Retalhos II

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Preparação para a guerra Todos os Pára-quedistas ostentam garbosamente o seu brevete e em especial a famosa Boina Verde, que John Wayne imortalizou no filme “OS BOINAS VERDES”, com o título original: The Green Berets. A apresentação do filme dizia: Os Boinas Verdes eram considerados como a força de combate mais valente sobre a face da Terra - as Forças Especiais de Elite, cuidadosamente escolhidas e treinadas para a guerra anti-guerrilha do Vietnam, como a Legião Estrangeira Francesa, na Indochina. Acrescento eu: ou como nos anos 60 Os Boinas Verdes Portugueses em África. Foi na minha incorporação, que pela primeira vez, na história dos pára-quedistas foi estreada a farda azul, vindo substituir a bonita farda amarela. Mas a boina verde, essa não mudou desde 1955, mantendo-se como elemento de união da família pára-quedista. Os "páras" granjearam a fama de militares de elite, não só pelas aparições públicas, mas também, e muito especialmente, porque para ser boina verde era e é necessário, percorrer um longo e duro caminho. O jovem candidato submetia-se às provas de admissão e só após o último salto do Curso de Pára-quedismo, passava a usar por direito próprio a boina verde. Ainda hoje, este símbolo continua a atrair milhares de jovens que, das cidades, vilas e aldeias de Portugal, vêem nele algo que "mexe com eles". No fim-de-semana, irradiámos de Tancos, para outros lugares, a nova farda azul com o brevete reluzente e a sua boina verde. Íamos para junto dos nossos familiares e partilhar, com eles, o que tão duramente tínhamos conquistado. A surpresa pela farda era notória, nas pessoas que connosco cruzavam, mas ao mesmo tempo mostravam respeito e admiração, provocando no nosso cérebro o martelar insistente do refrão habitual das marchas pára-quedistas: Olhem bem, sintam respeito Eles têm asas ao peito Cabeça erguida, heróis do ar Boinas Verdes vão a passar. Mas foi sol de pouca dura. Quando dei por ela, era domingo e já estava de novo na estação. Ás 9:50, esperávamos o comboio que vinha de Valença e nos levaria até à estação de Campanha, no Porto. Uma viagem de 2 horas para fazer 70 km, onde nos esperava, um autêntico pandemónio, com a mudança de comboio que nos levaria ao Entroncamento. Um comboio, já a abarrotar de militares, esperava ainda pelos que vinham na linha do Minho. Era mesmo o desenrascanço à militar. Todos apinhados até à porta, mas os mais atrevidos entravam mesmo pela janela. Os revisores da CP, não se metiam com a maralha, era o salve-se quem puder.


Mais uma viagem Porto/Entroncamento, num domingo à noite, agora com o comboio repleto de militares. Sempre que não arranjava um lugar sentado (e nunca arranjava) ia mesmo deitado nas bagageiras superiores por cima das janelas ou nos preciosos cacifos à entrada da carruagem, com evidente prejuízo para as malas e bagagens. Como em Campanhã já os preciosos lugares estavam faustosamente ocupados, restou-me viver a experiência de dormir em pé, solidamente amparado pelos colegas que me acompanhavam desde Viana. Eles também estavam escorados por uma horda compacta de militares de todos os ramos, estando sempre em maioria os da Boina Castanha (Exército). Como sempre, uma autêntica viagem aos infernos, de cinco horas, até ao Entroncamento. Na primeira hora, todos conversavam ou pelo menos tentavam fazê-lo, tal era a barulheira, mas momentos depois, rendiam-se ao cansaço de dois dias mal dormidos (os de suposto descanso). Para isso, o maralhal procurava o seu travesseiro que não era mais que o ombro do parceiro. Quando se ouvia, de forma mais forte, o “pouca-terra” do bater dos carris, a experiência dizia-nos que se aproximava o revisor, para picar os bilhetes. Coitado do homem, levava mais de um hora, em cada carruagem, para cumprir, mal, a tarefa. Havia sempre quem o tentasse ludibriar. Passavam à socapa para lugares já controlados ou escondiam-se em tudo quanto era sitio. O certo é que o melhor lugar para fugir ao picar do bilhete, era aninhado no meio de um grupo, onde o possível contacto ficava à distância do comprimento do braço do revisor até ao visado. Perto de mim, para além dos militares do exército, iam dois grupos, barulhentos, um de mancebos de "páras" e outro de comandos, estupidamente a vangloriarem e a elogiarem o comportamento dos seus instrutores. Cada um deles, como desafiando o outro, parecia delirar de satisfação com as provações físicas e as humilhações sofridas naquela semana, infligidas por alguns fanáticos com patente. "- O nosso tenente obrigou-nos a mergulhar a cabeça na imundice da fossa do quartel”. “- Ele é o máximo, tem o curso de não sei quê, e esteve na legião estrangeira " dizia um comando secundado por outros. Dizia o outro grupo dos “Páras”: "- O nosso capitão obrigou-nos, a todos, a dormir nus, na parada, e depois obrigou-nos, ao pequeno-almoço a comer gafanhotos e grilos; ele é mesmo bom, esteve na Guiné, e parece que matou mais de cinquenta turras.” Eu que já não suportava aquelas bazófias, comecei a remoer os castigos e reparos que apanhara nas seis semanas já passadas: "- Levante essa cabeçorra, soldado Marques, endireite essa pala do boné, parece a de um ciclista".


