...ou o homem que matou os PEIXES Marcelo PlĂnio
® DIREITOS RESERVADOS ao autor: Marcelo Plínio Conforme a Lei 9.610/98, é proibida a reprodução total e parcial ou divulgação comercial sem a autorização prévia e expressa do autor (artigo 29).
Edição do Autor Tiragem: 100 exemplares Coordenação Editorial: V.A.S. PROMOÇÕES vaspromocoes@gmail.com (31) 3043-5628 / 3043-3393 Execução Gráfica: Contato com o autor: marcelo.plinio@yahoo.com.br
Dedico este livro a Deus, Ă minha esposa, Ana Paula, e ao meu filho, Caio Miguel, com amor, carinho e gratidĂŁo.
Copyright© 2015 by MARCELO PLÍNIO Perdoado Editor: Vicente Amaro Silva Coordenação Editorial: V.A.S. Promoções
vaspromocoes@gmail.com Revisão: do Autor Editoração Eletrônica: Renato Ramos Capa: Renato Ramos Ilustrações: Marcelo Plínio 1ª Edição do autor – Julho/2015
Sobre o autor: Marcelo Plínio, 41 anos, natural de Belo Horizonte/MG, é casado e pai de um filho, formado em Letras e pós-graduado em Metodologia do Ensino Superior, funcionário público na Rede Minas, educador, cristão, cinéfilo e autor do livro de contos “O que fizeram com a gente?”, publicado em 2006.
Como fazer a diferença nesse mundo globalizado, cada vez mais individualista e menos tolerante? Esse é, sem dúvida alguma, um dos grandes desafios atualmente. O livro que você está prestes a ler contempla esse panorama de modo representativo e envolvente, num cenário contemporâneo, onde são tratados os dilemas existenciais mais remotos e universais do ser humano, seja ele brasileiro, africano, japonês; cristão, ateu, espírita; homossexual, heterossexual, bissexual; autor, personagem, leitor.
Sumário Prólogo...............................................................11 Capítulo 1.......................................................... 21 Capítulo 2.......................................................... 27 Capítulo 3..........................................................35 Capítulo 4.......................................................... 37 Capítulo 5..........................................................43 Capítulo 6.......................................................... 47 Capítulo 7.......................................................... 51 Capítulo 8......................................................... 57 Capítulo 9.......................................................... 61 Capítulo 10........................................................69 Capítulo 11........................................................ 75 Capítulo 12........................................................ 77 Capítulo 13........................................................83 Capítulo 14........................................................87 Capítulo 15........................................................ 91 Capítulo 16........................................................95 Capítulo 17........................................................99 Epílogo............................................................ 103
“Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará”. João 8:32
Prólogo
Acordei com o despertador que me roubava mais um sonho, me sentei na cama e me dei conta de que estava coberto de suor. Na verdade tinha sido um pesadelo. Tomei um banho e, enquanto observava a água escoando pelo ralo, recobrei parte dele. Só sei que havia uma loira nua correndo com os cabelos em chamas. Já vestido, calçava minhas botas de couro preto, sem cadarço, pensativo, examinando meu círculo de amizades, por sinal, muito restrito, para ver se aquilo seria uma espécie de aviso ou sei lá o quê. No fundo, a nossa velha mania de procurar dar sentido ao que a gente sonha durante nosso sono. Atravessei a sala, averiguei os peixes no aquário e ganhei as ruas, começava mais uma semana de trabalho. A redação onde eu trabalhava era próxima ao meu apartamento, por isso eu podia ir a pé. Gostava de fazer o trajeto lentamente, com fone nos ouvidos tocando minha música favorita: “Under Pressure” (Sob Pressão), da banda britânica Queen. Uma espécie de trilha sonora de abertura do meu filme diário. As pessoas nas ruas me remetiam à letra da música e vice-versa. E, assim, de segunda a sexta, eu andava entre os sinais verdes e bocas vermelhas – os sinais da civilização – ouvindo Freddie Mercury: PERDOADO
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Under Pressure
Pressure Pressão Pushing down on me Que me empurra Pressing down on you Que empurra você No man ask for Homens não perguntam por quê Under pressure Sob pressão That burns a building down Que derruba uma construção Splits a family in two Separa uma família em duas Puts people on streets Põe pessoas nas ruas
It’s the terror of knowing É o terror do conhecimento What this world is about 12
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Que este mundo pode ter Watching some good friends Vendo algun bons amigos Screaming “let me out” Gritarem Pray tomorrow Reze amanhã Gets me higher Leve-me mais alto Pressure on people Pressão nas pessoas People on streets Pessoas nas ruas
It’s the terror of knowing É o terror do conhecimento What this world is about Que este mundo pode ter Watching some good friends Vendo alguns bons amigos Screaming “let me out” Gritarem PERDOADO
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Pray tomorrow Reze amanhã Gets me higher Leve-me mais alto Pressure on people Pressão nas pessoas People on streets Pessoas nas ruas
Turned away from it all like a blind man Indiferente de tudo como um homem cego Sat on a fence but it don’t work Sentar em um muro, mas não funciona Keep coming up with love but it’s so slashed and torn Continuar vindo com amor mas está tão rachado e despedaçado Why, why, WHY! Por quê, por quê, POR QUÊ!
Love Amor Insanity laughs under pressure we’re cracking 14
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A insanidade ri sob pressão e nós estamos pirando Can’t we give ourselves one more chance Não podemos nos dar mais uma chance Why can’t we give love that one more chance Por que não podemos dar ao amor mais uma chance Why can’t we give love, give love, give love Por que não podemos dar ao amor, dar ao amor, dar ao amor Give love, give love, give love, give love, give love Dar ao amor, dar ao amor, dar ao amor, dar ao amor, dar ao amor
Cause love’s such an old fashioned word Porque o amor é como uma velha palavra de moda And love dares you to care for E o amor faz com que você se preocupe com The people on the edge of the night As pessoas no canto da noite And love dares you to change our way of E o amor faz com que você mude nosso jeito de Caring about ourselves Se preocupar com nós mesmo PERDOADO
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This is our last dance Esta é a nossa última dança This is ourselves Estes somos nós mesmos Under pressure Sob pressão Under pressure Sob pressão Pressure Como de praxe, mal cheguei à redação e fui direto à minha amiga “coffe machine”, onde encontrei Osvaldo e suas conspirações insólitas de que, resumidamente falando, no pó do café estivessem misturadas drogas capazes de nos tornar cada vez mais subservientes. Mesmo assim, Osvaldo não dispensava a sua dose diária. Deixei-o para trás com suas ideias e fui para a minha mesa, carregando um copo com o café, adulterado ou não. Gostava de fazer estilo desfilando uma de minhas frases de efeito: “costumo perder costumes”, mas me traía sempre com aquele velho hábito matinal. No corredor, fui recepcionado por Abílio e mais um de seus ignóbeis comentários: - Você precisa cortar o cabelo. Provavelmente, no dia seguinte ele viria com um: “- você precisa aparar a barba.” De fato, o linho da roupa de Bil (como gostava de ser chamado) era suficiente para fazer pelo menos dois ternos 16
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para nós, seus colegas de trabalho, observação esta que nem sequer era insinuada; afinal de contas, sabíamos que por baixo daquelas demasiadas calorias, óculos e cabelos engomados, havia um cara bom e “filhote do sistema” assim como nós, distintos apenas por termos consciência disso e ele não. Tão logo tomei “meu” lugar, um dos móveis baias com vidros à meia altura, como um peixe no aquário, Márcia me avisou sobre a existência de uma goteira localizada bem acima de “minha” mesa. Aliás, ela já havia contatado o síndico solicitando providências. Enquanto isso não ocorria, pediu aos colegas que empurrassem a mesa para evitar danificar o computador. E como balanço final do esforço ficou um barulho incômodo cada vez que um pingo caía na lata de lixo posta estrategicamente para preservar o carpete. Mas o pior foi quando me desloquei para o andar de cima e constatei que a goteira provavelmente era oriunda de um vazamento de um banheiro localizado ali. Pelo menos, não sentimos mau cheiro algum. Já bastavam as ruas da cidade que exalam um terrível odor de urina dos bêbados e moradores de rua. Fora isso, a manhã transcorreu como todas as outras: chequei os e-mails, passei os olhos nas notícias na internet, colhi dados com nossas afiliadas, avaliei alguns materiais enviados, publiquei algumas frases em minha rede social, sobretudo contra o governo, como se minha opinião fosse capaz de mudar os rumos do país... Ao término da manhã ainda aguardávamos reparo a situação um tanto quanto desagradável da goteira, mas este não veio. Fomos almoçar num restaurante próximo e, ao retornarmos, nos deparamos com a goteira no mesmo lugar. Era incompreensível o fato de uma instituição daquele porte permitir uma situação de risco ao seu paPERDOADO
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trimônio por tanto tempo. O síndico retornou a ligação de Márcia dizendo que o problema não era de sua alçada, e sim da CIPA – Central Interna de Prevenção de Acidentes. Márcia contatou a CIPA. No meio da tarde lhe retornaram com o comunicado de que deveria contatar primeiro o chefe da redação, que, por sua vez, responsabilizou o síndico. Irritadiço com aquela peleja, eu observava minha colega se desdobrando para resolver a situação, quando literalmente me veio à cabeça a gota d’água. Levantei-me e fui à sala do chefe da redação “exigir” uma solução. O homem, que, diga-se de passagem, fazia jus ao cargo, compreendeu que aquele ímpeto não fora proveniente única e exclusivamente daquela questão não resolvida, e sim fruto de um amontoado de circunstâncias que inevitavelmente levam qualquer um ao estresse. Com isso, sugeriu-me que lograsse férias na sexta-feira próxima. E, amistoso, ainda arrematou: - Assim você pode extravasar à vontade! Já à noite, após narrar o episódio à minha amiga Ana, a ouvi indagar se eu não estava fazendo tempestade em copo d’água. Ao que retribui com um sorriso amarelo e um meneio de cabeça para ambos os lados num claro sinal de inconformismo. Ana mecanicamente abaixou o fogo do fogão enquanto buscava coragem para dizer o que queria, como quem abaixa o som do carro para procurar por um endereço. - Fernando, eu acho que você deveria viver mais para você, entende o que digo? De bate-pronto rebati com o argumento de que a maior parte de meu tempo era empregado comigo mesmo. Um exemplo claro disso era o fato de não perder os principais lançamentos no cinema nos últimos 18
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cinco anos. - Escapismo. – devolveu Ana. A arte foi feita para o nosso deleite, Fernando, para “vivermos” os sonhos e pesadelos de outros, mas você precisa viver os seus, meu caro. Além do mais, seu argumento é muito fajuto. Você respira cultura, é o seu trabalho. A propósito, por que você não chama Márcia para sair? - Márcia? Do serviço?! - Que outra Márcia você conhece, Fernando? - Não, nós somos apenas colegas de trabalho... - Sei... Eu e Sandra também! – respondeu Ana com ironia. - É diferente... - É diferente, Fernando, eu e Sandra ainda temos de driblar o preconceito, não é? Saí da casa de Ana Célia bastante inquieto e confuso. Era a primeira vez que me sentia assim por causa dela. Depois percebi que não era justo atribuir a causa daquele sentimento à conversa que tive com ela. Afinal, fora um dia conturbado, as coisas pareciam ir bem e de repente fugiam de controle. Certas palavras retiniam em minha cabeça e pareciam me incomodar mais do que a chuva que caía. Segui caminhando para a casa com um olhar distante, absorto, fixo no que é invisível, pisando em poças d’água nas ruas já quase vazias, não fossem os moradores de rua amontoados sob as marquises. Já em meu apartamento, tentei finalizar uma resenha que havia deixado em aberto para publicá-la em meu PERDOADO
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blog, mas, entre uma pesquisa e outra, me deixei levar pela tentação de acessar sites que nada tinham a ver com o assunto, passando mais uma noite totalmente improdutiva.
