Revista-laboratรณro do curso de Jornalismo da Uniube Ano 1 | N.ยบ 1 - julho de 2018
Foto: Carol Rodrigues
Coletividade
Marco
Adriana
Itamar
8
Conceição
Viviane
Zé Eustáquio
6
12
18
22 24 27
7 31 35 38 43
Silvania
Aparecida
Marta
Vilma
Vicente
Odilon
AndrĂŠ
48 50
Edit Editorial orial
Esta edição da revista COLETIVIDADE traz histórias dos coletores de resíduos da Cooperativa dos Recolhedores Autônomos de Resíduos Sólidos e Materiais Recicláveis de Uberaba, Minas Gerais, a Cooperu, da Cooperativa de Trabalho dos Recicladores, a Cooperar situada no município de Ituverava, interior de São Paulo e da CooperativadosProdutoresdeMateriaisRecicláveisdeAraxá, a Cooperare, localizada no município de Araxá, Minas Gerais. O intuito é mostrar os sonhos, os medos, as expectativas para o futuro, os desafios do dia a dia e, principalmente,darvozapessoasquemuitasvezessãocolocadas à margem da sociedade. E, porque não mostrar também a importância do trabalho desenvolvido por elas dentro dessascooperativas.Sãohistóriascomoventeseencorajadoras que proporcionam a reflexão sobre a realidade de coletores que merecem ser ouvidos, reconhecidos e enxergados .
Expe Expediente diente COLETIVIDADE - Revista laboratório do curso de Jornalismo da Universidade de Uberaba - Uniube - Reitor: Marcelo Palmério - Pró-reitor de Ensino Superior: Marco Antônio Nogueira - Coordenadora dos cursos de Audiovisual, Jornalismo e Publicidade e Propaganda: Celi Camargo - Professoras Orientadoras: CintiaCerqueiraeIsabelCristinaFernandesVenturaCamargos - Redatores e editores: Alunos do 7º período de Jornalismo) Edição: Uniube - Laboratório experimental Portfólio - sala L04 - Avenida Nenê Sabino, 1801 - Uberaba/MG - Telefone: (34) 33198953.
Fala Zé
homem, José Eustáquio de Oliveira, 58 anos. O olhar cansado, mas orgulhoso, de uma pessoa que já fez muito e ainda tem mais a fazer. Nasceu em Patos de Minas, no Alto Paranaíba, de parto normal, dentro de casa, em uma roça. Devido às baixas condições da família, logo, aos seis anos, José Eustáquio já entendia o significado da palavra trabalho. Debulhava milho, tratava dos animais, buscava lenha. Um ano mais tarde, começou a frequentar a escola, a quatro quilômetros de casa. Moleza? Que nada! Aos sete anos, o pequeno “Zé” já sabia o que era conciliar estudo com trabalho. Julieta Ana de Morais, a mãe, morreu quando Zé tinha 13 anos; José Oliveira de Morais, o pai, morreu cinco anos mais tarde, ambas as mortes pelo mesmo motivo: Doença de Chagas. A enfermidade também tirou a vida de uma das cinco irmãs, de oito irmãos no total. As mortes em cadeia se justificam por contaminação alimentar, ao fato de que, fora da casa da família, havia um galinheiro, bem do lado da casa para protegê-las dos outros animais. Essas galinhas estavam sendo hospedeiras do parasita que causava a doença. Protegiam as galinhas, porém, esqueciam de se auto proteger. “O pior dia da vida de qualquer um é quando perdemos a mãe”, relembra o senhor de meia idade, com o olhar
6
vago e pensamento distante, como se resgatasse as poucas lembranças que tinha, daquela que era a maior saudade. Dona Julieta morreu às seis da manhã após uma noite agonizando de dor. Desesperados e sem nenhum meio de locomoção, Zé e o cunhado foram em busca da irmã a cerca de sete quilômetros de onde estavam. No meio do caminho, um obstáculo: um rio com água corrente em época de cheia. Na pressão do momento, o garoto de treze anos pulou de mãos dadas com o cunhado, e foi só pela habilidade do outro dentro d’água que não tiveram suas vidas levadas por água abaixo, sem trocadilhos. “Já pensou se meu pai perde a esposa, filho e genro no mesmo dia?”, se indaga Zé. Já dizia a famosa frase imortalizada nos telões dos cinemas: “Com grandes poderes vêm grandes responsabilidades”. Virou pai e mãe, José tinha que cuidar dos irmãos mais novos. Quando criança, dizia que queria ser motorista de ônibus, mas seu fascínio maior era pela medicina. Desde pequeno, José começou se interessar pela medicina natural, o poder da cura vindo das plantas. O sonho de cursar Medicina, porém, foi abafado devido às condições da família. Sem os pais e com pouco dinheiro, ele se mudou para a cidade de Patos de Minas, onde começou a estudar contabilidade.
Incansável Daniel Carvalho
José Eustáquio estampa no peito a Co
ooperativa que lhe acolheu tão bem
Foto: Daniel Carvalho
-
Fala Zé
TRABALHO Aos 16, cursava contabilidade e trabalhava em uma padaria. Dois anos depois, o destino o levou a Uberaba para terminar o curso. Aos 19, saiu da padaria e foi trabalhar em um mercado. Posteriormente, em uma lanchonete . O divisor de águas para José Eustáquio foi quando conheceu a Pastoral Operária (movimento de oposição sindical de jovens que reivindicavam melhoras de condições de trabalho), enquanto ainda trabalhava na lanchonete. As experiências na área trabalhista, então, foram só aumentando. Realizara um bom trabalho e era destaque, chegou a fazer parte da área executiva da pastoral, viajando constantemente, aprendendo e ensinando diariamente. Com a mente cheia de ideias e uma vontade insaciável de fazer acontecer, o homem, que parecia ter alcançado os objetivos, não parou por aí. Já adulto, montou um depósito de materiais de construção, primeira experiência como trabalhador independente. Contente? Ainda não! José Eustáquio queria mais! Então, assim, fundou, em Uberaba, a Cáritas Brasileira. Lá, chegou a atuar como diretor executivo estadual. Envolvido em movimentos sociais constantes, em 2012, Zé conheceu a Cooperativa dos Recolhedores Autônomos de Resíduos Sólidos e Materiais Recicláveis de Uberaba (CO-
OPERU). Deixou o depósito de materiais na mão da esposa e tornou-se presidente da Cooperu, aonde continua exercendo seu papel até hoje, mas como administrador e tesoureiro. Em relação à Cooperu, Zé afirma: “Sonho que possamos ter uma Cooperativa forte, que possa competir com o mercado e ter seu espaço reconhecido.” José Eustáquio de Oliveira mora com a esposa Carmelúcia de Oliveira. Têm três filhas: a mais velha, Janaína Cristina de Oliveira, formada em Biomedicina; a do meio, Daniela Cristina de Oliveira, formada em Nutrição, e a caçula Viviam Thainá de Oliveira, de 22 anos, formada em Design.
SUPERAR Quem pensa que Zé parou de estudar, se engana: o guerreiro faz Administração a distância e está no 6° período. Em plena melhor idade, ele é o exemplo vivo de pessoa que nos leva a refletir sobre superação e capacidade. Superação porque, mesmo tendo nascido em um ambiente desfavorável, deu a volta por cima para chegar aonde chegou. Juntando todos esses fatores, construímos a imagem de José, que não é apenas um Zé, ao contrário, é “O Zé”, que ajuda pessoas a vencer na vida, que se preocupa diariamente com aqueles que o cercam, o Zé de aço, que não se enferruja por nada, o Zé que faz o bem e espalha o bem, o Zé que tem o coração do tamanho do mundo e que quer o mundo todo em seu coração.
77
missão real
Catavoz
Fotos: Hiago F.
Hiago Fernandes
O QUARTEL O galpão da Cooperu fica em um distrito industrial afastado da zona central com vista para largos horizontes e uma visão panorâmica da cidade. Ao adentrar o ambiente, percebo cheiros, cores e a orquestra de mãos que tudo separam. Parei para pensar que, naquele momento, estava no quartel dos soldados que, até outro dia, olhava de longe. Procurei por Viviane ao norte, ao leste e, de relance, pelo sul. Resolvi perguntar e aqueles que ouviram apontaram para o alto: lá estava o escritório. Subi dois lances de escadas combinados com 10 largos passos que me levaram até a sala onde a catadora estava, uma verdadeira guarita que permite ver tudo e todos. São duas grandes janelas por onde ela comunica e acompanha os processos. Ela supervisiona, orienta e despacha. Tudo passa por ela!
8
missão real
A GENERAL Não acredito que seja maldade comparar Viviane a uma general. Foi a sensação quetive ao vê-la no ambiente de trabalho, sempre requisitada e empenhada na tomada de decisões. Para narrar a vida, precisou desligar-se, colocou o celular em off e, aos poucos, foi desprendendo o olhar das janelas. No entanto, a postura firme prevaleceu e as respostas surgiam sem rodeios. A força da patente vem primeiramente da trajetória como soldada. Viviane tem 29 anos de idade e há quatro participa da Cooperu, descobrindo “outros, outros e outros mundos”, como ela mesma diz. É algo dela, pois, desde criança, passou a conhecer os destinos para os quais certas estradas levam.
“
Tive uma infância difícil, meu pai era caminhoneiro e minha mãe, lavadeira
79
missão real
MISSÃO
10
A primeira missão de Viviane na Cooperu foi estabelecer a convivência com os catadores. “No começo, sentia que ninguém gostava de mim. Aos poucos, fui conquistando a confiança de muitos e mostrando que eu trabalho para cada um deles; não sou de negar informação para quem me pede”, esclarece. No entanto, a general não se preocupa em ser amada por todos e, muitos menos, se não é querida por alguns. “Tem as conversas, picuinhas. Mas, são pessoas e ajudamos muito uns aos outros”, pondera. Viviane é categórica quando fala sobre as verdades dela. “Brigo aqui dentro, lá fora ou em qualquer lugar. Eu tenho meu ponto de vista e nada me faz mudar; se eu estiver certa, vou brigar até o final. Seja pelas meninas aqui ou pelo pessoal da rua, o meu ponto de vista não muda. Hoje, meu ponto de vista é coleta seletiva e o meio ambiente. Uma coisa que eu aprendi a amar muito, não me vejo sem isso mais”, expõe. Perguntei para ela: “Você acredita em missão?” A catadora respondeu: “Sim! ” E o nosso diálogo, por alguns segundos, ficou mergulhado em um silêncio de reflexões. Retornamos para superfície, para falarmos de renúncias e dificuldades. Naquele momento, percebi que o assunto não havia morrido afogado. Ufa, pelo contrário, senti Viviane “nadando” com bem mais intensidade.
missão real
FORTALEZA Em meio aos recicláveis, percebo que a general não deixou que morresse, dentro dela, a soldada ambiental. “O pessoal fala: ‘Ah, mas você fica no escritório!’ Mas eu já fiz de tudo aqui, sei fazer todos os serviços. Tanto da parte da triagem, como o do caminhão que eu brigo para ir e eles não deixam. Para a gente cobrar de alguém e ensinar quem tá chegando, precisa saber fazer”, pontua. Porém, não deixa de defender a liderança. “Eu sei mais de 120
catadores por nome, faço questão de ir na casa deles visitá-los para saber a realidade em que vivem. Em algumas senhoras, vejo minha mãe, faço questão de conhecê-las e, sempre que posso, desço para ficar conversando com elas”, revela. Na forma como Viviane anda pelo galpão e conversa com os catadores, ressurge a menina que sonha em mudar o mundo. A guerreira que supera a dor de não poder cuidar do pai através do cuidado com outros senhores
e senhoras da cooperativa. Não se faz de vítima na história em que é a protagonista. “Este ano, graças à Cooperativa, vou começar a construir minha casa. Eu moro de aluguel, vou começar a construir, este ano, graças à Cooperativa. E os meus sonhos não param por aí, eu pretendo fazer faculdade, mas tudo voltado para este mundo. Eu não quero sair deste mundo. Este mundo é maravilhoso para mim”.
