O livreiro inglês

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O LIVREIRO INGLÊS



Renato Abilleira

O LIVREIRO INGLĂŠS Uma breve passagem pelos labirintos da Alquimia

solve et coagula

Santos - SP 2015


Abilleira de Castro, Renato Renato / Abilleira de Castro -- São Paulo 2015. 232 p. 1. Literatura Brasileira. ISBN 978-85-65826-55-6 Revisão e diagramação: Wilson Mello 2015 Impresso no Brasil

Imagem da capa: Der Bücherwurm (O rato de Biblioteca) Óleo sobre tela de Carl Spitzweg (domínio público)

Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, armazenamento ou transmissão de partes deste livro, através de quaisquer meios, sem prévia autorização por escrito.


Aos buscadores.



Sumário Avô e neto..........................................................................11 Herança a um deserdado....................................................13 Esquisitices.........................................................................19 A livraria............................................................................21 Um segredo dentro de outro e de outro..............................29 Semelhanças.......................................................................35 Uma sapateira ruiva............................................................39 Os primeiros choques.........................................................45 Cayler, o livreiro.................................................................61 Alquimia e alquimistas.......................................................65 Queijo, tomate e a cabeça no mundo da lua.......................83 Objetividade......................................................................91 O primeiro degrau..............................................................93 Ladrões e alfaiates...............................................................99 Máquinas.........................................................................107 A pequena lista.................................................................117 Um novo item..................................................................119 O fio à meada...................................................................127 Um velho baú...................................................................131 Leonardo..........................................................................139 Coisas impossíveis............................................................145 Dedicação integral............................................................147 Tão exposto e tão oculto...................................................149 As primeiras luzes.............................................................171 Um pouco mais perto da China.......................................179 Insólitas conclusões..........................................................193 O Inferno.........................................................................197 Lúcifer..............................................................................205 A Monalisa.......................................................................221 Ela....................................................................................227 Longo caminho................................................................233 O oculto dever permanecer assim.....................................241 Uma segunda carta...........................................................245 Epílogo – Um misterioso livreiro chamado Cayler............251



Capítulo 1 Avô e neto

Paris, 1997.

O inverno chegara a seu termo havia duas semanas, mas nem o frio que ainda restava da estação que se fora diminuía o movimento dos cafés sempre lotados. Não havia menos barracas coloridas na Place du Tertre; o Louvre não recebia menos visitantes e os artistas de rua continuavam a pintar os rostos dos turistas, ávidos por lembranças da cidade-luz. Paris celebrava a primavera, como sempre. Longe do burburinho do circuito turístico da metrópole, o pouco movimento e a tranquilidade quase bucólica da Rue de La Pierre-Sous-Terre em nada se assemelhava a Paris cosmopolita. Na metade da primeira das três quadras estava a casa da família Doré, que até seria muito parecida com as outras não fosse pela hera perfeitamente aparada que estendia seu tapete vertical sobre a fachada dos dois pavimentos do imóvel, com exceção da porta, das janelas, do número 27 pintado de branco e da antiga e imputrescível placa de madeira entalhada, onde se lia: Camille Doré Luthier Camille Antoine Doré falecera há doze anos, mas em respeito ao homem e à sua memória, seu filho, Jean-Jacques, manteve a placa que anunciava a profissão de seu pai – e a sua própria – de fabricante de violinos. O ofício de luthier, que Camille Doré aprendera em casa, fora pacientemente transmitido a seu filho e mais tarde ao único neto, Eugene, mesmo que a idade e a artrite tivessem dificultado sensivelmente a tarefa de ensinar uma arte tão delicada e detalhista como a luteria. Eugene, já com vinte e cinco anos, guardava de seu avô a 11


terna imagem de um homem calmo e contemplativo que durante toda a sua infância acordava-o pela manhã e o convidava a fazer uma pequena oração matinal para “ajudar a nos aproximarmos de Deus”, como dizia. Aos olhos do menino, aquele era um verdadeiro sábio que respondia a todas as perguntas e satisfazia todas as curiosidades. Quando não podia ou não sabia responder a uma questão qualquer, Camille incumbia o garoto da responsabilidade de meditar sobre o assunto, prometendo que faria o mesmo. No dia seguinte, reuniam-se novamente para trocar suas experiências e conclusões. Eugene não podia imaginar que com isso o velho artesão procurava despertar-lhe o hábito da contemplação e a atração pela serenidade e pela meditação. Não era uma tarefa das mais fáceis porque, como qualquer menino, Eugene também tinha interesses puramente infantis e os atendia prontamente quando algum amigo da escola gritava seu nome em frente à sua casa. No entanto, o experiente Sr. Doré tinha certeza que Eugene era um garoto especial, a julgar pelas conversas que tinham e por seu crescente interesse pelas questões filosóficas que frequentemente abordava. Camille Doré dedicara, a par da luteria, toda sua existência ao estudo dos assuntos místicos e ocultos da vida, com especial atenção à leitura e releitura contínua dos textos de alquimia da Idade Média, na esperança que desse ato repetitivo surgisse a centelha de luz que o levasse a correta interpretação de uma literatura tão complexa e de dificílima compreensão. Árdua tarefa que poucos realizaram com sucesso. Embora a relação entre Camille e Eugene fosse muito próxima e, em geral, bem humorada, não raro o menino percebia nos olhos de seu avô uma profunda e inexplicável tristeza. Era como se o velho artesão houvesse perdido algo de extremo valor e que fosse irrecuperável ou insubstituível. Por que um homem realizado profissionalmente e pessoalmente como ele era, sutilmente transparecesse tamanha tristeza? “Acho que não é 12


pela falta da vovó. Ela já morreu há tanto tempo” – raciocinava o garoto. A profissão de luthier rendera a Camille o prazer e os frutos esperados, portanto, para o menino, não parecia que fosse nada relacionado ao trabalho. Havia algo, sim, mas que ele não podia perceber ou entender facilmente. Eugene não se atrevia a abordar o assunto com seu avô, temendo tocar em alguma ferida que o ancião procurasse esquecer e que o tempo, aparentemente, não havia cicatrizado. Os anos passavam e, na maior parte do dia, avô e neto eram inseparáveis. O jovem aprendia as lições que o tempo e a vida ensinaram ao velho. O velho reaprendia com o jovem as lições que a vida e o tempo o fizeram esquecer. Um entregava de bom grado a sabedoria e a experiência. O outro oferecia, inocentemente, a paz e a pureza. Eugene cresceu e passou de aprendiz a talentoso luthier, seguindo os passos e as orientações que recebera do avô. Pobre avô. Tão sábio e tão triste. Morreu aos oitenta e um anos, quando Eugene contava apenas quinze. “Levou embora o motivo secreto da sua tristeza” – pensava o jovem Eugene.

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Capítulo 2

Herança a um deserdado Da parede do hall de entrada do atelier dos Doré, três gerações de mestres luthiers contemplavam aqueles que ali entrassem. Pendurado a cerca de um metro e oitenta de altura, um óleo sobre tela de autor anônimo, abria, da esquerda para a direita, a pequena galeria de família: o bisavô de Eugene, em pé, corpo inteiro, segurando um violino à altura do peito. Foi o pioneiro da linhagem de artesãos. Aos pés da moldura dourada trabalhada em baixo relevo, havia a inscrição: Julien Philippe Doré O Iniciador. A ideia de chamar Julien de “Iniciador” fora de seu filho Camille e por muitos anos pareceu a Eugene que aquele termo referia-se apenas ao fato de Julien Doré ter sido o primeiro a se dedicar ao ofício que ao longo das décadas seria abraçado pelas gerações seguintes. Mais tarde Eugene descobriria que não era só isso. Julien Doré era um homem austero, muito sério e “exigente demais”, nas palavras de Camille. Dos doze aos vinte e quatro anos, trabalhou para um famoso luthier de Paris, Monsieur Toussaint, inicialmente como aprendiz e logo, devido ao seu talento, passou a assistente direto de seu instrutor. Aos vinte e três anos alcançara a categoria de mestre luthier e praticamente assumira a direção do atelier, porque seu professor, já velho e cansado, diminuira sensivelmente o ritmo de atividade e passava mais tempo em casa do que no trabalho. A casa do Sr. Toussaint era contígua à oficina, havendo apenas uma porta de ligação entre as duas e Julien, que já se acostumara com as ausências frequentes do mestre, ia vê-lo todas as vezes que ele não aparecia no atelier. Numa dessas ocasiões, 15


a Sra. Toussaint, que sempre fora gentil e sorridente, recebeu Julien com ares de tristeza e apreensão. – Ele não tem passado bem. Ficou o dia inteiro deitado, sem ânimo para nada e não quis se alimentar. – comentou a dedicada e preocupada esposa. – Posso vê-lo, senhora? – solicitou o rapaz. – Sim, filho, ele está no quarto. Vá até lá. Julien bateu levemente na porta, abriu-a e encontrou seu mestre deitado na cama, banhado por uma luz dourada do final do dia que vinha da janela logo acima de sua cabeça. Ao ver seu discípulo, o homem tentou sentar, mas as forças já não lhe respondiam como no passado. Fez um sinal para Julien, que prontamente o ajudou a erguer o corpo e sentar na cama. – Mestre, o que houve com o senhor? Está doente? – perguntou o rapaz. – Precisa de alguma coisa? – Obrigado Julien, mas estou bem. Não te preocupes. Apenas sigo o curso natural das coisas. Ainda não chegou o meu momento de sobrepujar a natureza e vencer o Anjo da Morte. – Perdoe-me senhor, mas não entendi. – Não é nada, filho. O velho mestre respirava com dificuldade e, por alguns segundos, fechou os olhos e ficou assim, tomando fôlego para as próximas palavras. – Meu caro Julien, – continuou o Sr. Toussaint – é muito bom que estejas aqui. Já ia mandar te chamar de qualquer forma. Há algo que quero te dizer: eu não estou doente como pensas, no entanto, estou consciente de que me encontro num momento da vida em que me resta apenas esperar que os meus laços com este mundo sejam cortados. A serenidade e o equilíbrio que aprendi a cultivar durante a vida emprestam-me agora a tranquilidade que preciso para percorrer calmamente os dias que ainda tenho. As palavras do Sr. Toussaint carregavam um profundo tom de melancolia, embora tentasse manter a serenidade e a firmeza diante de seu discípulo. – Quero que saibas, meu filho, que desde o dia em que vieste 16


trabalhar e aprender comigo, percebi em ti o talento natural para a nobre arte da luteria. Dediquei-te especial atenção e apreço como o faria com um filho, se o tivesse. No entanto, Deus, em sua misericórdia infinita, não me esqueceu e enviou-me tu, Julien, que não me decepcionaste, sendo aluno exemplar e trabalhador incansável, digno de toda a confiança. – Agradeço vossas palavras, mestre. – Não precisas agradecer, filho, é apenas a verdade. Julien abaixou um pouco a cabeça, como quem agradece com uma ligeira reverência. – Bem, esses dias que não tenho ido à oficina serviram-me como oportunidade para refletir e, com a ajuda inestimável de minha esposa, tomar as providências necessárias para tornar legais as últimas decisões que tomo na vida: deixo para ti, Julien Doré, meu atelier e tudo o que há nele. Deixo também minha casa e tudo o que há nela. Tu encontrarás na caixa que minha esposa te entregará, todos os documentos que atestam o que estou te dizendo. Tudo já está legalmente registrado em teu nome, restando apenas que exares tua firma nos papeis. Eu desejo ardentemente que sigas com maestria e perfeição na arte que escolheste e que o nome Doré seja visto gravado nos melhores violinos da Europa. O rapaz olhava para o velho, estático, sem dizer uma palavra. – Julien, meu bom Julien, - disse o ofegante Sr. Toussaint – resta pouco tempo a este teu amigo que insistes em chamar de mestre. Portanto, dou-te uns conselhos, ou melhor, ordens: procura ser honesto, sempre, com aqueles que te cercam e principalmente contigo mesmo; cuida dos teus afazeres e dos teus planos com a maior atenção que puderes e, principalmente, dedica pelo menos uma pequena parte do dia à tua alma. Vou te contar um segredinho: quando rezares, reza para dentro e não para fora. Deus não está naquele céu que tem nuvens e que é azul. Ele está em outro “céu”, que também é no alto, mas que não é necessário olhar para cima para enxergá-lo. No mais, cultiva as boas amizades e fuja das tabernas e do jogo. Ah, outra coisa... 17


Construa grandes violinos – disse sorrindo. – Agora vá, Julien, o atelier precisa da tua presença. – Senhor... – disse Julien, engasgando. – Conversaremos depois, filho. Agora vá. Julien, ainda atordoado, despediu-se beijando a mão daquele que consideraria sempre como seu mestre. Na semana seguinte, cumpriu a triste tarefa de enterrar seu professor e amigo numa sepultura simples, contendo apenas um nome e duas datas. Assim ele queria e assim foi feito. Durante o ano que se seguiu, Julien cuidou da viúva, Mme Marie Toussaint, e dos negócios de seu mestre, como havia prometido momentos antes de sua morte. O trabalho no atelier caminhava bem e as encomendas, como sempre, eram entregues na data prometida, mantendo a mesma qualidade e esmero que o Sr. Toussaint dispensava aos instrumentos que fabricava. Por fim, na véspera de Natal daquele ano a Sra. Toussaint chamou Julien e entregou-lhe a caixa da qual seu mestre havia falado. – Saiba que eu compartilho da decisão que meu marido tomou ao te deixar tudo o que tinha – disse a Sra. Toussaint. – Não penses que estarás tirando alguma coisa de mim, que seria a herdeira natural dos bens de teu mestre. Sinto que muito em breve não precisarei mais disso. Já não tenho mais nada a perder. Meu marido levou consigo tudo o que eu tinha na vida. Entretanto, há mais uma coisa que ele queria te deixar e preferiu que eu mesma te entregasse e te instruísse quanto à importância do legado. – Mas, o que mais teria meu mestre e protetor para me dar que já não tenha dado? – disse Julien. – O que sou hoje devo a ele e o que serei no futuro, também deverei a ele. – Há algo mais que, no entender de meu marido, poderá ser mais valioso que tudo o que ele já te deixou. Dependerá de ti, da tua paciência e da tua vontade. Refiro-me a certos livros e manuscritos que teu mestre guardou durante muitos anos e creio que agora chegou a hora de mudarem de dono. Fui encarregada de te advertir que, embora os livros agora sejam 18


teus e, portanto, tu podes fazer o que quiseres com eles, tu deves lê-los, relê-los e estudá-los com a maior atenção que puderes. No início, os textos serão incompreensíveis para ti, exatamente porque foram deliberadamente escritos dessa forma para que seu verdadeiro conteúdo permanecesse velado. Porém, filho, se ao leres, aquelas páginas te tocarem fundo, se Deus insuflar em teu coração o sopro inconfundível do anelo pela sabedoria, sugiro que empregues todas as tuas forças na busca do que está por trás das palavras. Acredite, as portas dos grandes mistérios do Universo estarão diante de ti esperando que tu as abras, porém a chave para abri-las terás que conseguir pelo teu próprio esforço. Julien apenas ouvia e balançava a cabeça positivamente. – No entanto, – continuou a Sra. Toussaint – essa é uma senda difícil de percorrer sozinho, por isso se tu te sentires suficientemente intrépido para segui-la, poderás contar com a ajuda de um homem que foi o grande amigo e instrutor de meu marido. O nome e o endereço dele em Paris estão escritos em um papel guardado junto com os livros. Se o procurares, menciona o nome Albert Toussaint e ele te receberá. Sei que tudo isso parece estranho para ti agora e entendo a tua perplexidade, porém teu mestre queria não apenas que tu desses seguimento à fina arte da manufatura de violinos, mas nutria também a esperança de que a sabedoria contida naqueles livros, oculta pelo véu das alegorias, encontrasse em ti o solo propício para crescer e dar frutos, já que esse é o fim último para o qual foram escritos. As palavras da Sra. Toussaint deixaram em Julien a sensação de que receber aquele presente era uma responsabilidade maior do que ele desejava ter, mas o respeito à memória de seu mestre e aos seus últimos desejos eram palavras de ordem para o jovem artesão. – Porém, – disse a viúva – se o que vier daquelas páginas não te tocar, nem provocar em ti o desejo pela busca do Oculto e do Secreto, guarda os livros e não comenta com ninguém que os possui. Espera o tempo passar e observa ao teu redor. Quando encontrares alguém que demonstre verdadeiro interesse pela 19


Sabedoria Oculta, entrega este legado e não te esqueças de dizer a quem os receber as mesmas coisas que estou te dizendo agora. Entenda, meu rapaz, que os segredos sabiamente escondidos nestes livros representam uma espada muito afiada e de dois gumes. É preciso ter atenção. Aquele que consegue romper a crosta das palavras e libertar-lhes o verdadeiro sentido depararse-á, imediatamente, com um duro e áspero caminho sem volta. Se tu intentares e, por fim, conseguires descobrir o que os sábios do passado esconderam naquelas páginas, certamente reconhecerás o caminho ao qual me refiro. Ali estão os livros – disse a Sra. Toussaint indicando uma enorme mala de couro ao lado da lareira. – Rogo a Deus que sejas digno deles. – Não sei o que dizer, senhora. Percebo a importância que estes livros tinham para o Sr. Toussaint e, embora não me sinta merecedor, aceito recebê-los. Julien quase não pôde erguer a mala do chão, tamanho era o peso daquilo que ela continha. “Ou seria o peso da responsabilidade?”, pensava o jovem herdeiro. No dia seguinte, Julien encontrou Marie Toussaint, já sem vida, deitada na cama em que morreu seu marido.

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Capítulo 3 Esquisitices

Último na linhagem dos Doré, Eugene era um jovem fechado, de pouca conversa, adepto das caminhadas solitárias pelas ruas de Paris, sempre atento a alguma loja de livros velhos que eventualmente encontrasse pelo caminho. Dedicava apenas metade do dia – conforme acordo com seu pai – ao trabalho no atelier dos Doré; a outra metade e parte da noite, atendia aos apelos da sua natureza introspectiva, vagando por aí ou ficando em seu quarto, mergulhado “naqueles livros esquisitos”, segundo seu pai, monsieur Jean-Jacques. As esquisitices dos livros de Eugene era o que mais o atraía neles. Jean-Jacques não era capaz de compreender como é que seu filho podia gostar tanto daquelas “coisas que não existem; fantasias”. Mas para o rapaz, aquelas histórias de cavaleiros de armaduras, magos, druidas celtas, espadas encantadas e alquimistas eram muito mais interessantes que a literatura moderna, além disso, guardavam, em síntese, estreita semelhança com as mitologias grega, nórdica e romana, que constituíam boa parte do gosto literário de Eugene. Os heróis de antes de Cristo emprestavam suas aventuras e sua coragem aos personagens da Idade Média e suas batalhas; Hercules revivia suas epopeias na pele dos alquimistas medievais e seus laboratórios secretos. Eugene, naturalmente, compreendia que aquelas histórias fantásticas eram mera simbologia que ocultavam conhecimentos que ele não conseguia descobrir. “Talvez o vovô soubesse”, pensava. Se havia alguém que realmente fizesse falta a Eugene, esse alguém era seu avô. Camille Doré certamente era o responsável pela natureza perscrutativa do seu neto. As longas e agradáveis conversas, temperadas sempre com alguma alusão as mil e uma noites ou aos cavaleiros da Távola Redonda, faziam brilhar os olhos do menino atento a cada palavra. E quando adormecia no colo do 21


avô, num instante pulava da realidade ao sonho e lá continuava a aventura, forjando seus próprios heróis e criando novos desfechos às histórias do velho Camille.

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Capítulo 4 A livraria

Na galeria de família, o retrato de Camille Doré ficava à direita do de Julien e à esquerda do de Jean-Jacques. Embora Eugene também fosse luthier, o seu retrato só iria para a parede – segundo a tradição da família – quando seu pai morresse e ele passasse a assinar os instrumentos. Regra instituída por Julien. O pai de Eugene era um homem extremamente prático, obstinado pelo trabalho e pela manutenção do bom nome do Atelier Doré que outrora seu avô Julien recebera de um benfeitor de quem Jean-Jacques tinha pouquíssimas informações e cuja história não fora abordada com maiores detalhes pelo seu pai. Camille tinha razões para ter sido tão reticente a respeito da vida de Monsieur Toussaint. Desde a juventude, Jean-Jacques demonstrava marcada tendência pela busca da fama de grande luthier e dos dividendos que essa posição pudesse render, portanto, bastava saber que seu avô recebera a herança de um homem à beira da morte e que não tinha descendentes a quem deixar seus bens. Isso era o suficiente. O trabalho de luthier não era exatamente uma profissão apaixonante para Eugene, assim como o era para seu pai, mas ele não reclamava da sorte. Trabalhava com vontade, gostava do que fazia e se preocupava em empregar o maior esmero possível aos violinos que fabricava, embora não os assinasse. Tinha talento para a arte, mas ainda assim faltava alguma coisa na vida do rapaz que ele mesmo não conseguia saber o que era. Havia, desde menino, uma profunda inquietude em Eugene, que somente era percebida pelo velho Camille. Mas seu avô já se fora e Eugene definitivamente sentia-se sozinho em casa. Seu pai era ocupado demais, materialista demais e insensível a qualquer coisa que não fosse produzir mais para ganhar mais. Sua mãe, embora amorosa e preocupada, vivia sempre muito atarefada com a casa e com o marido. Na verdade, só havia uma pessoa que 23


compreendia Eugene: Isabelle, sua bela e ruiva namorada. Eram iguais em tudo, nos desejos e nos projetos de vida. Ardia-lhes a chama do anseio pelo desconhecido, pelo misterioso, por tudo o que não tinha explicação racional. Eles não eram racionais. Por essas razões, completavam-se absolutamente. Nada lhes faltava. Sabiam o pensamento um do outro apenas com uma troca de olhares. Desejavam as mesmas coisas e, portanto, buscavam as mesmas coisas. Como fazia quase todos os dias, – à exceção daqueles em que a chuva o impedisse – Eugene saiu de casa, mochila às costas, para caminhar e, como de costume, mergulhar dentro de si mesmo em busca de qualquer coisa que o ajudasse a satisfazer as inquietudes e ansiedades que carregava consigo. Os caminhos, quase sempre repetitivos, em geral terminavam na casa de Isabelle ou à beira do Sena ou em alguma livraria pouco frequentada pelos amantes da literatura moderna. Naquela tarde os pés do rapaz o levaram por um caminho que já conheciam muito bem: a Livraria Cayler. Aquele certamente era o local menos procurado de Paris. Comercializava apenas livros que pouco interessava ao grande público: mitologia em geral, filosofia, edições francesas dos clássicos da alquimia medieval, literatura épica hindu e egípcia e coisas afins. “Esse Sr. Cayler deve ter alguma outra fonte de renda, porque se dependesse do volume de vendas da sua livraria, morreria de fome”, pensava Eugene. Edward Cornellius Cayler era um inglês que aparentava ter cerca de sessenta e poucos anos, mas nem mesmo seus clientes mais antigos sabiam há quanto tempo ele e sua esposa viviam na França. Tinham uma livraria instalada no andar térreo de uma casa de três pavimentos da Rue Nicolas Flamel. Moravam em cima e trabalhavam em baixo. Simbologia bastante eloquente para os que podem entender! O Sr. Cayler era um homem de poucos amigos. Não que fosse averso ao convívio humano, mas as distrações sociais não lhe atraíam e não lhe faziam falta. Preferia a companhia de um 24


bom livro à fumaça dos cigarros nos cafés de Paris. Agradavalhe mais conversar com uma criança do que aguentar a ladainha enfadonha dos intelectuais. Por tudo isso era um homem retirado, discreto e dedicado a seus afazeres de livreiro, ainda que fossem poucos. Naquela tarde, a sineta pendurada no alto da porta da Livraria Cayler anunciara a entrada de mais um cliente. Eugene fechou a porta atrás de si e caminhou até o balcão que tinha a aparência de ser tão antigo quanto a própria Paris. O Sr. Cayler encontrava-se de costas para a entrada, espanando o pó de uma prateleira alta, enquanto sua mulher, Catherine Cayler, retirava alguns livros de uma caixa de papelão que havia chegado pelo correio naquele dia. – Olá, filho – disse o livreiro, sem virar-se para ver quem era. – Oi, senhor Cayler. Como sempre, o senhor já sabia que era eu, não é? Será que algum dia vai me contar como faz isso? – Um dia talvez, filho. – Eu sei esperar – respondeu Eugene. – Como vai, senhora Cayler? – Muito bem, filho. – O senhor tem alguma coisa para mim? Chegou o meu livro? – Sim para a primeira pergunta e não para a segunda. – Bem, se o meu livro não chegou o que é que o senhor tem para mim? – Antes, podemos conversar um pouco? – Claro que sim – respondeu Eugene, com o sorriso sincero de sempre. O Sr. Cayler desceu os degraus da pequena escada de madeira onde estava e a encaixou embaixo do balcão. Abriu uma gaveta e guardou o espanador que tinha na mão. Tudo sem pressa alguma. A serenidade e a calma eram características do livreiro e Eugene admirava isso. – Como tem passado, meu rapaz? – perguntou o livreiro. 25


– Se a rotina diária é passar bem, então eu tenho passado bem. – Não desanime da vida, filho. Você é muito novo ainda. Além disso, eu tenho novidades. – Que bom. E o que seria? Antes de começar a falar, o livreiro ficou alguns segundos olhando fixamente para os olhos de Eugene, que esperava. – Ao longo dos últimos anos, – disse o Sr. Cayler – tenho visto que os seus interesses literários são de alta qualidade, a julgar pelos livros que eu já lhe vendi. Afinal, não é todo mundo que se interessa por Dante, Platão e Homero, por exemplo. E o que dizer da história dos Doze Trabalhos de Hércules? Você já leu três publicações de diferentes autores sobre o assunto. Eu sei, afinal, fui eu que vendi pra você. Há algo que quer descobrir e que ainda não conseguiu? – Tem um monte de coisas que eu quero descobrir, mas o que tem por trás das histórias de Hércules parece impossível de se compreender. Hércules... os Argonautas... o Velocino de Ouro... O segredo da transformação de chumbo em ouro que os alquimistas guardavam... e tantas outras coisas. A impressão de quem lê é que tudo isso é pura imaginação de quem escreveu. Na verdade, eu acho que deve ter algum segredo comum a todas essas histórias – discursava Eugene, enquanto gesticulava. – Mas que segredo é esse? O que será que tem por trás das palavras dos alquimistas? O que é essa tal Pedra Filosofal? Às vezes eu acho que vou ficar louco de tanto procurar e não achar nada. – Procure manter a calma e o equilíbrio, Eugene – disse o Sr. Cayler pondo a mão sobre a cabeça do rapaz e despenteando-o carinhosamente. – Qual é a sua idade, filho? – Vinte e cinco. – Você se parece muito com o seu avô. – Meu avô? O senhor conheceu o meu avô? – perguntou, com grande espanto. – Ah! Sim, meu filho. Eu o conheci – respondeu o Sr. Cayler, enquanto saía de trás do balcão e colocava-se à frente de 26


Eugene. – Ele frequentou esta livraria durante muitos anos. Nós nos tornamos grandes amigos e, acredite, sinto falta do velho Camille. – E como o senhor sabe que eu sou o neto dele? – quis saber Eugene, cada vez mais curioso. – Sei, porque você era o assunto preferido do seu avô. Ele o considerava como o seu maior tesouro. Sempre me dizia que encontrava em você tudo aquilo que esperou um dia encontrar no filho dele, mas você conhece bem a natureza de seu pai, não é mesmo, Eugene? – É... parece que o senhor sabe muito sobre a minha família – disse Eugene, esperando que o livreiro falasse mais sobre seu avô. – Eu não diria que sei muito. Sei apenas aquilo que Camille me contava. Nós convivemos nos últimos trinta anos da vida do seu avô e compartilhamos dos mesmos ideais e das mesmas esperanças. Lamentavelmente, o tempo dele acabou sem que tivesse conseguido realizar seu último grande desejo. “Trinta anos? Mas esse livreiro não parece ser muito velho”. – Senhor Cayler, gostaria de lhe fazer duas perguntas, posso? – Vá em frente, filho. – Em primeiro lugar... bom... quantos anos o senhor tem? – perguntou, receando ter sido indiscreto. – Quantos você acha que eu tenho? – Sessenta e alguma coisa. – Se você acha assim, para mim está ótimo – respondeu o livreiro levantando as mãos e esboçando um largo sorriso. – Desculpe, acho que eu fui inconveniente. – Não se incomode, Eugene. Não ligo para isso. Mas diga, qual é a segunda pergunta? – Qual teria sido esse último grande desejo do meu avô, que o senhor mencionou? Aquela pergunta, obviamente, já era esperada e de certa forma Eugene fora conduzido a fazê-la. 27


O Sr. Cayler ficou em silêncio por um instante, reconhecendo em Eugene a mesma expressão que vira um dia... – Espere aqui um momento, eu já volto – disse o Sr. Cayler, retirando-se. Para Eugene, aquilo tudo parecia um tanto estranho já que ele frequentava a livraria há um bom tempo e o Sr. Cayler, ao que parece, escondera, deliberadamente, o fato de ter sido amigo de seu avô. Algum forte motivo deveria haver para isso. “Trinta anos de amizade; sabia que eu sou o único neto; sabia até da personalidade do meu pai. Tem algo estranho aí...”, imaginava o rapaz. Eugene, que podia ouvir os passos do Sr. Cayler no assoalho de madeira do andar superior, aguardava impaciente pela solução de algo que, na imaginação de um jovem naturalmente sonhador, já tomava contornos de mistério. A explicação não se fizera aguardar. Ao cabo de uns poucos minutos o Sr. Cayler descia trazendo consigo um envelope. – Creio que isto pertence a você – disse o livreiro, entregando a Eugene um envelope ligeiramente amarelado pela ação do tempo, mas perfeitamente liso, sem uma única marca sequer, como se tivesse sido tirado da parte de baixo de uma pilha livros ou qualquer outra coisa que lhe fizesse pressão em cima. – O que é isso? – perguntou o rapaz, com o envelope na mão. – Leia o nome do destinatário. Eugene reconheceu imediatamente a esmerada caligrafia que tantas vezes vira nas etiquetas que autenticavam os violinos de seu avô, mas que desta vez ia sobre o envelope que tinha nas mãos: Para Eugene Doré. – Eu o guardo comigo há dez anos – declarou o Sr. Cayler, enquanto Eugene apertava o envelope contra o peito. Com um semblante que já passava da mera curiosidade anterior à indignação, Eugene aproximou-se do livreiro e com uma ponta de irritação, disparou: – Afinal, quem é o senhor? Que espécie de relação teve com 28


meu avô? Se o senhor me conhece há tanto tempo, por que escondeu de mim esta carta? E por que só agora resolveu me mostrar? Por que tudo isso? O rapaz demonstrava um nervosismo crescente. Seu rosto se ruborizava e já havia sinais de lágrimas em seus olhos. – Fique calmo, meu filho, vamos nos sentar ali – disse o Sr. Cayler, indicando uma enorme mesa ovalada, rodeada por pesadas cadeiras, em geral usada pelos clientes que desejavam ler alguns capítulos dos livros que eventualmente comprariam. Sentaram-se, um de frente para o outro. Eugene, com a carta nas mãos, olhava para o livreiro esperando uma explicação satisfatória para tudo aquilo. O Sr. Cayler, sem dizer nada, levantou-se e foi buscar água. Aguardou por uns minutos até que o rapaz recobrasse a calma e o equilíbrio que seriam absolutamente necessários para o bom entendimento do que estava por vir. Não era uma tarefa das mais fáceis expor os motivos da demora em ter revelado a sua amizade com Camille e a existência da carta. – Meu caro Eugene, – começou o Sr. Cayler, lenta e carinhosamente – antes que você leia o que está escrito nessa carta, quero que saiba que seu avô foi um homem muito especial. A Natureza brindou-o com a bondade, a generosidade e a rara faculdade do amor incondicional, que faz com que aquele que a tenha, pratique o bem sem esperar reconhecimento ou recompensa de espécie alguma. Por ter essa natureza especial, ardia no coração de Camille a bendita chispa da inquietude espiritual. Deus tocou-o e depositou nele o precioso e perigosíssimo desejo da busca pela Verdade. E foi exatamente por atender a esse incontrolável chamado, que ele dedicou sua vida, seus esforços e toda a força de sua obstinação na busca dos segredos hermeticamente guardados através dos séculos e que a humanidade, com exceção de alguns, não percebe o local exato onde estão escondidos, graças à inteligência, à perspicácia e a sabedoria de seus guardiões. Enquanto ouvia as palavras do livreiro, a imagem do avô ocupava o pensamento de Eugene que, naquele momento, 29


achava impossível o preenchimento da lacuna que o velho luthier deixara em seus dias. Nunca mais teria o prazer das longas conversas noite adentro que acabaram quando acabou a vida de Camille Doré. – Quando já estava perto do fim de sua existência, – continuou o livreiro – Camille me deixou a incumbência, que aceitei de bom grado, de dar continuidade à tarefa que a morte lhe interrompera. Tenho aguardado ansiosamente por este momento, filho. – E que incumbência é essa que o senhor esperou tanto tempo para cumprir? – perguntou Eugene, cada vez mais ansioso. – Você é minha incumbência...

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Capítulo 5

Um segredo dentro de outro e de outro...

Já havia anoitecido e o trajeto de volta para casa nunca pareceu ser tão longo para Eugene como naquela noite. Estava ansioso por chegar logo e abrir o envelope que carregava. Assim como o fizera na livraria, durante todo o caminho apertava a carta contra o peito como se fosse a garantia de que não a perderia; afinal, ali estava seu avô, naquele pedaço de papel amarelado. Havia prometido ao Sr. Cayler que só leria a carta quando estivesse sozinho em seu quarto e que não comentaria com ninguém sobre sua existência. Eugene parou diante da porta de sua casa e, antes de entrar, guardou o envelope na mochila. Silenciosamente entrou, subiu as escadas e foi para o seu quarto. Acendeu a luz e ficou por um instante com o ouvido encostado à porta. Por sorte ninguém o viu chegar, assim não perderia tempo com o habitual “Olá, meu filho, por onde andou hoje?” que sua mãe costumeiramente dizia. Puxou a colcha que cobria a cama ajeitando seu travesseiro na cabeceira, tirou os tênis e sentou-se com as pernas esticadas. “Ah, vovô, vovô, – dizia Eugene, olhando o próprio nome caprichosamente escrito no envelope – como o senhor me faz falta... sua sabedoria, seu colo, sua paz e o seu equilíbrio, era que eu queria de ter agora. Será que pode ter injustiça em Deus, tirando o senhor de mim?”. Da gaveta do criado-mudo ao lado da cama, Eugene tirou uma espátula e abriu cuidadosamente o envelope. Talvez a abertura de um baú do tesouro enterrado por algum pirata de águas caribenhas não tivesse provocado tamanha ansiedade. Do envelope, Eugene tirou algumas folhas de papel pautado e imediatamente começou a ler:

Paris. 19 de abril de 1985 31


Meu querido neto, Mesmo sabendo que quando tu leres esta carta eu não estarei mais contigo, ainda assim sinto-me invadido por uma serena alegria que advém da certeza de que se tu estás lendo o que te escrevo, é porque aquele que guardava esta carta julgou que tu estás pronto e que demonstrastes as qualidades necessárias para abrir este envelope e conhecer um pouco mais sobre este teu avô que tem algo a deixar para ti. No momento em que escrevo esta carta, a tua pouca idade não permite que eu te faça determinadas revelações. Luto intensamente contra o desejo que me empurra a contar-te aquilo que ainda não estás preparado para ouvir. Seria semear em campo estéril, quando falta tão pouco para que a terra esteja propícia a ser fecundada. O tempo não é meu amigo. Pesa-me saber que estarei ausente quando os pedregulhos pontiagudos do caminho te ameaçarem. Eu sei, passei por eles também. Permita-me agora que te conte um pouco da história da nossa família. Em 1868 nasceu meu pai, teu bisavô, Julien Doré, no seio de uma família muito pobre. Quis o destino que meus avós morressem, vítimas da mesma febre, quando meu pai tinha apenas dez anos e por esse motivo foi internado em um orfanato. Por ser muito vivo e inteligente, meu pai destacou-se rapidamente das outras crianças e apenas dois anos depois foi admitido como aprendiz, sem remuneração, em uma oficina de luteria que havia na cidade, como parte de um programa que encaminhava cada órfão para uma profissão que garantisse sua subsistência no futuro. Pela manhã, ia para a oficina e no fim do dia voltava ao orfanato. Dedicava-se muito ao seu aprendizado, pois compreendia que, órfão, não haveria outra chance para ele fora dali. Por isso agarrou-se à oportunidade e empenhou-se o mais que podia. Quatro anos depois, o mestre luthier – ciente do talento e do caráter de meu pai – ofereceu-lhe um pequeno quarto nos fundos da oficina e um salário, se os diretores do orfanato permitissem seu desligamento da instituição. A proposta foi aceita e ele, ainda muito jovem, tomou 32


posse de sua própria vida. Meu pai gozava da confiança do proprietário da oficina, Monsieur Toussaint, e de sua esposa Marie, que o consideravam como o filho que nunca tiveram. Os anos se passaram e teu bisavô tornou-se um mestre luthier da melhor qualidade, não sem razão, pois tivera um professor da melhor qualidade. Aos vinte e quatro anos, porém, – era então o ano de 1892 – meu pai perdera seu mestre de profissão e de vida e pouco tempo depois Marie Toussaint também morrera, deixando-o outra vez sozinho no mundo. Eugene, há ocasiões na vida em que a Providência nos brinda com inestimáveis – e algumas vezes incompreensíveis – dádivas. Nesses momentos, se tivermos a dita de percebê-las, devemos aceitá-las e aproveitá-las em sua plenitude. Pois foi assim com meu pai. Pouco antes de sua morte, Albert Toussaint legou a teu bisavô a oficina e a casa onde morava com sua esposa. É a casa onde moramos, meu neto. Meu pai soube aproveitar muito bem a oportunidade que se lhe apresentou. Os negócios prosperaram e o nome Doré tornouse conhecido no mundo da luteria. Hoje os nossos violinos estão em toda a Europa porque Julien Doré, como iniciador de uma linhagem de mestres luthiers, esmerou-se em transmitir à sua descendência os segredos da fina arte que tu conheces. Mas, como já disse, as oportunidades que se nos apresentam devem ser aproveitadas em sua plenitude, no entanto, meu pai aproveitou apenas aquilo que estava imediatamente diante de seus olhos, apenas aquilo que podia compreender. Se ele tivesse a natureza que tu tens, meu neto, teria enxergado e percebido o tesouro maior que havia recebido de seu benfeitor. Uma parte da herança, aparentemente de menor valor, que recebera do velho senhor Toussaint, ficou no esquecimento, relegada ao abandono porque não despertara o menor interesse no espírito prático e imediatista de meu pai. Teu bisavô era um homem bastante ocupado. Dedicava-se sem descanso ao seu trabalho na oficina e quase não tinha tempo para a família. Minha mãe cuidou sozinha da minha educação e fez-me aprender a ler aos quatro anos de idade. Naturalmente, a precocidade e o gosto pela leitura foram decisivos para mim e logo cedo senti atração 33


pelos assuntos místicos e ocultos da vida. Após algumas décadas de estudo desses assuntos, o Destino revelou-me uma surpresa – exatamente da mesma maneira como tinha feito com o Sr. Toussaint – colocando em meu caminho aquele que iria conduzir-me por uma via difícil, mas muito desejada e solicitada em minhas orações noturnas. Prevendo que a morte me alcançaria antes que tu estivesses pronto, pedi ao bom Sr. Cayler que tomasse para si a tarefa de orientar-te, se mereceres, na busca do conhecimento oculto. Ouça-o meu neto, e breve verás, como eu vi, que ele não é apenas um simples livreiro, embora essa ocupação seja providencial para mantê-lo no anonimato, condição vital a quem professa a Arte Secreta. Enquanto escrevo estas linhas, solitário em meu quarto, esforçome por manter a imagem do teu rosto de criança em minha mente, ao mesmo tempo em que as recordações saltam todas de uma vez dos arquivos da memória. Quando te peguei nos braços pela primeira vez, recém-nascido ainda, senti a inconfundível sensação de que tu eras muito mais um presente para mim do que para teus pais. Lembro-me claramente dos teus primeiros anos, quando te acercavas de mim buscando no meu colo o carinho e a atenção que sabias que eu te daria, ou quando buscavas guarida para fugir das reprimendas de teu pai por alguma travessura que tivesses feito. Sempre fomos muito próximos, tu e eu. Vibrávamos na mesma faixa. Dentro de ti ardia a tênue chama que arde em mim ainda e que só se extinguirá com minha morte. Não me refiro à chama da própria vida, pois essa, todo ser vivo tem. Falo do especial e divino impulso que produz, no mais fundo da alma, à inquietude espiritual que, quando bem trabalhada, pode levar o homem ao mais alto dos céus e conhecer pessoalmente os mistérios de Deus e da Natureza, os segredos da Vida e da Morte. Conforme tu crescias, eu me convencia cada vez mais de que tinhas um espírito parecido com o meu: saudavelmente rebelde, contemplativo, perscrutativo, buscador de respostas para as coisas que carecem delas, intuitivo e dedicado. Porém, logo tu me surpreendeste revelando uma natureza ainda mais profunda e bela do que eu imaginava e desejava. 34


Então eu tive a certeza de que poderia deixar para ti o maior legado que alguém pode deixar para outrem: as ferramentas necessárias e uma simples indicação do caminho inequívoco que leva aquele que o percorre, sinceramente e sem temor, ao mais bem guardado de todos os segredos, cujo poder conduz seu possuidor ao incondicional domínio dos elementos e ante o qual até a própria Natureza se prostra, reverente. Gostaria eu mesmo de te conduzir pelo caminho que leva à porta secreta, mas sei que não terei tempo para isso porque logo deixarei este mundo e também porque no momento em que escrevo, tu és ainda muito jovem para tal empreitada. No entanto, sinto-me completamente tranquilo por que sei que aquele de quem recebeste esta carta fará, com infinita superioridade, a tarefa que eu não poderei fazer. Confio-te a Edward Cornellius Cayler. Rogo a Deus nas minhas orações que tu tenhas mais sorte que eu, e mais fibra, e mais força, e que saibas calar, para que não te tomem por tolo. Além disso, confia no tutor que escolhi para ti, assim como eu o fiz. Quanto à tua vida diária, abre teu coração e dedica teu trabalho e tuas penas ao Ser que habita em ti. Ajuda teu pai no atelier e aprimora-te na arte da luteria. Gostaria de seguir escrevendo e escrevendo, mas agarrar-se ao efêmero e ao perecível seria demonstrar ignorância das leis que não ignoro. É mais do que certo que tudo tem um fim; portanto, dou-te meus últimos conselhos: vivas conforme teu coração, esmera-te em tudo o que fizeres e sejas feliz, meu neto.