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Capítulo 1
À medida que os dias iam passando eu ia me acostumando com o barulho da goteira, que permanecia intacta, aquele som seco, metálico: Tuc! Tuc! Tuc! Batendo no fundo da lata de lixo. Osvaldo insistia em incutir suas tais teorias de conspiração. Bil continuava com suas observações inoportunas do tipo: “você precisa fazer isso, você precisa fazer aquilo”. Márcia, com seus lisos cabelos castanhos e semblante lépido, era uma das poucas pessoas que davam um toque de sanidade àquele ambiente. Não que eu estivesse acima deles ou fosse superior, longe disso, pois também admito minhas neuras e fraquezas, mas estas serão desveladas por meio do relato de minhas ações. Até que um dia cheguei à redação, passei pelo banheiro e, ao me dirigir à “minha” mesa, percebi que todos à minha volta olhavam-me espantados como se estivessem vendo a um fantasma. Verifiquei se minha braguilha estava aberta e achei estranho, pois não conseguia identificar nada de errado comigo. Impaciente, gritei: - Que foi? Perderam alguma coisa aqui? No mesmo instante, Márcia entrou e me perguntou: - O que é que você está fazendo aqui? PERDOADO
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- Trabalhando, ora... - Mas hoje é sexta, seu primeiro dia de férias. Não vá dizer que você se esqueceu... O escárnio foi geral. O chefe saiu de sua sala para saber o motivo da algazarra e, quando soube, soltou uma prazerosa gargalhada. Depois do vexame, me dirigi em seguida a um bar-restaurante próximo, a fim de apagar a cena constrangedora. Para tanto, pedi ao garçom um chope, que era sempre substituído por outro assim que acabava. Logo se aproximou um rosto familiar dizendo que se tratava de um ex-colega de faculdade. Ofereci um chope, mas o outro recusou dizendo que era muito cedo para isso, estava em horário de serviço e que fora ao local somente para comprar cigarros. - Então senta aí e tome um café. - Cara, você está precisando tirar umas férias, hein? – arriscou o outro. Mal sabia ele que eu me encontrava em plenas férias. Apesar do comentário infeliz, não esbocei qualquer tipo de reação. Em meio a recordações nem mesmo entusiasmadas, nos despedimos prometendo, um ao outro, reencontrarmos, mas nunca mais nos vimos. Continuei no bar e me senti menos só do que quando estava acompanhado. Por falar em companhia, eis que fui surpreendido por Márcia. - Você vai almoçar por aqui ou só está comemorando as férias? - Não, só estou tentando espairecer a cabeça um pouquinho. E você? 22
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- Estava indo atrás de uma matéria, quando vi você por aqui e resolvi entrar. Permanecemos um breve momento em silêncio enquanto ela avaliava se deveria ou não tocar no assunto da gafe que eu cometera ao ir ao trabalho no primeiro dia das férias. Então me expus: - Sabe, Márcia, as pessoas vivem nos dizendo o que devemos, ou não, fazer... Por acaso, você sabe? - Sei o quê? – Márcia revirava os objetos dentro da bolsa. - Você sabe o que devo fazer? Mas nem mesmo havia fechado a interrogação direito, Márcia verificava as horas no celular. - Desculpe, Fernando. Mas estou mesmo atrasada pra um compromisso. – Márcia levantou-se apressadamente deixando a minha pergunta suspensa no ar. - Boas férias! Mantive-me estático por alguns segundos até limpar a espuma do chope em minha barba e retomar a bebedeira. Nem me dei conta de que passara quase todo o dia naquele estabelecimento. Foi necessário chamar um táxi mesmo morando a apenas algumas quadras dali. No dia seguinte não me lembrava de que maneira havia chegado ao meu apartamento. Acordei com uma tremenda ressaca, como era de se esperar. Tomei um banho e senti falta de minha amiga “coffe machine”. Conclui que só as férias não bastariam. Precisava fazer uma viagem, respirar outros ares já que estava em crise comigo e com o mundo. Estava em débito com minha mãe, já não a via havia meses. Somente alguns telefonemas salpicados PERDOADO
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nesse intervalo. Então resolvi unir o útil ao agradável. Iria à minha cidade natal, no interior. Rumo às minhas origens, tentar colocar a cabeça no lugar. Do meu apartamento o mundo era pequeno, pensei. Havia computador, microondas e toda essa parafernália moderna. Mas em minha terra era diferente, o mundo parecia não ter fim. Às vezes você gritava, e ninguém o ouvia. Talvez eu precisasse mesmo de um pouco disso: gritar. Mas, ao que tudo indica, se tentasse nada sairia, estava preso, sufocado, engasgado. Arrumei as malas, coloquei-as no carro, alimentei os peixes do aquário e me despedi deles. A imagem de minha confidente amiga me veio à cabeça: “Adeus, Ana!”
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Capítulo 2
Rememorei boas lembranças bucólicas para instigar a viagem. Passei quilômetros relembrando a infância, quando roubava manga do vizinho, mesmo tendo um pé carregado no quintal de casa, só por molecagem mesmo! Quando pescava lambaris nas margens do rio que banha a cidade, ou matava as formigas que subiam na mangueira, e me lançava para frente e para trás na gangorra que meu pai havia feito para os filhos, com pneu de caminhão e corrente, e todo aquele mundo perdido há anos em meu esquecimento... Quando saí de casa, ainda jovem, para vencer na vida, prometi a mim mesmo que meu pai ainda haveria de se orgulhar de mim. Mas infelizmente o velho não pôde esperar... Morreu por conta de um ataque cardíaco fulminante. Pensando bem, nem sei se ele teria do que se orgulhar. Será que ser o primeiro da família a se formar em um curso superior, ou assinar uma coluna semanal no caderno de cultura de um dos jornais da cidade, ou beber apenas socialmente, ou mesmo não ter vícios (exceto acessar a internet todos os dias), ou pagar meu apartamento financiado em dia, ou possuir um carro zero quilômetros seriam motivos suficientes para ele se orgulhar de mim? Aparentemente pode ser que sim, mas será que isso é realmente tudo? PERDOADO
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As botas reformadas, com as quais eu costumava andar, eram as únicas lembranças materiais de meu pai. Com elas, um dia o velho me disse ter percorrido o mundo. Claro que no sentido figurado. Ele era caixeiro viajante, e o máximo que percorreu com aquelas botas foi quase todo o estado de Minas e algumas cidades fronteiriças de Goiás e São Paulo. O que não deixa de ser, como se diz, chão pra encardir... Mas na época eu, em minha inocência de criança, acreditava nele literalmente, pois não tinha muita noção de mundo e de espaço. Mesmo com todas essas andanças, meu pai nunca se tornou um cosmopolita. Era um homem impenetrável da porta de casa pra dentro e um livro aberto da porta de casa pra fora. Não era de compartilhar muita coisa em casa. Sabíamos para qual time ele torcia, a sua profissão, seu prato preferido, mas dos seus planos, sonhos, angústias, sua essência, nada. O que mais ficou marcado para mim, dentre todas as recordações, foi sua austeridade. Segui viagem com minhas reminiscências. O vento entrava pela janela do carro dando uma sensação boa de liberdade, dando a sensação de que deixava as preocupações para trás, quando me dei conta de que precisava abastecer. Alguns quilômetros adiante, avistei um desses postos de combustíveis à beira da estrada. Estacionei e primeiramente me dirigi ao banheiro. Distraído, não notei que estava sendo seguido. Parei diante do mictório, abaixei o zíper da calça e fui atacado pelas costas com uma coronhada na cabeça, pouco acima da nuca. Caí no chão, inconsciente, enquanto o agressor me roubava as chaves do carro que, a propósito, havia adquirido há pouco tempo. Atordoado, me levantei instantes depois. A cabeça latejava, então a molhei para tornar a dor mais branda. Apalpei os bolsos e senti o celular e a carteira dentro de28
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les. Deixei o banheiro e fiquei transtornado ao dar falta do carro. Indaguei os frentistas se haviam visto quem havia levado o veículo, mas estes não perceberam nenhuma anormalidade, pois estavam entretidos nos casos de um caminhoneiro que por ali passava. Liguei para a seguradora e à polícia, que me instruiu a aguardar no local para registrarmos a ocorrência, no entanto ignorei a orientação. Desolado, me agachei um pouco e pensei em desistir da viagem, mas abandonei a ideia. Levantei-me e fui para a beira da estrada. Os frentistas me observavam, admirados, a gesticular com o polegar pedindo carona. Se não a conseguisse iria nem que fosse a pé. Afinal, se meu pai havia percorrido o mundo com aquelas botas, eu poderia muito bem percorrer um pedaço de chão. Não me demorou muito conseguir uma carona. A ideia era desembarcar na cidadezinha mais próxima daquele lugar inóspito, onde pudesse pegar um ônibus para o meu destino. Quilômetros adiante, desci do caminhão e agradeci pela carona. Na verdade foram instantes de tensão. O viril caminhoneiro queria afugentar o sono que lhe afligia, no entanto não contava com aquela história de assalto e ficou meio cabreiro. Foi uma hora que valeu por muitas, um receoso com o outro. Pisei em ruas que quiçá um dia cheguei a pisar. Passei defronte a um armazém e, inexplicavelmente, entrei para comprar uma garrafa de vodka ao invés de comprar algo para comer, visto que estava faminto. Sem ao menos cumprimentar o senhor da venda, pedi informações sobre os horários do ônibus. O senhor mal se mexia, estava debruçado sobre o balcão agarraPERDOADO
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do a uma melancia tão lustrosa quanto sua careca. Dono de uma simpatia que, quando sorria, transbordava, logo percebeu que acontecera algo de errado comigo, mas não quis se intrometer. Peguei a garrafa e a informação e, dessa vez, me lembrei de despedir. O dono da venda só moveu os lábios. Não era desdém ou menosprezo, era pasmaceira mesmo. E a melancia parecia ser um membro que fazia parte dele. A tarde estava tórrida. Procurei por uma marquise onde pudesse gozar uma sombra. Sentei-me no chão, apoiando as costas na parede de uma casa, levei a garrafa à boca e tomei um grande trago da bebida. Pus-me a apreciar as fachadas e ruas pitorescas, quando uns garotos furtaram-me a atenção. Disputavam, entre eles, o maior tempo de posse de bola em um bequinho. Estavam de pés descalços, e a bola era um trapo velho. Mas a alegria deles era tanta que, quando riam, transbordava. Nostalgicamente mergulhei no passado e me vi entre os meninos. Contemplei o momento e me surpreendi com a chuva que caiu. A atmosfera era ímpar. Senti o cheiro da minha infância. A bola não parou. Meus pensamentos ficaram confusos à medida que foram banhados no álcool. “Sol e chuva, casamento da viúva. Chuva e sol, casamento espanhol.” Fitei os garotos outra vez, mas já não conseguia visualizar com definição, tamanha era a umidade e a embriaguez. As coisas se embaçavam e se embaralhavam rapidamente à minha frente e em minha mente. Bebi meus lamentos até sentir uma estranha necessidade de se agarrar a uma ideia, como quem tem de se agarrar a uma árvore em uma enxurrada para sobreviver. Então me lembrei de um artigo que lera outrora em uma revista qualquer. Provavelmente na sala de espera de al30
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gum consultório médico ou odontológico. A matéria consistia no relato de um fenômeno supostamente registrado em alguns países, nada mais nada menos que chuvas de peixes, mortos e/ou vivos. Apesar da inverossimilhança da informação, ficara-me gravada aquela imagem: milhares de peixes caindo do céu com a tenacidade da água. Minhas pálpebras tornaram-se pesadas, ainda assim procurei avistar os meninos jogando bola. Mas só vi o bequinho, que, quando chovia, transbordava. Meu corpo já estava todo entorpecido. Não resisti e deitei a face sobre o chão. Ouvi a chuva se despedindo aos poucos e senti o sol na pele. Observei a garrafa da bebida deitada cuspindo as últimas gotas que o chão sorvia. Resignado, lancei um derradeiro olhar e vi a última imagem: um peixe saltando em uma poça d’água. No meio da noite tive a impressão de ter sido acordado por meu pai, mas a indumentária do homem ostentava uma insígnia no peito, e a quimera tão logo se desfez. Fui conduzido até uma cama onde dormi até o dia seguinte, embalado em sonhos etílicos. Ao acordar me vi perdido por definição. Olhei à minha volta, as grades me fizeram concluir que se tratava de uma delegacia. Bem precária, mas inegável. Aproximei-me das grades e me agachei para pegar uma caneca de alumínio que estava no chão. Minha boca estava seca. Cheirei e espiei. Era água. Então bebi e depois bati a caneca vazia nas grades para chamar a atenção, como nos filmes de prisão que eu assistira. Sem muita demora, um homem se apresentou como delegado. Tirou as chaves do bolso e abriu o portão. Pediu que o acompanhasse até a sua mesa para esclarecermos o ocorrido. Após alguns telefonemas, registramos queixa do furto do veículo. Recebi de volta minha carteira com PERDOADO
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documentos e me desculpei. Prostrado, deixei o local ouvindo ainda o delegado me dizer: - Não há do que se desculpar. Além do mais, eu e seu pai fomos grandes conhecidos. Aliás, quem não conhecia o seu pai?! - Eu. – pensei. Ao passar em frente ao beco onde os garotos se divertiam com a bola no dia anterior, senti um leve aperto no coração. Lá estava eu, Ana, vivendo meus sonhos e pesadelos, bem como você sugerira.
