Arcano Dezenove
Copyright 2010 by Renata Bonfim Todos os direitos resevados. A reprodução de qualquer parte desta obra, por qualquer meio, sem a autorização do autor ou da editora, constitui violação da LTDA 9610/98. Editor: Christoph Schneebeli Capa e Projeto Gráfico: Roberto Nicolau Revisão: José Augusto Carvalho Fotografia: Jove Fagundes www.Jovefagundes.com.br Modelos: Canino: Chicão Humana: a poeta Catalogação: Dados internacionais da Catalogação-na-Publicação (CIP) Bonfim, Renata Arcano Dezenove/Renata Bonfim - Vitória: Helvética Produções Gráficas e Editora, 2010. 98 pag. ISBN 978-85-8809-71-7 1- Arcano Dezenove. Título CDD: B869.1 (2010)
HELVÉTICA PRODUÇÕES GRÁFICAS E EDITORA LTDA Rua Antonio Aleixo, 645 - Consolação CEP: 29050-150 - Vitória - ES Telefone: (27) 3322-4777 florecultura@gamail.com Contato com a autora: renatabomfim2006@gmail.com
Renata Bonfin
Arcano Dezenove
Novembro 2010
Sumário: ÍNDICE PREFÁCIO: José Augusto Carvalho
ARCANO DEZENOVE MEMÓRIA QUINTESSÊNCIA TRANSIÇÃO RITUAIS POSFÁCIO: Fábio Mário da Silva
PARA TODAS AS PESSOAS QUE ACREDITAM...
ÍNDICE
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PREFÁCIO
17
Poeta adâmico
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Dionísio
19
O poeta
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Guernica Hoje
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Despertar
22
Eu canto a pátria-planeta
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Nó na garganta
24
Há vagas
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Poesia I
26
Poesia II
26
Eu e o mar
27
Nossa Senhora dos raios multicoloridos
28
Um dia após o outro
29
?
30
Gênese compartilhada
30
Tara moderna
31
Nada
32
Poemas
33
A doçura da carne
34
Humanoide
35
Arcano dezenove
36
Memória38
37
Cicatriz
38
Post Mortem I
39
Post Mortem II
40
Poema inacabado
41
Versos de orgulho e solidão
42
Gato
43
Canção Para Rubén Darío
44
Saturnais: Mito de origem
45
Florbela em canto
46
Entre a luz e a escuridão
47
Orgânica
48
Despedida
50/51 Não-materialidade 52
Quintessência
52
Transluzir
53
Confissões de uma apaixonada
54
Lilás
56
A fúria de Eros
57
O gato rei
58
Carnaval
59
Terra Santa
60
Brutal singeleza
61
Onde os tempos se encontram
62
Efeito Borboleta
63
Jesus Cósmico
66
Antes do Éden
67
Gente da era da Luz
68
Humanidade Nata
70
Prece
71
Rituais
71
Desejos de feiticeira
72
Terra
72
Semear
73
O açafrão e seu destino
74
Impotenza strumentale
75
Barba Azul
76
Filtros mágicos
77
Banho de limpeza
78
Patuás
79
Cerimônia do chá
80
Cadê o uru?
81
Poesia vegetal
81
Imago
83
POSFÁCIO
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Renata Bonfim
PREFÁCIO
Renata Bomfim não é estreante. Seu primeiro livro de poemas, Mina, foi bem recebido pelo público capixaba. Agora, com este Arcano Dezenove, ela se renova, revelando sua verve, seu talento, sua cultura, sua erudição, sua enorme sensibilidade. A cultura de uma pessoa se caracteriza pela capacidade que ela tem de multiplicar as conotações e de mostrar novas leituras do mundo. E é o que faz Renata Bomfim, revelando-nos sua leitura múltipla do mundo. E mostra, sem pedantismo, com simplicidade, sua visão de Bakhtin, de Ítalo Calvino, de Cecília Meireles, de clássicos como Virgílio e Plínio, e não apenas nas epígrafes bem-escolhidas. Assim, os versos seguintes, que ilustram o conceito de polifonia, numa releitura de Bakhtin: “As letras que, a duras penas, saltam dos dedos para o papel condensam vozes.” (poema “Poemas”) “Será que a poesia do século XVI era minha?” (poema “?”) Ou esta afirmação pungente que lembra Cecília Meireles ou Marly de Oliveira: “Não sou alegre nem triste, apenas sou!” (poema “Jesus Cósmico”) Ou quando define o poeta, numa alusão à famosa dicotomia de Forster, que, em Aspectos do romance, classificou os personagens de ficção: Arcano Dezenove
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“Este ser esquisito, redondo e plano...” (poema “O poeta”) Aliás, esse poema – “O poeta” – é uma das muitas pérolas deste livro extraordinário. Veja-se o seguinte verso: “Ele [o poeta] necessita beber da alma alheia.” O que lembra Newton Braga, em Lirismo perdido, quando diz que a sensibilidade do poeta é uma antena delicadíssima que capta as dores do mundo e que o “fará morrer de dores que não são suas”. Há ao longo do livro versos que se constituem em pensamentos de elevado sabor, em que se mesclam o social, o político e o lírico: “Dor dentro e fora do tempo que me atinge e te atinge, e fingimos que não a temos. Letargia ignorante: Nem pão nem circo. Guernica atualiza-se: Iraques, Palestinas, Brasis (...)” (poema “Guernica hoje”) “(...) este ser da confusão perdido no mar da indiferença, ansiando por salvação, compaixão, benevolência; por um gesto simples, um sorriso, para aplacar a sede de amor que se sente na ilha seca em que cada um de nós se transformou.”
