico agiria, combinando, computação e compreensão dos dados que ela recebe, da mesma forma como fizeram os próprios filósofos quando 22 “Gibson understood that perception was profoundly connected to one’s environment. But a theory of perception based upon creature’s interaction with an environment did not find easy acceptance in Gibson’s day, nor has it found total acceptance today. Part of the problem was, and is, that such theory goes against a long tradition of thinking about perception that originated with Herman Ludwig Ferdinand Von Helmholtz.” (Anderson, 1998) [tradução minha] Helmholtz (1821 –1894), cientista alemão, dedicou-se dentre outras coisas, aos estudos da visão e do comportamento da luz. 23 Particularmente em Godoy-de-Souza, H. A. & Kubota, R. C. . A imagem figurativa Estéreo 3D: representação do espaço e Umwelt humano. Sessões do Imaginário (Online), v. 17, p. 51, 2012.

6 - n. 2

Gibson, em seu livro de 1950 (The perception of the visual world), questiona a

ano

“Gibson entendeu que a percepção era profundamente ligada ao seu meio ambiente. Mas uma teoria da percepção baseada na interação da criatura com um ambiente não encontrou fácil aceitação nos dias de Gibson, nem tem encontrado aceitação total até hoje. Parte do problema foi, e continua sendo, que tal teoria vai contra uma longa tradição de pensar a percepção, que se originou com Herman Ludwig Ferdinand Von Helmholtz.”22 (Anderson, 1998, pag 18)

Revista GEMI n IS |

explica Anderson:

94


inventaram a teoria.” 24 (Gibson, 1950, pag 21)

verificado, mais a fundo, o problema da visualização do mundo pelo ser humano ao uma impossibilidade de compreender o próprio significado da imagem estereoscópica. Mas aquilo que importa à Ciência e que lhe torna boa, como disse o fotógrafo que dizem, “acreditamos nisso agora, como elas serão pensadas depois, não sabemos... ideias de Gibson, pois a pesquisa da “percepção visual em profundidade” na imagem estereoscópica é um trabalho “in progress”, mas, creio que seja possível algumas indicações sobre onde encontrar a solução do enigma citado anteriormente. Creio que a esta altura do raciocínio, o leitor deve-se perguntar, por que, introduzi o pensamento de Gibson, se ele rompe com a estrutura do pensamento científico sobre a percepção; ainda mais que as ideias científicas que utilizei até então (tal como a Theory O fato é que, se aquela teoria explica a formação das imagens estereoscópicas, ela não consegue explicar a sensação de tridimensionalidade que os espectadores têm ao ver as imagens estereoscópicas, como também não consegue explicar o signo “imagem estereoscópica”, isto é, não resolve a pergunta de qual é, afinal, o objeto desse signo, o seu referente. Ainda se faz necessário introduzir-se mais um conceito gibsoniano que diz respeito à informação. Em termos gerais Gibson diz que o que vemos é uma “matriz óptica” (optic array) do ambiente, e esse arranjo compõe-se de estruturas invariantes;

“Uma determinada realidade física provoca uma única estrutura, ou padrão de energia no ambiente. No caso da informação visual, por exemplo, para cada propriedade do ambiente que modula a luz, há uma 24 “The theory of cues as the explanation of our perception of the world has proved, in the eighty years since Helmholtz per- fected it, more convincing than the alternative theories. Complicated as it is, it has seemed, to Americans at least, to be the only scientific exp1antion, for it did keep open the possibility’ of investigation whereas any appeal to intuition rendered experimentation impossible. It assumed that sensing and knowing were two different things and that all knowledge came through sense. Many phrases of commonsense psychology are reflections of this assumption; the “messages” of the sense organs, or the “information” or “facts” that they supply to the mind, imply a set of clues and a process of interpretation. The mind, it was assumed, intelligent and acts on the sensations somewhat as a geometer or a logician would act, combining, computing, and comprehending the data it gets in much the same way as did the philosophers themselves when they invented the theory”. (Gibson, 1950, pag 21) [minha tradução] 25 “Henry Cartier-Bresson”, documentário de Sara Moon de 1994.

S ouza

computação cerebral. Encontramos a seguinte explicação em Fonseca et. all.:

de

essa forma de visão é imediata, possui uma presentidade não redutível a uma tarefa de

• Prof. D r. H élio A ugusto Godoy

of Cues) explicariam perfeitamente o modo de produção das imagens estereoscópicas.

o enigma da imagem estereoscópica

é uma questão de tempo”25. Não pretendo neste artigo aprofundar mais as teorias e

S3D,

Henry Cartier-Bresson durante uma entrevista, é que ele apreciava os cientistas pois

do documentário

invés de dar por certo uma teoria (Theory of Cues) que poderia gerar como consequência

Estética

Não me restaria mais do que fazer um “mea culpa”, por não ter anteriormente

95


elementos, do conceito de Informação. O sujeito portador da percepção visual pode ser reduzido a uma espécie de coletor de informações (sem a mediação cerebral, ou computacional), com toda a imediaticidade que há nesse processo. Além disso Gibson coloca a questão do Realismo onde ele está efetivamente, no mundo, na Realidade e não no cérebro do sujeito senciente. Informação é um conceito crucial na ciência contemporânea tendo surgido em vários campos do conhecimento, abrangendo desde a Teoria Matemática da Comunicação de Shannon e Weaver26, até mesmo a Física Quântica de Heisenberg27. Isto nos aponta para sistemas de ideias, desenvolvidas por um profundo empirismo (ou seja, todas essas teorias têm natureza experimental), mas que acabam por apontar certo grau de indeterminação do objeto estudado, como se os resultados científicos, ao se tornarem precisos, nos apontassem para a imprecisão. A solução destes problemas pode ser encontrada na Metafísica, como nos apresenta o filósofo Wolfgang Smith. Wolfgang Smith, Matemático e Filósofo ancorado na Metafísica tradicional, especialmente na escola de São Tomás de Aquino; seu principal trabalho como Matemático consistiu em resolver problemas de reentrada de veículos espaciais na atmosfera terrestre; foi professor do MIT, UCLA, e Oregon State University. Smith compara a descoberta de Gibson à descoberta de Heisenberg, principalmente em seus aspectos acausais, que causaram a ambos, problemas com o status quo científico. Nas palavras de Smith: “Portanto, pode-se dizer que a mecânica quântica e a teoria da percepção gibsoniana, implicam num captador de informações que desafia uma explicação em termos causais. As duas “revoluções” podem na verdade serem vistas como aspectos complementares de 26 Claude Elwood Shannon e Warren Weaver, publicaram juntos o livro “The Mathematical Theory of Communication”, uma reimpressão de um artigo de Shannon de 1948, no qual explica os conceitos de informação, informação média, canal, mensagem,codificação, decodificação, dentre outros que atualmente são amplamente utilizados nas Ciências da Comunicação. 27 Werner Karl Heisenberg (1901-1976), físico alemão, criador da mecânica quântica, idealizador do Princípio da Incerteza.

6 - n. 2

por colaboradores, aproximam os conceitos de invariantes, de arranjos ópticos e outros

ano

Tais descrições feitas por Gibson a respeito da percepção visual, e reforçadas

96 Revista GEMI n IS |

propriedade óptica única e correspondente. Essa relação de especificidade existente entre o ambiente e os padrões de energia estruturada pelo mesmo significa que essa energia estruturada descreve de forma invariante a fonte que a estruturou. Invariantes são parâmetros presentes nos padrões de energia estruturada pelo ambiente que não se alteram diante de transformações nos padrões de energia ou que apresentam padrões constantes de transformação, ilustrando regularidades nas suas mudanças.” (Fonseca et all, 2007)


fiabilidade científica, pois ele acaba por admitir que as “affordances” e o sujeito coletor de informações, encontram admissibilidade nos termos da evolução darwinista, ao mesmo tempo, ele estaria fechando uma possibilidade mais ampla que é a ocorrência

Gibson. Essa é a posição de Wolfgang Smith que admite então que o conceito de forma é aquilo que faltaria às ideias de Gibson para torná-las verdadeiramente inovadoras e integradoras de conhecimentos ancestrais que teriam sido abandonados pela ciência moderna e que dariam às ideias de Gibson um caráter Metafísico:

de

S ouza

28 “It can therefore be said that both quantum mechanics and the Gibsonian theory of perception entail a pickup of information that defies explanation in causal terms. The two “revolutions” may in fact be seen as complementary aspects of a single decisive event: the intrusion, namely, of information as an essential and indeed irreducible element in our scientific understanding of reality.” (Smith, 2010, pag 90) [minha tradução] 29 This brings us back to Gibson’s concept of “specification”: the notion that information contained in the ambient optic array “specifies” objects and events in the environment. Here again we are confronted by an act of signification, an inherently semantic act which can be viewed as an immediate “presentification;’ an act that does not hinge upon a transfer of matter or energy through space. But how is that possible? That is a conundrum which neither our science nor our present-day philosophy are able to resolve. Something-some essential element-has evidently been left out of consideration: what might that be? It is none other, I say, than what Plato terms eidos, Aristotle calls morphe, and the Scholastics refer to as forma. Only “forms” can accomplish the prodigy in question: nothing of the kind, clearly, is to be found on the level of spatiatemporal realities. The fact is that to conceive of authentic perception one requires a notion of morphe or eidos: only a form is able to join a subject to an object so that “in a way” the two “become one”as Aristotle declares. (Smith, 2010, pag 92) [minha tradução]

• Prof. D r. H élio A ugusto Godoy

“Isso nos traz de volta ao conceito de “especificação” de Gibson: a noção de que as informações contidas na matriz óptica ambiente “especifica” objetos e eventos no ambiente. Aqui estamos novamente confrontados por um ato de significação, um ato intrinsecamente semântico que pode ser visto como uma “presentificação” imediata, um ato que não depende de uma transferência de matéria ou energia através do espaço. Mas como isso é possível? Esse é um dilema que nem a nossa ciência nem a nossa filosofia de hoje são capazes de resolver. Alguma coisa, algum elemento essencial, evidentemente, tem-se deixado fora de consideração: o que poderia ser isso? É nada mais nada menos, o que Platão denominou de eidos, Aristóteles chamou de morphe, e os escolásticos se referiam como forma. Apenas “formas” podem realizar o prodígio em questão: nada do tipo, claramente pode ser encontrado no âmbito das realidades espácio-temporais. O fato é que para conceber a percepção autêntica é requerida uma noção de morphe ou eidos: apenas uma forma é capaz de participar de um sujeito e de um objeto para que “de uma vez” os dois “se tornem um”, como Aristóteles declara.”29 (Smith, 2010, pag 92)

o enigma da imagem estereoscópica

sua vez traria enormes possibilidades de compreensão do processo por descrito por

S3D,

de uma explicação metafísica, nos moldes da antiga filosofia escolástica; e que por

do documentário

Ainda que, do ponto de vista de Gibson, suas explicações encontrem certa con-

97 Estética

um único evento decisivo: a intrusão, a saber, da informação como um elemento essencial e de fato elemento irredutível em nossa compreensão científica da realidade.” 28 (Smith, 2010, pag 90)


Tal solução Metafísica, para compreendermos o que é que estamos vendo quando olhamos uma imagem estereoscópica, tem o mesmo caráter “fantasmagórico” Todavia, é a imagem S3D, que já era conhecida desde as estereografias do século XIX que possuíam a verdadeira inefabilidade, a evanescência das imagens “fantasmagóricas”. Se da análise do signo chega-se a um objeto que se refere a um conceito ancestral,

Considerações finais Através de Wolfgang Smith, que repetidamente vem trazendo esses temas à luz, sabemos que um objeto corpóreo X, em função de sua forma substancial, não deveria ser ontologicamente confundido com o objeto físico SX, bem como átomos e moléculas deveriam ser consideradas partes do objeto corpóreo X, participando de sua forma substancial, e distinguindo-se dos átomos e partículas descritas pelos físicos que pertencem ao objeto físico SX30. Aí então, o sentido de indeterminação da física quântica de Heisenberg, poderia ter um significado para nossos órgãos do sentido. Como se vê, as implicações desta discussão, além de polêmicas, são de natureza imensurável, são implicações sobre a natureza da consciência como forma (ou alma) do corpo humano, implicações em relação à natureza do tempo presente e da eternidade... Muitas outras implicações colocam-se quando consideramos o signo “imagem estereoscópica” e seu significado, sua representação, ou o objeto ao qual essa imagem faz referência. Longe de esgotar-se, o tema pode avançar trazendo à tona a filosofia clássica, que atualmente encontra-se sufocada no mar de lama do hedonismo de filosofias que para nada mais apontam além de seus próprios projetos de poder. Encerro este artigo com a certeza de que deixo o leitor mais questionador do que esclarecido, mas também aponto objetivamente para o início de um novo ciclo de minhas pesquisas a respeito do documentário S3D, que não se desfaz da concepção de Realidade já esboçada anteriormente (incluindo a Metafísica como parte dela), mas que se orienta para muito mais além do que a repetição de regras de manuais técnicos disfarçados de “estética estereoscópica” ou de “idéias hyper-mirabolantes” que nada possuem da tradição filosófica, e nada explicam além delas mesmas.

30 Esse assunto é desenvolvido à exaustão no livro “O enigma quântico, desvendando a chave oculta” de Wolfgang Smith (2011)

6 - n. 2

documentário estereoscópico.

ano

resta a mim verificar quais são as consequências de tal direção para a pesquisa do

Revista GEMI n IS |

que o primeiro cinema apontava como algo inefável presente na imagem projetada.

98


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la construcción o reconstrucción de identidades de la comunidad migrante ecuatoriana en

Fernando H erraiz G arcía Doctor en Bellas Artes. Facultad de Bellas Artes - Universidad de Barcelona. E-mail: f.herraiz@ub.edu

Juan D iego A ndrango Master en Bellas Artes. Facultad de Bellas Artes - Universidad de Barcelona. E-mail: juand122686@hotmail.com

Revista GEMI n IS |

ano

6 - n. 2 |

p.

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B arcelona


Resumo A imersão excessiva da globalização e as frágeis políticas económicas e sociais de alguns países latinoamericanos de décadas atrás, fizeram com que milhares de seus cidadãos, acima de os equatorianos, migrassem para diferentes lugares em busca de um desenvolvimento ou de “progresso”. Essa diáspora e os gastos excessivos em algumas cidades que os recebem, tem feito com que os imigrantes se adaptem ao contexto, criando híbridações, intercâmbios, apropriações e miscigenações como resultados da busca de identidade e do empoderamento da utilização do capital. As crises que ocorrem nos últimos anos os países europeis, e os problemas que vêm com eles para os imigrantes que vivem nesses lugares, têm feito com que Amaruk Kayshapanta, através de seu trabalho como produtor audiovisual, tente criar laços de unidade, apoio, aprendizagem através de suas realizações, que dão voz aos imigrantes na criação ou re-criação de identidades por meio de símbolos, características, traços, vestuário e linguagem (Kichwa), aproximando de maneira significativa os imigrantes com seu lugar de origem, simulando uma ligação simbólica nas relações sociais em trânsito e com as famílias para além das fronteiras. Palavras-chave: Identidades; cultura popular; migração; pós-colonialismo; audiovisual.

Resumen La inmersión desmedida de la globalización y las frágiles políticas-económicas y sociales de algunos países latinoamericanos décadas atrás, hicieron que miles de sus ciudadanos sobretodo ecuatorianos migren a distintos destinos en busca de un desarrollo o “progreso”. Esta diáspora y la macro dilapidación en algunas ciudades de recepción ha hecho que los inmi- grantes tengan que adaptarse al contexto, creando hibridaciones, intercambios, apropiaciones y mestizajes como producto de la búsqueda de identidad y el aprovechamiento del empodera- miento del capital. Las crisis que embaucan los últimos años a los países de Europa y los problemas que llegan consigo a los inmigrantes radicados en estos lugares ha hecho que Amaruk Kayshapanta por medio de su trabajo como productor audiovisual y sus realizaciones intente crear lazos de unidad, respaldo, aprendizaje, dar una voz al inmigrante creando o re-creando identidades a través de símbolos, características, rasgos, vestimenta e idioma (kichwa), acercando de manera significativa a los inmigrantes con su lugar de origen, simulando un apego simbólico en las relaciones sociales en tránsito y sus familiares más allá de las fronteras. Palabras clave: Identidades, cultura popular, migración, poscolonialismo, audiovisual.


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No he llegado en un barco con nombre extranjero, ni tampoco llevo tatuado un corazón en el pecho, empujado por los sueños y los delirios, me gusta vagar errante por el mundo en busca de darle un sentido, a todo esto que llevo conmigo, un escrito de Sebastián quien es uno de los guías1 que colabora con la cooperativa donde se desarrolló las prácticas; palabras que encontré mientras acababa el informe de las mismas y que ahora las menciono debido a la divagación que aún siento mientras escribo este texto. Empezar este relato, recuerdo mi vida de la adolescencia. Un día sentado en el filo de la vereda junto aquel muro del migrante colocado en el antiguo aeropuerto de Quito. Sin saber y tener claro en ese momento de la realidad y lo que sucedería después; es casi similar a lo que siento ahora cuando estoy sentado frente al computador y redacto estas líneas, vienen a mi mente, imágenes de miles de personas despidiendo a sus familiares en el aeropuerto de la localidad. Dentro de este grupo, se encontraba alguien cercana a mí, mi hermana!, las lágrimas recorrían las siluetas de los rostros de las personas, con una esperanza vana y trivial de volver a re-encontrarse en un tiempo cercano, la distancia y la situación lograban su cometido de separar los lazos de familiaridad, amistad, vecindad, etc., cambiando este acercamiento por el porvenir, “progreso” de sus familias, un “futuro mejor” y comprometedor, situaciones que fortalecían y alentaban a cada una de las familias para continuar con su viaje. Estos momentos hacen recapitular, las centenares de historias que no se borrarán de las mentes de muchos compatriotas, familiares y gran parte de la sociedad ecuatoriana, que migraron por una condición de vida más digna hasta ese momento. Ahora me encuentro desde el otro lado de aquel tiempo/espacio, haber viajado y conocido de cerca el tan anhelado “sueño europeo”, que años atrás era para los ecuatorianos la vía para reinvindicarse consigo mismos y huir de una gran 1 http://www.viveberlintours.de/es/guias

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Antecedentes generales

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1. Introducción


crisis política, social y económica que padecía el país; posición que ha cambiado las referencias de información que tenía acerca del migrante y perspectivas al momento inquietudes surjan, conociendo desde adentro la vida de los migrantes ecuatorianos situación y condiciones muy distintas-, sin embargo me siento identificado como otro inmigrante radicado en la mencionada ciudad. Contexto: realidades y circunstancias de la migración en Ecuador y Barcelona

...la construcción social no es atribuirle a un único individuo ni a un grupo, y tampoco es singular ni unificada, sino responde a una creación compartida socialmente. (Gergen, K. y Gergen, M. (2011)

Experiencias que permiten aproximarse a los fenómenos sociales dentro de los estudios culturales; implica plantear formas de pensamiento coherente con los diferentes procesos sociales dentro del contexto donde se llevan a cabo estos fenómenos, en este caso la intervención en la investigación, desde el discurso interdisciplinario y multicultural, utilizando las experiencias y las vivencias que dejan traspasar y observar desde diferentes puntos de vista del conocimiento, las ideas y las miradas para construir un nuevo discurso, como también hacer un breve análisis de las condiciones que han generado que los ecuatorianos decidan migrar; y echar una mirada breve a Barcelona como ciudad que recibe migrantes. En las ciudades europeas, sin duda las migraciones fueron parte esencial en la época preindustrial para mantener estable a su población y aumentar el número de habitantes menciona en su texto Horacio Capel2. Se sabe que en 1967, el demógrafo John Graunt y varios analistas europeos en el siglo XVII y XVIII en sus estudios mostraban datos de mortalidades crónicas en relación al número de nacimientos en Europa, sumándose también las epidemias y la insalubridad que acechaba a las ciudades, aumentando así la tasa de mortalidad con relación a las natalidades. Situaciones que hacían que las ciudades no puedan reproducirse de manera natural entre sus propios habitantes, necesitando de esta manera migrantes que ayuden a socavar este factor irregular que sufrían las ciudades en esta época, incluso se puede decir que estas tesis se evidenciaron también a finales del siglo pasado y por qué no, en la última década, 2 Horacio Capel (1997) Los Inmigrantes En La Ciudad. Crecimiento Económico, Innovación Y Conflicto Social Scripta Nova. Revista Electrónica de Geografía y Ciencias Socia- les. Universidad de Barcelona. Nº 3, 1 de mayo de 1997. http://www.ub.edu/geocrit/sn-3.htm. Recuperado 27 de Mayo 2014

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como ciudad receptora

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en Barcelona, sumándome a ellos y formando parte de esta comunidad-aunque en

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de abordar este proyecto. La experiencia y las relaciones hacen que las condiciones e

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debido a que algunas ciudades a nivel europeo poseían un nivel alto de longevidad y tasas de fecundidad demasiado bajas. han sido una constante en las ciudades de gran extensión territorial, los grupos “marginales” se situaban en lugares muy aparte de los sitios emblemáticos y céntricos de la ciudad, aunque no han sido graves en Barcelona en comparación con el flujo

a la adaptación y alojamiento de las personas provenientes de otros lados, creando percepción de inseguridad, discriminación, xenofobia e intolerancia. Los factores por los que la gran mayoría de compatriotas migraron a finales de la década de los noventa, fue la crisis que sufrió América Latina, especialmente Ecuador. El quiebre de bancos con todo el dinero de las personas, el cambio y posesión de moneda a una extranjera, la inflación, la intervención errónea en la matriz productiva y otros aspectos político-sociales que acechaban en esa época el país, incidían en la inmensa mayoría al momento de tomar decisiones para abandonar el país y emigrar, a pesar que el Ecuador ya desarrollaba una cultura migratoria a lo largo del siglo XX, hacia Estados Unidos Pedone, C. (2003:67), pero que a finales de los noventa el apogeo hacia Barcelona, una de las tantas ciudades que escogieron los inmigrantes en España se hizo evidente. Mejores condiciones para vivir y plazas de trabajos estables con mejor remuneración y el idioma, eran elementos que consideraban los compatriotas claves para ganar dinero, acumular capital económico y realizar proyectos individuales en el Ecuador fruto de su trabajo en el exterior y las remesas que enviaban a sus familiares. Hay que considerar, que el inmigrante recurría a empleos determinados que no eran apetecidos por los propios habitantes de las ciudad que los acogía; pero que por salarios bajos, la flexibilidad de los mismos y la desregulación muchas de las ocasiones, la situación de los inmigrantes ha sido de precariedad desde el punto de vista legal como indica Horacio Capel, aceptando así labores “informales”, y es ahí, donde el sistema capital y empresarial aprovecha sin que exista un sistema de presión por parte de los obreros sobre alguna falta del contratante -a veces sintiéndose humillados e irrespetados-, quedando varias veces al margen del sistema de protección estatal, en paro y en la marginilidad y sin reparo alguno, (cualquier parecido con la actualidad es pura coincidencia). Sin embargo, Capel menciona que los inmigrantes han sido indispensables para el funcionamiento económico en el campo informal y de servicios, ocupando estas plazas con mano de obra extranjera en años pasados.

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europeas y españolas en sí, donde planteó y surgieron varios inconvenientes en cuanto

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migratorio de la década de los cuarenta o setenta y el de otras ciudades americanas,

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Las diferencias sociales como la segregación y los ghettos desde la antigüedad

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“La importancia de la inmigración para el desarrollo de los saberes técnicos en una ciudad como Barcelona no puede ignorarse”. Horacio Capel (1997)

la ciudad, se destaca así como una ciudad receptora de inmigrantes. Siendo Barcelona, según la IOE3 en el 2001, el segundo destino con el 16% del total de ecuatorianos que residen en España, con bastante diferencia de Madrid (41%), atraída por las posibilidades culturales y desarrollo profesional que presenta el país y la metrópoli al ser una ciudad por muchos estudiantes e intercambios educativos para desarrollar carreras en las Universidades de la Comunidad Catalana, convirtiéndose en una ciudad en constante tránsito, al ser un espacio de coexistencia y mestizaje en lo cultural, social y educativo. Aunque según las estadísticas del Instituto Nacional de Estadística (INE) en España, el primer semestre del 2013, el flujo migratorio se ha intensificado considerablemente, 134.312 personas procedentes del extranjero, se radicaron en España, mientras que, 259.227 personas abandonaron el país ibérico con destino a un país extranjero, un 50% más que el semestre anterior de registrado este censo, según la misma estadística el número de extranjeros descendió un 4% debido a la emigración y la adquisición de nacionalidad española. En el caso de la emigración de los ecuatorianos de España ha sido similar, 11.223 personas buscaron otro lugar de residencia donde establecerse y gran parte han regresado al Ecuador, debido a la actual situación que atraviesan algunos países de Europa y la estabilidad político-social del país. Este acercamiento presenta el contexto y de manera muy general los inconvenientes y vicisitudes que han acompañado en sus experiencias a los inmigrantes en la ciudad, quedan aún detalles sueltos de forma más personal e individual que cada uno ha tenido que vivir con “suertes” distintas; pero sin duda permite visibilizar y situarse lo más cercano posible a las personas que han tenido que vivir en carne propia la migración, el resquebrajamiento en las familias, adentrarse en una nueva cultura y formas de pensar. Marco teórico Ha sido fundamental ubicar el contexto y las razones por la cual la migración ha formado parte de las sociedades urbanas a lo largo de la época industrial en el siglo 3 Colectivo Ioé es un equipo de investigación que desarrolla investigaciones empíricas, cursos y seminarios de formación sobre los temas en que está especializado. Tomado de la página oficial: http://www.colectivoioe.org/. Recuperado el 22 de mayo del 2014.

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multicultural. Esta cifra puede ser variante cada año debido a que es un lugar escogido

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habitantes y cerca de 397.976 extranjeros que representa el 15% de empadronados en

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Es importante mencionar que Barcelona con aproximadamente 1.611.822

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XIX, manteniéndose en el XX. Algunos factores han sido esenciales de la migración como explicación general dentro de la movilidad humana a lo largo de la historia, que culturales y cómo estas se involucran en las denominadas sociedades de “progreso” y antes llamadas sociedad del “primer mundo”.

la enorme aceptación y creciente uso de los medios digitales a nivel global, ha hecho que esta apropiación se convierta en un fenómeno social, resultando innegable el acercamiento de los sujetos hacia éstos y como consecuencia de su impacto ha generado una revolución económica, política, social y cultural a causa de la globalización, enajenada por negocios públicos y privados que se han convertido en parte esencial de satisfacción4 propia y de la sociedad, que ha generado en los últimos años bifurcaciones en las posturas en las ciencias sociales con ideas y planteamientos que hablan del “progreso” como un término intrínseco del capital utilizado por la sociedad humana. Las influencias del capitalismo y el desborde empresarial que se han naturalizado de manera incesante entre los usuarios y consumidores han creado hibridaciones, intercambios y mestizajes sobre las identidades y las sociedades en sí; la forma en cómo esta ingresa en la mente de los sujetos ha trascendido el origen de las imágenes y la forma en cómo son mostradas, incrustándose en nuestro imaginario en forma de perversión por el juego de discursos que nacen a partir de la creatividad del círculo vicioso de la reproducción capitalista y el apogeo consumista. Baudrillard, J. (1970:39), dice que “el modo de regulación, reproducción y mantenimiento de esta sociedad de consumo es contundente y aterradoramente eficaz: la simulación, la apariencia de realidad, ha terminado con la realidad misma”, traduciendo esto en la actualidad dentro del paradigma de la identidad como: la utopía de lo imaginario con imposibilidad de intervención en una reestructuración en el tiempo y el espacio en las relaciones sociales entre los individuos. Rompiendo con las concepciones, miradas del mundo y representaciones de la realidad desde la manipulación de la imagen en un tiempo y un espacio que ya no existe, yendo a estos preceptos se está construyendo algo falso de manera inductiva para cumplir objetivos determinados, incorporando de manera fehaciente la transnacionalización, la dilapidación, el gasto excesivo y la moda 4 La cultura de masas no es típica de un régimen capitalista. Nace en una sociedad en que la masa de ciudadanos participa con igualdad de derechos en la vida pública, en el consumo, en el disfrute de las comunicaciones-, nace inevitablemente en cualquier sociedad de tipo indus- trial. Eco U. (1984). Véase en: Apocalípticos e integrados.