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Capítulo 3
Depois de fazer um lanche em um estabelecimento, finalmente embarquei no ônibus que me levaria ao meu destino. Querendo sossego, me acomodei na última poltrona ao lado da janela. A viagem prosseguiu tranquila até que, em uma parada, surgiu um estranho que alteraria de vez todo aquele quadro. Tratava-se de um homem alto, sujo e mal vestido, com grandes barbas e cabelos anelados. Exalava um cheiro repugnante e em suas mãos carregava terços de madeira, os quais começou a anunciá-los à venda de forma incisiva, acrescentando que eram bentos e que um amigo artesão o havia presenteado com eles. Num primeiro momento, nenhum passageiro se dispôs a comprá-los. Então o homem passou a vociferar. E, à medida que as palavras nervosas saíam de sua boca, uma grande quantidade de perdigotos se desprendia também, deixando todos assustados. O ambiente ficou de fato pesado. Um e outro passageiro compraram o terço mais para se verem livres daquela presença ameaçadora do que para ajudá-lo propriamente. Por fim, a tensão atingiu o ápice quando o homem, com seus olhos tão esbugalhados que pareciam querer saltar das órbitas, revelou ter roubado os tais terços. Mas PERDOADO
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fez questão de alegar que nem por isso deixavam de ser bentos, afinal Jesus fora crucificado ao lado de ladrões. Aterrorizados, os passageiros se encarregaram de comprar toda a mercadoria. Mesmo obtendo êxito em sua eloquência, o homenzarrão praguejou entre a barba suja: - Dizem que sou louco só porque digo a verdade. – e desembarcou. Os passageiros sentiram-se aliviados, mas ainda passaram alguns minutos comentando o fato uns com os outros. Em meio a tantos palpites, meu coração seguia palpitando mais intensamente que o de costume. Meia hora depois, parte dos passageiros cerrou os olhos para relaxar enquanto outra parte contemplava as copas das árvores ficando para trás rapidamente.
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Capítulo 4
Sem bagagem, pisei enfim em minha cidade. Segui pelas ruas percebendo quanto haviam mudado em tão pouco tempo. Reconheci alguns rostos: seu Tunico, seu Zé, dona Mariinha – pessoas que já não faziam parte de meu mundo. Cumprimentei-os e ouvi as suas queixas: - Esta cidade já não é mais a mesma, meu filho. Nos finais de semana tem moto pra lá e pra cá! É uma zoeira danada! Só você vendo... Deixando os prosaicos conterrâneos para trás, segui adiante até a casa de mãe. Para meu desapontamento, estava toda fechada. Um vizinho me informou que ela e minha irmã haviam ido à igreja. Precisava de um banho e de mudar de roupas. Passei em uma loja, comprei algumas peças e me hospedei em uma pensão. A primeira que vi. Devido ao meu cansaço, nem me dei ao trabalho de pesquisar ou escolher. Preenchi uma ficha, paguei pela diária, entrei em meu quarto e fui direto para o chuveiro. Aquele banho, com certeza, não foi um banho qualquer, foi daqueles que não se limpa apenas o corpo, mas lava-se a alma. Deitei-me na cama e distraidamente passei a observar o teto. Nenhum pensamento ocupava a minha mente. PERDOADO
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Uma inquietude subitamente tomou conta de mim e fez com que eu decidisse dar umas voltas pela cidade. Passei em frente a lugares que fizeram parte de minha infância, de minha adolescência, enfim, passava o passado a limpo. E o presente me escapava sem que eu pudesse perceber. Parei defronte à praça principal, onde havia um bar ao lado de outro. Agora eram mais numerosos que em meu tempo. Sentei-me a uma mesa em companhia apenas de um copo e uma garrafa de cerveja. Obviamente, reconheci alguns rostos no meio do povo, mas nenhum me trazia conforto suficiente para dividir palavras. E tal isolamento só me era possível, por causa de minha barba grande e cabelos idem. Contudo não consegui permanecer por toda noite no anonimato. Logo veio um conterrâneo à minha mesa e, ainda que inseguro, me perguntou: - Desculpe, mas você não é o Fernando, filho de dona Lucinha? - Não. – respondi sem tirar os olhos da mesa. - Puxa, me desculpe... – lamentou o rapaz já voltando à sua mesa todo desconcertado. - Claro que sou eu, Guilherme! – soltei. - Filho da mãe! Você me pegou, cara. Dali em diante, ficamos entretidos em recordações que faziam parte da história de cada um ou mesmo da história dos dois. Porém éramos interrompidos a todo instante por curiosos. - Ei, Guilherme! Quem é amigo aí? PERDOADO
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- É Fernando. - Filho de dona Lucinha? - É... - Não brinca, rapaz! Quanto tempo, hein... Deixamos a praça e fomos à casa de Guilherme. Ele me serviu uma cachaça que há tempos não degustava e contava de tudo e de todos, com gosto, até tocarmos em desgosto. - Peraí, Guilherme! E o Poeta? Depois de uma breve pausa, me respondeu com pesar: - O Poeta morreu, Fernando. - Morreu? Mas como? - Foi num domingo fatídico. Subimos com a turma para a cachoeira, levando a viola, a cerveja e “otras cositas mas”. Começamos a pular das pedras, e o Poeta exagerou, subiu mais alto que todos. Logo ele, o que mais tinha medo. – os olhos de Guilherme ficaram rasos d`água, continuou. – Me lembro dele fechando os olhos e saltando no ar, desenhando a última acrobacia em plena luz do dia. - Puta merda! – esfreguei a mão na testa e virei mais um copo de cerveja. – Ele ‘tava’ chapado? - Todo mundo, Fernando. Todo mundo. Guilherme me ofereceu.
sacou
um
baseado,
acendeu
e
- Não, valeu. Desde a faculdade eu não mexo mais 40
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com isso. - O Poeta dizia que “usar drogas é pedir à morte um tempo, esquecendo-se de que esta não tem ouvidos”. Por ironia, morreu drogado. – soltou uma baforada. - Mas ele não usava... – Estranhei. - Quando você saiu daqui não, mas depois tava todo mundo usando. A madrugada foi pouca para tanto caso, bebedeira e gargalhadas. Guilherme insistiu em vão para que eu dormisse em sua casa. Irredutível, retornei todo trôpego à pensão, admirando o lusco-fusco da aurora. Passei pela portaria e acordei o porteiro, que cochilava. Atravessei o corredor que dava para os quartos tentando me equilibrar em um estreito feixe de luz que riscava o chão, como um equilibrista na corda bamba. Lembrei-me da tragédia nas palavras de Guilherme: “... a última acrobacia em plena luz do dia”. O Poeta fez escola, pensei. E acompanhado por esses pensamentos me dirigi à cama.
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Capítulo 5
Quando acordei, o dia já terminava. Pela janela, contemplei o crepúsculo. Por um momento, pensei não ter dormido (ou mesmo não ter existido). O tempo fundia e confundia. Tomei um banho rapidamente, pois tinha de ir à casa de minha mãe. Esta já estava aflita, afinal fora avisada de minha chegada ao voltar da igreja e se apressou em preparar meu almoço predileto, certa de que eu não demoraria retornar. No entanto, frustrei as expectativas dela ao não aparecer novamente no mesmo dia. Decepcionada, recolheu os pratos no meio da tarde. Chegou até mesmo a cogitar que a notícia dada não passasse de um equívoco ou brincadeira de mau gosto. Mas a fonte era de confiança. Sei que o coração dela batia mais forte cada vez que batiam no portão ao longo do dia. “É ele”, pensava. Porém minha irmã caçula atendia, mas era outro alguém. Tentaram me ligar, mas havia muito tempo que a bateria do meu celular tinha descarregado. E quando toda aquela expectativa ia dando lugar a uma conformação, finalmente dei as caras. Minha irmã Inês abriu o portão e me recebeu aos berros: - É ele, mãe! É ele! E minha mãe me recebeu pelos braços: PERDOADO
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- Deus te abençoe, meu filho! Contei a elas os contratempos que tivera no meio do caminho com o cuidado de omitir alguns detalhes, especialmente a passagem do louco no ônibus, pois aquilo soaria para elas como um sacrilégio sem tamanho. Desse jeito, quis poupá-las do trabalho de rezarem noites a fio pela alma do pobre herege. E, à medida que eu desenrolava a narrativa, minha mãe exclamava: - Ai, meu Deus do céu! Fora isso, eu não tinha tantas novidades. Era a rotina de sempre. Do apartamento para a redação. Da redação para o apartamento. As pessoas nas ruas, sob pressão. Sinais verdes e bocas vermelhas. Mais uma reforma nas botas. Coisas que meus parcos telefonemas já haviam dado cabo. Mas, se eu mal possuía novidades, que dirão elas, da casa para a paróquia, da paróquia para a casa. Os assuntos foram perdendo fôlego e se esgotando. Minha mãe e minha irmã Inês serviram o jantar. Comemos sob um silêncio incômodo, que talvez sentenciasse a real distância entre nós. Findo o jantar, Inês retirou a louça para lavar, minha mãe se queixou do pouco que comi, e eu fui ao quintal arejar a cabeça. A gangorra permanecia no mesmo lugar, com as correntes dando voltas ao tronco da mangueira, sustentando o pneu de caminhão. Sentei-me nela melancólico e segurei as correntes. Percebi que elas estavam bem enferrujadas. Restava só a ferrugem comer o passado, me senti amargurado. Deixei-me suspenso ali por um tempo, vagarosamente indo e vindo de um lado a outro, como uma mãe que embala um filho com uma canção de ninar. Mas tratei de me recompor antes que fosse flagrado daquele jeito. Resolvi voltar à pensão. As duas insistiram 44
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para que eu ficasse com elas, mas nĂŁo cedi. Despedi-me prometendo voltar no dia seguinte. Â
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Capítulo 6
Passei pela praça e logo fui visto por Guilherme e outros. Juntei-me à mesa deles, que ofereciam gargalhadas, histórias e, claro, muita bebedeira. Nada parecido com o que eu acabara de deixar para trás: uma realidade restrita, comedida em palavras. Estavam todos animados, menos eu, ainda aturdido com as situações que havia vivenciado nas últimas 48 horas. Ansiavam pela festa na casa de Mizarazu, logo mais. Mizarazu era a diva da cidade, linda como a atriz Vera Fischer no auge de sua beleza. Uns até diziam ser mais bonita que a própria. De seu nome não me lembro. Na verdade, acho que nunca fiquei sabendo qual era. Recebera o apelido porque havia sido a última a ser eleita miss da cidade no extinto clube Área Azul. Como o povo pronunciava atabalhoadamente Miss Área Azul, o que se ouvia era Mizarazu. Ficou. Foi a última a ser eleita porque o clube onde era realizado o evento fechou as portas por motivos financeiros, reabrindo anos mais tarde com outro nome. Mas nunca mais o concurso foi realizado, apesar de volta e meia ser cogitada sua reedição. Na época áurea do Área Azul não faltava glamour. Vinham jornalistas dos municípios vizinhos, políticos, coronéis, gente importante, bem vestida e em carros PERDOADO
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grandes, quando há duas décadas o meio de transporte mais comum na cidade ainda eram os cavalos e as carroças, em meio a alguns fuscas e kombis. Mizarazu não só foi a última, mas a mais marcante, a mais perfeita. Seus cabelos dourados e sua pele bronzeada naquele maiô vermelho, deixando as coxas torneadas expostas, enlouqueciam os fazendeiros a ponto de lançarem ao palco pepitas de ouro aos pés da moça durante os desfiles. Embora não tivessem faltado oportunidades e ofertas, ela nunca deixou a cidade. Fizera viagens por praias famosas do Brasil afora, incluindo Rio, nordeste e sul do país, mas sempre retornando à cidade natal, ao seu casarão, como chamavam. Um verdadeiro palacete de dois andares, dizem que dado e sustentado por um abastado proprietário rural. Eu só não sabia que ali havia se transformado em uma casa de luxúrias. Um antro de drogas, maldito e excomungado pelas beatas da cidade. Já dentro do casarão, após sermos recepcionados por um empregado bem trajado e de porte físico avantajado (um verdadeiro armário), que impunha respeito, eu me refazia do impacto daquela constatação, quando percebi todos na festa mirando olhos em uma só direção. Era ela, a anfitriã. Mesmo com seus pouco mais de quarenta anos, ainda não havia perdido a majestade, era incontestável a sua beleza e voluptuosidade. Não conseguia tirar os olhos dela. Era como se eu tivesse sido pego por um transe de sereia. De fato eu estava flertando sem saber que o fazia. Evidentemente fui flagrado várias vezes por ela, que num dado momento veio em nossa direção. 48
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- Boa noite! – desferiu a musa. - Boa noite! – respondemos em couro como tolos alunos de séries iniciais. Eu, o mais embasbacado de todos. - Quem é o forasteiro? – indagou ela com malícia. - Eu? Sou de beagá, quer dizer, s-sou daqui – gaguejei - só que moro em beagá... – e emendei: - Sou Fernando. - E o que o moço faz por lá? - Sou jornalista. - Jornalista...?! Ora, vejam só... Há quanto tempo um jornalista não vinha por aqui... – levou a taça à boca de modo extremamente sensual e disse entre os lábios molhados: - Aproveitem a festa! – virou-se e saiu andando enquanto espiávamos suas costas desnudas pelo generoso decote do seu vestido. Findo o breve diálogo, Guilherme e os outros me encheram de tapinhas nas costas e de insinuações de que eu teria agradado a loira. A festa transcorria com os ingredientes básicos: sexo, drogas e rock ‘n roll. Na verdade, o que se ouvia eram blues e jazz executados em vinis em uma vitrola antiga e bem conservada; a não ser quando uma garota sacou de uma das prateleiras da estante justamente um disco da minha banda favorita, Queen, e colocou a agulha para deslizar na faixa “Don’t stop me now”. Parecia um momento mágico, todos pararam para vê-la dançar. Já bêbado e perdido dos rapazes, eu perambulava pelas PERDOADO
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dependências da casa, reparando na decoração esotérica. Ao passar diante de alguns cômodos cujas portas estavam abertas era possível entrever pequenos grupos de pessoas se beijando e consumindo drogas. Sem reencontrar meus amigos, bêbado e deslocado, decidi retornar à pensão. Ao deixar o casarão, mais uma vez deslumbrei o lusco-fusco da aurora. Cheguei muito cansado e ainda sentindo os efeitos do álcool. Segui até o meu quarto me auxiliando pelas paredes. Ao ver o feixe de luz que insistia em riscar o chão, me arrisquei como um equilibrista, mas desta vez não obtive êxito e acabei me esborrachando no chão. Se por ventura me passasse pela cabeça que o porteiro assistia a tudo, àquela cena patética, eu não pensaria duas vezes, mudaria de pensão. Dormi durante todo o dia praticamente. Somente no fim da tarde, ganhei rua. Ia à casa de minha mãe, conforme havia prometido a ela. Só que no meio do caminho tinha Guilherme, tinha Guilherme no meio do caminho... Minha mãe, coitada, passou o dia novamente a me esperar. Dessa vez, nem no fim da noite apareci, já havia me juntado aos incorrigíveis beberrões. Mas o duro golpe lhe veio quando soube que seu filho teria passado a noite anterior no casarão de Mizarazu. Fora isso, nenhuma novidade. Bebedeira, pensão, cama.
