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Sete Pecados Capitais Navegando através do caos em uma era de confusão moral Os Guinness Digitalizado por Amigo Anônimo
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DA
PALAVRA e-books evangélicos
2 Essa edição foi publicada com autorização contratual da NavPress, uma divisão dos Navigators, USA. Publicado originalmente em inglês pela NavPress com o título: Steering through chaos. Copyright © 2000 pelo Fórum Trinitariano. Todos os diretos reservados. 1ª Edição - Junho de 2006 Publicado no Brasil com a devida autorização e com todos os direitos reservados por SHEDD PUBLICAÇÕES LTDA-ME Rua São Nazário, 30, Sto Amaro São Paulo-SP-04741-150 Tel. (0xx11) 5521-1924 ISBN 85-88315-45-9 Printed in Brasil / Impresso no Brasil Impressão e acabamento: Imprensa da Fé TRADUÇÃO - Augustus Nicodemos REVISÃO - Regina Aranha DIAGRAMAÇÃO - Edmilson F. Bizerra CAPA - Júlio Carvalho
O FÓRUM TRINITARIANO 7902 westpark Drive, Suíte A McLean, VA 22102 www.ttf.org "Contribuindo para a transformação e a renovação da sociedade por meio da transformação e renovação de líderes". O Fórum Trinitariano gostaria de agradecer às seguintes pessoas por seu trabalho neste projeto: Diretor do Projeto: Os Guinness Seleções e Introduções: Os Guinness Resource Scholar: Louise Cowan Pesquizadores: Nelson González, Margaret Gardner Editora: Virginia Mooney Vice-editores: Peter Edman, Amy Bouchr e Ginger Koloszye
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Conteúdo Conteúdo...................................................................................................................................................................3 Fórum Trinitariano ...................................................................................................................................................7 Não tanto um livro, mas um modo de pensar........................................................................................................7 Introdução navegando através do caos......................................................................................................................................11 Por que "pecados" e por que "sete"?...............................................................................................................15 KAY HAUGAARD............................................................................................................................................19 'A loteria' revisitada.........................................................................................................................................20 ROBERT COLES...............................................................................................................................................23 A história de Ruby Bridges.............................................................................................................................23 Capítulo 1 Orgulho (superbia) versus pobreza de espírito........................................................................................................28 Figuras e metáforas.........................................................................................................................................29 Aplicações práticas..........................................................................................................................................29 C. S. LEWIS........................................................................................................................................................30 O grande pecado..............................................................................................................................................31 JOHN MILTON..................................................................................................................................................35 Paraíso perdido................................................................................................................................................36 SHIRLEY MACLAINE......................................................................................................................................37 O que faz MacLaine prosseguir?.....................................................................................................................38 WILLIAM GOLDING........................................................................................................................................39 The spire [O pináculo].....................................................................................................................................40 O CONTRAPONTO DO ORGULHO: bem-aventurados os pobres em espírito..................................................................................................................44 "Bem-aventurados os pobres em espírito"......................................................................................................44 TOMÁS À KEMPIS...........................................................................................................................................46 Como nos contemplar por meio da humildade, como pobres e desprezíveis à vista de Deus........................46 JEREMY TAYLOR............................................................................................................................................47 Atos ou ofícios de humildade..........................................................................................................................48 Capítulo 2 Inveja (invidia) versus lamento...............................................................................................................................51 Ilustrações e metáforas....................................................................................................................................53 Aplicações práticas..........................................................................................................................................54 PLUTARCO........................................................................................................................................................55 Aristides..........................................................................................................................................................56 WILLIAM LANGLAND....................................................................................................................................58 Visões de Piers, o lavrador..............................................................................................................................59 NATHANIEL HAWTHORNE...........................................................................................................................60 A letra escarlate...............................................................................................................................................61 HENRY FAIRLIE...............................................................................................................................................62 Inveja ou invidia..............................................................................................................................................63
4 PETER SHAFFER..............................................................................................................................................66 Amadeus..........................................................................................................................................................66 O CONTRAPONTO DA INVEJA bem-aventurados os que choram.............................................................................................................................71 VICTOR HUGO.................................................................................................................................................72 Os miseráveis..................................................................................................................................................72 JOHN WESLEY & CHARLES SIMEON......................................................................................................74 Regras para compromissos corporativos.........................................................................................................74 Como lidar com a maledicência......................................................................................................................74 Capítulo 3 Raiva (ira) versus mansidão....................................................................................................................................76 Aspectos da raiva............................................................................................................................................77 Figuras e metáforas.........................................................................................................................................78 Aplicações práticas..........................................................................................................................................78 PLUTARCO........................................................................................................................................................78 Alexandre........................................................................................................................................................79 SÊNECA.............................................................................................................................................................81 Sobre a raiva....................................................................................................................................................82 JOHN WEIR.......................................................................................................................................................83 Fúria, fúria.......................................................................................................................................................83 MARY GORDON...............................................................................................................................................86 A fascinação começa na boca..........................................................................................................................86 O CONTRAPONTO DA RAIVA bem-aventurados os mansos....................................................................................................................................89 A opinião que se tem dos outros.....................................................................................................................89 C. S. LEWIS........................................................................................................................................................90 Perdão..............................................................................................................................................................90 MARTIN LUTHER KING JR............................................................................................................................92 Amando seus inimigos....................................................................................................................................92 Capítulo 4 Preguiça (acedia) versus fome de justiça................................................................................................................96 Figuras e metáforas.........................................................................................................................................96 Aplicações práticas..........................................................................................................................................97 BLAISE PASCAL...............................................................................................................................................97 Pensées [Pensamentos]....................................................................................................................................98 SOREN KIERKEGAARD................................................................................................................................100 Sobre a perversidade do século.....................................................................................................................100 DOROTHY L. SAYERS...................................................................................................................................101 Os outros seis pecados capitais.....................................................................................................................101 VÁCLAV HAVEL............................................................................................................................................102 Cartas para Olga............................................................................................................................................103 O CONTRAPONTO DA PREGUIÇA bem-aventurados os que tem fome e sede de justiça.............................................................................................106 Fome satisfeita...............................................................................................................................................106 JOHN DONNE..................................................................................................................................................106
5 Soneto sagrado..............................................................................................................................................106 GEORGE HERBERT.......................................................................................................................................107 Amor (III)......................................................................................................................................................107 Capítulo 5 Avareza (avaritia) versus misericórdia..................................................................................................................109 Figuras e metáforas.......................................................................................................................................110 Aplicações práticas........................................................................................................................................111 GEOFFREY CHAUCER..................................................................................................................................111 O prólogo do vendedor de indulgências........................................................................................................111 LEON TOLSTOI...............................................................................................................................................114 De quanta terra uma pessoa necessita?..........................................................................................................115 LANGDON GILKEY.......................................................................................................................................124 Complexo Shantung......................................................................................................................................124 O CONTRAPONTO DA AVAREZA bem-aventurados os misericordiosos....................................................................................................................129 Misericórdia aos que não têm misericórdia...................................................................................................129 VICTOR HUGO...............................................................................................................................................129 Capítulo 6 Glutonaria (gula) versus coragem em meio ao sofrimento e à perseguição..........................................................133 PETRÔNIO/REVISTA TIME..........................................................................................................................135 Satiricon........................................................................................................................................................136 A importância de ser sôfrego........................................................................................................................136 C.S. LEWIS.......................................................................................................................................................138 Cartas do diabo ao seu aprendiz....................................................................................................................138 HENRY FAIRLIE.............................................................................................................................................139 A glutonaria de nossa era..............................................................................................................................140 FREDERICK BUECHNER..............................................................................................................................141 Anões no estábulo.........................................................................................................................................142 O CONTRAPONTO DA GLUTONARIA bem-aventurados os perseguidos por causa da justiça..........................................................................................147 TOMÁS À KEMPIS.........................................................................................................................................147 Sobre o sofrimento paciente nas injúrias e injustiças, e aquele que é verdadeiramente paciente.................147 JOÃO DA CRUZ..............................................................................................................................................148 Na luz divina.................................................................................................................................................149 Capítulo 7 Libertinagem (luxúria) versus pureza de coração.................................................................................................150 MOLIÈRE.........................................................................................................................................................153 Don Juan, ou a festa com a estátua................................................................................................................153 D. H. LAWRENCE...........................................................................................................................................154 O arco-íris......................................................................................................................................................155 ERNESTO CARDENAL..................................................................................................................................159 Uma oração por Marilyn Monroe..................................................................................................................160 O CONTRAPONTO DA LIBERTINAGEM bem-aventurados os puros de coração...................................................................................................................163 AGOSTINHO....................................................................................................................................................163
6 Confissões.....................................................................................................................................................164 WILLIAM F. MAY...........................................................................................................................................166 Falsa adoração: impureza de coração............................................................................................................166 Impureza de coração......................................................................................................................................167 Conclusão cinco lembretes......................................................................................................................................................169 Primeiro lembrete..........................................................................................................................................169 ARISTÓTELES................................................................................................................................................169 Bondade moral..............................................................................................................................................170 Segundo lembrete..........................................................................................................................................171 SAMUEL JOHNSON.......................................................................................................................................171 Auto-engano..................................................................................................................................................172 Terceiro lembrete..........................................................................................................................................174 LANGDON GILKEY.......................................................................................................................................174 Shantung Compound [Complexo Shantung].................................................................................................174 Quarto lembrete.............................................................................................................................................178 C. S. LEWIS......................................................................................................................................................178 Comportamento cristão.................................................................................................................................179 O peso da glória.............................................................................................................................................179 Quinto lembrete.............................................................................................................................................180 MAXIMILIAN KOLBE...................................................................................................................................181 A órbita da escuridão.....................................................................................................................................181 CORRIE TEN BOOM......................................................................................................................................186 Ame o seu inimigo........................................................................................................................................187 Leituras adicionais.............................................................................................................................................189 Guia do leitor.........................................................................................................................................................190
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Fórum Trinitariano Não tanto um livro, mas um modo de pensar A "razão" e o "como" da série de estudos do Fórum Trinitariano Desde o tempo de Sócrates até os dias de hoje, filósofos acreditam que uma vida não examinada não vale a pena ser vivida. Viver uma vida examinada é um desafio inigualável em uma era em que não se tira tempo para examinar nem mesmo a própria vida. O ritmo e a urgência de nossa vida moderna podem, facilmente, não levar em conta o tempo para uma reflexão mais profunda. Para piorar ainda mais as coisas, vivemos em uma zona de guerra contra o pensamento independente. O eco da televisão, o exagero das propagandas, os breves enunciados políticos e a 'simplificação' dos inúmeros discursos agridem a habilidade dos indivíduos de pensar por si mesmos. Conclusões cuidadosamente consideradas sobre a vida e como melhor vivê-la são, inúmeras vezes, somente acidentes de percurso. Nesse cenário desafiador o The Trinity Fórum (o Fórum Trinitariano) lança sua Série de Estudos, convidando os indivíduos a reconsiderar, cuidadosamente e de maneira ponderada, os assuntos modernos - no contexto da fé - a fim de alcançar convicções mais profundas e mais firmemente fundamentadas.
Sobre o Fórum Trinitariano O Fórum Trinitariano foi fundado em 1991. Seu objetivo é contribuir para a transformação e a renovação da sociedade por meio da transformação e renovação de líderes. Cristão em seu compromisso, mas aberto a todos os que têm interesse em sua visão. Já organizou dúzias de fóruns para líderes de todos os setores da vida moderna - do comércio à educação, da moda ao governo como também da mídia. Dezenas de líderes de várias convicções religiosas, nos Estados Unidos, no Canadá e na Europa, têm tomado parte nesses fóruns. O formato é uma característica distinta do Fórum Trinitariano. Ele não envolve qualquer tipo de preleção, discurso ou conferência. Mas cada participante recebe, antecipadamente, um currículo de leituras sobre um dado tópico, para ser examinado, posteriormente, no fórum, que tem o estilo Socrático, uma discussão aberta conduzida por moderadores. Esses relacionamentos de reciprocidade desafiam o participante a lutar, pessoalmente, com os problemas em questão e essencialmente - chegar às suas próprias conclusões, após uma consideração extensiva. Por causa da demanda popular, o Fórum Trinitariano oferece, agora, seu currículo para uma audiência mais extensa. Sendo, por esse motivo, aprimorado como A Série de Estudos do Fórum Trinitariano e projetado para leitores individuais ou para grupos de estudo em lares, em igrejas e era universidades. Cada um desses estudos é planejado para ajudar pessoas atenciosas a examinar assuntos fundamentais por meio dos quais a fé age para o bem geral da sociedade moderna. Para aqueles que desejam discutir o material em grupo, há um guia de estudo no final de cada livro, o qual se provará de grande utilidade. No entanto, o guia de estudos também pode ser de grande ajuda para os que decidem ler o livro em particular, pois ajuda a permanecer focalizado nas idéias importantes do Estudo. O Guia do leitor contém: (1) princípios básicos para a liderança de pequenos grupos, (2) uma visão geral das idéias centrais dos Estudos e (3) seleções sugeridas para grupos que não possuem tempo para discutir todas as leituras do livro de Estudo. Esse estudo é maduro em sua seriedade e espírito, possuindo, no entanto, um estilo popular, preferindo este ao estilo escolástico. A Série de Estudos do Fórum Trinitariano sonda cada tópico
8 por meio dos escritos que formataram seu desenvolvimento. Essa abordagem será nova e empolgante para muitos e acreditamos que possa ser de estímulo para todos. Vale a pena expor algumas das suposições e das convicções que guiam essa abordagem, pois o que apresentamos aqui não é tanto um livro, mas sim uma maneira de pensar.
Definindo as características da Série de estudos do Fórum Trinitariano Primeiramente, a Série de Estudos do Fórum Trinitariano explora os assuntos da atualidade em um contexto de fé. Conforme mencionado anteriormente, o Fórum Trinitariano é cristocêntrico em seu comprometimento, abrindo, porém, seus programas a todos os que compartilham seus objetivos — tanto crentes, como investigadores ou, até mesmo, céticos. Esta série de livros é marcada pelo mesmo compromisso, mas mantém o espírito aberto. Para os crentes, parece natural levar em consideração o lugar da fé na discussão dos assuntos da vida - tanto a fé histórica como a atual. Mas isso também deve ser natural para todos os cidadãos da sociedade ocidental de qualquer crença. Pois ninguém é capaz de entender a civilização ocidental sem entender a fé cristã que, quer queiram quer não, foi a força primária de sua formação. No entanto, uma característica espantosa de muitos líderes contemplativos e formadores de opinião de nossos dias é a "surdez musical/espiritual" para com qualquer tipo de crença — o que significa que, consciente ou inconscientemente, não ouvem a música através da qual a maioria das pessoas orquestra suas vidas. Por exemplo, recentemente um executivo proeminente da mídia admitiu que ele e seu colega se encontravam confusos sobre a dependência profunda dos estado-unidenses à fé. Ao citar a efusão da oração pública em resposta ao tiroteio trágico acontecido em Kentucky, ele confessa isto: "Simplesmente não entendemos". Para que o passado faça sentido e para podermos lidar com o presente, estas leituras têm como alvo reparar aquela dimensão do entendimento negligenciada, reintroduzindo na discussão moderna a perspectiva vital da fé. Em segundo lugar, a Série de Estudos do Fórum Trinitariano apresenta a perspectiva da fé em seu contexto da varredura da civilização ocidental moderna, reconhecendo assim o lugar vital do passado na vida das nações, como também na vida dos indivíduos. O caráter distinto do mundo moderno é a sua paixão pelo presente e o seu fascínio pelo futuro à custa do passado. Enquanto as idéias e as convicções dos tempos antigos estão sendo encaixotadas e depositadas no sótão para ficar cobertas pelas teias de aranha da nostalgia e da irrelevância, o progresso, a escolha, a mudança, a novidade e o mito de "o mais recente é o mais correto" e de "quanto mais novo melhor" reinam sem desafios. Em contraste a isso, Winston Churchill afirmou: "Quanto mais se olhar para o passado mais se é capaz de contemplar o futuro que adentra". Para ele, como também para os autores estado-unidenses do século XVIII e os escritores da Bíblia antes destes, relembrar não é, de forma alguma, uma questão de nostalgia ou devaneio histórico, pois é muito mais que uma simples lembrança intelectual. Para todos eles, o passado, tanto para as nações como para os indivíduos, é a chave vital para a identidade, a fé, a sabedoria, a renovação e o dinamismo de uma tradição viva. Introduzindo escritos importantes do passado, a Série de Estudos do Fórum Trinitariano convida seus leitores a uma estimulante troca de idéias e de imaginação com os grandes intelectos de nossa herança. Somente após conhecermos nossa origem, saberemos quem somos e para onde vamos. Em terceiro lugar, a Série de Estudos do Fórum Trinitariano apresenta a perspectiva da fé no contexto desafiador de outras crenças. O primeiro assunto desta série ofenderá, provavelmente, alguns secularistas estouvados, mas, por outro lado, este segundo assunto pode fazer o mesmo com os crentes desatenciosos. A verdade é que alguns crentes parecem não conhecer sua própria fé , pois conhecem somente sua própria crença. Familiaridade produz desatenção. O gracejo do ensaísta Ronald Knox é verdadeiro: a religião comparada pode nos tornar "comparativamente religiosos". Contudo, também é verdade que o contraste é a mãe da clareza. Um benefício importante, ao entender a própria fé como superior às outras, é a habilidade de comunicar persuasivamente suas idéias e posições em praça pública. Os crentes defendem
9 corretamente sua fé com base na autoridade divina. Tais crenças, no entanto, devem ser entregues de modo atraente em uma sociedade que não aceita a mesma autoridade. Um elemento importante para satisfizer, eficazmente, tal desafio é a habilidade de entender e destacar as diferenças entre as crenças. Esta série de livros, portanto, exibe as perspectivas da fé cristã no contexto dos desafios das outras crenças. Se "toda verdade é de Deus", e se diferenças realmente fazem a diferença, tal contraste entre uma fé e outra não só é desafiador, como também esclarecedor e importante tanto para o indivíduo como para a sociedade. Em quarto lugar, a Série de Estudos do Fórum Trinitariano não se envergonha da necessidade de uma reflexão inteligente. Recentemente, muitos vêem o cristianismo como antiintelectual e se escandalizam com essa falha da mente cristã. Conforme Bertrand Russell declara: "Muitos cristãos preferem morrer a pensar - isso é fato". Mas a decadência do pensar não está confinada a qualquer comunidade ou grupo. Cita-se o ex-secretário de estado, Henry Kissinger, dizendo: "Desde o dia em que se chega à cidade de Washington D.C, a maioria das pessoas encontra tão pouco tempo para pensar que terminam vivendo, o tempo todo, na dependência da capital intelectual". Em contraste, a grandeza de Abraham Lincoln expandiu-se como um fogo em tempos de reflexão cuidadosa durante a guerra civil. A crise profunda, dos dias de hoje, clama por uma reflexão atenta e uma coragem similar, vinda de homens e mulheres preparados a romper com uma era largamente desatenta e conformista. Da mesma forma que a geração anterior se desvencilhou das práticas aceitáveis do pouco exercício e da má alimentação, restaurando uma preferência pela boa forma, também a nossa geração precisa livrar-se da letargia do discurso "simplificado" para recuperar a capacidade de pensar, com uma disposição agressiva, como exigem os assuntos e a nossa era. Em quinto lugar, a Série de Estudos do Fórum Trinitariano reconhece que muitos assuntos públicos e urgentes de nossos dias são culturais, e não políticos. Muitas das discussões sobre assuntos públicos recentes oscilam, de modo preocupante, entre assuntos severamente morais (como, por exemplo, o aborto) e energicamente políticos (como, por exemplo, a reforma das finanças para as campanhas). No entanto, muitas das preocupações urgentes e crescentes de nossos dias estão situadas entre elas, integrando elementos de ambos. Isto é, elas não são puramente morais, nem puramente políticas. Em outras palavras, muitos assuntos-chave são assuntos "pré-políticos" com fundamentos morais, como por exemplo: o papel da "confiança" no capitalismo, o "caráter" da liderança, a "verdade" no discurso público, a "mordomia" na filantropia e no ambientalismo e o "volunta-rismo" na sociedade civil. Sem dúvida, isso é um sintoma de nossa presente crise, pois tais assuntos fundamentais nem deveriam ser debatidos. A Série de Estudos do Fórum Trinitariano, no entanto, trata desses temas muitas vezes negligenciados, apresentando-os sempre no contexto de fé e sempre de maneira não partidária, beneficiando assim a discussão cultural. Finalmente, a Série de Estudos do Fórum Trinitariano assume a necessidade especial por uma renascença social e cultural em nossos dias, bem como a possibilidade para tal. Ao considerarmos, com realismo perspicaz, a presente crise, um dos grandes desafios é ter esperança com uma base real para ela, mas, ao mesmo tempo, sem deixar de ser crítico sobre o que está errado, sem com isso desfalecer no alarmismo ou no desespero. Não há dúvida que, tanto nos assuntos espirituais quanto nos seculares, nenhuma liberdade, prosperidade ou sucesso nesta vida dura para sempre. Contudo, de igual modo, o majestoso ciclo do nascimento, crescimento e declínio nunca são deterministas, e nenhuma fonte de renovação é mais certa e poderosa que o reavivamento espiritual. A Série de Estudos do Fórum Trinitariano nasceu dessa convicção. Desistir da esperança e da vantagem do que vale a pena - Deus, o bem, o verdadeiro, o justo e o maravilhoso - é idêntico à preguiça, um dos pecados capitais. Fé é o aventurar-se, sob as ordens de Deus, a fim de sermos empresários da vida. Por esse motivo —, embora sempre incertos do resultado de nossa época e sempre modestos sobre nossa própria contribuição e sempre confiantes, não em nós, mas em Deus — aqueles que apresentam a Série de Estudos do Fórum Trinitariano, desejam encorajar as pessoas a adentrar a sociedade com respostas construtivas e com o
10 sentimento de confiança proveniente da fé temperada pela história. Ao fazer isso, procuramos disseminar as sementes para um renascimento tão necessário em nossos dias.
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INTRODUÇÃO navegando através do caos
Até o final do século XIX, o curso mais importante na carreira de um estudante de ensino superior era o curso de filosofia moral ou o que hoje chamamos de ética. O curso era considerado a unidade principal do último ano e era geralmente ensinado pelo próprio presidente da universidade. Hoje em dia, a explosão notável do interesse pela ética sugere a certas pessoas que estamos voltando àquela era moralmente robusta. Uma pesquisa feita pelo centro de Hastings afirma que, hoje, os Estados Unidos oferecem mais de onze mil cursos em ética aplicada. Esses cursos lidam com todos os tipos de problemas éticos. Problemas esses referentes ao comércio, à política, à medicina, à ciência, à engenharia e ao trabalho social, os quais são financiados por doações - algumas, surpreendentemente, generosas -, dezenas de revistas, centenas de compêndios e milhares de especialistas. Na década de 90, tanto a MTV quanto o The New York Times dedicaram-se ao tópico dos sete pecados capitais. No entanto, esse renascimento do interesse pela ética é dificilmente motivo para celebração. Pois, por um lado, a moralidade é como a saúde — a preocupação com essa é, geralmente, sinal de doença, não de vitalidade. Por outro lado, olhando esta renascimento mais de perto, ele não nos tranqüiliza muito. Primeiro, a moralidade é como a saúde - a preocupação com ela é, geralmente, sinal de doença, não de vitalidade. Em primeiro lugar, parte desse interesse renovado é simplesmente moda e, portanto, transitório. Conforme declara um comentarista: "Em nossa cultura dietética e de consciência débil, o 'pecado leve' tem encontrado lugar nas prateleiras ao lado de outros prazeres de baixaculpabilidade". Ou nas palavras da MTV: "Um pouco de libertinagem, de orgulho, de preguiça e de glutonaria - com moderação - são diversão, e é esse pouco que faz seu coração continuar batendo". O QUE ACONTECEU COM A FORMAÇÃO? A pergunta a ser feita na graduação, não é: "O que o estudante aprendeu?", e sim: "Em quem o estudante se tornou? — PRESIDENTE JAMES MONROE CONFUSÃO MORAL É mais fácil lutar pelos nossos princípios que viver por eles. — ALFRED ADLER De que adianta aprender a fazer o que é certo, se isso é extremamente trabalhoso, ao passo que fazer as coisas de maneira errada é bem mais fácil e, ao final, rende exatamente o mesmo salário? — MARK TWAIN, THE ADVENTURES OF HUCKLEBERRY FINN [AS AVENTURAS DE HUCKLEBERRY FINN] Os melhores carecem de qualquer convicção, enquanto os piores se encontram cheios de intensa paixão. — WILLIAM BUTLER YEATS, THE SECOND COMNG [A SEGUNDA VINDA]
Em segundo lugar, o interesse renovado pela "ética preventiva" é consideravelmente maior que o interesse pela ética de princípios. Ela preocupa-se mais em "não ser apanhado (em flagrante)" (ou processado ou exposto na imprensa) que fazer o que é certo. A afirmação cínica de Oscar Wilde, feita no final do século retrasado, é desconfortavelmente apropriada para o ambiente das guerras culturais dos dias de hoje: "Moralidade é simplesmente a atitude adotada para com as pessoas que antipatizamos pessoalmente". Em terceiro lugar, até mesmo onde se ensina uma boa ética, de maneira proveitosa, ela é, usualmente, mais social que pessoal - o que importa para o politicamente correto é ter as
12 perspectivas corretas, não praticá-las. Os assuntos dizem respeito às corporações, às escolas, às cortes, aos governos e ao tratamento do meio-ambiente, não à virtude e à responsabilidade dos indivíduos que dão suporte a essas questões secundárias. Em quarto lugar, e ainda pior, a ética corrente é, muitas vezes, ensinada com uma perspectiva superficial da natureza humana e uma perspectiva ainda mais superficial do mal encontrado na sociedade humana. Por exemplo, raramente tópicos como a hipocrisia, a auto-ilusão, o egoísmo e a crueldade vêm à tona. E o lugar da inveja na política, da avareza na economia, da libertinagem na indústria da moda e da violência no comércio do entretenimento raramente são investigados. Em quinto lugar e o pior de todos, a preocupação atual com a ética nos centros intelectuais da elite possui um elemento de absurdidade. O fruto dos últimos duzentos anos do pensamento da elite tem sido a destruição da possibilidade de qualquer conhecimento moral que permita a aspiração de uma formação moral. Por não haver mais conclusões morais, conversas sagazes sobre ética é tudo o que nos resta. Tentar navegar na confusão moral é como dirigir através da cidade de Nova York ou de São Paulo com todos os sinais de trânsito desligados.
"Meu cliente está pleiteando absolvição das acusações de assassinato, baseado no fato de que vossa excelência não pode legislar moralidade". — EXTRAÍDO DO WALL STREET JOURNAL.
NENHUMA CONCLUSÃO MORAL? No meu entender, quando se trata de ética, é impossível produzir argumentos intelectuais conclusivos quanto a seus fundamentos... Não acredito na possibilidade de um argumento teórico em uma questão fundamental sobre ética. — BERTRAND RUSSELL O curso de ética aplicada da atualidade não procura transmitir um conjunto de verdades morais, mas tenta encorajar o estudante a pensar cuidadosamente sobre assuntos morais complexos... O objetivo principal do curso não é transmitir 'respostas corretas', mas fazer o estudante mais perceptivo para detectar problemas éticos quando estes surgirem. — DEREK BOK, O "RELATÓRIO PRESIDENCIAL" DA UNIVERSIDADE DE HARVARD, 1986-1987 Se o [Presidente Bok] tivesse dado uma voltinha pelo campus de Harvard, indo até o Emerson Hall, e se tivesse consultado alguns dos pensadores mais influentes de nossa nação, ele teria descoberto que, no momento, não há um conhecimento moral reconhecido no qual fundamentar seus projetos a fim de favorecer o desenvolvimento moral. No momento, para o professor, não há conclusão moral alguma sobre comportamento ou traços de caráter na qual seja possível basear a nota de um estudante - nem mesmo algo relacionado ao que é mais precioso para os educadores, a imparcialidade e a diversidade. — DALLAS WILLARD, THE DIVINE CONSPIRACY [A CONSPIRAÇÃO DIVINA] Olhando, rapidamente, para uma típica antologia de um curso de ética de uma faculdade, esta revela que a maior parte das leituras de um estudante está direcionada para analisar e criticar as diretrizes sobre assuntos como penalidade, pesquisa de re-agrupação do DNA, aborto e eutanásia... inevitavelmente, o estudante receberá a idéia de que aplicar a ética à vida moderna é, principalmente, uma questão de ser contra ou a favor de alguma diretriz social. — CHRISTINA SOMMERS, WHERE HAVE ALL THE GOOD DEEDS GONE? [ONDE FORAM PARAR AS BOAS AÇÕES?] Fiz todos esses cursos de filosofia e falamos sobre o que é certo, o que é importante e o que é bom. Bem, como se ensina as pessoas a ser boas? Qual o sentido de saber o que é bom, se esse conhecimento não tiver prosseguimento com a tentativa de ser uma boa pessoa?" — COMENTÁRIO DE UM ESTUDANTE AO PROFESSOR ROBERT COLE, AO ABANDONAR OS ESTUDOS EM HARVARD
Essas deficiências na discussão corrente da ética são reforçadas por dois pontos cegos. Um desses pontos é a ausência de uma análise séria do motivo de termos uma crise ética em primeiro lugar. Direciona-se muita atenção aos sintomas, não às causas. Por exemplo, os Estados Unidos têm uma perspectiva realista sobre o mal que se encontra incrustado em seus controles e balanços
13 constitucionais, no entanto, há pouca percepção de que essa perspectiva é proveniente da convicção de seus fundadores. Contudo, o livro O que aconteceu com o pecado?, do psicólogo Karl Menninger, 1973, não foi somente um título assustador, mas uma marca comparativa racional com o fim de aferir o deslize ocorrido da posição dos fundadores até a publicação do livro. Ele argumenta que a noção do mal havia deixado de ser "pecado", definido teologicamente, para ser "crime", definido legalmente, e se tornar "doença", definido somente em categorias psicológicas. Na análise mais recente do Senador Daniel Patrick Moynihan, os estado-unidenses têm "rebaixado a definição de desvio comportamental". O que era "depravado" cinqüenta anos atrás é, hoje em dia, apenas "sentir-se importante e agir como tal". PECADO OU FALTA DE BOM GOSTO? Um chinês educado, simplesmente, recusaria ser oprimido, continuamente, pelo 'pecado'. O conceito 'pecado' é comumente substituído por variantes convencionais, ou feudais, ou formuladas esteticamente como indecente' ou 'sem bom gosto'. Isso porque, em todo lugar, intelectuais distintos consideram, com freqüência, esse conceito 'pecado' como chocante e de pouca dignidade. — MAX WEBER, THE RELIGION OF CHINA [A RELIGIÃO DA CHINA]
A crise moral no Ocidente (problemas similares existem em outras nações modernas) pode ser mais bem sondada com a ajuda de três termos - "permissivo", "transgressivo" e "remissivo". O primeiro termo foi capturado por Dostoievski, cem anos atrás, em seu famoso refrão em Os irmãos Karamázovi: Se Deus estivesse morto e não houvesse vida futura, "nada mais seria imoral, e tudo seria permitido". O segundo termo, transgressivo, achou sua expressão clássica no lema pintado na parede da Sorbonne, em Paris, em 1968: "E proibido proibir" - mais tarde popularizado pelo jogador de basquete, Dennis Rodman, como: "tão ruim quanto eu queira ser", e no Brasil com a música de Caetano Veloso também chamada de "E proibido proibir". O terceiro termo, remissivo, surge, repetidamente, quando pessoas tentam descrever a crise moral, ao buscar termos que capturem sua natureza esmagadora do tipo avalanche. A sociedade, dizem eles, está sendo "carcomida", "desfiada", "desgastada" e assim por diante. Ou, como um líder político expressou durante os escândalos que se insinuavam em torno da presidência de Clinton, "É possível parar uma enchente colocando o dedo no dique, mas como se pode parar uma difamação?". REGRAS SÃO PARA TRANSGREDIR O homem é o único animal que cora de vergonha. Ou, pelo menos, deveria. — MARK TWAIN, PUDD'NHEAD WILSON'S NEW CALENDAR [O NOVO CALENDÁRIO OE PUDD'NHEAD WILSON] Já não são as repressões que nos preocupam, e sim as permissões. — PHILIP RIEFF, UNIVERSIDADE DA PENSILVÃNIA Madonna me disse para quebrar todas as regras possíveis e imaginárias e, quando essa parte estivesse pronta, deveria fazer outras regras e quebrá-las. — O COREÓGRAFO DE MADONNA, DEPOIS DE SUA EXCURSÃO PELO MUNDO
O outro ponto cego na discussão da ética corrente é a ignorância da tradição das "virtudes e dos vícios" - a mais profunda e influente tradição ética do Ocidente. Como o historiador W E. H. Lecky escreveu: os ensinamentos de Jesus são "uma agência que todos os homens devem, agora, admitir, por bem ou por mal, como a alavanca moral mais poderosa que jamais se aplicou às questões humanas". Essa tradição possui uma visão elevada da natureza humana e uma perspectiva profundamente realista da presença e do poder do mal. Antes de perguntar: "Que tipo de atitude devo ter?", pergunte: "Que tipo de pessoa preciso ser?". Dessa perspectiva, ser moral não é meramente aprender o que é certo. Até mesmo os psicopatas sabem o que é certo e o que é errado, mas, por causa da falta básica de solidariedade para com a humanidade, eles realmente não se importam em praticar o bem. Nessa tradição, ser moral significa traduzir o conhecimento do certo e errado em caráter e ação consistente. E, novamente, uma questão de se tornar uma boa pessoa, não somente conhecer o que é bom. PROFISSIONAIS DE "BOAS OBRAS" As boas obras são entregues a especialistas; os atos, que constituem a moralidade social de nossos dias, são executados por profissionais pagos de grandes representações públicas. Ajudar o necessitado, o enfermo e o idoso tomaram-se atividades
14 cuja escala e caráter deixam pouco espaço para a 'pessoa' virtuosa. Nossos ancestrais, em seus esforços beneficentes, idiossincrásicos, assemelham-se a amadores morais... Grande quantidade de pessoas, especialmente jovens e instruídas, sentem ter uma identidade moral adequada somente por defenderem perspectivas 'corretas' nas questões como ecologia, feminismo, socialismo e energia nuclear. Isso devido ao fato de a moralidade sublimar-se em ideologia. As pessoas podem viver vidas mesquinhas e comodistas, obcecadas pela saúde física, confortos materiais e crescimento pessoal, sentindo, mesmo assim, uma moral superior àqueles que trabalham ativamente com o fim de ajudar o necessitado, pois acham que estes são, ideologicamente, falhos. — CHRISTINA SOMMERS, WHERE HAVEALL THE GOOD DEEDS GONE? [ONDE FORAM PARAR AS BOAS AÇÕES?] Os voluntários estão aí, mas é preciso oferecer-lhes alguma coisa... benefícios profissionais, e eles, comprovação de que tem experiência. — GREATER BOSTON RED CROSS
Ironicamente, a perspectiva realista do mal humano, dessa tradição, é uma declaração de esperança, não de desespero. O pecado não é somente a verdade bíblica mais verificável, mas o precursor urgente para a necessidade e milagre da redenção. Aqueles que possuem uma visão superficial do pecado, do mal e do vício correm um sério perigo de sofrer de arrogância intelectual. Conforme expresso por Henry Fairlie, jornalista de Washington: "Tenho refletido, há muito tempo, e visto que as explicações psicológicas do capricho de nossa conduta e as explicações sociológicas dos males de nossas sociedades chegaram bem próximo de um beco sem saída... E chegaram a esse impasse porque se esquivam do problema do mal". Se não precisamos considerar seriamente a inclinação do homem para o mal, porque todo esse ato de consertar a nós mesmos e a nossas sociedades, ao longo dos séculos, foi de tão pouco proveito? Por que o século de maior conhecimento, mais esclarecido e mais avançado de todos - o século XX é também o mais sombrio e o mais brutal? Será que não estamos, na verdade, regredindo? Como um presidente que anunciou que sua administração seria "a mais ética da história estadounidense", pôde acabar por ser o mais corrupto e o mais corrompido? Para pessoas mergulhadas na tradição de virtudes-e-vícios, tais questões não são fúteis nem surpreendentes. Cada geração tem sua própria classificação dos pecados, seja ela consciente seja inconsciente - os vitorianos, por exemplo, viam a preguiça e a libertinagem de forma exacerbada, enquanto a inveja e a avareza eram subestimadas. Mas uma das características que define nossa geração é a minimização de qualquer noção de pecado. Hoje em dia, o conceito de "virtude", ou é mesquinhamente limitado (quase um sinônimo de castidade) ou piedosamente oco, e o conceito de "vício" possui um ar obsoleto ou levemente ridículo — se não fosse por um número crescente de pessoas sem capacidade de controlar seus impulsos físicos e psicológicos. Como disse um psicólogo: o florescer de grupos de auto-ajuda não é somente uma evidência do afastamento da atual tendência da psicologia, mas um testemunho não intencional à preeminência dos "vícios", visto que qualquer vício concebível tem suas respectivas reuniões secretas para freqüentar. Em contraste à tradição de virtudes-e-vícios, a cultura moderna nos entrega uma licença para comer qualquer coisa que desejarmos, dormir com quem deseja fazer isso, rebelar-se contra qualquer coisa que nos frustre, atacar qualquer pessoa que nos tenha prejudicado e cruzar qualquer limite legal ou ético que não seja passívehde ser descoberto. No entanto, a resultante perda de domínio próprio é a parte crítica da crise cultural do Ocidente. E, também, uma lembrança urgente da importância de se ter um bom entendimento sobre as virtudes e os vícios. O CAMINHO MAIS BATIDO A garota fala dezoito línguas, mas é incapaz de dizer: 'Não', em nenhuma delas. — DOROTHY PARKER Não me deixe cair em tentação; eu sei cair sozinha. — RITA MAE BROWN, NO FILME GHOST [DO OUTRO LADO DA VIDA] Aqui está uma regra que recomendo: nunca pratique dois vícios ao mesmo tempo. — TALLULA BANKHEAD O homem não deveria viver sem ética; é melhor ter maus costumes que não ter nenhum.
15 — MARK TWAIN, NOTEBOOK [ANOTAÇÕES]
E desnecessário dizer que uma coleção de textos sobre virtudes e vícios tem suas próprias armadilhas. Uma delas é que ética é mais que simplesmente conhecer as virtudes básicas e evitar os vícios mortais. (The New York Times Book Review e um programa especial da M TV trataram dos sete pecados capitais, mas nem um deles o fez com profundidade e realismo.) Um grama de virtude vale mais que toneladas de palestras sofisticadas sobre virtude. Uma segunda armadilha é o perigo oculto do legalismo e do moralismo -em que "legalismo" significa reduzir a vida a regulamentos externos de comportamento, e o "moralismo", a remoção da graça de uma questão e a redução das várias dimensões da vida a uma: a moralidade. A terceira armadilha é reduzir a vida virtuosa ao que Dallas Willard, competentemente, chama de "administração do pecado" - para os liberais, isso significa somente a remoção de males sociais; e, para os conservadores, somente o perdão dos pecados individuais. Ao contrário, a vida virtuosa é uma questão que diz respeito à capacidade de as pessoas serem boas, em vez de meramente conversar sobre as virtudes. Após afirmar isso, vemos que para o renascimento da "boa sociedade", do qual tantas pessoas falam, é fundamental o retorno à abandonada tradição clássica das virtudes e dos vícios. (No mínimo, a "boa sociedade" é uma sociedade equilibrada e favorável à bondade de seus cidadãos.) Assim, lutar com a dinâmica das virtudes e dos vícios é importante quer para qualquer sociedade quer para uma sondagem pessoal de cada um de nós. Este livro deveria, talvez, conter uma advertência de um chefe da saúde pública: "Esta matéria pode ser prejudicial à complacência pessoal e à auto-satisfação". Mas, embora seja desafiador, o efeito malha fina só pode ser proveitoso. E preciso conhecer as virtudes fundamentais e os vícios mortais, pois estes provêem diretrizes morais essenciais para nós como pessoas modernas. Em uma época de extrema confusão moral; um entendimento claro das virtudes e dos vícios nos ajuda a navegar através do caos. O exercício moral pode ser desafiador, como também o exercício físico: não há bônus sem ônus.
Por que "pecados" e por que "sete"? Restaurantes apresentam seu prato do dia. Programas de entrevistas têm seu tópico do dia. E, o Washington Post afirma: Washington, D.C. tem seu "pecado mortal do dia". Este vive mudando de foco... de babás ilegais para o fumar maconha seguido pela inadimplência. E, em cada caso, o que era considerado formalmente um pecado leve, repentinamente chega a ser uma ofensa capital, que volta, rapidamente, a ser algo que nem mesmo causa espanto. Essa perspectiva superficial e atenção momentânea estão há anos-luz da tradição clássica das virtudes e dos vícios. A simples idéia de que as virtudes são "fundamentais" e os vícios "mortais", "capitais" ou "cardinais" expressa a convicção de que essas virtudes e esses vícios específicos são a "cabeça" (caput em Latim), a "fonte" ou a "raiz" de todas as formas de bondade e maldade humanas. QUASE, MAS NÃO TOTALMENTE Política sem princípios, riqueza sem trabalho, comércio sem moralidade, prazeres sem consciência, educação sem caráter, ciência sem humanidade, culto sem sacrifício. — VERSÃO DE GANDHI SOBRE os SETE PECADOS CAPITAIS
A origem da tradição da virtude e do vício vem de duas fontes principais: os filósofos gregos e romanos e o Antigo e o Novo Testamentos. Após a convergência dessas duas correntes de entendimento moral, a concordância geral era de que as virtudes e os vícios seriam os traços característicos mais importantes, ou as tendências humanas universais, dos quais resultam toda bondade e maldade. Assim, a tradição virtude-e-vício contribuiu, maciçamente, tanto na teoria como na prática, para a definição ocidental do que significa ser humano. REVELAÇÕES A prosperidade desmascara os vícios; a adversidade revela as virtudes. — DlDEROT
16 As seguintes leituras confirmam a vitalidade desse tema na literatura e na arte, como também na filosofia. A representação literária dos vícios alcançou seu auge em A divina comédia de Dante. A obra de Dante, longe de ser legalista ou moralista, é uma obra de grande poesia e drama, retratando os vícios com imagens vividas e perturbadoras. Na jornada atroz pelo inferno, pecadores aparecem e desaparecem mergulhados em rios de excremento e de sangue, são metamorfoseados em árvores e flutuam em um lago de gelo, com o rosto inchado voltado para cima. Nus e atormentados, alguns são esmagados por cobras, outros hipnotizados e estripados. Como o Purgatório acrescenta, seguindo as observações famosas de Agostinho de que "o pecado é o castigo do pecado", e, portanto, o julgamento é a conseqüência da escolha estabelecida, Dante retrata a todos os que se encontram no inferno recebendo um castigo específico, de acordo com seu pecado específico. Contrário ao esperado por certas pessoas, os gregos e os romanos enfatizavam mais as virtudes, e os judeus e cristãos, mais os vícios. Na verdade, os judeus viam os "vícios" e os "pecados" como uma coisa única. As duas palavras, permutáveis, são radicais. Assim, os vícios nunca serão pecadinhos ou faltas afetuosamente desculpáveis. São, verdadeiramente, mortais. Nenhuma formulação moderna, para capturar tanto a magnificência da existência humana quanto sua natureza fatalmente defeituosa com respeito à humanidade, pode ser comparada à tradição, à virtude e ao vício. Perspectivas modernas, no entanto, tendem a ser irreverentes para com o vício, reduzindo sua gravidade a um bocejo ou a um riso escarnecedor. No comentário a seguir, feito ao apresentar o livro London Times [Tempos londrinos], sobre os sete pecados capitais, Ian Fleming, criador de James Bond, ilustra esta eliminação. NADA DE SETE PECADOS CAPITAIS PARA 007 Para ser preciso e verdadeiro, o exame crítico desses famosos pecados, feito por um dos cérebros mais perspicazes de nossos dias, levou-me à conclusão terrível de que, de fato, todos esses pecados antigos... estão realmente muito próximos às virtudes. Sem esses pecados, a vida seria insípida e vazia, e, sem uma quantia saudável de muitos deles em nossa composição, seríamos covardes ociosos! — IAN FLEMING
Para os gregos, a virtude era aquela excelência que fazia uma pessoa executar bem seu propósito. Por conseguinte, a virtude do olho é ver as coisas com clareza; a virtude da faca, ser afiada e cortar bem; a virtude do cavalo, cavalgar energicamente, e assim por diante. O vício era, basicamente, uma questão de excesso ou deficiência, faltando-lhe o equilíbrio desejável ou a "moderação", que é a virtude. Aristóteles, por exemplo, elaborou detalhadamente os excessos, os meios (virtudes) e as deficiências vistos nas atividades mais comuns e mais importantes da vida. Essas categorias, típicas do entendimento greco-romano, estão resumidas na tabela abaixo. ATIVIDADE
VÍCIO (EXCESSIVO)
VIRTUDE (INTERMEDIÁRIO)
VÍCIO (DEFICITÁRIO)
ENCARAR A MORTE
TEMOR DEMASIADO (COVARDIA)
TEMOR NA MEDIDA CERTA (CORAGEM)
MUITO POUCO MEDO (IMPRUDÊNCIA)
AÇÕES CORPORAIS
DEVASSIDÃO
TEMPERANÇA
SEM PALAVRA PARA ESSE TIPO DE ESTADO: PODERIA SER CHAMADO DE "INSENSIBILIDADE"
DAR DINHEIRO
ESBANJAMENTO
LIBERALIDADE
MESQUINHEZ
DAR EM LARGA ESCALA
VULGARIDADE
MAGNIFICÊNCIA
AVAREZA
(COMER, BEBER, SEXO)
17 EXIGIR RESPEITO
VAIDADE
ORGULHO
HUMILDADE
RELACIONAMENTO SOCIAL
ADULAÇÃO
CORDIALIDADE
ABORRECIMENTO
HONRA CORRESPONDENTE
INJUSTIÇA
JUSTIÇA
INJUSTIÇA
RETRIBUIÇÃO PELA INJUSTIÇA
INJUSTIÇA
JUSTIÇA
INJUSTIÇA
A classificação cristã dos sete pecados capitais é mais profunda e mais dinâmica. A lista, por ter seu início no movimento monástico cristão no deserto do Egito, era, originalmente, uma lista de vícios que, constantemente, afligiam as comunidades monásticas. Mas, mesmo ali, era-lhe dada uma vitalidade dinâmica por estarem convencidos de que o Diabo é a fonte última da tentação. No século IV, o monge Evagrius registrou oito pecados capitais: a gula, a libertinagem, a avareza, a melancolia, a ira, a letargia espiritual, a vanglória e o orgulho. John Cassian de Marseilles, discípulo de Evagrius, levou a relação ao Ocidente onde esta recebeu sua formulação clássica pelo papa Gregório Magno, no século VI. Gregório mudou, não somente a lista (que se tornou a forma clássica que seguimos neste currículo), mas também tornou o orgulho uma categoria em si mesmo e redefiniu a posição dos vícios. Dali por diante, os sete pecados capitais não foram restritos ávida monástica. Passaram a ser compreendidos como perigos morais da alma em meio à vida diária — estes só poderão ser descobertos sondando o mais profundo do coração humano. Agostinho viu os pecados como tentativas arrogantes cuja finalidade era imitar os atributos de Deus - avareza gracejando da possessão divina de todas as coisas, a raiva parodiando a ira do Senhor e assim por diante. Além disso, como Chaucer Parson afirma em The Canterbury Tales [Os contos de Canter-bury], os sete pecados capitais estão "entrelaçados". São "o tronco da árvore de onde os outros se ramificam". A lista dos sete pecados capitais não abrange todos os pecados que podemos enumerar, mas ela apresenta os pecados capitais fundamentais, integrados, os quais se encontram no centro de nossa natureza humana e dos quais se originam todos os outros pecados. ARTE NÃO É VIDA Os vícios que produzem bom teatro são intoleráveis na vida, e a banalidade da bondade no palco não é argumento contra as virtudes. — SIMONE WEIL
Há ainda outros pontos introdutórios importantes. Em primeiro lugar, a perspectiva cristã considera o impulso do amor como estando exatamente no centro de todas as virtudes e vícios. Enquanto as virtudes se derivam da disposição apropriada do amor, os vícios se derivam de um amor doentio. A raiva, por exemplo, é o amor deturpado, isto é, o amor dirigido a um objeto respeitável (ele mesmo), mas de maneira ilusória (por meio da raiva para com outra pessoa). Similarmente, a preguiça é o pecado proveniente de um amor falho, assim como a avareza e a glutonaria são pecados de um amor excessivo. Em segundo lugar, há um acordo comum sobre as categorias gerais dos sete vícios. Os cinco primeiros vícios (orgulho, inveja, raiva, preguiça e avareza) são diferentes dos dois últimos (glutonaria e libertinagem). Os primeiros não são pecados da carne, mas do espírito e são descritos, muitas vezes, como pecados "frios", mas "respeitáveis". Já os últimos são, obviamente, pecados da carne e, portanto, "quentes", mas "desonrosos". Em terceiro lugar, não há um paralelo preciso - além de sua quantidade -entre os sete vícios mortais e as sete virtudes cardinais (prudência, constância, temperança, justiça, fé, esperança e amor). As virtudes, na maioria dos casos, não são o oposto dos vícios.
18 Assim, este currículo seguirá um caminho de interpretação menos conhecido. Focalizaremos, em profundidade, os sete vícios mortais e, ao fazer isso, não os contrastaremos com as virtudes tradicionais, e sim com as bem-aventuranças de Jesus, apresentadas no Sermão do Monte. Todavia, esse caminho, embora seja menos conhecido, tem sido bem trilhado. Comentaristas clássicos, como Agostinho, e comentaristas modernos, como Peter Kreeft, argumentam que as bem-aventuranças são "as virtudes do Reino" e, grandiosamente, opostas aos vícios. Em alguns casos, o contraste é óbvio (orgulho versus pobreza de espírito ou humildade). Em outros casos, esse contraste não é tão óbvio assim, mas, ao fazer um exame mais profundo, ele se torna igualmente esclarecedor. Peter Kreeft, professor de filosofia no Boston College, expõe os contrastes na tabela a seguir: VÍCIOS: SETE PECADOS CAPITAIS
VIRTUDES: BEM-AVENTURANÇAS
ORGULHO
POBREZA DE ESPIRITO
AUTOCONCENTRAÇÃO, AUTODISTINÇÃO
HUMILDADE, ABNEGAÇÃO
INVEJA
LAMENTO
RESSENTIMENTOS PARA COM DOS A FELICIDADE DOS OUTROS
SOLIDARIEDADE COM A TRISTEZA OUTROS
RAIVA
MANSIDÃO
O DESEJO DE DANO E DESTRUIÇÃO PARA OS OUTROS
A RECUSA DE PREJUDICAR A OUTROS E O DESEJO DE PACIFICAÇÃO
PREGUIÇA
FOME E SEDE DE JUSTIÇA
LETARGIA PARA COM DEUS, O BEM E O IDEAL
PAIXÃO E PROCURA POR DEUS, PELO BEM E PELO IDEAL
AVAREZA
MISERICÓRDIA
PODER CENTRIFUGO PARA AGARRAR E SE APEGAR AOS BENS DO MUNDO
A EXTENSÃO CENTRlPETA PARA COMPARTILHAR COM OUTROS, ATÉ MESMO OS QUE NÃO MERECEM
GLUTONARIA
OS PERSEGUIDOS
O IMPULSO DE CONSUMIR QUANTIDADE EXAGERADA DE COISAS MATERIAIS
A DEDICAÇÃO CAPAZ DE SUPERAR PRIVAÇÕES ATÉ MESMO DE NECESSIDADES BÁSICAS
LIBERTINAGEM
PUREZA DE CORAÇÃO
O DESEJO DESORDENADO E DEVASSO POR QUALQUER CORPO ATRAENTE
O DESEJO VERDADEIRO POR DEUS QUE CENTRALIZA E UNIFICA A ALMA
Finalmente, alinhado à advertência do chefe da saúde pública, visto anteriormente, deve ser dito que qualquer pessoa que luta com os sete pecados capitais pode se encontrar encarando um momento de verdade. Uma conversação sobre os vícios é, geralmente, iniciada brincando com pecados específicos, especialmente a glutonaria e a libertinagem, confrontando, finalmente, a idéia do próprio pecado — um empreendimento muito mais arriscado. Focaliza-se o mal quando o vemos nos outros, mas este entra em um foco penetrante e terrível quando o percebemos em nós mesmos. A leitura seguinte sugere que, se realmente estamos desejosos de entender o mal, o melhor lugar para começar, porém o mais difícil, é em nosso próprio coração. AOS OLHOS DO ESPECTADOR
19 Não há nada que precise de mais reforma que os hábitos dos outros. — MARK TWAIN, PUDD'NHEAD WILSON'S NEW CALENDAR [O NOVO CALENDÁRIO DE PUDD'NHEAD WILSON]
KAY HAUGAARD O ensaio 'The Lottery Revisited [A loteria revisitada], escrito por Kay Haugaard, professora de escrita criativa no Sul da Califórnia, foi publicado primeiramente no The Chronicle of Higher Education em junho de 1997 sob o título Suspending Moral Judgment [Suspendendo o julgamento moral]. Esse relato fascinante sobre o tempo em que se ensinava escrita criativa usando exemplos como a breve crônica de Shirley Jackson, The Lottery [A loteria], impressionou muitos leitores e despertou inúmeras discussões. The Lottery [A loteria] apareceu primeiramente no The New Yorker, em 1948. Desde aquela época foi lida e discutida em inúmeras classes do ensino médio e de universidades. Há cinqüenta anos, o ápice chocante da história causou uma tempestade de insultos escandalosos, e, em razão dessa reação à crônica, o The New Yorker foi inundado com sacos abarrotados de correspondência. Nos anos 90, ao contrário, o surgimento do relativismo, da tolerância, do cinismo, do multiculturalismo radical e da moralidade sem embasamento, pergunta-se como é que alguém pode julgar qualquer coisa e — pior ainda — condená-la? Usar o ensaio de Kay Haugaard como parâmetro para medir onde nos encontramos está bem mais difícil em nossa sociedade moderna. Especialmente, várias coisas que as gerações anteriores acreditavam que eram vitais para uma sociedade livre, entre elas se encontram a fé, o caráter, a verdade e o certo e o errado. Ao estudar The Lottery [A loteria], as mudanças nas respostas de diferentes gerações de estudantes de Haugaard nos mostram mais sobre nossa condição moral que as inúmeras pesquisas de opiniões públicas e de discursos presidenciais. Somos deixados com estas perguntas assustadoras: será que realmente hoje é "proibido proibir"?; será que nosso décimo primeiro mandamento é: "não julgarás"? O seguinte fragmento do The Lottery [A loteria] começa no segundo estágio da loteria. Todos os habitantes do vilarejo já haviam tirado seus bilhetes, e a loteria se reduziu à família Hutchinson: Bill e Tessie, Nancy, Bill, Jr., e o pequeno Dave. Os membros da família devem fazer uma nova tirada, e Mr. Graves deveria ajudar o pequeno Dave a abrir o seu papel: "Tudo bem", disse Mr. Summers, "Abram seus papeis. E Harry, você abre o do pequeno Dave". Mr. Grove abriu o pedaço de papel e, ao mostrá-lo, houve um suspiro geral na multidão, pois todos puderam ver que estava em branco. Nancy e Bill Jr. abriram os seus papéis ao mesmo tempo, e ambos irradiaram e sorriram, virando-se para o público e levantando aqueles papéis acima de suas cabeças... "Tessie", disse Mr. Summers. Houve uma pausa e Mr. Summers olhou para Bill Hutchinson, e Bill abriu o seu papei e o mostrou. Estava em branco. "É a Tessie", disse Mr. Summers, com voz abafada. "Bill, mostre o papel dela". Bill Hutchinson foi até sua esposa e tirou seu papel a força. Este continha uma mancha preta, mancha feita por Mr. Summers na noite anterior, com um lápis rústico, no escritório da companhia de carvão. Bill Hutchinson o levantou provocando um tumulto na multidão. Mr. Summers disse a seguir: "Muito bem, minha gente, terminemos com isto, rapidamente". Embora as pessoas do vilarejo tivessem esquecido o ritual e perdido a caixa preta original, ainda se lembravam de como usar as pedras. A pilha de pedras que os rapazes haviam feito na noite anterior estava pronta; havia pedras no chão juntamente com os pedaços de papel esvoaçantes que saíram da caixa. Mrs. Delacroix selecionou uma pedra tão grande que era preciso segurá-la com as duas mãos. Ela se virou para Mrs. Dunbar e disse: "Vamos, apresse-se". Mrs. Dunbar tinha pedras pequenas em ambas as mãos, e disse, ofegando: "Não consigo correr, Você precisa ir primeiro, eu lhe alcanço". As crianças já tinham pedras nas mãos, e alguém deu ao pequeno Dave Hutchinson algumas pedrinhas. Tessie Hutchinson estava no centro de uma área agora evacuada e levantava as mãos em desespero, enquanto as pessoas do vilarejo se dirigiam a ela. "Não é justo", disse ela. Uma pedra a atingiu na parte lateral da cabeça. O Velho Warner dizia: "Vamos, vamos, todos". Steve Adams estava na frente da multidão do vilarejo, ao lado de Mrs. Graves. "Não é justo, não é correto", gritou Mrs. Hutchinson, mas já estavam em cima dela. THE LOTTERY [A LOTERIA] POR SHIRLEY JACKSON. COPYRIGHT © 1948,1949 POR SHIRLEY JACKSON, E COPYRIGHT RENOVADO © POR LAURENCE HYMAN, MRS. SARAH WEBSTER, E MRS. JOANNE SCHNURER. REPRODUZIDO COM PERMISSÃO DE FARRAR, STRAUSS & GIROUX INC.
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'A loteria' revisitada Mais uma vez, ali estava eu, indo ensinar a curta narrativa de Shirley Jackson, The Lottery [A loteria]. Suspirei ao reunir meus livros para dar minha aula noturna sobre escrita criativa. Já havia ensinado essa história inúmeras vezes nas duas últimas décadas. Durante os vinte e quatro anos de ensino sobre escrita criativa, descobri que as várias analogias por mim usadas, como também as histórias feitas pelos próprios estudantes durante o semestre, refletiam mudanças nacionais nos costumes e nas atitudes sociais. Quando comecei a lecionar, em 1970, meus estudantes - que variavam entre estudantes de 18 anos, poucos deles, e um estudante ocasional de 80 anos — ainda se chocavam, manifestando um sorriso amarelo e olhares de reprovação, ao ouvir palavras impróprias, quando estas apareciam em histórias publicadas, lidas em classe ou em trabalhos de estudantes. Os estudantes mais novos (principalmente os do sexo masculino) escreviam peças a fim de causar comoção e se deleitavam no uso abundante de gíria vulgar e de detalhes de festas, com narcóticos e encontros sexuais. Lembrando o meu comprometimento com a liberdade de palavra, eu me robustecia e lia em voz alta, em classe, todas as histórias escritas pelos estudantes. Lia essas histórias, mesmo sentindo o calor subindo às minhas faces. Alguns anos mais tarde, eu comecei a receber enchentes de histórias intensas, escritas por veteranos vietnamitas descrendo matanças, pessoas aleijadas, pessoas sendo feridas e mutiladas, tendo amigos morrendo em seu regaço e encontros sexuais com prostitutas vietnamitas. Com o passar dos anos, os estudantes pareciam começar a se cansar dessas imoralidades. Se uma história contivesse uma grande quantidade de grosseria, suspiravam e mostravam que esta estava, excessivamente, sem graça. A guerra do Vietnã começou a ficar insípida e, pela primeira vez, começamos a ler narrativas de estudantes com inclinações homossexuais e seus encontros. No começo, também essas histórias chocavam a classe. Os estudantes não condenavam as histórias, mas seus olhos se escancaravam em visível perplexidade. Um estudante diria: "Será que entendi direito? Os personagens eram dois homens, não era para ser um homem e uma mulher?". Assegurado de que aquela interpretação era a correta, o estudante, geralmente, não respondia, mas se recostava com uma expressão séria e de reflexão... Juntamente com as histórias dos estudantes, antologias e antologias refletiam as preocupações sociais do período de sua publicação: assuntos sobre a liberdade de expressão, os direitos civis, a liberação sexual, o feminismo e, mais recentemente, o multiculturalismo. Mas toda antologia, sem falta, incluía The Lottery [A loteria], e os estudantes, muitas vezes, a escolhiam para a discussão. Estudantes que nunca haviam lido essa história ficavam sempre, absolutamente, atordoados por ela - como se, pessoalmente, comovidos com o ritual da primeira pedra. Posso ainda ver, nitidamente, a expressão na face deles, ao discutirmos a narrativa: olhos escancarados, sérios e perturbados. Faziam comentários, como: "Pensei que era um tipo de história comum quando de repente...! Nunca esperava por isso...". Os estudantes que já haviam lido a narrativa pareciam mais calmos, mas admitiam que, ao ler o conto pela primeira vez, este os havia perturbado. Todos admitiam que era assustador, e alguém inevitavelmente diria: "Os personagens pareciam pessoas normais - como nós!". Apesar das mudanças presenciadas ao longo dos anos, as mudanças nas antologias e nos escritos dos estudantes, a mensagem de Jackson, sobre a conformação cega, sempre falou à consciência de meus estudantes a respeito do certo e do errado, Jackson conseguira fazer a colocação de um ponto muito importante e poderoso... Naquela noite, pensei comigo mesma ser bem mais divertido discutir uma história que não tivesse lido antes. "Então, o que acharam da The Lottery [A loteria] ?" Perguntei ao me assentar à frente da classe. Beth, uma mulher esbelta e elegante, em seus quarenta anos, arregaçou as mangas de seu suéter bastante folgado, enquanto falava: "Fiquei um tanto surpresa de que isso pudesse estar acontecendo aqui nos Estados Unidos, como se fosse agora!".
21 "Sim, é certamente mais chocante imaginar os personagens como pessoas conhecidas ou nós mesmos, não é assim?", disse eu. "E quanto a você Jeanette?", perguntei a uma menina rechonchuda de dezenove anos, cujos cachos pintados de preto moldavam seu rosto de boneca amarelo-claro. Ela respondeu: "Achei um tanto enfadonho até que li o final. O final foi legal!". "Legal?", perguntei. "O que você quer dizer com, legal?" "Legal! Gostei." "Ah, sim. Suponho que seja aquele legal como o 'legal' de Stephen King." Virei-me para Edward, rapaz bem vestido, com paletó que havia usado naquele dia em seu trabalho como professor de ensino médio. "Qual foi a sua reação à narrativa, Edward?" Balançava a perna que se encontrava cruzada e levantou os olhos com uma expressão meio enfadonha. "Foi normal. Não achei lá essa coisa toda." Mas, pressionei: "Que tal o fim da narrativa em que o vilarejo todo se vira para um de seus conterrâneos e mata a pedradas aquela mulher? Já havia lido a história?". Franziu a testa, mas não quis se mostrar impressionado. "Não, ainda não havia lido. Tudo bem, foi razoável". Não pude acreditar no que estava ouvindo. Todos pareciam entediados. Desistindo de Edward que nunca havia sido bom em discussões, virei-me para Richard, professor do ensino fundamental, um quarentão. "Richard, por que essas pessoas realizam esse tipo de ritual? Esse sacrifício humano?". Ele suspirou profundamente: "Bem, concordo com Beth, é bastante surpreendente que isso aconteça, é como se fosse hoje". "Mas por que fazem isto?", insisti. "Hum, bem, isso não está muito claro." Outra pessoa tomou a palavra: "Para a colheita. Fazem isso para ter uma boa safra". "Essa é uma das razões dada por eles", respondi feliz em ver que alguém havia achado uma pista no texto. "E essa é uma justificativa suficiente para tal? Algum outro motivo?". "Simplesmente o fazem, é um ritual", disse Maria. "Está certa. Eles o fazem porque sempre o fizeram", disse eu. "Perguntei-me se havia algum motivo religioso por trás de tudo isto", disse Beth. "Se fazia parte de algo muito antigo. Não parece ser de cunho religioso". "Faria diferença se ela fizesse parte de um ritual religioso?" Beth franziu a testa e olhou para o teto. "Na narrativa não se faz menção à religião, mas parece-me estar relacionada com tradições religiosas de sacrifícios humanos com a intenção de ver uma colheita mais abundante", disse eu. Tomei alguns momentos para conversar sobre The Golden Bough [O ramo dourado] do Sir James Frazer, que descreve várias culturas com esse tipo de tradição. "Bem, se foi algo assim...", respondeu Beth. "O que você quer dizer. Isso tornaria o incidente aceitável?" "Você está me perguntando se acredito em sacrifício humano?", respondeu Beth pensativa, como que considerando seriamente todos os aspectos da questão. Consegui afirmar: "Isso mesmo. O que você pensa. O autor aprovou ou desaprovou este ritual". Estava estupefata: Essa era uma senhora que havia escrito, com muita paixão, sobre como salvar as baleias, sobre sua preocupação com a floresta tropical, sobre seu resgate e carinho para com os cies errantes. "Realmente não sei. Se fosse uma religião muito antiga..."
22 Por um momento não pude nem mesmo falar. Essa senhora era incapaz de, simplesmente, afirmar que era contra o sacrifício humano. Alguns anos atrás, minha classe de alunos estaria com um sorriso amarelo, nervoso, com a sugestão. Essa classe estava considerando esse fato muito tranqüilamente. Richard comentou: "Há estudos sobre certas culturas mostrando que, quando não há morticínio por um tempo prolongado, as pessoas parecem... ter necessidade para isso..." Permaneci em estado de choque ao escutar Richard, descrevendo a teoria psicológica sobre a qual havia lido, teorias que pareciam aderir à função social uma certa quantidade de derramamento de sangue. "Parece ser uma necessidade", concluiu em tom indiferente e módico. Foi demais. Sempre havia tentado excluir meus sentimentos pessoais da sala de aula, com o fim de permitir que os estudantes descobrissem o tema da história e seu significado, tanto quanto possível. Mas havia chegado ao meu limite. Argumentei: "Certamente há precedentes para o mesmo. Contudo, será que um precedente torna algo necessariamente correto? Penso que o autor desaprova veementemente esse ritual e está tentando causar um impacto a fim de que reexaminemos, reiteradamente, nossas atividades para ver se ainda são justificáveis ou funcionais". Acho que me demorei demais na explicação. "Os Astecas acreditavam que o sol não se levantaria se não alimentassem o deus beija-flor, Huichtlipochtli, com sangue humano. Essa era a justificativa deles para o sacrifício humano. Mas nós sabemos que o sol não precisa de ajuda para nascer. Portanto, será que essas coisas são justificáveis com base em um precedente?". Voltei-me a Patrícia, enfermeira ruiva nos seus cinqüenta anos. Ela sempre me pareceu uma mulher inteligente, de opiniões moderadas. "Bem, dou um curso para os funcionários do hospital sobre compreensão multicultural, e somos ensinados a não julgar tudo que faz parte de uma cultura e se funcionou para eles ou não...". A essa altura desisti. Em uma classe com mais de vinte indivíduos, aparentemente inteligentes, ninguém saiu em defesa contra o sacrifício humano. Concluí a discussão: "Francamente, percebo claramente que o autor apontou para os perigos de sermos seguidores totalmente passivos, covardes demais para nos rebelar contra crueldades e injustiças óbvias". Estava abalada e acho que o autor, cuja história chocara a tantos, também ficaria assim. Essa aula finalmente terminou. Era uma noite quente e, ao andar para o meu carro após aquela aula noturna, sentia calafrios, estava arrepiada até os ossos. Kay Haugaard, Suspending Moral Judgment: Students Who Refuse to Condemn the Unthinkable —A Result of Too Much Tolerance? [Abstendo-se de julgamento moral: estudantes que se recusam a condenar o impensável — um resultado de muita tolerância?] The Chronicle of Higher Education, June 27, 1997. Reproduzido com permissão do autor. NÃO É PROBLEMA MEU! Não me angustiarei com a vida de outrem. Preocupar-me-ei primeiramente comigo mesmo. Não perderei o sono por causa de problemas alheios. — DAVID CASH, AOS18 ANOS, QUANDO LHE PERGUNTARAM SE ESTAVA APAVORADO POR CAUSA DO ASSASSINATO DE UMA MENINA DE SETE ANOS, NO BANHEIRO DE UM CASSINO, POR SEU AMIGO, ENQUANTO ESPERAVA DO LADO DE FORA. Ao lhe perguntarem de quem ele sentia mais pena, da menina morta ou do assassino (seu camarada), Cash respondeu: 'Sinto mais por meu companheiro Jeremy, pois sei que ele passa por maus bocados.' — THE WASHINGTON POST, SETEMBRO DE 1998 Querida mãe, Nossa, não dá nem para acreditar que já estamos em 2023? Ainda estou escrevendo '22' em quase tudo. Parece que foi ontem o dia em que estava na primeira série, celebrando a passagem do milênio. Sei que não conversamos desde o Natal. Desculpeme. Tenho uma notícia difícil para lhe contar e, realmente, não queria telefonar, mas queria poder conversar pessoalmente. Ted foi promovido, e eu terei um aumento razoável se continuar com essas horas extras. Sabe como me esforço para que isso aconteça. Sim, ainda estamos lutando para pagar as contas. Timmy está 'bem' na pré-escola, mesmo implorando para não ir. Mas o que posso fazer? Ele também já se queixava quando ia à creche",
23 Mãe, ele é um problema, É um menino bom, mas, honestamente, ele é um peso injusto nesta época de nossa vida. Ted e eu conversamos bastante sobre o assunto e, finalmente, chegamos a um denominador comum. Muitas famílias já fizeram essa escolha e estão bem mais tranqüilas. Nosso pastor está de acordo e diz que, às vezes, decisões difíceis são necessárias. A família é um 'sistema', e a exigência de um membro" não pode arruinar o todo. Ele diz que deveríamos estar em oração, considerar todos os fatores e fazer o que é certo, a fim de fazer com que a família funcione bem. Ele disse ainda que, provavelmente, não faria tal coisa, mas que a decisão é, realmente, nossa. Ele foi muito gentil ao fazer referência a uma clínica infantil perto daqui, então, pelo menos essa parte será mais fácil. Não sou uma mãe insensível. Sinto muito pelo rapazinho. Acho que ele escutou nossa conversa sobre 'esse assunto' na noite passada. Eu me virei e o vi, em seu pijama, ao pé da escada, segurando o ursinho de pelúcia debaixo do braço, aquele ursinho que a senhora lhe deu, lembra? Percebi seus olhos cheios de lágrimas. Mãe, a maneira como ele me olhou quase partiu meu coração. Mas . acredito, honestamente, que essa decisão é a melhor, também para o pequeno Timmy. Não é justo forçá-lo a viver em uma família que não lhe pode dar o tempo necessário e a atenção que merece. E, por favor, não provoque em mim a mesma aflição que a minha avó provocou em você quando você fazia abortos. É a mesma coisa, você sabe muito bem. Dissemos a ele que simplesmente vai tirar umas férias. De qualquer forma, eles dizem que é inútil. Você o viu muito pouco e acho que foi melhor assim. Lembranças a papai, Jane — PROVENIENTE DO BOLETIM DE UMA COMUNIDADE, CITADO EM FIRST THINGS [AS PRIMEIRAS COISAS], JANEIRO DE 1999
Perguntas para reflexão e discussão
1. Qual a resposta que Kay Haugaard esperava dos estudantes que escutavam The Lottery [A loteria] pela primeira vez? No passado, o que, sobre os personagens da narrativa, causou assombro em praticamente todos os estudantes de Haugaard? Que mensagem sobre o conformismo os estudantes colheram da história? 2. De que maneira os grandes eventos públicos, como a guerra do Vietnã e o avanço do movimento gay, afetaram a forma em que os estudantes respondiam à história? 3. Dessa vez, quais foram as três primeiras respostas sobre a história dadas pelos estudantes? Acerca dessas reações preliminares, o que abalou Haugaard? 4. Qual a reação de Beth à idéia do sacrifício humano na narrativa? O que é, particularmente, irônico quanto a sua resposta? O que Richard, o professor do ensino fundamental, sugere sobre o assassinato ritualista? Qual a resposta de Haugaard? Se você fosse o professor, como teria respondido à classe? 5. Qual a resposta final de Patrícia, a enfermeira de meia idade? Em que idéia fundamenta-se sua resposta? Por que você concorda ou discorda da base para sua suposição? 6. Vendo isso, quais os fatores que causaram tão grande mudança? Quais os perigos óbvios de não querer julgar nem condenar? Como é possível avaliar a tolerância e saber se esta foi longe demais?
ROBERT COLES Robert Martin Coles, nascido em 1929, é psiquiatra eminente de Harvard e autor de vários bestsellers sobre crianças e seu mundo interior. Nasceu em Boston e estudou na Universidade de Harvard e Universidade de Colúmbia e ensina e trabalha, há quarenta anos, na área de Cambridge. Entre seus livros mais conhecidos encontra-se o livro Children of Crisis [Crianças da crise] (1967), que ganhou o Prêmio de Pulitzer, e o livro The Moral Life of Children [A vida moral das crianças] (1986). Robert Coles é episcopal convicto. Além de temperar sua ciência com um profundo comprometimento para com os seres humanos, também torna indistinta a linha divisória entre o "acadêmico" e o "popular" em seus escritos. E ainda sempre dá a seus ouvintes a oportunidade para que contem suas próprias histórias. Temos aqui o comentário de um crítico: Coles é para a história de crianças o que Homero foi para a guerra de Tróia. A história de Ruby Bridges provém da jornada formativa de Coles, no extremo sul dos Estados Unidos, no começo dos anos 60. Após o que ele escreve: "Ruby é uma das primeiras crianças que encontrei - criança de seis anos de idade - que se tornou minha mentora...". O que mais impressionava Coles era o lugar óbvio do caráter em sua mentora de seis anos.
A história de Ruby Bridges Certa vez, ao tentar esclarecer um ponto importante, recebi a ajuda de uma mulher negra que, suponho, devo chamar de iletrada. Ela mostrou que: "Há muitas pessoas falando sobre fazer o bem,
24 e muitas pessoas discutindo sobre o que é bom é o que não é bom". Após o que adicionou: "Há muitas pessoas, constantemente, preocupadas com as suas ações, se estas estão certas ou erradas". Finalmente, há ainda outras pessoas que "simplesmente arriscam suas vidas fazendo o que é certo. E essas pessoas nem sempre são aquelas que falam muito, ou discutem muito, ou se preocupam muito; mas, simplesmente, fazem muito!" Por coincidência, sua filha era Ruby Bridges, uma das crianças negras que, aos seis anos de idade, terminou provocando uma dessegregação escolar em New Orleans, pois lutava contra desigualdades terríveis e assustadoras. Por dias, que se transformaram em semanas, e semanas que se transformaram em meses, essa criança precisava passar entre bandos sanguinários que lhe importunavam o tempo todo. Lançando ameaças e difamações e acusações e denúncias histéricas. Oficiais federais a levavam para a escola e, depois da aula, para casa. Graças a um boicote total por parte de famílias brancas, ela terminou sendo, por boa parte do ano letivo, a única aluna presente nas aulas. Seus pais, de procedência meeira, haviam aportado recentemente na grande cidade portuária cosmopolita - apenas mais uma família de negros pobres, de origem rural, tentando uma vida um pouco melhor em um ambiente urbano. Estavam desempregados e em perigo, assim como Ruby, pois os bandos ameaçavam também a eles. Mesmo assim, tanto Ruby quanto seus pais perseveravam. Os professores de Ruby começaram a se questionar sobre o como — qual a habilidade de uma criança de tolerar tal adversidade, causadas apenas por sua procedência familiar e pelas tão poucas vantagens. Lamento dizer que tranqüilizei os professores dizendo que, em minha opinião, a situação não era o que parecia ser. Ruby parecia forte, mas mostraria, em pouco tempo, sinais de desgaste psicológico. Provavelmente, estaria "negando" seus medos e sua ansiedade; provavelmente, sua calma surpreendente, em face ao perigo evidente, representava uma "formação de reação". Isso me envergonha ainda mais, pois havia recebido uma informação muito importante na ocasião, vinda de um professor de cor clara que se encontrava incrédulo e bastante perplexo. Ele havia dito: "Encontrava-me em pé na sala de aula, olhando pela janela e vi Ruby muito tranqüila, ladeada por oficiais federais. A multidão estava presente, gritando, como de costume. Uma mulher cuspiu em Ruby, mas errou o alvo, e Rubi sorriu para ela. Um homem colocou o punho em riste contra ela, Rubi sorriu para ele. Após o que, subiu a escadaria da escola, parou, virou-se para ver a multidão e sorriu mais uma vez!". O professor, continuando seu comentário, perguntou-me: "Sabe o que ela disse a um dos federais? Informou-lhe que orava pelas pessoas, por aquele bando. Orava por elas todas as noites antes de dormir!". Eu estaria interessado em saber como era o sono de Ruby (pois este seria um indicador de seu estado de apreensão, uma medida para saber quão bem estaria lidando com as coisas, mentalmente), porém não havia pensado em inquirir sobre o que ela disse nem o que pensava todas as noites antes de pegar no sono. O que pensar de tal preocupação vinda de uma criança como essa? Perguntei a Ruby, após algum tempo, sobre suas opções - contando a ela, antes de fazer a pergunta, o que o professor me havia contado. Ruby mostrou-se animada e foi direta e concisa em sua resposta: "Sim, oro por eles". Perguntei-lhe a razão. Ao que me respondeu: "Porque sim". Esperava por mais, mas em vão. Comecei novamente, afirmando estar curioso sobre a causa do desejo de orar por pessoas que estavam sendo tão resolutamente odiosos para com ela. A menina disse-me: "Vou à igreja todos os domingos, e lá me disseram que devemos orar por todos, também pelos maus e, portanto, é isso o que faço". Ela não tinha mais nada a dizer sobre o assunto. De Robert Coles, The Moral Life of Children [A vida moral das crianças] (Boston: Houghton Mifflin Company, 1986), pp. 20-23. Reproduzido com permissão do autor.
Perguntas para reflexão e discussão
1. Quais as quatro categorias de reações morais dadas pela senhora Bridges? Que tipo de pessoas se amolda a cada uma delas? O que é necessário para alguém simplesmente fazer muita coisa boa, em vez de falar sobre as coisas boas ou discutir sobre o que é bom? 2. Qual era a experiência de Ruby, com respeito à escola? Quando foi que você, ou alguém próximo a você, teve uma experiência parecida - críticas ásperas, assédio, zombaria, ameaças? Qual foi sua reação ou a reação de seu amigo?
25 3. Qual foi a explicação dada por Coles aos professores de Ruby, aparentemente destemida, sobre sua força? Qual foi a história que o professor de Ruby contou a Coles em resposta à sua explicação? O que isso afirma sobre esses dois profissionais — um psicanalista e um professor que perderam o ponto por completo? 4. Qual foi a resposta de Ruby à pergunta de Coles sobre o motivo de suas orações pela turba ensandecida? Em sua opinião, o que há de mais interessante ou surpreendente nessa resposta? Por que o treinamento acadêmico e psicológico de Coles não o preparou para entender Ruby Bridges? 5. Como você entende a resposta sucinta de Ruby: "Porque sim."? Qual o tipo de educação por detrás da força moral de Ruby?
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Cuidado com os sete pecados capitais!
Esta ilustração é de uma xilogravura de 1414, proveniente do Sul da Alemanha, e ilustra "O Mundo"— personificação dos sete pecados capitais. Nos detalhes da figura, temos um copo. representando a glutonaria. O diadema representa o orgulho; o corpete, a luxúria; a mão esquerda decepada, a preguiça; o cinto, a cobiça; a cabeça de lobo (do lado esquerdo), a ira; e a cabeça de cachorro, a inveja. A perna direita representa a vida, e a perna esquerda, com cabeça de serpente, a morte.
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Capítulo 1 Orgulho (superbia) versus pobreza de espírito
O primeiro, o pior e o mais predominante dos sete pecados capitais é o orgulho. Ele é a fonte ou o componente primordial de todos os demais pecados. O orgulho é ainda o primeiro dos pecados do espírito que são considerados “frios”, porém altamente “respeitáveis”. Sua origem não está no mundo nem na carne, mas no próprio Diabo. Esse primeiro vício é único, pois é o vício do qual seu perpetrador, com freqüência, não tem consciência. Essa visão clássica de orgulho é compartilhada por judeus, cristãos e gregos (como exemplo, temos a noção grega de insolência ou arrogância jactanciosa), porém ataca as atitudes modernas. O mundo contemporâneo achou duas formas de transformar esse vício em virtude, e elas não podem ser ignoradas. A forma mais comum é mudar sua definição, confundir orgulho com respeito próprio – fazer com que ser contra o orgulho seja visto como prejudicial à saúde. Afinal, é correto ter orgulho de si mesmo. É prejudicial não ter autoestima. Portanto, por que o orgulho deveria ser considerado pecado? ORGULHO OU RESPEITO PRÓPRIO? Respeito próprio é ter fé na idéia de Deus ao nos criar. — ISAK DINESEN, OUT OF AFRICA [ENTRE DOIS AMORES] E SHADOWS ON THE GRASS [SOMBRAS PASSEIAM PELA GRAMA]
Mas o orgulho como pecado capital, não é o orgulho no sentido de respeito próprio, uma percepção justificável de valor próprio. Com certeza, há problemas na preocupação moderna relacionada ao auto-respeito, especialmente quando isso leva a práticas como elevar as notas escolares ou reescrever a história a fim de levantar a auto-estima de um indivíduo ou grupo. Também há perigo nos ditos correntes como: “sentir-se bem”, “levantar a auto-estima de alguém” ou ainda “construir auto-estima positiva”, pois são usados, na maioria das vezes, para encobrir condições de todos os tipos com as quais a pessoa não deveria se sentir bem. Contudo, esse também não é o problema real do orgulho. VÍCIO OU VIRTUDE? O orgulho sempre foi uma de minhas virtudes prediletas. Nunca o considerei um grande pecado, exceto em certos casos, ... desprezo tudo que reduz o orgulho do homem. — DAME EDITH SITWELL
A forma mais surpreendente de transformar um vício em virtude é impugnar sua motivação. Visto dessa maneira, conforme defendido por Friedrich Nietzsche e seus seguidores, o ataque ao orgulho é uma máscara para encobrir o ressentimento do fraco. Apelos ao “amor” e à “compaixão” são, portanto, uma tapeação – a racionalização nobre pela qual a classe escrava pode restringir com nobreza, excelência e “orgulho” o poder da classe dominadora. A VIRTUDE DO SUPER-HOMEM ‘O homem é mau’ – todos os homens mais sábios me disseram isso a fim de me confortar. Oh! Se ao menos isso fosse verdade hoje! Pois o mal é a força do homem. ‘O homem precisa melhorar e se tornar mais perverso’ – é isso que ensino. É necessário maior perversidade para haver maiores realizações do super-homem. Provavelmente, foi bom que o sábio dos pobres tenha sofrido e tomado sobre si os pecados da humanidade. Eu, por outro lado, regozijo-me nos grandes pecados para minha consolação. — FRIEDRICH NIETZSCHE, ASSIM FALAVA ZARATRUSTA, IV
29 Indo de encontro a ambas as alterações, a perspectiva clássica cristã afirma que o orgulho pecaminoso é errado e mortífero, pois é desordenada e arrogante. Como definido pelo Dicionário Inglês de Oxford: o orgulho é “uma presunção irracional de superioridade”, uma “opinião arrogante das qualidades de si mesmo”. Considere os seus sinônimos: presunção, arrogância, insolência, egoísmo, vaidade, altivez, soberba, jactância, obstinação, satisfação própria, egocentrismo e outros. Nenhum destes é considerado admirável. DEFINIÇÃO DO “EU” Eu — A pessoa mais importante do universo. Egoísta — Desprovido de consideração quanto ao egoísmo dos outros. Auto-estima — Uma avaliação errônea. — AMBROSE BIERCE, THE DEVIL’S DICTIONARY [DICIONÁRIO DO DIABO]
Visto por esse prisma, nada divide mais categoricamente a ética judaica, cristã e clássica da ética secular moderna que suas atitudes contrastantes em relação ao orgulho. Em muitos outros aspectos, o orgulho, raramente, é um problema essencial. No entanto, os gregos alertavam em relação à insolência ser uma arrogância exacerbada que cria a ilusão de invulnerabilidade. Do ponto de vista bíblico, o orgulho é a violação e a desordem fundamental do amor, pois põe o amor próprio à frente do amor a Deus. Ele quebra o primeiro grande mandamento: “Ame o Senhor, o seu Deus de todo o seu coração, de toda a sua alma e de todo o seu entendimento”, e, inevitavelmente, quebra o segundo grande mandamento: “Ame o seu próximo como a si mesmo”. A diferença entre esses dois grandes mandamentos, com certeza, é instrutiva. Devemos amar nosso próximo como a nós mesmos, e a baixa auto-estima leva, muitas vezes, a um amor pobre para com o próximo, porém não pode se dizer o mesmo do amor a Deus. Não nos é pedido para amar a Deus como a “nós mesmos”, mas pelo que ele é, e, com freqüência, o amor a Deus e o amor próprio se chocam. POR AMOR A SI MESMO Ah, quantas coisas uma pessoa não é capaz de fazer por amor – a si mesmo! — DITADO JUDAICO Egoísta — Uma pessoa com mau gosto, mais interessada nela do que em mim. — AMBROSE BIERCE, THE DEVIL’S DICTIONARY [DICIONÁRIO DO DIABO] A boa educação consiste em ocultar o quanto pensamos de nós mesmos e quão pouco pensamos dos outros. — MARK TWAIN Um pronome pessoal ambulante. — DEFINIÇÃO DE VICTOR HUGO Se fosse possível todo homem gostaria de ser Deus; uns poucos têm dificuldade em admitir sua impossibilidade. — BERTRANT RUSSELL
Figuras e metáforas Ao longo da história cada um dos sete vícios foram retratados, por associação, a diferentes partes do corpo, animais e cores. De maneira característica, descreve-se o orgulho por meio de imagens que sugerem altivez, indiferença e inacessi-bilidade. Angus Wilson compara o orgulho ao nariz do camelo. O jornalista Henry Fairlie denomina o orgulho de “arrogante, inflado, convencido, teimoso”. Para poetas e artistas medievais, o orgulho era considerado o rei ou a rainha dos vícios. Retratado, em geral, como um leão, uma águia, um pavão pomposo ou um homem ou uma mulher vaidosos.
Aplicações práticas Uma vez que o orgulho é a origem principal de todos os outros pecados, a lista de seus possíveis
30 exemplos é infindável. O orgulho, enraizado na própria essência do pecado - “o reivindicar o direito a mim mesmo” - encontra-se, inevitavelmente, ligado à hipocrisia e à rejeição - “a reivindicação de meu direito de ver as coisas da minha perspectiva, qualquer que seja a realidade”. Como tal, está também ligado à insolência - “a arrogância da ilusão da invulnerabilidade” - e, portanto, ao avanço histórico da loucura, varrendo nações e indivíduos. PARA SEMPRE E SEMPRE... AMÉM O destino dos Estados Unidos da América é ser a nação mais rica, mais livre e mais poderosa do mundo e permanecer assim para sempre. — IRVING KRISTAL, 1998 A economia dos Estados Unidos, provavelmente, não verá recessão por muitos anos. Não queremos recessão, não precisamos de recessão e como temos as ferramentas para manter a expansão corrente em progressão, não teremos recessão. Esse desenvolvimento continuará para sempre. — DR. RUDL DORNBUSCH, PROFESSOR DO M.I.T. [MASSACHUSETTS INSTITUTE OF TECHNOLOGY] A promessa do nosso futuro é ilimitada. — PRESIDENTE CLINTON, 1999, EM DISCURSO ANUAL DO PRESIDENTE DOS E.U.A. AO CONGRESSO.
Mas isso é apenas o começo. Encontra-se o orgulho em formas individuais como, por exemplo, as neuroses comuns e a completa preocupação narcisista consigo mesmo. Também é encontrado em formas coletivas como, por exemplo, o grupo de nacionalistas orgulhosos, o tribalismo, o jingoísmo e o racismo. Vê-se ainda o orgulho nos grandes atos criminosos da história que, basicamente, são o pivô da orgulhosa falta de simpatia e de sentimento de fraternidade por outros seres humanos (ilustrada na leitura a seguir). Contudo, muitas vezes, ele se entra sorrateiro em nossos empreendimentos mais nobres e mais ousados. Em resumo, o orgulho pode permear tudo o que fazemos. O pior de tudo, como alerta Dorothy Sayers: “A estratégia diabólica do orgulho é que ele não ataca nossos pontos mais fracos, mas sim nossos pontos mais fortes. Ele é de forma preeminente o pecado da nobreza”. VENENO PODEROSO No homem, o orgulho é a fortaleza do mal. — VICTOR HUGO O orgulho é um veneno poderosíssimo a ponto de envenenar não apenas as virtudes, mas até mesmo os outros vícios. Os homens pobres na taberna pública sentem isso quando toleram o beberão, ou o informante, ou, até mesmo, o ladrão, porém sentem algo diabolicamente errado em relação ao homem que possui tão grande semelhança com o Deus Todo-Poderoso. E todos nós temos a ciência que, de fato, o orgulho, pecado primário, tem um efeito curioso sobre os outros pecados, um efeito de congelamento e endurecimento. — G. K. CHESTERTON, “IF I HAD ONLY ONE SERMON TO PREACH” [“SE EU FOSSE PREGAR APENAS UM SERMÃO”]
Há outro tema que não podemos perder de vista. O orgulho está acoplado à impaciência e ao descontentamento. A razão encontra-se no centrar em si mesmo e na suposta auto-suficiência. Uma vez que o ser humano individual é pequeno e muito frágil, a auto-suficiência genuína é impossível e, portanto, o descontentamento é inevitável para o orgulho. Sempre precisamos de algo além de nós mesmos e temos muitas coisas a desejar, portanto, o contentamento preconiza uma miragem. Como Narciso que se apaixonou pelo próprio reflexo, em uma nascente, e, em conseqüência, morreu de frustração por um amor próprio que nunca pôde ser consumado, assim também é inevitável a frustração das pessoas orgulhosas, enamoradas por si mesmas. A famosa oração de Agostinho oferece o antídoto para isso: “Fizeste-nos para ti, e nosso coração permanece irrequieto até que encontre repouso em ti”. O contraponto do orgulho, que trataremos adiante com mais profundidade, é a bem-aventurança: “Bem-aventurados os pobres em espírito”.
C. S. LEWIS Clive Staples Lewis (1898-1963) foi acadêmico, escritor e um notório e muito amado apologista cristão. Nasceu em Belfast, Irlanda do Norte, e estudou no University College, em Oxford. Após breve serviço militar na Segunda Guerra Mundial, terminou seus estudos em Oxford onde se tornou membro da sociedade literária de língua inglesa e professor de literatura no Magdalen College. Nos
31 últimos sete anos de sua vida foi professor da Universidade de Cambridge, porém insistia em morar em Oxford. Em sua área, Lewis foi um acadêmico por excelência, porém sua grande reputação deve-se a seus escritos populares. Sua obra tem 36 títulos disponíveis com bem mais de 50 milhões de cópias — o que faz de Lewis o autor cristão com o maior número de vendas de todos os tempos. Sua obra literária The Alle-gory of Love [A alegoria do amor] foi premiado com o Prêmio de Hawthornden, em 1936, no entanto, ele se tornou popular por meio de livros como The Screwtape Letters [Cartas do diabo ao seu aprendiz] e Cristianismo puro e simples e, depois, por meio de suas histórias infantis As crônicas de Nárnia e sua trilogia de ficção científica. Lewis, conhecido pelos amigos como Jack, foi fundador dos Inklings, grupo de discussão que se encontrava regularmente em seus aposentos ou no bar, The Eagle and Child, em Oxford. Outros escritores talentosos como J. R. R. Tolkien, Charles Williams e Dorothy Sayers também faziam parte do Inklings. Lewis, John F. Kennedy e Aldous Huxley morreram no mesmo dia, 22 de novembro de 1963. Expressivo número de pessoas chegou à fé cristã, ou foi socorrido em sua fé, por intermédio dos escritos de Lewis que sempre têm algumas passagens que se tornam as preferidas de todos. A passagem que se segue vem do livro Cristianismo puro e simples, por meio do qual mais pensadores vieram à fé que por qualquer outro livro no século XX. Em contraste com os escritos mais famosos sobre os sete pecados capitais, as obras de Lewis vêem a nós não do mundo antigo, mas de um tempo próximo ao nosso. Ainda assim, a peça literária, a seguir, mesmo moderna e, aqui, fora de sua seqüência histórica é provavelmente o melhor sumário da posição cristã sobre o orgulho. MEU HOMEM HONRADO Andar de bicicleta e se exibir. — LISTA DOS PASSATEMPOS DE GEORGE BERNARD SHAW EM WHO’S WHO Com a única exceção de Homero, não há escritor eminente, nem mesmo Sir Walter Scott, que eu possa desprezar como desprezo Shakespeare, quando comparo minha mente à dele. — GEORGE BERNARD SHAW Quanto mais vivo mais vejo que nunca estarei errado a respeito de nada, o que tão humildemente fiz com tanto esmero para ratificar minhas idéias tem apenas gasto meu tempo. — GEORGE BERNARD SHAW Bernard Shaw descobriu a si mesmo e concedeu, generosamente, parte de sua descoberta ao mundo. — SAKI
O grande pecado Agora vamos abordar aquela parte da moral cristã que difere mais nitidamente das outras morais. Há um pecado do qual ninguém neste mundo escapa; um pecado que todos detestam nos outros e do qual quase ninguém, exceto os cristãos, tem a consciência de que o comete. Sei de pessoas que admitem ter mau gênio, que sabem que perdem a cabeça em se tratando de mulher ou de bebida, e que reconhecem até mesmo que são covardes. Mas esse pecado de que estou falando, acho que nunca encontrei ninguém, não cristão, que admitisse tê-lo praticado. E, ao mesmo tempo, como é difícil encontrar pessoas (não cristãs) que demonstrem um mínimo de benevolência para com os que o cometem! Não há falta que torne a pessoa mais impopular, nem falta de que tenhamos menos consciência, em nós mesmos. E quanto mais tivermos essa falta em nós mesmos, tanto mais ela nos desagradará nos outros. O pecado a que me refiro é o orgulho ou presunção; a virtude que lhe é oposta, na moral cristã, chama-se humildade. Talvez você se recorde de que, ao falar da moral sexual, disse que esta não constituía o centro da moral cristã. Bem, agora chegamos ao centro. De acordo com os mestres do Cristianismo, o pecado principal, o supremo mal, é o orgulho. A falta de pureza, a ira, a ganância, a embriaguez e tudo o mais, em comparação com ele, são ninharias. Foi pelo orgulho que o demônio tornou-se demônio. O orgulho
32 conduz a todos os outros pecados: é o mais completo estado de alma anti-Deus. Você acha que eu estou exagerando? Se acha, pense bem no caso. Observei há pouco que quanto mais orgulho se tem, mais esse pecado nos desagrada nos outros. De fato, se quisermos descobrir o quanto somos orgulhosos, o método mais fácil é perguntar a nós mesmos: “Quanto me desagrada ver os outros me desprezarem, recusarem-se a me dar qualquer atenção, intrometerem-se em minha vida, tratarem-me com ares paternos, ou se exibirem com ostentação?” O problema é que o orgulho de cada um compete com o orgulho de todos os demais. É porque eu queria ser o “destaque” da festa que me aborreço todo, quando um outro é que ficou em proeminência. Dois bicudos não se beijam. Bem, o que precisamos ver claramente é que o orgulho é essencialmente competidor; é competidor por sua própria natureza, enquanto que os outros pecados são, por assim dizer, competidores apenas por acaso. O orgulho não sente prazer em possuir algo, mas apenas em possuir mais do que o próximo. Dizemos que alguém tem o orgulho de ser rico, ou de ser inteligente, ou de ter boa aparência, mas não é assim. A pessoa tem o orgulho de ser mais rica, mais inteligente, ou de melhor aparência do que os outros. Se todo o mundo se tornasse igualmente rico, inteligente ou de boa aparência, não haveria nada do que se orgulhar. É a comparação que nos torna orgulhosos: o prazer de estar por cima dos outros. Não havendo o fator competição, o orgulho desaparece. Esta é a razão pela qual eu disse que o orgulho é essencialmente competidor de uma maneira em que os outros pecados não o são. O instinto sexual poderá levar dois homens à competição, se ambos desejarem namorar a mesma garota. Mas isso é apenas acidental; poderiam da mesma forma ter desejado duas garotas diferentes. Contudo, o homem orgulhoso procurará tirar a garota do outro, não porque a queira, mas para provar a si mesmo que é melhor do que o outro. A ganância poderá levar à competição se não houver o bastante para todos; mas o orgulhoso, mesmo depois de ter mais do que desejava, tentará conseguir ainda mais para afirmar o seu poder. Quase todos os males do mundo atribuídos à ganância ou ao egoísmo são, na verdade, muito mais o resultado do orgulho. [...] Os cristãos têm razão: o orgulho tem sido a principal causa da miséria em todas as nações e em todas as famílias desde que o mundo é mundo. Outros pecados, às vezes podem unir as pessoas: pode-se encontrar companheirismo, brincadeiras e afabilidade entre os que se dão à embriaguez ou que são devassos. Mas o orgulho sempre significa inimizade: é inimizade. E não apenas inimizade entre um homem e outro, mas inimizade contra Deus. Em Deus, vamos contra algo que nos é infinitamente superior em todos os aspectos. A menos que reconheçamos a Deus como tal e, portanto, que reconheçamos a nós mesmos como um nada em comparação a ele, não conhecemos a Deus, absolutamente. Enquanto permanecermos orgulhosos, não poderemos conhecer a Deus. Um orgulhoso está sempre olhando de cima para pessoas e coisas; e, é claro, quem está olhando para baixo não pode ver o que está acima de si mesmo. Surge então um terrível problema. Como é possível haver pessoas evidentemente corroídas pelo orgulho, que dizem crerem em Deus, e que se têm na conta de muito religiosas? Em muitos casos pode ser que adorem a um Deus imaginário. Teoricamente admitem que nada são em relação a esse Deus fantasma, mas estão sempre a imaginar que em tudo são por ele aprovadas, e que por ele são consideradas muito melhores do que as pessoas comuns. Ou, então, tributam um mínimo de orgulho em relação a seus semelhantes. Creio que era nessa gente que Cristo pensava, ao dizer que alguns pregariam em seu nome e em seu nome expulsariam demônios, apenas para que lhes seja dito no fim do mundo que ele nunca os conheceu. E qualquer um de nós pode cair nessa armadilha mortal a qualquer momento. Felizmente temos um teste à nossa disposição. Se acontecer de acharmos que a nossa vida espiritual nos faz pensar que somos bons ou que, sobretudo, nos faz pensar que somos melhores do que os outros, podemos ter certeza de que Deus não está atuando em nossas vidas, mas sim o demônio. A verdadeira prova de estar na presença de Deus é o fato de nos esquecermos completamente de nós mesmos, ou de nos considerarmos um pequeno e vil objeto. É preferível esquecermo-nos completamente. É terrível que o pior dos pecados possa penetrar sorrateiramente até atingir bem o centro da nossa vida espiritual! Mas pode-se saber a razão. Os outros pecados, menos maus, provêm da atuação do diabo em nossa natureza animal. Mas este não penetra em nós através de nossa natureza animal, absolutamente. Vem diretamente do inferno! É puramente espiritual e, consequentemente, muito
33 mais sutil e mortal. Também, por causa disso, o orgulho pode ser usado muitas vezes para derrotar os pecados mais simples. Os professores apelam muitas vezes ao orgulho (ou, como dizem, ao “amor próprio”) dos seus alunos, para que procedam de forma apropriada; muita gente tem vencido assim a covardia, a luxúria e o mau gênio, aprendendo a pensar que essas coisas não condizem com a sua dignidade, ou seja, é por orgulho que procedem! O demônio ri. Ele fica muito contente ao ver alguém casto, corajoso e controlado, contanto que esteja construindo na pessoa a ditadura do orgulho. É como no caso de que ele ficaria muito contente por ver alguém curado de um resfriado, se lhe fosse possível dar em troca o câncer. Porque o orgulho é um câncer espiritual: devora toda a possibilidade de amor, de contentamento ou até mesmo de senso comum. Antes de deixar este assunto, preciso precaver-me contra alguns mal-entendidos: (1) O prazer de ser louvado não é orgulho. A criança que recebe sinais de afeto por ter feito bem a lição; a mulher cuja beleza é louvada por aquele a que ama; a alma que se salvou e à qual Cristo diz: “Muito bem, servo bom e fiel”; todos esses são, e devem ser agraciados. Pois aqui o prazer reside não no que somos, mas em agradar a quem desejamos (com toda razão) agradar. O mal começa quando, depois de pensarmos: “Eu o agradei, que bom”, passarmos a pensar: “Como eu sou bom, já que agi assim!”. Quanto mais nos comprazemos em nós mesmos, e menos no louvor, tanto pior nos tornamos. Quando nos comprazemos totalmente em nós mesmos e não nos importamos mais com o louvor, atingimos o fundo. Esta é a razão pela qual a vaidade, mesmo sendo a espécie de orgulho que se manifesta mais exteriormente, é na verdade a menos má e a mais perdoável. A pessoa vaidosa deseja louvor, aplauso e admiração em demasia, e está sempre à procura disso. É uma falta, mas uma falta infantil e mesmo (estranhamente) uma falta humilde. Mostra que ainda não nos contentamos completamente conosco mesmos. Valorizamos as outras pessoas o suficiente para querer que olhem para nós. De fato, somos ainda humanos. O orgulho verdadeiramente negro e diabólico aparece quando olhamos tão de cima para os outros que não nos importamos com o que pensam de nós. É claro que é certo, e muitas vezes é nosso dever, não nos importarmos como que os outros pensam de nós, se assim procedermos por uma razão justa: por nos importarmos muitís simo mais com o que Deus pensa. O orgulhoso, porém, tem uma outra razoa para não se importar. Diz: “Por que devo em importar com o aplauso dessa plebe rude, como se a opinião dela fosse de algum valor? E mesmo que tivesse algum valor, eu não sou do tipo que se ruboriza de alegria por causa de um elogio, como uma adolescente com o seu primeiro namorado. Sou uma personalidade formada, adulta. Tudo o que fiz para realizar os meus próprios ideais, ou a minha consciência artística, ou as tradições de minha família ou, numa palavra, porque sou assim mesmo. Se a turma aprecia o que fiz, tudo bem... Eles nada significam para mim”. Um orgulho radical pode agir, assim, como um freio sobre a vaidade porque, como disse há pouco, o demônio gosta de “curar” uma falta pequena dando outra maior. Devemos procurar não ser vaidosos, mas nunca devemos convidar o nosso orgulho para curar a nossa vaidade. (2) Dizemos muitas vezes que fulano tem “orgulho” de seu filho, ou de seu pai, ou da sua escola, ou do seu regimento; a pergunta que surge agora é: “orgulho”, nesse sentido, é pecado? A resposta vai depender do que queremos dizer com a palavra “orgulho”. Muitas vezes empregamos esta palavra para dizer que “temos uma grande admiração de todo o coração”. Tal sentimento está muito longe de ser pecado. Mas pode acontecer que a pessoa em questão se ache muito importante por um pai ilustre ou por estar num famoso regimento. Isso já é um erro; mas mesmo assim é melhor do que simplesmente ter orgulho de si mesmo. Amar e admirar algo que não seja a própria pessoa é recuar um passo da total ruína espiritual; todavia não estamos bem se amamos mais e admiramos mais alguma coisa que não Deus. (3) Não se deve pensar que o orgulho seja algo que Deus proíbe porque o ofende, ou que a humildade seja algo que ele exige em função da sua própria dignidade, como se o próprio Deus fosse orgulhoso. Ele não está absolutamente preocupado com a sua própria dignidade. A questão é que Deus quer que o conheçamos, quer se dar a nós. E nós somos feitos de tal modo que, se realmente tivermos qualquer espécie de contacto com Deus, nós seremos, de fato, humildes, humildes e felizes, sentindo o infinito alívio de termos nos livrado de uma vez por todas da absurda bobagem de nossa própria dignidade, que nos fez ansiosos e infelizes por toda a vida. Deus procura fazer-nos humildes a fim de tornar possível este momento: procura tirar uma porção de tolas e feias fantasias com que nos enfeitamos, e ficamos empertigados como pequenos idiotas que somos.
