O livreiro inglês

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O LIVREIRO INGLÊS



Renato Abilleira

O LIVREIRO INGLĂŠS Uma breve passagem pelos labirintos da Alquimia

solve et coagula

Santos - SP 2015


Abilleira de Castro, Renato Renato / Abilleira de Castro -- São Paulo 2015. 232 p. 1. Literatura Brasileira. ISBN 978-85-65826-55-6 Revisão e diagramação: Wilson Mello 2015 Impresso no Brasil

Imagem da capa: Der Bücherwurm (O rato de Biblioteca) Óleo sobre tela de Carl Spitzweg (domínio público)

Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, armazenamento ou transmissão de partes deste livro, através de quaisquer meios, sem prévia autorização por escrito.


Aos buscadores.



Sumário Avô e neto..........................................................................11 Herança a um deserdado....................................................13 Esquisitices.........................................................................19 A livraria............................................................................21 Um segredo dentro de outro e de outro..............................29 Semelhanças.......................................................................35 Uma sapateira ruiva............................................................39 Os primeiros choques.........................................................45 Cayler, o livreiro.................................................................61 Alquimia e alquimistas.......................................................65 Queijo, tomate e a cabeça no mundo da lua.......................83 Objetividade......................................................................91 O primeiro degrau..............................................................93 Ladrões e alfaiates...............................................................99 Máquinas.........................................................................107 A pequena lista.................................................................117 Um novo item..................................................................119 O fio à meada...................................................................127 Um velho baú...................................................................131 Leonardo..........................................................................139 Coisas impossíveis............................................................145 Dedicação integral............................................................147 Tão exposto e tão oculto...................................................149 As primeiras luzes.............................................................171 Um pouco mais perto da China.......................................179 Insólitas conclusões..........................................................193 O Inferno.........................................................................197 Lúcifer..............................................................................205 A Monalisa.......................................................................221 Ela....................................................................................227 Longo caminho................................................................233 O oculto dever permanecer assim.....................................241 Uma segunda carta...........................................................245 Epílogo – Um misterioso livreiro chamado Cayler............251



Capítulo 1 Avô e neto

Paris, 1997.

O inverno chegara a seu termo havia duas semanas, mas nem o frio que ainda restava da estação que se fora diminuía o movimento dos cafés sempre lotados. Não havia menos barracas coloridas na Place du Tertre; o Louvre não recebia menos visitantes e os artistas de rua continuavam a pintar os rostos dos turistas, ávidos por lembranças da cidade-luz. Paris celebrava a primavera, como sempre. Longe do burburinho do circuito turístico da metrópole, o pouco movimento e a tranquilidade quase bucólica da Rue de La Pierre-Sous-Terre em nada se assemelhava a Paris cosmopolita. Na metade da primeira das três quadras estava a casa da família Doré, que até seria muito parecida com as outras não fosse pela hera perfeitamente aparada que estendia seu tapete vertical sobre a fachada dos dois pavimentos do imóvel, com exceção da porta, das janelas, do número 27 pintado de branco e da antiga e imputrescível placa de madeira entalhada, onde se lia: Camille Doré Luthier Camille Antoine Doré falecera há doze anos, mas em respeito ao homem e à sua memória, seu filho, Jean-Jacques, manteve a placa que anunciava a profissão de seu pai – e a sua própria – de fabricante de violinos. O ofício de luthier, que Camille Doré aprendera em casa, fora pacientemente transmitido a seu filho e mais tarde ao único neto, Eugene, mesmo que a idade e a artrite tivessem dificultado sensivelmente a tarefa de ensinar uma arte tão delicada e detalhista como a luteria. Eugene, já com vinte e cinco anos, guardava de seu avô a 11


terna imagem de um homem calmo e contemplativo que durante toda a sua infância acordava-o pela manhã e o convidava a fazer uma pequena oração matinal para “ajudar a nos aproximarmos de Deus”, como dizia. Aos olhos do menino, aquele era um verdadeiro sábio que respondia a todas as perguntas e satisfazia todas as curiosidades. Quando não podia ou não sabia responder a uma questão qualquer, Camille incumbia o garoto da responsabilidade de meditar sobre o assunto, prometendo que faria o mesmo. No dia seguinte, reuniam-se novamente para trocar suas experiências e conclusões. Eugene não podia imaginar que com isso o velho artesão procurava despertar-lhe o hábito da contemplação e a atração pela serenidade e pela meditação. Não era uma tarefa das mais fáceis porque, como qualquer menino, Eugene também tinha interesses puramente infantis e os atendia prontamente quando algum amigo da escola gritava seu nome em frente à sua casa. No entanto, o experiente Sr. Doré tinha certeza que Eugene era um garoto especial, a julgar pelas conversas que tinham e por seu crescente interesse pelas questões filosóficas que frequentemente abordava. Camille Doré dedicara, a par da luteria, toda sua existência ao estudo dos assuntos místicos e ocultos da vida, com especial atenção à leitura e releitura contínua dos textos de alquimia da Idade Média, na esperança que desse ato repetitivo surgisse a centelha de luz que o levasse a correta interpretação de uma literatura tão complexa e de dificílima compreensão. Árdua tarefa que poucos realizaram com sucesso. Embora a relação entre Camille e Eugene fosse muito próxima e, em geral, bem humorada, não raro o menino percebia nos olhos de seu avô uma profunda e inexplicável tristeza. Era como se o velho artesão houvesse perdido algo de extremo valor e que fosse irrecuperável ou insubstituível. Por que um homem realizado profissionalmente e pessoalmente como ele era, sutilmente transparecesse tamanha tristeza? “Acho que não é 12