7 11
Fotos: Raiane Duarte
mãe ariana
Ariana,
Maria
CONCEIÇÃO Raiane Duarte
A vida é um ciclo, nascemos e somos jogados dentro de ciclos menores. Início, meio e fim, recomeço. Temos o ciclo básico; nascer, crescer, reproduzir e morrer. Há o ciclo da paixão, onde conhecemos e desconhecemos pessoas. O ciclo do dia, aquele em que o sol percorre o céu, dá meia-volta e depois repousa, dando lugar à lua. Há também as estações que colorem os dias, formando quatro ciclos pequeninos que, juntos, dão origem ao ano. Fugindo do palpável, ainda temos o círculo dos astros, os doze signos. Quem abre esse conjunto astrológico é Áries, o desbravador, mistura de força e coragem.
CICLO DOS ZODÍACO Ariana, nascida em 10 de abril, Maria Conceição é a representação do primeiro signo. Aos 32 anos, ela confessa: “eu sou um pouquinho difícil”. Regido por Marte, Deus da Guerra, circulam boatos que arianos são difíceis de lidar. Verdade ou mito, não podemos negar a energia de Áries, signo de fogo, que transmite vida e
sinceridade. Com sorriso verdadeiro, contornado por maçãs do rosto, Maria Conceição afirma: “sou ariana”. Não é apenas o ciclo do zodíaco que Conceição inaugura. Em 2012, no dia sete de dezembro, na época com 24 anos, a jovem seguiu um novo caminho: mudou-se para Uberaba e deu início à outra fase. Nas malas, os pertences, dentro de si, o primeiro bebê. Vinda de Caxias – Maranhão, chegar à cidade mineira era um grande passo. Aventurar-se, outra característica de Áries, foi o que havia acabado de fazer. Maria Conceição chegou na cidade acompanhada apenas de uma amiga. Aproximadamente um mês depois, o marido também desembarcou em Uberaba. A ideia inicial do companheiro era mudar-se para a capital paulista, São Paulo, em busca de melhores oportunidades. Mas, por meio de amizades, Conceição ficou sabendo que Uberaba “era melhor de emprego”.
13
mãe ariana
CICLO DA VIDA Alguns ciclos se movimentam rápido, logo, 2012 se transformou em 2013 e, no dia 03 de janeiro, Maria Conceição começou a trabalhar na Cooperu. Deu à luz à Francisco, passou pelo período pós-maternidade e voltou para a Cooperativa. Quatro anos se passaram e, novamente, o ciclo da vida a visitou. Dessa vez, estava grávida de uma menina, Maria Júlia. Com dois filhos, “as crianças” tornaram-se o grande ciclo da vida de Maria Conceição. A mãe, sinônimo de doar-se ao próximo, explica que escolheu ficar na cooperativa principalmente por causa do horário flexível.
CICLO DA PAIXÃO Antes de falarmos do dia a dia, ainda precisamos contextualizar os ciclos que levaram Maria Conceição até o hoje. Acima, cito o percurso da paixão que, assim como tudo na vida, tem seu início e fim. O marido, aquele com quem passou parte dos anos em Uberaba, já está na lista de finais. Pai dos seus filhos, homem que colaborou para o surgimento de duas gigantescas paixões, já não pertence mais à vida de Maria Conceição. “Foi embora, não temoscontato.Soupaiemãeagora.” Ciclos não param e outras pessoas surgem. Maria Conceição é dona de um sorriso crescente que, às vezes surge, tímido,
14
mas convence, porque todo o rosto também sorri, é uma mulher de inícios. Conheceu Vanderson.“Tá dando certo, pois ele se dá bem com as crianças, a primeira coisa é as crianças.” Sobre namorar alguém do trabalho, Conceição é direta: “a gente não tem problema não, a gente é meio estranho”. Explica que ele é de Escorpião. O oitavo signo do zodíaco pertence ao elemento água, regido pelo planeta Plutão que, na mitologia grega, é representado pelo deus Hades, dono do abismo e da profundidade, deus dos mortos. “Deus me livre”, brinca, ao se referir ao signo do companheiro que, segundo ela, é uma parte complicada do zodíaco. Mas dentro da roda da vida, aonde os círculos se encontram, a chama de Áries encontra equilíbrio nas águas de Escorpião.
CICLO DOS DIAS Como falar dos ciclos de Conceição sem falar daquele que acompanha o nascer do sol e termina depois de ele se pôr? O dia começa às cinco e meia da manhã e termina quando as crianças dormem. Aos domingos; no sétimo dia da semana, vem a redenção do ciclo semanal, e a mãe finalmentedescansacomosfilhos.
RECICLAR Convivência é um ponto importante ao se trabalhar em um local com muitos funcionários. “Eu, tipo assim, sou uma pessoa bem difícil, sou ariana. Só que gosto de todo mundo, converso com todo mundo e assim vai, só que é, tipo assim, né, eu vou te falar uma
mãe ariana
“
coisa, eu gosto de te chamar e te falar: ó ,pessoa, isso e isso não tá muito bom pra mim e, assim vai, a gente vai. Eu discuto bastante, mas não é de briga, é de discutir, de mostrar o que eu to pensando.” Conceição também explica que o fluxo de pessoas que passam pela Cooperativa é muito grande. “Entra muita gente, sai muita gente”, oresponsávelpelaCooperu“pega” pessoas que já espalharam currículo em outros lugares e que, se foremchamadas,acabamdeixando a cooperativa.
CICLO FUTURO Ah, falamos muito de ciclos, vida, lugares e pessoas, mas não citamos o ciclo que nos traz à vida e sempre nos acompanha em nossos corações; a família. Maria Conceição sente saudades, pois ainda tem muitos familiares em Caxias. Sobre irmãos, Maria tem muitos: “são seis meninas, cinco comigo, e seis com a que faleceu; quatro irmãos, seis com os dois que faleceram, uma família de doze irmãos”. Para matar tamanha saudade, que se amplia em datas comemorativas, Conceição liga para mãe e irmãos e tenta sempre trocar fotos e mensagens para diminuir, de certa maneira, a distância. Quando surge oportunidade, também os visita. A mãe de Conceição,
Ele se dá bem com as crianças, a primeira coisa é as crianças.
assim como ela, tem as maçãs do rosto saltadas, mas, diferentemente de Maria, a matriarca já tem os olhos contornados pelo tempo. Meu pai ainda tá lá com minha mãe, tão junto até hoje, eu não sei como a minha mãe aguenta. Estão no mesmo lugar. Todos os meus irmãos casaram e cada um foi pro seu canto.”
RECICLAR
O próprio corpo da mulher passa por ciclos constantes, e crescer e envelhecer faz parte. Porém, tendo ainda 32 anos, Maria Conceição é muito jovem. Sobre a vaidade, ela é sincera. “Não tem tempo, eu tenho que me arrumar tipo, lavar cabelo, sabe, só de vez em quando que faço escova no cabelo, e essas coisas assim é muito difícil eu fazer. Uma que não sou muito de ficar saindo, aí, me arrumo pra ficar em casa mesmo. Meu namorado vai lá e a gente não sai pra lugar nenhum, justamente por eu tá assim, aí, não tenho muita
vaidade.” Pensar no futuro é algo natural do ser humano e Conceição não foge à regra. “Eu sempre pensei em voltar a estudar, queria voltar a estudar mais ou menos por agora, quando Julia completasse três aninhos, porque já tá na creche e parou de mamar. Mas agora eu to sozinha com eles, entendeu, aí, fica difícil, eu teria que deixar eles na casa de outra pessoa. Por isso, eu acho que não vou voltar, mas, quem sabe.” A vida é a grande protagonista de intermináveis começos. Assim, Maria doa-se novamente para o começo dos próximos. Como mãe, os sonhos para o futuro estão voltados para o futuro dos filhos. Maria Conceição afirma que quer que eles tenham mais oportunidades, mais oportunidadesdo que ela teve, que estudem e consigam um bom emprego. Áries, o primeiro que cede o lugar aos seus primeiros.
157 15
na lata
movimento nacional
MNCR
dos catadores de materiais recicláveis Hiago Fernandes
Fotos: Gilberto Chagas
O Gilberto Chagas falou “na lata” com a revista coletividade. Ele é catador e exerce uma função de liderança do Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR) no Estado de Minas Gerais. Ele quando criança catavs sucata de ferro, garrafas e embalagens de quentinha. Recolha e vendiia em depósitos. Depois, seguiu na catação de forma esporádica, trabalhava em uma obra e, depois, voltava. Foi assim até em 2001, quando decidiu trabalhar somente como catador.
Gilberto, em nossa pesquisa encontramos lugares em que o profissional da coleta é definido como "coletor" e em outros "catador". Os dois modos estão certos ou apenas um é o correto? A nomenclatura correta é catador e catadora de matéria reciclável. Trata-se de uma profissão reconhecida desde 2006. Muita gente (prefeituras, ONGs) usam outras nomenclaturas como coletores e agentes ambientais e estigmatizam a expressão “catador”. Para a gente, é importante porque define “quem é quem” dentro do processo. Ser um agente ambiental é um dever de todo cidadão e o coletor é quem só coleta (pode ser um gari). O catador faz o trabalho da coleta, triagem, enfardamento; além disso, administra a organização, vende e negocia o material reciclável.