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Capítulo 7
No dia seguinte, já na casa de minha mãe, me deparei com ela em prantos e minha irmã com cara de censura. Desculpei-me por não ter cumprido a promessa de voltar a vê-las no dia seguinte. No entanto, quando Inês me explicou que o motivo maior das lágrimas era a mácula que eu havia conferido ao nome da família ao adentrar no casarão da libertinagem, percebi que as palavras de pouco me adiantariam. Só mesmo o tempo resolveria aquela situação que soava para elas como o fim do mundo. Desolado, evitei a praça e fui à casa de meu amigo Guilherme. Por sorte o encontrei sozinho, afinal eu corria de confusão como o Diabo foge da cruz. A viagem excedia o tempo previsto, e eu não poderia retornar daquela maneira, deixando minha mãe e Inês decepcionadas e chateadas comigo. Precisava me redimir, mas, antes, superar aquele momento difícil. O que Guilherme podia me oferecer eram palavras amigas e “alegrias vendidas”. Estas últimas, consumidas em grandes canecas de alumínio. Guilherme, me vendo abatido, se dispôs a me ouvir com merecida atenção. Falei sobre a solidão que senti nos primeiros meses de adaptação à cidade grande, principalmente durante as PERDOADO
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noites intermináveis em que passava conversando com os peixes do aquário para satisfazer a necessidade inerente do homem de se comunicar. Logo eu, um estudante de Comunicação Social. Falei sobre meus estágios até conseguir a efetivação no mercado de trabalho, sobre as primeiras desilusões até as mais recentes, descobrindo que nem sempre a vida é justa. Entre um gole e outro uma imagem me veio à cabeça. Uma vez, ainda garoto, me aproximei da mesa da cozinha de casa, onde meu pai bebia algo em uma caneca. O velho não notou minha presença, que observava uma lágrima furtiva descendo pela face dele. Aquilo me intrigou, pois o que levaria um homem que dizia que homem não chora a chorar? Pedi desculpas a Guilherme por lhe despejar todas aquelas mazelas. Tranquilo, ele sacou um baseado e me ofereceu. Dessa vez não recusei. Já não bastava me entregar somente ao álcool. “Um abismo puxa outro abismo”. Quando cheguei à pensão, vi um sapo coaxando à porta, que novamente me remeteu à uma lembrança longínqua, quando jogávamos sal sobre os sapos, que saltavam desesperados até o rio, com a pele derretendo. Entrei titubeando, tornei a encarar a nesga faixa de luz no chão. Já virava rotina, meu número de fim de noite, cuja plateia era formada por um único, porém assíduo espectador, o porteiro Tião. Os dias passavam, e o filme se repetia. Trocava o dia pela noite. Ganhava rua no meio da tarde, encontrava algum conhecido e recomeçávamos a bebedeira. No meio de uma delas, me levantei e fui à casa de minha mãe. Guilherme ainda tentou me impedir, mas de nada adiantou. Eu estava ébrio e irredutível. PERDOADO
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Ao chegar, caí de joelhos diante de minha mãe. Dona Lucinha custava a acreditar na cena lamentável que presenciava, o filho totalmente embriagado. Então me preparou um café forte e se pôs a rezar. Inês se aproximou e me perguntou o que se passava em minha vida, que me portava de maneira irreconhecível e repugnante. Mas nada respondi, bastava a vergonha. Decidi passar o resto do dia com elas, buscando encontrar uma forma de me redimir. Foi quando Helena, minha irmã mais velha, ligou e nos avisou de que estava a caminho e que levava consigo seu filho Gabriel para conhecer o tio desnaturado. Ela morava em um município próximo, a cerca de uma hora. Helena não é má pessoa, mas se casou com um sujeito do tipo que mede os outros pelo que têm na carteira ou na conta bancária. Nem sei como que ele foi se envolver com ela, alguém de origem humilde. Certamente outros atributos dela compensaram. Ele nem se deu ao trabalho de acompanhá-la na viagem. Na verdade, o casamento deles parecia de fachada. Quando chegaram, o clima ficou mais ameno. Conversamos sobre a família, que em outros tempos fora mais unida e, naturalmente, mais alegre. Sem dúvida, a morte de nosso pai havia mudado tudo. Era como se ele fosse um elo que fora quebrado, dilacerando os laços da família. Dona Lucinha não conseguiu segurar a emoção e chorou ao nos ver reunidos como há tempos não o fazíamos. Durante a conversa, o menino Gabriel disputava a atenção, nos aporrinhando com peraltices da idade, porém estávamos detidos em nossas conversas e recordações. Contudo a criança não desistiu e prosseguiu até esborrachar a cara no chão. Pronto! Conseguiu a devida atenção. Aos berros, foi acudido por todos. Eu, ainda não 54
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acostumado com o posto de tio, me aproximei e o adverti: - Homem não chora, Gabriel. Ao pronunciar mecanicamente aquelas palavras, me senti vazio, um boneco de ventríloquo. E meu ânimo dobre tornou a mergulhar em melancolia. Assim, me despedi delas e de meu sobrinho.
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Capítulo 8
No dia seguinte, acordei mais cedo. Senti uma leve paz ao lembrar o reencontro com minha família, porém, ao avistar ao longe a fachada do casarão de Mizarazu, enquanto procurava um lugar para tomar um café, me senti estranhamente atraído por ele. Não pelo imóvel em si, mas por quem ele abrigava, sua proprietária. Logo, eu não sabia como, mas me encontrava diante do casarão, me sentindo ridículo com algumas sacolas de compras nas mãos, contendo frutas frescas, pães e queijo para o desjejum. Mizarazu abriu a porta. - Que surpresa! Pensei que você não voltaria mais. – disse ela naturalmente me conduzindo para dentro. - Mas por que isso lhe passou pela cabeça? – arrisquei. - Ora, você foi embora da festa sem sequer se despedir de mim. Não gostou de algo? - Claro que não, acontece que... Não terminei a frase. Não me vinha nada à mente. Sempre fui péssimo para mentir. Mas fui salvo pelo gongo. Ela evitou o constrangimento chamando pela criada, que se ocupava de serviços na cozinha, para recolher as PERDOADO
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compras. A tal entrou na sala, balançando de um lado para outro seu corpo rechonchudo que não passava de um metro e meio, pegou as sacolas e voltou para a cozinha como se fosse um gnomo com seus potes de ouro. Sem a agitação da festa, achei a casa bastante lúgubre. Mizarazu vestia uma longa camisola preta que lhe cobria os pés, chegando a arrastar-se no chão. Andava à minha frente, me conduzindo a um local mais reservado, onde pudéssemos conversar longe dos ouvidos daquela criatura humana na cozinha, que nos preparava a refeição. Eu observava a locomoção da loira quase convencido de que ela simplesmente deslizava, sem tocar os pés no chão. Chegamos à biblioteca, onde havia dezenas e dezenas de livros literários. Notei o quanto aquele conjunto de obras impunha respeito. E provavelmente este seria um dos intuitos, mostrar aos visitantes que a dona da casa não se tratava de uma caipira iletrada nem de apenas mais um rostinho bonito, mas sim uma mulher com conteúdo. Sentamos em poltronas separadas, em couro preto, cor predominante da mobília que compunha a saleta. A empregada depositou sobre a pequena mesa de centro uma bandeja de madeira com os alimentos que eu havia levado. Mizarazu mal tocou neles. Eu, entretanto, comi tudo. Ela abriu uma garrafa de uísque em plena luz do dia e nos serviu ao estilo cowboy (sem gelo). A sua capacidade de conversar horas a fio me impressionava. Com habilidade de um romancista ligava um assunto a outro. Assim, revelava-se uma mulher notável, mas não abria mão de seu vício. Não só bebia, mas também aspirava pequenas carreiras de cocaína sobre a mesa. Não entendia como uma mulher tão bonita e dese58
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jada aspirava a tão poucas realizações pessoais e tanta cocaína. Assim parecia ser o mundo dela, obscuro e ininteligível. E às margens dele, eu me encontrava, na verdade, me perdia. Bebemos quase uma garrafa de uísque. Não vi o dia passar nem a noite chegar. Estava bêbado e faminto, ao contrário de Mizarazu, que não tinha apetite, provavelmente devido ao constante consumo da droga. Fomos até a cozinha procurar algo para eu comer. Àquela altura a criada já havia se recolhido em seu quarto. Fizemos um escarcéu danado, derrubando copos e travessas. Em meio a risadas amiúdes, executei a fome. Então deixei o casarão e fui direto à pensão, para encenar mais uma vez meu número de fim de noite para a minha fiel plateia. Porém, no meio de minha travessia sobre o risco de luz no chão, como um funâmbulo na corda bamba, me virei para trás, talvez por um resquício de lucidez ou por conta de um ruído, mas o fato é que, ao me virar, me deparei com uma cena patética: Tião, o porteiro, debruçado sobre o balcão da portaria para poder ver melhor a sua diversão garantida: eu. Desarmado em sua insignificância, o porteiro substituiu o largo sorriso repleto de baba por um encolhimento dos ombros e voltou-se para trás do balcão, cínico, como se nada tivesse acontecido. Foi quando, ainda que bêbado, dei por mim de que estava fazendo papel de palhaço. Com isso, foi meu último número.