Daquele que muito te ama,

Camille Doré.

PS: Cuides em não derramar o azeite da lâmpada para que a luz não se apague.

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Eugene leu a carta mais uma vez e então guardou-a no envelope e depois no criado-mudo e deitou-se na cama, pressionando o travesseiro contra o rosto tentando abafar o som do choro que naquele momento ele não conseguia reprimir, mas que ninguém em casa poderia ouvir, sob pena de ter que dar explicações que não tinha. Permaneceu deitado, pensando em seu avô e no que havia lido. “Esse Sr. Cayler... Albert Toussaint... O tempo...”. Adormeceu...

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Capítulo 6 Semelhanças

A luz do dia há muito invadira o quarto de Eugene, mas ele permanecia dormindo. Embora não tenha demorado para pegar no sono, passou toda a noite se mexendo na cama. Teve vários sonhos diferentes, inquietantes, agitados. Apenas nas últimas horas da madrugada é que dormiu profundamente. – Eugene – sussurrou uma doce voz. – Acorde, meu filho. Josephine Doré achara estranho que seu filho ainda estivesse dormindo. Não era comum que isso acontecesse. Eugene costumava se levantar muito cedo, sem dificuldade e, em geral, de bom humor. – Eugene – repetiu. – Já são nove e meia. – Hum... – balbuciou. – Eugene, acorde, meu filho! O rapaz abriu os olhos, com alguma dificuldade, e esperou até que a imagem de sua mãe entrasse em foco. – Ah... Bom dia, mãe. Que horas são? – Bom dia, filho. São nove e meia. – Nove e meia? – disse Eugene, erguendo-se abruptamente. – Calma, filho. Hoje é domingo. Você não vai trabalhar. – Ah, é mesmo! – respondeu aliviado, deixando-se cair de novo na cama. – Eu não vi você chegar ontem e quando vim aqui no seu quarto você já estava dormindo. Aconteceu alguma coisa? – Nada, mãe, só estava cansado. – Está bem, agora desça que o café da manhã está esperando por você, lá em baixo. Josephine já estava fora do quarto quando ouviu Eugene chamá-la e voltou. – Sim, filho? – Mãe, como era o meu avô? – perguntou. 37


– Seu avô? Mas porque essa pergunta agora? – Por nada, é que eu sonhei com ele esta noite. Ela sentou-se na cama e, olhando para o nada em busca das lembranças, sorriu quando percebeu que só tinha boas recordações do velho Camille. – Seu avô era um homem muito especial, filho – disse Josephine, passando a mão carinhosamente pelo rosto de Eugene. – Simples, calmo, sempre de bom humor, nunca o vi alterado com alguém ou resmungando pelos cantos. Ele era bondoso e generoso. Todos nós gostávamos muito dele. – Disso eu lembro – insistiu Eugene. – O que eu queria saber é como ele era nos detalhes, o que fazia fora do trabalho, os lugares aonde ia, coisas assim. – Bem, tinha um lado do seu avô que nem mesmo seu pai conhecia bem. Talvez só a sua avó conhecesse. – E que lado era esse? – Um lado misterioso, reservado, estranho até. Seu avô estudava assuntos esquisitos de magia, alquimia e coisas do gênero... Bem, eu não entendo nada disso. Seu pai achava bobagem e perda de tempo, mas respeitava. Todas as quintasfeiras à noite, seu avô ia para tal reunião ou coisa parecida, mas eu nunca soube e nunca perguntei o que eram aquelas reuniões. Uma ocasião eu comentei sobre isso com sua avó esperando que ela dissesse alguma coisa, mas ela também fez mistério e evitou o assunto. – E onde eram essas reuniões? – perguntou Eugene. – A senhora sabe de mais alguém que ia? O vovô recebia visitas em casa? – Nossa, meu filho, mas o que houve? Um sonho com seu avô deixou você assim tão curioso? – perguntou Josephine, começando a achar que havia mais do que simples curiosidade. – Não é nada, mãe. Apenas saudade do vovô – respondeu, tirando uma calça do guarda roupa e fazendo menção de que queria se trocar, assim sua mãe sairia do quarto e o assunto se encerraria. Eugene percebeu que ela já estava desconfiada do 38


excesso de curiosidade que ele demonstrara. – Bem, vamos ao café da manhã? – perguntou Josephine. – Já desço. Ela já ia saindo, mas antes de fechar a porta, voltou e disse: – Ah! Sim. Lembrei de uma coisa: Ele lia muito. O tempo todo e... – parou de falar de repente e, olhando fixamente para Eugene teve a súbita e tardia percepção de algo que, como mãe, já deveria ter observado antes. – Nossa... sabe de uma coisa? Você é igual a ele! – disse Josephine, surpreendendo a si mesma enquanto dizia aquilo. Percebera, de repente, que Eugene era muito parecido com Camille. Mais do que isso: era uma cópia. Igual em tudo. No temperamento, na paciência, no gosto pelo recolhimento e pelo sossego. “Meu Deus – pensou – só agora eu percebi como eles são iguais. Incrível! Incrível!.” E desceu as escadas falando consigo mesma. Eugene tomou apenas uma xícara de café e saiu rapidamente em direção à casa de Isabelle, a primeira pessoa – e certamente a única – a quem desejava contar o que acontecera no dia anterior. A distância de cerca de dois quilômetros fora vencida, a pé, em menos de quinze minutos, tamanha era a ansiedade de Eugene em contar para a namorada as insólitas novidades que rodopiavam em sua mente.

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Capítulo 7

Uma sapateira ruiva

Rue des Expeditionnaire, 71. Na casa da bela Isabelle, o café da manhã estava começando a ser tomado quando Eugene chegou. – Entra, filho – disse a mãe de Isabelle à porta – vem tomar um café. – Obrigado, Claudine, com licença – falou Eugene, dispensando a formalidade do “senhora” que, a pedido dela, não era necessário. – Isabelle tá aí? – Na copa. Vem. Claudine Lallaut era a jovem viúva de um oficial de polícia de Paris que morrera há cerca de dois anos. Falou-se muito do caso em toda a cidade; os jornais e a televisão fizeram plantão na porta dos Lallaut por quase uma semana. Monsieur Fabien Lallaut morreu ao salvar a vida de uma menina de seis anos, feita refém por assaltantes de banco, no verão de 1995. Após dezoito horas de negociações infrutíferas, uma divisão especial da polícia de Paris invadiu o banco e pôs fim ao drama. A criança, Sophie Blondet, foi encontrada viva sob o corpo de Fabien que, naquele dia, estava de folga e era apenas mais um cliente na agência bancária. Claudine, sapateira de profissão, aprendera o ofício com seu pai e trabalhou com ele na pequena fábrica caseira da família até se casar. No entanto, após a morte de seu marido, Claudine retomou a antiga profissão, reativando as máquinas que herdara – esquecidas na edícula da casa – para complementar a renda da família que se resumia à pensão paga pelo Estado. A atividade da família Lallaut não rendia muitos frutos e Isabelle tomou a decisão de abandonar a faculdade de Belas Artes para dedicar-se ao ofício e ajudar sua mãe. Claudine foi contra, mas com o tempo acabou cedendo diante da promessa de sua filha de que voltaria aos estudos quando a situação melhorasse. 41


Os sapatos eram feitos sob encomenda, em geral para pessoas que tinham algum tipo de problema nos pés. Os clientes não eram muitos, mas eram fiéis. Se uma sapateira já era algo incomum, naquela casa havia duas. Para Isabelle, a perda do pai fizera com que transferisse para Eugene, natural e inconscientemente, parte do sentimento filial que se rompera tragicamente com a morte do Sr. Lallaut. Eugene percebia esse fato e procurava administrar a situação com equilíbrio, para não assumir a posição paternal que obviamente não tinha e que não seria nada saudável. – Oi, Isabelle – disse Eugene, beijando-a. – Oi, meu amor. Senta aqui. Isabelle encheu um copo com leite e achocolatado em pó e o colocou diante de Eugene. – Obrigado. – Vou pegar o queijo – disse a Sra. Lallaut. Eugene aproveitou aquele momento para cochichar no ouvido de Isabelle: – Vamos sair logo daqui. Tenho uma coisa pra contar. Isabelle percebeu a ansiedade de Eugene e tratou de apressar o desjejum. Ganharam a rua o foram para o metrô. Cerca de vinte minutos depois, estavam à beira do Sena. – Afinal, o que foi que aconteceu? – perguntou Isabelle. Eugene tinha o olhar perdido sobre o rio, imaginando se talvez seu avô também gostasse de ficar assim, perto do Sena, apenas olhando e pensando. – Como será que era este lugar há cem anos? – perguntou Eugene, sem tirar os olhos do rio. – Você está estranho hoje. O que aconteceu, Eugene? – Sabe, eu gostaria que você tivesse conhecido meu avô – falou, continuando a olhar as águas. – Seu avô? É, acho que teria sido legal. Vocês eram ótimos companheiros, né? Imagino que devia ser bem gostoso ouvir as 42


histórias que ele contava. – É, eu adorava ouvir. Mas ontem eu descobri que não sei quase nada sobre o meu avô. – Como assim? – perguntou Isabelle. – Não entendi. – Eu não sei nem por onde começar... – disse Eugene, passando as mãos pelo rosto. – Eu e meu avô sempre fomos muito próximos, não só porque eu era o único neto, mas porque nós éramos parecidos, é como se fôssemos dois amigos íntimos, entende? – perguntou, enquanto Isabelle fazia um aceno com a cabeça. – Ele era especial para mim. Muito mais do que o meu pai. Quando a gente conversava, eu sentia que ele sempre queria dizer mais alguma coisa pra mim, mas não dizia. Isabelle ouvia em silêncio o relato de seu namorado. Percebia que se tratava das lembranças mais caras de Eugene. – Na minha memória, – continuou – o meu avô está sempre associado às histórias que ele contava. E não eram bobagens pra criança dormir, não. Ele me contava histórias das Mil e Uma Noites, dos heróis gregos da mitologia, dos deuses nórdicos e coisas desse tipo. Um dia comentei com os meus amigos na escola e todo mundo riu da minha cara, porque eles só queriam saber dos super heróis dos filmes daquela época. Então, eu percebi que não valia à pena e resolvi não falar mais nada sobre o meu avô. É... – disse Eugene, esfregando os olhos – gostaria que ele ainda estivesse aqui... Só que isso eu não posso mudar. É uma pena. – Mas ontem eu descobri, através de alguém estranho à minha família, outra face do meu avô que eu já desconfiava, mas não tinha certeza. Eugene contou detalhadamente o que acontecera no dia anterior e mostrou a carta. Isabelle leu e chorou. – Meu Deus, Eugene, que loucura. Você mostrou esta carta pra os seus pais? – Não, eles não sabem de nada e eu quero que continue assim. Não dá pra contar pra eles. Pelo menos por enquanto. Imagina só, o meu pai, do jeito que ele é. Ninguém pode saber. Não comenta 43


nem com a sua mãe. Isabelle fez um sinal com a cabeça e ambos voltaram a olhar o rio, em silêncio.

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“Entrai pela porta estreita, porque larga é a porta e espaçoso o caminho que conduzem à perdição e numerosos são os que por aí entram”. “Estreita, porém, é a porta e apertado o caminho da vida e raros são os que o encontram”. Mat. 7, 13-14 Ora, o texto de Mateus afirma que raros são os que encontram a porta e o caminho. Dessa forma, partindo da premissa que os cristãos acreditam nas palavras da Bíblia, por que milhões ou até bilhões de fiéis acreditam que encontraram o caminho apertado e que estão salvos? O termo “raros” não significa milhões ou bilhões.

Afinal, quem está certo, Mateus ou os fiéis?

Em contrapartida, o mesmo texto de Mateus assevera que numerosos são os que entram pela porta larga e pelo caminho espaçoso que conduzem à perdição. “Numerosos”, sim, é um termo que significa milhões. Portanto, a própria Bíblia condena seus fiéis leitores da letra morta à perdição. Só não vê quem não quer... ou quem não está disposto.

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Capítulo 8

Os primeiros choques

A manhã de segunda-feira parecia interminável para Eugene. O trabalho no atelier, especialmente maçante e arrastado daquele dia, só fazia crescer a ansiedade e o desejo de correr para a livraria do Sr. Cayler e despejar sobre ele a longa lista de perguntas que aumentava a cada instante em sua mente. Às 14 h, Eugene já estava diante da livraria, esperando que a placa de “Fechado para almoço” fosse virada, apresentando, enfim, o esperado aviso de “Aberto”, o que pontualmente se fez. Logo, a porta se abriu e um homem alto, de longos cabelos negros e avantajado porte físico saiu à calçada. Rapidamente, Eugene se aproximou. – Boa tarde, senhor Cayler. – Olá, filho – disse o livreiro – já esperava por você. Não quer entrar? – Ah, sim! O senhor não imagina o quanto! – A ansiedade faz mal à saúde, sabia? – perguntou o Sr. Cayler, em tom de brincadeira, enquanto ambos entravam na livraria. – A ansiedade é o combustível que me moveu até aqui. Desde o momento em que li a carta, mal pude esperar pra que esta hora chegasse. – Eu imagino. Sente-se ali, rapaz. Ambos sentaram e o livreiro esperou que Eugene tomasse a palavra. – Eu li a carta. – E então? O que gostaria de saber? – Quem é o senhor? – disparou Eugene, secamente. – Um amigo, com quem você pode contar e que está a sua disposição para ajudá-lo na sua busca. Eugene olhava fixamente para o homem diante de si e percebia a absoluta sinceridade que transparecia em seus olhos. 47


– Essa busca... – falou Eugene, pensativo, como se falasse para si mesmo. – Eu não sei bem o que é que eu procuro. – Pois saiba, meu rapaz, que a sua busca é mais antiga do que você imagina. Você esta continuando aquilo que interrompeu um dia. – O senhor está falando sobre o quê? Vidas anteriores? Está querendo dizer que em outras existências eu já procurei aquilo que eu procuro agora? – perguntou Eugene. – Exatamente. – Eu não sei bem se acredito em vidas passadas. – É seu direito, filho. – Tá bom, mas e se fosse mesmo verdade, ainda assim eu não teria a menor ideia de quem já fui em outras ocasiões. – Não tem ideia porque temos a consciência adormecida – concluiu o livreiro. – Porém, aquele que adquire os meios para conhecer suas existências anteriores, pode e deve fazê-lo, principalmente para observar os erros cometidos no passado e não repeti-los, porque, caso contrário, estaria estagnado ou até retrocedendo no caminho. – Que caminho? O caminho da evolução? – perguntou Eugene. Nesse momento o Sr. Cayler fez uma pausa e fitou longamente a Eugene, que aguardava uma resposta. – Ouça bem, meu rapaz, e preste bem a atenção: o dogma da evolução tem levado ao engano muitos estudantes sinceros e dedicados. Eles creem que conforme vão retornando a este mundo, em sucessivas vidas, sua alma irá se aperfeiçoando e “evoluindo” automaticamente. Essas pessoas, sinceras em seus estudos, imaginam que se trata de um processo automático e que quanto mais vezes vierem a este mundo, quanto mais vezes retornarem a um novo corpo, tanto mais “evoluídos” estarão. Infelizmente, estão enganadas. A evolução é um processo puramente mecânico da natureza e, como tal, não pode conduzir ninguém à sabedoria. A evolução nada tem a ver com o caminho espiritual de qualquer pessoa. 48


Eugene escutava aquele discurso com o maior dos interesses e nem sequer pensava em interromper seu interlocutor. – Eu vou lhe dar um exemplo para que você entenda melhor: Imagine uma árvore. Há evolução na semente que germina, nos primeiros brotos, no tronco que cresce, na copa que ganha o ar, na árvore que, como um todo, torna-se adulta e passa a dar frutos a cada estação propícia. Mas há involução no envelhecimento, ressecamento e na morte dessa mesma árvore. É um processo simples e mecânico da natureza. O mesmo acontece com todos nós: nascemos, crescemos, envelhecemos e morremos. Processos evolutivos e, em seguida, processos involutivos. É um ciclo natural, absolutamente mecânico. Não tem relação com o espiritual. Eugene apenas ouvia. – O mais importante é que você entenda que a evolução e a involução andam juntas e fazem parte, repito, de um simples processo mecânico da natureza. Quando se consegue escapar das leis da evolução e da involução, consegue-se também escapar da roda dos renascimentos. Enganam-se os partidários da tal “evolução”, os ratos de biblioteca e os acrobatas do intelecto, que se julgam arcas de sabedoria e cultura. Certamente deixarão a existência tão vazios quanto estavam quando chegaram. – O senhor é bem direto, né? – Você prefere escutar uma verdade que o fira e esteja em desacordo com suas opiniões ou prefere uma mentira que corrobore suas bases falsas, mas que o deixe mais feliz? – perguntou o Sr. Cayler, desta vez um pouco mais incisivo. – A verdade, é claro. – Então, você terá que aprender a confrontar, constantemente, as novas ideias com as velhas e desse confronto extrair aquilo que lhe pareça bom – rematou. – Seu avô – continuou o livreiro – foi um homem muito dedicado e persistente na busca pela sabedoria. Tinha consciência de que é um estudo longo e difícil e, com serenidade, conseguiu avançar uma parte do caminho. 49


– Uma parte? – perguntou Eugene. – O caminho é mais longo do que você possa imaginar, meu rapaz, mas Camille conseguiu rasgar o véu do Grande Segredo. Porém, quando isso aconteceu já era velho demais para pôr em prática o que descobriu. Além disso, acho que aquilo que atrapalhou seu avô foi seu intelecto e o nocivo processo do raciocínio, que eram muito desenvolvidos no meu velho amigo Camille. – Bem, então antes que o senhor continue, eu gostaria de fazer duas perguntas – disse Eugene. – Pois não, filho. – Primeiro, o que seria o Grande Segredo e segundo, eu não entendi bem essa parte do intelecto e do raciocínio. Em que o intelecto poderia atrapalhar alguém? – Muito bem, vamos por partes. Primeiro, o intelecto e o raciocínio. Preste atenção e procure compreender: o homem vive preso nas redes que ele mesmo tece, ou seja, é refém da eterna guerra das opções que o raciocínio cria. O pensamento não é capaz de fluir livre pela mente humana devido ao batalhar das opções. Portanto, o homem é escravo do cérebro, base do raciocínio, e não presta atenção ao coração, que é o lar da intuição. Se fosse capaz de penetrar em seu próprio coração, deixaria de ser refém do batalhar das opções. Quando quisesse resposta para uma dúvida qualquer ou quando precisasse tomar uma decisão, consultaria seu coração, com serenidade e em silêncio, e obteria a resposta direta e única, sem o terrível dilema das opções que o envolve cada vez mais na intricada rede criada pelo seu raciocínio. É a guerra entre as antíteses dentro da mente humana. Por esse e outros motivos é que eu entendo que a humanidade atual está em franco processo involutivo. – O senhor quer dizer então que a humanidade atual está regredindo ao invés de avançar? Mas e os prodígios da ciência, por exemplo? E os progressos das últimas décadas, as viagens espaciais e coisas do tipo? – Meu caro Eugene, hoje em dia os homens têm apenas uma 50


pequena parte de consciência e, portanto, a maior porção é de inconsciência. Mas houve um tempo em que os seres humanos tinham cem por cento de consciência desperta, funcionando. Não existiam, então, fronteiras, exércitos, reinos, países ou bandeiras, não havia a necessidade de tantas leis, como nós temos hoje. O homem era pleno e por isso podia ser chamado, verdadeiramente, de homem. A humanidade que vive atualmente na superfície deste planeta vem adoecendo ao longo do tempo, de maneira que agora lhe resta pouca saúde. E não é da saúde do corpo físico que estou falando, obviamente. A humanidade encontra-se neste estado doentio não é de agora. Se voltássemos no tempo, há mil anos, veríamos que um homem matava outro homem com uma flecha. Hoje, um homem mata milhões apenas apertando um botão ou dando a ordem para que o façam. Onde está o progresso? O coração do homem tornou-se pedra. Nada mais lhe interessa que não seja o dinheiro e o poder sobre outros homens. – Eu concordo, mas acho que o senhor está generalizando; afinal tem muita gente boa no mundo, pessoas honestas e que não fazem mal a ninguém – retrucou Eugene. – Diga-me, filho, você acha que Deus pode ser mau e injusto? – perguntou o Sr. Cayler. – Eu acho que não. – Então, pense no seguinte, apenas como um exemplo: imagine um cidadão honesto, batalhador, caridoso, pai bondoso, marido fiel, mas que vive na miséria, sem trabalho, incapaz de dar à sua família o conforto e a decência que ele gostaria de dar. E não pense que é exagero meu, pois há milhões de exemplos assim pelo mundo. Pois bem, à noite, quando vai se deitar, esse homem diz: “Deus, por que eu sofro assim? O que foi que eu fiz? Eu não faço mal a ninguém, nunca roubei ou matei e cumpro com todos os meus deveres. Não entendo por que nada dá certo para mim”. Eugene ergueu as sobrancelhas e esboçou a feição de quem concorda amarga e impotentemente o a afirmação do livreiro. – Ouça, Eugene, o homem bom e honesto que hoje caminha 51


nas ruas da cidade ou no campo, nem sempre foi bom e honesto. Você mesmo, o que será que já fez em outras existências sobre a superfície deste planeta? Você as recorda? – perguntou o livreiro. – Não. – As pessoas do mundo, assim como o homem do nosso exemplo, também não se recordam de nada. Se recordassem, tratariam de remediar os erros, saldando dívidas que contraíram com a Lei quando cometeram esses erros. Assim, o fardo que elas hoje carregam na vida, embora não saibam disso, iria pouco a pouco ficando mais leve. – Então, essa seria a fórmula para a felicidade? – perguntou Eugene, seguindo um raciocínio lógico. – Se a fórmula para a felicidade fosse essa, apenas aqueles que recordassem suas vidas passadas poderiam ser felizes. Portanto, a resposta é não. Além disso, não existe nenhuma “fórmula” para a felicidade. Você compreende isso? – Claro – respondeu Eugene. – É fácil perceber – continuou o livreiro – que o cenário atual do mundo não é exatamente de felicidade e bem estar geral. Todo o descontentamento, a insatisfação, o caos moral e o estado doentio em que se encontra a humanidade atual, devemse a fatores que a própria humanidade desconhece e cujas causas originais se perderam na noite dos tempos. Mas essas causas e seus efeitos estão guardados secretamente nos registros da Natureza, prontos para serem conhecidos e estudados por aqueles que souberem como achá-los. Está guardada também nestes registros, toda a história da Terra desde tempos imemoriais, que nem remotamente imaginaria qualquer historiador ou antropólogo deste mundo. – E que registros são esses? – São verdadeiros depósitos de informações. Assim como os homens guardam os registros da sua história, seus descobrimentos, suas conquistas, suas guerras, suas invenções, etc., a Natureza também guarda os registros de tudo o que aconteceu a este planeta; as humanidades que já viveram aqui, 52


suas evoluções e involuções, tudo... Como numa biblioteca pública, as informações estão disponíveis a todos que quiserem conhecê-las. – E como se faz para chegar até esses registros? – perguntou Eugene, mal podendo esconder sua ansiedade. – No devido tempo você saberá. Não queira abraçar o Universo de uma vez, para não correr o risco de se desinteressar por ele. À medida que ouvia as palavras do Sr. Cayler, Eugene percebia que estava diante de alguém incomum, muito além do sábio ou do iniciado. Não se tratava de um homem que apenas havia lido muitos livros e discursava teoricamente. Era, na verdade, alguém que, aparentemente, vivenciara na prática cada palavra que dizia, por mais improvável que pudesse parecer ou por mais distante que pudesse estar de nossa época o assunto de que tratasse. Julgava ainda que o “mestre” que sempre desejou que aparecesse em seu caminho estava ali. – Senhor Cayler, – perguntou Eugene – eu já li em diversos livros de autores diferentes, que “quando o discípulo está pronto, o mestre aparece”, e eu sonho com isso há muito tempo... Será que aquilo que o meu avô pediu ao senhor é exatamente isso? Que o senhor fosse o mestre que ele achava que eu devia ter? – Caro amigo, está disposto a ouvir a verdade, mesmo que ela lhe seja dura? – perguntou o Sr. Cayler. – Bom, como eu já disse, a verdade é sempre melhor. – Muito bem. É bom que você saiba que a frase que leu nos livros acabou se tornando uma ilusão para muitos estudantes do oculto. Quantos, como você, mantiveram esse desejo por uma vida inteira e acabaram abandonando a existência sem terem uma única experiência concreta sequer. – Então, essa frase é falsa? – A frase é verdadeira. Falso é o entendimento que a maioria das pessoas tem dela – disse o livreiro. – Saiba, meu amigo, que aquele que espera, sentado, pelo mestre, continuará sentado por toda a vida sem conhecê-lo. Os que esperam que um dia ele 53


apareça, fisicamente, como por milagre e lhes ensine e instrua no caminho, perdem seu tempo. Ao invés disso, há que se buscar o mestre, e não pretender ser encontrado por ele. Há que se ter merecimento e o merecimento só se verifica depois de árduo trabalho consciente sobre si mesmo. Aquele que não trabalha não pode ter direito a um pagamento. Aquelas palavras foram como água fria sobre as ilusões de Eugene que, como tantos, esperava a aparição de um mestre. – É importante que você saiba – continuou o livreiro – que os grandes mestres, os maiores, aparecem de tempos em tempos para ensinar aos homens a maneira pela qual eles podem se salvar, isto é, deixarem de ser mamíferos pensantes e passarem a ser homens de verdade... Alias, espero que você esteja entendendo que quando eu digo homens eu me refiro a toda a humanidade, homens e mulheres. – Claro, eu entendo, – disse Eugene – mas pelo que eu percebi existem mestres e mestres? – Sim, você entendeu direito. Existem os Grandes Mestres fundadores das religiões do mundo, como Jesus, Buda, Krishna, Maomé, Confucio – apenas para dar alguns exemplos – e existem também os Mestres, não menos importantes, que, tanto quanto os primeiros, trabalham incansavelmente pela humanidade, mas são desconhecidos ou pouco conhecidos. Estão aqui neste planeta desde a aurora da vida e continuarão até que a Terra cumpra o seu ciclo natural e se transforme em outra lua. – Como assim, outra lua? – perguntou o rapaz, nitidamente confuso. – Pois é, lua – confirmou o livreiro. – Diferentemente do que dizem os cientistas desta época, tão sábios e seguros dos seus postulados, a nossa Lua também já foi um planeta cheio de vida, com mares, florestas, vida animal, vegetal e humana, porém cumpriu o seu ciclo e hoje é apenas um cadáver. – A Lua, um planeta? Como é possível? – Sim, sem dúvida nenhuma, a Lua foi um planeta habitado, mas hoje é só um cadáver, porque já cumpriu seu ciclo completo 54


de vida. O mesmo ocorrerá com a Terra que também tem um ciclo a ser cumprido. – Todos os planetas do Universo obedecem leis. Uma dessas leis determina que cada planeta passe por um ciclo determinado de vida, que corresponde ao surgimento de sete raças, cada uma a seu tempo. Após o término desse ciclo, isto é, depois que um planeta tem suas sete raças, ele, muito lentamente, morre, vira um cadáver como a nossa Lua. – Raças? – perguntou o incrédulo rapaz. – Como assim, raças? – Quando eu digo raças, filho, refiro-me ao ser humano, naturalmente. No entanto, cada raça, cada humanidade, com características próprias e diferentes entre si. – O nosso planeta – continuou o Sr. Cayler – é muito mais velho do que se imagina e é habitado por seres humanos há muitíssimo mais tempo do que diz a ciência. Nós já somos a quinta raça a habitar a superfície da Terra. E como você já pode imaginar, não há quinto sem quarto, sem terceiro e assim por diante. A quarta raça, foram os famosos Atlantes, a terceira os Lemurianos, a segunda foi denominada Hiperbórea, da qual falou Nietzsche e, por fim, a primeira foi chamada de Protoplasmática. Mesmo que, à primeira vista, parecesse uma ideia absurda, Eugene via algum sentido no conceito que o livreiro estava expondo e esperava, curioso, a conclusão do raciocínio. – Desculpe, a terceira foram os quem? – indagou Eugene, atropelando as palavras. – Os Lemurianos, filho. Um continente chamado Lemúria. – Ah... – Aliás, a respeito dos Lemurianos, há uma coisa muito interessante que você vai achar curioso, no mínimo. – E o que é? - perguntou Eugene. – A Bíblia, em seu primeiro livro, o Gênese, conta a história de Adão e Eva, não é isso? – É. 55


– Pois bem, saiba que essa história passou-se na Lemúria. – Mas peraí, pelo que eu saiba, Adão e Eva foram os primeiros seres humanos e o senhor disse que a Lemúria foi a terceira raça a povoar a Terra. Como é isso? – Você já vai entender. Na verdade, difundiu-se pelo mundo, infelizmente, a falsa crença de Adão e Eva como o primeiro homem e a primeira mulher a habitar o mundo. – E não foi assim? – perguntou Eugene, meio descrente. – Não, eles não foram os primeiros seres humanos e, além disso, os nomes Adão e Eva são simbólicos. Esses nomes representam todos os homens e todas as mulheres de uma raça: a raça lemúrica. Além disso, muitos dos relatos da Bíblia foram acontecimentos da Lemúria. Fala-se na Biblia, por exemplo, sobre os gigantes que povoavam a terra: eram lemurianos. Em todas as tradições religiosas pelo mundo afora e em todas as mitologias há relatos muito semelhantes que falam sobre uma rebelião angélica: pois foi na Lemúria. Naquela época, os Deuses, ou os Elohim – conforme a tradição hebraica –, viviam entre os homens, instruindo a humanidade, ensinando os lemurianos. – Tá... tudo bem... Mas é que é um pouco difícil de digerir, o senhor entende? – disse Eugene, coçando a cabeça. – Claro que entendo, filho. Mas para facilitar, falemos então em termos que a ciência atual utiliza: a Lemúria existiu na época do Mioceno, no período terciário da era Cenozóica. Era um continete imenso que abarcava o oceano Índico e Pacífico. A Oceania fazia parte da Lemúria, assim como a Ilha de Páscoa. – Bom, eu estudei as eras geológicas da Terra na escola, mas não lembro de muita coisa. Em todo caso, voltando a Adão e Eva, quer dizer então que a Bíblia conta a história dos homens apenas a partir da terceira raça? – Exatamente. – E as raças anteriores? – perguntou Eugene. – As duas primeiras raças eram andróginas, isto é, possuíam os dois princípios no mesmo corpo: o princípio masculino e o princípio feminino. E, atente bem, eu não disse os dois órgãos 56


sexuais. Eles não tinham órgãos sexuais externos desenvolvidos. Não havia essa necessidade. Já a terceira raça, os Lemurianos, eram hermafroditas. Por isso é que a Bíblia Hebraica diz que quando Deus criou o homem, “macho e fêmea os criou”. Lá não diz “um macho e uma fêmea”, ou “um homem e uma mulher”, separados, entendeu? Está escrito na Bíblia hebraica: “façamos o homem à nossa imagem e semelhança”. Eu não estou inventando nada. Está escrito na Bíblia, embora haja diversas traduções do livro sagrado onde se muda, deliberadamente, o sentido desse trecho para que não se discuta esse assunto. Silêncio, olhos baixos e dedos coçando a cabeça. – Digestão difícil? – perguntou o Sr. Cayler. – Muito. Mas e aquela história de que Eva saiu da costela do Adão? – Boa pergunta, rapaz. Esse trecho do Gênese também é simbólico, como todo o resto. – Eu já imaginava que sim, mas o que significa? – Como eu já disse, a terceira raça era hermafrodita, mas ao longo de muitos e muitos séculos, aconteceu, naturalmente, a separação dos sexos. Agora você vai entender a simbologia da costela de Adão. Eva foi tirada da costela de Adão: a separação dos sexos. Os seres humanos começaram, lentamente, a nascer com um órgão sexual mais desenvolvido que o outro, e esse processo se acentuou cada vez mais, embora muito lentamente. Os seres humanos passaram a nascer apenas como homem ou como mulher; já não tinham mais os dois órgãos sexuais no mesmo corpo. A partir daquele momento, passou a ser necessário a cooperação sexual para que houvesse a reprodução humana. Mas, repito, isso foi um processo muito longo, porque a natureza não dá saltos. – E há quanto tempo foi isso? – perguntou Eugene. – Há cerca de vinte milhões de anos atrás. – Milhões? – Sim. A despeito do que diz a ciência atual, – continuou o livreiro – o homem já está aqui há muito, muito tempo. 57


– Em certo país da Ásia, existe um imenso deserto onde estão sepultadas coisas que nem mesmo a mais fértil imaginação poderia conceber. Felizmente, os homens não sabem onde, nem como procurar e por isso as evidências das antigas raças continuarão como estão: perdidas para os olhos desta humanidade. O jovem luthier, que dava claras demonstrações de confusão e ansiedade, quis continuar o assunto, mas foi gentilmente interrompido pelo Sr. Cayler. – Procure controlar a ansiedade, meu rapaz. Hoje você está dando os primeiros passos num caminho longo e difícil onde não há lugar para a pressa e para resultados imediatos. Lembrese sempre: a Natureza não dá saltos, portanto cultive a calma e a serenidade e saiba que o Universo inteiro está dentro nós. Cada homem é um microcosmo completo. Você já ouviu falar de Hermes Trismegisto? – Não – respondeu o jovem. – Pois bem, ele é autor de um texto alquímico chamado Corpus Hermeticum. Hermes Trismegisto disse, com todo o acerto: “O que está embaixo é como o que está em cima e o que está em cima é igual ao que está embaixo”. Eugene ouvia, pensativo. O livreiro repetiu a citação e acrescentou: – Reflita sobre estas palavras, filho, mas, por hoje, vamos dar por encerrada nossa conversa. Quando estiver pronto para continuar, venha me ver. Embora Eugene quisesse continuar, respeitou a vontade de seu instrutor porque havia tanto para saber e conhecer que a pressa e a ansiedade certamente atrapalhariam o aprendizado. Um novo Universo, ou quem sabe, o verdadeiro Universo, começava a se descortinar diante dos olhos do jovem luthier. A chama que seu avô ajudara a conservar acesa e o impulso que promovia as inquietações internas de um rapaz ávido pela busca do novo, do secreto e do misterioso, encontravam agora a fonte de onde extrair os meios para chegar ao conhecimento daquilo 58


que, felizmente, é oculto aos olhos profanos e que deve permanecer assim, para o bem do bem. A Natureza, pois, não entrega seus segredos a todos... E Eugene, que se candidatara a essa difícil tarefa, já imaginava que a paciência e a perseverança eram requisitos indispensáveis.

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No Museu Britânico há um manuscrito Maia onde se lê: “No ano 6 de kan, no II muluc, no mês zrc, ocorreram terríveis terremotos que continuaram sem interrupção até o 13º chuen. O país das colunas de barro, a terra de Mu, foi sacrificada. Depois de duas comoções, desapareceu durante a noite, sendo constantemente estremecida pelos fogos subterrâneos que fizeram a terra afundar e reaparecer várias vezes e em diversos lugares. Por fim, a superfície cedeu, dez países separaram-se e desapareceram. Afundaram 64 milhões de habitantes há oito mil anos antes de se escrever este livro”. Nos arquivos de um templo budista em Lhasa, Tibete, há uma antiga inscrição caldaica que data de dois mil anos antes de Cristo, onde se lê: “Quando a estrela de Baal caiu no lugar onde agora só existe mar e céu, as sete cidades com suas portas de ouro e templos transparentes tremeram e sacudiram como folhas de árvore batida pela tormenta. Eis que uma onda de fogo e fumo elevou-se dos palácios e os gritos de agonia da multidão encheram o ar. Procuraram refúgio em seus templos e cidadelas, porém o sábio Mu, o sacerdote de RaMu, apresentou-se a eles e disse: Não vos predisse isso? E homens e mulheres cobertos de pedras preciosas e brilhantes vestes, clamaram: Mu, salva-nos. E Mu replicou: Morrereis com os vossos escravos e vossas riquezas e de vossas cinzas surgirão novas nações e se os seus habitantes se esquecerem de que devem ser superiores, não pelo que adquirem, mas pelo que dão, a mesma sorte lhes caberá. As chamas e o fumo afogaram as palavras de Mu e a terra fezse em pedaços, submergindo com seus habitantes nas profundezas em poucos meses”. Ambos relatos referem-se à catástrofe que fez desaparecer a Atlântida. Biblicamente, esse acontecimento é conhecido como “O Dilúvio Universal”.

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Capítulo 9

Cayler, o livreiro

Certamente o caminho apertado e difícil não é muito interessante, pois nele não estão inclusos o dinheiro, o poder temporal, os queridos e inestimáveis bens pessoais e todo o universo de posses diversas que formam a ilusória sensação de conforto e segurança que todos buscam. Ter, ao invés de ser. Receber primeiro, dar – quem sabe – depois. Mas na opinião de Edward Cornellius Cayler, Eugene escapava dessa regra geral. Era, saudavelmente, um marginal e um rebelde. Nadava contra a corrente. Era diferente, especial. Não queria o que todos queriam, não aspirava ao que todos aspiravam, e essas virtudes – na opinião do livreiro – tornavam Eugene apto a trilhar a difícil senda através da qual ele pretendia conduzir o rapaz. Na livraria Cayler o tempo parecia não ter passado. As prateleiras, as cadeiras, as estantes, os livros, tudo isso era como se tivesse, no mínimo, duzentos anos. Não que fosse um local sombrio e empoeirado, mas a atmosfera do lugar aparentemente tinha a mesma idade dos móveis. Cayler, o livreiro, – como era conhecido pelos clientes mais antigos – costumava prender seus longos cabelos à “rabo de cavalo” e usava roupas que certamente não eram a última moda de Paris. Nos meses mais frios, costumava vestir um longo sobretudo escuro e um cachecol púrpura em volta da nuca, parecendo um membro da Companhia de Jesus atrás de algum pecador pelas ruas da cidade. Para Eugene, não era estranho que o Sr. Cayler não frequentasse os cafés ou os shopping centers da cidade, porque o próprio Eugene também não gostava desse tipo de diversão. Ele e Isabelle formavam um casal com uma rara combinação nos dias atuais: além de gostarem das mesmas coisas e terem os mesmos desejos, em suas aspirações não havia lugar para números de 63


contas bancárias, status social ou qualquer outro “desejo frívolo”, nas palavras de Isabelle. O que lhes interessava, na verdade, era exatamente aquilo que o Sr. Cayler tinha para dar: conhecimento. E tinham pressa, e tinham sede. Mas a impaciência é o maior inimigo dos que entram por esse caminho, porque pode levar à precipitação e às interpretações errôneas, e o Sr. Cayler sabia que o rapaz daria trabalho nesse quesito.

