Interface 11 Comunicação, Saúde, Educação v.6, n.11, 2002
APRESENTAÇÃO 7
DEBATES 117
DOSSIÊ sobre Aids
Luis David Castiel Eduardo Conte Póvoa
Práticas educativas e prevenção 11 de HIV/Aids: lições aprendidas e desafios atuais José Ricardo Carvalho Mesquita Ayres
Sem mágicas soluções: a prevenção e o 25 cuidado em HIV/ AIDS e o processo de emancipação psicossocial Vera Paiva
Cultura médica e decisões reprodutivas entre 39 mulheres infectadas pelo vírus da Aids Daniela Riva Knauth et al.
Crianças vivendo com HIV e Casas de Apoio 55 em São Paulo: cultura, experiências e contexto domiciliar
Medicina Baseada em Evidências:“novo paradigma assistencial e pedagógico”?
debatedores 122 123 125 127
Álvaro Nagib Attalah Fátima Adriana D’Almeida Luiz Augusto Facchini Rita Barradas Barata
réplica 129 131
Luis David Castiel Eduardo Conte Póvoa
133
NOTAS BREVES
137
TESES
César Ernesto Abadía-Barrero
ESPAÇO ABERTO
Prevenção às DST/AIDS no ambiente escolar 71 Angélica Fonseca
143
Ricardo Rodrigues Teixeira
ARTIGOS A traição nas relações de trabalho da 89 Universidade Aparecida Mari Iguti
A formação da identidade do médico: 107 implicações para o ensino de graduação em Medicina Ana Teresa de Abreu Ramos-Cerqueira Maria Cristina Pereira Lima
Três fórmulas para compreender “O suicídio” de Durkheim
CRIAÇÃO 153
Fotografia na enfermaria de Ortopedia Maria Lúcia Toralles-Pereira Trajano Sardenberg Heloísa Wey Berti Mendes
Interface 11 Comunicação, Saúde, Educação v.6, n.11, 2002
PRESENTATION 7
DOSSIER on Aids
DEBATES 117 Based Evidence Medicine: “a new paradigm for teaching and the provision of care?” Luis David Castiel Eduardo Conte Póvoa
Educational Practices and the prevention of 11 HIV/Aids: lessons learned and current challenges José Ricardo Carvalho Mesquita Ayres
Beyond magical solutions: prevention of HIV and 25 Aids and the process of “psychosocial emancipation” Vera Paiva
Medical culture and reproductive decisions 39 among women infected with Aids Daniela Riva Knauth et al.
Children living with HIV and Support Homes in 55 São Paulo: culture, experiences and housing context César Ernesto Abadía-Barrero
Prevention of Sexually Transmitted Diseases and 71 AIDS in the school environment
debaters 122 123 125 127
Álvaro Nagib Attalah Fátima Adriana D’Almeida Luiz Augusto Facchini Rita Barradas Barata
reply 129 Luis David Castiel 131 Eduardo Conte Póvoa 133 BRIEF NOTES
137 THESES OPEN SPACE
Angélica Fonseca
143 Three formulas for understanding Durkheims “Suicide” ARTICLES Betrayal in the university’s workplace 89 Aparecida Mari Iguti
The establishment of the physician’s identity: 107 implications for undergraduate medical teaching Ana Teresa de Abreu Ramos-Cerqueira Maria Cristina Pereira Lima
Ricardo Rodrigues Teixeira
CREATION 153 Photography in an Orthopedic Ward Maria Lúcia Toralles-Pereira Trajano Sardenberg Heloísa Wey Berti Mendes
APRESENTAÇÃO
Já se passaram mais de duas décadas desde o começo da epidemia de Aids. O que parecia, nos primeiros anos, uma emergência à beira da catástrofe, cada vez mais, ao longo da segunda década, foi se mostrando como uma doença grave, mas manejável dentro das possibilidades oferecidas pela tecnologia (especificamente, o desenvolvimento de novos medicamentos) e pela sociedade (a criação de novas formas de organização social e de solidariedade, de diversos tipos, em resposta à epidemia). Se a resposta social dada à epidemia evoluiu ao longo destes anos, evoluiu também a investigação das dimensões sociais da epidemia de Aids e suas conseqüências na vida das pessoas. Os textos reunidos neste Dossiê especial sobre Aids da revista Interface são fruto desta evolução. Também podem ser considerados como o resultado de um processo de crescimento e maturação no campo da saúde coletiva e das Ciências Sociais, em seu esforço de encontrar respostas para a epidemia da Aids. Este Dossiê é a evidência de que temos caminhado para muito mais além de onde nos encontrávamos há uns 15 anos. Ao contrário da Epidemiologia e das ciências médicas, que foram, por diversas razões, mais rápidas na resposta à epidemia, as Ciências Sociais e Humanas, tanto no Brasil, como em outras partes do mundo, demoraram a encarar a nova ameaça, cercada por todos os lados pela carga pesada da sexualidade e da morte, do fantasma do estigma e pela realidade profunda do medo. Enquanto a resposta da medicina foi, de certa forma, uma resposta solidária perante o sofrimento causado pela epidemia, as ciências humanas pareciam mais tímidas, no início, e mais incertas sobre o tipo de contribuição que podiam dar para o enfrentamento do novo desafio posto pela Aids. Com o passar do tempo, muita coisa mudou. Ao longo dos anos, o movimento social, que aos poucos se formou em torno da Aids, chamou a atenção para as tremendas dimensões sociais e culturais da epidemia. E, cada vez mais, obrigou as Ciências Sociais e Humanas a encarar suas obrigações na resposta coletiva que a Aids demandava. Partindo de um momento inicial, no qual as investigações das dimensões comportamentais da epidemia, feitas basicamente sob a ótica epidemiológica, dominavam o campo, o olhar das Ciências Humanas se abriu cada vez mais para contemplar os aspectos sociais, culturais e políticos da Aids. Questões de comunicação surgiram como um enfoque central, e uma nova visão do papel da educação em saúde começou a ser construída a partir do trabalho preventivo em relação a essa epidemia. Os textos reunidos no “Dossiê Aids” da Interface são fruto do intenso desenvolvimento desta área de pesquisa nos últimos anos. São artigos que oferecem uma visão ampla das preocupações teóricas e dos dados empíricos produzidos neste campo. Eles são exemplos de uma nova perspectiva que, cada vez mais, produz insights relevantes, não somente pela investigação da Aids stricto sensu, mas pelo campo da saúde coletiva de uma forma mais ampla. Ou seja, estes textos são exemplos da maneira como as pesquisas feitas sobre Aids alimentam o campo da saúde coletiva como um todo, abrindo caminhos e oferecendo lições relevantes para uma renovação deste campo na atualidade. O texto de José Ricardo Ayres oferece um exemplo claro deste trânsito entre a Aids e a saúde coletiva de forma mais ampla. Revisando a experiência da educação e prevenção da Aids ao longo dos anos, ele tira quatro lições-chave aprendidas com a Aids: (1) que o terrorismo não funciona; (2) que o risco é um conceito útil, mas limitado; (3) que a prevenção não se ensina; e (4) que nós só podemos constituir nossas identidades a partir de um Outro. Aprofundando uma análise de cada uma destas lições, José Ricardo conduz o leitor na caminhada, às vezes difícil, que tem levado o campo da prevenção a repensar e abandonar as abordagens terroristas das primeiras campanhas lançadas sobre a epidemia, e a se reconstruir de uma outra forma ao longo dos anos, elaborando a noção de vulnerabilidade social perante a infecção pelo HIV, em acréscimo à categoria epidemiológica de risco comportamental. Levando a sério as implicações desta compreensão, o texto dá os primeiros passos na construção de uma hermenêutica da saúde coletiva, em que a construção dialógica das subjetividades substitui a educação vertical que historicamente dominou o campo da educação em saúde. A intersubjetividade, compreendida como um processo dialógico, abre novas possibilidades para uma política de prevenção verdadeiramente emancipadora, na qual as falsas promessas de abordagens mais técnicas (com os seus “públicos-alvo” e
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“teorias de mudança de comportamento”) são desmascaradas. Um caminho semelhante é percorrido por Vera Paiva em seu texto sobre a emancipação psicossocial na prevenção e cuidado em HIV/AIDS. Partindo da necessidade de politizar o trabalho e o discurso sobre a prevenção e a educação, o texto de Vera procura operacionalizar o conceito da vulnerabilidade por meio do que ela chama de “emancipação psicossocial”. Rejeitando o mercado privado da saúde individual, em que as pessoas se tornam meros consumidores de serviços de prevenção e assistência, ela propõe a construção da noção de “sujeito-cidadão” como elemento-chave para uma saúde coletiva. Tal proposição parte da compreensão do continuum entre prevenção e assistência, na medida em que a prevenção da Aids depende também do tratamento e dos cuidados com quem vive com a doença. Com este movimento analítico, o texto retoma a discussão sobre a ética de solidariedade, como fundamento para qualquer ação em saúde coletiva, e aponta para os possíveis caminhos de uma investigação verdadeiramente solidária no futuro. Estas mesmas preocupações encontram ressonância no texto de Angélica Fonseca sobre a prevenção das DST/AIDS no ambiente escolar. Examinando a maneira como as necessidades da Aids obrigaram o sistema escolar a reconsiderar a importância da educação sexual, o texto de Angélica nos remete para uma reflexão sobre a tensão que existe entre uma abordagem cujo objetivo é “corrigir” os desvios do comportamento humano e uma perspectiva que enxerga, nas práticas educacionais libertadoras, o único caminho que leva, de fato, para uma prevenção eficaz e verdadeira da Aids e outras doenças sexualmente transmissíveis. Mas a construção da liberdade passa, segundo o trabalho de Angélica, pela desconstrução das categorias estanques que organizam a sexualidade no cotidiano da vida social. Para tanto, a autora realça a sexualidade como uma construção social, fruto das interações humanas, em contraposição às abordagens essencialistas ou naturalistas da sexualidade, que a reificam como produtos da natureza humana. Os ecos destes três textos mais teóricos irão ressoar nos dois textos mais empíricos deste Dossiê: o texto de Daniela Knauth, Regina Maria Barbosa, Kristine Hopkins, Marion Pegorario e Regina Fachinni sobre a cultura médica e decisões reprodutivas de mulheres soropositivas em São Paulo e Porto Alegre, e o texto de César Ernesto Abadia-Barrero sobre a cultura das casas de apoio para crianças vivendo com Aids no estado de São Paulo. Justamente por causa de suas temáticas (mulheres vivendo com HIV e lutando com as difíceis decisões de como e quando ter filhos, e crianças vivendo com HIV e se transformando em adultos, possibilidades até há pouco tempo descartadas da realidade de uma doença tida como inevitavelmente fatal, tanto social, como biologicamente), estes dois textos chamam nossa atenção para o modo como construímos nossas premissas (ou pressuposições) sobre uma epidemia que, hoje, parece evoluir mais rapidamente que nossa capacidade de acompanhá-la. No texto sobre decisões reprodutivas, as autoras mostram, com clareza, a dificuldade que existe para a Medicina e os médicos deixarem de lado seu domínio da verdade para dialogar verdadeiramente com o paciente, e os danos que esta incapacidade de diálogo pode causar na vida das pessoas. E no texto sobre as casas de apoio para crianças vivendo com HIV, o autor demonstra como a crescente sobrevida, e, portanto, a transformação de crianças em adolescentes, levanta, nos diversos contextos em que os cuidados são realizados, a pesada bagagem de idéias e estereótipos que ainda carregamos conosco em nosso encontro com a complexidade e as contradições levantadas pela epidemia. Ao reunir estes textos, este Dossiê oferece uma bela visão do tipo de questão posto em discussão nas Ciências Sociais e Humanas pela epidemia de Aids hoje. Os artigos traçam as linhas de uma epistemologia de solidariedade e de uma política da construção do saber que constituem uma contribuição fundamental, não somente para nosso entendimento e compreensão da Aids, mas para o campo da saúde coletiva como um todo. Eles nos lembram que já se avançou muito em nosso confronto com a epidemia, mas que também temos ainda muito por fazer. Este Dossiê chama-nos a todos para um diálogo capaz de construir práticas de saúde pública verdadeiramente democráticas. Richard Parker Professor Titular e Chefe do Departamento de Ciências Sociomédicas Escola da Saúde Pública, Universidade de Columbia <rparker@alternex.com.br>
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PRESENTATION
It is now more than two decades since the Aids epidemic started. What seemed to be, in the early years, an emergency bordering on catastrophe, during the course of the second decade increasingly revealed itself as a serious disease, but a manageable one within the possibilities offered by technology (specifically, the development of new drugs) and by society (the creation of new forms of social organization and solidarity of several kinds, in response to the epidemic). If the social response vis à vis the epidemic progressed over the course of these years, the investigation of the social dimensions of the Aids epidemic also evolved, as did the investigation of its consequences for people’s lives. The texts included in this special Interface magazine dossier about Aids are the result of this evolution. They can also be regarded as the result of a growth and maturation process in the field of collective healthcare and in the social sciences, in an effort to find answers for the Aids epidemic. This dossier is proof that we have progressed far beyond where we were some fifteen years ago. Contrary to epidemiology and medical sciences which were, for several reasons, speedier in responding to the epidemic, the social and human sciences, both in Brazil and in other parts of the world, took a long time to face the new threat, surrounded on all sides by the heavy burden of sexuality and death, the ghost of stigma and the deep reality of fear. Whereas the response of the medical field was in a way a solidary one in the face of the suffering brought about by the epidemic, the human sciences seemed at first to shy away from it, uncertain about the type of contribution they could bring to facing the new challenge posed by Aids. As time went by, many things changed. Over the course of the years, the social movement that little by little formed around Aids called attention to the huge social and cultural dimensions of the epidemic. Moreover, it increasingly obliged the social and human sciences to face their obligations in the collective response that Aids demanded. Starting from the beginning, when the investigation of the behavioral dimensions of the epidemic, carried out largely from the epidemiological point of view, dominated the field, the view of human sciences broadened increasingly in order to take into account the social, cultural and political aspects of Aids. Communication issues arose as a core focus and a new vision of the role of education in healthcare started to be constructed based on the preventive work carried out in the face of the epidemic. The texts brought together in Interface’s “Aids Dossier” are the fruit of the intense development of this field of research in the last few years. They are articles that offer a broad overview of the theoretical concerns and empirical data produced in this field. They are examples of a new point of view that, increasingly, results in relevant insights, coming not only from the investigation into Aids, stricto sensu, but also from the field of collective healthcare more broadly. In other words, these texts are examples of how research on Aids fuels the field of collective healthcare as a whole, unveiling new paths and offering relevant learnings for a renovation of this field in the present. José Ricardo Ayres’ text offers a clear example of this movement between Aids and collective healthcare in a broader fashion. Revisiting the experience of Aids education and prevention over the years, he draws four key lessons from Aids: (1) that terrorism does not work; (2) that risk is a useful but limited concept; (3) that prevention cannot be taught; and (4) that we can only constitute our identities based on Others. Carrying out a deeper analysis of each one of these lessons, José Ricardo conducts the reader along a sometimes difficult path, which has led the field of prevention to rethink and abandon the terrorist approach of the early campaigns fighting the epidemic, and to reconstruct itself differently over the course of the years, developing the notion of social vulnerability vis à vis HIV infection, in addition to the epidemiological category of behavioral risk. Taking the implications of this understanding seriously, the text takes the first steps toward the construction of a hermeneutics of collective healthcare, in which the dialogical construction of the subjectivities substitutes the vertical education that historically dominated the field of healthcare education. Intersubjectivity, understood as a dialogical process, opens new possibilities for a truly emancipative prevention policy, in which the false promises of more technical approaches (with their “target audiences” and “behavior change theories”) are unmasked.
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Vera Paiva embraces a similar path in her text on psychosocial emancipation in HIV/ Aids prevention and care. Using the need to politicize the work and discourse on prevention and education as a starting point, Vera’s text tries to render operational the concept of vulnerability through what she calls “psychosocial emancipation”. Rejecting the private market of individual healthcare, in which people become mere consumers of prevention and assistance services, she proposes the construction of the notion of a “subject-citizen” as the key element for collective healthcare. The starting point of this proposal is the understanding of the continuum between prevention and assistance, to the extent that Aids prevention also depends on the treatment and care of those who live with the disease. With this analytical movement, the text resumes discussion of the ethics of solidarity as a cornerstone for any collective healthcare action and indicates possible paths for a truly solidary investigation in the future. These same concerns are reflected in Angélica Fonseca’s essay on the prevention of STD/Aids in the school environment. Examining the way how the requirements imposed by Aids obliged the school system to reconsider the importance of sexual education, Angélica’s text leads us to a reflection on the tension that exists between an approach whose objective is to “correct” the deviations of human behavior and a point of view that sees in liberating educational practices the sole way that can actually lead to effective, true prevention of Aids and other sexually transmissible diseases. However, the construction of freedom, according to Angélica’s essay, forcibly passes through the deconstruction of the impervious categories that organize sexuality in the quotidian of social life. To this end, the author stresses sexuality as a social construction, the fruit of human interaction, as opposed to the essentialist or naturalistic approaches to sexuality, which reify it as a product of human nature. The echoes of these three more theoretical texts resonate in the two more empirical texts of this dossier: Daniela Knauth, Regina Maria Barbosa, Kristine Hopkins, Marion Pegorario and Regina Fachinni’s text on medical culture and reproductive decisions among women carrying the HIV virus in São Paulo and Porto Alegre, and César Ernesto Abadia-Barrero’s text on the culture of support homes for children with Aids in the State of São Paulo. Precisely because of their themes (women with HIV struggling with the difficult decision of whether and when to have children, and children with HIV becoming adults, possibilities until recently discarded from the reality of a disease considered to be inevitably fatal, both socially and biologically), these two essays draw our attention to the way in which we build our premises (or presuppositions) about an epidemic that currently seems to evolve faster than our capacity to accompany it. In the text on reproductive decisions, the authors clearly demonstrate the difficulty that medicine and physicians undergo to set aside their control of the truth in order to dialogue truly with the patient and the damage that this inability to dialogue can cause to people’s lives. Furthermore, in the text on support homes for children carrying HIV, the author shows how the expanding period of survival and, therefore, the transformation of children into adolescents, raises, in the several contexts in which care is provided, the heavy burden of ideas and stereotypes that we still carry in our encounter with the complexity and contradictions raised by the epidemic. In bringing together these texts, the dossier offers a fine view of the type of issue the epidemic of Aids currently poses for discussion by the social and human sciences. The articles outline an epistemology of solidarity and a policy of construction of knowledge that constitute a fundamental contribution, not only for our understanding and comprehension of Aids, but for the field of collective healthcare as a whole. They remind us that although major progress has taken place in our confrontation with the epidemic, there is still a great deal to be done. This dossier summons all of us to a dialogue capable of constructing truly democratic public health practices. Richard Parker Senior Professor and Head of the Department of Sociomedical Sciences School of Public Health, Columbia University
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AYRES, J. R. C. M.
“Poderoso para mim não é aquele que descobre ouro. Poderoso para mim é aquele que descobre as insignificâncias (do mundo e as nossas).” Manoel de Barros
A prevenção hoje A prevenção tem sido, desde o início da epidemia, uma questão crucial para os programas de controle da Aids. Naqueles primeiros tempos, era grande o desconhecimento acerca da doença e sua distribuição e poucos os subsídios para guiar ações preventivas. Desde então, esse quadro sofreu profundas alterações. Houve um aumento substantivo do grau de conhecimento científico acerca do vírus, suas interações com o organismo, sua epidemiologia e sobre os principais determinantes sociais dessa epidemia. Destaca-se, em particular, o elevado grau de conhecimento alcançado acerca do controle dos efeitos danosos do HIV sobre o organismo humano. Contudo, passados já vinte anos, e mesmo com todos os avanços apontados, a importância da prevenção não é menor nos dias de hoje. Os enormes progressos do conhecimento e da técnica não esvaziaram os desafios da prevenção, uma vez que tais avanços não chegaram a alterar substantivamente os determinantes da vulnerabilidade ao HIV e à Aids de significativos contingentes populacionais. Entre estes aspectos de vulnerabilidade, destacam-se a pobreza; a exclusão de base racial; a rigidez de papéis e condutas nas relações de gênero; a intolerância à diversidade, especialmente de opção sexual; o limitado diálogo com as novas gerações e a conseqüente incompreensão dos seus valores e projetos; o descaso com o bem estar das gerações mais idosas e a impressionante desintegração da sociedade civil no mundo globalizado (Castells, 1999), gerando uma violência estrutural que amalgama todos os demais aspectos de vulnerabilidade num perverso sinergismo (Farmer et al. 1996; Parker & Carmargo Jr., 2000). Mesmo onde os progressos técnicos e científicos fizeram sentir com mais intensidade seus notáveis efeitos, ainda não há lugar para descuido, nem por parte da população e nem dos profissionais de saúde. Este aspecto é especialmente relevante quando se trata dos avanços no tratamento. O progresso dos recursos diagnósticos e terapêuticos no manejo da Aids obriga a um concomitante reforço e exame crítico das ações de prevenção. As modernas terapias antiretrovirais, quando associadas a uma informação extensiva, democrática e sustentada para o conjunto da sociedade e a serviços de saúde preparados, equipados e igualmente acessíveis ao conjunto dos cidadãos, têm determinado o fim da inexorável equação “infecção = morte”, que marcou o início da epidemia. Uma imensa quantidade de pessoas vivendo com Aids recuperou plenamente, ou quase, sua capacidade de interagir, produzir, amar, ter prazer, etc. Novos infectados têm podido conviver com sua condição de soropositividade sem que isso chegue a afetar o mais essencial de seus projetos e estilos de vida. Uma geração inteira está chegando à adolescência vivendo com o HIV.
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AYRES, J. R. C. M.
eficácia dos antiretrovirais e de uma assistência à saúde de qualidade, é impossível não considerar que esse controle também depende radicalmente da construção de uma cultura preventiva ainda mais universalizada, sustentada, plural e versátil para o conjunto da sociedade. Essa necessidade de intensificação e renovação traz para a prevenção novos cenários, sujeitos, experiências, valores, tornando-a ainda mais complexa. Por tudo que já se avançou no campo das respostas tecnocientíficas e sociopolíticas à epidemia, temos muitas razões para acreditar que é possível fazer avanços nessa direção, apesar das dificuldades apontadas. A contribuição que se pretende trazer com o presente ensaio caminha no sentido de inventariar alguns desses avanços e reexaminá-los criticamente, tendo no horizonte aqueles desafios. Face ao conhecimento acumulado, o que profissionais e ativistas podem efetivamente fazer hoje, no sentido de favorecer a adoção de práticas protegidas e protetoras da infecção pelo HIV? Quais as implicações dos avanços terapêuticos sobre a concepção e o desenvolvimento dessas práticas? O que é preciso rever em nossas estratégias e recursos técnicos, para caminhar, realizar a renovação pretendida? Para desenvolver essa reflexão, buscar-se-á sistematizar um conjunto de aprendizados realizados no campo da prevenção nessas duas décadas de epidemia, tomando como base, em especial, a experiência brasileira. A proposta é apontar, a partir desse balanço, algumas implicações das atitudes e recursos emergentes desses aprendizados para o desenho de novas estratégias e métodos de prevenção. Antes de prosseguir, cabem dois reparos. O primeiro é que a reflexão aqui proposta restringir-se-á às práticas educativas, pela centralidade que ocupam hoje no campo da prevenção, passando-se ao largo da questão de vacinas e das quimioprofilaxias, o que não significa, em absoluto, que se desconheça a relevância destes recursos. O segundo é que não se pretende fazer aqui uma lista exaustiva das diferentes estratégias e experiências em educação preventiva, nem qualquer tipo de hierarquização de sua relevância ou prioridade, mas tão somente um exercício de sistematização e reflexão. Lições aprendidas Primeira lição: terrorismo não funciona A primeira lição aprendida, logo nos primeiros anos da epidemia, é que o caminho do terror, do susto, de que quanto mais assustadora a propaganda melhor seu efeito preventivo, é extremamente limitado. Essa via mostrou-se ineficiente, estéril, afastando mais que aproximando as pessoas do problema. Talvez tivesse bastado recorrer de forma mais precoce e conseqüente às teorias da comunicação para perceber que o cenário sombrio, apresentado por aquelas primeiras campanhas de prevenção, teria mesmo muita dificuldade de criar identidades, associações, motivações para que as pessoas mudassem seus comportamentos no momento das relações sexuais ou de fazer uso de drogas injetáveis. É compreensível que, no início da epidemia, técnicos, militantes, formuladores de políticas, não tivéssemos mesmo condições de revisitar com
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PRÁTICAS EDUCATIVAS E PREVENÇÃO DE HIV/AIDS...
mais tranqüilidade as teorias da comunicação, num momento em que se deparava com uma doença desconhecida, epidêmica e fatal. O correr dos anos e a experiência prática, porém, encarregaram-se de apontar a ineficácia dessas estratégias. Mais que isso, mostraram que o terror ajudava a gerar e aumentar a discriminação e o preconceito e esses mostraram ser um dos mais perniciosos componentes da epidemia e um dos mais importantes elementos a serem combatidos (Treichler, 1991; Daniel, 1994). No contexto dos avanços terapêuticos, a importância de recusar a estratégia do terror é ainda mais premente, pois é a cada dia maior o número de pessoas vivendo com Aids, às quais estaremos enganando, agredindo, desestimulando e desmobilizando ao associar tão inexoravelmente a infecção pelo HIV ao sofrimento e à morte. Repita-se aqui Betinho. É a possibilidade da vida que nos leva a interagir, construir, planejar, não a certeza da morte. Segunda lição: o risco é um conceito útil, mas limitado Outra importante e difícil lição aprendida diz respeito às relações entre teoria e prática. Toda teoria em saúde nasce em estreita relação com processos de investigação empírica partindo, nesse sentido, de preocupações e indagações diretamente relacionadas à prática. Resultados válidos e consistentes dessas pesquisas transformam-se em conhecimento a partir de necessários processos de abstração e este conhecimento, ao retornar ao campo das práticas, pode assumir distintos graus de aplicabilidade e efetividade. Desse modo, é preciso distinguir cuidadosamente os territórios de validade dos diferentes conceitos e de suas aplicações práticas, o que, com freqüência, é negligenciado. O uso que se faz da epidemiologia em saúde pública exemplifica esta dificuldade. Desde o início da epidemia recorreu-se à epidemiologia e seus estudos sobre riscos como uma instância que podia “legislar” quase absoluta sobre os determinantes do problema e construir respostas para sua solução. Desde a elaboração e teste de hipóteses de associação causal até a recomendação de quem devia fazer o que e quando, a epidemiologia tornou-se a depositária soberana de quase toda a esperança de controle da epidemia. Ocorre que as análises de risco, como todo conhecimento epidemiológico, são também construídas à custa de sucessivos processos de abstração conceitual, que lhe garantem manuseio formal e matemático de grande precisão (Ayres, 1997). Porém, na medida mesma dessa precisão formal, dáse seu necessário afastamento de aspectos da realidade fundamentais para quem pensa a prevenção: a subjetividade, a significação, a interação, a dinamicidade (Ayres, 2001). Tomar associações probabilísticas entre variáveis abstratas como principal, quando não única, orientação para ações de prevenção, centrando as estratégias de intervenção no “isolamento epidemiológico” dos chamados grupos de risco, ou na modelagem universal dos ditos comportamentos de risco, tem sido um erro freqüente. O primeiro porque rotula, generaliza, cristaliza, isola, paralisa. O segundo porque universaliza, dessubjetiva, despolitiza, descontextualiza. Ambos, usados acriticamente, conduzem à
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AYRES, J. R. C. M.
TERAOKA, Série Aids
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Sem mágicas soluções: a prevenção e o cuidado em HIV/ AIDS e o processo de emancipação psicossocial Vera Paiva
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PAIVA, V. Beyond magical solutions: prevention of HIV and Aids and the process of “psychosocial emancipation”, Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.6, n.11, p.25-38, 2002.