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(poema “Tara moderna”) “O alimento é comum: Miséria, angústia, esperança...” (poema “Despertar”) “O silêncio é a voz que sonha e não realiza.” (poema “Brutal singeleza”) Ao falar de uma prostituta, a definição do que há de mais puro na impureza: “Dentro de uma caixa preta, Seu coração blindado. A boca é virgem, não beija, É da vida que não é fácil Que é pureza de alma Mesmo que padeça sob O olhar enlameado.” (poema “Há vagas”) Se fiz tantas citações, foi não apenas para mostrar ao leitor o encanto desta obra de Renata Bomfim, para quem a poesia “desce redondillha / garganta abaixo” (poema ”Poeta II”), mas também para sentir a alegria e o prazer de repetir essas belezas. Se casualmente privei o leitor do prazer da surpresa de descobrir por conta própria, pelo menos fiz com que repetisse, em sua leitura, os momentos que revelei aqui de puro encantamento. Outros aspectos há a ressaltar neste livro, além do lirismo, do social, do político: a fé, a religiosidade. Os poemas “Nossa Senhora dos Raios MulticoloriArcano Dezenove
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dos”, “Post Mortem I” e “Post Mortem II” são sua profissão de fé, “não a fé que só enxerga $” (poema “Gente da Era da Luz”), mas a fé sem a qual, nada germina (poema “Semear”), a fé de quem despetala flores uma a uma “como quem ama pela primeira vez” (poema “A doçura da carne”). Acrescente-se a isso a linguagem saborosa, com jogo de antíteses (“Vamos discriminar sem discriminação”, “Somos Adão e Eva sem o sermos” – poema “Antes do Éden”), e paronomásias (tememos/trememos; escorre/corre – “Mesmo lugar”; voz e vez –“Antes do Éden”; pavor/porvir – “Cicatriz”), numa veneração pela língua, patente no poema “Gênese compartilhada”: “Vamos conjugar verbos,/ Formar palavras-imagens, (...) / Subverter o alfabeto. / Enunciar as boas novas, / Gozar nas texturas plurais / Dos domínios da sintaxe.” A fim de celebrar “os milagres da língua / que se realizam em múltiplas e / paradisíacas miragens.” Que o leitor se extasie com as belezas que descobrir neste livro. Afinal, a poesia existe em toda parte. Mas, para descobri-la, são necessárias essa sensibilidade que só os poetas têm e a sintonia com o leitor, que só um grande livro de poemas pode proporcionar. José Augusto Carvalho Doutor em Letras e professor da Universidade Federal do Espírito Santo
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Como perfume que se detém no corpo que o coloca, também a tua lembrança se detendo no fundo de minha mente não me deixará, tudo me deixa e você se detém... (Arthur Symons)
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Poeta adâmico No paraíso da linguagem, O poeta, com desvelo, Inclina-se para amar a letra. Nesse momento, ele é Adão, Ansiando companhia, à espera De que a fêmea se submeta. Cometidos os pecados, Do outro lado, a pena: “Ganharás o pão com trabalho, Com o suor de tuas mãos, E também, com teus pulmões, Rins, fígado e coração." O homem se pega em desatino, A sua vida será labor e sacrifício, Mas estava escrito: Havia de ser assim Para que pudesse seguir nomeando As coisas e povoando a terra Com Abeis e Cains.
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Dionísio Á memória de Rubén Darío Na selva sagrada os instintos afloram. Cada planta, cada bicho, o ar, tudo é vivo, tudo fala. Do verde brotam movimentos sinuosos, sussurros, risos... É a ninfa que do deus imponente bebe o vinho. Ela se torna a própria taça transbordante de desejos. Dionísio, em desalinho, a enreda arrastando-a, furtivo, por entre a relva, para que desabroche, caprichosa e perfumada. Ela cede aos seus apelos e se deixa possuir. Seu corpo agora é fluidez entre mãos ásperas. É gazela. Impiedosa, a sua lança a transpassa. Fustigada, ela quer mais... Agora os dentes do deus a carne se adentram marcam-na signos criados por seus chifres reluzentes. A ninfa ascende entre agonias, a selva orquestra gemidos de prazer. Em êxtase, comungam contentes. Ela reverencia o deus pagão senhor dos seres desse reino. Depois, descansa recordando o idílio, até que a noite a cubra com seu manto de prata.
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O poeta O poeta julga-se superior e, no momento da criação, sente-se plutão, atingido por meteoritos. Ele necessita beber da alma alheia e plainar seus versos com os ventos norte e sul. Banhar-se na chuva mansa, regozijar na tempestade e dormir ao relento, onde o frio adensa; buscar veios de ouro e água doce no deserto; ser natural e urbano, humano a se desfazer em materiais vários. Este ser esquisito, redondo e plano, preto e branco, traz no sangue as linhagens de reis, de putas, de soldados e de santos. Possui grande olhos azuis e orelhas atentas, faróis que iluminam a existência e captam sentidos no vazio, esvaziando outros tantos. É um mago condenado. É tantos e todos que é ninguém. Bruma solitária que vaga entre pepitas de ouro e cadáveres.
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Guernica hoje Para aqueles que têm sede de justiça Alivia-me dessa dor! Seca o sangue que escorre e corre, manchando a terra, a água e a flor. Livra-me da força do império da agonia, Livra-me do medo dessa corte maldita, consagrada à fantasmagoria, à vergonha! Dor dentro e fora do tempo que me atinge e te atinge, e fingimos que não a temos. Letargia ignorante: nem pão, nem circo. Guernica atualiza-se: Iraques, Palestinas, Brasís, tsunamis, maremotos, terremotos Haitís, favelas, esquinas, praças escuras, instituições mesquinhas. Nada vemos, temos ou queremos, nada de ventos, nem de brisa ou de Paz! Tememos! Trememos! Alivia-me do grito que está preso nas entranhas! Liberta-o! Conjuga os fragmentos dessa tragédia cardeal, estranha: sem nome, sem rosto e sem norte. Revela o poder pulverizado que faz chover sangue. Alivia-me dessa dor que fede, anestesia e tem gosto de morte.
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Despertar Desperta! Acorda pleno e olha, És imagem: Traços, cores, texturas, Contornos espetaculares. Tua tribo anseia e canta, Nasce a música Brota a dança Coreografia de milhares. O alimento é comum: Miséria, angústia, esperança... Desperta! Acorda pleno e sente És letra! Símbolos e marcas Adornam teu corpus, te abençoam com a imortalidade. Recorda teu sonho, mito: Astros em conjunção, Rituais de vida e de morte. Pariste fantasia! A alma existe? Desperta e ama o saber: filosofia! Desperta tudo o que dormita: Emoção, mímica, interjeição... Transita no ritmo Explode e goza num grito: Poesia!
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Eu canto a Pátria-Planeta Eu sou eu mesmo a minha pátria. A pátria de que escrevo é a língua que por acaso de gerações nasci. (Jorge de Sena)
Eu canto a Pátria-planeta, antes que o pensamento, Divagando entre futilidades, se perca. Pátria amada! Mãe gentil! Assim também te cantam Cains de bocas encarniçadas. Pátria armada! Suor, sangue, lágrimas: Salve! salve! Salve-se quem puder... Pátria refém, Povoada por motosserras. A minha alma anseia, ao som do mar, e a luz do céu profundo, ver brotar de ti poesia. Já cultivamos de sobra desencanto, tristezas, soja, eucalipto e café.
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Nó na garganta Revelo-te meus sonhos mais íntimos porque são não- sonhos. Se te engulo em dias de calor e te enrolo nas cobertas da saudade no frio, é porque minhas lembranças clamam das profundezas. Não sou especial! Sou apenas eu de mãos vazias, versos translúcidos, Sou apenas eu. O pretérito a preterida. Sou apenas eu embalada por verbos- pirações, me derramando sobre o papel em fantasias enriquecidas pela paranoia. Esse nó na garganta difícil de desatar é a minha vida. Sou eu buscando ar, espaço, acolhida, tentando ser gente, precisando de amor. Fazendo como cachorro pulguento, buscando dono e lambendo as feridas.
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Há vagas Um quarto e muitas cadeias, Espelhos, febres. Lá fora o letreiro avisa: Há vagas! Ela brilha mais que o letreiro Por entre as plumas. Vestido de cetim surrado, Sorriso zombeteiro, Finge ser freira, santa, mártir. É puta. Vende a carne flamejante, Como um joalheiro, diamantes. A oferta é especial: Fantasias e sonhos delirantes. Ela segue uma estrela O infinito a invade. Sonha com Hollywood, Guarda recortes de revistas. Dentro de uma caixa preta, Seu coração blindado. A boca é virgem, não beija, É da vida que não é fácil Que é pureza de alma Mesmo que padeça sob O olhar enlameado. Mulher de fumaça e de pedra; A razão bambeia. Verdadeira, é natureza.