pela falta da vovó. Ela já morreu há tanto tempo” – raciocinava o garoto. A profissão de luthier rendera a Camille o prazer e os frutos esperados, portanto, para o menino, não parecia que fosse nada relacionado ao trabalho. Havia algo, sim, mas que ele não podia perceber ou entender facilmente. Eugene não se atrevia a abordar o assunto com seu avô, temendo tocar em alguma ferida que o ancião procurasse esquecer e que o tempo, aparentemente, não havia cicatrizado. Os anos passavam e, na maior parte do dia, avô e neto eram inseparáveis. O jovem aprendia as lições que o tempo e a vida ensinaram ao velho. O velho reaprendia com o jovem as lições que a vida e o tempo o fizeram esquecer. Um entregava de bom grado a sabedoria e a experiência. O outro oferecia, inocentemente, a paz e a pureza. Eugene cresceu e passou de aprendiz a talentoso luthier, seguindo os passos e as orientações que recebera do avô. Pobre avô. Tão sábio e tão triste. Morreu aos oitenta e um anos, quando Eugene contava apenas quinze. “Levou embora o motivo secreto da sua tristeza” – pensava o jovem Eugene.

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Capítulo 2

Herança a um deserdado Da parede do hall de entrada do atelier dos Doré, três gerações de mestres luthiers contemplavam aqueles que ali entrassem. Pendurado a cerca de um metro e oitenta de altura, um óleo sobre tela de autor anônimo, abria, da esquerda para a direita, a pequena galeria de família: o bisavô de Eugene, em pé, corpo inteiro, segurando um violino à altura do peito. Foi o pioneiro da linhagem de artesãos. Aos pés da moldura dourada trabalhada em baixo relevo, havia a inscrição: Julien Philippe Doré O Iniciador. A ideia de chamar Julien de “Iniciador” fora de seu filho Camille e por muitos anos pareceu a Eugene que aquele termo referia-se apenas ao fato de Julien Doré ter sido o primeiro a se dedicar ao ofício que ao longo das décadas seria abraçado pelas gerações seguintes. Mais tarde Eugene descobriria que não era só isso. Julien Doré era um homem austero, muito sério e “exigente demais”, nas palavras de Camille. Dos doze aos vinte e quatro anos, trabalhou para um famoso luthier de Paris, Monsieur Toussaint, inicialmente como aprendiz e logo, devido ao seu talento, passou a assistente direto de seu instrutor. Aos vinte e três anos alcançara a categoria de mestre luthier e praticamente assumira a direção do atelier, porque seu professor, já velho e cansado, diminuira sensivelmente o ritmo de atividade e passava mais tempo em casa do que no trabalho. A casa do Sr. Toussaint era contígua à oficina, havendo apenas uma porta de ligação entre as duas e Julien, que já se acostumara com as ausências frequentes do mestre, ia vê-lo todas as vezes que ele não aparecia no atelier. Numa dessas ocasiões, 15


a Sra. Toussaint, que sempre fora gentil e sorridente, recebeu Julien com ares de tristeza e apreensão. – Ele não tem passado bem. Ficou o dia inteiro deitado, sem ânimo para nada e não quis se alimentar. – comentou a dedicada e preocupada esposa. – Posso vê-lo, senhora? – solicitou o rapaz. – Sim, filho, ele está no quarto. Vá até lá. Julien bateu levemente na porta, abriu-a e encontrou seu mestre deitado na cama, banhado por uma luz dourada do final do dia que vinha da janela logo acima de sua cabeça. Ao ver seu discípulo, o homem tentou sentar, mas as forças já não lhe respondiam como no passado. Fez um sinal para Julien, que prontamente o ajudou a erguer o corpo e sentar na cama. – Mestre, o que houve com o senhor? Está doente? – perguntou o rapaz. – Precisa de alguma coisa? – Obrigado Julien, mas estou bem. Não te preocupes. Apenas sigo o curso natural das coisas. Ainda não chegou o meu momento de sobrepujar a natureza e vencer o Anjo da Morte. – Perdoe-me senhor, mas não entendi. – Não é nada, filho. O velho mestre respirava com dificuldade e, por alguns segundos, fechou os olhos e ficou assim, tomando fôlego para as próximas palavras. – Meu caro Julien, – continuou o Sr. Toussaint – é muito bom que estejas aqui. Já ia mandar te chamar de qualquer forma. Há algo que quero te dizer: eu não estou doente como pensas, no entanto, estou consciente de que me encontro num momento da vida em que me resta apenas esperar que os meus laços com este mundo sejam cortados. A serenidade e o equilíbrio que aprendi a cultivar durante a vida emprestam-me agora a tranquilidade que preciso para percorrer calmamente os dias que ainda tenho. As palavras do Sr. Toussaint carregavam um profundo tom de melancolia, embora tentasse manter a serenidade e a firmeza diante de seu discípulo. – Quero que saibas, meu filho, que desde o dia em que vieste 16