This text discusses the need to politicize psycho-educational arenas and presents the idea of a “psycho-social emancipation” as one of the references for improved operationalization of the notion of vulnerability in the field of prevention of new HIV infections and of the organization of care for those who are AIDs carriers. Reflecting on actions designed to encourage patients to take their medication and use condoms, it suggests that the prevention of HIV should overcome models devised for “HIV negative” people and that the prevent-assist continuum should be radicalized. To this end, it is pressing to: take into account the facts accumulated in the field of cultural analyses and of psychosocial research in the planning and organization of preventive actions and of providing assistance to HIV carriers, including, for instance, the ideas of oppressive social construction of two genders, masculine and feminine; overcome the notion of “individuals as consumers” (of services, educational programs, condoms and prescribed medication, of behaviors and safe practices to be practiced); foster the innovation of prevention and care actions. Working with the idea of a “subject-citizen individual”, co-participant in the psycho-educational arenas whose horizon consists of psychosocial emancipation, can enhance the quality of preventive actions and of integrated care of HIV and AIDS patients, so as to include “all” Brazilians, according to the socio-cultural context of “each one”, both men and women, testing positive or negative. KEY WORDS: HIV, Acquired immunodeficiency syndrome; social support; health education. Este texto discute a necessidade de politizar os espaços psicoeducativos e propõe a noção de “emancipação psicossocial” como uma das referências para aprofundar a operacionalização da noção de vulnerabilidade no campo da prevenção de novas infecções pelo HIV e da organização do cuidado dos portadores. Refletindo sobre ações para a adesão aos medicamentos e ao preservativo, sugere que a prevenção ao HIV deve superar modelos pensados para cidadãos “HIV negativos” e que se radicalize o continuum prevenir-assistir. Para tanto, é urgente: considerar os fatos acumulados no campo da análise cultural e da pesquisa psicossocial no planejamento e organização de ações de prevenção e de assistência aos portadores, incorporando, por exemplo, as noções da construção social opressiva de dois gêneros, masculino e feminino; superar a noção de “indivíduo-consumidor” (de serviços, programas educativos, preservativos e medicação receitados, de comportamentos e práticas seguras a serem treinadas); estimular a renovação das ações de prevenção e cuidado. Trabalhar com a noção de “indivíduo sujeito-cidadão”, co-participante de espaços psico-educativos que têm como horizonte a emancipação psicossocial, pode aumentar a qualidade das ações de prevenção e cuidado integral em HIV e AIDS, incluindo “todos” os brasileiros segundo o contexto sócio-cultural de “cada um”, homens e mulheres, positivos ou negativos. PALAVRAS-CHAVE: HIV; Síndrome de imunodeficiência adquirida; apoio social; educação em saúde.
1 Professora do Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, Núcleo de Estudos para Prevenção da Aids, NEPAIDS/USP. <veroca@usp.br>
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Pensando nos esforços dos últimos anos no campo da prevenção de novas infecções pelo HIV e da organização do cuidado dos portadores, este texto quer discutir a necessidade de politizar os espaços psico-educativos e propor a noção de “emancipação psicossocial” como uma das referências para aprofundar a operacionalização da noção de vulnerabilidade. Trata-se de uma reflexão a partir de nossa experiência em várias pesquisas no Núcleo de Estudos para a Prevenção da AIDS/USP, e do resultado dos projetos em colaboração com programas de Aids e profissionais de saúde ou ainda com ativistas atuando tanto na prevenção quanto na assistência em São Paulo. Este artigo quer também contribuir para uma reflexão crítica sobre o celebrado programa brasileiro de DST/AIDS, sobre os caminhos construídos por suas lideranças, marcados pela história brasileira de resistência democrática, por profissionais de saúde e ativistas que compartilhavam as mesmas referências em defesa dos direitos humanos, da saúde pública gratuita e universal, e do compromisso com a emancipação e a construção da cidadania. Nem sempre se conseguiu operacionalizar em todos os níveis e radicalmente estas referências, ou entender exatamente como avançamos (ou não) sem perdê-las de vista. Essa opção, de qualquer maneira, traduzida nas iniciativas não-governamentais e programas governamentais, sempre colocou o desafio de articular prevenção do HIV, entre os grupos mais vulneráveis, e a assistência aos portadores, assim como a proteção de seus direitos. Mais do que de intervenções espetaculares e magicamente definitivas com que sonhávamos nas urgências da primeira década, as ações de prevenção das infecções sexualmente transmissíveis e do adoecimento dependeram de um longo processo de aprendizado individual e coletivo de como lidar com as dificuldades materiais, sócio-culturais, políticas e subjetivas que se atualizam cotidiana e dinamicamente. Aprendemos que conseguir consistência e perseverança na direção de dois indicadores clássicos de sucesso - a prática consistente do sexo seguro e a adesão à medicação ou aos serviços de saúde - na maioria das vezes implicam um desafio permanente, dia após dia, de situação em situação, tanto do ponto de vista dos indivíduos como dos serviços que buscam apoiá-los. Trata-se de um processo que tem sido mais lento do que gostaríamos ou precisaríamos, embora tenha dependido de momentos de salto de qualidade e especiais. É resultado, por exemplo, de uma campanha de mídia bem desenvolvida, ou da tensão e do brilho na aliança dinâmica entre profissionais de saúde, programas e ONGs, que se movimenta entre a cooperação e cooptação, o embate e o apoio mútuo, com momentos de grande visibilidade nas ações políticas de uma parte ou em conjunto. O processo tem se beneficiado da lenta aprendizagem nos espaços psicoeducativos, do impacto nos grupos ou comunidades, das iniciativas de “oficinas de sexo seguro” ou, mais recentemente, da organização de sessões interativas dos “grupos de adesão à medicação” em serviços de referência para portadores e em organizações não governamentais. Estes espaços menores e de aprendizagem conjunta provocam os insights que facilitam a adesão de cada paciente à medicação ou à camisinha e, ao mesmo tempo, ajudam profissionais a reconhecer os fatos, em geral psicossociais, que facilitam ou dificultam a prevenção. O que reconhecemos como sucesso dos últimos anos de respostas à expansão do HIV/AIDS no Brasil dependeu de vários destes elementos, tornando a reflexão pausada sobre esse processo uma tarefa árdua, já que não há nenhum instrumento seguro que consiga dar conta de tão complexa sinergia em
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movimento. Sem abrir mão dos avanços, a crítica deve se aprofundar para enfrentarmos tanto os novos desafios como os velhos dilemas que permanecem à sombra do que, no momento, parece bem sucedido. O continuum entre prevenção e assistência aprofunda operacionalização da noção de vulnerabilidade. O fato de que prevenir e assistir são duas faces de um mesmo desafio estava no horizonte das primeiras respostas organizadas ainda na primeira década da epidemia no Brasil (Teixeira, 1997). Observando a partir do plano mais estrutural e programático, as iniciativas que têm beneficiado os que têm Aids com acesso ao tratamento de qualidade sempre tiveram um impacto definitivo na prevenção de futuras infecções. Por exemplo, só quando se reconheceu publicamente que as pessoas que adoeciam de aids não deveriam perder seus direitos como cidadãos, quando se escutou os ativistas organizados se recusando à “morte civil” e colocando o foco na solidariedade (Parker, 1994), organizou-se seu acolhimento nos serviços de saúde ao mesmo tempo em que a prevenção do HIV passou a ser entendida como direito de todo brasileiro, estendida a todo cidadão. Observando a partir do plano individual e subjetivo, assim se construiu um sentido positivo de se fazer o teste anti-HIV, porque se teria acesso ao tratamento e à vida com qualidade. Se olharmos o plano da ação política, a partir da iniciativa dos ativistas que reivindicaram nos tribunais o acesso ao tratamento, fortaleceu-se a decisão dos profissionais responsáveis pelas políticas públicas de saúde pela distribuição universal do AZT com recursos do orçamento nacional. Portadores e grupos mais vulneráveis foram estimulados a sair do isolamento e a buscar serviços de Aids, organizaram-se os centros de testagem anônima, o acolhimento e o aconselhamento no sistema de saúde. Além de beneficiar os diretamente atingidos, afinou-se a vigilância epidemiológica, fortaleceu-se a rede laboratorial e de distribuição de medicamentos para, em seguida, criar o desafio de sustentar em longo prazo essa política, que às agências internacionais parecia um sonho impossível. A ousadia foi não recuar diante das pressões no processo para o acordo com o Banco Mundial, que só permitia uso de seu empréstimo para as ações educativas já que, como país de “terceiro mundo”, nos caberia apenas centrar esforços na prevenção de novas infecções. Esse processo, buscando emancipação psicossocial e cidadania, tem sido fundamental para garantir acesso sustentado a bons serviços, garantir respeito a direitos e à ética e, ao mesmo tempo, alimentar a constituição de sujeitos e identidades cidadãs. Desaguou no comprometimento do orçamento nacional, na produção de genéricos e na ação política internacional, governamental e não-governamental, que tem confrontado laboratórios e leis de patentes. Neste caminho, foi fundamental a legitimidade crescente da noção de vulnerabilidade (individual e coletiva) como alternativa às noções de “grupo de risco” e de “práticas de risco” (Ayres et al., 2000; Paiva, 2000a). Dinâmico, o esforço para sustentar a política de acesso universal à medicação anti-HIV permitiu, em seguida, que acumulássemos mais evidências sobre os contextos psicossociais (ao mesmo tempo sócio-culturais e subjetivos, individuais e coletivos) que aumentam ou diminuem a vulnerabilidade das pessoas ao HIV e ao adoecimento. Queremos sugerir para o debate que a adoção desta perspectiva deve ser radicalizada e a reflexão sobre sua operacionalização nas
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ações de assistência e prevenção aprofundada. Usando como exemplo a prevenção da transmissão sexual do HIV e a atenção à saúde sexual e reprodutiva dos portadores, discutiremos algumas das noções que têm informado a prevenção primária e secundária que merecem reflexão à luz deste “caminho brasileiro” e de suas referências. A prevenção segue pensada para cidadãos “HIV negativos” Programas governamentais e não-governamentais têm se dedicado corretamente a promover políticas não discriminatórias, defendendo os direitos dos portadores, ampliando a consciência de que a Aids atinge igualmente a todos. A sexualidade a ser abordada é a de “todos”, como se “todos” fôssemos igualados pelas mesmas práticas, sem considerar que práticas sexuais sem seus sentidos particulares em cada cena sexual, em cada contexto sócio–cultural, não existem (Paiva, 2000b). A conseqüência simplificadora desta concepção é o fato de que programas e pesquisas, intervenções na mídia ou em pequenos grupos face a face, traduzem sempre seu público alvo como o indivíduo “soronegativo”, sinônimo de “todos”, que deve se proteger de alguém potencialmente “soro-positivo”. Discutem-se os obstáculos que impedem o “negativo” de aceitar ou considerar que outras/outros possam ser “HIV positivos”. Mas as dificuldades de o portador fazer o teste ou reconstruir-se para uma nova vida, protegendo os outros ou a si mesmo de re-infecção nunca são discutidas abertamente, como se pertencessem a uma outra nação. Os direitos reprodutivos dos portadores permanecem marcados pelo silêncio ou restritos às controvérsias de corredores e não têm sido debatidos mais sistematicamente nos programas de Aids, ratificando sua morte civil (Santos et al., 1998). Na literatura disponível, os poucos estudos encontrados sobre a sexualidade das pessoas vivendo com HIV confirmam que os determinantes sócio-culturais da sexualidade e vida reprodutiva, inclusive do sexo não-protegido, são os mesmos entre os portadores e não-portadores (Schiltz & Sandforth, 2000). No debate sobre a dinâmica da transmissão sexual do HIV permanece com vida longa a descrição de condutas sexuais ainda acusadas de “promíscuas”, ou sob suspeita, numa visão mais conservadora, e a vida afetivo-sexual dos portadores segue desconsiderada ou reprimida (punida?) quando a pessoa chega a um serviço de saúde ao se descobrir portador. Nos centros de referência, encontramos profissionais que espelham valores e significados para o sexo e para a Aids em que foram socializados, em geral conservadores, estigmatizadores daqueles com opções diferentes da sua. Encontramos, também, profissionais que se identificam com valores mais abertos à diversidade, mas que muitas vezes tratam a conduta sexual como irresponsavelmente culpada porque “não usou a camisinha”, como se fazer sexo seguro dependesse sempre da vontade e da razão informada, acusando os que não absorvem adequadamente (“desconsideram”) os guias para a proteção do sexo (Paiva et al., 2001). O aconselhamento pós-teste, obrigatório, é um dos poucos momentos em que se discute a sexualidade dos portadores, mas o acesso ao aconselhamento não tem crescido. O foco deste aconselhamento tem sido falar da necessidade de usar o preservativo, no máximo “demonstrar” como se usa essa “receita de comportamento”, sem considerar outras dimensões da sexualidade do portador ou sequer pensar sobre suas intenções reprodutivas (Enhancing Care Initiative,
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2001). Problemas conhecidos dos que trabalham com a prevenção permanecem: numa sociedade que não estimula a comunicação franca sobre as conseqüências do sexo, embora seja “sexo-estimulante” a qualquer hora do dia nos meios de comunicação, como ajudar as pessoas a comunicar a seus parceiros sua situação de portadores? Como incluir na motivação para o uso do preservativo a necessidade de se proteger (e ao parceiro) da re-infecção? Como lidar com os efeitos psicológicos negativos do diagnóstico na vida sexual, como a depressão e o isolamento freqüentes? Como lidar com o medo da violência conseqüente ao estigma que ainda marca a vida dos portadores, mesmo estigma com que os “negativos” não querem se identificar e psicodinamicamente acaba por dissolver a consciência de sua provável vulnerabilidade? Se tomarmos como exemplo os estudos sobre a sexualidade de pessoas vivendo com HIV apresentados na XIII Conferência Internacional de AIDS na África do Sul (International Aids Conference, 2000), encontramos investigações realizadas em vários contextos psicossociais: homens norte americanos, trabalhadores imigrantes na Ásia, jovens vivendo com HIV, mulheres em clínicas de pré-natal na África, trabalhadoras do sexo, lésbicas na Califórnia, e usuários de drogas no Rio de Janeiro e em Sacramento. Como a sexualidade é uma dimensão da vida que sabemos ser profundamente determinada pelo contexto sócio-cultural em que acontece, é importante perceber o que as vivências dos portadores e comunidades mais vulneráveis têm em comum e ao mesmo tempo o que é específico de cada grupo, indivíduo ou de seu momento na vida. A diversidade é um problema para quem pretende generalização das sugestões programáticas para qualquer contexto. Seria inovador abandonar a tentação de encontrar uma tecnologia universal, “a mais eficaz”, para algo que reconhecemos depender de cada contexto social e intersubjetivo. Apesar disto, temos ainda centrado as ações de prevenção ou aconselhamento sem compartilhar com os pacientes ou educandos o que sabemos sobre os vários contextos sócio-culturais, sem valorizar a diversidade. A informação de que precisamos adaptar os guias para o sexo mais seguro à vida de “todos” nós, na verdade deveria significar adaptar à vida de “cada um”, nem sempre é compartilhada como informação relevante para que as pessoas se previnam ou se cuidem. Tem sido difícil, portanto, abandonar a referência centrada nas “práticas de risco, comportamentos de risco”, nas “falhas” prováveis na adesão, pré-definidas pelo receituário. No máximo fazemos “materiais diferentes” que fazem o marketing da mesma idéia (Use camisinha! Previna-se!) mais adaptado ao gosto e linguagem do “público alvo em questão” (mulheres ou homens, “heteros” ou “homos”, jovens, trabalhadores do sexo etc). Os “positivos” seguem presença quase inexistente como “alvo” desta produção. No Brasil, estudos realizados entre mulheres portadoras (Enhancing Care Initiative, 2001; Santos et al., 1998; Paiva et al., 2001) confirmaram que o portador passa por um processo de adaptação ao diagnóstico, de várias fases e diversas maneiras de lidar com a vida e com sexualidade, que vão variando no tempo. Uma adaptação semelhante ao que se descreve na literatura sobre o processo de assumir para si e para o mundo o desejo homoerótico (RotherdamBorus & Miller, 1998). Muitas portadoras, depois do resultado do teste, abrem mão de sua vida sexual, às vezes definitivamente, com medo de infectar ou então serem abandonadas por futuros parceiros, com dificuldades de se
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comunicar sobre sexo e sobre o diagnóstico. A maneira de lidar com a sexualidade dependerá da qualidade do apoio que os portadores recebem nesse processo, e o momento do diagnóstico é crucial. Independente da primeira reação, a maioria das portadoras, principalmente as mais jovens, mantém ou retoma a vida afetiva e sexual, assim como suas intenções de maternidade (ou paternidade); esta a dimensão que encontra mais obstáculos para ser acolhida. Como em todas as comunidades e grupos afetados pela Aids, mesmo nas mais carentes e vulneráveis, a adesão e o sexo mais seguro têm sido possíveis e acontecem também entre as portadoras. No caso do preservativo, as portadoras usam-no consistentemente numa proporção três vezes maior que entre as mulheres brasileiras em geral (CEBRAP & Ministério da Saúde, 1999), mas um terço das mulheres portadoras que são ativas sexualmente continuam sem usar preservativo (Enhancing Care Initiative, 2001). Os programas podem, portanto, fazer diferença, mesmo quando não transformam radicalmente as condições materiais, estruturais ou as mentalidades que aumentam a vulnerabilidade ao HIV e ao adoecimento das mulheres brasileiras. Neste momento da história da resposta em busca do controle do HIV/AIDS, um dos novos desafios que podem nos ajudar a inspirar a renovação das práticas e a sensibilizar programas e profissionais para uma nação de cidadãos positivos e negativos, aprofundando o continuum entre prevenção e assistência, é entender melhor o impacto dos sucessos da terapia anti-retroviral nas mudanças da vida, também amorosa e sexual, dos portadores e também como os vários grupos e pessoas pensam a prevenção. Gêneros, no plural Tanto nas experiências mais interessantes de prevenção, como nos centros especializados em atendimento aos portadores do HIV, raramente se tem incorporado a compreensão que já acumulamos na análise dos aspectos sócioculturais que ampliam a vulnerabilidade ao HIV e ao adoecimento. Os serviços continuam basicamente organizados para dar conta dos fatos biomédicos e da educação centrada nas vias de transmissão e na promoção dos instrumentos de proteção (preservativos, abstinência, seringas descartáveis etc), ou no controle clínico da infecção e da adesão. A dimensão das relações de gênero e do respeito à diversidade nas várias opções sexuais tem sido incorporada em muitas ações de prevenção, mas gênero ainda continua sendo pensado no singular, no feminino, como sinônimo de opressão feminina; não se aprofunda, nas ações de prevenção, o lidar com o impacto das relações de gênero no aumento da vulnerabilidade dos homens. Ao mesmo tempo, as necessidades das mulheres portadoras diante de sua responsabilidade maior pela família e filhos não têm sido efetivamente consideradas na organização de seu cuidado; seu acesso ao atendimento ginecológico é muito menor do que deveria, pais e mães não têm lugar para deixar os filhos enquanto são atendidos (Tunala et al., 2000). Onde se discute os fatos da transmissão materno-infantil, a possibilidade de reprodução assistida com os casais (homens e mulheres portadoras), ou direitos reprodutivos do homem e da mulher portadora do HIV, ou os desafios da conjugalidade homoerótica? No caso da prevenção do HIV, foi no trabalho com jovens que essa dimensão de dois gêneros foi incorporada na história da epidemia. O fato recente das
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crianças portadoras amadurecerem como jovens sexuados talvez ilumine esse buraco negro na ponta do cuidado ao portador. O silêncio, ou a ambigüidade diante da sexualidade do portador, em especial sobre as intenções reprodutivas das pessoas vivendo com o HIV, somado ao pouco conhecimento sobre os métodos de contracepção mais apropriados ou sobre direitos reprodutivos a que estas têm tido acesso, tem sido descrito como um dos mais difíceis obstáculos a superar (Enhancing Care Initiative, 2001). Teremos que, criativamente, continuar buscando a “des-naturalização” das “bíblicas” definições sobre os gêneros, que mantém os programas de infecções sexualmente transmissíveis desarticulados dos programas de saúde da mulher, os homens desassistidos para lidar com seus dilemas reprodutivos (quase invisíveis nos programas de saúde da mulher), e programas de saúde que raramente permitem às “esposas e mães” serem incentivadas a fazer o teste anti-HIV nos serviços de ginecologia e pré-natal (um espaço de “todos”, onde não se pode pensar em HIV), e os portadores sem espaço para pensar suas intenções reprodutivas (um espaço que não é de “todos”, do “todo” das pessoas vivendo com Aids, mas tem focalizado a sua “parte portadora”). Tais temas emergem sempre como uma das demandas mais importantes nos grupos de apoio para mulheres portadoras, que se somam às dificuldades de sobreviver com falta de dinheiro, emprego e sofrendo discriminação (Tunala et al., 2000; Paiva et al., 1998). Do consumidor ao sujeito-cidadão Os fatos conhecidos sobre o impacto da estrutura sócio-econômica e da exclusão, da pobreza e da raça, que afetam indivíduos imersos numa sociedade desigual como a nossa (Parker, 2000), estão ausentes do conjunto de conhecimentos valorizados nos treinamentos de profissionais, nas informações priorizadas como centrais nos programas de prevenção e aconselhamento. Estes fatos são menos considerados na análise de como estão organizados esses serviços de atenção aos portadores do que poderiam, deixando de iluminar o caminho para possíveis inovações. Sabemos que consensos sobre como medicar os pacientes, rapidamente passados numa atitude “receitadora”, que modelos prontos de como se comportar, ou o marketing de preservativos pagos com dinheiro público (e não pela indústria que lucra com eles) não têm sido suficientes para produzir as mudanças que ainda precisamos (Baptistella Nemes, 2000; Teixeira et al., 2000). Para superar a visão de clientes consumidores de serviços e produtos (medicação ou preservativos) e incorporar a visão de sujeitos da adesão (ao preservativo ou à medicação) precisamos entender que o consumidor é apenas uma das faces do cidadão. A história das respostas que temos dado à epidemia e das idéias em disputa na era da globalização nos mantém ambíguos sobre como definir o indivíduo participante das ações de prevenção e cuidado. Indivíduo aqui definido simplesmente como “a pessoa humana considerada quanto a suas características particulares, físicas ou psíquicas” (Aurélio). Embora se fale muitas vezes em promover “sujeitos e cidadania”, atua-se como se o cidadão fosse sinônimo do consumidor. O indivíduo pensado como consumidor é sujeito do direito de escolher e consumir o que existe formatado em outro lugar por algum produtor.
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Produtor de idéias e valores disseminados pela mídia, por instituições religiosas, educacionais, por serviços de saúde. Consumidor de serviços e produtos. Um indivíduo que tem direitos de consumidor e quer virar sujeito do consumo passa a ser objeto de uma “educação bancária” (Freire, 1989), na qual um conjunto de informações definidas como relevantes pelo educador (produtor) são “depositadas” naquele que deve consumi-la. Ou é um cliente de oficinas e grupos de apoio organizados para “modelar” novos comportamentos e rever práticas definidas a priori como pouco saudáveis. O consumidor deve aprender a usar adequadamente os produtos (preservativos, scripts de sexo seguro, medicação) e conseguir realizar os comportamentos que devem ser treinados. O pressuposto, mesmo que inconsciente, é de que o produtor sabe o que é mais adequado e aceitável para “todos”, e age com a pressa e boa intenção de quem não quer correr o risco (público) de que o consumidor não realize o que se espera dele. E escolhe o meio (que funciona como “mídia”, “estratégia de marketing”) que trata de vender essa idéia, produto ou comportamento. Consumidor é o paciente objeto da manipulação clínica que pretende olhar o portador apenas como portador, ou seja, vai tratá-lo pela parte, numa organização do atendimento que abre espaço apenas para entregar ou avaliar o efeito da receita do remédio para tratar da infecção, garantindo que “todos” entendam as tomadas, como nos manuais de uso dos demais produtos distribuídos no mercado. É um indivíduo portador de alguma deficiência – falha imunológica, de informação, de habilidades - que deve ser tratada, suprida, treinada. Quantas vezes temos chamado as ações de prevenção primária e secundária que iniciamos de “intervenção”? O dicionário Aurélio a define como “ato de intervir, meter-se de permeio, vir ou colocar-se entre, ingerir-se, interpor sua autoridade…” Quem não pode ou não consegue ter acesso ao consumo dos produtos, não consegue ter acesso aos serviços, não consegue realizar as propostas, ou não quer consumi-las, fica fora, não participa da interação, do debate, não tem acesso ao aconselhamento, à oficina. Ou se sente fatalisticamente impedido, na maioria das vezes acusado e culpado. Nesta perspectiva, desigualdade vira exclusão, naturalizada, e os defensores radicais desta concepção de indivíduo naturalizam e essencializam a exclusão: “sempre existiram e existirão excluídos”. Quem trabalha com uma outra idéia de indivíduo, o sujeito-cidadão, encara sua proposta como ponto inicial para uma vívida interação e não um produto acabado. Uma proposta a ser negociada, adaptada, comunicada e não imposta ou ordenada. Espera-se que o indivíduo-cidadão se relacione, seguindo um movimento de desconstrução e reconstrução, de apropriação coletiva e individual de propostas. Propostas de governos, líderes comunitários, acadêmicos, mídia, provedores de serviços, propostas de prevenção. Sente-se 2 “no direito de ter direitos e de criar direitos” . O indivíduo-cidadão compartilha direitos e responsabilidades como alguém que se pensa como parte de um contexto maior, sobre o qual exerce influência, colocando-se como agente e sujeito de suas ações. É estimulado a progredir, melhorar sua qualidade de vida, ao mesmo tempo em que se pensa como parte de uma comunidade mais ampla (nação brasileira, grupos de afetados pela Aids, pobres, negros, os de mesma opção sexual). Nesta perspectiva, lida-se com a
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AYRES, J. R. Comunicação Pessoal, Reunião da Equipe ECI/BRASIL - São Paulo. jun. 2000.