“- Sabe para que serve essa pala, bem comprida, que você teima em lhe fazer uma bainha? Para olhar dela só para baixo e nunca da pala para cima” - vociferava o sargento. “- Para cima estão os seus superiores, ouviu? Dez flexões para aprender.” “- Meu sargento – tentava eu argumentar.” “- Quinze flexões – respondeu ao meu esboço de argumento.” Enquanto eu estava nas minhas reflexões e os outros continuavam com as gabarolices, um tipo que usava boina negra, como a da polícia militar, de forma educada, sem ser ofensivo, interpelou-os de forma pedagógica dizendo: “- Porque é que vocês ficam tão satisfeitos com as sacanices que vos fazem?” Num solavanco do comboio estalou uma confusão… já não bastava o cheiro a trovoada que pairava no ar, tinha que vir aquele solavanco servir de rastilho. Envolveram-se todos numa alegre batalha de murros e cabeçadas, insultos e palavrões, entre boinas verdes e vermelhas, com o feijão verde pelo meio, como sempre sem culpa nenhuma, a levar para tabaco, o que durou quase toda a viagem. “- Está tudo louco, vou mudar de carruagem.” - Pensei eu. O Fiúza só o voltei a encontrar no quartel. Depois de mais uma viagem numa noite interminável e atribulada, mas saborosa, de fim-desemana, a meados do mês de Setembro de 1970 lá estou de novo no Regimento de Caçadores Pára-quedistas em Tancos. Quando dou comigo, encontrando-me em formatura na parada para nos ser apresentado o Capitão Gomes, comandante do Curso de Combate que visava fundamentalmente a preparação para a guerra. Segundo se contava, e eu vim a confirmar isso muito mais tarde, este oficial era um autêntico especialista no tipo de guerra que se travava em Angola, Guiné e Moçambique, aliás, como tantos outros que as forças Pára-quedistas tinham no


terreno. Para mim, que só ambicionava ser Pára-quedista, esta última etapa era perfeitamente dispensável para as minhas ambições. Ser Pára-quedista, ostentar com orgulho a Boina Verde e no peito o Brevete era o corolário do trabalho desenvolvido ao longo de quatro semanas e que culminaram no prazer de voar, de contemplar a terra tão pequena lá em baixo. É indescritível a sensação de paz e tranquilidade que o contacto com a natureza no seu estado mais puro nos proporcionava. É o voar com o silêncio e com a ausência de peso. Até Ícaro se deslumbrou com a bela imagem do sol e sentindo-se atraído, voou em sua direcção, acabando por deixar a cera de suas asas rapidamente se derreterem e acabando por cair no mar - apesar de ser sem dúvida um deslumbramento, tal o domínio que se sente sobre a terra, pela sensação de liberdade e poder - não se pode perder o discernimento, pois aqueles segundos passam demasiado depressa e os procedimentos a cumprir durante o voo não permitem veleidades. Dei comigo a pensar cá com os meus botões: - “Caramba, afinal para ser Pára-quedista ainda preciso de fazer muito mais?” Fui acordado destes pensamentos com o vozeirão do sargento que comandava a formatura: - “COMPANHIAAAAA. SÉEEE… UP” (Voz de sentido) - “DÁ LICENÇA MEU CAPITÃO… COMPANHIA PRONTA. - “Mande descansar” – diz o Capitão Gomes Com a cabeça em completa turbulência - mais parecia o Noratlas quando ligava os motores para me levar a voar nos céus do Arripiado - ia retendo algumas frases chave do discurso mobilizador que o capitão no seu (porte altivo apesar da imagem (falsa) que a sua cara de bonacheirão, que parecia transmitir) nos ia passando: - “O curso de combate está pensado para dotar o Pára-quedista de competências técnicas e de tácticas de combate para o cumprimento das missões necessárias na guerra. “ – e continuava dando especial ênfase a algumas frases: - “Este curso de combate que agora inicia, terminará a 18 de Dezembro, a tempo de poderem ter alguns dias de férias junto de vossas famílias.” Como o silêncio imperava, nem podia comentar nada com o Risotas, que ali estava ao meu lado direito, firme e hirto, naquela pose de soldado de chumbo que contrastava com a sua habitual boa disposição. Dei comigo a pensar novamente: - “Puta de vida, nesse dia fará um ano inteirinho que vim a testes e fiquei apurado para Pára-quedista. Se soubesse o que sei hoje… não era o filho da senhora Maria que apanhavam cá.” E lá continuava o Comandante… - “Ficarão prontos a demonstrar técnicas de combate que garantam o movimento, a acção de fogo e protecção em segurança, demonstrando também técnicas de transposição de obstáculos e desníveis, e cursos de água com recurso a cordas e outros meios”. Estávamos em posição de descanso - o que é uma treta, pois estar de pé com as pernas abertas mas sem as poder movimentar, braços atrás das costas mas sem os poder mexer, sem poder falar, coçar ou olhar para o lado – não será nem uma posição confortável. Quase ao fim de uma hora de discurso, acho que falava, falava mas já ninguém o ouvia. Até que, finalmente, mandou destroçar, dando de presente quinze minutos de intervalo, mas avisando:


- “Tudo o que aqui vos disse, vai ser exigido nos próximos três meses, não vos prometo tarefas fáceis. Vão ser levados ao limite das vossas possibilidades físicas e psicológicas” - terminou gritando: - “INSTRUÇÃO DURA” - “COMBATE FÁCIL “ - gritou toda a companhia a plenos pulmões Depois desta prelecção, que mais não era que guerra psicológica de forma a disseminar ideias chave do que nos esperava, percebi claramente que agora iria ser a sério. Até que o Cunha, (o baixote com cara de cigano mas com uma energia incrível, mais conhecido pelo Braga, por ser duma freguesia (Palmeira) limítrofe a Braga, cidade dos arcebispos,) veio com a novidade: - “Acho, pelo que me contaram, e pelo paleio do nosso capitão, que esta companhia vai bater com os cornos na Guiné. Aposto com quem quiser.” - “Quem é que te enfiou essa merda na cabeçorra?” – protesto eu, pois a guerra na Guiné não era para brincadeiras. - “Para além das baixas, a Guiné não interessa nem ao Menino Jesus” – tentava eu contrariar, como se ainda fosse dono de mim e do meu destino. Sem darmos conta do tempo, (até acho que os relógios dos tipos não funcionavam bem) já chamavam por nós para a formatura. - “Como estiveram a descansar ouvindo o nosso capitão, vamos gastar um pouco essas energias acumuladas no fim-de-semana” – dizia o nosso sargento. Para petisco foi servido um crosse com uma dezena de quilómetros, de tronco nu na estrada que separava a Base Aérea Nº3 e o nosso quartel, lá fomos palmilhar estrada ao som do bater das botas militares, que iam aumentando de peso na proporção de metros percorridos, com o suor a incomodar e a arder nos olhos. - “Esse cabrão nunca mais vira”- dizia o Risotas atrás de mim, pois quanto mais nos afastávamos, mais tínhamos que calcorrear no retorno. No retorno, cruzei-me com o Fiuza, que por ser “rodas baixas” ia na parte da frente do grupo e com o olhar me queria dizer: “Zé, se eles conseguem nós também vamos conseguir.” E tinha razão, conseguimos esse e todos os


que se seguiram. Nesta fase da instrução já não havia lugar a desistências, antes quebrar que torcer. E alguns quebraram mesmo, como veio acontecer, num exercício numa zona de vegetação traiçoeira, em que se “brincava” às emboscadas. De um lado, os supostos Turras, (designação que se dava aos combatentes dos movimentos de libertação em África) na pele dos instrutores muito experientes. Do outro lado nós, instruendos que andávamos a aprender a combater sempre num ritmo intenso, forjado no esforço físico e sacrifício, num ambiente muito próximo do perigo, da incerteza e do acaso. Os “turras” com bala real e nós com bala simulada de madeira numa velhinha Mauser. Às duas por três deu-se o contacto, entre dois camaradas divididos pelo exercício mas irmanados na mesma causa. O “Turra” surgiu de repente, detrás de uns arbustos, provavelmente ainda extasiado pela gu erra de onde tinha regressado há poucos meses, e procurou a luta corpo a corpo, no intuito de dar uma sova ao instruendo. Mas para mal dele e sofrimento de todos, a Mauser encostou-se ao peito dele e disparou-se, vomitando uma bala de madeira que lhe rebentou as entranhas. Foi atingido mortalmente um combatente acabado de regressar da guerra em Moçambique, onde tinha resistido e sobrevivido às mais perigosas operações de combate. Para nós foi mais um tiro entre tantos, que cruzavam por cima das nossas cabeças e mal nos apercebemos da tragédia. Tudo continuou como se nada tivesse acontecido. A ordem era avançar sempre, pois são situações que podem surgir na guerra a sério e temos sempre que encarar, resistir e seguir em frente. O exercício continuou, revelando já que todos eram muito fortes psicologicamente, com concentração redobrada, mostrando, da pior maneira, que estávamos quase prontos para enfrentar situações de todo o tipo e seguir em frente cumprindo as missões necessárias em teatro de guerra.