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Capítulo 9
Passei a visitar Mizarazu diariamente. Na cidade não se comentava sobre outra coisa a não ser as minhas idas ao casarão, para o desespero de minha mãe, que era consolada por Inês. Nem mesmo Guilherme eu via mais. Eu e Mizarazu passávamos horas conversando. Entre uma aspirada e outra, ela colocava um vinil na vitrola para ouvirmos. Quase sempre eram músicas clássicas, principalmente Beethoven, seu compositor predileto. Enquanto isso, eu tinha a nítida sensação de que a criada se arriscava a nos ouvir, ou mesmo nos espiar através da fechadura da porta. Passatempo decadente que uns alimentam incontrolavelmente, o que me remete à imagem de Tião. Engraçado, vai ver que dariam um casal perfeito, mas seus mundos tão estreitos nunca se esbarraram. Bobagens... Os dias iam passando, e eu me atolando em lugar algum, participando de momentos felizes que não trazem felicidade. Em uma daquelas noites vagas em que eu vagava a esmo, esbarrando no desconhecido e tropeçando no trivial, fui flagrado, por Guilherme e toda a turma, vindo da direção do casarão de Mizarazu. Eles me ovacionaram. Estavam mais eufóricos do que nunca. Guilherme me carregou pelos ombros como criança brincando de cavalinho com o pai. Logo, arrumaram um espumante PERDOADO
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barato não sei onde, sacudiram e estouraram a garrafa, esguichando para o alto e por todos os lados, como fazem os pilotos de Fórmula 1 no pódio. E assim seguimos até a praça principal como uma marcha de celebração. Em sonoro couro, me pediam “discurso, discurso”, enquanto eu carecia de explicações. Inútil. Queriam apenas beber e comemorar, pois “um deles” havia finalmente alcançado a glória. Sem saber, eu era o rei. Afinal, para eles (e para toda a cidade) eu estava tendo relações com Mizarazu. Mas, em vez de acabar com aquela alegria, me juntei a ela. Até porque não me restavam alternativas. E assim foi noite adentro. Dia seguinte, já na saleta de leitura do casarão, rodeado por intrigas, tragédias, romances e ao som de Beethoven, eu manuseava um cinzeiro branco de porcelana num ato inconsciente enquanto Mizarazu trocava um disco. Reparei que no fundo do objeto havia uma imagem pintada. Era uma loira nua com os cabelos em chamas. Tive uma sensação de “déjà vu”. Aquela cena me parecia bastante familiar, me remetia a algo, mas eu não era capaz de saber o quê. Meus pensamentos estavam desordenados, mergulhados em viagens etílicas. Não conseguia distinguir direito entre sonho e realidade. Mizarazu me pediu licença e se retirou para tomar um banho. Fiquei a sós com os livros e meus pensamentos. Sem ter o que fazer, me aproximei de uma estante e avistei uma porção de cocaína sobre um livro deitado. Movido pela curiosidade e encorajado pelo uso do álcool, sem querer me justificar, mas já me justificando, decidi consumir a droga que tanto consumia aquela mulher. Tal qual ela fazia, retirei uma nota da carteira, enrolei-a como um canudo, empurrei o pó com o cartão de crédito até formar carreirinhas e finalmente cheirei. 62
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De certa forma, era estranho o fato de eu ter tido contato com tal droga justamente em minha cidade natal, um pequeno e pacato povoado à beira de rio, longe e avesso ao grande e badalado centro urbano, a selva de pedra a que já havia me acostumado, onde, sem dúvida, as drogas efetivamente fazem parte do cotidiano. Tornando a mirar o fundo do cinzeiro, tive um insight, aquele estalo na mente. Recordei o sonho que tivera em casa no dia em que surgiu a goteira na redação. Perplexo com tamanha coincidência, saí correndo pela casa para contar à Mizarazu. Atravessei os corredores e subi a escada que levava até o quarto dela. A porta do banheiro estava entreaberta e dela emanava vapor de banho quente. Não podia esperá-la, estava muito ansioso para contar aquilo, por isso falei dali mesmo ao pé da porta. Porém, algo inesperado aconteceu. A naturalidade com que eu falei foi inversamente proporcional à maneira com que ela recebeu os fatos. Sua voz, afetada, pediu para que eu repassasse tudo. Feito isso, ela pediu para que eu fosse embora. Pestanejei, mas ela foi enfática. Mais que isso, foi histérica. Sem compreender seu desespero, consenti. Desci as escadas e ia saindo, quando passei em frente à saleta de leitura e resolvi consumir um pouco mais da droga, afinal não havia sentido tanta diferença, achei que a quantidade não havia sido suficiente para produzir seus efeitos. Debrucei-me sobre a estante e comecei a cheirar indiscriminadamente o pó. De súbito, ouvi um barulho seco e abafado, como de um corpo caindo. Vinha da parte de cima da casa. Fiquei preocupado com a dona da casa, mas preferi aguardar antes de me alarmar. Fora Beethoven, que tocava incessantemente, não se ouvia nada mais. Quando eu avaliava PERDOADO
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se aquele barulho havia sido fruto de minha imaginação, outro ruído foi reproduzido, como um impacto de um objeto atingindo a casa. Em um intervalo menor outro som abrupto e quase idêntico se repetia. E outro e mais outro em intervalos de tempo cada vez menores. Sem a menor ideia do que fosse, subi as escadas cautelosamente, quando algo foi projetado através da janela, estilhaçando o vidro. Espantado, me aproximei para identificar o objeto e fiquei estupefato. Era um peixe e ainda estava vivo, saltando no chão e se debatendo contra a morte. Olhei pela janela quebrada e não acreditei no absurdo que presenciava: uma chuva de peixes. Exatamente como eu havia imaginado quando lera em uma revista o artigo sobre tal fenômeno. Certamente, uma cena tão surreal quanto os quadros de Salvador Dalí. Saí pela janela e subi pelo telhado, ainda que me arriscando, para sentir na pele aquela chuva inusitada. Era um momento singular. Milhares de peixes caindo do céu em meio à água. Muitos deles ainda vivos. Ergui os braços e, tomado por uma euforia exacerbada, rodopiei como em uma valsa. Parecia uma viagem lisérgica. Eu estava em êxtase. Meu corpo era todo torpor e eu sorria freneticamente como um louco. No meio daquela chuva de delírios, me descuidei e precipitei telhado abaixo. Numa fração de segundo, várias passagens me vieram à mente: o furto do meu carro, os meninos jogando bola no beco, o louco vendendo terços roubados no ônibus, Guilherme narrando a morte do poeta, a ferrugem comendo as correntes da gangorra, o porteiro da pensão se divertindo com meus passos cambaleantes... Quando toquei o solo, de costas para o chão, me dei conta de que ainda estava na saleta de leitura. Mirei o 64
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lustre no teto, rocei minhas palmas das mãos no espesso tapete ao centro e tentei entender o que se passava. Comecei a sentir convulsões, dificuldade para me mexer e respirar, logo me dei conta de que estava sofrendo um ataque de overdose. Senti um vômito saindo da boca, também havia sangue e, ao som de Beethoven, eu me contorcia pelo chão como um réptil no deserto. A dona da casa, ao me avistar naquele quadro agonizante e assustador, entrou em pânico. Estarrecida não soube o que fazer. Sua criada a acalmou e tomou a iniciativa de ligar para o médico. Contei com a sorte e com a presteza do doutor. Em pouco mais de uma hora, uma ambulância me transportava para a cidade vizinha, onde Helena morava. Fui levado pelos corredores do hospital, sobre uma maca, por uma jovem enfermeira. Mizarazu não me acompanhou. Assim que minha irmã ficou sabendo, foi me visitar com Gabriel a tiracolo. Procurou pelo médico plantonista e este lhe disse que eu estava fora de perigo. Só na manhã seguinte é que ela comunicou à Dona Lucinha a minha internação, porém, numa grande ironia da vida, inventou uma história de que eu tivesse caído de um telhado, mas que não se preocupasse, pois não era nada grave. Quando descobri meus pés e percebi que estavam descalços, passei a gritar, mesmo sedado: - Onde estão minhas botas? Eu quero minhas botas! Foi uma verdadeira balbúrdia. Os demais pacientes ouviam meus berros e se apavoravam. O pavor também tomava conta de minha irmã e estava nitidamente estampado nos olhos do menino Gabriel. Eu estava tão transtornado que nem havia notado a presença de amPERDOADO
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bos. Helena procurava disfarçar as lágrimas que desciam de sua face. Inexperiente, a enfermeira mal sabia lidar com aquela situação caótica, por isso nos deixou a sós enquanto foi acionar um médico. Em instantes se apresentou um doutor às pressas. Tão logo chegou, me aplicou mais uma dose de sedativo suficiente para me acalmar. Finalmente notei as presenças de minha irmã e de meu sobrinho no quarto. Então chorei. Chorei como um menino. Abracei os joelhos, sentado na cama, e falei entre lágrimas e soluços: - Matei os peixes... Mal podia articular os pensamentos que me vinham à cabeça, mas insistia em fazê-lo. Gabriel, assustado e penalizado, inocentemente tentou me consolar: - Tio, homem não chora, lembra? - Mas eu não lhe dava ouvidos, apenas seguia repetindo: - Matei os peixes... Aquelas palavras não faziam o menor sentido para eles, mas eu me referia evidentemente aos peixes do meu aquário, que certamente não teriam resistido há tantos dias sem cuidados e sem alimentação.
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Capítulo 10
Diante daquilo tudo, o doutor avaliou que seria necessário me internar em um local mais adequado. Sugeriu um manicômio a trinta quilômetros dali. Helena, ainda abalada, senão em choque, não sabia ao certo o que fazer, mas acatou a sugestão e autorizou minha internação. Ela também cuidou de abafar o caso, contando outra versão para a família. Segundo ela, eu teria recebido alta e aproveitado para visitar um amigo da região por uns dias. Sem dúvida, tudo aconteceu muito rápido. Desde a chegada à minha cidade natal até a minha ida para aquele lugar horrendo, não tivera controle de nada. Tudo começou com um copo de cerveja e culminou com um encontro face a face com a morte. Avaliar os motivos que me levaram a tanto me parece tão inexato quanto qualquer conjectura. Quando cheguei ao manicômio, a primeira coisa que me veio à cabeça foram as palavras do doido no ônibus: “me chamam de louco só porque digo a verdade”. Como todos internos, me vestiram uma grande camisola branca, de um branco já amarelado, e chinelos de napa. Já os funcionários que nos vigiavam usavam uniformes alvos e notavelmente mais bem cuidados que “nossas” camisolas. Mas o que mais me chamava a atenção era o fato de todos eles, sem exceção, serem bem PERDOADO
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grandes e obesos, o que me fazia lembrar muito de Bil. Os dias naquele local eram pachorrentos. Eu procurava me ocupar com pequenos passa-tempos, como passear pelos jardins, aliás, belos jardins diga-se de passagem, mas as companhias eram muito perniciosas. Havia todo tipo de gente, até gente que pensava que não era gente. Havia um homem que jurava termos morrido e que aquele lugar fosse o inferno. Havia um escritor louco por ler sua obra centenas de vezes. Porém a minha maior surpresa foi conhecer dois senhores mais lúcidos que muita gente que convive conosco. Cheguei a indagá-los por que não deixavam aquele lugar de doido, e um deles me respondeu: “porque do outro lado do muro é que estão os piores loucos”. E o outro senhor o apoiou solenemente: “perfeitamente, meu caro”. Quanto aos remédios que nos davam, eu dissimulava na hora de tomá-los, escondendo-os debaixo da língua e depois cuspindo-os, como nos clássicos filmes de sanatórios que a gente já assistiu. Afinal eu não pretendia me submeter mais a qualquer tipo de droga. Minha irmã Helena chegou a me fazer uma rápida e lacônica visita. Não encontrávamos palavras para dizer um ao outro. Eu queria mesmo era deitar minha cabeça sobre o colo dela e chorar, mas sabia muito bem que os brutamontes nos observavam. Não era uma questão de vergonha ou coisa que o valha, mas sim receio de que isso pudesse pesar contra mim em algum relatório, retardando ainda mais a minha saída daquele lugar. Acho que a visita dela foi a dose de realidade de que eu precisava para almejar, de verdade, me reencontrar com o mundo aqui fora. Tanto que passei a cogitar a possibilidade de uma fuga. Logo, arquitetei planos e mais planos. A ideia foi se tornando cada vez mais fixa. O medo 70
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de transpor o limiar da loucura também passou a tomar conta de mim. Definitivamente, não esperaria pela palavra de outro homem para sair dali. Estudei minuciosamente os movimentos dos funcionários durante todo um dia e conclui que a manhã seguinte seria o momento ideal para a fuga. Fiquei muito ansioso, maquinando como faria. Sabia que seria impossível pregar os olhos à noite, por isso sucumbi ao medicamento. Em minha vigília, olhava pela janela que me revelava uma incisão covarde ao longo do negro do céu. Talvez fosse a desunião íntima das partes de um todo, desse universo bobo. Inquieto, deixei o dormitório e fui até o salão de recreação. Sentia uma necessidade de criar que chegava a me arder o corpo. Uma vontade de rasgar o peito com as próprias mãos, como se fosse possível, me inflamava. Talvez fosse uma incontida vontade de me sentir vivo outra vez. Então caminhei pela penumbra, tateando para me auxiliar. Havia apenas o luar iluminando o ambiente. Uma tela sobre um cavalete desafiava meu caminho. Deparei-me com o vazio. Agarrei um pincel e, de repente, senti que estava em uma gruta. Uma música ecoava ao fundo, muito baixa, mas gradualmente ia aumentando. Era Beethoven em toda sua maestria. Eu pincelava ao som que já ensurdecia. Beethoven, bem ao fundo, sorria. Não contive minha emoção. Quando me voltei para o chão, tentando conter uma lágrima, vi uma poça d’água cristalina. Ela refletia milhares de morcegos que assistiam a tudo mudos, talvez confusos. Eu me voltei para eles e com o olhar pedi perPERDOADO
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dão. Todos eles cerraram os olhos e consentiram num leve aceno com a cabeça. Beethoven ainda ecoava. Refeito do frenesi, contemplei minha imagem refletida num vidro. O pincel em uma das mãos, a tela borrada sobre o cavalete à minha frente e o silêncio envolto. Retornei ao dormitório e, novamente, olhei pela janela. Não me zanguei com as estrelas por não me terem dito o que queria ouvir. Sabia que estavam entorpecidas pela incisão covarde ao longo do negro do céu. No dia seguinte, acordei convicto do que eu precisava fazer. Fui até os escaninhos que guardavam nossos pertences, arrombei o que tinha meu nome e peguei minhas coisas. Vesti minhas roupas e tornei a me cobrir com a camisola por cima para não chamar a atenção. Mas meu erro ainda estava por vir. Larguei os chinelos e calcei as botas, pois avaliei que elas seriam necessárias para a fuga. Enquanto me dirigia para os jardins, a movimentação de quatro internos me chamou a atenção. Um deles tocava um violino, outro batia palmas e um casal dançava alegremente. Parei um instante para observá-los e, quando reparei melhor o casal, notei que o homem era aquele que vendia terços roubados no ônibus de viagem. O louco de barbas e cabelos sujos. Dessa vez, sua presença não era ameaçadora. Parecia que seus olhos continuavam a querer saltar de suas órbitas, mas não de nervosismo e sim de felicidade. E, no meio de sua dança com sua parceira, o homenzarrão percebeu minha presença e me encarou fixamente. Confesso que senti um gelo na espinha quando nossos olhares se cruzaram. Por um momento tive medo da reação dele, não sei. 72
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Durante o curto período em que permaneci estático diante daquela cena, dois funcionários notaram minhas botas. Aproximaram-se provavelmente para me inquirir onde as havia conseguido. Assim que percebi a aproximação, me pus a correr. E corri como louco. Os dois me perseguiam, mas eram muito gordos e lentos para me alcançarem. Cruzei os jardins por entre árvores e mais árvores, que ornamentavam o local que parecia não ter fim. Aquele ritmo frenético e desenfreado me lembrou o solo de guitarra de Brian May na música “Bohemian Rhapsody”, do Queen, e eu corria embalado por tais notas. Inevitavelmente a letra da canção também me vinha à cabeça: “Just gotta get right outta here” Apenas saia logo daqui. Um dos pesados funcionários que estavam no meu encalço não resistiu à corrida e se estirou no chão de barriga para cima, fatigado pelo esforço que cometera. O outro não deixou de dar sinais de cansaço, mas persistia em cumprir com o seu dever. No entanto, apesar de toda a sua dedicação, não me oferecia perigo algum. Avistei os muros e percebi que estava próximo de meu objetivo. Os acordes da guitarra de Brian May perdiam fôlego. O dedicado funcionário também. Finalmente saltei o muro e nitidamente pude ouvir, no meu íntimo, o coro liderado por Freddie Mercury: “Ooh yeah, ooh yeah / Nothing really matters / Nada realmente importa / Anyone can see / Qualquer um pode ver / Nothing really matters / Nada realmente importa / Nothing really matters to me / Nada realmente importa pra mim”. Toquei o solo com as botas, me livrei da camisola encardida e saí caminhando pelo acostamento da estrada de terra, desejando deixar para trás todos aqueles momentos de insanidade. Feito um andarilho, percorri meio PERDOADO
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mundo, como diria meu pai hiperbolicamente, até conseguir uma carona de volta à capital. E ria ao me lembrar do que era há pouco: um louco à solta.