trabalhar e aprender comigo, percebi em ti o talento natural para a nobre arte da luteria. Dediquei-te especial atenção e apreço como o faria com um filho, se o tivesse. No entanto, Deus, em sua misericórdia infinita, não me esqueceu e enviou-me tu, Julien, que não me decepcionaste, sendo aluno exemplar e trabalhador incansável, digno de toda a confiança. – Agradeço vossas palavras, mestre. – Não precisas agradecer, filho, é apenas a verdade. Julien abaixou um pouco a cabeça, como quem agradece com uma ligeira reverência. – Bem, esses dias que não tenho ido à oficina serviram-me como oportunidade para refletir e, com a ajuda inestimável de minha esposa, tomar as providências necessárias para tornar legais as últimas decisões que tomo na vida: deixo para ti, Julien Doré, meu atelier e tudo o que há nele. Deixo também minha casa e tudo o que há nela. Tu encontrarás na caixa que minha esposa te entregará, todos os documentos que atestam o que estou te dizendo. Tudo já está legalmente registrado em teu nome, restando apenas que exares tua firma nos papeis. Eu desejo ardentemente que sigas com maestria e perfeição na arte que escolheste e que o nome Doré seja visto gravado nos melhores violinos da Europa. O rapaz olhava para o velho, estático, sem dizer uma palavra. – Julien, meu bom Julien, - disse o ofegante Sr. Toussaint – resta pouco tempo a este teu amigo que insistes em chamar de mestre. Portanto, dou-te uns conselhos, ou melhor, ordens: procura ser honesto, sempre, com aqueles que te cercam e principalmente contigo mesmo; cuida dos teus afazeres e dos teus planos com a maior atenção que puderes e, principalmente, dedica pelo menos uma pequena parte do dia à tua alma. Vou te contar um segredinho: quando rezares, reza para dentro e não para fora. Deus não está naquele céu que tem nuvens e que é azul. Ele está em outro “céu”, que também é no alto, mas que não é necessário olhar para cima para enxergá-lo. No mais, cultiva as boas amizades e fuja das tabernas e do jogo. Ah, outra coisa... 17


Construa grandes violinos – disse sorrindo. – Agora vá, Julien, o atelier precisa da tua presença. – Senhor... – disse Julien, engasgando. – Conversaremos depois, filho. Agora vá. Julien, ainda atordoado, despediu-se beijando a mão daquele que consideraria sempre como seu mestre. Na semana seguinte, cumpriu a triste tarefa de enterrar seu professor e amigo numa sepultura simples, contendo apenas um nome e duas datas. Assim ele queria e assim foi feito. Durante o ano que se seguiu, Julien cuidou da viúva, Mme Marie Toussaint, e dos negócios de seu mestre, como havia prometido momentos antes de sua morte. O trabalho no atelier caminhava bem e as encomendas, como sempre, eram entregues na data prometida, mantendo a mesma qualidade e esmero que o Sr. Toussaint dispensava aos instrumentos que fabricava. Por fim, na véspera de Natal daquele ano a Sra. Toussaint chamou Julien e entregou-lhe a caixa da qual seu mestre havia falado. – Saiba que eu compartilho da decisão que meu marido tomou ao te deixar tudo o que tinha – disse a Sra. Toussaint. – Não penses que estarás tirando alguma coisa de mim, que seria a herdeira natural dos bens de teu mestre. Sinto que muito em breve não precisarei mais disso. Já não tenho mais nada a perder. Meu marido levou consigo tudo o que eu tinha na vida. Entretanto, há mais uma coisa que ele queria te deixar e preferiu que eu mesma te entregasse e te instruísse quanto à importância do legado. – Mas, o que mais teria meu mestre e protetor para me dar que já não tenha dado? – disse Julien. – O que sou hoje devo a ele e o que serei no futuro, também deverei a ele. – Há algo mais que, no entender de meu marido, poderá ser mais valioso que tudo o que ele já te deixou. Dependerá de ti, da tua paciência e da tua vontade. Refiro-me a certos livros e manuscritos que teu mestre guardou durante muitos anos e creio que agora chegou a hora de mudarem de dono. Fui encarregada de te advertir que, embora os livros agora sejam 18


teus e, portanto, tu podes fazer o que quiseres com eles, tu deves lê-los, relê-los e estudá-los com a maior atenção que puderes. No início, os textos serão incompreensíveis para ti, exatamente porque foram deliberadamente escritos dessa forma para que seu verdadeiro conteúdo permanecesse velado. Porém, filho, se ao leres, aquelas páginas te tocarem fundo, se Deus insuflar em teu coração o sopro inconfundível do anelo pela sabedoria, sugiro que empregues todas as tuas forças na busca do que está por trás das palavras. Acredite, as portas dos grandes mistérios do Universo estarão diante de ti esperando que tu as abras, porém a chave para abri-las terás que conseguir pelo teu próprio esforço. Julien apenas ouvia e balançava a cabeça positivamente. – No entanto, – continuou a Sra. Toussaint – essa é uma senda difícil de percorrer sozinho, por isso se tu te sentires suficientemente intrépido para segui-la, poderás contar com a ajuda de um homem que foi o grande amigo e instrutor de meu marido. O nome e o endereço dele em Paris estão escritos em um papel guardado junto com os livros. Se o procurares, menciona o nome Albert Toussaint e ele te receberá. Sei que tudo isso parece estranho para ti agora e entendo a tua perplexidade, porém teu mestre queria não apenas que tu desses seguimento à fina arte da manufatura de violinos, mas nutria também a esperança de que a sabedoria contida naqueles livros, oculta pelo véu das alegorias, encontrasse em ti o solo propício para crescer e dar frutos, já que esse é o fim último para o qual foram escritos. As palavras da Sra. Toussaint deixaram em Julien a sensação de que receber aquele presente era uma responsabilidade maior do que ele desejava ter, mas o respeito à memória de seu mestre e aos seus últimos desejos eram palavras de ordem para o jovem artesão. – Porém, – disse a viúva – se o que vier daquelas páginas não te tocar, nem provocar em ti o desejo pela busca do Oculto e do Secreto, guarda os livros e não comenta com ninguém que os possui. Espera o tempo passar e observa ao teu redor. Quando encontrares alguém que demonstre verdadeiro interesse pela 19