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O que dizer do amor que sente? Que é também ódio, dor, ternura... Lilases a atravessam até a medula. Ângulos oblíquos emergem de suas curvas atraentes. Sua espinha emocional Desenha formas indecentes: Mosaico, plural... Como julgar decadente Essa flor que resiste e brota Do asfalto frio, inclemente? Lírio entre espinhais.
Eu e o mar As ondas me constituem Parentesco que me abisma E me pego, assim, mareada, Ansiando tons de cinza e azul Enquanto, silenciosamente, quebro na praia.
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Poesia I Poesia ĂŠ a palavra dando cria, germinando, brotando e despontando a guia.
Poesia II O grego e o latim encharcam a minha lĂngua com veneno, Produzindo a poesia que desce redondilha garganta abaixo.
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Nossa Senhora dos raios multicoloridos A tua face, Bendita, Como posso vê-la? Como atravessar os teus portais? A minh’alma te canta e deseja, Clama pelo teu calor Do mais escuro abismo. Fazes com que eu encontre a paz. Erro por terras distantes. Te sonho infinitamente. Te busquei no mais alto das montanhas Cujos picos eram branco- azulados E lembravam aqueles que partiram sem se despedir. Clamei por teu nome, doce e secreto, Do abissal de minhas entranhas e, Nos meus pensamentos, armadilhas intangíveis, Te procurei. Meu canto, aprendiz, foi marcado Pelo ritmo da natureza. Bendita, adorada, Como posso tocar o teu manto de luzes Multicoloridas e vislumbrar a tua rara santidade? Mil sóis estão explodindo, estrelas colidem ruidosas, O caos se instaura dentro de mim. Vem plena de amor, iluminada. Eu não resistirei e serei a flor Colhida e fresca, perfumosa, à mercê de tua sábia providência.
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Um dia após o outro É como mergulhar lúcido, sem a necessidade de ar ou de terra para plantar os pés. Lançar-se infinitamente, rastejar... Ou seria nadar? Até não poder mais. Flutuar na espuma acinzentada. Entregue... É assim o ânimo, sangra violento, ri, gargalha irônico. Surpreende e estarrece essa visão. Bater os braços e as pernas, explorar, sem fôlego, o conhecido. Cansar, estar atento e relaxado, Contradizer-se e morrer, por excesso de opção. Assim o cotidiano invade a carne, um dia após o outro: mata as células, esmaga os sonhos. Nele, milagrosamente, tudo se quebra e se reconstrói, tudo, se não igual, bem parecido: um pouco mais do mesmo. Mas dos dedos brotam letras que não se repetem jamais! Cada uma delas com consciência de si, algumas alienadas das outras, mas vivas, vibrantes e prenhes de inéditos. Letras de carne, de osso e de sangue.
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? Serão meus os versos que escrevo, ou apenas palavras- frags que conjugo e organizo? Serão estas palavras partes de mim que desconheço? A poesia que gesto é embate, é utopia, é também, filosofia: de onde vim, para onde vou? Era eu ou a era a letra em esgarço noutros tempos? Será que a poesia do século XVI era minha? Pois as trovas são, para mim, tão familiares. Vejo rostos, sinto cheiros, dialogo com reis, rainhas, observo os elementais dando o tom à natureza. São estes os amigos secretos da contadora de histórias que recria o próprio mundo e brinca dando voz ao cinema mudo, preto e branco e opaco da vida. Teria sido eu uma amazona, lançando palavras- setas buscando atingir sem pedir licença? Serão antipoesia os sentidos desconexos buscados no mistério de ser outro? Quem se habilita a ser eu noutro corpo? Quem ousa ser paralelo e unir versos criando supernovas? Quem arrisca a própria vida rabiscando folhas em branco, garatujando e recriando o verbo? Metapoesia.
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Gênese compartilhada Companheiro, Vamos conjugar verbos, Formar palavras-imagens, Flexibilizar rígidas frases, Subverter o alfabeto. Enunciar as boas novas, Gozar nas texturas plurais Dos domínios da sintaxe. Celebremos os milagres da língua, Que se realizam em múltiplas e Paradisíacas miragens.
Tara moderna É obsceno produzir lixo em profusão, degradando a natureza. Elogiar a razão indolente estruturada sob o signo da incerteza. É triste ser este ser da confusão, perdido no mar da indiferença, ansiado por salvação, compaixão, benevolência, por um gesto simples, um sorriso. para aplacar a sede de amor que se sente na ilha seca em que cada um de nós se transformou.
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Nada Tristeza é nada é vazio é ausência. Voltar no tempo Parar o tempo oco buraco eco espaçamento. Longe daqui longe do agora sem lembranças branco total nem eu nem você. Não saber Não querer nada, não Várzea Charco Lodo Chão. Atoleiro Vão Vácuo Despovoamento total Deserto. Sem fim.
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Poemas As letras que, amorosamente, coloco sobre o papel não fazem o poema e o ritmo embalado que se alterna em toques não lhe confere musicalidade. A minha pena guarda segredos. Ela tem um quê de mistério e maldade. Assim, o poema nasce, em parte, em lugar que desconheço. Eu também nasço dessa poesia que não é resquício de um dia como outro qualquer ou reminiscências, lembranças. As letras que, a duras penas, saltam dos dedos para o papel condensam vozes e formam uma corrente, poética, que ata o medo, liberta. E a palavra Insurrecta triunfa.
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A doçura da carne A carne apodrece de tanta doçura, as palavras, torrões, desenham cadeias de montes, cujos picos, cobertos de açúcar, convidam. No sangue as plaquetas enfraquecidas se rendem. Há fenda na carne, líquido carmim jorra abundante. Quem sequer imagina penetrar este ermo que me invade? Caminho só, essa é a lei. Caminho... De tanta doçura as mãos derretem, se fazem arredias frente ao Jardim. Sufoquei Íris, Lírios, Cravos, Violetas, Margaridas, de tanto desejo, embriagada pela falta. Despetalei uma a uma como quem ama pela primeira vez. Essa carne à mostra, afável de brandura está em decomposição e exsuda licores. É a beleza revelando a sua outra face.
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Humanoide Plenos de macheza. Os humanoides repudiam o som de suas próprias letras. Criam confusões. Desejam tudo o que é vão. Estão prenhes de ambições: Sempre mais, mais, mais... À beira de um precipício, as ilusões. Rodam perdidos: −A terra parou? Haverá saída desse escarpado? Há face possível para esse horror? Quem cala? Escala Hishister? “Um vulcão na Islândia explodiu.” A arrogância explodirá em breve, unindo desgraças, aproximando seres, humanidades transformadas. Assim que a face da terra estiver condenada, os humanoides se escutarão e aos outros também.