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Literalmente, estreita ĂŠ a porta e apertado o caminho da vida.

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Capítulo 10

Alquimia e alquimistas.

Eugene refletira muito sobre a longa conversa que tivera com o livreiro e quanto mais ruminava os pensamentos, mais desejava voltar e retomar a palestra de onde pararam. A sede pela sabedoria era imensa e ele desejava não ter que trabalhar no atelier no período da manhã. Assim, as manhãs se arrastavam e as tardes voavam. Logo que a livraria abriu no início da tarde do dia seguinte, Eugene já estava lá, desta vez com Isabelle, que se entusiasmara vivamente com os relatos do namorado. – Espero que não se importe por eu ter convidado Isabelle para vir aqui. Pode acreditar, ela também se interessa pelas mesmas coisas que eu. – Ora, como eu poderia me importar diante de tanta beleza. Seja bem-vinda Isabelle. Entrem e fiquem à vontade. – Viu só? “Tanta beleza” – disse Isabelle a Eugene, erguendo as sobrancelhas e sorrindo. – Concordo plenamente – respondeu Eugene. Dentro da livraria, Isabelle teve a impressão que entrara na máquina do tempo e desembarcara no século retrasado, tal era a fidelidade e a perfeita conservação de tudo o que via ao seu redor. – Que chocante – disse Isabelle, surpresa diante da cena. – Como é que o senhor conseguiu manter tantas antiguidades em tão perfeito estado? Olha só, os móveis, as estantes e até o chão, tudo tão conservado! Parece que a gente está em outra época! – Mas Paris é de outra época, não é verdade? Eu não mudei nada aqui dentro. Tudo é original. Nunca houve outras estantes, outros móveis ou outro chão. Bastou apenas um pouco de esmero por parte de todos os que me antecederam nesse imóvel, e o mesmo cuidado da minha parte também. E se você examinar com mais atenção, poderá notar que os livros daquela estante ali, particularmente, obedecem à mesma condição – disse o livreiro, 67


indicando uma estante em especial, mais ao fundo da loja. Isabelle dirigiu-se imediatamente ao local apontado pelo livreiro e começou a manusear os livros. Seus olhos brilhavam de entusiasmo. Livros do século passado em perfeito estado, como se tivessem sido encadernados naquele dia. “Como é possível” – pensava ela. Recolocou os livros em seus lugares, virou-se para os dois que a observavam e, caminhado na direção de Eugene, disse: – Por que você não me trouxe aqui antes? – Pois é... não sei – engasgou. Enquanto Isabelle olhava, fascinada, as instalações da livraria, um homem muito velho entrou e tomou a atenção do Sr. Cayler por longos quarenta minutos. – Nossa, que loucura, – disse Isabelle – tem livros ali de mais de cem anos e estão perfeitos. Como é possível? Onde ele arranja esses livros? Acho que ele vende por uma fortuna cada um. – Eu acho que só alguns desses livros são muito caros; a maioria, não. Eu já comprei diversos livros dele e não foram tão caros assim. Agora, eu não sei como ele consegue viver em Paris vendendo tão poucos livros, porque, cá pra nós, pouca gente entra aqui na livraria, né? – disse Eugene, apontando para um lugar praticamente vazio. – É – concordou Isabelle. – Mas eu continuo curiosa pra saber onde ele consegue esses livros. Eugene podia ver a porta da livraria de onde estava sentado e esperou até que o cliente saísse. – Nossa, até que enfim, pensei que não fosse embora nunca. Esse aí deve ter uns duzentos anos de idade – comentou o rapaz. – Shhh... fica quieto Eugene, tá louco? – bronqueou Isabelle. Eugene levantou-se e foi falar com o livreiro. – Desculpe a curiosidade, mas o que aquele homem queria pra demorar tanto e não levar nada? – Ele procurava livros sobre alquimia. Contou que um amigo sugeriu a ele que a Grande Obra Alquímica seria um assunto 68


interessante para “preencher as horas de um velho que não tem muito que fazer”. Mas eu o fiz desistir da ideia. Alquimia não é algo que sirva apenas para matar o tempo. – Grande Obra? – interrompeu Eugene. – E o que é exatamente a Grande Obra? – É a famosa Magnus Opus da Alquimia. Você sabe alguma coisa a respeito de alquimia, filho? – perguntou o Sr. Cayler. – Bom, levando em conta o que eu já ouvi do senhor, acho que não sei nada, mas imagino que os alquimistas certamente não eram apenas visionários que queriam transformar chumbo em ouro. – A transformação de chumbo em ouro é uma das muitas simbologias que os alquimistas do passado utilizaram para velar seus segredos. Aqueles que lêem as obras dos alquimistas, se não tiverem a chave, perdem seu tempo. – Chave? – disseram Eugene e Isabelle, quase ao mesmo tempo. – Sim, a chave. – E seria alguma coisa tipo... uma chave linguística, gramática, ou coisa assim? – perguntou Eugene. – Bem, não se trata apenas de uma chave léxica ou etimológica como muitos imaginam, no entanto a etimologia, unida à fonética, auxilia bastante no trabalho de decifração da simbologia alquímica, mas trata-se de uma chave que, além dos fatores linguísticos, deve possuir outras duas qualidades fundamentais: a intuição e o conhecimento. Isabelle e Eugene olharam-se, demonstrando claramente que não haviam entendido bem o que disse o livreiro. – O senhor poderia explicar melhor? – perguntou Eugene. – Claro, vamos lá: nós vivemos em uma época em que não há problemas em se falar abertamente sobre esse tipo de assunto. Nas livrarias de todo o mundo as prateleiras estão cheias de livros esotéricos, espiritualistas e até livros de bruxaria e magia negra. Tudo isso é muito comum e amplamente divulgado; porém, houve um período, registrado e documentado pela História, em 69


que as coisas não eram assim tão fáceis. Vejam, por exemplo, a Idade Média. Naquele tempo, a Inquisição acendia suas fogueiras para queimar vivos os acusados de heresia. Qualquer atitude ou pensamento que fosse diferente das regras da Igreja resultava na fogueira. Imagine então a dificuldade que tinham os Iniciados para ocultar suas atividades e não irem queimar no fogo do Santo Ofício. Por conta disso, e de outras razões ainda mais importantes que não convém falarmos agora, os ensinamentos eram guardados em absoluto segredo e quando eram registrados em manuscritos, se o faziam de maneira hermética, codificada, para que o vulgo, se chegasse a ter acesso a essa leitura, não conseguisse compreender o verdadeiro significado do que ali estava escrito. Assim o fizeram os Grandes Alquimistas que não foram alcançados pelo longo braço da Inquisição. Eugene e Isabelle ficaram em silêncio, tentando digerir o que ouviram até aquele momento. Além disso, a maneira tão clássica e, para eles, tão antiquada que o livreiro tinha para falar, dificultava um pouco o entendimento das coisas. O Sr. Cayler, por sua vez, aguardava pacientemente a digestão de palavras e ideias. – Não quero ser petulante, – retomou Eugene a palavra – mas o senhor acabou não respondendo à minha pergunta sobre a Grande Obra. – Eu não esqueci a sua pergunta, meu rapaz. Estava esperando que você conseguisse dissipar um pouco da sua ansiedade natural. Mas como não ficar ansioso diante da exposição de fatos que faziam descortinar um Universo diferente, visto por um novo ângulo? Eugene conhecia – pelo menos superficialmente – um ou outro texto clássico de alquimia e imaginava que fazer a Grande Obra seria conseguir obter a tão almejada e desconhecida Pedra Filosofal. – A Grande Obra – continuou o Sr. Cayler – é aquilo que todo ser humano tem, em potencial, condição de realizar, porém poucos conseguem reconhecer e compreender essa necessidade. 70


Desses poucos que percebem, alguns conseguem descobrir como se faz. Desses ainda, poucos são capazes de por mãos à obra e fazer o trabalho e, por fim, desses últimos, poucos são os que realizam completamente a Grande Obra e cumprem o Magistério. Isso significa, em outras palavras, exatamente aquilo que disse o Grande Mestre Jesus: “De mil buscam, um me encontra. De mil que me encontram, um me segue. De mil que me seguem, um é meu”. – Que lindo! – disse Isabelle. Eugene ficou pensativo por alguns instantes, enquanto gesticulava, traçando no ar, como se fosse numa lousa, uma operação matemática cujo resultado parecia ser astronômico. – É... é lindo e desesperador – comentou Eugene. – Por que desesperador, amor? – perguntou Isabelle. – Olha só: de cada mil que buscam apenas um encontra, até aí tudo bem. Agora, pra formar mil que encontram é necessário ter um milhão de pessoas, certo? Mil multiplicado por mil. E desse milhão, apenas um O segue. – Certo – disse Isabelle. – Continuando: pra formar mil que seguem é preciso de um bilhão, certo? Um milhão vezes mil. E desse bilhão, apenas um pertence, por assim dizer, a Jesus. – Nossa, que loucura – disse Isabelle, arregalando os olhos. – Só uma correção, filho: pertence ao Cristo. – Não é a mesma coisa? – Superficialmente, sim; profundamente, não. – Não entendi bem. – Entendam que Cristo não é o sobrenome de Jesus. – Ainda não entendi, senhor Cayler. – A Igreja católica, ao longo dos séculos, trabalhou intensamente para vincular o nome Cristo exclusivamente à Jesus e, como se vê, esse trabalho foi um sucesso. Não é muito comum ver alguém dizendo: Jesus, “o” Cristo, ou “o” Cristo Jesus, não é? – É, não tinha reparado nisso – disse Eugene. 71


– É natural. São tantos séculos de conceitos e pensamentos impostos à humanidade, que nós nem percebemos, apenas digerimos sem mastigar. – É mesmo, né? – disse Isabelle, olhando para Eugene e arqueando as sobrancelhas. – Compreendam que Cristo é impessoal, é um princípio cósmico, uma força universal que encarna em todo aquele que esteja preparado. Jesus se preparou e, portanto, O encarnou. Em todos os povos e religiões, em todos os tempos, há um Cristo com diferentes nomes. Não é exclusividade de uma única religião. Nenhuma religião e “dona” do Cristo. – Que coisa incrível – disse Isabelle. – A gente não sabe de nada mesmo, né? – É verdade, filha. – Mas e esse negócio dos “mil que me buscam...”? – perguntou Isabelle. – Quanto a isso, Eugene está certo – respondeu o livreiro. – O cálculo está correto, no entanto trata-se apenas de uma simbologia, para nos indicar o quanto é difícil alcançar o Cristo, e nos indica também que pouquíssimos são os que conseguem. – Mas e os milhões ou bilhões, sei lá, de cristãos pelo mundo, como ficam? Afinal de contas, todo mundo se agarra na esperança da salvação, na esperança de ir pro Céu. Como é que fica? – retrucou Eugene. – Pois é filho, esse é um assunto espinhoso, não? Será que todos os fiéis, das mais diversas religiões, vão para o Céu? Que diferença poderia haver entre um fiel que apenas vai à missa aos domingos, de outro que vai à missa com mais frequência; de outro que, além de ir à missa com frequência, ainda ajuda os pobres e necessitados; de outro que resolveu ser sacerdote e, por fim, de outro que chegou ao mais alto posto hierárquico de sua igreja? – E agora? Não sei – respondeu Eugene. – Então, leve isso para o travesseiro, filho. – É ... tá bom. 72


– E essa frase que Jesus disse, – perguntou Isabelle – está na Bíblia? – Não – respondeu o livreiro. – Então, como é que... – Sim, sim, – interrompeu o Sr. Cayler – já sei, filha. Você não é a primeira que reage assim com relação a essa frase de Jesus. – É? – Pois é, mas há muita coisa que Jesus disse e fez que não está na Bíblia. – Eu imagino que sim – disse Eugene, conformado. – Mas, voltando ao assunto da realização da Grande Obra, o senhor dizia... – Eu dizia que a tarefa é difícil, mas não é impossível – rematou o livreiro. – É necessário, como primeiro passo, que se entenda que aquilo que os nossos olhos físicos veem não é tudo o que existe. Mas isto já foi dito muitas vezes na história do mundo pelos mais diversos Mestres. No entanto, parece que pouca gente compreendeu. – É verdade – concordou Isabelle. – O material, meus filhos, deve ser encarado apenas como meio e não como fim. Compreendem isso? Não como fim, repito, mas como meio apenas. – Entendemos – respondeu Isabelle. – Na verdade, um percentual mínimo da humanidade compreende isso profundamente e é capaz de viver segundo essa compreensão. Por outro lado, muitos dizem que compreendem, mas, infelizmente, eles pensam que compreendem, porque na hora das provas têm medo de que lhes falte o alimento ou as roupas; têm medo pelos seus filhos, pelos seus pais; têm medo de perder seus bens, suas posses, sua segurança, seu conforto, etc. Eugene demonstrava preocupação e uma ponta de desânimo depois do que acabara de ouvir. – Não desanime, filho, nem você, Isabelle. Apenas compreendam que as pessoas que acham que a vida se resume 73


a trabalhar diariamente, descansar no fim de semana, tirar férias uma vez por ano e repetir tudo outra vez no ano seguinte, viajar, constituir família, ter filhos, divertir-se, comer, dormir, lutar para ter uma casa, um carro, acumular bens e riquezas, deixar heranças e etc., certamente não realizarão obra nenhuma e deixarão esse mundo vazios de conhecimento e, portanto, retornarão. E esses, acreditem vocês ou não, formam a imensa maioria da humanidade. – Mas e aqueles que se interessam pelo caminho espiritual? – perguntou Eugene. – Bem, há aqueles que sentem um impulso interno, uma inquietação espiritual que os levam, naturalmente, a procurar as respostas nas religiões, nas escolas esotéricas ou nas ordens místicas. Já é um bom começo, mas se não entenderem a essência do que está por trás das simbologias e das alegorias que todas as religiões têm, serão somente leitores vorazes de livros místicos e esotéricos e conhecerão apenas a letra morta desses livros, assim como o faz o fanático religioso que conhece o livro sagrado de sua religião do começo ao fim, cada frase, cada palavra, cada capítulo e cada versículo e se acha um poço de conhecimento e virtudes. Alguns até saem pelo mundo dando palestras, fundando religiões e pretendendo distribuir uma sabedoria que não possuem. – É mesmo. Já vi muitos desses por aí – disse Isabelle. – Essa classe de gente é representada na Bíblia, por exemplo, pelo cego que guia cegos. – É, já deu pra entender a simbologia, nesse caso – concluiu Eugene. – Isso mesmo, filho. Líderes cegos conduzindo fiéis cegos. Triste realidade. – É mesmo – concordou Isabelle. – Existe outra alegoria na Bíblia que também se refere aos cegos e que é bastante interessante: numa certa passagem do evangelho, o Cristo cura um cego. Vocês devem conhecer, não é? – Aham – disse Isabelle, balançando a cabeça positivamente. – Muito bem, na realidade, o cego deste caso é uma 74


simbologia que se refere àquele que não “enxerga o caminho”... Compreendem? – O caminho espiritual, né? – perguntou a jovem. – Exato, filha. Vocês compreendem bem as coisas. Que bom. Olharam-se e riram. – Existe, no entanto, aquele que consegue descobrir o que há por trás das palavras, quer seja por seu próprio esforço, ou por ajuda externa. São os que passam a “enxergar o caminho”. Esses já terão dado um passo a mais na estrada. Porém, se depois de terem descoberto o Grande e Impronunciável Segredo, não o praticam, não fazem uso dele para o seu próprio bem e para o bem dos demais, fracassam e passam a carregar um peso maior ainda do que os que nada sabem; porque descobriram o Arcano Secreto e não foram fiéis a ele. Há um ditado assim: De quem mais sabe, mais será cobrado... – Responsabilidade – disse Isabelle. – Isso mesmo, filha. – E esses que já conseguem enxergar o caminho e não fazem nada, também estão na Bíblia, debaixo de alguma simbologia? – perguntou Eugene. – Ótima pergunta, filho. Esses se assemelham ao paralítico ou cocho do evangelho: são aqueles que não conseguem “andar no caminho”... – Ahhh! – disseram ambos. – Depois, existe aquele mais sério e dedicado que põe em prática aquilo que aprendeu e consegue avançar no caminho, mesmo que uma vida apenas não seja tempo suficiente para terminar o trabalho. E, por fim, há aquele que, armado de perseverança e vontade de aço, realiza totalmente a Grande Obra. Assim se distinguem os homens. Pelo fruto se conhece a árvore. Eugene e Isabelle sentiam-se pequenos – e estimulados – frente ao imenso conhecimento que havia para ser descoberto e cuja ínfima parte lhes estava sendo apresentada por um homem que, a cada palavra, revelava ser mais do que aparentava. – Então, toda a sabedoria contida na Bíblia também estaria 75


velada pela simbologia? – perguntou Eugene. – Sim, a sua conclusão está correta. A Bíblia é um livro codificado. Além disso, muitos outros livros, considerados não canônicos, foram rejeitados na composição geral da obra. Hoje, o que nós temos são versões da Bíblia para a tradução nas diversas línguas, como a Vulgata, por exemplo, que é a versão latina “autorizada” pela igreja católica. No entanto, essas versões são incompletas e estão codificadas pela linguagem simbólica. Aliás, a própria expressão “Vulgata” já nos permite entender que é destinada ao vulgo, isto é, às pessoas comuns, aos fiéis que lotam as igrejas do mundo e que ficam limitados e sem saber o que há por trás das palavras. – Dessa maneira, milhões de pessoas seguem acreditando que o homem saiu do Paraíso porque comeu uma fruta... Continuam crendo que Noé construiu um enorme barco... Permanecem sem entender o que significa a serpente de bronze que Móises ergueu numa vara e outras tantas coisas. Esse, meus caros amigos, é o estado em que se encontra a humanidade: cegos guiando cegos. E ainda que a Verdade ou o seu portador venha até eles, não a reconhecem e seguem agarrados aos seus dogmas, herdados de seus pais, de seus avós e assim por diante. – Não há, pois, libertação nem na evolução e nem na involução, mas na revolução. Revolução particular e interna de cada um. Devemos retirar todo o lixo que carregamos dentro de nós mesmos, para que a essência pura apareça. Esta é a revolução. Os jovens escutavam, boquiabertos, a exposição de uma nova maneira de encarar aquilo que, por intuição, já sentiam, mas que desconheciam o “modus operandi”. O livreiro assumia, na concepção do jovem casal, a posição de um abalizado instrutor que os conduziria pelo misterioso caminho da sabedoria. Eugene e Isabelle eram puro entusiasmo e excitação com a possibilidade de terem, enfim, encontrado a fonte onde poderiam satisfazer sua sede de conhecimento e, enquanto escutavam, se olhavam, sorriam e davam-se as mãos numa evidente e quase infantil atitude de contentamento. 76


– Senhor Cayler – disse Eugene, reverente – eu queria perguntar, e sei que posso falar por Isabelle também, se o senhor nos receberia como discípulos? A pergunta, de certa forma, pegou o Sr. Cayler de surpresa que, embora percebesse o entusiasmo dos dois, não esperava tal atitude. – Discípulos? Não. Eu não quero que sejam meus seguidores ou de quem quer que seja. Prefiro que sejam comprovadores. – E o que seria um comprovador? – perguntou Isabelle. – Aquele que não depende da opinião dos outros, aquele que pensa com sua própria cabeça, aquele que comprova, por si mesmo, se é falso ou verdadeiro aquilo que lhe dizem. Portanto, se eu lhes disser, por exemplo, que em todo o universo existem dimensões paralelas e que é possível penetrar nelas, vocês devem comprovar se o que digo é verdade, visitando, pessoalmente, essas dimensões. Assim é como fazem os homens e mulheres verdadeiros. Sabem, não porque lhes disseram, mas porque vivenciaram. – E existem essas dimensões? – Sim – respondeu o livreiro. – E como é possível penetrar nessas outras dimensões? – perguntou Isabelle – No devido tempo você saberá. Mas agora eu gostaria de convidá-los a um passeio, que tal? – sugeriu o Sr. Cayler. – Eu acho uma ótima ideia. – disse Isabelle, imediatamente pondo-se em pé. – Um instante. Vou pedir a Catherine que fique no balcão até voltarmos. Embora a fina garoa que começava a cair fosse um convite a não irem para a rua, Eugene, Isabelle e o Sr. Cayler, ao cabo de quinze minutos, estavam diante da Catedral de Notre-Dame e ali ficaram, sob dois guarda-chuvas, estáticos e mudos por alguns instantes. 77


– Eu não me canso de olhar para ela – disse Isabelle, rompendo o silêncio. – Cada vez que venho até aqui e fico observando, eu descubro algum detalhe novo que não tinha percebido antes. É muito legal. – Quanto trabalho deve ter dado a construção de um monumento como esse tão cheio de detalhes! – falou Eugene, pensativo. – Cerca de duzentos anos de trabalho – observou o Sr. Cayler. – Eu acho que o arquiteto que projetou essa catedral deve ter sido alguém que sabia das coisas – disse Eugene, olhando para o livreiro. – Com toda certeza, filho. Aqueles que conceberam e projetaram essa obra e alguns dos artistas que aqui trabalharam, principalmente os responsáveis pelos afrescos, estatuaria e mosaicos, conheciam a Magna Arte e quiseram transmitir seus segredos aos que pudessem ver através da pedra. Sábia decisão. – Por quê? – perguntou Isabelle. – Porque a rocha conserva-se ao longo dos séculos, mas os livros se deterioram rapidamente. – É verdade – concordou. – E que segredos seriam esses, senhor Cayler? – Indicações, minha jovem. Preciosas indicações que podem levar aquele que souber interpretá-las às portas do Grande Segredo, hermeticamente guardado pelos alquimistas do passado. – Caramba, quem é que podia imaginar isso? – disse Eugene, entusiasmado. – Tá tudo aí, na nossa cara, mas é como se não estivesse. – É mesmo – disse Isabelle. – Esses alquimistas eram bem inteligentes, né, colocaram tudo na nossa cara, mas também colocaram um véu tão grosso que ninguém vê nada. De bobos eles não tinham nada. – Tem razão, filha – concluiu o livreiro. – Mas o fato do senhor ter trazido a gente até aqui tem alguma relação com as coisas que a gente estava conversando na 78


livraria? – quis saber Isabelle. – Sim, embora não diretamente em relação à catedral. Na verdade, meu intuito é sugerir meios para que você e Eugene encontrem o caminho, porém não posso levá-los pela mão até ele. Essa tarefa cabe a vocês. – E como se chega até o caminho? – perguntou Eugene. – Sabendo reconhecer os sinais, as indicações que o revelam e, principalmente, interpretar corretamente esses sinais. – E o senhor poderia nos dizer onde estariam esses sinais? – O mundo inteiro está cheio de sinais, mas só os percebem aqueles que estão alertas e predispostos a percebê-los. Esta catedral, por exemplo, contém centenas de indicações importantes e tipicamente alquimistas, embora seja um templo cristão. Mas é importante saber que os alquimistas eram profundos adoradores e conhecedores da doutrina do Cristo e exatamente por se basearem nela é que chegaram a ser, verdadeiramente, alquimistas. – É, faz sentido – disse Isabelle. – Saibam, meus filhos, que o livro sagrado cristão, assim como as Escrituras Sagradas de todos os povos, contém muitas indicações. Porém em código. Infelizmente foram retirados da Bíblia os segredos e os relatos mais importantes. Além disso, as indicações que eu falei há pouco também estão em todas as civilizações antigas. – Em qual, por exemplo? – perguntou Eugene. – Vocês já devem ter lido algo sobre a grande civilização Maia, não é? – Já. – Pois saibam que há pouquíssimo tempo, um grande Mestre que esteve encarnado na América Latina, fez a surpreendente revelação que Jesus conhecia a língua Maia. Então eu pergunto: qual religioso, historiador ou antropólogo sabe disso? – Jesus falava Maia? – perguntou Isabelle. – Sim, falava. Aprendeu no Tibete. 79


– Tibete? Mas na Bíblia não consta que Jesus tenha ido ao Tibete – retrucou Eugene. – Não consta porque a maior parte da vida do Cristo foi suprimida da Bíblia. Ele esteve por muitos anos no Egito, onde se preparou devidamente para a grande missão que haveria de cumprir na Terra Santa. Depois, dirigiu-se à Índia e por fim ao Tibete para completar sua preparação e, só então, retornou à sua terra. Eugene e Isabelle ouviam atentamente e, certamente, imaginavam o que fariam os cristãos ao redor do mundo se essas afirmações fossem, efetiva e documentalmente, comprovadas. – Há um relato desse grande Mestre – continuou o livreiro – que revela que Jesus falou em um dialeto ritualístico Maia quando disse, na cruz: Eli, lammá sabachtani! – Mas isso não é hebraico, aramaico, ou alguma língua daquela época? – perguntou Eugene. – Não. É linguagem ritualística Maia. – E o que significa? – A tradução é: “Agora, submerjo-me na aurora de Tua presença”. Muito diferente daquilo que diz a Bíblia. – Incrível – disse Isabelle. – Pois é, – continuou o Sr. Cayler – se o mundo soubesse, detalhadamente, o que fez Jesus dos doze aos trinta anos, os padres rasgariam suas batinas e se revoltariam contra Roma. Em minha opinião, em se tratando da imensa massa de fiéis, já não há mais como consertar esse doloso engano. Agora cabe a cada um que ousar descobrir a verdade, praticá-la e calar-se, sob pena de ser considerado tolo ou herético. Assim, meus filhos, eu lhes mostro os sinais, mas desvendar os segredos é tarefa de vocês. Mais alguns minutos se passaram sem que nenhum dos três dissesse qualquer palavra. – Bem – disse o Sr. Cayler – agora, antes de irmos para nossas casas, quero que escutem com atenção o que vou dizer e, já que estamos diante de um templo cristão, usarei termos 80


cristĂŁos: Aquele que deseja entrar no CĂŠu deve ter a coragem de derrubar a porta... O CĂŠu, pois, toma-se de assalto...

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Escreve Magaloni Duarte: Nós podemos provar que Jesus esteve no Himalaia por um longo tempo. Em um texto que ainda existe no Mosteiro de Hemis, em Leh, Cachemira (ao lado do Tibete), encontramos os fatos históricos indiscutíveis a respeito de como e onde Jesus esteve durante sua histórica ausência (ausência textual dos evangelhos). O texto diz, ao pé da letra: Quando Jesus deixou sua terra natal, primeiro foi ao Egito e ali estudou a antiga religião Osiriano-Maia. Do Egito foi para a Índia e, em muitas cidades, inclusive Benares e Lahore, estudou os ensinamentos do Buda Gautama. Depois, ingressou num monastério do Himalaia onde estudou o maia e suas ciências cósmicas. Ao fim de 12 anos, converteu-se em um Mestre. Continua Duarte: Existem diversos templos e monastérios na Índia e no Tibete que ainda guardam textos que fazem referência a Cristo durante esse espaço de tempo. No monastério de Lhasa, no Tibete, há um texto que afirma o seguinte: Jesus tornou-se o mais competente Mestre que esta terra já viu.

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Capítulo 11

Queijo, tomate e a cabeça no mundo da lua

A garoa havia parado e o Sr. Cayler deixara Eugene e Isabelle com seus pensamentos e um guarda-chuva diante da catedral e retornara à livraria. Estava lançada a semente... A chispa da inquietude interna fora atiçada e os primeiros resultados não tardariam. Sobre os portais da fachada oeste – o da Virgem Maria, o de Santa Ana e o do Juízo – os Reis do passado, cada qual em seu nicho, foram testemunhas mudas dos primeiros passos de dois seres que, movidos pelo mesmo desejo de Salomão, abdicaram em silêncio aos interesses meramente materiais e mundanos em favor de um objetivo maior e mais nobre: a Sabedoria... o conhecimento dos Mistérios Divinos e Humanos... os segredos da Vida e da Morte... o “religare” com Deus. Longo caminho; perigoso caminho. Suportá-lo até o fim é tarefa para poucos. – Já chegou? – perguntou a Sra. Cayler. – Pensei que você ficaria mais tempo com eles. O que houve? – Nada de mais. Deixei-os pensando – respondeu o livreiro. – Onde vocês foram? – Na catedral. – Oh, a catedral. Quantas lembranças. E tão antigas – disse a Sra. Cayler. – Diga-me, Catherine, você acha que eles são capazes? – Nós éramos, no início? Lembra-se das dificuldades? Do medo da exposição pública? – Como poderia esquecer – respondeu o Sr. Cayler, fechado os olhos. – Quer saber minha opinião? Eu acho que eles têm mais 85


condições do que nós tivemos no passado. Pense bem: quem os reprimiriam, se desconfiassem de algum comportamento diferente? Quem os condenariam, por serem diferentes? A liberdade dos tempos atuais está a favor deles. – Você tem razão. O que eu faria sem você? – disse o Sr. Cayler, sorrindo e abraçando sua mulher. – Provavelmente ainda seria um ferreiro barbudo e fedido. No metrô, de volta para casa, Eugene e Isabelle repassavam as coisas que ouviram do Sr. Cayler, na tentativa de dirimirem, ao menos em parte, as dúvidas que não paravam de crescer. – O que seriam, exatamente, essas indicações que ele falou? – perguntou Isabelle, sentada ao lado do namorado. – Bom, eu imagino que sejam dicas ou sugestões pra se encontrar algum segredo ou qualquer coisa assim. – Então, tá na cara que primeiro a gente tem que encontrar essas indicações pra depois tentar interpretar tudo – concluiu Isabelle. – E aí é que vem a parte mais difícil: a interpretação – rematou Eugene, calando-se em seguida, pensativo. A paisagem subterrânea que Eugene via através do vidro da janela era uma fusão entre o débil e estático reflexo dele mesmo com a dominante imagem de paredes e pilastras de concreto que passavam muito rápido, formando um quadro surreal que mal era percebido pelo rapaz, submerso num mar de conjecturas, alheio também à voz de Isabelle que recitava um monólogo, sem perceber. O trem parou com um leve solavanco e as portas se abriram, porém Eugene nem teria percebido que aquela era a estação deles, não fosse por Isabelle, que o sacudiu, resgatando-o do sonho em vigília. – Eugene, chegamos! – disse Isabelle, pela segunda vez. – Já?! – perguntou, ainda à margem do que estava acontecendo. 86


– Vem, vamos descer. Umas poucas quadras separavam a estação do metrô da rua onde morava Isabelle. Eugene continuou em silêncio durante o trajeto enquanto ela o olhava reconhecendo nele aquela expressão introspectiva que já vira muitas vezes e que costumava respeitar. A imagem de Camille Doré flutuava diante de Eugene. “Até onde será que ele chegou?” – imaginava – “A quais segredos teve acesso? Qual teria sido o papel do Sr. Cayler na vida do meu avô?” A Sra. Lallaut, regava o pequeno jardim que havia diante da casa, quando ouviu a voz de Isabelle mesclada ao ranger do velho portão metálico: – Molhando as plantas a essa hora, mãe? – Oi, filha, oi, Eugene. Pois é, só agora me sobrou tempo para isso. – Posso ajudar, Claudine? – perguntou Eugene. – Não precisa, eu já terminei. Venha, vamos entrar. A relação que havia entre Eugene e Claudine era muito boa – para alegria de Isabelle – e algumas vezes até melhor que o próprio relacionamento de Eugene com sua mãe. Claudine era jovem e, guardadas as devidas proporções, conseguia acompanhar o ritmo e a maneira de pensar de Isabelle. Além disso, considerava que sua filha havia feito uma ótima escolha namorando Eugene. – Que tal uma bela baguete com muito queijo, rodelas de tomate, sal e azeite? – perguntou Claudine dirigindo-se à copa. – Irrecusável – respondeu Eugene. Ao cruzar a sala de estar, num gesto mecânico, Claudine beijou os dedos e, sem deter a marcha, passou-os pelo retrato de seu marido que tinha lugar de destaque sobre o aparador ao estilo art nouveau. Em poucos minutos os lanches foram devorados avidamente pelo jovem casal, que parecia saído de um longo jejum. – E então, onde estiveram hoje? – perguntou Claudine. 87


– Fomos à catedral, mãe. – Muitos turistas por lá? – Como sempre. O dia em que alguém tiver a ideia de vender pomada para torcicolo na saída da catedral vai ficar rico – disse Isabelle, imitando as pessoas que saem da catedral massageando o pescoço, de tanto olharem para cima. Enquanto Claudine e Isabelle conversavam, Eugene, alheio, não conseguia parar de pensar no que o livreiro havia dito sobre tomar o Céu de assalto. “Um pouco de exagero dele, talvez. Mas, por outro lado, pode fazer sentido. Será que frequentar a igreja aos domingos, rezar todas as noites, conhecer a Bíblia de trás para frente e, de vez em quando, dar uma esmola a um mendigo pode salvar alguém? Eu acho que não...”. – Olá, tem alguém ai? – perguntou Isabelle em tom de brincadeira, dando um tapinha na cabeça de Eugene. – Como estava a Lua? – Desculpe, do que é que a gente estava falando, mesmo? – Deixa pra lá, Eugene. Quer mais um lanche? – perguntou Claudine. – Não, obrigado. Eu já vou embora – respondeu Eugene, levantando-se. – Você está bem, meu filho? – perguntou Claudine, segurando o rosto do rapaz com as duas mãos e olhando diretamente em seus olhos. – Tudo bem, só um pouco cansado. Não se preocupe. Você me acompanha até o portão, Isabelle? – Claro. – Tchau, Claudine! – Tchau, Eugene! Cuide-se bem – disse Claudine que, obviamente, não acreditara muito no repentino cansaço do rapaz. – As coisas que o Sr. Cayler disse mexeram um bocado com você, né? – perguntou Isabelle, enquanto abria o portão. – Mexeram, sim; mas eu acho muito bom que isso tenha 88


acontecido – explicou. – Talvez eu seja uma dessas pessoas que precisa de um choque para ter um estalo e entender melhor as coisas... Bom, amanhã a gente se vê. – Tá bom, até amanhã! Cuidado por aí – disse Isabelle, beijando seu namorado e passando as mãos, carinhosamente, em seus cabelos. Isabelle tinha razão quanto ao estado emocional de Eugene. As afirmações categóricas do Sr. Cayler efetivamente haviam produzido um choque em sua consciência, porém um choque que certamente haveria de ser a pedra fundamental do edifício que o rapaz começava a construir naquele momento. Se as bases fossem sólidas e verdadeiras, o edifício não teria limites para crescer e, além disso, Eugene contava com o melhor mestre-deobras que poderia encontrar: um livreiro chamado Cayler.

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A porta que conduz ao caminho estreito e apertado tem sua representação material e física neste mundo, porém essa porta encontra-se perdida para os olhos dos homens e coberta por um espesso véu tecido com os fios da ignorância, do escândalo e da animalidade.

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Capítulo 12 Objetividade

Os dias seguiam sempre com a mesma rotina: pela manhã o trabalho no atelier e à tarde, impreterivelmente às quatorze horas, Eugene estava em frente à Livraria Cayler, às vezes acompanhado de Isabelle. O jovem luthier mostrava-se um aprendiz atento e interessado, sorvendo cada palavra de seu paciente instrutor como o peregrino que tem a sorte de encontrar em seu caminho fonte de água límpida e inesgotável. O Sr. Cayler adotara o critério de esperar que o rapaz tomasse a iniciativa de mostrar interesse por um determinado assunto para só então abordálo mais profundamente. No entanto, com o passar do tempo Eugene percebia que as informações que recebia serviam apenas para aumentar a sua “cultura mística”, com poucos resultados práticos. Assim, sentado à cabeceira de sua cama após uma tarde de palestra com o livreiro, Eugene tomou a decisão de ser mais prático e objetivo em seus estudos. “As indicações... – pensava o rapaz – a chave está escondida nas indicações...”.

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Capítulo 13

O primeiro degrau

O Sr. Cayler habituou-se com o fato de que, ao reabrir a porta da livraria às quatorze horas, encontraria Eugene do outro lado da rua, esperando-o. E desta vez não foi diferente. – Oi, senhor Cayler. – Olá, filho. Entraram e o rapaz dirigiu-se apressadamente à mesa de leitura, onde em geral conversavam, aparentando mais ansiedade do que de costume. – Algo errado, meu rapaz? – perguntou o livreiro. – Você me parece um pouco agitado. – Eu não diria agitado, mas é que eu estava ansioso para conversar com o senhor. – Pois aqui estou. Pode falar. – Bom, eu estive pensando e ontem à noite fiz um apanhado de tudo que nós já conversamos e acabei chegando à conclusão que, embora tenham sido conversas muito ilustrativas e esclarecedoras... bem... espero que o senhor não se ofenda, mas é que eu acho que não foram muito produtivas, entende? Não quero ser atrevido, mas eu acho que... – Você me surpreende, rapaz – disse o Sr. Cayler com um largo sorriso, interrompendo o discurso um tanto encabulado de Eugene. – Julgava que você demoraria mais tempo para chegar a esta conclusão e muito me agrada saber que eu estava errado. Eugene olhava para o livreiro com certo espanto, já que não podia imaginar que ele esperava que isso fosse acontecer e que, além disso, se alegrasse pelo fato. – Meu caro Eugene, não pense que o teor de nossas conversas tenha sido algo inútil. Pelo contrário. Ilustrar-se sobre as questões filosóficas e místicas da vida é saudável. Serve de base para futuras interpretações e comparações que, inevitavelmente, você terá de fazer. No entanto, não seria muito prático se ficássemos apenas 95


nesse nível de conversação. Conjecturas... teorias... A teoria, sozinha, é pó. Você compreende o que eu digo? – Claro – respondeu o rapaz. – Scire, potere, audere, tacere1 – exclamou, entusiasmado, o Sr. Cayler, enquanto apertava as mãos de Eugene, que olhava para seu instrutor sem entender uma palavra. – O que foi que o senhor disse? – Eu disse: saber, poder, ousar, calar. É latim, filho. Uma citação. – E o que significa? – perguntou Eugene. – São os requisitos indispensáveis para aqueles que desejam chegar ao conhecimento dos altos segredos da Magna Arte. E eu disse isso porque você demonstra possuir um deles, não necessariamente na ordem que eu os expus. Mas, enfim, pergunte o que quiser. – Tá certo. Bom, o senhor se lembra daquele dia que nós estávamos em frente à catedral? – perguntou Eugene. – Claro. – Pois é. Naquele dia o senhor falou sobre as indicações que a catedral possui. Então, eu queria mesmo é saber o que seriam, na prática, essas indicações e onde estão. – As indicações, como eu já disse antes, encontram-se espalhadas por todo o mundo. Em monumentos como a nossa catedral de Notre-Dame, nos livros sagrados das mais diversas religiões, nos textos alquimistas, etc. Enfim, quer estejam gravadas na pedra ou no papel, as indicações estão abertas e disponíveis a quem quiser vê-las. Porém, contemplá-las ou lê-las apenas não basta. É necessário que se chegue à compreensão do que elas significam. – Na verdade, são três etapas bastante distintas que você deve observar: primeiro, reconhecer os sinais, depois, tirar deles seus significados ocultos e, por fim, colocá-los em prática. Assim 1

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Zoroastro


o fizeram os grandes alquimistas e assim deve fazer qualquer um que almeje trabalhar na Grande Obra e um dia chegar a possuir a Pedra Filosofal. Mas já lhe adianto que a última das etapas é a mais difícil e dolorosa; todavia é a mais importante das três, porque quando não se põe em prática o segredo que tanto esforço custou para ser descoberto, o trabalho está perdido, pois, como já lhe disse, a teoria, sozinha, é pó. – Pelo que eu vejo – disse Eugene – o caminho é bem difícil, né? – Sem dúvida, meu rapaz, sem dúvida – concordou o livreiro. – Veja bem, você poderia ser um luthier de sucesso, ganhar muito dinheiro, ter fama por toda a Europa e viver confortavelmente com os rendimentos que essa atividade lhe proporcionasse, no entanto escolheu outro caminho e eu me alegro pela sua escolha, porém tome muito cuidado: não se presuma alguém especial que não precisa dos bens materiais para viver. Não dá para “viver de luz”. Todos nós precisamos trabalhar e ganhar dinheiro para seguir vivendo neste mundo. O erro, isso sim, consiste em dar ao dinheiro mais valor do que ele realmente merece. Lembre-se: o dinheiro deve ser um meio e não um fim. Já que ele existe, e nada podemos fazer quanto a isso, então que seja para nos servir e não nós o servirmos. De que adiantaria se você passasse a vida engordando e fortalecendo a sua conta bancária e no fim da existência percebesse que enfraqueceu e empobreceu a sua alma? Eugene concordou com aceno de cabeça. – Ouça muito bem o que vou lhe dizer agora e guarde bem as minhas palavras, pois é um aviso: Cuidado com o que você pede a Deus, pois Ele pode lhe dar. – Como assim, senhor Cayler? – Saiba, filho, que as responsabilidades que vêm junto com um desejo concedido podem ser maiores do que se consegue perceber imediatamente. O caminho que você e Isabelle desejam seguir é difícil, doloroso e implica assumir terríveis compromissos com a Lei Divina. Essas é que são as responsabilidades que eu acabei de mencionar. 97


Eugene não dizia nada. O equilíbrio e a sensatez que emanavam daquelas sábias palavras tocavam fundo o coração do jovem luthier e só fazia crescer a admiração e o respeito pelo livreiro inglês. – Mas ainda com relação às indicações – continuou o Sr. Cayler – creio que deve começar a procurá-las nos livros, esquecendo por enquanto a Catedral de Notre-Dame. – Por quê? – Porque, por enquanto, seria difícil para você interpretar os símbolos contidos na catedral. – Ah, entendi. E o senhor sugere algum livro? – Já que nós vivemos no Ocidente e, portanto, num universo eminentemente cristão, que tal a Bíblia? O que você já leu na Bíblia? – Os evangelhos, o apocalipse e mais uma ou outra parte. – E o que você achou dos evangelhos? – perguntou o Sr. Cayler. – Uma história comovente e triste. – Pois saiba que lá nos evangelhos encontram-se diversas dessas indicações que você procura – observou o livreiro. – Se quiser posso dar algumas sugestões. – Oba! Era o que eu queria. – Pois, então, medite, por exemplo, sobre os ladrões crucificados, um a cada lado do Cristo. Especificamente os ladrões do evangelho de Lucas. Ali se encontra um pequeno sinal que conduz a um dos mais bem guardados segredos dos velhos alquimistas. – Nossa! – Pois é. E eu posso lhe dar um complemento que pode ajudar ou, pelo contrário, complicar ainda mais a sua tarefa. O que me diz? – Manda – disse Eugene, bem humorado. – Muito bem, o segredo que há por trás dos ladrões está, de certa forma, ligado à obra “A Divina Comédia” de Dante 98


Alighieri, mais precisamente no primeiro livro, o “Inferno”, no canto trinta e quatro. Quer anotar essas informações, filho? – Não precisa, eu vou lembrar de tudo até chegar em casa. – Então, está bem. Medite sobre o que eu disse. Não tenha pressa. Leve o tempo que for necessário. Tire suas conclusões e depois me procure. – Tá bom. Há algo mais que eu precise saber? – perguntou o rapaz. – Há muito mais que você precisa saber, mas por enquanto basta isso. – Obrigado, senhor Cayler. Eu volto a procurar o senhor. – Quando quiser, filho. E lembre-se: Inferno, canto trinta e quatro. Eugene deixou a livraria e tomou a direção de sua casa, levando consigo a inestimável chance de subir o primeiro degrau de uma longa escada, embora ele mesmo ainda não tivesse percebido isso.