Sabedoria Oculta, entrega este legado e não te esqueças de dizer a quem os receber as mesmas coisas que estou te dizendo agora. Entenda, meu rapaz, que os segredos sabiamente escondidos nestes livros representam uma espada muito afiada e de dois gumes. É preciso ter atenção. Aquele que consegue romper a crosta das palavras e libertar-lhes o verdadeiro sentido depararse-á, imediatamente, com um duro e áspero caminho sem volta. Se tu intentares e, por fim, conseguires descobrir o que os sábios do passado esconderam naquelas páginas, certamente reconhecerás o caminho ao qual me refiro. Ali estão os livros – disse a Sra. Toussaint indicando uma enorme mala de couro ao lado da lareira. – Rogo a Deus que sejas digno deles. – Não sei o que dizer, senhora. Percebo a importância que estes livros tinham para o Sr. Toussaint e, embora não me sinta merecedor, aceito recebê-los. Julien quase não pôde erguer a mala do chão, tamanho era o peso daquilo que ela continha. “Ou seria o peso da responsabilidade?”, pensava o jovem herdeiro. No dia seguinte, Julien encontrou Marie Toussaint, já sem vida, deitada na cama em que morreu seu marido.

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Capítulo 3 Esquisitices

Último na linhagem dos Doré, Eugene era um jovem fechado, de pouca conversa, adepto das caminhadas solitárias pelas ruas de Paris, sempre atento a alguma loja de livros velhos que eventualmente encontrasse pelo caminho. Dedicava apenas metade do dia – conforme acordo com seu pai – ao trabalho no atelier dos Doré; a outra metade e parte da noite, atendia aos apelos da sua natureza introspectiva, vagando por aí ou ficando em seu quarto, mergulhado “naqueles livros esquisitos”, segundo seu pai, monsieur Jean-Jacques. As esquisitices dos livros de Eugene era o que mais o atraía neles. Jean-Jacques não era capaz de compreender como é que seu filho podia gostar tanto daquelas “coisas que não existem; fantasias”. Mas para o rapaz, aquelas histórias de cavaleiros de armaduras, magos, druidas celtas, espadas encantadas e alquimistas eram muito mais interessantes que a literatura moderna, além disso, guardavam, em síntese, estreita semelhança com as mitologias grega, nórdica e romana, que constituíam boa parte do gosto literário de Eugene. Os heróis de antes de Cristo emprestavam suas aventuras e sua coragem aos personagens da Idade Média e suas batalhas; Hercules revivia suas epopeias na pele dos alquimistas medievais e seus laboratórios secretos. Eugene, naturalmente, compreendia que aquelas histórias fantásticas eram mera simbologia que ocultavam conhecimentos que ele não conseguia descobrir. “Talvez o vovô soubesse”, pensava. Se havia alguém que realmente fizesse falta a Eugene, esse alguém era seu avô. Camille Doré certamente era o responsável pela natureza perscrutativa do seu neto. As longas e agradáveis conversas, temperadas sempre com alguma alusão as mil e uma noites ou aos cavaleiros da Távola Redonda, faziam brilhar os olhos do menino atento a cada palavra. E quando adormecia no colo do 21


avô, num instante pulava da realidade ao sonho e lá continuava a aventura, forjando seus próprios heróis e criando novos desfechos às histórias do velho Camille.

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Capítulo 4 A livraria

Na galeria de família, o retrato de Camille Doré ficava à direita do de Julien e à esquerda do de Jean-Jacques. Embora Eugene também fosse luthier, o seu retrato só iria para a parede – segundo a tradição da família – quando seu pai morresse e ele passasse a assinar os instrumentos. Regra instituída por Julien. O pai de Eugene era um homem extremamente prático, obstinado pelo trabalho e pela manutenção do bom nome do Atelier Doré que outrora seu avô Julien recebera de um benfeitor de quem Jean-Jacques tinha pouquíssimas informações e cuja história não fora abordada com maiores detalhes pelo seu pai. Camille tinha razões para ter sido tão reticente a respeito da vida de Monsieur Toussaint. Desde a juventude, Jean-Jacques demonstrava marcada tendência pela busca da fama de grande luthier e dos dividendos que essa posição pudesse render, portanto, bastava saber que seu avô recebera a herança de um homem à beira da morte e que não tinha descendentes a quem deixar seus bens. Isso era o suficiente. O trabalho de luthier não era exatamente uma profissão apaixonante para Eugene, assim como o era para seu pai, mas ele não reclamava da sorte. Trabalhava com vontade, gostava do que fazia e se preocupava em empregar o maior esmero possível aos violinos que fabricava, embora não os assinasse. Tinha talento para a arte, mas ainda assim faltava alguma coisa na vida do rapaz que ele mesmo não conseguia saber o que era. Havia, desde menino, uma profunda inquietude em Eugene, que somente era percebida pelo velho Camille. Mas seu avô já se fora e Eugene definitivamente sentia-se sozinho em casa. Seu pai era ocupado demais, materialista demais e insensível a qualquer coisa que não fosse produzir mais para ganhar mais. Sua mãe, embora amorosa e preocupada, vivia sempre muito atarefada com a casa e com o marido. Na verdade, só havia uma pessoa que 23