16
Atualmente, quais são as principais reivindicações do movimento? Entre nossas principais lutas está a busca constante do pagamento pela prestação de serviços para cooperativas e associação de catadores, por parte do poder público e também da iniciativa privada. A erradicação dos lixões atrelado ao apoio na substituição destes espaços por associação e cooperativas. Faltam políticas públicas visando à valorização deste profissional? Sim. A coleta seletiva ainda não é pauta em muitos municípios. São poucos os municípios que propõem parcerias e até contrações de associações e cooperativas. Falta apoio no que tange apoio na infraestrutura e
na lata mobilização de toda sociedade em prol do exercício da atividade. Existe ainda preconceito com os catadores? É algo que vem melhorando ao longo do tempo. Mas, a estigma que é trabalho ruim ainda nos persegue. Acredito que isso é algo cultural. No Brasil, profissões que não sejam braçais tendem a ser mais valorizadas das que são. Quantos associados o movimento tem hoje? Cerca de 90 mil organizados sob a bandeira do MNCR em todo Brasil.
Você já esteve em outros países para conhecer o processo de coleta seletiva. Quais são as diferenças em relação ao nosso país? Cada país tem um padrão de consumo e cultura. Na Europa, por exemplo, se incinera muito lixo por não terem espaço para aterros. Prática inicia no século 19 e vem lentamente sendo banida. O país recicla muito, mas não com a qualidade daqui, por exemplo. O processo de coleta, todo ou quase, é mecanizado. Apesar de eficiente para os padrões deles, não reciclam tudo aquilo que pode ser reaproveitado. Foca mais em embalagens, madeira e outros específicos como o vidro. Por lá, como tem menos sílica ou areia, reciclam muito vidro pela questão custo benefício. Sobre o trabalho de fotografia que você desenvolve no movimento: qual é o propósito?
Mostrar o trabalho feito por nós em todo país. Uma forma de valorização da nossa imagem e trabalho. O material é veiculado no site do movimento e na minha fanpage no Facebook denominada “Catadores personagens e histórias de vida”.
Qual mensagem você deixar aos companheiros de profissão e toda sociedade? Assim como todo trabalho, os catadores e catadoras têm que ser valorizado. As cooperativas e associações, além de propiciar trabalho e renda, promovem a inclusão de pessoas marginalizadas ou até mesmo fora do mercado de trabalho. Somos responsáveis por 90% de todo processo de reciclagem. Por meio do nosso “ganha-pão”, colaboramos com a redução de impactos no meio am biente.
super ação
COOPERAR:
deserto que floresce Fotos: Lívia Mara
Lívia Mara e Bruna Barbosa
Adriana Moreira e Itamar Miguel, casal forte e batalhador, responsáveis pela Cooperativa Cooperar
Década de 70. Ituverava, município que fica bem “escondidinho” no interior de São Paulo. Com apenas 38.699 habitantes, possuipessoasincríveisdasquais você nunca ouviu falar. Não se assuste, nem os próprios moradores têm consciência do quão incríveis são, até terem as próprias histórias contadas. Como qualquer município, Ituverava possui economia, prefeitura, pontos turísticos e alguns jardinsdispersos.Hátambémuma oculta e enorme cooperativa, tão oculta quanto o jardim secreto dos contos de fadas. Porém, aqui, osprotagonistasdestahistóriasão reais. Mas, antes, preciso explicar
18
um pouco sobre a cooperativa, pois não há como distinguir um lugar de uma pessoa, se uma parte dela é aquele lugar. A ideia da cooperativa surgiu em 2005, quando Itamar Miguel Ferreira, marido de Adriana do Santos Moreira Ferreira, passava por um período difícil. Itamar, certo dia, viu um programa matinal sobre pequenas empresas e grandes negócios que, por acaso do destino, tinha como tema “cooperativas”.Itamar,quenãoébobo, entendeu o sinal como vindo de lá do céu e decidiu investir. Veio a ideia da Cooperar, que entrou em funcionamento logo no ano seguinte, em 2006.
super ação Claro que não foi tão fácil chegar até este momento. A princípio, os futuros coletores tiveram que fazer o curso do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (SEBRAE), onde foram orientados sobre materiais recicláveis. Aprenderam muito e talvez, a maior lição, tenha sido a de que “a cooperativa era um grande e imenso deserto e que só iriam sair de lá os vencedores”, fala deumdosprofessoresdoSEBRAE. A cooperativa começou com trinta e seis pessoas, todas de um único bairro de Ituverava. Acredite ou não, Itamar conseguiu fazer um bairro inteiro se unir a uma causa. Infelizmente, as trinta e seis pessoas não ficaram na vida deles por muito tempo. Para ser exata, durante um mês apenas. No segundo mês, apenas dezenove pessoas, e no terceiro, apenas três restaram. Um motivo enorme para desistir, mas não o suficiente para fazer Itamar e Adriana jogarem tudo para o alto. Ingressaram, então, na eterna missãodemanteraCooperar;cooperando-o entre si multiplicar.
forma de sustento para a família. Porém, ainda novo, também teve o conceito de família marcado e transformado, quando se deparou com a separação dos pais. O pai, outra espécie de semente, foi levado pelo vento; vendeu o mercadinho que possuía e mudou-se para o Amazonas, terra de outros cultivos. Com 18 anos, Itamar quase se plantou em emaranhados inférteis. Tornou-se traficante e usuário de droga, especificamente, erva. Estava nesse universo até que conheceu Adriana Moreira, menina que chamou a atenção dele na primeira vez em que se cruzaram. Adriana era semente de outros jardins que, para Itamar, se mostraram mais atrativos. Itamar não se lamenta pelas raízes que deixou de fincar. “Não me arrependo de ter saído, tem hora que bate, sim, o arrependimento material, se for olhar, você se arrepende. Mas vamos ver pela parte de poder andar na rua, poder conversar com as pessoas, é diferente. Tenho orgulho do que sou hoje, a Adriana me tirou do meio daquilo. Sabe porque o pai dela era fechadão, não aceitava”. Talvez, Adriana seja como a flor do deserto para desertores.
GRANDE SEMENTE O mais velho de seis irmãos, Itamar, com sete primaveras de vida, já era uma semente do labor, com as mãos marcadas pelo trabalho na roça. Colhia algodão, arroz, feijão e cortava cana, como
197 19
super ação
ENCONTRO DE GRÃOS Itamar e Adriana casaram-se aos 20 anos, ambos com a mesma idade, apenas com um mísero mês de diferença entre eles. Entre Adriana e a cooperar, amar. Há uma guerra de amor entre as duas coisas mais importantes para Itamar: o amor pela família e a paixão pela cooperativa. Atualmente, o casal tem passado por muitas dificuldades, principalmente Itamar, por ser o presidente da cooperativa. Essa dificuldade advém da falta de voz, espaço e oportunidade para os guerreiros semeadores da reciclagem. “Os verdadeiros agentes ambientais somos nós”, afirma o homem que, paralelamente ,questiona o motivo de ainda serem inviabilizados. Tratar os resíduos e transformá-los é como caminhar por deserto um pouco silencioso. “O que está difícil é o reconhecimento do quanto é importante nosso trabalho. Enquanto a pessoa não vê o que é importante, a gente vai sofrer, assim como a água; o dia que a pessoa ver o quanto é importante economizar água, ela vai parar. A gente precisa dar muita importância na área ambiental, precisa cuidar do meio ambiente”, conclui Itamar. Para ele, Cooperar significava tudo, é onde vê as oportunidades do passado, onde vive o presente e onde espalha alternativas para o futuro. Itamar e Adriana cultiva-
20
Um dos cooperados finalizando serviço na cooperativa
“
A pessoa vai trabahar, às vezes, sem tomar um cafezinho preto
super ação
SEMENTINHAS ram três filhos biológicos; Igor, Aide e Thamara. Também abraçaram Gabriel, criação do coração. Igor auxilia a família de forma administrativa e também conduz o caminhão. Aide trabalhou na cooperativa e hoje faz o curso superior de Engenharia Ambiental para ajudar o pai com projetos de leis, e, assim, ganhar mais força diante do poder público. Gabriel e Thamara ainda não são formados, mas colaboram, da maneira que podem, com a cooperativa. A mãe de Itamar também
é grande peça no jardim, já é aposentada e ajuda recolhendo reciclado. Tanto se fala de resíduos e de reciclagem, mas, para entender o jardim, é preciso compreender o conceito. Calma, Itamar explica. “Não existe lixo, separa seu material, vê o que sobra de lixo e vê o que sobra de reciclagem. O orgânico, que é o arroz, as cascas de laranja e as de legumes, elas são resíduos orgânicos, dá para fazer o adubo, se tirar o orgânico, me fala o que sobrou de lixo? Aonde tem lixo, o lixo que existe é o lixo de banheiro.”
7 21
super ação
rosa do
deserto
Adriana é gentileza. Pode até ser grossa com quem, segundo ela, merece. Uma mistura de pétalas e aridez, rosa do deserto. Com uma rotina dura, Adriana acorda cedo, dorme tarde e luta pelos direitos, dia após dia. Uma flor de jardim que morre e renasce, uma mulher de vitórias e derrotas. Alguém que criou os quatro filhos ensinando a serem corretosearespeitaremopróximo. Uma rosa do deserto que multiplicou sementes incontáveis. Filhos e mais filhos. O amor transborda pelos olhos de Adriana que, com longos cabelos presos para cima, marcas de sol na face e mãos desgastadas pelo trabalho duro, chora ao lembrar das dificuldades que as suas cooperadas, suas sementes já enfrentaram. Chorou e refletiu por alguns minutos, queria dizer algo a mais, talvez inventar qualquer desculpa por ter falhado em parecer dura. Preferiu refor-
22
çar que lá dentro da Cooperativa, o buraco é bem mais fundo e que o desejo de reconhecimento está bem longe de ser realizado. Adriana, que é mãe de uns e outros, não consegue ver os filhos sem sustento, parte o coração vê-los assim. Também, por mais contraditório que seja, parte-lhe a alma vê-los partir da cooperativa. Apego de mãe. Flor do deserto, que nunca aprendeu a lidar com perdas e que tenta supri-las ao lado de Itamar, o único que realmente fica; ficar no verbo infinitivo.
FLORESCER Para Itamar, suprir o jardim é supri-lo do básico. “Meu sonho, na cooperativa, é dar um café da manhã, um lanche da tarde. Nós mesmos, a pessoa vai trabalhar, às vezes, sem tomar um cafezinho preto, dar um almoço descente. Tem vez que a gente vê a pessoa comer arroz branco. Dar um arroz com tomate só, sem colocar nada no meio. Você olha
super ação
lugar para pescar, além dos dez cachorros. Há muitas famílias dentro da família Cooperar e, por isso, Adriana sabe o nome de todos os caninos, pois precisa conhecer cada canto e latido do jardim. Metáforas à parte, mas ser rosa do deserto é ser guerreira, é lutar pelas metas da reciclagem, que devem ser batidas todos os dias. É aceitar que dias melhores virão. É lutar pela educação dos filhos. É bater de frente com autoridades e não ter medo das consequências. É gostar da vida simples e viver o amor que sempre sonhou. Na alegria e na tristeza, na saú-
de e na doença, na riqueza e na pobreza, são os votos de uma infinita aliança entre Adriana e Itamar. Pais do “lixo” fértil, aqueles que lutam todos os dias para que nem a morte transforme em deserto o jardim que construíram.