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Arcano dezenove Sim! Despi-me de tudo Não foi fácil abrir mão da dor esquecer a solidão o banimento. Estive olhando o mar no horizonte. Uma linha perfeita como jamais serei. Sou tortuosa. Com esta visão, garatujei. Tornei-me esboço, cálice. Estou pronta para receber todo o amor desde sempre, a mim, destinado: Despertar misterioso no infinito de olhos cinzentos e de sorriso largo. Inunda a minh’alma um sol de sétima grandeza e te desejo toda, inteira, Terra amada, Santa, Natureza! Despi-me toda para recebê-la. Veste-me de lírios lilases e caprichosos. Respiro profundamente Te sinto mistério maior: Quasares, buracos negros, estrelas tudo, tudo, tudo me leva a ti. Estou nua, sim! E preparada para tudo o que, a partir de agora, Venha a acontecer. Arcano Dezenove
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Memória Ó língua onde as línguas acabam. Ó tempo posto a prumo sobre o sentido dos corações transitórios. (Rainer Maria Rilke)
Ó felicidade de entender, maior que a de imaginar ou a de sentir! Vi o universo e vi os desígnios íntimos do universo. Vi as origens que o livro do Comum narra. [...] Que morra comigo o mistério que está escrito nos tigres. (Jorge Luiz Borges, O aleph)
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Cicatriz Marca de Caim Sua e de mim Mulher Colher Flor Bordado Seda Cetim Diu Calcinha Sutiã Meia- calça Filha da puta Filha da mãe Clichê Pavor Porvir?
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Post mortem “Ao chegar a este outro lado do mistério, achei-me com um pequeno saldo, que é a derradeira negativa deste capítulo de negativas: - Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria”. (Machado de Assis, Brás Cubas)
Pos mortem I Estou morta, mas pensem que fui viajar. Quem sabe voltei para o lugar de onde, um dia, vim. Fazer o quê? Ainda não sei. Confeccionei bibelôs em gesso, elaborei mosaicos dos infernos, tão belos que Gaudí invejaria. Criei joias, contei histórias, pintei, bordei, toquei violão, fiz mandingas, macumbas. Aprendi dança de salão, dança do ventre, escrevi versos. Fiz amor, fiz guerra e muita caridade, fiz o dobro de maldades... E rezei todos os dias, com a Bíblia em uma mão e cristais e incensos na outra. Cultivei ervas e produzi patuás. Dei graças, todos os dias. Cantei com toda a força dos pulmões o mantra que escolhi: Obrigada, obrigada... E pela humanidade que me assolou mais “obrigadas”, e cânticos de louvor. Vivi: experiência única e irrepetível.
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Post Mortem II Amigos, não sejam mesquinhos quando eu passar desta para outra muito melhor, me levem flores e chorem bastante. Se possível, contratem carpideiras. Vocês sabem como eu gosto de uma cena. Mas, por favor, não sofram nem fiquem tristes. Experimentei da dor, da violência, da solidão, da amizade e de incontáveis alegrias. E amei, amei... não o suficiente, mas o bastante, se é que isso é possível. Não fui mais porque não quis nunca pensei no amanhã Então, digam de mim: "Inventou muita arte e, cansada, foi dormir.”
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Poema inacabado O amanhecer está aí despontando arrebentando na abóbada chumbo Da minha catedral contrariando aqueles que profetizaram a ruína da minha vida. Carpe Diem! Sorvo até a última gota este dia Hoje vou aproveitar vou ser feliz agora Estrangular a hidra Estrapolar Ser criativa sem medo de errar acolher o erro e gritar bem alto "Não me importo com isso!" Vou me importar apenas com os riscos de não arriscar Vou Rabiscar lambuzar vira o disco! Traduzir para a língua dos homens sonhos utópicos jamais pensados ou vistos.
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Versos de orgulho e solidão Que me julguem! Prefiro o inferno a me dobrar Prefiro a morte à sujeição, Prefiro este frio na alma. Até que tudo se abrande Silencio a consciência. Calo completamente a voz. Não há lamentos, nem murmúrios, Não permitirei intromissões Nos campos dos meus desejos. Nem que colham os morangos Da minha dignidade. Recolho os sonhos guardo com cuidado. Respeitosamente espero a chuva cair. Experimento o sabor do perdão Por serem meus os pés e as mãos Que constroem rápido o próprio buraco: Minha sepultura-solidão.
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Gato Para felinos e gatófilos Amigo macio e misterioso, o que anima a tua essência? Qual motivação divina te fez assim: Astúcia, graça e beleza? Vens até mim e te vejo transmutado. Enxergo-te como ninguém mais. Tu és um ser alado, és gigante, tremendo, feroz... Companheiro generoso e de boa linhagem, quais valores adornam a tua face brilhante? O que faz com que, num átimo, o tempo pare para que seu pulo seja perfeito e preciso? Observo teus bigodes elegantes e tua postura altiva, interrogo-me... Os outros não conhecem as tuas marcas, as tuas sombras e as idas e vindas de outras dimensões. Para eles és apenas linhas duras. Para mim és perfeito, És ∏.
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Canção para Rubén Darío Para Ester Abreu Vieira de Oliveira Poeta do Azul, quem te cantará? Quem entrará na selva sagrada para desembruxar o Fauno que, surdo, já não escuta Orfeu? Quem desvendará teus mistérios? Eu? Não! A América te cantará! Não aquela, hipócrita de dentes de ouro, mas esta, a minha, a tua, a nossa América! Central nos nossos corações, periférica e excitada como os nossos sexos.
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Saturnais: mito de origem Antes era Nada. E de dentro do Tudo nasceu o Sol. A grande roda brilhante se alimentava nas generosas tetas cósmicas das mulheres galáxias, que eram, também filhas do Tudo e netas do Nada. Gotas de leite estelar caíram, pingaram abundantes e deram forma a inúmeras raças: os Syrios, os Krianos e também, a humana, de complexidade rara. Para louvar o grande Nada e agradar ao Sol, organizavam festas que duravam sete luas. Ocasião em que essa raça, que ainda não conhecia a sabedoria, não roubava, nem matava, mas cantava celebrando a vida e fazia amor na alvorada. Um banquete público era o que, ao contrário, amor traduzia, ato que refletia o lampejo da origem. E, durante a festa, essa rude criatura revelava o que, da sua face, a rotina ocultava. De tanto arranhar a Terra e violar os Rios ofendendo o grande Nada, Tudo veio ensinar-lhes a compaixão e, resgatando-os da ignorância, ensinou coisas de partículas brilhantes. Essa raça de pés sujos vive olhando para o céu, esperando voltar ao seio da mãe primordial.
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Florbela em canto Para a Sóror Saudade. No claustro, o silêncio ensurdece. Fado? A alma resiste e canta. Da mouraria chegam ecos de vozes distantes. Torres de marfim e vitrais formam paços adornados com lágrimas e cristais, gotas brilhantes que correm pela face das monjas e são, caprichosamente, colhidas pelas mulheres e por homens que versejam em Portugal. Ouço dizer de Princesas ornadas. De virgens pálidas e febris refletidas em vitrais espetaculares. Seus sexos são cobertos por violetas maceradas que perfumam e inebriam os pensamentos, desviando os caminhos de quem passa. Seus sonhos sensuais aquecem o frio das celas de ouro. A simplicidade de seus gestos contrasta com o tesouro: pérolas e jades que saem de suas bocas rosadas. - Oh! Roseirais e lírios que perfumam os campos! - Oh! Árvores que guardam os ninhos dos rouxinóis, levem este canto, espalhem este odor e retornem plenos. Tudo o que vejo é santo, é vivo, causa espanto: O universo, o caos, a beleza... - Astros dispersos iluminam verbos e letras e inquietam amantes que nunca se tocaram, e despertam na memória imagens que insistem em ir para além de mim.