compreendia Eugene: Isabelle, sua bela e ruiva namorada. Eram iguais em tudo, nos desejos e nos projetos de vida. Ardia-lhes a chama do anseio pelo desconhecido, pelo misterioso, por tudo o que não tinha explicação racional. Eles não eram racionais. Por essas razões, completavam-se absolutamente. Nada lhes faltava. Sabiam o pensamento um do outro apenas com uma troca de olhares. Desejavam as mesmas coisas e, portanto, buscavam as mesmas coisas. Como fazia quase todos os dias, – à exceção daqueles em que a chuva o impedisse – Eugene saiu de casa, mochila às costas, para caminhar e, como de costume, mergulhar dentro de si mesmo em busca de qualquer coisa que o ajudasse a satisfazer as inquietudes e ansiedades que carregava consigo. Os caminhos, quase sempre repetitivos, em geral terminavam na casa de Isabelle ou à beira do Sena ou em alguma livraria pouco frequentada pelos amantes da literatura moderna. Naquela tarde os pés do rapaz o levaram por um caminho que já conheciam muito bem: a Livraria Cayler. Aquele certamente era o local menos procurado de Paris. Comercializava apenas livros que pouco interessava ao grande público: mitologia em geral, filosofia, edições francesas dos clássicos da alquimia medieval, literatura épica hindu e egípcia e coisas afins. “Esse Sr. Cayler deve ter alguma outra fonte de renda, porque se dependesse do volume de vendas da sua livraria, morreria de fome”, pensava Eugene. Edward Cornellius Cayler era um inglês que aparentava ter cerca de sessenta e poucos anos, mas nem mesmo seus clientes mais antigos sabiam há quanto tempo ele e sua esposa viviam na França. Tinham uma livraria instalada no andar térreo de uma casa de três pavimentos da Rue Nicolas Flamel. Moravam em cima e trabalhavam em baixo. Simbologia bastante eloquente para os que podem entender! O Sr. Cayler era um homem de poucos amigos. Não que fosse averso ao convívio humano, mas as distrações sociais não lhe atraíam e não lhe faziam falta. Preferia a companhia de um 24


bom livro à fumaça dos cigarros nos cafés de Paris. Agradavalhe mais conversar com uma criança do que aguentar a ladainha enfadonha dos intelectuais. Por tudo isso era um homem retirado, discreto e dedicado a seus afazeres de livreiro, ainda que fossem poucos. Naquela tarde, a sineta pendurada no alto da porta da Livraria Cayler anunciara a entrada de mais um cliente. Eugene fechou a porta atrás de si e caminhou até o balcão que tinha a aparência de ser tão antigo quanto a própria Paris. O Sr. Cayler encontrava-se de costas para a entrada, espanando o pó de uma prateleira alta, enquanto sua mulher, Catherine Cayler, retirava alguns livros de uma caixa de papelão que havia chegado pelo correio naquele dia. – Olá, filho – disse o livreiro, sem virar-se para ver quem era. – Oi, senhor Cayler. Como sempre, o senhor já sabia que era eu, não é? Será que algum dia vai me contar como faz isso? – Um dia talvez, filho. – Eu sei esperar – respondeu Eugene. – Como vai, senhora Cayler? – Muito bem, filho. – O senhor tem alguma coisa para mim? Chegou o meu livro? – Sim para a primeira pergunta e não para a segunda. – Bem, se o meu livro não chegou o que é que o senhor tem para mim? – Antes, podemos conversar um pouco? – Claro que sim – respondeu Eugene, com o sorriso sincero de sempre. O Sr. Cayler desceu os degraus da pequena escada de madeira onde estava e a encaixou embaixo do balcão. Abriu uma gaveta e guardou o espanador que tinha na mão. Tudo sem pressa alguma. A serenidade e a calma eram características do livreiro e Eugene admirava isso. – Como tem passado, meu rapaz? – perguntou o livreiro. 25


– Se a rotina diária é passar bem, então eu tenho passado bem. – Não desanime da vida, filho. Você é muito novo ainda. Além disso, eu tenho novidades. – Que bom. E o que seria? Antes de começar a falar, o livreiro ficou alguns segundos olhando fixamente para os olhos de Eugene, que esperava. – Ao longo dos últimos anos, – disse o Sr. Cayler – tenho visto que os seus interesses literários são de alta qualidade, a julgar pelos livros que eu já lhe vendi. Afinal, não é todo mundo que se interessa por Dante, Platão e Homero, por exemplo. E o que dizer da história dos Doze Trabalhos de Hércules? Você já leu três publicações de diferentes autores sobre o assunto. Eu sei, afinal, fui eu que vendi pra você. Há algo que quer descobrir e que ainda não conseguiu? – Tem um monte de coisas que eu quero descobrir, mas o que tem por trás das histórias de Hércules parece impossível de se compreender. Hércules... os Argonautas... o Velocino de Ouro... O segredo da transformação de chumbo em ouro que os alquimistas guardavam... e tantas outras coisas. A impressão de quem lê é que tudo isso é pura imaginação de quem escreveu. Na verdade, eu acho que deve ter algum segredo comum a todas essas histórias – discursava Eugene, enquanto gesticulava. – Mas que segredo é esse? O que será que tem por trás das palavras dos alquimistas? O que é essa tal Pedra Filosofal? Às vezes eu acho que vou ficar louco de tanto procurar e não achar nada. – Procure manter a calma e o equilíbrio, Eugene – disse o Sr. Cayler pondo a mão sobre a cabeça do rapaz e despenteando-o carinhosamente. – Qual é a sua idade, filho? – Vinte e cinco. – Você se parece muito com o seu avô. – Meu avô? O senhor conheceu o meu avô? – perguntou, com grande espanto. – Ah! Sim, meu filho. Eu o conheci – respondeu o Sr. Cayler, enquanto saía de trás do balcão e colocava-se à frente de 26