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Capítulo 14

Ladrões e alfaiates

Três dias se passaram sem que a Livraria Cayler recebesse a visita costumeira do jovem luthier. Eugene e Isabelle leram, releram, pensaram e discutiram o tema sugerido pelo livreiro, incansavelmente, mas não conseguiram chegar a um bom termo. Não que seus esforços tenham sido inúteis, mas é que não poderiam mesmo chegar a desvendar qualquer coisa mais substancial, uma vez que não tinham vivência e experiência suficientes. Aquilo era um teste apenas, uma forma de avaliar o tamanho da vontade do jovem casal na busca do conhecimento. Mas só o Sr. Cayler sabia desse detalhe. No meio da tarde do quarto dia, sob um tépido sol de primavera, os jovens caminhavam lentamente pelas ruas de Paris. Deliberadamente lentos, aliás, como se quisessem aproveitar os últimos instantes antes de chegarem à livraria. Quem sabe um lampejo repentino fizesse com que vislumbrassem alguma solução sobre o assunto que os levava até lá. – Eugene, Isabelle, que bom vê-los aqui – disse entusiasticamente o Sr. Cayler. – Chegaram bem na hora. Catherine acabou de fazer um chá. Gostariam de uma xícara? – Claro – respondeu Isabelle. – Que bom. Venham por aqui. – disse o livreiro, tomando a frente dos dois e conduzindo-os por um corredor que levava à copa, nos fundos da livraria. Enquanto caminhavam pelo corredor, Eugene sussurrou no ouvido de Isabelle: – Será que ele é mesmo inglês? Não tem sotaque nenhum. – Shhh – disse Isabelle, sinalizando com o dedo indicador sobre os lábios. O casal e o Sr. Cayler sentaram-se ao redor de uma pequena mesa redonda. A Sra. Cayler serviu quatro fumegantes xícaras de 101


Earl Grey e sentou-se também. – Não tem problema deixar a livraria sozinha, assim? – perguntou Eugene. – Não se preocupe, filho – disse a Sra. Cayler – eu posso ouvir a sineta daqui. – Ah, é verdade. – Como tem sido o trabalho no atelier, Eugene? – perguntou o livreiro. – Para ser sincero, tem sido chato. Eu cumpro meus deveres... sem muito entusiasmo. Gostaria de ter mais tempo livre. – Tome cuidado, meu rapaz, para que você não caia no fanatismo. – Como? – indagou o jovem. – Foi o que você ouviu, filho. Nós precisamos ter equilíbrio e serenidade para entendermos que a vida, com todas as suas variantes, é composta do material e do espiritual. Os dois se completam, um necessita do outro. Nos dias de hoje, infelizmente, nós não podemos nos dedicar integralmente à busca pela sabedoria. Precisamos do pão, da vestimenta e da moradia. E só se consegue isso de forma honesta, trabalhando. E trabalhar, obviamente, ocupa a maior parte do dia, portanto, procure conviver em paz com os dois, porque ambos são necessários. – Eu sei – disse Eugene, confirmando e concordando com a afirmação do livreiro – já pensei muito nisso. – Eu vou lhes dizer uma coisa que vai, possivelmente, surpreender vocês. No entanto, ouçam apenas e não me façam perguntas sobre isso, pelo menos por enquanto, concordam? – Sim – disseram. – Muito bem. Nós falávamos sobre o espiritual e o material, não é? Pois saibam que nada, nem mesmo Deus, pode viver sem a matéria.

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– Nossa, depois de uma afirmação dessa, eu nem me atrevo a fazer perguntas. Quem sou eu! Após alguns goles de chá e dois ou três minutos sem que nenhuma palavra se ouvisse, Isabelle quebrou o silêncio abordando o assunto que ocupara as mentes do jovem casal nos últimos dias. – Sabe, senhor Cayler, desde que o senhor falou sobre os ladrões do evangelho e sobre o Inferno de Dante, nós já queimamos os neurônios, mas não chegamos a lugar nenhum, a não ser à conclusão obvia de que um dos ladrões se salvou porque se arrependeu e o outro exatamente o contrário. – Minha cara Isabelle, não despreze aquilo que lhe parece obvio demais no primeiro instante, pois ali pode estar o segredo. – Será? – disse, já mais entusiasmada. – Não tenho dúvidas. Saiba que o expediente de esconder a sabedoria sob o véu do simples e do óbvio foi largamente usado pelos adeptos da Magna Arte. No entanto, nesse caso em particular, o segredo está escondido mais além. Quando se lê aquele trecho do evangelho, o raciocínio imediato que se tem é exatamente esse que vocês tiveram. Lamentavelmente, é isso que foi planejado para os leitores da Bíblia. – Bom, essa eu não entendi – disse Eugene. – Nem eu – concordou Isabelle. – Quero que compreendam que o que aconteceu com vocês é a Vulgata cumprindo o papel para o qual foi criada: leitores que leem a letra morta e que, exatamente por esse motivo, chegam às conclusões mais simples ou mais óbvias, como vocês. – Mas, então, o que significam os ladrões, afinal? – perguntou Eugene. – A sabedoria não deve ser castrada, filho. Acostume-se com isso. Será uma regra entre nós. Lembram-se daquela famosa frase “É melhor ensinar a pescar do que entregar o peixe?” – Sim, sim, meu pai já me disse isso um monte de vezes – retrucou Eugene, erguendo as sobrancelhas. 103


– Pois é, seu pai está certo. É mais saudável eu dar uma vara de pesca do que entregar o peixe já cozido e pronto para ser comido. Se eu apenas entregasse o peixe, estaria prejudicando vocês, ao invés de ajudá-los. Compreendem o que eu digo, não é? – Claro – respondeu Eugene. – Mas é que às vezes um pequeno empurrãozinho... sabe como é... – Eu entendo, – assentiu o livreiro – por isso vou lhes ajudar, mas até certo limite. A partir daí vocês devem caminhar com suas próprias pernas. – Combinado – disse Eugene. – Então, vamos seguir outra linha de raciocínio – propôs o Sr. Cayler. – Respondam o seguinte: qual era o ofício daqueles personagens? O que faziam para viver? – Eram ladrões. Roubavam pra viver – disse Isabelle. – Correto. Seguindo por essa trilha, vamos pegar o exemplo do ladrão que se arrependeu, como você mesma disse. Vamos chamá-lo de “Bom Ladrão”. Muito bem, por acaso a Bíblia faz referência a um arrependido ladrão ou usa o termo “arrependido ladrão”? – Não – respondeu Isabelle. – Pelo que eu entendi, o “arrependido ladrão” é justamente a conclusão a que chegam os tais leitores da letra morta, inclusive nós, ou seja, é a Vulgata trabalhando, como o senhor disse. – Muito bem, minha jovem. Você captou bem o sentido da minha pergunta. Parabéns. Os jovens se olharam e sorriram. – A primeira conclusão a que vocês chegaram nesses últimos dias estaria correta se ele fosse um “arrependido ladrão”, aquele que rouba e depois se arrepende, devolvendo o produto do roubo a seu dono. Até aqui vocês entenderam? Ambos balançaram a cabeça afirmativamente, o que bastou para que o livreiro continuasse sua dissertação. – Agora, vamos trocar a profissão daqueles personagens – continuou o Sr. Cayler. – Imaginemos por um momento que 104


fossem alfaiates. Então, teríamos o bom alfaiate e o mau alfaiate. O bom alfaiate é aquele que faz roupas de qualidade, de bom corte e que são confortáveis. O mau alfaiate, por outro lado, é aquele que confecciona roupas de má qualidade e, portanto, não exerce bem a sua profissão. Concordam comigo? O aceno de cabeça de ambos dessa vez foi acompanhado de olhos quase hipnoticamente fixos em seu interlocutor demonstrando claramente que não só estavam entendendo o que ouviam, mas que também estavam admirados pela didática quase acadêmica empregada pelo Sr. Cayler. – Muito bem, agora eu proponho que transportem esse mesmo raciocínio dos alfaiates para os ladrões. Que conclusões vocês poderiam tirar? Não se passaram nem cinco segundos e Isabelle, rápida em seu raciocínio, já disparou a resposta: – Que o bom ladrão é aquele que consegue exercer bem a sua profissão, ou seja, consegue roubar. E o mau ladrão é aquele que não consegue roubar. – Exato, minha jovem. A luz começa a dissipar as trevas. – Oba! – disse a jovem, vitoriosa. – Então, por que o bom ladrão salvou-se? – perguntou Eugene. – O que pode haver de bom em roubar e, ainda mais, roubar com eficiência? – Na resposta dessa pergunta reside o primeiro passo para se conseguir chegar à correta interpretação da simbologia dessa passagem do livro sagrado – acrescentou o livreiro. Eugene e Isabelle entreolharam-se, perplexos. A ansiedade e o imediatismo – característica dos jovens, em geral – os impedia de terem a calma e a serenidade necessárias para resolverem aquele quebra-cabeça. – Quando vocês tiverem conhecimentos mais profundos, poderão olhar a questão por outro ângulo – considerou o Sr. Cayler – e talvez consigam perceber que o ato de roubar pode ser, sob especialíssimas condições, muito benéfico e, além disso, fundamental. 105


– Como assim? – perguntou Eugene. – Lembre-se da vara de pesca, filho... – Já sei, já sei – disse o rapaz, erguendo a mão e abaixando a cabeça. – Assim mesmo vou dar a vocês uma última ajuda, mas é só até onde posso ir. Concentrem sua atenção e sua intuição na seguinte proposição: a resposta para o fato de o “Bom Ladrão ter sido salvo está diretamente relacionada com o quê ele roubou, de quem roubou e o que fez com o produto do roubo. Consultem o Inferno de Dante, no canto trinta e quatro. Além disso, todo aquele que realizou a Grande Obra da Alquimia teve de ser um ladrão, na verdade, um Bom Ladrão, e soube muito bem o que deveria ser roubado. – É só isso? – perguntou Eugene. – Não. Tem mais uma coisa que, embora não pareça, tem íntima relação com o Bom Ladrão: todo verdadeiro alquimista possui, obrigatoriamente, em seu laboratorium, dois elementos ou ingredientes absolutamente indispensáveis, sem os quais é impossível a realização da Obra e a obtenção da Pedra Filosofal. Eis aí o caminho que devem seguir. Por ora, nada mais posso dizer.

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Todos os seres humanos poderiam, potencialmente, fazer o que fizeram os verdadeiros Alquimistas: realizar a Grande Obra e obter a Pedra Filosofal. No entanto, para isso, é necessário identificar quais são os materiais necessários; em seguida, dominar a natureza e, ainda, sobrepujá-la.

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Capítulo 15 Máquinas

Deitado em sua cama, Eugene tentava compreender as palavras do livreiro. “Ladrão que sabe roubar... Mas roubar o quê? E de quem? E o que tem a ver com o Inferno de Dante? Derrubar a porta do Céu... Tomar o Céu de assalto..., será possível que algum dia eu vou conseguir descobrir o que significa tudo isso?” “A sabedoria não deve ser castrada, ele disse...” “Pensa, Eugene, pensa...” Na livraria Cayler, os poucos e costumeiros clientes resolveram aparecer todos no mesmo dia. O livreiro sabia o nome de cada um deles e suas preferências literárias também, de modo que podia oferecer um tratamento pessoal e diferenciado a todos e isso os agradava e contribuía para que permanecessem consumidores fiéis. Enquanto atendia aos frequentadores da livraria, o Sr. Cayler se divertia com o pensamento de que se somasse a idade de uns poucos, facilmente chegaria à queda da Bastilha. Eugene era o único cliente jovem da livraria. O rapaz, que acabara de chegar, não pôde deixar de ouvir a conversa do Sr. Cayler com um dos clientes e percebeu que falavam espanhol. “Além de tudo fala várias línguas” – pensou Eugene, enquanto aproximava-se do livreiro, por trás. – Boa tarde, senhor Cayler. – Ora, ora, se não é meu bom amigo Eugene! – disse o livreiro, surpreso. – Como vai, filho? Já não lhe vejo há alguns dias. – Pois é, mas o senhor é o culpado disso, por ter me proposto um enigma tão complicado. Passei esses dias todos quebrando a cabeça, mas... – e deu de ombros. 109


– Não desanime, rapaz. O Império Romano não foi erguido num único dia. Sente-se ali, nós já conversaremos. – Prefiro esperar lá fora, se não se importa – disse Eugene. – Claro, como quiser. Os clientes demoravam a sair e Eugene, impaciente, andava de um lado para outro diante da livraria. Cerca de uma hora e meia depois todos os clientes tinham ido embora e terminava a angustiante espera de Eugene, que já havia retornado à livraria quarenta minutos depois de ter saído e agora esperava à mesa oval, na cadeira que seu avô costuma sentar.. – Pronto, agora já podemos conversar – afirmou o livreiro, convidando Eugene a entrar. – E então, queimando muitos neurônios? – Acho que não sobraram mais neurônios pra queimar. – Eu nunca disse que esse caminho seria fácil, disse? – Não – respondeu Eugene, cabisbaixo. – Vá com calma, meu rapaz, tenha paciência. Imagine se você precisasse ir até a China a pé! Seria uma longa jornada. Milhões e milhões de passos até lá, não é verdade? – É, seria difícil demais. – Exatamente. No entanto, leve em consideração duas coisas: em primeiro lugar, se você, desde já, ficar desanimado com o fato de ser necessário dar muitos milhões de passos para chegar até a China, então não chegará; e em segundo lugar, se nunca der o primeiro passo, igualmente nunca chegará. “Ora, mas são passos demais”, você diria! Pois dê o primeiro, digo eu. Quando você estiver no passo número dez mil, ainda assim continuará faltando passos demais até a China, mas você já terá andado dez mil passos. É melhor do que estar parado no passo zero. Além disso, a experiência que adquiriu com os primeiros dez mil, fará de você um caminhante mais maduro e o ajudará a enfrentar o resto da caminhada. Consegue compreender o que eu quero dizer? – Acho que sim. 110


A ansiedade e a tristeza que Eugene sentia por achar que não seria capaz de, por si só, descobrir as respostas para questões propostas pelo Sr. Cayler dias atrás, em parte se dissiparam e seu semblante assumira uma aparência mais tranquila e menos fechada. – Mas que não é nada animador ter que percorrer milhões de passos daqui até a China, ah isso não é! – disse o rapaz. – Por outro lado – acrescentou o livreiro – um caminho longo não significa um caminho sem fim. Não pense no fim. Não pense no último passo. Preste atenção no passo que você está dando agora. Se não fizer assim, certamente não dará o último. Viva o dia de hoje. – Nesses momentos é que eu sinto falta da Isabelle. Ela é mais equilibrada que eu. Nessa hora ela já estaria me dizendo: “Calma, Eugene. A gente não tem pressa. Calma...”. É, eu tenho sorte mesmo. A ideia de um tempo longo demais e o natural imediatismo da juventude, travavam uma batalha na mente e no coração de Eugene. Como seria possível não desanimar diante da possibilidade de levar uma vida inteira estudando e aprendendo e quando olhar para o horizonte perceber que o caminho ainda é muito mais longo do que se imaginava? – Senhor Cayler, eu lembro que o senhor me disse que o meu avô chegou a descobrir o tal segredo impronunciável, não é isso? – Sim, meu rapaz, descobriu. Mas ele não se iludia com o mundo. – Como assim? Não entendi. – O mundo é ilusório, Maya, como dizem os hindus. Somente os rebeldes se libertam da ilusão. – Rebeldes? – perguntou Eugene. – Exato! Aqueles que se rebelam, simplesmente. – Mas se rebelam contra quem ou contra o quê? – Contra a natureza – declarou enfaticamente o livreiro. – Ora, mas eu pensei que a gente devia se harmonizar com a 111


natureza. – retrucou o confuso rapaz. – Não é o que todo mundo diz? – Atualmente, meu filho, – continuou o Sr. Cayler – a natureza virou moda. Alimentos orgânicos, ervas medicinais, dieta macrobiótica, ecoturismo, caminhadas pelas florestas, etc.; todas essas coisas viraram mais uma mania. “Vamos deixar que a natureza nos oriente e nos guie”; “Norteemos nossas vidas conforme os ditames da natureza”, dizem os doutores no assunto. – Mas o que pode ter de errado em comer alimentos saudáveis, beber água pura e curar as doenças com ervas ao invés de drogas? – perguntou Eugene. – Nada. Ao contrário, é ótimo para a saúde do corpo físico – respondeu o livreiro. – Então... – disse Eugene, erguendo as sobrancelhas. – Então, o que eu quero que você entenda é que os seres humanos atuais costumam generalizar as coisas e colocá-las, todas juntas, num único patamar. “Ora, se a Natureza é boa, façamos tudo o que ela determinar. O que há de errado nisso?” Não é o que dizem? Eugene olhava o livreiro, sem dizer palavra. – A alimentação natural é boa, – continuou o Sr. Cayler – a medicina natural é boa, o contato com a Mãe Natureza é bom. Concordo com isso. Porém, apenas uns poucos conseguem perceber quando devem obedecer à Natureza e quando devem se rebelar contra ela. E esse é o maior trunfo que a Natureza tem para continuar viva. – É? – disse Eugene, confuso. – Sim, filho. Precisamos ser fortes para nos rebelarmos contra aquilo que recebemos de nossos antepassados, contra a herança que trazemos na carne, no sangue e nos ossos, e isso colide frontalmente com os interesses da Natureza. É útil e proveitoso, para determinadas forças da Natureza, que os seres humanos continuem nesse atual estado de sonolência e ignorância. Eugene fitava o livreiro numa clara demonstração de que não estava compreendendo nada. 112


– Eu não espero que você entenda de imediato o que estou dizendo, – continuou o Sr. Cayler – mas é necessário que você medite sobre o assunto para que chegue, pelo seu próprio mérito, ao entendimento correto. A Natureza, meu caro Eugene, mantém um relacionamento de simbiose, de troca, com os seres humanos. Nós precisamos dela para viver, porém, ela precisa, desesperadamente, de nós para se manter viva. – Continuo não entendendo – disse Eugene. – O mesmo Mestre que revelou que Jesus falou em maia na cruz, explicou muito claramente esta questão: o planeta Terra é um organismo vivo, como qualquer um de nós, seres humanos, que vivemos aqui. No nosso caso, como organismos vivos que somos, precisamos nos alimentar para continuarmos vivos, não é? – Sim, claro – respondeu Eugene. – Pois com o nosso planeta não haveria de ser diferente. Ele também é um organismo vivo que precisa se alimentar. – Bom, eu entendi o raciocínio, mas como é que a Terra se alimenta? – Você fez a pergunta certa – disse o Sr. Cayler. – E como seria possível, em sua opinião, que a Terra se alimentasse? – Não tenho a menor ideia! – Pois bem, ela se alimenta através de dispositivos, de máquinas, deliberadamente colocadas aqui no planeta para que sirvam de “alimentadores”, conforme declarou aquele Mestre, há pouco tempo. A Terra não é capaz de se alimentar sozinha, por isso precisa dessas máquinas para permanecer viva. Ela “usa” essas máquinas para viver. – Peraí, vamos por partes, senão vai dar um nó na minha cabeça – disse Eugene. – Primeiro: de quê a Terra se alimenta? Segundo: que máquinas são essas e onde elas estão? – Muito bem, vamos começar pelo alimento: a Terra faz parte de um conjunto de mundos que gira ao redor do Sol e isso todo mundo sabe, certo? – Certo. 113


– Mas o que nem todo mundo sabe é que o alimento da Terra vem do espaço, através das energias cósmicas ou raios cósmicos que a ciência oficial reconhece. Em resumo: a Terra se alimenta dos raios cósmicos vindos do espaço. Isso está claro para você, filho? – Acho que sim. – Muito bem, mas há um problema aí: esse alimento não pode passar diretamente ao organismo planetário. Antes, ele precisa ser transformado, caso contrário, não serviria para a Terra. – E por quê? – perguntou Eugene. – Porque o nosso planeta é diferente dos demais planetas do sistema solar. Não importa, por enquanto, você saber que diferença é essa e o que foi que gerou essa diferença, senão alongaríamos demais esse tema. Um dia falaremos sobre esse fato, que remonta aos tempos da Lemúria e que foi um marco para a humanidade. Por ora, eu me limito a dizer que a Terra é um mundo completamente diferente dos outros mundos do nosso sistema solar. Eugene concordou, calado. – Pois bem, – continuou o livreiro – essa diferença faz com que seja necessário que o alimento se transforme, que seja modificado antes de ser entregue ao planeta. – E as tais máquinas é que fazem esse trabalho, não é isso? – perguntou Eugene. – Exatamente. São máquinas transformadoras de energia. – E que máquinas são essas? Onde estão? – Você está diante de uma delas nesse momento e também a cada vez que se olha no espelho – respondeu o Sr. Cayler. – Mas...? Como é que é? – disse Eugene, perplexo. – Foi o que você ouviu. – Nós somos as máquinas? – Não apenas nós, mas toda a camada de vida que recobre o planeta: vegetal, animal e, principalmente, humana. Esses são os 114


“alimentadores” do planeta Terra. Eugene, mudo, olhava para seu interlocutor meio hipnotizado, ao mesmo tempo em que pensava um milhão de coisas ao mesmo tempo. Quase se podia ouvir o barulho das engrenagens do cérebro do rapaz funcionado a todo vapor. O livreiro, chamando-o de volta à Terra, estalou os dedos e disse: – Tudo bem, filho? – Tudo bem, tudo bem... Eu tô legal. – Por um segundo você pareceu estar fora da órbita – comentou o Sr. Cayler, de maneira bem-humorada. – É, acho que eu estava mesmo. Bom, não é pra menos, né? Qualquer um reagiria do mesmo jeito se ouvisse essas coisas que eu estou ouvindo do senhor. Tá louco! Quem é que pode imaginar uma coisa dessas. – Tem razão, filho. – Mas tudo bem. Pode continuar, senhor Cayler. – Muito bem. Eu vou repetir para você as palavras do grande Mestre que revelou esses segredos. Ele disse: Nós somos simplesmente máquinas transformadoras de energia. É por isso que existimos. Este é o motivo de nossa existência: máquinas alimentadoras do organismo planetário. À primeira vista, Eugene teve a impressão de que tratava-se apenas de um “modo de dizer” do Sr. Cayler, de uma metáfora ou algo assim, mas logo se deu conta que o livreiro não estava falando simbolicamente. O que ele dizia era para ser entendido literalmente, para surpresa do rapaz. O livreiro olhou fixamente para Eugene e disse: – Essa é a crua realidade: nós não passamos de máquinas encarregadas de alimentar o planeta e nada mais que isso. Os raios cósmicos quando passam através de nós, são transformados e em seguida retransmitidos, inconscientemente, à crosta da Terra. Para isso fomos colocados na superfície deste mundo... Lamento falar assim de forma tão direta, mas é a verdade, quer você aceite ou não. 115


– Não sei o que pensar... – disse Eugene. – É triste, muito triste, é duro, mas é real. Pense em todos os sofrimentos que passamos na vida, todas as dificuldades, todas as dores, apenas e tão somente para que este planeta continue vivo... Trabalhar arduamente para podermos viver, para podermos nos vestir, para termos um teto sobre nossas cabeças... Tantos sofrimentos, tantas amarguras... Existir apenas para manter vivo um organismo planetário. Nós, pobres seres humanos, do alto da nossa imensa vaidade; nós, que nos sentimos tão importantes; nós, que temos um ego astronomicamente gordo e sentado em um trono de comodidades e prazeres, o que somos? Alimentadores de um planeta. Nada mais. Nascemos, crescemos, envelhecemos e morremos, apenas para cumprir o papel de máquinas transformadoras de energia, ou como disse aquele Mestre: Somos condenados à pena de viver. – Tudo isso me parece utópico demais, fantasioso demais e difícil de aceitar – disse Eugene. – Eu entendo – disse o livreiro – afinal, não é nada fácil aceitar algo que vai contra tudo o que se acreditou a vida inteira e tudo o que se recebeu de herança cultural. Agora, você começou a entender o que é ser um rebelde, o que é nadar contra a correnteza dos costumes e valores deste mundo. Agora você começou a ter os primeiros vislumbres do que é rebelar-se contra a natureza. – Que tristeza – disse Eugene, desanimado. – Não completamente. – Como assim? – Há algo mais. Uma luz no fim do túnel... uma esperança... uma chance. – Que bom! Senão, não valeria a pena viver – disse Eugene. – Mas o que é? – A possibilidade de deixarmos de ser máquinas. – E como se consegue isso? – perguntou Eugene. – Conhecendo o segredo que pode levar-nos de escravos a senhores da natureza. 116


– E que segredo é esse? – Aí é que está... é um segredo. – É, eu já imaginava que o senhor diria alguma coisa parecida com isso – comentou. – Aquele que nos criou – continuou o Sr. Cayler – e nos colocou neste mundo para sermos “alimentadores”, nos ofereceu também a possibilidade de deixarmos de ser máquinas. Cabe a cada um descobrir como se faz isso. O verdadeiro alquimista sabe e, trabalhando arduamente em seu laboratório, adquire, por esforço e mérito próprios, o direito de deixar de ser máquina. Portanto, é absolutamente vital para a natureza que nós não saibamos disso, que nós sigamos iludidos com o mundo e suas distrações, que continuemos a pensar que determinados mecanismos e que certos procedimentos são necessários, importantes, óbvios e “naturais”, como dizem por aí. Você consegue compreender? – Mais ou menos. – Então, imagine um número cada vez maior de seres humanos conseguindo deixar de ser máquinas. Como a natureza veria tal fato? – Como uma perda ou como um risco de morrer de fome – respondeu Eugene. – Exatamente. E isso ela não quer. Aí reside o maior dos segredos que a natureza guarda sob sete chaves, para a sua própria sobrevivência. Aqueles que descobrem tal segredo e o utilizam sabiamente, passam de comandados a comandantes da natureza, e isso não interessa a ela. Sei que é difícil compreender o que eu digo. Mas sei também que você tem as características do rebelde e acho sinceramente que chegará à compreensão. – Caramba, como eu gostaria que meu avô estivesse vivo. – Pois é, eu também, filho. Seguiu-se um curto silêncio. – Posso dar uma sugestão? – perguntou o Sr. Cayler. – Claro. – Para que você se organize melhor nos seus estudos e não 117


atropele os pensamentos, escreva num bloco de anotações as suas dúvidas e as questões que ainda não conseguiu resolver e à medida que tiver as respostas você vai riscando as dúvidas do papel e da sua mente. Que tal? – Boa ideia – disse Eugene. – Se me permite, gostaria de presenteá-lo com um dos meus blocos de anotações. Eu os faço para o meu uso – disse o livreiro, indo pegar um bloco numa gaveta do balcão. – Aqui está. Você já deve ter visto um desses ali em cima. – É, já tinha visto sim. Obrigado. Eugene tinha nas mãos um bloco de folhas brancas com cerca de quinze centímetros de altura por dez de largura. No alto havia quatro furos equidistantes através dos quais passava uma fina tira de couro que prendia firmemente o conjunto de folhas. O bloco tinha uma capa dura recoberta por um tecido de linho branco. No rodapé de cada folha havia uma inscrição em letras pequenas e douradas: Edward Cornellius Cayler. – Tem trinta e três folhas – disse o Sr. Cayler. – Trinta e três? – perguntou Eugene, demonstrando estranheza. “Por que trinta e três folhas e não cinquenta, cem ou um número redondo qualquer?” – pensava. – Sim, trinta e três – respondeu o livreiro. – Quando ocupar tudo, eu lhe dou outro. Sugiro que escreva no início da primeira folha seu nome e a data em que começar os seus registros. Anote com cuidado e clareza as suas dúvidas. Quando chegar ao esclarecimento de alguma questão, não deve registrar no papel. Guarde na memória. Use o bloco apenas para as perguntas, não para as respostas. – Obrigado senhor Cayler. Vou fazer como o senhor sugeriu. Eugene deixou a livraria com o pensamento em seu avô. O que ele teria descoberto? Até onde teria chegado? Que segredos teria desvendado? “Só Deus sabe” pensou. Ou o Sr. Cayler.

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Capítulo 16

Uma pequena lista

Diante da escrivaninha, sozinho em seu quarto, Eugene começou a registrar no bloco de anotações as incógnitas que ele julgava que, se resolvidas, o conduziriam à revelação do Grande Segredo guardado durante séculos e que, certamente, o Sr. Cayler conhecia muito bem. Eugene Doré Paris, 31 de maio de 1997 O Bom Ladrão O Inferno de Dante A Grande Obra Os dois ingredientes da Alquimia O segredo da Natureza

Edward Cornellius Cayler

“Pensa, Eugene, pensa” – repetia. Guardou o bloco no bolso da jaqueta, telefonou para Isabelle e saiu. 119



Capítulo 17 Um novo item

À margem do Sena, Isabelle lia as poucas linhas do bloco de anotações que Eugene lhe entregara. – Eu me sinto impotente – dizia Eugene. – Não consigo raciocinar, não saio do lugar, não chego à conclusão nenhuma. – Calma, amor, se fosse fácil todo mundo seria alquimista. Vamos pensar juntos. Eugene balançou a cabeça afirmativamente. – Bem, – continuou Isabelle, caminhando pra lá e pra cá enquanto falava – o Sr. Cayler disse que todo aquele que realizou a Grande Obra teve que ser um “Bom Ladrão”, não é? – É – respondeu Eugene, lacônico. – Certo. Então, tá na cara que o bom ladrão precisa roubar alguma coisa que é imprescindível para que ele realize a Grande Obra; uma coisa que, se ele não roubar, fracassa, não é? – É. – Será que ele tem que roubar conhecimento? – Pode ser – disse Eugene. – Mas será que só isso já seria o suficiente para realizar a Grande Obra? – Sei lá. Eu acho que, primeiro a gente tem que descobrir o que é a Grande Obra, pra depois saber o que é necessário pra realizá-la, entendeu? Olha só: se a Grande Obra fosse construir uma casa, então a gente teria que roubar tijolos, cimento, etc., não é isso? – É, mas esse raciocínio parece simples demais – respondeu Isabelle. – Eu acho que aquilo que o ladrão tem que roubar não é nada material, físico, entendeu? A primeira coisa que vem à cabeça da gente quando se fala em roubar, é alguma coisa material e o Sr. Cayler não ia dar uma dica tão fácil assim. – É, você tem razão. Velho danado! – Nossa! Coitado! – disse Isabelle. 121


– É brincadeira. Eu gosto dele, sabia? De repente, Eugene e Isabelle se olharam e imediatamente um já sabia o que o outro estava pensando. – Vamos até lá? – É pra já. Da copa, o Sr. e a Sra. Cayler ouviram a sineta. – Isabelle, que prazer em vê-la – disse o livreiro. – E você também, meu rapaz. – Como vai, senhor Cayler? – perguntou Isabelle. – Eu vou bem, minha jovem. E você? – Num beco sem saída. Nós dois. – Eu posso imaginar. Venham, vamos até a copa. Lá conversaremos e tomaremos chá. Cruzaram os cinco metros de um corredor de parades nuas que ligava a livraria à copa. – Oi, senhora Cayler – disseram os jovens, ao entrarem na copa. – Olá, crianças. Bom ver vocês! Venham! Venham, sentemse. – respondeu, carinhosamente, a Sra. Cayler. Sobre a mesa, quatro xícaras com seus pires, quatro pequenos pratos, açúcar, mel, leite e uma travessa de louça cujo conteúdo estava coberto por um pano branco. Após servir o chá, a Sra. Cayler retirou o pano e cortou quatro pedaços de algo que, para Eugene e Isabelle, era desconhecido. – É um pão doce? – perguntou Isabelle. – Não, minha cara – respondeu a Sra. Cayler. – É doce, mas não é pão. Chama-se Apfelstrudel. – Como? – Apfelstrudel – disse a Sra. Cayler, rindo da expressão de Isabelle. – É um doce típico da Alemanha, feito com maçãs. Vocês conhecem? – Não. 122


– Então, provem. Acho que vão gostar. Em vinte minutos não havia mais Apfelstrudel. – O que acharam? – perguntou o Sr. Cayler. – Uma delícia – disse Isabelle. – Ainda lembram o nome do doce? – Astruden? – arriscou Eugene. – Quase, filho. É Apfelstrudel. – Isso – confirmou o rapaz. – Bem, meus caros, – disse o Sr. Cayler – vocês vieram falar sobre um beco sem saída? – Isso mesmo. Acho que a gente não avançou nem um centímetro. – Você está com o bloco de anotações, Eugene? Posso vê-lo? Eugene tirou o bloco do bolso da jaqueta e entregou-o ao livreiro. – Muito bem. O que temos aqui? O Bom Ladrão, o Inferno de Dante, a Grande Obra, os dois ingredientes da Alquimia e o segredo da Natureza. Certo. Diga-me, rapaz, você acha justo, por exemplo, que um funcionário de uma empresa qualquer ganhe uma promoção de cargo e um aumento de salário sem antes ter demonstrado que conhece profundamente o trabalho que realiza? Seria justo promover a chefe alguém que não conhece detalhadamente a rotina do departamento em que trabalha? – Entendi... – disse Eugene, cabisbaixo. – Pensem no seguinte: os temas anotados no bloco são apenas os meios e não o fim, está bem? Com base nisso, o que vocês procuram? Os dois se olharam, pensaram... – Os sinais... as indicações – respondeu Isabelle. – Exatamente – disse o Sr. Cayler. – O que importa são os sinais. Além disso, todos os temas que vocês anotaram no bloco estão interligados. Quando conseguirem decifrar um deles, terão mais facilidade para descobrir os outros. É uma reação em cadeia. – Pois é, mas o problema é descobrir o primeiro – lamentou 123


Eugene. – E se acrescentássemos mais alguns itens ao bloco? – perguntou o Sr. Cayler. – Talvez encontrem o “fio à meada” em outros tópicos. – Seria ótimo – disse Isabelle. Eugene pegou o bloco de anotações que o livreiro deixara sobre a mesa e ficou a postos. – Vocês certamente se lembram que uma ocasião eu disse que os sinais estão espalhados por todo o mundo, não lembram? Nos livros, nas catedrais, nas antigas ruínas e em muitos outros lugares. Pois bem, vou lhes dar uma excelente fonte de pesquisa: os contos épicos e a literatura aparentemente infantil. – Poxa, é mesmo? – disse Isabelle, demonstrando surpresa. – Sim, minha cara. Por exemplo, vocês conhecem a história de Alladim e a Lâmpada Maravilhosa, não conhecem? – Claro – responderam ao mesmo tempo. – Muito bem. As lâmpadas eram objetos de uso bastante comum dos povos antigos. E, naturalmente, como o nome já diz, serviam para iluminar. Portanto, procurem saber como funcionavam aquelas lâmpadas. De que maneira iluminavam. E tenham em mente que onde não há luz, há trevas. Eugene e Isabelle ficaram olhando o livreiro esperando que ele continuasse com o assunto das lâmpadas, mas não foi o que aconteceu. – E o que mais, senhor Cayler? – perguntou Isabelle. – Não, não – disse o livreiro. – Quem não trabalha... – Já sei, já sei... não precisa dizer – falou Eugene. Agradeceram pelo chá e pelo Apfelstrudel, despediram-se e foram embora com mais um item na nebulosa lista. Na rua, caminhando em direção ao metrô, entre um comentário e outro sobre doces de maça, Isabelle percebeu um fato curioso sobre a personalidade do livreiro: – Sabe como eu me sinto quando a gente conversa com o ele? – perguntou a jovem. 124


– Não. Como? – Eu me sinto numa sala de aula. – Por quê? – Por causa da maneira como ele fala. Parece um professor dando aula – disse Isabelle, rindo, gesticulando e imitando o livreiro. – Ah! Para com isso, Isabelle. É o jeito dele. Ele é didático. Vai ver que já foi professor. E voltaram para casa rindo.