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Sin duda, vivimos en la sociedad del conocimiento, la presencia abrumadora,

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Globalización, cultura popular e identidad

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nutren al momento de abordar la formación de las identidades dentro de los estudios

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Featherstone, M. (2000:50-51), centrándose y concentrándose el capital en un solo poder hegemónico, aunque Gramsci, A. citado en García Canclini, N. (1984), recalca que se burda al opresor y al oprimido-, manifestando que dentro de este replanteamiento se políticas de los sectores populares, ya que el poder ha ido ganando territorio entre la sociedad que cada vez está cegada y forma parte de la realidad que a ellos les interesa mostrar. Entonces ¿Estamos acostumbrados a aceptar y de la misma manera todo lo que nos muestran sirva para lo que quieren que seamos? o ¿Estamos sometidos a este con la sociedad y las cosas que nos rodean?. En la sociedad moderna y posmoderna el significado de la identidad se ha ido perdiendo tanto en las personas como en las cosas, debido al reemplazo de objetos e incluso me atrevería a decir identidades perdurables por descartables, que han sido removidos por la explosiva aparición de productos con obsolescencia inmediata en nombre de “progreso” globalizante, enfatizando lo escrito por Christopher, Lasch. (1985), en ese mundo inmerso de una realidad aparente, “las identidades pueden adoptarse y descartarse como un cambio de ropa”. Pero acaso, la transformación continua de identidad, ¿ha sido consecuencia de todo el aparataje poscolonial que incide en la subjetividad que determina las acciones de las personas?. Sin duda estas experiencias que son generadas de las relaciones humanas son oportunas y asumidas por la vida posmoderna que cambian el sentido y la modalidad de estas experiencias temporo espacialmente; lo importante como describe Bauman Zygmunt no es descubrir, construir , ni inventar e incluso comprar una identidad, sino más bien impedir que esta se adhiera y forme parte del ser, pero ¿de qué se hablaría en la actualidad un planteamiento de “progreso” o desarrollo e identidades, si todo aparece y desaparece al ritmo de un abrir y cerrar de ojos? Describir la forma de vida cotidiana negándose a estar fijado de una u otra forma en algún espacio y tiempo determinado a vivir el día a día, son principios que rigen la “conducta racional” llamada por Bauman haciendo del ahora mal llamado “progreso” se convierta en una partida a corto plazo, donde no existe un pasado ni un futuro, sólo un presente prominente y continuo dividiendo de manera sensata y cercenando las relaciones entre los sujetos que conlleva a una individualización y la segmentación del tiempo en escenas y espacios con precedentes weberianos que construye un patrón normativo y remotamente autonómico, coincidiendo en el discurso de Giddens Anthony (1991) cuando se forjan identidades propias “los individuos intervienen en las

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ejercicio de poder que ha manipulado nuestra forma de pensar individual y en relación

culturales migrantes

debe incluir los procesos de consumos, maneras de comunicación, la organización y

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debe reformular la posición entre lo hegemónico y lo subalterno,-llamado así de forma

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influencias sociales, cuyas consecuencias en implicaciones son de carácter universal y la fomentan de manera directa”, desestabilizando y encaminando a formas de vida humanas y las experiencias obtenidas por esta estrategia inestable en la vida social. En las culturas tradicionales el individuo jugaba un papel pasivo y su voz era esporádica, por tanto la individualidad no era una manifestación de elogio y galardón;

por la desavenencia laboral y la división del trabajo, incrustando la competencia y obviamente el desarrollo individual, sobretodo en la cultura occidental “el individuo ha ocupado un lugar de importancia abrumadora. Los intereses culturales prácticamente quedan absorbidos por la naturaleza de las mentes individuales: sus estados de bienestar, sus tendencias, sus capacidades y sus deficiencias” Gergen, K. (1999), siendo la individualización un paraguas neoliberal concentrado en la producción y prácticas empresariales que constituyen el poder del capital. Aunque comparto en cierta parte con lo que describe Giddens pero a la vez acercándome totalmente a la teoría de Gergen sobre la individualización y el trasfondo de disfunción que plasma para un funcionamiento horizontal en las relaciones interpersonales y sociales generadas por las experiencias vivenciales; no obstante, creo que parte fundamental dentro de la construcción social, el individuo también es considerado como una pieza que forma parte de la interacción del mundo real; el autoconocimiento y el llegar a conocerse uno mismo son parámetros incluyentes y funcionales en las sociedades como forma de construcción/reconstrucción dentro del sujeto y sería una identidad que construya una historia de vida coherente y sobretodo cohesiva. Pero a su vez refuto totalmente el individualismo, ya que el individuo es considerado un ser social que participa en interacciones por medio de lenguajes de comunicación asimilando los procesos de aprendizaje y sociabilización con otros sujetos; además el individualismo pasa a ser una maniobra del capital y una tradición occidentalista, que en varias ocasiones ha mantenido como un órgano representativo y caudillo de integración e identificación dentro de una comunidad, manteniendo al pueblo en una edad infantil determinando sus acciones de manera individual, marcando en la mayoría de veces el camino que tiene que recorrer. En los estudios culturales acercase a este tipo de lugares, posicionamientos y espacios culturales han ayudado de manera significativa a los sujetos encontrar referencias y construir su identidad. Con la posmodernidad estos estudios buscan incorporar dentro de los análisis a los grupos emergentes o los oprimidos que se los

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de las sociedades modernas y posmodernas, el individuo empezó a llamar la atención

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debido a cambios y procesos de institucionalización y al mismo tiempo la aparición

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incoherente y antiadherente, desechando la confianza creada con base en las relaciones

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mencionó anteriormente y por ende la “cultura popular” como la denomina John Storey (2001), tomando en cuenta la “ideología” como un término utilizado por definiciones y un espacio político para la construcción de identidades por medio de las imágenes que busca y ayuda a la construcción del mismo, minimizando el individualismo y sosteniendo que los sujetos forman parte de todo el ámbito social. Pues dentro del construccionismo y mirando esta perspectiva inicial desde donde partió el master podemos decir que: las narrativas que muestran las relaciones sociales, la construcción social, refutando viejas y antiguas prácticas teóricas e interactuando entre estas relaciones y los discursos, tienen conexiones que anclan el conocimiento y la comprensión histórica y culturalmente Andrew, P. (2010), atreviéndome incluso a decir que políticamente, terminan proyectando versiones de construcción y reconstrucción de sus identidades que dependen de las exigencias de los contextos y las relaciones, dando significado a las experiencias obtenidos a lo largo de nuestras vidas y las micropolíticas educativas de aprendizaje como en el caso de investigación. Una vez aclarados lo temas centrales que van a la par con el estudio de caso y el tema a tratar, en las siguientes líneas se aborda y de manera específica, el trabajo audiovisual realizado que se registró dentro de la visita del Presidente de la República del Ecuador, Econ. Rafael Correa Delgado a Barcelona, donde se intentará visibilizar y responder las preguntas antes planteadas y la comunidad inmigrante ecuatoriana utilizando ese tiempo y ese espacio para mostrarse y crear relaciones sociales que sirven para la apropiación y construcción de identidades en ese momento. El lenguaje audiovisual como forma de percibir la realidad Los avances tecnológicos han cambiado la lógica de comunicación, en general, la intención de mencionar al audiovisual como un lenguaje comunicacional no es acercar a las técnicas utilizadas como el plano, el encuadre, la profundidad de campo, etc., para la construcción de un documento visual, sino de hacer una pequeña introducción que pueda insertar un vínculo entre lo práctico y las políticas de producción y transmisión de conocimientos-aprendizajes como describe Sánchez, A. (2011:2), “estas prácticas de visualidad y las más abstractas -o menos visiblesimplícitas en la producción de saber y subjetividad” en otras palabras, lo visible, que se presenta en el audiovisual no solo debe estar estética y técnicamente bien elaborado, sino que debe estar acompañado y

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la forma de ver el mundo y como nos miramos nosotros mismos siendo partícipes en

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que se presentan, no solamente se necesita mostrar el mundo en el que vivimos, sino

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estructuralistas y postestructuralistas, manifestándose como un papel de moderador

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relacionado en los vacíos con las políticas educativas; analizar al audiovisual como un lenguaje concebido por imágenes utilizadas para transmitir mensajes y la importancia conocimientos y aprendizajes en las sociedades. “La forma en que percibimos la realidad está condicionada en buena medida, por los medios audiovisuales” señala Toni Cuadrado Esclapez (2005:6), especialista en

manera global, los mensajes a través del audiovisual han alcanzado a ser más eficaces, debido a la capacidad de comunicación y lectura de las imágenes que van acompañadas de audio y al fácil acceso que estas tienen hacia los usuarios. Al ser un lenguaje de la narrativa no verbal de la cultura contemporánea y uno de los elementos importantes en la composición de los escenarios visuales utilizado por los medios de comunicación para diferentes situaciones y objetivos que quieran emitir, el lenguaje audiovisual posee un entrenamiento complejo previo para transmitir al receptor el mensaje por medio de las imágenes; por lo tanto éstas cobran demasiada fuerza entre los sujetos que las reciben, pudiendo o no ser descodificadas por cada uno de los receptores, mostrando una realidad aparente por parte del gran imperio comunicativo, pero a su tiempo esconden lecturas y poseen significados diferentes considerando el contexto y asimilación que cada una de las personas tiene al respecto al descifrar éstas imágenes. Sin duda vivimos en la época donde la imagen forma parte de nuestro diario vivir, rodeados bajo el ecuménico poder visual y la tergiversación de lectura visual por parte de los receptores, son centros de reflexión que nacen de la posibilidad de encontrar un sentido a este tipo de lenguaje y sirva en la construcción social como elemento mediador, como describe con sus propias palabras Sánchez, A. se describe lo siguiente:

...es necesario mantener para ellas un estatuto incierto que no nos ofrezca (demasiadas) certezas en nuestra búsqueda de sentido. Porque ésta es la naturaleza de toda representación, así como del lenguaje como mediación necesaria de lo real y de nuestras relaciones intersubjetivas. Una vez renunciamos a la inmediatez y la transparencia de la mirada y de la imagen estamos en disposición de explorar las negociaciones y la responsabilidad que entraña dar cuenta de qué podemos saber y cómo, y cuáles son las consecuencias de esta producción de conocimiento. Sánchez, A. ( 2011:2).

La iconicidad de las imágenes y la utilización de las formas de narrar en el lenguaje audiovisual como instrumento comunicacional, debe servir para reflexionar

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los derechos y las libertades de los ciudadanos, y aunque las comunicaciones llegan de

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comunicación y educación; las funciones de estos medios es velar por la integridad,

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que tiene dentro de los estudios culturales como un proceso de circulación de saberes,

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la racionalidad y el papel que juegan en la sociedad, además debe servir para la construcción de valores e identidades en busca de relaciones sociales horizontales y

Hablar de migración en el Ecuador, es hablar de un proceso de sostenibilidad social; durante algunos años después de la decadencia económica de finales de los noventa las remesas enviadas por los migrantes desde el extranjero al país, ayudaba a públicas para la inclusión social tanto para los emigrantes como para los familiares que se quedaban en el país; decisiones que han generado cambios de manera gradual en lo político, social, económico y cultural. La reestructuración familiar se generó años después por el encuentro de los inmigrantes con sus allegados en Barcelona y en otras ciudades de territorio español. Sin embargo ésta fue la época de desintegración familiar más crónica que ha desarrollado el país producto de la migración. A partir de la diáspora, la globalización y con ésta la producción y fabricación de una felicidad en serie, la idea de “progreso”, los conflictos, las consecuencias que llevan consigo y la necesidad de tener un acercamiento con sus parientes simulando un apego simbólico y un sentido imaginado. Es a través de la utilización de los recursos tecnológicos como también han tenido la oportunidad de respaldo y apoyo sin interés alguno por parte de Amaruk Kayshapanta quien es además uno de los tantos inmigrantes radicados en Barcelona y forma parte de mi estudio de caso como productor audiovisual; él, al tener una voz y herramientas técnicas-prácticas que apoye, rescate y manifieste alguna inconformidad, acercamiento o situación sin objeción de nacionalidad, género, edad, etc., de los inmigrantes en la ciudad en mención, con su trabajo promueve la interacción en la producción audiovisual confrontando las experiencias y situaciones que han ayudado de manera significativa en la creación e incluso a reconstruir y mantener viva la identidad de los ecuatorianos, mostrándose así en el registro y posterior producción del audiovisual de la convención antes mencionada. A continuación se muestra un extracto de sus datos para conocer parte de su labor, su trayectoria como profesional y reflexionar a partir de sus aprendizajes, experiencias y conocimientos, transmite con su trabajo en beneficio social y cultural del conglomerado inmigrado:

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mantener económicamente a las familias y coyunturalmente en la incisión de políticas

culturales migrantes

Contraste con el caso de estudio y la práctica con la comunidad

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sociedades más justas.

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El trabajo de Amaruk y la relación con el audiovisual e identidades Amaruk vive en Cornellà de Llobregat alrededor de 17 años, ciudad ubicada al sur-oeste de Barcelona, prácticamente desde que llegó a España se ha radicado en dicho lugar y además la época en que la afluencia migratoria en Ecuador se empezaba a observar más claramente. Tener un contacto con él fue fruto de una búsqueda incesante, pues nace desde el interés de mi parte al querer realizar un trabajo parecido para uno de los seminarios del master y que por motivos de no encontrar conexiones referentes al tema no se lo pudo concretar; el acercamiento se realizó por medio del Consulado de Ecuador en Barcelona, fue esta entidad quien que me extendió contacto para comunicarme con él a través de una red social, donde se explicó de manera rápida lo que se quería abordar en la investigación, interesándole el tema y quedando para una cita al día siguiente. El viernes 14 de marzo, me invita a su casa para que le explique de manera concreta que es lo que se quiere realizar, siendo este día la primera conversación y encuentro que tuvimos, antes sorprendiéndome por su colaboración y amabilidad -para nada idílico-, teniendo en cuenta que no era su conocido y más aún ni siquiera tener claro cual era mi nombre, haciéndome pasar a su piso donde vive y labora una parte de su tiempo, y de mi parte sentirme como en casa al observar su naturalidad y parte de sus adornos ya los había visto en Ecuador de manera similar. Sus saberes ancestrales, su vestimenta, objetos folcklóricos6, música y tradición vislumbran por las paredes de 5 Biografía extraída del libro Memorias de un Mitimae: El Poder del Amautismo. Amaruk Kayshapanta. Ed. Carena. Barcelona. 2014 6 Me refiero a objetos folcklóricos, a todo conocimiento, artesanía, costumbre, música, etc., que posee al ser descendiente de la comunidad indígena Salasaca ancestral de los Andes ecuatorianos.

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identificar los procesos de creación o reconstrucción de identidad en el evento.

ano

Se analizará el trabajo de Amaruk como productor audiovisual, donde intentaré

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Amaruk Kayshapanta Anchapaxci (Ecuador). Artista multidisciplinar, periodista, profesor, escritor, actor, músico, poeta, cineasta, dramaturgo, pintor, fotógrafo, maestro en artes marciales, amauta y promotor cultural. La Unesco le ha galardonado por su insaciable peregrinación por 64 países y por su genio polifacético, por mor de sus conferencias humanitarias a favor de los derechos humanos de la inmigración y de la promoción cultural de las naciones indígenas de los Andes. Se le considera el emba-jador cultural de los inmigrantes latinos en Europa... Es representante del Sindicat de Periodistes de Catalunya. Productor general y uno de los fundadores del primer medio de comunicación televisivo para la inmigración que emite a nivel nacional en España desde el año 20045...Kayshapanta, A. (2014).


su hogar y muestran desde un principio a sus visitantes cual es su origen. Pues sin tener claro aún a qué se dedica y conocer el trabajo y función que realiza. Al ingresar a su por medio de la comunicación con él, en un comienzo mi interés estaba encaminado por el paradigma de identidad centró mi punto de atención al conectar dentro de los estudios culturales, aprovechando sus herramientas de trabajo como formas de interpretación al enfrentarse en las relaciones sociales con los inmigrantes a través de su trabajo con las producciones y transmitirlos por el canal abierto a nivel nacional al cual él forma parte. dentro de la esfera multicultural y apoyo a las comunidades migrantes a nivel general radicados en la ciudad; claro esta, que una forma de devolución al final es apoyar con mi experiencia y aprendizajes como profesional grabando y registrando algunos eventos que colabora, para luego compartirlo como material de apoyo para la realización de los audiovisuales. He asistido como colaborador y apoyo a varios eventos organizados por él como también por personas o asociaciones de inmigrantes; pero como se reitera en varias ocasiones se enfocará solo en el evento de discurso dado por el presidente ecuatoriano, pero, las demás producciones colaborativas sirven para moldear y configurar la estructura como productor y establecer la manera de trabajo que me ayudan hasta el día de hoy a reflexionar y disipar varias dudas generadas a lo largo del proceso de aprendizaje. La manera en la que trabaja Amaruk se genera a partir generalmente de episodios o eventos que congregan gran parte de la comunidad inmigrante, utilizando como herramienta de registro y recolección de información la cámara de video y recursos teórico-práctico para luego producir y postproducir el audiovisual. Es por medio de la experiencia que el productor y promotor cultural posee y sirve de argumento para el trabajo que se esta realizando. El desarrollo se basa en una serie de propuestas de lo que quiere mostrar, creando una serie de espacios para la construcción, relaciones e integración de los sujetos que luego serán mostrados en el producto audiovisual. Aprovechando la visita de Rafael Correa a Barcelona por motivos de convenios con instituciones y reconocimiento otorgado de índole académico otorgado por la Universidad de Barcelona por su desempeño político-económico que afloran en el Ecuador, -mismo que en su discurso menciona que ese reconocimiento dedica a todos los migrantes-, usufructuando esta estancia para tener un acercamiento con los compatriotas, para explicar y detallar los

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La aceptación por su parte no se hizo esperar, pues su trabajo es fundamental

culturales migrantes

otro rumbo, pero esta relación aportó de cierta manera con experiencia y conocimiento;

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departamento ayudó a reconstruir históricamente mi identidad y acercarme a mi país

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avances desarrollados en el país, utilizando Amaruk este evento en busca de registro y acercamiento para transmitir en el canal que labora. acercamientos a perspectivas teóricas postestructuralistas como (Derrida, Foucault, Barthes, Bourdieu, Butler etc), han servido para reflexionar detenidamente desde diferentes enfoques alrededor de la comunidad, la identidad y los aprendizajes que se

se dieron cita a la convención llevada a cabo en el Auditori Fórum; horas antes de las diecisiete que empezaba la ceremonia, había recibido una llamada de Amaruk, preguntándome y a la vez recordándome para confirmar mi presencia y mi apoyo en el trabajo que iba a realizar, con un sí de mi parte. Pues sin duda por retraso y motivos de organización formaba parte de la gran fila realizada por los compatriotas para ingresar al auditorio, mi futuro inmediato estaba en vilo por las circunstancias y la seguridad creadas para el evento y sin tener aún la complicidad de Amaruk hasta ese entonces para ingresar como personal de prensa -menciono esto por que de no haber sido el caso de ingresar de esta forma, la situación y estudio hubiera cambiado totalmente, pues mi enfoque estaba en su trabajo sin ser despectivo con las personas-, mientras esperaba la larga fila para entrar, dialogaba con los compatriotas hombres y mujeres, y observaba sus distintas visiones acerca del evento. ...es el único presidente que ha sacado adelante el país, ha hecho buenas obras y carreteras, ¿Cuándo alguien se ha acordado de nosotros los migrantes?, desde que mi esposo vino por la situación económica del país y luego me trajo a España ningún presidente a venido a vernos, además me gusta verle por que utiliza vestimenta creada en Ecuador y los músicos que se presentan... (Asistente Anónima al evento, recuperado del diario de campo 22 de abril del 2014). ...todas las veces que ha venido el presidente siempre he asistido a los eventos, me gusta por me siento en mi tierra por la música y por informarme como está el país, además es un momento para poder conversar con los amigos y los conocidos... (Asistente Anónimo al evento, recuperado del diario de campo 22 de abril del 2014).

Aunque las personas no mencionaron sus nombres, se puede visibilizar en los diálogos mantenidos, se observa desde un comienzo las relaciones de poder existentes e identidades generadas por los diferentes discursos entre los inmigrados y el acercamiento con el presidente; pues es a través de estos que se da un sentido imaginario de unidad y confraternidad nacional.

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El día 22 de abril del presente año, aproximadamente dos mil ecuatorianos

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han obtenido.

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Después de varios días de desasosiego, replanteamientos conceptuales y

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Amaruk, apareció cerca de la entrada principal del centro de convenciones; muchas personas le saludan, algunas por su reconocimiento de trabajo, otros amigos, coque caracterizan a su lugar de origen, como la mayoría de veces llega acompañado para la realización del audiovisual. Al ser reconocido a nivel local por el medio de comunicación y la camaradería en su trabajo, le extienden una credencial de acceso a un lugar de prensa; mientras tanto yo afuera ha esperas de poder ingresar y soportar los suplicios de la seguridad, me resguardo a un lado de la entrada con la mirada de las poder seguir con mi indagación. En estos momentos siento que soy mirado por todo el mundo, y al mismo tiempo imagino en mi confundido y a veces equivocado pensamiento que soy una presa de ave rapaz que está a punto de ser atrapado, no tengo opción; quiero tomar una fotografía para tener una prueba gráfica y visual para luego interpretar esta emoción, pero me quedo perplejo ante la cantidad de gente. Se acerca Amaruk y me jala para entrar, sin lograr ninguna toma... (Recuperado del diario de campo 22 de abril del 2014)

Después de revisar este escrito del diario de campo y volver a escribirlo, me nacen muchas interrogantes y pocas respuestas a la vez, pero para este momento de escritura para el trabajo final es primordial cuando uno da los primeros pasos dentro del campo de la investigación preguntándome: ¿El investigador siempre siente esa percepción de ser el cuadro que llama la atención debido a la cámara, micrófono, etc., que lleva consigo para obtener registro, desde un comienzo cuando entra en el campo de estudio?. Pues después de reflexionar, recapitular e intentar vagamente volver a ese tiempo, puedo establecer que todo este proceso ha formado parte del bagaje de aprendizaje a través de la experiencia obtenida a lo largo del master y realización de este trabajo, sin duda es un trabajo árduo que ahora comprendo y respeto mucho. La noción de replantearse y tener una mirada distinta de enfrentar a la realidad, son relaciones que se han tenido a lo largo del proceso del programa de estudios, conectando los saberes con la experiencia y estar inmerso dentro de estas relaciones sociales, haciendo de las diferentes posiciones como sujeto siempre se encuentren en tensión y sea parte del desarrollo de aprendizaje. Es decir, el aprendizaje significa un cambio en la persona, no sólo epistemológico, sino ontológico; significa la construcción de una identidad nueva. Andrew, P. (2010) y esta ha de ir variando en el tiempo, dependiendo del contexto donde se encuentre.

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personas sobre mi, mientras intento disimular mi afán de inmiscuirme en la entrada y

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de su equipo de trabajo (cámara, trípode, micrófono, etc.), dispositivos elementales

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laboradores y otros se sienten atraídos por sus rasgos indígenas y culturales, y símbolos

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Tomando las palabras de Luin, Goldring (1998) en Carrillo, M.C. (2008:55) menciona que las comunidades transnacionales adquieren relevancia porque ofrecen a y la oportunidad para incrementar su estatus. En otras palabras, estos eventos generan discursos donde la voz del migrante adquiere suma importancia y puede ser escuchada, ya que el contexto al estar rodeado de personas nacidas en un mismo lugar de origen

les acoge hablando de comunidades transnacionales como lo denomina Luin, Goldring. Sin duda, estas articulaciones y discursos que muestran los migrantes en este acontecimiento son parte como referencia identitaria para las personas que no viven en el país, y a la vez forman parte de la indagación constante en la que me encuentro, recalcando que mi intención no es entrevistar a las personas, -claro que si hubiese existido un cruce de palabras no se los podría negar y tendría que responder-, pero más bien mi papel fundamental era observar lo más cercano posible sus maneras de interacción con los presentes y de inclusión dentro del contexto dado. Una vez ya adentro, los tránsitos, los juegos de miradas y discursos que se vieron en el interior del complejo y como se conjuga entre el trabajo técnico y discursivo que plantea dentro del diseño del documento audiovisual a realizarse. El Trabajo de Amaruk como productor, está estructurada desde mi mirada con la perspectiva de Zygmunt Bauman, en su texto llamado: “De peregrino a jugador”, o una breve historia de la identidad”, donde describe metafóricamente cinco etapas identitarias (el peregrino, el paseante, el vagabundo, el turista y el jugador)7, desde la época moderna hasta la posmodernidad; se hace énfasis en estos para hacer las conexiones y entretejidos del estudio de caso, quiero mimetizar esto porque parece tan importante e inteligible tanto para el lector como para mi y no desvariar en lo que se quiere mostrar. Esto no quiere decir que dentro de su experiencia como productor y migrante solo quepan estas identidades referenciales, sino más bien prever como un sustento dialógico y demostrativo como lo plantea Bauman que distingue y maneja la identidad desde un espacio y tiempo; diferencias que han ido cambiando en relación a un tiempo determinado y esto solo es una parte del todo en la construcción de la identidad del productor y la sociedad. 7 Bauman, Z. (1996). Metáforas que utiliza el autor para describir la identidades mediante tránsitos que pueden tener la persona a lo largo de la vida. En este caso no se utilizará todos y los que se mencione se los hará de manera alternada. Véase en: De peregrino a turista, o una breve historia de la identidad. Cuestiones de identidad cultural. Hall, S y Gay, P. (coords). Amorrortu. Madrid. (1996).

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pertenencia en un tiempo y espacio e incluso la distancia entre el país de origen y el que

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con situaciones comunes, ayudan a tener articulaciones, sentimientos de identidad y

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los migrantes un contexto idóneo en donde pueden encontrar valorizadas sus demandas

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En anteriores líneas había adelantado sobre anteriores eventos asistidos con el respaldo de Amaruk, cabe señalar que este extracto sirve para contrastar y realzar del 2014 se realizó una marcha de confraternidad en apoyo a Ecuador en contra de asistieron delegados de diversas nacionalidades latinoamericanas. Amaruk por su parte permitía y daba espacio a las diferentes formas de manifestarse de estas comunidades, realzando el folcklor, la danza la música y las expresiones tanto idiomáticas como de representación, incentivando por su parte a los transeúntes propios y extraños de estas a través de los medios digitales y la televisión. Creo que es importante mencionar este singular hecho para dar cuenta en qué sentido trabaja e interpreta como productor, para construir posibles formas de inclusión, donde la voz del inmigrante tiene su espacio y se sienta identificado con él contexto, haciendo hincapié en lo que trata de mostrar e incluir en el documento audiovisual al momento de exponer. Continuando con el día 22 de abril del 2014 cerca de las 17H30, estaba parado dentro del Auditorio esperando que Amaruk disponga en ese momento de un poco de su tiempo para preguntar ¿Cuál era la tarea de ese día?, mientras interpretaba erróneamente lo que intentaba hacer Amaruk con el equipo de grabación, observaba en el espacio aún vacío los posibles puntos estratégicos para una toma que me sirva de respaldo; Amaruk por su parte apresuradamente rebuscaba dentro de su mochila improvista algún detalle en concreto para el soporte de la cámara, mientras montaba los equipos en el trípode y ajustaba detalles en los dispositivos iba explicándome lo que quería que colabore registrando en el evento -con voz alta debido al estruendo de los parlantes que vibraban al son de la “Patria Grande” y que formaba parte de la prueba de sonido-, al mismo tiempo acomodaba su sombrero y la camisa autóctona de su comunidad, intentando sacar en cámara estos pequeños detalles sin ocultar su lugar de origen. Amaruk: Verás mi hermano... esta parte de aquí es para prensa, pero yo me voy a quedar en ese lugar de ahí (señalando con su dedo índice donde se colocará), yo voy a estar atento al discurso del Presidente, mientras tanto tu me ayudas a registrar detalles de la gente y te das una vuelta cuando se vaya llenando el auditorio. ¿Sí?. Juan Diego: Listo, no te preocupes intentaré registrar lo que pueda siempre y cuando el personal de seguridad me deje pasar.

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culturas latinoamericanas y atraídas por el resplandor cultural, para luego ser mostrado

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una empresa petrolera que contaminó una parte de la selva amazónica del país, donde

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dentro de la investigación y balancear el trabajo en general del productor. El 15 de marzo

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Amaruk: No importa haz lo que puedas e intenta grabar a personas con banderas y demás Mashi Juan Diego -mientras me daba unas palmadas de ánimo en la 8

Por el momento ya me había adelantado realizando algunas tomas de las que me había mencionado, sin embargo el auditorio aún estaba vacío y faltaba algún tiempo para el ingreso de la gente, así que esgrimía de mis recursos y reflexiones para dar

Realiza una introducción breve del contexto y lo que se va a realizar en esa tarde, dentro de su pequeño repertorio menciona su productora “Pachamama Producciones9” tomado de una legendaria lengua que persiste en Ecuador y algunos países latinoamericanos. Hasta ahora se ha dilucidado varios aspectos de su vida que involucran y envuelven a los migrantes cuando miran su gama de elaboradas producciones, paradigmas que dan señales de construcción de identidades entre esta comunidad. Pero ¿Por qué se desarrolla de esta manera y en estas circunstancias?. Varias son las pistas que se pueden observar que determinan que Amaruk tome esta posición, no deja de estar arraigado a su tierra, crea redes de resistencia con la cultura sin abandonar sus raíces. Se puede decir y conectar con el ejemplo de Bauman “el peregrino” y más cercano a la modernidad con “el paseante”, Amaruk al parecer siente el ímpetu de transmitir con base en su origen y de re-construir parte de la identidad que lo caracteriza, y creo que su objeción principal es el alejamiento y apropiación de una identidad donde el objetivo sea la acumulación del capital evitando su fijación, enfatiza con su discurso una estrategia de convivencia y el bien común, quien con su propia voz describe: “No se puede cambiar una estructura social humana, sino se vuelve al origen”, recalcando su sapiencia ancestral y su valor humanista y de cierta forma construccionista por el conocimiento que transmite con sus experiencias. Continuando… Amaruk: Juandi...has una toma por favor donde salgan las banderas y los globos que se encuentran en cada uno de los asientos, hasta mientras yo entrevisto a los músicos y lo que está por el escenario. Juan Diego: no te preocupes, ya lo hago (mientras me dirijo hacia abajo hacer un paneo (técnica de movimiento de cámara) de todo el escenario. Amaruk: (sigilosamente camina mientras avanza por el escenario, por cierto lugar donde es restringido, conversa con los músicos mientras toma fotografías y les 8 Término kichwa que significa “amigo” muy utilizado en la comunidades indígenas de Ecuador, y que en los últimos años ha sido utilizado por el Presidente de la República con el fin de reinvindicar al país como multicultural. 9 Término kichwa que significa “Madre Tierra”.