Eugene. – Ele frequentou esta livraria durante muitos anos. Nós nos tornamos grandes amigos e, acredite, sinto falta do velho Camille. – E como o senhor sabe que eu sou o neto dele? – quis saber Eugene, cada vez mais curioso. – Sei, porque você era o assunto preferido do seu avô. Ele o considerava como o seu maior tesouro. Sempre me dizia que encontrava em você tudo aquilo que esperou um dia encontrar no filho dele, mas você conhece bem a natureza de seu pai, não é mesmo, Eugene? – É... parece que o senhor sabe muito sobre a minha família – disse Eugene, esperando que o livreiro falasse mais sobre seu avô. – Eu não diria que sei muito. Sei apenas aquilo que Camille me contava. Nós convivemos nos últimos trinta anos da vida do seu avô e compartilhamos dos mesmos ideais e das mesmas esperanças. Lamentavelmente, o tempo dele acabou sem que tivesse conseguido realizar seu último grande desejo. “Trinta anos? Mas esse livreiro não parece ser muito velho”. – Senhor Cayler, gostaria de lhe fazer duas perguntas, posso? – Vá em frente, filho. – Em primeiro lugar... bom... quantos anos o senhor tem? – perguntou, receando ter sido indiscreto. – Quantos você acha que eu tenho? – Sessenta e alguma coisa. – Se você acha assim, para mim está ótimo – respondeu o livreiro levantando as mãos e esboçando um largo sorriso. – Desculpe, acho que eu fui inconveniente. – Não se incomode, Eugene. Não ligo para isso. Mas diga, qual é a segunda pergunta? – Qual teria sido esse último grande desejo do meu avô, que o senhor mencionou? Aquela pergunta, obviamente, já era esperada e de certa forma Eugene fora conduzido a fazê-la. 27


O Sr. Cayler ficou em silêncio por um instante, reconhecendo em Eugene a mesma expressão que vira um dia... – Espere aqui um momento, eu já volto – disse o Sr. Cayler, retirando-se. Para Eugene, aquilo tudo parecia um tanto estranho já que ele frequentava a livraria há um bom tempo e o Sr. Cayler, ao que parece, escondera, deliberadamente, o fato de ter sido amigo de seu avô. Algum forte motivo deveria haver para isso. “Trinta anos de amizade; sabia que eu sou o único neto; sabia até da personalidade do meu pai. Tem algo estranho aí...”, imaginava o rapaz. Eugene, que podia ouvir os passos do Sr. Cayler no assoalho de madeira do andar superior, aguardava impaciente pela solução de algo que, na imaginação de um jovem naturalmente sonhador, já tomava contornos de mistério. A explicação não se fizera aguardar. Ao cabo de uns poucos minutos o Sr. Cayler descia trazendo consigo um envelope. – Creio que isto pertence a você – disse o livreiro, entregando a Eugene um envelope ligeiramente amarelado pela ação do tempo, mas perfeitamente liso, sem uma única marca sequer, como se tivesse sido tirado da parte de baixo de uma pilha livros ou qualquer outra coisa que lhe fizesse pressão em cima. – O que é isso? – perguntou o rapaz, com o envelope na mão. – Leia o nome do destinatário. Eugene reconheceu imediatamente a esmerada caligrafia que tantas vezes vira nas etiquetas que autenticavam os violinos de seu avô, mas que desta vez ia sobre o envelope que tinha nas mãos: Para Eugene Doré. – Eu o guardo comigo há dez anos – declarou o Sr. Cayler, enquanto Eugene apertava o envelope contra o peito. Com um semblante que já passava da mera curiosidade anterior à indignação, Eugene aproximou-se do livreiro e com uma ponta de irritação, disparou: – Afinal, quem é o senhor? Que espécie de relação teve com 28


meu avô? Se o senhor me conhece há tanto tempo, por que escondeu de mim esta carta? E por que só agora resolveu me mostrar? Por que tudo isso? O rapaz demonstrava um nervosismo crescente. Seu rosto se ruborizava e já havia sinais de lágrimas em seus olhos. – Fique calmo, meu filho, vamos nos sentar ali – disse o Sr. Cayler, indicando uma enorme mesa ovalada, rodeada por pesadas cadeiras, em geral usada pelos clientes que desejavam ler alguns capítulos dos livros que eventualmente comprariam. Sentaram-se, um de frente para o outro. Eugene, com a carta nas mãos, olhava para o livreiro esperando uma explicação satisfatória para tudo aquilo. O Sr. Cayler, sem dizer nada, levantou-se e foi buscar água. Aguardou por uns minutos até que o rapaz recobrasse a calma e o equilíbrio que seriam absolutamente necessários para o bom entendimento do que estava por vir. Não era uma tarefa das mais fáceis expor os motivos da demora em ter revelado a sua amizade com Camille e a existência da carta. – Meu caro Eugene, – começou o Sr. Cayler, lenta e carinhosamente – antes que você leia o que está escrito nessa carta, quero que saiba que seu avô foi um homem muito especial. A Natureza brindou-o com a bondade, a generosidade e a rara faculdade do amor incondicional, que faz com que aquele que a tenha, pratique o bem sem esperar reconhecimento ou recompensa de espécie alguma. Por ter essa natureza especial, ardia no coração de Camille a bendita chispa da inquietude espiritual. Deus tocou-o e depositou nele o precioso e perigosíssimo desejo da busca pela Verdade. E foi exatamente por atender a esse incontrolável chamado, que ele dedicou sua vida, seus esforços e toda a força de sua obstinação na busca dos segredos hermeticamente guardados através dos séculos e que a humanidade, com exceção de alguns, não percebe o local exato onde estão escondidos, graças à inteligência, à perspicácia e a sabedoria de seus guardiões. Enquanto ouvia as palavras do livreiro, a imagem do avô ocupava o pensamento de Eugene que, naquele momento, 29