Fotos: Lívia Mara / Arte: Raiane Duarte
aquilo e dá uma baixa estima”. Lembre-se que para germinar, as sementinhas precisam ser cuidadas. Não são apenas trabalhadores da cooperativa, e, sim uma família, pequena, composta atualmente por aproximadamente 18 pessoas. Para satisfazer as necessidades da cooperativa, não faltamuito.Elesnecessitamdeestrutura: refeitório, banheiro descente e uma van para transporte. A família Cooperar precisa de adubo, mas nenhum deles se esquece do que já nasceu e floresceu. Adriana aprendeu à dar valor na simplicidade e às pequenas coisas. Gargalhou quando lembrou da mudança para o “barracão” aonde vive hoje. De acordo com ela, era um lugar cheio de pneus, mas que agora tem até
boas águas João Paulo Ferreira
Banhado pelo
querer
Em um local praticamente oculto da sociedade, a Cooperare e seus membros lutam pelo reconhecimento do seu trabalho
Araxá–MGficalocalizadaentreas bacias do Rio Grande e do Rio Paranaíba, ambas com grande potencial hidrelétrico. A cidade integra o Circuito de Águas de Minas Gerais, notabilizado pelas propriedades terapêuticas diversificadas de águas medicinais. Por lá, encontramos um grande complexo termal, serviços de hotelaria e outros atrelados ao turismo. O nome indígena, que denomina o município, significa “um lugar onde primeiro se avista o sol”. E por lá encontramos gente ousada como o Marco Reulis Gonçalves Mota, capaz de descobrir novos horizontes. Aos 40 anos, ele é diretor da Cooperativa dos Produtores de Materiais Recicláveis de Araxá – Cooperare e afirma: “Eu não tenho uma história triste para contar”. Essa frase é a nascente de minha inspiração, fonte do meu desejo em querer ouvir os relatos do catador. Dou início ao caminho das águas. Afinal há histórias que são como as partes de um rio.
24
ÁGUAS PASSADAS Marco,nascidoemAraxá,emuma família de classe média e rodeado por quatro irmãos, revela ter tido uma infância simples e feliz. Mas, assim como às águas de um rio os dias seguem um fluxo, que deságua em um futuro de possibilidades. Aos 11 anos, começou a trabalhar como entregador em uma farmácia. “Eu nãoprecisavatrabalhar,mas,naépocado meu pai e dos meus avós, colocar o filho pra trabalhar servia pra logo aprender umaprofissão.Assim,aos18,nãoprecisaria depender do pai ou da mãe.” Era um adolescente que que gostava da farra, da bebida e das namoradinhas. Mas, como nem tudo é diversão, aos 18 anos, trabalhava como eletricista residencial. Quanto aos estudos, acabou abandonando por alguns anos. Voltou, concluiu o ensino fundamental, iniciou o ensinomédio,mas,abandonounovamente
Fotos: João Paulo
boas águas
RIOS CRUZADOS Aos 20, conheceu Lilian. Os dois começaram a namorar quando a garota tinha de 14 para 15 anos. E quando ela atingiu a maioridade, o casal logo foi morar junto.
NOVO FLUXO Enquanto formavam uma família, Marco crescia no mundo dos negócios, chegando até a ser gerente de várias lojas. Aos 33 anos, a Síndrome do Pânico e o estresse surgiram. A morte do pai e, anos depois, da mãe se interligou aos problemas, o que o fez se afastar da loja aonde trabalhava. “Meu psicólogo falou que era o dinheiro ou minha saúde. Falei: ‘lógico que a minha saúde’.”
Foi aí que a cooperativa entrou em cena. Em busca de melhoria na qualidade de vida, a Cooperare tornou-se uma laborterapia. Então, em 2013, o que era uma terapia se tornou uma missão. “Eu vim aqui dar uma luz pra cooperativa.” Hoje, há toda uma organização por detrás. E, por mais que haja uma hierarquia, tudo é decidido em conjunto. Uma família foi formada. Uma questão que poderia ser encarada como uma dificuldade é tirada de letra por Marco: o preconceito. Ele não se cala diante do que considera “falta de conhecimento das pessoas”, e ensina o mesmo para cada membro da cooperativa.Emcadasituação,busca agir da melhor forma, sem deixar de defender, com orgulho, o seu trabalho. “Cheguei todo sujo no banco e sentei. Aí, a pessoa se levantou. Eu peguei e falei : é porque eu tô sujo?’. Ela não falou. Eu falei ‘é porque estou sujo mesmo.
Mas não preocupa não, você vai ficar na fila não vai?’ . A pessoa falou: ‘vou’. Fui no gerente, ele pegou o dinheiro pra mim, que era pra fazer pagamentodopessoal,esaí.Eu,se a pessoa for preconceituosa comigo, não fico calado. E falo pra todos aqui não ficarem calados também porque você tem que ter orgulho do que faz. Se chegar numa roda de amigos e me perguntar minha profissão, falo na lata, sou agente ambiental, catador. Pra mim, as profissões são uma coisa só.” O filósofo pré-socrático Heráclito explica que: “Ninguém pode entrar duas vezes no mesmo rio, pois quando nele se entra novamente, não se encontra as mesmas águas, e o próprio ser já se modificou. Assim, tudo é regido pela dialética, a tensão e o revezamento dos opostos. Portanto, o real é sempre fruto da mudança, ou seja, do combate entre os contrários”.
Orgulho aliado a bandeira do MNCR
7 25
“A missão do jornalismo é transformar mentes e corações. Uma publicação que sensibiliza e mostra o valor humano é essencial. Principalmente, quando a gente olha a história de vida dos catadores e as superações. Estes profissionais possibilitam que grande parte daquiloquesobradasociedadedeconsumo,possaserressignificado. Um material, neste sentido, combate o preconceito e retira estes profissionaisdainvisibilidade.Éumacontribuiçãoparaumalutaglobal.”
Diretor presidente do Instituto Nenuca de Desenvolvimento Sustentável (INSEA) e assessor do Movimento Nacional dos Catadores de Recicláveis (MNCR), Luciano Marcos, ao ser questionado sobre a possibilidade da produção de um material abordando histórias de vidas de catadores.
Fotos: Pauline Mingati
o gigante
O gigante
em busca
de grandeza Pauline Mingati
Atravessei a Cooperu procurando André Luís. Assim que o encontrei, logo no primeiro contato visual, percebi que se tratava de uma pessoa mais reservada. Cogitei, por alguns minutos, que talvez fosse difícil extrair muita coisa sobre sua vida. Estava enganada. Ainda bem. André é um daqueles livros cheios de ensinamentos. Basta saber como abri-lo.
7 27
o gigante
André Luís faz parte da diretoria da cooperativa, além de fazer o trabalho de prensagem dos resíduos. Ele, que tem 44 anos, está na profissão há mais ou menos 12. O suficiente para considerar os colegas de trabalho uma família e para colecionar e compartilhar experiências. O caminho que o trouxe até Uberaba foi doloroso. André nasceu em São Miguel Paulista, São Paulo, em “uma família desajustada”. Guarda, até hoje, a mágoa que sente da mãe que bebia na mesma proporção em que batia nos filhos, mesmo a tendo perdido ainda criança. Para ele, a ideia de que crianças não guardam mágoas é completamente errônea, uma vez que, embora a fisionomia da mãe não esteja em sua memória, nela estão as diversas vezes em que apanhou. Após a morte de sua mãe, o catador veio, juntamente com a irmã, morar com a avó. Mas outra reviravolta viria com o casamento do pai. André, ainda pequeno, voltou a morar com ele e a madrasta.Destavez,emPirassununga,nointerior de São Paulo, com a companhia dos dois irmãos frutos deste último casamento. Com certa dificuldade de olhar diretamente nos olhos, André busca, no horizonte, cada memória de um dos momentos mais duros de sua vida. Com a voz mais trêmula e as mãos relativamente inquietas, conta do tratamento que recebia da madrasta. Desentendimentos, xingamentos, cobranças. A quantidade e a intensidade das coisas que o feriram no decorrer da vida fizeram-no pensar, aos seus 20 e poucos anos, que talvez ela já não valesse a pena. E que, provavelmente, não mais dolorida seria, se simplesmente chegasse ao fim.
28
ESCUTANDO VOZES
Pensamentos ruins ficavam como uma voz na cabeça. Sozinho, largou os produtos da limpeza que fazia em casa e buscou uma faca na cozinha. Por causa de um telefonema, que André também chama de Deus, a voz parece ter se calado e, como quem estava cego, André voltou para a realidade. Assim que ouviu o toque do telefone, jogou a faca no chão, trocou de roupa e fez a primeira coisa que passou em sua mente: saiu de casa. Viu a rua, o movimento, a vida que ainda acontecia ali fora. Contando a história, André faz movimentos com a mão fechada em direção à barriga e diz: “foi quase”. Depois deste relato, o silêncio de quem acaba de reviver um momento angustiante. A Igreja Evangélica teve um importante papel neste momento da vida de André. Foi a partir dela que ele pôde compreender melhor a palavra de Deus e, assim, recuperar-se de uma época tão complicada. Todavia, com a morte do pai, a Igreja, que tanto ajudou em sua relação com a madrasta e o pai, foi deixada de lado. Foi mais um período difícil que, mais uma vez, quase o levou à depressão. Neste momento, André comenta a ironia de se pensar que, além do contato com a religião, a distância fez com que houvesse mais proximidade entre ele e seu pai, já que essa mudança aconteceu após voltar a morar em Uberaba, em 2001.
o gigante
“
Eu sempre fui exigido. E o reflexo, né?