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3 Em inglês, o termo adherence tem sido usado na maioria dos artigos sobre adesão ao tratamento como sinônimo de compliance, embora alguns autores façam distinção entre os dois termos que é interessante para esta discussão. Adherence reflete uma atitude do indivíduo em face da medicação prescrita, isto é, o indivíduo segue a prescrição porque o deseja, enquanto compliance reflete uma atitude de consentimento em relação ao médico para tomar a medicação. Adherence representa o fato de um indivíduo seguir uma determinada prescrição, enquanto “compliance” é uma avaliação disso (Teixeira et al., 2000).
desigualdade sempre pensando em ampliar os beneficiários, em como incluir. A desigualdade não é natural, é socialmente construída e pode ser desconstruída e superada, coletivamente. Podemos, certamente, pensar em superar o impacto da desigualdade e da exclusão enraizados numa idéia de indivíduo ou noutra. O formato das ações, as maneiras como nos relacionamos com as pessoas e situações de interação serão, contudo, radicalmente diferentes, tanto nas ações nos níveis mais estruturais ou programáticos como nos espaços face a face que querem apoiar os indivíduos em suas escolhas da vida cotidiana. Do ponto de vista do indivíduo-consumidor, os direitos de trabalhadores, de homens ou mulheres, direitos sociais e econômicos, de fé ou culturais, caem num buraco negro da conquista individual, de empoderamento sobre o outro, empoderamento pensado como compensação “hidráulica”, da auto-estima percebida como resultado da vontade individual, vontade que permanece inconsciente da dependência do contexto coletivo: Use camisinha! Tome a medicação corretamente! Acredite que vai conseguir! Seja eficaz! Aumente a sua auto-estima! (Paiva, 1996). Desejos são transformados em objetivos de consumo ou direitos do consumidor que reclama do engodo da mercadoria, mas não pode se propor a inventar “o inédito viável”, como diria Paulo Freire (1989). Para os pobres e excluídos sobra o best attainable care (a saúde “possível” para pobres), restam os direitos à saúde e educação com a qualidade “possível”. Sobra a prevenção porque proíbem os países em desenvolvimento de sonhar com o tratamento - aquele que é acessível, entretanto, às elites de qualquer país, que são muito mais solidárias entre si do que com seus conterrâneos, num mundo em que uma determinada forma de globalização tem hegemonia, da África às Américas. Do ponto de vista do indivíduo-cidadão, estaremos pensando na “educação libertadora”, conscientizadora e emancipadora, politizada, na “adesão” (adeherence e não compliance)3 , na solidariedade social, no atendimento centrado nas equipes multidisciplinares e não no clínico, nos grupos face a face e comunitários mais politizados. Estaremos sempre inventando movimentos sociais que transformem mentalidades, contra a discriminação e o sexismo, pela afirmação positiva que celebra a diversidade, a comunicação, a ação solidária, que desnaturalizem a injustiça e a desigualdade ou iniqüidade. Iniciativas que afirmem identidades políticas positivas que consigam se comunicar e fazer alianças, e, como no caso recente da discussão sobre patentes liderada pelo Brasil, até disputem espaço no cenário internacional para uma visão de saúde coletiva, pública e decente para todos. As iniciativas no campo da Aids que ousaram “criar direitos”, por exemplo, obrigando o governo a fornecer medicação, estimularam as mais recentes respostas de servidores em laboratórios públicos que organizaram a capacidade para produzir a medicação anti-HIV e em seguida, somaram no movimento social que depois colocou o governo negociando quebra das patentes ou dos preços internacionais (Passarelli, 2001). Com a resposta construída durante anos, criaram-se ilhas de cidadania que dependeram da progressiva organização dos afetados e da resposta nos programas nacionais e estaduais de DST/AIDS. Os programas de Aids são uma exceção no país, mas demonstram que saúde pública de melhor qualidade é possível. O desafio de sustentar e ampliar para mais gente e para outras áreas da saúde o sonho realizado é um estímulo e desafio para a criatividade cidadã,
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dificilmente ocorreria à mentalidade consumidora. O consumo sem independência ou questionamento de ordens injustas, manterá a exclusão naturalizada, ou as dificuldades do processo alienadas do contexto em que se dão: ordenadas por uma desigualdade de sexos e gêneros, de etnias e diferenças de fé, ordenadas por uma visão adultocêntrica ou marcadas por um olhar de classe. Politizar os grupos psico-educativos e os grupos de apoio Espalhadas em várias regiões do planeta, várias experiências têm desafiado o contexto sócio-cultural, o contexto psicossocial em que vivem as pessoas mais vulneráveis ao HIV, formando multiplicadores para discutir as normas culturais para os gêneros (Unaids, 1999), aumentando a consciência da vulnerabilidade social, e capacitando-os para serem agentes de sua própria saúde, aumentando sua habilidade de comunicação com parceiros ou de reivindicação por serviços de saúde. Os estudos sistemáticos dos programas educativos, especialmente os conduzidos entre jovens (Unaids, 1997), têm enfatizado que os programas que usam uma linguagem simples e ensinam as pessoas a se proteger de fato, mostrando passo a passo como se usa um preservativo e outras formas de proteção, como carregar uma camisinha na bolsa, comunicar-se com o parceiro ou no balcão da farmácia, como contar com o apoio da família e do grupo de pares, são os que garantem melhores resultados. Abordagens semelhantes e bem sucedidas são encontradas em várias experiências que buscam promover a adesão à medicação (Teixeira et al., 2000). Essas iniciativas dependem bastante de atividades em pequenos grupos, chamados convencionalmente de “oficinas” (workshops), em geral uma proposta de educação dialógica. Os ativistas das oficinas, inclusive das primeiras e inovadoras respostas das comunidades gays, organizadas em São Francisco e Nova Iorque e que idealizaram as primeiras “oficinas de sexo seguro”, reconhecem sua inspiração na tradição inaugurada por Paulo Freire, de educação como prática da liberdade. Essa “pedagogia do oprimido”, cunhada originalmente nos anos sessenta, participa até hoje em várias partes do mundo como tarefa-auxiliar dos movimentos sociais contra a pobreza e outras formas de exclusão social. Nessa tradição, ter acesso à educação é em si mesmo um passo crucial, mas apenas quando a linguagem popular (palavras e sintaxe) e os temas relevantes da vida dos oprimidos são valorizados. Só têm sentido e eficácia as ações educativas que conseguirem quebrar o silêncio e a invisibilidade social dos que, hoje, chamamos de excluídos. A partir da metade dos anos 1980, também na América Latina, quando se iniciou o processo de democratização, outras definições de opressão, além da pobreza, foram incluídas no cenário de iniciativas comunitárias e nãogovernamentais. Os sexos, o gênero (ainda no singular e no feminino) e a raça (negra) entraram no cenário político, principalmente pela via da política de identidade e de sua afirmação positiva: “mulheres” ou “feministas”, “homossexuais” ou “GLS/GLT”, “pretos”, ou “portadores do HIV” (e não “aidéticos”). Uma nova face da pedagogia libertadora surgiu com as “oficinas”, “grupos de apoio”, “grupos de vivência” etc. São espaços cujo objetivo é compartilhar experiências íntimas das dificuldades de viver
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aquela parte que se sente estigmatizada, excluída, e falam principalmente da opressão enraizada no corpo diferente ou menos poderoso (o feminino, o corpo jovem, os corpos não-brancos, os que expressam desejos diferentes, corpos doentes, deficientes). Organiza processos vividos em grupo para desconstruir velhos estigmas e reconstruir coletivamente identidades positivas. Muitos desses processos coletivos criaram iniciativas de luta contra a discriminação. Esta experiência foi incorporada em propostas de prevenção e assistência. Em outros textos temos chamado esse tipo de experiência, face a face e em grupos, de “grupos psico-educativos”, porque além da pedagogia desenvolvida para a educação libertária nos movimentos populares, incorporaram técnicas de psicologia de grupo, que vão do psicodrama aos grupos operativos. Na experiência brasileira, estas propostas que se ampliaram de educativas para psico-educativas foram inspiradas também pela produção latino-americana da “psicoterapia do oprimido”, mas marcadas pelas várias experiências norteamericanas resultantes da antipsiquiatria e da bioenergética, entre outras. Essas propostas de “vivências em grupo” geraram uma abordagem mais intersubjetiva que valoriza, por um lado, a noção de diversidade e criatividade pessoais, e por outro, a afirmação de identidades compartilhadas, em busca da emancipação pessoal e coletiva, da cidadania plena. Essas iniciativas se organizam a partir da decepção com o espaço público que constrói a democracia, virtual ainda para formas de viver a vida que fazem as pessoas se sentirem minorias excluídas, e que mantém sem a possibilidade de exercício dos direitos individuais grupos inteiros de cidadãos que têm opções e valores mais singulares. Estes espaços têm fortalecido o consumo de identidades prontas, e muitos grupos se organizam “glamurizando” identidades positivas e estilos de vida, condutas propostas por sua “vanguarda”, também como produtos de consumo. Mas podem radicalizar o isolamento quando permanecem por demais dogmáticos, quase corporativos. Afastam logo seus consumidores decepcionados com o fato de enfrentarem a realidade material e as hegemonias simbólicas “lá fora”, fora dos grupos e dos espaços protegidos, na dura vida real, na qual não conseguem realizar a identidade consumida e incorporada rigidamente ou a liberdade de ser diferente. A decepção com o consumido acaba por afastar o consumidor, empurra-o muitas vezes de volta ao velho fatalismo, ao silêncio ou ao disfarce sofrido. Mais raramente essa decepção tem criativamente se organizado numa ideologia, num conjunto de valores que conseguem se comunicar, proclamar que o que visa um interesse particular é direito, uma obrigação social. Recuperar a origem mais politizada dos grupos psicoeducativos estimularia o despertar do cidadão público adormecido no consumidor privado, aprofundando-os como um momento no processo de emancipação psicossocial. Politizar significa olhar além do nosso próprio espelho narcísico, recuperar o que nos une como excluídos por aquela parte que nos difere de “todos”, expandir uma identidade política defensiva para nos juntarmos a “toda a gente”, porque todos temos direito à liberdade de ser e sonhar. Politizar implica reconhecer que há muitos outros excluídos, diminuir a frustração individual com os limites impostos pelo contexto sócio cultural, superar a culpa de não seguir os guias para ser, culpa inconsciente das condições históricas que produziram maior vulnerabilidade e a exclusão. Dependemos, para a emancipação, de poder fazer história, de fortalecer alianças políticas - que são
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diferentes, como lembra Maria Betânia Ávila , de buscar apoio para “a minha luta”. Politizar nos obriga a cultivar mais plasticidade com as soluções definitivas e prontas, porque temos que nos comunicar e negociar. Politizar significa negociar soluções a dois, mais “poder de” e não ter mais poder “sobre” (Paiva, 1996). Quando esse tipo de espaço psicoeducativo acontece em programas de prevenção do HIV e da Aids, essa abertura à politização valoriza a sabedoria produzida na vida vivida que pode ser compartilhada também com os profissionais que coordenam a atividade, incentiva a busca conjunta de outros espaços solidários e soluções fora do escopo dos projetos e programas. Evita a cooptação pela gratidão a um serviço que sabemos ser de qualidade superior aos outros serviços de saúde no Brasil, e garante o controle social sobre a 5 qualidade e a ética do cuidado. Parafraseando Fernando Seffner , que se referia à escola pública em comparação com a privada, essas inovações só podem acontecer nos serviços públicos de saúde, onde a saúde não é ainda um produto de consumo, mas um direito. Nos serviços privados de saúde e educação a lógica é a do consumidor. Do ponto de vista subjetivo e individual, as ações que promovem também a cidadania e estimulam as pessoas a serem agentes de sua vida integral, sujeitos que escolhem e decidem, adaptam os guias e propostas a sua realidade e são apoiados neste caminho, permitem às pessoas refletirem e modificarem modos de vida, uma atitude ou seu comportamento, conscientes da teia que engendra sua vulnerabilidade. A conscientização do contexto permite a plasticidade de lidar com os obstáculos nos cenários mais vulneráveis, que depende do sujeito atento que constrói para si práticas aceitáveis em sua vida real, ou participa da mobilização de grupos e comunidades buscando diminuir as dificuldades compartilhadas no ambiente social em que vivem. Politizar diante de nós mesmos significa poder reconhecer novas necessidades, dar voz interna a desejos inéditos, realizar novas faces, atualizar personas, potenciais não vividos, virtualidades do vivido nunca antes considerados, reprimidos, estimulados ou emergentes diante de novas situações de vida ou mobilizados por contextos coletivos. É poder negociar e transformar nosso velho eixo de identidade, maleabilizar e mudar velhos papéis. Diante de nós mesmos, politizar é considerar nossas várias faces e necessidades conflitantes, ter plasticidade para realizarmo-nos em cada contexto intersubjetivo, possível somente a partir de uma radical consciência de alteridade, como ipseidade (Ayres, 2001). Todos podem se adaptar e aderir aos guias e sugestões, para além das receitas prontas, folhetos ou campanhas de mídia, ou da simples obediência às ordens genéricas de autoridades sanitárias. Já se descreveu como a comunicação sobre o uso de medicação anti-HIV não deve ser imperativa, e como a adesão ao coquetel é uma co-construção entre profissionais e pacientes (Paiva et al., 2000c; Baptistella Nemes, 2000). A adesão é um processo de aprendizado individual e coletivo de como lidar com as dificuldades materiais, sociais e individuais de “engolir” a medicação e com a condição de pessoa soropositiva, ou com as dificuldades de fazer sexo seguro nos contextos psicossociais que ampliam a vulnerabilidade. Não se resolve numa única conversa com o médico, por mais bem-intencionado, amigo e receptivo que seja, e ambos devem constantemente adaptar a “tabela” de uso da medicação e a necessidade do uso de camisinha a cada situação de vida, que continua mudando. Não se resolve
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Comunicação pessoal. In: SEMINÁRIO SEXUALIDADE E POLÍTICA NA AMÉRICA LATINA. 2001. Rio de Janeiro: ABIA, 2001.
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Comunicação pessoal. In: SEMINÁRIO PREVENÇÃO À AIDS: LIMITES E POSSIBILIDADES NA TERCEIRA DÉCADA. 2001, Fortaleza: ABIA, 2001.
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Comunicação pessoal, jun. 2001.
numa oficina ou grupo de apoio despolitizado. Um processo politizado, emancipatório, é sempre mais difícil, porque a arte da política é a arte da negociação, depende de paciência e tempo. Afinal, é impossível “consumir” mudanças prontas. O que pode nos parecer interessante para consumo não transforma a vida que levamos num passe de mágica e só mudamos a partir da realidade viva em que vivemos e não daquela vendida como cenário de produtos prontos para consumo, por mais bem embalados e intencionados. Não há “intervenção” que mágica e definitivamente proteja, cuide e assista. Só mudamos a partir do que somos: país desigual, prenhe de violência simbólica e estrutural, instituições pouco democráticas, e uma diversidade de comunidades e pessoas complexas (com seus mil lados buscando realização), mas criativas. Só mudamos a partir do que nossa história pessoal, necessariamente psicossocial, construiu como memória e ipseidade, identidade e alteridade, e também do sonho do que queremos ser e viver. Para isso precisamos contar com o processo, de atos de amor menos narcísicos e com o tempo, tempo, tempo… dos deuses mais lindos, como diria Caetano Veloso. Já em plena era de Aquarius, seria bom avançar uma das máximas da era de Peixes: “Amar ao próximo como a si mesmo”. Como diria meu amigo e mestre 6 João Frayze-Pereira : “Quem disse isso acabou crucificado”. Se nosso narciso não é capaz de amar quem não é espelho, como também diria o Caetano Veloso, na pressa de cuidar e proteger acabamos por crucificar também o outro, nos outros e em nós mesmos. Melhor amar ao próximo como ele é, onde ele está, aprendendo com ele. São Paulo, Primavera de 2001
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PAIVA, V.
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PAIVA, V. Sin soluciones mágicas: prevención y cuidado en VIH/SIDA y la emancipación sicosocial, Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.6, n.11, p.25-38, 2002. Este texto discute la necesidad de politizar los espacios sico-educativos y propone la noción de “emancipación sico-social” como una de las referencias para discutir más profundamente la operacionalización de la noción de vulnerabilidad en el campo de la prevención de nuevas infecciones por el VIH y de la organización del cuidado de los portadores. Reflexionando sobre acciones para la adhesión al preservativo y a los medicamentos, sugiere que la prevención debe superar su modelo pensado, en general, para ciudadanos “VIH negativos” y que se radicalice el continuo prevenir-asistir. Para esto, es urgente considerar los hechos acumulados en la investigación socio-cultural y sico-social en el planeamiento y organización de acciones de prevención y asistencia a los portadores incorporando, por ejemplo, las nociones de la construcción social opresiva de dos géneros, masculino y femenino. Superar la noción de “individuo-consumidor” (de servicios, programas educativos, preservativos y medicamentos recetados, de comportamientos y prácticas seguras que necesitan entrenamiento) estimulando la renovación de las acciones de prevención y cuidado. Trabajar con la noción de “individuosujeto- ciudadano”, participante de espacios sico-educativos que tienen en el horizonte la emancipación sico-social, puede renovar las acciones de prevención y cuidado integral en VIH y SIDA, incluyendo “todos” los brasileños según el contexto socio-cultural de “cada uno”, hombres y mujeres, positivos y negativos. PALABRAS CLAVE: VIH; Síndrome de inmunodeficiencia adquirida; apoyo social; educación en salud. Recebido para publicação em: 13/12/01. Aprovado para publicação em: 29/05/02
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Cultura médica e decisões reprodutivas entre mulheres infectadas pelo vírus da Aids Daniela Riva Knauth Regina Maria Barbosa Kristine Hopkins Marion Pegorario Regina Fachini
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KNAUTH, D. R. ET AL. Medical culture and reproductive decisions among women infected with Aids, Interface _ Comunic, Saúde, Educ, v.6, n.11, p.39-54, 2002. HIV+ pregnant women face a range of medical information, prescriptions and practices that transform this period into a unique situation relative to previous pregnancies and experiences. This article tries to show which are the factors that affect HIV+ pregnant women’s reproductive choices, especially as regards type of delivery and the decision on feminine sterilization adopted, as well as their implications. We present data from a study of 60 women, interviewed in the cities of São Paulo and Porto Alegre. Testing positively for AIDS changes a woman’s perception of childbirth, so that it becomes a medical prescription; her preferences take second place. Furthermore, the type of health service in which these women receive prenatal care appears to be a crucial factor, both as regards the type of delivery the woman desires and concerning whether she realizes her preference or not. The fact that these women feel that their childbirth preferences are determined by medical prescription, being therefore largely independent of their “real” desires or previous experiences, cause many women to view the HIV+ positive birth experience as more difficult than previous deliveries or worse than was expected. KEY-WORDS: Contraceptive behavior; reproductive medicine; Acquired immunodeficiency syndrome; delivery. As gestantes infectadas pelo vírus da Aids defrontam-se com um conjunto de informações, prescrições e práticas que tornam este período particular em relação a outras gestações e experiências. O presente artigo busca evidenciar os fatores que condicionam as escolhas reprodutivas das gestantes HIV+, em especial no que se refere ao tipo de parto e decisão por esterilização feminina adotado, bem como suas implicações. Os dados apresentados resultam de uma pesquisa desenvolvida nas cidades de São Paulo e Porto Alegre, onde foram entrevistadas sessenta mulheres. A condição de soropositividade para o HIV faz com que o parto seja percebido, pelas gestantes, como uma prescrição médica, deixando o desejo em segundo plano. Mas, além deste fator, o tipo de serviço ao qual a gestante encontra-se vinculada aparece como determinante, tanto para a indicação fornecida como para sua concretização ou não. O fato das expectativas relacionadas ao parto serem determinadas por uma prescrição médica, pouco dependente da vontade ou experiências anteriores, faz com que para muitas mulheres esta experiência seja percebida como mais difícil que os partos anteriores ou pior que o esperado. PALAVRAS-CHAVE: Comportamento contraceptivo; saúde reprodutiva; Síndrome de Imunodeficiência Adquirida; parto.
Professora do Departamento de Medicina Social, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, UFRGS; Pesquisadora do Núcleo de Pesquisa em Antropologia do Corpo e da Saúde (NUPACS/UFRGS). <knauth@portoweb.com.br> 2 Pesquisadora do Núcleo de Estudos Populacionais (NEPO), Universidade Estadual de Campinas, UNICAMP; Pesquisadora do Centro de Referência para Aids, Secretaria Estadual de Saúde, São Paulo.<rbarbosa@nepo.unicamp.br> 3 Pesquisadora Associada, Population Research Center, Universidade do Texas, Austin.. <khopkins@prc.utexas.edu> 4 Assistente de pesquisa do Núcleo de Pesquisa em Antropologia do Corpo e da Saúde (NUPACS); Técnica em pesquisa do IBGE. <mcpeg@terra.com.br> 5 Assistente de pesquisa do Núcleo de Estudos Populacionais (NEPO/UNICAMP).<rfacchini@uol.com.br> 1
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Os dados sobre a epidemia de Aids no Brasil indicam claramente o crescimento do número de mulheres infectadas. Estas mulheres, por serem jovens e encontrarem-se em pleno período reprodutivo, colocam em cena o problema da transmissão do vírus ao bebê. Diversas medidas já foram acionadas a fim de reduzir a taxa de transmissão vertical (mãe-bebê), tais como o oferecimento regular do teste anti-HIV durante a gestação, o uso de medicação específica para as gestante e recém-nascidos e a disponibilização de exames de contagem de carga viral e CD4. Outra medida que tem sido preconizada pela literatura internacional para a redução da taxa de transmissão vertical é a cesariana eletiva6 . Este procedimento, contudo, não tem sido aplicado da mesma forma por todos os serviços que atendem gestantes HIV+, pois questionam-se diversos aspectos como relação custo/ benefício e maior morbidade associada à cesariana. Dessa forma, alguns serviços preconizam uma avaliação que leva em consideração o índice de CD4 e carga viral da gestante e outros consideram exclusivamente as indicações clínicas para a realização de uma cesariana (posição/tamanho do feto, falta de dilatação, tempo de gestação etc.). As gestantes infectadas pelo vírus da Aids confrontam-se, assim, nos serviços de saúde, com um conjunto de informações, prescrições e práticas com as quais necessitam, de alguma forma, relacionar-se. Elas precisam aprender a utilizar adequadamente a medicação (tanto a sua como a do bebê), realizar os exames solicitados, aceitar o tipo de parto indicado etc. Mas se muito se sabe sobre os aspectos clínicos da transmissão vertical do HIV, pouco sabemos ainda sobre como as gestantes vivenciam este período. O presente artigo pretende contribuir para esta discussão refletindo, a partir de dados de pesquisa, sobre os fatores que condicionam as escolhas reprodutivas das gestantes HIV+, em especial no que se refere ao tipo de parto e método contraceptivo adotado, bem como a respeito de suas implicações. A pesquisa O material que fundamenta esta discussão é resultado de uma pesquisa desenvolvida com gestantes infectadas pelo vírus da Aids em duas cidades brasileiras, São Paulo e Porto Alegre. Foram entrevistadas no total sessenta mulheres, distribuídas em três tipos distintos de organização da atenção ao pré-natal e ao parto, todas elas vinculadas à rede pública de assistência: 1) serviço pré-natal de referência para Aids ligado à universidade, com referência garantida para o parto; 2) serviço de pré-natal referência para Aids próprio do SUS e referência garantida para o parto; 3) serviço de prénatal especializado para gestante soropositiva sem referência garantida para o parto. Tanto as duas cidades como os tipos de serviços foram escolhidos por terem, teoricamente, diferentes posições em relação ao tipo de parto e contracepção. A metodologia utilizada foi a qualitativa e os dados foram coletados por meio de entrevistas semi-estruturadas. A fim de poder melhor avaliar a correspondência ou não das expectativas femininas em relação à gravidez, tipo de parto e método contraceptivo adotado, cada mulher foi entrevistada
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A este respeito ver, entre outros, The European Mode of Delivey Collaboration, 1999 e The Internation Perinalt HIV Groupe, 1999.
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O projeto maior intitula-se Esterilização, cesariana e escolhas contraceptivas, ver Potter et al., 2001a e b.
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em dois momentos diferentes: durante a gestação e após o nascimento do bebê. Buscou-se, assim, analisar os fatores que concorrem para a concordância ou não das expectativas primeiras da gestante com a realidade por ela vivenciada. Esta pesquisa faz parte de um projeto maior7 que busca compreender as razões do aumento surpreendente, verificado no Brasil, do número de partos cirúrgicos e de esterilização feminina. O objetivo deste projeto mais amplo é investigar a demanda das mulheres pelo parto cesáreo e pela esterilização e a influência da performance dos médicos nesta opção, sobretudo quando estas duas práticas encontram-se vinculadas. Foram excluídos deste projeto os serviços especializados em gestações de risco e, neste sentido, o sub-projeto que embasa o presente artigo pretende dar conta de um grupo específico de gestantes que foram propositadamente excluídas do projeto maior. Os diferentes níveis que interferem nas decisões reprodutivas Refletindo sobre os dados dos grandes estudos quantitativos desenvolvidos na Europa nos últimos anos sobre comportamento sexual da população, Bajos e Marquet (2000) sugerem a necessidade de romper com uma perspectiva de avaliação de risco centrada unicamente nas decisões individuais. Segundo estes autores, é fundamental desenvolver uma perspectiva relacional do risco, visto que as relações e os significados são construídos em diferentes contextos e níveis sociais. Neste sentido, eles propõem, a partir do trabalho de Van Clampenhoudt et al. (1997), contextualizar as decisões e práticas dos indivíduos em quatro níveis: 1) o contexto institucional e macro-social; 2) o contexto mais limitado do relacionamento social (the relationship´s close social context); 3) o contexto da própria interação entre os parceiros; 4) o nível intrapessoal. O primeiro nível seria o mais estrutural, no qual se enquadrariam os aspectos sócio-econômicos mais amplos, mas também aqueles de ordem valorativa como, por exemplo, o gênero. O segundo seria um nível intermediário, que poderíamos pensar como o contexto sócio-cultural local que determina um conjunto mais restrito de valores e significados. O terceiro nível seria aquele no qual se situam os relacionamentos interpessoais propriamente ditos, isto é, as relações sociais. Poderíamos pensar este nível, utilizando uma metáfora interacionista, como “a cena” que se desenvolve entre os diferentes personagens em questão, em que cada um tem um papel que procura desempenhar em conformidade com as expectativas dos demais. Por fim, o último nível seria aquele mais restrito às características propriamente individuais, tais como personalidade, história de vida, experiências etc. Os próprios autores reconhecem que esta é uma divisão exclusivamente analítica, pois na prática todos os níveis encontram-se extremamente interligados. Eles estão o tempo todo vinculados, determinando uns aos outros. Ao pensarmos a reprodução no contexto da Aids é fundamental contextualizarmos, primeiramente, o valor atribuído pela cultura à
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maternidade. No caso específico deste trabalho, por tomarmos mulheres, em sua grande maioria, pertencentes ao que poderíamos denominar de grupos populares, é necessário reconhecer, conforme vários estudos demonstram (Bilac, 1978; Duarte, 1986; Fonseca, 1985; Salem, 1981; Sarti, 1996) a importância conferida por este segmento social à família. Esta constitui um dos principais valores do sistema simbólico do grupo e, como tal, é um elemento fundamental de determinação da identidade social8 . Neste sentido, as decisões a respeito da procriação - mesmo no caso especifico das mulheres portadoras do vírus da Aids – aparecem sempre permeadas pelo valor-família9 . Desse modo, analisando as decisões reprodutivas no contexto das gestantes HIV+, em especial aquelas relacionadas ao tipo de parto e contracepção, parece-nos bastante adequado pensar estes diferentes níveis na medida em que nesse contexto específico estão em questão aspectos que ultrapassam, em muito, o nível de decisão individual. Assim, se num primeiro momento devemos considerar a importância da cultura na valorização da maternidade, outros níveis parecem agir nas decisões a serem tomadas pelas mulheres durante e após a gestação. Estamos falando de mulheres que devem “optar” por um tipo específico de parto e método contraceptivo levando em consideração fatores que não dizem respeito apenas à vontade individual ou experiências passadas, mas devem contemplar as possibilidades maiores ou menores de transmissão do vírus ao feto, as especificidades dos serviços de pré-natal e de parto, o conhecimento médico do momento, entre outros fatores. No caso das gestantes infectadas pelo vírus da Aids, é fundamental levarmos em consideração o contexto institucional no qual estas gestantes estão inseridas. Pois se no caso das gestantes em geral poderíamos supor que as decisões reprodutivas se dão, em especial, no nível do relacionamento entre os parceiros e no nível intrapessoal, no caso das gestantes HIV+ o contexto institucional parece assumir um peso maior. Gostaríamos de sugerir, assim, que para essas mulheres as decisões reprodutivas são, antes de tudo, um problema médico e que embora elas possuam experiências e desejos neste sentido, estes encontram-se submetidos, em última instância, à prescrição médica e à conduta adotada pelo serviço ao qual essas mulheres estão vinculadas. A fim de explorar esta hipótese analisaremos os dados coletados entre as gestantes, buscando confrontar as expectativas iniciais, o tipo de parto realizado e a escolha contraceptiva das mulheres, com o tipo de serviço no qual fizeram o acompanhamento pré-natal, bem como a cidade na qual foram captadas. Entre o desejo e a prescrição Nas entrevistas realizadas durante o pré-natal aparece de forma bastante evidente que as expectativas das mulheres em relação ao tipo de parto estão marcadas, primeiramente, pela condição de soropositiva para o HIV e, em segundo lugar, pelo tipo de serviço pré-natal freqüentado. O primeiro elemento é o que explica o fato de que mais da metade das entrevistadas
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8 Conforme Duarte (1986, p.175), “o Valor-Família abarca um certo número de qualidades distribuídas entre seus membros e que lhe concedem sua preeminência enquanto foco de identidade social”. 9
Para uma discussão sobre Aids entre mulheres ver, entre outros, Barbosa & Villela, 1996; Knauth, 1997; Parker & Galvão, 1996.