achava impossível o preenchimento da lacuna que o velho luthier deixara em seus dias. Nunca mais teria o prazer das longas conversas noite adentro que acabaram quando acabou a vida de Camille Doré. – Quando já estava perto do fim de sua existência, – continuou o livreiro – Camille me deixou a incumbência, que aceitei de bom grado, de dar continuidade à tarefa que a morte lhe interrompera. Tenho aguardado ansiosamente por este momento, filho. – E que incumbência é essa que o senhor esperou tanto tempo para cumprir? – perguntou Eugene, cada vez mais ansioso. – Você é minha incumbência...

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Capítulo 5

Um segredo dentro de outro e de outro...

Já havia anoitecido e o trajeto de volta para casa nunca pareceu ser tão longo para Eugene como naquela noite. Estava ansioso por chegar logo e abrir o envelope que carregava. Assim como o fizera na livraria, durante todo o caminho apertava a carta contra o peito como se fosse a garantia de que não a perderia; afinal, ali estava seu avô, naquele pedaço de papel amarelado. Havia prometido ao Sr. Cayler que só leria a carta quando estivesse sozinho em seu quarto e que não comentaria com ninguém sobre sua existência. Eugene parou diante da porta de sua casa e, antes de entrar, guardou o envelope na mochila. Silenciosamente entrou, subiu as escadas e foi para o seu quarto. Acendeu a luz e ficou por um instante com o ouvido encostado à porta. Por sorte ninguém o viu chegar, assim não perderia tempo com o habitual “Olá, meu filho, por onde andou hoje?” que sua mãe costumeiramente dizia. Puxou a colcha que cobria a cama ajeitando seu travesseiro na cabeceira, tirou os tênis e sentou-se com as pernas esticadas. “Ah, vovô, vovô, – dizia Eugene, olhando o próprio nome caprichosamente escrito no envelope – como o senhor me faz falta... sua sabedoria, seu colo, sua paz e o seu equilíbrio, era que eu queria de ter agora. Será que pode ter injustiça em Deus, tirando o senhor de mim?”. Da gaveta do criado-mudo ao lado da cama, Eugene tirou uma espátula e abriu cuidadosamente o envelope. Talvez a abertura de um baú do tesouro enterrado por algum pirata de águas caribenhas não tivesse provocado tamanha ansiedade. Do envelope, Eugene tirou algumas folhas de papel pautado e imediatamente começou a ler:

Paris. 19 de abril de 1985 31


Meu querido neto, Mesmo sabendo que quando tu leres esta carta eu não estarei mais contigo, ainda assim sinto-me invadido por uma serena alegria que advém da certeza de que se tu estás lendo o que te escrevo, é porque aquele que guardava esta carta julgou que tu estás pronto e que demonstrastes as qualidades necessárias para abrir este envelope e conhecer um pouco mais sobre este teu avô que tem algo a deixar para ti. No momento em que escrevo esta carta, a tua pouca idade não permite que eu te faça determinadas revelações. Luto intensamente contra o desejo que me empurra a contar-te aquilo que ainda não estás preparado para ouvir. Seria semear em campo estéril, quando falta tão pouco para que a terra esteja propícia a ser fecundada. O tempo não é meu amigo. Pesa-me saber que estarei ausente quando os pedregulhos pontiagudos do caminho te ameaçarem. Eu sei, passei por eles também. Permita-me agora que te conte um pouco da história da nossa família. Em 1868 nasceu meu pai, teu bisavô, Julien Doré, no seio de uma família muito pobre. Quis o destino que meus avós morressem, vítimas da mesma febre, quando meu pai tinha apenas dez anos e por esse motivo foi internado em um orfanato. Por ser muito vivo e inteligente, meu pai destacou-se rapidamente das outras crianças e apenas dois anos depois foi admitido como aprendiz, sem remuneração, em uma oficina de luteria que havia na cidade, como parte de um programa que encaminhava cada órfão para uma profissão que garantisse sua subsistência no futuro. Pela manhã, ia para a oficina e no fim do dia voltava ao orfanato. Dedicava-se muito ao seu aprendizado, pois compreendia que, órfão, não haveria outra chance para ele fora dali. Por isso agarrou-se à oportunidade e empenhou-se o mais que podia. Quatro anos depois, o mestre luthier – ciente do talento e do caráter de meu pai – ofereceu-lhe um pequeno quarto nos fundos da oficina e um salário, se os diretores do orfanato permitissem seu desligamento da instituição. A proposta foi aceita e ele, ainda muito jovem, tomou 32