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como mi ayuda y también seguir a Amaruk con lo que él realiza a cada momento.

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seguimiento la indagación, pues ahora tenía doble trabajo, registrar lo que había aceptado

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espalda y se preparaba para empezar a grabar-.

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entrevista). Entre risas y grabando expresa: Envíen saludos para los migrantes aquí en Barcelona y a Ecuador. asignado, de a poco los periodistas de medios locales y extranjeros van copando sus donde se pueda ver lo más claro. Unos entran con camisetas de la selección de fútbol, otros entre sus manos llevan banderas tricolores, familias completas, entre amigos, etc., demostrando interés por el acto. (Recuperado del diario de campo 22 de abril del 2014). Poco a poco los migrantes iban copando los asientos; Amaruk por su parte alguna persona que muestre algo más que los símbolos patrios; dicho sea de paso, he notado dentro del desempeño que se ha mantenido y la constante en su trabajo es evidenciar lo tradicional (fotografías 5), con el fin de formar una identidad con obtención de intereses o un reconocimiento y a su vez sea representada gradualmente a un sistema, donde la comunidad o colectivo anteriormente quedaba totalmente excluido y que por ahora en estos medios puede ser incluido y tomado en cuenta. Los intereses simbólicos abalizan el sentido de la identidad comunitaria, siendo en este aspecto los individuos y el colectivo actores sociales que perpetúen con estos intereses, haciendo que la identidad perdure y este reconocimiento influya en las relaciones entre la comunidad inmigrante y la comunidad receptora, lugar que escogen como un espacio de desarrollo conectando en partes con los ejemplos de Bauman “el peregrino” y “el paseante” donde se traduce y lo relaciona este último con el zapping, conviviendo entre superficies y una dependencia ligada a la libertad y el cambio constante hacia un exagerado consumo, paradigmas que Amaruk trata de disolver con su discurso, buscando la razón de una sociedad y justicia social más equitativa. Una vez más el universo simbólico establece una jerarquía, desde las aprehensiones de la identidad “más reales”, hasta las más fugitivas, lo que significa que el individuo puede vivir en la sociedad con cierta seguridad de que realmente es lo que él considera ser cuando desempeña sus “roles” sociales de rutina, a la luz del día y ante la mirada de los otros significantes. Berger, P y Luckmann, T. (1968). Patricia Andrew menciona que “la tradición, los emblemas, los lazos de sangre y los vínculos con la tierra son sus señas de identidad” (como se observa en las fotografías 5 y 6), por ello al formar parte activa del proceso en las prácticas socioculturales y políticas, la comunidad gradualmente se acerca a una plena participación de sus miembros. La integración y el desarrollo comunicativo dentro de la comunidad, y que por medio de la narrativa que crea Amaruk fortalece lo perteneciente a la comunidad

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dialogaba con sus colegas de los medios de comunicación locales, mientras observaba

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puestos, mientras tanto la gente empieza a entrar apresurada por conseguir un puesto

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Siguiendo la corriente protocolar vamos ocupando el lugar que nos habían

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inmigrante y gana validez política en los espacios públicos a través de los medios comunicacionales que reafirman sentimiento de identidad cultural, social y política en

construcción de identidades en el audiovisual y que se ha visibilizado en el proceso de esta indagación. Este ejemplo es uno que más encaja en la estructura del audiovisual que inserta como productor. Pues en el registro no existe un guión o itinerario de por medio, a lo mejor conozca experiencias anteriores de este tipo de eventos pero nada más que eso. El productor lo que busca es la voz del inmigrado de manera “performática” y representar al colectivo por el acceso y prestaciones que posee; en el proceso no le preocupa lo que viene después ni se sabe lo que irá a continuación, preguntándome: ¿El productor no solo busca esa recreación de identidad en los inmigrantes, sino que el también trata de ser parte de esta construcción y aprendizaje? o ¿Él también forma parte de este linaje pedagógico, en forma de auto-construcción de identidad?. Su experiencia se arma entre historias y fragmentos que se interconectan entre sí, no posee un lugar estable dentro del contexto determinado y se deja llevar por las esperanzas que lo hacen movilizar, entonces el aprende a cada paso que da y registra con su cámara, mientras que las frustraciones las deja atrás, logrando esquivar los dilemas que se presenten y tomando un rumbo diferente a cada situación. Se dispersa en el lugar para no enfocarse en el discurso principal del evento, sino más bien intenta diseminar todos los sectores y espacios entretejiendo las miradas de los transeúntes presentes y el centro de atención de todos. Registra lo “exótico” o inédito y las pocas pertenencias que aún quedan, dejando entrever las hibridaciones que se han concebido del consentimiento de la sociedad, incluso se contrasta con la teoría marxista de alienación10 en cuanto al proceso de incorporación al ámbito social que han vivido y viven los inmigrados, actuando de forma contestataria y respondiendo a las necesidades de ellos, esto es lo que observo mientras camina y se acerca a las diferentes personas, y aunque no se lo que piensa en ese momento como productor o migrante, mediante sus gestos intento traducir lo que busca en sus tomas de registro: 10 Mi perspectiva en cuanto a la teoría se trata de la explotación de las personas donde su valor que representa es el capital y la propiedad privada, dejando que la estructura del capita- lismo este sobre el valor de la humanidad.

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Otro ejemplo de Bauman es: “el vagabundo”, sirve de guía dentro de la

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Con relación a ese proceso de equilibrio, los conjuntos simbólicos relativos a la imagen, expresan una ratificación de los significantes de mayor poder relevante en los espacios culturales, haciendo posible la caracterización de los íconos de la identidad y/o formaciones identitarias de una determinada cultura. (Barthes, 1980).

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palabras de Barthes:

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vinculaban de cierta forma la identidad de género entre los asistentes, afincando desde mi punto de vista y el de Amaruk existe desavenencia por la disociación del colectivo a veces por cuestiones políticas y situaciones ajenas a la comunidad migrante, cuestiones que se registran pero dentro de este marco, él como productor intenta equilibrar las situaciones con los sujetos y no desarraigar todo lo construido que identifica al colectivo sin apartar y estratificar las relaciones ya preestablecidas. Corroborando las palabras de Berger y Luckmann: “El lenguaje es capaz de hacer presente una diversidad de objetos que se hallan ausentes -espacial, temporal y socialmente del aquí y ahora” Berger, P y Luckmann, T. (1968). Es decir contrasta y convergen los hechos de la realidad social en fin de construir identidades donde el sujeto se encuentre encima del capital. “El turista”; Bauman en este ejemplo enuncia buscar experiencias nuevas y diferentes ya que las conocidas se encuentran desgastadas y no dejan de llamar la atención, marcando claramente el trabajo de Amaruk al utilizar recursos emergentes y tonalidades distintas -refiriéndome a los espacios y reportajes que exhibe-, “elementos que elige y quiere zambullirse de acuerdo con su exotismo, pero también por su inocuidad” Bauman, Z. (1996), con el respaldo del colectivo como herramienta de voz, periodismo social de ayuda humanitaria y denuncia ciudadana, apropiándose para usarla de manera de resignificación y representación, desarrollo que se fundamenta en valores, identidades e imaginarios Rey, G. (2010, p.14), fortaleciendo estas identidades que apoya la diversidad cultural estimulando la participación social y ciudadana hacia un trabajo comunitario, rompiendo los estigmas y paradigmas que el migrante ha llevado a lo largo de la historia, aunque “el jugador” otro ejemplo de Bauman, lleva casi la misma consigna, como su nombre lo dice: solo es un juego, cada uno de estos tiene su principio y su final, y cada encuentro si no se ha dado un final claro se puede parecer a una continuación, lo que hay que tener de partida es dar un final y escurrirse en el

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situaciones del proceso migratorio del país con procesos burocráticos, y aunque

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Las relaciones de poder, generadas a partir de los discursos del evento,

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...aún cuando estoy a más de doce mil kilómetros de distancia de mi hogar, siento confusión en intervalos de tiempo mientras avanza la filmación, parece alguna convención de algúnespectáculo de música autóctona o gente reunida en un coliseo como si fuesen a ver el partido de la selección de fútbol, la algarabía que provoca la presencia de un dignatario, sumado la música, la publicidad proveniente de Ecuador y la conducción de la señorita que anima el evento, reinvindica la identidad en el conglomerado presente esta tarde... Lo siento mío... (Recuperado del diario de campo 22 de abril del 2014).


próximo juego en algo nuevo y empezar de cero, corroborando a lo que se dijo en un principio tratar de no apegarse a ninguna las identidades.

El productor se estremecía al observar que parte del colectivo se ha dejado llevar

claramente en la identidad de los jóvenes inmigrantes, donde se a transformado lo natural por la afinidad al contexto, sin embargo esta apropiación puede ser dúctil conforme a la experiencia y los aprendizajes que cada uno vaya descifrando y obteniendo en sus vidas. Los fotógrafos y periodistas cogen mejor posición para ajustarse a las situaciones del evento, Amaruk por su parte parece reflexionar en medio de la concurrencia, me observa por unos segundos y sonríe -era señal de haber hecho un buen trabajo-, mientras sigue registrando las acciones y los gestos de la mujer inmigrante, dando énfasis a ellas por la lucha y la resistencia que han sobrellevado en su peregrinaje y travesía, sabiendo que vivimos en una sociedad cambiante e incierta a la vez, con un futuro imprevisible y el Estado de Bienestar cada vez en decadencia, realzando el espíritu y el gran trabajo femenino. Estaba a punto de terminar el evento, y aunque duró más de una hora y media, la gran parte del tiempo durante nuestra permanencia fue discurso de las autoridades, y presentación de grupos artísticos. Amaruk continuaba con su labor de reportero itinerante, caminando con carácter prodigio y generoso, disimulando su cansancio y tal vez pensando en el siguiente paso que es la edición del material registrado; se notaba entre sus movimientos la noción de querer salir -si mal no recuerdo tenía otro evento que cubrir de igual forma para inmigrantes-, aunque lo dudaba que lo haga por su árduo trabajo realizado ese día. Por mi parte me despedía para salir antes de toparme con la aglomeración en la salida -el evento siguió pero decidimos salir antes-; tenía que ese mismo día enviar los registros para la edición del documento visual, estaba agotado, reflexionando y meditando mientras caminaba a la parada “El Maresme-Fòrum” sobre lo que había observado y sentido en todo este proceso, pues estos cuestionamientos son aprendizajes constantes dentro del caminar y el desarrollo de las experiencias con lo social. Por otro lado se pudo observar que el trabajo del productor conecta con el “Amautismo”11; temática que plantea desde su espiritualidad como indígena Inca de 11 Filosofía milenaria que estudia la cosmovisión de los Andes, los Amautas eran quienes impartía educación a los hijos de los nobles de la época. Véase en: Kayshapanta, A. (2014). Memorias de un Mitimae: El poder del Amautismo. Ed. Carena. Barcelona. 2014

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el esteticismo sin duda a tomado cuerpo en algunos de ellos, sobretodo se observa

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por el detrimento de la sociedad con la llegada del posmodernismo y la alienación,

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...no tengo que inventar ningún tipo de ficción... por que más ficción que la vida real imposible... (Kayshapanta, 2014, p. 100).

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los Andes como se autodenomina: la revolución, solidaridad, comunidad, identidad, dualismo, ecología, el despertar de la conciencia sociológica y formas de ver el mundo tos que tengan proximidad hacia los sistemas sociales para un mundo más unánime identificar y se interrelaciona entre lo espiritual y lo amautico, aunque en este punto me surge una interrogante: ¿De qué se habla de espiritualidad y un cambio global, sobre todo en el mundo occidental, si no existe una creencia de divinidad y más aún de pedagogía a través de esta visión?. “amautiana” no se acerca a ninguna ideología ni religión y más aún a una posición inquisidora, sino como una propuesta pedagógica donde se dirige directamente a los grupos divergentes (migrantes en este caso, dirigido a todo tipo de personas y colectivos) como una forma de construcción de identidad y enseñanzas que puede ser utilizada por la “pedagogía crítica para aprender de los saberes, a menudo subyugados, de las tradiciones africanas, afroamericanas, asiáticas e indígenas. Kincheloe, J. L. (2008:27), evidenciando de esta forma en el trabajo de Amaruk una especie de “minga12”, donde se aprende con la cosmovisión indígena, la práctica y sus valores, y que las relaciones sociales convocan al trabajo comunitario que beneficia a todo el colectivo. Por lo tanto su intención no es solo informar, sino que además de reconstruir identidades -o no-, involucra socialmente al colectivo que generan a su vez posibilidades pedagógicas y micro-políticas educativas prácticas y funcionales a la comunidad. Desde una posición reflexiva, es considerable mencionar que dentro de este trabajo audiovisual y en sí, las relaciones generadas en el evento, están entretejidas todas nuestras identidades y varían de acuerdo al contexto social y tiempo que se presentan, aunque ésta construcción no sea un proceso no quiere decir que debería tener una secuencia, sino que se reproduce por comportamientos de patrones hegemónicos dentro de la cultura popular, y estos comportamientos hace que el colectivo migrante sean los principales referentes de identidad para los demás sujetos de la comunidad, obteniendo reconocimiento y aceptación tanto en el Ecuador como país de origen y el espacio público en la ciudad receptora. Por lo tanto es muy importante y fundamental la “lectura que el migrante hace de sí mismo para observar cómo interpreta su situación objetiva y concibe la utilidad de las imágenes” Carrillo, M. C. (2008:59). Es decir que cada migrante se haga un 12 Del kichwa minka que significa trabajo comunal. Reunión de amigos, vecinos, com- pañeros, etc., con la finalidad de hacer un trabajo comunitario. http://educacion.gob.ec/wpcontent/uploads/downloads/2013/03/RK_ diccionario_kichwa_castellano.pdf

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Con esta perspectiva lo que he podido observar y descifrar esta propuesta

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y una estabilidad horizontal en todo aspecto. Propuesta pedagógica que se logró

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desde la desestructuración mencionada en su libro, el desaprendizaje y replanteamien-

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autoanálisis de cómo asimilan la recepción de las imágenes, -en este caso el trabajo de Amaruken función de una estructura social y comunitaria que sirva para autogestiorelacionarse socialmente con el contexto receptor.

Con las voces de los migrantes, incluyéndome en el colectivo, debemos aceptar que el mundo avanza a un ritmo de movilización desplegado por hombres y mujeres a nivel general, el respeto, la solidaridad y altruismo como indica Amaruk, es una posibilidad de enunciar un nuevo camino hacia la reinvindicación en busca de una estabilidad política, social y cultural en el mundo, por el momento solo nos queda reflexionar y seguir buscando experiencias. 4. Consideraciones finales Después de haber recorrido por estos tránsitos, se puede visibilizar de mejor manera cómo las imágenes en general influyen y suplantan una presencia en la construcción de identidad y social del colectivo migrante en Barcelona. La participación por medio de estos actos representan de forma imaginaria y simbólica las identidades, aceptando sus raíces y no lo toman como una reconstrucción, sino que estas se unifican en los tiempos de modernidad tardía como lo denomina Hall, S. (1996:17) y están construidas de diferentes posiciones, discursos y contextos que se entrecruzan normalmente o en otra ocasiones de manera antagónica, vinculadas históricamente y en constante transformación y esto depende de la

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...sus programas yo lo tomo muy bien por que es migrante igual que yo, como yo he migrado de mi tierra Andalucía, aunque de otra forma pero igual han venido acá, por que estaban en mala situación en sus países pero tenemos que convivir entre todos y Amaruk trata de mostrar eso, pues tengo hija y nietos y no sabemos si en algún momento ellos tengan que migrar… (Catalina Torres-Migrante de Linares-Andalucía. Recuperado del diario de campo 22 de abril del 2014).

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...siempre estoy viendo el tipo de programas que hace, me parece muy importante y muy informativo en cuestión de migración. Este tipo de programas nos enseña la realidad de lo que sucede y está pasando en este tema. Es necesario este tipo de programas por que enseña nuestra realidad sin ser ficción y cuando muestra historias de Ecuador pues... Nos estamos reflejando ahí!... (Farid Salomón-Migrante ecuatoriano. Recuperado del diario de campo 22 de abril del 2014).

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nar su supervivencia y la integración tanto individual como colectiva al enfrentarse y

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relación que se genere entre los sujetos que conforman el colectivo y el contexto de acogida. es marcado de manera performática que el productor lleva como estrategia de inclusión la producción sea el propio colectivo migrante, contrastando la realidad del productor con esta comunidad. Cabe recalcar que la participación del productor como agente de información, respaldo y mediador en función de la necesidad de los migrantes está en constante cambio y evolución, pues al ser cada uno de los trabajos audiovisuales que va los saberes y las experiencias recogidas a lo largo del proceso tanto en su vida como al colectivo al que “representamos”. Por otro lado, y haciendo acorde a lo dicho anteriormente sobre la pedagogía “amautiana”, es necesario e importante mencionar esta perspectiva que se identificó, ya que son varios procesos los cuales se encuentran inmersos de cierta manera los grupos vulnerables, donde Paulo Freire también rescata este tipo de formas de aprender a través de saberes y principios ancestrales. Lejos de todo, las voces y la pedagogía que se imparte en participación con la comunidad en busca de un bienestar social horizontal, suma y rompe con las prácticas hegemónicas del poder y el capital que han hecho caer en la diáspora social y la globalización, y lo importante de todo es estar inmersos en estos procesos de cambio para una sociedad más justa y equitativa. Hay que tomar en cuenta que aún, cuando pienso que he acabado este trabajo, pues siguen generándome interrogantes, asumo por ahora que es parte del proceso, debido al tiempo y al contexto mis ideas siguen en constante transformación que más adelante tendrán sus conexiones, seguiré en busca de estas experiencias¡¡¡. Además es importante recalcar que por motivos ajenos a esta investigación, mientras se redactaba y finalizaba este trabajo el productor decidió no sacar al aire el audiovisual producido en dicha ocasión. La razón la desconozco. 5. Bibliografía ANDREW, P. (2010). La identidad y el aprendizaje: una perspectiva social Multidisciplina. Revista electrónica de de la Facultad de Estudios Superiores de Acatlán. Ed. 6. pp 5-13. México. 2010. ATKINSON P. y HAMMERSLEY M. (1994) Etnografía, métodos de investigación, Barcelona: Ed. Paidós

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realiza nuevos y sin precedentes, es un aprendizaje mutuo y atañe de forma significati-

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y participación, logrando que el guionista y muchas de las ocasiones la dirección de

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El acercamiento que se produce al contexto de origen como al contexto local,

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BARTHES, R. (1980). Mitologías. Siglo XXI. México

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I dentidades

Lavanguardia.com. La población extranjera en Barcelona se

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Comunicação

e consumo nas wearable technologies

Vicente M artin M astrocola Doutorando em Comunicação e Práticas de Consumo (ESPM, São Paulo). E-mail: vincevader@gmail.com

Gilesa G. S. Castro Docente do PPGCOM ESPM (São Paulo). E-mail: castro.gisela@gmail.com

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6 - n. 2 |

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Resumo Tendo em vista a centralidade das relações entre comunicação, consumo e tecnologia, este artigo examina determinados dispositivos digitais que se hibridizam ao corpo humano e que se situam na categoria das wearable technologies. Como parte de projeto de pesquisa doutoral em andamento, discutimos como o entrelaçamento de diversos objetos tecnológicos está reconfigurando o cotidiano e gerando novas possibilidades para pensarmos as materialidades da comunicação e do consumo. Neste contexto não nos atemos a um device específico. Procuramos refletir, de maneira ampla, sobre diferentes integrações entre humano e não humano, ponderando sobre o que constitui o campo das tecnologias vestíveis e discutindo como elas hoje participam das estratégias de relacionamento entre marcas/empresas e seus consumidores. Palavras-chave: comunicação e consumo; cibercultura; wearable technology;

Abstract In view of the centrality of the relations between communication, consumption and technology, this paper examines certain digital devices that hybridises to the human body and sit in the category of wearable technologies. As part of on going doctoral research, we discuss here how the intertwining of different technological objects is reconfiguring daily life and creating new possibilities to think the materiality of communications and consumption. In this context, we will not attain to a specific device. We seek to reflect, broadly, upon different integrations between human and non-human, pondering what constitutes the field of wearable technologies and discussing how they participate in branding/relationship strategies among companies and consumers. Keywords: communication and consumption; cyberculture; wearable technology.


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avanços tecnológicos mirabolantes que iriam se tornar realidade em futuros longínquos. Em 1870, Júlio Verne narrou as aventuras do Capitão Nemo e

seu submarino Náutilus em Vinte mil léguas submarinas. Na década de 1980, foi lançado o icônico Neuromancer, cuja narrativa se desdobra em uma sociedade na qual existem indivíduos que se conectam a um locus virtual denominado “ciberespaço” – termo cunhado pelo autor Willian Gibson – através de uma sofisticada integração entre cérebro e máquinas. Neste ambiente, o corpo é digitalizado e no desenrolar da trama tem-se o questionamento acerca das consequências de se expandir a mente para além dos limites do humano. Nitidamente inspirados por esta obra, conjugada com outras referências, os irmãos Wachowsky criaram para o cinema a trilogia Matrix, composta pelos longa-metragem Matrix (1999), Matrix Reloaded (2003) e Matrix Revolutions (2003). Os três filmes contam sobre um grupo de resistência humana que luta contra a hegemonia de máquinas pensantes conectando a mente em um ambiente virtual futurista no qual as regras do dito “mundo real” podem ser alteradas e a tirania das máquinas eventualmente superada. Dentro deste cenário virtual, humano e máquina se misturam desenrolando a trama da franquia, que virou um blockbuster dentro do gênero de ficção cult. Poderíamos trazer um sem número de outras referências advindas da literatura, cinema, música, teatro, dança e história em quadrinhos para essa discussão sobre as tecnologias que se acoplam e de certo modo reconfiguram o corpo humano, mas, por enquanto, vamos nos ater a estes breves exemplos iniciais para contextualizar nossa discussão. Entendemos, na contemporaneidade, que a conjugação entre comunicação, consumo e tecnologia vai além da mera aquisição de aparatos de última geração ou de ficções que se materializaram no cotidiano; em nosso trabalho, buscamos entender as articulações entre estes três temas e como eles orquestram novas configurações do

6 - n. 2

D

esde os seus primórdios, a ficção científica sempre tratou de fantasiar com

ano

Introdução: da ficção para o cotidiano


social e abrem campo para novas modalidades de diálogo entre empresas/marcas e consumidores. computadores, tablets, smartphones e video games como partes de um enorme rol de aparatos tecnológicos merece um lugar de destaque. São inúmeros os formatos destes e se ligam a sites de redes sociais digitais. É sempre bom lembrar que computadores sofisticados e os atuais gadgets repletos de funcionalidades possuem um precursor: o ENIAC (Eletronic Numerical Integrator and Computer), criado na década de 1940, logo após a Segunda Grande Guerra. Segundo McCartney (2001, p.20), este foi o primeiro computador programável e totalmente eletrônico do planeta. Como se sabe, desta data até hoje, os avanços foram significativos e temos boa parte do mundo conectado de maneira rizomática a computadores e redes Este ambiente extremamente plural, conectado e repleto de tecnologia cria um complexo cenário para estudarmos determinadas mudanças sociais e formação de novos cenários para estratégias de comunicação e consumo. Arjun Appadurai (1999, p.313) ao observar este vasto cenário, utiliza o termo tecnopanorama para explicitar a configuração fluida da tecnologia em algumas sociedades e como ela “se movimenta em alta velocidade através das diversas formas de barreiras anteriormente intransponíveis”. O que este autor propõe ao falar em tecnopanoramas é que estamos imersos em uma realidade repleta de aparatos tecnológicos com capacidade de conexão que reconfiguram a própria sociedade. Complementando a ideia exposta acima não podemos deixar de mencionar também a enorme quantidade de telas que nos cercam no cotidiano; no contexto de tecnopanorama determinadas telas (computador, tablet, smartphone, relógio inteligente etc.) assumem o protagonismo de uma grande quantidade de novas configurações de comunicação. Como diz Castro (2012, p.65), estas “múltiplas telas funcionam como próteses sensoriais, cognitivas e identitárias”. Através delas consumimos conteúdo, nos comunicamos e, de certa forma, mostramos aos nossos pares quem somos, o que valorizamos e como escolhemos nos identificar socialmente. Vale ressaltar que tais telas mudam até mesmo alguns processos cognitivos e sensoriais de seus usuários e não é incomum recorrermos ao visor do smartphone, por exemplo, para consultar um endereço, ou um número de telefone ao invés de usarmos nossa memória para tal. Mais do que simplesmente estabelecer diálogos entre pessoas, a enormidade de telas e aparelhos computadorizados permite que empresas criem estratégias de vendas

• Vicente M artin M astrocola - G ilesa G. S. Castro

digitais de comunicação, sociabilidade e negócios (Castro, 2012a).

e consumo nas wearable technologies

dispositivos, sendo que muitos deles possuem a capacidade de conexão com a internet

Comunicação

Dentre as práticas que caracterizam a contemporaneidade, o uso regular de

133


de produtos para consumidores, governos armazenem informações sobre cidadãos em seus diversos bancos de dados e que laços afetivos sejam estabelecidos entre tecnologia caminham paralelamente e as diferentes telas/aparatos que estão presentes neste contexto atuam como próteses midiáticas. Sobre este assunto, Lacerda (2011, p.128) observa que as “próteses midiáticas

consumo material e simbólico articulam-se novas maneiras de nos relacionarmos com o ecossistema comunicacional – um sistema midiático que nos envolve - permeado pelas próteses midiáticas de todo o tipo. Afinal de contas, é esta multiplicidade de aparatos e telas conectadas que permite um gigantesco número de interações humano/não-humano e não-humano/ não-humano. Este privilegiado ambiente de conexões entre diferentes tecnologias vem sendo chamado de Internet das Coisas, que Lemos (2013, p.239) define como um conjunto de redes, sensores, atuadores, objetos ligados por sistemas informatizados que ampliam a comunicação entre pessoas e objetos (o sensor no carro avisando a hora da revisão, por exemplo) e entre os objetos de forma autônoma, automática e sensível ao contexto (o sensor do carro alertando sobre acidentes no caminho). Objetos passam a ‘sentir’ a presença de outros, a trocar informações e a mediar ações entre eles e entre humanos.

Neste contexto, há a possibilidade de aparatos tecnológicos e indivíduos trocarem informações o tempo todo, alterando sobremaneira a primazia do humano nos arranjos comunicacionais que se estabelecem em rede. Hoje, não é incomum que seja possível até mesmo converter informações corpóreas, como batimentos cardíacos e queima de calorias, em dados digitais por meio de certas tecnologias de monitoramento. Tais informações monitoradas podem se transformar em alertas ou dicas para o usuário; uma pulseira inteligente da área de fitness, por exemplo, pode alertar seu utilizador sobre esforços prejudiciais ou sobre um melhor/pior desempenho na prática esportiva. É neste ambiente de interface entre o humano e o tecnológico que buscamos examinar a ideia de wearable technology. Este é um tipo de tecnologia digital que se manifesta em um grande número de formatos e que se conecta ao corpo do usuário gerando novas interfaces humano-máquina. Sibilia (2002, p.19) postula que, neste ambiente digital de múltiplas plataformas e de diversas conexões, os corpos “se apresentam como sistemas de processamento de dados, códigos, perfis cifrados, feixes

6 - n. 2

do ambiente”. Dito de outro modo, na inter-relação entre tecnologia, comunicação e

ano

passam a participar cada vez mais da produção de sentidos nos processos de configuração

Revista GEMI n IS |

aqueles que participam das trocas comunicacionais nas redes sociais digitais. Mídia e

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de informação”. Ao analisar esse fenômeno, a autora entende que “o corpo humano parece ter perdido a sua definição clássica e a sua solidez analógica: inserido na esteira imagem abaixo (Fig. 1) exemplificam o que estamos discutindo.