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tenha mencionado, quando questionadas sobre o tipo de parto que esperavam, a cesariana. As principais justificativas dadas para a cesariana são a redução do risco de transmissão do vírus ao feto, indicação da equipe de saúde em função do HIV e, ainda, maior possibilidade de obter uma ligadura tubária. Outros motivos tais como experiências negativas com parto normal, medo da dor ou algum outro “problema de saúde” (cesarianas anteriores, pouca dilatação etc.) também são referidos; entretanto aparecem, em geral como argumentos secundários. Os depoimentos abaixo ilustram estas expectativas: Esse aqui eu vou fazer cesárea, porque também evita o risco da criança pegar o vírus, né? (...) Evita também dele... nascer e ficar contaminado. Isso foi só no hospital, no começo da gestação eu perguntei pro Dr.Paulo. Bem no comecinho eu já perguntei pra ele: “E agora como é que eu faço? Quando a mãe ganha normal sai sangue aquela coisa toda, né?” (...) Ai ele me disse que não tinha problema, que eu podia optar pela cesariana, né? (...) Então desde o momento que eu fiquei gravida, eu já sabia que ia ser cesariana. - É? E como é que.. tu aceitaste isso? Como é que foram os teus outros partos? - Tudo normal, já cheguei no hospital ganhando. (...) Fácil, fácil, fácil! - Como é que tu vê isso, agora tem que fazer uma cesárea, depois dessa experiência de parto normal? - Ai, tomara que não doa, porque parto normal dói pra caramba, nega! (riso) (...). Eu nunca fiz cesárea, eu não tenho experiência de cesárea ainda, né? Mas eu acho que se for para o bem do nenê vale a pena. Fica com um cortezinho na barriga, tomar uma anestesia. Ah, eu acho que vale a pena! (...) O importante é que a criança nasça com saúde. Não te incomodando depois... porque eles... assim, eles incomodam... pra fazer é ótimo, maravilhoso! Olha, eu não sei se é uma boa, porque eu nunca tive, mas eu queria ter uma cesárea.(...) É, porque é menos chance de contaminação e outra que eu também já tô querendo operar, já faz tempo, né, não quero mais ter filhos, né. Aí, aproveitava, já, e fazia as duas coisas junto.
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Assim, como se pode perceber, para grande parte das entrevistadas, especialmente para aquelas que manifestam a expectativa de um parto cesáreo, não são as experiências prévias positivas ou negativas o fator determinante na definição do tipo de parto “desejado”, mas a saúde do bebê e a chance de realização da laqueadura. A diminuição do risco de transmissão vertical é acionada, muitas vezes, como justificativa para a cesariana e também para a esterilização, isto é, uma oportunidade a ser Linfócito “helper” aproveitada para obter as duas coisas juntas. A preferência pela cesárea encontra-se claramente vinculada ao discurso médico, ou melhor, a uma interpretação deste discurso. Isto faz com que, muitas vezes, a cesariana seja percebida como a única alternativa possível, como expressa uma entrevistada ao ser questionada a respeito das razões da escolha da cesariana:“Todos [partos] tem que ser cesárea, pra não contaminar o bebê, né”. Esta vinculação entre indicação médica e cesariana faz com que esta apareça relacionada a um sentimento de medo ou então contrariando um desejo inicial. A Claudete. disse que lá no [determinado hospital], eles fazem mais cesárea. (...) Que foi comprovado num estudo que a cesárea...tem menos risco. Mas ela disse, que não, que não seja parto normal, que aí é parto induzido. (...) Agora eu já tava assim... quando me disseram que podia ser cesárea eu fiquei com medo, né? Porque eu nunca fiz cesárea, né? Ai, eu até fiquei com medo. Ai, Deus me livre se eu chego a pegar uma infeção hospitalar, eu sei que eu não posso pegar nada, né? Uma infecção, alguma coisa, né? Mas daí elas explicaram que é só ter cuidado, fazer a higiene direitinho, que não... que não tem problema nenhum... A enfermeira Marta me disse que provavelmente eu vou fazer uma cesariana. Por causa das novas descobertas agora, né? (...) De redução da possibilidade, né! (...) E essa, provavelmente, vai ser cesariana, né, pelo o que ela me falou. (...) Eu preferia normal, né! (...) Eu, pra mi esse parto normal foi super bom, foi super rápido, foi bom. Minha recuperação foi ótima. No dia que eu voltei pra casa eu já queria lavar roupa no tanque.
O fato de a cesariana ser percebida enquanto prescrição médica faz com que o desejo seja colocado em segundo plano, pois mesmo as mulheres que expressam a vontade de ter um parto normal relativizam este desejo em função da indicação médica. Não há, entretanto, uma orientação homogênea dos diversos serviços que atendem gestantes HIV+ em relação ao tipo de parto. Esta diferenciação de conduta é percebida também pelas gestantes que confrontam as diferentes informações recebidas, provindas de diferentes contextos, como evidencia a fala de uma entrevistada:
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- Eu conversei... com ela [médica] hoje, que eu pensei que fosse cesariana por conta da... do problema, né, do HIV. Mas não necessariamente, vai depender muito da posição que o neném estiver, essas coisas, mas eu estava mais querendo que fosse uma cesárea. - E você preferia, na verdade, uma cesárea? - Preferia, preferia. Até porque tem alguns comentários, que os médicos fazem... preferem fazer cesárea porque tira o neném mais rápido, né? Evitar muita contaminação, mas o pessoal me falou hoje que vai depender muito, né, da... (...) Acho que não foi nem ela [médica], foi com algum funcionário daqui, que eu conversei com tanta gente, né, que às vezes eles fazem cesárea até pra evitar a contaminação. Acho que varia também... de cada médico, né? Cesárea que é uma coisa mais rápida, do que ficar... que trabalho de parto você fica horas e horas ali, né? Então, mas pelo que ela [médica] me falou, não... não precisa necessariamente ser cesariana.
Ou ainda, como refere outra entrevistada ao confrontar informações distintas dadas por profissionais da mesma equipe: Ah, não, eu... a doutora Paula falou que é melhor eu ter normal... a doutora Paula! Eu confundo, tanto médico... A doutora Débora falou que é melhor, que os meus parto são rápido. E porque eu posso sofrer, porque eu tenho o Daniel [filho caçula] que é pequenininho, e o... o... a... a cesárea ela é ruim. Porque o Daniel vai querer colo, muitas coisas que eu não... que eu faço num parto normal eu não vou poder fazer na cesárea. Aí eu falei pra ela: “Graças a Deus”, porque a cesárea, pelo que eu já vi, eu acho horrível. Mas eu falei pra ela: “Doutora Débora., lá a Assistente Social, quando eu fui pegar minha carta, ela falou assim: “Renata, dá um jeitinho de você pegar uma carta com a doutora, outra, sua médica lá onde você faz tratamento, pra você fazer o parto... é... a cesárea, porque a cesárea o neném corre menos risco”. (...) Por... não, por causa do... do vírus. Ela disse, que é bem melhor pra cri... pro neném. Mas ela disse assim: “não compensa você fazer, porque o seu parto é rápido, você não... não sofre”. O que é realmente é verdade.
Há também, por parte das mulheres, uma interpretação do discurso médico, que é acrescida de informações de diferentes fontes, vindas do próprio contexto dos serviços de saúde (conversas na sala-de-espera, consultas com outros profissionais etc.) e de experiências pessoais, tanto suas como de pessoas próximas. É assim que, por exemplo, o parto normal é percebido como tendo menos risco que a cesariana, visto que esta é compreendida como uma cirurgia e, portanto, aparece vinculada ao risco de infecção e ao medo da anestesia. A expectativa em relação ao parto passa ainda pelas possibilidades concretamente disponíveis. As mulheres acabam por conformar-se com sua
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inserção no sistema de saúde e sabem que a decisão sobre o parto está, em última instância, fora de seu poder e, em grande parte dos casos, fora mesmo do poder da equipe que a acompanhou no pré-natal. Este senso de realidade pode ser percebido claramente na resposta dada por uma das entrevistadas ao ser perguntada se já havia conversado sobre o tipo de parto pretendido com o médico do pré-natal: Tudo depende dos médicos de plantão... (...) Pra começo seria uma cesariana, aí depois como a carga viral deu baixa eles tavam tentando pra ver se deixariam parto normal, né. Mas agora surgiu um probleminha, né, mim e... por causa do sistema nervoso e eles tão achando que vai ser cesárea de novo. Então, né, parto normal já é quase descartado, porque os médicos... a Dra. e a enfermeira já disseram que não vai ser mais, mas tudo depende do pessoal de plantão que pegar na hora.
Assim, se por um lado, é a condição de soropositividade para o HIV que faz com que o parto seja percebido como uma prescrição médica, deixando o desejo em segundo plano, por outro, é o tipo de serviço ao qual a gestante encontra-se vinculada que determinará o desfecho final, isto é, a maior ou menor probabilidade de realização da própria indicação. A determinação da cultura institucional É precisamente em relação aos encaminhamentos referentes ao parto e contracepção que o papel assumido pelo tipo de serviço de pré-natal nas expectativas das gestantes fica mais evidente. Como já referido, quando o assunto é parto, a vontade das mulheres encontra-se condicionada à recomendação médica. Há, deste modo, uma correspondência entre a expectativa da gestante e o fato de o serviço ser mais ou menos incisivo quanto aos benefícios da cesariana. Esta influência do serviço pode ser percebida pelo tipo de argumento utilizado pelas mulheres para justificar suas preferências. É assim que, por exemplo, as gestantes dos serviços vinculados à universidade possuem, em geral, um discurso “mais técnico” enfatizando a diminuição do risco de transmissão vertical como justificativa para a cesariana. Em alguns casos, elas procuram incorporar as diferentes informações a que tiveram acesso, embora muitas vezes sem saber a lógica que as une a esta justificativa10 . É, diz que é, né. Não sei. Porque tem mais contato com o sangue da mãe, né. Mas não saiu ainda um parto seco, né, cesariana.... Eles... Eu não sei direito, né.... Faz a secagem da bolsa primeiro, não sei como, sei lá, depois é que faz o corte para tirar a criança. Eu não sei. A médica falou que o mais seguro é... parto cesariana. (...) Eu acho que cesariana, porque... tem mais como... evitar... o.... contato do... acho que do sangue com a placenta do nenê.
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10 Sobre a incorporação de categorias médicas ao discurso leigo ver Boltanski, 1984.
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Evita também dele... nascer e ficar contaminado. Isso ai ao foi só no hospital, no começo da gestação eu perguntei pro Dr. Bem no comecinho eu já perguntei pra ele: ”E agora como é que eu faço?” Quando a mãe ganha normal [parto] sai sangue, aquela coisa toda, né! Por isso que é maior [risco] realmente. Aí ele me disse que não tinha problema, que eu podia optar pela cesariana, né?
Bacilos de Koch
Por outro lado, a preferência pelo parto normal, que, na cidade de Porto Alegre aparece mais freqüentemente nas pacientes do serviço considerado como típico do SUS e, em São Paulo, encontra-se distribuída de forma mais ou menos equivalente entre os três tipos de serviço, aciona como argumento as experiências prévias positivas, a recuperação mais rápida e o medo da cesariana. O risco, nesta perspectiva, está vinculado à cirurgia – infecção, inflamação dos pontos, anestesia - e não à transmissão do vírus ao feto. Assim, as expectativas em relação ao tipo de parto não são determinadas apenas pela condição de soropositividade para o HIV, mas também pelo discurso e prática institucional e pela avaliação que as próprias gestantes fazem do contexto no qual encontram-se inseridas, isto é, pela maior ou menor possibilidade de alcançar suas expectativas. Entretanto, para além dos serviços percebe-se, claramente, que há a determinação do que poderíamos chamar de uma cultura médica local. Outros estudos (Potter, 1999; Hopkins, 2000) já demonstraram o quanto a formação médica e a cultura local são importantes para a posição assumida pelo profissional e pelos serviços de saúde em relação à esterilização cirúrgica. Este fator é também evidenciado pela distribuição desigual entre as diferentes regiões do país da prática de ligadura tubária, em que o Rio Grande do Sul aparece sempre com os menores índices. No caso das gestantes HIV+ aqui analisado, é esta cultura médica que explica as diferentes expectativas das entrevistadas de São Paulo e de Porto Alegre no que se refere à ligadura tubária. Pois se em ambas as cidades há um grande desejo por parte das mulheres pela cirurgia, a avaliação de sua viabilidade é bastante distinta nos dois contextos. Na cidade de São Paulo há a percepção de que os serviços tendem a facilitar e, por vezes, estimular, a realização da laqueadura, o que deixa as gestantes mais confiantes quanto à concretização desta expectativa, como expressam os depoimentos abaixo: É, vou com bastante dor, que é pra não chegar e ficar ainda no soro, ficar fazendo exame de toque. Assim, já chega, já ganha e pronto. Aí eu já espero dar aquela dor. Agora, esse aqui, não. Esse aqui vai ser diferente, porque a médica explicou pra mim, que eles tão querem fazer cesárea, pra poder fazer a laqueadura, né. Mas, se não der vai fazer normal e depois a laqueadura, né. (...) Então, me deixou alerta. Eu preferia fazer cesárea, porque já fazia uma coisa só. (...) Porque já fazia tudo de uma vez só, já fazia a laqueadura e tudo. Agora, o normal, não. Você vai ter que fazer o normal e depois voltar de novo pra fazer a laqueadura.
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- Ah, eu, por mim, queria ter normal. (riso) Porque todo mundo fala que o normal, a dor é na hora, depois passa. Da minha menina, não, a dor foi na hora, depois. Fui embora pra casa com dor, a operação não secava de jeito nenhum, demorou muito. - Mas, vai poder ser parto normal? - Não, vai ter que ser cesárea porque eu vou me laquear, né. Ainda assim eu perguntei se caso nascesse normal, se podia fazer a laqueadura. Aí, disse que podia operar depois de três meses, fazer a laqueadura, né. Sei lá, eles falam que é cesárea, se pudesse escolher, eu queria normal. Não, ela [médica] falou pra mim: “Olha você vai ser cesárea, eu vou te orientar mais, a gente vai conversar mais da próxima vez.” Mas ela [médica] me falou, ainda mais que eu falei pra ela que eu quero operar, né. Falei: “Não, eu quero operar, onde e com quem eu falo? Eu já quero resolver, já quero já ficar tranqüila.” (...) Porque aí já faz a cesárea depois já opera, tudo. Já que vai ter, faz tudo de uma vez só, né. Não quero mais ter filho, não.
Mas se em São Paulo não aparecem maiores restrições dos serviços em relação à laqueadura, em Porto Alegre as entrevistadas evocam diversos elementos que dificultam a obtenção desta cirurgia, tais como a pouca idade da gestante, o fato de que são poucos os hospitais e/ou profissionais que realizam este procedimento, a necessidade de que seja durante uma cesariana. Na percepção das mulheres, os serviços de saúde da cidade de Porto Alegre são pouco favoráveis à ligadura tubária e os profissionais, por sua vez, procuram postergar a decisão, passando para outro profissional, em geral o médico do plantão a responsabilidade por tal procedimento. É assim que apesar de manifestarem claramente o desejo de fazer uma cesariana na esperança de obter uma laqueadura, as entrevistadas de Porto Alegre possuem o entendimento de que esta será uma empreitada difícil - É mais perto e o Dr. Paulo diz que é melhor, porque ali já tem mais recurso né? Porque eu queira fazer desligamento. Mas ele disse pra mim que depende lá do... Do médico é! E depende dele, porque ele tem que tá lá pra assinar. Eu quero, porque eu pretendo fazer desligamento. - E se tu não conseguir fazer agora, o que tu vai fazer, tu pretende ter outro filho? - Não! Não, mas tendo ele ali eu faço desligamento, nem que seja na marra. Eu quero fazer, eu não quero mais... É, mas todo mundo diz que fazer ligamento tem que ter... ai, como é que se diz, tem que ter aquele problema de só fazer cesárea, daí eles fazem ligamento. Se eu ganho normal eu acho que não fazem. (...) E desse eu não... se for parto normal aí não dá daí [para fazer laqueadura]. Eu podia até pedir, né? Já que eu tenho esse problema [HIV], eu já podia, no embalo e já pedir, né?
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As mulheres possuem uma clara noção de que além de sua vontade, outros fatores influenciam a obtenção ou não da laqueadura. É consenso entre elas que um grande facilitador é a cesariana. Entretanto, enquanto que as entrevistadas de São Paulo indicam a possibilidade, oferecida em geral pelo próprio serviço, de realizar o procedimento em outro momento, para as gestantes de Porto Alegre esta possibilidade não está colocada. Na percepção dessas mulheres, se já vai ser difícil conseguir uma laqueadura durante o parto, pois mesmo no caso de uma cesariana será necessário acionar o argumento da soropositividade para o HIV, mais remota ainda serão as chances de obtê-la em outro momento. Até porque além do acesso ao serviço e da burocracia necessária, terão dificuldades em liberar-se dos encargos domésticos e de trabalho. Esta percepção faz com que muitas mulheres, apesar de desejarem uma laqueadura, não abordem esta questão durante o pré-natal. A frustração do desejo Considerando as expectativas anteriores e o tipo de parto realizado, temos que aproximadamente metade das entrevistadas conseguiu realizar o tipo de parto esperado. Entretanto, é interessante notar que muitas entrevistadas, mesmo aquelas que conseguiram realizar o tipo de parto que esperavam, avaliam negativamente a experiência. Os relatos abaixo ilustram esta avaliação: Eu queria que ela [filha] nascesse de 9 [meses], mas não deu pra esperar mais. Por que eu fiz um exame carga viral e o exame deu um pouco alto, né. E eu como tava tomando só um medicamento e era pra tomar dois, tava tomando um então teve um pouco mais de risco. Então ela foi tirada com 8 meses e foi uma cesárea, né. Eu gostaria que fosse parto normal como eu ganhei o meu guri, gostaria muito que fosse parto normal. Mas, tudo bem, ela veio bem, nasceu bem. Eu queria um parto normal. (...) É, o médico dizia que provavelmente era parto normal. Só que tudo dependia do resultado desse exame que eu fiz da carga viral. Aí como veio essa carga viral alta foi decidido que ia ser cesárea. (...) Eu preferia mil vezes o parto normal. Porque o parto normal eu vim pra casa e comecei a caminhar, foi bem melhor! A cesárea não. A cesárea eu ficava doída por dentro. Já me doía bastante tempo. Tinha bastante dor dentro da barriga porque foi aberto, né! Foi mais difícil pra caminhar tudo, né. E quando eu tirei os pontos ainda abriu um
HPV
pouquinho, não tava bem, né.
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Os outros partos foi normal, foi parto normal. (....) Foi mais demorada [a recuperação do último parto], porque de primeira, com os pontos, quando eu cheguei do hospital com os pontos eu já comecei batendo nela [filha mais velha] que ela me fez passar nervoso (...), já comecei passar nervoso. Eu já vi que o clima pra mim já ia ser de, como é que fala?... resguardo quebrado, né. Que o meu resguardo seria quebrado, de passar nervoso, e daí o médico disse que não podia passar nervoso, né, que eu não podia passar nervoso, mas que eu teria que ir em frente, passando nervoso ou não.
Parece que, para grande parte das mulheres, as expectativas iniciais em relação ao tipo de parto, definidas em grande parte em função da condição de soropositividade para o HIV, não correspondem à experiência do parto, tanto em razão desta mesma condição como em virtude de experiências anteriores e/ou outras expectativas. Dito de outra forma, as mulheres, embora “convencidas” de que a cesariana é a melhor opção, seja por reduzir os riscos de transmissão do vírus ao feto, seja por propiciar uma laqueadura tubária, acabam por interpretar a experiência do parto e pós-parto a partir de outras concepções e valores. Assim, se o desejo por determinado tipo de parto ou as experiências anteriores cedem facilmente diante dos argumentos médicos, sobretudo quanto avaliadas de uma perspectiva racional (por exemplo, ao utilizarem uma relação tipo custo/benefício) e durante a gestação, portanto com um certo distanciamento, o mesmo não ocorre quando o que está em questão é a avaliação da experiência. Os parâmetros do discurso médico, que até então serviam para balizar as expectativas em relação ao parto, parecem não dar conta desta prática. Ao falarem sobre seu parto e puerpério, as entrevistadas enfatizam as sensações corporais – recuperação mais difícil, dor - mas também os aspectos morais vivenciados11 - como por exemplo o nervoso, a quebra de resguardo ou ainda as situações de mau atendimento e discriminação dentro dos serviços de saúde. E nesta avaliação, as percepções anteriores e desejos são acionados como um dos elementos para explicar a negatividade da experiência. O fato de as expectativas relacionadas ao parto serem determinadas por uma prescrição médica, que pouco depende da vontade ou experiências anteriores, faz com que para muitas mulheres esta experiência seja percebida como mais difícil que os partos anteriores ou pior que o esperado.
11 Para uma discussão mais aprofundada a respeito da concepção físico-moral acionadas pelos membros dos grupos populares no Brasil ver Duarte, 1996.
Buscando na cultura o sentido para a prevenção Ao deslocarmos o eixo de análise dos comportamentos individuais para o contexto social mais amplo12 diversas questões emergem. No caso específico que estamos analisando, passamos a perceber que as decisões reprodutivas não se dão apenas na esfera privada, mas são condicionadas por um conjunto de fatores institucionais e culturais que ultrapassam os desejos e experiências individuais. Por outro lado, é muito difícil distinguir as
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12 Para uma crítica aos modelos de prevenção centrados no indivíduo ver, entre outros, Parker, 1994.
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fronteiras entre os condicionantes de ordem institucional e aqueles de ordem cultural, visto que há, entre eles, um movimento de dupla determinação, pois ao mesmo tempo que a instituição determina limites de ordem concreta, a cultura os justifica e lhes dá significado. Os desejos e práticas individuais situam-se neste emaranhado e se constróem nesta relação, isto é, eles não existem descolados do contexto no qual são produzidos e ao qual se referem. É interessante notar, todavia, que o contexto de significação acionado pelos indivíduos pode ser, em determinada situação, um contexto macro-social ou institucional e, em outra, um contexto mais local, permeado por valores e concepções específicas. No caso das gestantes infectadas pelo HIV, por exemplo, percebese claramente a influência do contexto institucional na construção das expectativas em relação ao tipo de parto e à ligadura tubária. Por outro lado, quando o que está em questão é a avaliação do parto, são as experiências anteriores e sensações físico-morais que darão significado à experiência. Retomando Bajos e Marquet (2000), a multiplicidade de determinações ou de diferentes níveis, que interferem no comportamento individual, exige que também tenhamos uma perspectiva multidimensional. A ação em apenas um dos níveis, embora possa até produzir resultados concretos como, no caso em análise, a redução das taxas de transmissão vertical do HIV, não basta para dar significado ao conjunto das percepções e práticas dos indivíduos. Assim, como vimos, o fato de as mulheres deixarem em segundo plano suas experiências e desejos em função de uma recomendação médica, não impede que avaliem sua experiência a partir de outros valores e mesmo que, em outro momento, coloquem em cheque o próprio discurso médico como, por exemplo, quando não seguem a recomendação de uso do preservativo com o parceiro ou ainda quando pouca importância dão ao acompanhamento médico e uso de medicação no pós-parto. Podemos nos questionar ainda o quanto esta não correspondência entre expectativa e experiência pode influenciar os comportamentos futuros. Será que estas gestantes que “abriram mão” da vontade de ter um parto normal e avaliaram negativamente a experiência da cesariana terão a mesma disponibilidade em aceitar as recomendação médicas? E como se comportarão aquelas mulheres que, em função do contexto institucional e da cultura médica local, não conseguiram realizar a desejada laqueadura tubária, mesmo tendo se submetido a uma cesariana, condição tida como facilitadora? Será que estas recorrerão a uma nova gestação como mais uma tentativa de conseguir a cirurgia ou então se conformarão com outro método contraceptivo, mesmo que este seja percebido como mais problemático e ineficaz? Estas questões fazem-nos pensar que as práticas de saúde, sobretudo aquelas de caráter preventivo, só são de fato eficazes quando fazem sentido para as pessoas implicadas. E para isto elas devem articular os diferentes níveis ou esferas da vida social. Mas que ponto tomar para esta articulação: o indivíduo, a cultura ou a ordem macro-social? À primeira vista, o indivíduo parece ser o ponto mais palpável; entretanto, é necessário reconhecermos que os indivíduos se constróem numa cultura e portanto, não existem como
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tal isoladamente. Dessa forma, a cultura ou o contexto local aparece como o plano privilegiado de articulação com os demais. É nele que os indivíduos são socializados, aprendem valores e práticas, recebem determinados conhecimentos, enfim, constróem suas representações e sua visão de mundo. Por outro lado, ao privilegiarmos como objeto de intervenção o contexto local estaremos lidando, inexoravelmente, com as determinações macro-estruturais, ou melhor, com a forma como estas determinações incidem tanto na cultura como no cotidiano dos indivíduos. O contexto local é também o plano que determina as possibilidades e padrões de relacionamentos, sejam estes afetivos, sexuais ou familiares. É no próprio cotidiano dos indivíduos que as experiências se realizam e os valores se atualizam. Entretanto, permanecem alguns desafios ao privilegiar-se o que chamamos aqui de contexto local ou cultural. O primeiro deles, é como inserir os indivíduos e grupos num contexto mais amplo que leve em consideração o conceito de vulnerabilidade tanto individual como o social. Ou seja, como agir localmente sem perder o caráter político mais amplo das práticas preventivas? O outro desafio diz respeito ao impasse que se coloca entre o respeito a valores e práticas culturais e a própria prevenção, que é por si só normativa. É necessário, sem dúvida, conhecer e respeitar os valores dos diferentes grupos sociais. Respeitar não significa, entretanto, reificar. O respeito pelo outro é sempre um bom começo para o diálogo. Referências BAJOS, N., MARQUET, J. Research on HIV sexual risk: social relations-based approach in a cross-cultural perspective. Soc. Sci. Med.,v. 50, p.1533-46, 2000. BARBOSA, M. R., VILLELA, W. V. A trajetória feminina da Aids. In: PARKER, R., GALVÃO, J. (Orgs.) Quebrando o silêncio: mulheres e Aids no Brasil. Rio de Janeiro: Relume Dumará/Abia/IMS/UERJ, 1996. p. 17-32. BILAC, E. Famílias de trabalhadores: estratégias de sobrevivência. São Paulo: Símbolo, 1978. BOLTANSKI, L. As classes sociais e o corpo. Rio de Janeiro: Graal, 1984. DUARTE, L. F. D. Da vida nervosa nas classes trabalhadoras. Rio de Janeiro: Zahar, 1986. FONSECA, C. Valeur Marchande, Amour Maternel et Survie: Aspectos de la Circulation des Enfants dans en Bindonville Brésilien. Ann. ESC, n.5. p.991-1022, 1985. FONSECA, C. Alliés et ennemis en famille. Temps Mod., n.499, p.28-58, 1988. HOPKINS, K. Are brazilian women really choosing to deliver by cesarean? Soc. Sci. Med., v.5, n. 51, p.725-40, 2000. KNAUTH, D. R. O vírus procurado e o vírus adquirido. Estudos Feministas, v.5, n.2, p.291-302, 1997. PARKER, R. A construção da solidariedade. Rio de Janeiro: Relume Dumará/Abia/IMS/UERJ, 1994. PARKER, R., GALVÃO, J. (Orgs.) Quebrando o silêncio: mulheres e Aids no Brasil. Rio de Janeiro: Relume Dumará/ Abia/IMS/UERJ, 1996. POTTER, J. E. The persistence of outmoded contraceptive regimes: the cases of Mexico and Brazil. Popul. Dev. Rev., v.4, n. 25, p.703-39, 1999. POTTER, J. E. et al. Inquities and policy dilemmas in the course of an unregulated, spontaneous fertility transition: the case of Brazil. In: CONFERÊNCIA GERAL DE POPULAÇÃO IUSSP, 24, 2001, Salvador. Anais... Salvador, 2001. POTTER, J. E., BERQUÓ, E., PERPETUO, I.H., LEAL, O.F., HOPKINS, K., SOUZA, M.R., FORMIGA, M.C. Unwantd caesarean sections among public and private patients in Brazil: prospective study. Br. Med. J., v.323, n.7322, p.1155-8, 2001.
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KNAUTH, D. R. ET AL. Cultura médica y decisiones reproductivas entre mujeres infectadas por el virus del SIDA, Interface _ Comunic, Saúde, Educ, v.6, n.11, p.39-54, 2002. Las gestantes contaminadas con el virus del SIDA se deparan con un conjunto de informaciones, prescripciones y prácticas que tornan este período de forma particular en relación a otras gestaciones y experiencias. El actual articulo busca evidenciar los factores que condicionan las posibilidades reproductivas de las gestantes HIV+, en especial con referencia al tipo de parto y decisiones en relación a la esterilización femenina así como sus implicaciones. Los datos presentados son el resultado de una pesquisa desarrollada en las ciudades São Paulo y Porto Alegre, donde fueran entrevistadas 60 mujeres. La condición de suero positiva para el SIDA hace que el parto sea sentido, por las gestantes, como una prescripción médica dejando las ansias en segundo plano. Además de este factor, el tipo de servicio al cual la gestante se vincula, surge como determinante tanto para la indicación ofrecida como para la concretización o no. El hecho de que las expectativas relacionadas al parto estén determinadas por una prescripción médica, que poco dependen de las ansias o experiencias anteriores, hace que para muchas mujeres esta experiencia sea percibida como más difícil que los partos anteriores o peor que lo esperado. PALABRAS CLAVE: Conducta anticonceptiva; medicina reproductiva; Síndrome de inmunodeficiencia adquirida; parto.