O DESBRAVADOR
Depois de tanto sofrimento na bagagem, ao chegar aqui, André percebeu, de todas as formas possíveis, que estava em um lugar maior do que poderia pensar. Maior em possibilidades e em território. “Eu lembro que na primeira vez que andei na cidade sozinho, eu desci a Alexandre Barbosa e vi aquele mundo de prédio. Deu um frio na barriga...eu pensei ‘rapaz, essa cidade é grande mesmo”. Essa “cidade grande”, de certa forma, fez com que ele também ficasse “maior”. Hoje, André faz da COOPERU seu lar. É lá que ele trabalha, come, dorme e vive. Afirma que, como em toda família, até existem desavenças entre os colegas de trabalho, “mas sempre passageiras”. Ainda sobre sua relação com quem, assim como ele, trabalha na cooperativa, revela que alguns até chegam a dizer que ele é meio difícil de conviver. Acredita que isso se deva ao fato de que, por vezes, por ter experiên-
7 29
o gigante cia, chega a alertar os colegas sobre fatos que podem acontecer, com o intuito de evitar que assim seja, e, quando não se faz ouvido, diz “eu avisei”. Além disso, reconhece ser incisivo em suas colocações durante as reuniões. Mas também entende que, tendo vivido grande parte da vida sendo cobrado duramente, não conhece maneiras muito diferentes de lidar com determinadas situações. “Eu sempre fui exigido. É o reflexo, né?”. O preconceito contra a profissão existe. André acredita que, atualmente, para quem trabalha em alguma instituição, como a Cooperu, o preconceito é menos aparente, é feito de forma velada.Emcontrapartida,percebe que os catadores que trabalham diretamente nas ruas sofrem mais. Eleatribuipartedessepreconceito ao desconhecimento em relação à profissão. “A sociedade vê o catador como mendigo [...] é um ramo novo da economia. Para quem tá lá fora, é ‘isso aqui é lixo e eu vou jogar fora’. E ver o cara pegando dentro do saquinho do lixo que colocaram na calçada para o caminhão levar, para a pessoa soa como uma loucura, um absurdo.” E de experiênciapessoal,destacaosofrido por parte da família e amigos. Este, é aquele que vem em frases como “mas você trabalha com lixo?” ; “por que você não muda?”, oque,segundoele,machucamais.
30
GIGANTE POR NATUREZA
Andrésabequeprecisade mais tempo para dedicar a si mesmo. E afirma que, com esse tempo, adoraria passear pela cidade. AindaexistemlugaresdeUberaba que o catador não conhece. É claro que esse “tempo para si” envolveria conhecer algo. Afinal, a esse ponto da conversa, já havia percebido que André é apaixonado por grandezas e conhecimento. Quer passear e conhecer a
“cidadegrande”.E,nofimdascontas, quem aprendeu mesmo foi a entrevistadora. Espero que, assim como eu, um dia ele perceba que qualquer cidade grande de qualquer lugar do mundo é pequena para o tamanho de nosso personagem, André Luís da Conceição Alves.
Fotos: Carol Rodrigues
veia iventiva
Entre
resíduos, um pouco de Da
Vinci Carol Rodrigues
“A gente vai inventando”. Dila é taxativo. É sintético. Resumir 57 anos em um artigo e três palavras não é pra qualquer um. É pra quem não nasceu, foi parido. É pra quem viveu num tempo em que combustível estava mais para lenha do que para petróleo. É pra quem um nome e um sobrenome já bastam. Prazer, esse é Odilon Justino. A veia da invenção saltou pela primeira vez ainda em São Gotardo, no Triângulo Mineiro. A olheira, que aqui nada tem a ver com futebol ou moda, foi interpretada por uma professora do primário. “Mas você quem fez esse caminhãozinho? Quem te ajudou? Você quase nem vê isso na fazenda. Como conseguiu fazer?”, reproduz frases que venceram a barricada do tempo. Apesar da gênese, professora não se classifica como sujeito simples na vida de Dila. É sujeito ausente pra quem teve uma infância “mais trabalhada”. “Naquela época”, lembra ele, “com seis anos pra cima já tinha que ajudar na lavoura”. Os pais de Dila e de mais sete irmãos que estão na terra - três preferiram o céu - laboravam em fazendas. “A gente começava a estudar e, às vezes, tinha que mudar de região. Perdia anos de estudo”, emenda. A justificativa para o nomadismo assemelha-se à utopia atual de um quarto do mapa, que resiste com menos de R$ 387 por mês: melhorar de vida. “Mas tinha tempo pra fazerasartestambém”,noticiaele,dandocorda para o típico brasileiro que ronda o imaginário coletivo.
7 31
veia iventiva
DE MALA E CUIA Do Gabriel, à região dos Campos, a Uberaba aos12 anos. A sina de vida factual perseguiria Dila e a dinastia retirante até o bairro Santa Maria, onde morariam com uma tia. “Duas famílias, a casa não era tão grande. Foi sofrido. Mas conseguimos superar”, diz, enquanto soma todos que residiram naquele coração de mãe - 20 caboclos. Até conhecer a energia, seria dolorido. “Vai tomar choque daquele tanto”, acentua, rindo, as noites em que deu à luz encostando um fio desencapado no outro. Na cidade grande, Dila fez-se pedreiro nos melhores momentos. Nos outros, servente. As duascarteirasdetrabalhoexibem alguém que troca de emprego que nem vira-folha troca de time. Foram mais de 20, com duração média de um ano. “Eu trabalhava um tempo. Elesdispensavam.Davapreguiça. Cansava. É que, naquela época, tinha que trabalhar mesmo. Aí, eles mandavam ir embora. Você descansava, depois voltava. Só que isso vai dar problema pra aposentar agora”, prevê. Há nove anos, o que não previu foi a separação da mulher com quem teve quatro crias e viveu por 18 anos. “Posso dizer que a situação financeira foi a causa maior”, examina. Foram tempos de intempéries - os que sucederam a cisão. A mente ficou perturbada, sem controle. “Vamos supor que você pega uma coisa pra fazer que
32
exige concentração. Você não consegue fácil. Qualquer coisinha atumultua a mente”, exemplifica até o dissabor. Ainda que remoto, o passado se faz uma arma carregada. “Não tive outra pessoa. Às vezes, por medo de sofrer outra vez. É muito sofrimento aquilo. Mas eu não desisti. Vou arrumar outra namorada ainda”, assegura Dila, com os pés fincados no lar em que mora com a irmã e com o pai. É deles. Com todas as burocracias possíveis.
SONHO BENEMERENTE No quintal da casa própria, a veia da invenção em concreto. São três cômodos vazados por duas janelas e uma porta, visíveis em duas dimensões: real e em miniatura. A segunda, feita de madeira, anuncia que a sacada ainda não está pronta. Que o corrimão da rampa de acesso não está lá. Dila é arquiteto, engenheiro e pedreiro da casa em que morará sozinho. Mas o sonho mais belo não é o cantinho só pra si. Tem outro endereço. Está cravado na Cooperativa dos Recolhedores AutônomosdeResíduosSólidose MateriaisRecicláveisdeUberabaCooperu. Tem outro nome: guin-
Guincho em duas dimensões: miniatura e real
cho. Dila construirá um. ‘Construirá’, no futuro do presente, palavra corpórea. É que pra esse homem as coisas só não têm mais jeito quando a morte apalpa. “Enquanto eu viver, eu não vou desistir”, profere. Enquanto discursa sobre o projeto sem verba, Dila mostra todos os dentes. Já faz um ano desde que começou a angariar peças de ferragens ultrapassadas, na visão contemporânea. A base, os braços e o pegador já estão lá. O salário que garimpa na Cooperu - cerca de R$ 1.200 - dão forma ao que não pode manufaturar. Ele garante que a cooperativa não gastará mais dinheiro alugando guinchos enquanto o dele estiver funcionando. É que, muitas das vezes em que a Cooperu fecha negócio, precisa alugar um para suspender fardos de resíduos previamente separa-
dos. Já em cima dos caminhões, o destino são empresas que reciclam o material. É prensando fardos de papel que o aspirante a engenheiro mecânico passa 10 horas diárias num paralelepípedo acolchoado de papelão e avizinhado por sacos e sacos de resíduos. Enquanto isso, a casa grande é povoada exclusivamente por mulheres, responsáveis pela separação dos recicláveis numa esteira com vestígios de Fordismo. “No início, eu prensava três fardos. Hoje, chego a fazer até 11 por dia”, vangloria-se. O revés do ofício é o peso dos fardos. Não quando pesam muito - 250kg. Mas quando pesam pouco - 100kg. Na segunda hipótese, não se aluga guincho. Pousá-los em cima do caminhão fica a cargo dos homens. O dia sempre estreia em
cima de uma bicicleta, às 6h40. O café da manhã é beliscado no trabalho, seguido pelo almoço. Dila até poderia pagar R$ 3 numa montanha vistosa feita pela cooperativa, mas prefere inventar até nessas horas. Assim sendo, leva comida de casa e a aquece num fogão forjado com lata de extrato de tomate. O fogo, uma mistura de isqueiro com papel, ativa o álcool borrifado dentro do vermelho escuro tatuado de elefante. A segunda parte da saga de Dila e o fogo ardem aqui pós-almoço. “Faz poucos dias. Eu quase puis fogo na Cooperativa. Infelizmente, sou fumante. Mas sabe o queaconteceu?Euesqueciomeu isqueiro. Daí, fui ver na minha bolsa e tinha um isqueiro que ainda soltava faísca. Então, eu peguei o isqueiro na bolsa, peguei minha vasilhinha de álcool e fiz uma tocha pequena com papel”, relata. O clímax do enredo inflamou quando Dila se dispôs a acender o cigarro de um amigo. “Dessa vez, eu fiz uma tocha meio grande. Eu lembro que joguei ela no chão e pisei. Mas pisei rápido e saí. Tô lá tranquilo, descansando, quando passa um cooperado assustado na minha frente e diz: ‘Odilon, mas que que é isso? Que fogarel é esse?` Pronto. Pensei: ‘tô queimando mais coisa`, pormenoriza. O desfecho foram fardosdepapelqueimadosemarcas na parede. A conclusão, só uma: “Eu sou vítima de fogo. Eu não sei o que tem com nós dois”.