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A sabedoria sempre esteve oculta sob o véu da simbologia. Os Alquimistas e Iniciados de todos os tempos assim a mantiveram em suas obras, cabendo unicamente aos Grandes Mestres a tarefa, autorizada, de rasgar o véu do santuário e revelar os segredos da Grande Obra. Assim o fez o Divino Rabi da Galileia, secretamente, aos setenta discípulos escolhidos por ele e aos doze Apóstolos. Para esses, os segredos foram revelados abertamente, de boca para ouvido. No entanto, aquelas pessoas que seguiam Jesus, ouviam dele apenas aquilo que podiam entender e acatar. Para o povo, Jesus falava em parábolas. O Mestre tinha plena consciência do que devia e do que não devia falar, pois ele é um Mestre. Jesus não foi o primeiro, nem será o último Cristo da história do mundo. Houve diversos e haverá outros, e todos eles seguiram e seguirão o mesmo caminho – absolutamente o mesmo – para chegarem a ser um Cristo. Toda religião, inclusive as que já se extinguiram, são iguais em essência, apenas diferenciando-se entre si em função da época e do lugar onde existiram, pois todas são filhas de seu tempo. Todas pregam o mesmo e único caminho. Todas têm um Cristo que nasce de uma virgem, no mesmo dia do ano; todas têm seus relatos do Paraíso do qual o homem foi expulso, cada qual com seu nome peculiar: Éden, Jardim das Hespérides, Nirvana, Erin... Escreve Eliphas Levy: O Evangelho pertence à ciência apenas como monumento da fé, e não como documento da história. É o símbolo das grandes aspirações da humanidade. É a lenda ideal do homem perfeito. Essa lenda, a Índia já havia esboçado ao contar a maravilhosa encarnação de Vishnu na pessoa de Krishna. Krishna é também filho de uma virgem. A casta Devaki amamentando seu divino filho, encontra-se no Panteão indiano e parece uma imagem de Maria. Perto do berço de Krishna existe a figura simbólica do asno; a mãe leva a criança para livrá-la de um rei ciumento que queria matá-lo. Se os Vedas não fossem anteriores ao Evangelho, acreditar-se-ia que tudo isso é cópia de nosso Novo Testamento. Quer dizer que tudo isso é desprezível e nada contém de divino? Acreditamos que é necessário chegar a uma conclusão diametralmente oposta. 127



Capítulo 18 O fio da meada

Com o olhar perdido diante do quadro de Camille Doré, Eugene lamentava a ausência de seu avô e imaginava como seria mais fácil a busca pelo conhecimento se Camille estive vivo. – Sonhando de novo, Eugene? – Não, pai. Só estava lembrando do vovô. O senhor não sente saudades dele? – Sinto, um pouco, mas ele se foi e eu tenho uma vida e um atelier para cuidar e não me dou ao luxo de ficar divagando diante de um retrato em horário de trabalho e acho que você deveria fazer o mesmo. Você tem um violino para envernizar; portanto, concentre-se em seu trabalho. – Tá, pai. Desculpe. – O que há com você, hein? De uns tempos pra cá, tem estado desatento, com a cabeça no mundo da lua. Algum problema? – Nada, pai. Eu ando cansado. Acho que preciso de férias. – Quem sabe. Vou pensar sobre isso. Agora, ao trabalho, vamos! Apesar de ser filho do dono do atelier, Eugene não gozava de muitas regalias. Durante o horário de trabalho, seu pai era seu patrão e, como tal, exigia empenho e concentração como fazia com qualquer um dos funcionários. Na verdade, Jean-Jacques não era exatamente um exemplo de pai carinhoso, mas era um bom provedor. Nunca faltou nada a Eugene e, além disso, tinha um bom salário no atelier. Assim que terminou seu horário de trabalho, Eugene almoçou e foi para seu quarto. Recostado à cabeceira da cama e com o bloco de anotações nas mãos, o jovem luthier repassava mentalmente a última conversa que teve com o Sr. Cayler, mas não conseguia ver por qual tênue fio poderiam estar ligados o Bom Ladrão, o Inferno de Dante, a Grande Obra, a Alquimia, o segredo da Natureza e 129


a Lâmpada de Alladim. Naquele momento, o telefone celular de Eugene soou. Era Isabelle. – Vem pra cá agora mesmo, Eugene! Acho que eu tenho duas novidades. E traz a carta do seu avô, tá bom? Meia hora depois Eugene estava no quarto dela. – Ontem – começou Isabelle – eu estava pesquisando sobre as antigas lâmpadas que o Sr. Cayler falou e de repente me deu um estalo e eu lembrei que o seu avô mencionou alguma coisa sobre uma lâmpada na carta que ele escreveu pra você, não é? – Caramba, é mesmo, como é que eu não percebi isso antes. Que burro. – Burro nada. Só desatento, meu amor – disse Isabelle, carinhosamente. Eugene tirou o envelope da mochila e procurou pela última folha onde leu: “Cuida em não derramar o azeite da lâmpada para que a luz não se apague.” – Viu? Quem sabe esse seja o “fio à meada.” – falou Isabelle. – Mas que azeite é esse? – perguntou Eugene. – Essa é a segunda novidade. Eu descobri na minha pesquisa que as lâmpadas funcionavam com uma espécie de óleo combustível. Enquanto tivesse óleo dentro da lâmpada, teria um foguinho saindo do bico. – Claro – disse Eugene. – Não tendo óleo, não teria luz e não tendo luz, só teria trevas. Você lembra que o Sr. Cayler disse: “Onde não há luz, há trevas”. Não foi isso? – Foi isso mesmo. E pelo jeito o seu avô sabia da importância do azeite. Por isso ele disse para não derramá-lo, porque sem o azeite o fogo apaga. – Mas o que isso quer dizer? – conjecturava Eugene. – Onde está a importância prática da lâmpada. – Sei lá. Mas eu acho que a gente não deve se concentrar na utilidade prática da lâmpada, porque, pelo jeito, ela é simbólica. – Então, deixa eu dar uma olhada nas anotações – disse Eugene, abrindo o bloco. – A única coisa que a gente descobriu 130


até agora é o azeite. Muito bem, o que o azeite tem a ver com o Bom Ladrão? – perguntou, começando a fazer um comparativo com cada item anotado. – Quem sabe foi isso o que ele roubou – disse Isabelle. – É possível. E com o Inferno de Dante? – Não sei. – E com a Grande Obra? – Também não sei – respondeu Isabelle. – E o Alquimista? Vai ver que o azeite é um dos ingredientes secretos da Alquimia – concluiu Eugene. – E para que ele precisaria de azeite? Seria um item de alguma fórmula secreta? – Sei lá. Eu acho que você tinha razão quando disse que a lâmpada é simbólica. Mas se a lâmpada é simbólica, o azeite também é; portanto, não pode ser um item de uma fórmula. – Eu acho é que cada uma das dicas que o Sr. Cayler deu é uma peça de um quebra-cabeça – disse Isabelle. – Mas a gente só vai ter uma visão geral do que esse quebra-cabeça vai formar quando as primeiras peças começarem a se encaixar, porque até agora a gente não tem nada montado. De repente houve um silêncio entre os dois. Olharam-se e pensaram que todo aquele entusiasmo inicial não tinha assim tanta razão de ser. – Tudo bem, já foi um avanço, mas o que a gente tem até agora? – perguntou Isabelle. – O seguinte: entre a lâmpada e o azeite, o azeite é mais valioso, porque é com ele que se faz a luz – Já é alguma coisa – disse Isabelle, sem muita motivação. – Espera aí... Sem desânimo, vai. A gente nunca chegou tão longe. Já é o primeiro passo pra ir ate a China – brincou Eugene. – China? – perguntou Isabelle, sem entender nada. – É. Depois te conto. – Tudo bem, meu amor. Desculpe por ter sido pessimista. – Você é a melhor coisa que me aconteceu na vida, sabia? – 131


disse Eugene, enquanto abraçava Isabelle. Um longo beijo os fez esquecer por um instante das lâmpadas, dos ladrões, dos alquimistas e tudo o mais. Naquele momento só havia eles.

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O “fio à meada” fora encontrado. A China estava um passo mais perto.


Capítulo 19 Um velho baú

O Sol já havia percorrido mais de três quartos da sua jornada diária sobre Paris e irradiava sua luz sobre a cidade que outrora fora um dos mais importantes pontos de encontro e local de trabalho dos alquimistas da Europa. Os últimos raios solares douravam as torres da Catedral de Notre-Dame, a mais bela e significativa obra gótica do mundo que ainda permanece em pé e que via mais um dia chegar a seu termo, frustrando, uma vez mais, a intenção de seus arquitetos primeiros: transmitir na forma quase indelével da pedra – não fosse a barbárie humana – os segredos da Ciência Magna. A forma peculiar de expressão dos velhos praticantes da Magna Arte tornava seus textos incompreensíveis para os inspetores do Santo Ofício e os livrava de arderem na fogueira da Inquisição. O Universo inteiro nas páginas de um livro... Porém, apenas para aqueles que tinham a chave. E os que a tinham, guardavamna sob sete outras, pois disso dependia sua própria vida, caso contrário seus parentes o recolheriam numa urna para cinzas. Vitoriosa, a catedral ergue, ainda hoje, suas páginas pétreas sobre a Íle de La Cite como quem diz: “Dou-te a sabedoria! O que espera? Absorve-a”. Entretanto, muitos séculos se passaram e a sabedoria se perdeu. Hoje, aqueles que pisam o pavimento da igreja, se admiram, se extasiam, olham tudo, veem cada detalhe e não enxergam nada. Muda catedral. Outrora eloquente – animada pela fé popular, pela Festa dos Loucos e pela silenciosa presença dos cavaleiros curvados sobre seus joelhos –, o velho templo ainda vê seus portais serem franqueados pelos passos do pio e do néscio que se fascinam diante da obra, sem perceberem a Obra. Prodigioso livro de pedra, que esconde entre suas laudas o Segredo dos Segredos, 133


o Arcano do grande mistério. “Luz, mais luz!”, disse Goethe. E a luz refugiou-se ali, sob as abóbadas, escondida nos baixosrelevos, nas ogivas e na estatuaria. Obra magnífica da Idade Média alquímica. Portentoso edifício gótico. Ao pé da escadaria da casa dos Doré, Josephine podia ouvir o som de uma suave melodia que vinha do quarto de Eugene. Era o segundo movimento do concerto em mi menor para violino e orquestra de Mendelssohn. Certamente um dos temas mais sentimentais escritos pelo compositor. Josephine já sabia que quando seu filho ouvia aquele concerto é porque alguma coisa estava acontecendo com ele. Em geral, alguma coisa triste. Subiu a escada e encontrou a porta do quarto aberta. Eugene estava sentado no chão diante do antigo toca-discos Technics, com o olhar perdido no movimento circular do disco de vinil e, absorto, nem percebeu a entrada de sua mãe no quarto. – Mendelssohn? – perguntou Josephine. – Ah... oi, mãe. Sim, é Mendelssohn. – Tudo bem, filho? – Tudo, mãe. Por quê?! Josephine ajoelhou ao lado de Eugene, beijou-o na cabeça e o abraçou com força, ficando assim por um instante. – Sabe, filho, na Espanha há grandes violonistas flamencos, como é tradição daquele país, mas um deles tem uma história interessante que eu acho que você não conhece. Gostaria de ouvir? – Pode ser. – Está bem, filho, então eu vou contar: o pai desse violonista também era músico e ensinou seu filho a tocar violão. Logo cedo percebeu que o garoto tinha muito talento e resolveu investir fortemente na capacidade do menino. Ele frequentava normalmente a escola, como qualquer criança, mas um dia seu 134


pai o chamou e perguntou se ele sabia ler e escrever bem e o menino disse que sim. Depois, perguntou se ele dominava as quatro operações e ele respondeu que sim. Então o pai resolveu que, daquele dia em diante, ele não precisava mais ir à escola e que iria apenas estudar música. Hoje ele é um dos maiores violonistas do mundo. Curioso, Eugene ouviu o relato de sua mãe sem saber exatamente o motivo daquela conversa. – Aonde a senhora quer chegar, mãe? – Você já vai saber. Quando você terminou seus estudos regulares e chegou à época de ir para uma faculdade, seu pai e eu tivemos uma conversa importante e decisiva a seu respeito. Assim como o pai daquele violonista, nós também acreditávamos no seu talento, não como instrumentista, mas como construtor de instrumentos. E ainda acreditamos, filho! Por isso, depois de muito pensarmos e ponderarmos, chegamos à conclusão que seria melhor que você seguisse a carreira de luthier. No entanto, como você sabe, nós não impusemos nada, pelo contrário, aproveitamos que até então você não havia demonstrado interesse por ingressar na universidade e deixamos que a natureza falasse por si, e acho que nós acertamos. Você é um grande artista e vai levar adiante a tradição da nossa família. – Obrigado, mãe. Que bom que vocês perceberam que eu não tinha mesmo muita vontade de ir pra uma faculdade, mas eu ainda não entendi aonde a senhora quer chegar. – Esse discurso todo serve para dizer a você que nós o conhecemos muito bem, meu filho. Arrisco até a dizer que eu conheço você bem melhor do que seu pai. Ele é muito preocupado com o atelier e trabalha demais. – É, eu sei disso – disse Eugene, com certo tom recriminatório. – Não culpe seu pai por isso, meu filho. Ele é um bom pai, um bom marido e nunca deixou que nos faltasse nada. Mas o que eu quero dizer é que eu conheço você muito bem e sei que está triste. Por isso está ouvindo essa música. O que houve, filho? Eugene não queria falar com sua mãe sobre as coisas que 135


o tinham atribulado nos últimos dias, mas resolveu abrir seu coração, em parte. – Sabe, mãe, já faz tanto tempo que o vovô morreu, mas eu ainda tenho muitas saudades. Eu não tive tempo suficiente para aproveitar a presença dele. Acho que ele tinha tanta coisa pra me ensinar, mas foi embora logo. – Não fique assim, filho. Todos nós sentimos falta dele. Seu avô era o homem mais equilibrado e bondoso que eu já conheci. Ele faz muita falta, eu sei. Mas nós não devemos ficar tristes por isso. Pense que agora ele está num lugar melhor do que estava, quando vivo. – Eu sei, mãe. – Deixa eu te contar uma coisa: você sabe que minha mãe morreu quando eu tinha dezessete anos, não sabe? – Sei – disse Eugene. – Pois é, mas sempre que eu sentia saudades dela, eu procurava as coisas que pertenciam a ela: as roupas, os objetos pessoais e ficava lembrando apenas dos bons momentos que nós vivemos juntas. Era o melhor remédio para curar a tristeza. Por que você não tenta fazer a mesma coisa? Vá até o sótão rever os objetos do seu avô, os retratos e as coisas que eram dele. Quem sabe a tristeza vai embora. – É, talvez seja bom. Valeu, mãe, eu vou lá. O sótão da casa dos Doré era um cemitério de relíquias. Uma vez a cada três ou quatro meses, Josephine subia até lá e fazia uma arrumação geral. Não havia muito que fazer já que o lugar não era frequentado pela família. Bastava apenas varrer o chão, tirar o pó e verificar, quem sabe, a presença de algum roedor intruso. No andar superior da casa, no fim corredor dos quartos, Eugene puxou a haste metálica do largo alçapão do teto e, automaticamente, uma escada se desdobrou até o chão. Ele acionou um interruptor na parede e subiu. Para o jovem, aquele sótão era apenas um depósito e raramente o visitava. Na entrada, o olhar de Eugene passeou 136


lentamente pela história de sua família, representada por aqueles objetos. Encostada à parede, uma bicicleta Peugeot da primeira metade do século e em perfeito estado de conservação; a antiga máquina de costura de sua avó; a caixa de linhas e agulhas; o velho telefone de parede e... lá estava o que Eugene procurava: o enorme baú com os pertences de Camille. – Oi, vovô – disse Eugene, abrindo o baú e retirando o primeiro objeto. No estojo original, o violino de seu avô, sem cordas e sem alma. Eugene pegou o instrumento e, colocando-o sob o queixo como se fosse tocar, lembrou-se da época em que Camille executava Beethoven para um garotinho atento e admirado. Guardou o violino no estojo, ajoelhou-se na frente do baú e continuou a remexer o passado. A velha câmera fotográfica Leica, uma escova de sapatos e uma calçadeira com detalhes em madrepérola, um sabre com empunhadura de prata e uma linda bainha metálica com símbolos maçônicos, um candelabro de três braços, uma Bíblia... – Ah! A bengala! – disse Eugene. – O senhor se lembra, vovô? Eu escondia sua bengala e depois ficava rindo atrás do sofá, vendo o senhor procurar por ela. Longe de causar mais tristezas, as lembranças de Camille tiveram exatamente o efeito que Josephine imaginava que teriam. Eugene sentia-se mais leve e até ria com as lembranças do avô. Terminados os objetos, no fundo do baú só havia roupas velhas que Eugene nunca havia mexido antes. – Taí uma coisa que eu não concordo – falou para si mesmo. – Pra que guardar essas roupas velhas? Só servem para acumular pó, juntar traças e ocupar espaço. Chegou a hora de dar um fim nisso. Eugene tomou a decisão de se desfazer das roupas e começou a tirá-las do baú. “Quem sabe alguém precise delas, depois de lavadas e sem esse cheiro horrível”. Retirou duas camisas que um dia foram brancas, calças pretas, um saquinho com diversas gravatas borboleta, dois paletós e, 137


por fim, um fraque. Quando tirou a última peça, viu que no fundo do baú havia algo embrulhado em um grosso papel pardo e amarrado com barbante. – Ora, ora, mas o que seria isso? – disse. Pegou o embrulho, sentou-se no chão com as pernas cruzadas e começou a retirar o barbante. Antes mesmo de tirar completamente o papel, Eugene reconheceu uma imagem que já era sua velha conhecida das diversas vezes que visitara o museu do Louvre: uma reprodução – relativamente moderna, pois era uma gravura em papel – da Monalisa de Leonardo Da Vinci. “Será que isso era do vovô? Por que ele teria mandado emoldurar?” Mas quando Eugene desembrulhou totalmente o quadro, percebeu um detalhe que diferenciava aquela gravura e que revelava seu dono: sobre o estreito passe-partout branco, ao pé da gravura e com a inconfundível letra esmerada de Camille, liase: “Decifra-me, se puderes”.

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Diziam os alquimistas:

Que vosso fogo seja tranquilo e suave. Que se mantenha assim todos os dias, sempre uniforme, sem se debilitar, senĂŁo causarĂĄ grande prejuĂ­zo.

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Capítulo 20 Leonardo

Mais uma vez Camille Doré surpreendera seu neto. Eugene continuou sentado por um longo tempo com o quadro nas mãos, tentando entender o que poderia significar aquilo e se perguntava o que mais haveria para decifrar naquela pintura? Os peritos em arte e os especialistas em Leonardo Da Vinci já haviam estudado à exaustão a Monalisa. Eugene achava que não havia mais nada a ser revelado sobre aquela obra. No entanto, seu avô não se daria ao trabalho de mandar enquadrar uma reprodução barata e, além disso, acrescentar aquela inscrição. Tinha que haver algo mais. – Mas o quê? – disse em voz alta. A primeira reação de Eugene depois que emergiu do oceano de interrogações em que estava mergulhado, foi telefonar para Isabelle e pedir-lhe que viesse à sua casa, o que não demorou a acontecer. – Mas esse seu avô, hein?! Mais uma surpresa – disse Isabelle. – Pois é. Mais um enigma. Por falar em enigma, vou acrescentar a Monalisa à nossa lista. Cadê o bloco de notas? – Por falar em bloco de notas, eu conheço alguém que pode ajudar a resolver esse mistério – disse Isabelle, olhando de lado para Eugene e sorrindo. – Claro. Isabelle embrulhou novamente o quadro, Eugene pegou o bloco de anotações em seu quarto e ambos foram procurar o livreiro. Na livraria, enquanto Eugene mostrava o quadro ao Sr. Cayler, Isabelle mais uma vez se maravilhava com os livros espalhados pelas estantes. – Já sei – disse ela – a sua livraria parece um sebo. Só que um sebo de livros recém-saídos da gráfica, de tão conservados. Parecem novinhos em folha. É incrível. Como o senhor consegue livros antigos assim tão perfeitos? 141


– Segredo de profissão, minha cara – respondeu o livreiro. – Bem, mas o que o senhor achou do quadro? – perguntou Eugene, retomando o foco. Isabelle se aproximou. – O que importa não é o que eu acho, Eugene, mas o que você e Isabelle acham. – Aí que tá: nós não achamos nada. Nós já vimos a pintura no Louvre. A diferença é que nesta reprodução tem uma inscrição do meu avô, só isso. – E você, Isabelle, quer dizer alguma coisa? – perguntou o Sr. Cayler. – Nada a acrescentar – disse ela. – Muito bem! Então, se vocês já conheciam a pintura de Leonardo, é fácil concluir que trouxeram esse quadro para saber por que Camille escreveu isso aqui, não é? – Exatamente – disse Eugene. – O senhor sabe por que ele escreveu? – Sei. Silêncio. – E então, por quê? O Sr. Cayler apenas olhava para Eugene. – Já sei, o senhor não vai me dizer nada, não é? – Bem, eu posso lhe dizer algo sobre esse quadro e uma ou outra palavra sobre o porquê de seu avô ter escrito isso, mas é só. Não posso responder aquilo que você mais quer. – Eu já imaginava – disse Eugene. – Mas assim mesmo... vamos lá. – Muito bem. Camille comprou essa gravura em uma loja de lembranças para turistas. Era uma bela manhã de primavera quando seu avô me procurou para falar de sua intenção de emoldurar uma reprodução simples da Monalisa, escrever esse desafio e guardar o quadro esperando que um dia você o achasse, Eugene. Como vê, foi o que ele fez. – Um desafio para mim? 142


– Sim. – E agora? – disse Eugene. – Aceite o desafio do seu avô – falou Isabelle. Eugene pegou o quadro e contemplou-o demoradamente. “Decifra-me, se puderes” – Eu sei que o senhor já disse que não pode me entregar o peixe já cozido, que a sabedoria não deve ser castrada e tudo mais, mas assim mesmo poderia ajudar a gente de alguma forma? – perguntou Eugene, humildemente. – Sim. Primeiro, saibam que Leonardo Da Vinci não era um tolo. Era um Iniciado. Eugene e Isabelle ergueram as sobrancelhas e se aproximaram do Sr. Cayler. – Leonardo Da Vinci conheceu e praticou, secretamente, alguns dos incomunicáveis segredos que conduzem à realização da Grande Obra e a obtenção da Pedra Filosofal. Neste quadro, está uma importante indicação que leva ao Segredo dos Segredos. Quantos, meu Deus, morreram e mataram para obtê-lo e fracassaram. Os jovens ouviam em silêncio. – A Monalisa, meus filhos, é uma pintura que encerra dois segredos, ambos desconhecidos pelos especialistas em Leonardo da Vinci. O primeiro deles é algo muito particular e íntimo de Leonardo: a mulher que o mestre retratou nesta obra é sua representação pessoal da Mãe Divina. – Como assim, Mãe Divina? O que seria Mãe Divina? – perguntou Isabelle. – A Mãe Divina é o aspecto feminino de Deus, compreendem? – Mais ou menos – disseram. – É muito simples: Deus, em seu aspecto masculino, é o Pai; em seu aspecto feminino, a Mãe. – É, o raciocínio até que é bem simples, mas isso não se vê nas religiões, né? Pelo menos eu nunca vi – disse Eugene. – Não se vê aqui no Ocidente, porque o mundo ocidental é 143


eminentemente cristão e essa noção básica foi deliberadamente retirada do Cristianismo que atualmente vemos. No entanto, no Oriente, essa ideia é muito comum e difundida. Mas vocês vão entender melhor se eu lhes mostrar outro ângulo da questão: Vocês se lembram que uma vez eu mencionei a Hermes Trismegisto? Lembram o que eu falei? – Mais ou menos. – Pois bem, Hermes disse: “O que está em baixo é como o que está em cima e o que está em cima é igual ao que está em baixo”. – Agora me lembrei – disse Eugene. – Muito bem. Se nós nos basearmos nesse conceito entenderemos melhor a Mãe Divina. Segundo esse conceito, o que está no plano divino ou espiritual é igual ao que está no plano físico ou humano, certo? – Certo – disseram ambos. – Ora, no plano humano todos nós precisamos de um pai e de uma mãe para existirmos, para nascermos, não é? – É. – Nesse caso, e segundo o postulado de Hermes, no plano divino também é preciso que haja um Pai e uma Mãe divinos. Leonardo da Vinci tinha plena consciência disso e retratou a Mãe Divina como ele a via. – Nossa – disse Isabelle – que lindo, né? – Mas e o segundo segredo que o senhor disse que tinha no quadro? – perguntou Eugene. – Você está atento, filho, e isso é bom! Então, vamos lá: assim como os alquimistas, Leonardo transmitiu, veladamente, uma parte do Grande Segredo nesta pintura, mas apenas para os que têm olhos para ver. Meu caro Eugene, no dia em que seu avô veio me contar que finalmente havia alcançado a revelação, eu o felicitei e compartilhei da sua imensa alegria por ter chegado ao fim de sua longa busca. No entanto, embora ele não tenha demonstrado, eu sabia da tristeza que Camille guardava no peito, porque a sua idade não permitia mais que ele pudesse pôr em 144


prática o que descobriu, uma vez que, para isso, é necessária certa capacidade física e uma descomunal força de vontade. Assim, seu avô, generoso como era, providenciou para que você usufruísse do Segredo, sob a condição de desvendar o que há por trás do quadro da Monalisa. Eugene demonstrou certa tristeza após ouvir as palavras do livreiro, movido, naturalmente, pela saudade do avô. – Não se entristeça por ele, filho. Camille venceu uma etapa e, um dia, retornará a este mundo, e se tiver a consciência suficientemente desperta para reconhecer o Caminho, continuará de onde parou. Havia lágrimas nos olhos de Eugene e Isabelle. – Creio, meu caro Eugene, que esta pintura de Leonardo da Vinci seja um caminho relativamente fácil e curto para a revelação do Grande Segredo, mas ela tem um limite. Se vocês chegarem a descobrir o que há por trás da pintura, terão apenas uma parte do Segredo. A outra parte Leonardo não incluiu no quadro. – Senhor Cayler, para se descobrir o segredo deste quadro seria necessário olhar a pintura contra a luz, por trás, ou coisas desse tipo? – perguntou Isabelle. – Não. Esses são expedientes usados por peritos, quando querem, por exemplo, verificar a autenticidade de um quadro. Não percam tempo com isso, mesmo porque em uma simples cópia esses meios seriam inúteis. O que há de mais bonito é que não é necessário ter a obra original. Basta uma reprodução. O Segredo está naquilo que se pode ver... e é exatamente por isso que continua em segredo. O caminho da simplicidade é o melhor. Sejam simples. – Como assim? – perguntou Eugene. – Quando digo simplicidade, eu não me refiro exatamente a ser simples como pessoa, compreendem? Por exemplo, vestir-se com simplicidade ou não se preocupar com sofisticações, luxo, etc. Não é disso que eu falo. Na verdade eu me refiro a pensar simples. O raciocínio complexo só atrapalha. Deixem que o 145


coração olhe para o quadro, não o intelecto. Eugene já ia fazer mais uma pergunta quando o livreiro interrompeu seu intento. – Meus amigos, vão descansar. Vocês já têm muito no que pensar. Nós nos veremos em breve. Está bem assim? – disse o Sr. Cayler, educadamente. – É uma pena, mas tá bem – disse Isabelle. – Então, boa noite! – Boa noite! – disse Eugene. – Boa noite, senhor Cayler ! – disse Isabelle. Abriram a porta da livraria e foram saindo. – Eugene! – chamou o livreiro. Os jovens se viraram e entraram outra vez. “Será que ele vai dar mais alguma dica”? – Sim, senhor Cayler! – Não esqueceu alguma coisa? – Como? – perguntou o jovem, confuso. – O quadro – disse o livreiro, sorrindo. – Ah... – bateu com a mão na cabeça e voltou. – Obrigado. – Não por isso, filho. Boa noite! – Até!

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Capítulo 21

Coisas impossíveis

A Monalisa cumpria, silenciosamente, um dos objetivos para os quais foi criada. Leonardo Da Vinci magistralmente colocou a genialidade a serviço da simplicidade ao conceber a sua obra mais famosa, escondendo, didaticamente, no âmago de uma pequena placa de madeira sobre a qual pintou a Gioconda, o mesmo segredo escondido no imenso edifício da catedral de Notre-Dame. Por que não? Seria impossível? Gente como Leonardo da Vinci, Beethoven, Wagner, Mozart, Michelangelo, Dante e tantos outros fazem coisas assim: impossíveis. Scire, Potere, Audere, Tacere. Leonardo praticou todos.

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Capítulo 22

Dedicação integral

Na manhã seguinte, à mesa do café da manhã, o assunto das férias de Eugene tornou indigesto o desjejum de Jean-Jacques. – Pai, o senhor pensou sobre as minhas férias? – Ainda não, filho. – Mas eu não tiro férias há dois anos – protestou Eugene. – E isso foi ótimo. A produção do atelier nunca esteve melhor. Cumprimos todos os prazos e conquistamos novos e importantes clientes. Você faz parte desse sucesso. – Obrigado, pai, mas mesmo assim eu gostaria de tirar férias. Trinta dias. – Trinta dias? – protestou Jean-Jacques. – O que houve com os quinze dias de costume? – Ah, pai, eu já estou há dois anos sem férias, não é? Pois então, quinze dias por ano... dois anos... trinta dias. – Está bem, está bem! – resmungou – Trinta dias! A partir de agora. – Obrigado, pai, hoje é meu dia de sorte – disse Eugene, rindo e levantando-se apressadamente da mesa. – Com licença, mas eu tenho um compromisso. – Sorte, você diz? A sua sorte é ser filho do dono.

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Capítulo 23

Tão exposto e tão oculto

Eugene sabia exatamente o que fazer com o seu primeiro dia de férias. Telefonou para Isabelle para marcar um encontro, mas dessa vez ela não podia sair. Tinha sapatos para costurar e sua mãe precisava de ajuda. Munido do quadro e do bloco de anotações, saiu de casa direto para a Livraria Cayler. No caminho, ele imaginava até onde iria a paciência do livreiro, tendo que aturá-lo quase diariamente fazendo intermináveis perguntas. Mas paciência havia, e serenidade, e equilíbrio. Conduzir Eugene pelo caminho que ele mesmo escolhera, não era uma tarefa difícil para o Sr. Cayler, pelo contrário. Eugene possuía os requisitos, assim como Camille. – Bom dia, senhor Cayler! – Ora, ora! Bom dia, Eugene! Mas que surpresa. Você aqui, pela manhã? O que houve, não foi trabalhar hoje? – Adivinhe... estou de férias. – Férias? Muito bem, mas podia ter esperado um pouquinho mais e tirado suas férias no verão, não é mesmo? – De jeito nenhum. Minha cabeça está fervendo. – Então, faça um chá. – Como? – É só uma brincadeira, filho. Vamos lá, a que devo a honra? – Bem, nós já conversamos bastante sobre os alquimistas, a Grande Obra, a Pedra Filosofal e etc., mas hoje me ocorreu que ainda não fiz uma pergunta para o senhor. – Nesse caso, faça agora, filho. – O senhor sabe de alguém que tenha conseguido realizar a Grande Obra? Alguém que tenha obtido a Pedra Filosofal? – Muitos conseguiram, outros estão em vias de conseguir e outros seguem o caminho que os levará até lá – respondeu, 151


didaticamente, o livreiro. – O senhor pode me dizer o nome de algum? – Claro. Bem, inicialmente, todos os grandes Mestres, como Jesus, por exemplo, realizaram a Grande Obra. Todos os verdadeiros alquimistas também conseguiram e por isso podem ser chamados de alquimistas. Mas entre eles eu citaria Paracelso, Nicolas Flamel, Basílio Valentin, Filaleto e outros tantos. Você conhece esses nomes? – Eu já li alguma coisa sobre Flamel e Paracelso. – Muito bem! Vamos nos sentar ali – disse o Sr. Cayler. Sentaram-se, mais uma vez, na grande mesa oval. – Você vai gostar de saber de uma coisa, filho: seu avô costumava se sentar exatamente nessa mesma cadeira que você está sentado agora. – É mesmo? – disse Eugene, surpreso, olhando para os apoios de braço da cadeira. – Vocês são realmente muito parecidos. Nesta mesa, seu avô e eu tivemos longas conversas sobre alquimistas, especialmente sobre Flamel. Para mim, é como se fosse ontem. – Que legal! – Mas vamos deixar de lado as reminiscências e vamos nos ater ao presente. Você gostaria de saber algo sobre Flamel? – Claro que sim! – Muito bem. Certamente você sabe que Nicolas Flamel viveu aqui mesmo em Paris, nos séculos quatorze e quinze e deve saber também que a casa onde ele morou está lá até hoje, não é? – Sei sim. Fica na Rue de Montmorency, né? Já fui lá uma vez. – Exatamente. – Mas, o senhor ia dizer alguma coisa sobre Flamel... – Sim. Como todos os verdadeiros alquimistas, Nicolas Flamel deixou textos em linguagem simbólica e, portanto, ininteligíveis para os que não têm a chave. Além disso, ele é um dos alquimistas que conseguiram o Elixir da Longa Vida, 152


que permite viver com o mesmo corpo físico indefinidamente, portanto, Flamel está vivo até hoje. – Como? – disse Eugene, arregalando os olhos. – Sim, ainda está vivo e mora com sua esposa na Índia. – Mas... – Pois é. O Cristo Jesus também é um imortal e ainda vive com o mesmo corpo que foi crucificado. – Com o mesmo corpo? – Sim. Todo cristão deveria acreditar nisso, afinal os evangelhos não dizem que Jesus ressuscitou? – Sim. – Pois, então. As escrituras relatam que Jesus apareceu aos seus discípulos em carne e osso, isto é, com o mesmo corpo, portanto, ele está vivo. Além disso, Jesus e Flamel não são os únicos, há muitos outros. – Será possível? – exclamou o rapaz, incrédulo. – Sim. Na Década de 30, um escritor italiano, que, aliás, foi excomungado pelo Vaticano, encontrou um imortal, o Conde de Saint Germain. O nome desse escritor era Giovanni Papini. – É? – Sim – disse o livreiro. – Eles estavam num barco que ia em direção à Índia. Quando chegou àquele país, alguns lamas tibetanos já esperavam pelo Conde para levá-lo ao Tibete. Saint Germain vive com o mesmo corpo desde o século XV e é esperado na Europa para o ano de 1999. O Sr. Cayler percebia claramente a incredulidade do rapaz. – Imortais! – repetiu. – Mas como é possível isso? – Pois é, meu caro. É possível sim, embora essa afirmação seja um prato cheio para os cientistas darem boas risadas. – Não só os cientistas, mas acho que qualquer um, né? – perguntou Eugene. – A grande maioria, eu diria. – Também acho – rematou Eugene. – Eugene, você gostaria de saber de umas coisas interessantes 153


sobre a vida de Jesus? – Claro que sim. – Muito bem. Que ele é um imortal, você já sabe; o que, possivelmente, você não sabe é que, após sua ressurreição, ele esteve com seus apóstolos durante onze anos. – Onze anos? – Onze anos. E além dos discípulos, também fazia parte desse grupo Maria, mãe de Jesus, e Maria Madalena. – Bom, eu imagino que isso também não está na Bíblia, né? – Não, filho. Esse onze anos estão relatados na Pistis Sophia, de São Valentim. – Isso é um livro, senhor Cayler? – A Pistis Sophia é o mais importante texto dos cristãos primitivos, os Gnósticos. – Como assim, cristãos primitivos? Tem alguma diferença dos cristãos de hoje? – perguntou Eugene, confuso. – Sim, filho, muita diferença. – Os cristãos primitivos foram aqueles que viveram e atuaram desde a época do próprio Jesus até o século IV, quando aconteceu o primeiro Concilio de Niceia. Por ocasião daquele Concílio, toda a doutrina gnóstica foi abolida e os textos gnósticos foram, posteriormente, considerados heréticos e, portanto, foram destruídos. – E por que fizeram isso? – Ah! Filho, essa é uma longa história de tenebrosos interesses que eu prefiro que nós abordemos em outra ocasião, se não se importa. – Claro, senhor Cayler, mas eu vou cobrar, hein? – Combinado. – Mas, sem querer ser chato, podemos voltar ao assunto da imortalidade? – Sim, claro. Você sabe que nos dias de hoje se a ciência diz que existe, então é porque existe; se a ciência diz que não existe, é porque não existe. É assim que funciona – afirmou o livreiro. 154


– É verdade, – comentou o jovem – infelizmente é assim mesmo. Mas eu queria entender melhor como é que funciona esse negócio de imortalidade. – A imortalidade é uma etapa do trabalho do alquimista, quando ele obtém, à duras penas, o Elixir da Longa Vida e pode escolher entre usá-lo ou não. – E por que alguém iria querer viver indefinidamente? – perguntou Eugene. – Quando o trabalho na Obra atinge um determinado patamar, o alquimista encontra-se diante de dois caminhos bem definidos e precisa tomar uma decisão: seguir o seu trabalho pela via direta, mais curta, mais difícil e com grandes sofrimentos e padecimentos voluntários, mas que leva a maiores triunfos; ou pegar o caminho mais comprido, espiraloide, mais demorado, com longos períodos de descanso; um caminho muito menos sofrido e que, portanto, não comporta os grandes triunfos da via direta. Se o alquimista escolhe a primeira opção, seguir nesse vale de lágrimas trabalhando e também ajudando aos que buscam o mesmo caminho que ele um dia seguiu, tem direito a usar o Elixir para que mantenha vivo seu corpo físico por tempo indefinido. – E como o alquimista sabe que chegou nessa etapa? – perguntou o rapaz. – Tem algum sinal, alguma coisa que indique esse momento? – Há, sim, filho, um sinal muito claro e muito repentino. E quando chega esse momento, é preciso tomar uma decisão, a difícil e terrível decisão... Não há tempo para pensar... Terrível, terrível... – Acho que não entendi bem, senhor Cayler – disse Eugene, visivelmente confuso. – Desculpe, filho. Falei demais. Mas, enfim, é assim com todos os que alcançam o Elixir. – Tá – disse Eugene, meio decepcionado. – Mas, além de Flamel, mais alguém usou o Elixir? – Sim. – Posso saber quem são? 155