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Entre a luz e a solidão Entre a luz e a escuridão há um rasgo, uma fissura, por onde o tempo espia. De lá se contrai, em dores, a ternura. E já nascemos na bruteza, com um grito embargado na garganta, que, quando liberto, revela ecos de outras vidas, palavras-trama. E somos postos entre o estro e a afasia. Sempre em busca da beleza, a alma só na arte se encontra, aprende a plasmar a terra e a si; sua ferramenta, o coração. E, para validar a existência, transforma o caos em esperança, recria, pariu a si mesma fora do tempo, nas asas da poesia.
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Orgânica Orgânica A mulher era verde E sem veneno. Nem a flor da laranjeira, A lavanda, O sândalo Se comparavam ao seu cheiro. Ela se comunicava Com os bichos. Fotossintesemente Trocava seus fluidos Com o ambiente. Um dia, ela se abriu toda, De uma forma diferente, Ninguém entendeu nada. Mas ela estava, milagrosamente, Soltando brotos e Parindo alvoradas.
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Despedida À memória de Lili Você está aqui comigo, mas, aos poucos, como uma vela brilhante, se apaga... Quanta luz você fez, chama perfumada! Quanta luz vertida em cascata sobre mim, em forma de amor! Temo não ter mais lágrimas quando você se for, apenas poemas encharcados. Esta é a nossa despedida! Amar é se esvair, eu acho, é se esgotar devagarzinho... Me sinto assim, reduzida, mas, realizada. Amei e cuidei de você. E você me amou e cuidou de mim. Fechou-se um ciclo... Uma dor lancinante, querida, parte daqui de dentro e lança do meu peito, raios errantes. O que restará de mim depois de tudo isso? Matéria seca?
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Oh! Deus, por que comigo? Por que com ela ? Por que agora? Por que assim, dessa forma? Por quê? Por quê? Por quê? Por que precisamos aguentar, firmes, quando a estrutura é frágil e ameaça ruir? Estou olhando para você, meu amor, com doçura e atenção. Arrancando de dentro tudo o que é luz para lhe ofertar com alegria, em agradecimento pelo tempo que você me dedicou, pelos sorrisos que fez brotar no meu jardim. Mesmo em meio à dor eu acolho você nos meus braços e canto: “fica, fica, fica...” Mas o meu poder vai, somente, até aí: cantar, cantar, cantar... sou poeta. Mas ponho no tempo ainda não cantado esperanças e novas letras, banho os versos que não fiz com utopia e crio um não-canto: “Vá em Paz, amor”.
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Não materialidade Para o abade Daiju Bitti Eu-pedra preciso cindir, quebrar, partir, fazer-me em mil, mas não posso. Seria mais fácil cultivar a glória que, sob o Sol, é vã. Eu-água preciso derramar-me, fluir, inundar, mas não posso. Seria mais fácil empoçar-me em desejos e vontades sem sentido que, sob o Sol, são apenas vaidades. Eu-planta poderia florir, nutrir, multiplicar, mas não posso. Seria mais fácil entregar-me à força do egoísmo parasita que corrói a carne e intoxica o sangue. Sim, seria mais fácil escutar a voz de um eu enganoso que cala outras vozes entusiastas, mascarando a verdadeira identidade, a cósmica.
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Eu superior, big bang latente de ações de paz e solidariedade: Eu-não-eu, Tu! Que brote de nós a luz necessária. Que saltem das cabeças e dos corações de homens e mulheres letras benditas agrupadas em palavras que apontam para o porvir. Que surjam frases que confluam Para os rios do bem-dizer. Que nasça austero o outro ser e desfaça mal-entendidos. Que surja um novo tempo de brotação sobre a terra para acabar com a fome de sentido, para colhermos o fruto, poesia, que será liberado, acessível e nunca mais o saber será proibido.
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Quintessência “Pelos lábios de uma possível alma amorosa eu canto a mim mesmo”. (Mikhail Bakhtin)
“Quem somos nós, quem é cada um de nós se não uma combinatória de experiências, de informações, de leituras, de imaginações?”. (Ítalo Calvino)
Transluzir Tudo se dissolve ao sabor do momento No instante, tudo se desfaz. O que era, já não é mais O que fui, sou, e serei Aquarela!
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Confissôes de uma apaixonada O sol toca a minha face aquecendo o peito resistente. Lança luz sobre o maior tesouro, meu coração dourado e ardente. No compasso das estações, este órgão apaixonado e tenro, pende entre o derretimento e a evaporação. Não sei mais se tenho um coração ou se o cárdio-bandido subverteu a ordem e é quem me detém, refém de sentimentos que me engolem.
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Lilás À Maria Lúcia Dal Farra Explosões de lilases. Ela é exibida, invade as retinas domina os sentidos. Começamos a sentir e a cheirar lilases. Deliramos de estranheza ao seu sabor. Tudo, tudo, tudo se destina a ser lilás: a casa, o rio, a montanha, a árvore, o passarinho, o gato. Mas é no jardim que ela impera. Vence o poderoso verde dos arbustos com a singeleza de seu manto com o perfume suave extraído pelo vento. Ela é legião, uma diaba de mil flores.
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Excita os desavisados com seus micropistílos coloridos e açucarados Não dá paz à grama, sobre a qual, se lança, pois ela jamais, involuntariamente, cai. Eis a flor insurrecta do Éden situada ao lado da árvore da sabedoria, era ela que incitava Eva a provar do fruto: - Come, danada, e enxerga o mundo. A rosa ela despreza; o cravo, ignora, é amiga do joio, mas o bambu ela adora. A Hortênsia é assim, excêntrica, cheia de vontades e manias. Decifra-a, se fores capaz!
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A fúria de Eros Desejo a luz azulada do teu peito abrasado Dá-me o teu gozo o teu coração Dá-me também o teu pulmão teu baço pernas e braços Sê meu por inteiro sem sombras, nem saudades. Deixa para trás pai mãe irmão Deixa de comer e beber Vem para mim com cuidado e sem demora Traze o fogo de Prometeu e de Zeus, a chuva de ouro. Vem dissimulado, Deita com os olhos semicerrados, finge que não me viste. Vou te dar todo o ódio contido em férreos beijos e abraços, cacos afiados de antigas convenções. Nesse delírio de posse, Sê meu, Antes que a noite acabe, e se desfaça a fantasia, Antes que vire dia, Dá-me a fonte de luz que o teu sexo irradia.