Dentre os produtos relacionados aos treinos de corrida que fazem parte das práticas fitness, no canto esquerdo vemos exemplares da pulseira Runtastic Orbit. Este device analisa distâncias percorridas, calcula o tempo gasto no percurso e monitora os batimentos cardíacos para informar ao usuário se ele deve acelerar ou diminuir o ritmo de sua corrida. O colete Hexoskin avalia a quantidade de calorias gastas durante o exercício físico e monitora também os padrões de sono se o usuário vestir o aparato enquanto dorme, fornecendo feedback por meio de um aplicativo de smartphone. Por último na sequência acima vemos o Jabra Sport Pulse, um par de fones de ouvidos que seleciona e aciona músicas (mais lentas ou com ritmo mais acelerado) de acordo com a pulsação do usuário. Por meio destes exemplos pode-se perceber que o campo de fitness é um dos que mais amplamente se beneficia com estes novos recursos, porém outras áreas – como entretenimento e saúde - já começam também a explorar as possibilidades deste tipo de tecnologia. Nos exemplos anteriores, nota-se a mediação da marca na trama comunicacional que se estabelece entre aparatos tecnológicos e seus usuários. As empresas se tornam mediadoras entre os consumidores e os produtos tecnológicos que vendem.

• Vicente M artin M astrocola - G ilesa G. S. Castro

Fonte: The New York Times. Wearable Gear and Apps to Make Running Healthier, and a Lot More Fun. URL: < http://goo.gl/txg92t>. Acesso em 5/2015.

e consumo nas wearable technologies

Figura 1: Wearable technology para corridas.

Comunicação

digital, ele se torna permeável, projetável, programável”. Os produtos exibidos na

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Diversos desses aparatos oferecem a possibilidade de um indivíduo visualizar diferentes aspectos ligados à performance de atividade corporal do seu dia, propondo, inclusive, Este privilegiado contexto de comunicação e consumo permite demonstrar que determinadas empresas estão buscando consolidar vínculos com seus consumidores por meio dessas novíssimas linhas de produtos que incorporam uma variedade de fun-

relacionamento entre marcas e consumidores. Antes de seguirmos adiante, convém definir esta modalidade tecnológica. Richmond (2013, p.6) observa que a ideia de wearable technology não é nova. Segundo o autor, o termo poderia ser aplicado a artefatos com os quais convivemos há muito tempo, tais como relógios digitais (disponíveis desde a década de 1970) e os óculos. O estudioso argumenta, no entanto, que a última geração de wearables é irreconhecível se comparada à sua predecessora; afinal, todos os celulares estão se tornando smartphones e não será incomum vermos cada vez mais aparatos rotuláveis como smart ou ‘inteligentes’. Alguns exemplos são o iWatch, relógio de pulso da Apple, o Google Glass e tantos outros devices que têm surgido no mercado desde 2012. Vale ressaltar que entendemos o uso estratégico da palavra smart associada a determinados aparatos em função das lógicas de consumo, conforme iremos detalhar mais adiante. Ao nos servirmos da reflexão citada acima, procuramos sobretudo nos distanciar de encantamentos de cunho futurístico propagandeados como ruptura tecnológica com todos os que os precederam. Entendemos o humano e a tecnologia como figuras indissociáveis e fazemos nossas as palavras de Santaella quando afirma que “não há divórcio entre a evolução biológica humana e a revolução tecnológica”1. Outro ponto basilar para a discussão aqui proposta é o fato de que entendemos o cenário apresentado como um espaço privilegiado não apenas de comunicação e tecnologia, mas – também - como um ambiente propício para as práticas de consumo. Mais que um novo tipo de tecnologia, as chamadas wearable technologies são mercadorias por meio das quais seus usuários começam a estabelecer novos tipos de articulações sociais para seus cotidianos. Vale lembrar que consumo, em nosso texto, não deve ser confundido como consumismo desenfreado e mera aquisição de produtos. Na discussão aqui proposta o consumo deve ser entendido como 1 Esta citação foi extraída de entrevista com Lúcia Santaella para a Revista do Instituto Humanitas Unisinos (IHU On-line). Disponível em: http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_content&view=article&id =4218&secao=381. Acesso em 5/2015.

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Desse modo, vemos a participação das wearable technologies nas estratégias de

ano

cionalidades como as que foram mencionados acima.

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sugestões de como melhorar certos índices de saúde e de qualidade do sono.

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que hoje “não seria correto falarmos em cultura, mas culturas do consumo”. Reforçando esta ideia, Sassatelli (2010, p.193) destaca as várias facetas das culturas do consumo. Conforme observa a autora, a lógica de consumo que permeia essas culturas gera uma miríade de consumidores que compram, usam, estocam, mantêm, gerenciam e fantasiam com mercadorias, ainda que, raramente, se possa questionar até que ponto realmente a dia. Ou seja, o consumo é algo muito maior do que o ato de adquirir um bem, é um processo que deflagra pertencimento social e que insere indivíduos em círculos sociais específicos através de múltiplos significados. Sobre este assunto, afirma Slater (2002, p.131) que todo consumo é cultural, afinal de contas, sempre envolve significado, sensações e experiências. Parafraseando Garcia Canclini (2005), em nosso trabalho o consumo serve para pensar intersecções entre comunicação e tecnologia e nos guiar para compreender como a chamada wearable technology pode servir estrategicamente para relações entre consumidores e marcas e/ou empresas. Homem, natureza, cultura e tecnologia Contextualizar a evolução tecnológica como parte da cultura humana é o primeiro passo que iremos abordar neste tópico. Aqui buscamos observar como o homem se relaciona de maneira diferenciada com o mundo ao redor quando cria artefatos que ampliam determinadas capacidades físicas e/ou cognitivas. Santaella (2013, p.33) argumenta que a tecnologia é incorporada à vida humana como uma segunda natureza. Sobre o digital, a autora entende que a “história, a economia, a política, a cultura, a percepção, a memória, a identidade e a experiência estão todas elas hoje mediadas pelas tecnologias digitais” que, disponíveis em grande quantidade, adentram nosso cotidiano como um princípio operativo que é assimilado à produção humana nas mais diversas áreas.

• Vicente M artin M astrocola - G ilesa G. S. Castro

se concebem como consumidores enquanto executam essas variadas atividades no dia

e consumo nas wearable technologies

Castro (2014, p.60) entende que o consumo é um campo extremamente plural e

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o resultado de um conjunto de práticas sociais e culturais fortemente relacionados às subjetividades dos atores e ao grupo social ao qual pertencem. Imersos nessas culturas do consumo, nós criamos identificações, construímos identidades, reconhecemos nossos pares e somos reconhecidos socialmente. Quando consumimos, não estamos apenas admirando, adquirindo ou utilizando determinado produto ou serviço. Estamos comunicando algo e criando relações com tudo e todos os que estão à nossa volta (CASTRO, 2014, p.60).


Ao criar aparatos tecnológicos, entre outros fatores, está a busca do homem por interagir de novas maneiras com a natureza, com outros humanos e também tecnologia que já podemos pensar em uma segunda natureza, uma camada que vai permeando a existência do homem. Como Kerkhove (2009), a partir de McLuhan, falamos na pele da cultura. Nesse sentido, entendemos que o homem cria aparatos de

Ao discorrer em obra da década de 1950 que se tornou uma referência sobre os objetos que, em sua concepção, são sempre sociotécnicos, Gilbert Simondon toma o carro como exemplo. Segundo ensina, para atender as necessidades críticas de seu usuário, o veículo vai além da função de transportar pessoas sendo acrescido de múltiplos acessórios, tais como bancos de couro, rádio, ar condicionado etc. Podemos fazer um paralelo interessante tomando como exemplo os smartphones atuais. A cada nova geração surgem novas funcionalidades que há tempos os distanciam dos simples telefones. Os devices que se enquadram na categoria de wearables seguem o mesmo padrão e são tornados mais complexos em cada nova versão. Em entrevista, Simondon (2008, p.171) faz questão de frisar que os objetos sociotécnicos possuem no homem seu grande orquestrador. A máquina dotada de alta tecnicidade é uma máquina aberta, e o conjunto das máquinas abertas supõe o homem como organizador permanente, como intérprete vivo das máquinas umas com relação às outras. Longe de ser o vigia de um grupo de escravos, o homem é o organizador permanente de uma sociedade dos objetos técnicos que precisam dele como os músicos precisam de um maestro.

Em sintonia com esta linha de raciocínio, Franklin (2013, p.3) discorre sobre a internet e os processos de automação, simulação e inteligências artificiais que têm no humano a sua interface última. Segundo o autor, devemos entender as “máquinas pensantes” como instrumentos programados pelo homem. A ideia de wearable technology - e os múltiplos aparatos que se enquadram nessa categoria – se apresenta como um objeto bastante fértil para observarmos diferentes orquestrações entre o humano e o não humano. Os wearable devices, enquanto objetos sociotécnicos, introduzem novas maneiras de indivíduos se relacionarem com tecnologia e percebemos neste processo uma nítida reconfiguração social, cognitiva e sensorial influenciando os processos de comunicação e consumo.

6 - n. 2

engendram hibridizações de múltiplas conexões.

ano

crescente complexidade tecnológica que não funcionam como extensões, apenas, mas

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com outros objetos técnicos. Mas como diz Lucia Santaella, é tão forte a presença da

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Entendendo os objetos sóciotécnicos como elementos criados pelo homem e hibridizados com o humano, trazemos a seguir contribuição do filósofo francês Bernard (2009) utiliza a rede WiMax2 de conectividade sem fio para acesso à internet como um exemplo recente para compreendermos as complexas relações entre o humano e a A observação atenciosa desta rede que já está presente em mais de 150 países nos revela novas formas de conexão com a internet, bem como a criação de tecnologias que permitem que o usuário esteja todo o tempo em contato com o ambiente da web, seja através do uso de um smartphone ou de um device que se enquadra mais propriamente dentro da categoria denominada como wearable technology. Para Stiegler (2009, p.33) a multiplicidade de possibilidades de conexão com internet que determinados aparelhos oferecem gera uma espécie de ansiedade que meios de comunicação nos chamados países em desenvolvimento. Estas “perturbações” a que o autor se refere se espalharam por meio da conectividade generalizada (a mega conectividade das redes WiMax, por exemplo) e já não possuem mais horário para acontecerem devido à crescente disponibilidade de conexão com a internet existente todo o tempo. Até tomadas de decisão dos indivíduos podem ser alteradas nesse processo como, por exemplo, uma pulseira smart avisando o usuário que este precisa se exercitar mais para manter um certo nível de queima de calorias. Um aparelho lembrando todo o tempo sobre o peso ou queima de calorias pode vir a se tornar uma das “perturbações” propostas por Stiegler gerando ansiedade no usuário se este não cumprir as metas propostas pelo sistema. Conforme argumenta o autor, muito além da mídia de massa, há uma enormidade de objetos tecnológicos que podem ser considerados dispositivos técnicos e amplas redes de telecomunicação, rádio e televisão para os quais códigos de barras e decodificadores de chips, WiMax e sistemas de bluetooth se tornaram elementos periféricos e sub-redes. Logo essas tecnologias incluirão microtecnologias, que também terão suportes de biometria3, a ser seguido pelo domínio das nanotecnologias como um todo (STIEGLER, 2009, p.38). 2 Segundo o site Wixx <http://www.wixx.com.br/site/wimax.php> e o WiMAX Fórum <www.WiMAXforum.org>, a tecnologia WiMax que é uma sigla para Worldwide Interoperability for Microwave Access (Interoperabilidade Mundial para Acesso de Micro-Ondas) é uma rede de acesso à internet com maior velocidade de conexão permitindo que diferentes devices de variadas naturezas se conectem ao ambiente da web. Acesso em 5/2015. 3 Biometria é o uso de scanners e sensores para identificar impressões corpóreas de um indivíduo. Os aparelhos de leitura de impressões digitais nos caixas eletrônicos e os scanners de retina de portas de segurança são alguns exemplos em sintonia com esta nossa discussão.

• Vicente M artin M astrocola - G ilesa G. S. Castro

resulta em determinadas “perturbações tecnológicas” que afetam principalmente os

e consumo nas wearable technologies

tecnologia.

Comunicação

Stiegler, conhecido por seu estudo sobre a hibridização entre natureza e técnica. Stiegler

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Stiegler é visionário ao prever o que viriam a ser as wearable technologies. Além dos exemplos já mencionados no tópico inicial, podemos citar outros como a pulseira

Figura 2: Nike+ Fuelband e Máquina Do Bem

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smart Nike+ FuelBand ou a pulseira Máquina, da marca brasileira de sucos naturais Do Bem.

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Fonte: Site oficial da Nike <www.nike.com> e site oficial da marca Do Bem <www.dobem.com>. Acesso em 5/2015.

Stiegler (2009, p.41) propõe uma interessante metáfora acerca do amplo uso de tecnologias, sobretudo as tecnologias móveis (celulares, smartphones e – também podemos incluir aqui – as wearable technologies), o pesquisador observa que a tecnologia se torna uma espécie de “concha de caracol” nas vidas de determinados indivíduos, que passam a ser indissociáveis de seus devices e muitas vezes chegam ao extremo de não conseguirem sair de casa sem eles. A metáfora da concha de caracol proposta por Stiegler auxilia-nos a entender como determinadas empresas estão – estrategicamente – usando este aspecto comportamental na concepção de determinados produtos tecnológicos. Antunes e Pereira (2014, p.89) ressaltam que “as marcas vêm direcionando seus objetivos nos últimos tempos, fazendo uso das possibilidades interativas no estabelecimento da comunicação com seu público”. Os wearable devices operam dentro desta lógica podendo ser literalmente vestidos por um usuário e oferecendo novos caminhos para uma empresa se comunicar e se promover junto a seus consumidores. Estas novas articulações entre humano/ não-humano sinalizam uma nova configuração para se pensar estratégias de marcas, produtos e serviços no cenário contemporâneo. Como foi dito anteriormente, as wearable technologies, operam em um novo nível de “intimidade” em seus usuários. Mais do que extensões do corpo que fornecem


algum tipo de habilidade para reconfigurar determinadas tarefas, as wearables começam a articular outras formas de relacionarmos com os outros e com o espaço ao redor. O usuário e, ocasionalmente, captar informações do ambiente, incluindo a web, forma um amplo e complexo ecossistema comunicacional cujos desdobramentos apenas Sobre este ponto, Fortunati (2007, p.71) constata que o corpo humano, em essência, já é tecnologia. Na visão desta autora (2007, p.72), “o corpo é uma máquina especial, suprida pela natureza, que trabalha uma sofisticada tecnologia da esfera reprodutiva”4. Por ser uma máquina natural, o corpo atrai e suporta máquinas artificiais em nível de diagnóstico (como sondas médicas), terapêutico (marca-passos, radiação, terapias hormonais) e outros níveis tecnológicos tais como de reprodução (fertilização in vitro), de identidade (plástica, engenharia genética, mudança de sexo) e comunicação A wearable technology representada por uma série de devices em formatos variados começa a extrapolar a ideia de público conectado em rede proposta por Danah Boyd (2011, p.39), para quem esses públicos são audiências que foram restruturados pelas tecnologias em rede e, como tal, são ao mesmo tempo (1) o espaço construído por meio de tecnologias de rede e (2) o espaço imaginado que emerge como resultado do cruzamento de pessoas, tecnologia e práticas sociais, culturais e cívicas. Entendemos que os públicos ditos conectados começam a experimentar novas fronteiras de interação através da mediação destas tecnologias que favorecem as trocas de dados entre o corpo do usuário, os aparatos tecnológicos programados para processá-las de modos diversos, a internet e outros usuários da rede. A seguir, no último tópico desta discussão, apresentamos algumas considerações de caráter parcial. Longe de buscarmos respostas finais e absolutas, tratamos de debater pontos de destaque em relação às utilizações práticas que as wearables trazem para o contemporâneo, procurando refletir também sobre como marcas e organizações parecem se apropriar desta categoria de produtos para estabelecer sua presença no dia a dia de seus consumidores. Considerações parciais Franklin (2013) analisa o cenário atual sob a égide da tecnologia e formula a ideia de que indivíduos, nações-estado e instituições multilaterais estão sendo conti4 Tradução livre.

• Vicente M artin M astrocola - G ilesa G. S. Castro

(smartphone, tablet e wearable technologies) (FORTUNATI, 2007, p.76).

e consumo nas wearable technologies

começamos a esquadrinhar.

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fato deste tipo de tecnologia monitorar e registrar determinados aspectos do corpo do

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nuamente reinventadas em termos locais e globais por conta da disponibilidade de plataformas tecnológicas que permitem acesso ao que autor chama de ambiente “cibeintercruzando vários discursos uns com os outros e alterando relações do cotidiano. Nesse contexto, observamos que o corpo humano se comunica cada vez mais com e também por meio de aparatos tecnológicos.

Assistidos pela retórica e pelas novíssimas próteses teleinformáticas e biotecnológicas, os organismos contemporâneos transformam-se em corpos ligados, ávidos, antenados, ansiosos, sintonizados – e, também, sem dúvida, úteis. Corpos acoplados à tecnologia digital, estimulados e aparelhados por um instrumental sempre atualizado de microdispositivos não-orgânicos.

Embora ainda não se falasse em wearable technology por ocasião da reflexão acima citada, já havia uma previsão sobre diversas possibilidades de entrelaçamento entre corpo e aparatos tecnológicos conectados em rede. Por serem conectados online e apresentarem capacidade para registrar automaticamente os dados gerados pelo corpo, os dispositivos portáteis dessa categoria estão ampliando o interesse de empresas em monitoramento e análise de dados pessoais, além de explorar suas possibilidades de uso em estratégias de comunicação e marketing. Além da relação da marca com o público consumidor, não podemos desconsiderar que, ao trazer tecnologia em formato inovador (como as wearables) para seu portfólio de produtos, uma determinada empresa está também criando uma estratégia diferenciada de promoção. Davis (2013, ps.191-192) ensina que, atualmente, aspectos de promoção ocupam posição central e influente na comunicação e nas relações sociais. Para o autor, tanto empresas como indivíduos usam estrategicamente a divulgação de conteúdo em sites de redes sociais digitais por meio de fotos, animações, textos e vídeos. Nesse contexto diversas tecnologias funcionam como importantes elementos de autopromoção. O mercado para os artefatos que utilizam features de wearable technology parece promissor. Hoje há predominantemente dois tipos que, segundo Richmond (2013), podem ser divididos nas categorias inside-out (de dentro pra fora) e outside-in (de fora pra dentro). Os aparatos do tipo inside-out são basicamente sensores que vestem o corpo do usuário e capturam informações como movimentação, postura da coluna, batimentos

6 - n. 2

desse tema ao dizer que

ano

Paula Sibilia (2002, p.206) fornece um importante aporte para refletirmos acerca

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respacial”. Nesse ambiente, através de múltiplos devices, diferentes atores participam

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cardíacos, queima de calorias etc. Este é o caso das pulseiras Nike+ Fuelband e a Runtastic Orbit mencionadas acima. como acessório ou vestimenta. Eles se conectam à internet para enviar mensagens de texto, voz ou vídeo. Google Glass e iWatch são exemplos desta modalidade de wearable diversas de suas funções não passam necessariamente pela mediação do usuário. Sendo assim, mesmo sem conhecimento prévio dados são enviados automaticamente para um ambiente virtual. Conforme mencionamos, entendemos que esse tipo de acoplagem entre humano e não humano promove um nível inaudito de hibridização, cujos desdobramentos apenas começamos a discernir. Podemos perceber a diferença em complexidade inaugurada pela wearable technology se tomarmos como exemplos um relógio equipado com dispositivo que mede multifuncional inteligente como o lançamento da célebre marca da maçã citado acima. Enquanto o primeiro se acopla ao corpo e possui funcionalidades que metrificam impressões corpóreas do usuário, a leitura dos dados ocorre na tela digital do relógio. Nesse caso, fica a cargo do utilizador dar um fim útil a essas informações, tomando-as como feedback acerca de seu desempenho na prática desportiva e calibrando sua dose diária de exercícios, por exemplo. No segundo caso, o artefato recolhe dados durante monitoramento das atividades físicas realizadas pelo usuário e os envia para uma série de aplicativos que periodicamente ganham downloads para novas funções. Além de compartilhar resultados de performance do usuário em sites de redes sociais, o aparelho é capaz de geolocalizar outros usuários por meio de sensores e conexão com a internet. Vale lembrar que, em última análise, cabe sempre ao usuário doar sentido (ou não) a essas funções. Embora ambos os aparelhos sejam capazes de “ler” informações do corpo de quem os utiliza, apenas se configura como wearable technology o segundo exemplo pelo fato de dinamizar diferentes conexões para outras plataformas e gerar novos tipos de interação com o usuário. A conexão que se forma entre o corpo e o aparato parece ser um dos pontos cruciais para entendermos as questões de hibridização entre humanos e objetos sociotécnicos. Esta conexão é também o ponto nodal para entendermos como empresas como a Nike ou Apple estão utilizando estrategicamente esta comunicação em seus lançamentos. Usuários que passam a se hibridizar com estas novíssimas tecnologias iniciam um sofisticado processo de conexão não apenas com estes aparatos propriamente ditos,

• Vicente M artin M astrocola - G ilesa G. S. Castro

distâncias percorridas e batimentos cardíacos do usuário e, em contraste, um relógio

e consumo nas wearable technologies

technology. Estes dispositivos comunicacionais suscitam um novo tipo de debate, já que

Comunicação

Os aparatos do tipo outside-in são, em essência, gadgets de comunicação usados

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mas também com suas respectivas marcas e empresas. Não é sem razão que grandes corporações estão investindo em wearable technologies. produtos que utilizam wearable technology, uma empresa busca estabelecer com o consumidor um contato que, tecnicamente, pode acontecer durante 24 horas, sete dias na semana. Este contato pode ainda se desdobrar em múltiplas plataformas por meio

em um site de rede social digital, por exemplo, divulga em sua rede de amigos a marca do aparelho e as funcionalidades que o mesmo possui. Além de configurar uma versão atualizada e exponencial do boca-a-boca, esse tipo de estratégia cria mais um local onde tal empresa pode estabelecer um vínculo com o consumidor para potencialmente informar sobre outros produtos ou promoções da marca. Uma última ponderação merece ser feita nesta discussão ao considerarmos que as wearable technologies servem como instrumentos de captura de informações sobre usuários por parte das marcas. Richmond (2013, p.12) alerta que dados monitorados por wearable technologies podem ser roubados por hackers ou utilizados de maneira indevida para fins comerciais. Este é um ponto importante e altamente sensível nas estratégias destas empresas. Não basta oferecer um produto altamente sofisticado e inovador em termos tecnológicos; tendo em mente a delicada questão da privacidade online, é essencial criar um produto seguro em termos de armazenamento de dados. Uma outra vertente desta discussão diz respeito à observação de Alex Primo (2013, p.18), de que diversas empresas hoje lucram com a produção de conteúdo gerado por indivíduos que interagem com seus sites ou aplicativos. Conforme pondera com propriedade o autor, o contexto de comunicação digital contemporâneo favorece um processo complexo de troca nem sempre equilibrada no qual o público oferece “seus dados pessoais (um bem de grande valor para a indústria) e sua criatividade” de modo a receber serviços nas plataformas digitais que são utilizadas. Estamos cientes de que esta discussão está longe de se esgotar pois, sem dúvida alguma, trata-se de um campo bastante vasto que apenas começa a ser explorado. Esperamos, com este trabalho, contribuir para incorporar o debate sobre as wearable technologies nos estudos de comunicação, consumo e tecnologia. Aguardamos a oportunidade de novos e produtivos desdobramentos deste tema em ocasiões vindouras.

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um consumidor que utiliza um relógio smart e compartilha seu desempenho esportivo

ano

do compartilhamento de informações do device para um ambiente digital. Sendo assim,

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Refletindo sobre os aspectos aqui discutidos, pode-se dizer que, ao criar

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publicitários interativos: produção de conteúdo e relacionamento on - line Cláudio A leixo Rocha Doutorando em Arte e Cultura Visual pela Faculdade de Artes Visuais / FAV da Universidade Federal de Goiás. Mestre em Cultura Visual pela mesma Instituição de Ensino Superior. Especialista em Docência Universitária pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás / PUC GO. Graduado em Artes Visuais com habilitação em Design Gráfico pela Universidade Federal de Goiás / UFG. Atualmente é professor do curso de Publicidade e Propaganda da PUC Goiás. E-mail: claudioaleixorocha@gmail.com

Rosa M aria B erardo Jornalista, possui mestrado em Artes pela Universidade de São Paulo, mestrado em Cinéma et Audiovisuel pela Universite de Paris III (Sorbonne-Nouvelle), doutorado em Cinéma et Audiovisuel - Universite de Paris III (Sorbonne-Nouvelle) e Pós doutorado em Ciências Sociais /Cinema, pela Université du Québec à Montreal. Atualmente é professora Associada II da Universidade Federal de Goiás - UFG. E-mail: rosaberardocinemaefotografia@gmail.com

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Resumo Por meio de uma pesquisa exploratória o artigo teve o objetivo de detectar exemplos de campanhas publicitários no youtube.com que empregaram a interatividade em suas peças audiovisuais na produção de narrativas multilineares. A proposta de pesquisa está em mapear como o conteúdo tem sido introduzido na publicidade on-line e como a publicidade on-line tem sido introduzida no conteúdo por meio de vídeos e recursos de interatividade narrativa. Palavras-chave: Publicidade na Web; Conteúdo audiovisual; Narrativa multilinear; Produção de conteúdo e Entretenimento on-line

Abstract Through an exploratory research article aimed to identify examples of advertising campaigns on youtube.com that used interactivity for their parts in the production of audiovisual multilinear narratives. The research proposal is to map how the content has been posted in the online advertising and how advertising online has been introduced into the content through videos and interactive features of narrative. Keywords: Web advertising, audiovisual content; multilinear narrative, content production and online entertainment


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do computador, é possível não apenas visualizar tais imagens, mas também “entrar” ou “animá-las” particularmente. Por meio da sensibilidade perceptiva o corpo humano se vê e se sente além dele no momento em que interage e se mistura com as imagens interativas. Importa aqui compreender como a publicidade on-line tem utilizado da interatividade em suas imagens e recursos audiovisuais para reter a atenção e criar relacionamentos com seus usuários. De acordo com Oliver Grau, as imagens interativas organizam o escopo das imagens virtuais presentes no universo da realidade virtual. Na realidade virtual “a impressão sugestiva é aquela em que alguém imerge no espaço da imagem, move-se dentro dela e com ela interage em “tempo real”, intervindo de forma criativa” (GRAU, 2007, p. 16). Pierre Lévy (1999) enfatiza que a imagem, em sua metamorfose para o digital, deixa sua exterioridade de espetáculo para abrir-se à imersão. “A representação é substituída pela virtualização interativa de um modelo, a simulação sucede a semelhança. O desenho, a foto ou o filme ganham profundidade, acolhem o explorador ativo de um modelo digital” (LÉVY, 1999, p. 150). Os audiovisuais publicitários interativos surgem nesse cenário da ação do corpo humano sobre a numerização da informação. Mônica Tavares aponta que, em uma definição lato, “a imagem interativa funciona como um intertexto” (TAVARES, 2005, p. 115). O corpo e a mente humana ante esse ambiente hipertextual e híbrido de linguagens tem seus sentidos expandidos e continuamente convocados a intervir e agir sobre o que essa malha de linguagens e significados ocultos podem vir a revelar a seu desbravador. A imagem interativa é uma imagem que solita de seu interagente uma ação física e mental intencional, pois tal imagem hipertextualizada se articula por meio de elos. Esses elos são arranjados não de maneira não-linear mas assim, multilinear, porquanto o significado de cada elo selecionado pelo interator em meio aos prováveis e múltiplos caminhos é consequência inicial de uma escolha particular e, sobretudo,

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Atualmente, com as novas técnicas de produzir e apresentar imagens por meio

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Introdução


intencional e intuitiva. Sua atualização conclusiva concretiza-se na apreensão cognitiva dos estímulos sensoriais desvendados ao usuário. Sendo assim, nota-se que a escolha

espaços. “A imagem interativa passa a se manifestar em consequência do conjunto de interações que resume a adequação entre o campo dos possíveis a ser explorado e as potenciais reações do receptor” (TAVARES, 2005, p. 115). A imagem interativa anima-se por meio de suas diversas possibilidades de troca. A recompensa do ato físico e mental de escolha é o significado único que aquele signo vale para o usuário. Do lado da informática está a direção da invenção das matrizes hipertextualizadas de obras possíveis; do lado da mediação, ou seja, do sujeito, é estabelecida a relação interativa entre as propostas do autor da obra e as vivências do receptor. Trata-se de um processo constante de ação, percepção e cognição. Diante do exposto, busca-se aqui uma discussão inicial sobre como as imagens audiovisuais interativas podem ser utilizadas para aumentar o interesse e o relacionamento entre marca e usuário em campanhas veiculadas no meio on-line. Tem-se por hipótese que a construção do relacionamento on-line parte da liberdade de escolha. Tais escolhas surgem do interesse particular por diversos modos de informação de conteúdos relativos ao entretenimento e diversão on-line. E ainda que, são as particularidades, as sensibilidades subjetivas de cada indivíduo é que irão o conduzir por entre tais imagens audiovisuais interativas e manter um relacionamento com uma maior possibilidade de continuidade com uma marca, produto ou serviço disponível em campanhas publicitárias na Web. Sob esse aspecto, estando as campanhas publicitárias audiovisuais inseridas no campo das obras multimidiáticas, Zuzete Venturelli e Mario Maciel (2008) argumentam que na criação de um multimídia seu planejamento deve ser organizado de tal forma que permita ao usuário apropriar-se da informação durante a navegação da maneira que lhe convém. Ao usuário deve ser dada a possibilidade de escolher intuitivamente a construção do percurso narrativo de um produto multimídia por meio de interações sem hierarquias. Para tanto, o sistema de navegação apresentado na obra multimidiática necessita propiciar ao seu interator uma liberdade de escolha vinda de seus interesses particulares perceptivos e que, ao mesmo tempo, possibilite a ele a apreensão cognitiva da informação. Corpo e mente devem estar vinculados ao ambiente multimídia tal qual dois sistemas interdependentes.