– São muitos, mas creio que alguns você conhece. Dante Alighieri, que escreveu a “Divina Comédia”, é um Mestre ressurreto. Além dele, há também outro que me agrada particularmente. Venha ver uma coisa. O Sr. Cayler levantou-se e conduziu Eugene a uma prateleira próxima ao balcão. Retirou dois livros e os colocou nas mãos do rapaz. – Fulcanelli... “O Mistério das Catedrais” e... “As Mansões Filosofais”. Não conheço esse autor. É bom? – Muito bom, filho. Fulcanelli é um profundo conhecedor da alquimia. Nesses livros ele oferece ao estudante da Magna Arte um tratado completo sobre os símbolos alquímicos encontrados nas catedrais góticas da França e também nas antigas mansões europeias. No entanto, ele só podia fazer revelações até certo ponto, sob pena de incorrer em grave erro, ou seja, comunicar o incomunicável, revelar aquilo que não podia ser revelado. Essa tarefa não era dele. Assim mesmo, estes dois livros acabaram se tornando livros de cabeceira e fonte de valiosas informações para os estudantes da Arte. – Dá pra reservar dos dois pra mim? – Claro, já vão sair da prateleira agora mesmo. Que bom! São primeiros livros que vendo hoje. Parabéns, filho, você não vai se arrepender de tê-los comprado. – Imagino que não, mas por que o senhor me mostrou esses livros? – perguntou Eugene. – Bem, porque os leitores desse autor desconhecem o fato de que ele também é um Mestre ressurreto. Vivia aqui mesmo em Paris e “desapareceu” há pouco tempo. Dizem que os serviços secretos de vários países andaram à procura dele porque possuía conhecimentos avançados sobre Física, mas ninguém nunca o achou, nem achará, pois homens assim têm capacidades insuspeitadas. Não se pode, simplesmente, capturá-los assim tão facilmente. – E ele tem um primeiro nome? – perguntou Eugene. – Só se conhece esse nome. Alguns sustentam que era apenas 156


um pseudônimo e que ele mesmo prefaciou seus livros com o nome de um dos seus discípulos. Mas, isso não tem importância. O que importa, voltando ao nosso assunto anterior, é que todos esses Grandes Mestres continuam trabalhando em favor daqueles que buscam com sinceridade e fervor, como você e Isabelle, por exemplo. São homens e mulheres que trabalham em segredo, no anonimato. É possível passar por eles na rua ou até mesmo conhecê-los e conviver com eles sem ter a menor idéia de quem são realmente. Eles estão por aí... – Que coisa incrível. – Diga-me, filho, você já ouviu falar do Conde Cagliostro? – Eu li qualquer coisa a respeito, mas não lembro – respondeu Eugene. – Quem é ele? – Muito se falou a respeito de Cagliostro, mas poucos sabem realmente quem ele é. Ele possui o Elixir da Longa Vida. É um imortal, um verdadeiro Mestre e foi discípulo de Saint Germain. Ele é um dos que tem a capacidade de transmutar o chumbo em ouro. – E onde ele vivia? – Cagliostro viveu em diversos países do mundo e em cada lugar usava um nome diferente. – E o senhor conhece algum outro nome dele? – perguntou Eugene. – Sim, ele já foi conhecido, por exemplo, com os nomes de Belmonte, Pellegrini, D’anna, Fênix, Bálsamo e outros mais. Muita gente famosa conheceu Cagliostro. O teósofo Georges Coston conviveu com ele e a baronesa de Oberkirch também. Na verdade, Cagliostro faz parte da história da França. – Como assim? Em que momento? – O que você sabe a respeito da Revolução Francesa? – perguntou o livreiro. – Só o que aprendi na escola. – Pois bem, pouco antes da Revolução, houve um famoso processo jurídico na corte de Luis XVI e que acabou tornandose público a pedido da própria Rainha Maria Antonieta. Foi o 157


famoso processo do “Colar da Rainha”. Já ouviu falar? – Nunca. – Pois nesse processo consta o nome de Cagliostro, mas, como eu já disse, muito se falou e pouco se sabe a seu respeito. Enfim, ele acabou sendo julgado, condenado e preso. Depois o libertaram e ele foi embora da França, mas a Igreja Católica o prendeu novamente na Itália e o condenou à prisão perpétua. Dizem que morreu na prisão, mas isso não é verdade. Cagliostro escapou facilmente e vive até hoje. É um imortal. – E ele escapou como? – Gente assim, Eugene, possui capacidades que as pessoas adorariam ter, principalmente os militares. Portanto, fugir de uma prisão foi algo extremamente fácil para ele. – E, o senhor não vai me dizer como ele fez isso? – Na hora certa, filho, você vai saber. – O que diria a ciência a respeito disso? – perguntou Eugene. – Os cientistas ririam. Mas eles esquecem que, há menos de um século, se alguém dissesse que seria possível a viagem até à Lua, eles também ririam e ririam muito. – É verdade – concordou o rapaz. – Mas no momento, o que importa para você não é saber quem recebeu ou não recebeu o Elixir e sim o legado que eles deixaram para as futuras gerações de candidatos a alquimistas. Flamel, por exemplo, deixou registrada em uma carta dirigida ao seu sobrinho aquilo que eu considero uma clara indicação sobre a natureza do Grande Segredo, mas apenas sobre a natureza do Grande Segredo e não o próprio Segredo. – É? – Sim, com apenas algumas palavras agrupadas dentro do contexto de uma carta, Flamel deu, en passant, uma ideia do caminho a percorrer. – Só en passant? – Só en passant. – Ah! Eu preciso conhecer esse texto – disse Eugene, 158


erguendo-se. – Onde poderia conseguir essa carta? O senhor a tem? – Vou repetir o que eu disse há pouco: você é mesmo muito parecido com seu avô. Lembro-me dele fazendo as mesmas perguntas, seguindo a mesma trilha que você segue agora. A amizade sincera e o carinho que o Sr. Cayler tinha por Camille Doré era algo que realmente tocava Eugene; isso o emocionava, o confortava e fazia com que se sentisse em casa sempre que estava na livraria; mais “em casa” do que em sua própria casa. – Por causa dessa semelhança, – continuou o livreiro – eu já imaginava que, mais cedo ou mais tarde, falaríamos sobre a carta de Flamel; portanto adiantei-me e copiei para você o texto, mas apenas a parte que interessa no momento e que contém o que eu lhe disse. Vou buscar. Já volto. Depois de alguns minutos, o livreiro entregou a Eugene uma folha enrolada à maneira de pergaminho e presa por um fio de couro. – Leia com calma e atenção, filho. Não tenha pressa e lembre-se: pense simples. Eugene sentou-se na cadeira que seu avô usava e desenrolou o papel. Eu, Nicolas Flamel, escrivão de Paris, neste ano de 1414, do reinado do nosso bendito príncipe Carlos VI, que Deus abençoou, e após a morte da minha fiel companheira Pernelle, recordandome dela, me tomei de fantasia e de satisfação para escrever em teu favor, caro sobrinho, toda a maestria do segredo do Pó de Projeção ou Tintura Filosofal, que aprouve a Deus dispensar a seu insignificante servidor, que eu fiz como tu farás se procederes como te direi. Segue, portanto, com engenho e entendimento os discursos dos Filósofos acerca do segredo, mas não tomes os seus escritos à letra, porque ainda que possam ser entendidos segundo à Natureza, não te seriam úteis. Por isso, não te esqueças de rogar a Deus que te dispense entendimento de razão, de verdade e natureza, para que 159


vejas neste livro, em que está escrito o segredo palavra a palavra e página a página, como fiz e trabalhei com a tua querida tia Pernelle, que recordo tão intensamente. Assim, coloquei a maestria neste livro, a fim de que não te esqueças do grande bem que Deus te concede e para que te favoreça. Isto para que não deixes, em sua lembrança, de lhe cantar e salmodiar teus louvores. E nada pode ser mais adequado para celebrar tão bom acontecimento do que cânticos exaltados. Assim, escrevi este livro pela minha própria mão, e que havia destinado à Igreja Saint-Jacques, estando na dita paróquia, depois de encontrar o livro do Judeu Abrão, não quis vender este por dinheiro e guardei-o com muito cuidado para nele escrever o dito segredo da alquimia em letras e caracteres da minha imaginação, de que te dou a chave. Cuida, pois, de o manter secreto e não te esqueças nunca de, em silêncio, te recordares de mim, quando eu estiver no sudário, relembrando que, agora, te preparei tal documento, a fim de que te faças um grande mestre da alquimia filosofal, pois contribui para meu prazer, desejo, consolo e fantasia conceder-te tal segredo. Terminada a leitura, Eugene ergueu os olhos na direção do livreiro. Não disse nada. Em seguida começou a ler de novo, desta vez mais lentamente. Releu e guardou o papel. – Não consegui ver nada – disse Eugene, em tom de derrota. – Não é nada fácil, né? É complicado encontrar o que os alquimistas esconderam. E o pior, eu acho que esconderam bem debaixo do nosso nariz... mas, nem assim. – Bem, eu nunca disse que seria fácil. No entanto, não é impossível – disse o Sr. Cayler. – Meu avô também leu esta carta, né? – Leu. Aí mesmo onde você está agora. – E ele descobriu alguma coisa? – perguntou o rapaz, com um misto de desânimo e ansiedade. – Assim como você, no primeiro momento, não. No entanto, depois de algum tempo e de muita obstinação, Camille compreendeu o que há na carta. – Diga com sinceridade, senhor Cayler, o senhor acha que eu 160


sou capaz de descobrir também? – perguntou Eugene, temeroso pela resposta. O livreiro sorriu. – Sinceramente, filho, eu acho que sim. Mas depende de você, depende do tamanho da sua força de vontade, do tamanho da sua sede pela sabedoria. – Sabe, senhor Cayler, – disse Eugene, visivelmente emocionado – naquela carta que meu avô escreveu, ele deixou muito claro que acreditava em mim e deixou claro também que se eu chegasse a ler era porque o senhor também acreditava, não é assim? – Exato, meu rapaz. – Pois eu vou fazer tudo para não decepcionar o meu avô e o senhor – disse, resoluto, o rapaz. – Isso mesmo, filho! Lute, se esforce, mas não se agarre à ideia de fazer as coisas por seu avô ou por mim. Faça por você mesmo. Em outras palavras, faça pelo Ser que habita em você. – Entendo... Alquimia, aí vou eu. – Muito bem, filho. Faça disso o seu objetivo. – Por falar em objetivo, qual é o objetivo final da alquimia? – perguntou o rapaz. – Não há, exatamente, um único objetivo final, mas um deles é a Pedra Filosofal. – E o que é a Pedra Filosofal? – Ah! Isso não é nada fácil... – disse, pensativo, o Sr. Cayler. – Nossa, a minha pergunta foi tão difícil assim? – A pergunta é fácil. Difícil é a resposta. Mas vamos lá... A Pedra Filosofal, como você já pode imaginar, não é uma rocha, um mineral. A Pedra encontra-se nas antigas tradições dos diferentes povos. É a mesma pedra a qual o Cristo se referiu quando se dirigiu ao seu discípulo Pedro e o chamou de Pedra; é a Pedra Cúbica dos maçons; a Pedra de Yesod dos cabalistas; a pedra usada por Davi contra Golias; a pedra de tropeço e de escândalo que foi rejeitada pelos construtores e é também a 161


pedra a qual o Prometeu da mitologia ficou acorrentado. Veja você, quantos exemplos de pedra existem em todas as tradições. – É verdade – concluiu Eugene. – Mas eu ainda não entendi bem. – É natural. Vou lhe dar outro exemplo: está escrito na Bíblia que Jacob dormiu sobre uma pedra e sonhou com uma escada que ia da terra ao céu e por essa escada subiam e desciam anjos. Quando despertou de seu sono, consagrou a pedra e a ungiu com azeite. – Ungiu uma pedra? – perguntou Eugene. – Pois é. Estranho ato, não? Mais uma vez, a maior parte dos leitores da Bíblia não sabe o que significa isso, uma vez que compreendem tudo ao pé da letra. Se os leitores da Bíblia deixassem, por um instante, de ler tudo ao pé da letra, possivelmente passariam a ter um monte de perguntas a fazer. – Como, por exemplo, “que pedra é essa?” – perguntou Eugene. – Sim, filho, mas no caso de Jacob, há outra pergunta que, na ordem correta, vem antes da pergunta sobre a pedra. – E qual seria? – Mais importante do que perguntar “Que pedra é essa?”, seria perguntar “Que sono era aquele de Jacob?” – respondeu o livreiro. – Peraí, não entendi bem: sono ou sonho? – Sono – esclareceu o Sr Cayler. – E que sono era aquele? – quis saber o jovem. – O sono da consciência, Eugene. – Hein?! – Isso mesmo, Eugene. Esse sono não é meramente o sono comum, isto é, o contrário de estar acordado. Não. Isso tudo é simbologia contida na Bíblia. Jacob, assim como toda a humanidade atual, tinha a consciência adormecida, mas despertou. E, ao despertar a consciência, compreendeu, primeiro o que era a escada e depois o que era a pedra, a Pedra Bendita, 162


por isso a benzeu e a ungiu. – E o que era a escada do sonho de Jacob? – perguntou Eugene, cada vez mais excitado. – Hã, hã, hã... – Ah! Não acredito! O senhor também não vai contar o que é a escada?! O livreiro guardou silêncio. – Tá bom... Entendi... – Mas posso dar uma dica – disse o Sr Cayler. – Oba, olha aí uma luzinha chegando. Manda, senhor Cayler. – Muito bem. A escada, em geral, tem uma significação oculta importante. Porém, há várias interpretações para a escada, desde as mais simples, isto é, aquelas que se entende ao pé da letra, até as mais ocultas e profundas, isto é, para os Iniciados ou para os que possuem a chave. – Entendi. E alguém já escreveu ou falou alguma coisa sobre a escada? – Fulcanelli. – Aquele, dos livros que o senhor me mostrou? – perguntou o jovem luthier. – Ele mesmo. – E em qual dos dois livros? – Em “O Mistério das Catedrais”. – Embrulha que eu vou levar, os dois – disse Eugene, rindo. – Já são seus. – Quer dizer então que a escada de Jacob está no livro de Fulcanelli? – Uma escada. Não necessariamente a de Jacob – respondeu o livreiro. Eugene levantou as sobrancelhas e ficou mudo. – Tudo bem, filho? – Tudo, mas não entendi bem – disse o rapaz, cada vez mais confuso e curioso. 163


– Venha aqui, filho. O livreiro levou Eugene até o balcão onde havia guardado os livros de Fulcanelli que tirara da estante. Abriu uma gaveta, escolheu “O Mistério das Catedrais”, folheou por um instante e mostrou a Eugene. – Pronto, meu rapaz. Leia aqui – disse o Sr Cayler, mostrando um trecho específico: “Franqueemos a grade do pórtico e comecemos o estudo da fachada pelo grande portal, chamado pórtico central ou do Juízo. O pilar central, que divide em dois o vão da entrada, oferece uma série de representações alegóricas das ciências medievais. Face à praça — e em lugar de honra — a alquimia aparece figurada por uma mulher cuja fronte toca as nuvens. Sentada num trono, tem na mão esquerda um cetro — insígnia de soberania — enquanto à direita sustem dois livros, um fechado (esoterismo) outro aberto (exoterismo). Mantida entre os seus joelhos, e apoiada no seu peito, ergue-se a escada dos nove degraus — scala philosophorum — hieróglifo da paciência que devem possuir os seus fiéis no decurso das nove operações sucessivas do labor hermético (grav. II). “A paciência é a escada dos Filósofos, diz-nos Valois, e a humildade é a porta do seu jardim; porque a quem perseverar sem orgulho e sem inveja, Deus fará misericórdia”. – Gravura II? – disse o rapaz – peraí... deixa ver... Achei! Eugene ficou admirando por uns instantes a imagem que havia no livro. – Bom, nesse caso – continuou o jovem luthier – a escada está dentro de outra representação, não é isso senhor Cayler? – Sim, a Alquimia, como afirma Fulcanelli. E o grande segredo, o maior de todos, está, em parte, representado nessa figura. – É mesmo? – perguntou Eugene, mais empolgado ainda. – Sim, filho, mas apenas para os que têm olhos para ver. 164


– Bom, então eu me considero um cego, porque, assim de supetão, não dá pra ver nada e, pelo jeito, ainda vai levar um bom tempo pra eu descobrir alguma coisa. Ainda bem que tá gravado tudo na pedra. – Por falar em pedras e coisas ocultas, – disse o Sr. Cayler – tem uma coisa bem interessante que eu acho que você não sabe. As sobrancelhas de Eugene se ergueram. – Há pouco eu mencionei a Pedra Cúbica dos maçons, não é? – É. – Muito bem. Primeiro, o formato cúbico dessa pedra é simbólico, nada mais. Serve apenas para diferenciar da pedra bruta, sem forma, a pedra que ainda não foi talhada. Essa interpretação mais simples os maçons conhecem. No entanto, infelizmente, a imensa maioria dos maçons não sabe o que há por trás dessa simbologia; não sabem qual o significado secreto que há por trás da pedra cúbica, talhada e da pedra bruta, sem forma, grosseira. – Será? – argumentou Eugene, aguardando a continuação da explicação. – Infelizmente, sim, filho. Eles argumentam que se trata do aperfeiçoamento interno de cada um, isto é, passarmos de pedra bruta, internamente, para pedra lapidada, trabalhada. Deixarmos de ser brutos, psicologicamente, para sermos lapidados, refinados. – E eles estão errados? – perguntou o rapaz. – Não. – Bom, agora deu um nó na minha cabeça – disse Eugene, confuso. – Em tudo há a interpretação simples e superficial e também a interpretação mais profunda, oculta. Os maçons não estão errados ao interpretarem a transformação da pedra bruta em pedra cúbica como sendo a melhoria interior, a lapidação interior de uma pessoa. Existe até uma tradição que diz que o maçom produz, ele mesmo, sua autolapidação. Portanto, o raciocínio está correto, mas... – Mas? – perguntou Eugene. 165


– Mas há uma interpretação mais profunda – respondeu o livreiro. – É, eu já imaginava que sim. E qual seria? – Bem, vamos devagar: transformar a pedra bruta em pedra cúbica é, sem dúvida, o aperfeiçoamento pregado por eles. No entanto, a informação está incompleta. Se a pedra é simbólica, como lapidá-la? Com martelo e cinzel simbólicos? Como fazer? – Sei lá! – disse o rapaz. – Como fazer? – Só depois que se descobre a real natureza desta pedra é que se pode trabalhá-la, não antes. Como é possível lapidar uma pedra que não se vê? Em outras palavras: só é possível trabalhar com a pedra, quando se sabe o que é a pedra. – E o que é a pedra? – Você já me fez essa pergunta, filho. – Já entendi, já entendi... Eu tenho que descobrir sozinho. – Isso. – Mas e os maçons? Nenhum deles sabe? – Pois é, eis a questão – disse o livreiro. – Que questão? – Ora, a que você acabou de formular. – Hã?! É. Sei lá. Tô até meio tonto. – Gostaria de encerrar a nossa conversa? Quer descansar a mente? – Não, não, tudo bem. Vamos continuar. – Muito bem. Então, continuando, existe uma Maçonaria desconhecida dos maçons. – Como? – Pois é, foi o que você ouviu. – Hmm... tipo... uma maçonaria dentro da maçonaria? – perguntou o rapaz. – Não. Isso não é segredo – respondeu o livreiro. – Não? Poxa, pra mim era – comentou Eugene, revelando seu pouco conhecimento a respeito. – O fato é que existe outra maçonaria: a Maçonaria Oculta, 166


que os maçons atuais desconhecem, inclusive os maçons que pertencem à tal maçonaria dentro da maçonaria, que você não sabia que existia. – Como assim? – perguntou o rapaz. – Veja bem, ao longo dos séculos, a humanidade foi se degenerando e perdendo seus valores espirituais, mas isso você já sabe, já falamos a esse respeito. No entanto, essa degeneração, embora lenta, chegou a tal ponto que foi necessário que toda a sabedoria fosse retirada do ambiente público e passasse a ser secreta, transmitida apenas de boca a ouvido em círculos cada vez mais e mais fechados. Isso aconteceu em todos os campos da espiritualidade: nas religiões, nas filosofias e nas ordens místicas também, restando apenas religiões mornas, confessionais, sociais. Com os Pedreiros, portanto, não foi diferente: a Real e Verdadeira Maçonaria retirou-se do cenário e ocultou-se. – Pedreiros? – Sim, é como são chamados os maçons. Pedreiros: aqueles que sabem talhar a Pedra. – Entendi – disse Eugene. – É preciso que talhemos ou lapidemos a Pedra e só se pode fazer isso através do sinal da cruz. – Então, é uma questão religiosa? – perguntou Eugene. – Não. – Mas e a cruz? – A cruz é um símbolo muito anterior ao Cristianismo. Na cruz esconde-se o Grande e Incomunicável Segredo. Jesus, meu rapaz, foi crucificado não apenas por costume da época. – Então, por qual outro motivo? – Ele, pessoalmente, mostrou um sinal, mas pouquíssimos entenderam. Desses poucos que entenderam, ao longo dos séculos e até hoje, alguns rejeitaram o que descobriram e permaneceram em seus dogmas empoeirados e carcomidos. É a pedra rejeitada... A pedra de tropeço. Enfim, todas são a mesma Pedra e têm o mesmo e oculto significado e esse significado é o que você precisa descobrir. 167


– Já que o senhor falou de cruz, nos evangelhos tem alguma coisa secreta sobre alquimia, pedra filosofal e essas coisas? – Nos evangelhos tem muita coisa secreta. Existe uma passagem na qual Jesus resume os três fatores necessários para se realizar a Grande Obra, porém de forma simbólica. – E que passagem é essa? – Ele disse: Quem quiser vir após mim, negue a si mesmo, tome sua cruz e siga-me. Mas, como não poderia ser diferente, essa frase é inútil quando entendida ao pé da letra. Pense, Eugene, e me diga o que poderiam significar esses três fatores: negar a si mesmo, tomar sua cruz e segui-lo? O rapaz coçou a cabeça olhando para o chão. – Sinceramente, eu prefiro não arriscar nenhum palpite – disse Eugene. – Não tenho a menor ideia, a não ser a interpretação ao pé da letra. – É exatamente o que pensam os leitores da Bíblia. Primeiro: as pessoas, em geral, confundem-se um pouco com esse conceito de negar-se a si mesmo. Segundo: pensam que tomar sua cruz significa carregar a cruz de seus próprios sofrimentos, mas não. Terceiro: pensam que segui-lo significa crer nele ou professar a religião cristã, ou frequentar uma igreja, etc. Puro engano. Nessa frase encontram-se três fatores indispensáveis para se realizar a Grande Obra. Basta que se compreenda. – Então, Jesus conhecia a alquimia? – Meu filho, ele foi o maior de todos os alquimistas – afirmou, enfaticamente, o livreiro, levantando as mãos. – Realizou completamente a Grande Obra e tornou a realizá-la mais vezes do que qualquer outro. – Essa eu não entendi – disse Eugene. – Eu sei. Estranho seria se você tivesse entendido. Isto está, por enquanto, além do seu entendimento. Eugene calou-se. – Escute bem o que vou lhe dizer, filho: Todas as sugestões que eu lhe dei para que descobrisse, por si só, o Grande Segredo, estão ligadas umas às outras, como elos de uma corrente. 168


Uma ajuda na compreensão da outra. Por isso lhe dei o bloco de anotações. Use-o. Medite sobre o conteúdo do seu bloco. Procure perceber a relação que existe entre cada um dos itens. Compreende isso? – Sim, senhor Cayler. – Muito bem. – Só mais uma coisa – disse Eugene –: posso fazer uma última pergunta? – Claro, filho. – Bem, voltando um pouquinho naquele trecho do livro de Fulcanelli que o senhor mostrou, eu não vou perguntar nada sobre a imagem da mulher com a escada, mas o que eu queria saber é porque diz aqui que a humildade é a porta do jardim dos filósofos? Como assim, a humildade? Só os pobres que podem entrar nesse jardim? – Minha caro Eugene – respondeu o livreiro –, há uma confusão aí. – Que confusão? – Atualmente, os termos “humilde” e “humildade” são frequentemente confundidos com “pobre” e “ser pobre”. Quantas vezes vemos, por exemplo, entrevistas com artistas famosos ou pessoas importantes no mundo dos negócios ou do mundo dos esportes, que quando relatam as dificuldades que viveram, quase invariavelmente usam as mesmas palavras: “Eu venho de uma família humilde e lutei muito para chegar onde estou hoje”. Será que essas famílias realmente possuíam a virtude da humildade ou eram apenas pobres? – Sei lá – respondeu Eugene. – Eis aí a confusão. Poderia ser uma família composta por pessoas sem caráter, arrogantes ou desonestas, mas como eram pobres, eram humildes! Triste engano. A pobreza nada tem a ver com a humildade, filho. Pode haver pessoas ricas e humildes, altruístas, generosas. Por outro lado, pode haver pessoas pobres e orgulhosas, presunçosas, petulantes. Você compreende o que eu digo? 169


– Claro, senhor Cayler. E já me dei conta que eu também costumava pensar assim. – Entenda da seguinte forma: Humildade é uma virtude, pobreza é um estado. – Entendi. – Agora vá, pense em tudo o que conversamos e peça o auxilio de Isabelle. Nós nos veremos.

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Diálogo entre um Pedreiro e o Mestre-de-Obras:

- Já caminhaste entre o J e o B? - Assim o fiz. - Como te comportaste? - Inclinei-me. - O que viste? - A pedra. - E qual era o seu aspecto? - Suja e grosseira. - Revelaram-te o segredo? - Assim o fizeram. - Repete-o. - I.M.V.I.V.F.S.E.S. - Tens as ferramentas? - Eu as tenho. - São perfeitas? - Assim o são. - Trabalhaste? - Trabalhei. - Como o fizeste? - Na obscuridade e no silêncio. - Por fim, o que viste? - A Estrela. - A Boa? - A Boa. - Queres seguir adiante? - Sim. - O Vaso ainda está perfeito? - Assim está. - Prepara-te, pois. 171



Capítulo 24

As primeiras luzes Eugene Doré Paris, 31 de maio de 1997 O Bom Ladrão O Inferno de Dante A Grande Obra Os dois ingredientes da alquimia O segredo da natureza A Lâmpada de Alladim A Monalisa O texto de Flamel A Pedra Filosofal

Edward Cornellius Cayler

A última conversa que Eugene tivera com o Sr. Cayler havia causado uma enorme confusão na cabeça do rapaz em função da imensa quantidade de informações despejadas sobre ele de uma só vez. Mas seguindo o conselho do livreiro, ele e Isabelle passaram a se dedicar apenas ao que havia no bloco de anotações, diligentemente. 173


O sótão da casa dos Doré foi o local escolhido para mergulharem no estudo da nebulosa lista. Lá, havia silêncio e privacidade, requisitos indispensáveis para que pudessem se concentrar na difícil tarefa de projetar alguma luz sobre uma escura lista que consumia cada dia das férias de Eugene e todas as horas vagas de Isabelle. O sótão parecia uma pequena biblioteca. Eugene levara para lá seus livros, que não eram poucos, na esperança de terem uma fonte adicional de informação e de comparação entre os tópicos. – Já tem dez dias que a gente se dedica a esta lista e até agora não fizemos grandes progressos. Não é fácil, não é fácil – dizia Eugene. – Como assim “não fizemos grandes progressos”? Claro que fizemos. A gente chega lá! Calma, meu amor. Vamos repassar o que a gente já conseguiu e vamos fazer o que o Sr. Cayler disse: pensar simples. – Tá bom – concordou Eugene. – Olha só, nesses últimos dias a gente tem olhado o quadro, mas sem ver nada; a gente tem lido os livros, mas sem entender as entrelinhas. Vamos tentar ser simples, certo? – Tá legal – disse Eugene, endireitando as costas e respirando longa e profundamente. – Pra começar, onde está a lista? – perguntou Isabelle. – Sei lá. Em algum lugar por aqui. Eugene começou a levantar folhas soltas e livros espalhados pelo chão, até que encontrou. – Aqui! Achei! – Pronto pra começar tudo outra vez? – Pronto. – Então, qual é o primeiro item? – O Bom Ladrão – respondeu Eugene. – Legal – disse Isabelle, enquanto pegava uma folha em branco e a prendia numa prancheta. – Bom, a gente já sabe que 174


o ladrão tem que roubar alguma coisa que é indispensável para a realização da Grande Obra. Ponto. Enquanto falava, Isabelle anotava, resumidamente, o que ela mesma dizia. – Seguindo esse raciocínio, – continuou – eu acho que o alquimista também precisou dessa mesma coisa para realizar a mesma Obra, pelo menos o verdadeiro alquimista, certo? – Peraí, peraí! – disse Eugene, ficando em pé e apoiando o indicador na própria têmpora – Como é que a gente não pensou nisso antes? – No quê? – perguntou Isabelle, entusiasmada. – Olha só: se o produto do roubo também é indispensável, então é porque é um dos dois ingredientes indispensáveis do alquimista. – Isso! – Eu sou demais – disse Eugene, erguendo os braços como alguém que acaba de ganhar uma luta de boxe. – Convencido. – Brincadeira. Mas vamos lá, e agora? – Agora, se um alquimista precisa roubar para ter certo ingrediente, é porque ele não pode conseguir por outro meio, como comprar, por exemplo. Não porque não tenha dinheiro, mas porque não existe para vender e se não existe para vender é porque não é algo físico, material. Concorda? – Sim. – Se um dos ingredientes não é físico, ou melhor, se um dos ingredientes é filosófico, como disse o nosso amigo, é possível que o outro também seja. Certo?! – Certo – respondeu Eugene. – Agora, que tipo de relação os ingredientes poderiam ter com os outros itens da nossa lista? Com a lâmpada de Alladim, por exemplo? – perguntou Isabelle. – Bom, – disse Eugene – na lâmpada eu vejo três coisas: o 175


azeite, aquele foguinho que sai do bico e a própria lâmpada, que é o recipiente. – O fogo! – gritou Isabelle. – É isso, o fogo é o ingrediente que se deve roubar, porque, de todos, é o único que não é exatamente físico, que não se compra, entendeu? ... Ninguém compra fogo. – E o azeite? – perguntou Eugene. – O azeite só pode ser o outro ingrediente. Lembra do que seu avô escreveu? “Cuida em não derramar o azeite da lâmpada para que a luz não se apague”. É isso. O alquimista que conseguisse manter sua lâmpada sempre cheia de azeite não ficaria no escuro, isto é, nas trevas e teria luz pra se orientar e pra chegar ao término da Grande Obra. Tá claro agora: os dois ingredientes são o fogo e o azeite. Só que tudo isso é simbólico, nê? E a gente ainda tem que descobrir o que eles significam. – É... pode ser. – disse Eugene. – Na verdade, é como se fosse uma advertência. – Como assim? – perguntou Isabelle. – Você mesma já disse: é um alerta pra que o alquimista fique atento ao combustível da lâmpada. Enquanto tiver azeite, vai ter luz, que também é simbólica. E eu acho que essa luz significa a luz do conhecimento, que é exatamente o contrário das trevas da ignorância, entendeu? Isabelle anotava cada palavra de Eugene. – Afinal – continuou – o que é o azeite? – Essa é a parte mais difícil – comentou Isabelle, coçando a cabeça. – Bom, eu acho que nós já avançamos um pouco mais – disse Eugene. – Talvez agora seja a hora da gente mostrar ao Sr. Cayler as nossas descobertas. O que você acha? – Acho uma ótima ideia, porque se tudo o que a gente concluiu for errado, seria melhor seguir outra linha de raciocínio e não perder mais tempo. 176


Isabelle tirou a folha da prancheta e a guardou na bolsa. – Vamos?! Cheios de esperança de que suas conclusões fossem verdadeiras, Eugene e Isabelle foram à Livraria Cayler para saber se o que estava escrito naquela folha significava luz ou treva.

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DEUS

A Divindade Suprema é caracterizada como Agnosthos Theos, o Espaço Abstrato Absoluto, o Deus ignorado ou desconhecido, a realidade Una da qual emanam os Elohim na aurora de qualquer criação universal. As faculdades de cognição humanas jamais poderiam passar além do império cósmico dos Logos macho-fêmea, o Demiurgo Arquiteto, o Exército da Voz, o Verbo. JAH-HOVAH, o Pai-Mãe secreto de cada um de nós, é o autêntico Jehová. O Divino Rabi da Galileia, em vez de render culto ao Jehová antropomórfico dos judeus, adorou ao seu divino macho-fêmea (JAHHOVAH), o Pai-Mãe interior. Todas as nações têm seu primeiro Deus ou Deusa como andróginos e não poderia ser de outro modo, posto que consideravam a seus antigos progenitores de duplo sexo como seres divinos e deuses santos. Com efeito, a concepção artificial de um Jeová antropomórfico, exclusivista, independente de sua própria obra, sentado lá em cima num trono de tirania e despotismo, lançando raios e trovões contra este triste formigueiro humano, é o resultado da ignorância e da mera idolatria intelectual. Esta concepção errônea da verdade, infelizmente, tem se apoderado tanto do filósofo ocidental, como do religioso afiliado a qualquer seita desprovida por completo dos elementos gnósticos. O que os ocultistas de todos os tempos têm rechaçado, não é ao Deus desconhecido, Uno e sempre presente na natureza, ou à natureza “in abscondito”, mas aos Deus do dogma ortodoxo, à espantosa deidade vingativa da lei do talião (olho por olho e dente por dente). O Espaço Abstrato Absoluto, o Deus Incognoscível, não é nem um vazio sem limites, nem uma plenitude condicionada, mas ambas ao mesmo tempo. O gnóstico esoterista aceita a revelação como procedente de seres divinos, das vidas manifestadas, porém, jamais da Vida Una, não manifestada. A Seidade Incognoscível é o Espaço Abstrato Absoluto, a raiz sem raiz de tudo o que foi, é ou há de ser. Essa causa infinita e eterna acha-se desprovida de toda classe de atributos. É luz negativa, existência negativa, está fora do alcance de todo pensamento ou especulação. 179



Capítulo 25

Um pouco mais perto da China

Sentados à mesa de leitura, os jovens esperavam o livreiro terminar de ler o “relatório” de conclusões que trouxeram da casa de Eugene. – Muito bom! – disse ele – Muito bom! Vocês já começaram a ver a luz no fim do túnel. – Verdade?! Acertamos?! – perguntou Isabelle. – Vejamos: sim, aquilo que o ladrão rouba é realmente indispensável para a Obra, portanto vocês acertaram. Estão certos, também, ao chegarem à conclusão que é um dos ingredientes da alquimia. Muito bem. Continuaram acertando quando perceberam que o objeto do roubo é o fogo, que o azeite é o outro ingrediente e que tudo isso é simbólico. Brilhante. Além disso, também é correto o raciocínio de que isso pode ser considerado um alerta ao alquimista para que não derrame o azeite. Perfeito, porém o mais importante foi a descoberta de que o azeite é um dos ingredientes. Essa sim, é a mais valiosa de todas as descobertas que fizeram até agora. – Conseguimos, Eugene – disse Isabelle – a gente deu mais um passo. – Sim, sim, vocês deram mais um passo. Demonstraram que são capazes. E aqueles que trabalham, merecem pagamento, não é mesmo? Dois pares de olhos brilharam. – Eu vou retirar mais um pouco do véu que encobre o Segredo... Vocês já sabem que os dois ingredientes da alquimia são o fogo e o azeite, mas o que não sabem é que o azeite também é conhecido com outro nome: Água. Portanto, os dois principais ingredientes são a água e o fogo. Em termos estritamente alquimistas, eles são conhecidos como o Mercúrio e o Enxofre. – Mercúrio e enxofre? – perguntou Isabelle. – Sim. Elementos químicos bem conhecidos da tabela 181


periódica – disse o livreiro. – Pois é. Parece simples. – comentou Eugene. – Mas algo me diz que não deve ser tão simples assim, né, senhor Cayler? – Tem razão, filho. Simples à primeira vista, isto é, quando entendido ao pé da letra. – Eu já imaginava – disse Eugene. – Eu entendo você, filho. – O senhor já passou por isso, né? – perguntou Isabelle. – Sim, minha cara. Todos que se dedicam a esses estudos passam por isso. – Mas eu gostaria de voltar ao tema dos ladrões. Há um ponto importante que eu posso detalhar um pouco mais para vocês e creio que seja uma informação interessante. Que tal? – Que dúvida, senhor Cayler – disse Eugene, reanimado. – Refiro-me ao termo “roubar”. Bem, qualquer ladrão rouba, não é assim?, por isso é chamado de ladrão. No entanto, esse termo “roubar” precisa ser complementando. – Aquele mesmo Mestre que afirmou que Jesus falava Maia, falou também sobre os ladrões, usando termos estritamente alquímicos. Ele disse que o mau ladrão saqueia os depósitos de hidrogênio e o gasta miseravelmente, isto é, desperdiça tudo. E o bom ladrão também saqueia os mesmos depósitos, porém utiliza o produto do roubo de outra maneira. Esse detalhe é, precisamente, o que os diferencia. – E por que o mau ladrão não fez a mesma coisa que o bom ladrão? – perguntou Isabelle. Muito bem, filha. Muito bem. você fez uma excelente pergunta. – Fiz? – Sim. Você tocou num ponto importante. E a resposta é: apenas porque um tinha a informação e outro, não. Um representa a regra e outro a exceção. Um representa o vulgo e outro o Iniciado. De imediato, não pareceu aos jovens que aquilo fosse uma 182


informação assim tão importante, e a expressão que o livreiro pode ver nos rosto dos deles confirmava isso. – Tudo bem, com o tempo vocês entenderão. Por outro lado, é importante que vocês saibam que, no trabalho alquimista, é vital que se tenha completo controle sobre o produto do roubo, para não causar danos ao processo alquímico. – Como assim? – quis saber Eugene. – Qual é o produto do roubo? – perguntou o Sr. Cayler – O fogo – respondeu Isabelle. – Isso mesmo, filha. O fogo é bom e útil quando controlado. Fora de controle é destruidor, não é assim? – Claro – disseram ambos. – Com o fogo usado na alquimia não é diferente. – E o que poderia acontecer se o esse fogo ficasse fora de controle? – perguntou Isabelle. – Tudo o que o alquimista mais teme: o fracasso total na Obra. – Nossa – disse Isabelle – mas o que seria isso? Pegaria fogo no laboratório? – Em minha opinião, algo pior – respondeu, categórico, o Sr. Cayler. – O senhor pode revelar o que é? – Bem, já que nós estamos falando em linguagem meramente simbólica, sim. – Então... – O que eu vou lhes dizer é regra fundamental da alquimia e todos os praticantes da Arte devem segui-la estritamente, sob pena de perderem o trabalho e terem que começar tudo de novo. A regra é: o fogo precisa ser controlado permanentemente, com muita atenção, vontade e coragem, pois fora de controle produz a perda da matéria-prima da Grande Obra. 1

Arnold de Villanova 183


– Matéria-prima? – perguntou Eugene. – Sim, filho. Pense da seguinte maneira: quando um cozinheiro vai preparar um determinado prato, ele precisa ter o ingrediente principal, a matéria-prima da sua obra culinária, não é? – indagou o livreiro. – Sim. – Na alquimia também. – O azeite. O azeite é a matéria-prima! – disse Eugene, efusivamente, como se acabasse de descobrir a penicilina. – Muito bem, filho. Vocês deram um grande passo agora. Sim, o azeite ou a água ou o mercúrio, enfim, essa é a valiosíssima matéria-prima. – Mas o que é, exatamente, essa matéria-prima? O livreiro olhou para os dois de uma forma que eles já conheciam bem. – Tá bom, tá bom, a gente já sabe... Mas não tem nada que o senhor pudesse falar sobre isso? – Sim, há uma coisa que posso dizer. Vou repetir o que disse um alquimista: Existe na Natureza certa matéria pura que, descoberta e levada à perfeição pela Arte, converte em si mesma todos os corpos imperfeitos em que toca.1 Havia uma expressão de “hã, como?!” nos rostos de Isabelle e Eugene. Não era isso que eles esperavam. – Desculpe, senhor Cayler, mas, sinceramente, isso que o senhor disse não ajudou em nada – falou Eugene, sem esconder a decepção. – Eu imagino que não, mas é só o que eu posso dizer, por enquanto – argumentou o Sr. Cayler. – E o que o alquimista precisa fazer pra não perder o controle sobre o fogo? – perguntou Isabelle, tentando buscar outro caminho para fazer o Sr. Cayler falar mais. – Boa tentativa, Isabelle – disse o livreiro, percebendo a intenção dela e balançando o indicador em sua direção. – Bem, eu tentei – disse ela. 184


– Eu entendo. Mas a sua pergunta não ficará sem resposta, no entanto, não espere uma resposta muito esclarecedora. – Já entendi... – Você se lembra quando eu falei, há algum tempo, que devemos ir contra a natureza? – perguntou o livreiro. – Lembro. – Pois bem, o alquimista precisa ser rebelde, precisa ser diferente das outras pessoas. Ele deve nadar contra a correnteza, deve ser um marginal – disse o Sr. Cayler, fazendo uma pausa. Na mente dos dois havia um “tudo bem, mas não contou grande coisa”, que logo foi percebido pelo livreiro. – Um dos princípios fundamentais da alquimia é: Para realizar a Grande Obra o alquimista tem que transformar uma matéria em outra. – É? – perguntou Isabelle. – Sim, filha. A matéria-prima precisa ser transformada ou, em termos alquímicos, transmutada. Mas para fazer isso o alquimista tem que usar a seguinte tática: fazer o contrário do que a natureza solicita. Os jovens se olharam, perplexos. – Não entendemos, senhor Cayler – disse Isabelle. – Durante o processo alquímico, há um momento em que a natureza grita ao alquimista que ele deve descartar um dos elementos do processo. E eu quero enfatizar bem o termo “a natureza grita”. Trata-se de uma forte indicação, aparentemente óbvia. Eis aí a natureza determinando que algo deve ser descartado, jogado fora. O segredo está nesse momento. Se o alquimista obedece à natureza, fracassa. Se é rebelde e não obedece, triunfa. – Complicado, né? – disse Isabelle. – Um pouco – respondeu o livreiro. – Um pouco? Essa é boa – comentou Eugene, desanimado. – Bem, isso que acabei de dizer refere-se apenas à primeira fase do trabalho alquímico, que é a preparação do mercúrio. 185


Os inexperientes costumam fracassar já nessa primeira fase e paralisam a Obra completamente. – Então, eles não sabem transformar chumbo em ouro? – Sabem, mas não tem prática, experiência, paciência. – Complicado mesmo – repetiu Isabelle. – Atualmente, os pretensos “alquimistas” modernos – continuou o Sr. Cayler – desconhecem completamente isso que estou lhes dizendo. Esses não chegam a ser nem meros assopradores. – Assopradores? – perguntou Eugene. – Não conhecem o termo? Ambos balançaram a cabeça negativamente. – Assopradores são, por assim dizer, alquimistas de segunda classe. – Como assim? – Embora estejam no caminho, – continuou – os assopradores, em sua maioria, ainda não possuem um dos instrumentos necessários: um Vaso Hermético, adequadamente preparado. – E por que o nome “assopradores”? – perguntou Isabelle. – Porque em todo laboratório alquimista existe um par de foles ou um fole duplo. Os assopradores são aqueles que trabalham unicamente com esses foles e nada mais. Ainda não trabalham diretamente com o Vaso e o Forno. Apenas manobram o fole, ou seja, assopram. – Então, esses sim, não sabem transformar chumbo em ouro? – perguntou Eugene. – Sabem, em teoria, mas não possuem os instrumentos necessários para praticar. O jovem casal cada vez mais percebia que não seria nada fácil compreender profundamente o real significado das palavras do livreiro inglês; no entanto, entendiam que deviam separar o joio do trigo, isto é, separar o “modismo esotérico” que abunda nas livrarias do mundo, do real e verdadeiro que há por trás das 186


palavras dos Mestres. Isabelle e Eugene, embora não estivessem satisfeitos com as respostas, compreendiam o que livreiro já havia dito antes sobre não castrar a sabedoria, no entanto, fervia-lhes por dentro a impetuosidade e a mania de querer tudo para ontem, como qualquer jovem. – Senhor Cayler, – perguntou Eugene, buscando mudar o tópico, mas não o assunto – é possível mesmo a transformação de chumbo em ouro? Eu digo, ouro de verdade? – Sim, é possível. – Afinal, a alquimia é real ou simbólica? – quis saber Isabelle. – A alquimia possui os dois aspectos. A transformação de chumbo em ouro, em seu aspecto oculto e filosófico, é de vital importância e precisa ser realizada sob pena de fracasso na Obra. Já em seu aspecto literal só é realizada quando há necessidade econômica fundamental que a justifique. Alguns alquimistas utilizam essa prática apenas para suprir as demandas materiais da Obra. Entenderam? – Acho que sim – disse Eugene. – Eu imagino que o laboratório de um alquimista que seja capaz de fabricar ouro de verdade deve ser bem escondido dos curiosos, não? – Eles não usam laboratórios – afirmou o Sr. Cayler. – Não?! – Não. – Então, eu não entendi – disse Eugene. – Pelo que eu sei, a alquimia sempre foi praticada num laboratório. – Pois é, essa sempre foi a concepção mais popular a respeito da alquimia, mas não é verdade. A Verdadeira Alquimia nunca foi realizada em um laboratório químico formal, como nós o conhecemos hoje, cheio de tubos de ensaio e coisas assim. É importante deixar muito claro este ponto. O laboratório é absolutamente simbólico. Portanto, os pseudo-alquimistas modernos perdem lamentavelmente o seu tempo misturando pozinhos secretos e líquidos misteriosos. Não chegarão a lugar nenhum. 187