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O gato rei Para Elvis O gato rei aproximou-se exangue. Seu olhar, di(amante), dizia que fora picado pelo mesmo bicho que vitimara Romeu, Júlio César, Garibaldi e Abelardo. Pulou sobre o meu peito, com a ferocidade de um leão. As suas (benditas) garras lanharam a minha carne, rasgaram as fibras, marcaram pulmões, coração. Agora sou súdita fiel, sempre pronta a satisfazer-lhe os desejos mais peludos. Sou sua humana de estimação.
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Carnaval Canto, brinco, vibro, é carnaval, o corpo está autorizado, redimido pelos desejos mais loucos. Nada é profano, nada é pecado, Simplesmente canto, brinco, vibro, danço, seduzo e sou desejada. Entrego-me à orgia. Liberadas as fantasias, expludo brilho e cores que nem sabia que existiam. Sou quem não sou, sou quem gostaria de ser, sou um ser que jamais seria. Esbanjo fluidos divinos, no êxtase pagão dessa alegria. Na terça, sob máscaras, sem terço nem mordaça, coberta pela fantasia festejo o dia de reis. Sou Rainha, executo ritos e entoo ladainhas, Tudo é santo, especialmente a carne que vibra e goza até o pranto. Experimento vislumbrar, no rosto, a face esquecida. Amanhã será outro dia, outro início, ou o fim... Vão-se os gritos, os brilhos e os véus, vão-se os poderes todos. Fica o resquício desse eu carnal, pele bendita, prenhe de vontades, epiderme espacial, onde, coletiva, existo.
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Terra Santa Terra santa bendita, adorada O que fizemos contigo? Tua dor me trespassa. Vejo as fissuras na tua carne azul e parda. Ouço teus gritos, Mas o medo me paralisa. Estarreço, silencio. Sinto o cheiro e os sons da morte dos teus rios, sonâmbulos e errantes. Veios desviados por húmus mutantes humanos, desvio da tua própria natureza. Esperamos o banho ritual, águas santas que nos lavarão do pior mal: a indiferença.
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Brutal singeleza Queimaram as bruxas desencantaram o mundo. Depois disso, ficou difícil fazer poesia. Depois de tanta dor, Como não silenciar? Depois de silenciar, como vencer o medo? Avanço e recuo conjugando a mulher da minha sombra. Na língua há asperezas; no coração, esperanças; e a carne, essa, sangra por natureza. Que status plural e confuso! Que peso e que pena sustentar esse Ser de brutal singeleza que quer ouvir o inaudito que brota do verbo luminoso! Quero poetizar o cinismo que oprime e mata. Busco forças em Safo, Dal Farra, Ester Colho Florbela Escolhendo a mim mesma. O silêncio é a voz que sonha e não realiza, Foi assim que a sombra acordou resgatando da sombra as outras que o tempo silenciou.
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Onde os tempos se encontram “Triste de quem é feliz”. (Fernando Pessoa)
“Na vasta sintaxe do mundo, os seres diferentes ajuntam-se uns aos outros; a planta comunica com o animal; a terra com o mar; o homem com tudo o que o rodeia!”. (Michel Foucault)
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Efeito borboleta “Entre o planeta e o Sem-Fim, A asa de uma borboleta” (Cecília Meireles)
Buscar salvação para o abandono, Desenterrar forças para mudar o mundo, Revelar o mundo descoberto no subterrâneo De sorrisos frios e olhares cínicos. Testemunhar o diálogo entre a ausência e a morte. Conhecer a si mesmo de um outro jeito, Libertar a borboleta aprisionada Dentro da larva e voar em curvas, Levantando poeira bem longe. Fazer o caos! A minha errância é como a água turva De um rio caudaloso: Não permite que lhe encontre a fonte Ou que lhe desnude os mistérios do fundo. A minha alegria, Árvore carregada de tristezas, Labirinto com minotauros anões... Não há fio com que contar. Preciso tear um casulo e adormecer, Já sinto as dores da transformação. Minha pele começa a romper. Essa mutação é necessária? Guardarei o silêncio para quando Abrir misteriosas asas. Buscarei a luz que ainda não conheci. Assim como o néctar, a essência, Irei desvendar a flor, Com tudo isso eu sonho, Enquanto me arrasto pelo chão. Arranhada e faminta.
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Jesus cósmico Eu sou Dele e Ele é meu! Conhecemo-nos há muitas eras. Eu era apenas uma plantinha inquieta, fazendo sombra e alimentando bois. Nessa época, cada estrela eu conhecia, e girava, girava, a cada volta que o Sol fazia. Lembro que cada célula do meu corpo vegetal vibrava com a sua presença angelical. Depois, por entre mistérios e forças, Encontrei- me dura e brilhante, pedra. Chamavam- me diamante. Eu precisava aprender tantas coisas, mas algo em mim resistia. Estranhamente, essa bruteza encantava e seduzia. Muitas sombras, fluxo, vertigem... Senti meu corpo flutuando; bailarina, conheci o mar e, entre criaturas irmãs, cantei com a maré: Água-Viva! Em sintonia com os ciclos lunares, seguimos juntos a poderosa voz do oceano, e conhecemos muitos lugares. Um menino eu fui também, pobre e alegre. Nasci na seca, filho da fome do agreste, não sei bem do verde, nem ouvi barulho de fonte. Mas a barriga vazia conheci, aprendi que lutar é preciso, quando escolhemos viver.
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Acho que foi nesse lugar que comecei a entender o sentido do perdão. Então, perdoei a mim mesmo, por ser fraco, coberto de poeira e solidão. Sob o Sol, acariciavas-me os cabelos Em códigos celestiais, sussurravas: jamais te abandonarei! Estavas comigo sempre. Mesmo que o chão tremesse, ardesse o Sol ou chovesse, estavas ali, comigo... Fui tantos e tantas que desconheço... Trago gostos adquiridos, Alguns procuro esquecer. Lembro-me de coisas que preciso rever. Viva! Posso fazer novas escolhas. Anseio descodificar esta existência. Qual o sentido da busca? Veja que, há muitos séculos, fui moça e passava horas a esperar por alguém à janela, alguém que nunca chegava. Outra vez, achei um tesouro. Com ele aprendi que a felicidade não se compra nem se vende. Vale mais que ouro. Sou hoje os vestígios dessas vidas e dessas mortes, vidas e mortes, e vidas... E vivo e morro a cada dia.
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Que privilégio, o teu amor! Que honra ser este mosaico ainda em construção, obra do teu capricho e cuidado. Reúnes-me em partes conflitantes, Fazes-me sombra e luz. Assim, reflito tudo o que existe, Não sou alegre nem triste, apenas sou! Amo-te pura e santamente, Jesus Cósmico! Que meu corpo e mente sejam ainda mil vezes plasmados! Que eu seja um rio caudaloso, cujos afluentes invadam outros mosaicos, regando outras plantinhas e saciando os bois que têm sede, almas mais nobres que a minha. Sinto você aqui, agora, do meu lado. De dimensão em dimensão, seguimos, unidos por este laço sagrado, guias-me , sigo-te. Viajamos pelo infinito, vou cantando um canto novo em cada novo canto.