7 33
RAÍZES Dila está há três anos na Cooperu e não cogita sair, mesmo tendo apartado lá devido à falta de emprego. “Eu acho que o Zé Eustáquio [presidente da Cooperu confia em mim. E, pra mim, isso é muito bom. Compensa a gente estar perto de quem confia na gente, mesmo ganhando um pouco menos”, explica ele. Quem sabe, também, porque ali há espaço, tempo e apoio para conceber. “Conforme
34
eu falei, eu comecei a criar aquele guincho. E se ele [Zé Eustáquio] puder me ajudar de maneira que não prejudique ele, ele me ajuda. Então, tudo isso faz a gente ter ânimo pra trabalhar. Ter alegria”, justifica. Cooperu é um lugar que criaram para provar que o pior que damos ao mundo floresce na mão de outros.
vencer
Fotos: Victor Lima
Sentimento
Vitor Lima
O nome Vicente é originado do latim Vicentius, derivado de vincente, particípio passado do verbo vincere e que significa “vencer”. É a graça do mineiro com típico linguajar simples e a nobreza de quem busca batalhar todos os dias. Até porque os sinais de coragem são evidentes, seja no exercício constante do “olho no olho” ou na entonação da voz carregada de personalidade. Verdadeiras armas para os confrontos da vida.
entre trabalhos Nem sempre, o ato de vencer pode ser entendido como “o fato de ter chegado ou encerradas todas as batalhas”. Para o coletor Vicente de Paula, a grande vitória é estar vivo e poder continuar batalhando diariamente aos 80 anos. E o alento para a ornada é lembrar dos primeiros passos. Bambuí, interior de Minas Gerais, foi o berço do guerreiro. No entanto, foi o vilarejo destinado para trabalhadores de uma usina açucareira, localizado entre as cidades de Igarapava – SP e Delta – MG, o cenário de sua infância. A transição do interior mineiro para o povoado rural paulista,foi devido ao trabalho dos pais, ambos eram agricultores. Essas são as primeiras revelações de um diálogo tímido, embaixo de uma árvore na parte externa da Cooperu. Por aqui, Vicente é o Tio Paulinho. Respeitado por sua experiência e querido pela simplicidade em que trata todos. É a característica de um verdadeiro campeão, não quer vencer sozinho, mas ser um agente transformador. Aliás, foi o que aprendeu. Eram mais de oito irmãos em casa, conta Vicente, que tem dificuldades para lembrar um número exato. Porém, tem a forte recordação do ensinamento deixado pelos pais: prezar pela união. O catador faz questão de ressaltar que em casa, o senso de coletividade fez com que nunca faltasse nada na mesa, mesmo nos tempos de colheita escassa nas lavouras.
COMEÇOU CEDO Por morar na roça, os estudos ficaram comprometidos. Vicente frequentou aproximadamente até a terceira série do ensino fundamental, encerrando suas idas ao colégio em 1939. Ele ressalta que a falta de professores também foi um dos fatores que o impediram de prosseguiram. Com isso, a vida de trabalho começou aos sete anos, acompanhando os pais nas lavouras. Para o catador uma faculdade antes do tempo, cujos professores ele leva no peito, e o diploma é o caráter criado.
O resíduo é um refúgio no sustento da família do coletor
36
entre trabalhos
A vida com muita luta de um guerreiro coletor
Quem não tem medo da vida não se simpatiza com a morte. Em 2008, Vicente perdeu um dos filhos, de 42 anos. No momento em que recebeu a notícia, estava trabalhando na Cooperu. O barracão perdeu a cor, o coração bateu acelerado. Nada mais poderia ser feito, Um misto de impotência e tristeza tomou conta do coletor. No entanto, Vicente também lembra, com gratidão, o carinho que recebeu da cooperativa, que lhe estenderau a mão no momento tão difícil. Batalha perdida? Não. Apenas um soldado vivendo feridas que tempo nenhum cicatriza.
SEM MEDO Aoiniciaravidaadulta,Vicente decide mudar para Frutal – MG, na região que foi notabilizada, segundo a história de fundação, pelos riachos cheios de jabuticabas. A cidade é grande produtora de abacaxi, cana e grãos, o que permitiu a ele continuar exercendo o ofício aprendido com os pais. E a colheita com empenho, neste caso,tambémfezqueoportunidades frutificassem. Foi por aquelas bandas que se casou e constituiu uma família com quatro filhos. Os filhos do senhor Vicente, com base na história de vida do pai, também começaram a trabalhar desde muito cedo. Por volta dos dez anos de idade, já eram engraxates para ajudar no sustento da família. Porém, o incentivo para o estudo nunca faltou. Para o catador isso imprimiu, na família,
uma marca: “Não temos medo de trabalho! ”.
VITÓRIA DELE Um senhor simples que não teve grandes oportunidades. Não completou os estudos. Não acumulou patrimônio. Não tem uma vida de riquezas. Porém, mesmo diante tantos “nãos”, jamais negou disposição para o trabalho. E as mesmas mãos que colheram os frutos e grãos das lavouras, na atualidade,colhemosresíduos,naesperança de que estes se tornarão matéria-prima de um mundo sustentável. A Cooperu sustenta a vida de Vicente. É o campo de batalha daquele, que aos 80 anos, acredita que viver é guerrilhar. Não em busca de um pódio ou da linha de chegada,issoédetalheparaquem vence todos os dias. Vicente venceu. Vicente é vencedor e vence a dor. Vicente é o verdadeiro sentido de vitória. Por nada, desiste e, por tudo,luta!
7 37
Fotos: Jair Neto
voo
O
da
Andorinha Jair Neto
superação diária Uma tarde de sol a pino e o calor em mais de 30 graus. Todas as sensações e contradições de “um inverno brasileiro”. No entanto, o que me preocupava era o clima da conversa que logo teria. Ao chegar à sede da Cooperu, assim como outros colegas, subi na “torre de comando”. Informei à supervisora Viviane da entrevista e, pela janela da sala administrativa, ela gritou: “Vilmaaa... Sobe aqui”. O grito ecoou pelo galpão afora na mesma velocidade em que olhei buscando pela figura de minha entrevistada. Ela apareceu em meio a um mar dos chamados “bags”comresíduossólidos.Estava com um lenço amarrado na cabeça e o olhar, até então, desconfiado. Mais tarde, eu descobriria a forte guerreira Vilma Soares de Souza. Fomos para debaixo de uma árvore, na parte externa da cooperativa, lugar tranquilo e adotado porgrandepartedosmeusamigos no bate-papo com os respectivos personagens. Nas mãos dela, um álbum de fotografias de família, o celular, uma caixa de cigarros e o isqueiro. O nervosismo era tanto, que não foi surpresa quando ela acendeu o primeiro cigarro. São 40 anos de vida que lhe permitiram viver a experiência da maternidadeporduas vezes. Mas, começamosfalando sobre a infância na pequena cidade de Santa Maria do Suaçuí, interior do Estado.
CRIANDO ASAS O leite direto do curral e o “pão de banana” dão sabor às lembranças. “Minha mãe coava e fervia aquele leite. Subia aquela nata amarelinha. Eu adorava! Ela tambémpegavaabanana,quandoestava de vez, e enfiava embaixo das cinzas do fogão de lenha. A banana virava aquele pão. Aquela coisa maisdoce.Erabomdemais”,conta. São lembranças de um tempo em que as coisas não eram tão fáceis para ela, os pais e os 11 irmãos. “Lá, a gente não via dinheiro. Desde pequenos, a gente levantava de manhã, tomava café e ia pro serviço. Capinava e plantava. A gente ficava até dez e meia capinando”, lembra. A vida simples, a criação rígida e as dificuldades financeiras fizeram com que ela e os irmãos começassem a trabalhar muito cedo. Ela, aos sete anos de idade. E as dificuldades não paravam por aí. Vilma conta que, por conta da falta de energia elétrica, a lição de casa só podia ser feita com o auxílio de uma lamparina. Mas nem tudo era ruim. As brincadeiras ingênuas de criança são a parte “boa” da infância da catadora. Mesmo que acabassem em briga com a irmã mais nova. E foi assim até os 16 anos de idade, época em que ela quase chegou a se casar com um dos primos. Situação comum para
quem vive no interior. Pelo menos, naquela tempo. Só não se casou porque foi traída pelo primo com a própria prima.
PRIMEIRO VOO E quem pensa que ela ficou “chorando as pitangas”, trancada no quarto, se engana. Vilma foi além. Fez as malas e mudou-se paraacasadosirmãosmaisvelhos, emRibeirãodasNeves,regiãometropolitana de Belo Horizonte. O primeiro desafio, além do de se adaptar à cidade grande, foi encontrar um emprego. Por não ter concluído os estudos (foi até a 6ª série), as oportunidades eram limitadas. Mas nem isso a intimidou. O primeiro emprego foi como babá na casa de uma jornalista da Rede Globo Minas. Foram meses de dedicação reconhecidos com pequenos agrados por parte da patroa, o suficiente para despertar os ciúmes de uma colega de trabalho. “Ela escondiaascoisasefalavaqueera
7 39
superação diária eu que carregava. Ela queria me sujar”, relembra Vilma, afirmando que a ex-patroa sabia de toda a situação, mas não tomou nenhuma atitude. Para evitar transtornos futuros, a saída foi, literalmente, sair do emprego. Mas ela não desanimou. Arregaçou as mangas e foi à luta. Trabalhou por um tempo como diarista. Nesse espaço de tempo, Vilma conhece Gilberto Maciel, o atual marido. Pouco mais de um ano depois, Gilberto seria o responsável, mesmo que sem querer, pela mudança “forçada” de toda a família após ser ameaçado de morte por integrantes de uma facção criminosa. Deu tempo de colocar no carro apenas um botijão de gás, um colchão e um cobertor. Saíram literalmente “fugidos” e sem olhar para trás.
conta”, confessa. Cansadosdeterquemorarde favor e sem condições para alugar um lugar, Vilma e o marido foram morar em um terreno da prefeitura destinado a uma APP (Área de Preservação Permanente) e ali mesmo construíram um barraquinho de madeira. “Foi lá que a gente foi morar. Não tinha como a gente pagar aluguel”, desabafa. Foi a partir desse momento que ela teve que aprender a lidar, novamente, com osmateriaisrecicláveis.“Aprendia catarobásico.Garrafa,latinha,papelão, que eu já conhecia. Eu pegava a carrocinha e saía. Ficava na ruaaté11h30/12h. Chegava coma carrocinha tombando com PET e papelão”, conta.
O COMEÇO RECOMEÇO Da casa incendiada pelos criminosos, restaram apenas as cinzas. Revolta nitidamente estampada na face de uma mulher que foiarrancadadaprópriacasaenão pôde nem tirar os móveis que havia acabado de comprar. A única saída foi receber abrigo na casa de familiares do esposo, aqui em Uberaba. E o começo, ou melhor, recomeço, não foi nada fácil. As dificuldades enfrentadas ao cair de paraquedas em uma cidade desconhecida levaram Vilma a ter o primeiro contato com os materiais recicláveis. “Eu tentei, mas não dei
40
Por um tempo, Vilma conciliou a coleta de recicláveis com um bico de diarista oferecido por uma moradora de um dos bairros que ela percorria diariamente. E foi nessa mesma época que surgiu o convite para trabalhar na Cooperu. A primeira passagem pela cooperativa durou pouco mais de um ano. Vilma teve que, mais uma vez, abrir mão de um serviço. Mas, dessa vez, por uma causa maior: cuidar da filha que sofria com crises convulsivas. Mais tarde, a filha seriadiagnosticadacomepilepsia. “Um dia, eu peguei ela tentando cortar os próprios pulsos. Ela se cortou com a gilete. Eu perdi o chão. Nesse dia, eu chorei tanto”, relata.