Recebido para publicação em: 29/10/01. Aprovado para publicação em: 23/01/02.
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MAPPLETHORPE, Lírio
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Crianças vivendo com HIV e Casas de Apoio em São Paulo: cultura, experiências e contexto domiciliar* César Ernesto Abadia-Barrero
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ABADÍA-BARRERO, C. E. Children living with HIV and Support Homes in São Paulo: culture, experiences and housing context, Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.6, n.11, p.55-70, 2002. This article, based on research in the field of Medical Anthropology, intends to analyze certain cultural factors that play a role in the development of children and adolescents with HIV in support homes. There are similarities and differences in the child rearing patterns of each institution and, consequently, in the individual and social development of the children and adolescents. One notable similarity is, nonetheless, that the improvement in the quality of life and life expectancy (with many children becoming adolescents) seems to have become a problem for their adult caretakers. I try to explain how this problem is largely due to the ideas and the image of what a child with Aids in Brazil represents. These ideas are culturally constructed and follow modern categories and discussions concerning childhood, development and morally acceptable social responses. The development of children and adolescents with HIV/Aids argues against these categories and threatens the child rearing patterns established by the adults on the one hand and by the structure of the institutions on the other. KEYWORDS: Children; adolescence; HIV; recovery homes; culture. Este artigo, baseado em pesquisa na área da Antropologia Médica, pretende analisar alguns fatores culturais que influem no desenvolvimento de crianças e adolescentes vivendo com HIV em casas de apoio. Existem semelhanças e diferenças nos padrões de criação de cada instituição e, em conseqüência, no desenvolvimento individual e social das crianças e adolescentes. Uma semelhança marcante é que a melhora na qualidade de vida e o aumento da sobrevida (com muitos virando adolescentes) parece ter-se convertido em um problema para os adultos que cuidam deles. Minha intenção é explicar como este problema deve-se, em grande parte, às idéias e ao imaginário do que a criança com Aids no Brasil representa. Essas idéias são culturalmente construídas e estão em sincronia com as categorias e discussões modernas sobre criança, desenvolvimento e respostas sociais moralmente aceitáveis. O desenvolvimento de crianças e adolescentes vivendo com HIV/Aids questiona as ditas categorias ameaçando, inclusive, os padrões de criação estabelecidos pelos adultos e as estruturas das instituições. PALAVRAS-CHAVE: Criança; adolescência; HIV; casas para recuperação; cultura.
* Esta pesquisa faz parte do meu doutorado na Universidade de Harvard e do estágio como pesquisador junto ao Departamento de Medicina Preventiva da Universidade de São Paulo. Agradeço ao Professor José Ricardo Ayres pela sua orientação durante a pesquisa e pela edição do presente texto; aos presidentes das duas casas, Laércio Zaniquelli, no caso do CCI “Filhos de Oxum”, e Padre Valeriano Paittoni, na casa Siloé, que sempre se ofereceram para fornecer a ajuda necessária para a pesquisa. Além deles, todos os funcionários, crianças e adolescentes, meus amigos nesta jornada, com quem compreendi a importância das emoções como detonantes da razão. 1
Doutorando em Antropologia Médica, Harvard University. <cesar_abadia@hms.harvard.edu>
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Roberta (6 anos), brincando com bonecas, respondeu à minha pergunta: você vai ter filhos? Aha!!. E você vai cuidar deles? Não, a empregada!
Quando comecei meu trabalho de pesquisa em Antropologia Médica no Brasil2 , percebi que as idéias que trazia sobre a vida de crianças com HIV/ AIDS estavam muito distantes da realidade. Tinha aprendido, pelas pesquisas das áreas de Biologia, de Epidemiologia e algumas pesquisas sociais, que limitações fisicas, doença e certeza de morte deveriam ser eventos dominantes na vida de crianças infectadas pelo HIV. Porém, quando iniciei o trabalho, percebi que esses referenciais eram parte do passado e temor constante para os adultos, mas sequer passavam pelos discursos cotidianos das crianças. Como conseqüência da Aids, crianças e adolescentes moravam em instituições nas quais eu estava trabalhando (casas de apoio de organizações não governamentais – ONG/Aids –) e que a maioria era órfã. Todavia, analisando as histórias de vida das famílias (pelos relatórios do juizado e entrevistas com os cuidadores atuais) notei que a desintegração do núcleo familiar devia-se não somente à Aids, mas também à pobreza, vida em favela, migração, ao tráfico e consumo de drogas, à morte violenta e incapacidade de cuidar dos próprios filhos. Ou seja, a Aids fazia parte de um universo maior de fatores condicionantes da desintegração familiar e não podia ser considerada como única causa 3. Por outro lado, o sentir-se doente ou estar limitado fisicamente tinha deixado de ser a característica mais dominante na vida das crianças. Devido à implementação da terapia antiretroviral (ARV) para o tratamento da infecção pelo HIV/AIDS em 1996, não só houve uma diminuição significativa do número de mortes, como também das chamadas doenças oportunistas melhorando, portanto, a sobrevida e a qualidade de vida dos portadores. Sob a perspectiva das crianças, esta melhoria tem significado a possibilidade de ter vidas “normais”, chegar à adolescência e pensar em desenvolvimento e futuro. No momento atual, raras vezes as crianças e os adolescentes pensam em doença, limitação ou morte como condicionantes de suas vidas; não teriam porque fazê-lo4. O fato de haver tantos adolescentes que nasceram infectados me obrigou, inclusive, a mudar a forma de denominar a pesquisa, que passava, então, de crianças com Aids para crianças e adolescentes com Aids. Por outro lado, necessitava entender por que se continuava falando das crianças com Aids e pouco de adolescentes e por que se insistia em diferenciar as crianças com Aids dos adultos com Aids, como se pertencessem a duas epidemias diferentes, ou a dois mundos diferentes. Depois de perceber a condição “saudável” das crianças e dos adolescentes, a forma como a epidemia tinha mudado depois da chegada da medicação antiretroviral e de meus primeiros dados das conversações e brincadeiras que compartia com eles, entendi que minha pesquisa teria que considerar não só como a Aids influenciava a vida das crianças de forma direta pela soropositividade, mas também como a influenciava indiretamente pela forma como os adultos e instituições se relacionavam com as crianças
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2 A Antropologia Médica é, em resumo, um ramo aplicado da Antropologia Social que estuda as conexões entre os fatores biológicos e culturais da saúde e da doença.
Ver Farmer, P., M. Connors, et al., Eds. (1996) e Farmer, P. (1999) para uma análise maior dos determinantes sociais na AIDS. Farmer cita a desigualdade social como determinante principal para que a aids se espalhe em camadas pobres da população. Para uma revisão da ligação pobreza-AIDS no Brasil, ver Bastos & Szwarcwald (2000) e Parker & Rochel (2000).
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As vidas das crianças e dos adolescentes soropositivos no Brasil exemplificam o resultado de políticas em saúde adequadas e participação da sociedade civil em um pais considerado em desenvolvimento. No mundo estima-se que 1.3 milhões de crianças e adolescentes têm HIV, mas só menos de 5% recebem tratamento adequado. Para uma análise da trajetória da luta do Brasil, ver Galvão (2000).
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soropositivas. Desse modo, tão importante quanto analisar o relacionamento criança-Aids, era também a análise dos relacionamentos adulto-Aids, instituição-Aids, adulto-criança e instituição-criança. Agora, minha tarefa mais ampla era entender como as experiências de vida de crianças e adolescentes com AIDS estavam informadas pelos múltiplos relacionamentos com os adultos e as instituições no Brasil de hoje. Comecei a perceber que, para os adultos, aquelas referências históricas da epidemia do passado (limitações físicas, doença e expectativa de morte) continuavam fazendo parte da forma como caracterizavam o presente e, como conseqüência, da forma como os adultos e as instituições se relacionavam com as crianças e os adolescentes. Percebi como adultos, adolescentes e crianças tinham posições diferentes perante a vida, inclusive, perante o significado de ser criança e ter Aids. Neste texto, pretendo expor essas diferenças e entender o momento histórico que permite compreendê-las. Pretendo, também, expor as ligações das experiências das crianças com Aids com as idéias modernas de infância e seus significados, e como a idéia criança e Aids no Brasil é um exemplo das construções culturais típicas da modernidade. Dados da pesquisa etnográfica Os dados aqui apresentados fazem parte do trabalho de campo desenvolvido entre Outubro 1999 e Julho 2001. Participei, como voluntário, em atividades diárias com crianças e adolescentes em duas casas de apoio de ONG/Aids, uma creche (ONG/Aids) e o abrigo estadual para meninos em situação de rua – Moóca. Meus dados fundamentaram-se em entrevistas informais semiestruturadas, conversações cotidianas, atividades rotineiras (incluindo brincadeiras) e exploração de emoções, usando a metodologia qualitativa da observação participante. Os pontos principais da análise tinham como eixos temáticos a subjetividade da criança e do adolescente soropositivos, a vida institucional, e as perspetivas de passado, presente e futuro. Por outro lado, fiz observação participante dos espaços de relacionamento adulto-criança e realizei entrevistas formais e informais com os cuidadores. Da mesma forma, prestei especial atenção às instituições e suas conexões com a sociedade brasileira como um todo, participando, inclusive, das atividades do Fórum das ONG/Aids em São Paulo e da parceria ONG/Estado. Ressalto que a visão antropológica considera as estruturas sociais como partes fundamentais da subjetividade e da construção da experiência individual e coletiva (Kleinman, 1988). Portanto, esta visão não vê o problema da criança com Aids e seu desenvolvimento como fenômeno individual ou isolado. A abordagem metodológica escolhida é consistente com novas teorias sobre a produção de pesquisa etnográfica, nas quais a intenção é juntar vários níveis da análise – múltiplos-sítios “multi-sited” (Marcus, 1998). Segundo Marcus, existem espaços fora da vida das pessoas e da “vida” dos sistemas sociais nos quais as pessoas vivem. Esses espaços informam as experiências do sujeito e as relações ser-sistema. Na presente pesquisa, esses espaços representam o relacionamento adulto-criança, instituição-criança, instituição-idéias e noções da criança com Aids no Brasil de hoje. Assim, informa-se a experiência individual da criança com Aids com as respostas sociais das ONG/Aids e com as
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construções históricas e culturais fechando o círculo: experiência – resposta – construção histórica e cultural – experiência. Por fim, para a análise, toma-se em conta não só os dados obtidos comcrianças, adolescentes e adultos, mas também dados das instituições, da construção histórica e cultural, e dos relacionamentos. No presente artigo apresento dados selecionados do trabalho nas duas casas de apoio que representam tanto rotinas quanto conflitos. Enquanto os momentos de rotina estão em harmonia com as construções ao redor da criança com Aids, os momentos de conflito representam lutas individuais e coletivas rebatendo aquelas construções. A primeira parte, “AS CASAS DE APOIO”, trata do perfil das respostas sociais das ONG/AIDS, especificamente da casa de apoio e apresenta as experiências das crianças que vivem nelas. Na segunda parte, “ROTINAS E CONFLITOS”, questiona-se o significado dos momentos de rotina e conflito introduzindo, na parte final, “IMAGENS”, a análise das construções culturais e históricas da criança com AIDS e o significado da criança com Aids no Brasil de hoje. AS CASAS DE APOIO O perfil das Casas de Apoio Em 1985 surgiu a primeira casa de apoio (Casa de Apoio Brenda Lee) como iniciativa das organizações não governamentais (ONGs) para cuidar e dar apoio a pessoas com Aids e sem recursos financeiros (Galvão, 2000). Com a aparição dos primeiros casos em crianças e as necessidades de moradia para os órfãos, foi inaugurado em 1987 o Centro de Convivência Infantil “Filhos de Oxum”, em Taboão da Serra - SP. A inauguração desta casa, assim como a criação da maioria das ONGs/AIDS mais importantes, ocorre no período 1985-1989, considerado como “os anos heróicos das respostas não governamentais” (Galvão, 2000, p.45), nos quais as ONGs (formadas por militantes acadêmicos, grupos religiosos e partidos e/ou organizações políticas de esquerda) lutavam para garantir que os direitos dos pacientes fossem respeitados, principalmente o acesso às terapêuticas disponíveis (Galvão, 2000). Esta briga política gerou e estreitou, com o tempo, a parceria ONG-Estado e levou à melhoria nos programas DST-AIDS no Brasil e a sua atual liderança como programa de combate à Aids no mundo (Parker et al., 1999). Nos anos de 1990 proliferaram as casas de apoio e outros projetos assistenciais aos soropositivos. Apesar da contínua fundação de novas casas de apoio – até hoje –, na visão dos analistas da epidemia e devido à melhoria da qualidade de vida das pessoas com AIDS, as casas de apoio deveriam, com o tempo, desaparecer para reinserir os soropositivos à sociedade e à família, em vez de isolá-los para oferecer assistência. Inclusive, algumas pessoas do movimento das ONGs apontam que a casa de apoio nunca deveria ter existido. Por outro lado, problemas de sustentabilidade e falta de recursos são cada vez maiores devido a uma saturação normal nos movimentos ONGs (Smith-Nonini, 2000), às mudanças nas características da epidemia, e às novas necessidades em profissionalização e captação de recursos do “terceiro setor”. Cada casa de apoio funciona segundo seus critérios e crenças, tendo em comum, com as outras, as necessidades de cuidados em saúde e o seguimento
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das leis de abrigamento (com a figura de guarda como parâmetro legal). Saúde, então, marca o cotidiano das regras e funções da casa de apoio e se oferecem cursos aos funcionários nos cuidados específicos das crianças com Aids. Meu trabalho desenvolveu-se nas casas Filhos de Oxúm e Siloé. Uma descrição breve das mesmas pode esclarecer parte da experiência de vida das crianças e dos adolescentes em cada lugar. Casa de Apoio CCI - Centro de Convivência Infantil “Filhos de Oxum” Oxum é beleza, feminilidade, coquetaria, graça e sensualidade. É a dona do amor, mas também das águas dos rios. Adora perfumarse com lavanda, vetiver e outras ervas dos campos. Gosta de jóias douradas e de cobre, metal com que quer enfeitiçar o seu marido, Xangó. Protege a mulher grávida, a esposa contra as amantes, mas ela mesma é festeira, dançarina, conquistadora de homens (não importa se são casados). Está sempre alegre e disposta a dançar. Foi a segunda esposa de Xangó, mas antes vivera com Ogum e Oxosse. É grande amiga de Yemanjá e de Exú, seu protetor. (Aflalo, 1996, p.73)
Oxum representa não só a maternidade, mas também o cuidado as crianças. Aflalo (1996) diz: “A filha de Oxum, é também boa mãe e defende os seus filhos como uma leoa, mas não faz, especialmente, exibição do seu amor materno.” (p.75)
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Para uma visão detalhada do ritual do candomblé ver: Prandi (1991), Gonçalves da Silva (1995) e Aflalo (1996). Em resumo, o Pai de Santo (babalorixá) é a figura principal do terreiro seguida pela mãe pequena ou pelo pai pequeno (segundo cargo em importância). O equede (a cozinheira) é uma sacerdotisa respeitada no terreiro que cuida dos orixás em transe e os elementos do culto, o ebômi (os antigos administradores) é um um filho que já passou pelo rito de obrigação e tem status de senioridade. 6
É uma casa de orientação religiosa do Candomblé (nações queto e angola). O Pai de Santo e presidente da ONG (Pai Laércio de Oxum) conta como a casa mudou de terreiro de Candomblé para casa de apoio. O cuidado das crianças demandava mais tempo dos colaboradores do candomblé e, por outro lado, “o ambiente festivo do candomblé, as iniciações e rituais podiam perturbar as crianças.” Assim, Laércio, por meio dos búzios, perguntou a Oxum5 o que deveria fazer, e conta como Oxum não somente aceitou fazer do terreiro uma casa de apoio, como também “falou que queria cuidar das crianças”. A estrutura da casa – casarão – como é chamado por todos os que a conhecem, incluindo trabalhadores, crianças e vizinhos, tem mudado várias vezes, tanto na estrutura física como nas pessoas que ali vivem e trabalham. Sobrevive principalmente de doações e alguma ajuda do Ministério da Saúde para manutenção. Não existe uma delimitação clara da parte administrativa da casa de apoio, já que Laércio, sua família biológica e adotiva, e os colaboradores mais próximos do Candomblé moram, trabalham e administram as casas (casa família e casa instituição). Vários funcionários têm algum nexo com o candomblé, incluindo algumas babás, uma cozinheira e antigos administradores. A figura principal na casa é Obá, mãe pequena e mãe criadeira do terreiro, que veio ajudar Laércio por contatos com seu Pai de Santo em 1982 ou 1983 (já não lembra), e é quem, na virada de terreiro para casa de apoio, assumiu o cuidado das crianças como tarefa própria, convertendo-se na “mãe de criação” de todas as crianças6. Obá (seu nome do Candomblé e como é conhecida por todos) tem, por sua experiência, uma sabedoria infinita sobre o papel da maternidade:
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Cada criança é diferente, e cada uma precisa de uma atenção especial, de um carinho, cada uma é uma história. Eu os deixo em liberdade, não fico em cima deles (que não faz isto, que não faz aquilo…). A criança tem que experimentar, tem que aprender a se defender… Só às vezes que você precisa ter mão dura e dar um tapinha na bunda (risadas).
O número de crianças flutua entre 35 – 40 (entre soropositivos e filhos de portadores). Elas são cuidadas por duas babás por plantão. Entre as crianças e os adolescentes existem várias hierarquias e escalas de poder percebidas quando as crianças falam dos outros, ou brigam com os outros. Os bonitos (preferidos) são aqueles com trato especial e podem ser grandes ou pequenos; são chamados filhinho de papai ou filhinho de mamãe (segundo sejam os protegidos de Laércio ou de Obá). Outra hierarquia baseia-se na antigüidade na casa e na forma como se fala do passado “ai!, o que que você está falando se você nem estava aqui”. Uma escala de poder depende do bom relacionamento com Laércio já que na casa também moram o filho legítimo e os dois filhos adotivos, e Laércio, segundo as crianças, “é quem manda aqui”. Assim, a hierarquia estabelece-se do filho legítimo-filhos adotados-crianças preferidas (bonitos)-outras crianças. Existe, finalmente, uma hierarquia de poder físico que vai do mais forte ao mais fraco e que geralmente depende do tamanho e da idade. 7
Casa de Apoio SILOÉ Duas passagens bíblicas foram significativas para minha reflexão. Uma é a passagem de Lc 13, 1-5, na qual são relatados fatos sangrentos e interpretados pelo povo como sendo castigos de Deus. Jesus, porém, dá uma interpretação bem diferente, dizendo que aquelas pessoas que morreram esmagadas pela Torre de Siloé não eram piores das que escaparam da catástrofe. Quis dizer que todos somos pecadores e precisamos de uma conversão contínua. Outra passagem, do evangelho de Jo 9,1-11, relata a cura do cego de nascença. “Quem pecou, ele ou seus pais por ter nascido cego?”, perguntam a Jesus. É a mesma pergunta feita ainda hoje por muitas pessoas diante de um doente de Aids. À pergunta dos discípulos Jesus respondeu: “Nem eles nem seus pais; isto aconteceu para que nele se manifestem as obras de Deus”. As obras de Deus se manifestam na nossa conversão ao irmão doente, sem preconceitos e pré-julgamentos (Tomado do Boletim da casa Siloé, 2000). Siloé é das primeiras casas de apoio católicas para crianças. Além das duas casas de apoio para crianças e uma para adultos, a paróquia tem outros centros não relacionados com a Aids – como uma creche e um centro esportivo – como parte dos serviços sociais que ela presta à comunidade. Financiada principalmente por doações da comunidade da paróquia no bairro Imirím, a instituição também se apóia no trabalho voluntário. O Padre Valeriano, presidente das instituições e famoso por ter uma posição a favor da camisinha como forma de prevenção, tem sido criticado pelas alas conservadoras da igreja. A luta pela vida (como ele a chama) mostra simplesmente o lado de um esforço maior por dar sentido a uma evangelização real por meio da ação. Muitas das idéias são da corrente da Teologia da
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Siloé é um nome bíblico que significa “enviado”.
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Libertação, considerada como a ala progressista da igreja (Boff et al., 1996). A casa Siloé fica fisicamente dentro da igreja, porém, tem uma entrada independente. Saindo da casa por um corredor encontram-se o escritório da tia Célia (diretora da casa) e a escolinha para fazer lição de casa. Além da tia Célia, existem quatro funcionárias – chamadas de tias, que trabalham das 7 às 22 horas para cuidar das 14 crianças – e os voluntários da comunidade religiosa, que têm diversas funções, geralmente com duas funcionárias por plantão. Existem também voluntários para as consultas médicas, ou seja, acompanhantes para ficar no hospital com a criança, e motoristas. A rotina semanal gira ao redor da escola, das brincadeiras e do relacionamento com as quatro funcionárias e a tia Célia. Aos sábados e domingos o Padre almoça com as crianças no refeitório da casa. Nessas ocasiões o Padre se inteira dos últimos acontecimentos e, geralmente, a troca afetiva por favores começa com uma aproximação física, ou puxar a barba, pegar pelo braço e depois “Oh Padre, sabe de…” Os castigos vêm da funcionária do plantão, quando se faz necessário. É a tia Célia quem define as ordens e, em casos extremos, recorre-se à máxima autoridade - o Padre. Mas o Padre “é dez, ele não fica bravo…” A criança HIV positiva na casa de apoio Imagine por um instante... você tem quatro anos de idade. Sua mãe morreu quando você tinha um ano e deixou-o aos cuidados de seu pai. Logo depois, seu pai entregou você aos cuidados de seu avô e não voltou mais. Seu avô gosta de você, é carinhoso; mas a companheira dele, que não é sua avó, diz que você é “terrível, desobediente, se recusa a obedecer a ordens, e que ela bate se precisar.” Você tem medo dela. Ela bate mesmo, você não entende quando é preciso ou não. Além disso, ela também comenta que você “só tem cara de santo, que não parece doente e é impossível lidar com você.” Quando o conheci você tinha aqueles quatro anos e já estava na casa de apoio: cabelo loiro e cacheado, magro, de olhos tristes com halos roxos, como quando alguém está com gripe. Tinha também um algodão cobrindo seu ouvido, vestia shorts, tênis novos e camiseta regata, era um dia de sol. Quando o vi, no meio do playground de sua nova casa, você me cumprimentou, estendendo a mão e dizendo “oi, boa tarde”. Depois de conhecêlo melhor, não o reconheço como aquela criança descrita pela mulher de seu avô. Sua nova casa é bem diferente. Tem várias senhoras que dão comida e banho. Engraçado, todo mundo sabe seu nome, mas alguns indicam você com o dedo e falam “esse é o novo”. Também tem muitas crianças pequenas e grandes. Em sua nova casa há outra senhora que todo mundo chama de mãe. Ela tomou conta de você durante os primeiros meses na casa, deu comida, olhava você quando dormia num berço ao lado da cama dela e fazia muitos carinhos. Você começa a chamá-la de mãe. As outras crianças brincam e brigam com você o tempo todo. Você pode brincar no playground e no salão. Depois de alguns dias conhece melhor as outras crianças e tem amigos. A mãe já não fica a seu lado o tempo todo e você tem que disputá-la com os outros. Às vezes, vêm tios e tias para brincar. Você se diverte e tem colo, depois eles vão embora. Às vezes, você apanha das outras crianças, dos maiores que batem forte, mas ainda não apanhou das tias. Você vai ao médico uma vez por mês, às vezes mais. Vai começar a freqüentar a escolinha, ganhar ovos de páscoa, vai chorar quando não tiver carrinho para brincar. Quando crescer, vai achar ‘chatice’ a forma como alguns adultos o tratam.
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Das múltiplas opções de casa de apoio, Bruno (o nome fictício desta criança) terminou nesta. A história poderia ter sido diferente e ainda pode mudar. O acaso, descrito como o imprevisível ou aquilo que não podemos explicar racionalmente, determina, nas crianças HIV positivas, como no caso de Bruno, as opções de vida. Por que foi Bruno e não outra criança a infectada pelo HIV? O acaso, porém, tem determinantes importantes. No caso do HIV, o nascimento de uma criança HIV positiva e as respostas que recebe em caso de morte dos pais, depende das diferentes estruturas familiares, determinadas por uma multiplicidade de fatores sociais e econômicos. O acaso determinou que o Bruno nascesse de um casal contaminado, mas os determinantes sociais e históricos dessa contaminação são pobreza e violência estrutural (Farmer, 1999). O acaso determinou que Bruno se infectasse de sua mãe (tinha também possibilidades de não se infectar); uma baixa qualidade no atendimento das gestantes, um pré-natal inadequado e a falta de controle terapêutico inclinaram a balança para que Bruno se infectasse. O acaso influencia, também, a chegada de Bruno nesta casa de apoio e não em outra. Poder-se-ia pensar que os cuidados e as condições das casas de apoio para crianças HIV positivas são homogêneos ou que não teria tido muita importância qual casa de apoio tivesse abrigado Bruno. Não obstante, as casas de apoio apresentam, do mesmo modo que as famílias, diversidades marcantes. Assim, quando uma criança nasce para uma casa de apoio, ela pode nascer para uma casa que se considera instituição ou casa; na cidade ou no interior; católico, evangélico, espírita, do candomblé, ou sem prática religiosa. Pode nascer para uma casa com poucas crianças ou outras com mais de cem; talvez a criança possa ser adotada e morar com uma família de novo. Há casas com idéias naturistas de alimentação e cuidados de saúde. Há outras nas quais as crianças cuidam de suas coisas e outras onde tudo é destruído. Casas que têm colégio privado de primeira qualidade ou escola pública; onde na quarta série, alguns têm classes de inglês, mas outros não conseguem ler. Algumas têm viagens para o exterior e outras não têm passeios. Há casas que valorizam a participação em grupos de crianças e jovens, mas em outras as crianças e adolescentes são escondidos da sociedade para que eles “não sofram com o preconceito”. Inclusive, é evidente que em algumas casas os cuidados são melhores que em outras, e os segredos (por exemplo na forma como se fala ou não da AIDS ou do passado das famílias) são maiores que em outras. Existem casas preocupadas com temas como o desenvolvimento infantil, mas também outras preocupadas só com a sobrevida. Muitas dessas diferenças dependem da 8 Em uma análise filosofia e crenças dos administradores e responsáveis, da falta de critérios comparativa mais unificados para o cuidado fora das esferas de saúde e do controle legal, e das ampla, tentei comparar a perspectiva de vida e diferenças econômicas que representam não só a diversidade do Brasil, mas futuro das crianças HIV também suas desigualdades sociais. O futuro das crianças é, mais uma vez, positivas com as crianças em situação de determinado pelo fato de ter ou não um vírus no sangue, das orientações rua (Abadía-Barrero, políticas e condições econômicas das respostas sociais (casas de apoio), das 2000). Em outro trabalho, tentei políticas perante os cuidados e o acaso8. mostrar um panorama Em minha pesquisa percebi diferenças marcantes das crianças e dos mais complexo das adolescentes com quem trabalhava, que tinham a ver não com a estrutura de possibilidades de vida e futuro segundo o tipo cada instituição que influenciava, de forma importante, o seu desenvolvimento de instituição na qual a criança é abrigada individual e social. Este fato era consistente com múltiplas pesquisas em (Abadía-Barrero, 2002).