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Antes do Éden Para Luiz Alberto Desejo a tua essência: Música! Ah! Meu bardo, poeta... Vem para mim nessa madrugada, quando o espírito das coisas repousa sobre o Nada. Vem comigo, vamos nomear ad infinitum. Observa as formas e as cores. Vem sentir os nossos cheiros e experimentar o sabor dos nossos sexos juntos. Vamos discriminar sem discriminação, dar voz e vez ao menor dos seres. Somos Eva e Adão sem o sermos. Une teus lábios aos meus. Selemos um pacto para a eternidade. Apenas eu e tu, meu bardo, poeta, neste mundo verde sem pecados, sem culpa, nem frutas, sem deus, nem diabo.
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Gente da era da luz A natureza pelo prisma do não. O mal maior, a degradação: planeta devastado, valores corrompidos. A fé só enxerga $. Trememos diante dessas verdades. Melhor seria não conhecê-las. Optamos pela estratégia: Não saber para não sofrer. A única certeza é a de que vamos morrer. Variadas questões assombram de formas diferentes. Quando os polos da Terra se inverterem e o dia chover raios luminescentes, uma nova gente vai nascer. Gente da Era da Luz, formas transformadas, filhos que resgatarão a nossa dívida e viverão o que perdemos. Os fótons de um grande Sol nos atravessam. A mudança é iminente! O DNA está mudando também. Já sinto lampejos de esperança e esclarecimento. Que nasça essa gente bendita. Que rebentem novas sementes.
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Humanidade nata A flauta toca o peito e abre buracos no tempo/espaço (aproveito) Afasto os pensamentos limitadores, sombras, A leveza me invade. Viajo nas asas do vento. Sou Ulisses nos braços de Circe, Eva cantando triste (desejosa) pela fruta de que tanto gosta. AH! se eu pudesse beber do Letes e ser inaugural como a alvorada, ser Divina, e não essa fêmea bruta, mulher em construção, alterada e mesquinha trazendo a humanidade nata. As mãos tecerão desafios abro os olhos (tímida)
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Construo estes versos, andorinhas que voam em direção a você. Me empresta a sua voz? Cante com aminha lira, escreva um poema sobre este. Vivo e lúcido Rizoma que justifica o meu intento. Estou descansada, respiro suavemente, a cabeça está erguida, as mãos estendidas. Amigo, somos flechas, mirando o infinito.
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Prece Jesus Cósmico, fonte de misericórdia, Ajuda-nos a trilhar o caminho do teu amor. Desperta os nossos sentidos para a beleza. Abre nossos ouvidos para teus discípulos: as árvore e os animais, emissários divinos que assassinamos com crueldade, assim como fizemos contigo, quando estavas encarnado. Quebra as certezas arrogantes e ensina-nos a desaprender, para que possamos mudar e romper as barreiras do ódio e da indiferença. Reavive a fé em nós mesmos e a esperança de que podemos ser e fazer diferente.
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Rituais “Não faltaram as injúrias. Chamavam-nas de sujas, indecentes, impudicas, imorais. No entanto, os seus primeiros passos nessa via foram, pode-se dizer, uma feliz revolução no que é mais moral, a bondade e a caridade”. (Jules Michelet)
Desejos de feiticeira Eu quero tocar os espírito alheios com encantos luminosos. Acordar dormentes e sonâmbulos, com fluidos escândalo-viscosos, colhidos nas veias dos cristais e das ervas. Lançar bênçãos, Distribuir afagos e, justificando a minha natureza, distribuir, também, olhares de secar pimenteiras
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Terra Amo a Terra Das entranhas ao infinito E aos seus arabescos Conflitantes Divinamente pintados
Semear Não despreze a natureza, Não pise a grama, Nem arranque a flor. Se brigar com esses seres, Será amaldiçoado e perseguido. Não adiantarão rezas, nem filtros. O segredo é simples: Semeie, plante, cultive Amizades, flores, árvores, ideias de luz. Plante e acredite. Sem fé, amigo, nada germina. Não há fotossíntese. Tudo morre, definha. Anote esta dica: Não arranque nem erva daninha. Pense que elas estão aqui por alguma razão. Mesmo que desconheçamos sua utilidade. Talvez estejam aqui para nos ensinar que A perfeição não existe, Que jardim bonito é plural, Alegre e triste, Florido na primavera e Sem folhas no tempo outonal.
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O açafrão e seu destino A crocina está dentro das plantas, assim como a crocetina, substância semelhante aos hormônios feminino e masculino. São os estigmas dessa planta rara, cor de ouro. Deles, pistilos que também são suculentos, se obtém uma matéria corante, o açafrão. O poeta Virgílio cantou o seu poder e seu odor. Plínio chamou-a de Croci. Desses pistilos também vinham os vinhos, que eram derramados no chão dos teatros: “Recte crocum perambulare”, Traduzindo: “Tenha sucesso em cena”. O açafrão só pode ser colhido bem cedinho, quando desabrocha junto com o Sol. Os estigmas de ouro são depositados sobre papéis como as palavras sobre os corações. Depois são fechados em caixas como joias.
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Impotenza strumentale Para todos os machões O homem fazia um grande esforço: mentalizava, desfolhava rezas fervorosas, e nada acontecia. Para acordar sua masculinidade trágica, fruto da fatalidade. Nada adiantava. Coitado. Seu órgão não mais o atendia. Seu orgulhoso instrumento não se elevava. Ficava ali, estático. Parecia um cadáver, só que mais rosado. Ele fez de tudo para retardar o advento sombrio. Recorreu à magia, Mas de nada adiantou. Seu mundo havia caído. Iniciou uma peregrinação, para mudar sua história, reverter a situação. Foi ao mangue sagrado da Birmânia e afundou os testículos na lama. Nada aconteceu. Depois, passou a comer ostras todos os dias e a esfregar nas partes pudendas óleos, essências, que também não surtiram efeito.
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Ele recorreu a gorduras fedorentas que, além da vergonha, atraíram moscas. Emplastos, a cartada final. De desatino em desatino, Buscou a felicidade, se concentrando em outras partes do corpo, até mesmo no coração.
Barba Azul O meu sangue é ávido, inflamado E premente. Aperta meu coração A natureza libidinosa do que penso, Ao tocar a terra e recolher seus frutos. Sou pouco rica, ao contrário da nobreza. Mas posso curar, predizer, adivinhar e Evocar almas. Tudo isso faz de mim o que mais desejas: Teu objeto absoluto. Fantasias em tua maldade. na soberba que oculta sua verdadeira face, As formas de me reduzir. Barba Azul. Fujo de tua rude presença, Antes que o tempo clareie e tudo que é luz em mim anoiteça.
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Filtros mágicos Se você ama alguém, mas não é correspondido; Se perdeu todas as esperanças de ser feliz e de ter prazer; Se está triste, doente, e precisa desesperadamente foder, esqueça as promessas ao santo de devoção. Ele tem mais o que fazer. Deixe também de lado os despachos. Deixe as encruzilhadas limpas. Por favor, as ruas já estão bastante sujas, e a cidade poluída. Recorra à magia: faça um filtro. Os filtros são a regra no jogo do sexo. Pode acreditar: eles funcionam. Pegue uma ervinha brejeira, catuaba ou coentro. Besunte no mel e depois enrole em um lenço de algodão virgem. Diga: “Ervinha poderosa e amiga, faça “fulano”(diga o nome da pessoa) se entregar aos meus caprichos.” Repita a frase três vezes enterre o lencinho na praia e espere...