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Capítulo 11
Poucas horas depois eu estava misturado às pessoas nas ruas, entre bocas vermelhas e sinais verdes, sob pressão. Entrei em meu apartamento e fui direto ao aquário. Recolhi os peixes com as mãos e, com grande pesar, os joguei na privada. Retardei um pouco a descarga, como se estivesse travando uma batalha com o próprio dedo, evitando o inevitável. Quando acionada, o som da água entrou em meus ouvidos e lavou meu cérebro. Na pia, me olhei no espelho e vi outra pessoa. Não havia como negar para mim mesmo, de fato eu estava me parecendo com o louco dos terços, um verdadeiro “bicho-grilo”. Tomei um banho, aparei um pouco a barba, me deitei no sofá e ouvi os recados deixados na secretária-eletrônica. Alguns da minha amiga Ana Célia e, o mais aflito de todos, da minha irmã Helena, quando avisada de minha escapatória. Tratei de ligar para ela e acalmá-la. Eu estava bastante aliviado, em detrimento do nervosismo de minha irmã. Pedi a ela que confiasse em mim e que justificasse à minha mãe o meu retorno às pressas com uma desculpa relacionada ao trabalho. Pedi também o número de sua conta para eu pudesse ressarci-la dos prejuízos dados a ela. Dormi durante todo o dia e acordei no meio da noiPERDOADO
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te. Procurei colocar meus pensamentos em ordem. Aproveitei o silêncio da madrugada para dar um mergulho dentro de mim mesmo, nos recôncavos de meu âmago, buscando ser o mais sincero possível comigo mesmo. Depois do pesadelo vivido, era hora de encarar a realidade. Resolver assuntos pendentes, colocar as contas em dia e todas as outras facetas do mundo burocrático pelo qual somos cada vez mais sugados e engolidos. Além do mais, restavam-me poucos dias para retornar ao trabalho. Depois de todas as providências tomadas, fui à casa de Ana Célia. Foi a primeira vez que me abri com alguém sobre aqueles dias malditos e indeléveis. Espirituosa, ela comentou: - Puxa, Fernando! Quando eu disse para você viver seus sonhos e pesadelos, não pensei que fosse levar tão a sério... Dessa vez, as palavras de Ana me confortavam. Acho que era exatamente o que eu precisava ouvir. Talvez, no fundo, ela soubesse disso. A caminho de casa, uma chuva despencou do céu como na última vez em que fui visitá-la. Dessa vez, corri para esconder não o meu corpo da chuva, mas meu coração das emoções. Presumo que não precisa ser poeta para compreender o que digo
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Capítulo 12
Dias depois, eu acordava com o despertador que me roubava mais um sonho. Tomei um banho e ganhei as ruas, de reencontro com meu trabalho. Mal cheguei, fui direto à minha amiga “coffe machine”. “Preciso me livrar da droga desse café” – pensei em voz alta. - Falando sozinho? – me flagrou Márcia. Fiquei feliz em vê-la. - Sabe aquela nossa amiga, a goteira? – gracejou ela. - Não me diga... - Pois é, continua no mesmo lugar, esperando por você. - Você só pode estar brincando, Márcia. Mas não estava. O chefe da redação não tardou a chegar. Fui à sua sala para cumprimentá-lo. Ele me perguntou como foram as minhas férias e se desculpou por não ter ainda encontrado tempo para solucionar o problema da goteira. “Tempo?” – pensei. Se ele fizesse ideia PERDOADO
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do que eu havia passado em um mês! Enquanto isso, não foram capazes de remover uma simples goteira. De qualquer modo, agradeci a atenção dele. Este, satisfeito com minha reação, me prometeu: - Fique tranquilo, Fernando, não passará deste mês. Após sair de sua sala, me lembrei dos meus saudosos peixes do aquário ao me deparar com o pessoal acomodado em seus respectivos cubículos. Osvaldo insistia em nos incutir suas conspirações insólitas. Ao ver o copo de café sobre minha mesa, disparou: - Homem, por Deus, já não lhe disse para não beber desse café? Você não faz ideia do mal que está contido nele! – abaixou o tom de voz e seguiu sussurrando – Eles depositam drogas que nos deixam cada vez mais subservientes, você não sabe? - Mas então por que você continua bebendo, Osvaldo? - Ora, porque eu já me encontro num estágio irreversível, meu amigo. Mas você é jovem e ainda está em tempo de se salvar. - Ah, sei... Eu me senti como se estivesse novamente no hospício. O grau de demência em que se encontrava Osvaldo era incontestável, mas sua convicção era tamanha que fazia parecer plausível a hipótese de que o café estivesse realmente adulterado por uma substância qualquer. Não posso me furtar de narrar, também, meu reencontro com Bil. Este não perdeu a oportunidade de abrir mão de mais um de seus comentários: - Fernando, há quanto tempo! Você tá precisando 78
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fazer a barba, hein meu amigo! - E você, um regime, hein Bil! – respondi de supetão. Foi como um duro golpe. O gordalhão deixou transparecer dificuldade em assimilá-lo. Parecia que ninguém nunca havia lhe dirigido um comentário tão aberto a esse respeito, talvez pela figura dócil e brincalhona dele. Aliás, como a maioria dos gordinhos é. Maioria, que não se confunda obesidade com simpatia, pois existe muito gordo chato por aí também. Dito isso, posso voltar ao ponto em que olhei ao redor e verifiquei que as coisas continuavam as mesmas – lamas e lesmas. Não me admiraria se setenta jornalistas, durante setenta dias, produzissem em seus setenta cubículos setenta reportagens parecidas. Todas elas seguindo um script. No fim do dia, Márcia me convidou para um lanche. Hesitei, mas acabei aceitando. Por coincidência, ou não, fomos ao mesmo local em que nos vimos pela última vez. Quando me dei conta de sua escolha, fiz objeção. Márcia quis saber o motivo, e eu expliquei a ela que, naquela ocasião, acabei tomando um porre homérico. - Nada melhor para exorcizar alguns fantasmas do passado. – bateu ela o martelo. À mesa, ela me contava o que havia se passado durante minha ausência. Eu prestava atenção em apenas uma palavra de cada três que ela falava. Não demorou muito para que ela percebesse e mudasse o rumo da conversa: - E suas férias, como foram?
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- Nada de mais. – desconversei. - Sabe, Fernando, quando o chamei para vir aqui comigo, eu pensei que você viria... - E vim. - Não, não veio. Pego em meu alheamento, desabafei: - Tem razão. Você tem toda razão, Márcia. Me desculpe. Mas é que... Ando incerto quanto a algumas coisas. - Eu entendo, Fernando. Posso ver essa incerteza em seus olhos. Sinto falta daquele Fernando que conheci ainda estagiária. Um cara sonhador, capaz de se apaixonar pelas coisas e pelas pessoas, cheio de entusiasmo e de brilho nos olhos. Mas acho que aquele brilho ainda não morreu, só está escondido debaixo da casca que você criou pra se proteger, feito um caramujo. - Um caramujo?! – expressei meu espanto. Márcia se desculpou, disse ter dito além da conta, mas eu apreciei a metáfora. Fez-se um silêncio constrangedor, e ela o quebrou: - Sabe, Fernando, na outra vez em que estivemos aqui, você me fez uma pergunta, lembra? - Vagamente... – respondi, coçando a barba, tentando ganhar tempo para recordar a tal pergunta. Ela arqueou uma das sobrancelhas, num gesto que me intimava a secundar a pergunta que ficara sem resposta. - Bobagem, Márcia. Eu estava bêbado. – insisti em me esgueirar. 80
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- Por isso você teve coragem de fazê-la? – me colocou contra a parede. - Tudo bem, você venceu. Deixe-me ver... Se não me engano, eu comentei o fato de que as pessoas vivem nos dizendo o que devemos ou não fazer das nossas vidas. Daí, lhe perguntei se sabia o que eu deveria fazer da minha. É, acho que foi isso. Novamente se instalou um incômodo silêncio entre nós. Por conseguinte, me senti tolo e arrependido de ter revelado aquilo. Quando me convencia de que aquela pergunta permaneceria sem resposta, fui mais uma vez surpreendido. - Eu sei. – respondeu ela categoricamente. - Sabe?! – fiquei perplexamente incrédulo. - Sei. – tornou a me dizer de modo firme, olhando fixamente em meus olhos opacos, de brilho arrefecido como ela havia dito. Estampei um sorriso, efeito de um misto de surpresa e de admiração. De fato, eu não conhecia aquela mulher diante de mim, com quem eu trabalhava havia anos. Debaixo da minha casca de caramujo, a ouvi dizer: - Você está afastado de Deus, Fernando. Aquela frase aparentemente banal me pegou em cheio. Confesso que, quando a ouvi, achei uma bobagem, mas aos poucos fui assimilando a verdade contida naquelas palavras. Não foi simplesmente um modo de dizer, Márcia estava sendo verdadeira. Aliás, ela sempre era. Não se tratava apenas de um mero chavão. Então, ela se levantou e se despediu de mim: - Até amanhã. PERDOADO
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Ainda permaneci estático por alguns instantes. Mas não muito, dessa vez não houve bebedeira. Engoli um seco e me retirei pensando naquela revelação.
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Capítulo 13
No dia seguinte foi estranho encará-la. Passei boa parte da noite em claro pensando nas implicações daquela simples frase. E olha que ela nem fazia ideia do que havia sucedido durante minhas férias. “Ou será que fazia?” A dúvida se instalou em minha cabeça e tirou meu sono. Se eu estava afastado de Deus, estava próximo de quê? A verdade é que, inegavelmente, estive bem próximo da morte. Naquele mesmo dia, não fui direto para casa depois do expediente. Caminhei um pouco pelas ruas do centro, antes de retomar meu percurso. Foi quando me detive em uma vitrine de uma loja. Tratava-se de um comércio de artigos de pintura: telas, cavaletes, paletas, pincéis, tintas, pastas etc. Automaticamente me veio à mente aquele etéreo momento na sala de recreação do hospício, em que esbocei uma pintura em um quadro. Um dos atendentes da loja, percebendo meu fascínio, se aproximou e me fez a clássica pergunta: - Posso ajudá-lo? - Obrigado, estava só olhando... desculpa.