– Então, os laboratórios nunca existiram? – Existiram, mas apenas para dar credibilidade à linguagem simbólica utilizada pelos alquimistas. – Seria só pra desviar a atenção dos curiosos? – perguntou Eugene. – Isso mesmo, filho. Os alquimistas precisavam esconder os segredos incomunicáveis sob o véu dos símbolos, não é? – Sim. – Além disso, eles afirmavam em seus livros que a Grande Obra deveria ser realizada em um laboratório, não é? – Sim. – Pois, então, eles precisavam que suas afirmações fossem confirmadas fisicamente de tal forma que os curiosos ou os indignos da arte sequer imaginassem que a alquimia fosse praticada de outra forma que não em um laboratório formal. Para isso, eles deixaram diversas fórmulas e experiências químicas que realmente funcionavam e que serviam apenas para distrair a atenção daqueles que enxergam apenas o que está diante de seus olhos, isto é, os superficiais. Assim, o verdadeiro segredo estaria seguro. Aqueles homens que, no passado, trabalharam em laboratórios, não eram, realmente, alquimistas, mas espargiristas. – Como – perguntou Isabelle. – Espargiristas, filha, praticantes da espargíria. Os espargiristas são os pais da química moderna. Foi através dos experimentos químicos dos espargiristas, e não dos alquimistas, que nasceu a química. – Mas e o ouro? – Bem, o alquimista, quando realiza a Grande Obra, passa a ter a capacidade de obter ouro à vontade, através do pó de projeção que ele mesmo fabricou. Refiro-me a ouro físico, de verdade, e da melhor qualidade. O Conde de Saint Germain, por exemplo, aqui mesmo em Paris, era muito rico, tinha muitas propriedades e tudo em função do ouro que fabricava a partir da transformação dos metais através do pó de projeção. Porém, repito, isso não é para todos, mas apenas para os que completaram 188


a Grande Obra e obtiveram a Pedra Filosofal. – Meus Deus, quanta coisa que ninguém nem imagina – disse Isabelle. – Sim, Isabelle, mas tudo isso não passa de cultura esotérica. O que importa realmente para vocês é a matéria-prima da Grande Obra, a Água. Então, pensem: para que podem servir o fogo e a água? – Para fazer um chá – respondeu Eugene, lembrando a brincadeira que o livreiro fizera, dias atrás. – Seu bom humor o leva pelo caminho certo, filho, pois na sua resposta está parte do segredo – disse o Sr. Cayler, sorrindo. Eugene ficou mudo. – Pensando no chá, – continuou o livreiro – o que é preciso para fazê-lo? – Ferver a água – respondeu Isabelle. – Muito bem. E para que a água ferva...? – É preciso fogo. – Excelente, – disse o Sr. Cayler – mas vocês devem entender que esse fogo é filosófico e essa água também. É água que não molha as mãos e fogo que não queima a pele, no entanto, possuem tal grau de poder que o próprio Universo lhes deve a existência. – Meu Deus, aonde é que a gente foi se meter – disse Isabelle, olhando para Eugene. – Num labirinto sem saída – comentou o rapaz. – Labirinto sim, filho. Sem saída, não. – Tudo bem, mas que é super difícil, isso é. – Compreendo. Deixe-me tentar mudar a maneira de explicar. Vamos utilizar uma visão religiosa e esotérica ao mesmo tempo. No amanhecer da Vida, o fogo fecundou a água para que, do Caos, surgisse tudo isso que os nossos olhos veem. Na Bíblia está escrito que “o Espírito de Deus pairava sobre as Águas”... Percebem? São as mesmas águas, matéria-prima da Grande Obra. Tanto no macrocosmos como no microcosmos a matéria-prima 189


é a mesma. – Mas que águas são essas? – perguntou Eugene. – As Águas da Vida, filho! – respondeu o Sr. Cayler, entusiasticamente. – Fiquei na mesma – disse Eugene, após uma curta reflexão. – Lembram-se da lâmpada? – perguntou o livreiro. – Para que ela serve? – Para iluminar. – Muito bem, mas para iluminar ela precisa do azeite, não é? – Sim. – O azeite, meus filhos, é Água, como eu já disse. Portanto, sem água não há luz. – É, mas isso nos manda de volta ao começo: que água é essa que senhor chamou de Águas da Vida? – Ai, ai... A vida é repleta de riscos – sussurrou o Sr. Cayler, falando consigo mesmo. – Como? – perguntou Eugene. – Não ouvi bem o que o senhor disse. O livreiro levantou-se e, lentamente, caminhou ao redor da mesa até ficar entre os dois jovens. Segurou as mãos de ambos, inclinou-se e disse: – Vou lhes dizer mais uma coisa sobre a Água. Depois disso, não me perguntem mais nada sobre a matéria-prima da Grande Obra. – Combinado – disse Isabelle. – Eu usei o termo Águas da Vida por uma razão específica. Imaginem uma imponente árvore com uma copa imensa e um tronco que seriam necessárias várias pessoas para abraçá-lo. Pois bem, essa enorme árvore um dia foi uma simples semente. Se eu jogasse fora essa semente, nunca teria a árvore, concordam? – Sim. – Portanto, o segredo do poder e da imponência dessa árvore está na semente. Se vocês conseguirem compreender a estreita relação que existe entre a Água e a Semente, terão a mesma 190


surpresa que teve Nicolas Flamel, Basílio Valentin e tantos outros alquimistas quando davam seus primeiros passos, há muitos séculos. Silêncio. – Se chegarem à resposta correta, conhecerão uma parte do Grande e Impronunciável Segredo dos Alquimistas. Outra parte encontra-se, por exemplo, na Monalisa. Se chegarem à resposta correta, repito, chegarão à fonte secreta do poder e da força de Hércules e de Sansão e então terão pela frente um segundo desafio: o que fazer com essa Água e, o mais importante, como fazer. O modus operandi, os verdadeiros alquimistas o sabem. Ergueu-se e puxou os jovens pelas mãos para que se levantassem das cadeiras. – Meditem e roguem a Deus para que lhes dê clareza de pensamento. Agora, vão! – Está bem, senhor Cayler. A gente se vê – disse Eugene. – Tenho certeza disso, filho. é a mesma. – Mas que águas são essas? – perguntou Eugene. – As Águas da Vida, filho! – respondeu o Sr. Cayler, entusiasticamente. – Fiquei na mesma – disse Eugene, após uma curta reflexão. – Lembram-se da lâmpada? – perguntou o livreiro. – Para que ela serve? – Para iluminar. – Muito bem, mas para iluminar ela precisa do azeite, não é? – Sim. – O azeite, meus filhos, é Água, como eu já disse. Portanto, sem água não há luz. – É, mas isso nos manda de volta ao começo: que água é essa que senhor chamou de Águas da Vida? – Ai, ai... A vida é repleta de riscos – sussurrou o Sr. Cayler, falando consigo mesmo. – Como? – perguntou Eugene. – Não ouvi bem o que o senhor disse. 191


O livreiro levantou-se e, lentamente, caminhou ao redor da mesa até ficar entre os dois jovens. Segurou as mãos de ambos, inclinou-se e disse: – Vou lhes dizer mais uma coisa sobre a Água. Depois disso, não me perguntem mais nada sobre a matéria-prima da Grande Obra. – Combinado – disse Isabelle. – Eu usei o termo Águas da Vida por uma razão específica. Imaginem uma imponente árvore com uma copa imensa e um tronco que seriam necessárias várias pessoas para abraçá-lo. Pois bem, essa enorme árvore um dia foi uma simples semente. Se eu jogasse fora essa semente, nunca teria a árvore, concordam? – Sim. – Portanto, o segredo do poder e da imponência dessa árvore está na semente. Se vocês conseguirem compreender a estreita relação que existe entre a Água e a Semente, terão a mesma surpresa que teve Nicolas Flamel, Basílio Valentin e tantos outros alquimistas quando davam seus primeiros passos, há muitos séculos. Silêncio. – Se chegarem à resposta correta, conhecerão uma parte do Grande e Impronunciável Segredo dos Alquimistas. Outra parte encontra-se, por exemplo, na Monalisa. Se chegarem à resposta correta, repito, chegarão à fonte secreta do poder e da força de Hércules e de Sansão e então terão pela frente um segundo desafio: o que fazer com essa Água e, o mais importante, como fazer. O modus operandi, os verdadeiros alquimistas o sabem. Ergueu-se e puxou os jovens pelas mãos para que se levantassem das cadeiras. – Meditem e roguem a Deus para que lhes dê clareza de pensamento. Agora, vão! – Está bem, senhor Cayler. A gente se vê – disse Eugene. – Tenho certeza disso, filho.

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Tollius, dirigindo-se aos assopradores, escravos da letra: “Ide-vos, retirai-vos, vós que procurais com aplicação extrema as diversas cores nos vossos vasos de vidro. Vós que me fatigais os ouvidos com o vosso negro corvo, sois tão loucos como aquele homem da Antiguidade que tinha por hábito aplaudir no teatro, embora lá estivesse sozinho, porque imaginava sempre ter diante de si algum espetáculo novo. Assim sois vós quando, chorando de alegria, imaginais ver nos vossos vasos a vossa branca pomba, a vossa águia amarela e o vosso faisão vermelho! Ide-vos, digo-vos eu, e retirai-vos para longe de mim, se buscais a pedra filosofal numa coisa fixa; porque ela não penetrará mais os corpos metálicos do que o faria o corpo de um homem nas muralhas mais sólidas... O Mistério das Catedrais Fulcanelli O próprio Fulcanelli acrescenta: Esta vasilha, indispensável e muito secreta, recebeu nomes diversos, escolhidos de maneira a afastar os profanos, não apenas do seu verdadeiro destino, mas ainda da sua composição. Os Iniciados compreenderão o que queremos dizer e saberão a que vasilha nos queremos referir. Geralmente é chamada ovo filosófico e Leão verde. Pelo termo ovo os Sábios entendem o seu composto, disposto no seu vaso próprio e pronto a sofrer as transformações que a ação do fogo nele provocará. Neste sentido, é positivamente um ovo, visto que o seu invólucro ou casca encerra o rebis filosofal, formado de branco e de vermelho numa proporção análoga a do ovo dos pássaros

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Capítulo 26

Insólitas conclusões

Sentado no assoalho do sótão, Eugene repetia para si mesmo: “a Água da Vida, a Água da Vida...” – Falando sozinho, Eugene? – perguntou Isabelle, que acabara de subir os últimos degraus da escada do sótão, trazendo consigo uma jarra com água e dois copos. – Pois é – respondeu, girando o indicador e apontado a própria cabeça. – E o pior é que o Sr. Cayler disse que seria a última dica que ele daria sobre a tal água – lamentou Isabelle. – Aliás, por falar no nosso amigo, tem uma coisa que faz tempo que eu tenho pensado, mas acabei esquecendo de comentar com você – disse Eugene. – O que é? – Olha só: pela aparência, o Sr. Cayler deve ter uns sessenta e cinco anos, mais ou menos, né? – É, mais ou menos isso. – Pois é, acontece que no dia em que o Sr. Cayler me entregou aquela carta, ele me disse que conviveu com o meu avô durante trinta anos, os últimos trinta anos de vida do meu avô. Então, eu comecei a fazer umas contas e fiquei, no mínimo, confuso. – Por quê? – Porque o meu avô morreu em 1985, com oitenta e um anos, certo? –Certo – respondeu Isabelle. – Então, o meu avô tinha cinquenta e um anos quando conheceu o Sr. Cayler, que só tinha vinte e poucos, certo? – Certo. – Ora, o que eu acho estranho é que um homem de cinquenta e um anos de idade, que passou a vida inteira tentando descobrir os segredos da alquimia, da Pedra Filosofal e essas coisas, de 195


repente se torna “aluno”, por assim dizer, de um jovem de vinte e poucos. No nosso caso, a situação é inversa: ele tem sessenta e tantos e nós estamos da casa dos vinte, aí tudo bem, mas e o meu avô? Por que será que confiou logo de cara em alguém tão mais novo que ele e, por lógica, menos experiente? – É verdade, isso nem passou pela minha cabeça – disse Isabelle, surpresa com as conclusões do namorado. – E outra coisa que eu acabei de perceber agora: com vinte e poucos anos o Sr. Cayler já era dono de uma livraria? – Até aí eu não vejo nada de tão impossível assim – disse Isabelle. – Ele pode ter recebido de herança. – Pode ser, pode ser... ah, mas e o sotaque? Lembra que você comentou que ele não tem nenhum sotaque? Quem não conhece pensa que ele é francês. E a Sra. Cayler também não tem sotaque. Além disso, teve um dia em que eu notei que ele conversava em espanhol com outro homem. Será que também não tinha sotaque? Eu acho que tem alguma coisa estranha no Sr. Cayler. – Eugene, – disse Isabelle, de repente, em tom de reprimenda – parece que você quer crucificar o nosso amigo. Lembre-se que é ele que está ajudando a gente. Se não fosse por ele a gente não teria descoberto um monte de coisas. – É, tem razão. Foi uma atitude meio ranzinza, né? Será que eu estou ficando velho? – Meu velhinho – disse Isabelle, abraçando Eugene.

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Saber o real significado de “transformar chumbo em ouro” é algo que demanda algum esforço e certo tempo de estudo. Chegar à compreensão de como se dá esse processo é uma tarefa muito mais difícil; porém, conseguir, efetivamente, a “transformação” completa de “todo o chumbo” em ouro, sem sobrar nenhuma porção do “metal cinza”, isso é trabalho de um Hércules.

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Capítulo 27

O Inferno

Por mim se vai à cidadela ardente por mim se vai à sempiterna dor por mim se vai à condenada gente. Só justiça moveu o meu autor; sou obra dos poderes celestiais, da suma sapiência e primo amor. Antes de mim não foi coisa jamais criada senão eterna, e, eterna, duro. Deixai toda esperança, ó vós, que entrais. A Divina Comédia – Inferno, Canto III Dante Alighieri

Eugene compreendera, finalmente, que o caminho seria longo e difícil e acabou adquirindo o hábito de não pensar tanto no tempo e nas dificuldades que ele e Isabelle teriam até alcançarem a meta. As férias há muito já haviam terminado e o jovem luthier voltara, resignado, à rotina no atelier. Isabelle seguia em sua profissão de sapateira e ambos se encontravam quase diariamente para dar continuidade ao que mais gostavam de fazer: procurar o Segredo. Embora as visitas à livraria Cayler houvessem diminuído sensivelmente, o trabalho dos dois seguia muito bem e as descobertas, compartilhadas e confirmadas pelo livreiro, iam surgindo aos poucos, consistentes. O quebra-cabeça lentamente ia sendo montado. 199


Como fazia todas as tardes pontualmente às 14h, o Sr. Cayler exibiu a placa de “Aberto” no vidro da porta da livraria e saiu à calçada. Em frente, Eugene e Isabelle aguardavam. – Boa tarde, senhor Cayler. – Ora, viva! Meus bons amigos voltaram. Esqueceram de mim? – Imagine, a gente nunca esqueceria do senhor – disse Isabelle. – Eu sei, minha cara e, acreditem, é um grande prazer vê-los outra vez. – O prazer é nosso! – disse Eugene, apertando a mão do livreiro. – Gostariam de caminhar um pouco? É o que ia fazer agora. – Claro, porque não?! Algum lugar específico ou caminhar apenas? – perguntou Eugene. – Que tal tomarmos um sorvete? – Oba! Adorei a ideia – disse Isabelle – e nós conhecemos uma sorveteria maravilhosa, não é, Eugene? – Ah! Sim! É o melhor sorvete de Paris. E o senhor é nosso convidado. – Com todo esse entusiasmo, o sorvete deve ser bom mesmo. Onde fica essa sorveteria? – Naquela esquina ali, na Rue des Lombards – indicou Isabelle, apontando para a rua transversal próxima. – Ora, mas essa é boa... – disse o livreiro. – O que foi? – perguntou Isabelle, curiosa. – Era exatamente para lá que eu pensei em convidá-los a ir, a não ser que haja outra sorveteria na mesma rua. – Gostei dessa, – comentou Isabelle – nós três temos as mesmas preferências não só pela alquimia e coisas assim, mas também pelos sorvetes. Legal, né? – Muito legal – disse o livreiro, rompendo um pouco com o 200


formalismo que o caracterizava e surpreendendo os jovens que se entreolharam e sorriram discretamente. Por sorte, o tempo encoberto daquele dia tornava mais amena a temperatura em Paris e caminhar até que não era, de forma alguma, algo desagradável como certamente seria, caso o sol de pleno verão estivessse à mostra. Caminharam até a sorveteria enquanto os jovens comentavam entusiasticamente a respeito dos seus sabores preferidos e dos incríveis formatos de flores que davam aos sorvetes de casquinha. De volta à rua e após algumas lambidas e alguns “Hum, que delícia!”, Eugene tomou a palavra: – Diga-me, senhor Cayler, quando o senhor conheceu meu avô, já era casado com a Sra. Cayler? – Sim, filho. Por que quer saber? – Nada, mera curiosidade. Isabelle cutucou Eugene, discretamente. – Na verdade, – continuou Eugene, meio sem jeito – o que a gente queria mesmo era falar com o senhor sobre o Inferno de Dante. – Acharam alguma coisa? – Aí é que está. Não achamos nada. O Canto Trinta e Quatro fala sobre o nono e último circulo do inferno, onde está Lúcifer. Depois, Dante e o poeta Virgílio saem do inferno em direção ao Purgatório, e só. – E qual é, exatamente, a dúvida de vocês? – perguntou o livreiro. – O senhor disse que o Canto Trinta e Quatro tem relação direta com o ladrão. É isso que a gente não conseguiu entender – explicou Isabelle. – Bem, eu gostaria de acrescentar um adjetivo que qualifica melhor essa relação do Inferno com o ladrão: na verdade existe uma tênue relação entre os dois temas. Tênue relação, apenas. – Só pra complicar um pouco mais, né? – concluiu Eugene. – Espere para ver, filho. Mas, nesse caso, precisamos voltar à 201


livraria para pegarmos um exemplar da Divina Comédia. – Não será necessário – disse Eugene, sacando imediatamente da mochila o livro de Dante, com o marcador no Inferno, Canto Trinta e Quatro. – Um homem prevenido... – disse o Sr. Cayler, sorrindo. – Vamos voltar à livraria? – perguntou Isabelle. – Que tal procurarmos um lugar ao ar livre? – sugeriu o livreiro. – Ótimo! Voltaram a Rue Nicolas Flamel e seguiram até à bela Tour Saint-Jacques. Caminharam pela Rivoli até a Rue Saint-Martin e depois direto até o Sena. Na ponte Notre-Dame, pararam no primeiro mirante à direita. – Que tal aqui? – sugeriu o livreiro. – Tá ótimo! – responderam os jovens. – Muito bem, vamos ver o que diz o Inferno de Dante... Aqui está. Canto Trinta e Quatro. O livreiro tirou uma lapiseira do bolso e apertou duas vezes o pino superior, expondo a grafite. – Posso? – perguntou o Sr. Cayler, fazendo menção de rabiscar o livro. – Claro. – No Inferno de Dante, há duas coisas que vocês precisam descobrir; porém, o mais importante está aqui – e delimitou com dois leves riscos laterais o trecho que interessava. Eugene pegou o livro e aproximou-se de Isabelle, para que lessem juntos. A um sinal, o pescoço lhe cingi; Ele aguardou que as asas de Dite à frente De todo em todo abrisse, como eu vi. Ao ventre hirsuto o mestre, lestamente, Prendeu-se, e pelos fios foi descendo 202


Entre o grão corpo e a cava aberta rente. À altura já da coxa nos sustendo, Onde esta no quadril faz inserção, Virgílio, exausto, e como que tremendo, Mudou, num giro inteiro, a posição, Pondo onde estava o pé a face alçada, Como a subir, do inferno à direção. “Cuidado, que é tão só por tal escada”, Disse, ofegante, presa do cansaço, “Que se deixa esta fossa amaldiçoada!” Dali saltou comigo a estreito passo No rochedo, e depôs-me, suavemente; Revi, então, de nossa marcha o traço. Terminaram a leitura, olharam-se e em seguida olharam para o livreiro. – Lindo, não? – disse o Sr. Cayler. – O estilo que se usava na época de Dante é mesmo sem igual. – Para o senhor, sim. Mas pra nós é quase incompreensível. – Eu vou “traduzir” para vocês. – Nesse trecho do Canto Trinta e Quatro, – continuou o Sr. Cayler –Dante quis dizer que ele e seu guia, o poeta Virgilio, desceram pelo corpo de Lúcifer até a altura do quadril. A partir daí, Virgilio deu um giro completo no corpo, ficando na posição inversa à que estava antes e começou a subir ao invés de descer? – Subir? – perguntou Eugene. – Sim, subir, porque na altura do quadril de Lúcifer está o centro da Terra, sendo assim, do quadril para baixo era o outro hemisfério, por isso era uma subida em direção à superfície. Entenderam? 203


– Agora, sim, ou melhor, agora deu pra entender o que Dante escreveu, mas ainda não dá pra entender o que há por trás disso. – Assim é a vida, filho. Temos que lutar pelo que queremos e pagar o preço. – E que preço! – disse Eugene. – O bloco de anotações está aí com você? – perguntou o Sr. Cayler. – Aqui – disse Eugene, tirando o bloco da mochila. – Certamente vocês se lembram que eu disse que os itens dessa lista se relacionam entre si, não é? Os jovens acenaram com a cabeça. – Muito bem! O Bom Ladrão está relacionado ao Inferno de Dante. Isso vocês já sabiam. Quanto aos outros itens, a carta de Flamel está intimamente ligada à Monalisa, mas apenas em um pequeno trecho onde se encontra a indicação do caminho. Descubram primeiro o que há por trás do ladrão e do Inferno. Depois disso, apliquem essas conclusões à carta de Flamel e à Monalisa. Eugene e Isabelle ficaram na mesma. O que o livreiro disse, aparentemente, não contribuiu muito, mas serviu para que os jovens ficassem em silêncio, pensassem mais e perguntassem menos. “Às vezes parece que ele faz de propósito, pra confundir ainda mais”, imaginava o rapaz. O Sr. Cayler colocou-se atrás de Eugene e Isabelle que estavam de frente para o Sena e, numa atitude paternal, pôs as mãos sobre as cabeças deles. – Meditem. Relacionem o Inferno com o Bom Ladrão. Vocês são capazes. Talvez reler esse trecho seja um bom começo. Os olhos dos dois voltaram ao livro. Quando terminaram, o livreiro já não estava mais lá.

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Fogo aquoso Água ígnea Vidro líquido Maleável Flexível

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Capítulo 28 Lúcifer

As visitas de Isabelle e Eugene à livraria, de menos frequentes passaram a raras. Não que essa atitude revelasse que eles, eventualmente, fossem ingratos ou interesseiros, mas é que eles, às vezes, tinham a impressão que estavam “sugando” demais do livreiro, embora o próprio livreiro não pensasse dessa forma. Assim, somente quando surgia uma nova e consistente descoberta, os três se reuniam na mesa oval para submeterem ao crivo do professor os novos achados. Era um claro sinal de que já conseguiam caminhar com as próprias pernas. Um dia, quem sabe, não precisariam mais do livreiro. Não como instrutor. A Divina Comédia, o quadro da Monalisa, a carta de Flamel e o bloco de anotações enchiam mochila de Eugene naquela ensolarada tarde de fim de verão. Desta vez, ele e Isabelle levavam descobertas bastante interessantes para o Sr. Cayler. Os jovens, excitados com suas novas e decisivas conclusões, aguardavam impacientes. Eugene despejara o conteúdo da mochila sobre a mesa e tamborilava com os dedos na madeira, visivelmente ansioso. – Pronto, perdoem-me pela demora, mas aquele cliente é o único a quem vendo livros de poesia e ele vem aqui duas ou três vezes ao ano apenas, de maneira que precisei dar-lhe total atenção. – O senhor vende livros de poesia também? – perguntou Isabelle, surpresa. – Na verdade, só para ele. Nenhum outro cliente me pede livros de poesia. Você gosta de poesia, Isabelle? – Adoro. – Então, vou lhes contar um segredinho, mas que permaneça assim, certo? 207


– Combinado – disseram. – Bem, acreditem vocês ou não, mas há muitos anos eu escrevi umas poesias também, mas percebi que não tinha talento para poeta. Isso, logo ficou muito claro. – É verdade? O senhor já escreveu poesias? – perguntou Isabelle, surpresa. – É verdade, se é que aqueles versos podem ser chamados de poesia. – E por que não? – perguntou Eugene. – Bem, porque eu acho que meus poemas são um pouco confusos. Escrevi para mim apenas. Possivelmente seriam tediosos e sem graça para os apreciadores da poesia. – A gente podia ler alguns? – perguntou Isabelle. – Bem... sim, mas não esperem muita coisa. – Nós vamos correr o risco – disse Eugene, em tom de brincadeira. – Está bem, já volto. Três ou quatro minutos depois, os jovens tinham em suas mãos algumas folhas de papel amareladas. Cinco folhas; cinco poemas:

Oração Oh! Mãe, rogai por mim Ao tribunal derradeiro e certo Até que a Stella, A que não engana, Surja sobrenadando A minha água nova e mudada.

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Tributo Não a ti nem aos que leram, Vão foi seguir Do filho de Mântua os passos. Nem a pena ou o tinteiro Digno seria portar De tal mestre. Ave, poeta, Tua tumba está vazia Agora e dantes. A Obra está feita. O Magistério cumprido. Fortuna Que as Parcas façam, uma a uma, o seu labor, ligeiro, Se desta vida, e das outras, não levar o bem Que reza o livro Grão, Primeiro. Canto A meio caminho desta vida, qual Florentino canto, Vi de incertezas sobre o que o viver continha, Alma e corpo cobertos pelo espesso manto. 209


Detida estava em divisão de vias a via pia que tinha, Como se da sexta carta o vaticínio houvesse Sobre mim realizado, à reta linha, Dura profecia, comum ao vulgo e ao que merece. Trabalha, pois, ignóbil, Para deixar de sê-lo, Ao invés da cela Às paredes pôr cor. – Nossa... – disse Isabelle, baixinho. – Que foi? – perguntou Eugene. – Não sei... É que tudo isso parece tão triste. – Você entendeu os poemas? – quis saber o rapaz. – Na verdade, não. Mas mesmo sem entender, parece uma coisa tão triste, sei lá. – Você é mesmo surpreendente, Isabelle – disse o Sr. Cayler, sorrindo. – Há, realmente, certa carga de tristeza nessas linhas. Eu as escrevi há muito, muito tempo, numa época em que eu percebia, profundamente, a minha triste e miserável situação interna. Eu via claramente o que eu abrigava em meu interior, como se me olhasse de corpo inteiro num espelho que refletisse o que somos por dentro, o nosso universo psicológico. Por aqueles tempos, eu lutava incansavelmente contra meus próprios defeitos e me sentia frequentemente triste, exatamente por sentir e conhecer o que eu era internamente. Penso que isso acabou transparecendo nestes poemas. – É, acho que sim. E o senhor tem mais poemas? – Não! Escrevi apenas esses. – Que pena – lamentou Isabelle. – Algum dia vai escrever de novo? – Que sabem, filha, quem sabe. Mas, poesias à parte, vocês 210


certamente vieram aqui por um motivo específico, não é? – É – disse Isabelle, emergindo das linhas dos poemas do livreiro. – Então, o que vocês têm para mim? – perguntou o Sr. Cayler. – Bem, nós nos concentramos no Bom Ladrão e no Inferno de Dante e chegamos a conclusões um pouco estranhas, por isso estamos aqui – relatou Eugene. – E que conclusões seriam essas? – Nós já sabíamos que aquilo que o ladrão deve roubar é o fogo. Aí o senhor insistiu tanto no Inferno de Dante que a gente ficou martelando só nisso até descobrir o óbvio, né? – E o que é o óbvio? – Que o que mais tem no inferno é fogo. Pelo menos é isso que as religiões pregam. Então, por associação, nós concluímos que o dono do fogo do inferno só pode ser Lúcifer. – Continue – disse o livreiro. – Bom, foi a partir daí nós que começamos a estranhar as nossas descobertas. – E o que há de estranho? – perguntou o Sr. Cayler. – Bem, o ladrão roubou algo do diabo e por ter feito isso, se salvou. Não faz sentido. O mais incrível é que o próprio Jesus confirma isso quando diz que o Bom Ladrão estaria no Céu com ele. Isso é assustador, exatamente porque levou a gente a pensar que o diabo talvez não seja tão mal quanto se prega. – Primeiro, não confunda diabo com Lúcifer. Depois, meus caros, vocês chegaram a um ponto em que é preciso ter muito cuidado para não se enganarem e, no mínimo, serem rotulados como heréticos. O diabo, como vocês dizem, é aquele que tem o poder de retardar ou até mesmo interromper completamente o nosso avanço espiritual. Essa é a função dele, ele quer nos desviar e sabe como fazer. Quanto a Lúcifer, Dante indicou o caminho inequívoco de como “usá-lo” em nosso favor. O caçador se transforma na caça. – Como assim, senhor Cayler?! 211


– Está aqui, no Canto Trinta e Quatro do Inferno – disse o livreiro abrindo a Divina Comédia que Eugene colocara sobre a mesa. – Dante e Virgílio usaram o próprio Lúcifer como escada para saírem do inferno. Primeiro desceram pelo corpo dele até o fundo do poço, o centro da Terra, depois subiram pela metade de baixo do corpo de Lúcifer em direção à superfície. Eugene e Isabelle escutavam calados. – Além disso, as palavras de Virgílio são bastante claras – disse o livreiro apontando o trecho do livro onde se lia: “Cuidado, que é tão só por tal escada... que se deixa essa fossa amaldiçoada.” – Viram? Virgílio, nas palavras de Dante, foi enfático ao dizer “tão só por tal escada”, pois pela mesma escada que se desce ao inferno, se sai dele. Por Lúcifer se vai ao inferno e por ele se sai de lá. Não há outro caminho. Portanto, quero que vocês entendam muito claramente o que há de mais importante em tudo isso: Lúcifer é escada para descer ou para subir. Cada ser humano que faça a sua escolha. – Mas, o que significa subir? E como usar Lúcifer em nosso favor? – perguntou Isabelle. – É justamente aí que reside uma das muitas informações que vocês precisam reunir para chegar a compreensão do Grande Segredo – respondeu o livreiro. – A conclusão de vocês está quase perfeita. Na realidade, não foi exatamente o fogo que o ladrão roubou de Lúcifer. O entendimento correto – e isso é muito importante – é que o ladrão utilizou-se de Lúcifer para dar tratamento, através do fogo, ao verdadeiro objeto do roubo. Lembram-se dos depósitos de hidrogênio? – Sim – responderam ambos. – Pois bem, Lúcifer não é o dono desses depósitos. Ele é o dono do fogo. Então, como utilizar Lúcifer? – perguntou o Sr. Cayler. – Subindo pelas suas costas. – respondeu Eugene. – Sim, está certo, mas isso é simbólico – respondeu o livreiro, pacientemente. 212


– Então não sei. – Vamos abordar esse assunto de outra forma para que vocês entendam melhor. Imaginem um agricultor que tem sua lavoura num vale. Ocorre que na época das chuvas, desce das montanhas um caudal de águas que destroi parte da plantação desse agricultor. Muito bem, enfrentar as águas de peito aberto na tentativa de impedi-las de seguir em frente seria inútil, naturalmente. Construir um muro para dificultar a passagem da água também não adiantaria, porque depois de algum tempo as águas passariam por cima do muro. O que fazer então? – É, aí fica difícil – disse Eugene. – Ele não poderia construir um açude e represar a água? perguntou Isabelle. – Poderia. É uma opção, mas não é melhor, uma vez que as águas que antes corriam tornam águas paradas e, com o tempo, morrem, pricipalmente por falta de oxigenação e renovação natural. – Então o que fazer, senhor Cayler? Como o agricultor poderia resolver esses problema? – Isso é o que eu quero que vocês me digam. Quais são as opçoes que temos até agora? – Bem, nós temos: deixar que a água desça e leve tudo, tentar dificultar a passsagem da água ou construir um açude – respondeu Isabelle. – Muito bem. No entanto, eu posso lhes oferecer uma quarta opção, que é a melhor de todas. Ao invés de, nesse caso específico, lutar contra a natureza, que tal aproveitar a própria força da natureza? Não tentar conter nem represar as águas, mas canalizar a sua força inteligentemente para outros fins. – Canalizar como, senhor Cayler? – perguntou Eugene. – Já chegaremos lá, filho. Por ora, vamos pensar filosoficamente, que é o que nos interessa agora: aquela corrente de água, filosoficamente falando, repito, não é do bem nem é do mal; não quer prejudicar nem quer ajudar o agricultor; é apenas uma força da natureza em ação, nada mais. O que determina o sucesso 213


ou o fracasso do agricultor é a forma como ele lida com essa força. Tudo bem por enquanto? Estão seguindo o raciocício? – Estamos. – Muito bem, agora vamos transportar esse raciocínio que aplicamos ao caso do agricultor para o que estávamos falando antes: Lúcifer, o fogo, etc. E principalmente, vamos esquecer a imagem antropomórfica que a igreja atribuiu a Lúcifer: uma entidade diabólica representando todo o mal do mundo. Compreendam apenas que Lúcifer é uma força da natureza, assim como aquelas águas do exemplo do agricultor. – Eu queria entender melhor uma coisa – disse Isabelle. – Pois não, filha. – Quando o senhor diz “força da natureza”, a primeira coisa que me vem à cabeça é, por exemplo, a força de um raio, a força do mar, do vento, de um furacão e coisas assim. Era isso o que o senhor queria dizer? – Não. Essas forças da natureza que você mencionou, no meu modo pessoal de ver, são forças comuns, superficiais, embora terrivelmente poderosas. São forças facilmente observadas e estudas pela ciência. Mas em se tratando de Lúcifer como força da natureza, eu a classifico de outro forma: é uma força de natureza divina que age diretamente na natureza humana. – Acho que não entendi bem – disse Isabelle. – Eu suponho que sim, Isabelle, mas não se preocupe com isso agora. Você vai entender. – Mas há algum tempo atrás o senhor disse que o objeto do roubo era o fogo, não disse? – Sim. – Então eu agora eu tô perdida. O fogo não é mais o objeto do roubo? – É preciso que vocês compreendam que as informações sobre esse tema tão complexo e espinhoso são todas muito próximas, interligadas e combinadas. Inicialmente vocês receberam a informação sobre o fogo para que pudessem, através de seus próprios esforços, ligar o fogo à Lúcifer. E foi o que aconteceu. 214


Vocês fizeram essa ligação. O passo seguinte era dar um ajuste mais fino à essa informação inicial. É o que estamos fazendo agora, mesmo que pareça – como pareceu a você – que se tratasse de trocar uma informação por outra, contradizendo a primeira. Assim, Lúcifer e o fogo estão intimamente envolvidos na ideia roubo e do posterior tratamento do ingrediente indispensável do processo alquímico. – Entendi – disse Isabelle. O sr. Cayler calou-se por um instante, tomando fôlego. – Muito bem. Então, aplicando o raciocínio do agricultor, a que conclusão vocês chegariam? Isabelle imediatamente tomou a palavra. – O senhor usou esse mesmo tipo de comparação quando explicou pra gente sobre os ladrões e os alfaiates, lembra? – Exatamente, filha. E se funcionou naquela ocasião, acho que pode funcionar novamente – respondeu, bem humorado, o livreiro. – Mas vá em frente, Isabelle, exponha seu raciocínio. – Bem, eu acho então que não adianta tentar combater Lúcifer, como não adiantaria combater as águas. O certo seria nós nos aproveitarmos dele ou utilizá-lo a nosso favor. É isso? – Muito bem, Isabelle, muito bem. Seu raciocínio foi perfeito. Mas eu pergunto: como fazer isso? – Aí é que está o X da questão! Não sei – respondeu Isabelle. – Bem, meus filhos, aqui nós vamos abrir um parêntesis para deixar bem explicado um ponto. Vocês devem ter em mente, de forma muito clara, que esse tema que estamos debatendo é muito delicado e sua compreensão mais profunda choca-se frontalmente com a herança cultural e religiosa que temos no ocidente. Essa nossa conversa – especificamente sobre Lúcifer – está atingindo níveis tão profundos que nós devemos ser prudentes e, assim que atingirmos a compreensão mais profunda do assunto, devemos nos calar, porque isso não é para todos, mas para poucos. Compreendem? – Claro, senhor Cayler. E já que senhor tocou nesse assunto – disse Eugene –, eu queria dizer que nós não somos do tipo 215


fanáticos religiosos ou beatos, como se diz. Nós nem frequentamos nenhuma igreja, então o senhor não precisa se preocupar com isso, nós temos a mente aberta, né Isabelle? – Com certeza. Fique tranquilo, senhor Cayler. O livreiro, é claro, já sabia disso. – Eu estou tranquilo, filha. – Muito bem – prosseguiu o livreiro –, isso nos leva de volta à minha pergunta de como utilizarmos Lúcifer em nosso favor. Ainda fica a pergunta: que fogo é esse? – Não sabemos. – E para que nos serve esse fogo que devemos saber como usar? – perguntou o livreiro. – Não sabemos. – Pois terão que descobrir ou ficarão parados no caminho! – E há algo mais que deveríamos saber? – perguntou Eugene – Vou lhes dar uma preciosa informação: há dois Fogos e não apenas um, como vocês pensavam até agora. Há o fogo vulgar e o Fogo Filosófico. O Fogo Filosófico está adormecido, recolhido, inativo. Aquilo que desencadeia o processo que culmina com a atividade do Fogo Filosófico é, exatamente, o trabalho bem dirigido com o fogo vulgar. Só, então, se inicia, efetivamente, o trabalho na Obra. – E qual dos dois fogos pertence a Lúcifer? – perguntou Isabelle. – Excelente pergunta, minha cara, decisiva pergunta – disse o livreiro, abrindo um largo sorriso – e a resposta é: o fogo vulgar. No entendimento dos jovens, aquela informação não pareceria ter tanta importância assim, não fosse pelo tom entusiasmado e a ênfase empregada pelo Sr. Cayler quando disse “excelente” e “decisiva”. Havia algo ali, mas eles ainda não tinham a menor ideia do que era e já imaginavam que aquilo seria mais um item para o bloco de anotações. – E seria possível perceber em que momento, exatamente, esse fogo vulgar aparece, ou é percebido, ou seja lá como for? – perguntou Eugene. – Ele começa quando começa o processo. E deve estar presente o tempo todo, sem se apagar, mas nem muito forte, nem muito fraco. 216


Disso depende todo o processo ou cozimento, como se diz em Alquimia. Os jovens guardavam enigmático silêncio. O silêncio da ignorância. A profunda treva do desconhecimento. Naquele momento, representavam toda a humanidade. – É vital que vocês saibam interpretar minhas palavras – disse o livreiro. – A função de Lúcifer é apenas fornecer os meios que podem nos levar ao sucesso ou ao fracasso. Ele não é do mal nem é do bem. É apenas uma força da natureza que cumpre sua função. Infelizmente a igreja criou uma imagem falsa de Lúcifer, difundindo através dos séculos a ideia de que ele é o próprio diabo, ou Satanás. Portanto, reforçando o que eu já disse, os meios fornecidos por Lúcifer para o sucesso ou o fracasso são os mesmos. Nós é que escolhemos como utilizá-los. – É preciso estar atento ao processo e compreender o modo como devemos utilizar o fogo vulgar e, pacientemente e repetidamente em nosso laboratório, trabalharmos com ele até, um dia, chegarmos à ignição do Fogo Filosófico. Silêncio – Nebuloso, não? – Muito – respondeu Isabelle. – Segundo os antigos textos, – continuou o livreiro – a alquimia se faz em um laboratório e utilizando-se um tríplice recipiente de vidro muito duro, onde a matéria-prima deve ser cozida. Ali deve-se cozer, cozer e recozer e nunca se cansar disso. Um fogo constante transformará a matéria, que no início é negra, depois torna-se branca e por fim vermelha. Quando fizermos este processo completo, teremos feito a Grande Obra e “derrotado” Lúcifer. E mais uma coisa: vocês sabem o que significa a palavra Lúcifer? – Não. – Significa: “que traz a luz”. E luz, é justamente o que o fogo produz, lembram? Portanto, concentrem-se em descobrir a natureza do fogo e da água. Quando conseguirem, terão adquirido a chave e estarão aptos para o próximo desafio que é abrir a porta. – E a Monalisa? – disse Eugene, mostrando o quadro. – O que ela tem a ver com isso tudo? – Como eu já lhes disse antes, a Monalisa encerra outra parte do 217


Segredo. Olhem aqui – disse o livreiro, segurando o quadro. – Vejam esses dois caminhos atrás da Gioconda. Essas são as duas vias da alquimia: a via seca e a via úmida. Uma delas termina num bosque, a via seca; a outra termina na água, a via úmida. Portanto, para realizar a Grande Obra, o alquimista deve escolher e trilhar uma delas. Uma é mais longa, porém mais fácil; a outra mais curta e mais difícil. – Quanta coisa escondida num quadrinho assim desse tamanho – brincou Isabelle. – E Leonardo Da Vinci não parou por aí. – Tem mais? – perguntou Eugene. – Há mais uma coisa de vital importância: escondido neste quadro está o instrumento absolutamente indispensável que todo alquimista, impreterivelmente, precisa ter para percorrer uma das vias. Neste quadro, meus caros amigos, está o Athanor do alquimista. – Está o quê? – O Athanor do alquimista, filho. – Mas o que é o Athanor, senhor Cayler? – perguntou Isabelle. – O Athanor, minha cara, é o Instrumento, o Forno Oculto de Dupla Chama, sem o qual não se realiza a Obra. Está na Monalisa e também na Catedral de Notre-Dame. – É verdade? – perguntou Isabelle, surpresa. – Na catedral? – Sim, minha cara, é verdade. Está lá na catedral, em seu pórtico, à altura dos olhos, na parte baixa da fachada. A descoberta desse segredo facilita a revelação da natureza da Água e do Fogo. Foi por isso eu disse que os itens da sua lista estavam relacionados uns com os outros. – Nossa! Então, vamos até a catedral agora. Eu quero ver o Athanor. Vamos, Eugene! – É pra já! – respondeu o rapaz. – Lamento, meus amigos, mas não adiantaria que vocês vissem agora o Athanor da catedral. – E por que não? – perguntaram. – Porque é uma imagem meramente simbólica e, portanto, seria muito difícil para vocês compreenderem o que há por trás daquela alegoria. 218


– Certeza, senhor Cayler? – Absoluta, filha. Acredite em mim. – Que pena – resmungou Isabelle. Eugene e Isabelle, ao invés de irem à catedral e voltarem com mais uma incógnita na mente, apenas acrescentaram mais um item ao bloco de anotações. – Senhor Cayler, posso voltar a um assunto que não ficou bem claro pra mim? – perguntou. – Claro que sim, filho. – Eu queria saber por que a igreja fez o que o senhor disse que ela fez com a imagem de Lúcifer – perguntou Eugene. – Bem, filho, você tocou num ponto espinhoso. Esse é um assunto que nós levaríamos muito tempo discutindo, portanto, se não se importa, vamos deixar para outra ocasião. Está bem assim? – Ok – concordou o rapaz. – Creio que agora vocês já têm muito no que pensar. Meditem e voltem – disse o Sr. Cayler.