34 Eu mesmo gostaria de ter alcançado um maior grau de humildade, pois assim poderia expressarme melhor sobre o alívio e o prazer de tirar a fantasia, de livrar-me do falso eu, com todos os seus “Olhem para mim” e “Não acham que sou uma boa pessoa?” e com todo o seu artificialismo e jactância. Conseguir chegar aí, apenas por um momento, é como um copo de água fresca no deserto. [...] A quem queira adquirir a humildade, acho que posso ensinar-lhe o primeiro passo. É compreender que somos orgulhosos. E este é também um passo enorme. Bem, ao menos nada, nada mesmo, pode ser feito antes disso. se pensamos que não somos orgulhosos é sinal de que, na realidade, somos muito orgulhosos. Extraído do livro Cristianismo puro e simples [título anterior: Cristianismo autêntico], de C. S. Lewis, ABU Editora S/C. Traduzido do original em inglês Mere Christianity Williams Colins Sons and Co. Ltd. Copyright © 1942 C. S. Lewis. De C.S.Lewis, Mere Christianity. Copyright © 1942 por C.S.Lewis Pte. Ltd. Extratos reproduzidos com permissão. NUNCA ULTRAPASSADO Como líder majoritário, [Lyndon B. Johnson] vibrava com a idéia de ser o primeiro legislador em Washington com telefone móvel. Quando Everett Dirksen, líder republicano minoritário e rival amigável, também adquiriu um, telefonou para a limusine de Johnson e disse que ligava de seu carro. “Pode esperar um minuto, Ev?”, perguntou Johnson. “Tenho outra ligação no meu outro telefone”. — ROBERT DALLEK, BIÓGRAFO DE LYNDON B. JOHNSON Sou extraordinariamente paciente – contanto que, no fim, eu ganhe o que quero. — MARGARET THATCHER
Perguntas para reflexão e discussão
1. O parágrafo inicial de Lewis está repleto de observações impressionantes sobre o orgulho. Que parte dessa descrição o impressiona dê maneira mais profunda? Será que Lewis está certo ao dizer do orgulho: "quanto mais tivermos essa falta em nós mesmos, tanto mais ela nos desagradará nos outros?. Se sim, porque? 2. Lewis descreve o orgulho como "o mais completo estado de alma anti-Deus". O que ele pretende afirmar com isso? De acordo com Lewis, por que os vícios mais visíveis como a ira, a avareza e a embriaguez são "ninharias" quando comparados com o orgulho? Você concorda ou discorda? Por quê? 3. Do mundo dos negócios ao mundo do esporte, a vida moderna gira em torno de competições, mesmo assim Lewis afirma: "o orgulho é essencialmente competidor". Que exemplo ele deu? Que outros exemplos você pode apresentar? Será que toda competição é errada? Se não for assim, por que essa característica do orgulho é tão destrutiva? Como encorajar uma criança, um parceiro ou empregado a sobressair-se não pelo apelo ao orgulho? 4. De acordo com Lewis, o que o orgulho faz com o relacionamento de um homem ou uma mulher com outros homens e outras mulheres? O que faz com o relacionamento de uma pessoa com Deus? Que teste sugerido Lewis sugeriu para determinar nosso orgulho em relação a nossa vida religiosa? De acordo com Lewis, como sabemos se estamos verdadeiramente na presença de Deus? 5. De que maneira o orgulho pode ser um componente na tentação para abater os vícios mais elementares? Por que essa estratégia é tão bem sucedida? Qual o perigo dela? Você consegue se lembrar de algum exemplo, em sua vida, de alguém apelar para o orgulho a fim de fazê-lo mudar de atitude? O que você acha da descrição de Lewis do orgulho como "um câncer espiritual"? 6. Qual o primeiro mal-entendido sobre o orgulho mencionado por Lewis? Em que ponto a alegria de agradar a outros se torna orgulho? O que você pensa sobre a distinção feita por Lewis entre o pecado menor da vaidade e "O orgulho verdadeiramente negro e diabólico" tão orgulhoso que não se importa com o que os outros pensam? 7. Qual o segundo equívoco sobre o orgulho mencionado por Lewis? Por que isso não é orgulho? De
35 acordo com Lewis, o que é "Amar e admirar algo que não seja a própria pessoa"? Se isso for verdade, em que consiste a "ruína espiritual"? 8. Qual o último equívoco em relação ao orgulho? Deus proíbe o orgulho. Conforme Lewis, qual a verdadeira razão para isso? Qual a mudança que ocorre na atitude de alguém quando se torna, verdadeiramente, humilde diante de Deus? 9. Qual sua opinião sobre a última frase de Lewis: "se pensamos que não somos orgulhosos é sinal de que, na realidade, somos muito orgulhosos"? Essa afirmação retrata uma situação sem solução ou a pura verdade? A luz de seu caráter e trabalho, quais são suas tentações principais em relação ao orgulho? LÁ VAI DEUS, APENAS PELA GRAÇA DE DEUS Temo que isso não seja possível. Escrevi apenas cinco. — OSCAR WILDE, QUANDO CONVIDADO A COMPILAR UMA LISTA DOS 100 MELHORES LIVROS DO MUNDO Lá vai Deus, apenas pela graça de Deus. — WlNSTON CHURCHILL, COMENTANDO SOBRE STAFFORD CRIPPS, MEMBRO DO GABINETE NACIONAL Edison insistia que seus recrutas contratassem apenas novos graduandos do ensino superior, os mais belos e mais convencidos. Roger Bamford, engenheiro de Oracle, disse: "Quando recrutavam em universidades, deveriam perguntar: 'Você é a pessoa mais inteligente?'. Se a pessoa dissesse que sim, era contratada. Se dissesse que não, a pergunta seguinte seria: 'Então quem é?', e contratavam a pessoa citada'. 'Não tenho certeza se, dessa maneira, você conseguiu as pessoas mais brilhantes, mas definitivamente conseguiu as mais arrogantes". — MIKE WILSON, THE DIFFERENCE BETWEEN GOD AND LARRY ELUSON [A DIFERENÇA ENTRE DEUS E LARRY ELLISON] P: Qual a diferença entre Deus e Larry Ellison? R: Deus não acha que é Larry Ellison. — PIADA EM CIRCULAÇÃO EM ORACLE SOBRE O DIRETOR EXECUTIVO, LARRY ELLISON
JOHN MILTON John Milton (1608-1674) foi um dos poetas e escritores de prosa inglesa mais conhecido e mais respeitado. Milton era filho de um tabelião, de Londres, convertido ao anglicanismo. Teve uma boa educação na escola de St. Paul e na Universidade de Cambrige. Depois de sua graduação viajou, por dois anos, pela Europa. Durante esses anos escreveu algumas de suas melhores poesias. Retornou à Inglaterra pouco antes da Guerra Civil Inglesa. Com sua habilidade contestadora conseguiu a posição de Secretário Latino junto ao revolucionário Oliver Cromwell, mas o trabalho árduo lhe custou a visão. Quando a monarquia foi restaurada já estava velho, cego, desempregado e sem esperança de uma Inglaterra ortodoxa e republicana. Por isso, retornou à poesia e ao seu projeto de uma grande epopéia, Paraíso perdido e Paraíso reconquistado. Milton era um homem nobre, mas difícil. Não era apenas um puritano austero, mas também um humanista - comprometido com as possibilidades mais elevadas da natureza humana — e um amante da música e da literatura. Seu caráter era uma combinação de orgulho, paixão, sentimentalismo e ambição com idealismo, disciplina e auto-sacrifício. A tentação é um tema recorrente nos escritos de Milton, a qual ele sempre traça como vinda do Diabo. O extrato abaixo, proveniente do livro 1 de Paraíso perdido (Canto I do livro Paraíso perdido), é um retrato notório de como Milton vê orgulho, cru e bruto, que constitui a própria essência de Satanás. AMOR FATAL Muitas vezes, uma coisa curiosa (mesmo que talvez não seja curiosa), tem me deixado perplexa, isto é, que suicídios sejam ocasionados, quase sempre, pelo amor próprio humilhado. — ELIZABETH BARRETT BROWNING
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Paraíso perdido
Dize primeiro, tu que observas tudo No Céu sublime, no profundo Inferno, Dize primeiro a causa irresistível Que mover pôde os pais da prole humana, Em tão próspera sina, ao Céu tão caros, A apostatar do Deus que o ser lhes dera E a transgredir a lei que lhes ditara. Sendo só em um objeto restringidos, No mais senhores do universo Mundo: Quem lhes urdiu a sedução malvada Que os lançou em tão feia rebeldia? O Dragão infernal. Com torpe engano, Por inveja e vinganças instigado, Ele iludiu a mãe da humana prole, Lá depois que seu ímpeto soberbo O expulsara dos Céus com a imensa turba Dos rebelados anjos, seus consócios. Confiado num exército tamanho, Aspirando no Empíreo a ter assento De seus iguais acima, destinara Ombrear com Deus, se Deus se lhe opusesse, E com tal ambição, com tal insânia, Do Onipotente contra o Império e trono Fez audaz e ímpio guerra, deu batalhas, Mas da altura da abóbada celeste, Deus, com a mão cheia de fulmíneos dardos, O arrojou de cabeça ao fundo Abismo, Mas lúgubre de ruínas insondável A fim de que atormentado ali vivesse Com grilhões de diamante e intenso fogo O que ousou desafiar em campo o Eterno. "Eis a região, o solo, a estância, o clima, E o lúgubre crepúsculo por que hoje Os Céus, a empírea luz, trocado havemos! (O perdido anjo diz.) Troque-se embora, Já que esse, que ficou nos Céus monarca, O que bem lhe aprouver mandar-nos pode. É-nos melhor estar mui longe dele: Se a sublime razão a nós o iguala, Suprema força o põe de nós acima. Adeus, felizes campos, onde mora Nunca interrupta paz, júbilo eterno! Salve, perene horror! Inferno, salve! Recebe o novo rei cujo intelecto Mudar não podem tempos, nem lugares; Nesse intelecto seu, todo ele existe; Nesse intelecto seu, ele até pode Do Inferno Céu fazer, do Céu Inferno. Que importa onde eu esteja, se eu o mesmo Sempre serei - e quanto posso, tudo?... Tudo... menos o que é esse que os raios Mais poderoso do que nós fizeram! Nós ao menos aqui seremos livres, Deus o Inferno não fez para inveja-lo;
37 Não quererá daqui lançar-nos fora: Poderemos aqui reinar seguros. Reinar é o alvo da ambição mais nobre, Inda que seja no profundo Inferno: Reinar no Inferno preferir nos cumpre A vileza e ser no Céu escravos. Mas os amigos nossos, que tão fidos Nosso hórrido infortúnio partilharam, Não deixemos assim jazer às tontas No olvido destas ondas inflamadas; Chamemo-los dali, não para serem Nesta mansão, conosco desditosos, Mas para uma vez mais, todos reunidos, Ver o que recobrar no Céu podemos, Ou minorar de horror nestes abismos." Extraído, em parte, do livro de John Milton, Paraíso perdido, Canto I (1669). De John Milton, Paradise Lost, Book I (1669). O RIVAL DE DEUS A grandeza de Johnson fez uma enorme diferença em sua atuação como presidente. É fácil ofender-se com o impulso de Johnson de ser uma personagem acima do comum. "Deduzo que você nasceu em uma cabana rústica de madeira", disse o chanceler alemão Ludwig Erhard, ao visitar o rancho do presidente. Ao que Johnson respondeu: "Não, não. Você me confundiu com Abe Lincoln, eu nasci em uma manjedoura". — ROBERT DALLEK, BIÓGRAFO DE L.YNDON B. JOHNSON
Perguntas para reflexão e discussão
1. Do ponto de vista de John Milton, quem é o culpado pela queda de "nossos antepassados"? De acordo com o poema, o que motivou Satanás a ludibriar "a mãe da humanidade"? 2. O que Satanás almejava antes de ser expulso do céu? Como Milton descreve o vício do orgulho em Satanás? 3. Satanás se descreve como tendo "uma mente que nem tempo nem lugar fazem mudar". Você vê tal característica pessoal como virtude ou arrogância? O que faz a diferença? 4. Qual é sua opinião sobre a frase citada por Satanás de que é melhor reinar no inferno do que servir no céu? Por que essa afirmação difere da declaração de independência, igualmente apaixonada, feita por Patrick Henry no período da Revolução Americana: "Me dê liberdade ou morte!"? 5. No fim da passagem, Satanás desistiu? Como você vê o Satanás de Milton: horrivelmente negativo ou bastante heróico e atraente?
SHIRLEY MACLAINE Shirley MacLaine Beaty (nascida em 1934) é atriz de cinema e teatro ganhadora do Oscar. Nascida em Richmond, Virgínia, fez o ensino médio em Washington D. C. e freqüentou aulas de balé a fim de se preparar para sua carreira de atriz. Sua popularidade começou em 1954 com a produção da Broadway da peça "The Pajama Game" ["Um pijama para dois"], que a levou imediatamente a um filme de Alfred Hitchcock e, depois, a uma enorme série de sucessos de Hollywood, entre eles, A volta ao mundo em oitenta dias, Irma La Douce, Momento de decisão, e Laços de ternura, com o qual ganhou um Oscar, em 1984. Na década de 1960, MacLaine patrocinou muitas causas sociais, entre as quais o protesto contra a guerra do Vietnã. Contudo, tornou-se ainda mais controversa na década de 1980, com seus livros e programas televisivos sobre a Nova Era, em que promovia idéias como reencarnação e canalização. A passagem seguinte é do final da década de 1970, quando MacLaine lançou uma série de seminários de expansão da consciência ("Tune in to your higher self or else" ["Sintonize-se
38 com o seu eu superior ou então"]). Essa série captura um lado importante do orgulho moderno — a tolice do ser autocentrado. Woody Allen também se encaixa em outras expressões do ser autocentrado com, por exemplo: "Don't knock masturbation — it's sex with someone I love" ["Não censure a masturbação — é sexo com alguém que amo"]. VOCÊ DIZ: "EU SOU DEUS" ... Assim diz o Soberano, o Senhor: "No orgulho do seu coração você diz: 'Sou um deus; sento-me no trono de um deus no coração dos mares'. Mas você é um homem, e não um deus, embora se considere tão sábio quanto Deus". — EZEQUIEL 28.2 Eu, apenas eu, e isso basta. — CORNEILLE, MEDEA Somos como deuses e, portanto, devemos fazer tudo para ser bons nisto. — STEWARD BRAND, FUNDADOR DO WHOLE EARTH CATALOG
O que faz MacLaine prosseguir? No sábado, Shirley MacLaine estava sentada em sua suíte no Hotel Watergate, beliscando uma de suas seis refeições diárias - dessa vez era um sanduíche com queijo grelhado, uma salada de batata e um copo de nozes -explicava o motivo que levara sua vida a se tornar um buraco sem fundo, antes de completar quarenta anos. Ela comenta que isso ocorreu uns cinco anos atrás — mais ou menos, na época em que trabalhava para MacGovern, e ele perdeu... naquela época, ela tinha tudo, mas descartou todos os roteiros que recebia e, assim, saiu do negócio de filmes... nesse período perdeu todo seu senso de humor, ficou insatisfeita, engordou quase doze quilos... e teve, ao mesmo tempo, uma crise de identidade. Ela diz que essa crise foi pior do que a de adolescência. Foi o momento de sua vida em que precisou decidir se "viveria positivamente" ou se continuaria comendo. Parou de comer. Começou com caminhadas, exercícios, dança - e agora, aos 43 anos, voltou a dançar dando início a uma carreira bem sucedida em um clube noturno cujas apresentações ela encaixava entre terminar seu terceiro livro e terminar o filme Momento de decisão — um tour de force maravilhoso de MacLaine e Anne Bancroft — cuja estréia mundial levou-a a Washington. Um filme que ela ama. Um filme que ela pagaria para ver, se não fizesse parte dele... Para MacLaine, a identidade é a coisa mais importante. A única coisa. É o que a leva a viver - a fazer corridas, a fazer caminhadas, a agir, a fazer campanhas — combatendo qualquer compulsão que tenha para completar as partes de seu todo. E ao falar sobre isso — o que ela faz bastante -, quando afirma que "a jornada mais prazerosa que alguém faz é aquela através de si mesma..." tudo parece certo, não é sentimentalismo, não soa como um capítulo de Seus pontos fracos, porque MacLaine é muito cuidadosa ao se qualificar... admite que, no mínimo, é um grito de guerra parcial do "empreendedor compulsivo" - a competidora de decatlo competindo apenas consigo mesma. Ela lhe dirá: "Quando você contempla sua vida passada e tenta descobrir onde esteve e para onde vai ao olhar seu trabalho, seus relacionamentos afetivos, seus casamentos, seus filhos, sua dor, sua felicidade — quando você examina tudo isso bem de perto, o que você realmente descobre é que a única pessoa com quem você, de fato, vai para a cama é você mesma. A única pessoa com quem você realmente come é você mesma. Portanto, ao final de tudo, a vida deve ser o que você faz consigo mesma. "E tudo de maravilhoso a sua volta, como as pessoas com quem você vive, seus amigos, seus colegas de trabalho são extensões, mas não são você. A única coisa que você realmente possui trabalha para a consumação de sua própria identidade. E é isso que tento fazer durante toda minha vida. As pessoas sempre querem saber de onde vem meu dinamismo. Bem, tudo o que posso dizer é que o que me compele é o que tenho de fazer. Veja, o que finalmente sempre me ocorre é que o não tentar é mais difícil que a antecipação da derrota, se eu tentar. Foi por isso que comecei a escrever. Era mais difícil não escrever do que escrever, e como vocês sabem, não há nada mais trabalhoso que escrever."
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De Nancy Collins, "What Makes MacLaine Run?" The Washington Post, 14 de novembro de 1977, p. Cl Copyright © 1977 The Washington Post. Reproduzido com permissão.
Perguntas para reflexão e discussão
1. De acordo com o autor, o que impulsiona Shirley MacLaine? O que ela está disposta a fazer para conseguir o que deseja? 2. Qual sua opinião sobre a afirmação tema de MacLaine: "A jornada mais prazerosa é aquela através de você mesma..."? Como analisar essa afirmação à luz da cultura moderna? A luz dos ensinamentos de Jesus? 3. Você concorda com a afirmativa de MacLaine: "A única pessoa com quem você realmente vai para cama é você mesma... No final, a vida deve ser o que você faz consigo mesma"? 4. Se há algum tipo de orgulho nessa entrevista, qual é? Quais as conseqüências lógicas do pensamento de MacLaine para os indivíduos? Para as famílias? Para as comunidades?
WILLIAM GOLDING William Gerald Golding (1911-1993), famoso escritor britânico moderno que ganhou o prêmio Nobel de Literatura, em 1983. Seu primeiro livro foi o mais famoso, Lord of the Flies [O senhor das moscas]. Quando publicado, em 1955, tornou-se instantaneamente um sucesso na Inglaterra e nos Estados Unidos, alcançando a posição de "clássico contemporâneo", status que já alcançado por livros como O apanhador no campo de centeio, de J. D. Salinger. O senhor das moscas é uma combinação poderosa de história de aventuras para crianças com percepção antropológica e uma concepção cristã do Éden e do pecado original. Golding denominou seus livros de fábulas. Ele foi um escritor bastante original de alegorias morais que expressam sua visão da natureza humana profundamente realista - diz-se que isso se deve, em parte, por ter sido, por vários anos, professor de garotos em um internato. The Spire [O pináculo] (1964) é outra de suas fábulas morais, no entanto, essa baseia-se em fatos históricos. Quando a Catedral de Salisbury foi construída, não possuía o pináculo nem as fundações necessárias para sua construção. No entanto, um pináculo foi adicionado como monumento ao egotismo maníaco do deão —que mandou construí-lo contra todo conhecimento arquitetônico de sua época. Hoje, os que visitam a catedral vêem claramente o forte empenamento dos pilares. Levado pelo orgulho, poder e inflexibilidade Jocelin, o deão de Golding, representa a visão e a energia humana elevada ao nível da insolência ou da arrogância presunçosa. De fato, as probabilidades foram desprezadas e o pináculo construído, porém os custos arquitetônicos e humanos foram enormes. Essa leitura descreve o ponto na história em que Jocelin subjuga a relutância de seu mestre de obras, Roger, forçando-o a continuar o projeto, para diante e para cima, em que visava o sucesso pessoal e desafiava a lógica. Fala diretamente a respeito da forte compulsão com que muitos líderes autoritários tratam seus grandes projetos e o perigo de deslize, a linha invisível entre a vocação e a compulsão, a visão e a presunção, a ousadia e o egotismo. Como mostra a história, a religião não resolve o problema, torna-o ainda pior. O orgulho espiritual, em seu estado mais desenvolvido é, literalmente, um orgulho demoníaco. DIRIGINDO OU DIRIGIDO? Nada façam por ambição egoísta ou por vaidade, mas humildemente considerem os outros superiores a si mesmos. Cada um cuide, não somente dos seus interesses, mas também dos interesses dos outros. — FILIPENSES 2.3,4 Basicamente, o homem que recebe a chance de se medir pelo próprio padrão justifica sua vida à luz de seu trabalho criativo, torna-se uma pessoa muito exigente: quero dizer, não pensa mais em agradar às pessoas. Ele é muito sério e todos percebem isso; há uma seriedade diabólica atrás de alguém que procura o respeito por meio de seu trabalho. — FRIEDRICH NIETZSCHE Meu senso de realidade foi simplesmente alterado. Fiquei animado em trabalhar para o presidente. Assim, tornei-me arrogante, depois, grandioso e, a seguir, auto-destrutivo.... Nossa! todos deveriam ler as tragédias gregas aos quarenta anos. Todas elas
40 incorporam a mesma idéia: o que primeiro ajuda-o a subir de posição depois o destrói. Eu sou um exemplo vivo disso. — DICK MORRIS, CONSELHEIRO POLÍTICO DO PRESIDENTE CUNTON EM UMA ENTREVISTA À ASSOCIATED PRESS, JÁ RESIGNADO APÔS UM ESCÂNDALO.
The spire [O pináculo] Roger observava-o de perto, lambendo os lábios. "Não, não sei o que você quer dizer. Mas sei quanto vai pesar um pináculo e não sei se ficará muito resistente. Olhe para baixo, padre — logo acima do parapeito até embaixo, depois das luzes, do parapeito até abaixo do topo de cedro do claustro" "Estou olhando." "Faça de seus olhos, olhos de inseto que rastejam pé ante pé muro abaixo. Você acha que por serem de pedra são fortes? Eu sei mais. Não temos nada além de revestimento de vidro e de pedras estendidos entre quatro varas de pedra, uma de cada lado. Compreende? Uma pedra não é mais forte que o vidro entre duas pilastras verticais, pois a cada centímetro é preciso economizar peso, trocando força por peso ou peso por força, adivinhando a quantidade e a distância. Meu coração pára ao pensar nisso. Olhe para baixo, padre. Não olhe para mim — olhe para baixo! Veja como estão fixadas as colunas de cada extremidade. Eu fixei as pedras, mas não torná-las mais fortes. As pedras trincam, esmigalham, racham. E possível que isso aqui fique de pé, enquanto os pilares cantam. Posso dar-lhe um teto sobre essa estrutura e, possivelmente, um cata-vento. As pessoas poderão vê-lo de longe." De repente, Jocelin ficou quieto, bastante circunspecto. "Continue, meu filho." "E absolutamente impossível fazer-se um pináculo! Padre, é preciso estar nesse lugar elevado para entender do que se trata. Será que não percebe? Será um revestimento de pedra com membros de pedra. Haverá uma série de octógonos em que o superior será sempre um pouco menor que o diretamente inferior a ele. Mas o vento, padre! Preciso fixar esses octógonos e suspendê-los do capeamento para que fixem o revestimento com seu peso. Peso, peso, peso, peso! Muito peso adicionado; temos tudo isso perfurando as colunas no revestimento da parede, em cima dos pilares cantantes." Neste momento, sua mão segurava a manga de Jocelin. "E isso não é tudo. Mesmo que consiga construí-lo, o pináculo não impelirá as paredes perpendicularmente. Forçará a parte superior de cada uma dessas quatro colunas e as pressionará —paraforal Poderia pôr um pináculo em cada uma das colunas que seriam sustentados por elas teria de fazer isso - mas a altura seria limitada por causa do peso. E, ainda, em que ponto deveria eu abrir mão de um em detrimento de outro? Ah sim, poderíamos pôr o primeiro octógono, depois, o segundo e pode ser que após esse, o terceiro" — sua mão agarrava a braço de Jocelin - "mas, mais cedo ou mais tarde, teremos outro ruído na construção. Padre, olhe novamente para baixo. Mais cedo ou mais tarde haverá um barulho, um tremor, um estrondo. As quatro colunas se abririam como uma flor, e tudo o que estivesse aqui em cima - pedra, madeira, ferro, vidro, pessoas escorregariam para dentro da igreja como uma montanha que se desmorona." Ele ficou silencioso por um momento. Depois, sussurrou: "Afirmo-lhe -, mesmo que tudo o mais seja incerto em meu enigma — uma coisa é certa. Sei do que falo. Já vi um prédio desabar." Os olhos de Jocelin estavam fechados. Pensava em uma série de octógonos sendo construídos, subindo, subindo, cada octógono feito de vigas de carvalho com trinta centímetros de espessura. Por um momento, enquanto se achava de pé rangendo os dentes, sentiu a pedra sólida mover-se debaixo dos pés - oscilar para o lado e para fora. A cúpula em forma de cone, de 46 metros de altura, começou a se rasgar de alto a baixo, rompendo e arrebentando, desabando, criando poeira e fuligem e estrondos, cada vez mais rápido, quebrando-se e desfazendo-se com faíscas, chamas e explosão, caindo por terra, atingindo a nave, fazendo com que as pedras do pavimento dançassem
41 como partículas de madeira até ser enterrada pelos destroços. Para ele tudo era tão real que se sentiu cair junto com a coluna sudoeste, dobrado ao meio como uma perna, despencando sobre os arcos do mosteiro, destruindo a biblioteca como ao golpe do mangual. Abriu oi olhos, sentiu-se bastante enjoado. Estava agarrado ao parapeito e os claustros se moviam debaixo dele. "O que devemos fazer?" "Parar de construir." A resposta fora direta e convincente; e mesmo antes de se sentir bem e de sentir a abóbada do claustro firmar, teve uma profunda sensação de consciência, deduzindo como o mestre de obras chegara a essa resposta. "Não, não, não, não." Ele murmurava, e compreendia, e balançava a cabeça. Entendeu que seu pedido fora recusado. O recurso final fora a conversa sobre a construção, não apresentara o mistério em terra firme, mas de maneira ponderada construíra a torre no íntimo, usando em última instância um guindaste em um sustentáculo de vertigem; tudo planejado para conduzir a vontade ao momento único da derrota. "Não." Finalmente, a resposta fora dada. Era a resposta de um esperto a outro, conflitante e escorregadia. "Roger, asseguro-lhe que essa coisa pode ser feita." O mestre de obras afastou-se com fúria, posicionou-se na extremidade sudoeste, de costas para Jocelin. Com o rosto voltado para a chuva olhava para o nada. "Escute, Roger". O que lhe direi? Não sei. Deixe que a vontade fale. "Você tentou me assustar como se faz com uma criança ao contar história de fantasmas. Você ponderou tudo cuidadosamente, não foi? Mas você sabe que não pode se livrar de mim. Você não pode ir. Você não pode fugir. E todo esse tempo sua mente curiosa e valiosa procurava uma maneira de contornar o impossível. Você também descobriu uma, pois é para isso que está aqui. Você não tem certeza se essa é a melhor resposta, mas você não encontrou nada melhor. Você está com medo. A melhor parte de você quer tentar, mas o resto choraminga e lamenta." Ele se pôs perto das costas largas do mestre de obras e falou como se falasse com a chuva, no vazio. "Agora, lhe direi o que ninguém sabe. E possível que pensem que sou doido; mas que importância tem isso? Eles saberão disso qualquer dia quando eu —, mas você me ouvirá agora, de homem para homem, sobre esse assunto da torre, aqui onde não há mais ninguém para escutar. Meu filho, a construção é um diagrama da oração, e o pináculo será o diagrama da oração mais alta de todas. Deus revelou isso, a esse servo inútil, em uma visão. Ele me escolheu. Ele escolheu-o para preencher o diagrama com vidro e ferro e pedra, pois os filhos dos homens precisam ter algo para contemplar. Você acha que pode escapar? Você não está em minha rede - oh sim, Roger, entendo muitas coisas, entendo como você foi atraído, e torcido, e atormentado - mas essa rede não é minha. E dele. Nenhum de nós pode evitar essa obra. E ainda há outra coisa. Comecei a perceber algo que não é possível entender, pois cada movimento novo revela um efeito novo, um propósito novo. Você pensa que isso não faz sentido. Isso nos amedronta, é irracional. Mas desde quando Deus pediu para que os escolhidos sejam lógicos? Eles chamam isso de a inútil construção de Jocelin, não é?" "Já ouvi esse comentário." "A rede não é minha, Roger, e a tolice não é minha. É a tolice de Deus. Mesmo nos tempos antigos, ele nunca pediu para que os homens fizessem algo racional. Os próprios homens podem fazer isso. Eles podem comprar e vender, sanar e governar. Mas, depois, surge um comando vindo de algum lugar profundo para que façam algo que não faz sentido algum - como construir um barco em uma terra seca; sentar-se em um monte de estrume; casar-se com uma meretriz; sacrificar o filho em um altar. Contudo, se os homens têm fé, algo novo virá."
42 Por algum tempo, ficou silencioso debaixo da chuva, olhando para as costas de Roger Mason. Pensou que minha voz que falara aquelas palavras. Não. Não era a minha voz. Era a voz da minha Vontade devoradora, meu mestre. "Roger?" "O que é?" "Você construirá isso até o topo. Acha mesmo que essas são as suas mãos, não, não são! Você acha que é a sua mente que funciona, matutando para resolver o problema e agora repousa em orgulho secreto por ter resolvido o problema? Mas não é! Da mesma forma que não é a minha mente que fala as palavras que minha voz diz." Depois disso, reinou o silêncio; ele tinha consciência de que havia um terceiro naquele lugar, o anjo que estava no frio e na chuva e esquentava-lhe as costas. Por fim, o mestre de obras falou de modo apático e resignado: "Aço, pode ser que dê para fazer com aço, não tenho certeza. Podemos passar uma cinta larga de aço ao redor da torre aqui em cima e, assim, juntar as pedras. Não tenho certeza. Até hoje ninguém ainda usou tamanha quantidade de aço. Eu não sei. E custará mais, muito mais." "Não se preocupe com isso." Ele, quase timidamente, tocou os ombros do mestre de obras. "Roger — Ele não é desnecessariamente cruel, você sabe disso. Pode ser que seja com os que precisam disso, pois são fracos. Para esses, ele até manda um confortador para os encorajar! Ele os aquece na chuva e no vento. Você é necessário. Pense como a talhadeira se sente ao ser forçada, durante horas, contra a madeira dura! E depois, quando é lubrificada, embrulhada em um farrapo e posta de lado. Um operário nunca usa uma ferramenta para algo fora da finalidade dela, ele nunca a ignora, mas toma conta dela." Ele fez uma pausa. Falo de mim mesmo, tanto quanto dele. Em certa época, isso trazia alegria, mas estranhamente não traz mais. Agora, é apenas um desejo de paz. "Roger, quando terminar, e o pináculo estiver de pé aqui para que todos o vejam - a rede pode se quebrar." O mestre de obras murmurou. "Não sei o que você quer dizer." "Mas construa rápido — rápido! Antes que você permita o mal maior e a rede nunca se quebre." O mestre de obras virou-se de cabeça baixa, e abaixou-a ainda mais. "Fique com seus sermões!" "Porque todos vocês se tornaram preciosos para mim — você e todos os outros — começo a viver por intermédio de vocês." "O que você quer dizer com isso?" Ele pensou: o que eu queria dizer com isso? Eu queria dizer algo sobre Goody e Rachel— devo falar com ela como falei com ele, ou como a Vontade falou com ele. Ele acenou com seriedade para o mestre de obras. "Preciso descer agora, Roger. Há algo que devo fazer." Assim, começou a descer a escadaria com seu anjo; e antes de sair de vista, ele escutou Roger Mason falar baixinho. "Creio que você é o diabo. O próprio diabo." Extraído do The Spire. © 1964, revisto, em 1992, por William Golding, reimpressão permitida por Harcourt Inc.
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Perguntas para reflexão e discussão
1. Com que argumentos específicos o mestre de obras tenta persuadir Jocelin a abandonar seu plano de construir o pináculo? Qual o significado do pedido: "Não olhe para mim - olhe para baixo!"? Para o que é que todos esses argumentos apelam? 2. Jocelin cerra os olhos durante a advertência do mestre de obras. O que ele vê? Qual seria o significado de sua visão aterradora? 3. Qual foi a resposta imediata de Jocelin à visão? De que maneira o mestre de obras responde à pergunta? Nesse momento, Jocelin contempla a resposta do mestre de obras de maneira bem diferente. Como ele vê o encaminhamento que o levou a esse momento? Qual o motivo da mudança? 4. Golding escreve: "era a resposta de um esperto a outro". Quando você foi sur preendido por esse duelo de "vontade contra vontade"? Já esteve determinado a fazer algo de que não houve razão suficiente para o demover? Qual a força e qual o perigo dessa postura inflexível? 5. Jocelin muda de atitude e começa a persuadir Roger a construir o pináculo. Primeiramente ele diz: "Sua mente curiosa e valiosa procurava uma maneira de contornar o impossível... A melhor parte de você quer tentar". Para que esse argumento apela? O que o torna um atrativo tão poderoso? Qual o receio de dizer "não" a essa abordagem? 6. Jocelin, depois dessa abordagem, põe vestes espirituais em seu argumento. Exatamente como ele faz isso? Seus exemplos de "demandas irracionais" de Deus na história são verdadeiros e foram utilizados de maneira correta? Ou são verdadeiros, mas foram usados em um contexto errado? O que faz com que a interpretação espiritual tenha um potencial tão pernicioso? 7. Em que ponto Jocelin reconhece o poder da própria vontade? Como ele reage a esse conhecimento? Qual é o ponto de vista do Roger "apático e resignado" em relação à resolução do deão? O que é revelado nesse pensamento do deão: "Em certa época, isso trazia alegria, mas estranhamente não traz mais. Agora, é apenas um desejo de paz"? 8. Qual a estratégia de Jocelin em seu apelo final: "Todos se tornaram preciosos para mim - você e todos os outros"? Isso funciona ou não? Leia a última fala do mestre de obras. Ele não vê a ambição de Jocelin como resposta ao chamado de Deus, mas como compulsão orgulhosa e diabólica. Qual seu ponto de vista? O que faz a diferença? 9. Após centenas de anos, a Catedral de Salisbury ainda está de pé, desafiando o incalculável. Com isso em mente, você concorda com a visão do deão ou a do mestre de obras em relação ao projeto do pináculo? Por quê? 10. Você conhece exemplos atuais de ambição que se transforma em orgulho e compulsão nos negócios? Na política? Na sociedade? Na construção de um império religioso? Quando a pessoa cruza a linha? Que tipo de exame realista pode-se fazer para evitar esse tipo de perigo?
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O CONTRAPONTO DO ORGULHO: bem-aventurados os pobres em espírito
As virtudes que tradicionalmente entendem-se como as sete virtudes clássicas são, na verdade, uma mistura dos pensamentos pagão e cristão. As quatro virtudes principais (justiça, sabedoria, coragem e moderação) do mundo antigo, pré-cristão, e as três virtudes teológicas (fé, esperança e amor) do cristianismo são agrupadas para formar o conjunto de sete - os contrapontos dos sete pecados capitais. No entanto, as virtudes clássicas, com sua construção artificial, não satisfazem, em profundidade, os verdadeiros contrapontos dos vícios. Em contraste, as bem-aventuranças de Jesus, resumidas na tabela da introdução deste livro, são como imagens espelhadas dos vícios, contrapontos muito claros. Como tal, elas não são antídotos dos vícios, nem curativos para eles, mas opostos excelentes. Se os sete pecados capitais resumem a miséria do mal humano, as bem-aventuranças resumem a felicidade da virtude sobrenatural do Reino de Deus. Elas são, de fato, as virtudes do reino. As bem-aventuranças não receberão tratamento exaustivo porque o espaço não o permite. Mas serão comentadas como a virtude oposta a cada vício, oferecendo clareza pelo contraste. É importante lembrar que adquirir as virtudes, como em um jardim, não é o resultado automático da eliminação dos vícios. Deve-se livrar o jardim das ervas daninhas antes de plantar as flores. Assim, também a eliminação dos vícios prepara o solo de nossa vida para o cultivo das virtudes, mas de maneira alguma o garante.
"Bem-aventurados os pobres em espírito" A pobreza de espírito, ou humildade, é o contraponto direto do orgulho. Na bem-aventurança a palavra usada por Jesus é clara. Há duas palavras na língua grega que significam "pobre". Jesus escolheu entre elas, a palavra mais agressiva que significa a pobreza destituída e falida. Sófocles usa essa palavra para descrever o velho Édipo como mendigo no exílio; Esquilo a aplica à profetiza Cassandra como uma cigana vagabunda. Aqui, ao ser acoplada às palavras "de espírito", o significado de pobreza fica claro. Bem-aventurados aqueles que estão tão cônscios de sua falência, em si mesmos e de si mesmos, que não possuem coisa alguma da qual depender nesse mundo, exceto Deus, pois sua felicidade será a deles. Precisamos evitar duas concepções errôneas de humildade. A primeira e mais superficial, é o "eu como capacho". A atitude hipócrita e passiva de eu-não-tenho-necessidades-e-desejos-importantes não é a humildade representada nas bem-aventuranças, como fica evidente na própria vida e ensino de Jesus. A falsa humildade é, na verdade, voltada para si mesma e absorta em si mesma. Na verdade, a pessoa falsamente humilde é orgulhosa. ORGULHOSAMENTE HUMILDE É sempre a pessoa humilde que fala demais; o orgulhoso se vigia bem de perto. — G. K. CHESTERTON Um homem nunca é tão orgulhoso como quando adota conscientemente uma atitude de humildade. — C.S.Lewis Minha lista continha apenas doze virtudes. Até o dia em que um amigo quaker gentilmente informou-me de meu orgulho, ele disse que, com freqüência, meu orgulho se evidenciava em minhas conversas e parecia não ser suficiente eu saber que estava certo quando se discutia algum assunto, pois me tornava autoritário e muito insolente. Ele convenceu-me disso ao mencionar diversas ocasiões em que o orgulho se manifestara em mim. Por esse motivo, esforcei-me em fazer o possível para curar-me desse vício, dessa estupidez entre outras. Assim, adicionei humildade a minha lista, dando-lhe um extenso significado. Não posso vangloriar-me de ter tido sucesso em alcançar essa virtude, mas, exteriormente, parece que fui bastante bem sucedido...
45 Na realidade, é possível que nem uma de nossas paixões naturais seja tão difícil de dominar quanto o orgulho. Podemos disfarçá-lo, lutar com ele, submetê-lo, reprimi-lo, mortificá-lo o quanto quisermos, ainda assim ele permanecerá vivo e, às vezes, despontará e se mostrará. Provavelmente, você o verá muitas vezes nesta história, pois, mesmo que eu pudesse conceber que o superei por completo, eu provavelmente estaria sendo orgulhoso de minha humildade. — BENJAMIN FRANKLIN, AUTOBIOGRAPHY [AUTOBIOGRAFIA] Sim, o orgulho é uma tentação perpetuamente perturbadora. Continue frustrando suas intenções, mas não se preocupe demais com ele. Enquanto a pessoa sabe que é orgulhosa ela está salva da pior forma de orgulho. — C. S. LEWIS Não seja humilde, você não é tão incrível. — GOLDA MEIR, EX-PRIMEIRA MINISTRA DE ISRAEL Os que viajam pela estrada principal da humildade não estão preocupados com o tráfego. — ALAN SIMPSON, EX-SENADOR AMERICANO DE WYOMING
A segunda concepção errônea é mais profunda e mais perigosa. Nietzsche acreditava que a humildade era a expressão inconsciente do ressentimento, a inversão da agressão feita pelo fraco. Por ser o cristianismo, primeiramente, a religião de escravos sob opressão do Império Romano, Nietzsche argumentou que esses crentes transformaram sua imutável impotência em uma virtude (humildade), mas se ressentiam internamente do poder dos que governavam. Essa também é uma maneira muito errada de entender a bem-aventurança da humildade. Cristo manda que tanto o chefe como o servo tenha "pobreza em espírito". Humildade, no entendimento bíblico, não é ressentimento mascarado, mas sim uma forma de perspectiva clarividente. É realismo a respeito de nós mesmos e confiança em Deus. As religiões do mundo, em sua maioria, tratam de como superar o amor-próprio. Mas a visão exaltada da humildade encontrada nas bem-aventuranças é exclusivamente judaica e cristã, não é compartilhada por filósofos pagãos. Da perspectiva bíblica é apenas um reconhecimento da verdade da condição humana. O orgulho de pensar que, afinal, somos alguma coisa independente de Deus é pura estupidez. A GRANDE INVERSÃO Quando Nabucodonosor, poderoso rei da Babilônia, queria cantar louvores a Deus, um anjo veio e lhe bateu na face. A resposta do Rabi Mendl de Kotzk à pergunta sobre essa história foi: "Por que ele mereceu ser esbofeteado se a intenção era cantar louvores a Deus? Será que você gostaria de cantar louvores enquanto usa a coroa? Deixe-me ver como você me louvará após ser esbofeteado". — TALMUDE Foram os judeus que com grande consistência ousaram inverter a equação de valores da aristocracia (bom = nobre = poderoso = lindo = feliz = amado de Deus) agarrando-se fortemente a essa inversão com as garras do ódio mais profundo (o ódio da impotência) que diz: "Apenas os miseráveis são bons; os que sofrem, os desprovidos, os doentes, apenas os feios são piedosos, apenas esses são abençoados por Deus... e vocês, os poderosos e os nobres, ao contrário, são o mal, o cruel, o lascivo, o insaciável, o ímpio por toda eternidade, vocês não serão abençoados, vocês são os malditos, condenados portada eternidade". — FRIEDRÍCH NIETZSCHE, EM GENEALOGY OF MORALS [GENEALOGIA DA MORAL] Quando Francisco José, imperador da Áustria, morreu, o cortejo chegou aos portões fechados do monastério e um arauto bateu à porta. Ao que se escutou a voz do abade: "Quem é você?". "Eu sou Francisco José, imperador da Áustria, rei da Hungria", replicou o arauto. "Não o conheço. Quem é você?" "Eu sou Francisco José, imperador da Áustria, rei da Hungria, Boêmia, Galícia, Lodoméria e Dalmácia, grão-duque da Transilvânia, margrave da Morávia, duque da Estíria e Caríntia." A voz sepucral reiterou: "Não o conhecemos. Quem é você?". Assim, o mensageiro ajoelhou-se e disse: "Sou Francisco José, pobre pecador implorando humildemente a misericórdia de Deus". "Então, podes entrar", disse o abade, e os portões se escancararam. — COMTE DE SAINT-AULAIRE, COMENTANDO SOBRE A MANEIRA COMO A IGREJA CHECAVA O ORGULHO REAL DOS REIS, 1945 Nos Estados Unidos, você sabe que perdeu o poder quando sua limusine é amarela e seu motorista não fala inglês. — JAMESA. BAKER, EX-SECRETÂRIO DE ESTADO
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TOMÁS À KEMPIS Tomás à Kempis, (cerca de 1380 a 1471) foi um dos primeiros escritores de estudos devocionais, tornando-se famoso com o livro A imitação de Cristo. Nascido francês, de pais pobres, em Kempen, próximo a Colônia, tinha como nome verdadeiro Thomas Hemerken. Foi educado na escola dos Brethren of the Common Life (Irmãos da Vida Comum) e, em 1399, entrou para o monastério, do qual seu irmão mais velho era o fundador e o prior. Ali viveu por quase toda sua vida, pregando, escrevendo, copiando manuscritos e oferecendo conselhos espirituais. O livrou imitação de Cristo é um manual devocional que ensina aos cristãos como alcançar a maturidade tendo Cristo como modelo. Foi publicado, pela primeira vez, em 1418. As duas primeiras partes contêm conselhos gerais para a vida espiritual, a terceira parte trata das atitudes internas da alma e a quarta do sacramento da Santa Comunhão. A posição de Tomás à Kempis em relação ao orgulho e à humildade é vigorosa e rígida, quase ascética. Essa posição não se coaduna bem com o ponto de vista moderno. Contudo, as perspectivas de Kempis não devem ser posta entre as perspectivas cristãs excêntricas que surgiram ao longo dos séculos, e sim entre muitas de nossas perspectivas modernas. Vale a pena perguntar, no entanto, como essas perspectivas determinantes, como as de Tomás à Kempis, devem ser ouvidas hoje, de forma construtiva, sem distorções perigosas no contexto de nossas concepções modernas errôneas e nossas crises de identidade. O EGO: SERVIDO OU SERVO? Para que precisamos de amigos quando a fortuna nos favorece? — EURiPEDES Cada um cuide, não somente dos seus interesses, mas também dos interesses dos outros. Seja a atitude de vocês a mesma de Cristo Jesus, que, embora sendo Deus, não considerou que o ser igual a Deus era algo a que devia apegar-se; mas esvaziou-se a si mesmo, vindo a ser servo, tomando-se semelhante aos homens. E, sendo encontrado em forma humana, humilhou-se a si mesmo e foi obediente até a morte, e morte de cruz! Por isso Deus o exaltou à mais alta posição e lhe deu o nome que está acima de todo nome, para que ao nome de Jesus se dobre todo joelho, nos céus, na terra e debaixo da terra, e toda língua confesse que Jesus Cristo é o Senhor, para a glória de Deus Pai. — FILIPENSES 2.4-11 O egocentrismo é o engano mais absurdo, mais comum e mais amado. O indivíduo tende a agir como se seu ega fosse o centro do universo, a fonte e o propósito da existência. Que afronta descarada negar que Deus é essa fonte, esse propósito, a seiva e o sentido. — RABI MENACHEM MENDEL DE KOTZK
Como nos contemplar por meio da humildade, como pobres e desprezíveis à vista de Deus Será que eu, Senhor Jesus, ousaria falar contigo, eu que nada mais sou além de pó e cinzas? Em verdade, se eu pensar em mim como mais que apenas pó e cinzas contra mim te erguerás, e meus pecados também testemunharão contra mim. Não posso negar. Mas se me tiver por vil, e me aniquilar, e me reduzir a cinzas e pó que sou, assim, a tua graça estará muito perto de mim, e a luz do verdadeiro entendimento entrará em meu coração fazendo com que toda presunção e orgulho dentro de mim pereçam no vale da mansidão pelo perfeito conhecimento de minha vileza. Por meio da humildade me mostrarás o que sou, o que fui e de onde vim, pois não sou coisa alguma e não o sabia. Se me abandonares, não sou nada, e tudo é fraqueza e imperfeição; mas tão logo me restauras, mesmo que pouco, me farás forte e estarei cheio de nova alegria. E grande maravilha que eu, um miserável, seja tão rapidamente levantado de minha instabilidade na contemplação de coisas celestiais e seja sustentado com tanto amor, eu que, por mim mesmo, sempre me inclino para as atrações mundanas. Isso é obra do teu amor, ó Senhor, teu amor que vai adiante de mim e me ajuda em todas as minhas necessidades e me protege carinhosamente de todos os males e perigos nos quais me encontro diariamente propenso a tropeçar. Pelo amor desordenado que tenho de mim mesmo me extraviei de ti e me perdi. No entanto, ao procurar-te encontrei ambos, a ti e a mim mesmo. Por isso, desejo, daqui por diante, me desprezar mais profundamente e mais diligentemente
47 te procurar, muito mais do que fiz antes. Tu, Senhor Jesus, somente tu lidas comigo quando não o mereço, dando-me mais do que poderia pedir ou desejar. Extraído do livro A Imitação de Cristo, de Thomas à Kempis, Shedd Publicações. Traduzido do original em inglês The Imitation of Christ de Thomas à Kempis. Copyright © 1955 por Doubleday, uma divisão de Random House, Inc. Usado com permissão de Doubleday, uma divisão do Random House, Inc. IGNORÂNCIA PROGRESSIVA Se vi pouco mais que os outros, foi por estar sobre ombros de gigantes. — SIR ISSAC NEWTON Não sei como o mundo me vê, mas me vejo como um menino brincando na praia do mar e me divertindo* encontrando de vez em quando uma pedrinha mais lisa ou uma concha mais bonita que o normal, enquanto, à minha frente, o grande oceano da verdade deve ser inteiramente descoberto. — SIR ISSAC NEWTON Será que isso significa, por exemplo, que hoje todos nós sentados nesse salão temos maior conhecimento das condições de vida sob as quais existimos que um índio estado-unidense ou um hotentote? Dificilmente. A menos que seja físico, a pessoa que anda em um bonde elétrico não tem a mínima idéia de como o bonde se movimenta. E não precisa saber. Ela está satisfeita em poder 'confiar' no comportamento do bonde elétrico e orienta sua conduta de acordo com essa expectativa, mas não sabe como produzir um bonde de tal forma que se movimente. O selvagem conhece muito mais sobre suas ferramentas. — MAX WEBER, AO ALERTAR os ESTUDANTES QUE o PROGRESSO HUMILHA o ORGULHO
Perguntas para reflexão e discussão
1. No primeiro parágrafo, de que forma Kempis aspira enxergar a si mesmo? Qual ele acredita ser o resultado positivo em ter essa perspectiva? Que conexão ele faz entre humildade e "verdadeiro entendimento"? Explique essa conexão com suas palavras. 2. Para Kempis qual é o caminho para se obter força e alegria? O que ele vê como a conseqüência perigosa do amor próprio exagerado? De acordo com o autor, como é que uma pessoa realmente "se encontra"? Compare a posição dele sobre a proximidade do pecado e do amor próprio, com a perspectiva moderna de amor próprio e "se achar". 3. A visão de Kempis sobre a humildade pode ser aplicada a todas as pessoas? Mesmo àqueles que têm posição de liderança secular? Você vê conflito entre humildade e alguns estilos de liderança? Quais? 4. Como é possível fazer com que tal compreensão menosprezada da humildade seja diferenciada da falsa humildade e da idéia doentia de se ver como capacho?
JEREMY TAYLOR Jeremy Taylor (1613-1667) foi um bispo anglicano, teólogo e escritor do século dezessete. Nativo e graduado em Cambridge, ele chamou a atenção do arcebispo William Laud, que o apontou como capelão ao infortunado Charles I (e mais tarde à armada monarquista na Guerra Civil da Inglaterra). Após a derrota do rei, foi aprisionado por breve período de tempo após o que viveu no país de Gales e, mais tarde, na Irlanda, onde se tornou o vice-presidente da Universidade de Dublin. Taylor era um teólogo não muito distinto, cujas obras foram capazes de irritar tanto presbiterianos quanto católicos romanos. A razão de sua fama descansa em sua pregação e em seus escritos devocionais, especialmente o The Rule and Exercise of Holy Living [A regra e o exercício do viver santo] (1650). Esse livro tornou-se um pequeno clássico, elogiado por sua prosa elegante e sua espiritualidade balanceada e prática. Essas qualidades evidenciam-se nas diretrizes escritas por Taylor sobre como praticar a humildade- JUSTAMENTE INJUSTO Propôs também esta parábola a alguns que confiavam em si mesmos por se considerarem justos e desprezavam os outros: "Dois homens subiram ao templo para orar; um era fariseu e o outro, publicano. O fariseu, em pé, orava no íntimo: 'Deus, eu te
48 agradeço porque não sou como os outros homens: ladrões, corruptos, adúlteros; nem mesmo como este publicano. Jejuo duas vezes por semana e dou o dízimo de tudo quanto ganho'. Mas o publicano ficou à distância. Ele nem ousava olhar para o céu, mas batendo no peito, dizia: 'Deus, tem misericórdia de mim, que sou pecador'. Eu lhes digo que este homem, e não o outro, foi para casa justificado diante de Deus. Pois quem se exalta será humilhado, e quem se humilha será exaltado. — LUCAS 18.10-14 Deus cria tudo do nada - e tudo o que Deus usa ele primeiro reduz a nada. — SOREN KIERKEGAARD Um santo não sente mais o mínimo desejo de destaque; ele é o único tipo de homem superior que nunca foi uma pessoa superior. — G. K. CHESTERTON
Atos ou ofícios de humildade A graça da humildade é exercitada pelas seguintes regras: 1. Não pense que você é melhor por causa de alguma coisa que lhe aconteça vinda de fora... 2. A humildade não consiste em erigir cercas contra você mesmo, usar roupas de mendigo ou portar-se de forma suave e submissa. Consiste, porém, em ter de si próprio uma avaliação sincera de que você é realmente mau e medíocre... 3. Seja como for, fique contente quando vir que os outros acreditam na opinião que você tem de si próprio, de que você é mau. Não fique aborrecido quando ao se chamar de tolo, a outra pessoa concordar... 4. Procure viver de forma discreta e ser pouco notado. Fique contente em desejar honra, mas nunca se preocupe quando for desprezado ou subestimado, pois você mesmo não pode subestimar-se e se você se considera miserável -como, de fato, existe razão para tal - nenhum desprezo que tiverem por você lhe parecerá irracional. Portanto, tal desprezo será muito tolerável. 5. Nunca se envergonhe de seu nascimento, ou de seus pais, ou de sua profissão, ou de seu emprego atual... 6. Nunca fale algo que visa diretamente o aplauso e a honra, isto é, nunca diga nada cujo único alvo seja obter louvor. Se outros objetivos estiverem misturados com sua honra, se a glória de Deus, ou a caridade, ou a necessidade, ou qualquer outro tipo de prudência for seu objetivo, você não ficará obrigado a omitir seu discurso ou seu propósito para evitar elogios. Persiga seu objetivo, mesmo que o louvor o acompanhe. Só uma coisa é importante: não permita que o seu objetivo seja o aplauso. 7. Se receber algum louvor ou apreciação por qualquer coisa que você disse ou fez, receba tal louvor com indiferença e o devolva a Deus. Reflita no fato de que Deus é o doador da doação, ou aquele que abençoa a ação, ou quem lhe auxiliou no projeto. Assim, agradeça a Deus por fazer de você um instrumento para a glória dele ou para o benefício de outros. 8. Construa um bom nome vivendo de forma virtuosa e humilde. Contudo, esse bom nome deve ser nutrido fora, nunca trazido para casa para ser considerado, isto é, que outros tirem vantagem de seu nome; deixe que falem a respeito dele se assim quiserem fazer. Todavia, nunca o use de forma alguma, mas apenas como instrumento da glória de Deus e para o proveito de seu próximo. Deixe seu rosto brilhar como o de Moisés para que seja contemplado por outros, mas não faça espelhos para você. 9. Não se regozije quando for elogiado, mas faça com que o regozijo no dom de Deus seja moderado pelo temor, para que esse bem não se transforme em um mal para você. Use o louvor da mesma forma que você usa o prazer de comer e beber. Se for elogiado faça com que isso trabalhe pesado para servir a outros propósitos e para ministrar às necessidades e à cautela para que não perca, por causa dele, o justo louvor que você tem merecido; ou se for elogiado injustamente que receba vergonha contra si mesmo diante de Deus e de homens sábios. 10. Não use de estratagemas e artifícios para receber louvores. Há pessoas que analisam os erros
49 de suas ações ou palavras com o propósito de verificar se foram bem feitas ou bem faladas. Outros trazem o assunto à baila e forçam ocasiões para ser lembrado e comentado. Essas pessoas preparam a isca para persuadir a si mesmas a cair na armadilha, até que bebem das águas da vaidade, e incham, e explodem. 11. Não se justifique [desculpas para deficiências] quando for desonrado ou desdenhado, adulandose secretamente, pois merecia ser louvado e foi mal compreendido, ou que deixaram de lhe dar o que era justo por causa da inveja. Nem procure obter para si mesmo um palco com bajuladores particulares, cujos louvores vãos e elogios fantásticos o façam preservar a boa opinião que tem de si mesmo. 12. Não nutra fantasias de vaidade e sussurros confidenciais desse demônio do orgulho, como aconteceu com Nabucodonosor: "Acaso não é esta a grande Babilônia que eu construí como capital do meu reino, com o meu enorme poder e para a glória da minha majestade?" (Dn 4.30). Algumas pessoas de espírito fantasioso vagam sozinhas, sonhando acordadas com grandeza, palácios, discursos excelentes, teatros cheios, aplausos ruidosos, promoções repentinas, grandes fortunas, gastando o tempo com prazeres imaginários. Mas tudo que fazem não é nada além dos vapores de orgulho e de desejos e de significados secretos indefinidos daquilo que o coração delas deseja. No entanto, não há nada nisso que seja, em si mesmo, um vício. Contudo, tais coisas são uma mãe insana ou uma filha doentia, um mau sinal ou um efeito maléfico e, portanto, sempre inconsistentes com a salvaguarda e o interesse da humildade. 13. Permita que outros sejam elogiados em sua presença e celebre o bem e a glória deles com deleite; mas não os menospreze, de maneira alguma, nem diminua o relato, nem faça objeção, nem pense que a promoção de seu irmão é uma redução da sua dignidade. Contudo, esse ato também deve ir mais além. 14. Esteja contente que seu irmão seja usado e você posto como inútil, que a decisão dele seja aprovada e a sua rejeitada; que ele seja preferido para um trabalho melhor e que você seja reduzido a um trabalho inferior. 15. Nunca se compare cornos outros, a não ser que seja para favorecê-los e para humilhar a si mesmo. Com essa finalidade, estamos certos, de uma maneira ou de outra, de sempre nos considerarmos os piores em qualquer companhia de que nos aproximemos: um é mais letrado que eu, outro, mais prudente, o terceiro, mais ilustre, o quarto, mais casto ou mais caridoso ou menos orgulhoso. Pois a pessoa humilde observa o bem dos outros e reflete apenas sobre a própria vileza, ou reconhece as próprias e inúmeras perversidades por conhecê-las muito bem, mas hesita em reconhecer os erros dos outros, pensar que podem proceder de fonte duvidosa, ou considera que o mal feito pelos outros foi por causa da muita fraqueza ou ignorância deles, enquanto os próprios pecados são cometidos sob uma luz mais clara, e que se o outro tivesse uma ajuda tão grande como a que você mesmo recebeu, ele teria feito mais coisas boas e menos coisas ruins, ou lembra-se que os pecados cometidos antes da conversão, em certas circunstâncias, eram maiores que o pecado de outras pessoas... 16. Não esteja pronto a justificar cada descuido, indiscrição ou empreendimento errado de sua parte. No entanto, se você for culpado, apenas confesse, pois a honestidade despreza abrigar uma mentira. Uma mentira que encobre um pecado é como uma crosta leprosa que encobre uma úlcera. Se você não for culpado (a não ser que seja um erro escandaloso), não seja cuidadoso demais para o remover, mas, de preferência, use-o como argumento para punir toda a grandeza e a ilusão da opinião que tem de si mesmo. Use-o também para se acostumar a suportar, pacientemente a crítica e as palavras duras de seus inimigos, lembrando-se que a raiva de um inimigo monitora melhor nossas atitudes. O inimigo revela nossas faltas ou nos adverte de nossa responsabilidade com mais sinceridade que o carinho ou o bálsamo precioso de um amigo. 17. Agradeça a Deus por todas suas fraquezas, deformidades e imperfeições e aceite-as como um favor e graça da parte de Deus, como um instrumento para resistir ao orgulho e nutrir a humildade; lembre-se continuamente que Deus ao lhe dar uma coluna arqueada também lhe deu um espírito condescendente ou menos vaidoso, assim, você está mais preparado para entrar pela porta estreita do céu, que se ela estivesse ereta, conservando-se de pé e tendo pensamentos
50 elevados. Por isso, os apóstolos regozijavam-se em suas enfermidades naturais e acidentais, não morais, por serem açoitados e espancados como escravos em sua nudez e pobreza. 18. Não repreenda as fraquezas de nenhuma pessoa com o objetivo de causar desconforto a ela, nem a relate aos outros para depreciar a pessoa. Também não se deleite ao lembrar-se daquelas fraquezas com o fito de tornar a pessoa inferior a você ou a fim de fazer com que você seja superior. Cuide para nunca elogiar ou depreciar qualquer outra pessoa, a não ser que a glória de Deus ou algum outro fim santo assim o requeira. Deve-se louvar Ciro, pois sabia-se que nunca participava, com os de sua idade, de qualquer esporte ou atividade física em que sabia ser melhor que os outros. Contudo, desafiava os outros para disputar esportes em que era inexperiente para não envergonhálos com sua vitória, e para que pudesse conhecer as habilidades deles e, assim, elogiá-los. 19. Além dessas ações precedentes, a humildade nos ensina a submetermo-nos a Deus em todas nossas aptidões. Para crer em tudo, fazer tudo e sofrer todas as coisas que a vontade dele prescreveu para nós; para estar contente em cada situação ou mudança sabendo que merecíamos o pior do que o pior que sentimos; e (como Anito disse a Alcibíades) ele tirou apenas metade, quando poderia ter tirado tudo; para adorar sua bondade, temer seu poder, adorar suas excelências eternas e infinitas e submetermo-nos a todos nossos superiores em todas as coisas com piedade e sermos mansos e amáveis em nossas conversas. Cada graça, conforme sua natureza, começa como uma dádiva e é aumentada como hábito, isto é, aperfeiçoada por seus próprios atos. Apesar disso, no entanto, além das ações prévias e do ofício divino da humildade, há ainda outros exercícios e considerações que são de grande ajuda e instrumentalidade para alcançar e elevar essa graça, e conseguir a cura do orgulho. De Jeremy Taylor, The Rule and Exercise of Holy Living (London: Bell and Daldy, 1857), pp. 79-84. AQUELE QUE SENTA SOBRE O PRÓPRIO TRASEIRO Mesmo no trono mais elevado do mundo o homem senta sobre o próprio traseiro. —MONTAIGNE
Perguntas para reflexão e discussão
1. Releia, uma a uma, as dicas práticas de Taylor no combate ao orgulho. Releia as dicas de números 1, 3, 4, 6, 7, 10, 11, 13 e 15. Para cada dica pergunte a si mesmo: O que ele está dizendo? Por que isso funciona? Na prática, qual a utilidade disso? 2. Ache entre as outras dicas as duas que mais se sobressaem. Faça as perguntas acima para cada uma delas. 3. Com qual das dezenove dicas você se identifica mais? Qual foi de maior ajuda? Por quê? Como você pode pô-la em prática em sua vida? 4. Que fatores na sociedade moderna dificultam essa atitude em relação à humildade? Em sua opinião, que mudanças ocorreriam em sua esfera de ação se tal humildade fosse praticada com seriedade?
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Capítulo 2 Inveja (invidia) versus lamento
A inveja é o segundo pecado capital e, em geral, é reconhecido como o segundo pior e mais predominante. Chamam-no de "a hidrofobia do coração" (Herman Melville) e "o câncer da psique" (Richard Condon). A inveja é a fonte e o componente fundamental dos outros pecados. A inveja, como o orgulho, também é um pecado do espírito e filho do Diabo, portanto, um pecado "frio" e "respeitável". Sua característica única encontra-se no fato de ser aquele vício que seus perpetradores nunca apreciam e raramente confessam. Como Henry Fairlie escreveu: "O aspecto da inveja nunca é agradável. E não é de maneira alguma confortável". A inveja sempre foi incapaz de trazer prazer, por isso, quanto maior seu apetite mais ela compele seu perpetrador ao desespero. O VÍCIO INADMISSÍVEL Não há vício mais pernicioso do que a inveja implantada no coração humano. Essa paixão é primeiramente um prejuízo para a pessoa culpada, mas não causa danos aos outros... A inveja é a dor causada pela prosperidade do próximo. Por conseguinte, uma pessoa invejosa sempre possui um motivo para tristeza e desânimo... A pior característica dessa dor, no entanto, é que a vitima não pode revelá-la a ninguém. — SÃO BASÍLIO, O GRANDE Será que a inveja é um monstro tão grande? Bem, mesmo que muitos mortais tenham confessado sua culpa por ações terríveis para assim aliviarem a pena, alguém já confessou, de fato, ser culpado de inveja? Há algo na inveja, sentido por todos, que a torna mais vergonhosa que até os crimes mais hediondos. Além de ser negada por todos, até mesmo os melhores indivíduos ficam incrédulos quando ela é imputada, com honestidade, a um homem inteligente. Mas como a inveja se aloja no coração, e não no cérebro, não há inteligência que forneça garantias contra ela. — HERMN MELVILLE, BILLY BUDD O que mais nos devora é a inveja que sentimos dos outros. Esfregue os olhos, purifique o coração e estime, acima de tudo neste mundo, aqueles que o amam e lhe desejam o bem. — ALEKSANDR SOLZHENITSYN
Alguns mal-entendidos comuns, como no orgulho, paralisam o aguilhão da perspectiva clássica de inveja. Primeiro, a inveja não é emulação. Não é apenas a questão de ver que outra pessoa possui algo que eu quero, desejando-o também para mim. Tal desejo pode se tornar uma aspiração positiva, levando a pessoa a uma imitação positiva, uma ambição positiva e um sucesso maior — como se vê na mobilidade do sonho estado-unidense. O QUE A INVEJA NÃO É Se essa paixão for um simples desejo de destacar-se acima dos outros, pela diligência justa na procura da verdade e na prática da virtude, é apropriadamente chamada de Emulação. Quando seu alvo é o poder como meio de distinção, ela se denomina Ambição... Quando seu alvo é humilhar a superioridade de outrem e trazê-lo ao nosso nível ou torná-lo inferior a nós, ela é oportunamente chamada de Inveja... Essas observações já seriam suficientes para demonstrar que a propensão, com todas suas ramificações, é a fonte principal das virtudes e dos vícios, a alegria e a miséria da vida humana, mostrando que a história da humanidade nada mais é que a simples narrativa de suas ações e seus efeitos. — JOHN ADAMS, DISCOURSES ON DAVILA [DISCURSOS SOBRE DAVILA]
A inveja é o "desgosto pelo bem alheio" (Tomás de Aquino). A inveja entra em ação quando vemos a felicidade e o sucesso de outra pessoa. Primeiramente nos comparamos e achamos que nos falta algo, e essa nossa condição desprovida e a dor proveniente da auto-estima ferida nos faz rebaixar, por palavras e atos, a outra pessoa ao nosso nível. Em resumo, a inveja se move da tristeza ao menosprezo, e do menosprezo à destruição. Não é tanto o olhar para quem está acima de nós, mas o rebaixá-lo. Se as posses ou o sucesso de alguém me depreciam, pensa o invejoso, preciso rebaixálo ao meu nível. O desejo de ter o que o outro possui termina no desejo de que o outro não tenha
52 isso e, por fim, no fazer tudo para se certificar de que não o tenha. Isso é decisivo no sentimento que a pessoa invejada é a culpada dos sentimentos de inferioridade do invejoso. Portanto, a concorrência, a emulação (como no sonho estado-unidense), pode ser vista como uma escada rolante que promove os indivíduos, fazendo-os subir na sociedade. A inveja reverte a engrenagem, faz a escada rolante descer. SE NÃO FOR EU, NÃO SERÁ NINGUÉM Não há muitas pessoas capazes de reprimir o segredo da satisfação com o infortúnio de seus amigos. — LA ROCHEFOUCAULD Felicidade — Uma sensação agradável proveniente da contemplação da miséria de outrem." —AMBROSE BIERCE, THE DEVIL'S DICTIONARY [DICIONÁRIO DO DIABO] A inveja começa com a plausível pergunta: "Por que não posso desfrutar do que os outros desfrutam?". E termina com a exigência: "Por que os outros têm o que eu não tenho?". — DOROTHY SAYERS A inveja sempre faz a acusação mais correta, ou aquela que ela pensa que está mais próxima da verdade; e essa sempre dói mais. — CS. LEWIS Chorei quando, em 1948, vi os críticos delirarem ao ver Sir Lawrence Olivier fazer o papel de Hamlet — SIR JOHN GIELGUD
Primeiro, inveja é diferente de ciúme, pois começa com uma discriminada sensação de inferioridade, enquanto o ciúme inicia-se com a sensação de ter sido roubado do que lhe é devido. Ambas as palavras, inveja e ciúme, geralmente se sobrepõe em seu uso comum, mas o ciúme já foi algo distinto — um empenho apaixonado com o fim de manter o que era seu por direito. Nesse sentido, Deus é, corretamente, descrito na Bíblia como tendo ciúmes, mas nunca como invejoso. Por exemplo: Deus é "zeloso de seu nome", mas sendo infinito, ele nunca tem rival ou é ameaçado. Mesmo esse ciúme, sentido de maneira apropriada, torna-se um erro na experiência humana — não em Deus — quando é ameaçado. Portanto, quando começamos a suspeitar que alguém tenta tirar o que é nosso por direito, esse sentimento vem seguido de desconfiança e ódio, fazendo com que o ciúme justo se degenere em vício. Essa clara distinção entre a inveja e o ciúme não se aplica àqueles cujos deuses são finitos, tais como os deuses gregos, pois esses — sendo finitos — possuem rivais. Por esse motivo, os gregos previnem, inúmeras vezes, que os deuses neutralizam qualquer um que se sobressaia. O relâmpago dos deuses fulmina as árvores mais altas, os animais maiores e os edifícios mais altos. A maneira antiga de se evitar a "inveja dos deuses", que ainda sobrevive no mundo contemporâneo, inclui atitudes como a retraída modéstia inglesa e japonesa ou o costume supersticioso de "isolar" (batendo com as juntas dos dedos na madeira) para afastar o mau agouro. Esse pecado capital, a inveja, possui várias características universais. Primeiro, a inveja é um vício de proximidade. Estamos sempre propensos a invejar as pessoas que estão próximas de nós com dons, temperamentos ou posições parecidas. Assim, mães são sempre propensas a invejar outras mães; escritores, outros escritores; advogados, outros advogados; políticos, outros políticos; jogadores de golfe, outros jogadores de golfe; ministros, outros ministros, e assim por diante. PERTO DEMAIS PARA CONFORTAR A maldade é criada pelas cercas baixas dos jardins ou pelas ruas estreitas em que os homens convivem permanentemente uns com os outros, e o pomar de um lança sombra destruidora sobre a vinha do outro. É um elixir fermentado pelo contato íntimo... A indiferença não produz malícia. — GEORGE STEINER, MAUCE [MALÍCIA]
Segundo, a inveja é altamente subjetiva. Está "nos olhos de quem vê". Não é a diferença objetiva entre pessoas que alimenta a inveja, mas sim a percepção subjetiva. Como diz um provérbio russo: "A inveja olha para o zimbro e vê uma floresta de pinheiros". Terceiro, a tentação de ter inveja não diminui com a idade. Ao contrário, ela piora à medida que,
53 cada vez mais, nos deparamos com pessoas com boa sorte e sucesso, o que alimenta mais a inveja. Quarto, a inveja, na maioria das vezes, é insignificante, mas sempre insaciável e muito desgastante. A inveja, por menor que seja sua causa, torna-se vital no invejoso. O invejoso "sofre a conseqüência de seus erros". E o pior de tudo é que a inveja inicia-se no maior dos sete pecados capitais - o orgulho - e mergulha no pecado mais degradante de todos - ódio ou desamor. (O ódio não se encontra incluso nos sete pecados capitais, pois não é capital no sentido de ser solo fértil para outros pecados. Ele é terminal, a árvore em sua forma adulta, o último estágio de pecado quando a inveja ou a raiva transforma-se em puro ódio e, portanto, é verdadeiramente satânico —, pois como Peter Kreeft observou: "Satanás é ódio puro, enquanto Deus é amor absoluto".) QUANDO O LOUVOR É VENENO Tudo o que Saul lhe ordenava fazer, Davi fazia com tanta habilidade que Saul lhe deu um posto elevado no exército. Isso agradou a todo o povo, bem como aos conselheiros de Saul. Quando os soldados voltavam para casa, depois que Davi matou o filisteu, as mulheres saíram de todas as cidades de Israel ao encontro do rei Saul com cânticos e danças, com tamborins, com músicas alegres e instrumentos de três cordas. As mulheres dançavam e cantavam: "Saul matou milhares, e Davi, dezenas de milhares". Saul ficou muito irritado com esse refrão e, aborrecido, disse: "Atribuíram a Davi dezenas de milhares, mas a mim apenas milhares. O que mais lhe falta senão o reino?" Daí em diante Saul olhava com inveja para Davi. — 1 SAMUEL 18.5-9
E, por fim, a inveja sempre é autodestrutiva. O que o invejoso não pode usufruir, ninguém pode, portanto, o invejoso perde todo e qualquer prazer. Conforme afirmado por um judeu do século VIII: "O invejoso não ganha nada nem desprovê o invejado. Portanto, apenas ele perde". O masoquismo essencial da inveja é ilustrado em uma parábola judaica sobre um homem invejoso e um ganancioso que encontraram um rei: Disse o rei: "Um de vocês pode me pedir algo e lho concederei, e cuidarei que o outro ganhe duas vezes mais". Isso deixou os dois homens em um dilema. O invejoso não quis ser o primeiro a pedir, pois invejava seu companheiro que receberia porção dobrada. Mas o ganancioso também não quis ser o primeiro, pois queria ter tudo, tudo que alguém pudesse eventualmente receber. Por fim, o ganancioso persuadiu o invejoso a ser o primeiro a fazer o pedido. Então, o invejoso pediu ao rei que arrancasse um de seus olhos, sabendo que, dessa maneira, seu companheiro teria os dois olhos arrancados. Conclusão: Os consumidos pela inveja se dispõem a sofrer grandes prejuízos, desde que aquele a quem inveja sofra ainda mais.
Ilustrações e metáforas Se a postura característica do orgulho é "olhar para baixo", a postura da inveja é "olhar para cima". Os olhos são a primeira grande metáfora desse vício. De fato, ao longo da história protegerse do invejoso sempre foi "evitar o mau olhado". Com certeza, a cor da inveja é o verde. Contudo, estar "verde de inveja" é sempre ilustrado com olhos — "olhos semicerrados" que se levantam ou se voltam para qualquer coisa vista como superior. A terrível ilustração de Dante, no Canto 13 do Purgatório, é um bom exemplo de seu tema recorrente em que os pecados específicos são castigados com punições específicas. Os invejosos, no purgatório, são descritos como tendo os olhos vedados com fios de náilon desenhados atravessando as pálpebras — da mesma forma como os fios de seda eram costurados atravessando as pálpebras dos falcões para cegá-los e domá-los. Uma vez que viveu e foi incapaz de olhar para a felicidade alheia, seu castigo é ter os olhos vedados para não ver nem o sol nem a felicidade de qualquer um que o olhar nos olhos e o cumprimentar. A outra metáfora importante da inveja é o fogo. A inveja é um fogo devorador, um veneno que se espalha, um carvão em brasa, uma flecha com a ponta cheia de veneno. Toda vez que ela atinge, magoa e se espalha. Ela destrói e devora. Ela destrói o invejoso até que seja consumido interiormente pela tortura da vingança. A inveja apesar de ser um vício mais secreto que outros, encoleriza-se mais livremente. Não é à toa que, como Angus Wilson descreve, a inveja exibe "uma
54 face mais feia que os olhos vermelhos de sangue da luxúria, ou ainda mais feio que a pança da glutonaria, ou o nariz de camelo do orgulho, ou ainda os lábios finos da avareza".
Aplicações práticas A safra potencial semeada pela inveja, da mesma forma que o orgulho, é incalculável. E significativo que nem a sabedoria popular nem qualquer sistema tradicional de ética tenham, alguma vez, contemplado a inveja como uma virtude - mesmo que, às vezes, ela seja incentivada pela propaganda ocidental, e que o marxismo, do século XX, tenha transformado, em grande escala, a inveja do proletariado em algo legítimo. INCLUSO NO VALOR DO QUARTO Se você nunca se hospedou no Hotel Waldorf, pode, sem razão, pensar que é muito caro. A admiração [ou inveja] de seus amigos está inclusa na diária do quarto. — PROPAGANDA NO THE NEW YORK TIMES, DEZEMBRO DE 1961 Serás invejado por se sentar nesse assento. — PROPAGANDA PARA UM CAMINHÃO ALEMÃO, 1966 Obsessão por suítes? Luxúria na sala de estar? Inveja das cozinhas? Desejos por salas de jantar?... Melhore o conforto e o valor de seu imóvel e se torne a inveja da vizinhança. — PROPAGANDA FEITA POR UMA COMPANHIA DE REMODELAMENTO DE CASAS, EM WASHINGTON, D. C, 1999
Muitas das caracterizações da inveja, na literatura e na arte, são lendárias - tal como lago, de William Shakespeare, em Otelo, Uriah Heep, de Charles Dickens, em David Copperfield, Billy Budd, de Herman Melville, e Antônio Salieri, de Peter Shaffer, em Amadeus. Mas a inveja também age na vida diária, em quase todos os níveis e esferas da sociedade, criando tensões na vizinhança, hostilidade étnica e racial, rivalidade entre os sexos e conflitos nacionais e internacionais. LEVANDO-O ÀS RUAS Em várias ocasiões fechei a fábrica, pois o dia estava lindo e queria pescar. Não queria que os outros companheiros tivessem mais dinheiro em seu envelope de pagamentos. — COMENTÁRIO DE UM SINDICALISTA INGLÊS AO SER CHAMADO PARA DAR EXPLICAÇÕES SOBRE AS GREVES HABITUAIS QUE ELE INICIAVA NA FÁBRICA EM QUE TRABALHAVA
Não tinha recursos para comprar um carro... e não queria que as outras pessoas tivessem um. — CONFISSÃO DE UM VÂNDALO, À POLÍCIA, APÓS ATEAR FOGO EM OITO CARROS EM BRIDGEPORT, CONNECTICUT
Entre os problemas ligados diretamente à inveja estão os incêndios propositais (em oposição ao roubo), os assassinatos e o vandalismo. O ressentimento e o ódio, a nível individual, são óbvios e bastante sérios, mas não nos surpreendem. No entanto, a inveja não é tão facilmente traçada a nível público, a qual, em muitas áreas, tem conseqüências devastadoras - como, por exemplo, o igualitarismo excessivo do socialismo e de algumas formas de democracia moderna; os excessos da ação afirmativa; o apelo, raramente velado, para a imposição de impostos progressivos e de muita propaganda; a motivação deformada para o jogo de vítima terapêutica; o desejo por direitos e por autorização; a destruição violenta por intermédio de uma série de fofocas e "shows incompetentes" na televisão, e o fato de que muitas sociedades ocidentais tornam-se cada vez mais raivosas, abastecendo de ira uma cultura perturbada, enquanto as elites ocidentais exibem sinais de culpa extrema que afirmam servir de meio para evitar a inveja. INVEJA COMO JUSTIÇA SOCIAL? Igualdade é a tradução política para a palavra inveja. — VICTOR HUGO, JOURNAL 1830-1848 Justiça social significa negar-nos muitas coisas para que os outros também possam passar sem elas ou não sejam capazes de pedi-las, o que afinal é a mesma coisa." — SIGMUND FREUD, "GROUP PSYCHOLOGY AND THE ANALYSIS OF THE EGO" ["PSICOLOGIA DE GRUPO E A ANÁLISE DO EGO"] O antagonismo político não deveria degenerar em inveja social.
55 — LEMA DO PARTIDO LIBERAL DA INGLATERRA
Em resumo, a inveja é uma eterna ameaça para o sucesso humano, tanto a nível individual como nacional. A pessoa bem sucedida nunca está segura de que não haja alguém, em algum lugar, à espreita para se vingar de seu sucesso ou superioridade. A inveja humana ainda levanta um desafio supremo aos democratas capitalistas do ocidente: como uma nação pode permitir a desigualdade resultante de oportunidade e de competição, sem também despertar o dano social produzido pela inveja dos outros? As próximas leituras examinam o poder destrutivo da inveja e suas conseqüências, tanto para indivíduos como para grupos e sociedades como um todo. O CÂNCER DA PSIQUE O presidente Kennedy foi vítima de Lee Harvey Oswald, pois o jovem príncipe da Casa Branca era e tinha tudo o que Oswald, o perpétuo fracassado, não podia ser ou ter. — NEWSWEEK, DEZEMBRO 1963 Os ressentidos, aqueles homens com câncer na psique, tornam-se os grandes assassinos. — PSIQUIATRA NO LIVRO THE MANCHURIAN CANDIDATE [O CANDIDATO DA MANCHÚRIA, EM PORTUGUÊS: SOB O DOMÍNIO DO MAL], DE RICHARD GORDON Não fui destinado à tarefa pública ou ao centro das atenções da vida pública em Washington. Aqui, arruinar a vida das pessoas é considerado um esporte. — BILHETE DEIXADO POR VINCENT FOSTER, JR., ASSESSOR DA CASA BRANCA, POR OCASIÃO DO SUICÍDIO EM 1993 Por aqui há muita inveja dos ricos e dos bem sucedidos. Se você tiver alguma coisa bonita, há quem se ressinta disso. Os estado-unidenses dizem: "Qualquer dia desses terei um daqueles"; por aqui se diz: "Quem ele pensa que é?". Isso porque aqui a lacuna entre os que têm e os que não têm é maior que nunca. E tanta hipocrisia tem sido exposta que o público britânico está cada vez mais ciente disso. Há vinte anos, quando um político falava sobre os valores familiares e a preocupação com a comunidade, você acreditava nele; hoje pensa-se que ele é um corrupto que suborna outros, que está também cheio de amantes e, conseqüentemente, que fica rindo de nós enquanto vai para a casa de campo. — MAX CLIFFORD, 1995, REPRESENTANTE BRITÂNICO CONTANDO HISTÓRIAS DO TIPO "BEIJE E CONTE" EM QUE EXPÕE OFENSAS SEXUAIS DE RICOS E FAMOSOS
PLUTARCO Plutarco (A.D. 46-120) é um dos historiadores mais famosos do mundo antigo, o livro que o fez mais conhecido é The Lives of the Noble Grecians and Romans [A vida de gregos e romanos nobres]. Nasceu em Boeotia, estudou em Atenas e viajou extensivamente, inclusive para Roma onde suas palestras atraíram grande atenção. Viveu a maior parte de sua vida na Grécia servindo como líder na cidade onde morava e como sacerdote do deus Apollo. Apesar de Plutarco ser mais bem conhecido pelo seu trabalho histórico no The Lives of the Noble Grecians and Romans [A vida de gregos e romanos nobres], não era um historiador no sentido moderno da palavra. Para começar, ele era notoriamente desatento à precisão com números. Também era mais moralista que historiador e possuía grande paixão por histórias com fundo moral, quer verdadeira quer alegórica. E signifícante, no entanto, que caráter, virtudes e vícios eram mais importantes para ele que a política, as leis e as guerras. Sua mente parecia retornar continuamente às grandes teorias e éticas de Platão e Aristóteles, seus companheiros gregos. A passagem seguinte vem de seu capítulo sobre o líder ateniense, Aristides, o Justo. Aristides era um excelente estadista e general, vítima da inveja popular. Ele havia lutado bravamente na batalha de Maratona e foi notável na defesa de Atenas contra a invasão Persa, em 480 a. C. Contudo, era conhecido acima de tudo por sua lealdade e integridade - quando a liga Delian foi formada, após a guerra Persa, ele foi convocado para determinar a contribuição para cada um dos quase duzentos estados. Ninguém questionou sua avaliação nem o acusou de parcialidade. Por esse motivo foi surpreendente quando Aristides se tornou vítima de ostracismo em Atenas. O ostracismo, um exílio de dez anos, tinha como intenção a salvaguarda constitucional, o equivalente ateniense do "período limite" (limite máximo que um oficial público pode ficar em sua posição). Mas Plutarco a descreve aqui como uma maneira injusta de desabafar a inveja popular em relação aos cidadãos de destaque.
56 IMPOSTO NACIONAL DE INVEJA Quando há grande propriedade, há grande desigualdade. Para cada homem muito rico deve haver, no mínimo, quinhentos pobres. A afluência de poucos presume a indigência de muitos que são geralmente compelidos pela necessidade e incitados pela inveja a invadir as posses dos ricos. É somente sob a proteção do magistrado civil que o proprietário daquela propriedade valiosa, adquirida com o trabalho de muitos anos ou talvez ao longo de muitas gerações sucessivas, pode dormir uma única noite em segurança. Ele está, o tempo todo, rodeado de inimigos desconhecidos que mesmo que nunca o tenha provocado, nunca poderá apaziguar e de cuja injustiça só poderá se proteger pelo braço poderoso do magistrado civil levantado continuamente para punir os infratores. — ADAM SMITH, WEALTH OF NATIONS [A PROSPERIDADE DAS NAÇÕES] Em uma era sem paixão e fortemente refletiva, a inveja é o princípio negativo unificador... A inveja que se estabelece é o processo de nivelamento e enquanto uma era apaixonada acelera, ergue-se e é subjugada, levanta e cai, uma era refletiva e sem paixão faz o oposto, estrangula, inibe e nivela. Nivelará uma atividade matemática abstrata silenciosa que evita toda e qualquer comoção. — SOREN KIERKEGAARD, THE PRESENTAGE [A ERA PRESENTE] O governo dos fracassados, por fracassados e para fracassados. — WINSTON CHURCHILL, DEFININDO SOCIALISMO O sonho socialista não é mais uma utopia, mas uma filotopia, a realidade de pessoas nas filas à procura de ajuda! — WINSTON CHURCHILL O socialismo é a filosofia do fracasso, o credo da ignorância e o evangelho da inveja. — WINSTON CHURCHILL A Declaração de Independência dos Estados Unidos diz que todos os homens têm o mesmo valor e devem ser mantidos dessa maneira. — WINSTON CHURCHILL Odeio esses socialistas e seus "o que você recebeu a mais que eu, tirarei de você, mesmo que eu não o possa ter". — DAVID LEAN, DIRETOR DO FILME LAWRENCE DA ARÁBIA
Aristides Aristides, filho de Lisímaco, nascido da tribo de Antioquia, distrito de Alopece. Os relatos divergem quanto a sua riqueza; alguns dizem que passou sua vida em extrema pobreza deixando duas filhas, cuja indigência as deixou solteiras por muito tempo. Mas Demétrio, o faleriano, em oposição a essa informação geral, alega, em Sócrates, conhecer uma fazenda, em Falero, com o nome de Aristides, onde ele foi enterrado; e como prova de sua opulência dá, como exemplo, primeiro o ofício de arconte-epônimo que obteve por um lance de sorte; o qual era exclusivo para famílias com mais posses conhecidas como eupátridas. Segundo, o ostracismo não era aplicado, com freqüência, aos cidadãos mais pobres, mas aos de famílias importantes cuja posição os expunha à inveja. E terceiro e último, ele deixou certos trípodes no templo de Baco, ofertas por sua vitória na condução da representação de performances dramáticas que ainda podem ser vistos, até hoje, com esta inscrição: "A tribo de Antioquia obteve essa vitória: Aristides custeou os gastos [...]". De todas suas virtudes, era sua justiça que afetava mais o povo, pois era usada de modo contínuo e comum; e, portanto, embora com pouca riqueza e nascimento ordinário, ele retinha o nome mais real e mais divino, o nome de Justo: nome pelo qual, no entanto, reis e tiranos nunca se interessaram, deleitando-se, no entanto, em serem conhecidos com o nome de sitiadores, trovejadores, conquistadores ou águia e falcão; reputação que parece vir do poder e da violência, e não da virtude. Contudo, a divindade à qual desejam se comparar e incorporar distingue-se, supostamente, em três coisas, a imortalidade, o poder e a virtude; dessas três a mais nobre e mais divina é a virtude. Pois os elementos e o vazio possuem existência eterna; e os terremotos, os trovões e as torrentes possuem grandes poderes; mas na justiça e na equidade nada participa exceto a razão e o conhecimento daquilo que é divino. Portanto, tomando essas três variedades de sentimentos comumente considerados como atributos de uma deidade — a razão de sua felicidade, o medo e a honra que lhe é devida —, as pessoas
57 pareciam pensar que ele era abençoado e feliz pela imortalidade e por não ser corrupto, tinham medo e temor dele por causa de seu poder e seu domínio, porém, amavam-no, honravam-no e adoravam-no por sua justiça. No entanto, apesar dessa disposição, cobiçavam a imortalidade e o poder que na maioria das vezes está à disposição das pessoas de fortuna, porém, tolamente, punham a virtude em último lugar, o único bem divino realmente bom e ao alcance de todos; pois a justiça torna a vida dos prósperos, dos poderosos e dos que têm autoridade na de um deus, enquanto a injustiça a transforma na de um animal. Portanto, Aristides teve originalmente a sorte de ser amado por seu cognome, mas, no fim, foi invejado por causa dele. Em especial, quando Temístocles espalhou o rumor entre o povo de que ele por determinar e julgar todas as coisas em particular destruíra a corte da magistratura e, em segredo, preparava caminho para, sem auxílio do exército, se transformar em monarca. Além disso, o espírito do povo agora em alta e confiante por sua última vitória naturalmente nutria sentimentos de desgosto em relação a todos que possuíam mais que a fama e a reputação comuns. Portanto, o povo reunido entrou na cidade, vindo de todas as partes, baniu Aristides pelo ostracismo, dando à inveja que sentiam de sua reputação o nome de medo da tirania. Pois o ostracismo não era uma punição para qualquer tipo de crime, mas uma simples humilhação e diminuição da grandeza e do poder excessivos; era, na verdade, um alívio gentil e a mitigação do sentimento de inveja que, assim, era aliviado sem infligir qualquer injustiça intolerável, mas apenas dez anos de desterro... O OSTRACISMO O ostracismo foi introduzido, em Atenas, por Cleistenes, fundador da democracia. Pretendia-se com isso deter as facções e salvaguardar contra o surgimento da tirania. Cada ano, provavelmente em janeiro, a assembléia ateniense votava se, naquele ano, haveria alguém mandado para o ostracismo. Se a maioria votava contra não havia nenhum ostracismo naquele ano. Mas se votavam a favor, outra votação seria feita em março. Cada cidadão poderia escrever o nome de uma pessoa que deveria ser banida da cidade. Os nomes eram escritos em um ostraca, pedaços de cerâmica que, na época, eram usados como papel essa é a origem do termo "ostracizar", exilar, Se 6.000 votassem a favor do ostracismo, a maioria requerida, a pessoa que recebesse a maior parte dos votos era mandada para o exílio por um período de dez anos. O sentido original dessa instituição, no entanto, não é uma válvula de segurança, mas um estímulo. O indivíduo notável deveria ser removido a fim de que a competição de forças pudesse ressurgir... — FREDRICH NIETZSCHE, COLLECTED WORKS [COLETÂNEA DE TRABALHOS]
Para ser breve, o processo era feito desta forma. Cada um que pegasse um ostraca, isto é, um pedaço de cerâmica, escrevia nele o nome do cidadão que gostaria de ver banido e levava o ostraca a uma área circundada por corrimões de madeira do mercado. Primeiro, os magistrados contavam o total de fragmentos (pois se não houvesse, no mínimo, seis mil fragmentos, o ostracismo era imperfeito), depois, depositavam cada nome em pilhas separadas, pronunciavam o nome escrito no número maior de fragmentos e baniam a pessoa por dez anos, juntamente com seus bens. No entanto, diz-se que um homem iletrado e desajeitado pediu que Aristides, supondo que fosse um cidadão comum, escrevesse em seu ostraca o nome de Aristides. Surpreso, ele perguntou ao homem se alguma vez Aristides o havia maltratado, ao que lhe responde o homem: "De maneira alguma, nem mesmo conheço esse homem, mas estou cansado de escutar todos chamarem-no de Justo". Dizem que Aristides, ao escutar isso não retrucou, mas devolveu o fragmento com seu nome escrito nele. Quando partiu da cidade, levantou as mãos aos céus e fez uma oração (que parecia ser o inverso da oração de Aquiles) para que os atenienses jamais sentissem constrangimento ao relembrar Aristides. Extraído do livro The Lives of the Noble Grecians and Romans, de Plutarco, traduzido para o inglês por John Dryden. Rev. Arthur Hugh Clough (New York: Modern Library, 1864). IGUALMENTE DESIGUAL O perigo não é que uma classe específica seja inadequada para governar. Todas as classes são incapazes de governar. — LORDE ACTON É verdade que todos os homens nasceram com direitos iguais. Cada pessoa tem direito sobre si mesma de maneira tão clara, tão moral e tão sagrada como qualquer outro direito. Isso é tão incontestável quanto qualquer governo moral no universo. Mas ensinar que todos os homens nasceram com poderes e faculdades iguais, com igual influência na sociedade, igual propriedade e vantagens iguais ao longo da vida é um engano tão vulgar e uma imposição tão evidente na credulidade das pessoas, como aquelas praticadas, em geral, por monges, druidas, brâmanes, sacerdotes do Lama imortal ou pelos filósofos auto-intitulados da revolução francesa.