Corpos amputados

Como tantos outros meus colegas, nessa noite não preguei olho. Só me vinha à memória o acidente que despegou a vida ao militar que nos instruía e nos preparava para a guerra. Apesar de não termos presenciado directamente o acidente, e por falta de informação oficial, as vozes da caserna eram demolidoras e abalaram, um pouco, a nossa força mental, que vinha sendo cimentada desde o primeiro dia. Com o aproximar do sono, acercou-se uma estranha dor de cabeça, fruto da realidade acordada que fervilhava com as vozes da caserna, com o sono mal dormido a querer-se aproximar da barreira do som do pesadelo. Nessa noite, recusava-me a dormir e lembrei todos os momentos: todos os sacrifícios; todas as lutas constantes para me conseguir superar e todo o suor, o sangue e as lágrimas vertidas. O problema de desistir, nesta altura, já não se punha nem o permitiam e, se a ida para a guerra era uma inevitabilidade, então só me restava olhar e seguir em frente. Procurei aprender com os erros, e estes, em situações limite, podem retumbar em erros fatais. Aprendi que errar é uma experiência dolorosa (por vezes física e irremediável), é na frustração e no desconforto, inerente ao erro, que se fixa a memória da lição adquirida. Muita coisa me passou pela cabeça nas noites seguintes. Durante o dia, o Curso de Combate absorvia-me por completo, ia adquirindo conhecimentos de forma a me preparar técnica e operacionalmente para a guerra. No fim da instrução militar, recolhia à caserna e, depois de um retemperador banho, aproveitava sempre para escrever à família, procurando sossegá-la fazendo o inverso do esperado, ou seja, era eu que a animava dando sempre, uma imagem mais colorida, desta minha estadia no serviço militar. As minhas noites eram mal dormidas derivadas ao cansaço físico. Comparado com os meus camaradas não era tão forte, pois só conseguia superar as actividades, de ordem física, atingindo os limites das minhas reservas. Já mentalmente era forte e determinado, nunca desistindo, transmitindo força anímica aos colegas que, antes, me tinham ajudado. A partir dessa altura, comecei a interessar-me pelas coisas da guerra e fiquei a saber das dificuldades sentidas pelas nossas Forças, no início da guerra em África, e que as Forças Armadas foram apanhadas impreparadas para fazer face à guerra,

Transporte de Feridos, Guerra Colonial (foto em APVG)


trazida pelos ventos que já sopravam desde os anos 40, nas colónias de outros países europeus. Em Dezembro de 1961, cinquenta mil tropas indianas, apoiadas por blindados, artilharia, meios aéreos e navais, ocuparam militarmente Goa, Damão e Diu. Os 3500 militares portugueses e goeses tinham ordens de Salazar para lutar até à morte, tendo o ditador português comunicado que só esperava, como resultado do combate, "militares vitoriosos ou mortos". Ao contrário do que se esperava, as tropas Indianas ainda se depararam com a resistência de alguns militares portugueses, nomeadamente em Vasco da Gama, onde 500 militares, fortemente armados, obrigaram as forças indianas a combater. Com o rebentamento da guerra, nas colónias portuguesas, era evidente o apoio que faltava aos militares em situação de guerra. Não se previram situações, tais como: a morte; a incapacidade; a pensão de sangue; a trasladação dos corpos; o aprisionamento ou a captura de militares em operações; o pagamento de vencimentos: a distribuição de correspondência; as licenças de férias, entre outras. Aqueles que sofreram graves mutilações, no teatro de operações ou em acções de preparação para o combate, constituem a face mais visível da Guerra Colonial e, em certo sentido, aquela que a sociedade portuguesa tem tido mais dificuldade em encarar. Assim, se foi constituindo um exército de deficientes, que não parou de aumentar, formado por jovens que, na força da vida, se viram amputados, cegos, com doenças internas graves, doentes da mente, com futuro incerto e que ainda hoje vemos alguns a vaguear nas cidades, vilas e aldeias do nosso país, como almas perdidas sem abrigo. Foram considerados «inválidos». Muitos deles sofreram duplamente a sua deficiência ao se tornarem, durante muito tempo, um pesado fardo para as famílias. Os hospitais militares foram, no início, para muitos um refúgio, mas também o depósito onde os corpos amputados, os homens em cadeira de rodas ou os cegos, tropeçando, se mantiveram longe da vista da sociedade, porque, oficialmente, Portugal não estava, oficialmente em guerra e a sua visibilidade poderia motivar interrogações incómodas, para o regime, sobre a realidade do que se passava nas frentes de combate. Estava eu a conversar com o “Risotas”, sobre a guerra e perguntei-lhe: - “E os nossos militares deficientes, que será feito deles?” Pela primeira vez o vi com a voz um pouco embargada: - “Marques, nem me fales nessa merda, prefiro ficar lá de vez”. – E acrescenta: - “A guerra é nojenta, e o que ela nos tira, quando não nos tira a vida, nunca mais devolve.” Na retaguarda, iam aumentando os caixões, daqueles cujas famílias tinham possibilidade de pagar a trasladação dos corpos (os outros foram, durante os primeiros anos, enterrados nas zonas de combate) e os feridos, que se acumulavam nos hospitais militares que eram pequenos, incapazes e não adaptados para os feridos em operações de guerra. Poder vir a engrossar o exército de deficientes, era o medo, que muitas vezes, me roubou o sono.