• Cláudio A leixo Rocha - Rosa M aria B erardo

disponíveis na Internet. Em específico, essas informações estão pautadas na construção

publicitários interativos : produção de conteúdo e relacionamento on - line

a escolher e adentrar em um espaço simulado por diversos fragmentos de pequenos

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advém de um estado de corpo motivado, de um corpo chamado à ação ou convocado

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Por meio das seleções feitas pelo usuário são geradas modificações no fluxo

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Ou seja, o percurso realizado pela informação pode ter um traçado que lhe seja lógico e familiar, no qual o interator regula a si mesmo como buscar a informação desejada. Portanto, um trabalho multimídia interessante deve propor ao usuário uma série de estímulos que este irá reter, segundo as características de seu poder perceptivo e cognitivo (VENTURELLI, 2008, p. 43).

da imagem audiovisual interativa. Essas modificações produzem díspares sequências

ano

de informações. “Essas se dispõem a novas seleções das quais são geradas novas

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respostas, instaurando assim um processo ad infinitum de construção de conhecimento” (TAVARES, 2005, p. 115). Ativamente, o usuário pode eleger e atualizar um dos possíveis percursos constante na obra matriz pré-codificado por seu idealizador. Objetivamente, nas imagens audiovisuais interativas que compõem uma campanha publicitária on-line o corpo e a mente do internauta são convidados a estarem a todo instante motivados a agir sobre a obra matriz. É nesse sentido que Pierre Lévy relata que “o ato fundamental da recepção da obra torna-se a operação, que, a toda instância, atualiza sensivelmente o campo dos possíveis de uma dada matriz” (LÉVY, apud, TAVARES, 2005, p. 117). É de grande relevância para o desenvolvimento coerente da publicidade no meio on-line a compreensão de tais características das imagens interativas, afim que possa oferecer aos usuários desse meio, campanhas que lhes sejam mais atraentes e abertas a participação e menos invasivas ou intrusivas. Dentro dessa perspectiva, é notório a percepção de que a publicidade e propaganda tem passado por um período de profundas modificações em suas estratégias comunicativas destinadas ao ambiente web desde o início da década de 1990, após a autorização do uso da Internet para meio comercial. No campo do audiovisual publicitário os desafios são inúmeros, principalmente, no que diz respeito a criatividade na produção de campanhas publicitárias que tenham por objetivo a retenção da atenção do consumidor. Esses destinatários plugados na rede mundial de computadores cada dia mais tem se mostrado exigentes com a forma e o conteúdo das mensagens propagandísticas e, comportamentalmente, intolerantes à publicidade intrusiva ou invasiva na Web. Exemplos de publicidade intrusiva on-line são os veteranos spams e pop-ups. Conforme aponta Conrado Adolpho Vaz, “ consumidor digital irrita-se com propaganda de interrupção, como spams e pop-ups” (VAZ, 2008, p. 224) Diante desse cenário compete aos criativos publicitários durante o ofício diário da profissão, bem como aos pesquisadores acadêmicos da comunicação no meio on-line identificarem estratégias e oportunidades de criação para esse recente meio digital de comunicação, afim de manter viva a chama da publicidade contemporânea enquanto ferramenta eficaz de comunicação institucional ou mercadológica.


Por esse intento, o presente artigo discorre sobre uma das premissas relevantes que caracterizam o meio on-line e que, possivelmente, pode ser um diferencial

hipertexto1, essa forma de narrativa rizomática, é estruturalmente organizada para se apresentar aberta para o contato interativo de seu interagente2. A proposta do artigo é exemplificar como recentemente a produção de conteúdo audiovisual publicitário na Web tem se adaptado a esse meio de comunicação digital, especificamente, nas estratégicas de criação narrativa multilinear. Inicialmente e, de maneira abreviada, serão descritos os tipos possíveis de construção e exploração narrativas que atualmente a Web possibilita agregar para a produção audiovisual. Concomitantemente, como um segundo objetivo, a proposta está na desmistificação de alguns conceitos preestabelecidos sobre as formas de linearidades existentes na narrativa hipertextual no meio on-line. Outrossim, visa-se apresentar dois estudos de caso de campanhas publicitárias audiovisuais de narrativa multilinear veiculadas na Web. Por fim, propõem-se a descrevê-las a partir de seus aspectos positivos de aplicação dos conceitos de narrativa multilinear. A ênfase será dada à sua relevância enquanto proposta criativa de relacionamento entre marca e consumidor por meio da diversão e do entretenimento aplicado ao conteúdo audiovisual publicitário na Web. Nessa audiovisuais publicitários tem possibilitado, de forma introdutória, uma participação do interagente de maneira menos autoritária e repetitiva. Haja vista que, é possível hipoteticamente que, caso a publicidade on-line continue a buscar o relacionamento com seus consumidores de maneira autoritária e, portanto, verticalizada, cada vez mais os usuários da rede deixarão de se envolver com suas peças promocionais interativas. Conforme defende Conrado Adolpho Vaz (2008), em primeira instância, a Internet é um meio que oferece “comunicação, informação, entretenimento e interatividade. O resto é consquência destas quatro. As empresas precisam oferecer exatamente isto para o usuário” (VAZ, 2008, p. 48). Já é senso comum afirmar que a publicidade digital em meio on-line não deve ser invasiva ou intrusiva. Este tipo de tática comunicativa gera uma indisposição no destinatário para interagir com o anúncio publicitário que a ele chegou sem seu pedido e sem sua autorização. A conjectura proposta aqui é que a narrativa multilinear pode ser uma estratégia criativa de entrete1 Theodor Nelson, o idealizador do conceito, esclarece que o hipertexto é tal qual um conjunto de escritas associadas. O agregado de escritas que formam o hipertexto não se organiza sequencialmente e, por esse motivo, possui diferentes possibilidade de conexões para prosseguir a direção de sua leitura. 2 Refere-se ao destinatário ou usuário que interage diretamente sobre o conteúdo interativo da mensagem publicitária.

• Cláudio A leixo Rocha - Rosa M aria B erardo

perspectiva, interessa compreender como essas estratégias interativas presentes nos

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digital ou veiculada no ambiente Web, a saber: a narrativa multilinear. Tal qual a um

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estratégico e criativo para essa nova era da publicidade espraiada em plataforma

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nimento publicitário para reter a atenção do destinatário bem como manter entre ele e a empresa divulgada um relacionamento contínuo sem imposições preestabelecidas ou Posicionar uma marca ou vender um produto ou serviço na Web cada dia mais torna-se uma consequência dos relacionamentos que uma determinada empresa criou ao longo do tempo com seu consumidor. Na Web o relacionamento ocorre inicialmente

meio da interação com uma narrativa multilinear de um vídeo publicitário on-line, se vê valorizado particularmente pela marca que o divulgou. Naquele momento de diversão e interesse particular pelo conteúdo, sente-se único por experimentar, de maneira não impositiva, a liberdade de se auto conduzir por meio da personalização da exploração multilinear narrativa do vídeo publicitário. O destinatário consumidor de um produto ou serviço ao se conectar a Internet tem seu comportamento e motivação de consumo distintos ao que ocorre no meio físico. Cláudio Torres (2009) enfatiza que a grande mudança na Internet não está relacionada a tecnologia. A mudança foi de paradigma. Para o autor não existe mais a separação entre produtor e consumidor. “Não há mais exclusividade de produção nem na mídia nem no software. E o mais importante: não há mais distinção entre informação, entretenimento e relacionamento” (TORRES, 2009, p. 25). Vinculando a importância de estratégias criativas de relacionamento para a publicidade on-line, mais adiante, Cláudio Torres afirma que 90% dos internautas usam a Internet para se comunicar, seja pela busca ou propagação de informações que julgam relevantes. Tal assertiva está diretamente relacionada ao conceito de marketing viral, o qual será abordado mais adiante e tem relação direta com a inovação criativa na publicidade on-line. Para concluir e enfatizar a importância da particularização, do entretenimento e da diversão para a publicidade na Web como sendo uma estratégia criativa de relacionamento entre marca e consumidor, Torres ainda afirma que, a força de venda na Internet é identificada pelo fato de que 50% dos usuários buscarem por informações sobre bens e serviços. “A atividade mais comum é a busca de informações sobre diversão e entretenimento, atividade de 60% dos internautas” (TORRES, 2009, p. 28). Nesse sentido, é fundamental que as empresas na Web criem maneiras de seus consumidores buscarem, receberem, comunicarem ou propagarem suas informações a partir de estratégias publicitárias que priorizem a diversão e o entretenimento que partem das particularidades do sujeito. Advoga-se aqui que a narrativa multilinear em audiovisuais publicitários na Web pode ser uma forma de particularização, diversão e entretenimento que gera relacionamento entre

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com a mensagem propagada. Acredita-se aqui que, esse destinatário, ao relacionar por

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por meio da personalização da comunicação com o cliente e de seu interesse particular

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repetições mecanicistas.

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marca e consumidor na Internet. Na sequência serão apresentadas discussões teóricas sobre ideologia, mecanicismo e repetição e, de maneira abreviada, do que se trata uma

No meio on-line é relevante que uma campanha ou peça publicitária alicerce suas estratégias em meios de interação mais abertos tanto para as experimentações criativas, intuitivas e perceptivas de seus usuários. Não é interessante para a construção de relacionamento via meio on-line que uma peça publicitária foque seus mecanismos de interação em formas que ofereçam limitadas possibilidades interativas voltadas para ações repetitivas que, sorrateiramente visam atingir apenas a objetivos unilaterais e ideológicos anteriormente predeterminados por seu criador. De acordo com Marilena Chauí (1986) a ideologia carece de construir um corpo sistemático de normas, regras e de representações, cujo objetivo principal está em “ensinar” como se deve pensar, como se transmitir tais ensinamentos e como adaptar aos indivíduos, tarefas prefixadas pela sociedade. Para Chauí (1986), uma das maneiras de controle ideológico está no domínio das técnicas e das tecnologias de produção. É costumeira a expressão: “é o trabalho quem dignifica o homem”. Porém, é importante auto-construção humana. Ou seja, o trabalho não precisa ser um instrumenta alienado, repetitivo, puramente técnico e que visa apenas à sobrevivência. Os animais e os insetos executam tarefas de maneira instintiva. Seus atos não se renovam e são iguais em todos os tempos. “Na verdade os instintos são “cegos”, ou seja, são uma atividade que ignora a finalidade da própria ação.” (ARANHA; MARTINS, 1986, p. 02). São cegos porque não ponderam o sentido principal que deveria nortear a ação. Já o trabalho humano, instrumentalizado por uma técnica, deve ter a consciência do desígnio de seu ato. O ato existe antes como pensamento, uma criação, como uma possibilidade, sendo que o cumprimento nada mais é que o resultado relativo aos meios necessários para atingir aos objetivos dos fins propostos. Portanto, não se trata de um simples ato repetitivo, ou produzido de forma impositiva ou impensada. “Ao reproduzir técnicas que outros homens já usaram e ao inventar outras novas, a ação humana se torna fonte de ideias e ao mesmo tempo uma experiência propriamente dita”. (ARANHA; MARTINS, 1986, p. 04). Quando a forma ideológica de trabalho, entendida como “cega” se infiltra nos mecanismos de interatividade de campanhas publicitárias on-line, leva ao usuário

• Cláudio A leixo Rocha - Rosa M aria B erardo

que se entenda que, o trabalho dignifica o homem no instante em que colabora para a

publicitários interativos : produção de conteúdo e relacionamento on - line

1. Ideologia, mecanicismo e repetição na comunicação interativa

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narrativa multilinear aplicada na publicidade digital presente na Web.

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a comportar-se como um servo, servindo tão somente ao sistema para garantir sua perpetuação de funcionamento e seus ideais de produção. O internauta deixa de agir tal qual os animais irracionais e os insetos que não conseguem entender os porquês de suas ações, a não ser pelo fato de se objetivar finalizar a ação. Em sistemas com formas de interatividade predeterminada e extremamente fechada, os indivíduos não têm

de vetam a capacidade do indivíduo de pensar e engendrar. Nestes sistemas só existe a possibilidade do uso da técnica pela técnica. A repetição de ordens e o deslumbre tecnológico é a única forma de interação com o sistema. Assim sendo, certamente existirá pouca abertura para a ação criativa, perceptiva, cognitiva e interpretativa do usuário junto aos dispositivos interativos de campanhas publicitárias on-line que assim se estruturam. 1.1 Relação entre sistemas interativos, trabalho e inteligência humana O trabalho é a atividade humana por excelência. Por ele o indivíduo intervém na natureza e, conjuntamente, em si mesmo. “O trabalho é condição de transcendência e, portanto, é expressão da liberdade”. (op. cit., p. 04). O trabalho consciente é renovador, não é alienante. Do contrário, em sistemas que o trabalho é obrigatório, rotineiro, mecânico, não reflexivo e nada criativo, submete o indivíduo a condições de alienação e desumanização. Neste aspecto, é importante pontuar e compreender aqui a diferença entre a inteligência humana da “inteligência” animal e como isso contribui para uma forma de interatividade mais espontânea, intuitiva e menos impositiva em campanhas publicitárias veiculadas na Internet. Maria Lúcia Aranha e Maria Helena Martins (1986) defendem que, a inteligência humana é diferente do instinto animal, ou da “inteligência” animal. A inteligência humana é flexível. Por ela as respostas são diferentes conforme a situação proposta. Já alguns animais apresentam uma espécie de “inteligência”, a dita “inteligência concreta”. Esta, por sua vez, é dependente da experiência vivida “aqui e agora”. A “inteligência” do animal não tem a capacidade de inventar o instrumento, adaptá-lo ou aperfeiçoá-lo. Sua capacidade de uso surge do adestramento construído através de atos repetitivos. A diferença percebida nos dois exemplos descritos é que o homem tem a capacidade de se inventar, de se construir, pois domina o pensamento e a linguagem. Dessa forma, conclui-se que, em um sistema de interatividade muito fechada ou limitada,

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situações ou aperfeiçoar os instrumentos existentes. Tais dispositivos de interativida-

ano

possibilidade de inventar, ou manifestar suas sensibilidades subjetivas, ou criar novas

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com sua inteligência, e passa a atuar junto ao sistema de forma meramente instintiva,

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baseada em simples repetições, é retirado do indivíduo, aquilo que o diferencia dos animais, ou seja, sua capacidade de raciocínio para resolver problemas, assim como a

e a inteligência humana são pouco exigidas. Dessa forma, prevalece nesses sistemas uma espécie de inteligência concreta. Neles, a linguagem simbólica é insignificante, e, portanto, é redundante em suas contínuas “interpretações”. O imaginário humano é pouco exigido e, por esse fato, seus significados logo se esgotam, provocando a repetição e a mecanização dos atos. Em tais ambientes, há a superioridade da técnica pela técnica, e, portanto, pouco espaço para os aspectos perceptivos individuais. A experiência individual neste tipo de sistema rapidamente se esvai devido ao excesso de redundâncias. É por essa razão que se advoga aqui que, a repetição e o deslumbre pela técnica, quando priorizados em campanhas publicitárias veiculadas na Web podem levá-la ao descaso ou a indisposição de interação e relacionamento, visto que seus motivos de uso logo se esvaem. O desafio está em se pensar formas de valorização do aspecto sensível e particular humano, e não do mecânico em uma campanha on-line. Talvez um possível caminho para este intuito esteja em, além da construção de mecanismos de interatividade que dêem ao usuário maior autonomia na exploração da narrativa audiovisual, também se trabalhe diferentes formas de se empregar as diversas publicitária on-line, afim de que sua dimensão semântica tenha maior liberdade de percepção e interpretação particular para seus usuários. 2. Multilinearidade A multilinearidade é uma forma de valorização particular do indivíduo no meio on-line. Seu uso na publicidade veiculada na Internet tem a possibilidade de criar relacionamentos mais fortes com os usuários que interagem com campanhas publicitárias compostas por conteúdos audiovisuais interativos. De maneira abreviada será exposto o conceito de multilinearidade narrativa e sua importância na valorização do sujeito. Marcos Palácios (1999) enfatiza que a noção de não linearidade nos hipertextos, da forma como vem sendo generalizadamente empregada, mostra-se aberta a questionamentos. Para o autor, cada leitor, ao escolher seu próprio caminho entre os variados caminhos presentes em um hipertexto, cria ainda uma determinada linearidade específica, provisória e provavelmente única. Dessa forma, particular para aquele que

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linguagens (textual, visual e sonora) na dimensão sintática das peças da campanha

publicitários interativos : produção de conteúdo e relacionamento on - line

trabalho de exploração interativa é meramente repetitivo, a sensibilidade, a imaginação

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sua competência de abstrair, interpretar e criar novos símbolos. Em tais sistemas, cujo

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escolhe. Sendo assim, nota-se que não se pode falar em não linearidade, mas sim em uma multilinearidade, pois os diferentes e possíveis percursos são a todo instante segunda ou terceira leituras do texto em questão, percorre-se “linearidades” diferentes entre si “a depender dos links que sejam percorridos e das opções de leitura que sejam escolhidas, em instante em que a história se bifurca ou oferece múltiplas possibilidades

sempre linearizados pelo interagente. Esse mesmo pensamento é compartilhado por Edgar Franco ao expor que “podemos afirmar, segundo Palacios, que os hipertextos são estruturas narrativas multilineares que diferem da narrativa tradicional linear” (FRANCO, 2008, p. 165). O autor reforça ainda que outra forma de multilinearidade hipertextual está na criação de narrativa fechada mas repleta de percursos que se bifurcam a cada nova página. Dessa forma, esse tipo de multilinearidade possibilita ao usuário escolher entre um dos vários caminhos preestabelecidos pelo autor da narrativa e, mais conveniente a ele naquele instante específico. Isso permite que o destinatário que com a narrativa interage, tenha abertura para construir um caminho pessoal dentro dela. Após essa exposição sobre a narrativa multilinear serão apresentados dois estudos de caso de campanhas audiovisuais no meio on-line que fizeram uso do conceito de narrativa multilinear para a construção narrativa de seus vídeos publicitários. 2.1 A hunter shoots a bear: uma proposta de estudo de caso A marca de corretivo Tipp-Ex tornou um hit viral no YouTube em 20103 ao inovar com um vídeo de narrativa multilinear que consentia aos seus interagentes controlarem a continuação do enredo narrativo do comercial on-line. O primeiro vídeo da marca no YouTube tem como protagonista um caçador que encontra um urso em seu acampamento. Após 30 segundos iniciais do vídeo o internauta tem a abertura para escolher se o caçador atira ou não no urso. Seja qual for a resposta o internauta é convidado a completar a frase que o caçador apaga utilizando o corretivo Tipp-Ex: “A hunter...... a bear” (“um caçador ...... um urso”). A partir da palavra que é digitado pelo internauta a narrativa se bifurca para uma cena que contextualiza o significado semântico que a palavra sugere. A partir de então, caçador e urso passam a ser protagonistas de diversas situações hilárias. São múltiplas as possibilidades de 3 Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=4ba1BqJ4S2M>. Acesso em: 14 de out 2013

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linearidade, mas sim em uma multilinearidade. Os diferentes e possíveis caminhos são

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de continuidade” (Palacios, 1999, p. 4). Segundo o autor não se deve afirmar em não

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linearizados pelo interagente. Para Palacios dando continuidade a navegação, em uma

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inserção de palavras e visualização de cenas em que a narrativa se bifurca. Nesse aspecto, percebe-se que existe uma multilinearidade narrativa de possíveis atualizações

Em 2012, dois anos após a primeira campanha, a dupla da marca Tipp-Ex volta a se encontrar em uma nova campanha interativa criada pela agência Buzzman (França). Na ação intitulada “Hunter and bear’s 2012 birthday party4”, o mundo está prestes a acabar exatamente na data de aniversário do cômico urso. Na nova campanha a proposta é livrar a dupla do trágico fim marcado para aquele ano específica. Para dar início 4 Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=eQtai7HMbuQ>. Acesso em: 14 de out 2013.

• Cláudio A leixo Rocha - Rosa M aria B erardo

2.2 Hunter and bear’s 2012 birthday party: segunda proposta de estudo de caso

publicitários interativos : produção de conteúdo e relacionamento on - line

Figura 01: Cenas do vídeo publicitário interativo multilinear: A hunter shoots a bear.

Vídeos

para uma mesma história.

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à interatividade e a exploração multilinear narrativa do vídeo, ao usuário, é dada a liberdade de escolher um outro ano específico, diferente do ano atual em que a cena se ambiente festivo e comemorativo referente ao aniversário do urso se abre. O que gera a curiosidade e contínua interação do usuário com o vídeo é o desejo de visualizar e ser surpreendido pela maneira como cada cena será representada, haja vista que, todas as

Figura 02: Cenas do vídeo publicitário multilinear: Hunter and bear’s 2012 birthday party.

A criatividade contida em cada uma dessas duas campanhas, além da multilinearidade narrativa, está no fato que a correção da situação ou da data são feitas pelos personagens que, utilizam para apagar o texto indesejado, o próprio produto divulgado pela campanha, ou seja, o corretivo de textos em fita Tipp-Ex. Essa ideia é uma forma

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terísticas culturais de cada época escolhida.

ano

cenas são caracterizadas de forma visual e sonora de acordo com os costumes e carac-

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inicia. A partir de então a diversão é garantida. A cada ano digitado, uma nova cena de

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criativa de evidenciar o diferencial competitivo do produto, bem como reforçar seu posicionamento de marca.

recebeu no total, até o momento, nada menos que 40.271.206 milhões de visualizações no Youtube, afora os blogs e websites que divulgaram e discutiram a estratégia criativa e inovadora da campanha on-line. O vídeo publicitário também contou com milhões de compartilhamentos nas redes sociais e ainda obteve mídia espontânea em diversos meios de comunicação tradicionais em diferentes países. De acordo com informações divulgadas pela empresa as vendas no mercado europeu aumentaram em 30% durante a veiculação da campanha5. Seu sucesso demonstra como o relacionamento com uma marca na Web por meio da diversão e o entretenimento é uma possibilidade de gerar venda, valor agregado à marca e mídia espontânea. 3. Considerações finais Como descrito no corpo do trabalho um dos primeiros motivos de uso da Internet por grande parte dos usuários é a busca pela informação. Em específico, busca por informações sobre diversão e entretenimento. De acordo com Vaz (2008), Folha Online. Os pesquisados foram convidados a responder à seguinte pergunta: que tipos de vídeos você costuma procurar na Internet? As respostas apontaram que “os vídeos humorísticos ganharam em disparado (42% - 800 votos), enquanto jogos de futebol ou trechos de partidas ficaram em segundo lugar (22% - 423 votos) (VAZ, 2008, p. 290). As marcas no meio on-line precisam entender essa característica de comportamento do consumidor e oferecer esse tipo de serviço, afim de gerar um relacionamento contínuo com seus públicos que, a longo prazo, também podem passar a ser seus simpatizantes por perceberem que elas, além de compreenderem o que desejam e buscam, oferecem de maneira gratuita esse tipo de serviço. Para o usuário e potencial consumidor, tal postura empresarial passa a ser percebida como um valor agregado à marca divulgada. A produção de conteúdo audiovisual na publicidade on-line está diretamente relacionado ao chamado “Marketing de Permissão6”. Algo com caráter discreto de veiculação, pois só será visto se antes for procurado e permitido pelo usuário. Como 5 Disponível em: <http://ged.feevale.br/bibvirtual/monografia/MonografiaMatheusHeldt.pdf>. Acesso em 14 out 2013. 6 Por exemplo, no momento em que um amigo envia a um outro amigo um determinado conteúdo, seja esse um texto, imagem, vídeo ou link, por ser seu amigo, já tem a permissão para enviá-lo. Neste momento o amigo passa a ser o veículo de propagação do material recebido a outros amigos pressentes na rede.

• Cláudio A leixo Rocha - Rosa M aria B erardo

em outubro de 2007 a Folha de São Paulo realizou uma pesquisa com 1.887 leitores da

publicitários interativos : produção de conteúdo e relacionamento on - line

entretenimento e a diversão como forma de relacionamento entre consumidor e marca

Vídeos

Essa estratégia publicitária na Web da Tipp-Ex, que tem a particularização, o

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bem expõe Vaz (2008), gradativamente a publicidade está sendo inserida no conteúdo. Assim como ocorreu na inserção da Fedex e da bola de vôlei Wilson no filme essa inserção cotidiana ocorre de maneira mais discreta possível. Estratégias publicitárias no meio on-line que envolva na criação de suas peças, ou no contexto em que estão inseridas, a presença criativa e relevante de conteúdo informativo textual ou de

Os vídeos multilineares das campanhas on-line da Tipp-Ex são um bom exemplo de propaganda menos invasiva, mais discreta e relevante em relação ao conteúdo propagado. Nelas a publicidade da marca e de seu produto estão embutidas de maneira complementar com o conteúdo audiovisual. No entanto, marca e produto podem ser claramente percebidos pelos usuários. Fazem parte da narrativa. São compreendidos de maneira contextual, diluídos em meio ao discurso narrativo da história do vídeo. Juntos, marca, produto e conteúdo, integram a história. Ou seja, também são personagens relevantes para a compreensão do discurso narrativo. Nesse aspecto, para Vaz (2008), a tendência é que cada vez menos se faça distinção entre o lugar da propaganda e o do conteúdo. Qual é a hora da propaganda e qual é a hora do conteúdo. Avança-se para um estágio em que tudo tornará uma coisa só e, como consequência, atrairá mais clientes para as empresas. “Haverá cada vez mais marcas no conteúdo e cada vez mais conteúdo nas propagandas” (VAZ, 2008, p. 128). Outro ponto abordado no artigo está no fato do usuário na rede mundial de computadores buscar, prioritariamente, a comunicação entre seus amigos, conhecidos ou possíveis pares de relacionamento por afinidades no meio on-line. Essa comunicação tem por objetivo a procura ou divulgação de todo tipo de informação que julgam relevantes para si e para seus amigos, conhecidos ou comunidades virtuais. Essa perspectiva está diretamente relacionada ao já conhecido conceito de “Marketing Viral”. Termo esse que surgiu pela semelhança entre o tradicional efeito do boca-a-boca. O marketing viral espalha rapidamente uma informação, um texto, uma imagem ou um vídeo veiculado na Web. “A ideia é criar uma mensagem que se comporte na Internet como se fosse uma vírus e se espalhe pela rede espontaneamente, de consumidor em consumidor” (TORRES, 2009, p. 191). A comunicação viral faz do consumidor o próprio veículo da mensagem. Por meio dessa comunicação, é ele quem promove da melhor forma o produto de uma empresa “atuando como o próprio veículo - fato que independe da sua vontade ou do quão bom é o seu produto na opinião dos engenheiros que o projetaram” (VAZ, 2008 p 224). Isso foi exatamente

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propaganda de interrupção do conteúdo.

ano

conteúdo audiovisual, deverão atrair um retorno maior do que o tradicional modelo de

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“Naufrago”, cada vez mais as marcas estão no cotidiano da propaganda. No entanto,

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o que aconteceu com essas duas campanhas publicitárias on-line da Tipp-Ex. A ideia criativa de construção de vídeos publicitários de narrativa multilinear criou um buzz,

na rede. Uma forma de criar relacionamento entre marca e consumidor na Web, em específico por meio da necessidade comportamental de comunicação e busca pela informação sobre diversão e entretenimento, está na criação de estratégias que possibilitem ao cliente experimentar, brincar ou personalizar constantemente uma peça ou campanha publicitária. Por ser uma mídia democrática, na Internet, em qualquer ambiente de interação, o usuário deve perceber a liberdade de ação, bem como se sentir no controle da situação. Como consequência a essa experiência particular, pode vir a se sentir único e valorizado pela empresa. Esse case sobre a estratégia de comunicação on-line da Tipp-Ex mostra que, no momento em que campanhas na Web passam a utilizar da diversão ou entretenimento de maneira criativa e interativa, torna-se possível manter acesa a chama da publicidade e dos bons resultados que essa ferramenta do mix de comunicação pode trazer. Especialmente aos seus clientes que buscam divulgar seus produtos e serviços no meio on-line de maneira inovadora e acima de tudo, não impositiva.