58 — JOHN ADAMS, CARTAS A JOHN TAYLOR O homem invejoso é susceptível a qualquer sinal de superioridade individual no populacho e deseja abater qualquer um que tente chegar ao seu nível - ou deseja se erguer a um lugar superior. — FRIEDRICH NIETZSCHE, COLLECTED WORKS [COLETÂNEA DE TRABALHOS] Naturalmente, aos dez anos de idade eu não possuía qualquer visão ou sentimento claro em relação à política, mesmo que uma de minhas experiências mais vividas tenha ocorrido nessa época. Acredito que foi durante a eleição geral de 1924. Alguns drenos novos estavam sendo postos no jardim perto de minha casa. Tornei-me amigo de um jovem trabalhador e quando o período das eleições chegou perguntei-lhe se votaria nos conservadores. Sua face estreita, usualmente gentil e amigável, escureceu e ficou carrancudo. Ele disse: "O quê? Votar em pessoas, como seu pai, que vivem em casas enormes como aquela enquanto eu escavo esse escoadouro? Diabos, por que eu votaria neles?". Ele estava errado em assumir que por vivermos em uma casa grande - seria difícil ter uma escola em uma casa pequena tínhamos dinheiro, mas eu pensei no que disse e voltei para casa correndo assustado e tremendo. Muitas vezes, depois disso, lembrava-me dessa conversa. Ela cresceu para representarem minha mente o que imagino ser a atmosfera de quando ocorreu a revolução francesa. Recordo-me de pensar inúmeras vezes: "Há muito mais pessoas do tipo dele que do nosso". Isso era bastante realista. — WOODROW WYATT, MEMBRO DO PARLAMENTO INGLÊS (PARTIDO TRABALHADOR), INTO THE DANGEROUS WORLD [EM UM MUNDO PERIGOSO] Extraído de Into the Dangerous World, de Woodrow Wyatt, © 1952 por Woodrow Wyatt. Com permissão de Weidenfield and Nic, division of Orion Publishing Group.
Perguntas para reflexão e discussão
1. No parágrafo introdutório, de acordo com Plutarco o que expôs certas pessoas à inveja? De que maneira as causas da inveja são as mesmas ou diferem das de hoje? 2. De que forma as reflexões de Plutarco sobre o fato de Aristides ser chamado de "justo" são um raro tributo prestado aos administradores? De acordo com Plutarco quais são os atributos mais procurados pelos governantes em lugar da virtude? Por que é a virtude, e não a imortalidade e o poder, a peculiaridade divina mais nobre a ser procurada? 3. No quarto parágrafo, quais as duas razões específicas dadas por Plutarco para a crescente inveja em relação a Aristides? De que forma o mesmo cognome lhe proporcionara, primeiro, o amor e, depois, a inveja? Que nome os atenienses deram à "inveja de sua reputação"? Você já encontrou situações em que a inveja tem recebido um nome mais respeitável a fim de atingir seu propósito? 4. Qual era o propósito do ostracismo? Em sua opinião o ostracismo era uma maneira saudável ou doentia de lidar com o pecado da inveja? Por quê? 5. Por que o "homem iletrado e desajeitado" deseja que o nome de Aristides seja gravado em seu fragmento de cerâmica? O que o diálogo desse homem com Aristides revela sobre a causa da inveja que o levou ao ostracismo? 6. Que oração Aristides, ao deixar a cidade, faz por Atenas? Em sua opinião por que ele diz isso? 7. Em nossa sociedade que fatores encorajam o surgimento da inveja destrutiva? Como resultado disso, que tipos de ostracismo moderno praticamos?
WILLIAM LANGLAND William Langland - ou talvez Langley - (cerca de 1332-1400) é o nome dado ao autor do poema inglês The Vision of William Concerning Piers Plow-man [A perspectiva de William em relação a Piers, o lavrador]. (Há, na verdade, três versões diferentes do poema escritos por dois ou talvez, até mesmo, cinco escritores diferentes.) Embora seja contemporâneo de Geoffrey Chaucer, o poema foi escrito em um estilo rústico e mais antigo. O próprio Langland era um clérigo muito esforçado, e seu poema tinha certo apelo especial para aqueles que ocupavam a classe trabalhadora da Inglaterra - mais parecido com um episódio de Os Simpsons, de hoje, do que com um trabalho literário obscuro. Piers, o lavrador é uma sátira moral e social e talvez a descrição mais agressiva dos sete pecados
59 capitais da literatura inglesa medieval. Nessa poesia, Langland retrata cada pecado com um caráter individual cuja fraqueza moral particular tem vivida descrição física. O poeta pega no sono, nas colinas de Malvern, e sonha que em um lugar despovoado ele se depara com a torre da Verdade (Deus) sobre a colina e o calabouço do Erro (o Diabo) no vale profundo. E entre esses dois pontos há um "campo belo repleto de pessoas" (o mundo). Ele descreve todas as pessoas que vê e inclui personificações abstratas tais como a Consciência (que per suade as pessoas a se afastarem dos sete pecados capitais e ir à procura da Santa Verdade). Um simples lavrador, chamado Piers, aparece e oferece-se como guia para qualquer um que deseje fazer a jornada até a Verdade. Esse pequeno fragmento é um exemplo vivo do entendimento medieval da inveja. Ele também ilustra a profundidade com que o ensino ético era levado da teologia para a mídia artística, tais como a poesia, o teatro e a escultura (inclusive as gárgulas) a fim de fornecer ensino atrelado a um entretenimento bastante popular. A INVEJA QUE LAMBE OS BEIÇOS Ela [a inveja] é uma doença infecciosa. Pois da mesma forma como a infecção se espalha corrompendo o que é saudável, assim também tão logo surge a inveja, ela transforma até mesmo as melhores ações em mau cheiro. — FRANCIS BACON, THE ESSAYS OF COUNSELS, CIVIL AND MORAL [ENSAIO DE CONSELHOS cívicos e MORAIS] A inveja (livor) é a tendência de observar com desprazer o bem alheio, mesmo sem, de maneira alguma, depreciá-lo, Quando a inveja se transforma em ação (a fim de depreciar o bem alheio), ela é chamada de inveja qualificada. Quando não for esse o caso, ela é apenas denominada de má-vontade (invidentia). — IMMANUEL KANT, THE METAPHYSICS OF MORALS [A METAFÍSICA DA MORAL] A alegria maliciosa surge quando uma pessoa se acha conscientemente comprometida com a maldade e sente ânsia de remorso ou dor, O infortúnio que alcança B o faz igual a A, e Ase reconcilia e deixa de ser invejoso. Se A for próspero ele ainda acumula em sua memória o infortúnio de B como essencial para poder contrabalançar quando sofrer adversidades. — FRIEDRICH NIETZSCHE, COLLECTED WORKS [COLETÂNEA DE TRABALHOS]
Visões de Piers, o lavrador
Langland A inveja, angustiada, pediu absolvição; Pálida, como marfim, parecia paralisada. E como o alho-porro exposto longamente ao sol, Assim era sua aparência, de face magra e sombria de forma abominável Seu corpo inchado de raiva, mordendo os lábios, Premendo os punhos com ira, a fim de se vingar. Cada palavra articulada estava envenenada Xingar, e zombar, e difamar era seu meio de vida, Cólera, e difamação, e falso testemunho. Essa era sua cortesia onde quer que fosse. INVEJA "Seria absolvido", disse a víbora "se me atrevesse a ter vergonha". Por Deus, sou mais feliz quando Gilberto está sem sorte Que se tivesse engordado, essa semana, comendo queijo Essex! Tenho um vizinho que já irritei, muitas vezes, Tornando, por mentiras, seus amigos em inimigos. E no mercado ao encontrar a pessoa que mais odeio Saúdo-o tão alegremente quanto ao meu melhor amigo; Mas ao ir à igreja achego-me à cruz E, ao curvar-me ali, clamo: "Cristo, dê-lhe desgraça!" Ao tirar meus olhos do altar Noto a Nancy de casaco novo E desejo-o para mim, invejando a tecelagem; Rio-me quando vejo alguém perder, pois me acaricia a alma, Porém choro suas vitórias e lamento meus contratempos. E assim, vivo sem amor, como um cão ao léu.
60 E todo meu ser ferve amargo como fel. Que nenhum açúcar adoce ou mitigue o inchaço, Nem droga nem coquetel de ervas o retire de meu regaço, Nem vergonha nem confissão, a menos que me atices! ARREPENDIMENTO 'Sim, é claro' disse o Arrependimento, estendendo-me a mão, 'Tristeza pelo pecado é a sua salvação'. INVEJA Arrependido estou, disse ela, 'e isso raramente é diferente. O que, no entanto, me faz tão miserável é a falta de vinganças. Se puder, deixe-me corrigir isso pelo poder do Deus Todo-Poderoso!' De William Langland, Vision from Piers Plowman, traduzido para o inglês por Nevill Coghill (New York: Oxford University Press, 1950), pp. 38-39. UM VERDADEIRO INCENDIÁRIO DE CELEIROS Um inglês, um francês e um russo foram capturados por um rei canibal. Condenados a morrer na segunda-feira, recebem um fim de semana livre para fazer o que quiserem. O francês pediu um fim de semana em Paris com sua amante, sem perguntas e sem promessas. O inglês pediu um fim de semana andando pelos campos de Oxfordshire com seu cão perdigueiro enquanto recita Wordsworth e Shelley. O russo pediu para que o celeiro de seu vizinho fosse incendiado. — CONTO RUSSO
Perguntas para reflexão e discussão
1. Na primeira estrofe de Langland, qual é a característica da inveja ou o comportamento pessoal de inveja que salta aos seus olhos? Qual o benefício de descrever a inveja como uma pessoa com características particulares e vividas? 2. Para descrever a inveja, Langland usa as palavras "zombaria", "difamação" e "calúnia". Qual a forma moderna de mídia ou entretenimento que se adéqua a essa categoria? Esse perfil de inveja traz qualquer outra forma de instituição moderna ao seu pensamento? Quais? 3. Ache na primeira estrofe da inveja três exemplos sobre a maneira como se percebe e se comporta a inveja em relação às outras pessoas. A Inveja diz: "E assim vivo sem amor..." Por que a inveja e o amor genuíno são incompatíveis? 4. Qual a diferença entre a tristeza descrita pelo Arrependimento e pela Inveja? Quais as características de cada uma? 5. O que a descrição de inveja feita por Langland adiciona a sua compreensão prévia? 6. Pense sobre nossos equivalentes modernos do ensino atrelado a um entretenimento medieval (como desenhos animados, seriados cômicos televisivos e filmes). Em termos de instrução ética eles são fatores positivos ou negativos ou são completamente irrelevantes?
NATHANIEL HAWTHORNE Nathaniel Hawthorne (1804-1864) foi eminente romancista estado-unidense, diplomata e escritor de contos. Era filho de um capitão da Marinha, da Nova Inglaterra, e estudou no Bowdoin College onde conheceu Franklin Pierce (mais tarde presidente) e o poeta Henry Wadsworth Longfellow. Sempre nutriu profunda sensação de culpa em relação aos seus ancestrais, tanto pela perseguição puritana dos Quakers como pelos julgamentos das bruxas de Salem, entremeou seu trabalho com esse tema. Hawthorne sentiu-se atraído, por um breve período, pela experiência transcendentalista, em Brook Farm, mas não se sentiu atraído pela vida comunal. Assim, mudou-se para Concord e, mais tarde, voltou a Salem onde escreveu, em 1849, sua grande obra prima The Scarlet Letter [A letra escarlate]. Esse livro lhe trouxe fama e independência financeira, além de lhe dar a oportunidade de focar em romances, em vez de contos. Franklin Pierce ao tornar-se presidente nomeou Hawthorne o cônsul dos Estados Unidos em Liverpool, Inglaterra. O estilo preciso da prosa clássica de Hawthorne e seu uso de símbolos e alegorias impressionaram muito seu contemporâneo
61 Herman Melvüle e, posteriormente, os escritores estado-unidenses, como Henry James e William Faulkner. Abaixo, transcrevemos a parte de A letra escarlate que apresenta a fase final do poder deformador da inveja, quando se transforma em ressentimento e vingança. Hester cometeu adultério e teve um filho bastardo e, por isso, foi punida - como punição tinha de usar a letra A (de adúltera) em vermelho - no entanto, saiu dessa tragédia com uma digna maturidade. O reverendo Arthur Dimmesdale, seu amante, finalmente, confessou sua responsabilidade. Por fim, a vítima real da história é o marido de Hester, o médico Roger Chillingworth, que se recusou a perdoá-la e acaba destruído pelo ressentimento. O LONGO E ANTIGO CAMINHO DA VINGANÇA Abel tornou-se pastor de ovelhas, e Caim, agricultor. Passado algum tempo, Caim trouxe do fruto da terra uma oferta ao SENHOR. Abel, por sua vez, trouxe as partes gordas das primeiras crias do seu rebanho. O SENHOR aceitou com agrado Abel e sua oferta, mas não aceitou Caim e sua oferta. Por isso Caim se enfureceu e o seu rosto se transtornou. O SENHOR disse a Caim: "Por que você está furioso? Por que se transtornou o seu rosto? Se você fizer o bem, não será aceito? Mas se não o fizer, saiba que o pecado o ameaça à porta; ele deseja conquistá-lo, mas você deve dominá-lo". Disse, porém, Caim a seu irmão Abel: "Vamos para o campo". Quando estavam lá, Caim atacou seu irmão Abel e o matou. — GÊNESIS 4.2-8 [Inveja e ciúmes], partes privadas da psique humana [que acomodam os disfarces mais estranhos. Enquanto a inveja ordinária cacareja tão logo a galinha invejosa põe seu ovo e, dessa maneira, se acalma, há outra forma de inveja muito mais profunda]... nesse caso a inveja se torna mortalmente silenciosa, deseja que toda boca seja cerrada e torna-se cada vez mais raivosa, pois seu desejo não é satisfeito. Inveja silenciosa cresce em silêncio. — FRIEDRICH NIETZSCHE, COLLECTED WORKS [COLETÂNEA DE TRABALHOS] De todas as satisfações, a revanche é a mais custosa, quando abafada por muito tempo, a perseguição retroativa é... a mais perniciosa. — WlNSTON CHURCHILL
A letra escarlate Durante esse tempo, Hester não tirara os olhos do ancião, estava tão impressionada quanto surpresa pela mudança que sofrera nos últimos sete anos. Não que houvesse envelhecido, na magreza do rosto, apesar de serem visíveis os vincos da idade, transparecia ainda o vigor de quem não sente o peso dos anos. Mas o antigo aspecto, calmo e tranqüilo, de homem intelectual e de estudo, que era o de que ela mais se recordava, tinha desaparecido totalmente e cedera a vez a um olhar ansioso, investigador, quase feroz, embora cuidadosamente velado. Parecia que queria encobrir essa expressão com um sorriso, mas soava falso e tremulava-lhe na face de maneira tão irrisória que exatamente por isso o espectador via melhor o negrume. Também seus olhos emitiam constantemente um fulgor de luz avermelhada, como se a alma do ancião ardesse em fogo, como se fosse consumido por uma chama latente dentro do peito até que, por uma casual rajada de paixão, ardesse em momentâneo incêndio. Mas se tal era o caso, reprimia-o o mais depressa que podia, esforçando-se por não deixar transparecer a mínima perturbação. Em uma palavra, o velho Rogério Chillingworth era um notável exemplo de poder do homem em transfigurar-se em demônio; bastava-lhe um simples ato de vontade e desempenharia pelo tempo que achasse razoável o papel de Satanás. Esse sinistro personagem transformara-se dessa maneira ao dedicar-se, durante sete anos, à constante análise de um coração repleto de tortura, comprazendo-se nessa tarefa, vertendo óleo nas lancinantes feridas que sadica-mente analisava. A letra escarlate ardia no peito de Hester. Essa era outra ruína, cuja responsabilidade recaía, em parte, sobre ela. — Que vê em meu rosto, inquiriu o médico, — para me fitar assim tão séria? — Algo que me faria chorar, se tivesse lágrimas tão amargas para tanto, replicou ela. — Mas deixemos isso!... Foi extraordinária a mudança ocorrida quase imediatamente após a morte de Dimmesdale na atitude e no comportamento do velho, conhecido como Rogério Chillingworth. Todo seu vigor e energia - sua força vital e intelectual - parece que o abandonaram a ponto de ele, encarquilhado, murcho, quase sumir de vista, como erva ruim desenraizada que definha ao sol. Esse homem infeliz
62 adotou, como tema único de sua vida, a busca e o exercício sistemático da vingança. Quando em meio do completo triunfo e consumação esse lema perverso já não encontrava material que o alimentasse, quando, em suma, já não havia na terra obra do Diabo para ele executar, restou apenas ao mortal desumano partir para onde seu Senhor lhe conferia novas tarefas e lhe pagaria os honorários devidos. No entanto, de bom grado somos misericordiosos com todas as criaturas infortunadas, com quem convivemos de perto ao longo dessas páginas - Rogério Chillingworth e seus companheiros. De Nathaniel Hawthorne, The Scarlet Letter (1859), cap. 14, 24. Transcrito da tradução feita por A. Pinto de Carvalho, A letra escarlate, cap. 14, pg 146-147 e cap. 24, pg 218. DESTRUIÇÕES CAUSADAS PELO RESSENTIMENTO A inveja impotente também é a mais terrível. Em conseqüência, a forma de inveja que causa maior quantidade de ressentimento é aquela dirigida contra o ser individual e essencial de uma pessoa desconhecida: a inveja existencial. Isso por que essa inveja parece que murmura eternamente: "Poderia perdoar qualquer coisa, exceto [a realidade de] que você existe e do que você é; exceto o fato de que eu não sou o que você é; que 'eu', de fato, não sou 'você'". Essa "inveja", desde o início, rejeita a própria existência da outra pessoa. — MAX SCHELER, CIENTISTA SOCIAL Todas as pessoas ressentidas são pessoas fisiologicamente destruídas e carcomidas, um reinado inteiro agitado por uma vingança subterrânea, inesgotável e insaciável em seus acessos de raiva contra os felizes e igualmente em disfarces de vingança, em pretextos para vingança: quando é que, de fato, chegarão ao seu último, mais sutil e mais sublime, triunfo de vingança? Indubitavelmente, quando lograrem introduzir na consciência dos felizes sua própria miséria, de fato, toda miséria existente, de maneira que esses, um dia, se sintam tão envergonhados de sua felicidade a ponto de dizer, provavelmente, ao se encontrarem: "É vergonhoso ser feliz! Há miséria demais neste mundo?' — FRIEDRICH NIETZSCHE, GENEALOGY OF MORAIS [GENEALOGIA DA MORAL]
Perguntas para reflexão e discussão
1. Como Hawthorne descreve a face de Chillingworth? Como o médico tenta mascarar sua inveja? Por que a tentativa dele falha? Em sua experiência, de que maneira a inveja, o ressentimento e a raiva estão visíveis na face de quem tem esses sentimentos? 2. A partir da distinção feita na introdução, Chillingworth está invejoso ou ciumento} Ou será que um tomou o lugar do outro? Se esse for o caso, descreva a progressão que ocorreu. 3. O que Hawthorne quis dizer quando fala que Chillingworth desempenharia "o papel de Satanás"? Qual foi o resultado? Em sua opinião, por que Chillingworth, mesmo após sete anos, recusa abrir mão de sua amargura? Qual o efeito da inveja de Chillingworth em sua esposa Hester? Por que uma pessoa devorada pela inveja pode causar simpatia em outros? 4. O que acontece com Chillingworth quando o sr. Dimmesdale, alvo de sua vingança, morre? Qual a explicação para sua mudança drástica? Você conhece pessoas que têm sua energia e seu intelecto consumidos pela inveja? O que aconteceria se o alvo da inveja delas desaparecesse repentinamente? 5. Chillingworth, a verdadeira vítima do adultério de Hester Prynne e Arthur Dimmesdale, termina por ser o mais arruinado de todos. De que maneira o resultado da história seria diferente se ele tivesse perdoado o adultério?
HENRY FAIRLIE Henry Fairlie (1924-1990) foi jornalista e autor. Nasceu em Londres e foi educado em Oxford. Antes de se mudar para Washington, D. C, em 1966, escreveu para The Observer e para o The Times of London. Viveu o resto de sua vida nos Estados Unidos sendo colaborador regular do The New Republic e do The Washington Post. Fairlie era um escritor de estilo, no entanto, por vezes era ácido. Foi autor de vários livros bons. Entre os quais: The Kennedy Promise [A promessa de Kennedy] e The Spoiled Child of the Western World [A criança mimada do mundo ocidental]. Seu livro, The Seven Deadly Sins Today [Os sete pecados capitais hoje], é bastante original. De seu ponto de vista, os sete pecados têm implicações para a sociedade em geral, não apenas para o indivíduo. Ele ainda escreve como um "descrente relutante" que enfatiza a "descrença reverente". Não zomba nem é indiferente em relação aos assuntos de fé, mas descreve sua escrita como
63 oriunda da "convicção de que o indivíduo e a sociedade são levianos em relação ao fato de que o pecado existe e que seu poder de destruição é tão grande como sempre". Fairlie argumenta que a inveja é o pecado capital que ninguém confessa com prazer, pois é um pecado que não possui gratificação alguma (diferente do orgulho, da ganância e da glutonaria). A inveja é a antítese do prazer. E interessante ver que o desenvolvimento moderno tem produzido um ambiente em que a inveja corre solta na sociedade ocidental tornando-se, ao mesmo tempo, invisível - invisível porque perdemos a categoria de "pecado" para denominar o pecado da inveja. O argumento de Fairlie é ainda mais surpreendente hoje, pois nossa era tem vivido o auge dos shows de fofocas e de "televisão de tablóide" com seu lema não declarado: "aquele que ascende deve ser cortado" - em outras palavras, qualquer pessoa de status ou posição superior deve ser "nivelado". O resultado é uma contribuição maciça que favorece a erosão do caráter pelas mãos da inveja. DESTRUIDORES DO MUNDO A admiração é uma abnegação contente, a inveja uma auto-dístinção descontente. — SOREN KIERKEGAARD, THE SICKNESS UNTO DEATH [DOENÇA PARA A MORTE] Quando alguém não consegue realizar o que deseja exclama com raiva: "Que o mundo todo morra!". Essa emoção repulsiva é o apogeu da inveja cuja implicação é esta: "Se eu não posso ter algo, ninguém pode ter alguma coisa nem ser alguma coisa". — FRIEDRICH NIETZSCHE, DAWN OF DAY [AURORA]
Inveja ou invidia O tema sugerido para a atualidade é: "A Vingança da Derrota". E isso que a inveja tem feito por nós. Se não podemos pintar bem destruímos os cânones da pintura e fazemo-nos passar por pintores. Se não queremos ter o aborrecimento de escrever poesia, destruímos as regras da prosódia e fazemos de conta que somos poetas. Se não formos inclinados aos rigores da disciplina acadêmica, destruímos o padrão da disciplina e somos aprovados. Se não podemos ou não queremos ler dizemos que, hoje, o "pensamento linear" é irrelevante e, portanto, dispensa a leitura. Se não sabemos fazer música, simplesmente fazemos barulho, persuadindo os outros que isso é música. Se não sabemos fazer coisa alguma, não faz mal! "Arranhamos" a guitarra o dia todo e dizemos que é auto-expressão. Enquanto não se exige nenhum talento, nenhum aprendizado para um conhecimento profissional, qualquer um é capaz de fazê-lo e todos nós, de maneira milagrosa, somos feitos iguais. A inveja é apaziguada, pelo menos, temporariamente, e o fracasso recebe sua vingança. Aristóteles disse que nos relacionamentos entre iguais a inveja cresce naturalmente. William F. May escreve: "Vivemos em uma sociedade que, provavelmente, assim como qualquer outra, joga iguais contra iguais". Contudo, penso que ele expõe seu ponto de vista de maneira errônea. Os Estados Unidos, e outras sociedades ocidentais, não estão jogando iguais contra iguais, mas desiguais contra desiguais, como se fossem iguais. É uma distorção da idéia de igualdade, e é essa distorção, como qualquer outra coisa, que tem capacitado os inimigos da igualdade genuína a adotar a ofensiva. Jogar desiguais contra desiguais, como se fossem iguais, é criar uma fábrica de inveja. A idéia de que somos iguais tem sido torcida e igualada à idéia de que somos idênticos; assim, ao descobrirmos que nem todos somos capazes de fazer, experimentar e gozar as coisas que os outros fazem, experimentam e gozam, nos vingamos, negando que os outros eram, realmente, dignos de fazer, experimentar e gozar. Degradamos o que não somos capazes de fazer. Mostramos que aquilo que requer talento, treinamento e trabalho duro, também pode ser feito de maneira mais simples. W. H. Auden disse certa vez que não entendia o propósito de se escrever poesia, a não ser que se obedecesse, ao menos, as regras básicas da prosódia. Escrever poesia sem regras é como alguém fazer palavras cruzadas e, por incapacidade de achar a palavra certa ou até mesmo as letras certas, escrever qualquer coisa, mesmo que isso signifique atropelar as margens. Qual o propósito disso tudo e que satisfação há nisso? Hoje, o mesmo pode ser indagado em relação à vingança desferida pela inveja a fim de esconder a sensação de fracasso que a atormenta. Damos o nome de arte ao que não é arte, de poesia ao que não é poesia, de educação ao que não é educação, de realização ao que não é realização, de moralidade ao que não é moralidade, e de amor ao que não
64 é amor. Tornamos nossos conceitos triviais para parecer que todos somos capazes de atingi-los. Nenhum de nós está totalmente isento de corrupção. Não encontramos lugar para o singular, para o que é raro e não pode ser imitado, pois, assim, não seríamos capazes de alcançá-los. Parece que não somos mais capazes de admirar, respeitar ou ser gratos pelo que é mais nobre, e mais amável, e superior a nós mesmos. Precisamos destruir — ou sufocar — o que é excepcional... A calúnia é um dos males que a inveja nos leva a praticar. Mágoa, malícia e acusação. Com certeza, entendemos que ao tirar o bom nome de uma pessoa estamos a um passo do assassiná-la pela ofensa cometida contra ela; isso, por si só, é um meio de destruir a pessoa. A coluna de fofocas como também a forma contemporânea de entrevista são um símbolo de uma era invejosa que parece planejada para assegurar que o virtuoso, o talentoso e o empreendedor sejam reduzidos a um nível no qual nos sentimos como seus iguais. Eles são "exatamente como nós", até um pouco menos que nós. Nada pode estar, ou parecer estar, fora do ordinário, além de nossas habilidades e, com certeza, nada pode estar além de nosso entendimento. "Será que não há mais nada sagrado?"_Esse é o clamor da nossa era, que mesmo permitindo a secularização do sagrado, chega às raias da pecaminosidade peculiar da inveja. O sagrado é aquilo que nós, como seres humanos, somos incapazes de conhecer ou dominar completamente e que, no passado, ao dar lugar para essa incapacidade não sentíamos a necessidade de diminuir as coisas que não éramos capazes de entender ou controlar. Até conscientizávamo-nos de que algumas coisas eram assim simplesmente como resultado da fatalidade, ou da sorte, ou de acidente e que, nem por isso, deixariam de merecer nosso respeito e admiração. Dificilmente esperávamos que os colunistas de fofocas e os entrevistadores tirassem os sapatos e levassem em consideração que andavam em terreno santo. Não se espera isso deles. Mas há algo pecaminoso em uma era que semeia fofoca e parece apenas ser capaz de dar um sorriso malicioso a tudo que ultrapassa nossas realizações. A inveja não tolera pensar que um simples incidente ou acaso - ou algum outro poder desconhecido, sorte, destino ou, talvez, Deus - tenha concedido algum bem a outra pessoa. Deve existir alguma razão e se, ao menos, achasse essa razão, dia a dia, convencer-se-ia de que também pode gozar desse bem. Isso é que estimula o auto-tormento. Não aceita o acaso e não admiti o desconhecido, portanto, rói as unhas, pois acredita que há um segredo que se descobrir prospera da mesma maneira que o outro, tem a mesma experiência, desfruta do mesmo privilégio. Esse é o lado profano da inveja. Não admite o que lhe é dado pelo destino, pelo acaso ou por Deus. Ela não permite que entre em nosso coração a noção de quejnão é por sermos apenas medíocres que somos tidos como fracassos, e, portanto, não deixa também que entre em nosso coração nem mesmo a idéia de que aqueles que se sobressaem podem, de bom grado, receber nossa admiração e nosso respeito sem que isso nos rebaixe. A pessoa invejosa é movida, do começo ao fim, por sua falta de auto-estima que o atormenta muito mais, pois ela brota de um amor-próprio desordenado. Uma coisa é criticar uma figura pública por suas profundas convicções políticas ou religiosas, morais ou estéticas. Outra bem diferente é acabar com qualquer crédito de sua reputação. Esse tipo de inveja é o enigma de nossa sociedade. Max Beerbohm, em seu livro Zuleika Dobson, diz: "A inveja idiota que temos de homens brilhantes sempre é amenizada pela suspeita de que um dia eles vão se dar mal". Sentimo-nos trapaceados pelos jornais e pelas revistas se não lemos neles algo a respeito de alguém que o reduza a pó. Esperamos, de tocaia, o romance que falha, o poeta que comete suicídio, o financiador desonesto, o político que tropeça, o padre ou pastor descoberto em adultério. Estamos à espreita, para nos alegrar com as desgraças alheias. Reconhece-se há muito tempo que schadenfreude — alegria com o sofrimento alheio — é a marca própria de nossa era; mas a inveja não nos faz menos desprezíveis —, pois ela nos torna, ao ver o sucesso dos outros, apenas capazes de desprezar o admirável. Hoje há pouca coisa que honramos. De Henry Fairlie, The Seven Deadly Sins Today. Copyright © 1978 por Henry Fairlie. Reproduzido com permissão do estate de Henry Fairlie.
Perguntas para reflexão e discussão
1. No primeiro parágrafo, o que Fairlie salienta sobre o impacto da inveja? Em sua experiência, é verdade o que diz sobre o mundo moderno? Explique, em suas palavras, o que o autor quer dizer
65 com a frase: "O fracasso recebeu sua vingança". 2. De acordo com Fairlie, como foi pervertido o ideal democrático de igualdade? Como essa perversão contribui para despertar inveja? Qual o paralelo, se é que existem algum, com a idéia das "uvas verdes" ensinada pelas Aesop's Fables [Fábulas de Esopo] ? 3. Fairlie na ilustração referente às palavras cruzadas (conseguir a resposta "correta" sem obedecer as regras) pergunta: "Qual o propósito disso tudo e que satisfação há nisso?". Como você responderia essa pergunta? Há satisfação em "dar o nome de arte ou poesia àquilo que não é poesia"? Como essa satisfação conecta-se à inveja? Quais os perigos desse tipo de nivelamento pela erosão de padrões? 4. Em uma cultura de inveja qual o objetivo da coluna de fofocas? Da televisão tipo tablóide? O que se esconde atrás de nosso fascínio por essas coisas? E possível pensar em outros meios pelos quais nossa sociedade "abate e reduz" os que possuem grandes virtudes, talentos ou empreendimentos? Você pode pensar em instituições que fazem a inveja "respeitável"? De que maneira isso é feito em um nível mais pessoal? 5. Qual a conexão feita por Fairlie entre a perda do "sagrado" e o aumento da inveja? Você concorda? Por que a inveja não consegue tolerar a idéia de que "sorte ou destino ou, talvez, Deus" tenha conferido um dom ou talento excepcional a um indivíduo? Quais as conseqüências devastadoras desse tipo de pensamento? 6. Você se relaciona com a imagem de "roer as unhas" usada por Fairlie? Como é isso? Quais as influências encontradas em nossa cultura que alimentam a 'idéia de que há um "segredo" para o sucesso, as experiências e as alegrias que os outros possuem? Você alguma vez já foi "queimado" por esse tipo de mensagem? 7. Releia as duas últimas sentenças do penúltimo parágrafo — o resumo da causa da inveja. Qual é sua resposta? De acordo com Fairlie, o que move uma pessoa invejosa? Isso parece contradição? Por que sim? Por que não? 8. No último parágrafo, Fairlie faz distinção entre uma crítica legítima baseada em convicções e uma difamação invejosa. Por que essa distinção é importante? Como podemos ensinar essa diferença para nossos filhos? 9. Como você se sente ao ler a última frase de Fairlie? Com essas palavras em mente, por que você acredita que pensadores como James Madison visualizaram a inveja como capaz de corromper tanto uma sociedade livre? A PUNIÇÃO DA LIDERANÇA Em todas as áreas do empreendimento humano, o maior deve sempre viver sob a luz da publicidade. Seja a liderança manifesta em um homem ou em um produto manufaturado, a emulação e a inveja sempre agirão. Na arte, na literatura, na música ou na indústria o prêmio e a penalidade serão sempre os mesmos. O prêmio é o reconhecimento largamente difundido; a punição é a rejeição ameaçadora e destruidora. Quando a obra de um homem torna-se um padrão para o mundo, ela também se torna alvo das flechas de uns poucos invejosos. Se a obra for apenas medíocre não darão a mínima - se, no entanto, alguém executar uma obra prima fará com que milhares de pessoas se inflamem. O ciúme não usa sua língua afiada contra o artista que produz uma pintura comum. Não importa o que você escreva, ou pinte, ou toque, ou cante, ou construa ninguém tentará sobrepujá-lo ou difamá-lo, a não ser que seu trabalho tenha o selo da genialidade. Os desapontados e os invejosos, muito tempo depois, de um grande ou bom trabalho ser feito ainda dirão que ele não pode ser feito. Na área de artes, pequenas vozes maliciosas levantaram-se contra o nosso Whistler, chamando-o de charlatão, muito tempo depois de o mundo orgulhoso tê-lo aclamado como o maior gênio artístico. Multidões afluíam ao teatro Bayreuth para adorar no santuário musical de Wagner, enquanto o pequeno grupo dos que ele havia despojado e destituído raivosamente afirmava que ele não era músico coisa nenhuma. O mundo mesquinho protestava que Fulton nunca poderia construir um barco a vapor, enquanto o mundo inteiro se aglomerava às margens do rio para vero barco passar. O líder é atacado por ser líder e a tentativa de se igualar a ele é apenas mais uma prova dessa liderança. O seguidor que não consegue se igualar ou exceder deprecia e destrói -, mas isso apenas confirma, de novo, a superioridade daquele a quem se deseja suplantar. Não há nada de novo nisso. É tão antigo quanto o próprio mundo e tão antigo quanto as paixões humanas - a inveja, o medo, a avareza, a ambição e o desejo de sobrepujar. E de nada vale. Se o líder verdadeiramente lidera, ele permanece - líder. Mestre da poesia, mestre da pintura, artesão mestre cada um, a seu tempo, é criticado, e todos sustentam seus lauréis ao longo da história. Tudo o que é bom e majestoso fica conhecido, não importa quão seja alto o clamor de rejeição. Aquilo que merece brilhar - brilha. — THEODORE FRANCIS MACMANUS, 1915, TEXTO DO FAMOSO "PENALTY OF LEADERSHIP" ["PUNIÇÃO PARA A LIDERANÇA"], PROPAGANDA DE IMAGEM PARA O CADILLAC, ÁS VEZES, CONSIDERADO O MAIOR ANÚNCIO DE TODOS OS TEMPOS.
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PETER SHAFFER Peter Levin Shaffer (nascido em 1926) é um dramaturgo britânico moderno. Suas diversas peças retornam, persistentemente, a dois temas: a decepção de si mesmo e de outros e o lugar de adoração no mundo moderno. O último é dominante em suas peças mais célebres, Equus (1973) e Amadeus (1980). Ambas tornaram-se filmes de grande sucesso. (Por exemplo, Equus possui a famosa frase: "Sem adoração você encolhe. É tão brutal assim".) As cenas seguintes são de Amadeus. Tratam do castigo de Wolfgang Amadeus Mozart — Antônio Salieri, o qual luta para reconciliar as próprias aspirações a fim de ser grande como Mozart. Devese dizer que a peça, mesmo que seja um drama emocionante, está mais para lenda que para história verídica. Após a morte de Mozart persistiram rumores de que Salieri envenenara-o. Mas apesar de Salieri, com certeza, ter obstruído a carreira de Mozart, em especial na corte do imperador José II, em Viena, é provável que ele fosse apenas mais um rival entre os muitos músicos da época de Mozart. Salieri, de fato, dirigiu a cerimônia memorial de Mozart. Mesmo antes disso, sabia-se que Mozart era grato pela bondade de Salieri. Mesmo assim, a peça ainda prende nossa atenção, pois a relevante inveja de Salieri em relação à Mozart é exacerbada por Shaffer em proporções transcendentais, quando ele as liga às questões teológicas sobre a justiça das dádivas de Deus. GUERRA AOS BORBOTÕES PARA OS TALENTOSOS Salieri é um egoísta insuportável. Ele quer sucessos em meu teatro somente para suas óperas e suas mulheres. Ele não é apenas seu inimigo. Ele é inimigo de todos os compositores, de todos os cantores e de todos os italianos. — IMPERADOR LEOPOLDO II, EM H. C. ROBBINS LANDON, 1791, MOZARTS LAST YEAR [O ULTIMO ANO DE MOZART] Claro que é uma pena quando se fala de tão grande gênio, mas é bom para nós que ele esteja morto. Porque se vivesse por mais tempo, de fato, o mundo não teria dado um único pedaço de pão para nossas composições. — UM COLEGA COMPOSITOR, EM H. C. ROBBINS LANDON, 1791, MOZARTS LAST YEAR [O ULTIMO ANO DE MOZART] Vossa Majestade, todos temos inimigos..., mas ninguém foi mais incansável e continuamente atacado e injuriado pelos inimigos que meu marido, apenas por ter tanto talento. — CONSTANZE MOZART, EM H.C.ROBBINS LANDON, 1791, MozARfs LAST YEAR [O ULTIMO ANO DE MOZART] Dedico-me totalmente para ser psicólogo, mas me apavora ver outros que sabem mais psicologia que eu. Contudo, estou satisfeito em viver na mais bruta ignorância em relação ao grego. Nisso, minhas deficiências não me dão nenhum sentimento de humilhação pessoal. Se eu tivesse 'pretensões' de ser lingüista aconteceria exatamente o contrário. Portanto, temos aqui o paradoxo de um homem morto de vergonha por ser apenas o segundo maior pugilista ou o segundo maior remador do mundo. O fato de superar toda a população do mundo menos um não significa nada, ele se 'mata' para superar aquele um e nada mais conta enquanto não conseguir. — WILLIAM JAMES, THE PRINCIPLES OF PSYCHOLOGY [OS PRINCÍPIOS DA PSICOLOGIA], 1890 Pode alguém viver quando outros vivem? Li essa pergunta em algum lugar, não tenho certeza exatamente de onde, mas era em algum lugar importante. Todos vocês se fazem essa pergunta, quer seja em particular quer publicamente; apenas por causa das boas maneiras e de aparência que vocês levam os outros em conta - se é que realmente os levam em conta. Por muitos anos, Wolf, Brahms e Bruckner viveram na mesma cidade - isto é, Viena -, porém, sempre se evitaram e, até onde sei, nenhum deles se encontrou. Puderal Seria uma pena se isso acontecesse, considerando as opiniões que tinham um do outro. Não se julgavam ou se criticavam como os outros; seus comentários eram feitos para aniquilar e deixava o autor das críticas sozinho em campo. Brahms tinha as sinfonias de Bruckner em pouca conta, ele as denominava de grandes serpentes sem forma. E a opinião que Bruckner tinha de Brahms era muito ruim. Ele achava que o primeiro tema do concerto em D-menor foi muito bom, mas afirmou que Brahms nunca chegara perto de inventar algo tão bom uma segunda vez. — THOMAS MANN, DOUTOR FAUSTO O puritanismo é descrito como obediência sublime às leis de Deus. A democracia é descrita como irmandade ou, até mesmo, como altruísmo. Todas essas noções são errôneas. Na base do puritanismo há apenas um impulso honesto, o de punir o homem que possui uma capacidade superior para a felicidade - a fim de rebaixá-lo ao nível miserável de homens 'bons', quer dizer, de homens burros, covardes e cronicamente infelizes. E para a democracia há somente um bom argumento que é este: é crime um homem se destacar como 'melhor do que os outros' e, acima de tudo, uma ofensa abominável provar que é: — H.L.MENCKEN, "A BLIND SPOT" ["O PONTO CEGO"]
Amadeus [Salieri se volta agitado para a audiência]
67 SALIERI: Fiasco!... Fiasco! Que sordidez! Que sordidez crua e bruta! Pior do que se eu realmente a tivesse perpetrado!... Descer tanto no pecado e ainda se sentir tão ridículo ao mesmo tempo! [Gritando] Nobre, nobre Salieri!.. O que me fez esse Mozart? Antes que ele viesse, comportei-me dessa forma? Comportei-me? Brincar com o adultério? Chantagear mulheres? Tudo está — decaindo - se tornando cada vez mais podre... por causa dele! [Salieri se movimenta febrilmente no palco — estende a mão para pegar a pasta de documentos sobre a cadeira —, mas com receio do que possa encontrar dentro dela, retira a mão e senta-se. Uma pausa. Ele contempla a música que ali está como se fosse uma grande obra de confeitaria que ele morre de vontade de comer, mas não se atreve a fazê-lo. Então, de repente, ele apanha-a bruscamente — rasga a fita — abre a pasta e olha gulosamente para os manuscritos que estão dentro. Instantaneamente, a música começa a tocar polidamente no teatro, quando seus olhos caem na primeira página. E a abertura da Vigésima Nona Sinfonia, em A maior. Acima da música, lendo-a.] Ela disse que estes são seus registros originais. Os primeiros e únicos rascunhos da música. Entretanto, parecem meras cópias. Não trazem marca alguma de correção. Era confuso — e, de repente, alarmante. [Ele eleva os olhos dos manuscritos para a audiência: a música cessa abruptamente.] Era evidente que Mozart apenas transcrevia a música que tinha já completamente pronta em sua mente. E completa como a maioria das músicas nunca fica. [Ele volta a olhar para a música. Imediatamente, a Sinfonia Concerto para Violino e Viola começa a tocar.] Mude uma nota de lugar e haverá diminuição. Tire uma frase e a estrutura cairá. [Ele levanta os olhos de novo: a música é interrompida.] Aqui, outra vez — apenas em maior abundância — estão os mesmos sons que escutei na biblioteca. [Ele continua a ler e a música recomeça: uma frase arrebatadora do movimento lento do Concerto para Flauta e Harpa.] As mesmas harmonias esmagadoras — colisões oblíquas — delícias agonizantes. [Ele levanta os olhos outra vez. A musica pára.] A verdade era clara. Aquela Serenata não era um mero acidente. [Muito lentamente, começa a acumular-se no teatro um tonitroar débil, como o rugir distante do mar.] Eu olhava por entre a jaula daqueles traços meticulosos de tinta para -uma Beleza Absoluta! [E do rugido tonitroante se retorce e se levanta o som claro de um soprano cantando o Kyrie da Missa em C menor. O acúmulo de barulho em torno de sua voz desvanece — subitamente é clara e brilhante — e depois ainda mais clara e mais brilhante. A luz começa a brilhar mais intensamente; brilhante demais, um branco que arde, depois, um branco que ferve. SALIERI levanta-se em meio ao derramar da música que cresce cada vez mais alta — enchendo o teatro — à medida que o soprano se rende ao coro completo, fortíssimo, cantando seu contraponto massivo. Este é, de longe, o som mais alto que a audiência ouviu até o momento. SALIERI cambaleia em nossa direção, segurando o manuscrito na mão, como alguém a cair depois de ser pego por um mar violento. Por fim, os tambores desabam: SALIERI deixa cair a pasta de manuscritos - e cai inconsciente no chão. No mesmo instante, a música explode em um estrondo ecoante, longo e distorcido, indicando uma terrível aniquilação. O som permanece suspenso sobre a figura prostrada, em um continuum ameaçador — não é mais música. Depois, se desvanece, restando apenas o silêncio. A luz se dissipa. Uma pausa longa.
68 SALIERI está bem quieto, sua cabeça repousa ao lado da pilha de manuscritos. Finalmente, o relógio soa, nove vezes. SALIERI estremece ao som do relógio. Lentamente, levanta a cabeça e olha para cima. E agora - a princípio silenciosamente - ele se dirige ao seu Deus.] SALIERI - Entendo! Sei meu destino. Agora, pela primeira vez, sinto o meu vazio, como Adão sentiu sua nudez... [Lentamente, levanta-se e põe-se de pé] Hoje à noite, em uma hospedaria qualquer desta cidade, há um jovem brincalhão que pode pôr ao acaso notas no papel sem ao menos precisar largar seu taco de bilhar, notas que fazem com que as minhas notas mais respeitadas se tornem aranhões sem vida. Obrigado, Senhor! Tu me deste o desejo de servir-te - o qual a maioria dos homens não tem — e, depois, cuidaste em tornar esse serviço vergonhoso aos olhos do servo. Obrigado! Tu me deste o desejo de louvar-te — o qual a maioria dos homens não sente - e, depois, me tornaste mudo. Muito obrigado! Tu colocaste dentro de mim a percepção do Incomparável — o qual a maioria dos homens não conhece - e, depois, te asseguraste que eu tivesse consciência, para todo o sempre, de minha mediocridade. [Sua voz se torna mais forte.] Por quê? Qual foi meu pecado? Até hoje tenho buscado com vigor obter a virtude. Tenho labutado horas a fio para liberar meus semelhantes. Tenho desenvolvido e desenvolvido o talento que me deste. [Clamando] Tu sabes quão duramente tenho me esforçado. Desejava apenas, ao final, ouvir tua voz, mediante a prática daquela única arte que torna o mundo compreensível para mim. E agora, ouço a tua voz - e ela pronuncia somente um nome: MOZART!. Malévolo, dissimulado, arrogante, imaturo Mozart- que nunca gastou um único minuto para ajudar um semelhante. Mozart que só fala bobagens, com aquela sua esposa de traseiro enorme! A ele tu escolheste para ser teu único canal! E a minha única recompensa - meu privilégio sublime — é ser a única pessoa viva hoje a reconhecer claramente a tua Encarnação [Com selvageria.] Obrigado e mais obrigado ainda! [Pausa.] Pois que seja assim! A partir de agora somos inimigos. Tu e eu! Não aceito isso de ti! Ouviste-me? Dizem que de Deus não se zomba. Mas eu te digo, do homem não se zomba!... De mim ninguém zomba!... Eles dizem que o Espírito assopra onde quer: mas eu te digo, NAO!Ele" deve soprar onde há virtude, ou então não soprar de modo algum! [Gritando] Deus injusto!—Tu és o Inimigo! Eu te nomeio agora — Inimigo eterno! E juro isto: até meu último suspiro haverei de resistir-te aqui na terra, o quanto eu puder! [Ele olha para Deus. E diz para a audiência.] Afinal, para que serve o homem senão para dar umas lições a Deus? [Pausa. Subitamente, ele se dirige outra vez a nós, com a voz de um velho. Ele retira a peruca empoada, atravessa o palco até o piano e pega em cima da tampa o velho roupão e o chapéu que havia jogado fora quando nos conduziu de volta ao século XVIII. Ele os põe de volta. E, de novo, 1823.] Antes de contar-lhes o que aconteceu em seguida - a resposta que Deus me deu — e, na verdade, a resposta de Constança - e todos os horrores que se seguiram - deixem-me parar. A bexiga, por ser um apêndice humano, não é alguma coisa com a qual vocês devam ainda se preocupar. Eu, por estar vivo, apesar de somente por um triz, preciso atendê-la constantemente. Agora falta uma hora para o amanhecer - preciso pedir-lhes licença e retirar-nos, eu e a bexiga. Quando retornar, contarlhes-ei sobre a guerra que travei com Deus através de sua Criatura preferida - Mozart, cujo nome é Amadeus. No decurso da batalha, naturalmente, a Criatura tinha que ser destruída. [Ele se curva diante da audiência com um olhar malicioso e maligno —pega um bolo da mesa — e deixa o palco, mastigando-o vorazmente. Os manuscritos ficam onde ele os deixou, ao cair. As luzes do teatro se acendem enquanto ele sai.] [Um servo entra de novo com a cadeira de rodas. SALIERI fala de novo com a voz de um velho]. SALIERI [Para a audiência] — Chegou a manhã. Devo liberá-los - e a mim mesmo. Só um minuto de violência e pronto. Vejam, não posso aceitar isso. Não vivi na terra para me tornar uma piada por toda a eternidade. Eu serei lembrado! Eu serei lembrado! Mais um momento e vencerei minha batalha com ele. Esperem e verão!... Este mês inteiro, eu gritei sobre assassinato: "Tenha misericórdia, Mozart! Perdoe seu Assassino!..." E agora, minha última jogada. Uma falsa confissão curta e convincente! [Ele retira um papel do bolso.] Como eu realmente matei Mozart - com arsênico - e por inveja! E como poderia viver mais um dia
69 sabendo disso? Hoje à noite, saberão como eu morri —e acreditarão que é verdade!... Que me esqueçam, depois. De agora em diante, quando pronunciarem o nome de Mozart com amor, pronunciarão o de Salieri com desprezo! No final das contas, tornar-me-ei imortal!'E Deus não pode fazer nada para impedir isso! [Para Deus] Então, Senhor...? Veja agora se zomba do homem! [O CRIADO entra com uma bandeja, com uma taça de água quente, sabão e uma navalha para que SALIERI se barbeie. Põe tudo sobre a mesa. SALIERI passa-lhe a confissão escrita.] [Ao CRIADO] Bom dia. Ponha isso sobre a mesa que está no escritório. Assine embaixo para atestar que escrevi isso de próprio punho. Vá, logo! [O homem pega o papel e sai direto do palco, admirado. SALIERI pega a navalha e se dirige de forma simples e direta à audiência.] SALIERI: Caros amigos. Eu nasci com um par de olheiras e nada mais. Apenas ao escutar música é que sei que Deus existe. E apenas escrevendo música que posso adorá-lo... Ao meu redor, as pessoas buscam a liberdade para a humanidade. Eu busquei apenas escravidão para mim mesmo. Ser possuído -receber ordens — exaurido por um Absoluto. Música. Foi-me negado isso e, assim, também foi-me negado todo o sentido da vida. [Ele abre a navalha]. Agora, tornar-me-ei, eu mesmo, um fantasma. Estarei nas sombras, quando chegar a vez de vocês regressarem aqui, a essa terra. E quando sentirem a mordida amarga de suas falhas - e ouvirem a zombaria de um Deus inatingível e indiferente - eu sussurrarei meu nome a vocês: "Salieri: Santo patrono das mediocridades". Então, do profundo de seu desespero, vocês poderão orar a mim. E eu os perdoarei. Saúdo-vos! [Ele corta a garganta e cai para trás, na cadeira de rodas. O COZINHEIRO — que acaba de entrar, carregando um prato de pães frescos para o café da manhã — vê o ocorrido e grita. O CRIADO corre ao mesmo tempo para o outro lado. Juntos tentam erguer a cadeira de rodas, com o corpo tombado de Salieri, pelo palco adentro; e ancoram a cadeira e o corpo no centro do palco. O VENTICELLI aparece outra vez, trajado a moda de 1823.] Ato I, Cena 12 e Ato II, Cena 18 de Amadeus de Peter Shaffer, Copyright © 1980, 1981, por Peter Shaffer. Reproduzido com permissão da HarperCollins Publishers, Inc. O PRIMO DA CRUELDADE No entanto, o pior traço da natureza humana é a schadenfreude [inveja], pois é parente da crueldade. — ARTHUR SCHOPENHAUER Pode-se dizer com justiça que a vida inveja a pessoa distinta, intimidando-a de maneira zombeteira ao dizer que ela é apenas uma pessoa como qualquer outra, como a menor delas, e que o elemento humano demanda seus direitos. — SOREN KIERKEGAARD, QUATRO DISCURSOS EDIFICANTES Sim, meu amigo, sois a má consciência de seus vizinhos, pois são indignos de ti. É por isso que te odeiam e sugariam, com prazer, o teu sangue... Teus vizinhos serão sempre teus insetos venenosos; qualquer coisa que seja grande em ti, — deve fazê-los ainda mais venenosos. — FRIEDRICH NIETZSCHE, ASSIM FALAVA ZARATRUSTA Nem mesquinhez, nem baixeza, nem grosseria se comparam ao sucesso de uma pessoa. Esse é o vício que mais incita indignação entre seus contemporâneos, seus amigos e seus vizinhos. Esse é o crime imperdoável que a razão é incapaz de defender, e a humildade de mitigar... A pessoa que escreve como ninguém mais, que fala como não somos capazes, que labuta como ninguém, que realiza como ninguém acumula sobre si mesma todas as ofensas das quais uma pessoa pode ser culpada. Derrubem-no! Porque ele ainda sobrecarrega a terra? — LONDON TIMES, 9 DE OUTUBRO DE 1858 Eu gostaria de ser mais criativo - minha criatividade é uma gota tão infimamente pequena. Um homem como Mozart faz com que nos sentimos como um verme. — BERTRAND RUSSELL
Perguntas para reflexão e discussão
1. No monólogo de abertura de Mozart, o que Salieri considera seu próprio pecado?
70 Fundamentada em que ele faz tal afirmação? 2. Salieri ao examinar as partituras de Mozart tem uma revelação repentina. Qual é? Em sua opinião, como ele se sentiu naquele momento? Que tipos de pensamentos, provavelmente, passaram por sua cabeça? Você já passou por um momento como esse? Qual foi sua reação? 3. Que traços da personalidade de Mozart tornam o esplendor de sua musicalidade difícil de ser aceito por Salieri? Por que esses traços entram na comparação? 4. Descreva, com suas palavras, o apelo desesperador de Salieri a Deus. Quais os principais componentes de seu ataque? Que frases específicas fazem com que esse apelo parta o coração? Como você se sente em relação ao homem em agonia nesse momento de sua aflição? 5. Especificamente, que palavras mostram que Salieri se sente trapaceado no que lhe é devido? Haveria outra maneira de visualizar os dons fenomenais de Mozart à luz do próprio talento medíocre? 6. De que forma Deus, a quem Salieri afirma que sempre ansiou servir, torna-se, repentinamente, seu arquiinimigo? O que você pensa da frase: "Afinal, para que serve o homem senão para dar umas lições a Deus?". 7. Após o intervalo, quando Salieri fala, que mudança a inveja causou nele? O que ele conspira? Por que a falsa confusão? Qual a verdadeira razão pela qual decidiu acabar com sua vida? 8. Em sua expressão final de angústia, o que Salieri afirma que lhe foi "negado"? Isso é verdade? O que você acha do nome que ele mesmo se dá: "Santo patrono das mediocridades"? Isso é autopiedade? Ressentimento? Ou apenas expressão da verdade? Por que é tão difícil a idéia de ser "medíocre"? 9. Se a inveja é um vício sempre induzido pela proximidade (começa com a "rivalidade entre irmãos"), de onde é provável que venham suas tentações para invejar? Há um rival em sua vida cujo sucesso causou-lhe profunda inveja? Como você lidou com a situação?
71
O CONTRAPONTO DA INVEJA bem-aventurados os que choram
A segunda bem-aventurança, "bem-aventurados os que choram" (Mt 5.4), é o contraponto diretamente relacionado com o segundo pecado capital, a inveja. A palavra que Jesus usa para "chorar" é uma das mais fortes na língua grega, especialmente usada para chorar os mortos. Fala de uma tristeza intensa e esmagadora. "Bem-aventurados aqueles que choram, aqueles que vêem a verdadeira natureza das coisas encontradas em um mundo arruinado e decaído, de tal modo que, os de coração partido, estão abertos para o conforto que só Deus é capaz de oferecer." Uma característica que define tal "choro" é a simpatia e a solidariedade — o sofrimento dos outros é pranteado tão profundamente quanto o próprio. Portanto, se a inveja é a "tristeza do bem alheio", seu contraponto é a tristeza do mal alheio, sofre, junto com os outros, suas aflições ou suas perdas. Enquanto a inveja chora quando os outros celebram e comemora o choro dos outros, o lamento chora com os que choram e se alegra com os que se alegram. Observe três aspectos muito positivos da virtude do pranto. Primeiro, é uma virtude positiva, não simplesmente uma virtude preventiva ou uma atitude defensiva em relação ao vício. Como salientado anteriormente, são comuns os mecanismos da inveja para evitar "mau olhado" — e vão desde o "isola" e os tabus contra a vaidade até os estilos nacionais característicos de discursos, tais como a exposição incompleta e suavizada do inglês e o cancelamento de si mesmo do chinês. Em contraste, o chorar com os que choram e o alegrar-se com os que se alegram é inteiramente positivo, não defensivo. O ANTIBIÓTICO DA INVEJA? A virtude da modéstia foi descoberta apenas como uma proteção contra a inveja. — ARTHUR SCHOPENHAUER Apenas os canalhas são modestos. — JOHANN WOLFGANG VON GOETHE
Segundo, essa virtude é caracteristicamente simpática, em vez de reservada. No segundo parágrafo acima, a preposição característica da inveja é "de". A inveja se separa dos outros e presta atenção apenas nas diferenças que a irritam. Seu movimento típico parte da autocentralidade à autosuficiência e, por fim, chega à solidão. O lamento, por outro lado, tem como pivô a preposição "com". Ele se põe ao lado dos outros. Seu movimento parte do sofrimento para a simpatia e da simpatia para a solidariedade. Onde a inveja é competitiva, o choro é compassivo. A inveja nunca vê as pessoas, mas apenas a comparação entre ela e os outros; ela trata o dar como rendimentos decrescentes para si mesma. O choro, no entanto, ignora comparações e vê pessoas. Ele trata o dar como um complexo de interesses e dividendos múltiplos. Terceiro, é bastante claro que não é utópica a virtude de chorar com os que choram e de se alegrar com os que se alegram. Ela não procura uma sociedade totalmente livre de inveja. Tal tipo de sociedade seria impossível e má em vista do estado decaído do mundo, pois requereria a erradicação de qualquer coisa que produzisse a inveja. A tentativa de se criar uma sociedade em que nada é capaz de causar inveja leva-nos diretamente ao nivelamento completo de todas as coisas - exceto da própria inveja. A história do comunismo é uma amostra disso. A única entidade que escapa ao nivelamento é a inveja, pois persiste mesmo que o único que sobre seja o que ela imagina que as outras-pessoas pensam e sentem. E claro que a prática de chorar e de se alegrar não é o único contraponto da inveja. A história mostra-nos que há outros antídotos - por exemplo, a possibilidade de mobilidade social e a verdade
72 espiritual do chamado - mas, nada é essencialmente mais humano, em qualquer sociedade possível e imaginária, que a virtude de chorar com os que choram e de se alegrar com os que se alegram. Esse caráter da virtude, que não é utópico, requer alguma ênfase, pois sem isso podemos usar essa virtude cristã de maneira errônea, criando uma situação sem saída: a fé ataca a inveja, e, dessa forma, tenta guardar o invejoso entre quatro paredes, mas se, ao mesmo tempo, executa-a na esperança cega de uma utopia sem inveja, a busca da fé pelo ideal de uma sociedade justa e igual, como é o caso do comunismo, pode reforçar a inveja em vez de removê-la. Em resumo, a virtude do choro aparece de forma simples e modesta, mas possui o poder de causar um curto-circuito na perigosa manobra política que tenta atacar o inviável por intermédio do invejoso. A leitura seguinte explora o verdadeiro choro (chorar com os que choram e se alegrar com os que se alegram) como o poderoso e vivificante oposto da inveja.
VICTOR HUGO Victor Marie Hugo (1802-1885), francês, foi poeta, novelista, dramaturgo e líder do movimento romântico. Nascido em Besançon e educado em Paris e Madri, escreveu a primeira peça aos quatorze anos de idade e tornou-se o escritor francês mais produtivo do século XVIII. Hugo foi eleito membro da Assembléia Legislativa, mas um golpe o fez fugir para o exílio em Bruxelas e, depois, para as ilhas Anglo-Normandas. Dezoito anos mais tarde, retornou a Paris e se tornou senador. Ao morrer teve um funeral com honrarias de estadista. Seus dois romances mais conhecidos são O Corcunda de Notre Dame (1831) e Os Miseráveis (1862). Ambos exibem seu profundo interesse humanitário, como também seu estilo multicor e sua compreensão panorâmica da história. O trecho seguinte, extraído de Os Miseráveis, conta-nos como o ressentimento de João Valjean torna-se penitência. Surpreso com o perdão que o bispo lhe ofereceu após ter roubado os candelabros, Valjean chocou-se ao ver que, depois disso, roubara quarenta centavos do pequeno Gervásio, um rapazote. Essa contradição entre sua vileza com o rapaz e a graça imerecida dada pelo bispo leva-o a um choro que transforma sua vida, é o antídoto para a inveja.
Os miseráveis Uma coisa estava certa, mesmo que não suspeitasse, ele não era mais o mesmo, estava completamente transformado. Não estava mais em seu poder evitar o efeito das palavras do bispo. Com essa disposição de espírito, encontrara o pequeno Gervásio e furtara-lhe quarenta centavos. Por quê? Certamente não seria capaz de dar alguma explicação. Será que era o efeito derradeiro, a tentativa final do pensamento mau que trouxera da prisão, um impulso remanescente, um resultado do que é chamado na física de "força adquirida". Era isto e, possivelmente, menos que isto. Falando francamente: não fora ele quem furtara, não fora o homem, fora a besta que, por hábito e instinto, colocara o pé sobre o dinheiro, enquanto seu intelecto se debatia em meio a tantas e tão novas e desconhecidas influências. Quando sua consciência despertou e viu esta ação do bruto, João Valjean recuou constrangido e emitiu um grito de espanto. Era um fenômeno estranho, somente possível em sua condição presente, mas o fato é que, ao roubar o dinheiro àquela criança, praticara uma ação da qual já não era capaz. Fosse como fosse, essa última maldade produzira-lhe um efeito decisivo: atravessou repentinamente o caos em que vivia a sua inteligência e dissipou-o, separou-se a luz das trevas, agindo sobre sua alma, no estado em que estava, como um reagente químico age sobre uma mistura turva, precipitando um elemento e produzindo uma solução nítida do outro. Primeiramente, ainda antes de um auto-exame e de reflexão, distraidamente, como quem quer escapar, procurou o menino para devolver-lhe o dinheiro; então, quando percebeu ser isto fútil, parou em desespero. Na mesma hora exclamou: "Sou um miserável!" Acabara de conhecer-se tal qual era; e já estava, a tal ponto, separado de si mesmo, que não era mais que um fantasma que tinha a sua frente, em carne e osso, cajado na mão, mochila cheia de objetos roubados nos ombros,
73 rosto sombrio e resoluto, com o pensamento repleto de planos abomináveis: o hediondo condenado João Valjean. Como observamos, a desgraça excessiva tornara-o um visionário. Pois isso era como uma visão. Ele realmente viu esse João Valjean, esse nefasto, à sua frente. Chegou ao ponto de perguntar a si mesmo quem era aquele homem e estava horrorizado com a idéia de se fazer tal pergunta. Sua mente estava em um daqueles estados de violência, porém assustadora mente calmos, em que o devaneio é profundo a ponto de engolir a realidade. Não mais vemos os objetos a nossa frente, e sim, como que fora de nós mesmos, as formas que temos em nossa mente. Ele se viu, por assim dizer, face a face, e viu ao mesmo tempo, por meio da alucinação, algum tipo de luz a uma distância misteriosa que, primeiro, pensou ser uma tocha. Ao olhar essa luz mais de perto, rompendo em sua consciência, viu que tinha forma humana, era o bispo. Sua consciência considerou pôr esses dois homens a sua frente, o bispo e João Valjean. Nada menos que o primeiro seria o suficiente para mitigar o segundo. Por um desses efeitos singulares, peculiares a esse tipo de êxtase, o bispo, enquanto seu devaneio continuava, crescia mais resplandecente aos seus olhos; enquanto João Valjean se encolhia e desaparecia. Por um instante, ele não era nada mais que uma sombra. Subitamente, desapareceu restando apenas o bispo. Ele encheu toda alma desse homem miserável com um grande esplendor. João Valjean chorou muito tempo; chorou lágrimas de sangue, soluçou como mulher, mais apavorado que uma criança. Enquanto chorava a luz se tornava cada vez mais radiante em sua mente — uma luz extraordinária, uma luz ao mesmo tempo hipnótica e terrível. Sua vida passada, sua primeira ofensa, sua longa expiação, sua degradação exterior, seu interior endurecido, sua soltura se fazendo doce por tantas tramas de vingança, o que aconteceu a ele na casa do bispo. Seu ato recente, seu roubo de quarenta sous de uma criança, se tornara crime muito mais mesquinho e mais monstruoso por vir após o perdão do bispo - tudo isso voltou e apareceu claramente diante dele, mas em uma luz que ele jamais havia contemplado. Via sua vida, e essa lhe parecia horrível; via sua alma, e essa lhe parecia amedrontadora. Havia, no entanto, uma luz que brilhava mais gentil sobre aquela vida e aquela alma. Parecia-lhe que olhava para Satanás à luz do Paraíso. Por quantas horas chorara? O que fez, depois disso? Onde fora? Nunca se soube. Parece, contudo, verídico que o cocheiro que saíra de Grenoble, devendo chegar a Dinge por volta das três horas da manhã, ao atravessar a praça da Catedral, no meio das sombras, se deparara com um homem de joelhos, na calçada, frente à porta de monsenhor Bienvenu. Extraído de Les Misérables escrito por Victor Hugo, traduzido para o inglês por Lee Fahnestock e Norman MacAfee, copyright da tradução © 1987 por Lee Fahnestock e Norman MacAfee. usado com a permissão de Dutton Signet, uma divisão de Penguin Books USA Inc. Parte da tradução foi extraída de Os Miseráveis, traduzido por José Maria Machado, copyright 2002 editora Hemus.
Perguntas para reflexão e discussão
1. Quando sua "consciência despertou" qual foi a reação de Valjean, por ter roubado uma moeda? No primeiro parágrafo, a que foi atribuído esse ato? 2. O que Valjean quer dizer quando reflete que fez algo "de que não era mais capaz"? (Se o fizera, ele não era capaz de fazer tal coisa?) 3. Após a tentativa inútil de retornar o dinheiro ao garoto, Valjean exclama: "Sou um miserável!" Como ele se vê naquele momento? Qual o significado da sensação de ser um "fantasma"? 4. Na consciência de Valjean qual a forma que o bispo recebe? Qual o significado da frase: "Nada menos que o primeiro seria o suficiente para mitigar o segundo". Quando seu coração foi "abrandado" por uma misericórdia imerecida? 5. Por que Valjean chora? O que ele está perdendo? O que está ganhando? Em sua opinião, que pensamentos e emoções ele sentiu enquanto chorava? 6. Descreva, com suas palavras, o que aconteceu depois disso. Você já viu, alguma vez, de repente,
74 sua vida de uma perspectiva totalmente nova? Qual foi o efeito? 7. Afinal, o que fez Valjean se ajoelhar? Qual poderia ser o conteúdo de sua prece? De que forma a penitência e o choro agem como solvente para a amargura e o ressentimento? 8. Você já teve a habilidade de doar graça a alguém envenenado pelo ressentimento e notou alguma mudança na pessoa? Se sim, como essa experiência o afetou?
JOHN WESLEY & CHARLES SIMEON John Wesley (1703-1791) e Charles Simeon (1759-1836) foram ministros da igreja da Inglaterra e líderes do grande reavivamento do século XVIII, conhecido nos Estados Unidos como o primeiro Grande Avivamento. Wesley foi um pregador e evangelista influente, um dos pioneiros do reavivamento, bem conhecido dos dois lados do Atlântico juntamente com seu irmão Charles e seu amigo George Whitefield. Foi ainda fundador da Igreja Metodista. Charles Simeon, no entanto, viveu principalmente em Cambridge, na Inglaterra, e foi líder durante o segundo estágio do reavivamento. Contudo, por causa de seu ministério longo e bastante influente na Igreja Great St. Mary (por mais de cinqüenta anos), também influenciou, grandemente, várias gerações de líderes. Tanto Wesley como Simeon preocupavam-se profundamente com as implicações práticas da fé, especialmente em como os cristãos deveriam vivê-la na vida real. As passagens seguintes mostram a determinação desses homens em dar um curto-circuito no poder do filho bastardo da inveja - a maledicência. Seus pontos de vista merecem ser ponderados hoje em uma sociedade em que a inveja desenfreada possui centenas de formas diferentes. A ÚLTIMA PALAVRA Quem é esse que me condena, quando posto ao lado daquele que não me condena? — DALLAS WILLARD, THE DMNE CONSPIRACY [A CONSPIRAÇÃO DIVINA]
Regras para compromissos corporativos
1. Nós que subscrevemos as regras abaixo concordamos que:
2. Não daremos ouvido nem inquiriremos voluntariamente sobre qualquer maledicência concernente a um de nós. 3. Se escutarmos algo maléfico com respeito a algum de nós, não acreditaremos de imediato. 4. Comunicaremos o que ouvimos o mais breve possível, falando ou escrevendo à pessoa em referência. 5. Não escreveremos nem diremos uma sílaba sequer daquilo que nos foi dito a qualquer pessoa, seja quem for, antes do pleno esclarecimento do assunto. 6. Depois disso, não mencionaremos o que for comentado a qualquer outra pessoa. 7. Não abriremos nenhuma exceção a qualquer uma dessas Regras, a não ser que, em conjunto, acreditemos que somos absolutamente obrigados a fazê-lo. John Wesley, 1752.
Como lidar com a maledicência Quanto mais eu vivo, mais sinto a importância de aderir às regras que formulei para mim mesmo em relação a tais assuntos. 1. Ouvir a menor quantidade possível de coisas prejudiciais aos outros. 2. Não acreditar em nenhuma delas, até que seja absolutamente forçado. 3. Nunca absorver o espírito daquele que fala mal de outros e circula essas notícias. 4. Sempre moderar, no que for possível, a crueldade expressa contra outros.
75 5. Sempre acreditar que se o outro lado fosse ouvido, o assunto seria relatado de maneira bastante diferente. Considero o amor uma riqueza, e da mesma maneira que resistiria a um homem que viesse para roubar minha casa, também o faria com o homem que enfraquece meu respeito por qualquer ser humano... acho que as pessoas religiosas estão muito pouco atentas a essas considerações, e que a frase: "Aquele que se aparta do mal se torna vítima", não é verídica apenas em relação ao mundo ateu; mas também no que se refere aos crentes professos, entre os quais há uma triste tendência de escutar maus boatos e acreditar neles sem primeiro dar à pessoa injuriada qualquer oportunidade de explicar seu ponto de vista e defender seu caráter. Quanto mais notável for o caráter da pessoa, mais provável é seu sofrimento nesse sentido, pois a não ser que seja grandemente dominado pela graça, há no coração de todo ser humano um prazer enorme em ouvir qualquer coisa que possa reduzir os outros ao seu nível ou rebaixá-lo diante da estima do mundo. Quanto mais os outros são desvalorizados, mais nos sentimos elevados. Nessas circunstâncias encontro consolo nas seguintes reflexões: 1. Meu inimigo, qualquer que seja o mal que me tenha feito, não me reduzirá a um nível tão baixo quanto o faria se soubesse tudo o que Deus sabe a meu respeito. 2. Ao fazer um balanço entre o débito e o crédito percebo que, mesmo se fosse roubado em um centavo, há muitos valores creditados em minha conta que não sou digno de receber. 3. Se cada homem tem o seu grande dia, Deus também terá o seu. Charles Simeon, de Hugh Evan Hopkins, Charles Simeon of Cambridge (Holder and Stoughton), pp. 134-135.
Perguntas para reflexão e discussão
1. Leia as "Regras para Compromissos Corporativos". Que influências ocultas você percebe sob essas regras? Para você, qual das seis regras se sobressai mais? Em sua opinião, qual seria a mais difícil de seguir? 2. Na regra de número 6, qual a implicação do termo "em conjunto" na responsabilidade de prestar contas? Como isso pode ser um antídoto à fofoca ou a qualquer tipo de inveja? De que maneira seu círculo de amigos seria diferente se todos se comprometessem a seguir as seis regras? Qual seria a mudança na qualidade do relacionamento de vocês? 3. De que maneira o velho ditado: "notícia ruim se espalha como fogo", está relacionado à inveja? Por que as boas novas não se espalham tão rapidamente? 4. Na leitura "Como lidar com a maledicência", qual das cinco regras faria a maior diferença em sua vida se fosse implementada imediatamente? 5. Qual é sua opinião sobre a comparação entre amor e riqueza feita por Simeon? 6. Por que você concorda ou discorda dele em relação à "triste tendência" das pessoas religiosas "de escutar a maus boatos"? Se concordar, de que maneira essa tendência está em desacordo com os ensinos de Jesus? 7. De acordo com Simeon qual o motivo real por trás do prazer em escutar "qualquer coisa que possa prejudicar os outros"? Como esse jogo de "rebaixamento" ou "elevação" demonstra o pecado da inveja? 8. Qual é sua opinião sobre as três reflexões de como proceder com os que falam mal contra você? Como você vê a última reflexão: uma urgência por vingança ou um apelo por justiça final? Qual é a diferença? 9. Você tem outras maneiras e práticas específicas para se posicionar contra a difusão da inveja?
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Capítulo 3 Raiva (ira) versus mansidão
A ira é o terceiro dos sete pecados capitais. E da mesma forma que o orgulho e a inveja, é um pecado do espírito e, portanto, "frio" e "respeitável" em suas motivações, no entanto, obviamente, menos respeitável em sua expressão. Sua forma única está no fato de ter origem em uma das emoções mais comuns, mais naturais e mais poderosas que quando degenera em um pecado mortal se transforma no pecado mais prejudicial, tanto para . a pessoa como para os outros, como também é o pecado que mais destrói a felicidade e a harmonia humanas. O pecado capital da ira é o vício mais largamente reconhecido e é expresso de várias maneiras como: fúria, cólera, ira e indignação. Mas até a ira deve ser distinguida de duas noções com que pode facilmente ser confundida. Primeiro, o pecado da ira é muito mais que uma simples emoção, pois inclui um elemento anexo, a vontade. As emoções — como emoções — aparecem e desaparecem em geral de maneira involuntária, porém não são consideradas pecado porque nenhum elemento da vontade as incita ou controla. No entanto, a ira torna-se um pecado capital, pois a vontade é diretamente responsável pela ascensão e expressão dessa emoção. INSANIDADE TEMPORÁRIA A ira é uma loucura temporária. — HORÁCIO, EPÍSTOLAS
Segundo, o pecado capital da ira é diferente da indignação justificada. Na Bíblia, muitas vezes, descreve-se que Deus está irado, no sentido de estar indignado por um motivo justo. O mesmo acontece com Jesus - por exemplo, na sepultura de Lázaro quando fica face a face com a morte. Nessa passagem é usada uma palavra grega muito forte para comunicar a ira de Jesus em relação à própria morte. Portanto, é correto, e não errado, ficar encolerizado na presença do mal. De fato, João Crisóstomo, o antigo pai da igreja, escreveu: "Aquele que não fica irado quando é preciso, peca". ÓDIO DA MORTE Ao ver chorando Maria e os judeus que a acompanhavam, Jesus agitou-se no espírito e perturbou-se. "Onde o colocaram?", perguntou ele. "Vem e vê, Senhor", responderam eles. Jesus chorou. Então os judeus disseram: "Vejam como ele o amava!" Mas alguns deles disseram: "Ele, que abriu os olhos do cego, não poderia ter impedido que este homem morresse?" Jesus, outra vez profundamente comovido, foi até o sepulcro. Era uma gruta com uma pedra colocada à entrada. "Tirem a pedra", disse ele. Disse Marta, irmã do morto: "Senhor, ele já cheira mal, pois já faz quatro dias". Disse-lhe Jesus: "Não lhe falei que, se você cresse, veria a glória de Deus?" Então tiraram a pedra. Jesus olhou para cima e disse: "Pai, eu te agradeço porque me ouviste. Eu sei que sempre me ouves, mas disse isso por causa do povo que está aqui, para que creia que tu me enviaste". Depois de dizer isso, Jesus bradou em alta voz: "Lázaro, venha para fora!" O morto saiu, com as mãos e os pés envolvidos em faixas de linho e o rosto envolto num pano. Disse-lhes Jesus: "Tirem as faixas dele e deixem-no ir". — JOÃO 11.33-44
A raiva, no entanto, torna-se um pecado capital quando deriva-se de motivo doentio, quando a expressão da emoção é desordenada, ou quando essa ira contra o mal se transforma em ódio
77 tornando-se assim mais importante que o amor a Deus ou ao seu próximo. Tal ira é errada, pois é um sentimento forte demais em relação à pessoa ou à situação de que estamos com raiva. Por esse motivo, João Crisóstomo também escreveu: "A pessoa que fica irada sem causa está em perigo, mas aquele que se ira por justa causa não está" (Homilia 10). Ou como o Salmo 4.4 apresenta de maneira simples: "Quando vocês ficarem irados, não pequem".
Aspectos da raiva Há, portanto, cinco aspectos típicos do pecado da raiva: a contribuição da vontade (previamente discutida), o motivo errôneo, a expressão excessiva e desordenada, o desejo de vingança e o fácil abraço ao desprezo. Os motivos da raiva variam, mas muitas vezes estão acoplados a um sentimento de impotência em face de seus direitos ou de autocompaixão. A raiva provocada pelos direitos da pessoa repete consigo mesma, consciente ou inconscientemente: "Eu mereço isso e aquilo. Isso me é devido. Se eu não puder ter isso ficarei com raiva e, por meio da minha raiva, acharei uma maneira de obter o que mereço". A autocompaixão, em contraste, remói vez após vez: "Isso não deveria acontecer comigo. Não mereço isso. Estou com raiva e não aceitarei isso". Em ambos os casos, um motivo que consome a pessoa leva-a para além de si mesma a fim de infligir sua raiva aos outros. O terceiro aspecto da raiva — a incontrolabilidade — é central para o enten dimento desse pecado capital. Como Henry Fairlie escreveu, nos anos 70, "a ira que não se quer controlar" é a razão de extremistas e revolucionários sempre corromperem e traírem a própria fé. Em contraste, George Washington, descrito pelo governador Morris como possuidor de "paixões tumultuosas que acompanham a grandeza" e uma "ira" que poderia ser "terrível", não deixou seu temperamento sem controle. Antes, Washington quando ainda muito jovem começou a domesticar sua raiva e as outras paixões copiando repetidamente uma versão traduzida do livro francês sobre etiquetas com 110 regras de polidez. O quarto aspecto - o desejo de vingança — também é central tanto para incentivar a raiva como para suas conseqüências. Seja como for entendido o insulto ou a injúria, a raiva quer apenas "pagar" ao perpetrador. Como resultado disso, a raiva prolongada se transforma em desejo pervertido de justiça que cresce chegando à fúria obsessiva e, por fim, ao ódio. Não é mais um retumbar de trovão, mas se transforma em uma fornalha com terrível potencial de destruição. DOCE VINGANÇA A ira é muito mais doce do que o mel. — HOMERO O ódio é santo.
A raiva em sua forma final, em seu pior estado, transforma-se em desprezo. De modo distinto do "gatilho rápido" de um temperamento apimentado, o desprezo é a degradação deliberada de outra pessoa. E a negação completa de sua dignidade. Na raiva há desejo de machucar; no desprezo o perpetrador não se importa se o outro está machucado — ele não é digno de tal consideração. Quando Jesus disse: "Qualquer que disser a seu irmão: 'Racá' [tolo], [...] corre o risco de ir para o fogo do inferno". Ele usa um termo aramaico, "racá" para desprezo originado, provavelmente, do som feito coletando a saliva da garganta a fim de cuspir. É possível ficar com raiva de alguém sem negar sua dignidade. No entanto, é mais fácil machucar e degradar os outros, vez após vez, desprezando-os. O GÊMEO DIABÓLICO DA RAIVA Ao voltarmos à origem do malfeito, o coração humano, descobrimos que ela envolve, na maioria esmagadora dos casos, alguma forma de raiva. Essa é acompanhada bem de perto por seu irmão gêmeo, o desprezo." —
DALLAS WILLARD, THE DIVINE CONSPIRACY [A CONSPIRAÇÃO DIVINA]
Recentemente, os analistas da cultura notam o alarmante aumento do uso de linguagem obscena, especialmente entre os mais jovens. Curiosamente, poucos têm tido a capacidade de achar qualquer fundamento para a condenação disso, dizendo que a linguagem obscena é mero gosto pessoal. Que estranho! Será que é, na verdade, por acharem que o desprezo é aceitável? Ou eles são incapazes de reconhecê-lo? A linguagem obscena e o uso de palavrões são sempre uma expressão do desprezo. A abundância atual de linguagem obscena flutua à deriva por sobre o mar de desprezo em que nossa sociedade se encontra.
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DALLAS WILLARD, THE DIVINE CONSPIRACY [A CONSPIRAÇÃO DIVINA]
Figuras e metáforas Verde é a cor que caracteriza a inveja, e vermelho a que caracteriza a raiva. Seu símbolo dominante é o fogo. A raiva, de maneira típica, ferve em fogo baixo, lança faíscas, solta fumaça, arde lentamente, explode, inflama, assa e devora. E a "fornalha do Diabo", o pecado que atiça os outros pecados e inflama o potencial deles - pecados capitais à moda da terrena chamuscada. A FORNALHA DA MENTE Nunca fale sobre o assunto, sempre pense nele! — SRA. ADAM, DEPOIS QUE A FRANÇA FOI SUBJUGADA PELA ALEMANHA, EM 1870, E FOI FORÇADA A ASSINAR UM HUMILHANTE TRATADO DE PAZ.
Aplicações práticas "A ira de Aquiles é o meu tema, aquela ira fatal que no cumprimento da vontade de Zeus trouxe aos achaianos muito sofrimento e mandou os filhos valentes de muitos nobres ao Hades, içando seus corpos como alimento para cães e pássaros." Essas são as célebres linhas que abrem a Ilíada, de Homero, e trazem a raiva como seu tema pavorosamente central. A raiva pode se manifestar desde cedo como os acessos de raiva das criancinhas, mas suas labaredas vão muito alto e muito longe, apresentando os piores conflitos étnicos e internacionais da história. A raiva possui, entre outras, a função de inflamar-se em relação ao abuso, à agressão, ao estupro e ao assassinato de crianças. Como observou um psicólogo, o som principal associado à família britânica é o som de portas batendo dentro da residência; o som principal associado a uma família estado-unidense é o de carros se afastando para longe da residência. Sêneca, o romano estóico, escreveu: "Nenhuma praga tem sido mais custosa para a raça humana". Hoje, as palavras de Sêneca são ainda mais verdadeiras. A violência doméstica, a fúria nas estradas e os tiroteios no ambiente de trabalho, bem como os banhos de sangue, como o massacre em Ruanda, a destruição e a devastação causada pela raiva deixam qualquer pessoa, verdadeiramente, sombrio. A LOUCURA DO ASSASSINATO Nos Estados Unidos, há, todos os anos, cerca de 25.000 assassinatos. Há em tomo de 1.000 assassinatos no ambiente de trabalho e um milhão de pessoas feridas por atos violentos causados por colegas de trabalho... a verdade é que nenhum dos 25.000 assassinatos, ou apenas um número insignificante deles, teria ocorrido se os assassinos decidissem não abraçar e favorecer a raiva. — DALLAS WILLARD, THE DIVINE CONSPIRACY [A CONSPIRAÇÃO DIVINA]
Jesus concede ao pecado da ira um lugar similar. No sermão do monte, ele dedica mais tempo ao problema da ira e da hostilidade que a qualquer outro assunto, sugerindo, dessa maneira, possivelmente, o lugar fundamental da ira na propagação das desgraças humanas. Se você retira o desprezo e a raiva desenfreada da equação humana elimina a maior parte do sofrimento e da destruição da vida, tanto antiga quanto moderna. - BILL WATERSON, CALVIN E HOBBES
PLUTARCO Plutarco já foi apresentado na parte 2, nos comentários sobre a inveja. O episódio a seguir também é extraído de seu clássico Lives of the Noble Grecians and Romans[A vida de gregos e romanos
79 nobres]. Ele descreve o incidente fatal decisivo e a chave para a degeneração de Alexandre, o Grande. E primavera de 328 a. C, exatamente no meio da campanha persa feita por Alexandre — cinco anos após o início da campanha e cinco antes da morte de Alexandre, em 323 a. C. Os dias fáceis de glória da campanha terminaram. A oposição se fortalece enquanto avançam mais para o leste, e Alexandre se torna mais arrogante com o passar do tempo. Ele introduziu práticas persas, tais como a prostração (súditos ajoelhados com o rosto voltado para baixo a fim de homenagear seu líder). Essa prática era impensável para os gregos que se curvavam diante de seus deuses, mas não diante de um ser humano. Alguns dos veteranos oficiais gregos, como Clito, ficam desapontados e apreensivos. Clito, conhecido como Clito, o Negro, foi chamado de "salvador de Alexandre" —, pois foi o herói que livrou Alexandre da morte em uma batalha anterior. Contudo, nessa época ele fora rebaixado de posto. Agora, Clito tenta reconquistar sua posição junto a Alexandre. O evento seguinte, quaisquer que sejam os motivos, é uma indicação vivida de que a raiva explosiva de Alexandre é uma falha fatal que como não foi controlada aprofunda seu caminho em direção à tirania e tem conseqüências desastrosas para o futuro de seu império. ENGANADO De fato, a raiva já é por si mesma - independente das 'ações que a expressam' e das conseqüências que a seguem - uma injúria aos outros. Quando descubro que você está com raiva de mim, já me sinto ferido. É provável que apenas sua raiva já seja suficiente para me fazer parar ou mudar de direção, aumentando, também, o nível de estresse de todos os que se encontram ao redor. Pode ainda incitar minha raiva em reação à sua. Em geral, isso acontece precisamente porque sua raiva me restringe. Ela se opõe à minha vontade. Portanto, a raiva alimenta raiva. A função primordial da raiva na vida é alertar-me de que minha vontade é obstruída, suscitando, imediatamente, alarme e resistência, antes mesmo que eu tenha tempo de pensar a respeito. — DALLAS WILLARD, THE DIVINE CONSPIRACY [A CONSPIRAÇÃO DIVINA]
Alexandre Meu propósito é escrever sobre as vidas de Alexandre, o rei, e de César que destruiu Pompéia, são muitas as grandes ações deles, e eu seria acusado se não avisasse o leitor, por meio de uma apologia, de que preferi compendiar as partes mais notórias da história deles, em vez de insistir detalhadamente em todas as circunstâncias específicas dos fatos. Deve-se ter em mente que meu propósito não é escrever histórias, mas sim vidas. As proezas mais gloriosas nem sempre nos fornecem as descobertas mais claras da virtude ou do vício nos homens; por vezes, uma questão de momento, uma expressão ou um gracejo nos mostra mais sobre o caráter e as inclinações de uma pessoa que os cercos mais famosos, os maiores armamentos ou as batalhas mais sangrentas, quaisquer que sejam. Portanto, da mesma forma que um retratista é mais exato nas linhas e nas feições do rosto em que se distingue o caráter que nas outras partes do corpo, assim eu preciso de permissão para dar atenção mais particular às marcas e às indicações da alma dos homens. E enquanto me esforço para, por meio desse relato, retratar suas vidas, preciso estar livre para deixar que assuntos mais influentes e batalhas grandiosas sejam tratados por outros. [...] Pouco tempo depois, verificou-se o assassínio de Clito, fato que, à primeira vista, pode parecer mais bárbaro do que o da morte de Filotas, mas que, considerado em sua causa e em suas circunstâncias, tem pelo menos a atenuante de não ter sido precedido de premeditação: a cólera e a embriaguez do rei deram causa ao infeliz destino de Clito. Eis como se deu esse fato. Alguns habitantes das províncias marítimas enviaram ao rei frutas da Grécia. Admirado por sua frescura e beleza, Alexandre mandou chamar Clito para lhe mostrar as frutas e dar-lhe sua parte. Clito, naquele momento, estava fazendo um sacrifício, mas o suspendeu logo, para se pôr às ordens do rei. Três dos carneiros, sobre os quais já tinham sido feitas as efusões sagradas, escaparam. Quando Alexandre soube dessa circunstância, consultou os adivinhos Aristandro e Cleomante, o Lacedemônio, que declararam que se tratava de um péssimo sinal. O rei mandou logo fazer sacrifícios pela vida de Clito, tanto mais quanto ele próprio, três dias antes, no sono, tivera uma visão estranha a seu respeito. Parecera-lhe ver Clito, vestido com uma roupa preta, sentado no meio dos filhos de Parmenion, todos já mortos. Seja como for, Clito não esperou o fim do seu sacrifício: foi imediatamente cear com o rei, que naquele dia sacrificara aos Dioscuros. Já se bebera
80 excessivamente, quando foram cantados versos de certo Prânico, ou — segundo outros — de Pierion, nos quais os generais macedônios, que havia pouco tinham sido derrotados pelos bárbaros, eram cobertos de vergonha e ridículo. Os mais idosos entre os convivas, indignados com o insulto, censuraram igualmente o poeta e o cantor dos versos; mas Alexandre e seus favoritos, gostando de escutá-los, ordenaram ao músico que continuasse. Clito, já esquentado pelo vinho e sendo de índole áspera e altiva, deixou-se dominar pela cólera: "É indigno — gritou — na presença de bárbaros, e especialmente de bárbaros inimigos, esses ultrajes para macedônios que foram malsucedidos, mas que têm muito mais valor do que os que os insultam". Tendo Alexandre dito que ele defendia a sua própria causa, chamando de insucesso o que era covardia. Clito levantou-se bruscamente e replicou: "Foi, contudo, essa covardia que te salvou a vida, quando, embora filho dos deuses, já havias virado as costas à espada de Spitridates. Foi o sangue dos macedônios, foram as suas feridas que te fizeram grande ao ponto de, repudiando Filipe, quereres, com toda sua alma, Amon como pai". Fortemente pungido por essa censura: "Celerado! — gritou Alexandre — estás empregando as palavras com as quais procuras todos os dias excitar os macedônios à revolta contra mim?" Clito respondeu: "Com efeito, Alexandre, podemos considerar-nos pagos em recebermos essa recompensa por nossos serviços? Como invejamos a felicidade dos que morreram antes de ver os macedônios flagelados pelas vergas dos Medos, e obrigados, para serem recebidos por seu rei, a implorar a proteção dos Persas!" A essas palavras desprecavidas, Alexandre levanta-te de seu lugar, com a injúria na boca. Os mais idosos esforçam-se para apaziguar o tumulto. O rei, então, virando-se para Genódoco de Cárdia e Artêmio de Colofônia, exclama: "Não vos parece que os Gregos estão, entre os Macedônios, como se fossem semideuses na presença de animais selvagens?" Em lugar de ceder, Clito exclama que Alexandre só pode falar alto: "A não ser isso — acrescenta — não convide à sua mesa homens livres e cheios de franqueza e fique entre bárbaros e escravos, prontos a adorar sua cintura persa e seu traje branco". Não podendo mais dominar a cólera, Alexandre atira-lhe à cabeça uma das maçãs que estão na mesa, e procura sua espada; mas Aristófanes, um de seus guardas do corpo, já tivera a precaução de escondê-la. Todos os outros convivas cercam Alexandre e lhe suplicam que se acalme. Mas ele se desvencilha de suas mãos. Chama seus escudeiros com voz forte, em dialeto macedônio, sinal de grande paixão; e dá ao corneteiro ordem de alarma. Este demora, e tendo afinal recusado obedecer, o rei dá-lhe um soco no rosto. O homem adquiriu posteriormente grande estima, por ter impedido, só ele, que o acampamento se levantasse em alarma. Clito, no entanto, continuou em toda a plenitude de sua altivez. Seus amigos obrigaram-no, embora a muito custo, a sair da sala; mas ele voltou sem demora por outra porta, pronunciando com audácia não menor do que a irreverência, o seguinte verso da Andrômaca, de Eurípides: Oh grandes deuses! que mau costume na Grécia se introduz! Alexandre desarma, então, um de seus guardas; e, vendo Clito passar perto dele abrindo o reposteiro, atravessa-lhe o corpo com um dardo. Clito solta um profundo suspiro, que parece um mugido, e tomba morto aos pés do rei. Alexandre cai em si; e, enquanto seus amigos permanecem num triste silêncio, arranca o dardo do corpo de Clito e quer com ele ferir-se na garganta; seus guardas, porém, detém-lhe a mão, e levamno à força para seu quarto. Ali passou toda a noite e o dia seguinte em lágrimas; e, quando não teve mais forças para gritar e lamentar-se, ficou deitado no chão sem mais dizer uma palavra, e soltando profundos suspiros. Seus amigos, que temiam as conseqüências desse silêncio obstinado, forçaram a porta e entraram no quarto. Alexandre nem percebeu o que eles diziam. O adivinho Aristrandro lembrou-lhe, porém, a visão que tivera a respeito de Clito e o prodígio ao qual assistira, como provas de que, no que sucedera, era preciso reconhecer a execução dos decretos do destino. Isso pareceu confortá-lo um pouco. Fizeram entrar então Calistenes o Filósofo, parente de Aristóteles, e Anaxarco o Abderita. Calistenes tratou de acalmá-lo com doçura, apelando para os princípios da moral, com rodeios insinuantes e com cuidado para não exasperar sua dor. Mas Anaxarco, que traçara, desde seu ingresso na filosofia, novo caminho, e tinha fama de desdenhar e desprezar todos os outros filósofos, logo que entrou no quarto do rei, com entonação muito elevada, disse: "Ei-lo, então, este Alexandre, sobre o qual se fixam os olhares do mundo! Ei-lo estendido no chão como um escravo, desfazendo-se em lágrimas, com medo das leis e do julgamento dos homens, ele que para todos deveria ser a lei personificada e a justiça! Para que venceu? Para mandar, para
81 reinar como senhor, ou para se deixar dominar por uma vã opinião? Não sabes — acrescentou — que a Justiça e Têmis estão sentadas aos lados de Júpiter? e que todos os atos de um príncipe são justos e legítimos?" Com essas palavras e outras semelhantes, Anaxarco aliviou a dor do rei; tornou-o, porém, mais vaidoso e mais injusto. Aliás, Anaxarco conseguiu insinuar-se no coração dele, e afastá-lo das palestras com Calistenes, cuja austeridade já pouco atraía Alexandre. Extraído do livro The Lives of the Noble Grecians and Romans, de Plutarco, traduzido para o inglês por John Dryden, rev. Arthur Hugh Clough (New York: Modern Library, 1864). Extraído de Alexandre e César vidas comparadas, de Plutarco, traduzido para o português por Hélio Vega, Editora Tecnoprint S. A., Ediouro, sem data.
Perguntas para reflexão e discussão
1. Qual a razão dada por Plutarco, nos parágrafos de abertura, para descrever "vidas" e não "histórias"? O que ele almeja expor e registrar para as gerações futuras? Como sua abordagem difere dos métodos típicos usados para contar a história? 2. Considere alguns fatores, nos parágrafos seguintes, que acarretaram o assassinato. Qual o significado do incidente com o fruto grego tanto para Alexandre como para Clito? Qual é a função da superstição? Da bebedeira que seguiu ao péssimo sinal? Da zombaria entre os mais jovens e os "mais idosos"? Que parte a raiva desempenha na progressão da história? 3. A que Clito refere-se quando fala daqueles que não hesitavam em dobrar os joelhos diante de Alexandre? Por que esse comentário incita Alexandre à raiva? Em sua raiva, o que ele faz? Para você, quantas vezes a raiva se encontra presa a sentimentos de culpa ou à necessidade de se defender? 4. Aristófanes, um dos guardas de Alexandre, já havia escondido a espada. O que esse gesto mostra sobre a maneira como Alexandre lidava com a raiva? O que o tratamento de Aristófanes em relação ao corneteiro indica sobre a raiva dele mesmo? Em geral, como a raiva contribuiu para o caos da situação? 5. Sem a espada, como é que Alexandre finalmente mata Clito? Por que esse assassinato não pôde ser evitado, apesar o guarda ter escondido a espada de Alexandre? Em que momentos você viu a "criatividade" da raiva exibida em sua vida ou em seu círculo? 6. O que acontece com a raiva do rei após matar Clito? Por quanto tempo sente a satisfação de se ter "vingado"? Em sua opinião, o que está por trás do subseqüente desejo subseqüente de suicídio que se apossa de Alexandre? De seu choro ao longo da noite? 7. Veja Aristandro, Calistenes e Anaxarco. De que maneira cada um deles racionaliza a raiva explosiva de Alexandre? Por que Anaxarco é o mais bem sucedido? Quais os fatores que fazem os atos de raiva particularmente fáceis de justificar? 8. Por que essa ira, como a de Alexandre, pode ser chamada de "cega"? Que conseqüências, de suas ações, ele não pôde prever?
SÊNECA Lúcio Aneu Sêneca, o Jovem (4 a. C. — 65 A. D.), foi estadista romano, filósofo e autor. Nascido na Espanha, filho de um retórico romano, foi, mais tarde, escolhido para ser o tutor de Nero, futuro imperador. Foi defensor da filosofia estóica e gastou a maior parte de seu tempo estudando, escrevendo e com a tarefa ingrata de instruir Nero na arte de governar e nas virtudes do rei filósofo estóico. Sêneca permaneceu um conselheiro muito confiável quando Nero se tornou imperador, mas perdeu o favor se retirando da corte, em 62 A. D. Três anos depois, ele se envolveu em uma conspiração para matar Nero, o cruel e tirânico. Como punição, seu antigo aluno determinou que Sêneca cometesse suicídio. Com uma postura tipicamente estóica, Sêneca teve suas veias abertas e sangrou até a morte. Sêneca é o segundo maior filósofo, só perdendo para Cícero. Seus escritos influenciaram, principalmente, três áreas - o drama, a física e a ética. Esse trecho nos dá o ponto de vista estóico
82 da raiva. E um bom exemplo da magnânima abordagem clássica em relação aos defeitos das emoções humanas.