Com a situação controlada, Vilma saiu em busca de um novo emprego. Não precisou ir muito longe. Conseguiu serviço na empresa que era instalada no mesmo terreno que a Cooperu. Foram seis anos dedicados à varrição. Quando tudo parecia estar tranquilo, eis que surge mais um drama na vida da família, e esse estava longe de ser um dramalhão mexicano. Ela, juntamente com o marido e os dois filhos, teve que ser retirada da própria casa. Mais uma vez. O assentamento, com residências em maior parte construídas à base de madeirite corria o risco de pegar fogo por conta de um curto circuito no transformador da rua em que morava. Para evitar uma tragédia, todos os moradores foram realocados em um endereço provisório. A família de Vilma ficou abrigada por aproximadamente um ano no Residencial 2000. Depois, eles foram contemplados com uma residência popular no bairro Gameleira III. O ótimo desempenho profissionalearelaçãointerpessoalcontribuíram para que, há dois anos, ela regressasse à Cooperu. Mas nem tudo são flores. A coletora já foi vítima de comentários preconceituososporpartedecolegas da empresa vizinha por trabalhar com resíduos sólidos.
superação diária
Vilma trabalha na cooperativa há cerca de dois anos
VOO RUMO AOS SONHOS A humildade com que ela lida com a vida é impressa até mesmo nos momentos em que Vilma se permite sonhar. “Tenho uma vontade muito grande de comprar um terreno num lugar melhor e construir a minha própria casa. Além disso, ver os meus filhos fazendo faculdadeeexercendoaprofissão que eles escolheram. É o meu sonho”, enfatiza. Ela conta que a vontade dos filhos é de que ela não
precise trabalhar mais depois que eles já estiverem formados. E ela não sabe se até lá ainda vai trabalhar. O intuito é dar uma diminuída no ritmo, principalmente, para estar mais próxima dos filhos. Ao final da conversa, procurei alguma forma de definir a pessoa que eu acabara de conhecer. Depois de pensar um pouco, cheguei à conclusão de que Vilma é uma espécie de andorinha, tipicamente brasileira. Não pela baixa estatura, pele morena marcada pelo sol análoga às penas em tons es-
curos da ave ou pelo perfil reservado.Talvez,sejapelacapacidade desempresuperarasdificuldades ou se adaptar facilmente a situações e lugares adversos. Quando precisa, migra para um lugar que lhe faz bem. Que história de vida hein, dona Vilma? Que exemplo de força, garra e amor à família. Uma lição de vida e superação diária. Por isso e por tudo o que já viveu, está na hora de a andorinha voar não somente para outro ninho, mas rumo à realização dos próprios sonhos.
7 41
“
O meu sonho ĂŠ ver meus filhosfazendofaculdade
Fotos: Luan Costa
CrĂ´nicas de:
MAR, que mulher arreTAda Luan Costa
gênio forte
Crônica é uma narração curta e,entrenarraçõescurtas,construímos um livro. Marta Ribeiro junta retalhos de si e costura a própria história. Nasceu em 1960, em Araguaína - Tocantins, e é a narradora e personagem desse série de passagens. Marta diz não lembrar da infância como um todo, mas lembra de fragmentos, fragmentos que talvez sejam mais expressivos do que anos de história. Era chamada de capetinha por algumas conhecidas. “Eu saía de casa pra vender leite e tinhas umas mulheres lá que me chamava de capetinha, eu ficava com raiva e vendia o leite delas pra outras pessoas.” Na infância, o bicho pegava e os bichos eram outros; na roça haviavários.“Tinhaos porquinhos, mas nois não dava nome pra eles não, só via qual ia crescer mais gordo e mais rápido.” Até porque não se nomeia aquilo que vai virar janta. Com as penosas a história era outra, sem fuga das galinhas, cada um dos seis irmãos “tinha uma galinha lá, pra ver qual delas tirava mais pintinho, eu sempre tinha sorte com galinha”. Algumas companhias mudam, hoje, Marta tem cachorro de estimação Dividia a vida entre a fazenda, entregar leite e matar aula. Do
44
grupo de irmãos, havia a trindade que não era muita santa em aula. “Era eu, a irmã Cidinha e nosso irmão Valdecir, nois matava aula pra ficar andando no carro da firma”. Entreasserelepicesdainfância de Marta, também havia um tal de banho de domingo. “Era um lugar cheio de água, não é nem um rio, só aquela aguinha com areinha branquinha no fundo,
que cê pode pular o dia todo que nãosuja.LáeueaCida,passavana casa de uma conhecida, juntava ela mais os menino dela e ia todo mundo pro banho. Nois ficava até seis hora da tarde e a fazenda que a gente morava era longe. Meu pai ficava preocupado porque duas menina adolescente na rua até seis hora da tarde. Ai quando a gentechegavaemcasa,eletacava a taca ni nois. Mas não adiantava
gênio forte
“
Eununcagosteidaescola, fiz só até a quarta série, ainda assim, obrigada.
de nada, ele batia num domingo, no outro domingo nois ia pro banho de novo.” Marta era sem sombra de dúvidas, atentada. Não gostava de ficar na escola, mas quando estava lá, ish era para “caçar conversa com os meninos e puxar o cabelo das meninas”. Tudo tem consequência e quando alguém vinha dar o troco, os irmãos mais velhos a defendiam. “Eu nunca gostei da escola, fiz só até a quarta série, ainda assim, obrigada, porque, pra mim, era tudo ruim lá. Aí,quando eu cresci, falei pros meus pais que ia parar de estudar, já era dona de mim. Com 14 ano, eu parei de estudar.” Depois disso se dedicou a cuidados. Cuidava dos meninos, dos irmãos, dos filhos dos vizinhos. A mania de doar-se aosoutrosestendeu-separaavida,sempre cuidou das crianças próximas e as crianças sempre se aproximaram dela.” Eu adorava cuidar de menino. Não podia
ver uma criança que já tava pendurada nos braços.” Mas não só para crianças viveu. Na adolescência, foi adolescente. “Eu ia pra uma festa todo final de semana, eu e uma amiga minha, a Genivalda. Era lá perto de casa, sexta e sábado que a gente gostava de ir. O nome da festa eu não lembro não, sei que o dono chamava Pedro. Ia para lá só pra beber, ela dançava, eu não, ficava só olhando. Eu nunca gostei de dançar não, eu gostava de ir na festa pra ficar sentada vendo e bebendo todas. Tava lá rodeada de rapaz e moça, bebia de tudo, misturava Coca com Velho-Barreiro, cerveja, quando era de manhã a gente ia embora. Quando chegava em casa o fígado tava enorme, passava o dia inteirinho sem querer comer nada.” Marta não esquece de outra fiel companheira, “As andanças eram mais ao lado da minha irmã Lena; Cida já não era disso. A Cidinha não, a gente sempre foi fugitiva uma da outra. Ela era muito agressiva, brigava demais com nois. Um dia, ela descobriu que eu e a outra tava fumando e disse: ‘eu vou contar pro papai`, mas nois fazia chantagem com ela também.”
7 45
gênio forte
Sob o sol quente, Marta segue fazendo o que aprendeu nos últimos nove anos
RETALHOS Entre os retalhos da vida, algumas partes se descosturam e nem sempre é possível arrematá -las de volta. “Eu tive um noivo de aliançadeumano,maseularguei.” Segundo Marta, ela teve que largar, pois o noivo queria separá-la de quem ela era próxima, como, por exemplo do irmão mais novo. O primeiro noivo transformou em uma ponta solta. “Depois, eu namorei com o irmão dele, era um rapaz negro, bonito, do cabelo liso, corridinho.
46
Ele queria namorar comigo. Aí, namorei uns dias, não sei o que que houve. Ele saiu pra rua de noite, pegou uma dose de pinga, pegou um caco de vidro, quebrou o caco de vidro bem quebradinho, colocou veneno dentro do copo e bebeu. Morreu antes de amanhecer o dia.”Retalhos perdidos não são costurados de volta.
gênio forte
TECENDO CRIAS A primeira menina gerada por Marta, Taliny, nasceu quando ela tinha 27 anos. “Mas eu prefiro pular o detalhe de como eu conheci o pai. A gente nem chegou a namorar, ele soube que eu fiquei grávida e nunca quis dar nem uma agulha pra menina, eu não fui atrás também não. Meu pai sempre alimentou ela muito bem. Ela nunca teve precisão de nada.” Marta sempre quis ter uma menininha e lembra bem do nascimento desse sonho. “Ela era pititinha, carequinha, a única coisa que ela tinha na cabeça era três fio de cabelo branco. Ela pesou 2,550 gramas, deu 39 centímetros de comprimento.” Depois de cinco anos, Marta teve um menino, apesar de até então nunca querer ter um filho homem. Ela confessa que Jhonathan a ganhou. “Ele é meu amor, mora comigo até hoje. O pai é o mesmo da menina, mas ele não quis saber de ajudar também não.” Jhonathan nasceu com coqueluche,“aquelatossebraba”.“Os médico pediu que internasse ele, eu não aceitei, fiquei com medo deles mata ele lá no hospital, aí, eu cuidei em casa. Pra melhora a tosse, eu dava leite de égua, o vizinho cigano tinha uma égua e todo dia ele colocava meio litro de leite lá na porta. Tudo que o povo ensinava eu fazia. Dava chá de caroço de cabelo de milho, chá de quiabo, tudo pra diminuir a tosse dele.”
COSTURANDO CICLOS
OUTRAS BORDAS Marta morou quase toda a vida com o pai. Quando estava em Araguaína, sempre foi com ele. Criou os filhos perto do avô e só o deixou quando veio morar em Uberaba. Lugar onde a mãe de Marta já morava. “Eu vim pra cá só pra passear. Cheguei aqui na cidade, meu menino arrumou um emprego, mais meu sobrinho, de entregador de pão na cidade vizinha. Eles entregava num caminhão baú. Aí eles ia, eu chamava meu menino pra ir embora e ele dizia que não ia embora não porque tava trabalhando e ganhando o dinheiro dele. Quando eu arrumei serviço, comecei a trabalhar, ele me chamou pra ir embora. Eu falei que agora eu que não ia embora, tava ganhando o meu.” Marta confessa que já cogitou voltar para o Tocantins, mas não chegou a retornar. “No total, é a quinta casa que eu moro aqui, tudo foi dentro do mesmo bairro. Comigo, mora eu, meu menino e a mulher dele, eu não sou muito chegada nela não.”