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• Cláudio A leixo Rocha - Rosa M aria B erardo

Referências bibliográficas

publicitários interativos : produção de conteúdo e relacionamento on - line

personalizado que o usuário teve com a marca, foi gerada uma divulgação espontânea

Vídeos

um buchicho na Web. Como resultado subsequente, a partir da forma de relacionamento

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ano

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Revista GEMI n IS |

ROCHA, Cleomar. “Disponibilização de informação na

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Roteiros

para dispositivos de mídias móveis: tela , tempo e trânsito como elementos contingentes

Carolina D antas

de

Figueiredo

Jornalista e doutora em comunicação. Professora no Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal de Pernambuco. E-mail: caroldanfig@gmail.com

A llison Ronaldo

da

S ilva Mendes

Bacharel em Rádio, TV e Internet. Aluno egresso da Universidade Federal de Pernambuco e ex-bolsista da Rádio Universitária Web (projeto de extensão). E-mail: mendes.allisson@gmail.com

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p.

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Resumo A diversidade de formatos de tela implica também em novas formas de produção audiovisual. Tais ajustes não são novidade, eles se deram durante a transição do cinema para a TV, por exemplo, o que levou a novas formas de roteiro e edição, desembocando numa nova linguagem. Analogamente, isso acontece com os dispositivos móveis. É necessário que formas de roteirização e de edição específicas emerjam considerando as características fundamenais derivadas da mobilidade, a saber, tela, tempo e trânsito. Sendo assim, este artigo visa discutir os roteiros para os dispositivos de mídia móveis e suas implicações. Palavras-chave: dispositivos móveis; mobilidade; roteiro; tela; tempo; trânsito.

Abstract The diversity of screen formats also implies new forms of audiovisual production. Such adjustments are not a novelty, as they were also needed, for example, during the transition of film to TV. This shift led to new forms of screenplay and edition, ultimately shaping a new language. Analogously, it is now happening with mobile devices. Specific forms of screenplay and edition need to emerge encompassing the key features originated from mobility; namely screen, time and transit. This article discusses the screenplays designed for mobile devices and their implications. Keywords: mobile devices; mobility; screenplay; screen; time; transit


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elementos como mobilidade, interatividade e transmidiação, tornam-se cada vez mais determinantes nas formas de comunicação e usos das mídias. É difícil a compreensão imediata de todos os processos que envolvem a dinâmica dos conteúdos em mídias digitais, mas esta é uma tarefa necessária para a concepção de designs e produtos adequados às novas mídias, na perspectiva de uma melhor relação entre os conteúdos, os dispositivos que os suportam, seus usuários e os eventuais desdobramentos destas relações. Estamos entrando em um novo estágio em que a Cultura refere-se à Cultura, tendo suplantado a Natureza a ponto de a Natureza ser renovada (“preservada”) artificialmente como uma forma cultural: de fato, este é o sentido do movimento ambiental, reconstruir a Natureza como uma forma cultural ideal. Em razão da convergência da evolução histórica e da transformação tecnológica, entramos em um modelo genuinamente cultural de interação e organização social. Por isso é que a informação representa o principal ingrediente de nossa organização social, os fluxos de mensagens e imagens entre as redes constituem o encadeamento básico de nossa estrutura social (CASTELLS, 1999, p. 573).

Como afirma Castells (1999), a informação se constitui no grande vetor da sociedade contemporânea e a forma dinâmica como atua modifica gradualmente os modelos de midiatização, sobretudo através das tecnologias digitais. Estas, por sua vez, transformam-se em poderosos instrumentos midiáticos, convergindo características diversas e alterando pouco a pouco a organização das relações sociais, especialmente no que diz respeito à produção e consumo de conteúdos. A partir dessas considerações, é preciso entender as plataformas digitais como sendo capazes de fomentar relações midiáticas profundas e dinâmicas. Isto faz com que, junto com os novos formatos, surjam também novas linguagens adequadas aos novos dispositivos e aos seus designs de interface. Assim, busca-se discutir aqui como, dentro do processo de convergência,

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O contexto atual da sociedade é marcado por fluxos informacionais intensos e

ano

1. Novos dispositivos, novas formar de fruição: uma abordagem introdutória


roteiros de conteúdos audiovisuais podem ser desenvolvidos para os dispositivos móveis de forma mais adequada às contingências deste tipo de suporte. de suportes tecnológicos foi desenvolvido. O que se define por dispositivos móveis são aparelhos de tecnologia digital capazes de armazenar e processar dados em artefatos portáteis. Tais dispositivos são processadores móveis de dados, geralmente constituídos por um pequeno ecrã (que permite a saída, output de dados) e itens que permitam navegação e entrada de dados (input), como setas cursoras ou teclados, sejam eles digitais - disponíveis no próprio ecrã - ou utilizáveis através de um hardware específico conectado ao aparelho. Na maioria dos dispositivos atuais, estes elementos combinam-se em um ecrã táctil (touchscreen). Por serem portáteis, tais aparelhos assumem múltiplas funções e hoje se associam a usos particulares e profissionais diversos. De acordo com Jones e Marsden (2006), os dispositivos móveis podem ser reconhecidos através de características que levam em conta as suas funções comunicativas, como por exemplo, a troca de mensagens multimídia. Também consideram como determinante para classificação as características físicas dos aparelhos, como tamanho, design e disposições técnicas, como tela, teclado, etc. Os dispositivos móveis de uso cotidiano mais comum são: PDA (personal digital assistant), celular, smartphone, console portátil, televisor portátil, aparelho GPS (sistema de posicionamento global), notebook e tablet. Embora estes aparelhos sejam distintos entre si e cumpram funções diversas, consideramos a produção para dispositivos em face a três variáveis: tela, tempo e trânsito. Isto é, tamanho da tela em que o conteúdo e exibido; tempo de que o usuário dispõe para consumir o conteúdo oferecido; e trânsito, uma vez que o usuário carrega o dispositivo para onde vai. Estas características se articulam e influênciam mutuamente, daí a exigência de roteiros para audiovisual específicos para estes tipos de aparelho. Note-se que considerando-se o tamanho da tela e a capacidade de exibição de vídeos, restariam para a presente análise fundamentalmente smartphones e tablets já que os demais ou não exibem vídeos (console portátil e GPS, por exemplo) ou tem telas maiores (televisor portátil e notbook). Castells (Ibidem) menciona a migração do público em busca de novas formas de entretenimento e as transformações que acontecem a partir da convergência. A forma de se conceber roteiros para o audiovisual em mídias móveis integra tais transformações. Em relação às narrativas audiovisuais ficcionais para dispositivos móveis é necessário uma assimilação dos elementos que as compõem, levando em consideração seus aspectos técnicos, estéticos e funcionais. Deste modo, é possível a constituição de

Roteiros para dispositivos de mídias móveis: tela, tempo e trânsito como elementos contingentes • Carolina Dantas de Figueiredo - Allison Ronaldo da Silva Mendes

Até se chegar ao que hoje é entendido como dispositivos móveis, uma infinidade

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roteiros mais adequados às plataformas digitais móveis, explorando as telas, o design das interfaces e as novas possibilidades de conteúdo, assim como suas eventuais elementos já existentes para a construção de roteiros para os dispositivos móveis especialmente porque estes ainda representam um cenário propício para desenvolvimento e experimentação de conteúdos.

plafatormas digitais interativas, e nem mesmo na capacidade do usuário produzir seu próprio conteúdo em contiguidade com aquele que recebe. Isto porque, julgamos que cada um destes pontos - interação e produção autônoma de conteúdo - possui características próprias. Além disso, no afã de dar conta dos muitos aspectos das mídias digitais é comum que temáticas distintas sejam tratadas conjuntamente, o que não permite um aprofundamento adequado em cada uma delas. Daí nossa opção por trabalhar isoladamente com o roteiro, pois pensamos que o roteiro para as mídias digitais móveis, está neste momento numa fase de transição dos roteiros audiovisuais tradicionalmente concebidos para cinema e televisão para o desenvolvimento de uma linguagem própria, sem, contudo, estabelecer uma ruptura radical, como o próprio cinema fez desvinculando-se do teatro e a TV do cinema. 2. Tela, tempo e trânsito como contingenciais para os roteiros de mídias digitais Para sequência desta discussão, é fundamental uma melhor compreensão de que são constituídas as mídias digitais e o que elas possuem de novo em relação às antigas práticas midiáticas. Lev Manovich (2001), em “The Language of New Media” considera, a partir do que caracteriza como objetos das novas mídias (sites, multimídia, jogos, animações computacionais, vídeo digital, interfaces homem-máquina, etc) a transformação das diversas possibilidades midiáticas em informação numérica acessível para computador. Sons, imagens e textos são então traduzidos para um conjunto de dados digitais. Para o autor (Ibidem), a partir desse processo a mídia se torna nova mídia). A conversão em dados digitais permite que tais conteúdos sejam mais facilmente manipulados. Em adição, o processo de convergência, a popularização dos dispositivos móveis e o crescente investimento em tecnologias em rede permitem cada vez mais que novas práticas de experimentação e exibição de imagens surjam ligadas a situações de trânsito dos usuários, isto é, a sua mobilidade. Assim, a roteirização para dispositivos

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neste texto não trataremos da interferência do público nos roteiros, como no caso das

ano

Cabe aqui uma ressalva, embora tais dispositivos permitam input de dados,

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limitações. A ideia aqui não é criar métodos, mas avaliar a possibilidade de se adaptar

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móveis deve atender fundamentalmente ao fato de que o espectador possivelmente estará em trânsito e verá o conteúdo durante um período muito curto e numa tela A experiência de produzir e assistir audiovisual num dispositivo móvel é, e deve ser um processo, totalmente diferente do cinema ou da televisão. Machado (1988) comenta que uma tela pequena é “uma tela em que se pode colocar pouca quantidade de informação, já que há sempre o perigo de que uma imagem demasiado abundante se dissolva na chuva de linhas de varredura” (MACHADO, 1988). Tem-se assim que o fator tela, ou mais especificamente, o tamanho da tela é de fundamental importância na definição do que é produzido. A pouca quantidade de informações que a tela comporta, em termos de roteiro, converte-se em foco nos personagens, ações mais contidas e indicações de enquadramentos mais fechados. Assistir um filme numa tela diminuta é completamente diferente de assistir numa tela de cinema ou de televisão. No cinema o espaço de fruição permite ao espectador uma imersão na imagem que está sendo exibida. Isto em decorrência da sala de projeção ser um espaço formado por diversos elementos que possibilitam este tipo de experiência (poltrona, tela grande, sala escura e condição de imobilidade). Há todo um cenário preparado para que o espectador apenas fixe os olhos no que está sendo exibido e não desvie a atenção para nenhum outro elemento que possa surgir. Na televisão, a experiência já adquire outra dimensão, ainda passando pela criação de espaços próprios para a fruição, mesmo que esta seja muito mais dispersa do que no cinema. Este fato contribui muito no modo como é desenvolvida toda a produção para TV. “Na imersão, espaço circundante visível, livramento de toda situação da sala escura. Ver televisão é um comportamento muito mais distraído e dispersivo do que o cinema” (MACHADO, 1998, p. 49). A plataforma midiática está agora na palma da mão do espectador. Como se fossem pequenas janelas da vida cotidiana, os dispositivos móveis se tornam, de acordo com Beiguelman (2005), mecanismos de adequação do usuário a contextos urbanos de intensos fluxos de informação “onde o leito/interator está sempre envolvido em mais de uma atividade, relacionando-se com mais de um dispositivo e desempenhando tarefas múltiplas e não correlatas” (BEIGUELMAN, 2005, p.158). Sendo assim, os fatores tempo e trânsito devem ser considerados. Por estar em trânsito o receptor do conteúdo informacional não dispõe, ao menos em tese, de tanto tempo para consumir conteúdos. Estes, em função desta prerrogativa, tendem a ser mais fragmentados e eventualmente simplificados. Se o tempo que o usuário destina para a fruição do conteúdo não é longo, o conteúdo em si não pode ser longo. Há então uma tendência para roteiros

Roteiros para dispositivos de mídias móveis: tela, tempo e trânsito como elementos contingentes • Carolina Dantas de Figueiredo - Allison Ronaldo da Silva Mendes

pequena.

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curtos e simples (em termos de escrita, não necessariamente de conteúdo) e serializados - no caso de narrativas com arcos mais longos. O fracionamento, que é herança da muitas vezes não ultrapassam dois minutos. Cabe notar que a experiência com frações de tempo menores se inicia na própria televisão, através de propagandas, interprogramas e vinhetas. Especialmente a partir de finais de anos 80 e ao longo da década de

A abordagem que o audiovisual ganha com a experiência de vídeos nas telas de dispositivos móveis constitui um novo olhar para uma nova “moldura”. De acordo com Aumont (2005), a moldura dá forma à imagem. Ou seja, por estar emoldurada de um determinado modo, uma imagem deve ser assistida e assimilada de modo correspondente a sua moldura. O design da interface, interfere então no conteúdo. Segundo o autor (Ibidem, p. 157): “De fato, a moldura aparece mais ou menos como uma abertura que dá acesso ao mundo imaginário, à diegese figurada pela imagem Reconhece-se a célebre metáfora da moldura como ‘janela aberta para o mundo”. A noção apresentada por Aumont guia não só o audiovisual, mas outras linguagens artísticas. Uma peça de teatro não pode ser experimentada do mesmo modo que um concerto de música. Uma pintura clássica não deve ser contemplada do mesmo modo que uma xilogravura. Seguindo esta lógica, um programa de TV não deve ser assistido do mesmo modo que uma produção para celular. O espaço de contemplação próprio de cada uma das obras, a “moldura”, determina o tipo de obra apresentada e a maneira como deve ser contemplada, criando convenções para a fruição. Sobretudo no momento atual de desenvolvimento das possibilidades audiovisuais que as mídias móveis oferecem, é preciso atentar que não há padrões a serem seguidos, vive-se um momento de experimentação em que diferentes possibilidades são testadas. Não há um modelo de produção ideal para dispositivos móveis, embora estejamos buscando refletir sobre o roteiro para estas mídias. Nem haverá. Tanto porque múltiplas formas de fazer convivem mutuamente, quanto porque os dispositivos tecnológicos são mutáveis, fazendo com que a linguagem se modifique a cada novo contexto. Insistimos porém, e aqui lembramos Manovich (2001), que as formas atuais operam em continuidade e não em ruptura com as anteriores. É isso que o autor ressalta quando trata do cineasta russo Vertov, relacionando sua forma de trabalhar ao banco de dados. Seja como for, no caso dos dispositivos móveis, a mobilidade é o seu maior trunfo, no sentido de permitir que o usuário consuma conteúdos onde e quando quiser. A contrapartida disso é que o conteúdo deve caber em uma tela diminuta.

6 - n. 2

linguagem videoclíptica passa a permear a TV.

ano

90, quando técnicas de digitalização começam a surgir nas mesas de edição e quando a

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TV, converte-se numa espécie de hiperfracionamento, com a produção de vídeos que

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3. Narrativa audiovisual para dispositivos móveis

porque quem produz o conteúdo é constantemente influenciado pelas possibilidades que a tecnologia oferece. Ou seja, As modificações de cunho tecnológico nos dispositivos influenciam a forma como os produtores irão encarar os conteúdos, realizando novas experiências estéticas. No seu “Manifesto da Estética da Comunicação”, Forest (1983) afirma que as mídias eletrônicas vêm proporcionando uma ruptura cognitiva e revolucionando psicologicamente a forma de interação dos seus usuários com a sociedade. Ele acredita que estas mudanças trazem também um fortalecimento das faculdades sensoriais do organismo. Elementos como cognição e percepção não se desenvolvem a partir de configurações já estabelecidas e lineares, é preciso alterá-las e este é o papel do produtor de conteúdo. A partir deste processo serão desenvolvidas não só novas formas de percepção sensorial como também caminhos estéticos diferentes dos trilhados anteriormente. Como não há padronização sobre o que é ideal ou não para produções audiovisuais voltadas para dispositivos móveis, faz-se necessário retomar o conceito de vídeo como uma forma de pensar as imagens, como um processo de “travessia”, como afirma Dubois (2004, p. 113). Há uma espécie de potência de pensamento na e pela imagem, que me parece existir no coração da forma vídeo. O “vídeo” seria então, neste sentido e literalmente, uma forma que pensa. Seguindo-se essa mesma lógica, entendendo-se o vídeo e sua relação com os dispositivos móveis como um processo extremamente recente e inacabado, é preciso observar como o roteiro para dispositivos móveis incorpora novos elementos e linguagens. Machado (1996) afirma que é necessário falar sobre o vídeo fora de qualquer terreno institucionalizado, afinal, de acordo com a dinâmica que envolve os processos midiáticos e o desenvolvimento de novas tecnologias, tudo pode e deve ser modificado. Trata-se de enfrentar o desafio e as resistências de um objeto híbrido, fundamentalmente impuro, de identidades múltiplas, que tende a se dissolver camaleonicamente em outros objetos ou a incorporar seus modos de constituição (MACHADO, 1996 p. 45).

Assim, o vídeo se constitui não como objeto, mas como um processo descentralizado de linguagem, um meio que continuamente cria novos horizontes e os modifica ou destrói, de acordo com seu grau de desenvolvimento. Esta característica é o que permite ao vídeo no mundo contemporâneo ter a capacidade de recodificar experiências e realizar percursos entre diversos tipos de criações, desde as plataformas de telefonia móvel aos painéis de publicidade pelas ruas. Pensando de modo geral na

Roteiros para dispositivos de mídias móveis: tela, tempo e trânsito como elementos contingentes • Carolina Dantas de Figueiredo - Allison Ronaldo da Silva Mendes

Costa (1995) acredita que todo cenário estético sofre constantes alterações

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estética audiovisual para dispositivos móveis, não é possível traçar padrões a serem seguidos pelos produtores de conteúdo. O cenário de mídias digitais aponta para algo consumir audiovisual. Cabe então se abastecer dos repertórios estéticos já existentes e experimentar possibilidades criativas com o intuito de realizar produções mais específicas para as plataformas e de flexibilizar cada vez mais as fronteiras narrativas

cultural e historicamente. De acordo com Brockemeier (2003), o ato de contar algo sobre um evento vivido, um momento importante, um desafio a ser superado ou um estado de espírito é feito através de formas narrativas. A narrativa cinematográfica clássica, que tem origem a partir dos trabalhos de D.W. Griffith sob a influência de cineastas como Edwin Porter e James Williamson, dá origem ao que se denomina linguagem do cinema. Esta, segundo Machado (2007), é um tipo de narrativa construída através da linearização do significante icônico, hierarquização dos recortes de câmera e do papel modelador das regras de continuidade. É um produto gerado a partir de um conjunto de opções estéticas e de situações econômicas que contribuíram para seu desenvolvimento. A linguagem audiovisual contemporânea se desenvolveu em grande parte a partir da forte influência do “modelo griffithiano”, narrativa cinematográfica clássica, influenciada pela narrativa do romance e do teatro oitocentista. Uma produção audiovisual contemporânea é ou pode envolver ao mesmo tempo conceitos relacionados à arte, indústria, cultura e linguagem. De acordo com o desenvolvimento do audiovisual é possível incorporar mudanças que atuam no âmbito da linguagem do meio audiovisual a cada avanço tecnológico. Santaella (2005) acredita que por ser uma arte que inseparável dos avanços tecnológicos, as mudanças relacionadas à linguagem audiovisual também caminham juntas a esses avanços. Os avanços tecnológicos relacionados à produção audiovisual na contemporaneidade trazem consigo modificações importantes nas formas culturais tradicionais. As novas plataformas midiáticas digitais trazem novas características para a criação do audiovisual, alteram a visão sobre o mundo e sobre as potencialidades das próprias plataformas, já que modifica-se com elas o comportamento dos usuários. Sendo assim, um bom encaminhamento para o desenvolvimento de uma linguagem própria, voltada para as especificidades do audiovisual no celular talvez se dê através de uma melhor compreensão das relações que os usuários estabelecem com o aparelho. Muito se fala, em relação à linguagem audiovisual dos dispositivos móveis, sobre as particularidades dos elementos responsáveis pelo discurso através da prática

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A narrativa é constituída de diversos elementos linguísticos que são transmitidos

ano

entre quem produz e quem contempla estes produtos.

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oposto a esse processo, uma dinâmica muito grande entre as formas de produzir e de

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e da técnica. De acordo com Galindo (2005), deve-se optar por planos mais fechados e com poucos movimentos ao invés de planos gerais mais detalhados, considerando visuais (quando necessário) com pouco detalhamento. Neste sentido, o autor refere-se ao fator tela. Além disso, em se tratando de plataformas que participam de um trânsito constante numa sociedade com um fluxo informacional cada dia mais intenso, é interessante que as obras audiovisuais sejam de curta duração. Isto é, o tempo de visualização dos conteúdos relaciona-se ao trânsito dos seus consumidores, ou antes aos seus múltiplos trânsitos. Além do tempo ser curto, o usuário está sujeito a diversas interferências externas, pois eventualmente interage com esses conteúdos em coletivos, locais públicos, etc, e a inteferências do próprio aparelho, como chamadas, mensagens e outras aplicações abertas. O interessante para quem produz conteúdos para essas plataformas é sempre incorporar melhorias proporcionando formas de fruição mais adequadas ao usuário. Efetivamente, faz-se necessário ter sempre atenção em relação às características de linguagem de cada meio para o qual se roteiriza. Por isso, um bom primeiro encaminhamento é saber das potencialidades e limitações da plataforma a que o produto se destina. Após isso, é válido um pensamento estratégico de como tornar o conteúdo autêntico e com um dinamismo capaz de envolver o consumidor independentemente da tela, tempo de que dispõe ou local onde esteja. 4. Roteiros para dispositivos móveis De acordo com Fechine (2011), se realizada uma análise dos principais manuais para desenvolvimento de roteiro existentes, a imensa maioria deles define o roteiro como a forma escrita de um projeto audiovisual, um guia de realização, planejamento, modo de organização da história ou o esboço de uma narrativa, levando em conta suas marcações de som e imagem. Pensando numa narrativa audiovisual para dispositivos móveis, o principal trabalho que caberá ao roteirista é a organização do campo de possibilidades que os conteúdos podem oferecer. Segundo Fechine (2011), neste cenário o roteirista não responde mais pelo processo, mas sim pelo sistema. Ou seja, já que o usuário é cada vez mais responsável pelo desenvolvimento de uma obra audiovisual nas mídias digitais, o papel do roteirista recai sobre o estabelecimento das regras que servem de guia para os encaminhamentos do processo como um todo. Narrar, independente da linguagem a ser utilizada é um processo que envolve não somente o domínio dos artefatos tecnológicos necessários para a produção, mas, sobretudo uma organização estrutural da narrativa capaz de mapear mentalmente

Roteiros para dispositivos de mídias móveis: tela, tempo e trânsito como elementos contingentes • Carolina Dantas de Figueiredo - Allison Ronaldo da Silva Mendes

o tamanho reduzido das telas, pouca profundidade de campo e uso de elementos

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todos os processos que farão parte da estória, tornando-a uma manifestação coerente, capaz de uma boa adequação à linguagem escolhida e atrativa para quem for consumir. narrativa ficcional. Para isso tomamos as noções de McKee (2006) de esturura, evento, cena, beat, sequência, ato e estória. Estrutura: Selecionando momentos específico da estória, o autor precisa realizar

etc. Fato é que só um desses pontos isoladamente não é capaz de construir uma estória. É preciso uma organização dos eventos que contemplam personagens, ações, conflitos, mudanças e outros elementos. McKee (2006) afirma que a estrutura é a seleção de eventos que ocorrem na estória de vida dos personagens a partir de uma sequência estratégica capaz de despertar no público os sentimentos que o autor pretende, além de expressar o ponto de vista desejado. A estrutura é a organização da estória a partir da distribuição dos principais eventos que a compõe. Em se tratando de ficção para smartphones e as características próprias da linguagem das mídias digitais, é interessante que o autor pense na estrutura da estória a partir das possibilidades que a plataforma oferece. Por exemplo, diante de uma narrativa fragmentada ou de curta duração faz-se necessário pensar em conjuntos enxutos ou mesmo fragmentados de personagens e ações. Evento: McKee (2006) diz que uma o evento deve criar uma mudança significativa na vida de um personagem e deve ser expresso em termos de valor. Valores de uma estória, ainda de acordo com McKee (Ibidem), são as qualidades universais da trajetória humana. Podem mudar de um pólo para outro, do negativo para o positivo ou o contrário. Por exemplo, um personagem pode transitar da riqueza para a pobreza a partir de um evento ocorrido ou da coragem para a covardia. Há diversas maneiras de se criar um evento na estória a fim de realizar uma modificação nos valores, mas é sempre interessante que essa mudança ocorra a partir de um fato relevante, ou de um conflito. As coincidências e os acidentes aqui não devem prevalecer frente aos conflitos, não fortalecem a veracidade da estória. Aqui não nos parece haver um padrão específico para as narrativas em dispositivos móveis, contudo, considerando-se tempo e trajetória, parece-nos adequado considerar que o evento ou um conjunto de eventos deve ser facilmente assimilado pelo público para a compreensão da narrativa como um todo. Cena: Segundo Mckee (2006), a cena é uma ação com conflito em um tempo mais ou menos contínuo. Esta ação deve trazer um ponto de virada capaz de transformar

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narrativa audiovisual. Alguns preferem destacar os personagens, as ações, mudanças,

ano

suas escolhas, indicando o que lhe parece mais interessante para a amarração de uma

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Assim, serão pontuados os elementos fundamentais para a estruturação de uma

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de alguma forma a condição de vida de um personagem em pelo menos um valor de significância para a estória. É ideal, mas não obrigatório, que cada uma das cenas seja ao final de uma cena, nada significativo acontece para transformar a condição do personagem, esta cena é um não evento, está presente para exposição de informações sobre a trama. Em relação às possibilidades de ficção para dispositivos móveis, é interessante pensar em cenas fragmentadas conduzindo a narrativas fragmentadas. Pensando-se em hipersegmentação, cada cena seria um capítulo ou episódio em que poderiam ser distribuídos os principais eventos. Todas as cenas juntas formariam o arco maior da estória. Outra possibilidade é a da criação de pequenos filmes de curta duração com estórias fechadas. Cada peça contendo uma estória a ser contada em uma, duas cenas, ou três cenas no máximo. É interessante que o roteiro seja muito coerente com a proposta, pois a estória precisa ser fechada em poucos minutos, assim, deve ser compacta, repeitando o tempo que o usuário do dispositivo móvel terá para a absorção das informações. Beat: O beat é uma mudança no comportamento que ocorre devido a uma ação e da reação acontecida a partir dela. A cada beat é possível modificar gradualmente o comportamento, até transformá-la num ponto de virada para a cena. Por exemplo, um homem começa o dia tomando café da manhã com a esposa, os dois iniciam uma discussão por dinheiro, em seguida ela começa a insultá-lo, ele reage e atira um copo em direção à esposa, ela arruma as malas e diz que “acabou”. Cada uma dessas pequenas atitudes pode ser considerada um beat, gradualmente eles contribuem para que a situação do casal se transforme, de casados para solteiros. Sequência: sequências, de acordo com Mckee (2006), são blocos ou conjuntos de cenas que têm como consequência um impacto na estória maior do que qualquer cena anterior. Numa produção de cinema ou TV, normalmente uma sequência possui de duas a cinco cenas e tem sempre na última cena o clímax da sequência, representado por uma mudança fundamental para a próxima sequência e para a estória. Em se tratando de produções para dispositivos móveis, é interessante pensar num número reduzido de cenas (uma ou duas) para cada sequência e poucas sequências para uma estória, formas sintéticas parecem mais propícias aos dispositivos móveis. Ato: seguindo essa lógica, Mckee (2006) afirma que o ato é uma série de sequências que têm como ápice uma cena climática, que causa uma grande e profunda reversão de valores para o decorrer da estória. A diferença, dentro de uma cena básica, entre o clímax de uma sequência e o clímax de um ato é o grau de mudança ou de

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um evento da estória. Se a condição de vida de um personagem é a mesma do começo

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impacto que a ação vai trazer para a estória, assim, o clímax de um ato traz sempre mudanças muito mais profundas do que o clímax de uma sequência. Naturalmente se mais curtos. Estória: um conjunto de atos constrói a estória. Mckee (2006) diz que quando se olha para a carga de valores da situação de vida dos personagens no começo e no

através de um clímax que engloba as consequências de todos os atos e traz para a estória um final que modifica fundamentalmente a vida dos personagens de modo irreversível fechando o ciclo narrativo. E a estória será, nos dispositivos móveis, necessariamente mais curta, em face da redução de estrutura, evento, cena, etc. Nota-se aqui que as narrativas de caráter linear/ não interativo para dispositivos móveis, são constituídas dos mesmos elementos básicos que compõem uma narrativa audiovisual no cinema ou na televisão, contudo, são necessários ajustes. A fragmentação de uma estória em diversas partes pode representar uma opção criativa, assim como a concepção de diferentes estórias, com narrativas próprias e isoladas. Vale ressaltar que, embora estejamos pensando apenas em termos de linearidade, a fragmentação é ponto de partida para as narrativas não lineares/interativas. O que vai mudar é o caráter e a função da narrativa, assim como a interface e os dispositivos de interação com o usuário, obviamente inexistes nas narrativas lineares. Antes mesmo de explorar os elementos propostos por McKee, o primeiro passo para a concepção de um roteiro audiovisual para dispositivos móveis, assim como para a produção audiovisual, de acordo com Gosciola (2003), é a construção de um argumento. Este deve estabelecer as motivações que levam às ações dos personagens; os sentimentos causam os acontecimentos, sempre nessa perspectiva e não o contrário. O intuito do argumento é propiciar para o roteiro para dispositivos móveis, marcado pela fragmentação e pela dinâmica na fruição, convencimento e atratividade em um suporte de imensa circulação no cotidiano e de uma enorme capacidade como ferramenta audiovisual. Considerando as possibilidades de fragmentação de estória que esses suportes proporcionam, a lógica argumentativa deve ser pensada de modo a fortalecer as ideias que compõem a estória, sobretudo a ideia principal que compõe o arco. Nesse sentido, um bom argumento pode contribuir para fortalecer a unidade da obra para dispositivos móveis. À medida em que a discussão sobre o roteiro para as plataformas móveis vai se aprofundando, ficam mais claras as características essenciais que compõem as

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a mudança substancial nas condições de vida dos personagens. Tal mudança ocorre

ano

final de uma estória, deve ser visível o arco maior do filme ou da série. Este arco traz

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há menos cenas nas produções para as mídias móveis, há também menos atos, ou atos

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perspectivas sobre a produção de conteúdos para dispositivos móveis. Logicamente, considerando todo este processo como decorrência de experiências adquiridas das tamanho da tela, tempo de fruição e local/ contexto onde ela acontece. Vista de modo mais amplo, a fragmentação nos parece uma tendência muito natural, levando-se em conta não apenas tela, tempo e trânsito, mas também a variedade e intensidade nos fluxos informacionais recebidos pelo público. A fragmentação, antes de ser do dispositivo, se dá nos processos psico-sociais nos quais os agentes comunicacionais se envolvem. Natural então que o conteúdo disponível no suporte tecnológico seja também fragmentado. Pensando assim, o roteiro audiovisual para dispositivos móveis tem como objetivo a transformação de todos os fragmentos narrativos em partes visualizáveis, contendo forte poder atrativo e de assimilação. A narrativa, que conta sobre algum fenômeno a partir de uma ideia inicial, tem no roteiro todos os seus elementos mantidos, mas transformados em partes visualizáveis. O roteiro, tanto no campo da produção audiovisual linear quanto em uma adaptação criteriosa para o processo da produção de uma obra audiovisual não linear em hipermídia, mais do que a narrativa, tem como objetivo principal descrever cada momento distinto dessa narrativa (GOSCIOLA, 2003, p. 141).