Sobre a raiva Além disso, se você quiser ver os resultados e os prejuízos da raiva, nenhuma praga foi tão cara para a raça humana. Você verá derramamento de sangue e envenenamento, contra-acusações vis de criminosos, queda de cidades e nações inteiras destruídas que não terminam dentro dos muros de uma cidade, mas se alastram pelos campos com hostilidade explosiva. Vejam as mais gloriosas cidades cujos fundamentos mal podem ser encontrados - a raiva as fez sucumbir. Vejam os lugares ermos que se alastram, abandonados, sem um habitante sequer em muitos quilômetros quadrados — a raiva transformou-os em desertos. Vejam todos os líderes que passaram para a posteridade como ilustração de uma fatalidade má — a raiva assassinou esse em sua cama, abateu aquele em meio à inviolabilidade de uma festa, despedaçou outro na própria casa da lei diante de toda a multidão que estava no fórum, forçou aquele outro a ter seu sangue derramado pela ação assassina de seu filho e ainda outro a ter seus membros estendidos em uma cruz. Até agora mencionei apenas o sofrimento de indivíduos; e se deixarmos de lado esses que sentiram sozinhos a força da explosão raivosa e olharmos para as massas derrubadas ao fio da espada, populações exterminadas por soldados, e nações inteiras condenadas à morte em ruína comum?... Se a vida vale esse preço é outra questão. Não nos condoeremos com tal cadeia de grupos de prisioneiros infelizes, não os encorajaremos a se submeterem aos comandos de seus carniceiros; mostraremos que, em qualquer tipo de servidão, há um caminho que se acha aberto para a liberdade. Se a alma está enferma e triste por causa de suas imperfeições, uma pessoa pode acabar com seus desgostos e, ao mesmo tempo, consigo mesma. Aquele a quem o acaso tem dado um rei que mira suas setas contra o peito de seus amigos, àquele que tem um mestre que devora os pais com as setas de seus filhos, diria: "Senhora, por que chora? Por que espera por um inimigo para se vingar pela destruição de sua nação ou por um rei poderoso, vindo de longe, para resgatá-la às pressas? Para onde quer que olhe, pode encontrar um meio de acabar com seus sofrimentos. Vê aquele precipício? Sua descida é o caminho para a liberdade. Vê aquele mar, aquele rio, aquele poço? Aí se encontra a liberdade — em seu leito. Vê aquela árvore, enfezada, ressecada e estéril? Apesar disso, em seus galhos está a liberdade. Vê sua garganta, sua traquéia, seu coração? São caminhos para escapar da servidão. São as penosas saídas que lhe ofereço, requerem coragem e força superior à que você tem? Você me pergunta qual a via expressa para a liberdade? Qualquer veia em seu corpo!" Na verdade, enquanto em sua opinião não tiver sofrimento tão intolerável que nos force a abandonar esta vida, seja qual for nossa posição nesta vida, guardemo-nos da raiva. Pois é nociva a todos que a servem. Reproduzido de Sêneca, volume I, com permissão das editoras e do Loeh Classical Library, traduzido para o inglês por John W Basore, Cambríge, MA: Harvard Universky Press, 1928.
Perguntas para reflexão e discussão
1. Sêneca lamenta as conseqüências terríveis da raiva na história da humanidade da perspectiva de quase dois mil anos atrás. Como a situação mudou desde aquele tempo? Em sua opinião, o que ele deveria adicionar ou subtrair se escrevesse sua reflexão hoje? 2. Que exemplos você pode apontar em vista da larga escala de destrutibilidade da raiva (de forma global ou nacional) desde o tempo de Sêneca? Em uma escala restrita, como a raiva tem rompido e destruído os grupos ou as comunidades em seu continente? Como essa destruição poderia ser evitada? 3. Em sua opinião, quais as conseqüências mais nocivas da raiva incontrolável entre pais e filhos? Nas amizades? Nas relações românticas ou maritais? 4. O que você pensa sobre o suicídio como recurso estóico a fim de escapar da raiva de si mesmo ou
83 da raiva de outra pessoa? 5. Leia o último apelo de Sêneca, no último parágrafo: "Guardemos-nos da raiva" qualquer que seja nossa posição nesta vida. Como Sêneca responderia à moderna "política da raiva", na qual esta é o combustível na procura de ressarcimento, por intermédio do sistema político, para os desgostos?
JOHN WEIR John Weir é um escritor contemporâneo que vive em Nova York. Foi, também, um ativista em relação à AIDS. O texto abaixo é um ensaio publicado na The New Republic, escrito por Weir após a morte de seu amigo e co-ativista, David Feinberg (morreu de AIDS). Esse texto comove-nos e cauteriza-nos, uma notável análise sobre o lugar da raiva no movimento homossexual. LICENÇA PARA O TERROR Entendemos que existem pessoas raivosas que parecem só ter raiva em seu interior. Embora não percebam, sentem raiva de tudo e de todos: raiva da vida, raiva de seu destino, raiva do mundo, raiva de todo mundo e raiva deles mesmos. Não vale a pena perguntar porquê estão com raiva, pois sempre estão com raiva de alguma coisa... Vivemos na era da cólera, na qual se encontra o terrorista, o seqüestrador de pessoas e de aviões, o saqueador e o punho cerrado do demonstrador. Inicialmente, esses são citados porque são as figuras simbólicas mais óbvias. Contudo, não estão sozinhos. Quando perguntamos qual a justificativa deles, eles praticamente não precisam dar resposta alguma, pois nossa era a dá por eles. Estão com raiva. Aparentemente, isso é suficiente. Justificamos a cólera deles e, assim, justificamos a violência deles. Se alguém pensa ter motivo para estar com raiva age a partir dessa raiva de maneira tão destrutiva quanto acha que é adequado. Na verdade, chegamos ao ponto de dar à cólera uma licença incontestável para aterrorizar nossa sociedade. — HENRY FAIRLIE, "A ERA DA FÚRIA" EM THE DEADLY SINS TODAY [OS SETE PECADOS CAPITAIS HOJE] Não há nada que possamos fazer com a raiva que não possa ser feito melhor sem a mesma. — DALLAS WILLARD, THE DIVINE CONSPIRACY [A CONSPIRAÇÃO DIVINA]
Fúria, fúria Meu amigo David Feinberg, romancista e ensaísta que morreu de AIDS, em novembro passado, é lembrado como alternativa para um mártir estado-unidense. Ele não era apenas homossexual, mas também conscientemente "diferente". Seu romance Eighty-Sixed não era só um monólogo brilhante sobre a excitação sexual masculina, a culpa judaica ou a angústia da AIDS, mas também era "transgressivo". Ele não era meramente um membro regular da ACT UP (grupo de indivíduos, apartidários, unidos pela raiva e comprometidos com ações diretas para terminar com a crise da AIDS) detido rotineiramente em demonstrações, mas era contracultural. Ele não morreu, "foi morto pela negligência do governo". Em resumo, David emergiu, após sua morte, como um tipo estranho, sentimentalizado por grupos esquerdistas e demonizado pela direita. Ele era conhecido como uma pessoa difícil, pois é normal se esperar isso de antagonistas e de sofredores. Os enlutados celebram a maneira jocosa, irritável e honesta como falava sobre o tempo de sua vida que gastou querendo sexo, tendo sexo ou não. Se David era popular entre os leitores heterossexuais, suspeito que isso, em parte, se devia a sua escrita que satisfazia, de alguma forma, uma pré-concepção sobre o homossexual. De fato, homens gays também gostam de acreditar em clichês a respeito de si mesmos. O escrito de David não é clichê. Antes, é profundamente superficial. Ele funciona não porque se aprofunda em algum assunto, mas porque passa com tanta rapidez e de modo tão superficial acumulando tantos detalhes, fatos sobre fatos que cria o efeito de um sentimento profundo. Contudo, é uma profundidade virtual. Não há conforto em seu artigo, apenas ansiedade, humor, sentimentalismo, fúria, desespero, como também muita tolice. Sua genialidade foi o ser tolo; ele era capaz de oferecer um sentimento de conexão significativa. Ele também era um murmurador astuto. Seu último livro, Queer and Loathin: Rants and Rapes of a Raging AIDS Clone [Diferente e repugnante: arengas e delírios de um enfurecido clone aidético], publicado na semana de sua morte, de todos seus trabalhos é o menos jocoso e o mais difícil de ler por ser o mais irônico. Usou de ironia para se distanciar da dor, mas essa finalmente o abandonou e tudo o que lhe restava era seu medo e sua fúria devastadora. Nos últimos cinco anos ele era o meu amigo mais chegado. Perto da época de sua morte perguntaram-me: "Como se sente acerca do moribundo David?", ao que respondi: "Se a AIDS não o
84 matar, eu o farei". As pessoas riram como se eu estivesse fazendo um tipo de gracejo feinbergiano em sua homenagem. O que eu não disse foi que pouco antes de ele morrer parei de gostar dele. Eu não só havia parado de gostar dele naquele momento, mas sempre. Era retroativo. Ele era tão cruel comigo — e com todos seus amigos devotados - tão implacável, negligente e destrutivamente inflamado que me esqueci, por um tempo, que havia gostado dele. Apesar disso, ele é honrado por sua raiva. Raiva é a ortodoxia da comunidade aidética ativista que proclama a si mesma. E a autoridade investida tanto no indivíduo como no grupo. As pessoas perguntam sempre nos encontros da ACT UP: "Onde está sua raiva?", como se fiscalizassem a identidade dos outros. A fúria confere autenticidade. A raiva é vista como totalmente confiável, pois é um sentimento muito intenso. O sentimento fundamental nos encontros do ACT UP é a crença de que as emoções sempre dizem a verdade. O erro de cálculo desse grupo é pensar que os sentimentos por si só, externados de maneira direta e poderosa, mudariam as coisas. Nesse momento, falo como alguém que, em fevereiro, em um dia com temperatura abaixo de zero, estava na calçada de braços dados com David, lado a lado, como tubos de aço para bloquear a entrada da grande companhia farmacêutica Hoffman-LaRoche, em Nova Jersey. Durante três horas anunciamos: "Prendam o verdadeiro criminoso", enquanto quatro policiais locais, que se deram o trabalho de comparecer, nos olhavam atentamente com descaso confuso. Em Albany, em New Hampshire, durante a primeira temporada do ano, em Washington, D. C, na Grand Central Station, marchando através do distrito financeiro de Manhattan, segurava a mão de David ou cerrava os punhos e os elevava bem alto para gritar: "Nunca mais nos silenciaremos". Quando, no auge da guerra do golfo, atravessei correndo o cenário do "CBS Evening News" anunciando: "Lutem contra a AIDS, não contra os árabes", eu o fazia por David. Como David, eu pensava que se ficasse raivoso o bastante, ele não precisava morrer. Eu e ele estávamos errados. O ACT UP estava errado. A raiva é uma estratégia conveniente - a tolice também — se permanecer uma estratégia e não se tornar uma crença. David estava com raiva para poder sobreviver. Isso não apenas não o conservou com vida, mas também tirou dele qualquer conforto que pudesse sentir, transitoriamente, enquanto morria. Aprendi muito sobre a raiva enquanto observava David em seu leito de morte. A premissa da Nova Era, de que "encontrar a sua raiva" é a chave para a saúde e para a força mostra que esse é um pensamento ilusório. A raiva gera apenas mais raiva. Não expressa a verdade, só glorifica o ego. Em outubro, ao ir com David para entregar, o que ele chamou de seu "diatribe sarcástico" para o ACT UP, as limitações da raiva, como um grito público para a ação, se tornaram claras para mim. Naquela noite, três semanas antes de sua morte, ele já não estava mais com seus 68 kg, pesava apenas 48 kg. Seu corpo, com o qual estava sempre preocupado a fim de mantê-lo em perfeitas condições pensando que algum dia precisaria dele como uma arma, havia se desintegrado. Seu esqueleto era visível. Agarrava as calças, com punho raivoso, para que não caíssem. Ele, como o rei Lear retornando da mata, olhava e soava furioso, delirante e obcecado. No entanto, não havia catarse em sua fúria. Essa foi desperdiçada nele e em seu aposento. Nas segundas-feiras à noite - as noites da ACT UP - deveria haver uma placa dependurada sobre o Centro Comunitário de gays e lésbicas, de Nova York, com o dito: "ABANDONEM A ESPERANÇA, TODOS OS QUE ENTRAREM AQUI". Na noite em que David apareceu, ele se dirigiu a uma organização que não mais existe. A grande quantidade de raiva empregada por uma quantidade ainda maior de pessoas, com tamanha rapidez, mas com tão poucos resultados, fizera com que o resíduo de amargura deixasse a maioria das pessoas da comunidade dos ativistas aidéticos de Nova York exaustos. Muita gente morreu. Mas outros muitos se encontravam exaustos pelo éthos ineficaz do grupo, da fúria coletiva não questionada. A raiva é o que faz com que nada aconteça, não a poesia. Não me recordo muita coisa do discurso de David. Lembro-me dele dizer, muitas vezes, "f____". Como muitos membros da ACT UP, ele também tinha fé adolescente no poder totêmico da palavra "f____". Ele também usava a palavra "raiva". Ele estava com raiva por estar morrendo. Ele estava com raiva porque a ACT UP não o deixaria com vida. Estava com raiva de todos naquele recinto e de todos, vivos ou mortos, que haviam, alguma vez, freqüentado uma daquelas reuniões. Era o tipo de discurso que tinha longa tradição na ACT UP, um grito de fúria purificador com o objetivo de renovar o fervor ativista. Não
85 podia escutar. Pois não achava que o ponto aqui era que David queria a cura para a AIDS, mas que desejava a cura para si mesmo. Nos últimos cinco anos pusera sua fé e energia em um grupo que devia ser uma comunidade. No entanto, no final, David não se importava com seus amigos que estavam morrendo, ele só se importava com a sua vida, porque ele estava morrendo. Naquela noite, muitos que estavam no recinto, e outros que ouviram falar sobre o que aconteceu, sentiram que ele tinha todo o direito de se preocupar consigo mesmo. Eu não penso assim. Sua morte não afetou apenas a ele. Eu também perdia algo. E muitos outros também perdiam. Uma das crenças implícitas da ACT UP, além da raiva, é o egoísmo. O que a ACT UP visa é providenciar um escape para a gratificação pessoal de toda alma individual. Os membros HIV negativos querem ser aceitos. Os membros HIV positivos querem ser curados. O discurso de David não era um discurso valente ou inspirador, era egocêntrico. O que ele, em última análise, dizia à comunidade aidética ativista era: "Isso acontece comigo. Nada mais importa, só quero salvar a minha pele". Faria tudo para ajudá-lo, mas David, afinal, não queria ser libertado da AIDS. Ele odiava a AIDS, mas o que ele mais odiava era ser humano. Como muitos ativistas aidéticos, ele pensava que era o único especial demais para morrer. John Weir, "Rage, Rage", The New Republic, 13 de fevereiro de 1995, pp. 11-12. © 1995, The New Republic. Inc. Reproduzido com permissão da The New Republic. SEGUINDO O CAMINHO GAY? Nossa vida desprovida de filhos, nossas responsabilidades mínimas, o fato de que nossas uniões não são consagradas, mesmo nosso extremo isolamento nos guetos gay em busca de proteção e liberdade,.., têm estimulado um estilo no qual exploramos coisas que, mesmo a despeito de nossas intenções conscientes, servirão, um dia, à maioria heterossexual. — MlCHEL FOUCAULT
Perguntas para reflexão e discussão
1. Leia Licença para o Terror. Que exemplos você encontra nos anos que se seguiram às palavras escritas por Henry Fairlie, em 1978, para sustentar o princípio dele: "Justificamos a cólera deles e, assim, justificamos a violência deles"? O que Fairlie poderia escrever sobre a função da raiva na sociedade de hoje? 2. No artigo de John Weir qual é a conexão entre a raiva de Feinberg e seu uso intencional de locuções como "transgressivo", "contracultural" e "morto pela negligência do governo"? Qual era o objetivo impactante que essas palavras deveriam ter sobre o público? Cite outras frases e palavras emotivas comumente usadas na "política da raiva"? 3. Weir diz que o escrito de Feinberg tem "profundidade virtual", pois "passa com tanta rapidez e de modo tão superficial" pelas coisas. Será que há conexão entre esse estilo de escrita e a raiva por trás da mesma? Se sim, qual? Você pode pensar em outros exemplos de escrita superficial induzida pela raiva? 4. Por que Weir deixou de gostar de Feinberg? Como Weir vê a fúria na psicologia dos ativistas homossexuais? Por que a raiva "confere autenticidade" a tais grupos? Você vê a raiva desempenhar uma função similar em outro grupo ativista? Qual? 5. Na luta contra a injustiça o que a afronta tem de construtivo que possa torná-la justificável? Você tem algum exemplo? Quando essa luta cruza a linha e se transforma no pecado capital da raiva? 6. O que Weir e Feinberg acreditavam erroneamente que a raiva poderia fazer? Qual é a crítica de Weir em relação ao sentimento de tagarelice psicológica/ Nova Era de que "encontrar sua raiva" é a chave para a saúde? De que maneira a raiva "glorifica o ego"? 7. Por que Weir não foi capaz de escutar o discurso de seu amigo na ACT UP? De que forma a raiva, no fim, destruiu a organização? 8. Qual foi a conclusão de Weir sobre o motivo real da raiva de Feinberg? Que similaridades você pode perceber entre a fúria de Feinberg e a de outras pessoas perpetuamente raivosas na sociedade moderna?
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MARY GORDON Mary Catherine Gordon (nascida em 1949) é uma bem-sucedida romancista e escritora de historietas contemporâneas. Nasceu em Long Island, Nova York, e foi educada em Barnard College e na universidade de Syracuse. Atualmente, dá aulas de inglês no Amherst College. Gordon ficou rapidamente conhecida após dois romances o Final Pay-ments [Pagamentos finais] (1978) e o The Company of Women [A companhia de mulheres] (1981). Com freqüência, Gordon, escritora confiante com um dom brilhante para palavras, é comparada com Jane Austen. Como católica devota, ela é penetrante em sua descrição dos crentes religiosos e seu mundo. Esse ensaio curto sobre a raiva escrito para a The New York Times destaca sua força descritiva, como também sua honestidade refrescante.
A fascinação começa na boca Se a palavra pecado tem, de alguma forma, qualquer significado útil em um tempo em que não há possibilidade de redenção, deve falar de uma distorção tão severa que o ego reconhecível é apagado ou perdido. Muitos pensadores atuais desejam abandonar a idéia de uma personalidade contínua; romancistas sempre entenderam que as personalidades são transitórias, maleáveis e porosas. No entanto, algo reconhecível, algo suficientemente constante para ter acoplado a si um nome compreensível, parece permanecer desde o nascimento até a morte. O pecado torna o pecador irreconhecível. Recordo-me muito bem do dia em que senti isso na pele, pois me apavorou. Tornei-me um animal. Essa experiência pecaminosa ocorreu - como tantas outras - por ocasião de um jantar festivo. Era um dia quente de agosto. Naquela noite, eu receberia, em casa, dez pessoas para o jantar. Ninguém me ajudava. Naturalmente, sentia-me uma vítima, como qualquer pessoa se sentiria na cozinha quente em um quente dia de agosto. (É importante lembrar que o hábito de autojustificação da pessoa raivosa associa-se, muitas vezes, ao costume de se ver como vítima.) Eu cortei, misturei, inclinei-me sobre o fogo brando e tudo sozinha, totalmente sozinha! O calor do forno era meu purgatório, meu crisol. Minha mãe e meus filhos pensaram que esse era um bom momento para a desobediência civil. Eles se posicionaram no carro e recusaram mover-se até que os levasse para nadar. Meus filhos eram pequenos, sete e quatro anos. Minha mãe já tinha setenta e oito anos e exceto por seu hábito diário de malhação verbal era corretamente descrita como enferma. Com o intuito de lembrar-me da promessa de levá-los ao lago, eles se apoiaram na buzina e gritaram meu nome pela janela, todos os vizinhos podiam escutar. Há certas ocasiões em que um clichê popular desemboca no cenário embotado por seu uso exagerado e acorda para a vida, essa era uma dessas ocasiões. Perdi as estribeiras. Perdi a cabeça. Pulei no capô do carro. Dei golpes no pára-brisa. Informei minha mãe e meus filhos que nunca mais os levaria a qualquer lugar, e que nenhum deles levaria qualquer amigo para qualquer casa que eu tivesse até a hora da minha morte, o que, disse eu, esperava que fosse muito em breve. Não era capaz de parar de golpear o pára-brisa. Então, algo assustador aconteceu. Tornei-me um pássaro gigante. Um corvo putrefato. Minhas pernas se tornaram pedúnculos endurecidos, meus olhos eram penetrantes e cruéis. Desenvolvi um bico sanguinário. Em lugar dos braços apareceram penas pretas oleosas. Bati as asas várias vezes. Apaguei até mesmo a luz do sol com minhas asas. Cada vez meu bico aterrissava perto de minhas vítimas (parecia que eram meus punhos cerrados no párabrisa, mas, na verdade, era meu bico em seus pescoços) e voltava para mais. O gosto do sangue me hipnotizou. Queria continuar a bicar para sempre. Queria causar a morte de todos eles com meu bico sanguinário e deixar que caíssem em uma rocha onde pudesse me alimentar de seus corpos destruídos até que meu estômago de pássaro estivesse inchado. Isso tudo não era figurativo. Tornei-me, literalmente, aquele pássaro. Tive de ser forçada a descer daquele veículo para parar de bater no pára-brisa. Mesmo depois disso, não voltei a mim. E quando voltei, estava apavorada. Conscientizei-me de que havia, genuinamente, amedrontado meus filhos. Principalmente, porque não eram mais capazes de me reconhecer. Meu filho disse-me: "Estava com
87 medo, pois não sabia quem era aquela pessoa". Entendo que esse não é um pecado de natureza séria. Acredito que isso é verdade, pois tinha aspectos cômicos, e o pecado capital é caracterizado pela ausência de humor, pois este sempre trás vida. Contudo, por causa dessa experiência e de outras que não contarei, compreendo perfeitamente o pecado capital da raiva. Eu estava irreconhecível, até para mim mesma e, por algum tempo, para meu filho, mas ainda estava reconhecível para a maior parte do resto do mundo, pois continuava pertencendo à espécie humana. O pecado capital faz o resto da comunidade humana dizer: "Como esse indivíduo é capaz de fazer esse tipo de coisa e ainda ser humano?" Os eventos na anterior Iugoslávia parecem-me que caracterizam perfeitamente os resultados da raiva mortal. Nós, observadores, somos atormentados e confundidos por comportamentos inimagináveis de pessoas que se pareciam bastante conosco. Eles não se assemelhavam à idéia que temos de alguém diferente: liam sobre os mesmos filósofos, passávamos nossas férias no meio deles, deliciando-nos com sua comida, com sua música, com sua habitual jovialidade. Mesmo assim, um tipo de horror incompreensível alastrou-se exatamente por causa de uma raiva que, ao se alimentar de si mesma até que todos os olhos humanos ficassem cegos pela carne inchada dessa raiva altamente devoradora, perdeu o controle. Pessoas que cinco anos atrás comiam juntas, estudavam juntas e até mesmo casavam entre si, agora juram exterminar uns aos outros da maneira mais sanguinária e horripilante. Centenas de anos de injustiça mútua, entesourada como textos sagrados, são revisitados, ressuscitados, nutridos, fazendo com que surja uma criatura totalmente nova, uma criatura criada na raiva a ponto de não enxergarem mais nada. Uma vingança hipnótica, viciadora, uma ação irrefletida alastra-se como uma peste. Milhares e milhares de mulheres foram violentadas; a gravidez tornou-se uma maldição, um castigo. Os idosos morrem de fome, lindas cidades antigas foram destruídas. E agora, a causa original da raiva é menos importante que o ímpeto levantado por ela. Esse é o poder mortífero da raiva: rola montanha abaixo como uma pedra flamejante acrescentando-lhe massa e velocidade até que qualquer pensamento de interrupção esteja fora de cogitação e pareça não haver esperança alguma. O ponto aqui não é não haver causa para a raiva; a pesada camada superior do solo da injustiça reprimida gera raiva, mais que qualquer outro coisa. Mas esquece-se o motivo no próprio momento de raiva e na compulsão insaciável para destruir qualquer coisa para alimentar a goela aberta da fúria. Extraído de "The Deadly Sins/Anger; The Fascination Begins in the Mouth" escrito por Mary Gordon. The New York Times Book Review, 13 de junho de 1993. Copyright © 1993 pela The New York Times Company. Reproduzido com permissão. O LAGAR DA IRA Entretanto, aquele estopim continuou a queimar por dois anos consecutivos, fervilhando tensões e, por vezes, conflitos abertos. Então, em um dia de novembro de 1965, todos os Mondavis estavam reunidos em uma de nossas grandes reuniões familiares no lagar para o que deveria ser uma ocasião alegre e festiva. Mas o dia não foi rada festivo. Não me lembro exatamente como começou, mas, em certo momento, Pedro e eu começamos a discutir. Começamos a nos irritar, e Pedro acusou-me de gastar mais dinheiro da empresa do que podia em viagens e promoções. A essa altura, ele realmente se alterou e me acusou de roubar dinheiro do estabelecimento vinícola. Se não fosse assim, como teria recursos para comprar aquele casaco de pele de mink? Em essência, senti como se meu próprio irmão me acusasse de ser um ladrão e caloteiro. Disse-lhe: "Repita isto e baterei em você". Ele confirmou o que dissera. Dei-lhe uma terceira chance: "Retire o que disse". "Não." Dei-lhe duas boas bofetadas. Pedro e eu crescemos juntos e raramente brigávamos. No entanto, lembro-me, uma vez, quando éramos* adolescentes que realmente destruímos o quarto de um de nós dois. Contudo, não me recordo nada mais, além desse evento. Portanto, aqui estávamos nós, dois homens com um pouco mais de cinqüenta anos, agindo como crianças em um pátio de escola - com conseqüências devastadoras. Quando tudo passou, não houve desculpas nem apertos de mão. Muito pelo contrário, como um cutelo de açougueiro, a briga dividiu nossa família e não havia reparo para o estrago. Quebrou o coração de minha mãe, dividiu nossas irmãs e deixou nossos filhos machucados e confusos. Os Mondavis, que até aquele dia eram uma família muito unida, agora estavam profundamente - e muito publicamente - divididos. A briga e seus resultados ficaram rapidamente notórios ao longo de Napa Valley e no meio da indústria vinícola estadounidense. Uma fofoca malvada espalhou o ocorrido como a versão moderna de Caim e Abel. Meu pai teria imposto a paz na família, mas quando isso aconteceu ele já se encontrava morto fazia alguns anos e o que aconteceu foi simplesmente demais
88 para minha mãe. Ela não tinha condições de fazer coisa alguma. Advogados e mediadores foram acionados. — ROBERT MONDAVI, HARVEST OF JOY [SAFRA DE ALEGRIA] Extraído de Harvest of Joy, de Robert Mondavi, reproduzido com permissão de Harcourt Inc., 1998.
Perguntas para reflexão e discussão
1. Em sua opinião, o que Mary Gordon quer dizer ao descrever o pecado como "distorção tão severa que o ego reconhecível é apagado"? Onde você viu esse pecado? Você pode pensar em exemplos dessa "distorção" em grupos políticos, comunidades ou, até mesmo, nações? 2. De acordo com Gordon que compreensão de si mesmo é a chave para o costume de justificar a própria raiva? Por que esse argumento funciona tão bem? Que pensamento enganador está escondido por trás dele? 3. Você é capaz de se ver tendo uma experiência como a de Gordon de "se perder" na raiva? Com que parte da descrição da fúria dela que você se associa melhor? Que outras metáforas (além da do pássaro) você usaria para descrever a experiência da fúria em você mesmo ou em outras pessoas? 4. O que você acha da pergunta de Gordon em relação ao pecado da raiva mortal: "Como essa pessoa é capaz de fazer esse tipo de coisa e ainda ser humana"? Será que há casos, em anos recentes, que receberam a atenção da mídia e o fizeram se fazer essa pergunta? Quais? 5. Qual a conexão, perceptível ou real, entre a raiva e o poder? Por que o poder conquistado pela raiva é, em última análise, um poder fraco? 6. Gordon escreve que a causa original da raiva é, muitas vezes, amenizada ou completamente perdida no momentum construído por ela. Você se recorda de alguma vez quando estava com raiva e foi incapaz de lembrar a causa original da raiva? O que há na raiva que permite que ela se desprenda de sua fonte original e se alimente de si mesma? 7. Qual a implicação do dito popular "fúria cega"? Por que a fúria e a visão não podem coexistir? 8. Qual deveria ser nossa reação quando essas explosões de raiva tomam forma 9. coletiva, como nos amotinados de Los Angeles, na década de 1980, ou os assassinatos em Ruanda, na década de 1990?
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O CONTRAPONTO DA RAIVA bem-aventurados os mansos
O contraponto do pecado mortal da raiva é encontrado em duas bem-aventuranças: "Bemaventurados os mansos", e: "Bem-aventurados os pacificadores". Ambas têm sido neutralizadas pela confusão. A mansidão tem sido confundida com fraqueza e o pacificar com pacifismo e inatividade. SER MANSO É SER FRACO? Os mansos herdarão a terra, mas não os direitos minerais. — JOHN PAUL GETTY Aqueles que transformam suas armas em arados terminarão arando para aqueles que não fizeram isso. — ADESIVO NO PÁRA-CHOQUE DO CAMINHÃO DE FRANCISCO M, DURAN QUE ATIROU NA CASA BRANCA COM UMA ARMA AUTOMÁTICA LEVE, EM NOVEMBRO DE 1994
Mas tanto a mansidão quanto o pacificar, longe de serem fracas, têm seu pivô na força. A força de não usar o poder é vista mais claramente e de forma mais construtiva quando a possibilidade de se usar esse poder é maior. Na Escritura hebraica a figura da paz não é de duas ovelhas deitadas juntas, mas a do leão deitado junto à ovelha que seria uma presa fácil. Enquanto o pecado da ira se origina comumente em sentimentos de inferioridade e de impotência, a mansidão se origina no conhecimento acertado que temos de nossa força. Essa força quando é submetida a Deus e, portanto, está sob controle torna-se a verdadeira mansidão. A mansidão não sente necessidade de injuriar os outros. Ela trabalha pela paz, e pela justiça ao invés de prejudicar a outros porque não possui aquele sentimento de inferioridade que precisa ser pacificado, nem o sentimento de impotência que a pessoa precisa provar que não tem.
A opinião que se tem dos outros Tanto a mansidão quanto a pacificação estão enraizadas na apreciação do valor infinito da vida humana. Os ensinamentos de Jesus, em ambas as bem-aventuranças, estão centrados na preciosidade dos seres humanos e em seu valor intrínseco como reflexos da imagem de Deus. Portanto, não é suficiente o mandamento de não matar os outros ou de não tomar o que é deles. A mansidão e a pacificação se movem do negativo (não matarás, não furtarás) paia o positivo - exibe bondade e paciência e procura ativamente a reconciliação. Assim, elas estão sob a ação do amor, como o apóstolo nos informa em seu resumo dos ensinamentos de Jesus: "Se vocês de fato obedecerem à lei do Reino encontrada na Escritura que diz: 'Ame o seu próximo como a si mesmo', estarão agindo corretamente" (Tg 2.8). A PACIFICAÇÃO PARA UM "TOLO" Depois Davi foi para o deserto de Maom. Certo homem de Maom, que tinha seus bens na cidade de Carmelo, era muito rico. Possuía mil cabras e três mil ovelhas, as quais estavam sendo tosquiadas em Carmelo. Seu nome era Nabal e o nome de sua mulher era Abigail, mulher inteligente e bonita; mas seu marido, descendente de Calebe, era rude e mau. No deserto, Davi ficou sabendo que Nabal estava tosquiando as ovelhas. Por isso, enviou dez rapazes, dizendo-lhes: "Levem minha mensagem a Nabal, em Carmelo, e cumprimentem-no em meu nome. Digam-lhe: Longa vida para o senhor! Muita paz para o senhor e sua família! E muita prosperidade para tudo o que é seu! "Sei que você está tosquiando suas ovelhas. Quando os seus pastores estavam conosco, nós não os maltratamos, e durante todo o tempo em que estiveram em Carmelo não se perdeu nada que fosse deles. Pergunte a eles, e eles lhe dirão. Por isso, seja favorável, pois estamos vindo em época de festa. Por favor, dê a nós, seus servos, e a seu filho Davi o que puder". Os rapazes foram e deram a Nabal essa mensagem, em nome de Davi. E ficaram esperando. Nabal respondeu então aos servos de Davi: "Quem é Davi? Quem é esse filho de Jessé? Hoje em dia muitos servos estão fugindo de seus senhores. Por que deveria eu pegar meu pão e minha água, e a carne do gado que abati para meus tosquiadores, e dá-los a homens que vêm não se sabe de onde?" Então, os mensageiros de Davi voltaram e lhe relataram cada uma dessas palavras. Davi ordenou a seus homens: "Ponham
90 suas espadas na cintura!" Assim eles fizeram e também Davi. Cerca de quatrocentos homens acompanharam Davi, enquanto duzentos permaneceram com a bagagem. Um dos servos disse a Abigail, mulher de Nabal: "Do deserto, Davi enviou mensageiros para saudar o nosso senhor, mas ele os insultou. No entanto, aqueles homens foram muito bons para conosco. Não nos maltrataram, e, durante todo o tempo em que estivemos com eles nos campos, nada perdemos. Dia e noite eles eram como um muro ao nosso redor, durante todo o tempo em que estivemos com eles cuidando de nossas ovelhas. Agora, leve isso em consideração e veja o que a senhora pode fazer, pois a destruição paira sobre o nosso senhor e sobre toda a sua família. Ele é um homem tão mau que ninguém consegue conversar com ele". Imediatamente, Abigail pegou duzentos pães, duas vasilhas de couro cheias de vinho, cinco ovelhas preparadas, cinco medidas de grãos torrados, cem bolos de uvas passas e duzentos bolos de figos prensados, e os carregou em jumentos. E disse a seus servos: "Vocês vão na frente; eu os Seguirei". Ela, porém, nada disse a Nabal, seu marido. Enquanto ela ia montada num jumento, encoberta pela montanha, Davi e seus soldados estavam descendo em sua direção, e ela os encontrou. Davi tinha dito: "De nada adiantou proteger os bens daquele homem no deserto, para que nada se perdesse. Ele me pagou o bem com o mal. Que Deus castigue Davi, e o faça com muita severidade, caso até de manhã eu deixe vivo um só do sexo masculino de todos os que pertencem a Nabal!" Quando Abigail viu Davi, desceu depressa do jumento e prostrouse perante Davi, rosto em terra. Ela caiu a seus pés e disse: "Meu senhor, a culpa é toda minha. Por favor, permite que tua serva te fale; ouve o que ela tem a dizer. Meu senhor, não dês atenção àquele homem mau, Nabal. Ele é insensato, conformo o significado do seu nome; e a insensatez o acompanha. Contudo, eu, tua serva, não vi os rapazes que meu senhor enviou. Agora, meu senhor, juro pelo nome do SENHOR e por tua vida que foi o SENHOR que te impediu do derramar sangue e de te vingares com tuas próprias mãos. Que teus inimigos e todos os que pretendem fazer-te mal sejam castigados como Nabal. E que este presente que esta tua serva trouxe ao meu senhor seja dado aos homens que te seguem. Esquece, eu te suplico, a ofensa de tua serva, pois o SENHOR certamente fará um reino duradouro para ti, que travas os combates do SENHOR. E EM TODA A TUA VIDA, nenhuma culpa se ache em ti. Mesmo que alguém te persiga para tirar-te a vida, a vida de meu senhor estará firmemente segura como a dos que são protegidos pelo SENHOR, o teu Deus. Mas a vida de teus inimigos será atirada para longe como por uma atiradeira. Quando o SENHOR tiver feito a meu senhor todo o bem que prometeu e te tiver nomeado líder sobro Israel, meu senhor não terá no coração o peso de ter derramado sangue desnecessariamente, nem de ter feito justiça com tuas próprias mãos. E, quando o SENHOR tiver abençoado a ti, lembra-te de tua serva". Davi disse a Abigail: "Bendito seja p SENHOR, O Deus de Israel, que hoje a enviou ao meu encontro. Seja você abençoada pelo seu bom senso e por evitar que eu hoje derrame sangue e me vingue com minhas próprias mãos. De outro modo, juro pelo nome do SENHOR, O Deus de Israel, que evitou que eu lhe fizesse mal, que, se você não tivesse vindo depressa encontrar-me, nem um só do sexo masculino pertencente a Nabal teria sido deixado vivo ao romper do dia". Então Davi aceitou o que Abigail lhe tinha trazido e disse: "Vá para sua casa em paz. Ouvi o que você disse o atenderei o seu pedido". Quando Abigail retornou a Nabal, ele estava dando um banquete em casa, como um banquete de rei. Ele estava alegre e bastante bêbado, e ela nada lhe falou até o amanhecer, De manhã, quando Nabal estava sóbrio, sua mulher lhe contou tudo; ele sofreu um ataque e ficou paralisado como uma pedra. Cerca de dez dias depois, o SENHOR feriu Nabal, e ele morreu. Quando Davi soube que Nabal estava morto, disse: "Bendito seja o SENHOR, que defendeu a minha causa contra Nabal, por ter me tratado com desprezo. O SENHOR impediu seu servo de praticar o mal e fez com que a maldade de Nabal caísse sobre a sua própria cabeça". Então Davi enviou uma mensagem a Abigail, pedindo-lhe que se tornasse sua mulher. — ISAMUEL 25.1-39
C. S. LEWIS C. S. Lewis (1898 - 1963) foi apresentado na parte 1 sobre o orgulho. O seguinte texto sobre perdão também provém do seu livro Cristianismo Puro e Simples.
Perdão Disse num capítulo anterior que a pureza sexual é a mais impopular das virtudes cristãs. Mas possivelmente eu tenha me equivocado. Creio que uma outra é muito mais impopular. Está prescrito na lei cristã: "Amarás o teu próximo como a ti mesmo". Porque na moral cristã "o teu próximo" inclui "o teu inimigo", revoltamo-nos contra esse terrível dever de perdoar os nossos inimigos. Todo o mundo acha que o perdão é uma idéia adorável, até ter que perdoar alguma coisa, como foi o caso dos ingleses, durante a guerra. E, então, mencionar o assunto é o bastante para se ser recebido com rugidos de ira. Não é que as pessoas julgam esta virtude inatingível ou difícil: é que a julgam odiosa e desprezível. Dizem: "Esta conversa me enoja". E muitos dos leitores certamente estarão querendo me perguntar: "Como você se sentiria perdoando a Gestapo, se fosse um polonês ou um judeu?" Eu também gostaria de saber, e muito. Assim como quando o cristianismo diz que não se deve negar a fé nem para se livrar da morte por tortura, eu gostaria muito de saber o que faria se estivesse nessa situação. Minha intenção neste livro não é dizer o que faria (e quase nada faço!); só procuro dizer o que é o Cristianismo. Não o inventei. E, bem no centro dele, encontro: "Perdoa-nos as nossas dívidas, assim como nós perdoamos aos nossos devedores". Não há a menor menção de
91 que o perdão seja oferecido em outros termos. Está perfeitamente claro que, se não perdoarmos, não seremos perdoados. Não há dois caminhos a seguir. Que podemos fazer? De qualquer maneira, o caminho é bastante difícil, mas há duas coisas que podemos fazer para torná-lo mais fácil. Quando começamos a estudar matemática, não começamos com o cálculo integral, mas com a simples adição. Do mesmo modo, se desejarmos realmente aprender a perdoar (mas tudo depende de uma vontade real), é melhor começarmos com algo mais fácil do que a Gestapo. Podemos começar perdoando ao marido ou à esposa, ou aos pais, ou aos filhos, ou ao colega mais próximo, por alguma coisa que nos fizeram ou nos disseram na semana passada. Isto possivelmente nos bastará como um início. Depois poderíamos procurar compreender exatamente o que significa amar o próximo como a si mesmo. Devo amá-lo da mesma maneira que amo a mim mesmo. Bem, como é, exatamente que amo a mim mesmo? Agora que começo a pensar no assunto, vejo que não é bem um sentimento de predileção ou afeição para comigo mesmo o que sinto, e vejo que nem sempre aprecio a minha própria companhia. Assim, é claro que "amar o próximo" não significa "ter predileção por ele" ou "achá-lo atraente". Eu devia ter compreendido isto antes porque, naturalmente, não se pode ter predileção por alguém por meio de tentativas. Será que penso bem de mim mesmo? Considero-me uma boa pessoa? Bem, temo que às vezes sim (e estes são, sem dúvida, os meus piores momentos), mas não é por isso que amo a mim mesmo. De fato, ocorre exatamente o contrário: Meu amor próprio me faz pensar bem de mim mesmo, mas pensar de mim mesmo não é o motivo pelo qual me amo. Amar os inimigos, então, não significa ter que pensar bem deles. Isso é um grande alívio. Porque muita gente imagina que perdoar os inimigos é fazer de conta que, apesar de tudo, eles não são de fato tão ruins, quando é evidente que são. Prossigamos. Nos meus momentos mais lúcidos, não somente não me considero uma boa pessoa mas me vejo como alguém muito vil. E com horror e repugnância que encaro certas coisas que fiz. Assim, evidentemente, posso repudiar e odiar algumas das coisas que meus inimigos fazem. E, por falar nisto, lembro-me de ter ouvido de meus mestres cristãos, já há muito tempo, que devemos odiar os atos de um homem mau, mas não odiar o homem mau; ou, como eles diziam, devemos odiar o pecado, mas não o pecador. Por muito tempo considerei isso uma distinção tola e imperceptível: como é possível se odiar o que alguém faz, e não odiar a pessoa? Mas anos depois eu percebi que foi precisamente assim que eu me comportei, em toda minha vida, com relação a uma determinada pessoa: eu mesmo. Por mais que eu não gostasse de minha covardia, de meu convencimento e de minha ambição, jamais deixei de me amar. Nunca houve a menor dificuldade nisso. De fato, a verdadeira razão pela qual eu odiava as más ações era que eu amava quem as praticava. Justamente porque me amava é que sentia tristeza em constatar que eu sou a espécie de homem que faz essas coisas. Conseqüentemente, o Cristianismo não pretende que diminuamos nem um pouco o ódio que sentimos pela crueldade e pela traição. Devemos odiá-las. Não precisamos nos retratar de nada que tenhamos dito contra tais coisas. Mas o Cristianismo pretende que as odiamos do mesmo modo como odiamos as nossas próprias ações: ficando tristes pelo fato de alguém ter feito tais coisas e esperando, se for possível, de alguma maneira, em algum tempo ou lugar, a cura para essa pessoa. Eis o verdadeiro teste. Suponhamos que lemos no jornal uma estória com as piores atrocidades. Mas depois alguma coisa surge e nos faz pensar que a estória não era bem assim e que não era tão feia quanto pareceu. Será que o nosso primeiro pensamento é: "Graças a Deus, até mesmo essa gente não é tão má assim", ou temos um certo sentimento de decepção, ou até mesmo uma firme disposição de apegarmo-nos à primeira versão pelo mero prazer de pensar que os nossos inimigos são maus mesmo? Se é o segundo pensamento que ocorre temo que este seja o primeiro passo de um processo que, levado até o fim, nos transformará em demônios. Assim, de início desejamos que o preto seja um pouco mais preto. Dando livre curso a esse desejo, mais tarde vamos querer ver o cinza como preto e depois o próprio branco como preto. Finalmente, insistiremos em ver tudo, inclusive Deus, nossos amigos e nós mesmos, como maus. Incapazes de parar este processo seremos para sempre instalados num universo de puro ódio. Cristianismo Puro e Simples, pgs. 64-67 editora ABU, título anterior Cristianismo Autêntico, traduzido do original em inglês Mere Christianity, William Collins Sons and Co. Ltd. © C. S. Lewis 1942. De C.S.Lewis, Mere Christianity. Copyright ©1942 por C.S.Lewis Pte. Ltd. Extratos reimpressos com permissão.
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Perguntas para reflexão e discussão
1. De acordo com Lewis, o que acontece com a "idéia adorável" do perdão quando o inimigo a ser perdoado é de carne e osso? Que tipo de respostas ele ouviu ao sugerir que um inimigo do tempo da guerra precisava ser perdoado? 2. No final das contas, do que depende o aprendizado de perdoar? Com esse pré-requisito em seu devido lugar, qual a primeira sugestão de Lewis para facilitar o perdão? O que você acha dessa abordagem de não começar "com o cálculo integral, mas com a simples adição"? Em que situações isso seria particularmente útil? 3. Como a definição de Lewis sobre "amar a si mesmo" se diferencia da versão da moderna psicologia popular? Qual a conexão implícita entre "amar o próximo como a si mesmo" e o perdão? 4. O que "amar o próximo" não significa? O que convence Lewis de que o adágio: "Odeie o pecado, mas não o pecador" não é apenas uma distinção justa? Por que você concorda ou discorda? 5. De acordo com o autor, que sentimento em relação aos outros deveria estar por trás de nosso ódio pela ação pecaminosa? Qual o verdadeiro teste para que possamos saber se possuímos ou não essa atitude generosa? 6. De acordo com Lewis o que pode nos transformar em demônios se não for verificado? Onde você viu esse processo corrosivo em ação? 7. Lewis descreve o que o perdão não é, mas não o que é. Como você continuaria 8. para descrever a essência do perdão? Você vê o perdão como algo idealista e irreal ou prático e realista? O que o faz "funcionar"? 9. Para você, quais as pessoas ou grupos mais difíceis de perdoar? Que argumentos você já ouviu ou já apresentou - para não perdoar? Como Lewis responderia a eles?
MARTIN LUTHER KING JR. Martin Luther King Jr. (1929 - 1968) foi líder estado-unidense de direitos civis, pastor, escritor, e ganhador do Prêmio Nobel. Filho e neto de ministros batistas, King nasceu em Atlanta e formou-se, mais tarde, em Sociologia, no Morehouse College. Adquiriu seu doutorado em teologia pela universidade de Boston, em 1955. King foi, em essência, moldado pela sua fé em Jesus Cristo e pela sua igreja e também foi ajudado pela vida e pelos ensinamentos de Mahatma Gandhi. Em 1955, King liderou o histórico boicote negro contra o sistema de ônibus de Montgomery. Em 1957, organizou a Southern Christian Leadership Confercncc [Conferência da Liderança Cristã do Sul] como o fundamento para um novo movimento de direitos civis baseado no pacifismo. Durante os onze anos seguintes, dirigiu muitos protestos por todo o sul dos Estados Unidos. Foi, muitas vezes, preso e encarcerado. Sua casa foi queimada três vezes, e ele foi esfaqueado uma vez. Em seu discurso histórico "I Have a Dream" ["Eu tenho um sonho"], feito na reunião de direitos civis, no dia 28 de agosto de 1963, em Washington D. C, ele resume o progresso do movimento de direitos civis. King recebeu o Prêmio Nobel no ano seguinte, aos trinta e cinco anos de idade - a pessoa mais jovem a receber esse prêmio. Ele foi assassinado em 1968, em Memphis, Tennesse, provavelmente por um homem branco. A mensagem de King se destaca, em grande parte, devido ao seu conteúdo e ao seu estilo tradicional de pregação usado pelos negros. A passagem abaixo, de outro discurso, não é, portanto, um floreado religioso e retórico para ornar uma mensagem secular e política. E o coração de seu chamado para levar justiça e reconciliação.
Amando seus inimigos Provavelmente, nenhuma admoestação de Jesus tem sido mais difícil de ser seguida do que a ordem: "Amem os seus inimigos". Alguns homens têm sinceramente sentido que essa prática é
93 impossível. Eles dizem que é fácil amar aqueles que amam você, mas como alguém pode amar aqueles que aberta e traiçoeiramente tentam derrotá-lo? Outros, como o filósofo Nietzsche, afirmam que essa exortação dada por Jesus é uma evidência clara de que a ética cristã é designada para os fracos e os covardes, e não para os fortes e os corajosos. Dizem que Jesus era um idealista sem sentido prático. Apesar dessas perguntas e objeções persistentes, o mandamento de Jesus nos desafia com nova urgência. Uma revolta atrás da outra lembra-nos que o homem moderno trafega por um caminho chamado ódio, em uma caminhada que só nos trará destruição e condenação. Longe de ser o mandamento piedoso de um sonhador utópico, o comando para amar os nossos inimigos é uma absoluta necessidade para nossa sobrevivência. Amar inclusive os inimigos é a chave para a solução dos problemas de nosso mundo. Jesus não é um idealista com sonhos impraticáveis: ele é um realista prático. Tenho certeza que Jesus entendia a dificuldade inerente ao ato de amar os inimigos. Ele nunca se juntou às posições dos que falam abundantemente sobre a facilidade da vida moral. Entendia que toda expressão genuína de amor cresce de uma rendição perseverante e completa a Deus. Portanto, Jesus ao falar: "Amem os seus inimigos", não ignorava as qualidades limitadas do ser humano. No entanto, era exatamente isso que pretendia dizer. Nossa responsabilidade como cristãos é descobrir o significado desse comando e, com paixão, procurar viver esse mandamento em nossa vida... Vamos, agora, do prático como ao por que teórico: por que devemos amar os nossos inimigos? A primeira razão é bastante óbvia. Retribuir ódio com ódio multiplica o ódio, adicionando ainda mais escuridão à noite já desprovida de estrelas... Outra razão por que devemos amar nossos inimigos é que o ódio macula o coração e distorce a personalidade... A terceira razão pela qual devemos amar nossos inimigos é por que o amor é a única força capaz de transformar um inimigo em amigo. Nunca nos livraremos de um inimigo ao retribuir ódio com ódio; só é possível nos livrarmos de um inimigo livrando-nos da inimizade. O ódio, pela sua própria natureza, aniquila e destrói; o amor, por outro lado, cria e constrói. O amor transforma com poder salvador. Lincoln adotou o caminho do amor e legou à história um drama magnífico de reconciliação. Quando estava em campanha para a presidência, havia entre seus arquiinimigos um homem chamado Stanton. Por alguma razão, Stanton odiava Lincoln. Ele usava cada gota de sua energia para degradar seu inimigo aos olhos do público. Tão profundo era o ódio de Stanton que chegava a usar expressões injuriosas sobre a aparência de Lincoln e, ao mesmo tempo, procurava embaraçálo com discursos amargos. Mas apesar de tudo isso, Lincoln foi eleito presidente dos Estados Unidos. Após a eleição veio o período em que deveria constituir seu gabinete que consistiria de pessoas que seriam seus sócios mais íntimos na elaboração de seu programa de governo. Ele escolheu algumas pessoas para os diversos cargos. Por fim, chegou o dia em que Lincoln precisou escolher o homem que preencheria o cargo de Secretário de Guetra. Vocês imaginam quem Lincoln escolheu para essa posição? Nada menos que o homem chamado Stanton. Houve uma comoção imediata no círculo interno quando a notícia se espalhou. Vários conselheiros disseram-lhe: "Sr. Presidente, o senhor está cometendo um engano. Sabe quem é esse Stanton? O senhor sabe as coisas horríveis que disse a seu respeito? Ele tentará sabotar seu governo. Já pensou nisso, sr. Presidente?". A resposta de Lin coln foi resumida e direta: "Sim, conheço o sr. Stanton. E estou ciente de todas as coisas terríveis que ele disse a meu respeito. Mas após sondar toda a nação, julgo que esse homem é muito indicado para esse cargo." Assim, Stanton tornou-se o Secretário de Guerra de Abraham Lincoln e prestou serviços inestimáveis à nação e ao presidente. Não muitos anos depois, Lincoln foi assassinado. Muitas coisas louváveis foram ditas a seu respeito. Até hoje milhares de pessoas ainda o vêem como o melhor homem dos Estados Unidos. H. G. Wells considerava-o um dos seis maiores personagens da história. Mas de todos os grandes relatos feitos sobre Abraham Lincoln, as palavras de Stanton continuam entre as melhores. Ao lado do corpo do homem que ele um dia havia odiado, Stanton referiu-se a Lincoln como estando entre os melhores homens que jamais existira e acrescentou:
94 "Agora ele pertence à História." Se Lincoln tivesse odiado Stanton, os dois teriam morrido como amargos inimigos. Mas pelo poder do amor Lincoln transformou um inimigo em amigo. Foi essa mesma atitude que tornou possível a palavra afável de Lincoln em relação ao Sul, durante a Guerra Civil, quando os sentimentos eram amargos. Ao ser abordado por uma mulher que ficara chocada ao ouvir seu discurso, Lincoln respondeu: "Minha senhora, não é verdade que destruo meus inimigos ao transformá-los em amigos?". Esse é o poder do amor que redime. Apressemos-nos em dizer que essa não é a razão última pela qual devemos amar nossos inimigos. Há uma razão muito mais profunda para explicar o motivo dessa ordem, e ela está expressa claramente nas palavras de Jesus: "Amem os seus inimigos [...] para que vocês venham a ser filhos de seu Pai que está nos céus." Somos chamados a essa difícil tarefa a fim de termos uma relação exclusiva com Deus. Somos possíveis filhos de Deus. Por meio do amor, essa possibilidade torna-se realidade. Devemos amar nossos inimigos, pois apenas amando-os conhecemos Deus e experimentamos a beleza de sua santidade... E claro que isso não é nada prático. A vida é uma questão de desforra, de rebate, de "lei da selva", de selvageria. Estou dizendo-lhes que o mandamento de Jesus é para que amemos aos que nos magoam e oprimem? Sou como a maioria dos pregadores - idealista e pouco prático? Você acha que talvez em alguma utopia distante essa idéia funcione, mas não no mundo duro e hostil em que vivemos. Meus amigos, já seguimos por muito tempo o caminho da praticidade que nos tem levado, inexoravelmente, à confusão e ao caos cada vez mais profundos. A história está abarrotada de comunidades arruinadas que se deixaram levar pelo ódio e pela violência. Devemos seguir outro caminho para salvar nossa nação e a humanidade. Isso não significa abandonar nossas tentativas honestas. Devemos usar toda nossa energia, por menor que seja, para continuar a livrar essa nação do pesadelo da segregação. Contudo, nessa missão emergencial não podemos jamais abrir mão de nosso privilégio e de nossa obrigação de amar. Ao mesmo tempo em que detestamos a segregação, amemos os segregacionistas. Essa é a única forma de criar uma comunidade digna de amor. Diremos aos nossos mais amargos oponentes: "Igualaremos sua capacidade de infligir sofrimento a nossa capacidade de agüentar sofrimento. Iremos ao encontro de sua força física com a força da alma. Seja como for, continuaremos a amá-los. Não podemos, de sã consciência, acatar suas leis injustas porque não cooperar com o mal é uma. obrigação moral tanto quanto cooperar com o bem. Mesmo que nos joguem na prisão, ainda assim os amaremos. Mandem que seus atacantes encapuxados de violência entrem em nossa comunidade à meia-noite e nos batam, e nos deixem semimortos, mesmo assim continuaremos a amá-los. No entanto, estejam certos de que os desgastaremos com nossa capacidade de sofrer. E um dia, ao ganharmos a liberdade, ela não será só nossa. Apelaremos tanto ao seu coração e a sua consciência que o conquistaremos no processo, e nossa vitória será duplicada." O amor é o poder mais duradouro do mundo. Esse poder criador, demonstrado tão maravilhosamente na vida do nosso Cristo, é o instrumento disponível mais poderoso e eficaz na busca de paz e de segurança por parte da humanidade. Napoleão Bonaparte, o grande gênio militar, ao recordar seus anos de conquista disse: "Alexandre, César, Carlos Magno e eu construímos grandes impérios. Mas em que nos apoiamos? Unicamente na força. Contudo, há séculos, Jesus começou um império baseado no amor, e ainda hoje milhares de pessoas morreriam por ele". Quem duvida da veracidade dessas palavras? Os grandes líderes militares do passado já se foram, e seus impérios ruíram e se desfizeram em cinzas. Mas o império de Jesus, construído sólida e majestosamente nos alicerces do amor, ainda progride... Jesus está sempre certo. A história está repleta de ossos esbranquiçados de nações que se recusaram a ouvi-lo. Que nós, do século XX, possamos ouvir e seguir essas palavras - antes que seja tarde demais. Que possamos, solenemente, perceber que nunca seremos filhos verdadeiros do nosso Pai celestial até que amemos os nossos inimigos e oremos por aqueles que nos perseguem. De Marin Luther King, Strength to Love (Nova York: Collins Publishers, 1977), pp. 47 - 55. Reimpresso com o consentimento dos The Heirs to the Estate of Martin Luther King Jr., c/o Writer's House como representante do proprietário. Direitos autorais © 1963, por Martin Luther King Jr., direitos renovados 1991 por Coretta Scott King.
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Perguntas para reflexão e discussão
1. No parágrafo de abertura, quais são as duas críticas, citadas por King, em relação à ordem de Jesus: "Amem os seus inimigos"? Qual delas é a mais "forte? Por quê? Hoje qual é a objeção mais predominante em relação à frase: "Amem os seus inimigos"? 2. Em sua opinião qual das três respostas dadas por King para a pergunta sobre a razão pela qual devemos amar os nossos inimigos é a mais persuasiva? Por quê? Qual dessas três razões você já viu "em ação"? Descreva a situação. 3. Como você reagiu em relação à história de Lincoln e Stanton? Qual o risco que Lincoln corria ao escolher Stanton para Secretário de Guerra? Em sua opinião por que ele correu esse risco? Você conhece algum exemplo de "inimigos transformados em amigos" pelo amor? 4. De acordo com King, qual é a maior razão para amar nossos inimigos? Essa razão está restrita apenas à espiritualidade pessoal ou envolve ainda implicações sociais mais extensas? Se for assim, quais são? 5. De acordo com King amar nossos inimigos é "nosso privilégio e nossa obrigação". De que maneira isso é um privilégio? Você é capaz de dar exemplos? De que forma é uma obrigação? Aquém devemos essa obrigação? 6. Leia o antepenúltimo parágrafo. Como você se sente ao ler os exemplos dados por King sobre a violência e a perseguição revidadas com amor? No mundo moderno, onde esse amor é necessário? Qual seria o resultado se um amor assim fosse oferecido ao invés do ódio ou da ira? 7. De acordo com Napoleão qual a diferença entre o império de Jesus e os impérios de Alexandre, César, Carlos Magno e o dele mesmo? Em sua opinião, por que o poder do amor permanece por mais tempo do que o poder da força? 8. De que maneira a posição do Martin Luther King Jr. se diferencia da maioria dos ativistas empenhando-se em uma campanha por amor e por reforma?
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Capítulo 4 Preguiça (acedia) versus fome de justiça
A preguiça é o quarto dos sete pecados capitais e - ao contrário das expectativas - o quarto pecado do espírito, e não o primeiro pecado da carne. Sua exclusividade está no fato de ser um pecado de omissão, e não um de comissão, a ausência de uma atitude positiva, e não a presença de uma atitude negativa. De forma distinta, é o mais moderno dos vícios (um vício ausente na lista grega ou romana) e também o mais religioso. Muitos neste mundo conseguem ir bastante longe na procura de compreender o orgulho, a inveja, a ira, a avareza, a glutonaria e a cobiça sem fazer qualquer referência a Deus, porém para fazer o mesmo com a preguiça mudam completamente seu significado original. A preguiça é muito mais que indolência, ociosidade física ou estado de "letargia viciada em televisão" ("Mais Perto de Ti, Meu Sofá", como o New York Times intitulou). Ela é a condição de desânimo espiritual explícito que desistiu de buscar a Deus, à verdade, ao bom e ao belo. A preguiça para ser compreendida de maneira clara deve ser diferenciada da desocupação — um estado de despreocupação prolongada, com freqüência, é apreciado, como amigos em uma refeição prolongada ou amantes que passam horas deleitando-se com alegria. A famosa frase de W. H. Davies contém esse conceito: "Que pobre vida é esta, será que de tanto nos preocuparmos não temos tempo para parar e olhar?". PARAR E FITAR (OU O QUE A PREGUIÇA NÃO É) Relaxar não é preguiça, A pessoa que nunca relaxa não é santa, mas nervosa. — PETER KREEFT
A preguiça, diferente da desocupação, é uma lassidão de espírito, de sentimento, de mente e, conseqüentemente, de corpo proveniente do estado de desânimo em Relação ao valor das coisas espirituais. E uma "fraqueza da alma", uma doença debilitante que se não for examinada pode levar à morte espiritual ou, até mesmo, à morte física.
Figuras e metáforas As pessoas da época medieval falavam da preguiça como "o demônio do meio-dia" porque é aquele tipo de tédio que persegue as pessoas até mesmo ao meio dia, quando não há nem sequer a desculpa das sombras. Hoje, esse tipo de preguiça é expressa em frases como "falta de interesse pela vida", "desorganização", "desesperança em relação ao sentido da vida", "cauterização moral", "vaguear sem rumo", "paralisia da vontade" e "tédio indiferente". Na realidade, a preguiça é a melancolia moderna que nasce do ódio a todas as coisas espirituais que requerem esforço, O pároco de Chaucer diz: "A preguiça não suporta dificuldades ou penitência". Goethe escreveu que a preguiça é a bigorna sobre a qual todos os pecados são moldados. Antes dele, Dante já culpara a preguiça por causar o encolhimento covarde e o fracasso da alma na presença de uma tarefa elevada e árdua - quer seja os israelitas que não queriam ir com Moisés para conquistar a terra prometida, quer seja o grupo de Enéas que se recusou a tomar parte na fundação da república romana. Mesmo que a preguiça possa começar com a indiferença negligente de certos ideais, seu estado final é de desespero em relação à possibilidade de salvação — basicamente uma forma de suicídio espiritual. Por esse motivo, os comentaristas sempre consideraram o suicídio de Judas pior que sua traição a Jesus, pois esse ato sinalizava seu desespero final em relação ao arrependimento e uma
97 volta a Deus. O PREJUÍZO DA PREGUIÇA "Depois, conforme o SENHOR, O nosso Deus, nos tinha ordenado, partimos de Horebe e fomos para a serra dos amorreus, passando por todo aquele imenso e terrível deserto que vocês viram, e assim chegamos a Cades-Barnéia. Então eu lhes disse: Vocês chegaram à serra dos amorreus, a qual o SENHOR, O nosso Deus, nos dá. Vejam, o SENHOR, O seu Deus, põe diante de vocês esta terra. Entrem na terra e tomem posse dela, conforme o SENHOR, O Deus dos seus antepassados, lhes disse. Não tenham medo nem desanimem. "Vocês todos vieram dizer-me: 'Mandemos alguns homens à nossa frente em missão de reconhecimento da região, para que nos indiquem por qual caminho subiremos e a quais cidades iremos'. "A sugestão pareceu-me boa; por isso escolhi doze de vocês, um homem de cada tribo. Eles subiram a região montanhosa, chegaram ao vale de Escol e o exploraram. Trouxeram alguns frutos da região, com o seguinte relato: 'Essa terra que o SENHOR, O nosso Deus, nos dá é boa'. "Vocês, contudo, não quiseram ir, e se rebelaram contra a ordem do SENHOR, O seu Deus. Queixaram-se em suas tendas, dizendo: 'O SENHOR nos odeia; por isso nos trouxe do Egito para nos entregar nas mãos dos amorreus e destruir-nos. Para onde iremos? Nossos compatriotas nos desanimaram quando disseram: "O povo é mais forte e mais alto do que nós; as cidades são grandes, com muros que vão até o céu. Vimos ali os enaquins"'. "Então eu lhes disse: Não fiquem apavorados; não tenham medo deles. O SENHOR, O seu Deus, que esta indo à frente de vocês, lutará por vocês, diante de seus próprios olhos, como fez no Egito. Também no deserto vocês viram como o SENHOR, O seu Deus, os carregou, como um pai carrega seu filho, por todo o caminho que percorreram até chegarem a este lugar. "Apesar disso, vocês não confiaram no SENHOR, O seu Deus, que foi à frente de vocês, numa coluna de fogo de noite e numa nuvem de dia, procurando lugares para vocês acamparem e mostrando-lhes o caminho que deviam seguir. "Quando o SENHOR ouviu o que vocês diziam, irou-se e jurou: 'Ninguém desta geração má verá a boa terra que jurei dar aos seus antepassados, exceto Calebe, filho de Jefoné. Ele a verá, e eu darei a ele e a seus descendentes a terra em que pisou, pois seguiu o SENHOR de todo o coração'. — MOISÉS, EM DEUTERONÔMIO 1.19-36
Aplicações práticas A preguiça é tão intrínseca à vida moderna que é difícil reconhecê-la como pecado capital. Ela é apenas uma condição subjacente em uma era secular. Dante reconheceu que a preguiça, de maneira peculiar, podia dominar as pessoas de meia idade. As pessoas de meia idade e as mais velhas pressionadas pelo importante e pelo fatigante esquecem os assuntos mais sublimes da vida e, sobretudo, ignoram as aspirações espirituais. Evelyn Waugh previne: "A preguiça não é originalmente a tentação do jovem". O VENENO DO TÉDIO Nos Estados Unidos as dificuldades não são o Minotauro ou o dragão - nem o aprisionamento, nem o trabalho duro, nem a morte, nem o assédio governamental, nem a censura -, mas a cobiça, o tédio, a negligência e a indiferença. Também não são os atos de um governo poderoso, completamente impregnado e repressivo, mas o fracasso de um público apático no uso de seu direito inato, a liberdade." — ALEXANDER SOLZHENITSYN, NO DISCURSO DA CERIMÔNIA DE FORMATURA EM HARVARD, 1978
No entanto, no mundo moderno, os jovens não estão imunes. Reflete-se neles, muitas vezes, a atitude predominante da arte e da mídia. A arte e a literatura precisam de objetos "dignos" de exploração e descrição, por isso há uma tendência de transformar o vício da preguiça em uma virtude, tornando-a tema digno para o drama, a pintura e o romance. Portanto, a ironia de nosso mundo infectado pela preguiça é seu esforço contínuo em achar algum significado para a própria insignificância. Agora, a atitude monótona e desinteressada da preguiça é o "páthos da futilidade" ou o "drama do desespero". Em geral, a música, na esfera popular, é a mensageira dessa indiferença fria e distante em relação à alegria ou à tragédia verdadeiras. A aceitação bastante difundida da preguiça é, de certa forma, melhor capturada no refrão muito usado pelos adolescentes: "Tanto faz".
BLAISE PASCAL Blaise Pascal (1623-1662) está entre os mais eminentes cristãos e pensadores ocidentais - era cientista, matemático e apologista cristão. Nasceu em Clermont-Ferrand, na França. Foi criado por seu pai após a morte da mãe quando tinha apenas quatro anos de idade. Pascal mostrou grande precocidade desde tenra idade, participou de vários experimentos matemáticos, entre esses os que culminaram na invenção do barômetro e da prensa hidráulica. Às vezes, ainda é chamado de "o avô do computador" por ter inventado a primeira calculadora.
98 Em 1645, Pascal converteu-se pela primeira vez ao entrar em contato com os Jansenistas, uma comunidade católica levemente dissidente, quase semi-protestante. Sua irmã Jacqueline entrou para o convento situado em Port Royal. A segunda conversão dele, a definitiva, aconteceu no dia 23 de novembro de 1654, quando, como descreve, conheceu o "Deus de Abraão, o Deus de Isaque, o Deus de Jacó e não o deus dos filósofos e dos homens da ciência". O registro dessa profunda experiência foi descoberto após sua morte - ele o costurara na camisa que usara nos últimos anos de vida. A maior obra de Pascal foi Pensées [Pensamentos]. Obra inacabada e apenas posteriormente publicada. E uma coletânea de pensamentos de grande vindicação da fé cristã contra as influências dos libertinos de sua época. Seu estilo é brilhante, mas a verdadeira força de Pascal vem da riqueza de sua experiência pessoal e de seu discernimento filosófico e psicológico. Pensées [Pensamentos], mesmo incompleto, tornou-se um clássico ocidental e uma grande apologia cristã que tem levado muitos pesquisadores à fé em Cristo. O por que disso fica claro na leitura, a seguir, que é um ataque contra a preguiça.
Pensées [Pensamentos] A imortalidade da alma é algo que nos interessa tanto e nos toca tão profundamente que seria necessário perder todo sentimento para permanecer indiferente e desconhecer o que existe a esse respeito. Todas as nossas ações e todos os nossos pensamentos seguem rumos tão diferentes, haja ou não bens eternos a esperar, que é impossível tentar alguma coisa com sentido e razão sem regulá-la pela mira desse ponto que deve ser nosso propósito último. Desse modo, nosso primeiro interesse e dever é esclarecer esse assunto do qual depende nossa conduta. E é por esse motivo que faço grande distinção entre os que não se persuadiram e lutam com toda energia para se instruir e os que vivem sem se dar a esse trabalho e sem nele pensar. Só posso ter compaixão por aqueles que na dúvida gemem com fraqueza, que a enxergam como a última das desgraças e que, sem nada poupar para dela escapar, fazem dessa busca sua principal e mais séria ocupação. No entanto, os que passam pela vida sem meditar sobre o objetivo último da vida e que pelo único motivo de não achar em si mesmos a luz que os convençam deixam de buscá-la em outros lugares e de analisar com profundidade se esse conceito é um dos que o povo recebe por simplicidade crédula ou dos que, apesar de obscuros em si mesmos, têm, no entanto, um fundamento muito sólido e inabalável — eu considero esses de modo muito diferente. Na verdade, a negligência em relação a um assunto que diz respeito a eles mesmos, a eternidade, em sua totalidade causa-me mais irritação que comoção, espanta-me e horroriza, pois ela é um monstro para mim. Não digo isso pelo zelo piedoso de uma devoção espiritual. Ao contrário, entendo que se deve possuir tal sentimento por uma questão de interesse humano e de amorpróprio, assim, é suficiente observar o que vêem os menos esclarecidos. Não é preciso ter uma alma muito instruída para compreender que neste mundo não existem alegrias sólidas e verdadeiras, que todos nossos prazeres não passam de vaidades, que nossos males são infinitos, e que a morte, que nos ameaça a cada momento, levar-nos-á em poucos anos, de modo infalível, à horrível necessidade de sermos eternamente aniquilados ou eternamente infelizes. Não há nada mais real ou mais terrível que isso. Independente da coragem que aparentemos esse é o fim que aguarda a mais bela vida do mundo. Reflita sobre isso e, depois, diga se não é fora de dúvida que não existe outro bem nesta vida a não ser o da esperança em outra vida, que não somos felizes a não ser à medida que nos aproximamos dessa outra vida e que, assim como não haverá mais desgraça para os que têm toda certeza da eternidade, não haverá também felicidade para os que necessitam de toda luz. Assim, se duvidar é um grande mal, buscar a verdade é, no mínimo, um dever indispensável quando se tem dúvida, e, desse modo, quem duvida e não procura a verdade é ao mesmo tempo bastante infeliz e injusto; além disso, não tenho qualificação para uma criatura tão extravagante que vive tranqüila e feliz, gaba-se disso e envaidece-se com isso e, nesse estado, encontra motivo para
99 alegria. Onde encontrar esses sentimentos? Que motivo de contentamento encontra-se na espera de misérias sem remédio? Que motivo de vaidade há em estar na obscuridade impenetrável? Como um homem razoável pode ter esse tipo de raciocínio? 'Não sei quem me pôs no mundo, nem o que é o mundo, nem o que sou eu mesmo; vivo em uma terrível ignorância sobre todas as coisas; não sei o que é meu corpo, o que são meus sentidos, a minha alma e essa parte de mim mesmo que pensa o que digo, que medita sobre tudo e sobre si mesma e não se conhece mais que o resto. 'Vejo esses terríveis espaços do universo que me rodeiam, acho-me amarrado a um canto dessa vastidão, sem saber por que estou neste lugar e não noutro, nem por que a esse breve tempo em que me foi concedida a vida ficou reservado este exato instante, e não outro, de toda a eternidade que me precedeu e da que me seguirá. Por toda parte vejo infinidades, que me encerram como um átomo e como uma sombra, que duram um só momento, sem volta. Tudo o que sei é que devo morrer logo, e, contudo, o que mais ignoro é essa morte que não poderei evitar. 'Assim como não sei de onde venho, não sei para onde vou: só sei que, ao sair deste mundo cairei para sempre no nada ou nas mãos de um Deus irritado, ignoro a qual dessas duas condições serei dado eternamente em quinhão. Esse é meu estado cheio de fraqueza e de incerteza. E disso tudo, concluo que devo passar todos os dias de minha vida sem pensar em investigar o que me acontecerá. Talvez fosse possível encontrar algum esclarecimento para minhas dúvidas; mas não desejo dar-me a esse trabalho, desprezo os que se esgotam nesse cuidado, pois quero, sem presciência e sem receio, tentar esse grande acontecimento e quero deixar-me conduzir indolentemente à morte na incerteza da eternidade de minha futura condição.' Quem desejaria ser amigo de um homem que fala dessa maneira? Quem o escolheria, entre tantos, para contar seus interesses? Quem recorreria a ele em suas aflições? Enfim, a que uso da vida poderíamos destiná-lo?... Nada é tão importante para o homem como o seu estado; ele não teme nada como teme à eternidade; assim, não é natural que existam homens indiferentes à perda do próprio ser e ao risco de uma eternidade de misérias. Eles são bem diferentes em relação a todas as outras coisas: temem até às mais leves, prevêem-nas, sentem-nas; e esse mesmo homem que passa tantos dias e tantas noites raivoso e desesperado pela perda de um cargo ou por qualquer ultraje imaginário a sua honra, esse mesmo homem sabe que tudo perderá com a morte e se mantém sereno e sem emoção em relação a isso. É monstruoso descobrir em um mesmo coração e a um só tempo, essa sensibilidade pelas menores coisas e essa estranha insensibilidade pelas maiores. E um encantamento incompreensível, uma apatia sobrenatural, o sinal de uma força todo-poderosa que causa isso. De Pensées por Blaise Pascal, traduzido para o inglês por A. J. Krailsheimer (Penguin Classics, 1966). Copyright © 1966 por A. J. Krailsheimer. Reproduzido com permissão da Penguin Books Ltd. Extraída, em parte, de Pensamentos de Blaise Pascal. Título original Pensées. Tradução de Sérgio Milliet; coleção dirigia por Vitor Ramos 2 a. ed. São Paulo Abril, 1961.
Perguntas para reflexão e discussão
1. Qual é o ponto importante do parágrafo inicial de Pascal? Por que você concorda ou discorda dele? Medido pelo padrão de Pascal, de que forma a cultura moderna pode ser avaliada em relação ao ter "perdido todo sentimento"? Que métodos usamos hoje para evitar pensar seriamente sobre "a imortalidade da alma"? 2. Qual o sentimento de Pascal em relação àqueles negligentes em matéria da eternidade? Se, como Pascal argumenta, o "interesse humano" e o "amor-próprio" deveriam, naturalmente, fazer com que meditemos a respeito da imortalidade, por que isso está tão em falta hoje? 3. Pascal assume que a maioria das pessoas reconhece não haver "satisfação verdadeira e sólida" nesta vida e que os prazeres são "vaidades" e há aflições "infinitas". Em outras palavras, sabem que a vida não é completa em si mesma e por si mesma. Esse sentimento ainda é verdadeiro hoje? Por que sim ou por que não? Se não for o caso, como isso afeta o pensamento das pessoas em relação à eternidade?
100 4. No quarto parágrafo que começa com a afirmação: "Não sei quem me pôs no mundo", o que você pensa da reflexão de Pascal a respeito do indivíduo vaidoso? Onde você encontrou pessoas com percepção similar? Que parte da reflexão corresponde ao seu estado de espírito atual ou passado? Como você se sente ao ler esses parágrafos? 5. O que a maioria das pessoas que você conhece pensa sobre a eternidade? Eles reconhecem o argumento de Pascal de que só há duas escolhas: "o nada" ou as mãos de um Deus irado? Em que se baseiam sua crença concernente à eternidade? 6. Qual á a ironia que Pascal destaca no último parágrafo? Que invenções ou instituições modernas contribuem para essa reversão de medos e prioridades? No fim, a que Pascal atribui essa "coisa monstruosa"? Você concorda com isso ou não? Por quê? 7. No mundo moderno qual a conexão entre a secularidade (aquela atitude de que o mundo visível é o único mundo) e a indolência (preguiça) descrita por Pascal? Qual seria o antídoto para isso?
SOREN KIERKEGAARD Soren Aabye Kierkegaard (1813-1855) foi um dos principais pensadores cristãos, filósofo moderno e escritor. Era filho de um bem-sucedido negociante de malhas e luterano devoto. Viveu quase toda sua vida em Copenhagen. Kierkegaard, após uma infância isolada e infeliz, usou seus anos na universidade para o ócio e os deleites. Um ano depois de entrar na universidade ficou noivo de Regina Olsen, mas desmanchou o noivado o que lhe causou um trauma que o amedrontou pelo resto de sua vida. De 1843, quando publicou seu primeiro livro Either-Or [Ou...ou...], até sua morte, aos quarenta e dois anos de idade, publicou uma série de livros que o firmaram entre os maiores filósofos modernos. Kierkegaard foi um pensador profundo que reagiu violentamente contra o conservadorismo e as concessões da igreja estatal dinamarquesa e contra a abstração da filosofia moderna de Hegel. Ele argumentou apaixonadamente contra ambos com o intuito de expor seu pensamento "existencial" via os seres humanos existindo, em última instância, diante de Deus. Kierkegaard influenciou profundamente os teólogos e os filósofos do século XX, mesmo que suas posições, expressas com paixão, tenham sido muitas vezes distorcidas (por exemplo, sua famosa rejeição dos sistemas de pensamento puramente especulativos: "A verdade é subjetividade"). Seu ataque contra a preguiça e sua "paixão pela paixão" vêm claramente à tona na passagem a seguir. A EPOPÉIA DO PREGUIÇOSO O preguiçoso diz: "Lá está um leão no caminho, um leão feroz rugindo nas ruas!" Como a porta gira em suas dobradiças, assim o preguiçoso se revira em sua cama. O preguiçoso coloca a mão no prato, mas acha difícil demais levá-la de volta à boca. O preguiçoso considera-se mais sábio do que sete homens que respondem com bom senso. — PROVÉRBIOS 26.13-16
Sobre a perversidade do século Que os outros se queixem da perversidade de nossa era; minha queixa é apenas essa: ela é desgraçada, pois lhe falta paixão. Os pensamentos dos homens são tênues e frágeis como a renda, eles são em si mesmos de causar pena como as pobres rendeiras. Os pensamentos do coração do homem não têm valor e não podem ser considerados pecaminosos. Talvez fosse pecado para um verme abrigar tais pensamentos, mas não para um ser feito à semelhança de Deus. Sua luxúria é tediosa e indolente e suas paixões são modorrentas. Essas almas merceeiras fazem seu trabalho... Pensam que mesmo que o Senhor tenha uma contabilidade acurada ainda podem enganá-lo um pouco. Fora com elas! Eis a razão pela qual minha alma sempre se volta para o Antigo Testamento e para Shakespeare. Sinto, eles falam de seres humanos; eles odeiam, eles amam, eles assassinam seus inimigos e amaldiçoam seus descendentes por todas as gerações — eles pecam. Extraído de Soren Kierkegaard, A Kierkegaard Anthology, de Robert Bretall, ed. (New York: Modern Library, 1999), p. 33. A ARTE DO NADA A manifestação de que não há nada a expressar, nada com o que se expressar, nada do que se tirar uma expressão, nenhum poder a expressar, nenhum desejo a expressar, juntamente com a obrigação de se expressar.
101 — O CREDO ARTÍSTICO DE SAMUEL BECKETT
Perguntas para reflexão e discussão
1. Qual a principal queixa de Kierkegaard contra sua época? À luz dessa leitura, em sua opinião, como ele definiria a "paixão"? 2. O que Kierkegaard quis dizer com "almas merceeiras"? Qual é a atitude dessas almas em relação a Deus? Como elas diferem dos seres humanos manchados de sangue descritos na Bíblia e em Shakespeare? 3. Como se aplicam a nós, quase dois séculos depois, os comentários do autor sobre o desapaixonado século XIX? Hoje quais são os setores mais providos de paixão? E de preguiça? Em sua opinião, por que isso acontece? 4. Quando você, como Kierkegaard, sentiu a urgência de tirar alguém ou um grupo da letargia? O que torna essa urgência ser tão forte? 5. Após a leitura dessa passagem, você acredita que Kierkegaard considera a preguiça um "pecado capital"? Por que sim ou por que não? E você, o que pensa sobre a preguiça?
DOROTHY L. SAYERS Dorothy Leigh Sayers (1893-1957) foi acadêmica, ensaísta, tradutora, escritora de mistérios e apologista cristã. Nasceu em Oxford onde também freqüentou a universidade e esteve no primeiro grupo de mulheres que se graduaram. Mesmo sendo uma medievalista brilhante, conforme observado mais tarde em suas traduções de Dante, ela foi também muito prática e trabalhou por muitos anos em uma agência de propaganda em Londres. (Seu lema era: "Paga para fazer propaganda".) Sayers é mais bem conhecida por seus romances policiais, sempre populares - o personagem sobre quem mais escreveu é o aristocrata detetive urbano, lorde Peter Winsey. Ela também escreveu boas peças para o rádio, como The Man Born to Be King [O homem que nasceu para ser rei], e foi uma ensaísta muito lida e apologista cristã. Sua criatividade sempre fez parceria com seu senso de humor, seu dom da linguagem e seu intelecto brilhante. Foi amiga de outros autores cristãos como G. K. Chesterton, C. S. Lewis e J. R. R. Tolkien, e uma mulher forte e impressionante, de voz grave, e que gostava muito de compor palavras cruzadas e andar de motocicleta. Diz-se a respeito de Sayers que quanto mais velha ficava mais sua fé era o centro de sua vida. Ela mesma, de maneira excêntrica, disse isso ao citar um aluno que escrevera: "E também tinha uma tal srta. Dorothy Sayers que se afastou do crime para se unir à Igreja da Inglaterra". A passagem a seguir vem de seu famoso livro, originalmente um discurso: The Other Six Deadly Sins [Os outros seis pecados capitais]. NÃO VALE A PENA O ABORRECIMENTO Não há razão para continuar vivendo, mas também não há razão alguma para morrer. — JACQUES RlGAUT, ESCRITOR CUJO SUICÍDIO CHOCOU PARIS EM 1929, ANO EM QUE SAMUEL BECKET CHEGOU EM PARIS A vida não vale o esforço para dar-lhe fim. — JACQUES RIGAUT
Os outros seis pecados capitais O sexto pecado capital é denominado pela igreja de apatia ou preguiça. No mundo ele se autodenomina tolerância; mas no inferno é chamado de desespero. É cúmplice dos outros pecados e sua pior punição. É o pecado que não acredita em nada, não se preocupa com nada, não procura conhecer coisa alguma, não interfere em nada, não se alegra com nada, não ama nada, não odeia nada, não acha propósito em nada, não vive para nada e apenas permanece vivo porque não há nada pelo que morrer. Já faz muitos anos que conhecemos muito bem isso, bem até demais. Provavelmente, a única coisa que não sabemos é que esse é um pecado capital...
102 Um dos truques favoritos desse pecado é primeiro ocultar-se sob a cobertura de uma atividade mutável do corpo. Pensamos que estamos muito ocupados, correndo de um lado para outro, fazendo muitas coisas, assim, como podemos ser preguiçosos? Além do mais, a atividade intensa parece oferecer-nos um escape para os horrores da preguiça. De modo que os outros pecados se apressam a providenciar um manto para a preguiça: a glutonaria oferece um turbilhão de danças, banquetes, esportes e pequenos afazeres que nos fazem ir de cá para lá que nos deixam pasmos com as belezas, mas que, quando as alcançamos, maculam-nos com a vulgaridade e o esbanjamento. A cobiça nos arranca da cama bem cedo a fim de nos animar e nos apressar para nossos negócios; a inveja nos incita a fofocar e a difamar, a escrever cartas impertinentes aos jornais e a desenterrar segredos e a revirar latas de lixo; o ódio nos provê (muito ingenuamente) com o argumento de que a única atividade apropriada neste mundo tão cheio de malandros e demônios é praguejar de forma audível e incessante... Observemos, em especial, a mente vazia. Nela a preguiça conspira com a inveja a fim de impedir a pessoa de pensar. A preguiça convence-nos que a estupidez não é nosso pecado, mas nosso infortúnio; enquanto, ao mesmo tempo, a inveja nos convence ao dizer que a inteligência é desprezível — algo que não satisfaz, inútil do ponto de vista intelectual e comercial. Extraído de Dorothy L. Sayers. The Other Six Deadly Sins (London: Methuen Ltd, 1943). © 1943 por Dorothy L. Sayers. Reproduzido com permissão de David Higham Associates Limited. VOCÊ PODE MUITO BEM VIVER Navalhas machucam rios causam erosões ácidos maculam e drogas causam convulsões armas são ilícitas laços cedem gazes são fétidos, o que o impede de viver? — DOROTHY PARKER, "RÉSUMÉ" ["CURRÍCULO"]
Perguntas para reflexão e discussão
1. Diga com suas palavras como Sayers, no primeiro parágrafo, descreve a preguiça? Em sua opinião, qual a característica mais perigosa da preguiça? Por quê? Você concorda com Sayers que a preguiça é o pecado que "não acredita em nada"? Por quê? 2. Sayers diz que a preguiça permanece viva porque "não há nada pelo que morrer". Esse sentimento é muito difundido no mundo moderno? Em que você o tem visto? Em contraste, você vê disposição para morrer por uma convicção ou causa no passado ou no presente? A que você atribui essa diferença? 3. Muitas vezes, como a preguiça se disfarça? De que forma a "atividade violenta" oferece escape da preguiça? Dos vários pecados que mascaram a preguiça, qual deles você acha mais tentador? De que forma essas máscaras se perpetuam nas instituições hoje? 4. Qual é a conspiração da preguiça e da inveja contra a inteligência? Você já viu esse tipo de ataque em seu trabalho? Como? Qual a melhor reação contra a comemoração da "mente vazia"?
VÁCLAV HAVEL Enquanto escrevo, Václav Havei (nascido em 1936) é presidente da República Tcheca e um dos dramaturgos e ensaístas mais notáveis da Europa. Fundador e líder do movimento dissidente Charter 77, foi proeminente na revolução da Europa Oriental, de 1989, e se tornou o primeiro presidente da Tchecoslováquia livre. Havei, filho de um engenheiro civil, foi impedido, por razões políticas, de receber educação mais graduada. Na década de 1950, entrou no teatro de Praga, como ajudante de palco. Trabalhou
103 bastante, progrediu e se tornou um dramaturgo eminente. Seu status internacional é decorrente de seu longo envolvimento no movimento dos direitos humanos e na autoria de muitos ensaios totalitários, entre esses o famoso "Open Letter to Dr. Husak" ["Carta aberta ao dr. Husak"]. Ganhou o Erasmus, prestigiado prêmio europeu. Havei foi sentenciado à prisão em duas ocasiões (uma delas a quatro anos e meio de reclusão). Durante esse período, foi autorizado a escrever, uma vez por semana, para sua esposa, Olga. Ele usou esse tempo para reflexões profundas sobre a vida e a sociedade moderna. O texto abaixo provém da carta de número 96 das 144 escritas entre 1979 e 1983. UMA PERGUNTA REAL Há, na verdade, apenas um problema filosófico verdadeiramente sério — o suicídio. Decidir se a vida vale a pena de ser vivida é essencial para responder à pergunta fundamental da filosofia... Vejo muitas pessoas morrerem por julgar não haver motivo para viver. Paradoxalmente, vejo outros serem mortos por causa de idéias ou de ilusões que lhes dão razão para viver (as coisas consideradas 'uma razão para viver' são uma excelente razão para morrer). Em conseqüência, concluo que, de todas as perguntas, a razão de viver é a mais urgente. —ALBERT CAMUS, O MITO DE SÍSIFO
Cartas para Olga 3 de outubro de 1981 Querida Olga, Nos últimos anos, tenho encontrado várias pessoas inteligentes e decentes, marcadas clara e, em meu entender, muito tragicamente pelo destino: tornam-se amargas, misantrópicas, inimigas do mundo e não crêem mais em coisa alguma. De maneira muito própria se persuadiram que as pessoas são egoístas, malvadas e não merecem confiança, que não faz sentido algum ajudar alguém, tentar realizar alguma coisa ou corrigir algo, que todos os princípios morais e objetivos mais altos e ideais suprapessoais são ingenuamente utópicos e que se deve aceitar o mundo "como é" — inalteravelmente mau — e agir de acordo com essa verdade. Isso significa não pensar em mais ninguém, apenas em si mesmo, e viver o resto da vida o mais silencioso e inconspícuo possível. Em certas circunstâncias extremas não é nada difícil sucumbir a essa filosofia de vida. Contudo, penso que desistir da vida - e essa filosofia é a expressão dessa atitude — é uma das formas mais tristes de decadência do homem. Pois é um declínio para regiões em que a vida realmente perde todo seu significado. Entretanto, não são os autores de peças absurdas ou poemas pessimistas, nem os suicidas, nem as pessoas constantemente afligidas pela raiva, pelo enfado, pela ansiedade e pelo desespero, nem os alcoólicos e os viciados em drogas, mas as pessoas apáticas que, em seu sentido mais profundo, deixam de ver a razão da vida e tornam-se "descrentes". (A propósito, nos últimos dois anos deparei-me com muitos homens excêntricos, miseráveis e desesperados, aventureiros, perversos, Polianas e, naturalmente, uma variedade enorme de grandes e pequenos salafrários, mas não muitos apáticos no sentido a que me refiro. Tais homens não permanecem por muito tempo em lugares como esse. Mesmo assim, algumas pessoas que estão aqui fazem uma tentativa bemsucedida para se juntar a esse grupo — homens sem inclinação intelectual ou "homens decentes que foram trapaceados".) A resignação, como a fé, pode ser deliberada ou espontânea. Se ela for deliberada, o toque de má consciência que, costumeiramente, a acompanha requer justificativa e defesa extensiva (perante quem? Por quê?) referindo-se ao mal deste mundo e à incorrigibilidade desse mal. Certamente, a coisa mais importante a ser notada aqui é que não foi o mal do mundo que, em última instância, levou a pessoa a desistir, mas, antes, sua resignação levou-o a tecer a teoria sobre o mal do mundo. Por mais que os "descrentes" queiram negar, a escolha existencial sempre vem em primeiro lugar e, apenas depois, é seguida da figura pessimista, do beco sem saída do mundo que justifica essa escolha. E, quanto mais resolvida a pessoa está a mandar tudo para o inferno, mais ferozmente ela se agarra às teorias apocalípticas. Pondo de maneira menos caridosa: os "descrentes" insistem tão obstinadamente no mal incorrigível deste mundo, em especial, para justificar a própria participação em alguns desses males. (Observe que sempre que uma pessoa fala constantemente sobre a corrupção a sua volta, isso, em geral, é um sinal claro de que ela mesma pretende fazer algo
104 torpe.) Naturalmente, em certo nível, observamos ainda outro processo: se este "mundo perverso" é descrito primeiro como algo desafortunado, mas tido como uma "realidade", um status quo lastimável do qual não temos como escapar e somos obrigados a encarar, assim, gradualmente — enquanto o "descrente" aprende a viver neste mundo hostil ao se acostumar com ele aos poucos e ao se estabelecer nele - a realidade, que originalmente ele vê como lastimável, começa a mudar de forma imperceptível, e o mundo deixa de ser tão mal quanto poderia ser. Certamente, isso é melhor que o estado de eventual incerteza criado pela tentativa "utópica" de transformá-lo. Portanto, deparamo-nos com o lastimável estado de coisas em que a crítica implacável em relação ao mundo é transformada, imperceptivelmente, em seu defensor, o teórico "neutro" torna-se um oponente ativo para mudá-lo, o observador cético transforma-se em um reacionário popular. Hoje, entendo muito melhor que antes que uma pessoa torne-se amarga. A tentação da inutilidade é enorme e onipresente e possui mais e mais base para fundamentar seu caso, pois oferece mais coisas às quais apelar. Contra ela, o homem está sozinho, fraco e com pouca defesa, é sua pior posição na história da humanidade. Mesmo assim, estou convencido de que não há nada neste vale de lágrimas que por si mesmo possa roubar do homem a esperança, a fé e o significado da vida. Ele perde essas coisas apenas quando vacila e se agarra à tentação da inutilidade. Resumindo: penso que a resignação, a indiferença, o endurecimento do coração e a preguiça do espírito são dimensões de uma "descrença" genuína e de uma "perda de significado" genuíno. A pessoa que caiu nesse estado não apenas deixa de se perguntar qual é o significado da vida, mas também não responde mais, nem mesmo espontaneamente, à pergunta existencial de viver para alguma coisa — simplesmente porque precisa, porque isso não a deixa em paz, porque ela é desse jeito mesmo. A pessoa que perdeu totalmente o sentido da vida apenas vegeta e não dá a mínima; vive como parasita e não dá a mínima; está inteiramente absorto no problema do próprio metabolismo e, em essência, nada mais lhe interessa: as outras pessoas, a sociedade, o mundo, o Ser — para ela essas são apenas coisas que devem ser devoradas, ou evitadas, ou transformadas em um lugar confortável. Tudo o que tem significado nesta vida, mesmo aquilo que assume a forma mais dramática de questionamento e dúvida, é caracterizado por uma certa transcendência da existência humana individual — excede os limites do mero "egocentrismo" - em direção às outras pessoas, à sociedade e ao mundo. Apenas olhando "exteriormente" - preocupando-se com as coisas com que não precisa se importar, de forma alguma, para sua sobrevivência e fazendo-se constantemente todo tipo de pergunta, atirando-se cada vez, de novo, para dentro do tumulto deste mundo com a intenção de ser levado em consideração — que alguém realmente se torna uma pessoa, um criador da "ordem do espírito", o ser capaz de fazer um milagre: a recriação do mundo. De fato, desistir de se transcender implica em desistir da própria existência humana e em estar satisfeito por pertencer ao reino animal. A tragédia do homem moderno não é saber cada vez menos sobre o propósito da própria vida, mas que isso o incomode cada vez menos. Ontem, quando minha dor havia chegado ao seu limite máximo (não me refiro à dor nas minhas costas, mas à de minha alma) e minha decisão era escrever-lhe uma carta cheia de repreensões amargas (amadurecidas por mais de duas semanas sem receber uma linha sequer de você nem de ninguém), o bondoso Senhor claramente não agüentou mais, teve compaixão e depositou em minha cama uma grande quantidade de correspondência e jornais... Sou grato a Ivan pelas duas cartas que me mandou sobre física. Não entendo completamente o que ele escreveu, mas entendo o sentido geral de sua explicação. (Pode ser que eu volte a esse assunto em minha próxima carta, mas desde já faço uma breve observação: acho possível contestar as diferentes formas como se explicam certas coisas e sempre me deleito quando isso acontece. Mas não vejo como você pode refutar a convicção de que "tudo é, por alguma razão", que o Ser tem uma ordem. O realismo dessa convicção é algo tão geral e vago que deve ser altamente imune a críticas! Cada prova de que o Ser não age como se espera pode ser rejeitada quando se faz referência a uma lei superior que é inacessível a nós, da mesma forma que nosso mundo é inacessível a seres bidimensionais. E tal suposição não pode ser confirmada nem refutada!)
105 O que posso dizer sobre a minha condição? Não tenho mais febre, estou me recuperando lentamente; por enquanto ainda estou com muita dor; sofro especialmente quando preciso fazer uso de minhas nádegas. Acho que ainda vou sofrer bastante antes de me recuperar de todo. Saudações a todos os meus amigos e amados. Beijos, Vasek ESCREVA MAIS VEZES! DÊ MAIS DETALHES! ESCREVA MAIS! Extraído de Letters to Olga: June 1979-September 1982 por Václav Havei, traduzido para o Inglês por Paul Wilson (London: Faber and Faber, 1988, 1990), pp. 235-238. Tradução © 1988 por Paul Wilson. © 1983 por Václav Havei. Reproduzido com permissão de Alfred A. Knopf, Inc. PREGUIÇA VITORIOSA Quem relaxa em seu trabalho é irmão do que o destrói. — PROVÉRBIOS 18.9 Posso perder batalhas, mas ninguém jamais me verá perder tempo por motivo de confiança excessiva ou preguiça. — NAPOLEÃO BONAPARTE
Perguntas para reflexão e discussão
1. No primeiro parágrafo Havei descreve as pessoas inteligentes que conheceu que foram marcadas pelo destino. O que ele pretende dizer com essa afirmação? Quais são as características que elas têm em comum? Você pode identificar esse tipo de pessoa? Como descreveria as pessoas semelhantes a essas que você conhece? 2. Você concorda com Havei que são os "apáticos", não os raivosos, desesperados, "alcoólatras ou viciados em drogas" que se tornam verdadeiramente "descrentes" e deixam de ver razão para a vida? De que maneira isso acontece? O que faz a grande diferença entre eles? 3. O que Havei quer dizer com "a escolha existencial sempre vem em primeiro lugar"? De acordo com Havei, por que os "descrentes" se agarram tão obstinadamente à crença no "mal incorrigível do mundo"? Onde você já viu essa conexão perder sua eficácia? 4. De que maneira "se transcender" é crucial para o sentido da vida e por que devemos superar a preguiça? A que leva a completa dedicação a si mesmo? Por quê? 5. O que Havei quer dizer com a tragédia do homem moderno? Você concorda? Se sim, por que você acha isso? Quais são os fatores sociais de hoje que contribuem para essa apatia em relação às coisas eternas? O que incita a reação contra essa apatia?
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O CONTRAPONTO DA PREGUIÇA bem-aventurados os que tem fome e sede de justiça
O contraponto da lassidão espiritual da preguiça é o anseio apaixonado por justiça, a essência da busca. Nas palavras de Jesus: "Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, pois serão satisfeitos" (Mt 5.6). Como apontado por Peter Kreeft, essa fome é ainda mais fácil que a fé: "Até mesmo algo menos que a fé satisfaz. Fé é achar, mas a mera procura já supera a preguiça, pois procurar se torna achar, e achar se torna alegria, e a alegria conquista a preguiça".