A vermelhinha Dos “duzentos paus” que a minha mãe me dava, por semana, e descontando os 110$00 que a CP cobrava por um bilhete militar de Viana ao Entroncamento (ida e volta), era com “noventa paus”, por semana, que eu tinha que me desenrascar para o tabaco, para as cartas e selos, e já pouco sobrava para as cervejolas. Conhecia as dificuldades da vida, e era sabedor da luta, diária, que minha mãe, analfabeta, mas com um sentido arguto para o negócio, travava na sua loja de ferrovelho, para poder juntar “algum” para os dois filhos, que estavam na tropa, e, ambos, teimavam em vir a casa todos os fins-de-semana. Nunca me aventurei em jogar à batota, por não ter muito jeito, por medo de perder o pouco pecúlio, mas também porque não tinha massa para arriscar. Alguns camaradas (sempre que o cabo ou sargento de dia, não estivesse por perto) aproveitavam as horas mortas para jogar à "lerpa" a dinheiro ou a tabaco. Os menos instruídos nessa arte jogavam ao montinho e os mais reguilas, das grandes cidades, mais habituados a levarem os outros por lorpas, arriscavam a jogar à vermelhinha. Eu arrisquei uma vez e serviu-me de emenda para toda a vida. A vermelhinha era um jogo de cartas, da mais pura batota, e que ainda se vê, um pouco à socapa, por feiras e romarias depenando os incautos. Consistia em escolher uma dama de um naipe vermelho (daí o nome Vermelhinha), entre duas outras cartas de naipe preto. O jogador, batoteiro, mostrava previamente onde estava a dama e, depois de manipular as cartas com grande velocidade, convidava a vítima a tentar descobri-la. Para servir de isco havia sempre um cúmplice. Este jogava e acertava quase sempre e até nos “ajudava” quando o batoteiro fingia uma pequena distracção. Indicava-nos onde devíamos apostar, chamando-nos a atenção para o facto da dama estar marcada com uma pequena dobra num dos cantos. Ganhei a primeira vez, o que a mim, e a outros incautos, me levou a apostar mais forte de seguida. Mas joguei pouco. O papalvo do Marques lá começou a jogar, tendo escolhido de imediato a carta marcada. Só que a carta marcada era afinal um Às de espadas! Como é que isto podia ter acontecido? O Júlio Maia, colega mais antigo e por sinal também de Viana do Castelo, onde chegámos a trabalhar juntos numa fábrica de boinas, a CEDEMI – que para além de fornecer as boinas aos militares também era conhecida pela paixão e dedicação ao ciclismo - não chegou a ir á guerra, tendo se especializado na dobragem e manutenção dos pára-quedas, Na sua farda amarela imponente, depois de me deixar perder outra vez, chamou-me de lado e disse: “- Zé, deixa-te dessas merdas, esse jogo é só para perder dinheiro. Ninguém ganha. Repara naquele “Pára”.” – Referindo-se de forma abreviada a um pára-quedista. “ – Aquele tipo é o cúmplice, está ali para vos sacar a massa. Deixa-te de ser parvo e gasta mas é o dinheiro numas cervejolas que tem mais interesse. Anda daí, vamos ao bar. Esses gajos são uns filhos da puta, quando baterem com os cornos, em Angola, vão aprender o valor da amizade. Foge deles.” – disse o Maia. E lá me explicou que naquele jogo era quase impossível alguém ganhar. Havia muitos truques que o batoteiro podia fazer, incluindo, naturalmente, o truque de, disfarçadamente, desmarcar o canto da dama, para marcar o de uma das outras cartas de naipe preto. O dito cúmplice do batoteiro, quando me deu a dica, sobre a marca, era mesmo no sentido de me “ajudar” a esvaziar os bolsos.


Aprendi a lição: no jogo da vida, ganha quem tiver amigos e cúmplices, que nem sempre são fáceis de descobrir. Na situação real de jogo, os ganhos afinal seriam partilhados com o amigo, que era, para efeitos de demonstração da «teoria da amizade» o seu verdadeiro cúmplice naquele jogo. É evidente que, a maior parte das vezes, acabava tudo à batatada, num espírito “fraterno” em que ninguém, naquele quartel, se incomodava em acalmar os ânimos. Sempre achei que isso já fazia parte da instrução no sentido de nos brutalizar.