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Muda a natureza e acharรกs o que buscas.

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Capítulo 29 A Monalisa

No sótão, sentado no chão com as pernas cruzadas e recostado ao baú de Camille, Eugene olhava cada detalhe da Monalisa. “Onde estaria esse instrumento?” – pensava. “Talvez escondido no cenário atrás da Gioconda ou disfarçado em algum detalhe da roupa, do cabelo, da cadeira ou sei lá onde”. O rapaz esquadrinhava a gravura com uma lupa, de cabeça para baixo, contra a luz e nada de achar qualquer indício de algum instrumento secreto. “Não tem nada nesse quadro... Mas tem que haver. Ele disse que tinha...” Eugene passou a andar de um lado para outro, gesticulando e falando consigo próprio. Por um instante parou, deixou o quadro, colocou os cotovelos sobre o baú e a cabeça apoiada sobre as mãos. “Me ajuda, vovô, me ajuda” – Calma, meu amor. – Oi, Isabelle, que susto! Ainda bem que você chegou. Já não sei mais em que pensar para descobrir esse tal instrumento. – Então, vamos pensar juntos. Cadê o quadro? – Aqui no chão. – Vem, senta aqui comigo – disse Isabelle. Eugene começou a relatar tudo o que já havia feito na tentativa de extrair alguma coisa do quadro. Isabelle ouvia atentamente. – É, acho que eu teria seguido o mesmo caminho que você e na certa o resultado seria o mesmo. Então, vamos raciocinar diferente. – E se o instrumento não for material, físico? Talvez não haja nenhum instrumento, propriamente dito, pintado no quadro. 223


– Sei lá – disse Eugene. – O olhar dela! Será que está no olhar dela? Ou na posição das mãos? – perguntou Isabelle. – Não sei. – Levando em conta que Leonardo da Vinci era um homem muito inteligente, – disse Isabelle – eu acho que o instrumento não está explícito, ou pelo menos não geometricamente, isto é, ele não usou o raciocínio de pintor para ocultar o instrumento, entendeu? Eu acho que aquilo que a gente está procurando não foi escondido através do pincel, porque se fosse isso, alguém, algum dia, já teria encontrado. Então, sabe o que eu acho? – Não. – Eu acho que o que faz com que o instrumento fique escondido é a inteligência do homem e não na capacidade do artista de pintar um detalhe que fosse difícil e se ver, porque ele correria o risco de alguém, um dia, encontrar. – Imagina o seguinte, meu amor – continou Isabelle –, Leonardo não ia sair por aí contando pra todo mundo que no quadro existe uma mensagem velada, certo? – Certo. – Então, só teriam acesso a essa informação aqueles que fossem iniciados ou alquimistas ou candidatos a alquimistas, mas que, principalmente, fossem cpazes de manter essa informação em segredo, caso conseguissem descobrir o mistério, certo? – Certo. – Então, eu acho que Leonardo já imaginava que quem procurasse o tal instrumento na sua pintura faria a mesma coisa que você, isto é, do modo mais complicado, usando lentes, virando o quadro de cabeça para baixo e todas essas coisas que você já fez. – É mesmo, você tem razão – disse Eugene. – O que está faltando pra gente é pensar simples, exatamente como o Sr. Cayler sempre diz. – Então, – considerou Eugene, caminhando pelo sótão – o 224


segredo estaria escondido no óbvio? E por isso é que permanece secreto? Mas o que pode ser o óbvio? Começaram a relacionar numa folha de papel todas as coisas visíveis e óbvias que havia no quadro: os dois caminhos, o lago, as rochas, o bosque, etc. etc, etc. Terminada a lista, passaram a pensar em cada item em separado, descartando aqueles que julgassem que não era aquele o tal instrumento. Pensavam e descartavam, pensavam e descartavam... De repente, antes mesmo do final da lista, ambos se olharam e ficaram mudos por um instante. – Será possível? – disse Isabelle.

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“Um admirador de Fulcanelli conversava, certo dia, com um de nossos melhores químicos e perguntava-lhe a sua opinião sobre a transmutação metálica. – Creio-a possível – disse o sábio –, embora de realização muito duvidosa. – E se uma testemunha sincera lhe certificasse tê-la visto, dela lhe desse a prova formal – replicou o amigo do Mestre –, que pensaria? – Pensaria – respondeu o químico – que tal homem deveria ser impiedosamente perseguido e suprimido como um perigoso malfeitor. Desde logo, a prudência, a extrema reserva e a absoluta discrição aparecem plenamente justificadas. Quem, depois disso, censuraria os Adeptos pelo estilo particular que empregaram nas suas divulgações? Quem ousaria atirar a primeira pedra ao autor deste livro?” Eugene Canseliet, no Prefácio da 1ª edição de “As Mansões Filosofais”, de Fucanelli.

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Capítulo 30 Ela

Na manhã seguinte, o casal de candidatos a alquimistas aguardava a abertura da livraria, mais ansiosos que nunca. – Bom dia, meus jovens amigos! – disse o Sr. Cayler. – Que bela manhã de sábado, não acham? E pela expressão de vocês, parece que ontem foi um dia de descobertas, estou certo? – Certíssimo – observou Eugene. – Podemos conversar? – Claro, entrem! Eugene e Isabelle entraram apressadamente e dirigiram-se para a grande mesa onde Eugene depositou o quadro de Leonardo da Vinci. – Senhor Cayler, acho que nós descobrimos! – disse Eugene, indo logo ao assunto. – Nesse caso, eu acho que esse dia chegou muito mais cedo do que eu esperava. Por um lado me alegro; por outro me preocupo. Em todo caso, sou todo ouvidos. – Quem vai falar? – perguntou Isabelle, apertando a mão de Eugene. – Eu falo – respondeu o rapaz. – Na verdade, não sei nem por onde começar... Ontem, a gente estava quebrando a cabeça tentando entender o que tem por trás deste quadro e o que a gente descobriu foi, no mínimo, estranho. – E o que vocês descobriram? – perguntou o livreiro. – Bom, o senhor disse que, escondido no quadro, tinha o instrumento indispensável ao trabalho do alquimista. No início a gente tentou descobrir da maneira mais difícil, exatamente por causa da expressão “escondido”. Até lente de aumento a gente usou tentando achar algum desenho disfarçado na pintura ou coisa assim. Como o senhor pode imaginar, não deu em nada. Mas tudo bem, eu acho que qualquer um faria a mesma coisa, porque pra achar alguma coisa escondida tem que procurar no local onde se sabe que ela está escondida, né? Mas, foi pura perda de tempo. 229


O livreiro ouvia serena e atentamente o relato do jovem. – Aí, então, – continuou Eugene – a gente percebeu que o instrumento talvez não fosse um objeto escondido no meio da pintura, mas que devia estar oculto no óbvio, no simples e não no complexo. Foi aí que a gente descobriu... ou pelo menos pensou que descobriu... Eugene parou de falar e olhou para o livreiro, que aguardava em silêncio. – Nós começamos a fazer uma lista de tudo o que tinha no quadro, pelo menos de tudo o que a gente podia ver. Depois começamos a eliminar o que a gente achava que não era o instrumento e foi aí que acendeu a lampadazinha e nós viemos correndo até aqui. A lista tá aqui, olha... Na verdade, peraí... – disse Eugene – Isabelle, olha aqui, falta um item a que a gente nem pensou sobre ele ainda: a cadeira em que a Gioconda está sentada. – É mesmo – confirmou Isabelle. – Será que a cadeira é o instrumento? – Você acha que é? – perguntou o livreiro – Bom, com base nas coisas o que o senhor já ensinou pra gente, eu acho que não. Na verdade, se não fosse tudo o que a gente aprendeu com o senhor, não daria nem pra chegar às conclusões meio malucas que a gente chegou sobre o quadro. – Você tem razão sobre as afirmações que fez, filho. Primeiro: descobrir esse “instrumento” sozinho é muito difícil – disse o Sr. Cayler – e segundo: se praticar alquimia fosse descansar, então a cadeira seria o instrumento. Mas não é o caso. – Então,... cadeira descartada – Eugene riscou o último item da lista. – Muito bem. Continue, filho. – Olha só, o senhor mesmo disse um monte de vezes que era pra gente pensar simples, nê? E que a resposta poderia estar no óbvio, não é assim? – Isso mesmo – respondeu o Sr. Cayler. – Bom, então, se Leonardo da Vinci usou esse truque, qual 230


é a coisa mais óbvia, o que é que mais “tá na cara” nesse quadro? – Estou ansioso para que vocês me falem – disse o livreiro. – Ela – falou Isabelle, entusiasmada, virando o quadro na direção do livreiro e com o dedo indicador bem no rosto da Gioconda. Nos vinte minutos que se seguiram, Eugene relatou pormenorizadamente as conclusões às quais ele e Isabelle chegaram a respeito do indispensável instrumento que todo alquimista deve ter. Estranhas e surpreendentes conclusões que fizeram com que o casal ficasse ainda mais perdido do que antes. – Além disso – finalizou o rapaz – nós fizemos uma comparação com a carta de Flamel e encontramos, ou pelo menos achamos que encontramos, a confirmação daquilo que descobrimos na Monalisa. É um pouco duvidoso, um pouco vago, sutil demais pra ser verdade, mas é único elo que nós conseguimos ver. – E que elo é esse? – perguntou o livreiro. – Olha só – disse Eugene, tirando da mochila a cópia da carta – aqui neste trecho: “Por isso, não te esqueças de rogar a Deus que te dispense entendimento de razão, de verdade e natureza, para que vejas neste livro, em que está escrito o segredo palavra a palavra e página a página, como fiz e trabalhei com a tua querida tia Pernelle, que recordo tão intensamente.” – Viu? Tá aqui, ó: “... como fiz e trabalhei com tua querida tia Pernelle...” – Mais uma vez, “ela”. Seguiu-se outra longa explicação sobre as conclusões dos jovens a respeito da relação que podia haver entre o quadro e a carta. Por fim, o livreiro confirmou aos jovens que suas descobertas eram verdadeiras. – Ainda não compreendo... O que isso quer dizer? Por quê? ... Que alquimia é essa? Seria uma questão apenas de caráter espiritual? Não há nada prático? Como é possível 231


que o instrumento seja este? E por que o senhor chamou de “instrumento”? E como se usa? ... Sinceramente – disse Eugene – seria simplesmente impossível que alguém descobrisse sem ajuda. Descobrir sozinho não dá, é impossível. E não é só isso, né? Tem que descobrir e depois entender como é que se usa... Aí é que está a parte mais difícil. Em pé, Eugene falava, gesticulava, passava as mãos pelo rosto e olhava para cima, como se esperasse que a compreensão daquilo que o atormentava viesse do céu. Depois de muitos “mas por que” e de alguns “será possível”, Eugene calou-se, extenuado. Inexperiente, Eugene nem sequer imaginava o que ainda estava por vir. O Instrumento fora descoberto e o Arcano de todos os Mistérios estava próximo de ser desvelado. O livreiro inglês havia conduzido magistralmente o jovem casal pelos meandros obscuros do labirinto até a porta secreta. Encontrar a porta secreta é uma coisa, abri-la, porém, é outra. Abrir a porta oculta demanda outros esforços, outros entendimentos e quando os jovens conseguissem tal proeza, deparar-se-iam com outro imenso labirinto, mais escuro e mais sinuoso que o primeiro, pronto para tragá-los em seu ventre de trevas profundas. Trevas da ignorância para os que desconhecem a Arte.

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Para tudo na vida há um preço. Muitos, quando percebem que é assim que funciona, desistem e perdem o interesse. Outros, porém, compreendem o custo das coisas e escolhem pagar. Para esses, as conquistas têm sabor único e valor real.

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Capítulo 31 Longo caminho

Nos mistérios do antigo Egito, quando o neófito estava pronto para passar pelas quatro provas, o sacerdote aproximavase dele e lhe dizia ao pé do ouvido: Osíris é um Deus Negro. Não se trata, meramente, da cor de Osíris, é claro. Trata-se de uma frase ritualística que lembra ao neófito que a Sabedoria, a Luz da Grande Realidade, enfim, a Verdade são trevas para o intelecto e que aquele neófito, como iniciante que era, tinha que, simbolicamente, passar das trevas para a luz, naquele momento. Eugene e Isabelle olhavam o livreiro, aguardando que ele dissesse alguma coisa que confirmasse ou que desmentisse a teoria de ambos, mas que pelo menos os tirasse daquela angústia da dúvida. – Muito bem, meus amigos, muito bem. Eu os felicito – disse, enfim, o Sr. Cayler. – Vocês conseguiram realizar uma tarefa dificílima, que poucos conseguem. Aqueles que têm o intelecto muito desenvolvido, em geral falham e vocês tiveram êxito porque usaram a simplicidade ao raciocinar. Olharam para o quadro de maneira simples, como o faria uma criança, por isso é que conseguiram. No entanto, vocês têm apenas uma parte do segredo, já que descobriram somente o instrumento. Mas, para que serve esse instrumento? Como é possível utilizá-lo? – É isso que eu não entendo – disse Eugene. – A expressão “usar” é que não encaixa. Como é possível “usar” esse instrumento? – O instrumento pode lhes parecer estranho no momento, eu compreendo. Mas se um dia vocês conseguirem desvendar o restante do que está oculto, nada mais lhes parecerá estranho, pelo contrário, todas as peças se encaixarão perfeitamente e a Natureza, enfim, revelará seus mistérios a vocês. Aquelas palavras deram um pouco mais de esperança e 235


equilíbrio aos jovens. Eugene sentou-se, pegou a mão de sua namorada e disse: – Estamos prontos, senhor Cayler. Podemos seguir em frente. – Muito bem, meus filhos. É assim que se fala. Agora façam o seguinte: concentrem suas forças em descobrir a natureza do fogo e da água ou do enxofre e do mercúrio. Os alquimistas sempre guardaram o maior segredo sobre esses dois elementos. Reúnam todas as informações que vocês já têm e depois, com base no que descobriram no quadro, tentem compreender que tipo de Água é essa e, naturalmente, que Fogo é esse. Vocês estão muito perto de descobrirem e, quando o fizerem, então, compreenderão por qual motivo essas coisas sempre foram negadas ao profano e ocultas do vulgo. Perceberão também o que é a Pedra Bendita e por que foi rejeitada pelos construtores e por que se transformou em pedra de tropeço e rocha de escândalo. – Então, é só na água e no fogo que nós devemos nos concentrar agora? – perguntou Isabelle. – Sim, minha cara, mas mesmo assim, a revelação da natureza da Água e do Fogo não será o suficiente, porque vocês não saberão como utilizá-los. – Eu já imaginava. Pra que facilitar se é possível dificultar, não é? – disse Eugene. – Não seja pessimista, filho. Eu compreendo seus sentimentos, mas lembre-se daquela ideia de ir até a China a pé. Vocês já deram muitos passos. A China está mais perto, agora. – É verdade. Desculpe a má vontade, senhor Cayler – disse Eugene. – Tudo bem, meu rapaz. – Bem, mas de volta à alquimia, o que vem depois, senhor Cayler? – perguntou Isabelle. – Você está antecipando demais as perguntas, filha. Vocês ainda não conhecem a natureza do Fogo e da Água. – Eu sei, eu sei, mas é que... Sabe como é... Eu só queria saber o que vem depois disso. 236


– Os jovens e seus imediatismos! Eu compreendo, já fui assim um dia. Muito bem, que seja satisfeita a sua curiosidade, mas saiba que isso só vai fazer você perceber ainda mais que as tarefas seguintes são tão difíceis quanto as que vocês já cumpriram. – Ok, entendido – retrucou Isabelle. – Nesse caso, após a descoberta da natureza da Água e do Fogo, a próxima e mais difícil etapa será descobrir o Regime a ser aplicado. – Regime? – Sim. – Hum... e aplicado a quê? – À matéria-prima, através do instrumento – afirmou o livreiro. – Ah! Sei... mas não entendi – concluiu Eugene. – Na verdade, o Regime é outro grande segredo dos alquimistas. Trata-se da maneira de operar, repetidamente, com a matéria-prima para que ela se transforme. Mas isso vem depois. Primeiro pensem, principalmente, na Água ou Mercúrio. – Alguma dica? – perguntou Eugene. – Como sempre, sim. Levem em conta alguns pontos de extrema importância sobre os quais já conversamos: a grande árvore um dia foi uma pequena semente, assim, todo o potencial da árvore está na semente, portanto quando se perde a semente, perde-se a árvore. Outra coisa: o mercúrio bruto, isto é, em seu estado natural antes de ser submetido ao Regime, é a preciosa matéria-prima inicial da Grande Obra, portanto ela deve ser conservada a todo custo. Enquanto o Sr. Cayler falava, Isabelle anotava tudo, o mais rápido que podia. – No laboratório, – continuou o livreiro – o fogo vulgar é aquele que excita o Fogo Filosófico... Meditem. Roguem a Deus que lhes dê clareza de pensamento para descobrirem. Quando conhecerem a Água, entenderão o real significado da famosa expressão alquimista, Vitriol. 237


– Vitriol? – disseram, ao mesmo tempo. – Sim. Cada letra representa uma palavra, em latim: “Visita interiora terrae rectificando invenies occultum lapidem”. Traduzindo, significa: “visita o interior da terra e, retificando, encontrarás a pedra oculta”. – Terra? Qual terra? Terra planeta ou terra chão? – Uma terra que abriga um tesouro, uma terra muito longe e muito perto. Procurem primeiro essa terra e depois será mais fácil saber onde está oculta a pedra. Às vezes Eugene e Isabelle não sabiam exatamente se aquilo que o Sr. Cayler dizia era para ser entendido literalmente ou se era a alegoria de alguma outra coisa que, aí então, deveria ser descoberta ou decifrada. Simbologia ou não? Tomar ao pé da letra ou não? O que fazer? “Qualquer coisa, menos ficarmos parados”, dizia Isabelle. O livreiro sabia muito bem até onde podia ir sem revelar aquilo que não podia ser revelado. Suas palavras tinham sempre que ser bem pensadas e comedidas para não cruzar a linha que separa, e sempre separou, o profano do sagrado, o oculto do vulgar. – Vocês conhecem o rei Salomão, aquele da Bíblia? – perguntou o Sr. Cayler. – Pessoalmente, não – brincou Isabelle. – Essa foi boa, filha. Ajuda a relaxar. – Também acho, mas o senhor ia dizer alguma coisa sobre Salomão... – Sim, eu quero recitar para vocês um pequeno trecho de uma oração, na verdade, de uma invocação, antiquíssima e atribuída ao grande Salomão. Ouçam bem esse pequeno trecho: “Espíritos de Malkut, conduzi-me entre as duas colunas sobre as quais se apoia todo o edifício do templo. Anjos de Netzah e de Hod, afirmai-me sobre a pedra cúbica de Yezod”. Os jovens estavam calados. O livreiro repetiu a oração. – É apenas um fragmento de uma linda invocação, mas 238


nesse pequeno trecho há uma orientação precisa e importante – concluiu o livreiro. – Orientação? – perguntou Eugene. – Sim. O local onde se encontra a Pedra Bendita. – É? – disse o rapaz, sobrancelhas elevadas, testa franzida. – Sim. – Por favor, senhor Cayler, diga onde é, por favor. O livreiro silenciou. Duro silêncio. Os jovens já estavam imaginando que o Sr. Cayler iria fazer o mesmo discurso de sempre sobre o peixe e a vara, sobre não castrar a sabedoria, etc., etc., mas, para surpresa de ambos, o discurso foi outro. – Está bem! Acho que vocês merecem – disse o livreiro. Largos sorrisos brotaram de um par de bocas. – Muito bem, ouçam e não esqueçam: A Pedra, ainda bruta, encontra-se entre as duas colunas que sustentam todo o edifício do templo. – Isso parece mais fácil de descobrir – concluiu Eugene. – Será? – perguntou o Sr. Cayler. Fácil demais, à primeira vista. Os jovens, naturalmente entusiasmados, ainda não haviam percebido as dificuldades que estavam por vir. Um templo apoiado sobre colunas. Que templo é esse? Onde estaria? Que terra é essa? Que pedra é essa? – Tenham o máximo de cuidado e procurem ter a mente aberta nesse momento, pois a falta de entendimento poderá levá-los a rejeitar a Pedra Bendita como fizeram os edificadores e transformá-la em pedra de tropeço. Esqueçam os dogmas que herdaram através das gerações e, com clareza de pensamento e coração puro, associem a Água ao Fogo, ou o Mercúrio ao Enxofre e levem em consideração que o fogo vulgar é o começo de tudo, mas se esse fogo for excessivo ou fora de controle, correse o risco de se perder a matéria-prima. – Parece que quanto mais o senhor fala, menos eu entendo – disse Eugene, coçando a cabeça, visivelmente confuso. 239


– Fique tranquilo, filho. No início, qualquer um, sem exceção, encontra as mesmas dificuldades que vocês têm agora. O truque é não desanimar. – Senhor Cayler, em quanto tempo, mais ou menos, é possível realizar a Grande Obra? – perguntou Isabelle. – Não há um tempo determinado. Depende de cada um. Há que se ter uma tremenda força de vontade. – E muita paciência, né? – Paciência é fundamental. Depois de algum tempo trabalhando pacientemente com o fogo vulgar na preparação da matéria-prima, o Fogo Filosófico entra em atividade e, pouco a pouco, grau a grau, a matéria-prima vai sendo purificada e suas impurezas vão sendo eliminadas pelo Fogo. Porém, o recipiente que contém a matéria deve estar sempre fechado para que não se perca nem uma pequena porção sequer. Quando compreenderem tudo isso, entenderão o que diziam os alquimistas sobre “um recipiente contendo a matéria e sob o qual arde constantemente um fogo, dia e noite”. Nessa hora, calem-se e sigam em silêncio. O segredo deve permanecer exatamente como está. Estudem, meus caros, esforcem-se, lutem para chegarem à compreensão do que ainda falta. Creio que a Divina Providência vai lhes dar inspiração para chegarem ao fim do labirinto. Se praticarem aquilo que descobrirem, no futuro receberão o Donus Dei e eu espero estar lá para felicitá-los. Sejam felizes, meus filhos! Permaneçam juntos e fiéis à Obra. Agora vão. Os jovens deixaram a livraria calados, mas felizes por terem chegado ao descobrimento do instrumento e ávidos por continuar pelo escuro labirinto em que o Sr. Cayler os colocara.

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Desvelar o oculto, comunicar o incomunicável, dizer aquilo que não pode ser dito... Isso não deve acontecer. Não agora. No entanto, mostrar os sinais, indicar o caminho, revelar instrumentos e sugerir fontes verdadeiras e fidedignas, isso sim, há aqui... e em abundância. A história comprova que sempre foi assim, em todos os tempos. A imprudência nunca foi vista, nem de soslaio, nos textos alquímicos antigos ou modernos.

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Capítulo 32

O oculto deve permanecer assim

Nos nove meses seguintes à última conversa com o livreiro, Eugene e Isabelle retornaram à livraria apenas duas ou três vezes a cada mês. Compartilhavam descobertas, tiravam dúvidas ou apenas tomavam chá. Entre um chá e outro, um apfelstrudel e outro, os jovens, notadamente, já podiam caminhar com suas próprias pernas. E quanto mais o Sr. Cayler percebia esse detalhe, mais se convencia de que a dura hora estava se aproximando. A hora de atirá-los na água para que nadassem sozinhos; a hora de retirar-lhes, repentinamente, as muletas. E assim seria. Merecedores, Eugene e Isabelle finalmente acharam o templo, as colunas e a Pedra. Inicialmente chocados, compreenderam o porquê de a Pedra Bendita ter se tornado pedra de tropeço e rocha de escândalo. Chegaram, por consequência, à revelação da natureza da Água e do Fogo e perceberam imediatamente que precisavam, mais do que nunca, calar. Calar completamente. Que difícil é, principalmente para os jovens, saber de algo e nunca mais falar sobre isso. Mas não podiam falar, sob hipótese nenhuma. Quanta dor essa verdade oculta já trouxe a todos os Iniciados. Profunda dor. Dor pela humanidade cega e doente que continua crendo numa ilusão muito prazerosa aos sentidos. Triste vício. Antigo erro cuja causa exata e inequívoca perdeu-se na noite dos tempos. Todos os grandes Mestres, Avatares, Santos e Reis Divinos choraram e sofreram muito pela humanidade que tanto amaram. Choraram porque sabiam que não podiam revelar o oculto e porque sabiam também que o segredo é para poucos. Revelar às multidões seria jogar pérolas aos porcos ou pregar no deserto – como confirmam as Escrituras – pois, os porcos não veriam sentido nenhum em receber pérolas e, quanto ao deserto, não há ninguém lá para ouvir. 243


O primeiro mistério estava desfeito. Caíra o primeiro véu que encobria o Grande e Impronunciável Segredo. No entanto, Eugene e Isabelle descobriram apenas o Fogo Vulgar e a Água ainda impura. Estudando comparativamente os itens da lista e observando a natureza, os jovens compreenderam que a tão trabalhosa descoberta ainda não era suficiente para iniciar o trabalho alquímico. Era como se tivessem a lista de ingredientes de um bolo, mas desconhecessem a maneira de como misturá-los, isto é, não tinham o modus operandi. Uma coisa é a teoria e outra coisa, por certo muito diferente, é a prática. O que fazer com o Fogo e a Água, ou, mais precisamente, como fazer? Faltava-lhes o Regime. Mas descobri-lo é uma tarefa ainda mais trabalhosa do que a descoberta da natureza do enxofre e do mercúrio. Irineu Filaleto escreveu: “Aquele que conhecer o Regime, será honrado pelos príncipes e pelos grandes da Terra”. Os aspirantes a Adeptos da Arte nunca estão sozinhos. O futuro, não muito distante, revelaria a Eugene e Isabelle essa verdade. Sacrifícios e padecimentos voluntários seriam a marca da penosa senda que ambos começavam a trilhar em busca do Oculto: A senda do fio da navalha. Ainda havia muito que fazer e, na grande maioria das vezes, uma vida apenas é pouco.

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“O sábio encontrará a nossa pedra até no excremento, enquanto o ignorante não poderá pensar que ela esteja no ouro” O Cosmopolita

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Capítulo 33

Uma segunda carta

A Rambuteau não era a estação de metrô onde Eugene e Isabelle costumavam desembarcar. Eles desciam sempre na Chatelet. Dali, o caminho até a livraria era mais curto. Mas dessa vez preferiram o caminho maior. Em frente ao Beaubourg, uma brisa morna agitava levemente a fileira de folhas de papel penduradas no varal improvisado do artista de rua. Em grafite, rostos de desconhecidos e famosos se misturavam numa exposição a céu aberto na esplanada diante do Centre Pompidou. Eugene e Isabelle, em pé, sob uma árvore, observavam os muitos artistas anônimos que buscavam sair do anonimato. Quem sabe, num golpe de sorte, passasse por ali caçador de talentos e mudasse a vida de alguém. Quem sabe? – Que tal sermos os próximos modelos, meu amor? – perguntou Isabelle. – Pode ser, mas não hoje. – Por que a gente veio por aqui dessa vez? – Você já tentou escovar os dentes com a mão esquerda algum dia? – Entendi – disse Isabelle. – Vamos? – perguntou Eugene. – Hã hã. Na Rue Nicolas Flamel, diante da Livraria Cayler, uma desagradável constatação pegou Eugene e Isabelle de surpresa: no lugar da placa de “Aberto” havia outra placa onde se lia: “Alugase”. Por alguns instantes, os jovens ficaram mudos e estáticos diante da placa. – O que aconteceu com a livraria? – perguntou Eugene ao homem parado na porta. – Há três dias o inglês que morava aqui fechou o negócio e saiu do imóvel. Vocês têm interesse em alugar? – Mas para onde foi o inglês? 247


– Não sei ao certo, mas parece que deixou Paris. Afinal, vocês estão interessados no imóvel ou não? – Não, obrigado – disse Eugene, abatido. – Por que ele não avisou a gente que pretendia sair da cidade? Por que não se despediu? – perguntou Isabelle, enquanto olhavam para a placa, estáticos, sem entenderem o que estava acontecendo. – Sei lá. Eu não esperava por isso. Deve ter acontecido alguma coisa muito séria pra que ele tivesse ido embora assim, sem falar nada. E agora, o que a gente faz? Eles não têm nem celular, nunca tiveram. E agora? – Será que a Sra. Cayler ficou doente, ou ele mesmo ficou doente e precisaram sair correndo para um hospital? – Isabelle, pensa! Pra que eles fechariam a livraria e sairiam do imóvel porque alguém ficou doente? – É mesmo... Já nem sei mais o que eu to falando. Uma enorme angústia tomava conta dos jovens naquele momento. Era uma perda irreparável. O instrutor, o amigo, o mestre, se fora, assim, sem nenhum aviso. Na manhã do dia seguinte, às onze horas, um portador anônimo entregava a um funcionário do atelier uma carta sem remetente, endereçada a Eugene. “Talvez seja dele” – pensou Eugene, quando o envelope chegou às suas mãos. O rapaz aproveitou que seu pai saíra para recepcionar uma carga de madeira de pau-brasil destinado aos arcos de violino e foi para o seu quarto abrir a carta. Apenas pelo envelope, Eugene não podia ter certeza se a carta era do livreiro, até que leu: Caros amigos, Eugene e Isabelle. Posso imaginar o sentimento que lhes invadiu a alma quando souberam que minha esposa e eu já não estamos mais em Paris. Quero que entendam que nós não lhes abandonamos, apenas nos retiramos do cenário. Embora eu saiba que, um dia, nós nos veremos 248


outra vez, é importante que vocês entendam que o seu crescimento agora depende só de vocês. Assim deve ser. Eu os felicito, alegremente, por terem triunfado na primeira parte da jornada. Não se espantem por eu saber disso, já que não tiveram tempo de me comunicar a descoberta. Não precisariam. Mesmo quando não sabiam, eu os acompanhava de perto e agora me sinto muito feliz por vocês. Resta apenas uma coisa para que eu cumpra completamente a promessa que fiz, um dia, a Camille Doré: entregar a você, Eugene, o último legado que seu avô deixou. Camille me incumbiu de revelarlhe que no sótão de sua casa há algo que você deve procurar. Lá, como você sabe, está a antiga bancada de trabalho que seu bisavô tinha e que Camille retirou do atelier e remontou no sótão. Pois bem, ajoelhese diante da bancada e perceberá, sob o tampo, providencialmente escondidas em chanfros laterais, duas pequenas alavancas, uma em cada extremidade. Só é possível acioná-las em duas pessoas: você e Isabelle. Puxem as duas ao mesmo tempo e ouvirão um estalo. Em seguida, movimentem todo o painel, afastando-o da parede o suficiente para que vocês possam entrar atrás dele. Lá encontrarão uma grande mala de couro que seu bisavô recebeu de herança daquele que foi seu mestre na arte da luteria. Nessa mala, meu caro Eugene, você encontrará livros e textos raros sobre a Magna Arte. Eles servirão para que você aprenda mais sobre o Magistério e solidifique seus conhecimentos a respeito do lento processo de transformação do chumbo em ouro. Não revelem a ninguém o conteúdo dessa mala ou sua existência. Não a retirem de trás do painel. Quando quiserem estudar algum livro, façam-no no local e devolvam-no à mala, como fazia seu avô. Estudem. Trabalhem. Percorram incansavelmente a dura via e nunca se afastem dela, pois tenho certeza que o tempo e a constância lhes revelarão, enfim, aquilo que lhes falta, isto é, o significado mais profundo da antiga e verdadeira fórmula da alquimia que assim se expressa: I.M.V.I.V.F.S.E.S. Edward Cornellius Cayler. 249


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Os que entram e permanecem nesse difícil caminho, sabem que é uma senda marginal, na contramão deste mundo e na contramão dos conhecimentos “cientificamente comprovados”. Sabem que lutarão contra a natureza controladora dos instintos humanos. Sobrepujá-la é dura tarefa, mas não há outra maneira. Cada grande Mestre que este planeta já viu, cada verdadeiro alquimista, teve que trilhar exatamente o mesmo caminho. Não existe nenhuma outra forma. As grandes catedrais góticas – quando as sabemos interpretar – confirmam essa categórica afirmação. Os textos alquímicos da Idade Média também. As escrituras sagradas de todos os povos ratificam a mesma coisa. Quem tem olhos para ver, ou para ler, encontra o caminho. Basta que abandone a letra morta e observe a natureza. Alegoricamente, a Água e o Fogo estão encerrados na terra. Terra filosófica ou, em outros termos, templo. O mesmo Templo de Salomão, o mesmo Castelo de Camelot. Primeiro, deve-se cavar a terra, procurar e encontrar esse dois elementos e trabalhá-los, incansavelmente, para que o vapor suba pelos condutos. É o início da Obra. O que vem depois, está reservado... Quando o véu que cobre nossos olhos se rasga, então percebemos que para voltarmos ao Éden precisamos entrar pela mesma porta que saímos um dia. Uma única porta de entrada e de saída. Oh! Divino Serafim de antiquíssimos tempos, teu triste equívoco nos trouxe até aqui. Mas um dia tudo acabará e teu erro será lavado. “E o templo de Deus foi aberto no céu e a Arca e seu Testamento foram vistos em seu templo. E fizeram-se relâmpagos e vozes e trovões e terremotos e grande granizo”. Apocalipse, cap. 11, vers. 19. 251


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Epílogo

Um misterioso livreiro chamado Cayler

No sótão dos Doré, dois ávidos jovens seguiam as instruções da carta do Sr. Cayler. – Tem certeza que sua mãe não viu a gente subir aqui? – Tenho. Agora, vem até aqui Ajoelhados diante da bancada de Julien Doré, Eugene e Isabelle seguravam cada um em uma alavanca. – Atenção! Quando eu disser três – falou Eugene. – Um! Dois! Três! Ouviu-se um estalo. – Meu Deus, é verdade – disse Isabelle. – Me ajude a puxar. O painel de madeira moveu-se lentamente até afastar-se cerca de meio metro da sua posição original. Como o Sr. Cayler escrevera, lá estava a mala, escondida por tantos anos, sem que ninguém soubesse dela, a não ser Camille e o livreiro. – Mais uma surpresa, não é vovô? – disse Eugene. – Será que é a última? – Vamos tirá-la daqui e ver o que tem dentro. Tô morta de curiosidade – disse Isabelle. – Ah! As mulheres. – Vai me dizer que você não tá curioso também? Eu te conheço. – Claro que sim! Vamos lá! – Nossa, mas o que tem aí dentro, chumbo? – disse Isabelle ao tentar mover a mala. – Talvez. Nesse caso a nossa tarefa e transformar tudo em ouro. Rindo e bufando ao mesmo tempo, tiraram a pesada mala de trás do painel. 253


– Veja as iniciais: A. T. – disse Isabelle. – Na carta, o Sr. Cayler disse que o seu bisavô recebeu essa mala do professor de luteria dele. Essas iniciais só podem ser desse homem. – Acho que sim. Vamos deitar a mala no chão. Os jovens desafivelaram as duas correias que fechavam a mala e olharam um para o outro, fazendo suspense. – Vamos lá... juntos! E abriram. Com exceção do odor característico, dentro da mala havia exatamente aquilo que o Sr. Cayler disse: livros e textos manuscritos enrolados como pergaminhos. – Nossa, que cheiro! – disse Isabelle. – O que você esperava? Esses livros já existiam antes do meu bisavô! Até que eles estão bem conservados, pela idade que têm. Um inestimável tesouro que outrora servira a outros estudantes do oculto antes de Isabelle e Eugene, agora pertencia ao jovem casal de aspirantes a alquimistas. – Meu Deus, quantos livros! Aqui tem material para estudarmos durante décadas. – Durante vidas – observou Eugene. – Vamos escolher o primeiro? – perguntou Isabelle, entusiasmada. A sugestão de Isabelle foi adiada por uma voz que vinha do corredor abaixo do sótão. – Eugene, você está aí em cima? – Tô, mãe! – Pode me ajudar a trocar uma lâmpada, filho? – Sim, mãe. Já vou descer! – Vamos recolocar a mala no lugar antes que minha mãe resolva subir aqui – disse Eugene. Arrastaram outra vez o pesado volume para trás do painel e quando já iam começar a empurrar a bancada, Eugene notou que na outra extremidade, na penumbra, havia algo grande pendurado na parede interna do painel. 254


– Espera, espera! – disse Eugene. – Olha lá, o que é aquilo ali?! – Parece um quadro – respondeu Isabelle. – É enorme! Eugene retirou o quadro dos suportes que o mantinham suspenso e o trouxe para frente da bancada. – Vamos desembrulhar, ajuda aqui. Retiraram o barbante e o grosso papel que envolvia o quadro. – Olha só! – disse Isabelle, surpresa com o que vira – Acho que são os Cayler. Mas por que eles estariam vestidos assim? Seria algum baile à fantasia? A pintura de cerca de um metro e meio de largura por mais de dois metros de altura, retratava o casal Cayler vestido à moda da corte europeia do Século XVIII. Ele empunhava uma espada e ela segurava delicadamente uma taça, à altura do ventre. No canto inferior direito da tela o nome do pintor e uma data: Martinez, 1728. – Como assim? Que é isso? Vira o quadro pra luz, pra gente ver melhor – disse Isabelle. Ao girar o quadro, o rapaz, acidentalmente, bateu-o contra a lateral do painel. – Mas só podia ser o desastrado aqui. Espero que não tenha estragado a moldura – disse Eugene, sem perceber que caíra no chão algo que estava preso atrás do quadro. – Olha, tinha um papel preso aqui atrás – disse Isabelle, recolhendo a pequena folha. – Tem alguma coisa escrita? – perguntou Eugene. – Tem, deixa ver...

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Albert Toussaint Paris, 27 de outubro de 1835 O Bom Ladrão. O Inferno de Dante. Flamel.

No rodapé da folha, havia uma inscrição em letras pequenas e douradas: Edward Cornellius Cayler...

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