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Banho de limpeza Pegue sete galhos de arruda; Sete de aroeira, Sete folhas de espada- de- São- Jorge E de Ogum; Sete folhas de abre- caminho, Sete galhinhos de boldo, E, para finalizar, sete punhados de sal grosso. Ferva tudo com fé. Resulta um líquido milagroso! Deixe esfriar e lave-se. A cabeça não deve ser molhada. Se quiser prosperidade, Acrescente a esta fórmula: Cravos, sete também. Erva cidreira, manjericão, Mel e pétalas de rosas. Os caminhos se abrirão, Olho gordo cairá por terra, Tua sorte voltará, Tudo isso com um banho, Ou melhor, com sete banhos, Respeitando a sabedoria Do ciclo lunar.
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Patuás Não precisa de jeito, Apenas de boa vontade. O material é barato. Alguns são de graça. Basta coragem. Agora, é botar a mão na massa. O patuá pode ser até mesmo decorativo, um adorno colorido. Mas eles são bem mais que isso: São objetos mágicos de poder e força. Vamos lá, faça o seu. Patuá de proteção contra mau olhado: Pegue alecrim e coloque pra secar. Pegue um pedaço de fita amarela, cor do segundo raio o da Santíssima Trindade. Pegue também um pedaço de pano. Faça um saquinho. Dentro, deposite o alecrim. Junto, coloque uma pedrinha, tirada de algum jardim. Costure e decore, coloque miçangas , pendure a fita e passe a contar com a iluminação e a sabedoria divina do mestre Confúcio. Avatar dessa senda.
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Cerimônia do chá O chá deve ser feito de cravos, noz-moscada, rum e folhas de menta. Deve ser tomado na Lua crescente, por pessoas que desejam recomeçar algo ou estejam, simplesmente, descontentes. Deve ser bebido de forma ritual: Esteja vestido com roupas brancas, tenha em mente aquilo que precisa deixar partir. Imagine-se feliz. Sonhe com algo bom. É preciso coragem para abraçar o inesperado, para receber o novo. Diga sim e acredite! Beba e adentre-se em novos caminhos, Fale novas línguas. Admire outras cores. Pluralize. Depois do chá, agradeça à natureza e aos amigos invisíveis.
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Cadê o urú ? Cadê o uru? Sumiu. Caçador pegou, ninguém viu, e, se viu, não se importou. E o peixe-boi? Dele, só lembranças, Vi um, dias desses, em um livro. Morreu, certamente, para aumentar alguma pança. E o corocoró? Nem có, co, nem piu, piu. Sumiu também. Deve estar empalhado em algum canto da sala de ciências. E a cutia, o papagaio-moleiro, o sagui-da-serra, o guigó, o macaco-prego, o caititu e o catatau? Escondendo-se por aí, talvez, em buracos e fendas de sítios e fazendas, pois, terra sem dona não há mais. Rezam, cada um na sua língua, ensaiando sobreviver, mas sabem que o caçador logo vai chegar.
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Poesia vegetal Existe uma poesia que guarda em si Elementos combinados, Que suporta invernos inclementes. Ela dormita. mas, na primavera, Desperta, trazendo consigo Coisas antigas que, durante séculos, Foram silenciadas.ww
Imago A imagem está prenhe de inexoráveis sentidos e de ideias. Nelas, as palavras dormitam. Ídolo inclemente Mãe de inéditos. Adorada e temida Gesta coisas que existem Mas que ainda não foram vistas. Ima
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O que nos resta, após a leitura de arcano dezenove? Mística, lirismo, realismo, simbolismos ocultos, questões do mundo filosófico, da tradição alquímica, do cotidiano e do ambiental – é por este labirinto poético que Renata Bomfim nos conduziu para formar as suas (nossas) “palavras-imagens”. Ao término de nossa leitura fica fácil constatar que o discurso metapoético prevaleceu em alguns poemas, como quem procura dialogar narcisicamente, buscando alcançar a essência da poesia. Para isso, a poetisa utilizou várias formas versificatórias, como forma de seduzir o leitor. Seduzidos, notamos que foram postas as cartas do seu jogo poético. Após a primeira carta/parte (Arcano Dezenove), nós, leitores, estupefatos, com a intensidade da sua linguagem lírica, nos perguntamos: será que a autora ainda nos surpreenderá? Constatamos que Renata Bomfim cumpriu – além de questões formais (as acadêmicas) – o propósito que deve ter todo trabalho artístico. Ou seja, a obra não como objeto acabado e definido, mas que o seu sentido seja, como elucida Umberto Eco, de abertura a várias possibilidades; ou seja, provocar como respostas diferentes, mas confor-
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mes a um estímulo definido em si. É exatamente esta sensação, caro amigo leitor, que você tem ao terminar de ler Arcano Dezenove. Compreenderá um emaranhado de sentidos, que já não fazem mais parte da escritora, mas adentra no nosso mundo, ressignificando as palavras, vemo-nos em seus textos, que nos transportam para o lugar que deve ter toda leitura poética: a do prazer artístico. Já embevecidos na sua poética – que cumpriu, ritualisticamente, um percurso estratégico situado em diálogos com outros autores (como, por exemplo, Florbela Espanca, Rubén Darío, Maria Lúcia Dal Farra), através de um discurso focado na alteridade, proposta importante atual dos estudos literários –, a poetisa mostrou os seus espelhos poéticos, sem, no entanto, perder a sua originalidade. Pois, afinal, a inovação desta poética está centrada numa concepção pós-moderna da poesia, aliada a auto-consciência de seu labor lírico, levantando uma das principais questões que tocam as várias ciências atuais, bem como a sociedade, a questão do ativismo socioambiental, aliada a um entendimento e comunhão com o cosmo-natureza. O ambiente poético inovador de Renata Bomfim é, entretanto, não apenas arraigado às questões de preser-
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vação, diálogo e identificação com a natureza, mas ambienta-se em outros paradigmas, dos quais destaco uma das grandes questões da sociedade moderna: a feminização do mundo. Diz a poetisa-poeta: “Eu quero tocar os espírito alheios/ com encantos luminosos./(…)Distribuir afagos e, (…)/ olhares de secar pimenteiras.” E ela consegue, ao final desta obra, através do seu “olhar/cantar” felino, de poesia liricamente fertilizada de desejos, tocar o mais fundo de nossa alma. Transporta-nos para o mundo mágico artístico; afaga o nosso coração chagado e arranca, abruptamente, as mais profundas raízes resistentes às intempéries da nossa incredulidade em compreender que nasce uma poetisa contemporânea brasileira que ainda dar-nos-á uma vasta obra de qualidade para a nossa tão desprestigiada literatura de autoria feminina. Fabio Mario da Silva Doutorando em Literatura pela Universidade de Évora (Portugal) Pesquisador do CNPq, num projeto sediado na Universidade Federal de Sergipe Professor Convidado da Universidade de Varsóvia (Polônia)
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