O papel do roteirista para dispositivos móveis está em um trabalho multi e interdisciplinar de raciocínio de modo a organizar um argumento em termos de uma narrativa, que pode ser linear ou não, mas que deve atender às características técnicas, estéticas e de uso das plataformas móveis. Na sequência desta discussão serão apresentadas algumas atividades importantes que envolvem o processo de roteirização. Tal encaminhamento foi concebido a partir de uma lista de atividades apresentadas por Gosciola (2003) e da seleção dos elementos essenciais para a construção do roteiro para dispositivos móveis. • Ideia: concepção criativa, motivação para o desenvolvimento do roteiro. • Storyline: definição breve do conflito central que a estória traz como premissa entre os pólos principais da obra. • Planejamento para o desenvolvimento e para as configurações da produção: Este ponto leva em consideração a organização do banco de dados com todas as informações utilizadas na obra; definição de entrevistas, pesquisas, documentos que ajudarão no desenvolvimento, análise da estrutura narrativa e estética; e o desenvolvimento do conceito. • Análise dos softwares necessários para a construção do roteiro. • Definições estéticas sobre a obra.

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linguagens anteriores, em especial de cinema e TV, sendo que contingenciada ao

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• Detalhamento dos personagens e objetos que compõem a estória: descrição aprofundada sobre a vida, características físicas, temporais, espaciais e estéticas. apresentada (em um único bloco ou em fragmentos) e seus eventuais desdobramentos (hipermídia e transmídia, se for o caso) • Construção do enredo da estória: modo de organização das unidades de ação

hipermídia, transmídia, se for o caso) com o intuito de tornar o enredo coerente com a proposta e com a plataforma. • Descrição do roteiro em linguagem audiovisual: adaptação de todos os elementos que compõem a estória para uma formatação adequada à linguagem audiovisual, podendo ser distribuída sistematicamente. • Definição de um fluxograma: alinhamento de todos os processos que envolvem o roteiro à uma lógica organizacional. • Storyboard de telas. • Primeiro tratamento do roteiro: união do tempo dramático, definição dos diálogos e clima para cada cena. • Avaliações e revisões: processo de testes, aperfeiçoamentos ou alterações. • Roteiro final: versão final para a obra após todas as avaliações e revisões. Cabe ao roteirista no contexto midiático atual conceber o maior fluxo possível de informações relevantes sobre a obra da forma mais clara possível. Sabendo-se que a fragmentação é uma característica dos produtos audiovisuais para os dipositivos móveis, seja como algo em si - considerando-se tempo, tela e trânsito e - seja para proporcionar hipermidiação e transmidiação, é necessário cuidar da unidade da obra considerando-se o seu arco dramático. 5. Considerções finais: sinalizações sobre roteiro para dispositivos móveis A evolução das mídias digitais como suporte tecnológico e ferramenta audiovisual vem modificando o processo de produção, distribuição e fruição das estórias em narrativas audiovisuais. Dentro desta discussão, cabe levantar algumas considerações importantes para a produção de ficção audiovisual móvel, sobretudo no que diz respeito ao roteiro. O roteiro para dispositivos móveis atua em contiguidade com as formas de roteiro que o antecedem. Soma-se todo este repertório à compreensão e instrumentalização dos processos que envolvem as mídias digitais (formação de banco de

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observar as possibilidades narrativas que serão exploradas (fragmentação,

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que se apresentam na obra. Em se tratando de dispositivos móveis é importante

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• Mapeamento narrativo da obra: este processo irá definir como a estória será

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dados, codificações, links e domínio de softwares e plataformas). Assim como o próprio aparelho que é convergente, torna-se o roteirista convergente, construindo para a sua de interação e suportes técnicos digitais. É preciso reforçar a ideia do roteiro não apenas representação de uma obra, mas como um processo social, estruturado através das dinâmicas que envolvem suporte, obra, autor e usuário. A mobilidade é característica que define como serão elaborados os roteiros para mídias móveis. Tela, tempo e trânsito são apenas expressões gerais da mobilidade. Parece contraproducente tratar um roteiro para um dispositivo móvel, por exemplo, da mesma forma que um roteiro para a TV, considerando-se que o usuário pode estar recebendo o conteúdo do primeiro em uma tela diminuta enquanto espera na plataforma do metrô. Entendendo-se os dispositivos móveis, em especial os smartphones, como ferramentas propícias para a fruição de conteúdos audiovisuais é preciso estar atento aos parâmetros que estes dispositivos exigem para uma boa produção. Deste modo, o primeiro encaminhamento diz respeito à linguagem para estes meios. É preciso compreender que as “novas mídias” se tornam novas mídias, segundo Manovich (2001), a partir da digitalização de sons, imagens e textos. A experiência móvel também representa um fator determinante para a produção audiovisual voltada para esses dispositivos. Assistir um vídeo em um dispositivo móvel é e deve ser uma experiência distinta de qualquer outro tipo de plataforma, pois a tela está na palma das mãos e circula por locais diversos realizando outras tarefas muitas vezes não correlatas. Esse pensamento reforça a ideia de Aumont (2005) de que a moldura de uma obra indica a forma da imagem apresentada. O espaço de contemplação é determinante para a formatação da obra e os modos de assimilação. Não há regras estabelecendo critérios a produção audiovisual para dispositivos móveis, nem é isso que se deve buscar nesse momento. A tarefa agora é a exploração de formatos flexíveis que possam se adequar melhor às plataformas e que sustentem a ideia de experimentação de conteúdos, fugindo de lógicas mais convencionais. O momento é de pleno desenvolvimento a partir de referências de linguagens já conhecidas e a introdução de novos pensamentos. Em relação ao roteiro, o primeiro ponto importante e talvez o mais fundamental para a linguagem das mídias digitais é o fato do roteiro de uma obra não mais corresponder ao processo e sim ao sistema de organização das etapas, já que é necessário pensar em termos de fragmentação, tanto no sentido de se antecipar um debate sobre multilinearidade (algo que não realizamos neste artigo), quanto para respeitar telas, tempos e espaços (em função do trânsito) fragmentados de fruição. Os elementos que

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produção um acervo de conhecimentos sobre diferentes linguagens, artes, mecanismos

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compõem a estória não carecem de modificação, a estória é que precisa ser contada de outros modos, considerando-se a mobilidade. Assim, cabe ao roteiro considerar as parum mapeamento da estória de forma a determinar os modos como a narrativa pode ser explorada para uma melhor fruição. Para isso, é preciso um profundo conhecimento sobre as mídias móveis e as especificidades técnicas, estéticas, de linguagem e sociais

experimentar. Referências bibliográficas AUMONT, J. A imagem. 10.ed. Campinas: Papirus, 2005. BEIGUELMAN, Giselle. Link-se: arte, mídia, política, cibercultura. São Paulo: Peirópolis, 2005. BROCKMEIER Jens. “Narrativa: Problemas e Promessas de um Paradigma Alternativo”. Revista Psicologia, Reflexão e Crítica. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2003. CASTELLS, M. A sociedade em rede: a era da informação – economia, sociedade e cultura. São Paulo: Paz e Terra, 1999. _____________. Communication, Power and Counter-power in the Network society. International Journal of Communication, 2007. COSTA, Mario. O Sublime Tecnológico. São Paulo: Experimento, 1995. DUBOIS, Phillipe. Cinema, vídeo, Godard. Tradução Mateus Araújo Silva. São Paulo: Cosac Naify, 2004. GALINDO, Fernando Rubio. El audiovisual en la telefonía móvil 3G. Consideraciones formales para una comunicación eficaz. Facultad de Comunicación de La Universidad Pontificia de Salamanca, 2005. GOSCIOLA,V. Roteiro para as novas mídias: do cinema as mídias interativas. São Paulo: SENAC, 2003. JONES, Matt e MARSDEN, Gary. 2006. Mobile interaction design. John Wiley & Sons: Inglaterra.

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vimento dos suportes e das práticas sociais que envolvem a mobilidade. Cabe ao roteiro

ano

que tais plataformas possuem, levando-se em conta que o contexto atual é de desenvol-

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ticularidades das mídias móveis e compreender a obra como um sistema, ao construir

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MACHADO, Arlindo. A Arte do Vídeo. São Paulo: Brasiliense, 1988.

tecnológicas. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1996. __________________. Arte e Mídia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2007. MANOVICH, Lev. The Language of New Media. Cambridge: MIT Press, 2001. MCKEE, Robert. Story. Substância, estrutura, estilo e princípios da escrita do roteiro. Curitiba: Arte & Letra. 2006. SANTAELLA, Lucia. Por que as comunicações e artes estão convergindo? São Paulo: Paulus. 2005.

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_________________. Máquina e imaginário: o desafio das poéticas

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panoRaMa

Dos MoDelos De neGócios eMeRGentes Da tv DiGital aBeRta Felippe souza

De

liMa

Mestrando em Televisão Digital: Informação e Conhecimento (UNESP), na linha Gestão da Informação e Comunicação para Televisão Digital. E-mail: felippeslima@hotmail.com

D anilo leMe B Ressan Mestrando em Televisão Digital: Informação e Conhecimento (UNESP), na linha Gestão da Informação e Comunicação para Televisão Digital. E-mail: estufadodanilo@gmail.com

FRancisco RolFsen B elDa Doutor em Engenharia de Produção (EESC-USP), docente permanente e membro do conselho do Programa de Pós-Graduação em Televisão Digital: Informação e Conhecimento. E-mail: belda@faac.unesp.br

Gisleine FátiMa D uRiGan Mestranda em Televisão Digital: Informação e Conhecimento (UNESP), na linha Gestão da Informação e Comunicação para Televisão Digital. E-mail: gidurigan@hotmail.com

M atheus MonteiRo

De

liMa

Mestrando em Televisão Digital: Informação e Conhecimento (UNESP), na linha Gestão da Informação e Comunicação para Televisão Digital. E-mail:mathmonteiro@hotmail.com

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ano

6 - n. 2 |

p.

183-196


Resumo O presente artigo tem como objetivo descrever modelos de negócios emergentes aplicados à TV digital aberta. A partir de uma pesquisa exploratória, o trabalho apresenta a atual realidade da televisão aberta e seus modelos de negócios. Posteriormente, é feito um mapeamento panorâmico buscando, assim, novas oportunidades de geração de receitas em negócio de comunicação audiovisual, considerando novos recursos tecnológicos que foram proporcionados pela digitalização da televisão aberta. Por fim, são apresentados casos, demonstrando maneiras adotadas por emissoras televisivas para gerar conteúdo adicional multiplataforma e desdobramentos estratégicos desenvolvidos para captar receitas por meio destes modelos de negócios emergentes. Palavras-chave: Televisão; Modelo de Negócios; Multiplataforma;

Abstract This article aims to describe emerging business models applied to air digital TV. From an exploratory research, the paper presents the current reality of broadcast television and their business models. Subsequently, a panoramic mapping is done, thus seeking new opportunities to generate revenue in audiovisual business considering new technological resources that were provided by the digitalization of broadcast television. Finally, cases are presented, demonstrating ways adopted by television broadcasters to generate additional cross-platform content and strategic developments designed to raise revenue through these emerging business models. Keywords: Television, Business Model; Multiplatform;


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número de usuários com acesso à internet de banda larga1, canais de TV por assinatura2, aquisições de smartphones3 e, mais recentemente, as SmartTVs também conhecidas como TVs conectadas, ganham cada vez mais espaço em solo brasileiro. O Brasil entra de vez na era da convergência, onde cada aparelho assume diversas funções além daquelas para as quais foi originalmente desenvolvido. Telefones móveis modernos permitem o acesso a redes sociais, e-mail, visualização e compartilhamento de vídeos, etc. Onde quer que se esteja, existe uma oferta e uma demanda por conteúdo. Para Machado Filho (2010) “a falta de percepção desta nova configuração da sociedade poderá determinar a continuidade ou não de empresas de comunicação no futuro.” Tal oferta, ao mesmo tempo em que abre um grande “leque” de opções de entretenimento aos usuários, gera um novo desafio às emissoras, que agora necessitam suprir uma maior demanda por conteúdos e concorrer com diversos aparelhos pela atenção do telespectador. A televisão aberta brasileira, desde seus primórdios teve seu modelo de negócio baseado na publicidade. Os tradicionais comerciais de trinta segundos, inseridos nos intervalos da programação, eram responsáveis por financiar os custos de produção dos programas e gerar lucro para as emissoras. No entanto, quando este modelo foi estabelecido, havia uma concorrência muito menor entre as emissoras, que competiam quase que exclusivamente entre si. 1 G1. “Acessos à internet banda larga no Brasil chegam a 145 milhões ”. Disponível em: <http://g1.globo.com/ tecnologia/noticia/2014/04/acessos-internet-banda-larga-no-brasil-chegam-145-milhoes.html >. Acesso em: 01 de maio de 2014. 2 CORREIO BRAZILIENSE. “TV por assinatura chega a 18,02 milhões de clientes, crescimento de 11%”. Disponível em: <http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/economia/2014/02/07/internas_economia,411711/tv-porassinatura-chega-a-18-02-milhoes-de-clientes-crescimento-de-11.shtmll>. Acesso em: 27 de Março de 2014. 3 FOLHA DE S. PAULO. “Vendas de smartphones e tablets crescem mais que 100% em 2013”. Disponível em: < http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2014/01/1391973-vendas-de-smartphones-e-tablets-cresceram-mais-que-100em-2013.shtml>. Acesso em: 27 de Março de 2014.

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Durante a última década foi possível observar um aumento considerável no

ano

1. Introdução


Atualmente, além da disputa de audiência com os canais abertos concorrentes, existem outros fatores, como por exemplo, a adesão crescente à canais por assinatura, gerados por usuários no youtube4, podendo ser acessados através de computadores, smartphones, tablets ou TVs conectadas, e, mais recentemente, serviços de conteúdo on-demand5 também estão se popularizando no Brasil. O espectador não precisa mais assistir aos comerciais ou esperar para que um programa de sua preferência comece, podendo vê-lo no horário em que julgar mais conveniente. Tal fato gera menor dependência da grade de programação elaborada pelos canais e uma diminuição do share6. Com a audiência fragmentada, as emissoras passam a ter que cobrar menos pelos intervalos comerciais e sentem a necessidade de ocupar espaço também em outras mídias. que demandariam o envolvimento de profissionais especializados e investimento na produção - é necessário que, primeiramente, desenvolva-se um modelo de negócio financeiramente atrativo, tanto para os geradores de conteúdo quanto para os anunciantes.

A televisão brasileira teve início na década de 1950 e sua implantação foi

transmissões (CRUZ, 2008). Os equipamentos da época não permitiam transmissões para longas distâncias, restringindo-se a um raio de cerca de 100 quilômetros favorecendo, portanto, apenas o aspecto local das transmissões. O investimento inicial deu-se através do patrocínio de quatro das mais influentes empresas da época, com forte presença publicitária em rádios e jornais impressos. Apesar de não se produzirem aparelhos de TV, não haver público e o mercado publicitário ainda ser incipiente, Chateaubriand vendeu um ano de espaço publicitário de televisão para as empresas: Sul América Seguros, Antárctica, Moinho Santista e empresas Pignatari (Prata Wolf). (ALENCAR, 2011, p.28). 4 Site de compartilhamento de vídeo onde qualquer usuário pode postar sua própria produção e compartilhar com outras pessoas. 5 Serviço no qual o usuário assiste ao conteúdo desejado na hora em que quiser, sem depender das grades de programação. O conteúdo é enviado através de um servidor, via streaming (transmissão de dados em fluxo, sem a necessidade de armazenamento em um disco físico). 6 Porcentagem de tempo que é dedicado por cada indivíduo do público a assistir um canal/programa em relação ao tempo total dedicado a ver televisão, para o mesmo período.

Lima - D anilo Leme B ressan - Francisco Rolfsen B elda - G isleine

fundos para a compra dos equipamentos necessários para que fossem feitas as primeiras

de

viabilizada pelo empresário Assis Chateaubriand. Com sua grande influência, levantou

• Felippe S ouza

2. Contextualização da tv digital brasileira

da tv digital aberta

Porém, para que este espaço seja preenchido com conteúdos de qualidade -

Panorama dos modelos de negócios emergentes Fátima D urigan - M atheus M onteiro de Lima

conteúdos de áudio e vídeo disponíveis gratuitamente na internet, canais de conteúdo

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Firma-se, portanto, desde o início da televisão brasileira o modelo de negócios baseado na venda de anúncios publicitários. programas humorísticos e de entrevistas. Todos exibidos ao vivo. Inicialmente, devido ao seu custo muito elevado, haviam poucos aparelhos televisores, cerca de apenas 11 mil em todo o Brasil. Por este motivo a primeira fase da televisão assumiu um caráter

Na década de 1960 os preços haviam baixado razoavelmente, permitindo que mais lares tivessem acesso ao aparelho, especialmente nos estados do Rio e de São Paulo que concentravam as maiores rendas do País. Com a iniciante força de comunicação da televisão, as agências publicitárias intensificaram as pesquisas de opinião para conhecer os hábitos de consumo do telespectador e qual seria o melhor horário para veicular seus produtos. Criado em 1954, o IBOPE - Instituto Brasileiro de Opinião e Pesquisa - fornecia a audiência. Acelerava-se o fator que viria a se transformar na força dominante da televisão: a publicidade. (AMORIM, 2008)7

O surgimento do videoteipe em 1962 possibilitou que os programas pudessem ser gravados, ocasionando em uma exibição mais ampla no território nacional dos programas de sucesso, principalmente os que eram produzidos em São Paulo e no Rio de Janeiro. Surgem também as primeiras telenovelas de produção própria e caráter mais popular, contando agora com exibição diárias. Nos anos 1960, cresce o número de aparelhos de TV em todos os estados. Basta dizer que, em toda a década de 1950, tínhamos um total de 434 mil aparelhos, e somente em 1966 foram vendidos 408 mil televisores, somando um total de 2,4 milhões de aparelhos em uso naquele ano. Isso representou um crescimento de 401%. Na década, vamos ter ainda a expansão das emissoras de TV. (RIBEIRO; SACRAMENTO; ROXO. 2010, p.54).

Começam ser definidas então, entre o final da década de 1960 e ao longo dos anos de 1970 as grades de programação, com horários fixos para cada programa, elaboradas de acordo com o perfil majoritário do público em cada hora do dia. Profissionais de televisão tornaram-se cada vez mais especializados nas produções e cria-se 7 AMORIM, Edgar R. Década de 50: época da criatividade, da improvisação e do esforço “ao vivo”. Centro Cultural de São Paulo, 2008. Disponível em <http://www.centrocultural.sp.gov.br/tvano50/dec50_1.htm> Acesso em: 11 de Abril de 2014.

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alto poder aquisitivo terem acesso aos aparelhos.

ano

considerado “elitista”, pelo nível cultural de sua programação e por somente famílias de

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As primeiras transmissões contavam com atrações musicais, teleteatros,

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um modo de “fazer TV”, com estratégia e foco nos interesses do público. Os avanços tecnológicos permitiram o surgimento de novos formatos de programa, deslocando a com o público, entrevistar pessoas que passavam pelas calçadas, adicionando mais dinamismo e popularidade para a programação. Não se tratava apenas da preocupação em ter programas nacionais e recursos para a produção, mas de criar uma forma de comercializar nacionalmente e servir o mercado publicitário de forma mais eficiente. E o indispensável para isso era fazer uma programação de qualidade, atrações constantes, informação, serviço e responsabilidade social. A questão da programação começou a ser resolvida na Globo com a implantação das diversas centrais, em 1969, e com a inauguração da rede nacional de micro-ondas construída pelo governo militar. (OLIVEIRA SOBRINHO, 2011, P.191). aberta terrestre em todo o território brasileiro, consolidando as grandes emissoras de presença nacional como a Rede Globo, por exemplo. Entre as décadas de 1980 e 1990, a recente estabilidade econômica decorrente o aumento da competitividade de mercado despertou maior interesse por parte das empresas na exposição de suas marcas, aumentando o investimento em anúncios nas mídias de massa.

ções nas empresas estatais de telecomunicações. A entrada de empresas estrangeiras de telefonia móvel e fixa favoreceu o surgimento de grandes conglomerados que atuariam também no mercado midiático. Visando diversificar a oferta de produtos estas empresas se aliaram a outras para oferecerem serviços de telefonia, internet banda larga e TV por assinatura. Este cenário quebrou a ideia até então prevalecente de uma comunicação de base nacional e abriu espaço para visualizar o televisor como uma janela para o mundo, onde caíam as barreiras ao conteúdo estrangeiro. Mesmo que restrita a uma minoria, essa possibilidade passava a ser tangível: ter canais mais segmentados e com a promessa de menor inserção de horários publicitários. (RIBEIRO; SACRAMENTO; ROXO. 2010, p.230).

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Posteriormente, na mesma década e entre os anos 2000 ocorreram as privatiza-

de

Em 1977, a televisão concentrava 55,8% das verbas de publicidade, a TV Globo obtinha 85% dos investimentos, a TV Tupi 11% dos anunciantes e o restante ficava com as outras quatro emissoras. (ALENCAR, 2011, p.32)

• Felippe S ouza

do plano Real aqueceu a economia nacional. A entrada de produtos estrangeiros e

da tv digital aberta

A implantação da rede nacional de micro-ondas permitiu a transmissão de TV

Panorama dos modelos de negócios emergentes Fátima D urigan - M atheus M onteiro de Lima

produção de dentro dos estúdios também para as ruas. Tornou-se possível interagir

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Frente à nova concorrência, as emissoras de TV aberta, temendo perderem seu público fiel, iniciaram uma mobilização pela digitalização das transmissões abertas, presentes em alguns pacotes por assinatura. Usaram o argumento de que o sistema digital já havia sido implantado com sucesso em diversos países e traria benefícios à população, como uma melhor qualidade de imagem, de alta definição e que o Brasil

Como primeiro passo, a ANATEL autorizou a realização de testes com os três sistemas definindo o canal a ser utilizado e o local de sua realização. Grupo de trabalho, formado pela Associação Brasileira das Emissoras de Rádio e Televisão – ABERT e pela Sociedade de Engenharia de Televisão e Telecomunicações – SET, realizou os testes na cidade de São Paulo, tendo sido escolhida uma região densamente povoada e com topografia complexa. A definição da metodologia, os testes e os resultados de campo e de laboratório foram acompanhados por técnicos da própria ANATEL e da Fundação CPqD (Centro de Pesquisa e Desenvolvimento em Telecomunicações), que foi contratada com essa finalidade. (TAVARES, 2001)8

Após diversos testes e discussões sobre o modelo a ser adotado, iniciou-se o processo de digitalização das transmissões de TV aberta no Brasil, em andamento até os dias atuais. Até o presente momento o prazo para que todas as emissoras se digitalizem é até o ano de 2016, com possibilidade de prorrogação, caso necessário. 3. Especificidades da televisão digital brasileira O Padrão de televisão digital adotado no Brasil, de acordo com Teixeira (2009), é o chamado SBTVD (Sistema Brasileiro de Televisão Digital). Trata-se de um sistema aberto, de transmissão terrestre e derivado do sistema japonês, o ISDB-T (Integrated Service Digital Broadcasting Terrestrial), que tem como principais características privilegiar a interatividade, alta definição de imagem, mobilidade e portabilidade, além da possibilidade de segmentação de banda permitindo que as emissoras façam uso da multiprogramação. Este padrão “híbrido” brasileiro manteve as características citadas acima e, além disso, através do uso do “Ginga” - middleware também nacional - é possível 8 TAVARES, Walkyria M.L. Implantação da Televisão Digital no Brasil. Biblioteca Digital da Câmara dos Deputados, 2001. Disponível em: <http://bd.camara.gov.br/bd/bitstream/handle/bdcamara/1316/implantacao_ televisao_tavares.pdf?sequence=3>. Acesso em: 10 de Janeiro de 2014 .

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transmissões.

ano

poderia ficar em desvantagem tecnológica caso não fosse feita a digitalização das

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podendo assim incorporar novos recursos e uma qualidade de imagem superior, já

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adicionar um canal de retorno, permitindo a interatividade com os programas. Tais fatores não devem afetar a produção televisiva enquanto linguagem audiovisual, mas tadores. De acordo com Rosa (2005, p11) “a mudança na linguagem se verifica não por causa do aparato tecnológico em si, mas por causa de nova maneira de uso de velhos e novos aparatos.” 3.1 Principais modelos de negócios vigentes Atualmente no Brasil existem cerca de três modelos de negócios que são os mais adotados, por estarem consolidados há algum tempo e, até agora, apresentarem bons resultados em relação à lucratividade. Podem ser divididos em três principais emissoras de TV aberta, modelo adotado por TVs pagas, e o modelo adotado por canais de compras. (CANNITO, 2010). Emissoras abertas são aquelas que podem ser acessadas através de um aparelho de emissoras como a Globo, SBT, Record e as emissoras locais. Elas fornecem uma gama de programas gratuitamente aos espectadores. Uma vez que não cobram nada para a exibição de seu conteúdo, os custos de produção e

Seu foco é conquistar o maior número de audiência possível, para que possam cobrar mais pelo seu espaço publicitário, garantindo que a mensagem dos patrocinadores e anunciantes chegue a um público cada vez maior. Por este motivo a televisão aberta sempre apresenta uma programação de certa forma genérica, com o objetivo de agradar ao maior número possível de pessoas. De acordo com Anderson, este seria o “chamado modelo de mídia para o Grátis: um terceiro (o anunciante) subsidia o conteúdo, de modo que uma das partes (o ouvinte ou espectador) possa recebê-lo gratuitamente.” (2009. p. 139). A TV paga é contratada pelo assinante mediante assinatura dos pacotes de canais e pagamento de mensalidade. O Conteúdo chega até o aparelho do usuário através de cabo, via satélite ou fibra óptica. Neste modelo de negócio o foco está na qualidade dos programas oferecidos (tanto em som e imagem, quanto em conteúdo) e na segmentação da programação. Ao contrário da TV aberta, neste caso os programas destinam-se a públicos específicos, visando atender a demanda de diversos nichos,

Lima - D anilo Leme B ressan - Francisco Rolfsen B elda - G isleine

durante os intervalos dos programas.

de

o lucro da emissora ficam por conta dos anúncios de produtos e serviços veiculados

• Felippe S ouza

televisor e uma antena. São sintonizadas gratuitamente pelos espectadores. É o exemplo

da tv digital aberta

categorias, de acordo com o veículo que adota cada um deles: Modelo adotado por

Panorama dos modelos de negócios emergentes Fátima D urigan - M atheus M onteiro de Lima

sim na maneira como se dará a interação entre a TV digital interativa com os telespec-

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como por exemplo, o público que gosta de programas de culinária, esportes, séries americanas, entre outros. venda de anúncios e merchandising, com o diferencial de que o anunciante pode focar mais em seu público de interesse de acordo com o perfil dos espectadores de cada canal.

por exemplo) consiste em conquistar audiência através do anúncio de produtos que atendem à interesses diversos e mediar a venda destes produtos, ganhando assim com as porcentagens das vendas e ao cobrar para que as marcas anunciem seus produtos nos programas em questão. 4. Novas possibilidades e modelos de negócios Com a fragmentação da audiência devido aos fatores já citados anteriormente é possível prever que as emissoras de TV aberta enfrentarão problemas em relação ao seu modelo de negócio, uma vez que, uma menor audiência implica obrigatoriamente em cobrar menos pelos anúncios veiculados e pelo merchandising. Os custos de produção, por outro lado, tendem sempre a aumentar ou, no mínimo, manterem-se os mesmos. É preciso inovar e aproveitar-se dos recursos proporcionados pelas novas tecnologias para manterem-se competitivas no mercado. No entanto, atualmente observa-se que, com raras exceções, “a estratégia tem sido tentar implantar um padrão de qualidade em HD que[...] garanta às atuais emissoras a manutenção da hegemonia, sem que para isso tenham que inovar em outros aspectos (CANITTO, 2010, p.111). Ter uma imagem de qualidade superior a outras mídias têm sido a principal estratégia para retenção de audiência, contudo, com o barateamento da banda larga e dos pacotes de canais em HD das TVs por assinatura, esta estratégia apresenta apenas uma vantagem momentânea e a venda dos intervalos comerciais para os anunciantes possivelmente deixará de ser a fonte soberana de lucratividade das emissoras.