Fome satisfeita Apenas Deus é auto-suficiente, tudo o mais encontrado na criação tem fome - de alimento, de significado ou de amor. É correto e apropriado ter fome e sede de qualquer coisa que traga satisfação. E, para muitos, a existência dessas coisas que satisfazem são uma indicação da existência de Deus e de seu amor por sua criação. Simone Weil, filósofa judia convertida a Cristo, escreveu sobre um momento poderoso em sua jornada para a fé: "A convicção que veio a mim é de que quando alguém está com fome de pão, ele não recebe pedras". A satisfação com o que é reto e justo é seguida apenas da insatisfação com qualquer coisa menos que isso. Muitas vezes, a procura infindável pela satisfação interior por intermédio das extravagâncias do materialismo, doses de adrenalina, sexo ou falsa espiritualidade é uma tentativa de saciar a fome de justiça (aquilo que é correto). Pode ser um desejo incitante e ativo usado pela preguiça que não descansará até ser satisfeito. A ALMA SEDENTA Ó Deus, tu és o meu Deus, eu te busco intensamente; a minha alma tem sede de ti! Todo o meu ser anseia por ti, numa terra seca, exausta e sem água. Quero contemplar-te no santuário e avistar o teu poder e a tua glória. O teu amor é melhor do que a vida! Por isso os meus lábios te exaltarão. Enquanto eu viver te bendirei, e em teu nome levantarei as minhas mãos. A minha alma ficará satisfeita como quando tem rico banquete; com lábios jubilosos a minha boca te louvará, Quando me deito lembro-me de ti; penso em ti durante as vigílias da noite. Porque és a minha ajuda, canto de alegria à sombra das tuas asas. A minha alma apega-se a ti; a tua mão direita me sustém. — SALMO 63.1-8
JOHN DONNE John Donne (1572-1631) foi um grande poeta e também grande advogado e ministro, além de deão da Catedral de St. Paul, em Londres. Era parente distante de Sir Thomas More, graduou-se em Oxford, viajou para vários lugares e, ainda, era um pregador da corte bastante conhecido. As primeiras poesias de Donne eram totalmente seculares; sua poesia religiosa foi escrita nos anos intermediários. Os dois tipos de poesia que escreveu eram vigorosos e dramáticos, combinando paixão e argumentação. O poema abaixo, o mais famoso dos dezenove "sonetos sagrados", escritos por volta do ano 1609, expressa, em uma linguagem surpreendente e delicada, seu desejo intenso por Deus.
Soneto sagrado
Quebranta meu coração, ó trino Deus, para ti. Bate à porta, respira, brilha e procura emendar-me; Para que eu me levante e permaneça de pé, abate-me e dobra-me Usa tua força para me quebrantar, golpear, queimar e refazer. Eu, que como cidade usurpada, pertencia a outro
107 Esforço-me para te receber, mas ó, em vão; A razão, teu vice-rei em mim, deveria me defender, Mas é cativa e mostra-se fraca ou falsa. Contudo, amo-te afetuosamente e de bom grado seria amado, Mas fui contratado para casar com teu inimigo; Divorcia-me, desata ou quebra novamente esse nó, Recebe-me, aprisiona-me, pois eu, A não ser que me domines, jamais serei livre, Nem mesmo casto, apenas se me arrebatas. Primeira publicação 1633
Perguntas para reflexão e discussão
1. Em sua opinião, porque John Donne usa imagens tão fortes e tão cruéis de paixão em relação a Deus (o saquear de uma cidade e o aprisionar de uma mulher) e imagens tão delicadas e receptivas para si mesmo? 2. Essas figuras de linguagem o ajudam? Qual a que mais o ajuda? 3. De que maneira a figura de linguagem e a poesia de Donne são um contraponto da preguiça? De que forma a preguiça destrói a noção de que "fome de justiça" é uma noção adequada, piedosa e exata? No lugar dela, qual a figura de linguagem que emerge dessa fome?
GEORGE HERBERT George Herbert (1593-1633) foi poeta e ministro anglicano. Mesmo tendo sido educado no Trinity College, Cambridge, foi um grande orador que serviu como ministro em uma paróquia rural desconhecida, em vez de perseguir caminhos mais lucrativos. Seu irmão mais velho, lorde Herbert de Cherbury, foi precursor dos deístas, George Herbert, no entanto, foi homem de devoção e ortodoxia cristãs profundas. Ele faz parte dos poetas devocionais e escritores de hinos de primeira classe. O poema mais famoso de Herbert, "Amor", tem sido compartilhado por muitos. Foi instrumento, por exemplo, da conversão de Simone Weil, a filósofa, judia francesa, descrita por T. S. Eliot como "um gênio semelhante a um santo" e Albert Camus, chamado de "a única grande personalidade de nossos dias". Desde os quatorze anos, Simone Weil sofria de terríveis dores de cabeça psicossomáticas oriundas de sua consciência da injustiça universal. Quando suas dores pioravam, recitava o poema "Amor" e ouvia música gregoriana. Posteriormente, ela afirmou que aos poucos se deslocou de seu amor à beleza do poema para a intensidade de sua oração, e dessa para a realidade de sua verdade. Por fim, sentiu a presença de Cristo "mais pessoal, mais certa e mais real que qualquer ser humano... Cristo mesmo desceu e tomou posse de mim".
Amor (III)
O Amor deu-me boas-vindas: mas, minh'alma se retraiu, Culpada e confusa por causa do pecado. Mas, rapidamente o Amor, vendo-me sucumbir Nesse meu primeiro encontro, Achegou-se a mim e gentilmente indagou, Necessitava eu de alguma coisa? Ser hóspede, respondi, digno de estar aqui: Ao que o Amor respondeu: assim serás. Eu? Insensível e ingrato? Oh, meu amado, Não posso te contemplar. O Amor tomou minha mão e sorridente replicou: Quem formou teus olhos? Não fui eu? Isso é vero meu Senhor, mas os manchei: deixe que minha vergonha Fique onde mereça estar. Será que não sabes, disse o Amor, quem carregou a culpa?
108 Meu querido, então servirei. Deves se assentar, diz o Amor, e provar da minha carne: Então sentei e comi. De George Herbert, The Poems of George Herbert [Os poemas de George Herbert] (London: Oxford University Press, 1961), p. 180.
Perguntas para reflexão e discussão
1. Que imagem de Deus emerge desse poema? De que maneira você descreveria a reação de Herbert - como o "eu" no poema - ao convite do "Amor"? De que maneira a resposta de uma pessoa preguiçosa seria diferente dessa? 2. O que você acha que não ajuda em relação à metáfora do cortejar no poema de Herbert comparada com as metáforas de assédio e arrebatamento no de Donne? 3. Em sua experiência na peregrinação da fé, seja ela curta ou recente, quanto é resultado de sua iniciativa e quanto, sem dúvida, da de Deus? 4. Em sua imaginação, por que o poema de Herbert foi tão confortante para Simone Weil? Qual a "beleza" dele? Qual é a "oração" dele? Qual é a realidade dele?
109
Capítulo 5 Avareza (avaritia) versus misericórdia
A avareza, ou ambição_e cobiça, é o quinto dos sete pecados capitais e o quinto e último dos pecados do espírito - aqueles "frios" e "respeitáveis". Juntamente com o décimo mandamento, que o condena especificamente ("Não cobiçarás...") e os muitos ensinos de Jesus, nos quais o condena (especialmente na forma de "Mamon") e o veredicto altamente direto do apóstolo Paulo "o amor ao dinheiro é a raiz de todos os males" (lTm 6.10), a avareza, em geral, é reconhecida como muito ruim. Pior que a raiva, a preguiça, a glutonaria e a luxúria, sendo posta - juntamente com a inveja em segundo lugar (o primeiro é o orgulho) quanto à sua seriedade. ONDE ESTÁ O DINHEIRO? Poucos de nós somos capazes de tolerar prosperidade. Isto é, a dos outros. -MARK TWAIN A falta de dinheiro é a raiz de todos os males. MARK TWAIN Para ser suficientemente esperto para conseguir todo este dinheiro é preciso ser estúpido o suficiente para querê-lo. — G. K. CHESTERTON A preocupação de possuir as coisas é o que mais impede as pessoas de viverem livre e nobremente, mais que qualquer outro fator. — BERTRAND RUSSELL
O pecado da avareza possui dois componentes: obter o que não temos e preservar o que temos. Há também duas confusões quanto à compreensão desse vício. Primeiro, as "coisas", em si mesmas, não são o problema. Como parte da criação de Deus as coisas, por si só, são boas. A avareza somente entra em cena quando o desejo pelas possessões temporais se torna desordenado e, a seguir, idolatria — em outras palavras, quando a confiança nas dádivas de Deus substitui a confiança no próprio Deus. Nas palavras de Peter Kreeft: "Quando uma criatura é tornada deus, ela se torna um diabo". A segunda confusão é equacionar a avareza com a mesquinhez usurária, personificada por Ebenezer Scrooge em A Christmas Carol [Um cântico natalino], de Charles Dickens. Nessa compreensão tradicional, a armazenagem secreta de alguma coisa é o teste para a avareza, portanto, os que não o fazem saíram de uma situação de perigo. Essa idéia, no entanto, não percebe que a avareza pode tomar formas diferentes em épocas diferentes. Assim, o que se fazia secretamente é, agora, exibido publicamente - "consumo conspícuo" - porém, o mesmo espírito de possuir se encontra por trás dessa exibição. O âmago da avareza não é o amor pelas possessões, mas o possuir, e, portanto, ser um possuidor. Posto ainda de maneira diferente, contar era a imagem da avareza tradicional, a figura do avaro afagando secretamente seu ouro. Nos dias de hoje a mudança é esta: aparecer entre os cinqüenta bilionários da revista Forbes. Há ainda duas observações importantes sobre a avareza. Uma delas é esta: a mesquinhez e o desperdício não são duas coisas opostas, porém, duas faces do mesmo pecado capital. Como já foi notado pelo pároco de Chaucer, o filho pródigo era um desperdiçador, ao passo que Judas era um pão-duro (reclamou do "desperdício" de Maria Madalena quando ungiu Jesus). Mas nenhum deles era um doador. Judas não dá de forma alguma, e o filho pródigo prefere desperdiçar a dar. A prodigalidade e a mesquinhez são dois lados de uma mesma moeda.
110 A outra observação é esta: a avareza é de modo preeminente um pecado secular, um pecado que é, como hoje, socialmente respeitável e impossível de ser detectado quando reforçado por certas tendências culturais. Períodos de grande prosperidade, como as décadas de 1980 e 1990, e livros como A fogueira das vaidades, de Tom Wolfe, têm, de tempos em tempos, tirado o foco desse assunto. Mas a discussão sobre a avareza, em um mundo de capitalismo avançado, está propensa a deixar as pessoas um tanto desconfortáveis e ambivalentes. Observe, por exemplo, os debates sobre o capitalismo e seu "instrumento na avareza social". Muitos acabam por justificar a avareza como o combustível necessário para uma economia sólida. É importante esclarecer que uma crítica à avareza não é o mesmo que a exoneração do capitalismo, também não é a advocacia da redistribuição da riqueza. No entanto, completamente à parte de tais mal-entendimentos, é importante perceber que há uma ilusão no possuir. O que possuímos ao possuir? Somente uma alegria transitória ou um status não duradouro ("você não pode levá-lo consigo"), e isso, de fato, não pode ser passado a um herdeiro. A busca por possuir é, portanto, uma miragem; perseguida obsessivamente e autodestruidora. A verdadeira felicidade é urna questão de ser, não de ter. Ou como George MacDonald descreve: as mãos podem acumular, mas "o coração do homem não pode fazer o mesmo". Alexandre, o Grande, sabia disso. Conquistou o mundo conhecido e queixou-se por não haver mais mundos para conquistar. Mas ordenou que, quando morresse, sua mão vazia fosse deixada dependurada fora de seu esquife para mostrar que "do mundo nada se leva". Entramos nus, como Jó, neste mundo, e dele sairemos nus. Diz-se que nem mesmo as pessoas mais bem sucedidas serão acompanhadas de seus advogados, seus contadores e um "carro forte". PARA QUEM SERÁ? Então [Jesus] lhes disse: "Cuidado! Fiquem de sobreaviso contra todo tipo de ganância; a vida de um homem não consiste na quantidade dos seus bens". Então lhes contou esta parábola: "A terra de certo homem rico produziu muito. Ele pensou consigo mesmo: 'O que vou fazer? Não tenho onde armazenar minha colheita'. "Então disse: 'Já sei o que vou fazer. Vou derrubar os meus celeiros e construir outros maiores, e ali guardarei toda a minha safra e todos os meus bens. E direi a mim mesmo: Você tem grande quantidade de bens, armazenados para muitos anos. Descanse, coma, beba e alegre-se'. "Contudo, Deus lhe disse: 'Insensato! Esta mesma noite a sua vida lhe será exigida. Então, quem ficará com o que você preparou?' -LUCAS 12.15-20 É uma desgraça morrer rico. — ANDREW CARNEGE
Um pensamento ainda mais sensato, a avareza carrega não apenas uma ilusão, mas um julgamento — em espécie. Aqueles cuja paixão é a busca por possuir, será possuído. Midas, cujo toque transformava tudo em ouro, pediu a Baco para tirar-lhe seu dom porque seu alimento de ouro não era comestível e precisava de alimento verdadeiro. Creso, rei de Sardes, fabulosamente rico, foi capturado pelos partas que, em troca, ordenaram que o ouro derretido lhe fosse entornado garganta abaixo. Como Francis Bacon escreveu: "Se o dinheiro não é seu servo, será seu mestre. Não se pode dizer do homem cobiçoso que ele possui riquezas, deve-se dizer que elas o possuem". LIBERDADE PELO FOGO Meu pai costumava dizer: 'Cuidado com as possessões em demasia, Elas acabarão por possuí-lo'. Nesta manhã, apenas desejo informá-lo: 'Sou um homem livre'. — UM RESIDENTE DE MALIBU DEPOIS DE SUA RESIDÊNCIA SER QUEIMADA, EM NOVEMBRO DE 1993
Figuras e metáforas As figuras sobre a avareza são abundantes e bem variadas. No Purgatório, de Dante, a imagem é os olhos voltados à terra - "O 'paraíso' tem feito com que nossas costas se voltem para o céu... Nossos olhos nunca procurariam a altura, /Eles estão voltados para as coisas terrenas". No Inferno o destino do avarento ainda é pior. Ele fica irreconhecível, condenado a revolver fardos pesados que simbolizam sua luta em acumular riquezas. Ao procurar ganhar o mundo, perdeu sua alma. Outros retratam a avareza como um edema espiritual ou uma sede insaciável. Quanto mais o
111 cobiçoso procura saciar sua sede, mais ela aumenta. Outros, ainda, retratam a avareza como um par de mãos tateando com avidez para agarrar o que está fora de seu alcance. Para John Bunyan tudo está em um nome - em uma cidade comercialista chamada Amor-ao-Ganho e homens como o sr. Apego-ao-Mundo, o sr. Amor-ao-Dinheiro e o sr. Interesse-Próprio. Essas metáforas sugerem que a avareza tem sempre sido considerada um pecado particularmente masculino, e não feminino. O avarento não se doa de maneira a cultivar ou fortalecer uma relação com um objeto ou uma pessoa, como a mulher faz. Ele quer ter as coisas e agarrá-las em suas mãos como um homem - o pecado profano, secular e masculino da vida de quem tem como alvo: a posse, a autoridade, o domínio e o controle.
Aplicações práticas A menção dos anos 1980 e do livro A fogueira das vaidades nos mostra como as conseqüências da avareza são práticas e contemporâneas. A avareza é um pecado do espírito, o amor próprio de forma pervertida. Ela gera inúmeras conseqüências, entre elas a solidão, a ansiedade, a negligência do pobre, o desperdício, o crime e a injustiça e o desconforto agitado. Para Dante, as sete "filhas da avareza" eram infidelidade, impaciência, fraude, perjúrio, falsidade, desumanidade e violência. Podemos, até mesmo, nos perguntar quão diferentes são dos estudos modernos sobre as conseqüências sociais da propaganda: o materialismo, a irracionalidade, o egoísmo, a competição social e a preocupação sexual.
GEOFFREY CHAUCER Geoffrey Chaucer (cerca de 1343-1400), poeta e funcionário público inglês, o maior escritor medieval britânico e um dos poetas mais admirados em toda literatura. Nascido, provavelmente, em Londres, era filho de um comerciante de vinhos, e tornou-se o pajem da esposa do Duque de Clarence, transferido, posteriormente, à casa do rei. Foi feito prisioneiro na França, mas foi resgatado pelo rei. Viajou muito a serviço real através da Inglaterra e da Europa. Chaucer, em suas viagens à Itália, em 1372, descobriu as obras de Dante, Boccaccio e Petrarca. Foi grandemente influenciado por eles, bem como pelos poetas românticos franceses. Não há cópias completas de algumas de suas obras primárias e a sua maior obra-prima, The Canterbury Tales [Os contos da Cantuária] ficou inacabada. O poeta, nessa obra, se reúne com mais trinta poetas a fim de fazerem a peregrinação anual, de abril, até o relicário do assassinado Thomas Becket, em Cantuária. Seu hospedeiro, no Tabard Inn, promete ir com eles para julgar quem conta o melhor conto ao longo do caminho. Os relatos variam de romances cavalheirescos a conversações obscenas a portas fechadas, de contos folclóricos a sermões, cada um deles ajustado à voz do contador de histórias. A passagem abaixo é do "The Pardoner s Prologue" ["O prólogo do vendedor de indulgências"]. O vendedor de indulgências era uma figura medieval bastante conhecida, um vendedor ambulante cuja ocupação era vender perdão na forma de "indulgências". Aqui ele revela seus truques fraudulentos bem como sua hipocrisia descarada - ele prega originalmente contra a avareza, enquanto sua motivação é totalmente avarenta.
O prólogo do vendedor de indulgências
'Meus senhores' disse eu, 'nas igrejas em que prego cultivo um tipo de discurso muito bom e mui soberbo e faço que esse seja tão claro como o sino; e conto o que conto com decorado tino. Tenho um texto, sempre o mesmo Desde que aprendi, é o mesmo Velho como as montanhas e mais novo que a grama dos vales: Radix malorum est cupiditas. [Cobiça, raiz de todos os males] 'Mas, por onde passo, faço, primeiramente, pronunciamento, Mostrando-lhes minhas bulas papais em detalhe e montante.
112 E exibo o selo papal para sua inspeção Como garantia de minha proteção, Que ninguém tenha o descaramento de me aborrecer o intento Ou me retardar nisso, a mais santa obra de Cristo. Então, conto histórias que a ocasião oportuna chama, Mostrando-lhes as bulas de papas e de cardeais, De patriarcas e de bispos; e, ao fazer isso Falo algumas poucas palavras em latim, e isso Para dar um toque de açafrão em minha pregação E provocar a devoção com sabor de ensina Mostrando, a seguir, longos vidros Abarrotados de ossos, de farrapos e de trapos, Relíquias, pelo menos, assim são conhecidos. Então, em uma caixa de metal tenho o osso de um ombro, Pertencente a uma ovelha de um santo judeu. "Bom homem" é a minha prosa, "preste atenção, pois aqui vai a nova. Tome, pois, esse osso e mergulhe-o em um poço; Se vaca ou bezerro, se ovelha ou boi incharem Por comerem serpentes ou serpentes lhe picarem, Tome d'água desse poço e lave sua língua, E restabelecerá, ademais, a sua íngua, E onde houver varíola ou sarna ou ferida, Todos os animais que beberem daquele poço Serão curados no mesmo instante. Preste atenção que afirmo. Se o homem bom — do gado dono For uma vez por semana antes que o galo cante, E tomar um gole d'água, enquanto em jejum Então, de acordo com esse santo judeu, Esse verá multiplicar e vender o gado que é seu. 'E, ela é cura, também do ciúme, Pois, mesmo que o homem seja dado à sua fúria, Use dessa água ao lhe fazer a sopa, E nunca mais desconfiará de sua bela esposa, Mesmo sabendo tudo sobre sua vida pregressa, Mesmo que dois ou três cleros tenham se alegrado com seu amor... 'Homens e mulheres bondosos, aqui vai advertência; Se houver esta manhã alguém aqui na igreja Culpado de pecado de impossível expressão Tão horrível que seja incapaz de confissão Ou qualquer mulher, seja jovem ou idosa, Que tenha enganado o marido, seja dito a ela Tal pessoa não terá poder ou graça Para oferecer às minhas relíquias neste lugar. -Mas aquelas que podem se absolver da culpa Podem subir trazendo a oferta em nome de seu Deus, E as absolverei pela autoridade a mim conferida Sim, conferida a mim nessa bula papal'. 'Esse truque tem me rendido uns cem marcos cada ano Desde que perdoador me tornei nunca mais me preocupei. Então, como padre no púlpito, com olhar de desdém, Levanto-me e quando os camponeses se assentam, Prego-lhes, como já ouviram, E conto zombarias mentirosas, zombarias mais de cem. Esforçando-me bastante, alongando meu pescoço Para o leste e o oeste estendo-o aqui e ali, e pico Como um pombo assentado em seu celeiro.
113 Minhas mãos e minha língua fiam juntas com prazer E todas as minhas relíquias são deleite de se ver. A maldição da cobiça e da avareza É todo meu sermão, pois liberta a riqueza. Lá vêm as moedas, especialmente para mim, Pois meu propósito exclusivo é ganhar E não os pecados castigar. Uma vez mortos o que importa onde a alma vai estar? Não me importa o que façam, podem até catar amoras!... 'Mas, deixe-me esclarecer, resumidamente, o meu querer; Somente prego por avidez de ganho E, com muita ousadia, uso o mesmo texto antigo, Radix malorum est cupiditas. E assim, prego exatamente contra o vício, A avareza, com a qual eu me sustento. E mesmo sendo culpado desse pecado Tenho o poder de afastá-los do mesmo Posso fazê-los se arrepender; Mesmo não sendo esse meu principal intento. A cobiça é ambos, a raiz e a essência De tudo o que eu prego. Isso deve ser suficiente. 'Pois bem, após isso, dou exemplos, compactos e sucintos De histórias antigas, de tempos bem longínquos. A mente de camponês ama os contos passados, Fazendo com que possam ser repetidos e guardados. O que você acha!, enquanto puder pregar Ganhando sua prata com esses meus ensinos, Que eu, por escolha própria, na pobreza viverei? Esse não é o conselho da voz que escutei Não! Deixe-me pregar e, de igreja em igreja, implorar E nunca fazer um só trabalho honesto, e assim me castigar Nem mesmo fazer cestas, como o santo Paulo, Com o fim de se sustentar. Pois eu, em vão, não prego Não há apóstolo algum que eu gostaria de falsificar; Digo, a fim de ter dinheiro, lã, e queijo, e trigo Mesmo que esse seja dado pela mais pobre alma Ou a viúva mais pobre da vila, mesmo tendo ela no lar Uma série de crianças boquiabertas de tão famintas. Não, deixe que me sacie com o licor da vinha E ter meretriz alegre em cada cidade minha! 'Mas escutem, cavalheiros, concluindo Gostariam de escutar uma fábula? Agora que bebi um gole de cerveja, Por Deus! E aceitável que eu possa impressionar Uma boa história que vocês vão adorar. Pois, mesmo sendo eu homem completamente vil Não pensem que não posso contar fábulas com moral. Aqui há uma que, muitas vezes, prego quando saio a ganhar; Por favor, fiquem quietos, pois já vou recomeçar.' De "The Pardoners Prologue" em The Canterbury Tales, por Geoffrey Chaucer, traduzido para o inglês por Nevill Coghill (Penguin Classics, 1951, Fourth revised edition 1977). Copyright © 1951, 1958, 1960, 1975, 1977 por Nevill Coghill. Reproduzido com permissão da Penguin Books Ltd. A ESTRADA COM PEDÁGIO PARA O CÉU Padre — O cavalheiro que afirma possuir a pista interna do caminho para o Paraíso e deseja cobrar seu pedágio.
114 —AMBROSE BIERCE, THE DEVIL'S DICTIONARY {DICIONÁRIO DO DIABO]
Perguntas para reflexão e discussão
1. Qual a mensagem do "vendedor de indulgências" a seus ouvintes? A que autoridades ele se refere para convencer sua audiência de que sua mensagem e sua mercadoria são confiáveis? 2. Que estratégias perspicazes o "Perdoador" usa para chegar à raiz da avareza em seus ouvintes? Quão real é a "cura" que sua mercadoria promete? Por que acreditam em tal apelo? Quais das estratégias do "Vendedor de indulgências" possuem fac-símiles modernos? 3. Que linhas do poema resumem a missão real do Vendedor de indulgências? Quanto ele se importa, de verdade, com o destino real da alma de seus ouvintes? A mesma coisa pode ser dita sobre qualquer indústria ou instituição lucrativa de nossos dias? Quais? 4. A natureza atrevida da avareza do Vendedor de indulgências pode aumentar ou reduzir seu impacto? Por quê? Quando você encontra uma avareza descarada qual sua reação em relação a isso? 5. Ao rever todo o poema, qual a promessa mais tentadora da avareza para você? Qual a menos atraente? Que estratégias você usa para reagir ao apelo da avareza que chega a você por intermédio da propaganda e do comercialismo moderno?
LEON TOLSTOI O conde Leon Nikoláievich Tolstoi (1828-1910) escritor russo, cujos romances monumentais Guerra e Paz e Ana Karenina são considerados por muitos os mais admiráveis já escritos. Tolstoi estudou direito e línguas orientais na Universidade de Kazan, mas nunca se graduou. Aos vinte e três anos ingressou em um regimento de artilharia sendo comissionado como oficial no começo da guerra da Criméia, em 1854. . Tolstoi, nesse período de tempo, começou a escrever e publicou quatro livros, entre eles uma trilogia autobiográfica que foi aprovada pelos círculos da literatura russa do período. Em 1862, casou-se com Sophia Andreyevna Behrs que, no fim, não apenas lhe deu treze filhos, mas ainda copiou manualmente quatro rascunhos do livro Guerra e Paz. Instalou-se em sua grande propriedade no Volga, supervisionando seus arrendatários de maneira benevolente e começou a escrever as histórias e os romances que o tornaram famoso até hoje. Tolstoi, em seus últimos anos, abraçou e promoveu um asceticismo neocristão que provocou um eventual racha entre ele e sua família e também o rompimento com a Igreja Ortodoxa Russa, mas isso o tornou um filósofo mundialmente renomado em sua época. Tolstoi, por um período de cinqüenta anos, escreveu histórias de todos os tipos, desde parábolas breves a romances, dos quais muitos também são clássicos, inclusive o selecionado abaixo. Sua produção prodigiosa chega a mais ou menos noventa volumes de cartas, jornais, romances e pequenos contos. A AVAREZA DE ACABE Algum tempo depois houve um incidente envolvendo uma vinha que pertencia a Nabote, de Jezreel. A vinha ficava em Jezreel, ao lado do palácio de Acabe, rei de Samaria. Acabe tinha dito a Nabote: "Dê-me a sua vinha para eu usar como horta, já que fica ao lado do meu palácio. Em troca eu lhe darei uma vinha melhor ou, se preferir, eu lhe pagarei, seja qual for o seu valor". Nabote, contudo, respondeu: "O SENHOR me livre de dar a ti a herança dos meus pais!" Então Acabe foi para casa aborrecido e indignado porque Nabote, de Jezreel, lhe dissera: "Não te darei a herança dos meus pais". Deitou-se na cama, virou o rosto para a parede e recusou-se a comer. [...] Disse-lhe Jezabel, sua mulher: "É assim que você age como rei de Israel? Levante-se e coma! Anime-se. Conseguirei para você a vinha de Nabote, de Jezreel". Então ela escreveu cartas em nome de Acabe, pôs nelas o selo do rei, e as enviou às autoridades e aos nobres da cidade de Nabote. Naquelas cartas ela escreveu: "Decretem um dia de jejum e ponham Nabote sentado num lugar de destaque entre o povo. E mandem dois homens vadios sentar-se em frente dele e façam com que testemunhem que ele amaldiçoou tanto a Deus quanto ao rei. Levem-no para fora e apedrejem-no até a morte". As autoridades e os nobres da cidade de Nabote fizeram conforme Jezabel os orientara nas cartas que lhes tinha escrito. [...] Assim que Jezabel soube que Nabote tinha sido apedrejado até a morte, disse a Acabe: "Levante-se e tome posse da vinha que Nabote, de Jezreel, recusou-se a vender-lhe. Ele não está mais vivo; está morto!" [...] Então a palavra do SENHOR veio ao tesbita Elias: "Vá encontrar-se com Acabe, o rei de Israel, [...]. Diga-lhe que assim diz o SENHOR: 'Você assassinou um homem
115 e ainda se apossou de sua propriedade?' E acrescente: Assim diz o SENHOR: 'NO local onde os cães lamberam o sangue de Nabote, lamberão também o seu sangue; isso mesmo, o seu sangue!'" Acabe disse a Elias: "Então você me encontrou, meu inimigo!" "Eu o encontrei", ele respondeu, "porque você se vendeu para fazer o que o SENHOR reprova. -1REIS 21.1-20
De quanta terra uma pessoa necessita? Uma irmã mais velha foi ao interior visitar sua irmã mais nova. A mais velha era casada com um comerciante da cidade, a mais nova com um camponês da vila. Conversavam enquanto bebiam chá. A mais velha começou a se vangloriar das vantagens da vida na cidade, dizendo com quanto conforto viviam, quão bem vestidos, as roupas finas que seus filhos vestiam, que coisas boas comiam e bebiam e como ia a teatros, a bailes e a entretenimentos. A irmã mais nova sentiu-se provocada e, em troca, menosprezou a vida de um comerciante e elogiou a de camponês. "Não trocaria o meu estilo de vida pelo seu", disse ela, "vivemos uma vida simples, mas, pelo menos, estamos livres da ansiedade. Você vive uma vida com mais estilo, mas mesmo que, muitas vezes, ganhem mais do que precisam é muito provável que percam tudo que têm. Você conhece o provérbio: 'Perda e ganho são irmãos gêmeos'? Acontece, muitas vezes, que pessoas abastadas, um dia, tenham que mendigar pão. Nossa maneira de viver é mais segura. Mesmo que a vida de um camponês não seja abastada, ela é longa. Nunca seremos ricos, mas sempre temos o suficiente para comer". A irmã mais velha disse com desdém: "O suficiente? Sim, se quiser compartilhar com os porcos e os bezerros! O que você conhece a respeito da elegância e das boas maneiras! Por mais que o pai de família trabalhe feito escravo, você e seus filhos morrerão como vivem — em um monte de estrume". "Bem, o que importa?" replicou a mais nova. "Claro que nosso trabalho é duro e difícil. Mas por outro lado, não precisamos nos curvar diante de ninguém. Mas vocês, em suas cidades, estão cercados de tentações; hoje tudo pode parecer certo, mas amanhã o mal pode tentar seu esposo com cartas de baralho, com vinho ou com mulheres e tudo estará arruinado. Isso não acontece muitas vezes?" . Pahóm, o chefe da casa, estava deitado em cima do aquecedor e havia escutado a conversa das mulheres. "Está perfeitamente correto", pensou ele. "Por estarmos tão ocupados desde a infância, cultivando a mãe terra, nós camponeses não temos tempo para deixar que qualquer absurdo se fixe em nossa mente. Nosso único problema é não termos terra suficiente. Se eu possuísse muita terra, não precisaria nem mesmo ter medo do próprio Diabo!" As mulheres terminaram seu chá, conversaram um pouco sobre vestuário e, depois lavaram a louça e foram descansar. Mas, o Diabo estivera sentado atrás do aquecedor e ouvira tudo. Estava satisfeito, pois a esposa do camponês havia levado seu marido a se vangloriar, ficou satisfeito também com o comentário de que se tivesse muita terra não temeria nem mesmo o próprio Diabo. "Tudo bem", pensou o Diabo. "Teremos um conflito. Dar-te-ei terra o suficiente, e por meio dessa terei você em meu poder". II Perto da vila morava uma mulher, uma pequena proprietária, que possuía uma propriedade de mais ou menos cem acres. Ela sempre vivia de bem com os camponeses até contratar um velho soldado como administrador. Esse começou a oprimir as pessoas com multas. Por mais que Pahóm cuidasse, sempre terminava pagando por causa de um de seus cavalos que entrava na plantação de aveia da mulher, ou uma vaca errante no quintal dela, ou um de seus bezerros à procura do caminho para sua campina. Pahóm pagou, mas murmurou e voltou mal humorado para sua casa, tornando-se rude com sua
116 família. O verão inteiro, Pahóm se aborreceu muito com esse administrador e estava, até mesmo, feliz com a chegada do inverno, feliz também porque seu gado precisava ser alojado no estábulo. Até alimentava seus animais de má vontade, quando esses não podiam mais pastar. Mas, pelo menos, estava livre da ansiedade que tal ocupação lhe dava. No inverno ouviu-se a notícia de que a mulher venderia suas terras e que o estalajadeiro, na estrada alta, estava negociando com ela. Quando os camponeses ouviram isso ficaram muito alarmados. Eles pensaram: Bem, se o estalajadeiro ficar com a terra ele nos aborrecerá com multas piores do que as do administrador. Todos dependemos daquela propriedade. Por esse motivo, os camponeses foram em favor de sua comuna e pediram à mulher que não vendesse a terra ao estalajadeiro, oferecendo-lhe um preço mais alto. A mulher concordou, e os camponeses tentaram fazer com que a Comuna comprasse toda a propriedade para que pudesse ser de todos. Eles se reuniram por duas vezes a fim de discutir o caso, mas, não puderam resolver a questão; o mal semeou a discórdia entre eles e não conseguiram entrar em um acordo. Portanto, decidiram comprar a terra individualmente, cada um de acordo com suas posses, e a mulher concordou com esse plano, como havia feito com o anterior. Logo, Pahóm ouviu dizer que seu vizinho estava para comprar cinqüenta acres, e que a mulher concordara em receber metade do dinheiro à vista e esperaria um ano pela outra metade. Pahóm sentiu inveja. "Ora, vejam só", pensou ele, "a terra está sendo totalmente vendida e eu não ficarei com nada!" Assim, ele falou com sua esposa: "Outras pessoas estão comprando, nós também devemos comprar uns vinte acres. A vida está se tornando impossível. Aquele administrador está, simplesmente, nos fazendo sucumbir com suas multas." Dessa maneira, pensaram juntos sobre qual seria a melhor maneira de comprar a terra. Tinham economizado cem rublos. Venderam um bezerro e metade de suas abelhas, alugaram os serviços de um de seus filhos como operário e receberam seu salário adiantado, tomaram o resto emprestado de um cunhado e assim conseguiram, com muito esforço, metade do que deveriam pagar. Pahóm, depois disso, escolheu uma fazenda de quarenta acres, sendo parte dessa área arborizada, e foi barganhar com a mulher. Fizeram um acordo, com um aperto de mãos, pagando antecipado a ela um depósito. Depois, foram à cidade assinar os documentos; ele pagou metade do preço de entrada e se responsabilizou por pagar o restante em dois anos. Agora Pahóm possuía sua própria terra. Tomou um empréstimo em sementes e as semeou na terra que havia comprado. A colheita foi boa e dentro de um ano conseguiu pagar as dívidas que havia contraído com a mulher e com o cunhado. Assim, tornou-se um proprietário de terras, arando e semeando a própria terra, fazendo feno em sua terra, cortando as próprias árvores e alimentando o gado em seu pasto. Ao sair para arar sua terra, ver o milho crescendo ou ver suas campinas verdejantes, seu coração se enchia de alegria. A grama que lá crescia e as flores que lá floriam lhe pareciam mais bonitas que em qualquer outro lugar. Anteriormente, quando ladeava aquela terra, ela parecia ser igual a qualquer outra, mas agora parecia completamente diferente. III Fahóm, agora, estava muito contente e tudo estaria bem se não fosse pelos camponeses vizinhos atravessando seus milharais e suas campinas. Apelou para eles com bastante cortesia, mas, ainda assim, continuavam a passar: ora o vaqueiro da comuna deixava as vacas do vilarejo vagar em suas campinas, ora os cavalos que pastavam à noite entravam em seu milho. Pahóm os expulsou vez após vez e perdoou seus proprietários e, por um longo período de tempo, se absteve de processar quem quer que fosse. Mas, após muito tempo, perdeu a paciência e reclamou à corte do distrito. Sabia, no entanto, que a causa do problema não era a má intenção dos camponeses, mas sim o fato de não possuírem terra, porém pensou: "Não posso fazer vista grossa senão destruirão tudo que tenho. Eles precisam aprender uma lição".
117 Assim, processou-os e lhes deu uma lição moral e, depois, outra lição. Assim, dois ou três camponeses foram multados. Após algum tempo, os vizinhos de Pahóm começaram a se ressentir e, às vezes, deixavam que o gado entrasse, de propósito, em suas terras. Um dos camponeses foi mesmo à mata de Pahóm e derrubou cinco de seus limoeiros, plantados recentemente, a fim de usar a casca. Em certa ocasião, Pahóm ao passar pela mata reparou no espaço vazio. Chegou mais perto e viu os troncos desnudados no chão e, perto desses, os tocos onde as árvores estiveram plantadas. Pahóm ficou furioso. "Se ele, pelo menos, tivesse cortado as árvores aleatoriamente teria sido menos ruim", pensou Pahóm, "mas o canalha, na verdade, cortou um grupo de árvores. Se eu pudesse descobrir quem fez isso, vingar-me-ia." Vasculhou a mente tentando descobrir quem era o patife. Finalmente, decidiu: "Deve ter sido Simon - mais ninguém poderia ter feito isso". Assim foi à propriedade de Simon para ver se conseguia encontrar algo suspeito, mas não encontrou e sentiu muita raiva. No entanto, agora, se sentia mais seguro de que era Simon quem fizera isso e prestou queixa. Simon foi intimado. O caso foi examinado e reexaminado e ao final de tudo Simon foi absolvido, não havendo evidência contra ele. Pahóm se sentiu ainda mais prejudicado e deixou sua raiva à solta, explodindo com o ancião e com os juizes. Ele disse: "Vocês são subornados pelos ladrões. Se fossem pessoas honestas não soltariam esse ladrão". Assim, Pahóm brigou com os juizes e com seus vizinhos. Fizeram-se ameaças de queimar seu prédio. Apesar de Pahóm possuir a maior quantidade de terra, seu lugar na comuna, sua situação, estava pior do que nunca. Nessa ocasião, surgiu um rumor de muitas pessoas estavam se mudando para regiões novas. Pahóm pensou: Não há necessidade de sair das minhas terras. Alguns podem sair de nosso vilarejo e, aí, teremos mais lugar. Eu pegaria a terra para mim mesmo e tornaria minha propriedade um pouquinho maior. Depois, viveria com um pouco mais de tranqüilidade. Assim, ainda está muito apertado para que me sinta confortável. Um dia, Pahóm estava sentado em casa quando um camponês, passando pelo vilarejo, entrou em sua casa. Pahóm lhe deu permissão de passar a noite e o convidou para jantar. Pahóm teve uma conversa com o camponês e perguntou de onde vinha. O estranho respondeu que viera do outro lado do rio Volga, onde havia trabalhado. Uma palavra levou à outra, e o homem continuou, dizendo que muitas pessoas estavam se assentando naquelas regiões. Ele comentou como certas pessoas de seu vilarejo haviam se instalado ali. Eles ingressaram na comuna' e receberam cada um vinte e cinco acres. A terra era tão boa, disse ele, que o centeio semeado crescera alto como um cavalo e tão denso que cinco cortes de uma foice faziam um feixe. Um camponês, disse ele, não havia levado nada consigo, somente suas mãos vazias, e agora possuía seis cavalos e duas vacas. O coração de Pahóm ficou muito desejoso. Pensou: Porque sofrer nesse buraco tão estreito se alguém pode viver tão bem em outro lugar? Venderei minha terra e minha propriedade aqui, e com o dinheiro recomeçarei ali e terei tudo novo. Nesse lugar populoso, sempre teremos problemas. Mas, primeiro, preciso ver tudo com meus próprios olhos. Ao chegar o verão, ele se preparou e partiu. Desceu o Volga, em um navio a vapor, até Samara. Depois, prosseguiu a pé por mais trezentas milhas, e, por fim, chegou ao lugar indicado. Era exatamente como o estrangeiro dissera. Os camponeses têm bastante terra: Cada homem possuía vinte e cinco acres de terra comunal dados a eles para uso próprio, e qualquer um que tivesse dinheiro poderia comprar, ao lado dessa, ao preço de dois xelins por acre, quanta terra quisesse. Pahóm, após descobrir tudo o que queria, retornou à sua casa no outono e começou a vender suas posses. Vendeu sua terra com lucro, vendeu a fazenda e o gado, e retirou sua membresia da comuna. Esperou apenas até a primavera chegar quando partiu com sua família para seu novo lugar. IV
118 Tão logo Pahóm e sua família chegaram à nova moradia, ele pediu sua admissão na comuna de uma grande vila. Pagou os anciãos e obteve os documentos necessários. Cinco porções de terra comunal foram dados a ele, e para usufruto de seu filho: isto é, 125 acres (não tudo junto, mas em campos separados) e ainda o uso do pasto da comuna. Pahóm construiu os edifícios que precisava e comprou gado. Contando apenas a terra comunal ele já possuía três vezes mais do que antes, e a terra era muito boa para o milho. Ele agora estava em uma situação dez vezes melhor. Possuía abundância de terra arável e pasto e podia manter quantas cabeças de gado quisesse. De início, Pahóm, durante o alvoroço de construir e se estabelecer, estava satisfeito com tudo, mas quando se acostumou, começou a pensar que até mesmo aqui ele não tinha terra suficiente. No primeiro ano, plantou trigo em seu pedaço da terra comunal e teve uma boa safra. Queria continuar semeando o trigo, mas não possuía terra comunal suficiente para esse fim, e o que ele já havia usado não estava mais à disposição; pois nessas regiões o trigo só é plantado em solo virgem ou em terra de pousio. E semeado por um ou dois anos e, depois, a terra repousa até que esteja novamente coberta de pasto. Havia muita gente querendo esse tipo de terra, mas não havia terra suficiente para todos; tanto a ponto de brigar por ela. Os mais ricos queriam essa terra para cultivar trigo, e os pobres queriam esse tipo de terra para deixá-la na mão de comerciantes a fim de conseguir dinheiro suficiente para pagar seus impostos. Pahóm queria semear mais trigo por isso arrendou, por um ano, a terra de um negociante. Semeou muito trigo e teve uma safra excelente, mas a terra estava muito longe da vila — o trigo precisava ser transportado por uma distância maior que dezesseis quilômetros. Após algum tempo, Pahóm percebeu que alguns negociantes camponeses viviam em fazendas separadas e estavam ficando ricos, e pensou: Se eu comprar uma propriedade livre de encargos e residir nela será totalmente diferente. Assim, tudo fica agradável e mais próximo. O assunto da compra de uma propriedade livre lhe recorreu vez após vez. Continuou assim por três anos, arrendando terras e semeando trigo. As estações do ano eram boas e sua safra também, de modo que começou a economizar. Ele poderia ter continuado a ter uma vida satisfeita, mas se cansou de arrendar terras de terceiros todos os anos e precisar disputá-las. Onde havia terra boa os camponeses corriam para consegui-la, e ela era ocupada rapidamente, de modo que se não fosse astuto você ficaria sem terra. Isso aconteceu no terceiro ano, quando ele e um negociante arrendaram um pedaço de pasto de alguns camponeses e já haviam arado a terra quando houve uma disputa, e os camponeses recorreram à justiça, de modo que perdeu-se todo o trabalho já feito. Pahóm pensou: Se a terra fosse minha, eu seria independente e não haveria todo esse aborrecimento. Por isso, Pahóm começou a procurar terra para comprar e contatou um camponês que comprara mil e trezentos acres de terra, mas como estava em dificuldade queria vendê-la por uma pechincha. Pahóm barganhou, pechinchou e, por fim, acertaram o preço de 1.500 rublos, parte do valor à vista e parte para ser pago depois. Estavam para fechar negócio quando, por acaso, um negociante parou na casa de Pahóm a fim de pegar forragem para seus cavalos. Tomou chá com Pahóm e conversaram. O negociante lhe disse que havia retornado, há pouco, da terra dos Bashk'rs, bem longe dali, onde havia comprado treze mil acres de terra por 1.000 rublos. Pahóm o questionou detalhadamente e o negociante disse: "Tudo que uma pessoa precisa fazer é se tornar amigo dos chefes. Dei túnicas de seda e carpetes, valendo mais ou menos cem rublos e mais uma caixa de chá e ofereci vinho àqueles que bebiam; assim, obtive a terra por menos de um centavo por acre." Mostrou a Pahóm os títulos de propriedade, dizendo: "A terra fica perto do rio, e toda aquela campina é solo virgem." Pahóm o bombardeou com perguntas e o negociante disse: "Ali há mais terra do que você pode percorrer em um ano se andasse a pé pela região, e tudo pertence aos Bashk'rs. Eles são simples como ovelhas, e sua terra pode ser adquirida quase de graça." Pahóm pensou: Veja só, por que comprar com meus mil rublos apenas mil e trezentos acres e ainda me endividar? Se usar esse dinheiro nessa região, poderei ter dez vezes mais com o mesmo dinheiro.
119 V Pahóm perguntou sobre a maneira de chegar ao lugar e, logo que o negociante saiu, preparou-se para partir. Deixou sua esposa tomando conta da propriedade e começou a jornada levando consigo o peão. No caminho pararam em uma cidade e comprou uma caixa de chá, vinho e outros presentes, como o negociante aconselhara. Eles continuaram a caminho, percorrendo trezentas milhas e no sétimo dia chegaram ao lugar onde os Bashk'rs estavam acampados. Tudo era como o negociante dissera. As pessoas viviam na estepe perto do rio em tendas cobertas de feltro. Não cultivavam a terra nem comiam pão. Seu gado e seus cavalos pastavam em bandos na estepe. Os bezerros eram amarrados atrás das tendas, e as éguas eram conduzidas a eles duas vezes ao dia. As éguas eram ordenhadas e de seu leite faziam coalhada. Eram as mulheres que preparavam a coalhada e também faziam o queijo. Quanto aos homens, eles só se importavam em tomar coalhada e chá, comer carne de carneiro e tocar as gaitas. Todos eram corpulentos e alegres e, durante todo o verão, não pensavam em fazer trabalho algum. Eram bastante ignorantes e não conheciam a língua russa, mas eram muito bondosos. Logo que viram Pahóm, saíram de suas tendas e se ajuntaram em torno do visitante. Achou-se um intérprete, e Pahóm contou-lhes que viera por causa das terras. Os Bashk'rs pareciam bastante felizes; levaram Pahóm para dentro de uma de suas melhores tendas onde o fizeram sentar em cima de umas almofadas postas sobre um carpete e sentaram ao seu redor. Deram-lhe chá e coalhada e mandaram matar um carneiro e deram-lhe da sua carne. Pahóm pegou os presentes que trouxera e os distribuiu entre os Bashk'rs, dividindo o chá entre eles. Os Bashk'rs estavam contentíssimos. Eles conversaram bastante entre si e depois mandaram que o intérprete traduzisse. "Eles desejam que você saiba", disse o intérprete, "que gostam de você e que é costume nosso fazer tudo que está ao nosso alcance para satisfazer um hóspede e retribuir pelos presentes. Você nos deu presentes, agora, diga-nos qual de nossas posses mais lhe agrada, para que possamos presenteá-lo." "O que mais me agrada aqui", respondeu Pahóm, "é a terra. Nossa terra está cheia e exausta, mas vocês têm bastante terra boa, nunca vi algo igual." O interprete traduziu. Os Bashk'rs falaram entre si por um tempo. Pahóm não podia entendê-los, mas viu que estavam bastante entretidos, e gritavam, e riam. Depois ficaram em silêncio e olharam para Pahóm enquanto o intérprete falava: "Eles querem que eu lhe diga que, em troca de seus presentes teriam prazer de lhe dar quanta terra quiser. Só é preciso apontá-la com a mão, e ela será sua". Os Bashkrs conversaram novamente por algum tempo e começaram a debater. Pahóm perguntou sobre o que debatiam, e o intérprete disse-lhe que alguns deles achavam que deveriam falar a respeito da terra com o chefe e não agir em sua ausência, enquanto outros pensavam que isso não era necessário. VI Enquanto os Bashkrs discutiam, apareceu em cena um homem em uma grande capa de pele de raposa. Todos ficaram em silêncio e se levantaram. O intérprete disse: "Este é o nosso chefe." Imediatamente, Pahóm pegou o melhor roupão e dois quilos de chá e ofereceu-os ao chefe. O chefe aceitou-os e sentou-se no lugar de honra. De imediato, os Bashkrs começaram a lhe dizer algo. O chefe escutou por algum tempo e depois fez sinal com a cabeça para que fizessem silêncio e dirigindo-se a Pahóm disse, em russo: "Bem, que seja assim. Escolha qualquer pedaço de terra que quiser, pois temos muita terra." Pahóm pensou: Como poderei tomar o quanto desejo? Preciso de uma escritura para tornar o negócio seguro, se não poderão dizer: 'E teu, mas depois poderão pegar a terra de volta. "Obrigado por suas palavras bondosas", disse ele em voz audível. "Vocês têm muita terra, e eu só quero um pouco. Contudo, gostaria de estar seguro de que será minha. Não poderia ser medida e passada para mim? A vida e a morte estão nas mãos de Deus. Vocês, pessoas boas, a entregam para mim, mas seus filhos poderão querer tomá-la de volta." O chefe disse: "Você está certo. Nós a passaremos para seu nome".
120 Pahóm continuou: "Escutei de um negociante que esteve aqui, que vocês também, lhe deram um pouco de terra e assinaram títulos de propriedade com essa finalidade. Gostaria que fosse feito da mesma forma". O chefe entendeu. Ele replicou: "Sim, isso pode ser feito muito facilmente. Temos um escrivão e juntos iremos à cidade e selaremos a escritura devida". Pahóm perguntou: "E, qual será o preço?". "Nosso preço é sempre o mesmo: mil rublos o dia." Pahóm não entendeu. "O dia? Que medida é essa? Quantos acres seriam?" O chefe disse: "Não sabemos como fazer a estimativa. Nós vendemos a terra por dia. O percurso que conseguir fazer a pé em um dia será seu e o preço é mil rublos o dia". Pahóm estava surpreso. Ele disse: "Mas em um dia você pode percorrer um bom pedaço de terra". O chefe sorriu e disse: "Será todo seu! Mas há apenas uma condição: se você não retornar ao mesmo local em que começou, seu dinheiro estará perdido". "Mas, como marcarei o caminho que percorri?" "Razão pela qual iremos a qualquer lugar que quiser e permaneceremos ali. Você deve começar naquele lugar e fazer sua ronda, levando consigo uma pá. Onde você achar necessário, faça uma marca. A cada curva que der cave um buraco e amontoe torrões de terra; então, posteriormente, rodearemos o lugar com um arado indo de buraco em buraco. Pode fazer um circuito do tamanho que quiser, mas antes do pôr do sol deve retornar ao lugar em que começou. Toda a terra que cobrir será sua." Pahóm estava encantado. Decidiram que começariam bem cedo no dia seguinte. Eles conversaram um pouco e após beber um pouco mais de kumiss e comer mais mutton, tomaram chá, de novo, e, assim, se fez noite. Deram a Pahóm um edredom de plumas para dormir e se dispersaram para a noite, prometendo encontrarem-se na manhã seguinte, ao romper do dia, e cavalgar antes do nascer do sol ao lugar designado. VII Pahóm se deitou sobre o edredom de plumas, mas não conseguiu pegar no sono. Continuou pensando na terra. Ele pensou: Que área enorme marcarei! É fácil fazer trinta e cinco milhas em um dia. No verão os dias são longos e um circuito de trinta e cinco milhas é uma grande área! Venderei a terra de qualidade inferior ou a deixarei para ser usada como pasto, mas reservarei o melhor solo para o plantio. Comprarei dois pares de bois e arrendarei mais dois trabalhadores: Mais ou menos cento e cinqüenta acres servirão para arar e, no que sobrar, deixarei o gado pastar. Pahóm não conseguiu dormir e só cochilou de madrugada. Mal seus olhos fecharam ele já estava sonhando. Sonhou que estava deitado naquela mesma tenda e escutava alguém, do lado de fora, dando uma risadinha. Curioso para saber quem era, levantou-se, saiu e viu o chefe dos Bashkrs sentado na frente da tenda, segurando suas cartucheiras e se acabando de tanto rir. Pahóm, aproximando-se do chefe, perguntou: "Do que você está rindo?" Mas viu que não era mais o chefe, mas o negociante que recentemente havia estado em sua casa e falado sobre aquela terra. No momento em que Pahóm ia perguntar: "Já faz tempo que você está aqui?", ele viu que não era o negociante, e sim o camponês que havia, há muito tempo, subido o rio Volga até a antiga antiga de Pahóm. Depois, ele percebeu que nem mesmo era o camponês, mas o próprio Diabo, com cascos e chifres, que estava sentado ali dando risadas, e na sua frente havia um homem descalço, prostrado
121 no chão, vestindo apenas calça e camisa. Pahóm sonhou que olhou mais atentamente para ver que homem era aquele e percebeu que o homem estava morto, e era ele! Nisso, acordou horrorizado. "Que coisas alguém pode sonhar!", pensou ele. Olhando a sua volta, viu através da porta aberta que o dia já estava raiando. "E tempo de acordá-los", pensou. Levantou, despertou seu peão (que estava dormindo na carroça), deu-lhe o arreio, e foi chamar os Bashk'rs. "Está na hora de ir à estepe para medir a terra", disse. Os Bashk'rs e o chefe levantaram-se e se reuniram. Depois, começaram, de novo, a beber kumiss e ofereceram um pouco de chá a Pahóm, mas ele não queria esperar. "Se é pra ir, então vamos. Não há tempo a perder", disse ele. VIII Os Bashkrs se aprontaram, e todos partiram: uns montados a cavalo, e outros em carroças. Pahóm foi em sua pequena carroça com o servo e levando uma pá. Amanhecia quando chegaram à estepe. Eles subiram um morro pequeno (chamado, pelos Bashk'rs, de shikhan), desmontaram de suas carroças e cavalos para se reunirem em um local. O chefe veio a Pahóm e, apontando para a planície, disse: "Vê isso? Toda essa área, tudo que você pode ver, é nosso. Você pode ter a terra que quiser". Os olhos de Pahóm brilhavam: era tudo terra virgem, plana como a palma de sua mão, preta como a semente da papoula, e nas depressões cresciam, até a altura do peito, diferentes tipos de grama. O chefe tirou a capa da pele de raposa, a pôs no chão e disse: "Esta será a marca. Comece por aqui e retorne exatamente aqui. Toda terra que percorrer será sua." Pahóm desembolsou o dinheiro e o pôs sobre a capa. Depois, tirou sua capa ficando somente com a jaqueta sem mangas. Desatou seu cinto e o prendeu apertado sob a barriga, pôs um pacote pequeno com pão em um dos bolsos da jaqueta e, amarrando uma garrafa de água no cinto, ajeitou as botas, pegou a pá da mão de seu peão, estava pronto para começar sua jornada de um dia. Por alguns momentos, pensou sobre qual seria o melhor caminho - todo lugar era tentador. "Não tem importância", concluiu ele, "irei ao encontro do sol nascente. Não posso perder tempo algum e é mais fácil andar enquanto está fresco". Mal se viam os raios do sol no horizonte, quando Pahóm, carregando a pá sobre os ombros, desceu a estepe. Pahóm começou a andar, nem devagar nem rápido. Após, mais ou menos, um quilômetro parou, cavou um buraco e depositou ali torrões de terra, um em cima do outro para que o lugar ficasse mais visível. Depois, continuou e agora que já estava mais desperto começou a progredir mais depressa. Após algum tempo, cavou outro buraco. Pahóm olhou para trás. Era possível distinguir o morro com perfeição à luz do sol, havia pessoas nele e dava para ver as rodas brilhantes das carroças. Achou que tinha andado mais ou menos três milhas. Estava mais quente, tirou a jaqueta, lançou-a por cima dos ombros e continuou o caminho. Agora já estava bem quente; era hora do café da manhã. Comentou consigo mesmo: "O primeiro turno já foi feito, mas há quatro turnos em um dia e ainda é muito cedo para começar a voltar. Contudo, tirarei minhas botas". Sentou-se, tirou as botas, pendurou-as no cinto e continuou. Assim era mais fácil andar. Pensou: Caminharei mais seis quilômetros e depois farei a volta para a esquerda. Este lugar é tão bonito que seria uma pena perdê-lo. Quanto mais a gente anda, melhor é a terra. Ele continuou em linha reta e ao olhar para trás, o morro estava quase imperceptível, as pessoas
122 pareciam formigas pretas, e ele só era capaz de ver algo brilhando à luz do sol. Pahóm pensou: Ah, já fui bastante longe nessa direção, está na hora de fazer a volta. Estou suando bastante e com muita sede. Parou, cavou um buraco grande e amontoou torrões de terra. Depois, desatou o cantil, bebeu um pouco e deu uma guinada para a esquerda. Continuou seu caminho, a grama era alta e estava bastante quente. Pahóm estava ficando cansado; olhou para o sol e viu que já era praticamente meio-dia. Pensou: Bem, preciso descansar. Sentou-se, comeu pão e bebeu água, mas não se deitou, pois achou que se fizesse isso era capaz de cair no sono. Após sentar-se por um breve período de tempo, continuou. Por algum tempo, andava com facilidade: o alimento fortalecera-o, mas já estava terrivelmente quente e se sentia bastante sonolento, mesmo assim, continuou, pensando: Sofrer por um breve período de tempo para poder viver uma vida longa. Continuou nessa direção por bastante tempo e, quando estava para fazer outra curva para a esquerda, percebeu uma depressão. Pensou: Seria uma pena deixar este trecho de fora. Linho daria bem neste local. Assim, foi além da depressão e cavou um buraco do outro lado do mesma, antes de mudar de direção. Pahóm olhou para o morro. O calor deixava o ar enevoado: parecia vibrar e por causa da névoa era difícil perceber as pessoas em cima do morro. Pahóm pensou: Ah! Fiz as laterais longas demais; preciso fazer esta aqui mais curta. E fez a terceira lateral andando mais depressa. Olhou para o sol que estava praticamente no meio do horizonte e ainda não havia feito duas milhas da terceira lateral do quadrado. Ainda precisava percorrer dez milhas para chegar ao seu alvo. Pensou: Não, mesmo que minha terra se torne assimétrica, preciso voltar rapidamente em uma linha reta. Poderia ir longe demais e já tenho uma boa porção de terra. Por isso, Pahóm cavou um buraco e foi diretamente em direção ao morro. IX Pahóm agora já ia diretamente na direção do morro, mas já andava com dificuldade. Ele estava se acabando de calor, seus pés descalços estavam cortados e contundidos, e suas pernas começaram a falhar. Desejava descansar, mas isso era impossível se quisesse estar de volta antes do pôr do sol. O sol não espera por ninguém e já se punha rapidamente. Pensou: Meu Deus, espero não ter sido estúpido demais tentando ter demais! O que acontecerá se chegar tarde demais? Olhou para o morro e para o sol. Ainda estava longe de seu alvo e o sol já estava praticamente se pondo. Pahóm continuou andando; era quase impossível continuar andando, mesmo assim ia cada vez mais depressa. Continuou com tudo o que tinha, porém ainda estava bastante longe do alvo. Começou a correr, jogou fora sua jaqueta, suas botas, seu cantil e sua boina e manteve somente sua pá que usava para seu sustento. Pensou, de novo: O que farei? Quis demais e arruinei todo o negócio. Não vou conseguir chegar antes do pôr do sol. Esse receio deixou-o ainda mais esbaforido. Pahóm continuou correndo, sua blusa e calça molhados de suor grudavam na pele, e sua boca estava ressecada. Seu peito trabalhava como um fole de ferreiro, seu coração estava batendo como um martelo, e suas pernas cedendo como se não fossem suas. Estava receoso de morrer de exaustão. Mesmo com medo de morrer não podia parar. Pensou: Após ter percorrido todo esse caminho, eles me chamariam de tolo se parasse agora. E continuou correndo, estava se aproximando do alvo e já escutava os Bashk'rs gritando. Seus gritos inflamavam ainda mais o coração de Pahóm. Juntou suas últimas forças e continuou correndo.
123 O sol já estava bem perto de se pôr e envolto em névoa parecia muito grande, vermelho como sangue. Estava prestes a se pôr! O sol estava bem baixo, mas ele também estava bem perto de seu alvo. Pahóm já podia ver as pessoas no morro abanando com as mãos para fazer com que ele se apressasse. Ele podia ver a capa de pele de raposa no chão e o dinheiro em cima dele, e o chefe sentado no chão com as mãos na cintura. E Pahóm se lembrou de seu sonho. Pensou: Há bastante terra. Mas será que Deus me permitirá viver nela? Perdi minha vida, perdi minha vida, jamais atingirei o alvo! Pahóm olhou para o sol que já havia tocado a terra: um de seus lados já havia desaparecido. Com toda a força remanescente continuou, curvando seu corpo para frente, suas pernas tinham dificuldade em acompanhá-lo e quase caiu. Exatamente ao alcançar o morro escureceu repentinamente. Ao levantar o olhar - viu que o sol já se havia posto! Deu um grito. Pensou: Todo meu trabalho foi em vão, e estava prestes a parar, mas ainda escutava os Bashk'rs gritando, e lembrou-se que mesmo que para ele o sol já se tivesse posto, do lado de baixo, os que se encontravam no morro ainda eram capazes de vê-lo. Respirou fundo e correu morro acima. Ali ainda estava claro. Chegou ao topo, viu a capa, e, logo, na frente do chefe que ria, sentado com as mãos na cintura. Pahóm lembrou seu sonho novamente e gritou; suas pernas não o obedeciam mais, caiu e conseguiu alcançar a capa com as mãos. O chefe exclamou: "Ah, este é um homem admirável! Ganhou muita terra!". O servo de Pahóm veio correndo e tentou levantá-lo, mas viu o sangue escorrer de sua boca. Pahóm estava morto! Os Bashk'rs estalavam a língua para mostrar lamento. O servo pegou a pá e cavou uma sepultura comprida o suficiente para enterrar Pahóm deitado, e o sepultou ali. Tudo que precisava era de um metro e oitenta centímetros, da cabeça aos calcanhares. Leon Tolstoi, "How Much Land Does a Man Need?" 1886. Traduzido para o inglês por Louise e Ayllmer Maude. NADA DISSO RELUZ... Os que viram a exibição dos tesouros de Tutancamon viram que tinham algo de espectral. Pensávamos que encontraríamos o corpo de um rei selado juntamente com suas riquezas, por todos esses séculos, em uma câmara escura e sem ar. Quando, porém, abriu-se a câmara, o corpo estava decomposto, no entanto, o ouro e o alabastro preservaram-se em substância, forma e brilho. Quem está ausente é o próprio rei. As riquezas nos contam de sua majestade - em outras palavras, falam de seu status - mas não contam nada sobre o homem mesmo. São relíquias de uma civilização na qual, sob a influência de sua cosmologia e suas crenças, o rei era tão despersonalizado e desumanizado quanto seus objetos. Olhamos os tesouros apenas objetos enterrados entre outros objetos. Foram esses que sobreviveram. Talvez tenhamos ido a muitas exposições porque olhávamos para algo que entendíamos: o conteúdo de uma tumba da qual, quando a pedra fosse removida, os objetos, e não o homem, ressurgiria, na qual o homem tornou-se o mais inerte de todos os objetos. Se olharmos, sem rodeios, para a nossa sociedade como negaremos que ela é uma imagem de nós mesmos? — HENRY FAIRLIE, THE SEVEN DEADLY SINS TODAY [OS SETE PECADOS CAPITAIS HOJE]
Perguntas para reflexão e discussão
1. Que critério usam as duas irmãs ao julgar uma a vida da outra? Por meio de qual desses critérios — ou de algum outro - você costuma avaliar sua vida? 2. Como é que Pahóm reage à conversa das mulheres? O que o Diabo decide fazer ao ouvir Pahóm jactar-se? 3. Que mudança Pahóm sofre ao se transformar em um proprietário de terras? Qual o tema central em suas reações às notícias subseqüentes de terras novas e melhores? 4. Qual é a tática dos Bashkrs de "mil rublos o dia"? Qual o teste real dessa tática? 5. Qual o sonho de Pahóm na noite anterior à sua jornada? Que aviso acompanha o sonho? De que forma Pahóm dispensa o aviso? Porque Pahóm morre em sua busca de terras? Quanta terra é preciso para enterrá-lo? 6. Qual o centro da avareza descrita por Tolstoi? De que forma ela cresce com tanta naturalidade que se torna difícil detectá-la ou recusá-la? O que poderia controlar a avareza crescente em Pahóm?
124 7. Como você vê suas ambições e seus objetivos na vida à luz da parábola de Tolstoi?
LANGDON GILKEY Landon Brown Gilkey (nascido em 1919) é teólogo e autor de obras teológicas bastante lidas como Reaping the Whirlwind (Ceifando o redemoinho). Ainda jovem, antes de começar sua notável carreira na universidade Chicago Divinity School, foi à China e ensinou na universidade de Yenching, perto de Beijing. Durante a Segunda Guerra Mundial, foi capturado pelos invasores japoneses e posto, por dois anos e meio, em um campo de prisioneiros políticos junto com muitos outros estrangeiros que trabalhavam na China. O livro Shantung Compound [Complexo Shantung] baseia-se em seu diário. O campo japonês de prisioneiros políticos encontrava-se entre uma vida ordinária, rotineira e a do horror extremo visto em um campo de concentração nazista. Com mais de duas mil pessoas de dezenas de nações reunidas no espaço de um quarteirão sem assistência, sem maquinaria, sem água corrente e sem aquecimento central. Os problemas sociais e políticos nesse campo eram gigantescos. Esse complexo era, incidentemente, onde Henry Luce, fundador da Time, havia nascido antes e, onde Eric Liddell, médico, missionário e herói de Chariots of Fire [Carruagens de fogo], morrera durante o internamento. Como as pessoas sobrevivem quando lhes tiram o sustento? Como são capazes de manter seus princípios e tradições sob pressão? Os resultados são, por vezes, surpreendentes, e, às vezes, chocantes. Mas como mostra este incidente, o campo era uma sociedade, em miniatura, que trouxe à tona, de maneira bem aguçada, as virtudes e os vícios humanos - entre eles, a avareza.
Complexo Shantung No começo do inverno de 1944-1945, há muito a comida das porções enviadas já acabara, e os cortes em nossos suprimentos estavam se tornando cada vez mais drásticos. O inverno nos planaltos, do norte da China, é extremamente rigoroso — algo esperado em Detroit ou Chicago. Eram poucos os suprimentos de restos de carvão para esquentar os quartos. No campo, a disposição de ânimo era constantemente baixa. O futuro se estendia, infinitamente, de modo sombrio, como os vastos planaltos cobertos de neve além do arame farpado e das paredes do complexo. Mas, subitamente, sem qualquer aviso, em um dia frio em janeiro, aconteceu a melhor coisa que se podia imaginar. Alguns prisioneiros de guerra que, por acaso, estavam perto do grande portão frontal, viram quando esse, como sempre, se abriu. As carroças familiares, puxadas por burros, que carregavam os nossos suprimentos se arrastaram para dentro, cruzando a neve. Mas o que viram nessas carroças era inacreditável. Caixa sobre caixa, em grandes pilhas, parecia haver um número infinito de porções da Cruz Vermelha! Rapidamente, a notícia se espalhou. Em um piscar de olhos, reuniu-se uma grande multidão. Todos choravam e riam ao mesmo tempo. Todos olhávamos descrentes, enquanto carroça após carroça continuava a cruzar os portões. Pasmos e com lágrimas correndo livremente pelo rosto, contamos um total de quatorze carroças, cada uma delas carregada com mais de cem porções! Alguém exclamou: "São todos do mesmo tipo! Vejam as etiquetas - CRUZ VERMELHA ESTADO-UNIDENSE -, mas há muito mais do que das outras vezes!". "Fiquei sabendo de um membro do comitê que não há carta indicando qual o destinatário!" "Então, para quem serão?" Essa pergunta: "Para quem serão", se espalhou como fogo. Naturalmente, a primeira reação geral foi de que os americanos estavam novamente com sorte. Mas quando mais e mais carroças entravam pelo portão, as opiniões sobre o destino das porções ficaram confusas. Os americanos, contando as carretas enquanto passavam, começaram a refletir alegremente sobre essa sorte inesperada. Alguém exclamou em voz audível: "Meu Deus, acho que há, no mínimo, mil e quinhentas porções -
125 Oba! Por quê? São sete ou oito porções para cada americano! Nem mesmo sei onde pôr tudo isso!". Mas outras pessoas tinham pensamentos diferentes em relação ao significado da quantidade de porções: Sabe de uma coisa? Mil e quinhentos é quase o número de todas as pessoas do complexo! Será que nós britânicos receberemos alguma parcela? Será possível que, desta vez, elas são para todos? Enquanto essa pergunta varria a multidão - que consistia agora de todo o acampamento -, ela colidiu com a exultação dos americanos. Olhares de reprovação tomaram o lugar de rostos maravilhados, murmurações raivosas se sucederam aos recentes gritos de alegria. Um ianque injuriado gritou: "Malditos ingleses, isso é coisa estado-unidense, e vocês parasitas nojentos não receberão nem um pouco do suprimento. Por que a sua Cruz Vermelha não toma conta de vocês?". A resposta foi uma reação de desgosto. "Bem, vocês americanos são um bando de vagabundos cruéis! Vocês querem tudo só para si mesmos, não é? E sua propriedade, ninguém pode tocar, essa é a idéia?". E assim continuou. Todas as porções foram empilhadas no prédio da igreja, esperando a palavra de alguma autoridade para decidir como essa riqueza maravilhosa seria distribuída. Um policiamento pesado foi posto para tomar conta dela. Cada série de quartos e cada dormitório em que moravam americanos e pessoas de outras nacionalidades começaram a borbulhar com amargas disputas. Nos dormitórios em que não havia americanos, havia aquiescência geral e sombria. O comentário era que os americanos podiam ser ricos, mas, com certeza, não eram muito humanos, nem mesmo confiáveis, pois quando as apostas eram feitas, queriam estar certos de receber sua parte - os outros que se danassem. Dois dias depois, as autoridades japonesas fixaram a notícia que parecia resolver o problema, para a satisfação aparente de todos. O comandante, após afirmar que estava agindo de acordo com instruções oficias, proclamou que, no dia seguinte, às dez da manhã, as porções seriam distribuídas para o campo inteiro. Cada americano receberia uma porção e meia. Os outros receberiam uma porção cada. Essa distribuição engenhosa era possível, pois havia mil quinhentas e cinqüenta porções para um campo com mil e quatrocentas pessoas, das quais duzentas eram estadounidenses. Eu estava muito feliz. Considerei isso como um ato magistral de diplomacia para uma situação tão delicada. O acampamento inteiro parecia estar satisfeito diante dessa resolução. Tudo ao mesmo tempo, os super patriotas entre os americanos estariam apaziguados, pois receberiam substancialmente mais do que todos os "malditos forasteiros". É impossível explicar a alegria e a exultação que, aquela noite, tomou conta do acampamento. Era como se todos estivessem se alegrando com todas as noites natalinas de uma só vez. Que céu de guloseimas estava à espera de cada criança com sua porção! Que segurança abençoada era prometida a cada pai e mãe com três, possivelmente quatro porções para a família, certamente o suficiente para sustentá-los até a primavera, não importa o que acontecesse com os suprimentos do acampamento! O lúgubre inverno e a completa incerteza dos dias que se seguiriam não pareciam mais impossíveis de contemplar enquanto cada prisioneiro saboreava a perspectiva de comida farta, tentando em vão acalmar suas crianças alvoroçadas que já imploravam para se alinhar para a grande distribuição. A bondade universal invadira o acampamento; via-se expresso em todos o entusiasmo pela generosidade estado-unidense. Nosso ânimo e sentimento de comunidade subiram rapidamente. Como Bruce, o escocês sardônico de nosso dormitório, disse: "Hoje, quase senti a habilidade de amar outras pessoas - e isso para mim, irmão, é um sentimento muito raro!". Na manhã seguinte, muito antes da hora marcada, o acampamento já estava em uma disposição festiva, enquanto se alinhavam para receber as porções. Então, subitamente, tudo caiu por terra. Pouco antes das dez, um guarda passou a passos largos e martelou no quadro uma nota que parecia oficial.
126 Os primeiros da fila tentaram se aproximar para ler o aviso. Voltaram vermelhos de raiva. Forceime por entre a multidão para chegar ao quadro de avisos, tentei olhar por cima dos ombros dos outros para ler o aviso. Ao aproximar-me, um inglês estava voltando. Ouvi quando dizia: "Malditos bastardos! Diabos, o que direi a meus filhos?". Uma presciência devastadora já me dizia o que estava anunciado — e eu estava certo. A notícia continha uma sentença curta, mas significativa: DEVIDO AOS PROTESTOS DA COMUNIDADE ESTADO-UNIDENSE, AS PORÇÕES NÃO SERÃO DISTRIBUÍDAS HOJE, COMO PREVIAMENTE ANUNCIADO. O COMANDANTE
Quando tentamos descobrir o que havia acontecido fomos informados de que sete jovens americanos haviam estado com o comandante para falar sobre o fato em questão. Pediram que ele apresentasse a autorização que havia recebido para essa distribuição das porções da Cruz Vermelha estado-unidense aos prisioneiros que não eram cidadãos estado-unidenses. Por não haver tal prova, os sete insistiram que essas porções fossem entregues rapidamente à comunidade estado-unidense, os proprietários legais, para que pudessem fazer com as mesmas o que achavam correto. É possível imaginar, de maneira legítima, que o oficial japonês tenha ficado completamente sem ação ao receber esse apelo forte e racional, tão peculiar aos ocidentais no que diz respeito a suas posses. Por causa de seu histórico cultural, ele não foi capaz de lançar alguma defesa rápida. O comandante agira, aparentemente, com base apenas em seu julgamento moral ao anunciar a distribuição a todos os prisioneiros e não possuía autoridade superior, na qual apoiar seu julgamento. Nesse caso, certamente, seria melhor se tivesse feito uso da costumeira inflexibilidade militar. Se simplesmente tivesse despedido a delegação, o acampamento teria sido poupado de muita amargura, e, posteriormente, os estado-unidenses não teriam sido humilhados. Mas vacilou, prometendo levar o fato à arbitragem de Tóquio. Cancelando, assim, a distribuição. A comunidade estado-unidense, por intermédio da ação desses sete, ficou em uma posição nada invejável ao impedir a distribuição de porções vivificadoras aos seus famintos companheiros. Aparentemente, estávamos contentes em deixar que continuassem com fome contanto que recebêssemos todas as nossas porções, sete porções e meia para cada um. Como resultado inevitável, todos os amargos argumentos lançados nos dias anteriores irromperam ainda mais fortes. Homens, como o inglês que eu ouvira por acaso, que foram forçados a explicar aos seus filhos que "os estado-unidenses tirara-lhes o Papai Noel", não estavam inclinados a ver isso de maneira superficial. Os estado-unidenses, sentindo-se amargamente acusados de egoísmo e de ganância que não haviam encorajado explicitamente, não estavam inclinados a admitir a própria culpa nem a de seus compatriotas, especialmente para estrangeiros furiosos. Com esse mecanismo de defesa patético, porém automático, desenvolvido por quase todos os homens em relação a cidadãos de outras nações, os estado-unidenses defenderam muito tudo que seus compatriotas fizeram, muito antes de descobrirem o que fizeram ou o que eles mesmos pensavam sobre o assunto. Passaram-se dez dias, enquanto todos esperávamos uma palavra proveniente de Tóquio. Esse hiato forneceu a oportunidade para que toda hostilidade, inveja e orgulho nacional de 1.450 pessoas famintas, exasperadas e ansiosas se acumulasse e transbordasse. Onde antes havia apenas argumentos, agora havia punhaladas. Em uma das filas um menino estado-unidense e um britânico chegaram a brigar por isso. Quando os pais souberam sobre essa briga entre outrora grandes amigos, primeiro puniram os rapazes. Mas ao descobrirem por que brigavam, eles mesmos chegaram à pancadaria. Foi preciso que outros intervissem para separar essa dupla patética, porém furiosa, que foram vizinhos e amigos por um ano e meio. Era a mesma história, tudo de novo. Uma comunidade que há muito esquecera se uma pessoa era estado-unidense ou britânica, branca, negra, judia, parse ou indiana, desintegrou-se subitamente em uma coleção de grupos nacionais hostis, vociferantes e amargamente divididas. Ironicamente, nossa dádiva natalina trouxera em seu despertar exatamente o oposto de paz na terra. Enquanto a
127 grande quantidade de porções vivificadoras se achava inerte no centro do acampamento, rajadas de conflitos humanos e de má vontade fervilhavam ao seu redor. Pela primeira vez em minha vida, senti-me profundamente humilhado por ser estado-unidense. Os britânicos, em nosso dormitório, eram muito corteses para ser publicamente desagradáveis sabiam que a maioria do nosso grupo deplorava esse tipo de atitude -, mas o silêncio deles dizia tudo. Minha experiência com as porções da Cruz Vermelha revelou vividamente aspectos da vida humana comunitária de que, anteriormente, não tinha conhecimento. Um ou dois dias mais tarde, enquanto fitava melancolicamente a magnífica pilha de porções, pensando na ironia da nossa sociedade subitamente briguenta, percebi que a abundância não é de maneira alguma uma bênção perfeita para a comunidade. Não serve, como se supõe com freqüência, para alimentar ou confortar aqueles suficientemente afortunados em possuí-la, sem afetar e preocupar os desafortunados. A riqueza é uma força dinâmica que facilmente pode se tornar demoníaca — pois se não fizer um grande bem, pode trazer grandes prejuízos. A chegada das porções representava uma abundância absoluta, quase incompreensível, para nosso acampamento. Na minha maneira de ver, era como se nossa pequena comunidade fosse tirada do padrão de vida de um vilarejo do século XIII para uma sociedade industrial moderna rica. Agora tínhamos alimento para toda a primavera. Mesmo assim, a chegada dessa abundância - fator central do progresso material - foi, na verdade, motivo para aumentar a amargura e os conflitos, como nunca viramos. Ao ver o símbolo de nosso avanço material subitamente conscientizei-me de que o sonho de progresso material das culturas ocidentais, como resposta para todo mal, não era mais que um mero sonho. Aqui estava a evidência, diante de meus olhos, de que a riqueza e o progresso podem ter conseqüências demoníacas se forem usados de maneira errônea. Se esse alimento fosse usado apenas para o bem de toda a comunidade seria uma completa bênção na vida de cada um de nós. Mas no momento em que houve ameaça de se tornar propriedade acumulada de uns poucos escolhidos o alimento, de imediato, tornou-se destrutivo, em vez de produtivo, separou-nos uns dos outros e destruiu qualquer vestígio de unidade e ética comunitária. Tive consciência de que não se tratava apenas de palavras de indignação nem de meros olhares irritadiços. Era exatamente o tipo de assunto pelo qual os homens estavam dispostos a lutar. Agora, estava feliz em ver os guardas patrulhando as ruas. Pois, se não fossem as armas japonesas garantirem a ordem no acampamento, é possível que o assunto tivesse se transformado em um conflito civil. Tornou-se evidente que nossa comunidade ter-se-ia destruído por causa desse assunto. De repente, vi mais claro que nunca, os fatores dinâmicos em um conflito social. A riqueza, combinada com a avareza e a injustiça, leva inevitavelmente à competição, tornando-se uma ameaça de morte para o organismo social. Da mesma maneira, tornou-se evidente que a única resposta não era menos riqueza ou uma menor quantidade de bens materiais, mas o desenvolvimento de um caráter moral que levasse a compartilhar e prover o único fundamento para a paz social. Parece-me que o uso moral ou imoral das riquezas, não o mero acumulo delas, determinará o tipo de função que exerce na sociedade, criativa ou destrutiva. A reivindicação estado-unidense de ter todas as porções e seus efeitos devastadores em nossa estrutura social ensinaram-me, por fim, o verdadeiro significado do caráter moral em qualquer comunidade humana e nunca me esquecerei disso. Extratos do Shantung Compound: The Story of Men and Women Under Pressure escrito por Langdon Gilkey. Copyright © 1966 por Langdon Gilkey. Copyright renovado © em 1994 por Langdon Gilkey. Reproduzido com permissão de HarperCollins Publishers, Inc.
Perguntas para reflexão e discussão
1. Como o autor descreve o ânimo no acampamento antes da chegada das porções? De que maneira a consciência progressiva de escassez afeta a avareza? 2. Qual a primeira reação dos prisioneiros ao contemplarem a chegada do carregamento das
128 porções? Qual a primeira pergunta a provocar a intensificação da avareza? 3. Como os japoneses decidiram distribuir as porções? Como você as distribuiria? 4. Qual seria sua resposta aos sete "queixosos" estado-unidenses? Que razões que você daria aos detentos desapontados? 5. Gilkey, como estado-unidense, sentiu-se como durante o incidente e com o resultado disso? 6. Qual a conclusão de Gilkey sobre a confusa bênção de riquezas? No fim de tudo, o que ele vê como a "única resposta" para o conflito social desencadeado pela avareza? Onde, em sua vivência, você viu o caráter moral, ou a falta dele, determinar o resultado de um conflito causado pela riqueza? 7. Que lição você pode tirar dessa história?
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O CONTRAPONTO DA AVAREZA bem-aventurados os misericordiosos O pecado da avareza centraliza-se na ambição dobrada: obter o que não temos e manter o que temos. O contraponto do primeiro é o contentamento e do último a generosidade, ambos são o cerne da misericórdia. Enquanto a ambição nega aos outros até mesmo a justiça, a misericórdia oferece mais do que apenas justiça — seu caráter é dar além da razão, além da justiça, além da expectativa. Como Portia, de Shakespeare, diz em O Mercador de Veneza: "A qualidade da misericórdia não é forçada". ESBANJADORES PRANTEADORES, DOADORES GUARDIÃES O que guardei, perdi; o que gastei, eu tive; o que dei, eu tenho. — EPITÁFIO ANTIGO
Em outras palavras, a avareza pode precipitar outros pecados tanto de comissão (como fraude, traição e violência) quanto de omissão (como a indiferença em relação às necessidades do próximo). Os estudiosos medievais caracterizavam, de maneira resumida, os pecados de omissão simplesmente como "insensibilidade para com a misericórdia". A misericórdia não é apenas ausência de avareza, mas presença de generosidade. Mais do que apenas "não ser avarento", a misericórdia é pró-ativa no dar — não apenas abrir mão da riqueza, mas distribuí-la entre os necessitados. Como escreveu William F. May: "O oposto verdadeiro da avareza, do ser pão-duro, não é a mão vazia da morte, mas a mão aberta do amor".
Misericórdia aos que não têm misericórdia A misericórdia, como descrita por Jesus, não é para aqueles que respeita as pessoas; antes, alcança sua forma mais elevada quando oferecida aos que menos a merecem - nossos inimigos e aqueles que nos perseguem injustamente. Jesus pergunta: "Que mérito vocês terão, se amarem aos que os amam? [...] Amem, porém, os seus inimigos, façam-lhes o bem" (Lc 6.32,35). A misericórdia ama tanto o amigo como o inimigo e faz, de maneira ativa, o bem para ambos. O próprio Deus é o modelo que "faz raiar o seu sol sobre maus e bons e derrama chuva sobre justos e injustos" (Mt 5.45).
VICTOR HUGO Victor Hugo já foi apresentado na parte 2, sobre a inveja. A passagem seguinte também é de Os miseráveis e encontra-se antes da passagem discutida anteriormente. Ela descreve uma ação de misericórdia, quase miraculosa, do bispo que se tornou o momento decisivo da vida de João Valjean. Valjean recebe calorosa hospitalidade do bispo, mas rouba-lhe a prata. Quando capturado pelos guardas depara-se com a amarga possibilidade de um segundo encarceramento bem mais prolongado. De fato, sua vida parecia chegar ao fim. O bispo em trabalho Ao amanhecer do dia seguinte, o Sr. Bienvenu estava andando pelo seu quintal. A sra. Magloire correu até ele, totalmente fora de si. "Monsenhor, Monsenhor", gritou ela, "Vossa Senhoria sabe onde estaria o cesto da prataria?" "Sei", respondeu o bispo. "Deus seja louvado!" disse ela. "Não sabia o que havia acontecido com ele". O bispo havia achado o cesto há pouco no canteiro de flores. Deu-o à sra. Magloire e disse: "Aqui
130 está". "Sim", disse ela, "mas não há nada nele. Onde está a prataria?" "Ah!", disse o bispo. "E a prata que lhe preocupa. Não sei onde está". "Santo Deus! Foi roubado. Aquele homem que veio aqui ontem à noite a roubou!" E em um piscar de olhos, a sra. Magloire, com toda a agilidade que a idade permitia, correu ao oratório, foi à sacada e voltou até onde estava o bispo, encurvado, com alguma tristeza, sobre a cocleária de Guíllons que fora quebrada pelo cesto, ao cair. Ergueu os olhos ao escutar o grito da sra. Magloire: "Monsenhor, o homem se foi! A prata foi roubada!" Enquanto exclamava, seus olhos caíram sobre um canto do jardim onde havia sinais da fuga. A pedra superior do muro fora deslocada. "Vês? Foi por aqui que escapou; saltou para a viela Cochefilet. Que patife! Roubou nossa prata"! Por um momento, o bispo ficou silencioso após o que levantou os olhos sérios e se dirigiu, com brandura, à sra. Magloire: "Em primeiro lugar, essa prata nos pertencia"?. A sra. Magloire estava boquiaberta. Após alguns momentos, o bispo continuou: "Sra. Magloire, fiquei com essa prataria por muito tempo. Ela pertencia aos pobres. Quem era esse homem? Com certeza, um homem pobre". "Alas! Alas!", replicou a sra. Magloire, "não é para mim ou para a senhorita; para nós é tudo a mesma coisa. Mas para o senhor, monsenhor. Com o que o senhor vai comer agora"? O bispo olhou espantado para ela: "Mas, será que não dispomos de travessas de estanho?". A sra. Magloire encolheu os ombros e disse: "Estanho fede". "Bem, então algo de ferro". A sra. Magloire fez uma careta. "Ferro tem um gosto esquisito." "Bem, então", argumentou o bispo, "utensílios de madeira". Em poucos minutos estava à mesa, em que João Valjean sentara-se na noite anterior, tomando seu café da manhã. Enquanto fazia seu desjejum, monsenhor Bienvenu comentou, amavelmente, com sua irmã, que não disse nada, e a sra. Magloire, que murmurava, dizendo que realmente não havia necessidade nem mesmo de uma colher ou um garfo de madeira para mergulhar um pedaço de pão no copo de leite. "Que idéia"!, disse consigo mesma a sra. Magloire enquanto andava de lá pra cá. "Hospedar esse tipo de gente e dar uma cama ao seu lado; e o que ganhamos em troca? Que maldição, pois ele não fez nada a não ser roubar! Oh, bom Deus! Arrepio-me toda só de pensar!" Quando o irmão e a irmã levantam-se da mesa alguém bateu à porta. "Entre", disse o bispo. A porta se abriu. Um grupo estranho e vigoroso apareceu à porta. Três homens segurando um quarto pela gola. Os três homens eram guardas; o quarto, João Valjean. O tenente dos guardas, que estava na liderança do grupo, estava perto da porta. Ele se aproximou do bispo com uma continência militar. "Monsenhor", disse ele. João Valjean, ao ouvir isso, sombrio e parecendo totalmente abatido, ergueu a cabeça, com ar estupefato. Murmurou: "Monsenhor! Então, não é o vigário!". "Silêncio!", disse o guarda. "E Vossa Excelência. O bispo."
131 Enquanto isso, monsenhor Bienvenu aproximou-se tão rápido quanto sua idade avançada permitia: "Ah, aí está você!", disse ele enquanto olhava para João Valjean. "Feliz em vê-lo. Mas também lhe dei os castiçais, eles também são de prata como o resto. Valem duzentos francos. Porque não os levou juntamente com os talheres?". João Valjean abriu os olhos e olhou para o bispo com uma expressão indescritível. "Monsenhor", disse o tenente, "então o que esse homem contou é verdade? Nós o encontramos. Ele agia como um fugitivo e o prendemos para verificação. Ele estava com essa prataria". "E ele lhes contou", interrompeu o bispo com um sorriso no rosto, "que isso lhe fora dado por um bispo idoso e bom, em cuja casa se hospedara. Entendi. E vocês o trouxeram de volta para cá? Pois, foi apenas um engano". "Se for assim", disse o tenente, "podemos deixá-lo ir". "Por favor", replicou o bispo. Os guardas soltaram João Valjean que recuou. "E verdade que estão me deixando livre?", murmurou como se falasse em sonho. "Sim! Você pode ir. Entendeu?", disse o guarda. "Meu amigo", disse o bispo, "antes de partir, aqui estão os seus castiçais, leve-os consigo". Ele pegou os dois castiçais na prateleira, acima da lareira, e entregou-os para João Valjean. As duas mulheres observavam sem dizer uma só palavra, ou fazer qualquer gesto ou olhar, que pudesse perturbar o bispo. João Valjean tremia. Pegou distraidamente os dois castiçais com expressão estupefata. "Agora", disse o bispo, "vá em paz. A propósito, meu amigo, quando vier novamente, não precisa vir pelos fundos. Sempre pode entrar e sair pela porta da frente. Ela fica apenas fechada com um trinco, dia e noite". Depois, voltando-se para os guardas disse: "Senhores, podem ir". Os guardas se foram. João Valjean saiu se estivesse a ponto de desmaiar. O bispo aproximou-se dele e disse em voz baixa: "Não se esqueça, nunca, que você me prometeu usar essa prata a fim de se tornar um homem honesto". João Valjean, que não se lembrava de nenhuma promessa desse tipo, estava confuso. O bispo enfatizara bem as palavras ao pronunciá-las. Ele continuou solene: "João Valjean, meu irmão, você não mais pertence ao mau, mas ao bem. É sua alma que estou comprando para você. Eu a removo dos maus pensamentos e do espírito da perdição e a entrego a Deus!". Extraído do livro Les Miserables escrito por Victor Hugo, traduzido (para o inglês) por Leefâhnestock e Norman MacAfee. Copyright © 1987 por Lee Fahnestock e Norman MacAfee. Usado com permissão da Dutton Signet, uma divisão do Penguin Books USA, Inc.
Perguntas para reflexão e discussão
1. Em sua opinião quando o bispo percebeu que Valjean roubara a prataria? Quando a sra. Magloire fez a mesma constatação? 2. Como o bispo reage à exclamação da sra. Magloire: "Ele roubou nossa prata!". Como você responderia? 3. O que especificamente ofende a sra. Magloire em relação à atitude de Valjean? Em vez disso, o que ela esperava dele? 4. Quem Valjean supunha que atenderia à porta do bispo? De sua perspectiva, como Valjean sentiu-se ao ter conhecimento de que o próprio bispo atendera à porta e o via detido pelos guardas? Em sua opinião, que reação Valjean esperava do bispo? 5. Quais as verdadeiras palavras do bispo a Valjean? Em sua opinião, naquele momento, que emoções inundavam Valjean? Como suas palavras, reações, expressões físicas revelam o que ele
132 sentia? 6. De que maneira o bispo aumenta a intensidade de seu ato de misericórdia? De que maneira ele tira vantagem do espanto de Valjean para incitá-lo a se corrigir? Isso foi manipulação ou apenas uma atitude sábia? Será que, conforme sugeriu, o bispo estava, de fato, "comprando" a alma de Valjean do mal e dando-a para Deus? Como ele faz isso? 7. Você já viu, alguma vez, algum ato de grande misericórdia que se compare a esse? Na ocasião, que emoções o dominaram?
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Capítulo 6 Glutonaria (gula) versus coragem em meio ao sofrimento e à perseguição
A glutonaria ou auto-indulgência é o sexto dos sete pecados capitais e o primeiro dos dois pecados da carne, "quentes", porém "de má reputação". É geralmente tratado como o menos sério dos sete pecados capitais. Da mesma maneira que a avareza idolatra os bens materiais, e a luxúria, o sexo, a glutonaria idolatra a comida. Ela exalta e distorce tanto a comida quanto o comer. Assim, diferente do gourmet que desfruta e aprecia as iguarias finas, o glutão tradicional gosta de comer, quase sem se preocupar com o paladar, a beleza ou a companhia compartilhada. Ao passo que o gourmet saboreia a comida, o glutão tradicional a devora. Os glutões, ao reduzir toda a comida a uma lavagem, "assemelham-se a porcos". O ÚLTIMO APLAUSO Mas, ao contrário, houve júbilo e alegria, abate de gado e matança de ovelhas, muita carne e muito vinho! E vocês diziam: 'Comamos e bebamos, porque amanhã morreremos'. — ISAÍAS 22.13
Assim, a peculiaridade da glutonaria, o pecado "quente", é dupla: em primeiro lugar, os glutões abusam de algo essencial à sobrevivência humana e, em segundo lugar, as penalidades espirituais da glutonaria são as mais leves dos sete pecados capitais, muito embora as penalidades físicas sejam mais rápidas e mais pesadas. Mesmo assim, há duas coisas que nos impedem — nós, as pessoas modernas — a levar a glutonaria tradicional a sério. Uma delas é a nossa associação da glutonaria com a decadência hedonista da Roma antiga - representada pelos banquetes superabundantes de Trimalchio, no Satiricon de Petrônio, com suas mesas que se vergavam sob o peso dos alimentos, suas maneiras pavorosas e seus vomitórios repugnantes (um senador romano possuía escravos, que andavam à sua frente, mas de costas para segurar-lhe a pança). O outro bloqueio é a nossa autocongratulação moderna com a nossa rejeição da obesidade e a nossa dedicação, recém descoberta, à saúde, à boa forma e às dietas. Até parece que os nossos deuses não são mais os nossos ventres, mas os nossos fortes músculos abdominais. Por motivos como esses, a glutonaria é, geralmente, tratada com excessiva indulgência, como algo relativamente inofensivo, independentemente daquilo que desejemos. Ironicamente, hoje em dia, a palavra "pecaminoso" é usada ao comer uma sobremesa, de maneira bem divertida, muito mais facilmente do que para se referir a qualquer outro tipo de comportamento ou atitude. OS OUTROS TRÊS PECADOS Se existem sete pecados capitais, então também existem os de números 8,9 e 10. —ANÚNCIO PARA OS RESTAURANTES DO DENNY, 1993: SOBREMESAS 'VERDADEIRAMENTE DELICIOSAS'
Os gracejos sobre a predisposição do cristão à glutonaria são abundantes, porque até mesmo Tomás de Aquino concordou que a glutonaria era o pecado menos sério. Em uma história Italiana, um papa moderno e bastante espiritual chegou à porta do céu. São Pedro saiu do caminho para deixar que seu sucessor entrasse usando suas próprias chaves. No entanto, depois de muita busca e rebusca em seus bolsos, o recém chegado estava envergonhado, pois se achava, ainda, do lado de fora - ele trouxera, por engano, as chaves erradas, as da adega do Vaticano. Mas, tanto as origens como as conseqüências da glutonaria são bem mais sérias. Dedicada à gratificação do apetite, a_glutonaria procede de um terrível vazio e leva a um terrível vazio que -
134 não importa quanto nos empanturremos — nunca é preenchido. As pessoas comem em demasia para compensar o vazio emocional. Contudo, comer em demasia nunca compensa. A barriga está cheia, mas o coração está oco. A glutonaria engana, como todos os outros vícios. Nossa condenação se torna esta: "Somos o que comemos". O CONSUMIDOR INTERNACIONAL A glutonaria saqueia, por assim dizer, a arca de Noé, pois a comida só para alimentar a intemperança de uma refeição. — SIR THOMAS OVERBURY Portanto, é estranho ver que se providenciem tantas fornalhas, e tantos fornos, e um fogo alto, e um exército de cozinheiros, de adegas cheias de vinho e de celeiros abarrotados de milho, e isso somente para satisfazer o estômago que é do tamanho de um palmo. É também estranho que um único estômago abrigue uma vindima de muitas nações, despojos de províncias distantes e mariscos de vários mares. — JEREMY TAYLOR A glutonaria é pecaminosa, em todas as suas formas, pois representa um grau de amor próprio autodestrutivo. — KARL MENNINGER
Do ponto de vista medieval, havia cinco maneiras diferentes de pecar por meio da glutonaria comendo e bebendo antecipadamente, ou em demasia, gastando demais, sendo ávido demais, ou espalhafatoso demais. Todos esses são sintomas de uma filosofia de vida que, no final, é materialista e hedonista, capturada no lema: "Comamos e bebamos, porque amanhã morreremos". Dessa forma, conforme os esteticistas modernos apontam, a glutonaria moderna não é observada somente no destaque da região média do corpo humano, na pressão alta, nos fígados envenenados, nos narizes enormes e no mau hálito. Ela pode ainda ser observada na moderna devoção fanática às dietas, às comidas nutritivas e à ingestão de remédios. Em uma sociedade na qual os livros de receitas vendem mais que a Bíblia, mais ou menos na proporção de 10 para 1, as comida e as dietas passam a ocupar o tempo e o lugar similar ao da glutonaria. Assim, em nossa sociedade moderna, a glutonaria não é inteiramente direta. Devemos nos lembrar a distinção que C. S. Lewis faz entre "a gula do Excesso" e "a gula da Delicadeza" - para os medievais, esse último é o quinto aspecto da glutonaria, "por demais espalhafatosa, com excesso de pormenores". Hoje em dia, quando a gula da delicadeza tem mais valor que a gula tradicional do excesso, é necessário avaliar com precisão a diferença entre os dois. A glutonaria do excesso está interligada a uma cultura de escassez, da mesma forma que a glutonaria da delicadeza está interligada a uma cultura de abundância. Na cultura da escassez, o alimento, para a maioria das pessoas, é a única luxúria accessível. Por exemplo, luxúrias como o ouro, a seda e a terra, requerem dinheiro, mas trabalho duro e sorte na caça (por exemplo) trazem comida e vinho ao seu alcance. Para a maior parte do ocidente, a mudança da escassez para a abundância aconteceu no século dezenove. Paralelamente, acompanhando essa mudança, temos a mudança da glutonaria do excesso para a glutonaria da delicadeza. E bem provável que nós, as pessoas modernas, não admiremos a indulgência e a obesidade, mas temos uma variedade enorme de palavras polidas para encobrir nossa preocupação exagerada com os alimentos. A gula da delicadeza é inquestionavelmente o problema principal do Ocidente com relação à comida. Onde a comida era, anteriormente, simplesmente um assunto de sustento humano, prazer e partilha, agora está carregada de miríades de formas de "culpa alimentar", com perguntas como estas: Como o alimento foi cultivado (em feitorias e fazendas repletas de pesticida, usando trabalhadores agrícolas explorados)? Como é comercializado (em recipientes não-biodegradáveis, produzindo lixo)? Quais serão as suas conseqüências (recursos exauridos, aumento de ataques cardíacos, coxas grossas e abdômen inchado)? Como vimos anteriormente, é mais provável que a palavra pecaminoso seja usada para a sobremesa moderna que para qualquer pensamento ou ação daninho. MUUUUIIIIIIITO MAU! Pecadulgência, — SLOGAN DE ADVERTÊNCIA PARA o LICOR I RISH CREAM DE BAILEY, 1999
Um escritor afirma: "É muito comum escutar uma mulher lamentar: 'Pequei', seguido de uma
135 desculpa aparentemente esfarrapada, como: 'Comi dois sonhos e um pacote de salgadinhos'". As categorias morais tradicionais, "bom" e "mal", são aplicadas muito menos para "o que sai" de uma pessoa, como as palavras ou os atos, do que para "o que entra". E, mesmo nesse caso, não são os abusos dos alimentos ou a preocupação excessiva com os classificados negativamente, mas sim, como do ponto de vista medieval, simplesmente com o próprio alimento. BEM-AVENTURADOS OS BONITOS? Ao ler anúncios e eventos atuais na imprensa e outras mídias - por exemplo, ao encontrá-los nas caixas de supermercados, nas bancas de revistas, nas livrarias, na televisão e no rádio - você poderia pensar que as pessoas mais desafortunadas no mundo de hoje seriam o gordo, o deformado, o feio, o idoso e aqueles que não estão engajados implacavelmente em romances, sexo e atividades físicas nem bem equipados ou na moda. A triste realidade é que muitos ao nosso redor, especialmente os adolescentes e os jovens, são levados para uma vida na qual ser esbelto e estar em forma, ter um cabelo 'maravilhoso', parecer jovem e assim por diante são os únicos termos de bem-aventurança ou de desgraça para sua existência. Pois, só é isso que conhecem. — DALLAS WILLARD, THE DIVINE CONSPIRACY [A CONSPIRAÇÃO DIVINA]
Há um elo entre a disfunção alimentar, uma tragédia moderna, e a gula da delicadeza, embora sejam completamente diferentes. O mito da "mulher esbelta, perfeita" que se alimenta da gula da delicadeza é um fator — porém, não necessariamente o principal - nas disfunções alimentares, que, hoje em dia, são quase que epidêmicas nas universidades, (algumas escolas superiores fazem a estimativa de que um em cada dez ou um em cada cinco estudantes do sexo feminino já teve alguma disfunção alimentar.) Ainda que as refeições festivas e a bulimia sejam consideradas partes do problema, a anorexia nervosa é a desordem que mais prevalece. Esta afeta, atualmente, entre 5% a 7% dos doze milhões de estudantes estado-unidenses (a maioria do sexo feminino). O público começou a se conscientizar sobre o problema da anorexia por ocasião da morte da cantora Karen Carpenter, em conseqüência de complicações desse mal. A anorexia é mais bem descrita como o medo patológico de engordar levando à perda extremada de peso. O tempo aproximado para a recuperação de quem sofre de anorexia é de sete anos. Vinte por cento das pessoas com anorexia morrem da doença - porcentagem maior que qualquer outra desordem mental. A tragédia dessas enfermidades é provavelmente o resultado previsível proveniente de uma cultura preocupada com o exterior das pessoas — usando o alimento como um meio de controlar a beleza externa. A visita semanal aos Vigilantes do Peso tem tomado o lugar do confessionário católico como o ato prototípico da auto-revelação. A obsessão por várias formas de abstinência de comida está em voga, mas isso é tão glutonaria quanto a obsessão pelo comer - especialmente entre os cristãos cuja alegria antecipada do banquete celestial certamente não os deixa preocupados com o fato de se ter manteiga ou margarina no pão, como ele também não se preocupa se o leite é 98% desnatado ou não.