posse de sua própria vida. Meu pai gozava da confiança do proprietário da oficina, Monsieur Toussaint, e de sua esposa Marie, que o consideravam como o filho que nunca tiveram. Os anos se passaram e teu bisavô tornou-se um mestre luthier da melhor qualidade, não sem razão, pois tivera um professor da melhor qualidade. Aos vinte e quatro anos, porém, – era então o ano de 1892 – meu pai perdera seu mestre de profissão e de vida e pouco tempo depois Marie Toussaint também morrera, deixando-o outra vez sozinho no mundo. Eugene, há ocasiões na vida em que a Providência nos brinda com inestimáveis – e algumas vezes incompreensíveis – dádivas. Nesses momentos, se tivermos a dita de percebê-las, devemos aceitá-las e aproveitá-las em sua plenitude. Pois foi assim com meu pai. Pouco antes de sua morte, Albert Toussaint legou a teu bisavô a oficina e a casa onde morava com sua esposa. É a casa onde moramos, meu neto. Meu pai soube aproveitar muito bem a oportunidade que se lhe apresentou. Os negócios prosperaram e o nome Doré tornouse conhecido no mundo da luteria. Hoje os nossos violinos estão em toda a Europa porque Julien Doré, como iniciador de uma linhagem de mestres luthiers, esmerou-se em transmitir à sua descendência os segredos da fina arte que tu conheces. Mas, como já disse, as oportunidades que se nos apresentam devem ser aproveitadas em sua plenitude, no entanto, meu pai aproveitou apenas aquilo que estava imediatamente diante de seus olhos, apenas aquilo que podia compreender. Se ele tivesse a natureza que tu tens, meu neto, teria enxergado e percebido o tesouro maior que havia recebido de seu benfeitor. Uma parte da herança, aparentemente de menor valor, que recebera do velho senhor Toussaint, ficou no esquecimento, relegada ao abandono porque não despertara o menor interesse no espírito prático e imediatista de meu pai. Teu bisavô era um homem bastante ocupado. Dedicava-se sem descanso ao seu trabalho na oficina e quase não tinha tempo para a família. Minha mãe cuidou sozinha da minha educação e fez-me aprender a ler aos quatro anos de idade. Naturalmente, a precocidade e o gosto pela leitura foram decisivos para mim e logo cedo senti atração 33


pelos assuntos místicos e ocultos da vida. Após algumas décadas de estudo desses assuntos, o Destino revelou-me uma surpresa – exatamente da mesma maneira como tinha feito com o Sr. Toussaint – colocando em meu caminho aquele que iria conduzir-me por uma via difícil, mas muito desejada e solicitada em minhas orações noturnas. Prevendo que a morte me alcançaria antes que tu estivesses pronto, pedi ao bom Sr. Cayler que tomasse para si a tarefa de orientar-te, se mereceres, na busca do conhecimento oculto. Ouça-o meu neto, e breve verás, como eu vi, que ele não é apenas um simples livreiro, embora essa ocupação seja providencial para mantê-lo no anonimato, condição vital a quem professa a Arte Secreta. Enquanto escrevo estas linhas, solitário em meu quarto, esforçome por manter a imagem do teu rosto de criança em minha mente, ao mesmo tempo em que as recordações saltam todas de uma vez dos arquivos da memória. Quando te peguei nos braços pela primeira vez, recém-nascido ainda, senti a inconfundível sensação de que tu eras muito mais um presente para mim do que para teus pais. Lembro-me claramente dos teus primeiros anos, quando te acercavas de mim buscando no meu colo o carinho e a atenção que sabias que eu te daria, ou quando buscavas guarida para fugir das reprimendas de teu pai por alguma travessura que tivesses feito. Sempre fomos muito próximos, tu e eu. Vibrávamos na mesma faixa. Dentro de ti ardia a tênue chama que arde em mim ainda e que só se extinguirá com minha morte. Não me refiro à chama da própria vida, pois essa, todo ser vivo tem. Falo do especial e divino impulso que produz, no mais fundo da alma, à inquietude espiritual que, quando bem trabalhada, pode levar o homem ao mais alto dos céus e conhecer pessoalmente os mistérios de Deus e da Natureza, os segredos da Vida e da Morte. Conforme tu crescias, eu me convencia cada vez mais de que tinhas um espírito parecido com o meu: saudavelmente rebelde, contemplativo, perscrutativo, buscador de respostas para as coisas que carecem delas, intuitivo e dedicado. Porém, logo tu me surpreendeste revelando uma natureza ainda mais profunda e bela do que eu imaginava e desejava. 34


Então eu tive a certeza de que poderia deixar para ti o maior legado que alguém pode deixar para outrem: as ferramentas necessárias e uma simples indicação do caminho inequívoco que leva aquele que o percorre, sinceramente e sem temor, ao mais bem guardado de todos os segredos, cujo poder conduz seu possuidor ao incondicional domínio dos elementos e ante o qual até a própria Natureza se prostra, reverente. Gostaria eu mesmo de te conduzir pelo caminho que leva à porta secreta, mas sei que não terei tempo para isso porque logo deixarei este mundo e também porque no momento em que escrevo, tu és ainda muito jovem para tal empreitada. No entanto, sinto-me completamente tranquilo por que sei que aquele de quem recebeste esta carta fará, com infinita superioridade, a tarefa que eu não poderei fazer. Confio-te a Edward Cornellius Cayler. Rogo a Deus nas minhas orações que tu tenhas mais sorte que eu, e mais fibra, e mais força, e que saibas calar, para que não te tomem por tolo. Além disso, confia no tutor que escolhi para ti, assim como eu o fiz. Quanto à tua vida diária, abre teu coração e dedica teu trabalho e tuas penas ao Ser que habita em ti. Ajuda teu pai no atelier e aprimora-te na arte da luteria. Gostaria de seguir escrevendo e escrevendo, mas agarrar-se ao efêmero e ao perecível seria demonstrar ignorância das leis que não ignoro. É mais do que certo que tudo tem um fim; portanto, dou-te meus últimos conselhos: vivas conforme teu coração, esmera-te em tudo o que fizeres e sejas feliz, meu neto.

Daquele que muito te ama,

Camille Doré.

PS: Cuides em não derramar o azeite da lâmpada para que a luz não se apague.

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