6 - n. 2

Já o modelo utilizado pelos canais de compra (como Shoptour e Shoptime,

ano

A TV paga organiza-se por pacotes de canais; cada canal exibe inúmeros programas. Muitas vezes o espectador compra um pacote inteiro motivado pelo interesse em um ou dois canais[...] O sucesso de um pacote de programação está em conseguir ter inúmeros programas que atraiam espectadores de gostos diferentes e os levem a se tornar assinantes. (CANNITO, 2010, p.111).

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Este modelo, além de lucrar com as assinaturas, também se utiliza da

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Evidentemente, não existe uma solução única e definitiva para resolver tal problema. Cada emissora terá que trilhar seu próprio caminho para encontrar novas busca é apresentar algumas alternativas que foram encontradas e que possivelmente possam servir como ponto de partida para que se criem novas estratégias para os modelos de negócio. Um bom exemplo de inovação é o Programa Pânico9. Trata-se de um programa transmidiático que, além de contar com uma edição diária no rádio que vai ao ar pela rede Jovem Pan, exibe semanalmente sua versão para a TV aos domingos, pela rede Bandeirantes e, após o término do programa, conta com mais uma edição de cerca de 20 minutos exclusiva para a internet. Além dos intervalos comerciais e do merchandising veiculados em todas as mídias nas quais se faz presente, o programa conta com uma camisetas, canecas, bonés, etc. Existem ainda, aplicativos e jogos do Pânico disponíveis gratuitamente para smartfones, gerando mais uma possibilidade de inserção de anúncios patrocinados. liza sob demanda para seus usuários. Tais estratégias são muito eficazes pois, além de ampliar as maneiras pelas quais se pode obter lucro, acaba transformando o programa em uma marca própria, fortalecendo ainda mais os vínculos com seus espectadores.

controle remoto da TV. Propagandas comerciais podem ser incrementadas com a opção de detalhar, caso o usuário se interesse, determinado produto anunciado. Também já há aplicações em que o usuário entra em contato direto com o vendedor, podendo inclusive adquirir o produto por meio da televisão. Aplicação semelhante já é disponibilizada em canais dedicados a vendas. (ALENCAR, 2011, p.54)

Outra estratégia semelhante vem sendo adotada pela Rede Globo. Através de seu site “Globo Marcas” a emissora vende diversos produtos relacionados aos seus programas, inclusive roupas e acessórios utilizados pelos personagens nas novelas. Mais uma vez, com os recursos da televisão digital, o t-commerce poderá ser realizado no ato da exibição. Um espectador poderá adquirir, por exemplo, determinado acessório 9 Programa humorístico que teve início no rádio em 1993 pela rede Jovem Pan FM. Em 2003 ganhou sua versão para TV, sendo exibido aos domingos pela Rede TV até o ano de 2011, atualmente é exibido aos domingos pela rede Bandeirantes.

Lima - D anilo Leme B ressan - Francisco Rolfsen B elda - G isleine

dos serviços de t-commerce, recurso que permite a compra de produtos através do

de

Com a adição dos recursos da televisão digital, o programa poderá também se utilizar

• Felippe S ouza

Recentemente o programa também foi vendido para a Netflix, que o disponibi-

da tv digital aberta

loja virtual exclusiva que vende diversos itens relacionados à atração como cadernos,

Panorama dos modelos de negócios emergentes Fátima D urigan - M atheus M onteiro de Lima

formas de monetização complementares à tradicional. Neste sentido, o que aqui se

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no exato momento em que este estiver sendo exibido em cena, aumentando muito as chances de venda, uma vez que o espectador está vendo o produto sendo utilizado no

não apenas para um consumo único (no ato da exibição), mas também as formatando para posterior comercialização em DVDs, aumentando assim o ciclo de vida de suas produções e gerando novos meios de lucratividade. Recentemente também foi criado o canal Viva para TVs por assinatura, onde antigas produções são reexibidas buscando agradar ao público saudoso e conquistar novos espectadores, utilizando-se também da venda de anúncios entre os intervalos. Já o SBT tem se mostrado na vanguarda das inovações tecnológicas. Em 2011 lançou oficialmente o seu portal de interatividade para TV digital, através do middleware Ginga. Trata-se de um portal transmitido 24 horas por dia, com informações sobre a programação, notícias e serviços e uma loja virtual. Segundo Roberto Franco, vice-presidente de rede e assuntos regulatórios do SBT, a ideia é criar o hábito no telespectador, sem obrigá-lo memorizar mais uma grade de conteúdo, além da grade de programação. “Sempre que ele ligar a televisão, ele saberá que poderá buscar as últimas notícias e informações sobre o clima”, disse. (TELA VIVA, 2011)10

Atualmente a emissora explora comercialmente estes novos espaços com anúncios através de banners, mas estuda junto com os anunciantes novos formatos de publicidade. Além disso, o canal conquistou grandes lucros com a novela Carrossel, que hoje conta com sete aplicativos relacionados para download na App Store da Apple, CDs e DVDs da novela que são sucesso de vendas e uma infinidade de produtos licenciados com a marca como brinquedos, roupas, materiais escolares, embalagens e brindes em redes de fast-food. 10 TELA VIVA NEWS. “SBT lança comercialmente a sua plataforma interativa”. Disponível em: <http://www. telaviva.com.br/13/12/2011/sbt-lanca-comercialmente-a-sua-plataforma interativa/tl/253840/news.aspx>. Acesso em: 02 de maio de 2014.

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A emissora também tem pensado suas novas produções de séries e novelas,

ano

“O t-commerce já faz parte da realidade de diversos países onde a TV digital já está consolidada, no Reino Unido, por exemplo, em 10% dos lares com TV digital o recurso de compras já foi utilizado” (SILVA; NOBRE; OLIVEIRA; PATRIOTA, 2008).

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momento da compra.

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Segundo José Roberto Maciel, vice-presidente do SBT em entrevista para a Folha , a expectativa de arrecadação é de cem milhões de reais entre publicidade e li11

para desenho animado e uma possível versão para os cinemas. 5. Considerações finais Com base nas informações apresentadas, pode-se perceber que o cenário onde está inserida a televisão brasileira está mudando. A fragmentação da audiência por diversas plataformas e a busca do telespectador por conteúdos mais específicos aos seus interesses representam uma ameaça ao modelo de negócio adotado pela TV desde sua implantação no Brasil até os dias atuais. pelas mesmas para diversificarem seus negócios e para que não se sustentem exclusivamente com a verba advinda dos anúncios publicitários. Evidentemente, a televisão brasileira não está com os seus dias contados. Grande parte dos brasileiros ainda não tem acesso à internet, computadores, tablets ou Por outro lado, esta parcela da população não faz parte do público de interesse da maioria dos anunciantes, uma vez que possuem renda muito baixa e, portanto, baixo

a televisão surgiu, esta precisa se adaptar à nova realidade. Grandes emissoras já percebem esta necessidade e começam a se reorganizar e experimentar novas possibilidades, como em alguns casos aqui citados. Não existem métodos concretos ou fórmulas para atingir o sucesso. Cada uma delas irá trilhar seus próprios caminhos e buscar novas formas de lucrar com suas produções, mas é evidente que se sairá melhor aquela que de fato conseguir compreender quais as necessidades e desejos do seu público dentro desta nova realidade e oferecer a eles conteúdo e serviços de forma inovadora, rápida e acessível. Em uma era onde o público busca conteúdos cada vez mais específicos, que vão de encontro à suas preferências e desejos, talvez faça mais sentido pensar em produções direcionadas para públicos específicos e comunidades de nicho do que em uma programação generalista, que antes tinha o poder de mobilizar e influenciar as massas, mas que hoje, já não desperta tanto interesse assim. 11 FOLHA. “SBT fatura R$ 100 mi com sucesso de ‘Carrossel’”. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/ mercado/1172558-sbt-fatura-r-100-mi-com-sucesso-de-carrossel.shtml>. Acesso em: 02 de Maio de 2014.

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Podemos observar que, assim como outras mídias mais antigas fizeram quanto

de

poder de compra.

• Felippe S ouza

outros dispositivos e fazem da TV sua principal fonte de informação e entretenimento.

da tv digital aberta

A implantação da TV Digital proporcionará recursos que poderão ser utilizados

Panorama dos modelos de negócios emergentes Fátima D urigan - M atheus M onteiro de Lima

cenciamentos entre 2012 e 2013. A emissora aposta ainda em uma adaptação da novela

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6. Referências bibliográficas

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ALENCAR, Marcelo Sampaio. Televisão Digital. São Paulo: Editora Érica, 2011.

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ANDERSON, Chris. Free: grátis: o futuro dos preços. Trad. Cristina Yamagami. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009.

CANNITO, Newton. A televisão na era digital: interatividade, convergência e novos modelos de negócio. São Paulo: Summus, 2010. CORREIO BRAZILIENSE. “TV por assinatura chega a 18,02 milhões de clientes, crescimento de 11%”. Disponível em: <http://www.correiobraziliense.com.br/app/ noticia/economia/2014/02/07/internas_economia,411711/tv-por-assinatura-chega-a-1802-milhoes-de-clientes-crescimento-de-11.shtmll>. Acesso em: 27 de Março de 2014. CRUZ, Renato. TV digital no Brasil. São Paulo, ed. Senac, 2008. FILHO, F. Machado. TV Digital aberta no Brasil: desafios ao modelo de negócios. São Paulo: UMESP, 2010. FOLHA DE SÃO PAULO. SBT fatura R$ 100 mi com sucesso de ‘Carrossel’. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/mercado/1172558-sbt-fatura-r100-mi-com-sucesso-de-carrossel.shtml>. Acesso em: 02 de maio de 2014. FOLHA DE SÃO PAULO. TV a cabo no Brasil cresce 25% em fevereiro, com 16,7 milhões de assinantes. Disponível em: <http://www1.folha.uol. com.br/mercado/1250148-tv-a-cabo-no-brasil-cresce-25-em-fevereiro-com167-milhoes-de-assinantes.shtml>. Acesso em: 27 de Março de 2013. FOLHA DE S. PAULO. “Vendas de smartphones e tablets crescem mais que 100% em 2013”. Disponível em: < http://www1.folha.uol.com. br/mercado/2014/01/1391973-vendas-de-smartphones-e-tablets-crescerammais-que-100-em-2013.shtml>. Acesso em: 27 de Março de 2014. G1. “Acessos à internet banda larga no Brasil chegam a 145 milhões”. Disponível em: <http://g1.globo.com/tecnologia/noticia/2014/04/acessos-internet-bandalarga-no-brasil-chegam-145-milhoes.html >. Acesso em: 01 de maio de 2014.

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e do esforço “ao vivo”. Centro Cultural de São Paulo, 2008.

ano

AMORIM, Edgar R. Década de 50: época da criatividade, da improvisação


OLIVEIRA SOBRINHO, J.B.de. O Livro do Boni. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2011.

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Disponível em: <http://www.telaviva.com.br/13/12/2011/sbt-lanca-comercialmentea-sua-plataforma interativa/tl/253840/news.aspx>. Acesso em: 02 de maio de 2014.

da tv digital aberta

TELA VIVA NEWS. “SBT lança comercialmente a sua plataforma interativa”.

Panorama dos modelos de negócios emergentes Fátima D urigan - M atheus M onteiro de Lima

RIBEIRO, A. P. G.; SACRAMENTO, I.; ROXO, M. (orgs.). História

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• Felippe S ouza de

Lima - D anilo Leme B ressan - Francisco Rolfsen B elda - G isleine


Novas

janelas de circulação de filmes trazidas pelo digital: O caso marley

Liana G ross Furini Mestre em Comunicação Social no PPGCOM da Famecos/ PUCRS, mesma universidade em que se graduou em Publicidade e Propaganda. Sua pesquisa é na área de pirataria de audiovisual na internet. Integrante do Ubitec – Grupo de Estudos em Ubiquidade Tecnológica. E-mail: liana.furini@acad.pucrs.br

Roberto Tietzmann Doutorado em Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Famecos/PUCRS, onde desenvolve pesquisas com relação a imagem, audiovisual e tecnologias digitais. E-mail: rtietz@pucrs.br

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ano

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p.

197-205


Resumo A partir da digitalização dos processos envolvidos na produção e distribuição, os filmes ganharam novos espaços de circulação e, assim, um novo público: as pessoas que tem difícil acesso às salas de cinema. Esse trabalho analisa o documentário Marley, que teve o Facebook como a sua janela principal de circulação. O fato de um filme ser lançado de forma oficial em um site de rede social mostra que a indústria está com olhos em um grande público potencial: os usuários de internet. Palavras-chave: Cinema; Internet; Facebook; Distribuição; Marley.

Abstract The digitalization of the processes involved in the production and distribution of movies enabled a new space for circulation and thus a new audience: people who have difficult access to movie theaters. This paper analyzes the documentary Marley, which had Facebook as its primary distribution space. The fact that a movie was released in formally on a social network site shows that the industry has its eyes in a large potential audience: internet users. Keywords: Cinema; Internet; Facebook; Distribution; Marley.


199 Revista GEMI n IS | ano

T

radicionalmente, as obras cinematográficas tem muitas possibilidades de exibição e circulação que vão além das salas de cinema. Selonk destaca alguns desses espaços: videocassete e DVD (agora, acrescentamos o Blu-Ray), televisão aberta,

televisão paga e internet. “Com práticas diferentes, a exibição nestes canais complementa o espaço disponível para a comercialização dos filmes” (SELONK, 2004, p. 161). Normalmente, depois que os filmes param de ser exibidos nas salas de cinema, podem ser adquiridos em DVD ou Blu-Ray em lojas do país. Porém, muitos filmes – principalmente os que estão fora do circuito hollywoodiano, que tem uma garantia comercial – são lançados no Brasil apenas em DVD e Blu-Ray em função de não terem tido uma boa bilheteria na estreia no país de origem ou por uma percepção por parte da distribuidora de que a pirataria já está com grandes acessos, mesmo antes do filme ter chegado ao cinema. Selonk explica a dificuldade que alguns filmes tem para chegar às praças do Brasil: Devido à alta competitividade para agendar filmes nas salas de cinema, algumas produções são lançadas diretamente no mercado de vídeo e DVD e outras fazem sua estreia na TV. Isto porque o fluxo de produtos no mercado doméstico – vídeo e TV – é mais ágil do que nas salas de cinema, fazendo com que a grande oferta de produtos audiovisuais seja absorvida (SELONK, 2004, p. 162).

Logicamente, os filmes mais comerciais tem preferência na distribuição e na exibição. “Isto elimina a possibilidade de uma carreira comercial para filmes que não se encaixam neste perfil” (SELONK, 2004, p. 164), como os filmes brasileiros e as produções estrangeiras independentes. Como frisa Barone, “o modelo de negócios do mercado cinematográfico brasileiro é o global, made in USA” (BARONE, 2008, p. 08). Selonk (2004), antecipou que os filmes produzidos pelas majors americanas tomam os espaços de exibição, e os títulos menos padronizados acabam ficando com uma parcela menor desse espaço.

6 - n. 2

1. Introdução


Nos cinemas brasileiros, “O circuito exibidor privilegia zonas com alta concentração populacional (...). Na verdade, apenas as capitais de todos os estados

caso, mesmo os filmes que são exibidos no cinema precisam de outros espaços para que o filme possa ser visto pelo grande público que tem um acesso difícil às salas de cinema. 2. Tecnologias digitais e internet A circulação de filmes se beneficiou amplamente da digitalização de ferramentas e meios a partir da segunda metade do século XX, conforme é bastante explorado por autores como McLuhan (1974), Negroponte (2002), Levy (1999) e Lessig (2005). Nesse trabalho, tomamos como exemplo do impacto das tecnologias digitais em obras audiovisuais o filme Marley, documentário dirigido por Kevin Macdonald

sua distribuição aconteceu ao mesmo tempo nas salas de cinema e na internet, tendo Com as tecnologias digitais, as pessoas têm mais facilidade para assistir qualquer produção cinematográfica sem precisar sair das suas casas. “Em escala global, as tecnologias digitais estão possibilitando a ampliação da circulação, inclusive comercial, do produto cinematográfico em outros suportes” (BARONE, 2008, p. 06). Essas tecnologias contribuíram para a criação de uma nova forma de consumir esse tipo de mídia. “O uso doméstico e individual, os aparelhos de multimídia, a Internet, a popularização dos computadores são algumas das características destes novos tempos marcados pela variedade de equipamentos culturais” (SELONK, 2004, p. 162). Mesmo que música e vídeo já fossem distribuídos em formatos digitais, fatores como o aumento da capacidade de armazenamento e processamento dos computadores e a redução do tempo de transmissão dos arquivos através dos formatos de compressão e do aumento das bandas domésticas de internet foram muito importantes para o aumento da distribuição generalizada de conteúdo na rede (TIETZMANN e PASE, 2008). Além da questão técnica, as tecnologias digitais também foram grandes influenciadoras na criação de uma cultura na qual compartilhar conteúdo é muito importante. Roberto Tietzmann e André Pase, em sua comunicação no Seminário Blogs,

• Liana G ross Furini - Roberto Tietzmann

como janela principal de circulação o Facebook.

caso marley

diferente do que acontece tradicionalmente, tendo sido alterada em função da internet:

O

(IMDB, 2013) que conta a história do Bob Marley. A distribuição oficial desse filme foi

janelas de circulação de filmes trazidas pelo digital :

Segundo Barone (2008), 92% dos municípios brasileiros não tem salas de cinema. Nesse

N ovas

brasileiros possuem cinema, bem como suas maiores cidades” (SELONK, 2004, p. 156).

200


Redes Sociais e Comunicação Digital na Feevale, em 2008, já diziam que a internet vem alterando a forma como o conteúdo é publicado e difundido, haja vista que, de conteúdo se tornam também emissores no momento em que compartilham alguma informação já publicada ou criam seu próprio conteúdo, mesmo que seja em forma de feedback.

atender um público que busca conteúdos raros e fora de catálogo (TIETZMANN; PASE, 2008), muitas vezes o acesso a esse conteúdo acontece através de um canal alternativo às estruturas tradicionais de circulação – e ilegal. Também em função disso, muitas produtoras e distribuidoras tentam barrar o compartilhamento de seus filmes, com o objetivo de manter ao máximo o controle sobre a circulação desse material. Contrariando essa visão, muitas empresas, cientes do aumento constante do público internauta, estão percebendo que é cada vez mais difícil andar na rota contrária e limitar a circulação de conteúdos. Segundo matéria publicada na Folha de São Paulo (GAMA, 2013), museus e bibliotecas estão aderindo a políticas de liberação de conteúdo e abrindo seus acervos para download gratuito em boa resolução, sem restrições de uso, renovando, assim, seu papel público de difusão da cultura. A internet possibilitou o aumento do leque de exibição oficial, com canais de aluguel de filme como Blockbuster, Netflix, Sunday TV, Globo Play, e canais de exibição de vídeos, como o YouTube e Vimeo. Através disso, vemos que o aumento do número de canais para consumir conteúdo audiovisual coloca em xeque os modelos tradicionais de circulação. Percebemos uma preocupação das empresas em disponibilizar conteúdo audiovisual sob resguardo de direito autoral também no momento em que o YouTube anunciou, em 2009, que começaria a exibir filmes e programas de televisão de forma oficial, disponibilizados pelas próprias emissoras e produtoras (YouTube Oficcial Blog, 2009). Isso acabou se colocando como um ponto importante para que outras obras (como o documentário Marley, que vamos explorar nesse trabalho) também fossem distribuídas oficialmente na internet. 3. O filme Marley Marley é um documentário que se propõe a ser diferente dos outros filmes que falam sobre a carreira do cantor Bob Marley. Com apoio da sua família, o filme fala

6 - n. 2

ao mesmo tempo que tem um acervo infinito de obras e acaba sendo responsável por

ano

O compartilhamento de conteúdo posiciona a internet em uma situação dúbia:

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dentro desse ambiente, cada indivíduo faz parte do diálogo. Dessa forma, receptores

201


sobre a história de vida do cantor, mostrando imagens de acervo pessoal e entrevistas com familiares e amigos.

de 2012 na Alemanha, no Berlin International Film Festival e em 11 de março de 2012 nos Estados Unidos, no South by Southwest Film Festival (IMDB, 2013). O lançamento oficial aconteceu, além das salas de cinema de alguns países, também online, no Facebook. Marley foi dirigido por Kevin Macdonald, que tem uma relação com a internet que predata esse documentário. Macdonald dirigiu, em 2011, o filme Life In a Day, que foi filmado por usuários do YouTube espalhados em diversas partes do mundo. Convidados a registrar em forma de vídeo uma parte do seu dia e enviar para o canal do filme no YouTube, mais de 80 mil pessoas participaram, o que resultou em 4.500 horas de gravação. A ideia era que todas essas pessoas fizessem a gravação no

próprio YouTube e ainda pode ser acessado gratuitamente no canal de vídeos do Life Paralelamente às salas de cinema, o Marley teve a sua estreia também online. No mesmo dia 20 de abril de 2011, o filme era disponibilizado para quem quisesse assistir online à obra. Na fanpage oficial do filme no Facebook2, os interessados podiam acessar o filme através do aplicativo Watch It Now. Esse app está disponível ainda hoje. Quando clicado, ele apenas indica os canais nos quais o usuário pode ter acesso ao filme. Entre eles, estão iTunes, Amazon, AT&T UVerse e Google Play. Mesmo tendo foco principal na internet e no Facebook, o filme foi exibido em algumas salas de cinema no mundo. Na semana de estreia, Marley esteve em 42 salas de cinema, atingindo seu número máximo na terceira semana, quando foi exibido em 73 salas. A última semana do filme nas salas de cinema foi a semana de 10 de agosto, na qual o filme foi exibido em apenas 5 salas. Ao todo, foram 17 semanas de exibição no mundo. Além de ser lançado no Facebook, a mesma mídia social serviu também como base principal para a divulgação. Na fanpage do filme, interações diárias eram feitas com os fãs, divulgando, além de fotos e frases do Bob Marley, as salas de cinema em 1 Disponível em <http://www.YouTube.com/user/lifeinaday>, acesso em 26 de novembro de 2013. 2 Disponível em <http://www.Facebook.com/bobmarleymovie>, acesso em 26 de novembro de 2013.

• Liana G ross Furini - Roberto Tietzmann

In a Day1.

caso marley

na Terra. O filme estreou mundialmente no dia 27 de janeiro de 2011, foi exibido no

O

mesmo dia – 24 de julho de 2010 – e o filme fosse um resumo de um único dia de vida

janelas de circulação de filmes trazidas pelo digital :

te, já havia sido exibido em dois festivais internacionais de cinema: em 12 de fevereiro

N ovas

O filme foi lançado oficialmente no dia 20 de abril de 2012, mas, anteriormen-

202


que o filme estava passando, a venda do filme3 em DVD e Blu-Ray na Amazon e a trilha sonora , à venda no iTunes e em CD e LP pela Amazon.

203

4

definição por U$19,99 ou alugá-lo por U$4,99. Ao alugar uma obra, o usuário tem 30 dias para começar a assistir o filme e 24 horas para terminá-lo. Depois desse prazo, o filme expira do computador.

Batman – O Cavaleiro das Trevas (do original The Dark Knight), que podia ser assistido por 30 créditos. O serviço estava disponível apenas nos Estados Unidos. Essa foi uma maneira interessante de utilizar os Facebook Credits, até então muito usados principalmente por jogos no Facebook, mas que podiam ser usados também em outros aplicativos em geral. Esses créditos podiam ser comprados através do Paypal, mas, desde setembro de 2013, o próprio Facebook encerrou os Facebook Credits e mantém, desde então, mais de 80 métodos de pagamento, incluindo cartões de crédito e Paypal6. 4. Considerações finais A internet posicionou os receptores de conteúdo em uma condição de potenciais criadores e, portanto, agentes muito importantes no diálogo da rede. Com isso, aos poucos, estabeleceu-se uma nova cultura, na qual o compartilhamento de informação é peça fundamental. Somado às tecnologias digitais, isso possibilita as pessoas a assistirem material audiovisual nas suas casas. Melhorando constantemente a qualidade tanto de imagem quanto de som, acaba por gerar uma experiência cada vez mais rica que, muitas vezes, supera a ida ao cinema em um misto de comodidade, segurança e economia financeira. Essas novas formas de consumir material audiovisual não mata a tradicional sala de cinema, mas força as produtoras e distribuidoras a repensarem as formas tradicionais de circulação dos seus filmes. Casos como o do filme Marley ainda são poucos, mas estão cada vez mais comuns os casos de filmes que tem sua divulgação fortemente apoiada na internet, o que já mostra um movimento em direção a essa mídia. 3 Disponível em <https://www.Facebook.com/photo.php?fbid=427630220618465&set=a.313526065362215.71244.2 45840918797397&type=1>, acesso em 29 de novembro de 2013. 4 Disponível em <https://www.Facebook.com/photo.php?fbid=457171884330965&set=a.313526065362215.71244.2 45840918797397&type=1>, acesso em 29 de novembro de 2013. 5 Disponível em <https://www.Facebook.com/warnerbrosent>, acesso em 29 de novembro de 2013. 6 Disponível em <https://www.Facebook.com/help/www/147418788728482>, acesso em 29 de novembro de 2013.

6 - n. 2

filmes para aluguel na sua fanpage5 em março de 2011. A iniciativa começou com o filme

ano

A Warner Bros. Entertainment já havia feito uma tentativa de disponibilizar

Revista GEMI n IS |

O filme continua disponível online. No iTunes, é possível comprá-lo em alta


A Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI) e o Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) explicam que algumas leis deverão ser

materiais duplicados, já que a qualidade se mantém idêntica à do material original. Isso coloca em questão “a continuidade das razões dessa limitação ao direito de reprodução, uma vez que se tornou muito difícil controlar a reprodução não autorizada” (OMPI, 2013, p. 11). O lançamento oficial de um filme através dos sites de redes sociais mostra que a indústria cinematográfica está cada vez mais dando valor para o público da internet. Atualmente, o Facebook tem mais de 1 bilhão de usuários ativos (FACEBOOK, 2013). Sendo assim, um filme lançado nessa rede social já começa tendo um público potencial muito significativo. Referências Bibliográficas

janelas de circulação de filmes trazidas pelo digital :

dos pontos colocados pela OMPI é a questão de que não é mais possível reconhecer os

N ovas

alteradas em breve em função das possibilidades trazidas pelas tecnologias digitais. Um

204

O

do cinema brasileiro. Porto Alegre: Sessões do Imaginário, 2008.

Para Bloquear a Cultura e Controlar a Criatividade. São Paulo: Trama, 2005. LÉVY, Pierre. Cibercultura. São Paulo: Editora 34, 1999. MCLUHAN, Marshall. Os Meios de Comunicação Como Extensões do Homem. São Paulo: Cultrix, 1974. NEGROPONTE, Nicholas. A Vida Digital. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. SELONK, Aletéia Patrícia de Almeida. Distribuição Cinematográfica no Brasil e suas Repercussões Políticas e Sociais – um estudo comparado da distribuição cinematográfica nacional e estrangeira. Dissertação (mestrado em Comunicação Social) – Faculdade de Comunicação Social, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2004. TIETZMANN, Roberto; PASE, André F. Curiosidade e Fidelização: blogs como ferramentas de distribuição de conteúdo. Seminário Blogs, Redes Sociais e Comunicação Digital. Novo Hamburgo: Feevale, 2008.

• Liana G ross Furini - Roberto Tietzmann

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caso marley

BARONE, João Guilherme. Exibição, crise de público e outras questões


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205

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6 - n. 2

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ano

GAMA, Mara. Museus liberam acervos para download. In: Folha de São


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