PETRÔNIO/REVISTA TIME Gaio Petrônio (morto em 66 A. D.), escritor latino, foi descrito por Tácito como o arbiter elegantiae (o árbitro do paladar) na corte de Nero. Ele é o autor de Satiricon, um manuscrito incompleto, considerado como um dos primeiros exemplos da forma de romance. É também um estudo clássico da glutonaria, dando a ela uma imagem vivida e sardônica das luxúrias e da decadência romana do século I. Mais tarde, Petrônio, supostamente, suicidou-se para escapar de ser morto por Nero, o cruel e tirano imperador. O personagem central do Satiricon, de Petrônio, é Trimalchio, multimilionário vulgar que dá um banquete colossal e extravagante. Mais recentemente, em 1969, o famoso Federico Fellini transformou Satiricon em um filme, e nome do livro foi mantido. Mas poucos sabem que Trimalchio foi um protótipo da obra anterior de F. Scott Fitzgerald, O Grande Gatsby (1925), originalmente intitulado Trimalchio's Banquet [O Banquete de Trimalchio]. O artigo de 1972 da revista Time, seguiu um fragmento de Satiricon, uma lembrança de que o estilo tradicional de glutonaria não desapareceu de todo. O FIM DE UM BÊBADO Se um homem tiver um filho obstinado e rebelde que não obedece ao seu pai nem à sua mãe e não os escuta quando o disciplinam, o pai e a mãe o levarão aos líderes da sua comunidade, à porta da cidade, e dirão aos Líderes: 'Este nosso filho é obstinado e rebelde. Não nos obedece! É devasso e vive bêbado'. Então todos os homens da cidade o apedrejarão até a morte. Eliminem o mal do meio de vocês. Todo o Israel saberá disso e temerá.
136 — DEUTERONÔMIO 21.18-21
Satiricon Quando Trimalchio entrou, tocando levemente a sua fronte e lavando as mãos com perfume, esse era o tipo de conversação que se espalhava rapidamente. Houve uma pequeníssima pausa, e depois ele comentou-. 'Com licença, prezados cidadãos, já fazia vários dias que minhas entranhas não respondiam ao meu apelo. Os médicos estavam confusos. Mas, algumas cascas de romã e resina em vinagre têm me feito bem. Espero que, agora, retornem ao seu funcionamento normal. Por outro lado, meu estômago ronca como um touro. Portanto, se qualquer um de vocês deseja se retirar, não há do que se envergonhar. Nenhum de nós nasceu firme. Em minha opinião, não há nada que nos atormente mais do que se conter. Essa é uma das coisas que nem mesmo o Deus Altíssimo pode contestar. Sim, você pode rir, Fortunata, mas você geralmente me mantém acordado a noite inteira com esse tipo de coisas. 'Em todo caso, não tenho objeções contra as pessoas fazerem o que precisa ser feito mesmo que isso seja na hora do jantar - os médicos proíbem que se contenham. Mesmo que seja um serviço mais demorado, temos tudo logo ali do lado de fora — água, vasos e todos os demais apetrechos para nosso conforto. Acreditem-me, se os gases chegarem ao seu cérebro, eles também começarão a inundar todo seu corpo. Conheço muitos que morreram por causa disto, pois não quiseram ser honestos consigo mesmos.' Nós lhe agradecemos por ele ter sido tão generoso e atencioso e, prontamente, enterramos em nossos copos o divertimento que aquelas palavras nos trouxeram. Até agora, não havíamos nos conscientizado que só estávamos, por assim dizer, na metade da subida da ladeira, só começando. A orquestra tocou, limparam as mesas e, depois, introduziram três porcos brancos à sala de jantar, todos adornados com focinheiras e sinos. O mestre de cerimônias anunciou que o primeiro porco tinha dois anos, o segundo, três, e o terceiro, seis. Tinha a impressão de que alguns acrobatas estavam chegando e que os porcos fariam alguns truques, como o faziam nas ruas. Contudo, Trimalchio dissipou essa impressão com esta pergunta: 'Qual destes vocês preferem para a nossa próxima porção? Qualquer matuto sabe preparar uma galinha de capoeira ou um cozido ou outras ninharias como essas, porém os meus cozinheiros costumam preparar bezerros inteiros. Ele, imediatamente, chamou o chefe de cozinha e, sem esperar pela nossa escolha, mandou que matassem o porco mais velho. Extraído de Satyricon [Satiricon], escrito por Petrônio, traduzido para o inglês por J. P. Sullivan (Penguin Classics, 1965. Quarta edição revisada 1986) Copyright © 1965. 1986 por J. P. Sullivan. Reproduzido com permissão da Penguin Books USA Ltd.
A importância de ser sôfrego Em Downey, na Califórnia, um homem, com cerca de vinte anos de idade, passou, no mínimo, sete vezes pela fila das costelas nobres em Marmacs, um restaurante que fornece uma quantidade ilimitada de rosbife por somente cerca de R$ 8,65. Se a noite era de perda total para Marmacs, também o era para esse consumidor, pois ele terminou sendo internado em um hospital para fazer uma lavagem estomacal. Contudo, menos de uma semana mais tarde, ele estava de volta na fila de bifes do mesmo restaurante. O episódio ocorrido em Downey é somente um dos casos similares de glutonaria que ocorrem diariamente em todos os Estados Unidos em um número sempre crescente de restaurantes de rodízio. Além dos clientes habituais, como uma senhora idosa delicada e miúda, que rotineiramente devora vinte pedaços de frango a passarinho (por somente R$3,60) em cada visita que fazia ao Shakeys Pizza Parlor, em Los Angeles, os glutões têm em comum somente o seu apetite, pois, de relance, são dificilmente identificados. Para o gerente Edward White, do Manhattan's Stockholm Restaurant (com aperitivos ilimitados por R$17,00), essa afirmativa o faz estremecer ao relembrar uma senhora alta, muito bem vestida que se serviu com 85 pratos diferentes de seu buffet. Com uma
137 técnica requintada, porém sem qualquer discriminação, pegava, com o garfo, grossas fatias de rosbife colocando-as sobre uma pilha de camarões, acrescentando a estes uma grande quantidade de bolinhos de carne sueca e arenques salgados, despejando, depois disso, mais ou menos um quarto do tempero russo sobre a mistura. White comenta, "Parecia mais um vulcão em erupção, e ela repetiu isso três ou quatro vezes". Em_sua visita seguinte, alguns fregueses, se sentindo mal com o vislumbre daquela orgia, começaram a reclamar, e White, polidamente, disse à mulher que não era mais bem vinda ao restaurante. Um ajuntamento de estudantes do segundo grau era consideravelmente mais fácil de ser detectado, quando desceram ao restaurante de Howard Johnson em Spring Valley, N.Y. Chegaram ali na noite do frango (quantidade ilimitada por R$4,00) e devoraram 360 pedaços de frango (mais ou menos quarenta quilos) junto com saladas e pãezinhos, antes de desaparecer noite adentro. Outro glutão fácil de ser reconhecido era o "homem gigantesco" que gingava. enquanto adentrava uma filial de Sir Georges Smorgasbord House (casa de aperitivos), no Vale de San Fernando. Ele começou com 900 gr. de salada, depois dessa entradinha destroçou um frango inteiro, engoliu dois pratos de rosbife e lavou tudo com leite. A seguir, limpou seu prato com muito esmero, usando para isso meia fatia de pão. Pagou com um cheque de R$6,00 e saiu (inexplicavelmente, desistiu da sobremesa). Jack LaFever, um vice-presidente de Sir George, embora negue que o cliente enorme seja o responsável, informa que a maioria dos restaurantes da cadeia parou de anunciar seus rodízios. Ele afirma: "A política permanece a mesma, mas não fazemos mais as propagandas". O desafio supremo para os glutões foi proposto pela refeição Fiesta, de R$24,50, oferecido pelo Clube El Bianco, no lado sudoeste de Chicago. O festival, de três a quatro horas de glutonaria, começa com aperitivos (uma salada de vagem, salame e pepperoní) e um tabuleiro farto como entrada, continuando com sopa, saladas, pimentões recheados, costelas, berinjela à parmegiana, carne de vitela scaloppini, frango cacciatore e muita massa. A sobremesa inclui doces, frutas e biscoitos acompanhados de um carrinho com nozes. Se por acaso alguém reclama de que ainda está com fome, o gerente Peter Bianco Jr. tem uma arma secreta que poucos poderiam digerir: um sanduíche submarino enorme coberto com o troféu de "Campeão". Bianco declara: "Ninguém ainda conseguiu comer um inteiro. Se alguém conseguiu, não viveu para contar a história". A maioria dos donos de restaurante sofre silenciosamente debaixo do assalto dos comilões, mas todos olham com desdém para uma variante em particular, o artista da entrega em casa (delivery). No Stockholm, por exemplo, o gerente White surpreendeu um casal sobriamente vestido escapando, após terminar a refeição, com 1,8 kg de camarão escondido em um saco plástico. Quando White os interceptou, ambos, bastante irritados, reclamaram - e a mulher jogou os camarões no chão aos pés do gerente. Um casal contracultura da Califórnia deixara o gerente da Shakeys Pizza Parlor estupefato com as grandes quantidades de comida que estavam colocando de lado - até que encontrou uma desculpa para abrir a caixa do violão, encontrando, escondidos dentro dela, duzentos pedaços de frango. Ainda assim, o tema dos rodízios (tudo-o-que-você-puder-comer) continua se espalhando e lucros continuam a rolar. Larry Ellman - cuja cadeia de restaurantes Steak and Brew, com 37 unidades, oferece quantidades ilimitadas de salada, bebidas e pão, com um modesto preço de entrada — explica isso desta forma: "A pessoa que comer demais é uma publicidade fantástica para nós, porque ela fala com outras pessoas sobre sua boa compra". Quinze estabelecimentos de Steak and Brew estão prestes a ser construídos, e a sua expansão futura parece ser limitada somente à produtividade da agricultura mundial. Robert Gladstone, gerente de um dos Steak and Brews gabase: "Nunca ficamos sem comida. Deixamos que comam o quanto quiserem". Extraído da revista Time, "Modem Living" ["Vida moderna"], 23 de outubro de 1972. Copyright © 1972 Time Inc. Reproduzido com permissão.
Perguntas para reflexão e discussão
1. Em Satiricon, o que Trimalchio quer dizer com "se retirar", "se conter"? Qual o apelo franco da glutonaria - mesmo que este seja bastante desagradável para nós? 2. Você já se sentiu empanturrado a ponto de se sentir doente? Em sua experiência, o que geralmente motiva o exagero no comer?
138 3. Quais as similaridades e quais os contrastes entre a descrição de Petrônio, da glutonaria romana, e a voracidade por alimentos encontrada nos rodízios estado-unidenses dois mil anos depois? 4. Como você é afetado ao ler a descrição das várias "cruzadas alimentares" dos glutões descritos no artigo da revista Time? Por que é mais difícil sentir a mesma repugnância em relação aos "respeitáveis" pecados do espírito (orgulho, inveja, raiva, preguiça e avareza)? 5. Se a quantidade de alimento oferecida em uma festa ou um jantar era considerada um sinal de riqueza e de posição social, nos dias de hoje, que dimensão da comida funcionaria da mesma forma?
C.S. LEWIS C. S. Lewis já foi apresentado anteriormente na primeira parte sobre o orgulho. A passagem seguinte é de seu livro famoso The Screwtape Letters [Cartas do diabo ao seu aprendiz]. Esse livro trata sobre a tentação a correspondência entre Screwtape, um diabo sênior, a seu sobrinho inexperiente, Wormwood, um aprendiz.
Cartas do diabo ao seu aprendiz Meu caro Wormwood, A maneira desdenhosa com a qual falaste da gula como meio de conquistar almas em tua última carta apenas mostra tua ignorância. Uma das grandes conquistas dos últimos cem anos foi amortecer a consciência humana sobre este assunto, de maneira que hoje tu dificilmente ouvirás um sermão ou uma consciência perturbada por causa disto em toda a extensão da Europa. Isto foi alcançado em larga medida pela concentração de nossos esforços na gula da Delicadeza, e não na gula do Excesso. A genitora de teu paciente, como vejo no dossiê, e que tu poderias ter aprendido de Glubose, é um bom exemplo. Ela ficaria estupefata — um dia, eu espero, ficará — ao saber que toda a sua vida está escravizada a este tipo de sensualidade, que está oculto dela pelo fato de que as quantidades envolvidas são pequenas. Mas qual é a importância da quantidade, desde que possamos usar o estômago e o paladar humanos para produzir lamúrias, impaciência, inclemência e egoísmo? Glubose está com esta velha senhora nas mãos. Ela é um terror para anfitriões e empregadas. Está sempre recusando o que lhe é oferecido com um suspiro breve e pudico, e com um sorriso: "Oh, por favor, tudo que desejo é uma xícara de chá, fraco, mas não muito, e um pedacico de nada de uma torradinha crocante". Tu percebes? Porque o que ela quer é menor e mais barato do que o que lhe é oferecido, nunca reconhece como gula sua determinação em obter o que deseja, por mais importuno que seja para os outros. No mesmo momento em que ela está sendo complacente com seu apetite, crê que está praticando a temperança. Num restaurante lotado, grita diante do prato que um garçom atarefado colocou a sua frente: "Mas isto é muito! Leve-o de volta e traga-me menos da metade disso". Se contestada, dirá que é para não desperdiçar comida; na realidade, age assim porque a tonalidade particular de delicadeza a qual nós a escravizamos fica ofendida pela visão de uma quantidade maior de alimento que ela deseja naquele momento. O verdadeiro valor do trabalho tranqüilo e discreto que Glubose tem feito por anos nesta velha senhora pode ser medido pela maneira com a qual seu estômago agora domina toda a sua vida. A mulher está no estado de espírito que poderíamos chamar "Tudo-o-que-quero". Tudo o que ela quer é uma xícara de chá apropriadamente feita, ou um ovo apropriadamente cozido, ou um pão apropriadamente torrado. Mas ela nunca encontra uma empregada ou uma amiga que possa fazer estas coisas simples "apropriadamente" — porque o seu "apropriadamente" esconde uma exigência insaciável pelos prazeres exatos e quase impossíveis do paladar, que ela imagina que lembra do passado: um passado descrito como "os dias em que se podia arranjar bons empregados", mas conhecidos por nós como os tempos em que seus sentidos eram mais facilmente agradados e quando ela tinha prazeres de outros tipos, que a faziam menos dependente dos prazeres da mesa. Enquanto isso, os desapontamentos diários produzem surtos diários de mau humor: as cozinheiras pedem as contas e as amizades esfriam. Se o Inimigo introduz em sua mente uma débil suspeita de que ela está demasiadamente interessada em comida, Glubose contrabalança
139 sugerindo que ela não se importa com o que come, mas que "aprecia ter coisas boas para seu garoto". Na verdade, a gula, é claro, tem sido uma das principais fontes de seu desconforto doméstico ao longo dos anos. Ora, teu paciente é filho desta senhora. Enquanto trabalhas duro em outras frentes, não deves negligenciar uma sutil infiltração na área da gula. Sendo do sexo masculino, ele provavelmente não será pego pela camuflagem do "Tudo-o-que-quero". Os homens viram glutões com a ajuda de sua vaidade. Gostariam de se imaginar como grandes conhecedores de comida, como os únicos que conhecem aquele restaurante em que as carnes são "apropriadamente" feitas. O que começa como vaidade pode então ser gradualmente transformado num hábito. Mas, seja como for que abordes a questão, o mais importante é levá-lo a um estado no qual a negação de qualquer indulgência — seja por causa de champanhe ou chá, sole colbert ou cigarros — o coloca fora de si, e então sua caridade, justiça e obediência ficam todas à tua mercê. O mero excesso na alimentação é muito menos valioso do que o apego às guloseimas. Seu principal uso é como uma espécie de preparação de artilharia para os ataques à castidade. Acerca disso, como em todo outro campo, mantenha teu homem em uma condição de falsa espiritualidade. Nunca o deixe perceber o aspecto médico. Mantenha o paciente se perguntando se foi o orgulho ou a falta de fé que o colocaram em tuas mãos, quando uma simples investigação acerca do que comeu ou bebeu durante as últimas .24 horas lhe mostraria de onde vem a tua munição; e que uma pequena abstinência lhe gabaritaria a pôr em perigo tuas linhas de comunicação. Se ele deve pensar no lado médico da castidade, alimente-o com a grande mentira que levamos os humanos ingleses a acreditar, isto é, que os exercícios físicos em excesso e a conseqüente fadiga são especialmente favoráveis a esta virtude. Podemos nos perguntar como podem acreditar nisso, em face da notória concupiscência de marinheiros e soldados. Mas nós levamos os diretores de escola elementar a propagar a estória — homens que estavam realmente interessados em castidade como uma desculpa para as atividades esportivas e que, portanto, recomendaram os jogos como uma ajuda à castidade. Mas este assunto é muito amplo para ser abordado no rabo de uma carta. Teu afetuoso tio, Screwtape. De C.S.Lewis, The Screwtape Letters Copyright © 1942 por C.S.Lewis Pte.Ltd. extratos reproduzidos com permissão. Extraído de Cartas do diabo ao seu aprendiz, de C. S. Lewis, traduzido para o português por Mateus Sampaio Soares de Azevedo, Editora Vozes Ltda., 1996.
Perguntas para reflexão e discussão
1. Qual é a diferença entre a glutonaria do excesso e a glutonaria das delicadezas? Por que a glutonaria das delicadezas é tão difícil de se reconhecer? 2. Que características negativas a glutonaria das delicadezas produz em uma pessoa? Qual é a base egoísta oculta para isso? Ironicamente, o que esse tipo de gula se autodenomina ser? 3. O que Lewis entende pelo estado da mente que é expresso pela frase "Tudo-o-que-quero", descrita por Screwtape? Onde entra a vaidade na glutonaria das delicadezas? Que propósito poderá eventualmente servir a Wormwood? 4. Onde você já presenciou a "negação de qualquer indulgência" irritar alguém? Como você se sente quando não pode obter algum tipo de comida, bebida ou outro tipo de indulgência que você está acostumado a ter ou tem sentido "aquela vontade" de ter? Como você pode enfrentar essa tendência à luz desse texto de Lewis? 5. Como você poderia descrever a sociedade ocidental moderna com relação à glutonaria do excesso? E com relação à glutonaria das delicadezas? Que fatores contribuíram para que se tornasse "moda"?
HENRY FAIRLIE Henry Fairlie já foi apresentado antes na segunda parte sobre a inveja. Essa leitura, como é típico de Fairlie, é uma caracterização brilhante da glutonaria nos dias atuais.
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A glutonaria de nossa era Um convite para jantar tem se tornado, em muitos casos, uma aventura. O que era uma ocasião sociável tornou-se uma forma de solidão. A anfitriã ou anfitrião — pois quando para ele cozinhar é uma arte, os homens são os piores ofensores — praticamente não ficará com seus convidados, mas na cozinha. E isso não é tudo. Os convidados, em troca, quase não conseguem ficar uns com os outros. Cada prato trazido à mesa deve ser provado, discutido, cada ingrediente mencionado, o método de preparação recontado em detalhe, elogiado e louvado: literalmente ad nauseam. Esse efeito não deveria ser produto de uma boa alimentação, exceto em algumas culturas distantes. Todas as outras conversações são meros intervalos enquanto o drama verdadeiro se desvela a cada prato. Essa solidão não é menor que aquela do glutão diante de seu cocho. Todo o companheirismo é destruído. Os convidados bem que poderiam ter ficado em casa lendo A arte da cozinha francesa, ou assistido, na televisão, a Ana Maria Braga batendo um suflê. Pelo menos, não precisariam aplaudi-la... Podemos concordar que nossa obsessão pela comida é uma das expressões de idolatria mais difundidas em nossa era, mas, geralmente, pensamos na glutonaria como algo que nos empanturra e da qual, hoje, poucos de nós parecem ser culpados. Por um lado, temos os que seguem uma dieta e temos os contadores de calorias; por outro lado, temos os viciados em alimentos saudáveis. Ninguém parece ser capaz de se levantar pela manhã e saudar o mundo sem primeiro pisar na balança. Esses hábitos parecem refletir urna autonegação abstêmia, mas há glutonaria em todos eles. (Na teologia, a rneticulosidade no comer é considerado como falha tanto quanto o comeram excesso.) Cada uma deles mostra um interesse desordenado pela comida, mesmo que esta pareça ser a falta de interesse. Eles fazem da comida seu próprio amuleto, mas este não é menor que o do glutão, embora esse último estilo nos seja mais familiar. Eles são obcecados, da mesma forma, pela comida, mesmo que sua atenção esteja fixada somente na cenoura crua e na ameixa; e as suas geladeiras e despensas falem, não meramente do tempo, mas da energia e da preocupação que dão às funções mais naturais. Vale a pena observar os obsessivos por dietas. Vão constantemente à geladeira, possivelmente mais que qualquer outra pessoa, mesmo quando ainda não é tempo para a sua porção, calculando o que tem, para confirmar se não há nenhum item faltando daquilo que se tornou tão precioso para eles. Contemplam as porções, as afagam e até mesmo as reorganizam, cada um em seu próprio recipiente, todas bem conhecidas. De hora em hora, voltam para fazer seu inventário. Quando in extremis, contam as folhas do espinafre. Mas, por fim, o alarme dispara. É hora da refeição. Aí, salivando como cachorros de Pavlov, apressam-se para sentar-se à mesa da cozinha com um talo de aipo, um rabanete, uma colher cheia de queijo cottage e um damasco desidratado para a sobremesa. Observe-os enquanto comem. Devoram suas iguarias do mesmo modo que o glutão convencional engole sua canja de galinha. Seus olhos também se encontram fixos em seus pratos. Eles ocupam o resto de seus dias lendo e pensando sobre comida. Deve ter algum outro regime que deveriam estar seguindo, mais uma impureza que foi descoberta na chicória. Comendo ou não, as mentes deles estão fixas na alimentação e o que esta fará para o corpo. (Sua obsessão com os alimentos destrói a mente deles, mas isso não lhes incomoda.) Alguém pode perguntar: o que dizer sobre os seis gomos de uma laranja e o arranjo de folhas do dente-de-leão, mas não se pode subestimar a criatividade de um interesse cativante. Um discurso completo, cujo início foi pouco promissor, pode se desenvolver sobre os perigos e os benefícios relativos à cianocobalamina, tiamina, ácido pantotênico, ribofla-vina, glicose, dextrose, dextroglicose, sacarose, galactose, melibiose, hemoglobina, lecitina, citoglobina e (pois este não pode ser esquecido) a fosfoaminolipide. Não há tempo nem necessidade para falar sobre qualquer outro assunto. O interesse é a gula e, como em todas essas formas de glutonaria, o fim dela é a solidão. Pois nenhuma das atividades necessita de um companheiro. O motivo que impulsiona aquele que faz a dieta é, novamente, um amor-próprio desordenado. Isto é, da mesma forma, verdade para os viciados em alimentos saudáveis, quando falam do benefício do sassafrás ou louvam com êxtase o sabor da semente de girassol. Eles também não precisam parecer glutoes no sentido comum da palavra, mas o interesse pela comida é, novamente, uma forma de glutonaria. Ela é desproporcional, não natural. Existe, em relação ao hábito
141 alimentício, uma grande quantidade de meticulosidade egocêntrica. Algo criado é engrandecido e posto acima de seu valor verdadeiro, e nisso há algum tipo de expressão em si mesmo. Um dos prazeres da comida, admitido até mesmo pela teologia, é que esta oferece ocasiões para interação social. Mas é precisamente isso que é recusado pelos que fazem dieta e os viciados em alimentos saudáveis. Comer é a única coisa que os une para interesse e conversação. Dando aos alimentos um valor falso, eles também lhes furtam seu valor real. E, em contraste a estes e ao tipo de glutão mais conhecido, o gourmet pensa e fala muito pouco sobre sua comida, exceto no momento de sua preparação ou apreciação. A mesa do gourmet alguém repara na comida, expressa uma breve apreciação de seu sabor e expande sobre outras coisas... Labia mea Domine... é uma oração feita pelos glutoes no purgatório: "Oh Senhor, abra os meus lábios e a minha boca proclamará o seu louvor". Essa oração é apropriada, pois os faz lembrar de que a boca foi feita para outras coisas além de comer e beber. Quando deixamos que a glutonaria cresça em nós, esquecemo-nos dessas outras coisas. Dante faz um salto notável de nossa glutonaria diária para a maçã que Adão e Eva comeram... A glutonaria em nossa própria era — incluindo os drogaditos com suas crises de excitação e de depressão e os que fazem dietas com um interesse desordenado pelo que comem - é causada possivelmente, em grande parte, pelo tédio de nossas sociedades. Quando há tanto a fazer, quando tanta coisa é exposta diante de nós, para nosso deleite, certamente não deveríamos ficar entediados. Mesmo assim, nada disso nos satisfaz, nada disso possui propósito ou profunda gratificação. A glutonaria é um pecado repugnante, de acordo com a teologia, se esta nos induzir a encontrar todo o nosso contentamento no gratificar de nosso apetite. Mas, hoje, é praticamente somente isso que nossa sociedade nos oferece, a única atividade estrênua à qual nos estimulamos. Somos, dia após dia, deixados com um vazio em nosso âmago, um sentimento de afogamento em nosso espírito e, portanto, recorremos ao plano do glutão em nossa vida particular, o qual é muito bem conhecido pelo psiquiatra do paciente que come demais para compensar uma carência emocional. Enchemos e entulhamos nosso vazio, nem que isso só seja feito por meio do mastigar com entusiasmo uma cenoura crua. Estamos nos transformando em uma geração de viciados. Se as nossas sociedades estão fundamentadas na avareza, o estado a que eles nos reduzem é a glutonaria. Com o pecado já latente em nós, não nos moveremos a fim de resistir. De Henry Fairlie, The Seven Deadly Sins Today [Os sete pecados capitais hoje]. Copyright © 1978 por Henry Fairlie. Reproduzido com permissão do atual detentor dos direitos de Henry Fairlie.
Perguntas para reflexão e discussão
1. Henry Fairlie vê os indivíduos que fazem dietas hoje em dia e os que se preocupam exageradamente, e de forma meticulosa, com a saúde, examinando os alimento que ingerem, como pessoas que sofrem de uma forma de glutonaria. De que maneira ele os vê? Você concorda? Se sim, o que faz com que essas atividades se tornem glutonaria? 2. Quais os fatores que tornam a glutonaria um tipo de solidão? Que exemplos Fairlie dá dessa solidão, tanto em uma refeição social quanto na dieta? 3. Como a preocupação com os alimentos afeta a atividade da mente? 4. Que exemplos você encontrou em seus círculos, ou na mídia e no mundo do entretenimento em que o alimento é "engrandecido e posto acima de seu valor verdadeiro"? Em que ele se transforma em algum tipo de "expressão de si mesmo"? 5. De acordo com Fairlie, qual é a conexão entre a glutonaria e a preguiça? Em sua opinião, por que as pessoas vêem a comida como uma resposta para o vazio existencial?
FREDERICK BUECHNER Frederick Buechner é um ministro presbiteriano, autor e ex-professor escolar na Phillips Exeter Academy. Seu primeiro romance, A Long Days Dying [A morte de um longo dia], foi publicado em 1950 e teve uma calorosa receptividade tanto dos críticos como dos leitores. Godric: A Novel [Goderico: um romance] — sua história do santo medieval - foi nomeado para o Prêmio Nobel de
142 Literatura em 1981. Ele já produziu mais ou menos trinta obras, tanto de ficção como reais, incluindo romances, ensaios, sermões e memorandos. O escrito de Buechner é famoso por sua eloqüência poética, sua profundidade de imaginação e sua ênfase no ordinário, como uma janela para o divino. Na tradição das Confissões de Agostinho, ele encoraja seus leitores a ser "teólogos de autobiografias", vendo nos detalhes de suas vidas diárias como ele tenta fazer em sua própria vida - um vislumbre do amor de Deus em meio a um mundo muitas vezes ambíguo e tenebroso. A morte de seu pai, que se suicidou, quando ele só tinha dez anos de idade, é uma pedra de toque recorrente em seus escritos e em sua jornada pessoal com Deus que ele traça no trio autobiográfico: The Sacred Journey [A jornada Sagrada] (1982), Now and Then [De vez em quando\ (1983) e Telling Secrets [Contando Segredos] (1991). Na passagem a seguir, do livro Telling Secrets [Contando Segredos], Buechner descreve seu doloroso confronto com a anorexia de sua filha. Ele não conta a história dela: "Esta só ela pode contar", mas a sua própria história, uma história de obsessão e de medo que por fim o levou a uma liberdade pessoal e a um sentimento palpável da presença de Deus, "segurando sua respiração, amando-a, amando a todos nós". (Conforme mencionado anteriormente, deve-se enfatizar que a anorexia não tem conexão direta com a gula da delicadeza; mas a cultura moderna, obcecada com o peso e o visual, é um triste fator na epidemia de anorexia). HÁ MAIS NA VIDA QUE O QUE TEMOS PARA O JANTAR Era como uma competição para ver quem poderia comer a menor quantia possível. Na janta diriam: 'Hoje eu só comi uma maçã', ou então: 'Não comi nada'. Era surreal. — PRESIDENTE DA SOCIEDADE DE ESTUDANTES FEMININOS DESCREVENDO O JANTAR EM CASA Posso dizer a uma menina que o que vale é o que está acontecendo em sua cabeça e em seu coração. Mas, quando ela liga a televisão, vê o que realmente importa: a aparência. — TONY MANN, SOCIÓLOGO Finalmente me conscientizei que não queria continuar vivendo assim. Há mais na vida que o que temos para o jantar. — LAURA MISLEVY, SOFRIA DE ANOREXIA Na minha mente, quem sofre de anorexia come uma folha de alface por dia e é magro feito um palito. Eu não era assim. — SARAH SUNNICUTT, COMENTANDO SOBRE SUA ANOREXIA QUANDO TINHA 1 ,55M DE ALTURA E 41 KG Eu temia a gordura da mesma maneira em que as outras pessoas temiam leões e armas. — LISA ARNDT, SOFREDORA DE ANOREXIA
Anões no estábulo Em uma manhã, em novembro do ano de 1936, quando eu tinha 10 anos de idade, meu pai se levantou cedo, colocou uma calça cinza e um suéter marrom, abriu a porta do nosso quarto, onde estávamos jogando, e olhou para meu irmão e para mim por um breve período de tempo. Depois disso, desceu para a garagem onde ligou o motor do carro da família, um Chevrolet, e sentou-se na esteira à espera de que o escapamento o matasse. Só houve uma cerimônia memorial, realizada pela sua classe em Princeton, na primavera seguinte. Mas, à época, já nos havíamos mudado para uma outra parte do mundo. Não houve funeral, porque não tínhamos nenhum tipo de ligação com nenhuma igreja, tanto por parte de minha mãe como por parte de meu pai, e, portanto, os funerais simplesmente não faziam parte de nossa tradição. Ele foi cremado, suas cinzas enterradas em um cemitério em Brooklyn, e não tenho a mínima idéia se havia alguém presente a essa cerimônia. Sei somente que minha mãe, meu irmão e eu não estávamos presentes. Não houve funeral que marcasse sua morte e pusesse um ponto final no fim da sentença, que fora sua vida e, que eu me lembre, após a sua morte, minha mãe, meu irmão e eu raramente conversávamos sobre ele, nem entre nós nem com pessoas de fora. Não conversávamos sobre ele porque a minha mãe ficava muito triste e, também, porque já havia tristeza o suficiente ao nosso redor; meu irmão e eu evitávamos o assunto ao falar com ela, da mesma forma que ela, por razões próprias, também evitava falar conosco sobre o assunto. De vez em quando, ela tocava no assunto, mas, somente muito indiretamente. Lembro-me de ela dizer algo como: "Vocês agora precisam ser rapazes", e: "Agora as coisas vão ficar diferentes para todos nós", e para mim, "Agora você é o homem da casa". Esse pequeno substantivo, de apenas cinco letras, sobrecarregava-me de mais
143 pesar, e de mais raiva, e de mais culpa e, sabe Deus, de muito mais que eu poderia possivelmente suportar... Supõe-se que a lei "inclusa", para as famílias que, por uma razão ou outra, estejam em baixo astral, é: não fale, não confie e não sinta, e, certamente, essa era nossa lei. Nunca conversávamos sobre o ocorrido. Não confiávamos ao mundo nosso segredo e quase não o confiávamos um ao outro. E, no que diz respeito aos meus dez anos, o único sentimento do qual me recordo, daquele tempo distante, era o alívio abençoado de sair da escuridão e da tristeza imensurável da vida e da morte de meu pai para adentrar a fragrância, o verdor e a luz... Em meados dos anos setenta, já pai de três adolescentes, e marido há uns vinte anos, diria que a minha audição era muito boa e que podia ouvir não somente o que minha esposa e meus filhos estavam dizendo, mas também muitas coisas que não diziam. Eu teria dito que via perfeitamente bem o que estava acontecendo dentro de minha casa e o que estava acontecendo dentro de mim. E se alguém tivesse me perguntado se nossa família era feliz, teria dito que ela era unida e feliz - que tínhamos nossos problemas como qualquer outra família, mas que nos amávamos e nos respeitávamos uns aos outros e nos entendíamos melhor que muitas outras pessoas. E louvo a Deus, de centenas de maneiras, pois creio que estava correto na minha avaliação. Creio que as coisas transcorriam assim. Mas, de certa forma, cheguei a perceber que era tão surdo quanto a minha mãe, com sua bolsinha dourada cheia de aparelhos auditivos que não funcionavam muito bem; e que, mesmo que não fechasse os olhos para conversar com as pessoas da mesma forma que ela o fazia, fechava-os, sem perceber, para a inteira dimensão de vida que minha esposa e eu e nossos filhos levávamos juntos na encosta de uma montanha verdejante, em Vermont, durante aqueles anos. Há dois vitrais coloridos apoiados em uma das janelas do quarto onde estou escrevendo estas páginas. Quarto esse, com possivelmente dois séculos de vida. O quarto está cheio de grandes livros, muitos deles, consideravelmente, mais antigos que aqueles por mim colecionados ao longo dos anos, os quais tento conservar lubrificados e reparados, pois os livros são a minha paixão. Não gosto apenas de escrevê-los e, por vezes, lê-los, mas tê-los e, por vezes, trocá-los de lugar, pois a presença serena deles me trás um sentimento de conforto. Um destes vitrais, que me lembro ter pedido a alguém em um dia de Natal, mostra o leão covarde de O Mágico de Oz, com os seus pés amarrados com uma corda e sua face em lágrimas, enquanto alguns dos Macacos Alados que o prenderam voavam ao redor na obscuridade. O outro vitral é um díptico que alguém me deu, um dia, e o qual sempre me causa uma pontada de embaraço ao observá-lo, pois parece religioso demais. Em um de seus painéis estão escritas as palavras: "Que a benção de Deus coroe esta casa", e no outro: "Afortunado é aquele cujo trabalho é abençoado e cuja família Deus prospera". Nunca reparei nesses vitrais mais de perto, o do leão e o díptico, e eles estão ali, acumulando poeira, já há vários anos, mas quando preparava estas páginas, notei-os, por acaso, e decidi que poderiam servir como um tipo de epígrafe para essa parte da história que estou escrevendo. O Leão Covarde sou eu, naturalmente - chorando, preso e com medo. Choro enquanto escrevo, pois falo sobre as coisas tristes e amedrontadoras que estavam acontecendo em minha casa, há quinze anos atrás, coisas essas que me fizeram sentir-me paralisado. Não era capaz de entendê-las e muito menos fazer algo a respeito delas. E, a despeito de sua religiosidade de autogratificação, creio que o díptico diz a verdade sobre aquele tempo... A outra metade do díptico com a mensagem - "cuja família Deus prospera" — era cheia de ironia. Se foi por causa do Senhor, ou por sorte, ou pelo estado do estoque no mercado, não importa, éramos uma família próspera em muitas outras áreas, não somente na área econômica. Mas, mesmo que a prosperidade nos tenha dado muitas coisas boas, quando nos vimos em apuros, percebemos que poderíamos muito bem ter sido pobres. O que aconteceu? Uma de nossas filhas parou de comer. Primeiramente, não havia o que temer. Era simplesmente algo que qualquer garota, que desejava ficar mais bonita perdendo alguns quilos, era capaz de fazer - nada no café da manhã, uma cenoura ou um refrigerante diet no almoço e uma pequena salada com tempero de baixa caloria no jantar. Mas, quando alguns meses se passaram, isso começou a se tornar amedrontador. Anorexia nervosa é o nome dado à doença da qual ela sofria. E aqui vai a melhor maneira que encontrei para explicar esse mal. Os jovens desejam ser
144 livres e independentes. Mas também desejam que alguém tome conta deles, pois desejam se sentir seguros. A mágica macabra da anorexia é que ela satisfaz esses dois desejos. A ação de rejeitar a comida faz você tomar sua posição contra o mundo que diz o que você deve fazer e quem você deve ser. E você, quando não come, torna seu corpo bem menor, bem mais leve e mais fraco, o qual, conseqüentemente, torna-se novamente o corpo de uma criança ao qual o mundo corre a fim de lhe socorrer. Essa dupla vitória é tão grande que, aparentemente, nem mesmo a autodestruição é um preço alto demais a ser pago. Seja como for, ela, naturalmente, estava cada vez mais magra, a ponto de sua face parecer esquelética e seus braços e pernas não passarem de ossos recobertos de pele, como a vítima de Buchenwald, o Leão Covarde que, ao mesmo tempo, se tornou cada vez mais temeroso e triste e se sentia cada vez mais inútil. Nenhum argumento racional, nenhum aviso médico lúgubre, nenhuma súplica, ou adulação, ou suborno poderia fazer com que essa jovem, que o pai amava tanto, comesse normalmente, de novo; ao contrário, tudo isso só parecia fortalecer sua determinação de não comer, e a vida dele dependia de tantas maneiras da determinação dessa jovem. Ele não era capaz de resolver o problema dela, pois fazia parte do mesmo. Ela continuava sendo a mesma pessoa de antes — criativa, amável, divertida, esplendida como uma estrela —, mas tinha mais medo de aumentar o peso que de perder a vida, pois era isso que aconteceria se continuasse assim. Três anos, essa foi a duração da doença em seu estado mais intenso, com alguns momentos em que parecia que as coisas estavam melhorando, e outros em que era difícil imaginar que se ela poderia ficar ainda pior. Então, finalmente, quando precisou ser hospitalizada, um médico me chamou certa manhã para dizer que, a menos que começássemos a alimentá-la, mesmo contra a vontade dela, ela morreria. Ele não poderia ter sido mais claro. Lágrimas corriam pelas faces do Leão Covarde que estava ao telefone em seu carro. Suas patas estavam amarradas. Os macacos alados flutuavam no ar. Não tentarei contar a história de minha filha, por duas razões. A primeira razão é que ela é a dona da história e é ela que tem o direito de contá-la. A segunda razão é, naturalmente, que eu não conheço a história dela, não a história verdadeira, a história interna, de como ela sentiu essa experiência. Por essas mesmas razões, não tentarei contar a história sob o ponto de vista de minha esposa ou de meus outros dois filhos. Cada um deles estava envolvido nessa história, cada um deles da sua maneira. Só posso contar a minha parte nessa história, o que aconteceu comigo e, até mesmo quanto a minha parte, não posso estar totalmente certo se realmente sei como ela se desenvolveu, pois, de muitas maneiras, ainda está acontecendo. A benção espantosa daquele tempo difícil continua se desenvolvendo na minha vida, da mesma forma que, conforme nos afirmam, o universo ainda está sendo lançado através do espaço sob o impacto da grande explosão cósmica que o trouxe à existência. Penso que, às vezes, a graça explode dessa maneira em nossas vidas mandando-nos a dor, o terror e o assombro, os quais são arremessados no mais profundo de nosso ser, até que, pela graça, se tornem Órion, Cassiopéia e Polaris para nos dar situações que nos levam, por fim, a uma natureza completa. Minha filha anoréxica estava, literalmente, morrendo de fome, e, sem saber, eu também estava. Não vivia mais a minha própria vida, pois estava totalmente envolvido com a dela. Ela, ao se recusar a comer, mostrava-se insana; eu ainda mais louco porque, enquanto, de certa forma, ela sabia o que estava fazendo consigo mesma, eu não sabia o que estava fazendo comigo. Ela havia desistido de comer. Eu, por outro lado, desistira de, praticamente, fazer o possível para me alimentar emocionalmente. Estar em paz é ter paz em seu interior, pelo menos um pouco, apesar do que ocorre no exterior. Nesse sentido, eu não tinha paz de forma alguma. Se ela, em um determinado dia, resolvia comer uma fatia de pão torrado, o "jantar dietético" dela, eu me sentia no sétimo céu. Se, por outro lado, ela decidia deixar de jantar, eu me encontrava no inferno. Escolhi o termo inferno com alguma precaução. Inferno é onde não há luz, somente escuridão. Eu estava tão preso à vida dela, temendo pela vida de minha filha - pois esta se tornara, de certa forma, também a minha vida -, que nenhuma das fontes de iluminação usuais funcionava, e luz era o que eu desejava ardentemente. Eu tinha a companhia de minha esposa. Lia livros. Jogava tênis e passeava na mata. Visitava amigos e ia ao cinema. Mas fiquei tão preso em meu interior que, realmente, não estava presente nessas ocasiões. Perto do final do conto da A Última Batalha, de C. S. Lewis, há uma cena em que um grupo de anões está sentado e bem aconchegado, formando um
145 círculo apertado, pois pensavam estar em um "estábulo fedorento, apertado e escuro como breu", quando, na verdade, se encontravam no meio de um campo muito verde, como Vermont, com o sol brilhando e um céu límpido sobre suas cabeças. O enorme leão dourado, o próprio Aslam, estava bem perto, e todos "já se encontravam ajoelhados em círculo em volta de suas patas dianteiras", conforme Lewis descreve, "com as mãos e o rosto enterrados na juba, enquanto ele abaixava a cabeçorra para afagá-los com a língua. [...] Aslam ergueu a cabeça e sacudiu a juba. No mesmo instante, um maravilhoso banquete apareceu aos pés dos anões [...]. Eles começaram a comer e a beber com a maior sofreguidão, mas notava-se claramente que nem sabiam direito o que estavam degustando. Pensavam estar comendo e bebendo apenas coisas ordinárias, dessas que se encontram em qualquer estrebaria. [...] E levavam aos lábios taças douradas com rico vinho", mas acharam que era "água suja, tirada do cocho de um jumento". João escreve: "O perfeito amor lança fora o medo" (1Jo 4.18) e, do outro lado da moeda, o medo, como o meu, lança fora o amor, até mesmo o amor de Deus. O amor que eu tinha pela minha filha estava perdido na ansiedade que eu tinha em relação a ela. A única forma que eu conhecia de ser pai era tomando conta dela, pois meu pai não fora capaz de tomar conta de mim. Moveria terra e céu, se isso fosse preciso, para torná-la novamente saudável e, naturalmente, era incapaz de fazê-lo. Não tinha a sabedoria nem o poder para curá-la. Nenhum de nós tem em suas mãos o poder de mudar outros seres humanos e, se tivéssemos esse poder para violar a humanidade dos outros, mesmo que fosse para o próprio bem deles, esse seria um poder terrível. Os psiquiatras que consultamos disseram que eu não poderia curá-la. A melhor coisa que eu poderia fazer por ela era deixar de tentar fazer algo. Acredito, de coração, que estavam certos, mas isso não fez com que parasse com minhas loucas tentativas. Tudo o que poderia pensar, fazer ou dizer só fortalecia a resolução dela de ficar livre, entre outras coisas, de mim. Para ela, o deixar de comer era uma maneira simbólica de fazer greve para conseguir aquela liberdade. A única maneira de ela realmente ficar saudável de novo era se escolhesse livremente assim fazer. O melhor que eu poderia fazer como pai era recuar e lhe dar essa liberdade, mesmo sabendo que ela poderia usá-la para escolher a morte, em vez de a vida... Como foi fácil escrever essas palavras, mas como foi quase impossível vivê-las. Para minha filha, a salvação foi que, quando finalmente precisou ser internada em um hospital para mantê-la com vida, isso aconteceu a três mil milhas de onde eu me encontrava. Eu não estava lá para protegê-la, para tomar as decisões por ela, para manipular os eventos para o seu bem, e, como resultado, ela precisou encarar os fatos sozinha. Não havia ninguém para protegê-la desses eventos e de suas conseqüências em toda a sua inexorabilidade. O juiz, por intermédio de médicos, enfermeiras e assistentes sociais, determinou que ela era um perigo para sua própria vida e, portanto, poderia ser legalmente hospitalizada. E, assim, mesmo contra a vontade dela, a sociedade invadiu sua vida. Aqueles homens e mulheres não estavam famintos, nem perturbados ou apaixonados como eu me encontrava. Eles eram realistas, rígidos, conscientes e, dessa forma, mesmo que não expressassem isso nesses termos, eles a amavam em um sentido que creio estar mais perto daquilo que Jesus queria dizer com a palavra amor. Eu não fora capaz de fazer isso. Penso ser, mais ou menos, essa a maneira como Deus ama. O poder que criou o universo, que fiou a asa da libélula e que está além de todos os outros poderes, se abstém, em amor, de nos subjugar. Jamais senti a presença de Deus mais fortemente do que quando minha esposa e eu visitávamos aquele hospital distante, onde estava a nossa filha. Andando pelos corredores, até o quarto em cuja porta estava escrito o nome dela, senti a presença do Senhor me rodeando como o ar — Deus, em seu silêncio, segurando a respiração, amando-a, amando a todos nós, a única forma possível para não nos destruir. Uma noite, fomos a uma catedral episcopal e, na frieza daquelas ogivas e da nave quase vazia, à distância as vozes do coral, no prateado da pedra, o senti novamente - o comedimento e o silêncio apaixonado de Deus. Pouco a pouco, a jovem que eu amava tanto começou a melhorar, emergindo das sombras, por fim, tão forte, tão sadia e tão sábia como qualquer outra que conheço e, pouco a pouco, enquanto observava sua cura, comecei a ver o quanto_ eu mesmo estava necessitado de cura e de ficar bem. Como os anões de Lewis, por muito tempo eu estivera sentado, aconchegado no escuro daquele estábulo que eu mesmo construíra. Só agora começava a suspeitar da presença dos campos verdejantes e do leão dourado em cuja imagem e semelhança são feitos até mesmo os leões mais
146 covardes. Extraído do livro Telling Secrets [Segredos reveladores] de Frederick Buechner. © 1991 por Frederick Buechner. Reproduzido com permissão de HarperCollins Publishers, Inc.
Perguntas para reflexão e discussão
1. Em suas próprias palavras, descreva como a família reagiu com a morte do pai de Frederick Buechner. Como essa experiência o ensinou a tratar com a crise posterior em sua vida? Que "mensagens" de seus pais têm influenciado a maneira com a qual você lida com uma crise? 2. Como Buechner se sentiu quando sua mãe disse: "Agora você é o homem da casa"? Como isso pode ter contribuído com a função que queria exercer durante a luta de sua filha contra a anorexia? 3. Como Buechner descreve sua família em meados dos anos setenta? Quão bem ele acreditava conhecê-los e ouvi-los? De que forma a doença de sua filha o tomou de surpresa? 4. Que imagens são retratadas nos dois vitrais do escritório de Buechner? De que forma ele vê essas imagens como descrições do tempo difícil que ele descreve nessa parte? 5. Qual foi a melhor maneira que Buechner achou para explicar a doença de sua filha, a anorexia nervosa? Você, ou alguém que você conhece, já sofreu alguma vez de alguma disfunção alimentar? Como você descreveria o pedido emocional por detrás da doença? 6. Qual o papel da comida na anorexia? Em outras disfunções alimentares? Por que você pensa ser a comida uma substância particularmente cômoda para ser usada para representar ou encobrir problemas emocionais? Por que você acha que ela prevalece, particularmente, nas universidades? 7. Qual a jornada da reação de Buechner para com a doença de sua filha? Quando e como ele sente a "presença de Deus" em meio a tudo isto? Que lições pessoais ele, como pai, tirou dessa violenta experiência? 8. De que forma você acha que a glutonaria do excesso ou a glutonaria das delicadezas, na cultura ocidental, estimula a difusão de disfunções alimentares, especialmente entre as moças? Neste tipo de cultura em que vivemos que tipo de mulheres são aceitáveis e desejáveis? Que figuras esta cultura rejeita? O que está inerentemente errado neste sistema de valores?
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O CONTRAPONTO DA GLUTONARIA bem-aventurados os perseguidos por causa da justiça
O contraponto tradicional da glutonaria — tanto da glutonaria do excesso quanto da glutonaria das delicadezas — é a coragem em meio ao sofrimento e à perseguição. Mesmo que pareça, basicamente, uma interpretação forçada, a dedicação, a disciplina e a paciência requeridas para enfrentar os sofrimentos com coragem são os contrapontos poderosos para a própria indulgência, bastante enjoativa, da glutonaria. Jesus afirmou nas bem-aventuranças: "Bem-aventurados os perseguidos por causa da justiça, pois deles é o Reino dos céus". Embora a glutonaria seja uma forma de indisciplina e de autoindulgência, a coragem em meio ao sofrimento representa disciplina e contentamento levados ao extremo do auto-sacrifício. O contraponto é pungente em outro aspecto. A glutonaria é uma forma de busca que se consome com o objetivo de achar, mas, mesmo assim, termina por perder. Coragem em meio ao sofrimento e à perseguição é uma forma de ser consumido pela perda, terminando, porém, em ganho. Vale a pena ponderar os contrastes. RECOMPENSAS DURADOURAS Meus irmãos, considerem motivo de grande alegria o fato de passarem por diversas provações, pois vocês sabem que a prova da sua fé produz perseverança. E a perseverança deve ter ação completa, a fim de que vocês sejam maduros e íntegros, sem lhes faltar coisa alguma. — TIAGO 1.2-4 Visto que você guardou a minha palavra de exortação à perseverança, eu também o guardarei da hora da provação que está para vir sobre todo o mundo, para pôr à prova os que habitam na terra. — APOCALIPSE 3.10
TOMÁS À KEMPIS Tomás à Kempis já foi apresentado anteriormente, na parte 1 sobre o orgulho. A passagem que se segue, do livro The Imitation of Christ [A imitação de Cristo], é um exemplo claro do ensinamento cristão tradicional sobre a paciência e a disciplina em meio ao sofrimento.
Sobre o sofrimento paciente nas injúrias e injustiças, e aquele que é verdadeiramente paciente Meu filho, o que diz? Por que reclama? Pare, pare, não reclame mais. Considere minha paixão e a paixão de meus santos e verá que o que sofre por mim é muito pouco. Ainda não sofreu até derramar seu sangue e, certamente, sofreu pouco comparado àqueles que, no passado, sofreram tão grandes males por mim e aqueles que foram tentados tão fortemente, perturbados tão dolorosamente e de tantas maneiras postos à prova. É para o seu benefício relembrar, portanto, as coisas grandes e sérias que os outros sofreram por mim para que você pudesse carregar mais levemente sua pequenina aflição. E se ela não parecer pequena aos seus olhos, tome cuidado para que a causa dela não seja a sua impaciência. Contudo, seja ela pequena seja grande, procure sempre suportá-la com paciência, se assim puder, sem relutar e sem reclamar. Quanto melhor se dispor a tolerá-la, mais sabiamente estará agindo e mais mérito terá, e, por causa de sua boa disposição e da sua boa vontade, seu fardo será mais leve. Nunca dirá: "Não sou capaz de suportar isto de tal pessoa, nem esperem de mim que a suporte. Ela
148 me fez grande mal e acusou-me de coisas que nunca passaram pela minha mente; mas, a acusação de um outro homem, eu suportarei". Tal declaração é inviável, pois ela não considera a virtude da paciência ou por quem a paciência será coroada; antes, ela considera as pessoas e as ofensas que elas cometeram. E assim, não é verdadeiramente paciente aquele que somente suporta o que lhe apraz ou o que procede de alguém que lhe agrada. Um homem verdadeiramente paciente não considera quem lhe causa o sofrimento, se este é seu superior, ou seu igual, ou alguém inferior a ele, ou se é um homem bom e santo, ou um homem mau e indigno. Contudo, seja qual for a hora que uma adversidade ou ofensa lhe sobrevenha e o que quer que seja ela e de quem este sofrimento procede ou quantas vezes ocorre, esse homem verdadeiramente paciente recebe tudo fielmente da mão de Deus e considera todas essas coisas como uma rica dádiva e um grande benefício, pois sabe que não há nada que o homem suporte da parte de Deus que não inclua grande recompensa. Portanto, esteja pronto a batalhar se quiser ter vitória. Sem batalha não pode chegar à coroa da paciência e, se não quiser sofrer, estará recusando ser coroado. Portanto, se deseja ser coroado, resista fortemente e sofra cora paciência, pois, sem o labor, homem algum pode descansar; e, sem batalha, homem algum pode sair vitorioso. Oh, Senhor Jesus, pela graça, faça o possível por mim e o que é impossível para mim por causa de minha natureza. O Senhor sabe muito bem que só conseguirei suportar pouco e que fico abatido muito rapidamente, até mesmo com uma pequena adversidade. Portanto, suplico que, daqui por diante, eu possa amar e desejar problemas e adversidades por amor do seu nome; sofrer e ser perturbado pelo Senhor é coisa boa e proveitosa para a saúde de minha alma. Extraído de The Imitation of Christ [A imitação de Cristo] de Tomás à Kempis. Copyright © 1955 por Doubleday, uma divisão da Random House, Inc. Usado com permissão de Doubleday, um divisão da Random House, Inc. A imitação de Cristo, Shedd Publicações.
Perguntas para reflexão e discussão
1. Mostre o motivo pelo qual Tomás à Kempis aconselha seus leitores a suportar o sofrimento com paciência: "sem relutar e sem reclamar". 2. Qual o problema com a atitude de estar disposto a sofrer somente "o que lhe apraz ou o que procede de alguém que lhe agrada"? 3. Você concorda com a crença do autor de que uma pessoa não é capaz de suportar o sofrimento com tal tipo de paciência por causa da natureza humana? Se a sua resposta for positiva, qual o poder necessário para tal perseverança? 4. Por que a paciência no sofrimento é a antítese da glutonaria? 5. Você, alguma vez, já considerou o sofrimento como algo bom e proveitoso para a saúde de sua alma, conforme sugerido na passagem acima? Como? 6. Em uma cultura de conveniência, o sofrimento está absurdamente fora da moda. Vivendo no mundo moderno, o que você acha sobre o conselho de Tomás à Kempis?
JOÃO DA CRUZ João da Cruz, nascido Juan de Yepes y Alvarez (1542-1591), foi místico, escritor, o co-fundador de um ramo da ordem monástica carmelita. Nascido na Espanha, em uma família pobre, mas de origem nobre, tornou-se monge carmelita em 1563. Estudou teologia na universidade de Salamanca e foi ordenado padre em 1567. Por não estar satisfeito com a frouxidão de seus companheiros carmelitas, iniciou uma reforma com a ajuda de Teresa de Ávila. João da Cruz passou, a maior parte de sua vida, envolvido em disputas amargas entre os diferentes ramos da ordem dos carmelitas. Ele, por se recusar a abrir mão de suas convicções, passou por sofrimentos violentos - entre eles, aprisionamento, desterro e várias doenças - morrendo antes de completar cinqüenta anos. Foi canonizado pela Igreja Católica romana em 1726. Os escritos de João da Cruz combinam a sensibilidade de um poeta com a perspicácia de um teólogo e a profundidade de um místico. Suas obras profundamente místicas, a maioria delas escritas na
149 prisão, falam da purificação da alma através da "noite dos sentidos". A purificação mais elevada é a transformação em união com Deus, descrita nessa passagem como alguém sendo consumido por uma chama viva. Homens e mulheres consomem e são consumidos por muitas coisas, e algumas dessas coisas somente os diminuem e os degradam. Mas o consumo derradeiro - o magnífico contraponto da glutonaria - é um ser humano inflamado com a glória de Deus como que consumido pelo fogo divino.
Na luz divina Para maiores esclarecimentos a respeito desse assunto, precisamos notar que esse conhecimento purgador e amável, ou a luz divina, da qual estávamos falando, tem o mesmo efeito na alma que o fogo tem sobre a lenha. A alma é purgada e preparada para sua união com a luz divina, assim como a madeira é preparada para sua transformação no fogo. O fogo, quando aplicado à madeira, primeiramente retira a umidade, até que esta seja totalmente dissipada, fazendo com que a madeira solte toda a água contida nela. Depois, o fogo, gradualmente, torna a madeira negra, tornando-a escura e feia e, podendo ainda causar a emissão de terríveis odores. O fogo, ao ressecar a madeira, traz à luz e expulsa todas as características escuras e feias que são contrárias a ele. Finalmente, aquecendo e incendiando a madeira por fora, o fogo a transforma nele mesmo e a faz tão bonita quanto ele mesmo. Uma vez transformada, a madeira não possui mais nenhuma atividade ou passividade própria, exceto seu peso e sua massa que é mais densa que o fogo. Pois possui as propriedades e executa as ações do fogo: é seca e enxuga; é quente e aquece; é brilhante e ilumina; e também é luz, mais luminosa que antes. E o fogo que produz todas essas propriedades na madeira. Similarmente, precisamos filosofar sobre o fogo divino e amoroso da contemplação. Antes de transformar a alma, ele a purga de todas as qualidades contrárias. Produz negrume e escuridão e traz à tona toda feiúra da alma; assim a alma parece pior que antes, disforme e abominável. Essa purificação divina desperta toda imundície e vícios dos quais a alma nunca esteve ciente antes; nunca se havia conscientizado de que havia tanto mal em si, pois este estava enraizado muito profundamente. E agora que chegou a hora de expeli-los e destruí-los, esses males são trazidos à luz e vistos com clareza através dessa luz sombria da contemplação divina. Mesmo que a alma não seja pior que antes, nem em si mesma, nem em sua relação com Deus, ela sente, indubitavelmente, que é tão perversa, que não é digna de que Deus a veja, e sim, que a aborreça. Na realidade, ela passa a sentir que Deus, agora, a aborrece de fato. João da Cruz, 1583-1584.
Perguntas para reflexão e discussão
1. Que passos envolvem o processo em que o fogo consume um pedaço de madeira? Qual o paralelo desses passos com a alma consumida pelo divino amor de Deus? 2. Como o autor vê a sua própria alma nas várias etapas da "purificação"? 3. Quais os contrastes entre o consumir os alimentos na glutonaria e o ser consumido pelo amor de Deus, como que pelo fogo? 4. Qual a diferença entre o processo de ser consumido descrito por João da Cruz e a idéia moderna de ser "consumido" por uma paixão, por um esporte, por uma pessoa ou por um hobbyi
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Capítulo 7 Libertinagem (luxúria) versus pureza de coração
A libertinagem, ou licenciosidade, é o sétimo e último dos pecados capitais, e o segundo dos pecados da carne, "quentes", porém "desonrosos". Sua distinção característica encontra-se no fato de que quase todos os homens (nesse caso, a palavra homens é mais acurada que a palavra humanidade) têm alguma noção desse pecado por experiência e sabe o que os outros acham disto. De fato, às vezes a libertinagem é tão enfatizada a ponto de ser tratada como se fosse equivalente a "vício" e "imoralidade". Essa foi a razão pela qual Dorothy Sayers deu ao seu livro o título The Other Six Deadly Sins [Os outros seis pecados capitais]. A libertinagem não é o pecado mais sério. Em relação ao orgulho, a libertinagem ocupa uma posição bastante inferior, além do fato de ser um pecado da carne, e não do espírito - mesmo assim, é desnecessário dizer, os pecados da carne podem corromper o espírito. Mas, certamente, é o pecado mais picante e mais popular. Até mesmo Tomás de Aquino comentou que a libertinagem é "praticamente o maior dos prazeres e cativa a mente mais que qualquer outro pecado". Não é de surpreender que os publicitários modernos aproveitem, abertamente, a libertinagem, e, por vezes, até mesmo de maneira bastante explícita, coisa impensável na geração passada. Portanto, é importante mostrar, sem restrição nem hipocrisia, exatamente por que a libertinagem é um pecado capital. A PALAVRA JAMAIS OUVIDA Por uma ironia abominável, nossa reprovação faltosa daquele pecado [libertinagem] nos torna por demais pudicos a ponto de sermos incapazes de ao menos nomeá-lo. Por isso, temos usado de eufemismos, palavras mais brandas, para nos referir a ele, palavras essas feitas para encobrir a completa extensão da corrupção humana, Um homem pode ser avarento e egoísta; vingativo, cruel, invejoso e injusto; violento e brutal; ganancioso, sem escrúpulos e mentiroso; teimoso e arrogante; estúpido, moroso e indiferente a qualquer instinto nobre - e, mesmo assim, estamos dispostos a dizer que ele não é um homem imoral. — DOROTHY SAYERS É NECESSÁRIO NOS ENTREGARMOS À LIBERTINAGEM? A libertinagem não é pecado, é uma necessidade, pois, tendo-a como guia, podemos imaginar nossos corpos se movendo da maneira para a qual foram destinados. — EXTRAÍDO DE "ACT I: LUST (I THINK I LOVE YOU — WHO ARE YOU ANYWAY?)" ['ATO I: LIBERTINAGEM: (ACHO QUE TE AMO VOCÊ PODE ME DIZER SEU NOME?)],", ANÚNCIO DISTRIBUÍDO PELA NlKE NA REVISTA PEOPLE EM 1993.
A libertinagem é muitas vezes dissecada em termos de seus componentes, como a promiscuidade, a pornografia, o adultério, o incesto, a sedução, a prostituição, o estupro; e ela é ainda descrita como um vício contrário à natureza. Mas, em seu âmago, a libertinagem é a idolatria do sexo, uma expressão imoral e irrefreável do impulso sexual. Ela acontece até mesmo nas relações sexuais lícitas, quando o objeto do desejo não é o parceiro sexual, mas o prazer ou os serviços que o parceiro pode proporcionar. No entendimento bíblico, o sexo é, naturalmente, bom, assim como o alimento. Mas, em certas ocasiões, no passado do cristão, a excelência do sexo foi severamente subestimada, principalmente por causa do dualismo herdado dos gregos que consideravam a mente como boa e o corpo como mau. Desse ponto de vista deturpado, adoramos com nossa mente e pecamos com nosso corpo. (Ou, como colocado pelo comediante Jonathan Winters: "Deus está em minha mente, mas o Diabo está nas minhas calças".) No entanto, do ponto de vista bíblico, o desafio é completamente o oposto: Adoramos a Deus com nosso corpo, como também com nossa mente e nosso coração e pecamos, acima de tudo, com nossa mente, não com nosso corpo.
151 Ao mesmo tempo, o lugar do sexo, na cultura moderna, é grandemente exagerado — não somente por causa das afirmações superaquecidas da revolução sexual, mas pela equação onipresente de sexo e propaganda. "A Majestosa Mentira Moderna" que corre por aí é que a felicidade depende de sermos, sempre, sexualmente atraentes e realizados. Em nossa cultura, obcecada pelo sexo, cultuase o prazer sexual e a beleza física, integrando a identidade, o vestuário, o estilo de vida e a posição social. Todavia, essa sensualidade grosseira nas capas de revistas, nos romances e nas novelas e em muitos filmes e shows televisivos é sempre uma sexualidade ilusória, alimentando, portanto, os outros pecados da raiva (provenientes da frustração) e, muitas vezes, o pecado da inveja. Ao mesmo tempo, a sexualidade libertou-se das antigas amarras da procriação, preparando o terreno para o isolamento e o exagero do impulso sexual. Esse movimento encontra seu ápice nos defensores do misticismo sexual que consideram o relacionamento sexual como o último avanço revelador entre os seres humanos - como se, fazer amor fosse o equivalente ao Monte Sinai ou à ressurreição. Por exemplo, D. H. Lawrence, ao parodiar o Salmo 24 para falar de sexo, usa essa comparação em Lady Chatterlys Lover [O amante de Lady Chatterly]: "Deixe que o Senhor da Glória entre". Há muitas implicações importantes da revolução sexual. Uma é que, quando o padrão dúbio do "homem chauvinista" se foi, a libertinagem deixou de ser um particular masculino. A igualdade sexual significa que a libertinagem é agora boa para todo mundo, sem exceção. Outra coisa é a lembrança de que o casamento não resolve o problema da libertinagem. No casamento a libertinagem é mais sutil que fora dele. A libertinagem, quase um estupro marital, pode estar presente no casamento, quando deixam a vida ficar tão absorvida em outras coisas ou o amor fica tão ausente que o relacionamento sexual acaba por ser uma rotina, e não algo significativo; algo puramente físico e unidimensional, em vez de algo completo. A menção da revolução sexual ainda inclui uma advertência. Dorothy Sayers salienta que as pessoas caem no pecado da libertinagem por duas razões importantes. Uma é por meio da "completa exuberância do espírito animal". A outra, muito mais difícil de ser tratada, é quando "homens e mulheres se entregam à libertinagem tão somente por mero tédio e descontentamento". Na verdade, ela afirma que: "O aspecto deplorável e patológico da pornografia e da promiscuidade do século XX, sugere fortemente que atingimos um dos períodos de depressão espiritual em que as pessoas vão para cama por que não tem nada melhor para fazer". Tradicionalmente, muitos males são atribuídos à libertinagem. Mas a desumanização e a decepção são as duas aflições essenciais da libertinagem. Henry Fairlie observa que todo o sexo moderno foi desumanizado pela "animalização" científica dos modernos manuais de sexo. Mas, acima de tudo, a libertinagem, essencialmente, "usa" e desumaniza a outra pessoa (no momento, esse ainda é um problema do qual as mulheres são as maiores vítimas). Mas, também, os próprios usuários se ludibriam. A sedução impelida pela libertinagem, desprovida de compromisso, termina unicamente no vazio e em um anseio ainda mais profundo. No Sermão do Monte, Jesus enfatiza essa destruição interna da libertinagem. Ele direcionou suas palavras àqueles que se achavam sexualmente justos por não violarem, de maneira estrita, o mandamento, mas que, no entanto, seguiam uma mulher com os olhos. Em contraste, Jesus enfatiza que o mero fato de um indivíduo não cometer adultério com certa mulher não significa que a relação com ela, quanto à sexualidade, é como deveria ser ou que ele é, verdadeiramente, sexualmente puro. Isso não é meramente um assunto da ação do corpo, mas dos pensamentos, do coração e da mente. MORTO AO AMANHECER O amor só tem significado quando se inclui a idéia de continuidade... a libertinagem, no entanto, morre ao amanhecer e, ao anoitecer, quando retoma à casa não encontra nada, pois é extinta com seu passado. O amor deseja se deleitar, de formas diferentes, com a outra pessoa com quem se deleitou na cama; e ainda anseia pelo café na manhã. Contudo, pela manhã, a libertinagem é sempre furtiva. Veste-se mecanicamente da mesma maneira como se despira e se dirige imediatamente à porta para retornar para sua própria solidão. — HENRIE FAIRUE, THE SEVEN DEADLY SINS TODAY [OS SETE PECADOS CAPITAIS HOJE]
A libertinagem alega que o amor sem sexo é impossível e que o sexo sem amor satisfaz. Mas ambas as alegações são falsas. Paradoxalmente, o devasso é mais frustrado que realizado. Ou, como o
152 Talmud apresenta o assunto de maneira bem direta: "Há um pequeno órgão que, quando constantemente alimentado, continua faminto, mas, quando se lhe nega o alimento, fica saciado". Expressado de maneira mais positiva, da perspectiva bíblica, a relação sexual não é apenas reprodutiva, mas também expressiva. É a expressão última da intimidade de um desvelar completo e incondicional, no qual dois seres humanos são capazes de se engajar. Assim, a relação sexual é um ato que, fora do casamento, é enganoso e danoso. O casamento é o único ambiente totalmente voltado ao doar-se a si mesmo. DESVELANDO O AMOR O meu amado pôs a mão por uma abertura da tranca; meu coração começou a palpitar por causa dele. Levantei-me para abrir-lhe a porta; minhas mãos destilavam mirra, meus dedos vertiam mirra, na maçaneta da tranca. Eu abri, mas o meu amado se fora; o meu amado já havia partido. Quase desmaiei de tristeza! Procurei-o, mas não o encontrei. Eu o chamei, mas ele não respondeu. As sentinelas me encontraram enquanto faziam a ronda na cidade. Bateram-me, feriram-me; e tomaram o meu manto, as sentinelas dos muros! Ó mulheres de Jerusalém, eu as faço jurar: se encontrarem o meu amado, que dirão a ele? Digam-lhe que estou doente de amor. [...] Coloque-me como um selo sobre o seu coração; como um selo sobre o seu braço; pois o amor é tão forte quanto a morte, e o ciúme é tão inflexível quanto a sepultura. Suas brasas são fogo ardente, são labaredas do Senhor. Nem muitas águas conseguem apagar o amor; os rios não conseguem levá-lo na correnteza. Se alguém oferecesse todas as riquezas da sua casa para adquirir o amor, seria totalmente desprezado. — CANTARES 5.4-8; 8.6-7
Por essa razão, a libertinagem é uma atividade sexual na qual o propósito último da expressão do amor é violado pelo prazer sexual imediato. Saciar desejos psicológicos ou corpóreos toma o lugar do poder da corte em dar e receber amor. As palavras e os atos superficiais podem declarar o amor, mas mascaram o amor próprio pelo qual são realmente movidos. O GOSTO AMARGO DA LIBERTINAGEM Depois de algum tempo, Amnom, filho de Davi, apaixonou-se por Tamar; ela era muito bonita e era irmã de Absalão, outro filho de Davi. Amnom ficou angustiado ao ponto de adoecer por causa de sua meia-irmã Tamar, pois ela era virgem, e parecia-lhe impossível aproximar-se dela. Amnom tinha um amigo muito astuto chamado Jonadabe, filho de Siméia, irmão de Davi. Ele perguntou a Amnom: 'Filho do rei, por que todo dia você está abatido? Quer me contar o que se passa?"Amnom lhe disse: "Estou apaixonado por Tamar, irmã de meu irmão Absalão'. 'Vá para a cama e finja estar doente', disse Jonadabe. 'Quando seu pai vier visitá-lo, diga-lhe: Permite que minha irmã Tamar venha dar-me de comer. Gostaria que ela preparasse a comida aqui mesmo e me servisse. Assim poderei vê-la'. Amnom aceitou a idéia e deitou-se, fingindo-se doente. Quando o rei foi visitá-lo, Amnom lhe disse: 'Eu gostaria que minha irmã Tamar viesse e preparasse dois bolos aqui mesmo e me servisse'. Davi mandou dizer a Tamar no palácio: 'Vá à casa de seu irmão Amnom e prepare algo para ele comer'. Tamar foi à casa de seu irmão, que estava deitado. Ela amassou a farinha, preparou os bolos na presença dele e os assou. Depois pegou a assadeira e lhe serviu os bolos, mas ele não quis comer. Então Amnom deu ordem para que todos saíssem e, depois que todos saíram, disse a Tamar: 'Traga os bolos e sirva-me aqui no meu quarto'. Tamar levou os bolos que havia preparado ao quarto de seu irmão. Mas quando ela se aproximou para servilo, ele a agarrou e disse: 'Deite-se comigo, minha irmã'. Mas ela lhe disse: 'Não, meu irmão! Não me faça essa violência. Não se faz uma coisa dessas em Israel! Não cometa essa loucura. O que seria de mim? Como eu poderia livrar-me da minha desonra? E o que seria de você? Você cairia em desgraça em Israel. Fale com o rei; ele deixará que eu me case com você'. Mas Amnom não quis ouvi-la e, sendo mais forte que ela, violentou-a. Logo depois Amnom sentiu uma forte aversão por ela, mais forte que a paixão que sentira. E lhe disse: levante-se e saia!'
153 Mas ela lhe disse: 'Não, meu irmão, mandar-me embora seria pior do que o mal que você já me fez'. Ele, porém, não quis ouvila e, chamando seu servo, disse-lhe: 'Ponha esta mulher para fora daqui e tranque a porta'. Então o servo a pôs para fora e trancou a porta. Ela estava vestindo uma túnica longa, pois esse era o tipo de roupa que as filhas virgens do rei usavam desde a puberdade. Tamar pôs cinza na cabeça, rasgou a túnica longa que estava usando e se pôs a caminho, com as mãos sobre a cabeça e chorando em alta voz. — 2SAMUEL 13.1-19
MOLIÈRE Molière, pseudônimo de Jean Baptiste Poquelin (1622-1673), foi comediógrafo do teatro francês. Nascido em Paris e educado pelos Jesuítas, fundou, em 1643, a companhia de teatro, obtendo o apoio de Philippe d'Orleans. Organizou, por fim, um teatro regular para o rei Louis XIV. Todo ano, a partir de 1659, produziu no mínimo uma realização dramática da mais alta qualidade, entre elas temos O Tartufo (1664) e O Misantropo (1666). Morreu em Paris após atuar em sua última peça. A zombaria impiedosa de Molière precisou ser aturada por cortesões, clérigos, médicos e, até mesmo, seus companheiros dramaturgos. Molière, felizmente, era o favorito do rei e protegido por ele. Mas, por muitos anos, muitas de suas peças foram banidas. Por insistência do clero, foi-lhe negado um sepultamento sagrado. Mas permanece incomparável como cômico, pois retrata o caráter humano e desmascara a hipocrisia e o vício. O DESPIR PRESIDENCIAL "O olhar entregou-me Bill Clinton na íntegra... Foi aquele olhar, a maneira como flerta com as mulheres. No momento de apertar minha mão, o sorriso desapareceu, o resto da multidão desapareceu e compartilhamos uma breve permuta sexual, mas intensa. Ele me despiu com seus olhos." — MONICA LEWINSKY, EM MONICA'S STORY [A HISTÓRIA DE MÔNICA], DE ANDREW MORTON, 1999
Don Juan, ou a festa com a estátua SGANARELLE: Oh, céus! Conheço meu Don Juan na ponta dos dedos: seu coração é o maior ladrão do mundo; tem prazer em correr de um cativeiro a outro e detesta descansar em um só lugar. DON JUAN: Agora, conte-me, não acha que estou certo por agir dessa maneira? SGANARELLE: Ah! Senhor. DON JUAN: O que é? Fale. SGANARELLE: O senhor está, indubitavelmente, certo se estiver disposto a isso; sem comentários. Mas se não estivesse inclinado a fazê-lo então, possivelmente, seria outro assunto. DON JUAN: Dou permissão para que fale e me conte o que sente. SGANARELLE: Nesse caso, senhor, dir-lhe-ei francamente, não aprovo a sua conduta e acho algo abominável fazer amor com várias, como o senhor faz. DON JUAN: O quê?! Você gostaria de ver um homem se amarrar e permanecer com o primeiro objeto que o atrai? E renunciar tudo por ela, tornar-se cego para todas as outras? Bela coisa! Orgulhar-se de uma honra vazia por ser fiel para se enterrar para sempre em uma paixão e morrer, em sua juventude, para todas as outras beldades que lhe podem cativar! Não, não: a constância só é talhada para os tolos; toda mulher bonita tem. o direito de enfeitiçar. A vantagem de ser o primeiro a ser amado não pode roubar de outras as pretensões que todas têm por nosso coração. De minha parte, a beleza me deleita sempre que a encontro e prontamente me rendo à doce tirania que ela exercita. Posso estar noivo, mas, o amor que tenho por uma beldade não compele meu coração a agir injustamente para com as outras; tenho olhos para ver o mérito de todas e para pagar a cada uma a homenagem e o tributo que a natureza exige de nós. No entanto, pode ser impossível recusar ao meu coração qualquer criatura encantadora que observo; portanto, logo que uma face encantadora me pede, se eu tivesse dez mil corações, daria todos. Além disso, os primeiros começos têm um charme indescritível, e todo prazer do amor consiste na variedade. E um deleite extraordinário subjugar, por cem manobras, o coração de uma jovem beldade; ver o progresso
154 gradual que fazemos dia após dia; combater, com êxtase, as lágrimas e os suspiros da modesta inocência de um coração que quase não consegue se entregar; transpor, passo a passo, todos os pequenos obstáculos que ela atira em nosso caminho; superar os escrúpulos dos quais se vangloria; e levá-la gentilmente ao lugar onde a queremos. Mas, logo que a dominamos, não há mais nada a dizer nem a ser desejado; todo o charme da paixão chega ao fim e devemos adormecer na tranqüilidade desse amor, a menos que um novo objeto decida acordar nossos desejos e apresentar, ao nosso coração, os encantos fascinantes de uma nova conquista. Em suma, não há nada tão aprazível como triunfar sobre a resistência de uma bela donzela, e, nessa matéria, sou tão ambicioso quanto os conquistadores que voam continuamente de uma vitória a outra e que não suportam colocar limites a seus desejos. Não há nada capaz de reter a impetuosidade de meus desejos. Vejo que tenho um coração capaz de amar o mundo inteiro, e, como Alexandre, desejaria outros mundos apenas para ampliar minhas conquistas amorosas. Extraído de The Plays of Moliere [As peças de Molière], Volume IV, A. R. Walker, trans. (Edinburgh: John Grant, 1826), pp. 149, 151. O MAIOR AMANTE O galanteador é o homem fortemente atraído por mulheres. Flerta com elas, apaixona-se parcialmente, faz com que se apaixonem por ele, mas não quer se comprometer com nenhum relacionamento permanente e, se seu galanteio for bem sucedido, retira-se muitas vezes no último instante - ele as ama, mas ama a si mesmo ainda mais -, pois é cauteloso demais e demasiadamente melindroso para se comprometer. — GEORGE BERNARD SHAW, THE PHÍLANDERER [O SEDUTOR] O melhor amante faz amor com uma mulher centenas de vezes diferentes, não com centenas de mulheres diferentes. — PROVÉRBIO FRANCÊS
Perguntas para reflexão e discussão
1. Em sua opinião, porque Sganarelle descreve os vários romances de Don Juan como correr "de um cativeiro a outro"? 2. Quais são as outras palavras ou frases, no monólogo de Don Juan, que descrevem seus romances em termos de compulsão ou impotência para escolher de uma forma diferente? O que você acha dessa maneira de conceber um comportamento sexualmente promíscuo? 3. Como Don Juan percebe a idéia da fidelidade e da devoção a uma só mulher? Como ele usa os termos de justiça e de injustiça para fazer seu comportamento parecer mais legítimo? 4. Como você se sente quando lê a descrição de Don Juan sobre a sedução gradual de uma jovem no parágrafo que começa com: "Além disso, os primeiros começos"? O que acontece com seus sentimentos amorosos depois da "conquista"? De que maneira essa descrição é contraditória com a maneira pela qual ele retratara seus romances anteriores? 5. Don Juan tem, verdadeiramente, um coração "capaz de amar o mundo inteiro", como ele mesmo sugere? Por quê? Ou por que não? 6. Quais as similaridades entre a filosofia do amor de Don Juan e as atitudes modernas após a revolução sexual? Onde se encontram as diferenças? 7. Quais as falácias da filosofia de Don Juan?
D. H. LAWRENCE David Herbert Lawrence (1885-1930) romancista, poeta, escritor de histórias e ensaísta inglês. Nasceu em Eastwood, Nottinghamshire, filho de mineiro, tornou-se, mais tarde, professor. Mas, após ter sido bem-sucedido em seu primeiro romance, decidiu sustentar-se escrevendo. D. H. Lawrence é conhecido por suas opiniões controversas, mas profundamente idealistas, sobre os relacionamentos sexuais, bem como por seu interesse nas religiões primitivas e misticismo nativos. Ele acreditava que o sexo era a cura para nosso desajustamento como seres humanos na sociedade industrial moderna. Seus romances mais conhecidos são Sons and Lovers [Filhos e amantes] (1913), Women in Love [Mulheres apaixonadas] (1921) e Lady Chatterlys Lover [OAmante de Lady Chatterly] (1928), todos eles uma poderosa rebelião contra o que ele considera o puritanisrno
155 anglo-saxônico. Por esse motivo, ele se encontrou envolvido em alguns dos casos mais famosos de censura do século XX. Mas, mesmo assim, ele é respeitado, por muitos, como o maior romancista inglês da modernidade. Lawrence, por ser um homem irrequieto, viveu em vários países, entre eles Itália, Alemanha, Ceilão, Austrália, Nova Zelândia, Taiti, França e México. Sonhou, até mesmo, com uma colônia de artistas em Taos, Novo México. A leitura seguinte é extraída de seu romance The Rainbow [O arco-íris] (1915), o qual também foi processado por sua obscenidade. Ele descreve o papel da libertinagem na quebra do relacionamento de um casal de noivos, Skrebensky e Ursula. O casal está noivo (portanto, essa não é uma "aventura passageira"). E bom estar informado de que, aqui, a libertinagem destrutiva é a da mulher, e as suas reflexões finais sobre sua destrutibilidade são, provavelmente, teológicas. Ele sugere que a libertinagem é uma forma de idolatria que tenta usurpar o lugar de Deus e moldar o parceiro sexual à sua própria imagem - com inevitáveis conseqüências destrutivas. VIRTUDE TENTADORA Aqueles moralistas estúpidos pregam sobre melhorar as pessoas! Eles, dificilmente, prosperam. A possibilidade de encontrálos é de uma em mil. No entanto, a virtude tentadora que leva à fornicação mais extravagante e mais desenfreada é a coisa mais fácil do mundo. E, bastante divertido! Qual o valor da vida sem a imoralidade em todas suas variantes? — ALFRED NOBEL, NEMESIS [NÊMESIS]
O arco-íris Os dias passaram sem ser notados, em um completo, quase árduo, desfrutar da própria psique. Skrebensky era um entre os demais, até que a noite veio, e ele a tomou para si próprio. Muita liberdade fora concedida a ela, e ela era tratada com muito respeito, como uma moça prestes a se casar para partir para um outro continente. O problema começou à noite. Um desejo por alguma coisa desconhecida veio sobre ela, uma paixão por alguma coisa que ela não sabia explicar. Ela caminhava sozinha pela beira da praia, depois do pôr-do-sol, esperando, esperando alguma coisa, como se ela tivesse um encontro. A paixão salgada, amarga, do mar, a indiferença para com a terra, o movimento ondulante e definido, a força, o ataque e o sal abrasador pareciam provocar-lhe um aceso de loucura, atormentando-a com enormes sugestões de satisfação. E, depois, a personificação disso, Skrebensky chegava, o Skrebensky que ela conhecia, de quem ela gostava, atraente, mas cuja alma não poderia contê-la em suas ondas de força, e cujo peito não poderia compeli-la à paixão abrasadora e salgada. Uma noite, eles saíram após o jantar, atravessando os campos de golfe baixos, se comparados às dunas e ao mar. O céu tinha poucas estrelas, desmaiadas, e tudo estava quieto e meio escurecido. Eles caminharam juntos em silêncio, depois passaram com esforço através da areia pesada e solta da brecha entre as dunas. Eles seguiram em silêncio e, pela escuridão esmaecida, chegaram à sombra mais escura dos morros de areia. Subitamente, na crista da passagem arenosa e pesada, Ursula levantou a cabeça e encolheu-se para trás, momentaneamente assustada. Havia uma grande brancura a confrontá-la, a lua estava incandescente como a porta redonda de uma fornalha, da qual saia um feixe de luz do luar sobre a metade do mundo que seguia na direção do mar, uma visão iluminada pela luz branca, ofuscante e aterradora. Eles se encolheram à sombra por um momento e soltaram um grito. Ele sentiu seu peito desnudar-se, onde o segredo estava pesadamente escondido. Ele sentiu que se derretia até virar nada, como uma gota que rapidamente desaparece em uma chama incandescente. "Como é maravilhoso!", exclamou Ursula, em um tom baixo e cheio de desejo. "Como é maravilhoso!". E ela avançou, mergulhando no raio de luz. Ele seguiu atrás. Ela também parecia derreter-se na claridade que se derramava da lua. As areias eram como um chão de prata. O mar se movia em um brilho sólido, vindo na direção deles, e ela, lépida, foi ao encontro da água, relampejante. Ela entregou o seu peito à lua, seu ventre à água reluzente e ondulante. Ele permaneceu atrás, cercado, uma sombra a dissolver-se. Ela ficou à beira da água, à beira do corpo reluzente e sólido do mar, e as ondas apressaram-se
156 sobre seus pés. "Eu quero ir", gritou ela, em uma voz forte e dominante. "Eu quero ir." Ele viu o luar na face dela. Ela parecia de metal; ele ouviu a voz metálica ressoando para ele, como a voz de uma harpia. : Ela rondava na beira da água como uma criatura possessa, e ele a seguia. Ele viu a espuma da onda, seguida pelo pequeno círculo brilhante de água sobre os pés e os calcanhares. Ele balançou os braços, para equilibrar-se. A cada momento, ele esperava vê-la entrar no mar e ser carregada a nado cada vez mais para longe. Mas ela se virou e caminhou para ele. "Eu quero ir", gritou ela a alguém, naquela voz alta e dura, como o grito das gaivotas. "Onde?", perguntou ele. "Eu não sei." E ela tomou-lhe pelo braço, com firmeza, como se fosse um cativo, e o conduziu um pouco pela beira da água estonteante e deslumbrante. E, depois, ali na grande claridade de luz, ela o abraçou, firme, como se de repente tivesse o poder de destruição. Ela apertou seus braços ao redor dele enquanto sua boca procurava a dele, em um beijo que rasgava, sempre crescente, até que o corpo dele rendeu-se impotente ao abraço dela, e o coração dele derreteu-se de medo do beijo feroz daquele bico de harpia. A água lavou outra vez seus pés, mas ela nem percebeu. Ela parecia tão desapercebida, ela parecia apertá-lo com sua boca bicuda até possuir-lhe o coração. Então, finalmente, ela largou-o e olhou para ele - olhou para ele. Ele sabia o que ela queria. Ele tomou-a pela mão e a levou de volta através da praia para os morros de areia. Ela seguia-o silenciosamente. Ele sentia como se estivesse sendo provado em um julgamento de vida ou morte. Ele a conduziu até um côncavo escuro. "Não, aqui", disse ela, subindo para a cresta do monte, em plena luz do luar. Ela deitou-se imóvel, os olhos abertos fitos na lua. Ele veio direto para ela, sem preliminares. Ela o manteve preso ao peito, de forma intensa. A luta, o esforço para a consumação foi terrível. Durou até que virasse uma agonia da alma, até que ele sucumbisse, até que ele se rendesse, como se estivesse morto, e caísse com o rosto enterrado, parte nos cabelos dela, parte na areia, imóvel, como se fosse permanecer imóvel para sempre, escondido no escuro, enterrado, somente enterrado; ele queria somente ficar enterrado na escuridão intensa, só aquilo, e nada mais. Ele parecia ter desmaiado. Demorou até que ele voltasse a si. Ele percebeu um movimento incomum no peito dela. Ele olhou. A face dela parecia uma imagem à luz do luar, os olhos bem abertos, rígidos. Mas, dos olhos, lentamente, rolou uma lágrima que brilhou ao luar, enquanto descia por sua face. Ele sentiu que a faca estava sendo enterrada ainda mais em seu corpo já morto. Com a cabeça semi-erguida, tenso, ele observou ao luar, por alguns minutos, a face inalterável, rígida como metal, os olhos fixos, cegos, nos quais a água lentamente se acumulava, tremulante à luz do luar, depois sobrecarregada, transbordante, a gota escorregava na escuridão, até cair na areia. Ele, gradualmente, afastou-se, como se estivesse temeroso - ela não se moveu. Ele deu uma olhada para ela - ela permanecia do mesmo jeito. Será que ele podia fugir. Ele virou-se e viu a praia aberta, desimpedida, a sua frente, e precipitou-se para ela, sem parar, cada vez mais distante daquela figura horrível estirada ao luar, na areia, com as lágrimas se acumulando e viajando na face imóvel, eterna. Ele sentiu que se tivesse de vê-la outra vez, seus ossos deveriam ser quebrados, seu corpo esmagado, obliterado para sempre. E, por enquanto, ele ainda tinha amor ao seu corpo vivo. Ele vagou por um longo, longo caminho, até que a mente se escureceu, e ele ficou inconsciente graças à fadiga. Então, encolheu-se na escuridão mais profunda que encontrou, sob a grama marítima, e lá se deitou inconsciente. Ela despertou gradualmente de sua tensa cãibra de agonia, como se cada movimento fosse um aguilhão de dor aguda. Aos poucos, levantou seu corpo amortecido das areias e finalmente
157 levantou-se. Não havia mais nenhuma lua para ela, nenhum mar. Tudo havia passado. Ela arrastou seu corpo morto para a casa, para seu quarto, onde se deitou, inerte. A manhã trouxe-lhe um novo acesso de vida superficial. Mas tudo dentro dela estava frio, morto, inerte. Skrebensky apareceu no café da manhã. Ele estava branco e obliterado. Não se olharam, nem se falaram. Estavam separados, a não ser pela conversa trivial, ordinária, de pessoas civilizadas. Não falaram sobre o que havia entre eles durante os dois dias remanescentes de sua estadia. Eram como dois mortos que não ousavam reconhecer um ao outro, nem olhar um para o outro. Depois, ela fez a mala e arrumou suas coisas. Havia vários convidados que estavam saindo ao mesmo tempo, para pegar o mesmo trem. Ele não teria oportunidade de falar com ela. Ele bateu à porta do quarto dela no último instante. Ela estava em pé, com o guarda-chuva na mão. Ele fechou a porta. Não sabia o que dizer. "Você terminou comigo?", perguntou-lhe finalmente, levantando a cabeça. "Não sou eu", disse ela. "Você é quem terminou comigo - nós é que terminamos um com o outro". Ele a fitou, fitou o rosto fechado que lhe parecia tão cruel. E soube que jamais poderia tocá-la outra vez. Sua vontade fora quebrada, ele estava queimado, mas agarrou-se à vida que ainda restava em seu corpo. "Bem, o que foi que eu fiz?", perguntou ele em voz queixosa. 'Não sei", retrucou ela, na mesma voz entorpecida e insensível. "Acabou. Foi um fracasso." Ele estava mudo. As palavras ainda queimavam em suas entranhas. "A culpa foi minha?", perguntou, olhando longamente para cima, desafiando o último golpe. "Você não poderia... ", começou ela a dizer, mas quebrantou-se. Ele afastou-se, com medo de ouvir mais. Ela começou a pegar a mala, o lenço, o guarda-chuva. Ela devia partir, agora. Ele estava esperando que ela se fosse. Finalmente a carruagem chegou, e ela partiu com os demais. Quando ela estava fora de vista, um grande alívio lhe sobreveio, uma banalidade agradável. Em um instante, tudo o mais estava apagado. Durante o resto do dia, ele ficou afável como uma criança, sociável. Ficou atônito que a vida pudesse ser tão bela. Era melhor que tinha sido antes. Fora uma coisa tão simples se ver livre dela! Tudo lhe parecia tão amigável e simples. Que falsidade ela havia tentado forçar sobre ele? Mas, à noite, não se atrevia a ficar sozinho. Seu companheiro de quarto havia partido, e as horas de escuridão foram uma agonia para ele. Ele observou a janela em sofrimento e terror. Quando aquela terrível escuridão seria finalmente levantada? Controlando seus nervos, ele a suportou. E, ao raiar do dia, caiu no sono. Ele nunca pensava nela. Somente o terror que tinha das horas da noite crescia mais e mais, quase uma obsessão maníaca. Ele dormia intermitentemente, acordando com freqüência, cheio de agonia. O medo estava corroendo seu interior. Seu plano era deitar-se muito tarde da noite, ficar bebendo na companhia de alguém até à uma hora, uma e meia da madrugada; depois, dormiria por três horas, três horas de esquecimento. Às cinco horas, já estava claro. Mas ele ficava em choque, à beira da loucura, se abrisse os seus olhos na escuridão. Durante o dia, ele se sentia bem, sempre ocupado com coisas do momento, aderindo ao presente trivial, que lhe parecia amplo e satisfatório. Não lhe importava quão pequena e fútil fosse a coisa com a qual ele se ocupava, ele se entregava a ela inteiramente, e se sentia normal e satisfeito. Ele estava em constante atividade, sempre divertido, alegre, encantador, trivial. Ele só temia a escuridão e o silêncio de seu próprio quarto, quando as trevas desafiavam sua própria alma. Isso ele não podia suportar, da mesma forma que não conseguia suportar pensar em Ursula. Ele não tinha alma, não tinha um pano de fundo. Ele não pensara em Ursula, nem mesmo uma única vez, nem lhe dava qualquer sinal. Ela era trevas, o desafio, o horror. Ele se voltou para as coisas mais
158 imediatas ao seu redor. Ele queria se casar rapidamente, fugir das trevas, do desafio de sua própria alma. Ele se casaria com a filha de seu coronel. Rapidamente, sem hesitar, possuído por sua obsessão pela atividade, escreveu a essa moça, dizendo-lhe que seu compromisso havia acabado tinha sido uma paixão cega e temporária que ele, menos que qualquer outra pessoa, podia compreender, agora que havia acabado. Cedo poderia ir ver sua amiga. Ele não ficaria feliz até obter uma resposta. Ele recebeu uma resposta da moça que estava surpresa, mas ela ficaria feliz em vê-lo. Ela estava vivendo com a tia. Ele foi vê-la imediatamente e a pediu em casamento na primeira noite. Ele foi aceito. O casamento ocorreu em silêncio dentro de quatorze dias. Ursula não foi notificada do evento. Dentro de mais uma semana, Skrebensky partiu de navio, com sua nova esposa, para a Índia. Ursula sentia que sua experiência antiga era muito remota - Skrebensky, sua despedida dele muito remota. Algumas coisas eram reais; aquelas primeiras semanas fascinantes. Antes, elas tinham parecido uma alucinação. Agora, uma realidade comum. O resto era irreal. Ela sabia que Skrebensky, na verdade, nunca havia se tornado real. Nas semanas de êxtase apaixonado, ele, em seu desejo, estivera com ela, ela o havia criado, até segunda ordem. Mas no final, ele havia fracassado e entrou em colapso. Estranho... que grande vazio os separava! Ela gostava dele, agora, como gostava de uma memória, de um pedaço do ser que havia passado. Ele pertencia ao passado findo. Ele era aquilo que era conhecido. Ela sentia uma afeição pungente por ele, como se sente por algo que passou. Mas, quando ela olhava bem diante de si, ele não estava lá. Sim, quando ela olhava bem à frente, para a terra desconhecida diante dela, o que havia ali que ela pudesse reconhecer, a não ser um brilho fresco de luz, árvores crescendo do chão como fumaça. Era o desconhecido, o inexplorado, o ainda não descoberto, em cujas praias ela havia desembarcado, sozinha, após ter atravessado o vazio, a escuridão que banhava o Novo Mundo e o Velho. Não haveria uma criança: ela estava feliz. Se ela tivesse ficado grávida, teria feito pouca diferença, todavia. Ela teria guardado a criança e a si própria, ela não teria ido em busca de Skrebensky. Anton pertencia ao passado. Foi, nesse momento, que chegou o telegrama de Skrebensky: "Estou casado". Uma dor antiga — raiva e desdém —agitou-se dentro dela. Será que ele pertencia tão intensamente ao passado que ela lançara fora? Ela o repudiou. Ele era como era. E era bom que ele fosse como era. Quem era ela para que pudesse ter um homem conforme seu próprio desejo? Não lhe cabia criar, mas reconhecer um homem criado por Deus. O homem deveria vir do Infinito, e ela devia saudá-lo. Ela estava feliz por não poder criar seu homem. Ela estava feliz que não tinha nada que ver com a criação dele. Ela estava feliz que isso estava no escopo daquele poder muito mais vasto, no qual ela, finalmente, agora descansava. O homem procederia da Eternidade à qual ela mesma pertencia. Extraído de The Rainbow [O arco-íris], de D. H. Lawrence. Copyright © 1915, por D. H. Lawrence, renovado em 1943, por Frieda Lawrence Ravagli. Usado com permissão de Viking Penguin, uma divisão da Penguin Putnam, Inc. DEIXE-NOS CAIR EM... Até mesmo na cidade, a neve que caía fazia com que ele se recordasse do esquiar, esporte do qual já havia desistido. Sua esposa não esquiava. Quando ainda solteiro havia associado suas férias,: nas quais esquiava, com encontros românticos. As moças solteiras que esquiavam não tinham aversão à velocidade nem ao aventurar-se. Certa vez, encontrara uma moça holandesa no Klosters. Ela era alta demais e não cabia na cama em Chesa Grischuna, onde (no malabarismo de seu 'fazer amor') bateu o pé direito na cabeceira da cama e quebrou o dedão, de modo que precisou passar o resto de suas férias sem esquiar. Ele escapou daquele relacionamento somente com ferimentos leves. Sua aventura em Aspen deixou-lhe cicatrizes maiores, pois esta o levara a ter uma paixão duradoura. Ela era uma moça Alemã que bebia Absolut, diretamente do congelador, enquanto se superaquecia em seu chuveiro no Hotel Jerome. Sem que ele soubesse, ela havia feito um acordo com o serviço de quarto: eles lhe traziam uma quinta parte de vodka congelada - uma garrafa cheia - e um cálice gelado. Ela lhe ofereceu um gole gelado, mas sua mão estava molhada, e o cálice, escorregadio, mas pesado, caiu no chuveiro cheio de vapor. Prontamente, ele pisou no vidro cortando seu pé. Então, foi ele quem não podia mais esquiar. Os pontos, na parte anterior da planta do pé esquerdo, o fizeram mancar sobre o calcanhar. Mas enquanto a moça alemã esquiava, ele, alegremente, antecipava sua visita diária ao seu quarto no hotel Jerome. Ela era admiravelmente constante: ela começaria fazendo o pedido da garrafa gelada, que sempre estava cheia, e do cálice gelado. Ele ainda sonhava com sua pele avermelhada, com o perfume do sabonete de pinho que usara ao tomar banho. O cabelo, quase sempre, estava molhado; e ele não era capaz de lembrar sua cor verdadeira, Ela estava viajando com seus pais - e com a irmãzinha, com quem compartilhava um quarto. Ela precisava jantar com a família
159 todas as noites. Se ela tirasse a noite para ficar com ele, a irmã lhe teria dedurado, mas tudo o que ele poderia esperar era apenas as relações sexuais ilícitas à tardezinha. Uma tarde, na paixão do momento, o cálice rolou para debaixo da cama. A moça alemã propôs que chupassem a vodka parcialmente congelada de dentro do umbigo do outro. O umbigo dele era lastimavelmente pouco profundo. À luz fraca, quando o quarto estava ficando mais frio, a cama ficou molhada. Ele se lembrara do umbigo da moça, profundo como um poço. Ele nunca o deixava transbordar - bebia até a última gota. Naquele momento, enquanto a neve recente cobria Manhattan, ele se lembrava daquele umbigo germânico - e outras partes excitantes daquele corpo. Foi ao freezer da cozinha do seu apartamento, encheu para si um cálice de Absolut. Ele guardava a garrafa e o cálice na parte de trás do congelador, atrás do peixe congelado, e das ervilhas, e do milho congelado, e dos geladinhos da criançada, e do molho de tomate caseiro feito por sua esposa. Um gole frio da vodka, e a neve que caia na avenida Lexíngton poderia estar caindo sobre Aspen - salpicando as cabeças e os ombros dos esquiadores cansados que retornavam ao Hotel Jerome. Ele nunca lamentara o fato de que sua esposa não esquiava, de que ela usava meias na cama ou de que lhe daria uma tapa se derramasse vodka gelada em seu umbigo. Ele amava a vida familiar. Os riscos de esquiar e dos encontros românticos não o tentavam mais. Agora, mesmo quando nevava, o Absolut o satisfazia plenamente. — PROPAGANDA PARA A VODKA ABSOLUT, NO NEW YORK TIMES MAGAZINE, AGOSTO DE 1998
Perguntas para reflexão e discussão
1. No meio do segundo parágrafo, Lawrence escreve: "E, depois, para personificar, Skrebensky chegava,...". Qual o significado dessa frase? O que ela indica sobre a prioridade do indivíduo para satisfazer sua libertinagem? 2. O terceiro parágrafo há o que poderia ter sido uma cena romântica. Quais as diferenças básicas entre o romance genuíno e o encontro lascivo que há nesse encontro? 3. Como Ursula e Skrebensky reagem à luz do luar? Qual o motivo dessa reação? O que sugere a frase: "Ele sentiu seu peito desnudar-se"? Pode pensar em exemplos modernos da conexão entre a libertinagem e a escuridão? 4. Quais as palavras, no texto, que sugerem obsessão da parte de Ursula? Lawrence descreve que ela estava "como metal" com uma "voz forte e dominante". O que essas imagens de aspereza sugerem sobre a natureza da libertinagem? Em contraste, que figuras podem ser usadas para descrever o amor afetuoso? 5. A lágrima na face de Ursula logo depois do encontro sexual lhe surpreende? Por quê? Ou por que não? O que ela poderia estar sentindo naquele momento? O que Skrebensky pode ter sentido que o faz correr e abandoná-la? 6. Como os dois reagem à presença alheia no café da manhã do dia seguinte? Por que o estar "juntos" na noite anterior criou, na realidade, uma distância infinita entre eles? 7. Como Skrebensky reage após a partida de Ursula? Como ele tenta escapar a sua dor? 8. Ao refletir sobre o encontro, Ursula observa: "Skrebensky, na verdade, nunca havia se tornado real". O que ela quer dizer com isto? Qual a conexão entre imagens irreais e libertinagem? 9. Você já foi, alguma vez, enfatuado com a "figura" de uma pessoa, em vez de com a própria pessoa? Por que essa tendência é tão poderosa? Você pode achar exemplos na qual a sociedade contemporânea encoraja essa prática? Por que ela é destrutiva? 10. De que modo a libertinagem de Ursula difere da de Don Juan, na leitura anterior? Em que aspectos as conseqüências são similares ou diferentes? 11. De que formas a reflexão teológica de Ursula, no último parágrafo, lança luz sobre a natureza da libertinagem? 12. Na leitura: "Deixe-nos cair em...", qual a estratégia da propaganda para a Vodka Absolut? Por que essa foi escrita em forma de "conto"? Qual a avaliação deixada para o leitor sobre a libertinagem e o sexo ilícito?