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desenvolvimento infantil das áreas de Psicologia Social, Educação e trabalhos comparativos de desenvolvimento infantil em várias culturas (ver, por exemplo, Whiting & Edwards, 1988). Para entender as construções ao redor da criança com Aids, meu interesse centra-se nas semelhanças e não nas diferenças entre as casas, nos determinantes institucionais e culturais que juntavam as experiências de vida dessas pessoas. ROTINAS E CONFLITOS White (1981) explica como a criança na modernidade se desenvolve em três mundos diferentes: o mundo familiar, o mundo profissional e o mundo comercial. No caso das crianças com Aids em casas de apoio, vemos que, apesar de compartilhar estas características da modernidade, também têm particularidades. O mundo familiar é mudado pelo mundo institucional e, para alguns, pelo mundo da família e da casa de apoio. Ao mundo profissional, descrito por White principalmente como o mundo da escola, temos que somar o mundo do hospital, e aos profissionais em Educação, os da área da Saúde. O mundo comercial, por outro lado, não apresenta diferenças para as crianças em casas de apoio comparadas com outras crianças na modernidade brasileira. As Rotinas... Tanto no CCI quanto na Siloé, a condição médica, ou seja, ter uma infecção crônica, implica que crianças e adolescentes tenham como parte das rotinas as visitas ao hospital, os médicos e os medicamentos. Além da escola, das brincadeiras, dos namoros, da TV, da rua, da comida, dos amigos, dos voluntários e funcionários, a relação com as esferas de saúde torna-se um referencial importante para elas. Outra rotina é no mundo comercial, em que as conexões se baseiam, principalmente, na criança como consumidor de produtos. O consumo, no desenvolvimento das crianças, é vivenciado no plano das brincadeiras, na forma de vestir, na música e na TV, com seus padrões de êxito, beleza, relações de gênero e sexualidade. Cada vez que a sociedade produz uma nova categoria, como a categoria criança, o mundo comercial se volta para promover novas necessidades de consumo próprias daquela categoria e, simultaneamente, satisfazer aquelas necessidades mediante a oferta de produtos. As crianças com Aids não escapam disso. Os dois casos, CCI e Siloé, fazem parte de um projeto maior e não são, portanto, uma realização em si. O CCI, como casa de apoio, faz parte do projeto familia; a Siloé, do projeto da igreja. A visão religiosa é fundamental. Mesmo que os administradores insistam na independência da parte religiosa do funcionamento da casa, nota-se que as idéias de criação, as atividades permitidas e a forma como os adultos se relacionam com as crianças, fazem parte da construção religiosa individual e institucional. Se no CCI existe menos controle adulto e mais libertade, na Siloé existe ênfase maior na escola/educação e no “bom comportamento”. Por fim, o nível de instrução e capacitação do pessoal marca outras diferenças. No CCI o ambiente é mais familiar e na Siloé mais institucional; na Siloé existem mais possibilidades
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para trabalhar aspectos relacionados à AIDS, enquanto no CCI esses aspectos são mais silenciados pelos adultos e, como conseqüência, pelas crianças e pelos adolescentes. As hierarquias, mais marcadas no CCI, são característica da construção social de camadas populares em que estruturas de poder fazem parte do cotidiano (Duarte, 1986). O financiamento via doações e projetos e a chegada de novas crianças na medida em que outras crianças voltam com as familias ou são adotadas, são outras similitudes entre as casas. Outros aspectos sociais marcam também semelhanças importantes. Nas horas de visita, várias pessoas chegam “para brincar” (com curiosidade de saber como são as crianças ou com desejos de se sentir bem visitando os enfermos) e surpreendem-se em ver como as crianças são bonitinhas. Os funcionários da Siloé incomodam-se com a forma como as visitas se relacionam com as crianças “que falsidade, os tratam como se fossem macacos.” No CCI se fala “nada podemos fazer, vivemos da caridade, temos que aceitar as visitas.” Existe, então, um imaginário geral da criança com Aids (carente, órfã, doente e coitada). Por outro lado, explorar a imagem da criança como ser necessitado gera na caridade aportes econômicos e trabalho voluntário importante para a sustentabilidade das casas. Nesta duplicidade, na qual se aceita a visão de carência para o exterior, mas se quer dar uma noção de normalidade e rigor no interior da casa, as crianças aprendem a viver e tirar vantagem, quando possível, de uma idéia ou da outra, dependendo da situação mais conveniente. Quem trabalha diretamente com as crianças e os adolescentes observa que suas necessidades vão além dos episódicos e intensos momentos de carinho dos visitantes, vistos como negativos (dependendo do visitante). Na ausência do núcleo familiar, as satisfações das necessidades de orientação e discussão de problemas na casa de apoio dependem do adulto do turno. Diretor, coordenador, funcionário, voluntário, profissional também têm perspectivas diferentes entre si. Ou seja, a confusão que crianças e adolescentes vêem nos adultos limita-se não somente ao tema da Aids (que é falado e discutido ou não, segundo a visão do adulto que esteja por perto), como também a conselhos, tarefas, orientações, castigos, visão do mundo e padrões de criação. O conflito: “Eles cresceram, ninguém estava preparado para isso” Antes era muito difícil, César, o tempo todo tínhamos alguma criança internada. E as crianças não eram assim bonitinhas como você as vê agora, eram doentes, mas doentes mesmo. Parecíamos loucos, que uma vomitando, que a outra com diarréia, que a infecção de ouvido, que as feridas na pele, que a febre… Parecia que a gente não podia pensar em mais nada que em crianças doentes… Também, era horrível quando eles morriam. Uma vez tínhamos 12 internados, voltávamos com 11, internávamos 3 voltávamos com 2… Ficávamos pensando qual seria o seguinte.
Essa fala de Obá indica que a situação de saúde tem melhorado, felizmente. Por um lado, o peso histórico da Aids nessa casa (CCI) faz com que os adultos
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A revelação da AIDS é um processo difícil pelas associações com estigma, discriminação, culpa materna, e à idéia de que a criança vai sofrer com essa revelação. Mesmo que estas dificuldades tenham sido analisadas na relação pais-filhos, ela é vivenciada também nas casas de apoio.
façam uma associação forte da Aids com sofrimento que não querem passar para as crianças, o que pode ajudar a compreender em parte o segredo em relação à palavra Aids e as dificuldades para revelar e lidar com o diagnóstico9. Existem novos problemas para os quais ninguém estava preparado quando as crianças começaram a crescer. Em outros comentários, Obá reconhece que os cuidados das crianças pequenas – às quais dedica mais tempo – são diferentes dos cuidados de crianças maiores. Segundo a concepção da maioria na casa, não só a criança pequena precisa de cuidados mais simples - o banho, a comida, as brincadeiras e “ficar de olho”, mas quando a criança cresce começa a dar problema. Na Siloé, do mesmo modo, sabe-se que com os adolescentes “começam os problemas.” Parece que cuidar de criança pequena e de criança doente, mesmo requerendo maior esforço físico, é mais fácil. A surpresa dos problemas que as crianças trouxeram quando cresceram faz pensar que se esperava que todas iam morrer. Quando ocorre o sucesso terapêutico na Aids, a concepção de casas de apoio precisa ser modificada, para poder lidar com o advento dos adolescentes, o que não aconteceu. No abrigo Moóca (abrigo estadual do SOS criança para meninos em situação de rua) encontra-se Maurício, um adolescente de 12 anos, ameaçado por uma gang que traficava drogas na favela onde morava. Sua mãe decide abrigá-lo porque teme pela sua vida. Além de precisar de abrigo, Maurício é HIV positivo. Procuramos encaminhá-lo para uma casa de apoio para crianças/adolescentes HIV positivos. Nossa busca (ligando para mais de 15 casas no Estado de São Paulo) foi infrutífera, já que a quase totalidade das casas têm limites de idade, segundo os estatutos desenhados pelos diretores. Isto sem contar que, além do problema da idade, pergunta-se se a criança é bem comportada, caso contrário a vaga não é oferecida. Poder-se-ia pensar que “o problema” de ter crianças que viraram ou estão virando adolescentes fosse um problema particular das casas mais antigas – que começaram quando a epidemia estava ainda ligada à morte nos primeiros anos de vida – mas a experiência com Maurício mostra que casas novas e velhas têm o mesmo ideário ao redor do tipo de criança com Aids de que se quer cuidar, isto é, criança pequena, doente e que não dê problemas. Ao trabalhar somente com este ideário e negar o passo à adolescência, juventude e ao homem e à mulher adultos, o crescimento vira problema e parece que se pensa que as casas sempre vão ter ou ser para crianças. Na análise social mais ampla, a pergunta seria: qual o valor que os adultos dão às crianças soropositivas e porque existe a tendência ao senso de propriedade sobre crianças e desejos de “ficar” com certo tipo de crianças ou não, como no caso de Mauricio? O que têm as crianças doentes que perdem quando viram adolescentes saudáveis, dificultando a vida dos cuidadores e, portanto, passam de “não dar problema” a “ser o problema”? IMAGENS Criança, um invento cultural: William Kessen escreveu em 1979 um artigo chamado “A criança americana e outras invenções culturais”. Nesse artigo, o autor lembra como o conceito de criança, o mundo da criança e as transformações da criança são
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redefinidos, principalmente nos tempos modernos. Lembra que Ariès já tinha apontado, em 1962, que a noção de criança e infância se transformam historicamente10. Essa transformação, aponta Kessen, não se deve ao conhecimento incompleto da ciência, mas sim a uma invenção cultural, na qual concebemos a criança como sozinha, como ser em desenvolvimento completamente individual, ou seja, sem reconhecer que o desenvolvimento é, afinal, uma construção social (Kessen, 1979). Estas idéias foram esclarecedoras para entender a forma como a sociedade moderna se tinha voltado ao entendimento da criança como categoria referencial de desenvolvimento, sem passar pelas esferas sociais. É por isso que se tem desenvolvido atividades para a criança, elementos de consumo para crianças, sentimentos de crianças, livros de crianças, profissionais para crianças, e até novas necessidades das crianças. Algumas dessas invenções sociais são necessárias e formam parte do desenvolvimento do mundo moderno (White, 1981); todavia, este desenvolvimento inventa, num círculo vicioso, aquelas necessidades e determina as características que as crianças devem ter para se encaixar no mundo moderno. Não é de surpreender que Liljeström (1981), e como resposta às idéias de Kessen, pense a criança circulando em esferas públicas, comerciais e familiares. As análises baseiam-se nas idéias particulares de infância de cada época e na medida em que se criam novas idéias e novas necessidades, novas análises são geradas. Note-se, por exemplo, a dificuldade de falar de crianças com Aids quando já se tem adolescentes com características próprias - características e necessidades também inventadas. Assim, Kessen observa que foram necessárias novas invenções, como o jovem, para diferenciá-lo do adolescente, os pré-escolares dos escolares e, mais recentemente, a onda teen e os pré-adolescentes. Para ele, estas novas idéias acontecem pela necessidade de novas categorizações e objetos de estudo, característica das sociedades ocidentais, da ciência e das sociedades de consumo. A concepção moderna de criança volta o todo à criança como categoria auto-suficiente e independente. Assim, este “mundo criança” perde suas conexões e determinantes sociais. O desenvolvimento da criança: o melhor invento para uma modernidade em paz A situação da criança atual é, no meu modo de ver, uma situação extrema na qual ela é ignorada como ser social em desenvolvimento (o mundo criança é independente individual e auto-suficiente) e, portanto, a importância de sua existência não tem como referente o adulto do futuro, mas sim as necessidades satisfeitas no presente. O objeto criança da modernidade não é o ser em desenvolvimento, mas sim seu desenvolvimento. Passou-se de ignorar a criança quando se pensava que sua existencia só fazia sentido dependendo do homem que se geraria no futuro (o produto da criação) – sem reconhecer características e necessidades específicas do desenvolvimento antes de chegar no adulto – para uma outra forma de ignorá-la caracterizando as diferentes etapas nas quais a criança se encontra, num momento determinado. Ou seja, temos listado as necessidades a cumprir
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10 Passou-se de ignorar a criança a pensá-la como um adulto em miniatura no século XIII, ou como um anjo ou como um elemento da paisagem social em relação com os outros, até caracterizá-la como símbolo de beleza, força ou ternura, segundo pinturas de diferentes séculos. A criança tornou-se a idade privilegiada, passando pelas idéias do “jovem” do século XVII, para criança do século XIX, para adolescência no século XX (Ariès, 1962).
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segundo cada etapa (bebê, criança, pré-escolar, escolar, pré-adolescentes, adolescente, teen, jovem etc.) mas não sabemos como a criança faz parte dessas etapas e negocia com os diferentes ambientes seu desenvolvimento individual e social. Inclusive, parece impossível que a criança (ou adultos e velhos) transite por várias dessas etapas simultaneamente sem ser patologizado; se um adulto for resgatar sua dimensão criança, falar-se-ia de regressões ou comportamentos infantis. Por outro lado, o aceitar a criança e seu desenvolvimento como ligados diretamente aos determinantes sociais obrigaria a pensar em processos e não etapas/categorias, como a modernidade do ocidente nos faz ver. Nas casas, o “problema” de as crianças terem crescido dá-se porque quando ela (pertencente a uma categoria específica) cresce, muda de categoria e desestrutura um esquema criado para sua categoria inicial. O modelo ocidental ensina a pensar e compreender os problemas do mundo segundo categorias e não a pensar que cada problema faz parte de um processo. Ao pensar em categorias, negou-se o desenvolvimento, e o crescimento virou problema. Inclusive lingüisticamente percebe-se a idéia de categorização quando se fala “as crianças cresceram” e não “as crianças estão se desenvolvendo”. Passa-se longe de perceber que todos nós somos seres em desenvolvimento, e não só as crianças, evidenciando outra idéia moderna, a de que crianças e adultos pertencem a dois mundos diferentes. Criança no Brasil e criança soropositiva, para terminar…
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Ver Freyre, 1977, para uma visão histórica da formação da familia brasileira.
O Brasil pode ter, talvez, uma das trajetórias mais importantes na ligação de criança com sofrimento. A escravidão, o trabalho infantil, a miséria, a desnutrição, as altas taxas de morbidade e mortalidade infantil, e as crianças de rua são referenciais importantes quando se fala da criança brasileira no mundo atual (Rizzini, 1993a; Rizzini, 1993b). Porém, as origens das ameaças que as crianças brasileiras enfrentam, fazem parte do processo histórico que as liga às desigualdades sociais baseadas em novas e velhas estruturas econômicas e às diferenças de raça, religião, gênero, região e classe social, desde a época colonial11. Não pretendo percorrer a extensa literatura do papel da criança e da família no Brasil, mas considero importante citar alguns trabalhos que esclarecem a discussão das imagens das crianças brasileiras com AIDS. A alta mortalidade da AIDS (antes da terapia antiretroviral) colocou a vida das crianças e a expectativa de morte no mesmo plano da morte infantil como causa da pobreza extrema. Nestes casos, a morte da criança tem sido descrita como parte da vida cotidiana; mães, inclusive, enfrentam as múltiplas perdas dos filhos como necessárias para a sobrevida de outros (Scheper-Hughes, 1992). A sobrevida dos filhos tem, para as camadas mais pobres, um significado especial econômico, além da gratidão e troca afetiva, que pode significar cuidados para os pais na velhice (Fonseca, 1995). No caso da Aids, isto não acontece, já que o cuidado das crianças fica no plano da gratidão e do “cuidar dos filhos dos outros.” Porém, a chegada da criança com Aids na casa de apoio pode ser pensada como uma etapa a mais dentro da “circulação das crianças”, nas quais famílias de camadas populares utilizam lares substitutos por períodos variados para ajudar na criação dos filhos (Fonseca, 1995). É comum, então, que uma criança tenha
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várias mães e pais em sua vida, porém, a mãe biológica sempre terá um papel principal, como acontece quando as crianças com AIDS voltam felizes a viver com os pais que, além de não terem recursos financeiros, podem ter problemas de violência e maus tratos. Estudos antropológicos mostram como os cuidados, as estruturas familiares e o papel da criança na família têm uma moralidade própria que se estabelece segundo as dificuldades econômicas das famílias, nas quais a circulação da criança é uma opção moralmente aceitável (Sarti, 1996). Para Sarti, a pobreza é uma categoria relativa na qual a criança, mesmo que desejada como realização feminina e realização familiar, deve ser obediente e submeter-se a estruturas hierárquicas de poder – como visto nas casas de apoio quando os adolescentes saudáveis viram um problema pela ameaça que representam às estruturas estabelecidas 12. No caso das crianças com Aids em casas de apoio, a troca afetiva parece fundamental como parte das idéias ao redor da criança. Troca afetiva não só pelo fato de cuidar da criança e ter uma relação emocional de mãe-pai substituto e filho-filha substituto, como também pela retribuição moral (idéia construída junto à religiosidade), pelo que há de bom em sua atitude. Esta bondade permite desculpar, justificar e inclusive aceitar legalmente os erros. Note-se, novamente, que o controle das casas baseia-se exclusivamente em saúde e abrigamento legal, sem ter em conta outros aspectos das necessidades das crianças e adolescentes em desenvolvimento. Se, por um lado, mais controle e apoio governamental são indispensáveis – adicionando saberes técnicos fora da saúde hospitalar e do sistema legal –, por outro lado, nas casas de apoio, o fato de se assumir como instituição, de se profissionalizar e de se ter uma remuneração adequada para os funcionários, poderia modificar as idéias de caridade associadas ao cuidado das crianças. Passar-se-ia a um plano de contrato e responsabilidade no trabalho, com o qual se conseguiria ter uma visão diferente perante a criação das crianças e adolescentes. Infelizmente, a maioria das casas ainda insiste em ser casa no trabalho voluntário e baixos salários, misturando noções de caridade e responsabilidade, sem parâmetros unificados de como satisfazer as necessidades de crianças e adolescentes. A criança soropositiva no Brasil circula inicialmente na família, ou entre vizinhos, até chegar às instituições. A modernidade também começou a limitar a liberdade de circulação da criança, fazendo-a passar por um processo legal de abrigamento, via juizado (claro que os direitos da criança são outro invento moderno). As ligações da epidemia com um passado de limitação fisica, doença e certeza de morte, ajudaram a criar uma categoria extrema de criança com Aids, como estado inamovível, apresentando problemas quando se deram a saúde e a sobrevida. A sociedade tem criado uma fantasia ao redor da criança com Aids. Por um lado, a construção histórica ocidental, no geral, faz ver a criança como sujeito inocente, assexuado, carente e necessitado de cuidados e carinhos, que não deveria sofrer. Por outro lado, a Aids ou a doença adiciona o olhar de “pesar” com o qual a sociedade se relaciona com as crianças. Outras crianças no Brasil têm sofrido devido às injustiças sociais, porém, a categoria doença, e neste caso a Aids (com o imaginário de vítima inocente),
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12 Contudo, o problema na pesquisa de Sarti é que, mesmo sendo categoria relativa, a pobreza é analisada como característica essencial do grupo social e não como fator externo que limita o livre exercício da essência das pessoas. Ver também o trabalho de Duarte (1986) para uma análise da construção cultural das classes trabalhadoras em relação aos “nervos” a às dificuldades econômicas.
Prevenção às DST/AIDS no ambiente escolar
Angélica Fonseca
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FONSECA, A. Prevention of Sexually Transmitted Diseases and AIDS in the school environment, Interface Comunic, Saúde, Educ, v.6, n.11, p.71-88, 2002.
This article largely reflects upon projected expectations regarding educational actions/activities carried out in schools, within the scope of STD/ AIDS prevention. To discuss this theme we revised historical aspects that marked the institution of Sexual Education as a school subject. We noticed a significant association between school and the objective of correcting human behavioral deviations, including sexual (mis)conduct. We also observed that the proposals for Health Education, formulated in the health field and targeting schools, establish principles, objectives and recommendations for the sexual education of adolescents and children that do not take school as a social environment as their theme. We concluded by pointing out that highly constructive contributions are likely to be developed at schools, mainly as a result of the ability to broach the apparently fixed categories that constitute the field of sexual experience as eminently historical constructions . We believe that, from this point of view, the possibility of rearranging social relations is strengthened. These social relations can have an impact on the conditions that enhance the vulnerability of individuals to sexually transmitted diseases. KEY WORDS: Acquired immunodeficiency syndrome; sexually transmitted disease; sex education; student health services. A reflexão central deste artigo constitui-se em torno das expectativas projetadas em relação às ações educativas desenvolvidas em escolas no âmbito da prevenção as Doenças Sexualmente Transmissíveis /Aids. Para discutir este tema recorremos à revisão dos aspectos históricos que marcaram a instituição da educação sexual como conteúdo escolar. Registramos uma intensa associação entre a escola e o objetivo de corrigir os desvios da conduta humana, aí incluídos os de ordem sexual. Observamos, ainda, que as propostas de educação em saúde formuladas no campo da saúde e dirigidas à escola estabelecem princípios, objetivos e recomendações para a educação sexual de adolescentes e crianças sem tematizar a escola como espaço social. Concluímos, assinalando que contribuições altamente construtivas e passíveis de serem desenvolvidas na escola se dão, sobretudo, pela capacidade de abordar as categorias aparentemente fixas que constituem o campo da experiência da sexualidade como construções eminentemente históricas. Acreditamos que a partir desse viés acentua-se a possibilidade de rearranjo de relações sociais que podem gerar impacto sobre as condições que ampliam a vulnerabilidade dos indivíduos em relação às doenças sexualmente transmissíveis. PALAVRAS–CHAVE: Síndrome de imunodeficiência adquirida; doenças sexualmente transmissíveis; educação sexual; serviços de saúde para estudantes.
Professora-pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz); Sanitarista do Programa de DST/Aids da Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro. <afonseca@malaria.procc.fiocruz.br>
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FONSECA, A.
Apresentação Que expectativas podemos ter em relação às ações educativas desenvolvidas em escolas no âmbito da prevenção às Doenças Sexualmente Transmissíveis (DST)/Aids? Na construção dessa reflexão observamos que as propostas de educação em saúde gestadas no campo da saúde e dirigidas à escola estabelecem princípios, objetivos, recomendações para a educação sexual de adolescentes e crianças sem, contudo, tematizar a escola como espaço social. Trata-se de uma produção que raramente se detém em discutir qual a especificidade da escola, como as teorias pedagógicas se relacionam com essas propostas educativas e, desse modo, a escola passa a ser uma categoria homogênea. Esse equívoco estende-se e não raramente nos deparamos com um conceito de adolescente, construído a partir da Psicologia e da Biologia, que se pretende explicativo de uma ampla categoria, a dos adolescentes, dando origem a enunciados que se transformam em clichês, tais como ‘Adolescentes gostam de testar seus limites e pouco refletem sobre riscos’. A relação entre o ensino escolar e as questões de saúde torna-se ainda mais complexa com o ingresso, nessa cena, do discurso epidemiológico que oferece, na forma de dados estatísticos de morbi-mortalidade, argumentos irrefutáveis sobre a importância de definir a escola como espaço de prevenção em saúde. Modelos teóricos ancorados em diversas disciplinas trazem os conceitos, os mais presentes, que constituem o idioma da prevenção: desenvolvimento de habilidades; mudança de comportamento; riscos e danos, protagonismo juvenil; vulnerabilidade. E assim, diante do peso de verdades científicas tão propriamente apresentadas cabe aos professores cumprir seu papel, o que freqüentemente, limita-se a experiências extremamente pontuais, cuja principal marca é o voluntarismo pessoal de seus formuladores e executores. Neste trabalho, pretendemos retomar algumas dessas questões, sinalizando que as contribuições passíveis de serem desenvolvidas na escola se dão, sobretudo, pela capacidade de abordar as categorias aparentemente fixas que constituem o campo da experiência da sexualidade como construções eminentemente históricas. Acreditamos que, a partir desse enquadramento, acentua-se a possibilidade de um novo arranjo das relações sociais, gerando impacto sobre as condições que ampliam a vulnerabilidade em relação às doenças sexualmente transmissíveis. “Não se abre à força um botão de rosa, sobretudo com as mãos sujas”: revendo a história da educação sexual Quando em 1970, a Comissão Nacional de Moral e Civismo registrou a frase acima em parecer contrário à aprovação de um projeto de lei2 que pretendia estabelecer a obrigatoriedade da educação sexual nas escolas, sintetizava assim alguns elementos ainda hoje importantes no pensamento sobre a relação entre sexualidade e educação. Sobressai nessa metáfora, uma concepção de sexualidade aliada à
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Projeto de Lei de 1968 da deputada carioca Júlia Steimbruck.
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imoralidade (mãos sujas) tida também como uma dimensão da vida em que as crianças, associadas aos seres puros da natureza (botão de rosa), estariam preservadas. Por fim, situa a educação sexual como um ato de violência. Esse pensamento, atrasado 65 anos em relação aos estudos pioneiros em que Freud nos apresentava a sexualidade como algo inerente ao ser humano e, na criança, como uma manifestação indiscutível de atividade intelectual, mostrou-se em plena sintonia com as primeiras referências que unem a educação à sexualidade. Os movimentos iniciais de articulação desses dois campos conduzem-nos à França do século XVIII, quando a preocupação com a repressão à sexualidade infantil, representada pelo controle à masturbação, desenhou uma educação anti-sexual (Barroso & Bruschini, 1990). Apesar desses registros anteriores, pode-se tomar o século XIX como um marco histórico, quando, na Europa, as questões sobre a sexualidade passaram a extrapolar os espaços religiosos para tornarem-se alvo de discussão e de regulação pública em diversas partes do mundo. Neste momento, a moral vitoriana dava contornos a uma situação bastante contraditória na qual as mulheres aprendiam, também por meio da escola, a manterem-se puras e os homens gozavam de grande liberdade sexual, por meio de uma extensa rede de prostituição. Era exclusivamente sobre as mulheres (as puras e as prostitutas) que recaíam as iniciativas de controle da sexualidade com objetivo final de preservar a saúde, ameaçada pela freqüência de doenças sexualmente transmissíveis (Weeks, 1999). A sexologia nascia nesse momento como disciplina, contendo uma referência múltipla de formação que incorporava a Biologia, a Psicologia, a Antropologia, a Sociologia e a História. Entretanto, o que parece possível abstrair-se dos encaminhamentos gerados a partir de estudos sobre a sexualidade é que todas as disciplinas adjacentes, convergiam para a conformação de um objeto que era, sobretudo, biologizado. Apresentada por um importante sexólogo da época, Kraff-Ering como um instinto de força incontrolável, a sexualidade aparecia como verdade última sobre os indivíduos. Assim, os diversos especialistas que se dedicavam à questão, detinham-se na classificação dos tipos de indivíduos “vis-à-vis” os tipos sexuais (Weeks, 1999). A relação entre essa forma de elaborar a sexualidade e o exercício do poder foi o que, no entender de Foucault (1988), desenhou quatro espaços de controle associados a quatro tipos de personalidade: a sexualidade feminina /a mulher histérica; a sexualidade infantil /a criança masturbadora; o controle da reprodução / o casal que usa contracepção; o normal / o homossexual. Assim, as instituições, quer fossem do campo jurídico, quer da educação e saúde, atuavam no controle da sexualidade a fim de orientá-la, reprimi-la ou condená-la em função dos padrões de normalidade então concebidos. Era precisamente essa concepção do espaço da educação sexual como adequado à prescrição da experiência saudável e a restrição da experiência classificada como não saudável, que exprimia sua origem notadamente higienista. O século seguinte teve início, confirmando o status de pensamento do século XIX e acrescentando novas preocupações, particularmente ao campo
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FONSECA, A.
da reprodução, denominada de transmissão da vida. A educação sexual mantinha estreita aproximação com os projetos eugenistas, que claramente sustentavam a perspectiva de aprimoramento da raça branca (Sayão, 1997) Aos professores que se envolviam com a questão da sexualidade, buscando pensá-la de forma mais abrangente, eram dirigidas acusações, cujo texto de Maurice Biglow de 1916 (apud Britzman, 1999, p.95) contém exemplarmente o espírito da época: Certos homens e mulheres neuróticos e histéricos, aos quais falta um treinamento fisiológico completo e cujos próprios distúrbios sexuais os têm levado a devorar de forma omnívora e pouco científica a literatura psicopatológica sobre sexo, de autores tais como Havelock Elis, Krafft-Ebing e Freud, são provavelmente professores pouco seguros em termos de higiene sexual.