“Quando vim pra cá, tentei trabalhar catando laranja, na estrada indo pra Uberlândia. Minha irmã trabalhava lá, mas meus dois dedão inflamou de usar essas botina grossa. Fiquei lá só dois mês.” Depois, veio a oportunidade na Cooperu. As histórias de Marta lá são infinitas. “Direto, o povo toca fogo nos mato aqui perto. Uma vez, a gente teve um incêndio, tinha acabado de dar o horário de almoço. Nois tinha um bocado de isopor e, ainda por cima tava cheio de garrafa em cima dos livro.” “Mas eu sou feliz aqui. Pra mim, arrumar um emprego em outro lugar com essa idade é difícil. Aqui, eu gosto de todo mundo igual.”Aslembrançascontinuam... “Um dia que eu lembro é o dia que a gente achou um saco preto pesado, rasgou e achou uma cobrona, uma jiboia dentro do saco. Ela tava em cima da esteira, até hoje, não sei como ela foi parar lá dentro, o saco todo amarrado com a cobra dentro.” As crônicas da mulher arretada são tão palpáveis quanto um romance épico. Podemos esperar pelas próximas histórias, as quais se projetam para o futuro. “Meu sonho é minha casa. Tô esperando isso pra ver se também visito meu pai lá em Araguaína. Eu e meu menino tamo juntando dinheiro. ” Aguardamos pelas próximas narrativas e pelo retorno à terra natal.
7 47
em chamas
fogaréu de
Cida Ronaldo Faria
Foto: Ronaldo Faria
Sempre há história antes de uma história. As crônicas de Marta se cruzam com a de Aparecida Ribeiro. Irmãs de sangue, forjadas pelo fogo da personalidade e pelo fogo das eventualidades da vida. Cida veio antes: nasceu em 1958 em Itaporanga - Goiás. “Depois de um tempo, que eu já estava grande, grande não, que eu sou pequeninha até hoje, eles mudaram o nome da cidade para Itaporanga. Quando eu nasci, meu pai desceu para o Goiás. Na época, não era dividido o Estado, dali nós
fomos para São Miguel do Araguaia, aí de lá nos fomos para um outro lugar que era chamado de Baião, bem no interiorzinho.” Antes de ir para Araguaína Cida conta uma das crônicas destas páginas; a do fogaréu em Presidente Kennedy. Lá, a casa era feita de pau a pique e tinha o teto de palha. Na época, como não tinham energia elétrica na roça, usavam lamparina à querosene. “Um dia, minha prima se mexeu durante a noite e a lamparina virou. Ela diz que quando viu o fogo se alastrar começou a gritar, mas na verdade ela não gritou ninguém. “Meu pai acordou minha mãe e falou; “tira os meninos da casa”. Minha mãe tirou a meninada toda e nós saímos todo mundo descalço. Os pais de Cida também tiraram os colchões da casa eles dormiram no relento. Esse seria o final da história, porém o ápice não foi o fogo e sim a vida dentro dele. “Já no outro dia, umas oito horas da manhã, praticamente tudo estava queimado, a não ser algumas coisas salvas pelo meu pai. Mas aí minha mãe falou assim; “cumade Shirley, cadê a Sonia” e minha prima ‘’a Sonia?”, minha mãe completou “É uai a bebezinha, cadê a bebezinha?”. Minha prima começou a gritar; “meu Deus do céu, minha filha morreu queimada”. Ela tinha corrido do incêndio e nem lembrou de carregar a menina. Meu pai falou: “Olha lá, às vezes, ela tá dentro”. Em meio ao desespero, entraram novamente na casa e a bebê estava lá, dormindo enroladinha, o colchão dela não havia pegado fogo. “Ela não machucou de jeito nenhum e estava dormindo de boa”, conta Cida. Na noite seguinte ao incêndio eles ainda usaram o santo colchão da bebê para dormirem ao relento.
em chamas
“
Meu Deus, minha filha morreu queimada!
OUTRAS FAÍSCAS Depois a família tomou outro rumo e mudou-se para Araguaína. “E eu fiquei em Araguaína até meus 20 anos.” Como uma pequena labareda, as crônicas de Cida percorreram diversos locais; como Goiânia e Uberaba. Em Goiânia Nessa tev a primeira filha e ainda cuidava de três filhos do marido, gerados no primeiro casamento. Passado um tempo, arrumou “mais uma barriga”. Isso foi o que a trouxe para Uberaba, veio para ter a segunda filha e em seguida fazer laqueadura. “Onze dias depois do nascimento dela, nós voltamos para Goiânia. E depois de um tempo, meu ex-marido ficou desempregado, foi quando ele me mandou de volta para Uberaba e disse que ia trabalhar fora para juntar um dinheiro e vir me buscar. Mas, na verdade, ele foi morar com outra, e eu descobri depois de seis meses.” Cida, quente como o fogo cheio, não pensou duas vezes e jogou as tralhas do ex-maridofora.“Eleeramúsico,aí,ficavavia-
jando, a mulherada viajando atrás, e eu sou muito esquentada e, por conta disso nos separamos.” Depois que as cinzas assentaram voltou para Uberaba, onde a mãe morava. É nesse ponto que a história dela se interlaça novamente com a da irmã Marta. Ambas foram para a plantação de laranja de café. Por causa das filhas, que dependiam dela, Cida teve que conseguir outro emprego. Passou por uma granja, mas a visão machista a impediu de ficar por muito tempo. “Trabalhei três anos lá, mas saí dessa empresa porque, na época, entrou um gerente que queria acabar com todas as mulheres, ele foi mandando todas embora, e foi contratando só homens.” Depois disso os reciclados entraram na vida de Cida, que começou a recolhe-los com um carrinho. Também usava esse mesmo carrinho para vender as verduras da horta do padrasto. “Eu lavava o carrinho que eu ganhei bem lavado, voltava para casa, minha mãe já estava aguando a horta, e eu pegava um lençol bem limpo, umedecia ele, colocava no carrinho e enchia de verduras para vender.” Em 2005 surgiu a oportunidade na Cooperu e Cida abraçou. “Se eu não estivesse aqui na cooperativa eu teria voltado para Goiânia, mas agora Deus preparou uma casinha para mim, eu já quitei e tenho a escritura na minha mão. Minhas meninas ficam doidinhas para eu ir para Goiânia, mas, para eu ir e tentar arrumar serviço lá, na altura da vida que eu estou, fica difícil. Então, eu falei que quando eu aposentar, quem sabe, já protocolei minha aposentadoria, mas não sei se vai ser aprovado.” Cida é como um fogo adormecido com combustível suficiente para próximas aventuras.
7 49
Fotos: Laila Zago
beleza pura
Princesa de um
conto real
Laila Zago
Mãe de três filhos, avó de 10 netos e orgulhosamente catadoraderesíduos.Vaidosa,nãodeixa de passar o batom, e antenada, registra com o celular os eventos da vida e da cooperativa. Silvania é uma mulher do agora. É a figura popular da Cooperu, a repórter do barracão e como ela se auto intitula, além de tudo isso, a princesa de Uberaba. “É a única casa da rua com umpédemanga”.Descriçãoprecisa e um tanto engraçada da casa dela. No entanto, percebo o quão saboroso será o nosso bate-papo. Sem mapa ou dificuldades consigo achar o castelo. Sem protocolos, a princesa me recebe e narra um conto real: A própria história!
50
A mãe de Silvania faleceu quando ela tinha oito anos. Após a morte, a garota passou a conviver apenas com o pai. Em um universo limitado, o desejo de conhecer a vida lá fora pulsava. Ao fazer 12 aceitou a proposta de uma vizinha em mudança: trabalhar como babá na cidade maravilhosa. Sem família, sem amigos, era apenas uma criança com a pesada tarefa de ser gente grande. A patroa foi mãe e lhe deu uma família. O Rio de Janeiro foi
o cenário das transformações da adolescência e da persistência em aprender. Com o tempo, outras oportunidades surgiram, Silvania se mudou para Campinas, no Estado de São Paulo. Ali, ela conheceria o pai dos seus filhos e, talvez, o maior causador dos problemas que teve durante a vida. Das mais de três décadas de casamento, pelo menos, durante 14 anos, foi ela quem sustentou os três filhos sozinha e, na maior parte do tempo, trabalhava em dois empregos. O marido possuía um bom emprego, porém, por influênciadeamigose“cabeçafraca”, acabou se bandeando para umcaminho bem distante do que Silvania, um dia, imaginou para ela e a família.
beleza pura
PRÍNCIPE DESENCANTADO
O marido se tornou alcoólatra, fumava, chegava tarde da noite em casa e, de repente, não colocava centavo algum na mesa. “Recebia o pagamento, dormia na zona. Vinha para casa sem nenhum centavo, às vezes, bêbado. Precisava quase que abafar as crianças para deixar ele quieto no canto, sem incomodar.” Os motivos pelo quais Silvania manteve o casamento foram os filhos. Ela não quis se separar para que, em um futuro, ela precisasse ouvir, dos próprios filhos, que ela não tentou ou não quis ter uma família estruturada. No ponto de vista dela, a presença do pai era sinal de disciplina e ela queria que as crianças tivessem isso. Acredita até que, se ela tivesse se separado na época, as crianças poderiam seguir o mesmo caminho do pai ou caminhos piores, como drogas e crime. Quando questionada se o marido,
SONHO alguma vez, tentara a agredir ou agredir os filhos, Silvania diz que ele não tinha e jamais teria coragem para tal feito.
REINADO Mudamos de cenário. Deixamos o lar de Silvania e levamos a conversa para um outro local de reinado. Afinal, nem mesmo as montanhasderesíduosdaCooperu escondem uma mulher de fibra, que não tem vergonha ou medo dos desafios. Há 13 anos, Silvania estava sem emprego e o mercado estava sendo duro demais com ela. Foi quando uma amiga contou de uma oportunidade para ser catadora de resíduos.“Não tinha nada a perder, então aceitei”.
O desejo de conhecer o mundo não morreu. Há três anos, ganhou um notebook de um dos filhos, o que a motivou a aprender como lidar com o mundo digital. Um tempo depois comprou um celular. Silvania produz vídeos em sua casa, em seu trabalho, na rua ou em qualquer outro lugar em que ela se sinta confortável para fazê-lo. Nos vídeos, fala sobre diversosassuntos,desdecampanhas paraconscientizaçãoàopiniãopolítica. Ela não se intimida e sempre quer mostrar o bom trabalho que faz na cooperativa. Durante uma visita em sua página nas redes sociais, é nítido o gosto que Silvania tem em produzir o conteúdo.
NÃO ACABOU Com os três filhos e 10 netos (sendo seis de apenas um dos filhos), separada há três anos, Silvania revela o sentimento de vitória. Diferente dos contos de fada com um final feliz, a vida da se reinicia todos os dias. Possibilitando reunir outros personagens, acrescentar linhas e fazer com que outros capítulos possam ser criados. A Cooperu tem sido o tema de muitos parágrafos. O olhar para o futuro é repleto de autoestima e esperança de dias em que possa cuidar mais dela.
7 51
Coletividade