ERNESTO CARDENAL Ernesto Martinez Cardenal, nicaragüense nascido em 1925, é poeta, escritor, padre católico romano ordenado e ex-ministro da Cultura na Nicarágua. Nasceu em Granada, Nicarágua, estudou na Universidade do México e fez os estudos de pós-graduação na universidade de Colúmbia, Nova
160 York. Cardenal é o autor de muitos volumes de poesia e ganhou vários prêmios literários, entre eles o Christopher BookAward, em 1972. A paixão de Cardenal é caracterizada por seus sentimentos de amor, paixão política e críticas sociais, os quais são fortemente fundidos. Após sua conversão a Igreja Católica, em 1956, estudou com Thomas Merton em Kentucky e tornou-se padre e defensor da não-violência. Em meados de 1980, o papa João Paulo II o repreendeu por promover a teologia da libertação, que divergia da ortodoxia cristã. Mas, apesar de toda controvérsia provocada por Cardenal, ele é um grande poeta de fala espanhola e um crítico expressivo da vida moderna. O poema seguinte, sobre Marilyn Monroe, lança luz sobre um tipo diferente de libertinagem - a moderna prototípica "deusa do sexo" apanhada em um turbilhão de forças, como o consumo, a adoração de celebridades, o voyeurismo e a fantasia. A própria Marilyn Monroe observou que Hollywood é o lugar onde "lhe pagam mil dólares por um beijo e cinqüenta centavos por sua alma". A ASPIRINA DA CASA BRANCA Não sei o que acontece com você, Harold, mas se eu não tiver uma mulher a cada três dias fico com uma dor de cabeça insuportável, E você como fica? — PRESIDENTE JOHN F. KENNEDY FALANDO COM o PRIMEIRO MINISTRO BRITÂNICO, HAROLD MACMILLAN, DURANTE O PRIMEIRO ENCONTRO DELES. (MACMILLAN, À ÉPOCA, ESTAVA CASADO COM A MESMA MULHER HÁ QUARENTA E CINCO ANOS.)
Uma oração por Marilyn Monroe
Senhor recebe essa moça, conhecida em toda a terra como Marilyn Monroe, mesmo que não seja esse o verdadeiro nome dela (mas o Senhor conhece o nome verdadeiro, o nome da pequena órfã violentada aos nove anos, da empregadinha de loja que tentou o suicídio aos dezesseis anos) ela agora se apresenta diante do Senhor sem nenhuma maquiagem Sem o agente de imprensa Sem fotógrafos e sem assinar autógrafos, sozinha, como um astronauta diante da escuridão espacial. Quando menina, ela sonhou estar nua em uma igreja (de acordo com a [revista] Time), em pé, diante de uma multidão prostrada, todos com a cabeça no chão, e precisava caminhar na ponta dos pés para não pisar nessas cabeças. O Senhor conhece nossos sonhos melhor que todos os psiquiatras. Igreja, casa ou caverna representam a segurança do seio materno, mas também algo mais... As cabeças são os admiradores, isso está claro (o aglomerado de cabeças na escuridão abaixo do feixe de luz da tela). Contudo, o templo não é representado pelos estúdios da 20th Century Fox. O templo, de mármore e ouro, é o templo de seu corpo no qual o Filho do homem se encontra, com o chicote na mão, para expulsar os cambistas da 20th Century Fox, os quais tornaram sua casa de oração um covil de ladrões. Deus, neste mundo igualmente contaminado pela radioatividade e pelo pecado, é certo que o Senhor não culpará a empregadinha de loja que (como qualquer outra empregada de loja) sonhou ser estrela. E seu sonho se tornou 'realidade' (uma realidade tecnicólor). Ela apenas seguiu o roteiro que lhe demos, o de nossa própria vida, mas ele era insignificante. Perdoa-lhe Senhor, como também a todos nós, pois são nossas a 20th Century e a gigantesca superprodução, de cuja produção todos nós partilhamos. Ela estava faminta por amor, e nós lhe oferecemos tranqüilizantes. Infelizmente, como não somos santos, eles lhe recomendaram a psicanálise. O Senhor lembra-se do crescente pavor que ela tinha das câmaras, E o ódio que tinha da maquiagem
161 (insistindo, no entanto, em se maquiar novamente a cada cena) e de como esse terror cresceu. Como qualquer empregada de loja, ela sonhou em ser uma estrela. E sua vida foi tão irreal quanto um sonho que um psicanalista interpreta e arquiva. Seus romances eram beijos de olhos fechados que, quando se abrem os olhos, são vistos como meras representações sob os holofotes, mas estes se apagaram, e as duas paredes do quarto (o cenário) foram desmontadas, enquanto o diretor se afasta, com anotações na mão, pois a cena já fora preservada de forma segura Ou a viagem em um iate, o beijo em Singapura, o baile no Rio, a recepção na mansão do Duque e da Duquesa de Windsor, a visão do falso brilho de um apartamento desprezível. O filme acabou sem um beijo no fim. Acharam-na morta na cama, com a mão ao telefone. Os detetives não souberam a quem chamar. Foi como alguém que havia discado o número da única voz amiga e ouvisse a uma gravação, dizendo: 'ENGANO'; ou como alguém que, ferido por gângsteres, estende a mão a um telefone desconectado. Senhor, quem quer que tenha sido a pessoa para quem ela telefonaria, e não o fez (talvez não tenha sido ninguém ou, então, era alguém que não constava da lista telefônica de Los Angeles) Atenda, ó Senhor, ao telefonema. De Ernesto Cardenal, Apocalypse and Other Poems [Apocalipse e outros poemas]. Copyright © 1977 por Ernesto Cardenal e Robert Pring-Mill. Reproduzido com permissão da New Directions Publishing Corporation. O PARTIDO DE JESUS Bem-aventurados os fisicamente repulsivos, Bem-aventurados os que cheiram mal, Os tortos, os desfigurados, os deformados, Os grandes demais, os pequenos demais, os barulhentos, Os carecas, os gordos e os velhos Pois eles são todos muito célebres no partido de Jesus. — DALLAS WILLARD, THE DIVINE CONSPIRACY [A CONSPIRAÇÃO DIVINA]
Perguntas para reflexão e discussão
1. Em sua opinião, por que Cardenal inclui as frases seguintes em seu poema: "mesmo que não seja esse o verdadeiro nome dela"; "pequena órfã violentada aos nove anos", e: "empregadinha de loja que tentou o suicídio"? Como esses fatos se contrastam com a imagem hollywoodiana de Marilyn Monroe? 2. O que você acha do paralelo que Cardenal faz entre o corpo de Monroe (comandado pela 20th Century Fox) e o templo do qual Cristo expulsava os cambistas? A quem essa analogia culpa pela tragédia da vida de Monroe? Você concorda ou discorda? 3. Qual o parágrafo que mais lhe impressionou? O que o poema transmite sobre a função da libertinagem na formação da carreira de Monroe? 4. Cardenal faz referência ao uso de drogas por Monroe. O álcool e as drogas são conhecidos e bastante utilizados nos negócios modernos voltados para o sexo, como a indústria do topless. A seu ver, por que esse é o caso aqui? Como pode a libertinagem, inerente nesse tipo de negócio, contribuir para a necessidade de se "entorpecer"? 5. Quais foram suas emoções ao ler esse poema? Até onde ele capta o páthos e a tragédia da moderna deusa do sexo, bem como o entrelaçamento das motivações que circundavam essa pessoa? Qual a ironia da imagem pública desse tipo de mulher, entre elas Marilyn Monroe? 6. Qual a extensão da responsabilidade do público por uma tragédia como a de Marilyn
162 Monroe?
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O CONTRAPONTO DA LIBERTINAGEM bem-aventurados os puros de coração
O contraponto da libertinagem é a pureza de coração. Enquanto a libertina gem é antiética e irrestrita, a pureza de coração é a devoção ética e disciplinada do coração. Enquanto a libertinagem cega e dissipa nossa força, a pureza de coração é uma concentração intensa de força, além de ser perspicaz. "Pureza" significa verdadeiro, autêntico, simples, totalmente ele mesmo e, portanto, purificado e limpo. A famosa afirmação de Soren Kierkegaard é esta: "Pureza de coração é querer somente uma coisa". Portanto, amar a Deus com amor puro, transparente, simples, não adulterado e total é o contraponto da libertinagem e da idolatria do prazer sexual que a acompanha. Mas o ideal de um coração zeloso e imaculado pode nos esmagar com a desilusão, se não vier acompanhado da graça e do perdão. Jesus, aqui, frustra qualquer tipo de expectativa, inclusive a dos religiosos moralistas de todas as épocas. Ele oferece perdão e restauração para aqueles que se encontram enlaçados no pecado sexual. Conforme observado por William E May: "O hebreu da antigüidade circuncidava o pênis; ele não o amputava. Jesus perdoou a mulher adúltera; ele não a apedrejou". SOMENTE OS PUROS DE CORAÇÃO "Quem poderá subir o monte do SENHOR? Quem poderá entrar no seu Santo Lugar? Aquele que tem as mãos limpas e o coração puro, que não recorre aos ídolos nem jura por deuses falsos." — SALMO 24.34
AGOSTINHO Agostinho (354-430 A.D.) foi orador, filósofo, teólogo, bispo e escritor. Ele é, muitas vezes, afamado como o pensador mais admirável dos dois mil anos de história da igreja de Cristo. Nasceu no Norte da África, agora Algéria. Seu pai era pagão, e sua mãe, Mônica, cristã fervorosa. Desde os seus dezesseis anos, ao visitar Cartago pela primeira vez, ele perseguiu a carreira de orador enquanto se aprofundava seguindo o fruto de um estilo de vida dissoluto (que incluía uma amante e um filho bastardo). Em 385 A.D., em um vilarejo fora de Roma, ele teve a experiência de uma das conversões mais dramáticas da história do cristianismo. Ao ser batizado, Agostinho entregou seu coração passional e sua mente formidável ao serviço de Cristo. Nesse processo, ele se tornou o último grande pensador do mundo antigo, o primeiro da Idade Média e o precursor vital da Reforma. Seus dois maiores clássicos são A Cidade de Deus, escrita como uma resposta aos críticos romanos, que acusavam os cristãos pela queda de Roma, e Confissões, sua autobiografia espiritual. Essa leitura, extraída de suas Confissões, fornece-nos sua madura descrição autobiográfica sobre a batalha perdida para a libertinagem quando ainda jovem. AS DEZ REGRAS MAIS IMPORTANTES DE TURNER Os Dez Mandamentos estão "meio fora de moda, Se você somente tivesse dez regras, não sei se [proibir] o adultério deveria ser uma delas." — PALAVRAS DE TED TURNER, IMPORTANTE PERSONAGEM TELEVISIVO, PARA A NATIONAL FAMILY PLANNING AND REPRODUCTIVE
164 HEALTH ASSOCIATION Uma das coisas mais interessantes para ser narrada a respeito dos seres humanos contemporâneos é que estes não conseguem achar uma razão para não cometer adultério. Mesmo assim, a intimidade é uma fome espiritual da alma humana da qual não podemos escapar. — DALLAS WILLARD, THE DIVINE CONSPIRACY [A CONSPIRAÇÃO DIVINA]
Confissões Quero recordar as minhas torpezas passadas, as corrupções da minha alma, não porque as ame, ao contrário, para te amar, ó meu Deus. E por amor ao teu amor que retorno ao passado, percorrendo os antigos caminhos dos meus graves erros. A recordação é amarga, mas espero sentir tua doçura, doçura que não engana, feliz e segura, e quero recompor minha unidade depois dos dilaceramentos interiores que sofri quando me perdi em tantas bagatelas, ao afastar-me de tua Unidade. Desde a adolescência, ardi em desejos de me satisfazer em coisas baixas, ousando entregar-me como animal a vários e tenebrosos amores! Desgastou-se a beleza da minha alma e apodreci aos teus olhos, enquanto eu agradava a mim mesmo e procurava ser agradável aos olhos dos homens. 2. E o que é que me encantava, senão amar e ser amado? Mas,eu não ficava na medida justa das relações de alma para alma, dentro dos limites luminosos da amizade. Do lodo dos desejos carnais e da própria natureza da puberdade emanavam vapores que me enevoavam e ofuscavam o coração, a ponto de não mais distinguir entre um amor sereno e as trevas de uma paixão. Um e outro ardiam confusamente em mim, arrastando a minha fraca juventude pelos despenhadeiros das paixões, e a submergiam num abismo de vícios. Tua cólera concentrava-se em mim, e eu não percebia. Ensurdecera-me o ruído das cadeias da minha mortalidade, justo castigo à soberba da minha alma, e eu me afastava cada vez mais de ti; e tu o permitias. Eu me agitava, me dissipava, ardia nas paixões da carne; e tu calavas. O alegria que tão tarde encontrei! Tu calavas, e eu de ti me afastava, multiplicando as sementes estéreis do sofrimento, em degradação insolente e inquieto esgotamento. Quem teria podido suavizar-me a tribulação, ensinando-me a usar bem da formosura passageira das coisas novas? Quem me fixaria um objetivo aos prazeres que delas eu tirava, de tal maneira que, se os ardores da idade não me pudessem deixar tranqüilo, fossem encaminhados ao matrimônio, encontrando o fim natural na geração de filhos, como prescreve tua lei, Senhor. Tu, que asseguras a descendência de nossa raça mortal e tens o poder de abrandar as asperezas reservadas ao homem expulso do teu paraíso? Tua onipotência está perto de nós, ainda quando nos afastamos de ti. Eu deveria ter ouvido mais atentamente o som vindo de tuas nuvens: quem escolhe esse tipo de vida terá tribulações na carne; eu vo-las desejaria poupar; ou ainda: é bom para o homem não tocar em mulher; e ainda: quem não tem esposa cuida das coisas do Senhor, quem tem esposa cuida das coisas do mundo e do modo de agradar à esposa. Quem me dera ter ouvido mais atentamente essas palavras! Se me tivesse feito eunuco pelo Reino dos Céus, aguardaria agora mais feliz os teus amplexos! No entanto — miserável que sou! — eu me abandonava com furor à torrente das paixões que me afastava de ti; eu transgredia todas as tuas leis, sem escapar naturalmente de teus castigos. Quem dos mortais conseguiria fazê-lo? Sempre estavas presente em tua severa misericórdia, entremeando de amargos desgostos os meus prazeres ilícitos, a fim de que eu aprendesse a procurar a alegria sem ofender-te. Se eu tivesse encontrado, só teria encontrado a ti, Senhor, que nos dás a dor como preceito, que feres para curar e nos tiras a vida para não morrermos longe de ti. Onde me encontrava no décimo sexto ano de minha vida e como estava banido da bemaventurança de sua casa? Essa foi a idade na qual a loucura me agarrou e me rendi inteiramente à libertinagem, que sua lei proíbe, mas o coração humano não se envergonha de aprovar. Minha família não se esforçou para me salvar da queda por matrimônio. Sua única preocupação era que eu fosse eloqüente e que soubesse persuadir outros com minhas palavras. 3
165 [...] Mas, quando aos dezesseis anos, as necessidades domésticas me forçaram a interromper os estudos por algum tempo, e eu, livre de qualquer escola, passei a viver com meus pais, os espinhos das paixões me subiram à cabeça, sem que houvesse mão para os arrancar. Pelo contrário, meu pai um dia me viu no banho e percebeu em mim os sinais da puberdade e adolescência inquieta; antegozando desde logo a alegria dos netos que eu lhe daria, relatou-o, com alegria, à minha mãe, essa alegria nasce da embriaguez em que este mundo miserável esquece o Criador, para em teu lugar, Senhor, amar tuas criaturas, embriaguez devida ao vinho invisível de uma vontade pervertida que se inclina para o que é baixo. Mas, no coração de minha mãe já havias começado a edificar o teu templo, a lançar os fundamentos de tua santa habitação. Meu pai, no entanto, era apenas catecúmeno de há pouco tempo. Por isso, minha mãe agitou-se, apreensiva e temerosa. Apesar de eu ainda não ser batizado, receou que eu enveredasse por caminhos tortuosos trilhados por aqueles que voltaram para ti as costas e não a face[...]. Nada é tão digno de censura como o vício; no entanto, para não ser censurado, eu mergulhava ainda mais no vício; quando não me podia igualar a meus companheiros corruptos, fingia ter praticado o que não praticara, para não parecer desprezível pela inocência ou ridículo por ser casto. Eis com que companheiros andava eu pelas praças de Babilônia, revolvendo-me na lama como se fosse em cinamomo e perfumes preciosos. E para afundar-me ainda mais, o inimigo invisível me pisoteava e seduzia, porque era eu fácil de seduzir. Minha mãe carnal, que já tinha fugido de Babilônia, mas caminhava, ainda lenta, pelos seus arredores, recomendou-me vida pura, mais não se preocupou em encaminhar para um afeto conjugai aquela minha virilidade de que lhe falara o marido e que não podia ser materialmente eliminada. Já então a considerava bastante perigosa e mais perigosa ainda a previa para o futuro; mas não se preocupou, temendo que as responsabilidades conjugais constituíssem empecilho às minhas esperanças, não de uma vida futura, tais como as suas, mas de progresso nos estudos, cujo êxito era a ambição de meus pais. Meu pai, porque quase não pensava em ti e alimentava a meu respeito ambições vãs; e minha mãe, por acreditar que a aquisição da cultura em voga não só era livre de perigo, mas podia até favorecer a minha aproximação de ti. Eis as conclusões a que chego hoje, reconstruindo como posso o caráter de meus pais. Chegavam até a afrouxar-me as rédeas dos divertimentos, sem a justa e normal severidade, deixando-me entregue ao desregramento das várias paixões. De toda essa miséria, ó meu Deus, subia uma escuridão que me ocultava a luz serena de tua verdade, e de meu coração emanava a iniqüidade. 10 Quem desembaraçará este nó assim tão complicado e emaranhado? E uma ação indigna; nela não quero pensar, não a quero analisar. Eu quero a ti, ó justiça, ó inocência, ó beleza que atrai o olhar dos virtuosos, que em ti se satisfazem sem jamais se saciar. Junto de ti existe paz profunda e vida imperturbável. Quem mergulha em ti, entra no gozo do seu Senhor, não terá mais receio, e permanecerá sumamente bem no Bem supremo. Desandei longe de ti, meu Deus, e na minha adolescência andei errante sem teu apoio, tornando-me para mim mesmo um antro de miséria. Extraído de Confessions de Sto Agostinho, Traduzido para o Inglês por R.S.Pine-Coffin (Penguin Classics, 1961). Copyright © 1961 por R.S.Pine-Coffin. Reproduzido com permissão de Penguin Books Ltd. Partes deste foram extraídas do livro Confissões de santo Agostinho, tradução de Maria Luiza Jardim Amarante, revisão Prof.Antonio da Silveira Mendonça © PAULUS — 1984. ADULTÉRIO COM OUTRO NOME QUALQUER... Fiz acordo com os meus olhos de não olhar com cobiça para as moças. — Jó 31.1 Não existe o "adultério com a mulher certa, no tempo certo e da maneira correta, pois isso é..., simplesmente, errado". — ARISTÓTELES Tendo os olhos cheios de adultério, nunca param de pecar, iludem os instáveis e têm o coração exercitado na ganância.
166 Malditos! — 2PEDRO 2.14 Assim como o ladrão é aquela pessoa que roubaria se as circunstâncias permitissem, também o adúltero é aquele que teria relações sexuais ilícitas se as circunstâncias lhe permitissem. Isso, habitualmente, quer dizer se ele, ou ela, tivesse a certeza de que não seria apanhado(a). Isso que Jesus chama de 'coração adúltero'. — DALLAS WILLARD, THE DIVINE CONSPIRACY [A CONSPIRAÇÃO DIVINA]
Perguntas para reflexão e discussão
1. No primeiro parágrafo, Agostinho descreve o amor de Deus como "doçura que não engana". Em contraste, como a libertinagem engana? 2. Agostinho diz que a ansiedade para ser "agradável aos olhos dos homens" contribuiu para o seu problema de libertinagem. Ele estava receoso de admitir sua "inocência" ou "castidade". Como as coisas mudaram ou ainda são as mesmas para os jovens dos dias de hoje? Como os pais podem ajudar os jovens a reagir contra tais preocupações? 3. Qual o desejo verdadeiro e positivo sentido por Agostinho na época de sua vida que ele descreve? Quais eram as conseqüências específicas de tentar satisfazer esse desejo por meio de encontros lascivos? 4. Em retrospecto, o que Agostinho vê como os dois caminhos pelos quais sua libertinagem poderia ter sido remediada? O que você acha de cada uma dessas sugestões — como teriam contraposto, ou não, sua libertinagem? * 5. Agostinho descreve sentimentos de "amargura" e de "dor" em seus vários romances, emoções essas, geralmente, reservadas às mulheres que foram "usadas" nesses encontros. Ele somente é mais sensível que a maioria dos homens ou será que as conseqüências emocionais da libertinagem recaem sobre ambos, homens e mulheres? Qual sua posição e por que você a defende? 6. Do ponto de vista de Agostinho, qual a função de Deus nessa sua inquietação e procura juvenil? Qual o desejo dele agora, em vez das gratificações transitórias da libertinagem? 7. Em geral, o que você acha da avaliação madura de Agostinho, da perspectiva de fé, de seu período anterior de promiscuidade?
WILLIAM F. MAY William E May, nascido em em 1927, é o "Cary M. Maguire" professor de Ética da Universidade Metodista do Sul, em Dallas, Texas. Nasceu em Chicago, Illinois, graduou-se na Universidade de Princeton e Universidade de Yale. Foi ex-presidente da academia estado-unidense de Religião e um co-fundador do Hastings Center. E lecionou no Smith College, na Universidade de Indiana e na Universidade de Georgetown. Muitas obras de May são sobre a ética da morte e do morrer, entre eles está o seu livro The Patients Ordeal [Aprovação do enfermo] (1991). Sua obra mais recente é The Beleaguered Rulers [Os governadores sitiados]; The Public Obliga-tions of the Professional [As obrigações públicas do profissional]. A passagem que se segue foi extraída de uma obra mais antiga e geral: A Catalogue of Sins [O catálogo de pecados]. Um dos livros mais esclarecedores sobre o pecado e pecados. DIVAS E NARCISOS Jesus usou parte de seu tempo para ensinar sobre a beleza natural de todo ser humano. Ele chama nossa atenção para o fato de que a simples flor do campo é encantadoramente bela, mais que a pessoa mais fascinante que você possa conhecer (como Salomão em todo seu esplendor). Simplesmente, ponha um narciso ao lado de qualquer pessoa no baile inaugural do presidente ou ao lado da lista dos Prêmios Acadêmicos, e você verá. Contudo, a vida abundante do Reino que flui através de nós, torna-nos mais belos que as plantas naturais. — DALLAS WILLARD, THE DIVINE CONSPIRACY [A CONSPIRAÇÃO DIVINA]
Falsa adoração: impureza de coração Quando Gulliver foi lançado à praia na terra dos Liliputianos, o rei mandou que dois investigadores
167 examinassem sua pessoa e informassem sobre itens de natureza duvidosa, os quais poderiam ser usados pelo gigante contra seus captores. Examinando os bolsos de Gulliver, os investigadores encontraram três artigos de interesse peculiar. Um deles foi descrito por eles como um grande carpete, grande o suficiente para cobrir o piso do saguão real. O que haviam descoberto, naturalmente, era o lenço de Gulliver. O segundo objeto, disseram eles, era um motor poderoso com postes alinhados, do tamanho das fortificações na frente da corte real. Nesse caso, o que haviam encontrado era o pente de Gulliver. Mas o terceiro item era o mais espantoso de todos. Em outra reentrância da vestimenta de Gulliver haviam encontrado uma outra máquina enorme que fazia o som similar ao de uma cachoeira e possuía um compartimento invisível que os impedia de examinar as figuras monstruosas que se encontravam em sua superfície. Era, é claro, o relógio de Gulliver. Mas ao escrever seu relatório para o rei, os investigadores disseram que, ou era um animal estranho que Gulliver trouxera consigo de sua própria pátria ou o seu deus, pois sempre o consultava. Swift está, naturalmente, ironizando um dos deuses do homem moderno - o tempo mecânico -, mas também descreve qual é o verdadeiro deus de um homem: qualquer coisa, na vida dele, que ele consulta com maior freqüência. João Calvino observou, certa vez, que o homem é distinto de todas as demais criaturas pelo fato de que não vive sem uma religião. O homem é um fazedor de deuses incorrigível, uma criatura dada ao culto e à adoração. Outra maneira de expressar a mesma coisa é dizer que o homem é um fabricante de ídolos. Os seres humanos não se livram da religião quando pecam, muito ao contrário, eles fedem a religião. Ele nega Deus quando cai no feitiço do mundo ou de um de seus poderes... Homens negam a Deus quando se afastam dele e se voltam para algum poder da criatura, seja o que for — o brilho do ouro, a fertilidade do solo, a empolgação com uma careira, o encanto de uma mulher ou a afirmação de uma grande causa pública. O homem não somente vive no mundo, ele enaltece o mundo; ele tira algo de seu lugar e o glorifica...
Impureza de coração Os aspectos objetivos e subjetivos do problema da idolatria são interligados da melhor maneira possível no termo profético-sacerdotal usado por Kierkegaard em seu ensaio sobre o monoteísmo: a impureza de coração. Pureza de coração não é um termo sexual. Ela se refere primariamente à sinceridade, à totalidade, à jntegridade ou à unidade de coração. Correspondentemente, a impureza de coração significa um coração dividido em sua dedicação - como se fosse inconstante. A base objetiva para a pureza de coração é o monoteísmo. Os profetas e os sacerdotes são chamados à pureza de coração porque Deus é um - portanto, o coração deveria ser puramente dele. "Ouve, ó Israel, o Senhor, o nosso" Deus, o Senhor é o único Senhor". Essa declaração é a base objetiva para os imperativos negativos e positivos: "Não terás outros deuses além de mim", e: "Ame o SENHOR, o seu Deus, de todo o seu coração, de toda a sua alma e de todas as suas forças". Kierkegaard definiu o correlativo subjetivo desse monoteísmo em termos mais simples, quando apelou para a carta de Tiago: "Vocês, que têm a mente dividida, purifiquem o coração" (Tg 4.8). Se o mundo fosse composto de uma pluralidade de poderes divinos, seria errado amar a Deus de todo o coração. O coração deveria ser repartido, com discernimento, entre todos os poderes bondosos existentes. O homem deveria viver em um bom relacionamento com todas as deidades. No entanto, se Deus é um, então o coração só pertence a ele. Na idolatria, a alma abandona a integridade de seu coração ante o único Deus, fartando-se de outros poderes e glórias que competem pela sua atenção. Ele se torna culpado do pecado da impureza de coração. De William F. May, A Catalogue of sins: A Contemporary Examination of Christian Conscience [Um catálogo dos pecados: um exame contemporâneo da consciência cristã] (New York: Holt, Rinehart and Winston, 1967). Copyright © 1967 por William F. May. Reproduzido com permissão do autor. OS DORMITÓRIOS E AS SALAS DE REUNIÕES A igreja, de uma maneira fora do comum, é franca no que diz respeito aos dormitórios e silencia, de forma bastante particular, sobre o assunto das salas de reuniões do conselho administrativo. — DOROTHY L. SAYERS
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Perguntas para reflexão e discussão
1. O que você acha da definição de Swift de que o deus do homem é "qualquer coisa, na vida dele, que ele consulta com maior freqüência"? O que as propagandas e o comercialismo moderno nos encorajam a adotar como nossos "deuses"? Na definição de Swift, quem ou o que os outros diriam que é o seu deus? 2. De acordo com João Calvino, como a natureza do homem e da mulher os faz propensos a serem idolatras? O que May quer dizer com a bizarra afirmação de que os seres humanos "fedem" a religião quando pecam? 3. Dos ídolos comuns que May menciona no parágrafo que começa com: "Homens negam a Deus", qual deles, se há algum, o surpreende? Quais são alguns outros ídolos mais sutis encontrados em seu meio? E entre os adolescentes que você conhece? De modo geral, na cultura ocidental? 4. O que Kierkegaard quer dizer com pureza de coração? Por impureza de coração? Qual a conexão entre a pureza de coração e o monoteísmo? Que poder atribuímos às coisas às quais nosso coração se liga, mas que competem a Deus? 5. Quando William F. May afirma que a pureza de coração não é um termo sexual, por que ela pode ser considerada o contraponto da libertinagem? Por que a libertinagem é uma forma de idolatria?
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Conclusão cinco lembretes
Devemos concluir este estudo com uma série de lembretes construtivos que nos ajudarão a manter nossa perspectiva e equilíbrio, pois mesmo que os benefícios da investigação dos vícios e das virtudes sejam óbvios, temos ainda alguns perigos, e o principal deles é o risco da hipocondria espiritual. Assim como alguém tende a assumir novas doenças ao estudar um livro texto de medicina ou psicologia, o mesmo acontece com essas leituras. Há o risco de que, ao reconhecermos a confusa sutileza dos vícios, imaginemos que sofremos de todos eles e que nossa condição é incurável, resultando em depressão, em vez de crescimento.
Primeiro lembrete LEMBRE-SE DO LUGAR DA DISCIPLINA - TREINANDO-NOS A FAZER O QUE GERALMENTE SOMOS INCAPAZES DE FAZER Quaisquer que sejam nossos pecados ou quaisquer que sejam as virtudes que procuramos cultivar como seus contrapontos, nenhuma mudança real pode sér feita sem a disciplina. A disciplina é o treinamento ao qual nos comprometemos a fim de fazer o que habitualmente somos incapazes de fazer com esforço costumeiro e direto. Seja tocando o piano, seja correndo em uma maratona, seja abençoando os inimigos, devemos nos submeter ao treinamento para podermos fazer o que deve ser feito e quando deve ser feito. Na passagem seguinte, Aristóteles expõe sua compreensão sobre a maneira como as virtudes são cultivadas. Ele diz que o completo desenvolvimento das virtudes em nós vem da prática delas até que se tornem um hábito. Nesse sentido, o hábito é vital para o crescimento espiritual como a prática o é para quem joga golfe ou toca violino. No entanto, Aristóteles não está totalmente correto. Ao enfatizar o hábito, ele deixa de fora o elemento sobrenatural que ocorre na formação espiritual. Os dois não são opostos. Trabalham juntos. O cultivo profundo e permanente das virtudes toma lugar quando nossos esforços humanos estão ligados à obra sobrenatural do Espírito para nos mover e nos mudar. O cerne do progresso é a graça que reconhece nossas deficiências e sempre permite que recomecemos.
ARISTÓTELES Aristóteles (384-322 A.C.) foi um dos maiores pensadores do mundo, cuja mais influência foi notável. Nascido na Stageira, Macedônia, estudou em Atenas sob a orientação de Platão, Quando este morreu, Aristóteles retornou à Macedônia para se tornar tutor do jovem Alexandre, o Grande. Em 335, quando Alexandre substituiu seu pai, Filipe, no trono, Aristóteles retornou a Atenas onde fundou sua própria escola, o Liceu, atraindo grande quantidade de estudiosos. Após a morte de Alexandre, em 323, uma forte reação anti-Macedônica ocorreu em Atenas, fazendo com que Aristóteles fugisse para Chaleis, onde morreu alguns meses depois, em 322. O pensamento de Aristóteles era bastante abrangente, fora do comum. Explorou, descobriu, argumentou e ensinou em áreas bem diversas, tais como lógica, metafísica, teologia, história, política, estética, psicologia, anatomia, biologia, zoologia, botânica, astronomia e os antigos equivalentes da física e da química. Se as idéias de Platão tiveram influência em escolas como o platonismo e para pensadores como Agostinho, a influência de Aristóteles também foi enorme — por exemplo, a influência de Aristóteles em Tomás de Aquino e, por conseguinte, em toda cristandade medieval.
170 A ética de Aristóteles é uma das duas de suas obras mais famosas, a outra é A política. O título grego deveria ser traduzido como Assuntos que dizem respeito ao caráter, pois sua preocupação central é "a pessoa moralmente boa". Passagens como a que se segue eram amplamente discutidas no século XVIII. A insistência de que o caráter é uma combinação de dois elementos, o certo e o rotineiro, é um dos temas aristotélicos que marcou os Estados Unidos - eis o motivo de termos as célebres frases de Aléxis de Tocqueville, sobre os "hábitos do coração", e de Nietzsche, sobre "uma longa obediência na mesma direção".
Bondade moral As virtudes morais, assim como as artes, são adquiridas pela prática e pelo hábito. A excelência (virtude), portanto, é de duas espécies: intelectual e moral. Em grande parte, a excelência intelectual deve tanto o seu nascimento quanto o seu crescimento à instrução (por isto ela requer experiência e tempo); quanto à excelência moral, ela é o produto do hábito, razão pela qual seu nome é derivado, com uma ligeira variação, da palavra "hábito" (ethos). É evidente, portanto, que nenhuma das várias formas de excelência moral se constitui em nós por natureza, pois nada que existe por natureza pode ser alterado pelo hábito. Por exemplo, a pedra, que por natureza se move para baixo, não pode ser habituada a mover-se para cima, ainda que alguém tente habituá-la jogando-a dez mil vezes para cima; tampouco o fogo pode ser habituado a mover-se para baixo, nem qualquer outra coisa que por natureza se comporta de certa maneira pode ser habituada a comportar-se de maneira diferente. Portanto, nem por natureza nem contrariamente à natureza a excelência (virtude) moral é engendrada em nós, mas a natureza nos dá a capacidade de recebê-la, e esta capacidade se aperfeiçoa com o hábito. Além disto, em relação a todas as faculdades que nos vêm por natureza recebemos primeiro a potencialidade, e somente mais tarde exibimos a atividade (isto é claro no caso dos sentidos, pois não foi por ver repetidamente ou repetidamente ouvir que adquirimos estes sentidos; ao contrário, já os tínhamos antes de começar a usufruí-los, e não passamos a tê-los por usufruí-los). Quanto às várias formas de excelência moral (virtudes), todavia, adquirimo-las por havê-las efetivamente praticado, tal como fazemos com as artes. As coisas que temos de aprender antes de fazer, aprendemo-las fazendo-as - por exemplo, os homens se tornam construtores construindo, e se tornam citaristas tocando citara; da mesma forma, tornamo-nos justos praticando atos justos, moderados agindo moderadamente, e corajosos agindo corajosamente. Esta asserção é confirmada pelo que acontece nas cidades, pois os legisladores formam os cidadãos habituando-os a fazerem o bem; esta é a intenção de todos os legisladores; os que não a põem corretamente em prática falham em seu objetivo, e é sob este aspecto que a boa constituição difere da má. Ademais, toda excelência moral é produzida e destruída pelas mesmas causas e pelos mesmos meios, tal como acontece com toda arte, pois é tocando a harpa que se formam tanto os bons quanto os maus harpistas, e uma afirmação análoga se aplica aos construtores por construírem bem ou mal. Com efeito, se não fosse assim não haveria necessidade de professores, pois todos os homens teriam nascido bem dotados ou mal dotados para as suas profissões. Logo, o mesmo acontece com as várias formas de excelência moral (virtudes); na prática de atos em que temos de engajar-nos dentro de nossas relações com outras pessoas, tornamo-nos justos ou injustos; na prática de atos em situações perigosas, adquirimos o hábito de sentir receio ou confiança, tornando-nos corajosos ou covardes... Não será pequena a diferença, então, se formarmos os hábitos de uma maneira ou de outra desde nossa infância; ao contrário, ele será muito grande, ou melhor, ela será decisiva. Extraído de The Nicomacheam Ethics de Aristóteles, traduzido para o inglês por J.A.K. Thompson (London: Allen & Unwin, 1976), book 2. Reproduzido com permissão de Unwin Hyman de HarperCollins Publishers Ltda. Extraído em parte de Os Pensadores ARISTÓTELES, Editora Nova Cultural Ltda., uma divisão do Círculo do Livro Ltda. Copyright © desta edição 1996, Circulo do Livro Ltda. Traduções publicadas sob licença da Editora Cultrix Ltda.
Perguntas para reflexão e discussão
1. Quais os dois tipos de virtudes identificados por Aristóteles? Como se alcança cada uma delas?
171 2. Qual o contraste, feito por Aristóteles, entre "aptidões naturais" e virtudes nas maneiras que são adquiridas e usadas? Qual a arte ou a habilidade que você aprendeu fazendo? Descreva o processo seguido. 3. Você concorda com Aristóteles de que nos tornamos justos "praticando atos justos", e corajosos "agindo corajosamente"? Você pode dar um exemplo de sua própria vida, ou da vida de outra pessoa conhecida, que mostrou ter obtido uma virtude praticando-a? Por que motivo não é suficiente repetir uma tarefa para que você se assegure de que sabe fazê-la bem feito? O que mais é necessário? De que maneira esse princípio se aplica ao desenvolvimento das virtudes? Na eliminação dos vícios? 4. A noção de Aristóteles, da virtude como um hábito ou como uma segunda natureza aprendida, é o oposto das noções modernas como a espontaneidade e a auto-expressão. Quais as diferenças práticas e sociais que você percebe fluir dessas diferenças? 5. Que tipo de educação e treinamento é necessário para transformar o caráter e a virtude em um hábito?
Segundo lembrete LEMBRE-SE DO ENGANO - O NOSSO PECADO UTILITÁRIO QUE ASSISTE TODOS OS OUTROS PECADOS VERDADE, O CONTRATO SILENCIOSO Uma mentira pode ser definida como uma tentativa de enganar o outro sem o seu consentimento. Essa definição : assume que há um "contrato silencioso entre as pessoas para falar a verdade". —ABRAHAM HESCHEL, A PASSION FOR TRUTH [PAIXÃO PELA VERDADE]
Qualquer que seja o pecado incluído na lista dos pecados capitais, independentemente de quão sério o classifiquemos, há um que serve a todos - o engano. Como Adiai Stevenson ironizou com seriedade mortal: "Uma mentira é uma abominação ao Senhor e uma ajuda bem presente nas dificuldades". No entanto, infelizmente, não somente nos enganamos uns aos outros, mas também nos enganamos a nós mesmos. O engano é, portanto, o pecado companheiro dos sete pecados capitais. Mesmo que ele não persiga um propósito próprio, ele serve para abrandar e mascarar os outros pecados. Por exemplo, o elogio a si mesmo é o engano a serviço do orgulho; a calúnia é o engano a serviço da inveja; a insinceridade é o engano a serviço da libertinagem. Mais cedo ou mais tarde, no entanto, o engano deixará de funcionar. Controlar os danos causados pelo pecado é simplesmente impossível. O ENGANO MORTAL Na manhã seguinte Josué mandou os israelitas virem à frente segundo as suas tribos, e a de Judá foi a escolhida. Os clãs de Judá vieram à frente, e ele escolheu os zeraítas. Fez o clã dos zeraítas vir à frente, família por família, e o escolhido foi Zinri. Josué fez a família de Zinri vir à frente, homem por homem, e Acã, filho de Carmi, filho de Zinri, filho de Zerá, da tribo de Judá, foi o escolhido. Então Josué disse a Acã: "Meu filho, para a glória do Senhor, o Deus de Israel, diga a verdade. Conte-me o que você fez; não me esconda nada". Acã respondeu: "É verdade que pequei contra o SENHOR, O Deus de Israel. O que fiz foi o seguinte: quando vi entre os despojos uma bela capa feita na Babilônia, dois quilos e quatrocentos gramas de prata e uma barra de ouro de seiscentos gramas, eu os cobicei e me apossei deles. Estão escondidos no chão da minha tenda, com a prata por baixo". Josué enviou alguns homens que correram à tenda de Acã; lá estavam escondidas as coisas, com a prata por baixo. Retiraram-nas da tenda e as levaram a Josué e a todos os israelitas, e as puseram perante o SENHOR.. Então Josué, junto com todo o Israel, levou Acã, bisneto de Zerá, e a prata, a capa, a barra de ouro, seus filhos e filhas, seus bois, seus jumentos, suas ovelhas, sua tenda e tudo o que lhe pertencia, ao vale de Açor. Disse Josué: "Por que você nos causou esta desgraça? Hoje o SENHOR lhe causará desgraça". E todo o Israel o apedrejou, e depois apedrejou também os seus, e queimou tudo e todos eles no fogo. Sobre Acã ergueram um grande monte de pedras, que existe até hoje. Então o SENHOR se afastou do fogo da sua ira. Por isso foi dado àquele lugar o nome de vale de Açor, nome que permanece até hoje. — JOSUÉ 7.16-26
SAMUEL JOHNSON Samuel Johnson (1709-1784), inglês conhecido, simplesmente, por dr. Johnson, era lexicógrafo, ensaísta, poeta e moralista - a maior figura literária da segunda metade do século XVIII. Nascido
172 em Lichfield, Staffordshire, foi instruído na Universidade de Oxford, estabelecendo-se posteriormente em Londres como jornalista. Por oito anos, começando no ano de 1747, trabalhou em seu dicionário compacto da língua inglesa. Começou, ainda, um periódico moralista chamado The Rambler [O Excursionista]. Foi membro fundador do Literary Club, produziu uma edição importante de Shakespeare. Mesmo assim, de muitas maneiras, a reputação de Johnson como homem e como conversador excede sua reputação literária - em parte devido ao Boswell's Life of Samuel Johnson [A vida de Samuel Johnson por Boswell\, escrito após a sua famosa caminhada pelas ilhas Híbridas, aos sessenta e quatro anos de idade. Evidentemente, Johnson era uma pessoa um tanto desleixada, abrupto em seu modo de agir e atormentado pela hipocondria e a melancolia. Mas também era amável, generoso, sociável e um homem com profunda fé cristã. O livro de sua coletânea de orações é particularmente comovente. A passagem seguinte é de seus escritos éticos e mostra sua percepção acurada que examina a capacidade do ser humano de decepcionar-se a si mesmo. 'HONESTIDADE LIGHT Quando você afirma acreditar em alguma coisa por princípio, você quer dizer que não tem a menor intenção de executá-la na prática. — OTTO VON BISMARCK
Auto-engano O auto-engano é um sofisma que emerge de atos singulares em substituição a um hábito, com o fim de convencer seu detentor de que possui virtude que desejaria ter, mas, na verdade, não tem. O avarento que em uma ocasião socorreu um amigo, livrando-o do perigo de ser preso, deixa-se levar pela imaginação, ao refletir insistentemente sobre sua própria generosidade heróica; ele fica indignado com aqueles que estão cegos ao mérito ou insensíveis à miséria e que se satisfazem com aquela abundância da qual nunca compartilham com os outros. Quando o mundo o censura, ou a consciência o reprova, ele apela para a ação e para o conhecimento; e, embora sua vida toda seja permeada por um comportamento violento e avarento, ele conclui que é afetuoso é liberal, pois executou uma vez um ato de liberalidade e de ternura. Assim como um binóculo que amplia o tamanho dos objetos ao aproxi marmos o olho de um de seus lados, e os reduz pela utilização do lado oposto, também os vícios são atenuados pela inversão, pelo uso da falácia por meio da qual as virtudes são aumentadas. As faltas que não podemos ocultar de nossa própria observação são consideradas, com muita freqüência, não como corrupções habituais ou práticas estabelecidas, mas como fracassos casuais e deslizes isolados. O homem que, ano após ano, coloca seu campo à venda, seja para a gratificação de sua ambição seja por ressentimento, confessa que, de vez em quando, o calor da reunião trai a sua virtude mais austera com medidas que não podem ser justificadas seriamente. Aquele que desperdiça seus dias e suas noites na devassidão e em libertinagem confessa que, habitualmente, suas paixões subjugam suas resoluções. Mas cada um deles se consola ao afirmar que seus erros não são sem precedentes, pois o homem melhor e o mais sábio já cederam à violência de tentações repentinas. Há homens que sempre confundem o elogio da bondade com sua prática. Homens que acreditam que são compassivos e moderados, caridosos e conscien-ciosos, por empregarem sua eloqüência para elogiar a brandura, a fidelidade e outras virtudes. Esse é um erro, praticamente universal, entre os que conversam bastante com pessoas dependentes, com aqueles cujo receio ou interesse os dispõe a uma reverência aparente para com qualquer discurso, mas, por mais entusiástico e por mais submisso que esse discurso seja a qualquer ostentação, ele é arrogante. Não tendo como evocar a atenção dos outros para sua própria vida, avaliam-se pela bondade de suas opiniões, esquecendo-se de que é bem mais fácil exibir suas virtudes em uma conversação que em ações. E igualmente muito numeroso o grupo dos que regulam sua vida não pelas normas da religião, mas pela medição da virtude de outros homens; dos que aquietam seus próprios remorsos com a recordação de crimes mais atrozes que os seus, pois, enquanto uma outra pessoa for encontrada em um estado pior, parecem acreditar que não são tão ruins assim.
173 Para escapar dessas aparências enganosas e de outras centenas delas, muitos recursos têm sido apresentados. Alguns têm recomendado a consolação freqüente de um amigo sábio, admitido à intimidade e encorajado à sinceridade. Mas esse não parece ser um remédio adaptado ao uso geral: pois, para assegurar a virtude de alguém, pressupõe-se mais virtude em ambos que geralmente se encontra. Na primeira, (isto é, na primeira pessoa, deveria se encontrar) um desejo tão profundo de integridade e de correção a ponto de estar disposto a se curvar à sua própria acusação vinda da boca daquele que ele estima e por quem, portanto, nunca esperará uma revelação de seus erros; e na segunda pessoa, um zelo e uma honestidade tão grande que o tornarão feliz com o ganho de seu amigo, embora saiba que poderá perder sua afeição. Muito tempo de nossa vida pode passar sem que encontremos um amigo em quem possamos confiar igualmente em seu entendimento e em sua virtude e cuja opinião, por sua imparcialidade e sinceridade, possamos valorizar de imediato. Um homem fraco, porém honesto, não é qualificado para julgar. Um homem do mundo, embora perspicaz, não está preparado para aconselhar. Muitas vezes escolhem-se os amigos pela sua similaridade de costumes, e, portanto, cada um deles encobre as fraquezas do outro, porque são as mesmas. Amigos são gentis e não possuem vontade de infligir dor, ou são interesseiros e com receio de ofender. Essas objeções levaram outros a recomendar, aos que desejam realmente se conhecer, que consultem seus inimigos, escutando suas censuras expressas em secreto, pois suas reprovações são feitas de forma direta. Sendo seu grande interesse descobrir suas próprias falhas, a perversidade de seus inimigos e o ressentimento destes o ajudará a descobri-las e a revelá-las. Mas esse princípio pode ser, muitas vezes, frustrado; pois, dificilmente acontece que rivais ou oponentes se aproximem o suficiente para conhecerem nossa conduta com tanta exatidão quanto a consciência precisaria para proferir, a seguir, a acusação. A acusação do inimigo é, muitas vezes, totalmente falsa e, comumente, tão misturada com falsidade que a mente tira vantagem do erro de uma parte para desacreditar o resto e nunca sofre qualquer distúrbio posterior em conseqüência de tais relatórios parciais. Mesmo assim, por meio da experiência, parece que os inimigos têm sido considerados como os monitores mais fiéis; pois a adversidade sempre tem sido considerada como o estado no qual o homem mais facilmente se conhece pessoalmente. Tal efeito é produzido quando se expulsam os lisonjeadores, cuja ocupação é esconder de nós nossas fraquezas ou dar livre expansão à malícia, autorizando a reprovação; ou, pelo menos, remover os prazeres que nos impediram de meditar sobre nossa conduta e reprimir aquele orgulho que, muito facilmente, persuade-nos de que merecemos qualquer coisa que desfrutamos. Conseguir parte desses benefícios está ao alcance de todo homem. Para isso, é preciso submeter porções apropriadas de sua vida ao exame de outros e colocar-se, com freqüência, em tais situações, recuando e se abstraindo para enfraquecer a influência de objetos externos. Por meio dessa prática, ele pode obter a solidão da adversidade sem a melancolia que a acompanha, as instruções sem as censuras, e a sensibilidade sem as perturbações. Como reproduzido em Vice and Virtue in Everyday Life: Introductory Readings in Ethics [Vício e virtude na vida cotidiana: leituras introdutórias sobre ética], eds. Christina and Fred Sommers (New York: Harcourt Brace Jovanovich, 1989), pp. 339-342. A PROVA AUTÊNTICA DA AMIZADE Nenhuma pessoa deve se sentir ofendida quando acusado de erros, se estas acusações forem feitas em um espírito de amizade, mesmo se divergirmos vastamente com respeito a tais acusações. — ESCRITO POR ABIGAIL SMITH (ADAMS) EM CARTA PARA JOHN ADAMS PARA QUE FOSSE SUA "SEGUNDA CONSCIÊNCIA" APONTANDO SEUS ERROS
Foi uma carta sua, escrevendo sobre os meus erros, que, inicialmente, estabeleceu, e assim creio, de forma inalterável, a persuasão e o sentimento de você ser meu amigo verdadeiro. — WlLUAM WlLBERFORCE AO COMERCIANTE SAMUEL ROBERTS, SOBRE O QUE HAVIA CONQUISTADO A SUA AMIZADE, 1817
Perguntas para reflexão e discussão
1. Qual a forma de sofisma ou de racionalismo descrito por Johnson no primeiro parágrafo? Por que esta forma de engano é particularmente convincente? Onde você viu isso sendo
174 usado? Alguma vez esse tipo de reivindicação da virtude fez parte de sua própria vida? Como? 2. No segundo parágrafo, como a técnica do engano difere da primeira, o sofisma ou racionalismo? Qual o método usado para exagerar a virtude pessoal? 3. Qual a estratégia de engano pessoal mais tentadora para você, a segunda ou a terceira? 4. Johnson aponta as inadequações das formas humanas de responsabilidade moral, embora todos nós precisemos de alguma responsabilidade. Que forma você considera a melhor para ajudá-lo a ver seu próprio auto-engano? 5. Enganar qualquer pessoa é, no final das contas, uma tentativa de enganar a Deus. Por que tentamos algo tão insensato, isso para não dizer errado?
Terceiro lembrete LEMBRE-SE DO PERIGO DO MORALISMO - NOSSO CONTRAPONTO REPULSIVO DA VIRTUDE Qualquer um que considerar o certo e o errado com seriedade extremada está confinado a ser tentado pelo moralismo: a atitude severa por meio da qual se responde ao pecado, removendo toda a graça de nossa vida, reduzindo tudo o que acontece na vida a apenas uma dimensão - a moral - e racionalizando sua própria sensação de superioridade no julgamento de outros. O legalismo e o farisaísmo são semelhantes, e o moralismo é descrito como uma maldição permanente dos estadounidenses, por causa das distorções de sua herança puritana. Em uma época em que a cultura moderna foge da cristandade, estabelecendo uma distância descomunal entre cultura e cristianismo, uma quantidade demasiada de cristãos está indo de encontro a essa fuga, recorrendo, instintivamente, ao moralismo, em suas respostas particulares e públicas, contra aquilo que deploram. TUDO ESTUFAS Ao amanhecer ele apareceu novamente no templo, onde todo o povo se reuniu ao seu redor, e ele se assentou para ensiná-lo. Os mestres da lei e os fariseus trouxeram-lhe uma mulher surpreendida em adultério. Fizeram-na ficar em pé diante de todos e disseram a Jesus: "Mestre, esta mulher foi surpreendida em ato de adultério. Na Lei, Moisés nos ordena apedrejar tais mulheres. E o senhor, que diz?" Eles estavam usando essa pergunta como armadilha, a fim de terem uma base para acusá-lo. Mas Jesus inclinou-se e começou a escrever no chão com o dedo. Visto que continuavam a interrogá-lo, ele se levantou e lhes disse: "Se algum de vocês estiver sem pecado, seja o primeiro a atirar pedra nela". Inclinou-se novamente e continuou escrevendo no chão. Os que o ouviram foram saindo, um de cada vez, começando pelos mais velhos. Jesus ficou só, com a mulher em pé diante dele. Então Jesus pôs-se em pé e perguntou-lhe: "Mulher, onde estão eles? Ninguém a condenou?" "Ninguém, Senhor", disse ela. Declarou Jesus: "Eu também não a condeno. Agora vá e abandone sua vida de pecado". — JOÃO 8.2-11
LANGDON GILKEY Langdon Gilkey foi apresentado na parte três, no capítulo sobre a avareza. A passagem seguinte é proveniente do mesmo livro — Shantung Compound [Complexo Shantung] - e ilustra o perigo do moralismo o qual, muitas vezes, transforma as tentativas de tomar uma posição pela verdade, as quais deveriam ser positivas, em atitudes sem atrativos e contraproducentes. De fato, o moralismo não executa a justiça como reivindica que faz. Ele serve para os fins do próprio moralista, para justificar, pela racionalização, a superioridade que ele reivindicou para si. Vale a pena lembrar que Jesus sempre estava do lado do pecador desprezado e contra os moralistas, campeões da lei.
Shantung Compound [Complexo Shantung] Todavia, o legalismo era a falha mais predominante do missionário conservador, e seus efeitos, desoladores, e a maioria das pessoas da comunidade sentia seu efeito. Por legalismo, refiro-me à prática, exemplificada por Baker, de julgar as próprias ações e aquelas de todos os outros por um conjunto de prescrições rígidas e, geralmente triviais, de coisas que podem e não podem ser feitas. O exemplo mais triste diz respeito a nossa quantidade mensal de cigarros.
175 Cada prisioneiro de guerra tinha permissão para comprar, na cantina, certa quantidade de cigarros, suficientes para um fumante esporádico, mas, lamentavelmente, inadequado para um fumante que fuma um maço de cigarros por dia. Por conseguinte, muitos dos fumantes inveterados sempre tentavam conseguir um lote extra de cigarros com as fichas de ração dos não-fumantes. Já que a maioria dos missionários não fazia uso do tabaco, isso parecia justo. Provavelmente, mais da metade deles oferecia suas fichas de forma bem-humorada e não fazia caso disso. Mas um número significativo de conservadores recusava-se doá-las, e todos eles diziam: "Jamais permitiria que cigarros fossem registrados em minha conta na cantina". Aparentemente, temiam que isso seria tido como "demérito", usado contra eles em algum acerto de contas posterior no livro celestial. A maioria dos leigos, naturalmente, achava isso bastante limitado e, conforme explicavam: "... não poderíamos esperar nada melhor destes benditos missionários". Mas, de resto, não havia muitos comentários. No entanto, com a chegada de dezesseis pacotes de cigarros estado-unidenses, empada uma das parcelas da Cruz Vermelha estado-unidense, isso se apresentou como um problema moral complexo para os piedosos. O que deveriam fazer com eles? Sua lei rígida contra o fumo, certamente, exigia que os destruíssem — especialmente quando haviam recusado emprestar suas fichas de ração, porque fumar era pecaminoso. Por outro lado, era bastante tentador não destruir aqueles pacotes de cigarro. Agora, poderiam fazer negócios lucrativos, visto que os fumantes inveterados ofereciam latas de leite, manteiga e carne em troca de um ou dois maços de cigarros. Será possível que um homem pudesse ser justificado por trocá-los por alimentos para que seus filhos pudessem ter o que comer? Os missionários, aparentemente, decidiram que era. Praticamente todos os que antes haviam recusado emprestar suas fichas de ração, estavam agora trocando seus dezesseis pacotes de cigarros pela imensa riqueza de latas de leite ou de carne. Para o observador cínico, parecia que, para esses piedosos, a associação com o fumo não era pecado se isso envolvesse algum lucro! Em nosso turno, em nosso grupo de pessoas, encontrava-se um homem muito amável, aberto e fundamentalista gentil, chamado Smithfield, entre os que deveriam cozinhar. Era ruivo, trabalhador, alegre e excelente jogador de beisebol. Certo dia, um camarada de nosso turno o pressionou a falar sobre como lidava com essa contradição, aparentemente clara, da venda dos cigarros. "Veja bem, Smithfield, se fumar é pecaminoso, então como vocês podem encorajar esse vício fazendo a troca de cigarros? E se os cigarros, realmente, não são tão ruins - como parece que vocês certamente acreditam ao trocá-los — então, por que não admitem e deixam que os outros usem as fichas para que ganhem uma ração extra? Sabe! Vocês não podem ganhar os dois, o seu leite e a sua virtude." "Sabe o que acho? Acho que vocês não acham que os cigarros sejam realmente errados. Vocês seriam um passador de ópio para conseguir o leite como estão fazendo, agora, com os cigarros? Claro que não! Não, vocês só falam muito sobre cigarros e aqueles outros vícios, porque, ao evitálos, acharam uma forma muito indolor de ser piedosos. Vocês, realmente, não levam sua fala moral tão sério assim, Smithfield!" Smithfield, embora fosse inteligente, nunca vira contradição no que fazia. "Não quero que os vejam com minha ficha, porque usar tabaco é pecaminoso", ele declarou confiantemente, "e eu não tocarei no pecado se puder evitá-lo. E, quanto à troca - os vendi para conseguir leite, pois meus filhos precisam dele. Isto não é razão suficiente?". Percebi que o questionador perspicaz de Smithfield estava na pista certa. Mostrava o quão seriamente os missionários consideravam o seu próprio código moral. Cheios de "pode e não pode" insignificantes, aquele código parecia bastante trivial para carregar o peso da equidade que procuravam inserir nele. Cheguei à conclusão de que o que havia acontecido era que, de alguma maneira, no desenvolvimento da ética protestante, o alvo maior de servir a Deus no mundo pervertera-se ou perdera-se na confusão. Em vez de levar o amor e o serviço ao mundo, por meio de seu chamado e de sua vida familiar, o
176 protestante começou a tentar se manter "santo" apesar do mundo. Ao aceitar cada vez mais os valores de propriedade, de segurança e de prestígio, os quais são valores fundamentais do mundo, a "santidade" que procurava no mundo, inevitavelmente, tornou-se cada vez mais trivial. Ele terminou por se concentrar somente em como evitar os vícios que poderiam impedir que ele fosse respeitável. Afinal de contas, amar o seu próximo na vida diária é algo arriscado e explosivo. Isso pode frustrar os firmes direitos de propriedade, as barreiras de classe e de raça e lançar dúvidas quanto a santidade e justiça da guerra e da violência! Nenhuma classe em ascendência na sociedade pode arcar, facilmente, com o amor como seu objetivo! Mas na "santidade" podem combinar o fervor moral com a conveniência social. O "homem santo", definido apropriadamente como clérigo prudente, poderia ser proprietário e prestigiado e ainda assim ser um pilar piedoso da igreja. Imagino que o protestantismo, por meio desse tipo de desenvolvimento, produziu um moralismo degenerado, um tipo de legalismo dos vícios insignificantes da vida que seriam enfadonhos e patéticos se não houvesse uma influência tão terrível sobre tantas centenas de pessoas de outra forma bondosas. Para muitas delas, ser um bom cristão parecia significar, quase que exclusivamente, guardar-se limpo de vícios, como fumar, fazer apostas, beber, blasfemar, jogar baralho, dançar e ver filmes. O critério funcional pelo qual os protestantes julgam a si mesmos e a seus vizinhos é essa exigência legal de pureza (por exemplo: "Ele não pode ser um cristão, pois amaldiçoa."). E eles são tantos que multidões de cristãos sentem que podem, em meio a todas as ambigüidades da vida, determinar, exatamente, a posição da alma imortal de um homem por meio de sua atitude para com esses vícios. Dessa maneira, aqueles com a mentalidade legalista poderiam ser vistos mais facilmente em um concilio para cidadãos brancos do que em um bar; pensariam ser melhor estarem envolvidos em uma luta agressiva do que em um jogo de cartas; preferiam ser pegos pagando mal o seu empregado do que ser ouvido praguejando. Ao escutar um clérigo, com esse tipo de convicção, pregar, alguém poderia concluir que, em uma sociedade estado-unidense segregacionista, militar e, em muitos aspectos, economicamente injusta, eles chegaram perto de introduzir a utopia, quando obtiveram sucesso em barrar a venda legal de bebidas alcoólicas! Aprendi com essa experiência que a falha dessa ética protestante não era por que esses missionários legalistas eram demasiadamente morais. Antes, era por que muitos deles não estavam livres de sua lei a fim de que pudessem ser suficientemente moral. O legalismo deles os prevenia de ser tão criativo quanto a sinceridade de sua fé os deveria ter feito. Todos os que estavam no campo de concentração — missionários e leigos, católicos e protestantes - de certa forma, falharam em satisfazer suas expectativas, seus próprios ideais, e fizeram coisas que não gostariam de fazer e sentiam que não deveriam fazer. Não era sobre esse tipo de situação desagradável que eu estava pensando. O que senti ser especialmente fraco nesses protestantes era o falso padrão de julgamento religioso e ético deles, o qual frustrava o desejo deles de funcionar moralmente na comunidade, pois aquele padrão julgava a eles mesmos e os outros por meio de um critério tanto arbitrário como irrelevante. No final, deixava a pessoa com um sentimento de justiça própria e de autosatisfação, quando os problemas reais e, fatalmente, morais da vida no campo de concentração, ainda não haviam sido levantados e, muito menos, resolvidos. Já era bastante evidente que nossa comunidade estava diante de problemas morais suficientemente profundos para ameaçar sua própria existência. Mesmo assim, um grupo significativo de líderes cristãos estava exclusivamente preocupado com assuntos de caráter moral e de vícios que não tinham a menor relação com esses problemas mais profundos de nossa existência. Por essa razão, a veemência moral deles deixava transparecer, tanto para eles mesmos quanto para a moralidade séria que representavam, que não passavam de um segmento socialmente irrelevante da vida, em vez da força criativa que poderiam ter sido. As forças morais construtivas só eram enfraquecidas, e as forças cínicas, fortalecidas, fazendo com que os missionários, homens honestos, trabalhadores e geralmente dispostos ao sacrifício pessoal, fossem vistos como "fracos" - e, ainda, chegaram a ajudar os jovens a não se associarem a eles! - por que fumavam ou praguejavam. "Se aquilo é moralidade, então não quero nada com isto", disse um homem em nosso turno, desgostoso com a estreiteza. Dessa maneira, a religião séria separou-se da moralidade séria, e o
177 resultado foi que ambas, a religião e a moralidade - bem como a comunidade na qual coexistiam -, foram incomensura-velmente debilitadas. O resultado mais patético desse legalismo, no entanto, foi a barreira que ele criou entre o piedoso autoconsciente e os outros seres humanos ao redor dele. Os protestantes conservadores, quase que inevitavelmente, desaprovavam, rejeitavam e se afastavam daqueles que não davam atenção a suas regras, bastante rígidas, de comportamento pessoal. Certa vez observei, com horror deslumbrado, esse processo de rejeição e afastamento acontecendo, quando um fundamentalista britânico, jovem e amável, com o nome de Taylor, juntou-se ao nosso turno na cozinha. Taylor, de todo coração, queria se entrosar com os homens que ali se encontravam, queria ser cordial e amigável para com eles, como sabia que um cristão deveria ser. Nas primeiras horas tudo correu bem, ninguém contava uma piada suja nem fazia com que a vida para Taylor se tornasse difícil de alguma outra maneira. Mas, quando estávamos distribuindo a carne ensopada com legumes para o almoço, alguns pingos do líquido grosso e quente caíram na mão de Neal. Tom Neal era um ex-marinheiro de grande força física e de grande integridade. Naturalmente, esse marujo britânico poluiu o ar com suas pragas enquanto tentava tirar o caldo quente de sua mão. Quando a dor passou, cerca de um minuto depois, ele relaxou e continuou com a sua distribuição, animado como sempre. Mas, agora, algo já estava diferente. Taylor não havia dito uma palavra, nem movido uma palha, mas parecia estar congelado por dentro, como se tivesse sentido um calor de incontrolável desaprovação. Aquele sentimento, como todo sentimento profundo, projetava-se exteriormente, sendo comunicado silenciosamente a todos que se encontravam ao seu redor. Um abismo intangível aparecera de algum lugar, tão real quanto o caldo que estava sendo distribuído e sendo tirado do caldeirão. Naturalmente, Neal percebeu isso e olhou, atenta e penetrantemente, os olhos tristes e introvertidos de Taylor. Com discernimento surpreendente, ele afirmou: "Ei, rapaz, minhas palavras não podem lhe machucar! Venha e me ajude a servir este almoço". Taylor tentou sorrir; pois ele odiava essa sua reação. Mas sentiu-se imensamente desconfortável, passando o resto de seu tempo conosco, ficando espiritualmente isolado e sozinho. Certo dia, ele me afirmou que só se sentia feliz quando estava com os outros "crentes". Não eram poucos os missionários que se exultavam com esse código, e, quando o usavam, alguém era tentado a acreditar que aquilo não passava de um instrumento de orgulho contra seu próximo, um meio de desaprovar a outra pessoa e, assim, elevar-se espiritualmente a seus próprios olhos — certos de que também seriam elevados aos olhos de Deus. Mas outros eram vítimas de sua própria lei e "escravos" dela, como Paulo afirma. Mesmo que quisessem aceitar seus companheiros, o entendimento legalista da religião os impedia de assim fazer, forçando sobre eles, quer quisessem isso quer não, essa sensação de desaprovação, essa rejeição involuntária e essa barreira odiada, mas inevitável. Aqueles homens não eram hipócritas - como outros se sentiam, quando, muitas vezes, acusados por essas leis desconhecidas. A vontade deles não era julgar os outros, mas eles não conseguiam evitar isso. Era irônico que os protestantes aqui descritos pareciam encarnar, ainda mais que seus irmãos monásticos, a perspectiva de cristianismo repetidamente tão deplorada, o cristianismo que retirouse dos homens a fim de procurar a salvação longe da vida das pessoas reais. Em seu esforço frenético de escapar dos vícios da carne e, assim, ser "santo", muitos, sem perceber, caíram em pecados do espírito muito mais mutiladores, como o orgulho, a rejeição e o desamor. Continuo a pensar que essa tem sido a maior tragédia da vida protestante. Extraído do Shantung Compound: The Story of Men and Women Under Pressure [Complexo Shantung: a história de homens e mulheres sob pressão] escrito por Langdon Gilkey. Copyright © 1966 por Langdon Gilkey. Copyright renovado © 1994 por Langdon Gilkey. Reproduzido com permissão da HarpicCollins Publishers, Inc. SOLDADOS RELIGIOSOS? Uma pessoa não pode entrar nesta guerra se não possuir um certificado de todas suas virtudes, assinado pela maioria dos donos de propriedades livres de seus arredores, e se não for declarado piedoso por seu pastor. Ora, se os melhores guerreiros de minha velha companhia fossem desenterrados em meia centena de campos de batalha sulistas, se suas vidas fossem restauradas e sua juventude renovada, eles seriam rejeitados por inaptidão moral no combate às balas espanholas, de forma lamentável, na estação de recrutamento! Eles foram uma perversidade, em um número incalculável e de maneiras engenhosas; mas eram capazes de suportar, incessantemente, dez vezes mais que os janotas de igreja e os salmistas
178 elegiveis deste tempo degenerado. Ora! Um soldado deve ser capaz de beber grandes copos, cheios até a borda, de aguardente, vociferar pragas que enchem a boca e jogar o jogo famoso de cartas para ganhar o soldo mensal de seus camaradas. Ele deve saber como pilhar uma fazenda, saquear uma cidade e arrasar largamente o civil próspero, 'sem considerar sua associação política'. — AMBROSE BIERCE, ATACANDO A EVIDENTE RELIGIOSIDADE DURANTE A GUERRA ESPANHOLA-AMERICANA
Perguntas para reflexão e discussão
1. O que se encontrava por detrás da recusa dos missionários conservadores para deixar que os fumantes usassem suas fichas para comprar uma quantidade extra de cigarros? Como a frase, que começa com: "Nunca deixaria", revela essa atitude subjacente? 2. De que maneira as atitudes dos missionários mudaram quando tiveram a oportunidade de trocar cigarros por leite e carne? Como isso era interpretado pelo "observador cínico"? 3. O que você pensa sobre o argumento apresentado a Smithfield sobre a contradição inerente de seu comportamento? O questionador estava correto? Qual a "maneira praticamente indolor de ser piedoso" aceita pelos cristãos modernos? Quais são as que você adota? 4. Como você responderia à crítica de Gilkey de que os crentes têm trocado o amor pelo serviço no mundo, com o objetivo de se permanecer "intocado" pelo mundo? Por que esse ato é uma perversão dos ensinos de Jesus? 5. De que forma o legalismo, referente aos "vícios insignificantes da vida" dos protestantes no campo, trabalhava verdadeiramente contra as demonstrações de verdadeira bondade e moralidade? 6. Veja o exemplo de Taylor e Tom Neal. O que ele lhe diz a respeito sobre a tendência de criar barreiras do moralismo? Onde você viu isso acontecer em seus círculos? A reação mais natural é criar um "gueto" de pessoas que pensam como nós. Por quê? 7. As formas específicas do moralismo, mencionadas por Gilkey, têm mudado nos cinqüenta anos desde o campo. Quais os equivalentes de hoje? Como podemos nos posicionar em relação às preocupações morais sem cair na armadilha do moralismo?
Quarto lembrete LEMBRE-SE QUE AS DIFERENÇAS FAZEM DIFERENÇA - NOSSA INDESEJÁVEL INSISTÊNCIA EM UM TEMPO DE PLURALISMO Ao falarmos sobre o certo e o errado na sociedade pluralista, uma das grandes armadilhas é a indiferença. Há, simplesmente, uma exagerada quantidade de reivindicações conflitantes sobre o que é certo e o que é errado e o porquê disso. Portanto, quem se importa? Na melhor das hipóteses o resultado é uma forma de boa vontade indistinta que pretende que, se é que existe diferença, elas não têm importância alguma. Ao contrário da perspectiva bíblica, em que todas as idéias têm suas conseqüências - especialmente se forem escritas - e as diferenças fazem uma grande diferença. UMA DIFERENÇA INFINITA Admiro-me de que vocês estejam abandonando tão rapidamente aquele que os chamou pela graça de Cristo, para seguirem outro evangelho que, na realidade, não é o evangelho. O que ocorre é que algumas pessoas os estão perturbando, querendo perverter o evangelho de Cristo. Mas ainda que nós ou um anjo dos céus pregue um evangelho diferente daquele que lhes pregamos, que seja amaldiçoado! Como já dissemos, agora repito: Se alguém lhes anuncia um evangelho diferente daquele que já receberam, que seja amaldiçoado! Acaso busco eu agora a aprovação dos homens ou a de Deus? Ou estou tentando agradar a homens? Se eu ainda estivesse procurando agradar a homens, não seria servo de Cristo. Irmãos, quero que saibam que o evangelho por mim anunciado não é de origem humana. — GÁLATAS 1.6-11
C. S. LEWIS C. S. Lewis foi introduzido anteriormente na parte 1, sobre o orgulho. A primeira dessas duas passagens é proveniente de seu livro Mere Christianity [Cristianismo puro e simples], e a segunda passagem, do livro The Weight of Glory [O peso da glória]. Elas são exemplos claros de seu ponto de vista, de que o indivíduo é mais importante que a história e as instituições humanas e, portanto, nenhum de seus pensamentos ou atos é demasiadamente pequeno para que não tenha um
179 significado eterno. Ao passo que Zen Budistas crêem que "o homem é uma pedra lançada em um tanque que não causa ondulações", a visão bíblica é que as ondulações humanas continuam para sempre. A indiferença moderna para com as diferenças é, portanto, desastrosa. Diferenças sempre fazem uma diferença - possivelmente, até mesmo, entre céu e inferno. QUEM É CAPAZ DE SUPORTAR? Estou completamente convencido de que Deus deixará entrar no céu todos aqueles que, em sua considerada opinião, puderem suportá-lo. Mas, 'suportar' pode provar ser uma questão bem mais difícil do que imaginada por aqueles que fundamentam sua opinião sobre o céu dos filmes e das pregações populares. O fogo do céu pode ser bem mais quente que aquele encontrado em outro lugar. — DALLAN WILLARD, THE DIVINE CONSPIRACY [A CONSPIRAÇÃO DIVINA]
Comportamento cristão Estamos chegando ao ponto em que as diferentes crenças sobre o universo levam a diferentes comportamentos. E pareceria muito sensato, à primeira vista, parar antes de chegarmos a este ponto e apenas continuarmos com aquelas partes da moralidade que são aceitas por todas as pessoas sensatas. Mas será que isso é possível? Lembremo-nos de que a religião envolve uma série de afirmações que podem ser verdadeiras ou falsas. Se verdadeiras, implicam em um conjunto de conclusões acerca do modo correto de navegar a esquadra humana; se falsas, as conclusões serão outras. Por exemplo, voltemos ao homem que diz que uma coisa não está errada se não ferir outro ser humano. Ele compreende bem que não deve prejudicar os outros navios, mas pensa que o que faz a seu próprio navio é problema exclusivamente seu. Mas não faz grande diferença se seu navio é de sua propriedade, ou não? Será que, realmente, não faz diferença ser o dono da própria mente e do próprio corpo ou ser apenas um arrendatário responsável perante o seu verdadeiro dono? Se fomos criados por alguém, para seus próprios fins, temos então muitos deveres que não teríamos se simplesmente pertencêssemos a nós mesmos. Ainda, o cristianismo afirma que todos os homens, sem exceção, viverão eternamente, e isso ou é verdadeiro ou é falso. Ora, há uma porção de coisas que não mereceriam nossa preocupação se fôssemos viver apenas setenta anos, mas que deveriam nos preocupar seriamente se formos viver eternamente. Talvez o meu mau gênio ou a minha inveja estejam se tornando gradativamente piores, mas em um passo tão gradativo que o seu aumento em setenta anos não será muito sensível. Mas, seria um inferno absoluto dentro de um milhão de anos: de fato, se o cristianismo é verdadeiro, inferno é precisamente o termo técnico correto para designar o que ocorreria. E a imortalidade produziria outra diferença que, diga-se de passagem, tem uma conexão com a diferença entre o totalitarismo e a democracia. Já que o homem vive apenas setenta anos, então um estado, uma nação ou uma civilização, que podem durar mil anos, são mais importantes do que o indivíduo. Mas se o cristianismo é verdadeiro, então o indivíduo é incomparavelmente mais importante, porque ele é imortal e a vida de um estado e de uma civilização, comparada com a sua, corresponde apenas a um momento. Em português extraído do livro Cristianismo puro e simples de C.S.Lewis. Título anterior: Cristianismo Autêntico. Traduzido do originai em Inglês Mere Christianity William Collins •' Sons em Co. Ltd. © C.S.Lewis 1942. Publicado com autorização pela ABU Editora S/C. Extraído do livro Mere Christianity de C.S.Lewis. Copyright © 1942 por C.S.Lewis Pte. Ltd. Extratos reproduzidos com permissão.
O peso da glória Enquanto isso, a cruz precede a coroa, e a manhã de segunda-feira está aí. Abriu-se uma fenda na impiedosa muralha que rodeia o mundo, e somos convidados a seguir, dentro dela, o grande Capitão. Segui-lo é, com efeito, essencial. Nesse caso, pode-se perguntar qual a utilidade de tanta especulação. Posso detectar pelo menos uma utilidade. Cada pessoa pode pensar demais em seu potencial de glória; mas nunca será possível pensar na glória que também revestirá o seu próximo. O volume, o peso, o fardo de glória do meu próximo deve pesar sobre mim diariamente, o fardo tão pesado que só a humildade pode carregar, e os ossos do orgulho quebrar-se-ão. É muito sério viver numa sociedade constituída por possíveis deuses e deusas, lembrar que a mais desinteressante e estúpida das pessoas com quem falamos pode, um dia, vir a ser alguém que, se a víssemos agora, nos sentiríamos fortemente impelidos a adorar: ou (quem sabe?) a personificação do horror e da corrupção só vistos em pesadelos. Passamos o dia inteiro ajudando-nos uns aos outros a, de certo
180 modo, encontrar um desses dois destinos. E à luz dessas possibilidades esmagadoras e com o devido temor e circunspecção que devemos orientar as nossas relações com os outros; toda amizade, todo amor, toda recreação, toda política. Não existe gente comum. Você nunca falou com um simples mortal. As nações, as culturas, as artes, as civilizações — essas são mortais, e a vida delas está para a nossa como a vida de um mosquito. Mas é com criaturas imortais que brincamos, trabalhamos ou casamos, e a elas que desdenhamos, censuramos ou exploramos — horrores imortais ou esplendores perenes. Não significa que devamos ser perpetuamente solenes. Precisamos divertirnos, mas nossa alegria deve ser aquela (aliás, a maior de todas) que existe entre pessoas que sempre se levaram a sério — sem leviandade, sem superioridade, sem presunção. E nossa caridade deve ser um amor autêntico e precioso que se ressinta fortemente do pecado, mas ame o pecador — não mera tolerância ou indulgência que parodie o amor, como a leviandade parodia a alegria. Depois da santa ceia, o nosso próximo é o objeto mais santo que se apresenta aos nossos sentidos. E se ele for nosso irmão na fé, a santidade que nele existe é quase idêntica, pois nele também Cristo — o que glorifica e é glorificado, a própria Glória — está latente. De C.S.Lewis, The Weight of Glory. Copyright ©1949 por C.S.Lewis Pte, Ltd. Extratos reproduzidos com permissão. Extraído de O peso da glória, trad. de Isabel Freire Messias, Edições Vida Nova.
Perguntas para reflexão e discussão
1. Na passagem extraída de Cristianismo puro e simples, que defesa Lewis fornece para explorar as diferenças nas crenças, em vez de meramente as similaridades? 2. Nas duas áreas mencionadas por Lewis - quer os seres humanos sejam "donos" de sua própria mente e corpo quer meramente "arrendatários" - que diferenças esses fatos acarretariam, se os seres humanos hão de viver para sempre? 3. Em quais outras áreas as crenças sobre o universo conduzem, ou deveriam conduzir, a um comportamento diferenciado? No contexto do ensaio de Lewis, como você responderia à pessoa que argumenta que o que é certo para você pode não ser certo para mim? 4. Na passagem extraída de O peso da glória, o que Lewis quer dizer com a afirmação: "Não existe gente comum"? Como essa compreensão deveria influenciar nosso comportamento diário? 5. A luz das observações sobre os seres humanos, o que Lewis entende com "tolerância" - a "virtude" mais estimada na cultura moderna ocidental? Por que ela é um desprezo ao "amor autêntico e precioso"?
Quinto lembrete LEMBRE-SE DA DEMONSTRAÇÃO - A VIRTUDE INCORPORADA NA AÇÃO "Pregue o evangelho constantemente", disse são Francisco de Assis, "e, se for necessário, use palavras". Em um estudo como este, é necessário o uso de palavras - para ler, para discutir, para fazer perguntas e para produzir informações. No entanto, aqui no término de nosso estudo, deve ser enfatizado que todas essas palavras têm pouco valor se não as traduzirmos em ações. Nossa cultura é uma cultura barulhenta. Jornais, revistas, quadros de avisos e programas de entrevistas televisivos inundam nossas vidas de palavras — palavras para entretenimento, palavras para vendas, palavras para persuasão - e não são poucas as vezes em que muitos de nós nos tornamos cínicos. Almejamos algo mais profundo e mais verdadeiro, algo que vá além de qualquer suspeita. Tiago, escritor bíblico, afirma que a fé não demonstrada por obras é uma fé morta. Não pode dar alento a ninguém, pois não tem vida em si mesma. Ele aponta na mesma direção que Jesus, quando este afirmou: "Semelhantemente, toda árvore boa dá frutos bons, mas a árvore ruim dá frutos ruins". Portanto, as ações sem palavras são os testemunhos mais claros e mais verdadeiros da realidade inerente. São o derramamento natural do coração e a demonstração da real mudança do coração.
181 Contudo, a cautela também é apropriada. Ações podem ser impostoras. Praticar "atos de justiça" com o fim de ser respeitado pelos homens polui o ato. Jesus reservou suas palavras mais severas aos mestres da lei: "Vocês são como sepulcros caiados: bonitos por fora, mas por dentro estão cheios de ossos e de todo tipo de imundície". Portanto, uma expressão externa de bondade não é capaz de substituir uma carência de realidade interna. A falsidade, por fim, será manifesta. A realidade interna do coração deve, acima de tudo, transbordar e se transformar em ações boas e verdadeiras. Isso faz com que o evangelho seja proclamado mais poderosamente - sem palavras. ISTO QUE É FÉ Assim brilhe a luz de vocês diante dos homens, para que vejam as suas boas obras e glorifiquem ao Pai de vocês, que está nos céus. — MATEUS 5,16 Vivam entre os pagãos de maneira exemplar para que, mesmo que eles os acusem de praticarem o mal, observem as boas obras que vocês praticam e glorifiquem a Deus no dia da sua intervenção. — 1PEDRO2.Í2 De que adianta, meus irmãos, alguém dizer que tem fé, se não tem obras? Acaso a fé pode salvá-lo? Se um irmão ou irmã estiver necessitando de roupas e do alimento de cada dia e um de vocês lhe disser: "Vá em paz, aqueça-se e alimente-se até satisfazer-se", sem porém lhe dar nada, de que adianta isso? Assim também a fé, por si só, se não for acompanhada de obras, está morta. -TIAGO 2.14-17
MAXIMILIAN KOLBE Maximilian Kolbe nasceu perto de Lodz, Polônia, em 1894. Por causa da tuberculose que sofrera quando ainda criança, sempre teve saúde frágil. Aos treze anos de idade entrou para a Ordem de São Francisco e estudou, por fim, na Universidade Gregoriana em Roma. Kolbe, em 1918, foi ordenado padre na Igreja Católica Romana e, por causa de suas publicações anlinazistas, foi preso pela Gestapo em 1939 e, novamente, em 1941. Após sua segunda captura, foi aprisionado em Auschwitz onde deu sua vida em lugar de um prisioneiro condenado, Franciszek Gajowniczek. Após duas semanas de fome e sede, Kolbe morreu, por fim, de uma injeção letal de ácido carbônico. Foi canonizado pelo papa João Paulo II no dia 10 de outubro de 1982. As passagens que se seguem são extraídas do romance Orbit of Darkness (A Orbita da Escuridão), de Ian MacMillan, no qual ele reconta a história do sacrifício de Kolbe e seu efeito estarrecedor no campo de Auschwitz. Quando um prisioneiro recusou-se a se apresentar para confessar uma ofensa, o comandante do campo ordenou que dez prisioneiros fossem escolhidos fortuitamente para morrerem de inanição a fim de pagar por ela. Kolbe foi autorizado a fazer o que os guardas consideravam um gesto absurdo. E o prisioneiro Gajowniczek, aliviado da sentença, sobreviveu Auschwitz e, finalmente, retornou a sua família. Em uma era em que se fazem debates mundiais sobre ética — o que é, realmente, bom e como pode ser conhecido - o relato de MacMillen nos relembra o que uma ação boa, e sem palavras, é capaz de realizar. O APOGEU DO AMOR Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a sua vida pelos seus amigos. — JOÃO 15.13 Maximilian não morreu, mas 'deu sua vida... por seu irmão'. — PAPA JOÃO PAULO II, EM SUA HOMÍLIA NA CANONIZAÇÃO DE MAXIMILIAN KOLBE
A órbita da escuridão AUSCHWITZ - Bloco Penal 11 30 de Julho de 1941 Logo após a entrada no Porão da Fome (Cela da Morte), os dez homens são ordenados a se despir. Scharführer Hubert Pfoch os observa enquanto tiram seus uniformes listrados e imundos, deixando que os óculos caiam em cima da pilha de roupas sujas. A estranha história de seu ato começou dois
182 minutos antes de sua chegada; Pfoch está intrigado, pois seria bem mais fácil se os homens simplesmente se atirassem na cerca elétrica, como tantos outros já haviam feito... Os guardas escutam a história do homem santo, demente, e agora, ao pé da escadaria, eles se engajam em uma discussão: ele sofre de indigestão e vê isto como uma cura; ele nunca gostava de nossa comida, pobre homem; ele fará de tudo para se livrar do trabalho... Os corpos dos reclusos têm uma palidez estranha e fosforescente na escuridão, a ponto de parecerem uma coleção de fantasmas ambulantes com buracos fundos e escuros que deveriam ser seus olhos. Depois, ele vê o padre, em pé, no meio do quarto, olhando para trás, para Pfoch. Sua face é serena e tranqüila, e seus olhos, abaixo das sobrancelhas escuras que quase se juntam em cima do nariz, estão fixos em Pfoch, com um tipo de contemplação objetiva, nada mais. Pfoch sorri para ele e resfolega zombeteiramente antes de bater a porta pesada e voltar ao lugar poeirento, banhado de luz, ao pé da escadaria. Ele sente uma intensidade nervosa em sua carne - quando era menino sempre sentira uma sensação estranha de pequenez ou vergonha primitiva na presença de qualquer padre. Mas, agora, ignora o sentimento — pode ser que seja euforia ou, talvez, fome. Ele sussurra: "Bem, está quase na hora de comer". 4 de agosto de 1941 Os guardas se posicionam o mais longe possível das portas de carvalho das celas da fome. O guarda mais velho, Thomas Guerber, fumando um cigarro, senta-se em uma cadeira de madeira que range. Jurgen Vierck, o mais novo dos dois, começa a assobiar baixinho, e Guerber suspira com uma irritação indolente e diz: "Pare com isto!". "Desculpe-me", Vierck diz. Ele praticamente não tem consciência do que estivera assoviando, mas agora se conscientiza de que é algum daqueles hinos que escapam incessantemente das celas da fome. O som parece estar nas paredes, circulando nos tijolos, porque os dez homens na cela adjacente, que já estavam ali há mais tempo, haviam se soerguido de sua lassitude moribunda e estavam escutando e, agora, também cantando e orando juntos com o grupo liderado pelo padre. O som fraco dos cânticos, e depois dele um som ainda mais indistinto de vozes sussurrando, é liderado pelo padre demente, e continua hora após hora. Vierck, às vezes, fica à escuta e está convencido de que não pode ouvir nada, mas, a seguir, sente que o som vem de todas as direções, como os sussurros dos mortos... Ele faz uma pausa e coloca seu ouvido à parede. A seguir diz: "Sabe o que eles dizem sobre o homem que está lá dentro?". Guerber ergue as sobrancelhas como que perguntando. "Eles dizem que ele já estava distribuindo a comida dele há meses. Dizem que os guardas e prisioneiros colaboracionistas lhe deram os piores trabalhos, e ele os fez todos e deu sua comida aos outros". Vierck não vê reação alguma na face de Guerber. "Fico aqui me perguntando se ele é...". Mas Vierck não tinha certeza sobre o que diria. 5 de agosto de 1941 "Vim para ver o santo", o comandante vocifera amigavelmente. Jurgen Vierck se levanta, presumindo que o homem deveria ser de um posto mais elevado. Agora Vierck o reconhece, era o Scharfuhrer, da assessoria, representante do comandante. "Qual o santo a quem o senhor está se referindo, senhor?", pergunta Vierck. "O padre - o voluntário para este cargo", diz o Scharfuhrer, retirando algo de sua túnica. £ um pedaço de queijo envolto na página de um livro. "Com todo respeito, senhor, não nos é permitido alimentar os homens nas celas da fome." "Eu sei, eu sei", disse o homem com um tipo de petulância de boa índole. "Vim fazer um teste. Abra a cela." Vierck conclui que pelo fato desse homem estar em um posto mais elevado, ele deveria lhe obedecer. Ele conduz Scharfuhrer ao longo do corredor, até a cela... Vierck destranca a porta. E, quando as dobradiças rangem, os homens da cela se movem
183 vagarosamente. A expressão no rosto deles reluz com um pouco da esperança descontrolada dos dias anteriores. Um homem está morto, enrolado em posição fetal em um dos cantos da cela. "Padre! Quer um pedaço de queijo?", disse o homem. Um dos homens se levanta rapidamente e se aproxima de Scharfuhrer, meio rastejando e, com fala ofegante, pede: "Por favor, imploro por um pouco de água! Por favor!". Um outro homem dá uma gargalhada estridente... "Padre", Scharfuhrer diz. Agora, os outros homens estão mais atentos, murmurando suavemente uns aos outros, todos com os olhos no pedaço de queijo na página do livro. O padre se levanta lentamente e olha para o Scharfuhrer, que o fita, por um momento, pensativo. "Percebo o que eles querem dizer sobre seus olhos. Trouxe-lhe um pouco de queijo, quer?", diz ele. Vierck vê uma pontada súbita de desejo estampado na face do padre, mas depois a expressão se desvanece, e ele, com os olhos fitos, demonstra aquela objetividade peculiar já vista antes por Vierck. Ele está tão sereno que Vierck o imagina observando Scharfuhrer como se este, por alguma razão, fosse um pouco interessante. "Aqui está. Pegue-o", diz Scharfuhrer. "Por favor, dê o pedaço de queijo a estes homens", disse o padre. "Quero dá-lo a você." "Não, obrigado. Eu tenho comida." Depois, o padre volta para o seu lugar e se senta. "Precisamos sair", disse Vierck. "Última oportunidade", Scharführer murmura tentando seduzi-lo. O padre não responde. A seguir Scharführer ri e se retira. Novamente, perto da escadaria, ele faz uma pausa e comenta: "Você viu sua face? Consegui o que queria. Ele também é humano". Ele se volta, olhando o corredor: "Conforme eu havia escutado, aquele pequeno porcaria tinha o campo inteiro em suas mãos". "Quem disse isto?" "Correu o boato — que esse homem, de alguma forma, havia feito com que essa parte do campo parasse ou algo parecido, simplesmente por ser voluntário." "Não. No entanto, os reclusos sentem algo por ele." "E você?" "Eu ?", Vierck subitamente sente-se nervoso. "Então, ele também consegue mexer com você. E disto que eu estava falando." 9 de agosto de 1941 Dieter Nehring vê o jovem soldado atravessando a terra batida entre dois edifícios. "Sturmmann Jurgen Vierck." "Ah, sim. Posso lhe ser útil?" "Relativo ao assunto do padre." "Ainda está vivo?" "Sim," diz Vierck, e depois sorri, mas o sorriso possui uma expressão obsequiosa de conspiração. "Acho que está na hora de nos livrarmos dele." Nehring estuda os olhos do homem — nestes, ele contempla um olhar estranho, assombroso, como se estivesse ciente de algo estranho, ameaçador, atrás dele. "Por quê?"