As ações que viriam punir os docentes, considerados ameaçadores ao convívio com crianças e jovens, estenderam-se por décadas. Em 1930, no Brasil, um professor de Biologia, que incluiu no currículo de sua disciplina o papel da mulher na reprodução foi processado e demitido. Com efeito, esse caso não foi uma exceção, havendo registros de punições semelhantes no Rio de Janeiro no final dos anos 1960. Os movimentos de construção de um espaço para lidar com a sexualidade que escapasse ao âmbito biológico atingiam figuras ilustres como Berta Lutz que, ainda na década de 1920, propôs a educação sexual com objetivos de proteger a infância e a maternidade (Sayão, 1997). Esse conflito, entre uma sociedade predominantemente conservadora, mas com movimentos intensos de modernização, transpareceu na incapacidade de produzir um consenso sobre os conteúdos e metodologias para a abordagem do tema. Esse fato, aliado à militância da Igreja Católica contrária a essa discussão, determinou a exclusão do tema ‘educação sexual’ do debate educativo, delineando um tempo de omissão oficial no período entre os anos 1930 e 1960. O clima de transformação de valores comportamentais, intensamente influenciado pelas conquistas do movimento feminista reconduziu a questão da educação sexual ao debate com um novo enfoque menos normativo e mais crítico em relação à formação de valores. Durante a década de 1960, na região Sudeste, diversas escolas das redes pública e privada implementaram experiências com programas que incorporavam, inclusive, os pais de alunos. Mas não seria justamente a educação sexual, numa formatação menos repressora, que ficaria livre dos efeitos do regime político que se instalara no país. Assim, aconteceram retrocessos em relação às experiências em curso, além da coibição de novas propostas, inclusive das que regulamentavam a educação sexual. Um fato marcante foi o veto à lei da deputada Júlia Steimbruck, à qual já nos referimos anteriormente. Em meados dos anos 1970, o controle da reprodução que, há tanto tempo antes, já oferecera argumentos para a educação sexual sob a forma de controle da natalidade, vinha mais uma vez reinserir a educação sexual na
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Recompondo o discurso da prevenção Aprofundar a reflexão sobre a sexualidade como construto histórico é o aspecto nuclear da proposta de educação sexual que discutiremos posteriormente. Compreendemos que, embora não tenhamos aqui a possibilidade de realizar uma extensa revisão histórica, devemos assinalar algumas condições visíveis que marcam a produção de alternativas práticas, conceituais e atuais das propostas de Promoção à Saúde Sexual nas escolas. Grande parte do material a que tivemos acesso tinha como questão central a educação sexual relacionada à prevenção, notadamente das DST/ Aids e do uso de drogas. Acreditamos, porém, que a facilidade de acesso a publicações com esse enfoque não deve ser tomada como um dado casual, mas sim, de forma importante, como reflexo dos recursos financeiros investidos no país sob a égide da prevenção às DST/Aids. O resultado concreto é a realização de pesquisas, seminários, congressos, além da edição de enumerável material educativo. Diversos financiamentos de organismos internacionais promovem abordagens metodológicas a partir, sobretudo, das formas de avaliação convenientes aos projetos. Entre as abordagens teóricas mais comumente tomadas como referência para o trabalho educativo de prevenção em saúde, particularmente de DST/ Aids, identificamos três que merecem destaque: 1) Modelo de Crenças em Saúde (Health Believ Model); 2) Abordagem Baseada na Razão (Situated Rationality Approach); 3) Comportamento de Risco como Produto Social (Gabe, 1995). O Modelo de Crenças em Saúde -HBM é o mais difundido no campo de prevenção às DST/Aids. É classificado como um modelo psicossocial e tem 4 em Kurt Lewin a sua principal referência teórica. A partir desse modelo compreende-se o comportamento de risco como parte de uma rede de percepções encadeadas em quatro etapas. Na primeira, o indivíduo deve perceber-se sob risco; na segunda, o problema deve ser valorizado em termos de gravidade; na terceira, os mecanismos de prevenção devem ser reconhecidos como efetivos e, por fim, o indivíduo deve estar disposto à adoção de medidas preventivas. Essa perspectiva fundamenta os incontáveis trabalhos de pesquisa que partem de inquéritos, focalizando tanto as questões de comportamento, como as percepções dos indivíduos perante diversas situações de risco potencial. A categoria comportamento de risco é estruturante desse pensamento e as etapas descritas originam propostas de educação em saúde fortemente assimiladas pelo campo da saúde. Associam-se a esse modelo, as ações que consideram a produção de temor em relação à atividade sexual, um mecanismo relevante do processo educacional. O medo de adoecer seria um sentimento que promoveria os comportamentos desejáveis em relação as duas primeiras etapas e, também, geraria um efeito em relação à última etapa. Para as etapas três e quatro, ganham peso as estratégias de marketing em torno dos mecanismos concretos de prevenção até o momento, prioritariamente, o preservativo masculino.
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Kurt Lewin é reconhecido como o fundador da moderna Psicologia Social. Seus principais trabalhos, publicados nas décadas de 1930 e 1940, enfatizavam a compreensão dos problemas psicológicos a partir das interações sociais. Ficou particularmente conhecido pelo pioneirismo no desenvolvimento de dinâmicas de grupo, posteriormente adotadas em diversas áreas, entre elas a Educação e a Saúde. Foi o criador do Centro de Pesquisa de Dinâmicas de Grupo do MIT (Massachusetts’s Institute of Technology).
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De um ponto de vista mais geral, a informação ganha centralidade, devendo ser especialmente valorizada aquela que provoca mais resultado na promoção de uma percepção de risco. Assim, dados epidemiológicos apresentados pelo viés do impacto, imagens de pessoas doentes por um lado e por outro, a apresentação do preservativo como artefato da moda tornamse métodos de trabalhar a educação para a prevenção. Nesta perspectiva, as oficinas de sexo mais seguro, por exemplo, embora tentem transcender esses limites, são experiências filiadas a essa vertente. Os objetivos intermediários mais importantes são informar para o desenvolvimento de habilidades; repassar instruções e facilitar o acesso aos recursos materiais para a prevenção (Eliane, 1999; WHO,1998) com o objetivo final de uma mudança de comportamento. Um aspecto crítico desse modelo refere-se ao fato de compreender o comportamento como um evento linear e dependente apenas da vontade individual. O segundo modelo, Abordagem Baseada na Razão, também está centrado na perspectiva individual e objetiva fazer um contraponto com as teorias que identificam o engajamento em comportamentos de risco como um fenômeno irracional. Nos estudos dessa corrente, busca-se construir um sentido racional, a partir da decomposição das motivações atribuíveis às atitudes que direcionam determinados grupos de pessoas a esses comportamentos. Do ponto de vista metodológico, os estudos são qualitativos e pretendem compreender situações específicas tal como o que leva um homem que faz sexo com homens manter relações sexuais protegidas com parceiros eventuais e desprotegidas com o parceiro regular. Ambos os modelos, por desenvolverem uma análise na perspectiva exclusivamente individual, mostram-se bastante limitados como auxiliares a uma reflexão sobre comportamentos sexuais que considerem a questão do poder como uma categoria de análise relevante. O terceiro modelo considera que os comportamentos de risco são produtos de relações culturais. Nesse modelo, o termo “relações culturais” exprime não a idéia de formações sociais, mas, de grupos. De acordo com a antropóloga Mary Douglas, que desenvolveu essa visão de comportamento de risco, as variações que envolvem a avaliação de risco e a resposta ao risco são produtos de diferentes socializações em subculturas e complexas redes institucionais. Os comportamentos, então, ocorrem em função de variações dos grupos aos quais os indivíduos pertencem, além dos padrões de constrangimento impostos pelo grupo. O esquema que orienta a categorização de comportamentos é representado por duas linhas que se cruzam (em formato de cruz), em que o eixo “x” representa o grau de integração do indivíduo ao grupo e o “y” o grau de aderência que o grupo exige para cada comportamento. Diferentes situações delineiam-se: a individualista, a fatalista, e uma terceira que estaria em um ponto intermediário. A engenhosidade do esquema proposto para simplificar a compreensão de comportamentos, chama-nos atenção, cabendo perguntar: se um indivíduo só pode receber influências de um único grupo; ou, por meio de raciocínio inverso, se um determinado grupo estabelece uma mesma norma de
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conduta para todos os indivíduos. Por mais que esteja presente a intenção de não restringir à dimensão individual todos os fatores que se entrelaçam, gerando comportamentos, identificamos uma propensão à produção de estereótipos grupais. Alterando o panorama das abordagens individuais/grupais e contribuindo para a compreensão das questões de saúde articuladamente às de cidadania, encontramos o conceito de vulnerabilidade (Mann et al.,1993; Ayres,1996). Esse conceito não é uma mera substituição do conceito de risco, nem é complementar a esse. Trata-se de uma construção motivada pela necessidade de mudar os referenciais conceituais ante a constatação de que as ações preventivas colocadas nestes termos (comportamento de risco) já são concebidas de forma limitada. O aspecto fundamental do conceito de vulnerabilidade é que esse apresenta um pensamento sobre a prevenção, recusando uma abordagem redutivista, na qual a intervenção preventiva é apenas uma questão de atitude individual. Tal lógica faz de cada indivíduo em particular, um culpado em potencial. Contrapõe-se a isso valorizando as questões sociais e, destacando que, em relação ao HIV, as pessoas infectam-se: não porque individualmente assumam comportamentos de risco, queiram correr riscos, desejam se expor ao vírus... O comportamento tem a ver com o modo como as pessoas estão vivendo, como elas se reproduzem socialmente, que tipos de bens sentem necessitar, como geram os bens de que necessitam, como os distribuem e compartilham, como usufruem deles. (Ayres, 2000, p. 24)
Se optarmos por excluir do campo semântico da prevenção às DST/Aids a noção de grupo de risco e de comportamento de risco em favor do conceito de vulnerabilidade, devemos, então, construir novos objetivos e práticas mais coerentes com esse contexto. Esses novos objetivos consideram que as pessoas não têm a mesma possibilidade de transformação da sua realidade e, portanto, de adotar medidas preventivas. Desloca-se a posição do educador (esteja no serviço de saúde ou na escola) do lugar autoritário de quem determina quais são os comportamentos adequados e estabelece a censura aos indivíduos que não os adotam. Contrariando esse movimento, o que se deseja estabelecer é uma relação dialógica em que as alternativas de prevenção possam ser construídas paralelamente ao processo de ampliação de cidadania. A análise de vulnerabilidade parte do pressuposto de que os indivíduos não são culpados, mas têm também responsabilidade e capacidade de transformação da sua própria história. Categorias como “população alvo” são igualmente rechaçadas, pois o fundamental é que os indivíduos sejam partícipes do processo de prevenção. A noção de processo surge para confirmar o fato de que não existe um ponto final dado a priori, mas a combinação de possibilidades que vão se efetivando ou não, renovando-se, sendo reconsideradas em um caráter dinâmico que propõe ao educador uma postura de companheirismo nessa construção.
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A informação atualizada, o “marketing” de preservativos, o desenvolvimento de habilidades não ficam sem lugar nessa concepção de educação. Embora sejam reconhecidas como condições que podem favorecer a transmissão/prevenção, elas perdem o lugar de protagonistas para a análise das situações e condições mais gerais de vida de cada coletividade, levando a uma reflexão que consiga expandir as oportunidades para a busca da felicidade com menos riscos. De qual escola falamos? A questão que nos impomos aqui é sobre o modo pelo qual implicamos a Escola na produção de um projeto de prevenção que tem como referência o conceito de vulnerabilidade. Essa discussão remete-nos à própria concepção de escola com a qual estamos lidando. Adotar o conceito de vulnerabilidade leva-nos a reconhecer que não existe o adolescente como uma categoria homogênea, tampouco isso se aplica à escola. Vale, então, perguntar que especificidade tem a escola e, tendo por base essa resposta, argüir quais as melhores articulações dessa escola com a educação sexual, pensando na promoção à saúde. É inevitável interrogarmo-nos sobre o que tem precedência: a definição de propósitos para a escola e, portanto, os conteúdos que lhe são pertinentes ou a definição de conteúdos para a definição do papel da escola? A resposta não é simples, e o melhor caminho parece-nos que é apostar em um processo dialético em que optamos por definir uma especificidade para a escola, considerando que isso não significa fechar a escola para o novo. Quanto aos propósitos da escola, recorremos à fala de Demerval Saviani (1999) que se destaca no campo das teorias pedagógicas como o principal pensador brasileiro da Teoria Crítica dos Conteúdos. A Escola deve propiciar a aquisição de instrumentos que possibilitam o acesso ao saber elaborado (ciência), bem como aos rudimentos desse saber. (p.23) E ainda, a compreensão da natureza da educação enquanto um trabalho não-material, cujo produto não se separa do ato de produção nos permite situar a especificidade da educação como referida aos conhecimentos, atitudes, hábitos, símbolos sob aspecto de elementos necessários à formação da humanidade em cada indivíduo singular, na forma de uma segunda natureza que se produz, deliberada e intencionalmente, através de relações pedagógicas historicamente determinadas... (p.29)
Tomando essa referência, consideramos que a escola estaria, em primeiro lugar, comprometida com a transmissão do saber escolar, que remete ao saber objetivo disponível na cultura, assegurando a socialização desse saber, identificado como instrumento para a intervenção social do cidadão
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consciente. Assim, o fato de a Educação Sexual aparecer na Lei de Diretrizes e Bases da Educação (lei 9.394/96) como um tema a ser inserido transversalmente no currículo dos ensinos fundamental e médio, indicaria a propriedade do tema ser posto em análise pelas próprias instituições de ensino com o propósito de estabelecer o modo mais consistente de abordá-lo. Fortalecendo essa proposição, incide o fato de que não existe uma definição de currículo que revele uma verdade sobre o que é o currículo, o que existe são perspectivas teóricas, expressando posicionamentos diferentes. De acordo com Silva (1999), as teorias críticas e pós-críticas situam o currículo no campo político de articulação de algumas questões: o que deve ser ensinado? Em que eles ou elas devem tornar-se? Essas questões apontam para o aspecto da formação de identidade e subjetividade que consiste no núcleo da discussão sobre currículo. Saviani (1999) chama atenção para o fato de que, se tudo é pertinente no currículo, então, todos os temas acabam por ganhar o mesmo peso, criando inversões que descaracterizam o trabalho escolar. Retornando ao nosso tema específico, cabe perguntar se a educação sexual é um tema que merece inclusão no currículo e de que forma isso pode ocorrer sem tornar inespecífica a escola e sim, reforçando seu lugar de instituição social ampliadora das capacidades humanas, a fim de intervir na formação de subjetividade e nas condições concretas de transformação do seu espaço social. Reflexões e práticas bastante diversas têm oferecido um panorama dinâmico sobre o assunto, mas podemos identificar a existência de variações em torno de três eixos. O primeiro, ao qual se alinham alguns psicanalistas (Guirado,1999; Mendonça Filho,1999) parte do princípio de que o sexual não é de fato matéria que se preste ao educável e, portanto, não é desejável ter objetivos prévios em relação ao tema. A escola seria o espaço para deixar que a sexualidade fluísse para depois tomá-la em consideração. Admitindo que a sexualidade necessariamente aflora, a escola cumpriria seu papel, se, nas práticas escolares, pela aprendizagem posta por disciplinas regulares, surgissem ocasiões para que ocorra a ‘vontade de conhecer’.5 Outras práticas mais sensíveis aos apelos da saúde pública buscam transmitir os conhecimentos fundamentais, relacionados a atividades sexuais, DST/Aids e o fazem por meio de inserções de ações educativas de curta duração com que freqüentemente contam com convidados que proferem palestras, realizam dinâmicas etc. Exemplos desses movimentos são as experiências relatadas na publicação “A prevenção na escola: relato de experiências” (São Paulo, 1999). No terceiro eixo, estão dois modos de inserção transversal do tema na escola (Wilde, 2000); o primeiro compreende a utilização ilustrativa de informações do campo da prevenção às DST/Aids a partir das disciplinas, por exemplo, se na aula de matemática cujo tema é proporção, podem-se usar dados epidemiológicos, mostrando percentuais de casos entre adolescentes. O segundo, corresponde à aplicação do conceito ampliado de tema transversal, que implica a construção de valores relacionados às
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Como exemplo para essas situações, a psicanalista Marlene Guirado relata uma história, em que uma criança tem um sonho com conteúdos relacionados à sexualidade. Na escola, a professora pede uma redação e a criança relata o sonho. A redação não é alvo de interpretações, discussão ou análise, a escola ofereceu o espaço e na perspectiva da autora isso já é o bastante.
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transformações das condições de vulnerabilidade no espaço das disciplinas. No primeiro caso não se exige do professor uma reflexão de valores e conceitos próprios. O necessário é distinguir os pontos de compatibilização entre os conteúdos úteis para a prevenção e os da disciplina em questão. Dessa forma, a escola atende à demanda operacional da saúde pública sem profundas revisões. No segundo caso, a maior dificuldade é que esse processo não ocorre sem o engajamento pessoal dos docentes. É condição, a disposição para a reflexão e o aprendizado sobre os temas, além da disponibilidade pessoal para interagir com a comunidade escolar. A proposta, que pretendemos fortalecer, segue esse último caminho mas, antes de chegarmos a este ponto, consideramos importante pensar sobre um aspecto específico e pouco problematizado que é a vulnerabilidade docente. Vulnerabilidade docente Considerando-se a educação como relação social, torna-se imperativo expandir a reflexão sobre a vulnerabilidade para além dos alunos e proceder, assim, a uma discussão sobre os elementos que constituem, hoje, a vulnerabilidade docente. Contrariando o modelo moderno de mestre, no qual o professor, além do domínio de conhecimentos, deve ser um exemplo de comportamento, os Parâmetros Curriculares Nacionais, documentos que dispõem sobre as diretrizes para a Educação Sexual nas escolas, contêm um item denominado “Postura do Educador”. Seu conteúdo expressa o desejo de que o educador seja capaz de reconhecer as múltiplas dimensões da sexualidade, trabalhar com essas questões e ainda, “ter discernimento para não emitir seus valores, crenças e opiniões como sendo princípios verdadeiros e absolutos” (Brasil, 1998c). Com uma discussão ancorada nas referências psicanalíticas, Mendonça Filho (1999) chama atenção para o fato de que a condição requerida ao professor é utópica, porque também ele é um sujeito e, portanto, passível de áreas de interdição sobre o sexual. Esse seria para o autor um nó crítico que estabelece limites evidentes para a educação sexual. Assinalamos que, na literatura percorrida sobre prevenção e educação escolar, raramente era explicitada a preocupação em abordar diretamente a questão da vulnerabilidade docente, vendo essa como uma construção que integra fatores individuais e sociais com interface importante no processo de educação em saúde. A pergunta que aqui se coloca é que condições atuais limitam as possibilidades de os professores atuarem na prevenção às DST/ Aids? Existem registros na literatura sobre um fenômeno emocional, o burnout que atinge diversos segmentos profissionais e que, para o caso dos educadores, foi descrita da seguinte forma: O burnout é uma desistência de quem ainda está lá. Encalacrado em uma situação de trabalho que não pode suportar, mas de que também não pode desistir. O trabalhador arma,
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Recentemente o prefeito de uma cidade da Alemanha declarou o interesse em fazer uma operação de mudança de sexo. Os eleitores inciaram um movimento pela sua destituição, já que ele se tornara outra pessoa. Curiosamente esse tipo de questionamento raramente se dá mesmo diante a problemas que dizem respeito à gestão pública. Esse pensamento é claramente herdeiro da visão essencialista da sexualidade.
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que apontam para formas diferentes de considerar essa questão: o essencialismo e o construcionismo histórico. Por meio da visão essencialista, é possível explicar o todo a partir de um elemento que funciona como uma verdade interior. A identidade de um indivíduo seria então, definida a partir do modo como ele pode ser sexualmente classificado (Weeks, 1999). O pressuposto dessa visão é que o corpo expressa uma verdade fundamental e que a biologia é um destino6. A visão de sexualidade como construcionismo histórico remete-nos ao pensamento de Foucault (1988, p.105), segundo o qual : A sexualidade não deve ser pensada como um tipo de dado natural que o poder tenta manter sob controle, ou como um obscuro domínio que o conhecimento tenta gradualmente descobrir. Ela é o nome que pode ser dado a um construto histórico: não uma realidade furtiva que é difícil de apreender, mas uma enorme superfície em forma de rede na qual as estimulações dos corpos, a intensificação dos prazeres, o incitamento ao discurso a formação de um conhecimento especializado, o reforço de controles e resistências estão vinculados uns aos outros, de acordo com algumas poucas estratégias importantes de saber e poder.
Também em relação ao pensamento sobre sexualidade, tomando como referência a noção de construção social, existe uma diversidade de modos de pensar sobre as forças culturais que modelam a sexualidade e a forma pela qual o fazem. O denominador comum entre essas diferentes vertentes é o reconhecimento de que atos sexuais idênticos podem adquirir significados sociais inteiramente diferentes, em função de diferenças culturais ou históricas (Parker, 2000). Se não existe pois, uma relação fixa entre atos sexuais e identidades sexuais, o que existe são representações que variam culturalmente. A discussão sobre a construção social da sexualidade prossegue, incorporando um questionamento sobre a inerência ao indivíduo de uma orientação sexual, ou se essa é também construída socialmente. As opções de resposta variam, considerando que a orientação é fixa e o comportamento, construído culturalmente pela experiência subjetiva do indivíduo. Na sua vertente mais extrema, o construcionismo social afirma que não existiria nada relacionado à sexualidade (impulso, orientação etc ) que possa ser atribuído ao fisiológico. Admitindo-se, como referência para nossa proposta de educação sexual, que a sexualidade é uma construção histórica, devemos, então, trazer ao debate nas escolas, a questão sobre o modo como determinadas características podem ser reconhecidas como marcas de identidade (Louro, 1999). Quais seriam essas características que mereceriam destaque no debate escolar? Quais instituições sociais deveriam participar? De que forma tais instituições atuariam nessa produção?
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Neste ponto são temas relevantes os modos como se construíram as categorias de homossexualidade e de heterossexualidade; como foram construídos os padrões de normalidade sobre a idade certa para o relacionamento sexual e sobre que tipo de relação os legitima. De que forma esses padrões variam, não apenas no tempo e nas diferentes culturas, mas também como acontecem diferenças entre classes sociais. Um campo amplo de discussão e que merece ser posto em pauta são as relações de gênero, esse concebido como diferenciação social entre homens e mulheres, ou seja, sob a forma de construção do masculino e do feminino. É necessário deslocar-se da perspectiva biológica para tentar dar evidência ao fato de que as diferenças e desigualdades entre os gêneros são construídas no espaço social, assim como mostrar que essas identidades não são polares, sendo necessário pensar em várias e diferentes mulheres, em vários e diferentes homens (Parker, 2000; Britzman, 1999; Louro, 1997). Raras instituições não modelam essas identidades. Escola, Igreja, Família, Saúde Pública, Ciência e, mais insidiosamente, a Linguagem, por exemplo, atuam pedagogicamente, definindo o campo do desejável, aceitável, reprovável, saudável, estético etc. Torna-se, então, extremamente pertinente que a escola promova a identificação das formas pelas quais essas produções de sujeitos corram evidenciando seu caráter permanente. Trazer a discussão da sexualidade para o âmbito público é quebrar a noção de que essa é uma experiência que se desenha exclusivamente no espaço individual, revelando sua trajetória no espaço social. São inúmeros os debates que se originam deste campo, mas a escola que pretende desenvolver uma educação sexual não pode deixar de mobilizar–se em direção ao entendimento de que a escola atua sobre o corpo e sobre a sexualidade. Mobilizar-se para discutir como organiza-se em discursos sobre o feminino e o masculino, sobre o homem, a mulher e os estereótipos que se estabelecem socialmente (a propaganda e a literatura, por exemplo oferecem inúmeras oportunidades para essa discussão). Não podemos porém, recomendar uma reflexão sobre a sexualidade que, de tão preocupada em preservar a especificidade da escola como forma de acesso ao saber científico, distancie-se do fato de que a sexualidade deve ser antes de tudo reconhecida como uma experiência prazerosa. Apostamos que a forma como são tratados esses assuntos também deve ter essa dimensão do prazer envolvido. Acreditamos que o que se deve questionar, sobretudo através de nossa prática docente, é como se pode estimular o aluno. No caso de nosso interesse, o desafio é descobrir como se pode provocar no aluno o desejo de construir e integrar os conhecimentos na perspectiva de fortalecer um cuidado de si. Supomos que um caminho fundamental a ser trilhado seja o de manter uma vinculação estreita com a realidade. Nesse sentido, é imprescindível o conhecimento sobre a realidade em que se insere especificamente cada grupo de
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alunos. Esse conhecimento deve dizer respeito não somente às características do segmento social dos alunos, mas também da comunidade a que pertencem, incluindo valores e hábitos culturais. Trata-se, aqui, de fortalecer a visão segundo a qual o método didático seja estruturado a partir de dois eixos: o conteúdo e os sujeitos envolvidos na aprendizagem (Candau,1990). A partir daí, devem ser consideradas as alternativas práticas, admitindo que ser moderno não se reduz, nem se expressa, pela utilização de múltiplos recursos, mas, sobretudo, pela capacidade de refletir sobre as questões contemporâneas. A primazia, então, não se dá sobre recursos e sim sobre a clareza de propósitos e a consistência das idéias, elementos de uma educação que se transforma e que se pretende transformadora. No campo da sexualidade e das DST/Aids, inúmeros materiais têm sido produzidos e oferecem uma variedade grande de modos de fazer dinâmicas, inclusive, especificamente para adolescentes (Brasil, 1997). São instrumentos válidos que merecem ser criteriosamente analisados quanto a seus limites e possibilidades. Não são receitas universais que garantem mobilização afetiva e, assim, a elaboração de novas formas de se pensar o mundo. Por fim, deixamos registrado que esse não é um campo de conhecimento fechado; ao contrário, é mais um desafio para quem pretende continuar pensando, revendo e revelando novas formas de atuar. Considerações finais Em relação à educação sexual, o que a história nos mostrou é uma grande disponibilidade de associação entre a escola e o objetivo de corrigir os desvios da conduta humana, aí incluídos os de ordem sexual. Devemos chamar a atenção que, sob o argumento de urgência social, traduzidos em índices epidemiológicos, estamos, mais uma vez, correndo o risco de reeditar o aspecto mais tradicional e menos construtivo dessa interação entre o sexual e a educação, muito embora travestidos com novos métodos e apoiados em discursos de indiscutível cientificidade. A face mais visível dessa situação é a intensidade com que são incorporados os modelos educativos, que têm como pressuposto a identificação de comportamentos de risco e, como objetivo, a mudança de comportamento. Centradas no indivíduo, as práticas decorrentes dessa forma de compreender o processo saúde-doença reiteram a culpabilização desse mesmo indivíduo e esvaziam as possibilidades de diálogo que são condicionantes de uma estratégia de prevenção que pretenda promover o cuidado de si. Confluindo para o fortalecimento dessa prática, insere-se a percepção de que os aspectos, que constituem a vulnerabilidade dos indivíduos, determinam nossa impossibilidade de estruturar um compromisso com a promoção à saúde. Desse modo, assim como as representações negativas que os docentes têm dos alunos torna-se um elemento a instituir o fracasso escolar, não situar criticamente os aspectos de vulnerabilidade como questões internas ao trabalho de prevenção pode reduzir a escola a uma
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função reprodutiva, incompatível com os propósitos que estão sendo para ela delineados no campo da saúde. Valorizamos a alternativa que assume a sexualidade como construção historica, mediante discursos paralelos, que se combinam, excluem-se contradizem-se e são, fundamentalmente, oportunidades de reflexão. Sublinhamos a perspectiva histórica como um eixo de pensamento que pode concretamente perpassar as diversas disciplinas. Consideramos que, se cada disciplina oferece uma forma de abordar a questão da sexualidade e da prevenção as DST/Aids, poderá também mobilizar a atenção para o fato de que esses conhecimentos são também historicamente construídos. Para finalizar, gostaríamos de articular as propostas de promoção à saúde a serem desenvolvidas por escolas com a proposta de revalorização da escola. Isso não se faz presente somente por referência a uma postura ideológica e sim pela crença de que um espaço que, aos alunos, aparece como o espaço do descaso público, só em casos excepcionais poderá edificar-se como um lugar de criação de novas relações, com menos riscos e mais felicidade. E o impacto em saúde pública, todos nós sabemos, não se estabelece em torno de excepcionalidades.