– a clássica
- Desculpe-me, mas o senhor é pintor? PERDOADO
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- Não, não. Apenas admirador. Assim o diálogo transcorreu até o rapaz me persuadir a levar o material básico para iniciantes, ou aventureiros. Tive de recorrer a um táxi para poder me ajudar a transportar a compra. No banco de trás eu examinava o material ora certo de que fizera algo extraordinário ora certo de que havia cometido uma grande tolice. O certo é que nada é certo. Já em meu apartamento, montei todo o aparato. Experimentei os primeiros traços com certa cautela, desperdicei as primeiras telas, mas aos poucos fui pegando o jeito. Depois de horas, finalizei o primeiro quadro. Um abstrato desprovido de técnica, mas feito de coração. Contemplei a obra com certo orgulho e me senti realizado como há muito não sentia, desde as minhas primeiras matérias publicadas no caderno de cultura. Quando dei por mim já era madrugada, nem notei as horas passando. Dormi pouco. Fui me deitar tarde. Ademais, o enlevo me tirou o sono. Segui para a redação, cansado, mas, ao mesmo tempo, leve. Ao chegar, cumpri meu ritual: recorri à “coffe machine” como quem recorre ao oráculo. E, enquanto degustava minha bebida matinal sob os protestos de Osvaldo, já avaliava a possibilidade de pedir demissão e mudar de carreira. Talvez fosse loucura, mas abrir mão de tudo para se dedicar a algo que não mais me realizava também não seria loucura? Seria a corrida ao ouro do tolo? Era a minha encruzilhada filosófica. E parafraseando: nem só de filosofia vive o homem. Por isso, voltei ao trabalho, entretanto com a cabeça em outros ares até o fim de mais uma longa e cansativa jornada de trabalho. À noite, em meu apartamento, prossegui com mi84
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nha mais nova obsessão. Em meio às pinceladas, eu me sentia mais vivo, mais desafiado. Descobria uma aptidão adormecida, escondida sob a casca do caramujo - a imagem kafkiana que Márcia fez de mim. Irrompi, assim, mais uma madrugada, extraindo mais uma tela. A ideia de pedir meu desligamento crescia como uma bola de neve. Era indubitável, me corroia. O despertador me roubava mais um sonho. Quem sabe o último... Cheguei à redação e, apesar do sono, evitei o café. Fiquei à espera do chefe. Quando este chegou, o cerquei antes que ele pudesse nos convocar para as suas rotineiras reuniões. Ele me recebeu em sua sala onde fui direto ao ponto. Surpreso com minha atitude, ele me pediu para que eu refletisse melhor sobre o assunto e não tomasse nenhuma medida precipitada. E aprazou a minha decisão para a semana seguinte. Até lá, eu teria tempo para rever meus conceitos e fazer a escolha acertada. Chamei Márcia para conhecer meu apartamento, que a essa altura já se transformava em um verdadeiro ateliê, verdade seja dita estava mais para uma torre de babel, mas ela achou melhor nos encontrarmos em um lugar público e sugeriu uma pizzaria, onde pudéssemos conversar melhor. De fato, Márcia era diferente das outras mulheres com as quais eu já havia lidado. Havia algo nela que a distinguia das demais, mas eu não sabia o que era. Durante o encontro, expressei o meu dilema, ao que ela me propôs: - Fernando, peça a Deus uma direção. Fale com Ele. Tenho certeza de que Ele vai te responder. Aquilo me soou muito estranho. E deveria soar dessa maneira? Bem, para quem tem o hábito de se conectar com Deus, não, mas para mim, que vivia de modo como se Ele não existisse, é claro que sim. PERDOADO
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* E você? Como vive? Como se Deus não existisse? Quais as implicações dessa sua conduta para a sua vida? *
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Capítulo 14
Após meu encontro com Márcia, pela primeira vez dobrei os meus joelhos em meu quarto e me dirigi a Deus, sem vãs repetições, mas abrindo o meu coração sem reservas. Eu já estava cansado de ficar “batendo a cabeça” por aí. Lágrimas brotaram de meus olhos, bem como um arrependimento de coisas que vi, pensei e experimentei... Durante aquela noite ainda tive um sonho curioso. Nele eu tinha uma filha. A garota devia ter por volta de seis ou sete anos. Saíra dando risadas pelas ruas, calçando as minhas botas. As mesmas botas que um dia foram do avô que não chegou a conhecer. Uns dois ou três garotos surgiram diante dela, apontaram para as botas, que obviamente ficaram enormes em seus pés, e começaram a rir sem parar. Impotente, eu assistia a tudo como um mero espectador. E os garotos, como que num passe de mágica, se multiplicaram e formaram uma roda em volta de minha filha, que chorava aos soluços diante do bullying. Ao acordar, inevitavelmente pus minha psicologia barata para trabalhar, na tentativa de gerar uma interpretação satisfatória para aquele sonho. A única coisa que pude depreender foi que eu deveria me desprender de certas coisas. Seria esta uma direção dada por Deus ou PERDOADO
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apenas uma coincidência? Resposta às minhas orações ou estímulos do inconsciente? No trabalho, narrei o ocorrido à Márcia. Ela então me convidou para uma reunião na igreja onde frequentava. Não aceitei o convite nem o rejeitei, apenas deixei a possibilidade em aberto. No domingo, tomei coragem e fui. Quando cheguei à igreja, fui bem recepcionado e acolhido. Logo, os músicos entoaram cânticos realmente lindos. As pessoas cantavam ora com palmas e júbilo, ora com os olhos fechados e em lágrimas. Márcia erguia as mãos, e seu semblante resplandecia. Tudo que eu queria era sentir o mesmo que aquelas pessoas. Em seguida, ouvimos um sermão bem articulado, que sempre confrontava a nossa natureza à mensagem de Jesus. Ao final, ganhei uma bíblia, me despedi de Márcia e fui embora. Confesso que, ao entrar no prédio, fiquei um tanto quanto embaraçado com a bíblia debaixo do braço. Receoso do que iriam pensar de mim, afinal todos estavam habituados a me ver com jornais, livros e revistas debaixo do braço, mas nunca uma bíblia. O prazo que o chefe da redação havia me concedido para que eu reconsiderasse meu pedido estava findando. Aproveitei para mergulhar naquele livro em busca de uma resposta. À medida que eu lia, algumas coisas ganhavam sentido, outras perdiam. Quem já passou por essa experiência sabe exatamente o que eu falo. Eu poderia citar vários exemplos, mas só quem viveu essa experiência é capaz de entender. Algo como a experiência relatada no mito (ou alegoria) da caverna, de Platão, em que prisioneiros que viviam acorrentados no interior de uma caverna conhe88
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ciam somente as sombras projetadas na parede, quando um deles consegue sair e perceber que passou a vida inteira vendo apenas sombras e ilusões, desconhecendo a realidade, os seres de verdade. Maravilhado com esse novo mundo e com o conhecimento que então passara a ter da realidade, esse ex-prisioneiro se lembra de seus amigos no interior da caverna. Imediatamente, volta ao local para lhes contar o que descobriu. No entanto, como os prisioneiros não conseguiam vislumbrar senão a realidade que presenciavam, debocharam do colega liberto, dizendo-lhe que estava louco e que, se não parasse com suas maluquices, acabariam por matá-lo. Sem dúvida, a alegoria do filósofo é um clássico exemplo da máxima de que a arte imita a vida, e a vida imita a arte. São muitos os que vivem, na pele, o problema do prisioneiro liberto e os que ainda estão presos no fundo da caverna, presos ao mundo de aparências. Quando expirou meu prazo, já não restavam mais dúvidas. Embora aparentemente houvesse mais “prós” que “contras” para permanecer na redação, algo dentro de mim dizia que o meu ciclo ali chegara ao fim. Além disso, havia brotado em meu coração um novo projeto. Aliás, dois. Um consistia em fazer um documentário sobre o cinema brasileiro e o outro, um curta metragem baseado em um conto que eu havia lido. Quando os compartilhei com Márcia, ela me disse: - Quem sabe está na hora de você abandonar a posição de crítico e passar para o outro lado: o alvo das críticas? Quem sabe está na hora de se levantar da cadeira e pôr a mão na massa? * E você? Será que está precisando de uma mudança em alguma área de sua vida? Será que está na hora de PERDOADO
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se levantar do assento de espectador e se envolver com algum projeto ou se comprometer com alguma causa?
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Capítulo 15
Depois de muita meditação e oração, havia me decidido. Agradeci ao chefe da redação por tudo e me despedi de todos. Bil dessa vez não desferiu comentários inoportunos. Osvaldo me felicitava por ter me livrado das substâncias da “coffe machine”. Márcia me deu um forte abraço. Segui em frente, com a pintura como hobby e, também, buscando a Deus, frequentando a mesma igreja de Márcia aos domingos. Além disso, desenvolvia alguns trabalhos como freelancer concomitante aos projetos citados. Eu estava ciente da dificuldade de viver de arte no Brasil, mas a minha profissão havia me permitido visitar os bastidores da sétima arte e proporcionado conhecimento acerca dos meandros do cinema. Com uma pequena equipe, formada por um estagiário do jornal, um estudante de Comunicação e mais um colega dos tempos de faculdade, procuramos acionar alguns contatos e estabelecer outros, bem como corremos atrás de patrocínio, parcerias e leis de incentivo. Aquela empreitada consumiu toda a minha reserva e quase toda a minha energia. Definitivamente, eu havia deixado a minha zona de conforto por algo que pudesse dar os frutos desejados. PERDOADO
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A minha mudança suscitou vários sentimentos na minha seleta roda de amigos. Tentaram me calar com filosofias sartreanas e com o niilismo de Nietzsche. Tentaram me humilhar me igualando aos que usam o Evangelho com a finalidade única de se enriquecerem. Apelaram para argumentos que já são tão pueris, que até as crianças do catecismo são capazes de refutá-los. Mas eu não me preocupava em responder a qualquer objeção, afinal em outros tempos eu também tinha uma visão deturpada, mas aprendi com Márcia que o Evangelho é muito mais do que seguir uma listinha de regras, como muita gente ainda pensa. Como tive a oportunidade e o privilégio de frequentar o meio acadêmico, convivi muito com esses tipos de confrontações. Aliás, foi nessa fase que me deparei com a estarrecedora e célebre frase de Nietzsche, no livro Zaratustra: “Deus está morto!” O problema é que nos esquecemos da frase seguinte: “E nós o matamos!” Comumente o filósofo alemão do século XIX é taxado como ateu, porém não faz o menor sentido alguém anunciar a morte de algo em que não acredita. Possivelmente ele pretendia chamar a atenção para a nossa atitude em relação a Deus, de nos julgarmos autossuficientes ao ponto de pensar que não necessitamos Dele para mais nada. Durante muito tempo de minha vida ignorei essas e outras verdades. Mas uma coisa que aprendi recentemente é que, de certa forma, todos nós somos ignorantes. Afinal, se você não sabe nada sobre física quântica ou energia nuclear, é porque ignorou essa matéria. E eu simplesmente ignorei Deus por boa parte da minha vida, mas hoje sei que mais vale um dia em Sua presença que uma vida inteira sem jamais conhecê-lo. *E você, já foi muito confrontado por causa de suas 92
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convicções? Ou será que você é quem tem confrontado as pessoas?