O frio da realidade A fase final da preparação de um Combatente Páraquedista, é dedicada a simular, em condições adversas e semelhantes ao da guerra no ultramar, uma operação militar que ocorrem nas três frentes de batalha em África. Visa o último teste de aperfeiçoamento, de forma a pôr em prática todos os conhecimentos adquiridos ao longo destes sete meses. O dia começou frio, como a noite não dormida, como é habitual na viagem de fim-desemana. Lá estavam as Berliet’s, – as viaturas, de origem francesa e montadas no Tramagal, mais usadas no transporte de tropas – alinhadas ao longo do arruamento que aponta para a porta de armas, à nossa espera para nos embrulhar no seu aço frio. A ração de combate, para quatro dias, estava bem aconchegada na mochila. Tudo era enlatado: feijão, sardinhas, bolachas da manutenção militar, ladrilhos de marmelada, chocolate em bisnagas como se fossem pastas de dentes, água enlatada no cantil. Até eu me sentia também enlatado dentro daquele camuflado, modelo PQ qualquer coisa, com uma dúzia de bolsos de coisa nenhuma. Tudo ia na minha casa ambulante – a mochila – e ainda a manta e a capa para dormir, bem enrolada em forma de “U” invertido. A isso juntava a G3 carregada com munições de madeira. Surgiu o Capitão Gomes, já completamente ataviado com ar de guerrilheiro. Abandonou o ar de bonacheirão, adoptando agora aquela expressão dura, com o olhar penetrante e atento, capaz de penetrar no íntimo de cada soldado, mercê da sua larguíssima experiência adquirida na guerra. E um a um lá gritavam os comandantes de pelotão até chegar ao meu grupo: “ - Dá licença meu capitão, 7º pelotão pronto.” - Gritou com voz firme o Sargento. De forma ordenada, fomos subindo para aquelas máquinas de aço frio e pouco cómodas, onde se acomodaram trinta futuros combatentes. Ainda o dia não tinha despontado e já se notavam, no horizonte, nuvens escuras de chuva que aliadas à penumbra tornavam o ambiente ainda mais gélido. Saímos à porta de armas do Regimento, com a sentinela bem perfilada. O comboio militar virou à direita ficando, à esquerda, a Base Aérea nº 3, onde descansavam os nossos amigos Nordatlas, e o ainda velhinho Ju-52, velhos conhecidos, dos saltos no Arripiado. Havia sete Berliet’s para outros tantos pelotões. O comandante do curso era transportado num Unimog, viatura que se revelava um veículo militar muito instável e de alta perigosidade, pela facilidade com que se despistava e capotava. Originava, nas guerras de África, um número elevadíssimo de acidentes, provocando mortos e feridos graves. A coluna militar vista de trás, dava-me uma visão fantasmagórica que eu me habituei a ver no transporte de tropas, em filmes de guerra. Rapidamente a minha mente voava para tudo o que me tinha trazido até este momento. Eu só queria ser páraquedista e saltar de avião. Nunca me passou pela cabeça as aventuras em que me vim


meter. Por força das circunstâncias e pelos laços de amizade que se foram alicerçando, com todos os camaradas e com alguns instrutores, que apesar de tudo nos tratavam como pessoas e nos ajudavam a formar homens, para além de guerrilheiros, dei comigo a gostar desta família. Passei a ponte de Constança sobre o rio Zêzere. Este depois de serpentear ao longo de mais de 200 km conflui uns metros abaixo com o rio Tejo. Já na outra margem e com o dia a alvorecer, a minha cabeça meio abandonada, entre as orelhas, começou a fervilhar e os meus olhos a deixarem de ver para o lado de fora das coisas. Fui reparando nos semblantes dos meus companheiros de armas e tentando adivinhar o que lhes ia na alma. Sentíamo-nos como uns cadastrados ligados à grilheta um dos outros. Ninguém falava e não era só o frio daquele Dezembro gélido de 1970, mas também o frio da realidade que nos tolhia. De entre todos os que se procuravam livrar do frio cortante, que entrava por nós dentro, sobressaía o bom gigante do Patacão. Um alentejano no seu estado puro, lento e calmo em tudo o que fazia, até no pensar era lento. Nem as pernas enormes assentes num 46, de botas, o faziam andar mais depressa. Tinha a tez queimada pelo sol das planícies alentejanas. De perto, só se lhe vislumbrava um nico de cara e a luz dos olhos. Recordei as aulas teóricas dadas ao ar livre, onde o bom gigante era o prato da festa: “- Patacão, isto chama-se o precursor e tem como função…” – e agora virado para todo o grupo, o Instrutor lá foi explicando vagarosamente, em que consistia o corpo de uma granada ofensiva. De repente vira-se de novo e pergunta: “- Patacão, como se chama isto?” - Mostrando o precursor. “- Na sei, meu sargento” – Responde o Patacão. Perante a risada geral, o sargento quase engolia o precursor de raiva. Eram umas aulas divertidas. O Cunha, quase com metade da altura do Patacão, mas com uma energia incrível, estava sentado a meu lado e perguntou-me: “- De que te ris pá? Nem com este frio deixas de magicar?” “- Estava a pensar no Patacão e no sargento Vermelhinho.” “- Não me fales nesse cabrão de Sargento, ainda sinto os ouvidos a fritar.” “- Esse gajo, numa bela segunda-feira e depois de uma aula de minas e armadilhas, deu 15 minutos de intervalo.” – Como se eu não soubesse da história, o Cunha lá foi vomitando a sua revolta: “- Passado o intervalo, esse cabrão deu pela minha falta. Estava estourado e adormeci sentado e encostado a uma árvore. O filho da puta veio procurar-me, sozinho, deu comigo e em vez de me acordar, atirou uma granada perto para me pregar um susto…” Com a cara transfigurada pela revolta rematou: “ – Se um dia o apanho na Guiné, limpo o sebo a esse cabrão”. Parecia que este exercício fora programado, propositadamente, para esta altura do ano, para que as condições mais adversas testassem as nossas capacidades e ultimassem a nossa preparação em situações limite. No outro topo da Berliet, enxergo o Fiúza, com aquela cara moldada pelos anos do mar e habituado às agruras próprias do ambiente. Lembro-me sempre de ele falar, no seu jeito exaltado, dos homens do mar:


“- A bordo da traineira, contava um velho pescador que quando ouviu o diabo descrever as agruras do inferno lhe tinha respondido: “a gente habitua-se a tudo”. Talvez seja verdade. Mas ninguém está perfeitamente adaptado, a qualquer coisa que seja, sem por lá ter passado. A vida do mar tem muitas semelhanças à que encontrei nas forças pára-quedistas. Para uns será mais fácil do que para outros, mas todos sentimos inicialmente os problemas de viver em espaço apertado, termos de acondicionar num cacifo todos os nossos pertences e a necessidade de partilhar quase tudo o que era privado. Não há nada que se faça que não acabe por interferir com a vida do camarada do lado, exigindo-se de todos um sentido de grupo, de colaboração, de tolerância e solidariedade que dificilmente terá paralelo na vida civil. Passaram duas semanas após a segunda baixa mortal neste meio ano de preparação. Cada vez tudo se tornava mais exigente, mais duro para testar os limites físicos e mentais, quase sobre-humanos, de cada homem de forma a torná-lo um caçador por excelência. Descíamos as escarpas íngremes da serra, em Vila de Rei, carregando cada um de nós, todo o equipamento individual, com o auxílio duma corda de sisal. Exercícios necessários, mas extraordinariamente exigentes, onde todos acabavam arrasados e sedentos. Ali tão perto estavam as águas perigosas do rio Zêzere a ameaçar-nos se déssemos alguma queda, mas agora serviam para nos refrescar. Nunca se soube se o soldado, se atirou ao rio para se refrescar ou caiu já inanimado pelo esforço a que foi submetido. Alguns minutos depois deu-se a falta dele e aí o Fiúza, nosso “homem do mar”, ainda a recuperar do esforço, não hesitou e mergulhou às profundezas tentando resgatar uma e outra vez, num esforço, que se veio a revelar infrutífero, pois a corrente arrastou o corpo rapidamente nas águas de Inverno pelo rio abaixo. Os semblantes destes três camaradas eram comuns a todos quantos iam aconchegados na viatura. Era o frio da realidade tomando conta de todos, mas tinha a consciência que a preparação e treino de um Caçador Pára-quedista só poderá fazer-se utilizando como meio o próprio risco. Depois de quase uma hora de viagem empoleirado, lá chegámos ao objectivo de uma povoação chamada Vila de Rei. As tropas estavam estacionadas no sopé da montanha. Os sete pelotões foram distribuídos, pela área de intervenção, nos povoados que formavam uma península delimitada pelas ribeiras Isna e Codes e pelo rio Zêzere. Apresentava-se imponente aquele mar de água, novidade para muitos de nós, mas que não era mais do que a Albufeira do Castelo de Bode. Fomos alinhados na orla da ribeira de Isna onde o comandante de pelotão, em pouco mais de cinco minutos, nos deu em forma de prelecção, mas muito concisa e telegráfica, os objectivos da operação. “- Caros soldados e futuros Caçadores Pára-quedistas” – Dizia com a voz firme o nosso sargento. “- Imaginem-se algures no Ultramar, não direi Guiné, pois a Guiné não é isto, mas talvez no norte de Angola”. Quando falou Guiné, olhámos de soslaio uns para os outros. “ – Este pelotão é um pelotão de assalto a redutos inimigos, e vamos bater a zona que nos foi determinada, ao longo desta montanha. Iremos encontrar ao longo desta semana: povoações, tropa inimiga, picadas armadilhadas, emboscadas, mas também