184 "A influência dele sobre os homens." "Que homens?" Fica evidente que Vierck descobre que está, realmente, sendo contra-investigado. Nehring também havia escutado sobre essa influência — de homens que comentaram que o olhar dele lhes dava arrepios e calafrios, homens que diziam sentir um impacto intenso ao entrar na cela da fome. "Desejo ser transferido, senhor", disse Vierck. "Por quê?" O homem ri novamente, agora com uma aparente frustração graças à falha de Nehring de observar o óbvio. "Inspecionei as coisas minuciosamente", disse Vierck, olhando para a parede próxima a Nehring. "E certo que já faz nove dias que ele não come, mas parece que já está sem comer há muitas semanas... e pode ser que já não coma há meses. Isso é perceptível." "Pare", diz Nehring. "E a você que ele está afetando. Não, não. Você verá isso do começo ao fim. Ele morrerá de fome, conforme foi ordenado. Você estará ali no último dia." "Ele é um ser sobrenatural." Nehring olha para ele, tentando conter sua raiva. "Um o quê? Está fora de si?" "Acho que ele é um ser sobrenatural. Seus olhos..." "Cala-se!", grita Nehring. Ele olha ao seu redor. Os prisioneiros e os prisioneiros colaboracionistas estão todos olhando em sua direção. Quando olha para eles, estes rapidamente desviam o olhar. Ele sussurra: "Isso é repulsivo. Caia na real - esses religiosos excêntricos, apesar da disposição radiante deles, nada mais são que idiotas que sacrificam a si mesmos. Será que não consegue ver isso?" "Eu gostaria de ser..." "Não, eu não aceito que soldados do Reich se transformem em bebês chorões sobre algo tão tolo como isso. Você vai ficar em seu posto. Você vai deixá-lo morrer de fome conforme ordenado, ouviu?" "Sim, senhor." Agora a expressão de Vierck parece distante, com o olhar resignado, olhar de um homem condenado. A fúria interior de Nehring muda para um tipo de perplexidade solidária. "Em um dia ou dois, levarei você para dentro da cela e lhe mostrarei um cadáver cheirando mal, e não haverá mais nada nos olhos dele, entendeu?" "Sim; senhor..." "Um padre, mas veja o que ele fez com você", disse ele. Depois, entendeu porque isto se tornou um problema. "Ele fez do auto-sacrifício uma virtude e, ao fazer isso, ele obscurece nossa convicção, será que não dá para perceber isso? Ele está usando a vida dele como exemplo, a fim de transformar vermes da ralé em homens. Será que você não consegue ver isso nos olhos desses prisioneiros?" Vierck pondera e balança a cabeça bem devagar. "Agora eles andam por aí agindo como se existisse alguma virtude no martírio, e tudo por causa desse homenzinho." Vierck não parece estar convencido. Nehring diz: "Escute", já é tarde. Vá e coma alguma coisa — já descobri que isso tem um efeito saudável, sempre que alguma coisa me preocupa. Vá e coma alguma coisa. E, daqui a pouco, você vai se sentir melhor." "Sim, senhor." 13 de agosto 1941 "Nenhum prisioneiro, nem os prisioneiros colaboracionistas. Ninguém sairá", disse Nehring. Ele olha para o cadáver enrugado de Sturmmann Vierck. Kassler foi o primeiro a vê-lo e tirou a mão dele da cerca elétrica com uma vassoura. Perto da cerca, encontra-se um prisioneiro colaboracionista, bastante nervoso, que havia avisado Kassler. "Isto foi um acidente", Nehring diz a Guerber. "Sim, Oberst."
185 "Você", Nehring diz a Kassler. "Quero que vá ao rio amanhã - quero que informes os prisioneiros colaboracionistas alemães de que qualquer um que mencionar o nome do padre será açoitado até que morra, entendeu? Deixe todos os outros prisioneiros colaboracionistas fora disso. Somente os alemães - Krott e assim por diante." "Sim, Oberst." "Mais uma coisa. Quero que observem se não há pessoas que se ajudam mutuamente ou pessoas que doem seu alimento - é óbvio que isso diminui a habilidade para o trabalho, mesmo que essa seja uma benevolência de auto-abnegação. Se esses atos forem observados, os dois, o que doou e o que recebeu, serão açoitados até a morte, entendeu?" "Sim, Oberst." "Toda essa bondade está fazendo este povo complacente, e não quero mais isso. Amanhã veremos se o padre poderá agüentar um pouco de ácido carbônico." 15 de agosto de 1941 Os prisioneiros estão removendo o cadáver do padre do bloco penal. Thomas Guerber supervisiona enquanto os homens manobram a padiola de madeira escada abaixo, um homem, à cabeça do padre, segurando as alças da padiola nos ombros para que o cadáver permaneça nivelado. Pequenos grupos de homens se ajuntaram em pontos entre o bloco penal e o crematório para ter a possibilidade de vê-lo enquanto passava... Pouco além da escadaria, ele vê aquele menino que havia passado as duas últimas semanas assentado perto da janela da cela. O menino observa com os olhos bem abertos, enquanto o cadáver passa e, depois, tira o capuz. Guerber está atento para os outros homens, que também estão tirando, furtivamente, os capuzes, algo estritamente proibido, mas que passa despercebido porque os guardas, que se encontram presentes, estão olhando para o cadáver estranhamente limpo, quase radiante, levemente embalado no cocho de madeira... O menino cambaleia enquanto dá lugar para a padiola do padre, e o capuz ainda está em sua mão. Outros homens, que estavam por perto e que também olhavam enquanto o padre passava, depois recolocaram os capuzes. Dois prisioneiros colaboracionistas emergem do bloco, e um deles pára na escadaria e observa o garoto. Depois desce as escadas, ao seu encontro, e lhe dá uma bofetada na cabeça. Ele levanta a mão para acertar o menino novamente. "Você!", grita Guerber. O prisioneiro colaboracionista pára. "Deixe-o em paz — será que não dá para ver que ele está fora de si?". O prisioneiro colaboracionista se retira. O garoto coloca o capuz de volta em sua cabeça, e Guerber o olha brevemente. Que cargas d'água ele está fazendo aqui naquele lugar? "Bem", diz ele, "prossiga, mas seja mais cuidadoso". O garoto saiu correndo, e Guerber, subitamente, sente um vago embaraço daquela condição ridícula, na qual se encontrou ao falar com um garoto e na absurdidade de intervir a seu favor. Ele volta aos degraus dos blocos penais, e Kassler aparece. Ele desce a escada e vai até Guerber e diz: "O homenzinho demorou mais que duas semanas." "Sim." "Perdi uma aposta", disse ele, e em face pode-se observar um olhar de perplexidade trágica. Depois sorri e diz: "Minha estimativa era de onze dias..." Então Guerber foi deixado ao pé da escadaria. Ele observa a fumaça intensa vindo da chaminé de crematório. Extraído de Orbit of Darkness [Órbita da escuridão], © 1991 por Ian MacMillan, reproduzido com permissão de Harcourt Inc.
Perguntas para reflexão e discussão
1. Na passagem datada em 30 de julho, por que Pfoch está intrigado com a história do padre que troca de lugar com um homem condenado? Qual ele acha que é a motivação do padre?
186 Em sua opinião, o que se encontra por trás das zombarias do guarda em relação às ações do padre? 2. Como Pfoch se sente quando os olhos do padre se encontram com os dele? A que ele atribui isto? 3. No trecho do dia 4 de agosto, onde se posicionam os guardas das celas da fome? Por quê? No último parágrafo, que palavras de Vierck a Guerber transmitem seus pensamentos, em desenvolvimento, concernentes ao padre? 4. No dia 5 de agosto, o Scharfuhrer decide "testar" o padre com um pedaço de queijo. O que ele realmente está testando? O que ele demonstraria se o padre "falhasse no teste"? 5. Como o padre responde à oferta do queijo? O que ele quer dizer com: "Eu tenho comida"? Por que o Scharfuhrer pensa que conseguiu o que queria? Você concorda ou discorda? Por quê? 6. O que o Scharfuhrer ouviu a respeito da influência do padre no campo? Como a resposta de Vierck, à pergunta de Scharfuhrer, o entrega? Como você descreveria a influência que o padre estaria exercendo sobre Vierck? 7. Na passagem do dia 9 de agosto, que razão Vierck dá para se "livrar" do padre? Você acredita nele? Se não acredita, em sua opinião, qual era a razão verdadeira? 8. A essa altura, o que Vierck havia concluído a respeito do padre? Qual o efeito, se houve algum, que os argumentos contrários de Nehring tiveram sobre ele? O que os ataques de Nehring contra o padre sugerem sobre seu próprio estado de espírito? Como o padre "obscurece" a sua convicção? 9. No dia 13 de agosto, o corpo de Vierck é encontrado. Por que ele, o guarda, jogou-se contra a cerca elétrica? Como Nehring reage ao incidente? Qual foi a influência do exemplo do padre no comportamento dos outros prisioneiros? Em sua opinião, por que essa mudança exaspera Nehring tão severamente? 10. Ao ler o parágrafo do dia 15 de agosto, como se sente? O que lhe impressiona sobre a reação dos prisioneiros à morte do padre? O que significa a intervenção de Guerber a favor do garoto que se sentava perto da cela do padre? Como você resumiria o efeito geral do ato sacrificial do padre sobre o campo? Quando foi que você viu um ato sacrificial mudar profundamente um indivíduo ou uma comunidade? Qual o lugar da ação sem palavras para as oposições éticas?
CORRIE TEN BOOM Corrie tem Boom nasceu em Haarlem, Holanda, em 1892. Ela era a segunda filha de um relojoeiro e tornou-se a primeira mulher, na Holanda, qualificada para essa profissão. Durante a Segunda Guerra Mundial, ela e sua irmão Betsie, cumpriram pena em um campo de concentração alemão, em Ravensbruck, pelo crime de esconder judeus perseguidos. Ela sobreviveu para contar a história em seu livro bastante vendido, The Hiding Place [O Refúgio Secreto]. Após a guerra, Corrie tem Bom fundou, na Holanda, uma casa de reabilitação para os sobreviventes do holocausto e recebeu honras, em 1968, pelo estado de Israel por seus esforços a favor dos judeus. Ela foi convidada a plantar uma árvores na avenida dos gentios justos, onde Otto Schindler também recebeu reconhecimento. Até os oitenta e cinco anos, Corrie tem Boom viajou e deu palestras extensivamente, visitando mais de sessenta países e trabalhando para o perdão e a reconciliação daqueles que, antes, eram inimigos. A história que se segue aconteceu em uma dessas viagens a Munique, dois anos depois do término da guerra. É um testemunho comovente do poder e da graça da virtude incorporada à ação.
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Ame o seu inimigo Foi em uma igreja em Munique que eu o vi – o homem pesado e meio careca com casaco cinza e chapéu de feltro marrom nas mãos. As pessoas estavam passando ao longo das fileiras de cadeiras de madeira para chegar à porta dos fundos, saindo da sala na qual eu havia terminado de fazer minha palestra. Era 1947, e eu viera, com a mensagem de perdão, da Holanda à Alemanha derrotada. Era a verdade mais necessária para essa terra bombardeada e amarga, e eu lhe dei minha descrição mental favorita. Possivelmente, pelo fato de que o mar nunca se encontra muito longe da mente dos Holandeses. Gosto de pensar que aquele é o lugar onde foram lançados os nossos pecados perdoados. Eu lhes disse: “Quando confessamos os nossos pecados, Deus os lança no mais profundo oceano e, ali, ficam submersos para sempre. E mesmo que não consiga achar onde isso se encontra nas escrituras, acredito que Deus, depois de lançá-los no fundo do mar, coloca ali uma placa ordenando: PROIBIDO PESCAR”. As faces solenes me fitavam sem coragem para acreditar. Nunca havia perguntas após essas palestras na Alemanha, em 1947. As pessoas se levantavam em silencia e, em silêncio, pegavam suas capas e deixavam o recinto em silêncio. E essa foi a hora que eu o vi, tentando seguir contra a corrente para tentar chegar perto de mim. Primeiro, vi a capa e o chapéu marrom, depois o uniforme azul e o gorro com uma caveira e duas tíbias cruzadas. Tudo voltou repentinamente: o enorme aposento com as luzes irritantes, suspensas; a pilha patética de vestidos e os sapatos no chão, no centro da sala; a vergonha que sentimos ao passar nuas na frente desse homem. Podia ver o corpo frágil da minha irmã à minha frente, suas costelas bem visíveis logo abaixo da pele, semelhantes a um pergaminho. Betsie, você está muito magra! O lugar era Ravensbruck, e o homem que estava tentando chegar até mim era um dos guardas – um dos mais cruéis. Agora, ele se encontrava na minha frente, sua mão estendida: “Uma mensagem muito bonita, Fraulein! Como é bom saber que, conforme a senhora falou, nossos pecados estão no fundo do oceano!”. E eu, que havia falado tão fluentemente sobre o perdão, preferia apalpar meu livrinho de bolso a apertar a mão dele. Naturalmente, ele não se lembraria de mim – como poderia se lembrar de uma prisioneira entre milhares de mulheres? Mas eu me lembrava dele e do chicote de couro oscilando em seu cinto. Eu me encontrara face a face com um dos que me capturaram e meu sangue parecia congelar. Ele me disse: “Mencionou Ravensbruck em sua palestra. Eu fui um dos guardas de lá”. Não, ele realmente não se lembrava de mim. Ele prosseguiu: “Mas, depois daquela época, tornei-me cristão. Sei que Deus me perdoou das crueldades que fiz ali, mas também gostaria de escutar isso vindo de você Fraulein. Você pode me perdoar?, e novamente me estendeu sua mão. E lá estava eu – eu, cujos pecados deveriam ser perdoados vez após vez – e não conseguia perdoar. Betsie morrera naquele lugar – será que ele poderia apagar a morte, lenta e terrível, dela, simplesmente com um pedido? Não se passaram muitos segundos – ele, à minha frente, com a mão estendida – mas, para mim, parecia uma eternidade enquanto lutava com a coisa mais difícil que jamais tive de fazer. Pois era preciso fazê-lo – sabia disso. A mensagem de que Deus perdoa possui uma condição prévia: que nós perdoemos àqueles que nos ofenderam. Jesus afirma que se você não perdoar as transgressões daqueles que lhe ofenderam, também o Pai que está no céu não lhe perdoará suas transgressões. Conhecia isso, não somente como um mandamento de Deus, mas como uma experiência diária. Desde o final da guerra, eu tinha uma casa na Holanda para as vítimas da brutalidade nazista.
188 Aqueles que eram capazes de perdoar seus inimigos do passado também eram capazes de voltar ao mundo para viver fora daquele lugar e reconstruir suas vidas, quaisquer que tenham sido as cicatrizes físicas deles. Aqueles que nutriam a amargura permaneciam inválidos. Era muito simples, mas também muito horrível. E, mesmo assim, lá estava eu, parada, com minha alma enregelada. Mas o perdão não é uma emoção – também estava ciente disso. Perdão é um ato da vontade, e a vontade pode funcionar à parte da temperatura do coração. Orei silenciosamente: “Jesus, me ajude! Posso levantar a minha mão, isso eu posso fazer. Senhor, supra os sentimentos”. E, assim, sem sentido e mecanicamente, apertei a mão daquele que me estendia a sua. E, ao fazê-lo, uma coisa inacreditável aconteceu. A corrente começou na altura do meu ombro, percorreu rapidamente meu braço e emergiu em nossas mãos dadas. E, depois, aquele calor curador parecia fluir por todo meu ser, e meus olhos se encheram de lágrimas. Disse-lhe, chorando: “Eu lhe perdôo, irmão! De todo o meu coração”. Permanecemos assim por um bom tempo, o ex-guarda e a ex-prisioneira. Nunca havia conhecido o amor de Deus tão intensamente quanto naquele momento. Mas, mesmo assim, conscientizei-me que não era o meu amor. Havia tentado e não tinha poder para isso. Era o poder do Espírito Santo, conforme registrado em Romanos 5.5: “... porque Deus derramou seu amor em nossos corações, por meio do espírito Santo que ele nos concedeu.” “I’m Still Learning to Forgive” [“Ainda estou aprendendo a perdoar”] por Corrie tem Boom. Extraído com permissão da revista Guideposts, copyright © 1972 Guideposts Associates, Inc, Carmel, NY
Perguntas para Reflexão e discussão
1. Em sua opinião, como seria levar a mensagem do perdão de Deus à Alemanha em 1947, especialmente sendo uma ex-prisioneira de um campo de concentração? 2. Em sua opinião, como Corrie ten Boom se sentiu ao reconhecer o homem, um ex-guarda de Ravenbruck, que estava se aproximando dela? 3. O ex-guarda diz: “Como é bom saber que, conforme a senhora falou, nossos pecados estão no fundo do oceano!”. Se você estivesse no lugar de Corrie ten Boom naquele momento, que pensamentos poderia ter tido? Que impacto isso teria sobre você, ao constatar que o guarda não se lembrava de você? 4. O guarda pede a Corrie ten Boom que o perdoe pessoalmente, estendendo-lhe a mão. Possivelmente, que justificativas daria para recusar apertar a mão desse homem? O fato de que a sua irmã havia morrido debaixo de seu tratamento entraria em jogo? 5. Porque Corrie ten Boom sabia que não Haia outra escolha, a não ser perdoar? Como ela vira o poder do perdão entre as vítimas do nazismo em sua terra natal? 6. Você concorda que “perdão não é uma emoção” ? Você já experimentou o perdão como um “ato da vontade” ? De que forma essa compreensão capacitou Corrie ten Boom a dar o primeiro passo na direção do perdão? 7. O que ocorreu no instante em que Corrie ten Boom estendeu sua mão para apertar a mão do homem? Ela se conscientizou, posteriormente, de onde veio aquele poder para perdoar? Você sabe de onde? 8. Por meio desse encontro, quem experimentou a mudança mais profunda? Quando você foi mudado pelo ato do perdão? 9. Se Corrie ten Boom houvesse recusado dar o aperto de mão, de que maneira essa história seria diferente? Como a sua recusa teria afetado aquele homem? Afetado a ela? À luz da história, em sua opinião, porque Tiago, escritor bíblico afirma: “A fé sem as obras está
189 morta” ? 10. Ao relembrar todas as leituras, qual a importância da compreensão das virtudes e dos vícios para nossa vida comunitária? Em sua própria vida? Como sua vida será diferente depois do que você estudou? De que maneira a verdade do perdão – tanto o perdão de Deus para conosco quanto o nosso perdão para com os outros, conforme demonstrado na leitura – informa sobre nosso entendimento sobre as virtudes e os vícios?
Leituras adicionais Para aqueles que desejam ler mais a respeito do assunto sobre os sete pecados capitais, temos, a seguir, uma pequena lista de livros que servem de ajuda e são acessíveis. • • • • • •
Henry Fairlie, The Seven Deadly Sins Today [Os sete pecados capitais hoje] (Washington, D.C.: New Republic Books e Nova York: Simon and Schuster, 1978). Peter Kreeft, Back to Virtue [De volta à virtude] (São Francisco: Ignatius Press, 1992). C. S. Lewis, Mere Christianity [Cristianismo puro e simples] (Nova York: Macmillan, 1952). Solomon Schimmel, The Seven Deadly Sins [Os sete pecados capitais] (Nova York: Free Press, 1992). Christina e Fred Sommers, Vice and Virtue in Everyday Life: Introductory Readings in Ethics [Vício e virtude na vida diária: leituras introdutórias à ética] (San Diego: Harcourt Brace Jovanovich, 1989). Angus Wilson. W. H. Auden, et. Al., The Seven Deadly Sins [Os sete pecados capitais] (Nova York: William Morrow, 1992).
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Guia do leitor Guia de estudo para grupos de discussão Este guia de discussão para grupos oferece um formato para oito discussões de noventa minutos cada sobre o livro. O ideal é que os participantes leiam três seleções do livro antes de cada encontro. No entanto, é possível (mas, mais difícil) que as pessoas participem, mesmo não tendo tempo para ler o material, de antemão. Os objetivos a ser alcançados por meio desse grupo de discussão são os de ajudar o participante a: • • • • •
Compreender a ética. Entender cada um dos sete pecados capitais e ser capaz de reconhecê-los em sua própria vida. Compreender as virtudes que são os grandes opostos dos vícios mortais. Encarar o mal em seu próprio coração. Comprometer-se a se deslocar do falar sobre o que é bom para exercer o bem em sua própria vida.
A seguir mostraremos de que maneira as oito sessões em grupo podem ser feitas. As leituras selecionadas para o grupo de discussão estão entre colchetes, entre aspas ou dentro de parênteses. Além das leituras básicas aqui selecionadas, vocês discutirão, às vezes, as breves citações das caixas cinzas espalhadas pelo livro. 1. Uma visão geral e o orgulho, parte 1 (Coles, Lewis) 2. Orgulho, parte 2 (Milton, Golding, Taylor) 3. Inveja (Plutarco, Hawthorne, Shaffer, Wesley) 4. Raiva (Plutarco, Weit, Gordon, King) 5. Preguiça (Pascal, Kierkegaard, Havei, Herbert) 6. Avareza (Tolstoy, Gilkey, Hugo) 7. Glutonaria e Libertinagem (Lewis, Lawrence, May) 8. Lembretes: Um (Aristóteles), Dois (Johnson), Três (Gilkey) e Cinco (MacMillan) Se houver tempo disponível para uma sessão extra, você talvez queira discutir o que cada um de vocês planeja fazer, no próximo meio ano, com aquilo que aprenderam. Idéias, para essa nona sessão, podem ser encontradas na última página deste guia.
O papel do líder Não é preciso ter qualquer conhecimento especial para liderar? com eficiência, esse grupo de discussão. As leituras neste livro incluem a informação necessária sobre os escritores e suas idéias. Este guia de discussão oferece ajuda para a liderança de pequenos grupos. O estilo do grupo será de discussão, não de preleção, portanto não se espera que você ensine nem responda a perguntas. Qualquer conhecimento que você tenha (em história, filosofia, ética e assim por diante) enriquecerá o grupo, mas ele não se concentrará em seu conhecimento. Sua tarefa é: • • • •
Começar e terminar a reunião no tempo estipulado. Apresentar cada leitura. Pedir para que as pessoas leiam em voz alta as porções-chave de cada leitura. Selecionar as perguntas mais importantes para a discussão em grupo.
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Fazer as perguntas. Escutar atentamente às respostas e fazer perguntas subseqüentes apropriadas. Expressar suas opiniões em momentos apropriados. Colocar um tom de respeito e de livre permuta de idéias. Verificar que todos os desejosos de falar possam ter tempo adequado para assim fazer. Ajudar o grupo para não se desviar do quadro geral esboçado pelas leituras.
Começar e terminar no tempo pré-determinado é uma maneira de respeitar os participantes. Os atrasados não se importarão se você começar sem a presença deles e, ao assim fazer, estará recompensando aqueles que chegam na hora. Da mesma forma, mesmo que estejam no meio de uma boa discussão, as pessoas agradecerão se você as interromper quando o tempo expirar. Aqueles que precisam sair poderão fazê-lo e, se o anfitrião permitir, os outros poderão permanecer e continuar a conversação informalmente. Cada leitura é precedida de uma breve introdução sobre o autor e o contexto. Apresente o sumário, desta introdução, em poucas palavras em cada começo de leitura. Depois disso, peça a alguém para que leia em voz alta uma porção da leitura relacionada à primeira pergunta que desejar fazer. (Este guia fará sugestões de porções que deverão ser lidas em voz alta.) A leitura e as perguntas darão o ritmo da discussão. A leitura em voz alta refrescará a memória de todos os participantes e envolverá as pessoas que poderão não ter lido o material antecipadamente. Na parte 1, Paraíso Perdido, de Milton, ou na parte 2, Amadeus, de Shaffer, por exemplo, são especialmente efetivos quando dramatizados. Nomeie, para fazer a parte de Satanás em Paraíso Perdido e Salieri em Amadeus, pessoas capazes de transmitir a leitura com emoção. (No entanto, esteja ciente que há pessoas que não se sentem bem de ler em voz alta. E possível que seja bom perguntar, de antemão, se as pessoas não se importam de ler era voz alta.) Após vinte a trinta minutos, faça um resumo da discussão sobre a leitura feita e faça a introdução da leitura seguinte. A maioria dos grupos funciona melhor tendo dois facilitadores, em vez de somente um. E útil um revezamento na liderança das discussões das diferentes leituras ou, então, deixar que uma pessoa guie a discussão enquanto a outra cuida do tempo.
A ênfase do grupo Alguns grupos enfatizam o compartilhar de experiências pessoais e os sentimentos. Muitos não desafiam as pessoas a pensar mais profundamente. Essa série é dirigida à pessoa completa, tanto seu entendimento como seus sentimentos. Sua tarefa é ajudar com que o grupo pense, entenda e tire suas conclusões. No entanto, a conversação não é para provocar noções ilusórias. As perguntas foram projetadas para ser práticas. Os assuntos levantados são relevantes para os detalhes pequenos e importantes encontrados na vida de cada pessoa em seu grupo. E ideal que as pessoas deixem cada encontro com novos pensamentos sobre o que fazer durante o dia: na condução dos negócios, na criação dos filhos, no voto dado aos legisladores, no relacionamento com o próximo, no uso do dinheiro. E você pode ficar surpreso de quão emotivas se tornam essas discussões refletidas, à medida que novos caminhos se abrem no coração das pessoas, para novas perspectivas em suas vidas. Cada sessão é projetada para durar noventa minutos. Durante este tempo, o grupo discute três ou quatro leituras do livro. Isso significa uma média de vinte a trinta minutos para cada leitura. Portanto, não haverá tempo para se discutir todas as perguntas sobre cada uma das leituras. Não será possível discutir, nenhuma delas, exaustivamente. Em vez disso, você deverá tratar do ponto central de cada uma dessas leituras, possibilitando que os membros do grupo sigam a lógica interna que flui com a progressão das leituras. Não é bom tirar tempo e se aprofundar demais em uma só leitura porque, se assim fizer, perderá o quadro geral. A cada sessão, cada pessoa achará, pelo menos, uma das leituras pessoalmente significativa. Sempre será melhor interromper uma boa discussão que continuar com ela até seu término. A cada leitura, este guia de estudos aponta as perguntas mais úteis para a discussão em grupo.
192 Essa orientação é feita para simplificar seu trabalho. No entanto, você ainda é o líder do grupo, portanto, se perceber que o grupo se beneficia mais com outras perguntas, não sugeridas neste guia, siga a sua intuição. Em vez das perguntas aqui sugeridas que seguem cada uma das leituras, você pode preferir o uso de perguntas abertas, como: "Qual a sua perspectiva, seu sentimento ou sua reação a esta leitura?".
Liderando a discussão No começo, a maioria dos grupos depende muito de seu líder. O líder faz uma pergunta, e outro responde. O líder faz uma outra pergunta, e outra pessoa responde. As pessoas dirigem suas respostas ao líder. No entanto, um líder eficaz ajuda os participantes a falar uns aos outros. O líder faz o papel do árbitro e toma conta do tempo para que o grupo não perca de vista o ponto central. Um instrumento para ajudar as pessoas a interagir entre si é a pergunta de acompanhamento. Por exemplo, um tipo de pergunta seqüenciada convida os outros à colaboração: "O que vocês acham do ponto de vista de Tereza?" Outros tipos de perguntas seqüenciadas incluem: • • • •
Reformular a pergunta Sondar, gentilmente, em busca de mais informações ("Você pode dizer mais sobre isto?") Pedir esclarecimentos ("Então, você está dizendo que...?") Resumir uma porção da discussão
Talvez seja necessário fazer um resumo (ou pedir que outra pessoa o faça) no final da discussão de cada leitura. Isso ajudará com que as pessoas consigam entender como cada leitura se encaixa na visão geral. Mantenha contato visual com os participantes, particularmente aqueles que estão à sua esquerda e à sua direita, para que todos se sintam incluídos na discussão. É uma boa idéia arrumar a sala em forma de círculo antes do encontro para que as pessoas possam ver as faces uns dos outros. Evite responder as suas próprias perguntas. Permita o silêncio, especialmente quando estiverem olhando para o texto a fim de refrescar a memória. Se parecer que não entenderam sua pergunta é bom reformulá-la, em vez de respondê-la. Evite, ainda, comentar a resposta de cada participante. Em vez disso, faça outra pergunta para que outros comentem a resposta anterior. Encoraje os participantes a fazer perguntas sobre os comentários dados. Seu alvo é promover uma discussão animada entre os participantes sobre o ponto em discussão. No entanto, se perceber que a conversação está se distanciando do ponto principal da leitura, resuma os comentários feitos e mude para uma outra pergunta que desenvolva o foco da leitura.
Tratando com pessoas falantes e pessoas quietas Em qualquer grupo de discussão, há pessoas que são, por natureza, mais desinibidas que outras. É muito bom que todos se expressem amplamente, no entanto, isso não é essencial para esse grupo. Uma das regras básicas é que todos são convidados a participar, mas ninguém é obrigado a falar. Há várias razões por que uma pessoa pode estar quieta durante o encontro, e você pode querer avaliar que razões se aplicam a cada uma das pessoas quietas em seu grupo. Algumas das razões para que alguém esteja quieto: • • •
A pessoa pode se sentir esmagada pela leitura, o que faz com que não consiga seguir o fio da meada. É possível que haja necessidade de ouvi-la pessoalmente, fora do grupo, para entender o que a aflige. A pessoa pode esta processando a discussão interiormente. Algumas pessoas preferem digerir as idéias e os sentimentos internamente e falar somente após pensar e repensar o que desejam compartilhar. Em contraste, outras pessoas pensam em voz alta. Essas pessoas geralmente saberão, ao falar, o que pensam sobre o assunto. E possível que ambos, os falantes e os quietos estejam recebendo o que precisam por meio desse estudo. Não assuma
193 • •
que o silêncio se iguala à não participação. A pessoa pode discordar fortemente com o que está sendo dito, mas pode sentir-se inconfortável com o conflito. Há maneiras de direcionar um conflito para fortalecer o grupo. Veja a seguir o tema Discordância e conflito deste guia. A pessoa pode ter o desejo de falar, mas se sentir intimidada frente a um grupo. Quase sempre é melhor conversar com esse tipo de pessoa à parte do grupo de discussão, em vez de chamar-lhe a atenção durante o encontro.
Essa lista sobre as razões de alguém estar calado no grupo não é exaustiva. É importante avaliar cada pessoa individualmente e fazer a pergunta: "O que esta pessoa precisa?". Com pessoas que parecem falar demais é menos importante refletir sobre a razão por que falam e mais importante avaliar seu efeito sobre o grupo. Será que as pessoas mais caladas estão tirando proveito do que a falante está dizendo? Ou será que desejariam estar em outro lugar? Se você pensa que a conversação de alguém está sendo excessiva, há várias maneiras sutis para desencorajá-lo: você pode sentar-se perto da pessoa, em vez tê-la em sua frente. Você pode evitar olhá-la nos olhos ou acenar com a cabeça, porque esses são sinais que indicam que aquele que fala pode continuar. Em casos extremos, você pode falar com a pessoa após o término da reunião e recrutar a ajuda dela para extrair algo dos membros mais calados do grupo. Acima de tudo, como líder, cuide de que não seja você aquele membro que fala demais. Mantenha o grupo focado nas leituras, não em você. Resista à tentação de preencher o silêncio com suas observações. O silêncio pode ser produtivo se as pessoas estiverem pensando.
Discordância e conflito Em um grupo de discussão desse tipo, uma divergência de opinião é boa. Discussões vigorosas ocorrem quando as idéias, conclusões ou opiniões de uma pessoa são incompatíveis com a dos outros e, juntos, terão de procurar um entendimento mais profundo da verdade ou da sabedoria. Perspectivas são ventiladas abertamente, e todos têm a chance para avaliar os méritos de cada posição. Alguém poderá, até mesmo, mudar de opinião. O debate ocorre quando as idéias, as conclusões ou as opiniões das pessoas são incompatíveis; cada pessoa argumenta a sua posição; e há um vencedor. Um debate em um grupo, não é, necessariamente, ruim. Pessoas podem sentir fortemente que estão certas e que uma outra pessoa está errada. Uma defesa vigorosa da posição de alguém é jogo honesto. Algumas regras básicas podem tornar as discussões vigorosas e os debates construtivos: • • • •
O desacordo genuíno é um ganho, porque permite que as pessoas aprendam. Assumimos que um desacordo é válido até que se prove o contrário. O maior entendimento da verdade e da sabedoria é mais importante nesse grupo que ganhar um argumento. O respeito é importante nesse grupo. Os méritos de uma posição podem ser debatidos, mas as pessoas não poderão ser atacadas. As pessoas, caso se sintam atacadas, dirão isso respeitosamente, e o grupo deverá avaliar a situação, juntos.
Muitas pessoas temem qualquer tipo de conflito, de discussão e de debate. Se você tem membros no grupo que se sentem desconfortáveis com situações de conflito, precisa estar pronto para apresentar uma discussão sobre o conflito construtivo. Explique que as contendas são improdutivas, mas que discordar de algo não o é. Enfatize que tentar fazer com que todos concordem sobre uma opinião é menos produtivo que uma discussão vigorosa. A busca da unanimidade de opiniões acontece quando membros do grupo inibem a discussão para evitar discordâncias. A procura da unanimidade pode levar a uma "concordância burra", em que todos se sentem obrigados a pensar do mesmo modo, e as pessoas cessam de pensar por si mesmas. E natural que exista, até certo ponto, uma busca de concordância em um grupo de pessoas que não se conhecem muito bem. Mesmo assim, quanto mais você puder revelar os conflitos ocultos, menos as pessoas tendem a se afastar do grupo por motivo de insatisfação não pronunciada. Se você
194 perceber que há pessoas insatisfeitas, porém caladas, a melhor coisa a se fazer é oferecer uma breve explicação sobre o valor da discordância sadia e determinar algumas regras básicas para a controvérsia.
O quadro geral Como é preciso cobrir bastante terreno em uma única sessão, será útil ter em mente o quadro geral do livro. Você não terá tempo para discutir tudo o que desejar, pois cada leitura contém inúmeras idéias interessantes. Contudo, você pode ajudar o grupo a tirar o máximo de proveito de cada estudo se trouxer as pessoas, continuamente, de volta para estes temas: • As virtudes cardeais e os vícios mortais nos oferecem um compasso moral pelo qual podemos navegar através do caos da sociedade moderna. • A ética trata primariamente com o tipo de pessoa que devo ser e, somente depois, com o que devo fazer em certas ocasiões. O propósito principal da ética não é, primariamente, resolver problemas (ex. "É errado assistir filmes fortes?"), mas, sim, sobre como se tornar um bom ser humano e como fazer uma boa sociedade de seres humanos. • O ser vem antes do fazer, mas o fazer é mais importante que o falar. E importante fazer o que é correto, não meramente saber o que é certo. • A graça nos habilita a fazer o que é bom, portanto, precisamos da graça acompanhada do esforço. • A ética tanto a pessoal como a social é importante. Devo considerar que tipo de pessoa desejo ser em meus relacionamentos com a família, com os amigos, com os colegas, com os empregados, com os co-cidadãos e com o próximo no mundo inteiro. Também preciso considerar as leis, os costumes e os líderes que encorajam os indivíduos e os grupos a ser justos e bons. • O uso de categorias como bom e mau não precisam nos fazer corar de vergonha. A tradição ética do ocidente tem uma perspectiva elevada da natureza humana, como também uma perspectiva profunda e realista da presença e do poder do mal. Isto é, tem uma visão elevada sobre o fim para o qual os seres humanos foram criados e sobre o bem que tanto a sociedade quanto o indivíduo podem fazer. Ao mesmo tempo, leva a sério o mal profundo que tanto os indivíduos como as sociedades são capazes de praticar. Essa compreensão de nosso potencial tanto para o grande bem como para o grande mal contrasta perfeitamente com a noção moderna de que os malfeitores não passam de pessoas psicologicamente doentes, em vez de pessoas manchadas pelo mal. Ao mesmo tempo, ela é contrastada com a indiferença moderna para se tornar bom (como oposto a "satisfeito" ou "feliz"). • Os sete pecados capitais são a raiz da qual brotam todos os outros pecados. • Cada pecado capital se origina do amor desordenado — amor deficiente, amor excessivo à coisa errada e assim por diante. • As sete virtudes contidas neste livro originam-se das Bem-aventuranças do Sermão do Monte feito por Jesus. Não são antídotos nem curativos, mas excelentes opostos. Esses opostos resumem o deleite da virtude sobrenatural do Reino de Deus. Cidadãos do Reino de Deus procuram cultivar essas virtudes. Elas expressam a ordem perfeita do amor. Este livro contém duas leituras introdutórias. Discutiremos aquela (Coles) que estabelece um dos temas deste livro: Ser bom e fazer o bem é extremamente mais valioso que fazer reflexões intelectuais sobre o bem. Discutiremos, portanto, um vício mortal por vez. A tradição ocidental considera os cinco pecados do espírito (orgulho, inveja, raiva, preguiça e avareza) mais sérios que os dois pecados da carne (glutonaria e libertinagem). Os pecados do espírito são considerados mais respeitáveis na maioria das sociedades, mas, de fato, são as falhas mais destrutivas do amor. Portanto, passaremos duas sessões falando sobre o orgulho (por ser o pior pecado); uma sessão sobre a inveja, uma sobre a raiva; uma sobre a preguiça e uma sobre a avareza; uma sessão sobre a glutonaria e a libertinagem; e uma sessão sobre os lembretes. Este livro encerra com cinco lembretes. Todos são importantes, mas discutiremos quatro destes: a necessidade de disciplina para se tornar bom, os perigos do auto-engano, os perigos do moralismo
195 e (como na introdução) a importância de fazer, não somente falar. Uma sessão final, opcional, está disponível para os grupos que quiserem discutir como colocar em prática o que aprenderam. Ao final, os participantes deverão ser capazes de identificar cada pecado capital e cada virtude vivificadora e como podem ser expressos na sociedade, nos outros e, acima de tudo, em si mesmos.
SESSÃO 1 As pessoas normalmente usam a primeira reunião como uma oportunidade para saber se querem ou não participar do estudo. Isso não é preciso se o seu grupo já existe. Vocês deverão se conhecer mutuamente, conhecer o material que será usado e o formato da discussão. Portanto, você deveria pensar em algo extra para a primeira reunião a fim de ajudar as pessoas a se sentir confortáveis entre si, a ficar sabendo um pouco mais sobre o objetivo do grupo para que se animem o suficiente para retornar. Provavelmente, a melhor maneira de quebrar o gelo em um grupo novo seja compartilhar uma refeição. Planeje uma refeição simples o suficiente para que o foco esteja na conversação. Planeje a refeição da maneira que o grupo não se sinta pressionado para comer depressa, mas reserve noventa minutos para uma sessão completa. Você precisará dos noventa minutos para dar às pessoas uma amostra realista do grupo, como será seu funcionamento. Talvez compartilhar uma refeição completa esteja fora de cogitação, então considere planejar uma sessão de duas horas, reservando a primeira meia hora para um lanche e uma conversa informal.
Resumo e introduções (20 minutos) Quando a comida é deixada de lado, e o grupo se junta para a sessão, dê as boas vindas a todos. Depois disso, utilize dez minutos para apresentar às pessoas um resumo do que se espera. Explique: A Série de Estudos do Fórum Trinitariano: torna o currículo do fórum acessível a grupos de estudos. Ajuda pessoas solícitas a examinar os assuntos fundamentais pelos quais a fé age para o bem público da sociedade moderna. É cristão em seu comprometimento, mas aberto a todos os interessados em sua visão. Assuntos serão discutidos no contexto da fé e na esfera da civilização ocidental. • O tema deste estudo em particular: você poderá ler essa parte na página 9. • Os objetivos deste estudo: veja página 297. • Para o quadro geral deste estudo: veja as páginas 303-305. Um resumo de dois a três minutos será o suficiente. • O formato do grupo: A duração das discussões será em torno de noventa minutos. Em cada sessão, você cobrirá três ou quatro leituras do livro. O ideal seria que todos fizessem as leituras antecipadamente, mas é possível participar sem tê-la feito. Como líder do grupo, você selecionará, para cada leitura, as perguntas que achar mais úteis para a discussão em grupo. Seu objetivo é um intercâmbio aberto, e você não lecionará. Opiniões diferentes são bem vindas. • As regras básicas: veja a lista na página 302. • A logística: informe as pessoas daquilo que deveriam saber quanto ao lugar e ao horário dos encontros. Explique que o grupo terminará sua sessão na hora marcada. Esse é o final "flexível". No entanto, se o anfitrião permitir, você também pode colocar um "horário inegociável" para o término, trinta, sessenta ou mais minutos mais tarde. Nesse caso, as pessoas estão livres para ficar para conversar depois do final flexível até o horário inegociável. (O horário inegociável é uma cortesia dada pelo anfitrião se os encontros estão
196 sendo realizados em uma casa.) Aqui vai uma lista de regras básicas sugeridas para o grupo. Você talvez queira adicionar outras regras à lista, as referentes à divergência de opinião, na página 302: • Liderança: o líder não é um perito nem uma autoridade, mas meramente um facilitador e um co-investigador. No grupo, todos são professores e todos são alunos. • Confidencia: toda discussão é livre, franca e confidencial. Nada será mencionado fora do grupo sem permissão. • Participação voluntária: todos estão livres para falar; ninguém é obrigado a tomar parte. A única exceção será na última sessão, quando se pedirá que todos compartilhem duas ou três coisas que ele ou ela achou útil ou lhe chamou a atenção. • Público alvo: o espírito não será denominacional nem partidário: Muitas pessoas têm uma crença muito forte e são devotas, tanto denominacional como politicamente. No entanto, o desejo aqui é de aprofundar, portanto é importante transcender a advocacia política e as diferenças denominacionais. O livro origina-se da perspectiva de C. S. Lewis apresentada em Cristianismo puro e simples e não reflete nenhuma denominação em particular. Os participantes são bem vindos a expressar suas próprias perspectivas e, até mesmo, discordar das leituras. • A pontualidade: para conseguir fazer todas as leituras, o líder precisa deixar com que a discussão progrida. O encontro formal começará e terminará no tempo estipulado. Se os participantes ainda não se conhecem, faça com que cada pessoa se apresente, brevemente e em ordem seqüencial. Você será o primeiro. Isso é importante para que possam saber mais ou menos a quantidade de tempo e o tipo de resposta que cada um deve dar. Isto é, se sua resposta é uma sentença, os outros, conseqüentemente, farão sua apresentação em uma sentença. Se a sua apresentação for de um minuto ou três, os outros seguirão seu modelo. O mesmo vale com o conteúdo de sua resposta: Se você disser qual a sua profissão e quem são os membros de sua família, os outros farão o mesmo. Se você quiser respostas um pouco mais reveladoras ou interessantes, poderá pedir às pessoas que digam alguma coisa sobre si mesmas, algo que não tem nada que ver com seu emprego ou com seu relacionamento familiar.
Introdução (10 minutos) As páginas de 9-13 introduzem o material respondendo a duas perguntas: Por que vale a pena estudar ética? E, por que, se formos estudar ética, devemos focar os vícios e as virtudes da tradição ocidental? Boa parte do argumento lida com as falhas na maneira em que a sociedade moderna pensa sobre a ética. Seria uma boa idéia abordar de maneira breve estas falhas: • •
O interesse atual pela ética, boa parte dele, é simplesmente moda e, portanto, passageiro. A ética atual, boa parte dela, tem como alvo evitar que o faltoso seja apanhado ou processado, e não em fazer o que é correto.
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A ética social é enfatizada por boa parte das pessoas às custas da virtude individual. A ética reflete perspectivas superficiais da natureza humana — nossa capacidade para o bem e nossa inclinação para o mal.
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A ética tropeça na crença de nossa cultura de que não há verdades nem erros absolutos.
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A ética ignora as virtudes e os vícios que moldam a ética tradicional mais profunda e influente no ocidente.
Você pode fazer uma pausa para que as pessoas reajam a essas afirmações sobre nossa cultura. Por
197 exemplo, os participantes concordam que há pessoas que eles conhecem as quais estão mais preocupadas com o "não ser apanhado" que o fazer a coisa certa? Todos entendem o que significa "uma perspectiva elevada da natureza humana"? Você talvez queira esclarecer rapidamente as palavras: "permissivo', "transgressivo" e "remissivo". Permissivo significa que pessoas parecem acreditar que nada é absolutamente errado e, portanto, tudo é permitido. Transgressivo significa que quebrar as regras é visto como uma virtude. Remissivo significa que as normas estão descendo a ladeira em um ritmo cada vez mais acelerado. A seção, "por que 'Pecados' e por que 'Sete'?" contém alguns dos temas do estudo, portanto vale a pena ler parte dele em voz alta. Peça alguém que leia em voz alta o parágrafo que começa com: "Dali por diante,...", começando, no entanto, a leitura com "Além disso, como Chaucer Parson afirma..". O ponto-chave aqui é que os sete pecados capitais não são uma lista exaustiva dos pecados, mas a raiz de todos os outros pecados. Durante as semanas seguintes, ao estudar os sete pecados, seria interessante pensar sobre a maneira em que dão ocasião a todos os outros pecados que lhe incomodam. Depois, escolha cinco pessoas do grupo para ler em voz alta a parte do parágrafo que começa com: "Há ainda outros pontos introdutórios..." até o final da introdução. Tome alguns minutos para apontar os temas de seu estudo: Cada vício é um distúrbio do amor. Os pecados do espírito são mais sérios que os pecados da carne, e estes vícios estão emparelhados com as virtudes. Convide o grupo para dar uma olhada na lista que resume os vícios e as virtudes para ver em que direção a discussão os levará nas semanas seguintes. Aponte para aspectos que possam despertar o interesse dos membros. Por exemplo: a preguiça não é o que muitos pensam ser. Se lhe parecer útil, adicione algumas palavras sobre a causa do valor de se explorar a ética em um grupo. Um dos escritores que você encontrará em seus estudos é o filosofo grego, Aristóteles. Perto do final de seu livro Ética, ele faz algumas observações intrigantes sobre a maneira pela qual o companheirismo ajuda as pessoas a se tornarem boas. Primeiramente, quando as pessoas são amigas, juntas concentram seus esforços em qualquer coisa que pensam ser bom, seja isso jogar golfe seja amar da melhor maneira a Deus e a seu próximo. Em segundo lugar, amigos servem de modelo para nós tanto no fazer como no ser. O orgulho ou a humildade de nosso amigo, ao aprendermos com o seu exemplo, termina sendo nosso. Em terceiro lugar, os amigos são para nós como um espelho no qual conseguimos ver quem realmente somos. E em quarto lugar, eles nos levam a apreciar suas similaridades e sua diversidade. Ao aprender a apreciar a diversidade existente nas amizades, isso nos força a lidar com o orgulho (Sou eu melhor que meu amigo?), a inveja (Meu amigo é melhor?), a raiva (O que acontece quando meu amigo não quer fazer as coisas do meu jeito?) e assim por diante. Seu grupo pode fazer todas essas coisas mutuamente. Finalmente, você talvez queira avisar o grupo sobre o que pode acontecer quando pessoas estudam os vícios. As vezes, fortes emoções podem emergir. Uma pessoa, pela primeira vez na vida, pode reconhecer sua inveja e ficar profundamente envergonhada. Alguém pode ficar com raiva quando for sugerido que seu orgulho é um problema. Algumas pessoas percebem que os sete pecados capitais estão à espreita em seu coração e se desesperam ao pensar que jamais serão capazes de mudar. Tanta convicção de uma só vez pode fazer com que a pessoa se sinta desesperada. Algumas atitudes podem tornar esse processo construtivo, em vez de desanimador. Primeiramente, elogie as pessoas por reconhecer suas próprias faltas. Assegure-lhes que tem esperança: Deus está trabalhando para ajudá-las a mudar. Se alguém confessar um pecado, a resposta apropriada é assegurá-la do perdão de Deus. Em segundo lugar, trate as manifestações das emoções (tristeza, raiva e assim por diante) com respeito e peça às pessoas que mostrem respeito para com o grupo, na maneira como expressam suas fortes emoções. Em terceiro lugar, cultive o humor. O orgulho quer que os outros creiam que somos irrepreensíveis e deseja isso. A humildade reconhece que nenhum de nós é irrepreensível. Nada melhor que um pouco de humor para esvaziar o orgulho.
Robert Coles (15 minutos) O ponto principal da leitura introdutória é mostrar que é mais importante fazer o bem que falar a respeito do mesmo. É de grande ajuda começar uma extensa discussão sobre os vícios e as virtudes com esse ponto. Você conversará bastante sobre a bondade e a maldade, mas, conforme esse
198 psicanalista influente aprendeu com uma mulher iletrada e uma criança, só falar não vale nada. Deixe alguém ler em voz alta o primeiro parágrafo dessa leitura. Discuta a pergunta número 1. Leia o resto do texto em voz alta. Discuta a pergunta número 4. Convide o grupo, enquanto discute o resto do livro, a ter Ruby Bridges em mente.
Introdução ao orgulho (10 minutos) Cada vício possui algumas páginas para sua introdução. Peça para alguém ler em voz alta o primeiro parágrafo da introdução sobre o orgulho. Faça algumas perguntas que o grupo poderá responder ao final do estudo sobre esse assunto: • Por que o orgulho é o pior dos sete pecados capitais? • De que maneira o orgulho é um componente existente em cada um dos outros pecados? • Por que o orgulho é classificado como um pecado do espírito? • Por que se diz que o orgulho vem do Diabo, e não do mundo ou da carne? • E verdade que a maioria de nós não percebe o nosso orgulho? A introdução continua contrastando o orgulho com o respeito próprio. Leia em voz alta os três parágrafos que começam com: "Indo de encontro a ambas as alterações", "Visto por esse prisma" e "Em muitos outros aspectos, o orgulho...". Pergunte ao grupo de que maneira o orgulho é diferente do respeito próprio. O que há de errado com o orgulho? Cada introdução para os vários vícios inclui maneiras práticas de como o vício se expressa em indivíduos e em grupos. Chame a atenção para isso no parágrafo que começa: "Mas isso é apenas o começo...". Leia em voz alta o comentário de Dorothy Sayers sobre o orgulho: "A estratégia diabólica do orgulho é que ele não ataca nossos pontos mais fracos, mas sim nossos pontos mais fortes. Ele é de forma preeminente o pecado da nobreza". Peça ao grupo que leia os dois últimos parágrafos silenciosamente. Depois, pergunte: "Qual a conexão entre o orgulho e o descontentamento?".
C. S. Lewis (30 minutos) Resuma em poucas palavras quem foi C. S. Lewis. Essa leitura foi retirada de seu livro Cristianismo puro e simples que, originalmente, era um discurso radiofônico. Peça aos participantes que leiam o primeiro parágrafo silenciosamente e compartilhem a afirmação que os toca mais profundamente. Peça para que reflitam sobre a pergunta teste de Lewis no terceiro parágrafo da leitura "O grande Pecado": "Quanto me desagrada ver os outros me desprezarem, recusarem-se a me dar qualquer atenção, intrometerem-se em minha vida, tratarem-me com ares paternos, ou se exibirem com ostentação?" Tire tempo para que reflitam sobre o assunto, depois pergunte: "O que você acha desta pergunta como um medidor do orgulho?" Leia em voz alta o quarto parágrafo e discuta a pergunta 3. Convide as pessoas a avaliarem quão competitivas elas são e se elas acham que essa competição reflete orgulho. Leia em voz alta os dois parágrafos que começam: "Em Deus, vamos contra algo...", e: "Surge então um terrível problema". Qual o teste que Lewis oferece para detectar o orgulho em pessoas religiosas? O que você acha de seu teste? Peça para o grupo ler os três mal-entendidos do orgulho, no texto de Lewis, e peça que comentem cada um deles de uma maneira simples. De que forma^orgulho é diferente do prazer de ser louvado ou do prazer de receber o amor e a admiração de alguém? Por que é incorreto pensar que nosso
199 orgulho ofende o orgulho de Deus? Conclua com a pergunta 9. Nesse primeiro encontro do grupo, é bem possível que as pessoas ainda não se sintam confortáveis para revelar que são tentadas pelo orgulho. Isso não faz mal. Deixe a pergunta no ar. Você pode aventar a possibilidade de que as pessoas sejam honestas com si mesmas, se você mesmo falar honestamente acerca daquilo que lhe tenta ao orgulho. Peça o grupo que leia Milton, Golding e Taylor para o próximo encontro. Também, os despeça com algum encorajamento: O propósito de discutir sobre o pecado não é abatê-los, mas sim estimulá-los a melhorar.
SESSÃO 2 A sessão 1 nos introduziu ao mais mortal dos pecados capitais: o orgulho. A sessão 2 continua com mais três leituras sobre o mesmo tópico. Talvez seja útil começar com um convite ao grupo para recapitular o que foi discutido sobre orgulho na sessão 1. Se for necessário, comece com algumas perguntas: De acordo com C. S. Lewis, por que o orgulho é considerado um estado de espírito completamente anti-Deus? Por que vemos o orgulho nos outros com tanta antipatia? Porque o orgulho é classificado como um pecado do espírito? Duas das leituras, nesta sessão, lidam com o orgulho; a terceira discute seu oposto: a humildade. E bem provável que você use a maior parte de seu tempo com os dois primeiros textos.
John Milton (30 minutos) Resuma, em poucas sentenças, a informação biográfica sobre John Milton. Paraíso Perdido, poema épico de Milton, fala sobre a maneira como Adão e Eva caíram no pecado. A maioria dos leitores sente que o personagem mais interessante da narrativa é o vilão, Satanás. Você já escutou no texto de Lewis que o orgulho vem do Diabo; a descrição de Milton torna isso bastante evidente. A passagem começa no momento em que Satanás e os anjos rebeldes, que o seguiram, lutaram contra Deus, e este, por conseguinte, os lançou para fora do céu e enviou-os para o inferno. Para capturar o drama dessa cena, peça a dois leitores que a leiam com sentimento. O primeiro leitor é o narrador; ele ou ela lê do começo do trecho ao fim, iniciando com este parágrafo:" O que ousou desafiar em campo o Eterno". O segundo leitor faz o papel de Satanás em um tom frio e arrogante, lendo de: "Eis a região,.." até o fim do trecho. Antes de começar, pergunte aos outros para que acompanhem a leitura, sublinhando declarações que expressam o orgulho de Satanás. Note a conexão, entre a inveja e o orgulho, nas linhas 12-14: Satanás decidiu iludir a Eva ("os pais da prole humana") por causa de sua inveja orgulhosa e do seu desejo de vingar-se de Deus. Que relação essa inveja que Satanás tem de Deus (esse desejo de roubar Deus de sua felicidade) tem com o seu orgulho? Na seção do narrador, como Milton descreve o orgulho do Satanás? No discurso de Satanás, quais as afirmações que expressam o orgulho? Discuta as perguntas 3, 4 e 5 até o fim do tempo dedicado a essa leitura. Certifique-se de deixar que o grupo discuta o que pensa com respeito a Satanás: Ele parece ser o quê: competente ou arrogante? Horripilante ou heróico? Seria ele um bom diretor executivo?
William Golding (40 minutos) Resuma os três primeiros parágrafos da introdução dessa leitura e leia em voz alta o quarto. O tema dessa leitura é "a linha invisível entre a vocação e a compulsão, a visão e a presunção, a ousadia e o egotismo". Isso se aplica, igualmente, ao orgulho das pessoas religiosas, das pessoas de negócio, de pais, que pressionam seus filhos ou de qualquer pessoa determinada a conquistar algo. Por causa do tempo limitado, é preciso resumir, rapidamente, as respostas às perguntas 1, 2 e 3 e dedicar sua discussão às perguntas 4, 5, 6, 8 e 10. O mestre de obras tenta convencer Jocelin de que
200 seu projeto é impossível, um desafio às leis físicas. Ele manda que Jocelin olhe para baixo e contemple quão longe a construção - e a sua reputação - cairá quando esse projeto falhar. Ele apela para a humildade do deão, seu senso de limitação como ser humano finito. Ele parece estar dizendo: "O orgulho precede a queda". Jocelin imagina a queda devastadora e quase cede ao medo do insucesso. Mas o simples apelo à finitude do homem inflama seu orgulho. Leia em voz alta os nove parágrafos, começando com: "Os olhos de Jocelin estavam fechados", até: "Roger, asseguro-lhe que essa coisa pode ser feita". De que maneira Jocelin lida com a sugestão de que ele precisa viver dentro dos limites de sua humanidade, dos limites da realidade física? O que é arrogante nessa atitude? Discuta a pergunta número 4. Leia em voz alta o parágrafo que começa com: "Você tentou me assustar..." Discuta a pergunta 5- Leia em voz alta os três parágrafos seguintes que começam com: "Agora, lhe direi...", e terminam com: "... algo novo virá." Discuta a pergunta 6. Leia a última sentença dita pelo mestre de obras. Ele vê a ambição de Jocelin não como uma resposta ao chamado de Deus, mas como uma compulsão orgulhosa e diabólica. Como você a vê? O que faz a diferença? Discuta a pergunta 10. Se o tempo permitir, faça algumas perguntas que resumam o orgulho: O que você aprendeu sobre o orgulho nessas passagens? Por que esse é o pior pecado?
Jeremy Taylor (10 minutos) Após cada conjunto de leituras sobre um vício, o livro contém algumas leituras sobre a bela virtude oposta desse vício. Use alguns minutos para ver a seção intitulada: "O Contraponto do Orgulho" (página 63). Pergunte: Como a falsa humildade, de fato, reflete o orgulho? Como a verdadeira humildade mostra o "realismo a respeito de nós mesmos e confiança em Deus"? A maioria das leituras sobre a humildade deve ser lida pelos participantes, em particular. Use apenas alguns minutos para olhar as diretrizes de Jeremy Taylor sobre a prática da humildade, escrita há 350 anos. Leia em voz alta os números 1, 3, 4, 6, 7, 10, 11, 13 e 15- Para cada diretriz, peça ao grupo que a coloque em uma linguagem mais atual. Depois, peça para que expliquem por que funcionariam, ou não, no cultivo da humildade. Por fim, peça aos participantes para que leiam, para a próxima sessão, a introdução da parte 2 sobre a inveja e as leituras escritas por Plutarco, Hawthorne, Shaffer e Wesley. Você também pode convidá-los a tentar praticar as diretrizes de Taylor por uma semana e mostre ao grupo como isso funciona.
SESSÃO 3 Comece perguntando se alguém tentou praticar as diretrizes de Taylor para a humildade. Se alguém der resposta afirmativa, convide-o a falar ao grupo o que, ele ou ela, aprendeu por experiência própria. Esta sessão trata da inveja, o sentimento de horror para com o sucesso ou a superioridade de outrem e o desejo de derrubar o outro. A inveja é a gêmea siamesa do orgulho. Se cremos, por nosso orgulho, que precisamos ser sempre o primeiro, então estamos confinados a ficar horrorizados quando outra pessoa for mais que nós, aparentar ter mais ou realmente tiver mais. A introdução contrasta a inveja com a concorrência e o ciúme. Peça para que o grupo leia os parágrafos relevantes e expliquem de que forma a inveja é diferente da concorrência (parágrafos 2 e 3) e do ciúme (parágrafos 4 e 5). Leia em voz alta a afirmação, "a inveja é um vício de proximidade", do parágrafo 6. Por que somos mais propensos a invejar pessoas que possuem dons, temperamentos e posições parecidas com os nossos do que pessoas bem diferentes? Leia em voz alta o parágrafo que começa com: "Quarto, a inveja, na maioria das vezes..." Aqui, o
201 ponto sobre o ódio é bastante valioso.
Plutarco (20 minutos) Resuma a introdução a essa leitura. É provável que você ainda queira fazer referência ao texto das páginas 84-85 intitulado "O ostracismo" que explica esse costume. A descrição de Plutarco sobre Aristides, o Justo, ilustra a inveja na esfera pública. Ela conta como a massa Ateniense chegara a invejar Aristides a ponto de exilá-lo. Isso ilustra como a inveja é capaz de agir em uma democracia. Plutarco apresenta Aristides como, possivelmente, rico e, certamente, justo em seus relacionamentos políticos. No primeiro parágrafo da leitura, Plutarco comenta que eram usualmente os homens de "destaque" cujo posto os expunha à inveja. No quarto parágrafo, no entanto, ele comenta que Aristides era invejado pela sua reputação de ser chamado de Justo. Leia em voz alta o quarto parágrafo ("Portanto, Aristides teve originalmente..."). Discuta as perguntas 3 e 4. Leia em voz alta o último parágrafo e discuta a pergunta 5. Discuta a pergunta 7.
Nathaniel Hawthorne (20 minutos) Resuma os dois primeiros parágrafos da introdução e leia em voz alta o terceiro. Da mesma forma que a leitura de Plutarco ilustra a inveja pública, esse extrato de A letra escarlate ilustra a inveja individual em seu estágio final: a revanche. Chillingworth escolhera responder à infidelidade de sua esposa devotando sua vida toda a rebaixar o homem que cometera adultério com ela. Leia os primeiros parágrafos do extrato e discuta a pergunta 1. Leia o parágrafo seguinte e discuta a pergunta 3. Leia o último parágrafo e discuta as perguntas 5 e 6.
Peter Shaffer (40 minutos) Amadeus, de Shaffer, é um estudo sobre a inveja profissional. Além disto, levanta a pergunta: Deus é injusto quando dota pessoas com habilidades desiguais? Pode ser que não seja Aristides quem deveria ser exilado por ser mais nobre que seus companheiros. Pode ser que seja Deus quem deveria ser banido por fazer Aristides tão nobre e Mozart tão talentoso. Pode ser que deveríamos culpar Deus pelas limitações que ferem nosso orgulho. Afinal de contas, já é ruim o bastante sermos limitados como todos os seres humanos. Mas, além disso, ter realmente de engolir que somos mais limitados que eles é algo terrível. A maioria dos participantes deve ter visto o filme Amadeus, ou então, a peça teatral. No entanto, pode ser útil mostrar o contexto das duas cenas aqui extraídas. Na primeira cena, Salieri manipulou a esposa de Mozart para que ela lhe desse o original, e rascunho único, das composições nas quais Mozart estava trabalhando. Ele usou a dependência financeira de Mozart para extorquir essas partituras, e a inveja quase o levou a chantagear a mulher de Mozart a deitar-se com ele, puramente por revanche. Contudo, a leitura das partituras musicais somente aumenta a inveja de Salieri. A segunda cena é a derradeira da peça. Salieri passa a noite inteira acordado para confessar à audiência os crimes a que a inveja o levou a praticar. De madrugada, ele executa os atos finais de sua rebeldia contra Deus. Peça que alguém leia as linhas de Salieri com gosto. (Peça a alguém que não se sente intimidado a deturpar as palavras em italiano.) Solicite outra pessoa para ler as encenações do palco. Leia a primeira cena e depois discuta, em 20 minutos, o que puder das perguntas de 1 a 6. A seguir, leia a segunda cena e discuta as perguntas 7 a 9. A nona pergunta é pessoal. No entanto, é possível que seja mais fácil discutirem suas rivalidades que se parecem com as de Salieri que sua similaridade com a pessoa de Chillingsworth de Hawthorne ou as pessoas comuns de Plutarco. Mesmo assim, você pode estender as perguntas convidando as pessoas do grupo a falar sobre suas tentações referentes à inveja de figuras públicas
202 ou de rivais pela afeição de alguém. Esteja atento, pois essa discussão poderá trazer à tona sentimentos profundos.
John Wesley (10 minutos) Se tiver tempo, reserve alguns minutos para dar uma olhada nas Regras para Compromissos corporativos de John Wesley. Essas regras foram estabelecidas em 1752 para os primeiros grupos metodistas. Elas foram projetadas para tratar da fofoca — uma das expressões da inveja em uma comunidade. Faça algumas destas perguntas: Para você, quais as regras que se sobressaem mais? A seu ver, qual delas seria a mais difícil de ser seguida? De que forma seu círculo de pessoas seria diferente se cada pessoa se comprometesse a seguir essas seis regras? Para finalizar, peça aos participantes que leiam a introdução da parte 3 sobre a raiva e façam as leituras escritas por Plutarco, Weir, Gordon e King. Você também poderá convidá-los a tentar praticar, por uma semana, as regras de Wesley, mostrando ao grupo como isso funciona.
SESSÃO 4 Será muito importante rever alguns dos pontos-chave abordados na introdução sobre a raiva, parte 3. Participantes do grupo comparecerão a esta discussão com alguns preconceitos sobre a raiva que precisarão ser colocados sobre a mesa. Por um lado, algumas pessoas cresceram com a noção de que toda raiva é má e deveria ser reprimida; pois devemos ser agradáveis sempre. Em reação a essa noção incorreta, temos a crença psicológica bastante popular na qual a raiva é simplesmente uma emoção, e as emoções não são certas nem erradas e suprimir qualquer emoção não é saudável. A introdução deixa claro que às vezes a raiva é pecaminosa, às vezes necessária e, muitas vezes, é uma mesclada. Suprimir uma emoção (no sentido de pretender que ela não existe) não previne suas conseqüências negativas, da mesma forma que alguém negar o seu orgulho ou a sua inveja não o previne de causar danos. É possível, no entanto, governar nossas emoções sem suprimi-las. Portanto, para introduzir esta sessão, contraste, primeiramente, o pecado da raiva com a mera emoção e com a indignação justificável. Depois, fale um pouco sobre as cinco características típicas desse pecado: a contribuição da vontade, o motivo errôneo, a expressão excessiva e confusa, o desejo de vingança e o seu fácil declínio até o desprezo. Você pode usar estas cinco características para melhor avaliar os três exemplos da raiva: o exemplo encontrado em Alexandre, o Grande (Plutarco), o da AIDS do ativista David Feinberg (Weir) e o da romancista Mary Gordon (em seu próprio relato). De que maneira cada uma dessas pessoas cruza a linha do apenas sentir uma emoção para cometer um pecado capital? Qual o dano causado pela raiva? Essas três leituras tratam da raiva frenética. É possível ser importante, portanto, dar ênfase à quinta característica da raiva: seu fácil arrefecimento que chega ao desprezo e à indiferença. A atitude em que pressupomos que alguém não merece nosso respeito é uma tramóia venenosa da raiva e do orgulho.
Plutarco (15 minutos) E preciso de tempo para a quarta leitura desta sessão, por isto é necessário tirar somente um tempo curto em Plutarco. Resuma o pano de fundo dessa leitura (de sua introdução) e os primeiros oito parágrafos da leitura. Alexandre e seus homens estão bêbados na hora do jantar, e Clito, que já salvara a vida de Alexandre, está agora com raiva porque Alexandre começou a tratar seus companheiros gregos como súditos persas. A indignação de Clito é parcialmente justificável (ele está correto sobre o fato de que merece mais respeito de Alexandre do que vinha recebendo ultimamente), mas sua exteriorização é desordenada. Não é de surpreender que Alexandre se sinta provocado. Leia em voz alta os quatro parágrafos finais começando pela frase: "Em lugar de ceder, Clito exclama..." (localizada no início do primeiro parágrafo indicado para leitura). Avalie a raiva de Alexandre: seu motivo é certo ou errado? Sua expressão é excessiva? Desordenada? De que maneira a vontade dele está envolvida nesse sentimento? Que função é ocupada pela vingança?
203 Esse é um incidente bastante direto de uma raiva graças à embriaguez, portanto, provavelmente não haverá muito debate. Pode ser bom chamar a atenção do grupo para o fato de que Aristófanes escondera a espada de Alexandre antes do argumento começar - o que isso diz sobre a experiência prévia de Aristófanes com seu mestre? Agora, leia os três últimos parágrafos que descrevem o conselho que Alexandre recebe depois de sua fúria se transformar em remorso. Discuta a pergunta 7. Plutarco apresenta uma exposição bastante típica de fúria embriagada e mostra como racionalizar esse tipo de conduta ("[...] era preciso reconhecer a execução dos decretos do destino", ou: "[...] todos os atos de um príncipe são justos e legítimos?") a torna ainda mais mortal. Observe especialmente como Anaxarchus alimenta o orgulho de Alexandre e o encoraja a considerar todos, menos ele mesmo, com desprezo. Como isto afeta sua habilidade de controlar sua raiva no futuro?
John Weir (30 minutos) John Weir escreve sobre a "política da raiva" não do ponto de vista de alguém que desconhece do assunto, mas de alguém que já percorreu aquele caminho e viu o seu beco sem saída. Ele e David Feinberg foram membros do ACT UP, a organização dos direitos gay, agora extinta, que era abastecida pela raiva por causa da crise da AIDS. Agora Feinberg está morto, e Weir reflete sobre o que aprendeu com a vida e a morte de seu melhor amigo. No primeiro parágrafo, Weir menciona o princípio da ideologia da ACT UP: pacientes aidéticos não estavam apenas morrendo, mas estavam sendo "mortos pela negligência do governo". Nessa afirmação, como você percebe essa política da raiva? De que forma esse tipo de palavras pretende afetar o público? Que outro tipo de frase emotiva você escuta na política da raiva? Leia em voz alta, a começar pela última sentença do terceiro parágrafo: "Usou de ironia para se distanciar da dor...". Leia essa sentença e os dois parágrafos seguintes. Termine com: "O erro de cálculo desse grupo é pensar que os sentimentos por si só, externados de maneira direta e poderosa, mudariam as coisas". Qual era o lugar da fúria na psicologia dos ativistas homossexuais? Em que outro ativismo em grupo você vê a raiva como uma função decisiva similar? Discuta a pergunta de número 5. Quando você fala sobre cruzar a linha e entrar na esfera pecado capital, tenha em mente as cinco características típicas desse pecado. Pense sobre causas políticas defendidas por você, bem como aquelas a que você se opõe ou às quais é indiferente. Leia em voz alta o parágrafo que começa com: "Como David...". Discuta a pergunta 6. No parágrafo que começa com: "A raiva é o que faz...", comece a ler a partir de: "Ele estava com raiva por estar morrendo", até o fim do parágrafo. Discuta a pergunta número 8. Qual a conexão entre a raiva e o egoísmo?
Mary Gordon (30 minutos) Muitos participantes podem ter dificuldade para se identificar com um general que mata seu camarada em razão da raiva provocada pela embriaguez, ou com um ativista aidético. Mas a maioria de nós pode se identificar com o relato de Gordon, o de "perdi a cabeça" com minha família. Leia em voz alta o primeiro parágrafo e discuta a primeira pergunta. Leia o segundo parágrafo e discuta a pergunta 2. Leia o quarto parágrafo e discuta a pergunta 3. Discuta as perguntas 4, 5 e 8 enquanto tiver tempo disponível.
Martin Luther King Jr. (15 minutos) O completo oposto de explodir ou ferver de raiva para com aqueles que nos ofendem é amar nossos inimigos. E muito fácil rejeitar chavões sobre amor, mas Luther King sabia o que era ter inimigos. Ele era perseguido e encarcerado por eles e, por fim foi assassinado por um deles. Contudo, em vez de alimentar a fúria totalmente legítima de estado-unidenses negros, ele os chamou - e a todos nós
204 — a um caminho mais elevado para responder à injustiça. O contraste entre Martin Luther King e David Feinberg nos torna sensatos... Leia o primeiro parágrafo e discuta a pergunta 1. Leia do quarto ao sexto parágrafo e discuta a pergunta 2. Leia os parágrafos que começam com: "Apressemo-nos em dizer..." e "Meus amigos, já seguimos por muito tempo....". Discuta a pergunta 4. Como estratégia para uma vida pessoal bem sucedida, qual é a mais prática: a de David Feinberg ou a de Martin Luther King? Qual a estratégia capaz de mudar uma sociedade? Para concluir, convide os participantes a fazer, com base nessa discussão, um resumo do que aprenderam sobre a raiva. Peça que leiam Pascal, Kierkegaard, Havei e Herbert para o próximo encontro. Encoraje-os ainda a verificar como lidam com a raiva durante a semana seguinte e, caso estejam dispostos, a relatar o que aprenderam no encontro seguinte.
SESSÃO 5 A maioria dos estado-unidenses equipara a preguiça com a indolência ou, até mesmo, com a recreação. E possível que seja necessário começar a discussão pela leitura em voz alta das definições sobre a preguiça, dadas na introdução da parte 4: o "desânimo espiritual explícito que desistiu de buscar a Deus, à verdade, ao bom e ao belo" (parágrafo 2); "lassidão de espírito, de sentimento, de mente e, conseqüentemente, de corpo proveniente do estado de desânimo em relação ao valor das coisas espirituais" (parágrafo 4); '"desesperança em relação ao sentido dívida', 'cauterização moral', [...] 'paralisia da vontade' [...] ódio a todas as coisas espirituais que requerem esforço" (parágrafo 5). Essa última frase levanta a seguinte pergunta: será que alguma coisa de natureza espiritual requer esforço? Ou a graça elimina a necessidade de disciplina, de escolhas difíceis e de persistência face a obstáculos? Se a pergunta for colocada dessa maneira, a resposta parece óbvia. No entanto, nos dias de hoje, podemos encontrar entre cristãos e judeus e aderentes da nova era de todas as classes aqueles que acreditam em uma espiritualidade sem esforço. A seção "Aplicações práticas" menciona as pessoas de meia idade cansadas deste mundo, o desespero juvenil e a exaltação da ausência de significado encontrada atualmente na arte e na música. Tenha em mente essas e outras manifestações de preguiça ao discutir as leituras.
Blaise Pascal (30 minutos) Para Pascal, a preguiça é a despreocupação com a vida após a morte. A imortalidade da alma é um assunto espiritual básico. Não se preocupar com ela é a preguiça espiritual fundamental. Essa definição pode desnortear muitas pessoas nos dias de hoje e talvez alguns de seu grupo. Aqui, a primeira pergunta é a crucial. Muitas pessoas modernas se encontram tão distantes da perspectiva de Pascal sobre o mundo que, nessa leitura, sua sentença de abertura pode não fazer sentido algum para eles. Eles percebem muitas coisas, de forma bastante profunda, mas a imortalidade da alma não está entre elas. Um neurocientista comum lhe diria que o que Pascal chama de alma é, na realidade, um complexo de reações eletroquímicas no cérebro humano. E, mesmo que a preocupação com a alma atraia interesse suficiente para produzir livros bastante vendidos, esses livros, muitas vezes, ensinam como se ter uma alma amável e feliz aqui e agora, mas não dizem nada sobre o planejamento para o dia posterior, o dia em que o seu coração parar de bater. Será importante perguntar aos participantes se a imortalidade da alma é importante para eles e o porquê disso. E provável que você tenha tempo para as perguntas 3 e 5 (leia em voz alta os parágrafos cinco, seis e sete, começando com: "Na verdade, a negligência..."), mas não deixe de ler o último parágrafo de Pascal e discutir as perguntas 6 e.7.
Soren Kierkegaard (20 minutos) Kierkegaard define a preguiça de uma maneira mais fácil para a compreensão moderna: preguiça
205 é falta de paixão. Os românticos entre nós são totalmente a favor da paixão - paixão pela arte, pela natureza, pelo prazer sexual, por livros, por alimentos ou até mesmo pelas causas sociais. Kierkegaard pode ter classificado tais pessoas como "almas merceeiras", e estas são censuradas publicamente nessa leitura. Paixão por alguma coisa é melhor que nenhuma paixão. A próxima pergunta é: "Hoje quais são os setores mais providos de paixão?". Mas comece com as perguntas 1, 2 e 3 e, se tiver tempo, faça esta pergunta: "Apaixonado pelo quê?".
Václav Havei (30 minutos) Havei descreve a forma moderna de preguiça, bastante peculiar, como a apatia deliberada sobre qualquer significado da vida que se encontra acima de sua própria sobrevivência. Havei pode dizer que as "almas merceeiras" deploradas por Kierkegaard sofrem de resignação irrefletida — desistiram do significado da vida sem que ao menos tivessem pensado nele. Pior ainda, Havei observou que há pessoas, que já pensaram sobre o assunto e, intencionalmente, decidiram se resignar. Elas podem ter passado um tempo curto ou longo como pessoas com ideais, com fé em algo, mas se desiludiram e desistiram. Além do mais, defendem a sensatez de sua resignação de uma maneira tão firme quanto qualquer crente verdadeiro defende sua crença. Leia o primeiro parágrafo e discuta a pergunta 1. Leia o terceiro parágrafo até o parêntese e discuta a pergunta 2. Leia os parágrafos que começam respectivamente com: "Resumindo: penso que a resignação...", e: "Tudo o que tem significado nesta vida...", e discuta a pergunta 4. Asentença: "Atragédia do homem moderno..." tem se tornado uma frase famosa porque define bem a preguiça moderna. Leia essa frase e discuta a pergunta 5.
George Herbert (10 minutos) Você poderá concluir a discussão de duas maneiras. Os participantes podem querer conversar sobre seus próprios conflitos com a preguiça (é mais fácil admitir a preguiça ou a raiva que admitir o orgulho ou a inveja). Ou eles podem desejar falar sobre o oposto da preguiça: a fome da realidade espiritual independentemente do que isso possa lhe custar. Se for assim, use alguns minutos para verificar o poema de Herbert: "Amor". E depois discuta a pergunta 1. Para o encontro seguinte, peça aos participantes que leiam Tolstoy, Gilkey e Victor Hugo, parte 5, e que fiquem atentos as forças em seus mundos que os tentam à preguiça.
SESSÃO 6 Você tem percebido, provavelmente, que, em cada sessão, as pessoas chegam à discussão com preconceitos sobre o pecado capital a ser tratado. O orgulho é facilmente confundido com respeito próprio. A raiva é mal-entendida à luz da doutrina da psicologia popular que afirma que as emoções nunca são boas ou más, mas, simplesmente, acontecem. Da mesma maneira, a avareza é obscurecida por décadas de retórica sobre as virtudes e/ou males do capitalismo. Uns condenam corporações por procurar lucros acima do bem-estar de seus trabalhadores, outras pessoas, acima do meio ambiente. Outros vêem o materialismo desenfreado e o consumismo como a máquina de uma economia próspera e saudável. Cada grupo olha para o outro com certo desprezo. Para o primeiro grupo, a avareza é um pecado terrível e hediondo do qual as outras pessoas (os ricos, os executivos corporativos, os acionistas, os políticos) são culpadas. O segundo grupo, cansado de tais acusações, discorda de qualquer insinuação de que sua relação com as possessões pode ser pecaminosa. Você, no começo de sua discussão, pode dizer algo a respeito dessa guerra de retórica para que as pessoas possam ver as leituras com outros olhos. O fato é este: é praticamente impossível para alguém em nossa sociedade -seja ele recipiente da prosperidade, seja ele trabalhador de fábrica, seja ele administrador comercial - evitar a tentação da avareza. As próprias crianças sabem que são consumidores muito antes de pensar sobre cidadania. Fazer propagandas — o estímulo sistemático do desejo material - é um interesse
206 legítimo e uma presença ubíqua. Seria um tópico interessante discutir sobre a possibilidade de este ser um problema social. A introdução à avareza explica que o desejo por possessões temporais se torna um problema quando ele "se torna desordenado e, a seguir, idolatria -em outras palavras, quando a confiança nas dádivas de Deus substitui a confiança no próprio Deus". Quando o prazer das coisas se torna a adoração das coisas, ela se torna pecaminosa. Poucos admitiriam que adoram as coisas. Portanto, nas leituras, sua tarefa será identificar sinais de adoração aos bens materiais nos personagens da ficção de Tolstoy e na história verídica de Gilkey. Se os participantes puderem ver como esses personagens adoram as coisas, então poderão ver mais facilmente como eles mesmos o fazem. Simplesmente, diga que o avarento ama as coisas e usa as pessoas. O homem generoso e o misericordioso (retratado de maneira impressionante no extrato do livro de Victor Hugo, Os miseráveis) usa as coisas e ama as pessoas. O tema da narrativa de Tolstoy é que, amar as coisas mais que as pessoas é loucura. Fazer isso acaba por arruinar sua vida. O tema da história de Gilkey é que amar as coisas mais que as pessoas é destrutivo, pois acaba por arruinar a sociedade. A narrativa de Victor Hugo ilustra como o amor pelas pessoas mais que pelas coisas enriquece tanto o indivíduo como a comunidade.
Leon Tolstoy (35 minutos) A narrativa é longa demais para ser lida na íntegra em voz alta. Se os participantes a leram em casa, não é preciso ler tudo em grupo, pois a narrativa é memorável. Se for necessário, resuma a primeira parte e, depois, revezem-se na leitura da segunda parte. Leia ainda os dois primeiros parágrafos da parte III. Discuta a pergunta 3. Resuma o restante da parte III e os três primeiros parágrafos da parte IV. Leia em voz alta o parágrafo, da parte IV, que começa com: "Continuou assim por três anos, arrendando...", como também o breve parágrafo seguinte. Resuma o restante da parte IV, parte V e a primeira metade da parte VI. Depois disso, na parte VI, leia, começando com: "Nosso preço é sempre o mesmo...", até: "se você não retornar ao mesmo local em que começou, seu dinheiro estará perdido". Discuta a pergunta 4. Resuma a parte VIL Na parte VIII, leia começando com: "Caminharei mais seis quilômetros...", até: "olhou para o sol e viu que já era praticamente meio-dia". Na parte IX, leia, começando com: "O que farei?", até o fim do parágrafo que começa com: "Mesmo com medo de morrer não podia parar". Depois disso, leia o final quando Pahóm morre e o seu servo o enterra. Pergunte ao grupo: "Qual o significado do título da narrativa? Por que Pahóm morre na busca de terras?". Discuta também as perguntas 7 e 8.
Langdon Gilkey (35 minutos) Aponte para o fato de que o Complexo Shantung era uma sociedade em miniatura, na qual a maioria das dinâmicas das sociedades maiores podiam ser vistas de maneira nítida. Resuma a situação encontrada no início da narrativa. Leia em voz alta o parágrafo que começa assim: "Essa pergunta: 'Para quem serão'...". Discuta a pergunta 2. Leve as pessoas ao parágrafo que começa: "Dois dias depois,...", e faça a terceira pergunta. Veja o parágrafo que começa com: "Quando tentamos descobrir...", e discuta a pergunta 4. Leia, em voz alta, os parágrafos que começam respectivamente com: "Minha experiência com as porções da Cruz Vermelha...", "Mesmo assim, a chegada dessa abundância...", e: "Se esse alimento fosse...". Leia a primeira metade do parágrafo que começa com: "De repente, vi...". Discuta as perguntas 6 e 7.
Victor Hugo (20 minutos) A avareza provém de uma perspectiva de um mundo de escassez. A pessoa avarenta geralmente crê que não possui recursos suficientes e, portanto, precisa adquirir mais para ter o "suficiente". Na melhor das hipóteses, ele crê que tem somente o suficiente para satisfazer seus desejos (e, portanto,
207 pode consumir semjmaiores preocupações). Ele não acredita ter o suficiente para compartilhar com os outros. A vida resume-se a adquirir e a consumir para não se sentir desprovido. O bispo, no romance de Victor Hugo, tem uma perspectiva totalmente diferente de mundo. Ele acredita em um Deus generoso que o proveu com mais que o suficiente para suas necessidades. Ele não acha que o significado de sua vida é adquirir, consumir e evitar privações. Ele encontra razão no dar e no amar. Sua perspectiva de mundo é de abundância. Provavelmente, muitos dos participantes já estão familiarizados com essa narrativa por causa o musical baseado nesse livro. Para os participantes que não estão familiarizados com ela, você pode explicar brevemente que Valjean, como punição por roubo, cumpriu pena com trabalho forçado em um navio de escravos por muitos anos. Ele, ao cumprir a sentença, fora libertado, mas não possuía nada e, portanto, foi menosprezado em todo lugar como um condenado. Em uma noite chuvosa, ele recebeu a hospitalidade de um homem que pensa ser um simples padre. Ele retribuiu a gentileza roubando-lhe o faqueiro de prata. Leia três parágrafos sobre a permuta entre o bispo e a sra. Magloire, começando com: "Vês? Foi por aqui que escapou". Depois, leia até o fim da narrativa, começando no parágrafo: "Enquanto isso,...". Use o restante de seu tempo para discutir as perguntas de 3 a 7. Ou pergunte simplesmente: "De que maneiras você gostaria de ser parecido com o bispo? O que isso exigiria de você:? Você deve tratar os pecados da carne no encontro seguinte. Peça ao grupo para ler a introdução à glutonaria e a leitura de Lewis da parte seis, bem como a introdução à libertinagem e a leitura de Lawrence, da parte sete, e a leitura de William F. May sob o título: O contraponto da libertinagem: bem aventurados os puros de coração
SESSÃO 7 Os pecados da carne — glutonaria e libertinagem — envolvem o amor excessivo de dois prazeres físicos muito naturais: o alimento e o sexo. Da mesma forma que a avareza idolatra os bens materiais, também a glutonaria idolatra os alimentos, e a libertinagem, o sexo. Adorar alguma coisa é dar-lhe valor fundamental, vê-la como a fonte de sua vida. Todos nós dependemos do alimento para nossa sobrevivência física, mas enquanto a pessoa espiritual agradece a Deus como o provedor do alimento, o glutão trata o alimento como deus. Ele se chega ao alimento para sua realização espiritual e emocional - para evitar a ansiedade, a tristeza ou a in-significância. O glutão tem um "relacionamento" com o alimento: O alimento é seu amigo ou seu inimigo. Esse relacionamento parece ser mais importante que o relacionamento com pessoas reais, a glutonaria, portanto, interfere com o amor. O alimento, muitas vezes, está na mente do glutão e expulsa dali os outros pensamentos. Essas características da glutonaria se assemelham com o que os peritos modernos em abuso de substâncias chamam de dependência. E possível ter uma atração do tipo glutonaria por quase qualquer tipo de prazer: alimentos, alimentos dietéticos, álcool, analgésicos, drogas para aumentar a disposição, televisão, vídeo games, esportes, exercícios, romances de mistério, esquiar e outros. Aquilo que relaxa a mente ou fortalece o corpo com moderação torna-se adulterado quando feito (como visto na introdução da glutonaria) "comendo e bebendo antecipadamente ou em demasia, gastando demais, sendo ávido demais ou espalhafatoso demais". Sua discussão se focalizará no alimento, mas você pode deixar as pessoas à vontade ao mostrar-lhes outros prazeres que estiverem tentados a idolatrar.
C. S. Lewis (20 minutos) Como apontado na introdução, nossa obsessão moderna com o esbelto torna a glutonaria, do excesso menos comum que a "glutonaria da delicadeza". Isso é o que o Screwtape, o diabo experiente de C. S. Lewis, descreve nessa leitura. Para chegar ao que Lewis entende por "gula da Delicadeza", leia em voz alta a sentença do meio do primeiro parágrafo: "Ela ficaria estupefata...", até o final do parágrafo, e as primeiras sentenças do segundo: "O verdadeiro valor do trabalho...". Discuta a pergunta 2.
208 Leia as últimas frases do terceiro parágrafo, começando em: "Mas, seja como for que abordes..." discuta a pergunta 4. Se tiverem dificuldade para ver seu próprio apego aos prazeres pergunte como reagem quando perdem seu programa favorito na televisão, seu esporte favorito (assistindo ou jogando), seu café ou sua rotina saudável. Algumas pessoas têm dificuldade de ver a glutonaria em suas vidas, porque a auto-indulgência é tratada como uma virtude em nossa cultura, pois a pessoa não engorda nem perde a habilidade de trabalhar horas longas e fatigantes. Se tiver tempo, volte à introdução e veja o que ela diz sobre dietas. Pergunte ao grupo como alguém pode ver quando o fazer dieta é apropriado e quando essa atividade se torna uma glutonaria de delicadezas.
D. H. Lawrence (40 minutos) Antes de ver o trecho do romance de Lawrence, tire tempo para ver a introdução sobre a libertinagem. No parágrafo que começa com: "A libertinagem é muitas vezes dissecada...", leia as duas últimas sentenças, começando com: J^VIas, em seu âmago,...". Leia ainda o parágrafo que começa com: "Tradicionalmente, muitos males....". Essa leitura monta o cenário para a discussão de Lawrence. A medida que os participantes examinam o trecho do The Rainbow [O arco-íris], peça para que avaliem o comportamento de Ursula à luz desses comentários sobre a libertinagem. Dois dos aspectos intrigantes desse trecho são que a mulher e o casal de noivos são os responsáveis pela libertinagem destrutiva. Leia em voz alta o segundo parágrafo e discuta a primeira pergunta. De que maneira esse parágrafo nos mostra que o objeto do desejo de Ursula não é Skrebensky? Leia os oito parágrafos curtos, começando com: '"Eu quero ir', gritou ela, em uma voz forte e dominante". Discuta a pergunta 4. Leia o parágrafo que começa com: "A manhã trouxe-lhe...", e discuta a pergunta 6. Por que essa escapadela sexual, em uma praia banhada pela luz do luar, não deixou o casal com um sentimento de realização? Leia o parágrafo que começa com: "Ursula sentia que sua experiência...", e o parágrafo seguinte. Quais as frases que mostram Ursula desumanizando Skrebensky? Discuta a pergunta 9. Leia o último parágrafo e discuta a pergunta 11.
Wiliam F. May (30 minutos) O oposto de idolatrar os alimentos ou o sexo ou qualquer outra coisa é adorar a Deus com um coração puro. Leia as últimas sentenças do primeiro parágrafo dessa leitura e do segundo parágrafo. Discuta a pergunta 2 e 3. Leia o terceiro parágrafo e discuta a pergunta 4. Leia o parágrafo seguinte e discuta a pergunta 5. Agora você já viu todos os sete pecados capitais. A sessão 8 tratará de quatro dos seis "lembretes" que se encontram na parte final do livro. Essas são coisas das quais devemos nos lembrar ao perseguir a virtude em nossa própria vida. Peça ao grupo para que leia Aristóteles (primeiro lembrete), Johnson (segundo lembrete), Gilkey (terceiro lembrete) e MacMillan (quinto lembrete).
SESSÃO 8 Seria muito bom se fosse o suficiente estudar somente sobre os pecados capitais. No entanto, o ponto principal para toda esta conversação é fazer algo de construtivo com aquilo que aprendemos. Leia em voz alta o parágrafo de abertura da parte que fala sobre os "Cinco Lembretes" para explicar o propósito destes. Só passarão uma vista nas quatro leituras para terem tempo o suficiente para a última parte deste encontro, intitulado "Reflexões Finais". As perguntas omitidas destas leituras mereceriam uma sessão adicional, isto pode ser feito, porém, esta parte sobre as "Reflexões Finais" é muito importante se este for o seu último encontro. Uma outra alternativa é a sessão opcional 9 que poderia ser uma outra maneira de finalizar os estudos.
209
Primeiro Lembrete: Disciplina (15 minutos) O primeiro lembrete trata da função da prática no cultivo das virtudes. Alguns cristãos sentem que discutir a disciplina mina a primazia do Espírito Santo em nossa transformação. A introdução para esse lembrete explica que a disciplina age em parceria com o Espírito. Leia em voz alta a tese no texto de Aristóteles, Ética: "As virtudes morais, assim como as artes, são adquiridas pela prática e pelo hábito". A seguir, leia em voz alta o terceiro parágrafo: "Quanto às várias formas de excelência moral (virtudes)...", e discuta a pergunta 3. Leia o quarto parágrafo, até a sentença que termina com: "... todos os homens teriam nascido bem dotados ou mal dotados para as suas profissões". Discuta a pergunta 4. O ponto aqui é que a quantidade e os tipos de relacionamentos que tivemos não garantem que nosso orgulho e nossa raiva estejam decrescendo. Muito ao contrário, a não ser que construamos bem - isto é, pratiquemos conscientemente a humildade e o perdão -continuaremos a nos comportar destrutivamente em todos os relacionamentos. Discuta as perguntas 5 e 6 se tiver tempo (isto é, se você marcou um encontro extra).
Segundo Lembrete: Engano (20 minutos) O segundo lembrete é estar atento ao nosso hábito do engano. Como: "O engano é, portanto, o pecado companheiro dos sete pecados capitais [...], ele serve para abrandar e mascarar os outros pecados". Desarraigar a inveja ou a avareza será impossível enquanto estivermos mentindo a nós mesmos e aos outros sobre nossa inveja e avareza. Esse assunto é tão central que vale a pena usar bastante tempo para a sua discussão. No primeiro parágrafo do texto, Johnson descreve a primeira maneira pela qual nos enganamos a nós mesmos e a respeito de nós mesmos: a substituição de hábitos por atos únicos. Peça aos participantes para ler o primeiro parágrafo e para discutir a primeira pergunta. O segundo parágrafo descreve a imagem espelhada do primeiro. Em vez de contemplar um só ato (bom) como demonstração de nosso caráter contemplamos um único ato (mau) como uma exceção à regra geral do nosso caráter. Pergunte aos participantes quais desses exemplos eles já viram. Leia em voz alta a primeira sentença do terceiro parágrafo. Ela descreve a terceira forma de autoengano. Peça para que os participantes compartilhem qual das três formas eles acham que são mais tentadoras: • • •
A observação de um único ato bom como evidência de um hábito. A observação de um único ato mau como uma exceção. Elogiar uma virtude em vez de praticá-la.
Johnson aponta para o fato de que tanto as fraquezas dos amigos como aquelas dos inimigos nos mantêm responsáveis. Ele advoga que cultivemos o hábito do auto-exame. Entretanto, pelo fato de que todos nós temos pontos cegos, algum tipo de retorno dos outros pode ser uma companhia muito útil para nosso auto-exame. Discuta as perguntas 4 e 5 se tiver tempo (se tiver planejado um encontro extra).
Terceiro Lembrete: Moralismo (20 minutos) Se o seu tempo só der para três leituras nessa sessão, omita esta para poder terminar com o quinto lembrete. No entanto, em razão de o moralismo ser tão comum entre cristãos, ele merece pelo menos uma discussão breve. O moralismo é uma forma de auto-engano. O moralista seleciona uma lista pequena de vícios para racionalizar, alegando sua superioridade. E uma forma de orgulho espiritual. A leitura de Gilkey descreve como os missionários no campo de concentração se focalizavam no fumar e nos outros pecados insignificantes da carne (jogo, bebida e palavrões) para não precisar contemplar seus próprios pecados constantes: o do orgulho e o do desamor. Resuma a situação das quantidades dos cigarros que iniciam a leitura. Leia em voz alta a conversação entre Smithfield e o outro homem em seu turno — nos quatro parágrafos começando
210 com: "Veja bem, Smithfield...". Discuta a pergunta 3. Leia os dois parágrafos começando com: "Em vez levar o amor e o serviço...", e discuta a pergunta 4. Leia o parágrafo que começa com: "Já era bastante evidente...", e discuta a pergunta 5. Discuta a pergunta 7 se tiver tempo.
Quinto Lembrete: Demonstração (15 minutos) O relato de Maximilian Kolbe, do romance de Ian MacMillan, leva seu grupo de volta ao lugar onde começou com o relato de Ruby Bridges, de Robert Cole. Assim como Bridges, Kolbe é um personagem que interpreta o evangelho em uma situação que paralisaria aqueles de nós que estão mais acostumados a conversar. É fácil dar um show sobre virtudes, quando não se tem nada que perder, mas, diante de uma malevolência violenta, a pessoa responde de acordo com aquilo que está em seu coração. Você não precisa dedicar muito tempo para as perguntas sobre a leitura de MacMillian. Apenas resuma o que Kolbe fez (veja o segundo parágrafo da introdução da leitura) e pergunte: "O que havia em Kolbe que afetou tantas pessoas?", e, para clarear a memória do grupo, você pode ler trechos do texto em voz alta. Por exemplo, leia de: "Vierck destranca a porta", até: '"Precisamos sair', disse Vierck". Leia ainda o parágrafo que começa com: "Afirmou ele: 'Um padre, mas veja o que ele fez com você', disse ele", encontrado no fim do registro de 9 de agosto.
Reflexões Finais (20 minutos) Para terminar a sessão, deixe que cada pessoa responda a esta pergunta: "Quais os pensamentos, as idéias e os comentários que mais lhe comoveram durante nossos estudos, nestas oito semanas nas quais estivemos juntos? O que lhe saltou aos olhos?". Antes, medite cuidadosamente sobre o tempo para ver quem será o primeiro a responder essa pergunta, pois a resposta daquela pessoa será o exemplo seguido pelos outros em suas respostas. Escolha alguém que saiba refletir e que tenha levado as leituras a sério. Agradeça a todos pela participação. Um lanche leve e um tempo de conversas informais seria adequado para o término desses encontros.
SESSÃO 9 (OPCIONAL) Alguns grupos gostam de prolongar o tempo juntos para poder ponderar sobre o que desejam fazer com o que aprenderam e examinar as áreas da vida deles nas quais desejam agir. Outros grupos poderão preferir conversações entre os casais em casa ou, informalmente, fora do grupo. Quer escolham uma nona sessão formal quer escolham conversas informais ou reflexões particulares, aqui vão algumas perguntas a ser consideradas: • Para você, qual a importância do caráter na vida pública comum? E em sua família? E em seu trabalho? E em outras áreas de sua vida? • Quais as evidências dos sete vícios mortais, os pecados capitais, que você pode ver em sua própria vida? • Que atitude você poderia tomar para arrancar os vícios que estão em seu coração e substituí-los pelos hábitos das sete virtudes? Em que hábito você pode se concentrar?
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Contracapa Sete Pecados Capitais
Que tipo de pessoa você quer ser? Em que tipo de sociedade você quer viver? As pessoas nesse último século tiveram a triste oportunidade de presenciar atos terríveis de maldade - milhões de pessoas torturadas e assassinadas - ao mesmo tempo em que muitos presenciaram obras fantásticas de coragem e compaixão, como estas: camponeses franceses protegeram os judeus dos nazistas; Martin Luther King Jr. lutou pelos direitos civis dos negros enquanto conclamava seus compatriotas a amar seus inimigos. Exemplos do bem e do mal estão ao nosso redor, mas muitas pessoas se perguntam se realmente existe qualquer padrão ético que sirva de alicerce para a vida.
Será que há algo verdadeiramente certo ou errado?
Para responder a essa pergunta, Os Guinness mergulhou na tradição ocidental dos sete pecados capitais e das sete virtudes encontradas nas bem-aventuranças de Jesus. Sete pecados capitais: navegando através do caos em uma era de confusão moral oferece reflexões de alguns dos melhores pensadores dos últimos dois mil e quinhentos anos sobre os maiores conflitos do coração humano. Tolstoi sobre a avareza. Nathaniel Hawthorne sobre a inveja. O filósofo romano Sêneca sobre a raiva. D. H. Lawrence, sobre a libertinagem. Outras obras também são citadas, como Os miseráveis, de Victor Hugo, a fim de retratar as virtudes que servem de contraponto para cada vício.