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Capítulo 16
Alguns meses depois voltei à casa de minha mãe a fim de aparar algumas arestas e principalmente pedir perdão à minha família por toda dor e sofrimento que os fiz passar. Não demorou muito para que notassem a minha mudança. De fato, graças a Deus, eu havia recuperado a minha dignidade. Mas a surpresa maior ficou por conta de ver que onde se erguia o imponente casarão de Mizarazu nada mais existia. Meus conterrâneos me informaram que a construção havia sido consumida por um incêndio e que não sobrara nada para contar história. Diziam as más línguas que nem mato nascia mais no local. Quanto à loira ou a criada, nenhum sinal, nenhum vestígio. Versões fantásticas chegaram aos meus ouvidos, como a de que o casarão tivesse sido tragado das profundezas da terra, ou seja, do inferno, para ressurgir em outra remota cidade para corromper seus pobres habitantes, por meio de satanás personificado no corpo de uma bela mulher. Instantaneamente me veio à cabeça a imagem do cinzeiro de porcelana cujo fundo estampava uma loira nua em chamas, cena com a qual eu havia sonhado semanas antes de conhecer Mizarazu. Acho que agora entendo PERDOADO
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por que ela ficou tão transtornada quando lhe contei sobre a estranha coincidência, possivelmente ela interpretou como mau agouro. Procurei por Guilherme e lhe contei sobre minha mudança. Num primeiro momento ele quis zombar, mas logo percebeu que não era brincadeira minha. Dei a ele um pequeno livro sobre o sacrifício de Jesus e o plano para a salvação. Em seguida lhe dei um abraço e voltei à capital para retomar as minhas atividades. Ao final de um ano de muito trabalho, meus objetivos estavam prestes a serem alcançados. Muita coisa havia mudado de lá pra cá. Márcia realizou um antigo sonho, trocou a mídia impressa pela televisiva. Minhas noites de porre e manhãs de ressaca deram lugar a uma vida mais centrada, menos dispersa. Meus objetivos se tornaram maiores. Meus fones passaram a tocar outra trilha sonora. É claro que as tribulações não sumiram de vez. Algumas coisas nem sempre acontecem do jeito que gostaríamos que acontecessem. Lembra-se do Mito de Platão? Pois então, minha amiga Ana Célia, por exemplo, passou a debochar de mim, como os prisioneiros da caverna trataram o preso liberto. Ela me dizia coisas do tipo “se Deus existe, por que há tanta coisa ruim acontecendo no mundo?” E eu tentava explicar a ela que o mundo se encontra assim exatamente pela falta de Deus. Ela dizia que não podia acreditar num Deus que quer ser louvado o tempo todo. E eu, inutilmente, tentava explicar a ela que Deus não precisa ser adorado o tempo todo. Ele não é egocêntrico como o homem, que carece de elogios para massagear o seu ego. Na verdade, Ele não precisa de nada. Se há alguém que precisa de algo, esse alguém somos nós. Nós é que dependemos Dele. Nós é 96
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que precisamos louvá-lo, pois isso só fará bem para nós mesmos. Ele simplesmente deseja que o louvemos, acima de tudo, com nossos atos, e não com cânticos de louvor e exaltação. Ela dizia que padres são pedófilos, e pastores, ladrões. E eu dizia que infelizmente existem essas aberrações no cristianismo, mas não são regras, e sim exceções. Ela dizia que não podia acreditar na bíblia, pois foi o homem quem a escreveu. E eu dizia a ela: “ - Mas você queria que ela tivesse sido escrita por quem, pelo macaco?” Aliás, o que esses homens ganharam com isso? Todos eles foram perseguidos e até torturados e executados de maneira brutal. Pedro morreu crucificado de cabeça para baixo e Paulo, degolado, só para citar alguns exemplos. Ela dizia que religião não presta. E eu dizia que Deus e religião são coisas distintas. Ou seja, Deus é uma coisa, religião é outra. Deus é um fim, e a religião é um meio. Deus é um Ser Supremo, o Criador; e a religião deve apenas nos levar até Ele. Jesus não veio ao mundo para fundar uma religião. Os erros dos religiosos não devem servir de desculpa para deixarmos Deus de lado e tocarmos as nossas vidas como bem entendermos. Enfim, o tempo todo ela queria que eu voltasse a enxergar como ela, voltasse para “as sombras projetadas no fundo da caverna”. Mas para mim, isso não era mais possível, pois as coisas velhas já haviam passado, e tudo se fizera novo. Passei a enxergar Deus nos pequenos detalhes. Ao observar a natureza, por exemplo, na gama de alimentos disponíveis, os quais contêm todas as propriedades e nutrientes de que necessitamos para sobrevivermos, não seria honesto de minha parte pensar que viemos do acaso. Ao notar as perfeitas distâncias entre o Sol, a Terra PERDOADO
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e a Lua, projetados de tal maneira que tenhamos dia e noites na medida certa para nosso sono, de modo que o corpo descanse e esteja novamente pronto para encarar outro dia que nasce, não posso crer que o surgimento do universo se deu a partir de um lance fortuito, como o Big Bang. Seria uma santa coincidência!!! * E você, crê em quê?
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Capítulo 17
Finalmente, consegui um contrato de distribuição com uma produtora de filmes, que viria a lançar o documentário sobre o cinema nacional e, posteriormente, financiar a produção do curta-metragem À margem. Àquela altura eu e Márcia já havíamos atado namoro e fazíamos planos de nos tornarmos uma só carne. No dia da aguardada pré-estreia do documentário, um sujeito alto, de ombros largos, corpo robusto, de óculos e com um terno alinhado se aproximou de mim, estendeu-me a mão direita e me cumprimentou dizendo: - Não se lembra de mim, Fernando? Confesso que me esforcei para reconhecer aquele rosto familiar, mas nada. Eu estava muito nervoso e com bastante receio de cometer gafes. Ensaiei disfarçar o constrangimento, quando o homem se identificou de forma bastante simpática: - Bil, lembra? - Bil?! Mas você está ótimo, cara! - Graças a você! – completou Bil, que estava uns sessenta quilos mais magro. PERDOADO
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Outros colegas do jornalismo também apareceram, inclusive meu ex-chefe. Sem dúvida, eles foram de fundamental importância na divulgação do meu trabalho, que teve uma excelente repercussão e abriu caminho para o lançamento do curta-metragem que já se encontrava em fase de edição. Mesmo obtendo reconhecimento, respeito e até admiração por parte de muita gente devido ao meu trabalho e ao modo como eu passei a levar a minha vida, algumas pessoas insistiam em me criticar e me perseguir. Como Márcia certa feita se referiu a mim, estas pessoas infelizmente estão afastadas de Deus. Muitas delas só vão procurá-lo na última hora. Dizem que durante as grandes tragédias, catástrofes e acidentes, a palavra mais evocada nesses momentos é Deus, seja em inglês, alemão, russo, português, francês, mandarim, híndi, árabe, polonês. O problema é que aí pode ser tarde demais. Jesus recorria sempre às parábolas para transmitir seus ensinamentos. Há uma espécie de parábola moderna de que gosto muito, sobre a mãe que dá liberdade ao filho para que ele administre o quarto dele da maneira que ele bem entender. O garoto acha ótimo. Não arruma nada. Deixa o quarto todo bagunçado. Uma tremenda bagunça! Só que ele cresce, arruma uma namorada e, quando ela vai à sua casa e conhece o quarto dele, toma nojo do rapaz. Assim, o rapaz pede ajuda à sua mãe, para que arrume o seu quarto. Ou seja, você é livre para fazer tudo, mas tudo traz consequências. Mas que mal há em deixar o quarto bagunçado? E quem disse que estamos falando de um reles cômodo da sua casa? Estou falando da sua vida! Você é livre para fazer o que quiser dela. Para isso, Deus lhe deu o livre 100
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arbítrio. Porém, ela pode se transformar numa tremenda bagunça. Se este for o seu caso, faça como o rapaz, peça ajuda a Deus. Ele terá o maior prazer em arrumar. Talvez o orgulho não deixe. Talvez seja mais fácil colocar a culpa em Deus. Talvez seja mais conveniente se contentar com as sombras projetadas no fundo da caverna. Talvez não seja capaz de ver além dos sinais verdes e das bocas vermelhas. Talvez lhe bastem as alegrias vendidas. Talvez o Sistema (ou Mamom) tenha colocado em você uma forte cegueira. Talvez você ache que não lhe falte nada e, caso falte, você é capaz de correr atrás disso sozinho. Talvez você até acredite em Deus, mas lhe falta coragem para se abrir de verdade com Ele. Mas sabe o que um livro fechado e uma tevê desligada têm em comum? Ambos são apenas objetos sem cumprir a sua funcionalidade. Ambos precisam de um interlocutor para serem plenos. Assim como eles, precisamos nos conectar a Deus para atingirmos a plenitude. Você está apenas a uma oração Dele.
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Epílogo
CHEGOU A HORA! Sei que, às vezes, viver não é fácil. Brigamos com quem amamos, erramos em nossas escolhas, não recebemos o devido valor e por aí vai... Dá até uma vontade de chutar o balde, cometer uma loucura qualquer e, quase sempre, apelamos para medidas fáceis como tomar um porre ou mesmo experimentar uma droga qualquer para relaxar e esquecer os problemas. Porém, essas coisas nunca foram, nunca são e nunca serão solução para nossos problemas. Pior, na maioria das vezes, só agravam a situação. Então nos perguntamos: “onde foi que eu errei?” Bem, erramos quando tentamos caminhar com as próprias pernas, procurando mostrar aos outros que somos donos do próprio nariz, que podemos fazer e acontecer... Esquecemos que, quando crianças, geralmente na hora de dormir, fechávamos os olhos e pedíamos ao Papai do Céu para nos ajudar. Mas aí crescemos e descobrimos que o coelhinho da páscoa não existe, que Papai Noel também é uma invenção, assim como tantas outras coisas. Daí passamos a desconfiar de tudo e de todos. Nosso desejo passa a ser: tornarmos independentes. É a hora que começamos a “bater cabeças”. Achamos que daremos conta de tudo. Achamos que PERDOADO
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as coisas materiais vão suprir os nossos anseios, o nosso vazio. Mas até aquelas pessoas que conquistam “tudo” na vida (materialmente falando), se deparam novamente com o quê? Com o vazio. Muitas delas acabam chutando o balde e desistem de viver. Uma saída covarde para o caminho errado que acabaram por seguir. Esse vazio só pode ser preenchido pelo amor a Quem tudo lhe deu, a Quem lhe deu a vida. Alguém de que você se esqueceu, tentando ser gente grande. Alguém que nos ama tanto que enviou o seu Filho ao mundo, não para condená-lo, mas para que o mundo fosse salvo por Ele. E ele, Jesus Cristo, suportou tudo. Mesmo sendo humilhado, torturado, xingado, crucificado, nada retrucou. Muitos, por muito menos, perdem a pose, “rodam a baiana”, fazem o maior barraco. Jesus poderia ter chutado o balde, como muitos de nós fazemos. Mas Ele foi até o fim por mim e por você. Ele pagou o preço. Um alto preço para que o Pai aceite você com suas falhas, defeitos e pecados, desde que reconheça o sacrifício do Filho na cruz. Portanto, não importa como você esteja, não importa por quais caminhos você passou, experimente o amor de Cristo, aquele que o ama incondicionalmente, aquele que valoriza você, aquele que realmente pode ajudá-lo, aquele em quem pode confiar, aquele que não desiste de você. Chegou a hora! Aproveite, pois Deus tem muito mais a lhe dar.
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Nota do Autor
Esta obra não tem intenção de levá-lo(a) à religião A, B ou C, e sim de despertar nas pessoas escravizadas pelo mundo friamente capitalista e apegado às aparências o fato de que existe algo maior e mais profundo que o plano material que se apresenta aos nossos olhos. Há algo mais em jogo, mais valioso que o ouro e a prata. E que, no entanto, está disponível e, o que é melhor, de graça. Existem muitos Fernandos e muitas Márcias entre nós. Caso você tenha se identificado mais com Fernando, gostaria de encorajá-lo(a) a buscar conhecer mais sobre Deus, o nosso Criador. Se você se identificou mais com a personagem Márcia, também quero encorajá-lo(a) a falar mais de Deus com o próximo, a compartilhar mais a palavra de Deus e a falar mais sobre o sacrifício de Seu Filho na cruz do calvário. Espero que este pequeno livro tenha, de alguma forma, edificado a sua vida. Qualquer dúvida ou sugestão, por favor, entre em contato comigo pelo e-mail marcelo.plinio@yahoo.com.br Será um grande prazer.
Fiquem com Deus! Marcelo Plínio
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Sobre o(s) título(s)
Por que dois títulos? E por que esses títulos? Bem, o subtítulo se deve a um projeto antigo, o qual faz clara referência à obra infantil da genial escritora Clarice Lispector “A mulher que matou os peixes”. A biografia da autora dá indícios de que ela não acreditava na existência de um Deus. Assim como ela (e Fernando), eu também era mais adepto à cosmovisão ateísta. Entretanto, a exemplo de Paulo (Saulo), passei por uma experiência sobrenatural muito forte que modificou meu modo de ver o mundo. Da mesma maneira que a minha história foi reescrita por Deus, decidi reescrever a história de Fernando, que na verdade sempre foi uma espécie de alterego. Portanto, uma nova história carecia de um novo título. Fernando não matou os peixes deliberadamente, mas sim devido à consequência de suas más escolhas. E, ao fazê-las, ele estava literalmente se matando aos poucos. Aliás, já estava morto espiritualmente. A cada dia, temos a liberdade de fazermos as nossas escolhas, acertadas ou não. De igual maneira, podemos mudar. A opção por dois títulos deixa subentendida essa ideia de escolha e de oportunidade de mudança. Como todos nós, Fernando errou, pegou um caminho de morte, perdeu seus peixes e poderia ter perdido coisas ainda mais valiosas. Mas aprendeu, a tempo, que de nada vale ganhar o mundo, e perder a alma. Nem sempre a nossa vontade é o que há de melhor para as nossas vidas. Por isso, Jesus nos ensinou a orarmos a Deus “que seja feita a Sua vontade assim na terra como nos céus”. Isso mesmo. Deus tem vontade. Não vontades egoístas e equivocadas como as nossas. Como 106
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um pai, Ele tem vontade de ver o filho trilhando o melhor caminho: Jesus. Admitir que não sabemos nem o que é melhor para nós mesmos pode significar, para alguns, falta de inteligência, mas, na verdade, é o princípio da sabedoria.
Para Meditação A mensagem da cruz é loucura para o homem natural. “Mas Deus escolheu o que para o mundo é loucura para envergonhar os sábios e escolheu o que para o mundo é fraqueza para envergonhar o que é forte. Ele escolheu o que para o mundo é insignificante, desprezado e o que nada é, para reduzir a nada o que é, a fim de que ninguém se vanglorie diante dele.” 1Coríntios 1
“Em Cristo estão escondidos todos os tesouros da sabedoria e da ciência.” Colossenses 3:2
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