tropa amigam.”- Enquanto ia falando, com uma mão atrás das costas e com a G3 na outra, deslocava-se passando a menos de meio metro de cada um de nós, fitando-nos. E continuando, foi lembrando alguns ensinamentos e comportamentos em situação de guerrilha, relembrando, várias vezes, a necessidade de progredir em silêncio e no material que carregávamos “pendurado” no corpo, para que não fosse a chocalhar. “- O factor surpresa é fundamental, não podemos ser emboscados que nem uns “arre-machos”- e terminou avisando: “- Poupem a água! daqui a três dias seremos reabastecidos, mas até lá, não sei se haverá mais água”. De repente ouve-se o rebentamento de um morteiro indicando que tudo estava a postos e a operação “Limpeza” acabava de ter início. Claro que era tudo a fingir, mas nas nossas mentes, estávamos na guerra e íamos de encontro ao risco. Através de um percurso sinuoso, ao longo da ribeira, fomos encontrando velhas azenhas, mas inimigo, nem cheiro. Alguns aldeões aqui e ali, como habituados a este tipo de operações militares, sorriam como se sentissem reconfortados pela tropa amiga que os punha a salvo de algum ataque “terrorista”. Surgiu uma aldeã, com a pele marcada pelo tempo, com a cara encovada pela fome e pelo trabalho duro e penoso que a serra lhe reservava. “- Coitados dos nossos soldados, é p’ra isto que uma mãe cria um filho?” – Lamentava-se a velhota “ - O meu filho Zé morreu em Angola, foi dos primeiros a ir para o Ultramar” – passou o braço pelo cara como a limpar a malfadada lembrança. “ – Quem devia ir para Angola eram “eles”. O Salazar já morreu, essa alma maldita, mas a guerra não acaba” – Enquanto falava, virava a cara para o chão, com medo que algum oficial a ouvisse. Entreolhámo-nos meio envergonhados pelo “desplante” e a coragem que os anos e a sabedoria lhe abonavam. “ - Que o diabo leve a guerra, meus filhos “ - Disse em jeito de despedida. Fomos progredindo, sempre a corta mato, evitando os trilhos e caminhos, sempre de olhar atento a cada passo calcorreado e evitando os barulhos que podiam alertar a nossa presença, em terreno hostil. Ainda as palavras da anciã nos martelavam no ouvido, quando passou mesmo ali, pertinho, um coelho bravo, em autêntica correria alucinada, como sentindo que estavam a invadir o seu território, ou algum predador o ameaçava. “- Um coelho!” – Exclamou em surdina o Covilhã, habituado a conviver com a serra e com as suas ovelhas, lá para o lado da Serra da Estrela. Se não sentisse o olhar frio, recriminatório e penetrante do Cabo Veríssimo, por quem tínhamos todos imenso respeito pela forma como nos tratava e acompanhava desde o primeiro dia de instrução militar, o nosso pastor soldado tinha-se atirado ao pobre coelho que fugia espavorido. De vez em quando, éramos invadidos pela perfumada carqueja e um cheiro oculto e penetrante a rosmaninho. Neste local, esquecido pelo tempo, existem, embrenhados na serra, numerosos vestígios da vida comunitária rural. Antigas pontes, velhas azenhas e levadas, açudes e fontes de mergulho fazem parte deste património riquíssimo que coabitava com os coelhos bravos, raposas, javalis e saca-rabos. Perdizes, tordos, gaios, milhafres e muitas outras aves completam o quadro de vida animal desta zona montanhosa de Vila de Rei, onde estávamos em treino militar.


Esta paisagem fresca, quase nos distraía da missão e dei comigo a pensar: “- Vê-se logo que é tudo a fingir, na Guiné não há disto. A vida lá deve ser terrível, segundo o que dizem os que de lá vêm. Depois de vários obstáculos naturais serem transpostos, quase sempre com a ajuda de cordas, lá fomos batendo toda aquela zona. De repente um rebentamento e… tudo desapareceu pelo chão dentro, num instante. “- Foi o rebentamento de uma mina anti-pessoal.” - Disse alguém, como se não soubéssemos que as minas não eram para nós, mas para o treino ser o mais próximo da realidade. É sempre aterrador o rebentamento de uma mina, muito mais tratando-se de uma anti-pessoal, (armas destinadas a mutilar ou ferir, por vezes matar, as suas vítimas). Para os militares, a finalidade da mina é ferir, mais do que matar. Matando, apenas retira uma pessoa do campo de batalha, ao passo que, se ferir, vários militares estarão envolvidas na evacuação e tratamento das vítimas. Serve também para desmoralizar os soldados que vêem os seus camaradas a sofrer e a serem amputados. Muitos deles nunca mais serão os mesmos homens. Após alguns momentos de silêncio, lá seguimos em frente, com cuidados redobrados. Apesar de percebermos que o rebentamento não fora ali perto, caminhávamos atentos ao que pudesse surgir. Os dias foram passando. Fizeram-se alguns aprisionamentos de militares “inimigos”. Estes quando se sentiam acossados escondiam-se em grutas ou casas abandonadas. A tropa pára-quedista batia toda a zona e possíveis locais de esconderijo e rapidamente os desalojava e prendia. Ao fim de seis dias, já exaustos e sem mantimentos, chegámos ao topo mais alto da montanha. Aqui, era o ponto de reunião de toda a tropa terminando o treino no terreno. Descomprimimos toda a carga stressante. O frio era intenso, mas ao calor das fogueiras que nos permitiram acender, relatámos as peripécias que surgiram ao longo desta jornada. Virei-me para o Risotas, enquanto despia o camuflado e virava as costas para a fogueira, e disse: “ – Martins, vê o que tenho aqui nas costas! Deve ser algum corte já a cicatrizar. Sinto comichão, mas também me dói um pouco”. “- Fiúza, chama aí o enfermeiro, para vir tirar este bichinho” - Pediu o Risotas. “- Risotas, não brinques com coisas sérias, vê lá o que tenho na merda das costas que me está a picar.” – Dizia eu já com pouca vontade de brincar. Chegou o enfermeiro que depois de observar o ferimento, virou-se para o Fiúza dizendo: “- Ó nosso pára, vá buscar a minha mala que está ali junto á minha mochila”. “- Mau, mau” - Pensei logo com os meus botões. “O que é que estes tipos estão a arranjar?”. Ao fim de alguns segundos, o enfermeiro mostrou-me, na ponta da pinça, algo ensanguentado. “- Sabe o que é isto? É uma carraça, que já estava mais dentro do que fora, das suas costas. Vamos agora desinfectar isso e fazer um penso”. “- Foda-se… por isso me doía!” – exclamei eu com cara de totó. Sempre que lá ia com as unhas, parecia-me uma casquinha de uma ferida e, afinal, era essa puta parasita”.



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