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FONSECA, A. Prevención contra las enfermedades sexualmente transmisibles en el ambiente escolar, Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.6, n.11, p.71-88, 2002. La reflexión central de este artículo se constituye alrededor de las expectativas que pueden ser proyectadas en relación a las acciones educativas desarrolladas en escuelas en el ámbito de la prevención a las EST/SIDA. Para discutir este tema recurrimos a la revisión de los aspectos históricos que marcaron la institución de la educación sexual como contenido escolar. Registramos una intensa asociación entre la escuela y el objetivo de corregir los desvíos de la conducta humana, incluidos allí también los de orden sexual. Además, observamos que las propuestas de educación en salud formuladas en el área de la salud y dirigidas a la escuela establecen principios, objetivos y recomendaciones para la educación sexual de adolescentes y niños sin tematizar la escuela como espacio social. Finalmente señalamos que contribuciones altamente constructivas y de desarrollo factible en la escuela se dan, sobre todo, por la capacidad de abordar las categorías aparentemente fijas que constituyen el área de la experiencia de sexualidad como construcciones eminentemente históricas. Creemos que a partir de esa orientación se acentúa la posibilidad de readaptación de relaciones sociales que pueden originar impacto sobre las condiciones que amplían la vulnerabilidad de los individuos en relación a las enfermedades sexualmente transmisibles. PALABRAS CLAVE: Síndrome de inmunodeficiencia adquirida; enfermedades sexualmente transmisibles; educación sexual; servicios de salud de los estudiantes.
Recebido para publicação em: 30/01/02 Aprovado para publicação em: 14/05/02
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artigos
A traição nas relações de trabalho da Universidade Aparecida Mari Iguti
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IGUTI, A. M. Betrayal in the university’s workplace, Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.6, n.11, p.89-104, 2002.
This is a short essay in which we point out issues for reflection regarding the University and betrayal in work relations, which, we believe, has become more intense in the last few years. Based on the testimonies of academic staff and researchers and on the available literature, we have tried to contextualize the world of university work and its current dynamics, which foster this type of attitude. Certain possibilities were raised concerning the reason why they occur, including the issues of power and jealousy. It was considered that betrayal may be regarded as the beginning of the decay of human relations, from an individual point of view, as opposed to solidarity and the collective aspects of work. KEY-WORDS: Universities; interprofessional relations; work.
Trata-se de pequeno ensaio, no qual levantamos pontos para reflexão sobre a Universidade e a traição nas relações de trabalho que, parece-nos, têm se intensificado nos últimos anos. Baseados em depoimentos de acadêmicos e pesquisadores e em literatura disponível, procurou-se contextualizar o mundo do trabalho na universidade, com suas atuais dinâmicas que propiciam este tipo de atitude. Levantaram-se algumas possibilidades do porquê de sua ocorrência, entre elas as questões do poder e da inveja. Considerou-se que a traição pode ser um indício da degradação das relações humanas, numa perspectiva individualista, contra a solidariedade e o coletivo do trabalho. PALAVRAS-CHAVE: Universidade; relações interprofissionais; trabalho.
1 Docente do Departamento de Medicina Preventiva e Social da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (FCM/UNICAMP. <iguti@unicamp.br>
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Introdução Este texto pretende ser uma provocação: se para você esta questão não tiver nenhum sentido particular, convido-o a uma leitura, por simples curiosidade. A intenção foi de fazer uma reflexão livre, sem maiores preocupações; surgiu a partir de experiências e de vivências de colegas, alunos e pacientes, relatadas em situações bastante diversas. As informações foram coletadas ao longo do tempo. Percebemos que havia certa semelhança entre os relatos de distintos “casos”, no ‘jeito’ de acontecer. Inicialmente este texto foi pensado só para “uso interno”, mas quando algumas pessoas leram, verificamos, com certa surpresa, que não era tratado como algo anedótico, levava a novos depoimentos e a reflexões. Trata-se, portanto, do resultado dessas múltiplas combinações e que lançamos, a seguir, como uma síntese inicial aberta a novas análises. A questão Trabalhando nos últimos anos em uma instituição pública, com o olhar da formação em Saúde Ocupacional, observamos fatos que, sem dúvida, sempre existiram, que vêm ocorrendo, porém, com intensidade e freqüência maiores. Que fatos são estes? São ocorrências que acabam por afastar ou bloquear as atividades de profissionais da instituição. Citamos alguns fatos, tais como o afastamento de docentes; a tentativa de demissão de docentes e funcionários; transferências de docentes e funcionários de setores e atividades; a não contratação em regime estável de docentes; a colocação de funcionários “à disposição”; a perseguição às pessoas que compõem o grupo do “atingido”; o bloqueio, a obstrução, o não acolhimento de atividades, mesmo que (aparentemente) de interesse para a instituição; a avaliação negativa de relatórios e projetos que podem afetar a vida funcional (no limite do desrespeito); a recusa de projetos e outras formas que dificultam a vida laboral de pessoas. A nossa interrogação é: porque ocorrem, e porque esses profissionais são atingidos? Uma das características da universidade pública é de uma certa estabilidade de emprego, garantida pela constituição atual, desde que o funcionário não incorra em delitos estabelecidos na legislação específica, e que possam caracterizar demissão por justa causa. Outros problemas funcionais, como a falta de compatibilidade com a chefia, podem levar um funcionário a ser “colocado à disposição” da instância imediatamente superior, na universidade. Não vamos neste trabalho considerar as outras formas mais precárias de relações de trabalho, quando estas questões ficam opacas, pois sequer chegam a vir à tona. Nenhuma das pessoas cujos casos conhecemos e que serviram de base para esta reflexão, encontrava-se na categoria de funcionário sem produtividade, nem com problemas de natureza ética, ou sob algum tipo de processo legal que pudesse ser alegado para afastamento ou demissão por justa causa; pelo contrário, esses funcionários tiveram, todos, ocorrências ‘não justificadas’, com ausência de quaisquer fatos reais que pudessem ser caracterizados como de delito. Esses processos têm envolvido chefias e alguns outros profissionais que
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possuem algum poder, direto ou indireto. A forma de se conduzir é geralmente indireta ou à revelia do principal interessado, que só fica sabendo uma vez os fatos consumados. Existe, pelo conjunto do grupo, aceitação, omissão, ou atuação efetiva prejudicando o profissional, daí o termo utilizado de “traição”. Neste trabalho, consideramos traição todo e qualquer ato, ativo ou passivo, por interferência ou por omissão, feito por trás, pelas costas, visando com isso prejudicar, causar dano, problemas, de ordem individual e institucional, relacionado ao trabalho. Algumas características dessas pessoas “traídas” (não iguais ou presentes em todos os casos) incluem ter uma posição de independência, autonomia, uma postura crítica na tomada de decisões, um certo perfil ‘competente’, combativo, possuir uma certa liderança, ou ainda, procurar fazer corretamente e sobretudo não pertencer, de forma visceral, às ‘panelinhas’. Notamos pressões diversas que produzem a desarticulação de docentes com maior crítica, afastamento das pessoas, com perda de relações coletivas, cada um defende-se por si só: ... algumas coisas começaram a acontecer de forma grave no departamento. A primeira foi a questão persecutória em cima de pessoas que estavam do meu lado...- todas foram praticamente demitidas (...) A grande dúvida continua na cabeça de todo mundo. Quer dizer está havendo influência política para uma inércia, ou não?(...) porque há interesse em não continuar o trabalho, isso me parece bem claro (...) Interessa a muita gente a ineficiência desse nosso serviço. (Massini, 1999, p.28)
A vida dos funcionários não estáveis é muito diferente dos estáveis e existem pelo menos duas categorias de trabalhadores, sendo que isto também gera reações entre estas. Para funcionários não estáveis, o fim de um contrato de trabalho, seja pelo fim de um projeto de pesquisa e/ou de um serviço, gera pressões e insatisfação; este mesmo fato também gera instabilidades no quadro estável, pois dificulta ou inviabiliza projetos, obriga muitas vezes os docentes/ pesquisadores a procurarem outras fontes de recursos, para continuar a tocar as pesquisas. O boicote e a obstaculização podem aparecer na forma de ausência de suporte estrutural, técnico: “se não quiser que você escreva uma matéria, desligo o seu computador, ou não dou computador, ou não dou papel para você colocar na impressora. É uma forma velada de punir. Se não quero, não prestigio” (Massini, 1999, p.26). Desprestigiar figuras com certa capacidade de articulação e independência, prejudicando-as, anulando-as, mesmo que as questões possuam alta relevância institucional; usando argumentos de caráter pessoal, de ser, por exemplo, “chato”, “cri-cri”, “difícil para se trabalhar”, desqualificando-as para as atividades profissionais de maior relevância. Muitas vezes notamos que os interesses individuais se sobrepõem aos coletivos; baixa preocupação com a questão institucional. E diferenças profissionais são tomadas pessoalmente, com grande freqüência. Também o professor passa a ter a função de “captar recursos” para a complementação salarial e para conseguir realizar suas pesquisas, item este, cobrado pela instituição e pelos pares.
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Contexto A Universidade para o mercado O essencial é, gradualmente, tornar as universidades fundações autônomas, de direito privado, que contratem professores e funcionários pela legislação trabalhista e organizem fundos de pensões para eles. Os professores poderão alcançar estabilidade depois de alguns anos, adotando-se o sistema de “tenure” americano. Mas não será estabilidade automática. Só os melhores alcançarão. As universidades deverão ter liberdade para contratar, estabelecer salários, planos de carreira. (Bresser Pereira, 2000, p.11)
Este trecho foi escrito pelo ministro da reforma do Estado do governo federal de Fernando Henrique Cardoso, e professor de Economia da Fundação Getúlio Vargas, FGV/SP. Este tipo de discurso nos coloca claramente o ideário neoliberal e privatizante encadeado pelo governo. Também traz claramente critérios que são altamente seletivos e excludentes, contrariando os princípios da universidade, pois quais poderão ser esses? “Por que os professores universitários deveriam ter segurança quando tantos outros norte-americanos já não tem?” Segundo Wiener (2000, p.14), a imprensa americana diz que, no mundo acadêmico, a estabilidade no emprego tornou-se obsoleta. A academia deveria submeter-se à lógica de mercado, os administradores das universidades precisam de flexibilidade, que seria preciso buscar o melhor custo/benefício para o emprego de recursos educacionais, como por exemplo substituir professores veteranos por pessoal novo, com salários mais baixos... Para Chait (1999 apud Wiener), a alternativa à estabilidade seria um contrato por prazo limitado, sob o qual professores seriam empregados por três-cinco anos, sem promessa de renovação, ou ainda o trabalho sem prazo definido, de senior ou educador clínico, sob indicações anuais, enquanto o administrador estiver gostando do educador ou não arranjar alguém melhor...Outra forma encontrada pelas universidades americanas é da contratação de professores em tempo parcial, uma vez que não gozam de benefícios concedidos aos estáveis em tempo integral, ainda considerando que somente um quarto dos professores das universidades americanas seja estável. Quando você tem um pró-reitor de graduação que propõe uma flexibilização da grade curricular para o mercado, você já tem então embutida toda uma decisão que vem da cúpula (...) o que aconteceu nestes últimos seis anos no Brasil foi um desmonte programado, intencional, racional, de todo um sistema de produção de saberes (...) de estruturas de construção de saberes locais, como laboratórios, centros, serviços de apoio. (Romano, 1999, p.22) Nas universidades, o que prevalece é o modelo da administração eficiente, capaz de gerar seus próprios recursos estabelecendo nexos cada vez mais profundos com o mercado e com a corrida tecnológica. A eficácia de desempenho é medida em termos de sucessos estatísticos, de capitais, produtividade e visibilidade, todos conversíveis em valores de marketing
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para atrair novas parcerias, dotações e investimentos. Um dos sintomas mais reveladores desse novo quadro é a insistência em que a avaliação dos professores requeira de cada um alguma forma de envolvimento em atividades administrativas. Claro que isso possibilita cortar o número de funcionários ao mínimo. Mas, mais que isso, acumplicia todos nesse novo espírito de racionalidade gerencial. O professor ideal agora é um híbrido de cientista e corretor de valores. Grande parte de seu tempo deve ser dedicado a preencher relatórios, alimentar estatísticas, levantar verbas e promover visibilidade para si e seu departamento. O campus vai se configurando num imenso pregão. O gerenciamento de meio acabou se tornando fim na universidade. A idéia é que todos se empenhem, no limite de suas forças, para que também compartilhemos do inexorável destino manifesto. (Sevcenko, 2000, p.7) O recado para os professores das universidades públicas é claro: se quiserem seguir seus postos, saibam que seus salários serão cada vez mais achatados, suas condições de trabalho piores, sem substituição para os que se aposentarem e portanto com cargas de trabalho cada vez maiores. As condições de aposentadoria seguirão sobre pressão e assim se puderem, aposentem-se logo, transfiram-se para universidades privadas para complementar a aposentadoria que evidentemente não lhes basta. Paulo Renato, por um lado, e Pedro Malan, por outro, e FHC, por todos, trabalham assim como quintas colunas do caráter público do Estado, com políticas totalmente funcionais como privatização e a mercantilização da educação, em troca de apoio que recebem da bancada que defende os interesses do ensino privado no Congresso. (Sader, 2000, p.27)
Recursos para trabalhar e viver, núcleos de controle institucional Com o salário que recebe nas universidades paulistas, trabalhando em regime de tempo integral, o professor não tem mais condições de exercer a sua função com dignidade e competência: falta-lhe dinheiro para comprar livros e acompanhar a discussão cultural e artística, de inteirarse das transformações tecnológicas que afetam toda produção de conhecimento, falta-lhe pão do espírito. Isso já seria trágico, se não lhe faltasse ainda o principal: a tranquilidade para concentrar a atenção em suas aulas e pesquisas. Atolado na viração, nos bicos para tapar os buracos de cartão de crédito, ele vai se acostumando às práticas do mercado informal de trabalho, adaptando-se à lógica do imediatismo que nos leva a fazer tudo e qualquer coisa em troca de sobrevivência. As marcas da proletarização estão expostas até mesmo na gastura e no envelhecimento precoce de muitos de nós. (Santos, 2000, p.5)
Os postos universitários são extremamente mal pagos, o apoio à pesquisa antes se caracteriza pelo acúmulo de obrigações burocráticas (informes, questionários, ênfase quantitativa em trabalhos que não serão lidos) do que por verbas para conservação e atualização das bibliotecas, para publicação de revistas de periodicidade constante, para o contato com colegas nacionais e estrangeiros. Além disso, como a degradação do ensino vem do curso secundário, as aulas
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passam a ser dadas para turmas sem preparo e interesse, muitas vezes para alunos semi-alfabetizados. Assim o professor, a curto prazo é obrigado a optar por cursos medíocres, a médio prazo se desinteressa progressivamente pelo que faz e a longo prazo internaliza (e esquece) a mediocridade que dele se apropria, isso para não falar dos que já iniciam sua carreira com ela (Lima, 2000). Na lista de espera dos ansiolíticos e antidepressivos estão “winners” que temem cair para a segunda divisão; “losers” que jamais sairão dos bancos de reserva; cientistas e intelectuais de pires na mão, tentando convencer os “organismos de financiamento” que suas investigações dão lucros; pensadores que param de pensar para se engalfinharem com colegas por uma bolsa de estudos a mais. (Freire Costa, 2000, p.19)
Como afirma Goldenberg, ex-reitor da Universidade de São Paulo (USP) e exministro da Educação (República, 2000, p.28): “Os governos sempre trataram de manter a universidade sob rédeas curtas, colocando-a em uma estrutura administrativa na qual tenham controle, utilizando inclusive instrumentos financeiros”. Uma estratégia eficiente, já que ao Estado cabe financiar a universidade pública. Para Dalmo Dalari, jurista e professor da USP (República, 2000, p.28), hoje, as universidades vivem uma falsa autonomia porque não têm como ser autônomas em nenhum aspecto se não têm recursos suficientes para trabalhar”. A crise financeira das universidades impede a contratação de novos profissionais para substituir os que se aposentam e a progressiva adoção pelas reitorias da doutrina neoliberal consagra a idéia de que a atividade intelectual se mede na multiplicação de turmas e disciplinas. Isso transforma os professores em “dadores de aulas” para classes numerosas, aproximando-os de seus colegas das “universidades” privadas. É o que chamo de professorado lúmpen. Contudo, precisamos encarar, por um lado, nossa crescente proletarização em termos econômicos e por outro, nossa insidiosa transformação numa espécie de lumpesinato intelectual. Para começar deveríamos prestar atenção ao modo como hoje somos vistos dentro da sociedade brasileira: como coitados ou otários. (Santos, 2000, p.5) A universidade está empobrecendo, os salários estão diminuindo. Então ela vai começar (uma discussão) com a perspectiva de – como na classe média – se transformar numa discussão filosófica. A classe média está sendo chamada a uma outra discussão: não pode mais mandar o filho à uma boa escola, não pode mais cuidar da saúde, não pode mais envelhecer, não pode mais ficar doente. ...Com a globalização, a escolha é cada vez mais estreita. Por conseguinte, o campo de pensamento se afunila e a distância em relação à busca da verdade aumenta. E hoje há uma tecnização da pesquisa, quer dizer, há uma necessidade de dinheiro que complica, pois este é distribuído para os centros de pesquisa que aceitam essa instrumentalização. E pensar livremente se dá a partir de um certo estágio, uma certa experiência ou um certo gênio – gênio de
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qualquer idade – o que significa um número menor de pessoas, que tem por isso público menor. E o público vai exatamente para o outro lado. A universidade pública seria o lugar do intelectual público. Mas hoje a possibilidade de ser intelectual público é cada vez mais limitada, pelas razões citadas. (Milton Santos, 2000, p.17)
A avaliação como forma de controle A linguagem formal para o processo é “produtivo e improdutivo”, você é classificado em A, B, C, D. Essa classificação determina a distribuição de bolsas, determina auxílios para colóquios, congressos, publicações, enfim, para infraestrutura de pesquisa. Então você tem um controle econômico da produção a partir desses critérios inteiramente abstratos e quantitativos da produtividade... Então consolida-se um processo de fragmentação, de hierarquização da qualidade e de hierarquização dos recursos. E isso, do ponto de vista do contrato de gestão, recebe o nome de autonomia. A autonomia não é o poder da universidade para se autodirigir e decidir currículos, a avaliação etc. A autonomia refere-se à liberdade para encontrar formas convenientes de gestão de recursos quanto à operacionalidade, se ela tem de dar resultados e ser funcional, precisa de um referencial (...) [existe o] Maior número de avaliações, com critérios pouco transparentes, e contraditóriamente, ao mesmo tempo excessivamente quantitativos, rígidos, dificultando a expressão de singularidades. Um dos problemas relaciona-se ao acesso aos recursos humanos e financeiros, então tolher profissionais ao acesso a certos cargos, por exemplo, traz embutido o efeito da impossibilidade a este acesso(...) Então, nos centros de excelência, a produtividade é medida pelo número de publicações, pelo número de orientandos na pós graduação, pelo número de cursos de extensão (...) qual é o sentido dessa brincadeira? É a distribuição de recursos. (Chauí, 1999, p.27) Não existe um pensamento filosófico ou científico sem direito de errar. E esse direito está sendo negado pelo tipo de avaliação da universidade. Você tem de acertar sempre, é fábrica de pãozinho, a receita foi dada, um mestrado é feito em dois anos e meio, três anos e um doutorado em quatro. E dane-se quem não fez isso aí. E na avaliação também da produção teórica (...) Mas existe gente especializada em avaliação, existem núcleos de avaliação. Pergunto o seguinte: o que eles fazem no campo da pesquisa? Quem é antropólogo e que só avalia os outros (...) De repente, você só tem avaliadores, que avaliam físicos, matemáticos, químicos etc etc... Não conheço indivíduo ou grupo que possa ter um domínio tão grande que possa avaliar tudo isso. O que quer dizer que a avaliação nesse sentido, é picaretagem pura. (Romano, 1999, p.23)
Dejours (1999, p.17) critica essas formas ditas modernas de avaliação, pois, segundo seu olhar, só trazem maior sofrimento no trabalho.
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Sou adversário feroz e definitivo desses métodos de avaliação. O principal objetivo deles é provocar medo nas pessoas. Hoje o principal elemento estruturante do trabalho é o medo, a ameaça do desemprego e da precarização. Essa ameaça se combina com o temor de não conseguir manter o desempenho, o ritmo, os objetivos, de não estar à altura da situação e das mudanças tecnológicas. Nesse quadro, tudo o que você fizer, será avaliado. (...) o que é socialmente útil não é forçosamente produtivo. Como medir por exemplo, a produtividade de um psiquiatra ou de um assistente social? (...) No setor público, por exemplo, o que conta frequentemente é o número de casos tratados. (...) Na realidade, a avaliação do trabalho é uma coisa impossível. O que é decisivo no trabalho é a engenhosidade, os truques de inteligência que driblam os regulamentos para que o sistema funcione, saber resolver problemas imprevistos. Mas tudo isso pertence ao domínio do invisível.
Os motivadores Aspectos individuais: será a inveja um forte motivador? A inveja: A inveja e o ciúme devem ser vistos no contexto histórico e social das instituições, numa sociedade em mutação, competitiva e individualista, cujas circunstancias atuais são agravantes desse quadro (Guerreiro & Anderson, 1998). Para Shengold (1995) a inveja representa destrutividade primária, pulsão de morte; trata-se de sentimento complexo, em que o objeto da inveja não é o bom objeto, é o objeto onipotente idealizado (Feldman & De Paola, 1998). Porém, não é tido como patológico pela sociedade. Para De Gaullejac (1997), a inveja é uma ambição negativa, da vingança, do orgulho ofendido, contra uma comparação humilhante; o autor realizou estudo, por meio de entrevistas com alunos: o indivíduo se compara com o outro, se acha menos e o orgulho fica ferido. Para o sujeito, a inveja implica que os outros tenham boa sorte e o próprio, má sorte (Teigen, 1997). A inveja pode ser compreendida como a resultante parcial de um sentimento subjetivo de injustiça muito grande (Smith et al., 1994). Segundo Anderson (1987), Jung via na inveja a experiência subjetiva do outro, como defesa das coisas e a grandeza dos outros e não como o ódio herdado do bem. Nesta perspectiva, a inveja emerge como tentativa desesperada de preservar o sentido de ser alguém contra o temor de não ser. Sente-se ameaçado de perder sua identidade, o que lhe causa insegurança, limitação e fragilidade. Do ponto de vista de sua expressão, ela pode ser depressiva, ativa ou neutra. A inveja pode ainda, segundo Sandell (1993), ser entendida como um fenômeno psicoparanóide com desesperança e fantasias persecutórias e sentimento de cisão objetal; existe uma relação estreita entre inveja, narcisismo e admiração. Inveja e admiração são analisadas como vias alternativas, essencialmente contrárias para lidar com situação de privação, quando a pessoa percebe que possui menos que os outros. A ambição e o medo podem levar a táticas de poder no trabalho; podem ter funções construtivas ou manifestações pouco saudáveis do poder, como o silêncio, com freqüência devastador, críticas públicas, sarcasmo. Embora a inveja seja negada por muitos (os outros são os invejosos), existem recomendações claras e
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publicadas “para evitar as relações doentias de inveja no trabalho”, como trabalhar em equipe; adesão a normas e regulamentos não oficiais do trabalho; limitar a autopromoção; evitar a ostentação de riquezas; utilizar a meditação; sair do sistema doente (Horner, 1989). Lewis (1993) diz, a propósito da inveja, que para compreender como as pessoas funcionam em seu cotidiano, exige-se uma exploração interdisciplinar do fenômeno de mentir e de decepção. Roussillon (1991) descreve a constituição complexa da psique, em função de experiências vividas que, no processo de elaboração mental, sempre deixa “resíduos”, que provocam limitações, num processo dialético; cita Freud, que em 1920, os evocaria por meio da metáfora dos protozoários, em que estes resíduos poderiam operar um retorno destruidor no interior da sua elaboração mental, desenvolvendo uma verdadeira cultura de pulsão de morte, e que Melanie Klein procurou teorizar na noção de ataque invejoso primário. O espaço de tratamento dos resíduos pode ser uma reunião ou ainda pode se encarnar numa determinada pessoa; esse mecanismo está presente no fenômeno do “bode expiatório” ou da “vítima sacrificial”, descrito por Girard (1972 apud Roussillon, 1991, p.139). Freud descreveu, em 1921, a natureza identificadora da coesão grupal, o cimento fantasmático das instituições, atribuindo inversamente à inveja um papel desorganizador. Uma das hipóteses é que de alguma forma essas pessoas despertam nos integrantes dos grupos de trabalho sentimentos de ameaça, levando as pessoas a sentirem como se tivessem que defender a própria sobrevivência (egóica). Alguns fatos poderiam constituir fontes de ameaça, como por exemplo “o reconhecimento de alguém que vive e trabalha pela sociedade”, a ética, a propósito de tentativas de suborno: “..porque a clareza do meu ponto de vista é muito conhecida... não trabalho, não recebo. E todo mundo sabe o que eu tenho, o que não tenho, o que consegui, como pago minhas contas” (Massini (1999, p.26). Agora, que responsabilidade pública tem alguém que julga um projeto de pesquisa no anonimato mais absoluto? Este anonimato serve para você não prestar contas dos ‘dinheiros’, mas serve também para você cortar idéias, perseguir inimigos, dar um rumo definido do saber. (Romano, 1999, p.25) (...) a inveja é dissimulada, camuflada, camufladíssima, uma loucura. As mulheres são mais diretas, mais limpas. Os homens são invejosíssimos. (Ventura, 1998, p.138)
Narciso O conceito do contrato narcísico comporta três idéias: a primeira é que o indivíduo constitui-se em sua própria finalidade e, ao mesmo tempo, membro da cadeia à qual se encontra preso; a segunda é que os pais constituem a criança como portadora dos seus sonhos de desejo não realizados e que o narcisismo primário dela apóia-se no dos pais; e a terceira, que o Ideal do Ego é uma formação comum à psique singular e aos conjuntos sociais, incluindo as instituições.
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Motivações “íntimas” podem ser percebidas: vaidade - “Lógico que o interesse político chama o interesse público, o interesse público chama o interesse financeiro e as coisas vão se complicando por aí...é o domínio da vaidade pessoal”; inveja - “Dizem que a gente nunca deve brilhar muito no lugar onde está, porque corre o risco de alguém olhar e dizer: Puxa, aquele negócio tá brilhando, então eu vou tomar dele”; raiva - “a raiva por diferenças profissionais, entre outros” (Massini, 1999, p.27). O depoimento ilustra bem o individualismo, a competição dentro das organizações, o poder, a traição e a inveja. “Mas os ódios já existem, o que ocorre é que eles são abafados. Se meu projeto não passou, o dia em que eu virar poderoso: Ah, você vai ver o que vai acontecer com você. Quer dizer, os ódios são incubados e potencializados” (Romano, 1999, p.25). “Só que o C... se deixou envolver por uma AIDS que existe no serviço público, que se chama vaidade” (Garisto, 2000, p.26). Na política, se você tem um propósito ou uma idéia, muitas vezes é melhor deixar que o outro pense que o propósito ou a idéia é dele, porque senão o outro vai ficar contra você. Na ciência, o outro que se dane, o ego do cientista tem que ser maior que o do político. O político não pode ser vaidoso, o intelectual pode e até deve. O político tem que ser humilde. É difícil isso para um intelectual como eu. Você aprende a duras penas, porque a vontade é dizer ‘eu sou o melhor e não pode’. (Cardoso apud Carta, 2001, p.4)
O exercício do poder e a Instituição A base da inveja é a busca do poder: a mais valia, valer mais. Em qualquer estágio, qualquer lugar que esteja o ser humano, muda só a quantidade de inveja. Só sua cultura é diferente....concorda com a afirmação de que a inveja é maior entre pares, entre iguais. (Ventura, 1998, p.137)
Para Enriquez (1991), a instituição é um lugar onde se encontram diferentes tipos de auxiliares que ocupam status e funções teoricamente estabilizadas e entre os quais se estabelecem relações de poder. Se nas organizações industriais, os membros estão conscientes tanto da necessidade de cooperação quanto das relações de forças instituídas que podem desembocar em momentos de ruptura, o mesmo não se dá nas instituições, usando como exemplo uma instituição terapêutica, que vivem sob a égide de uma ideologia igualitária, em que a cooperação entre iguais é apresentada como uma necessidade, mas imediatamente desmentida, em que a “ação dos outros apenas constitui um entrave e onde o ciúme e a rivalidade vão se manifestar no que diz respeito às técnicas” (p.69) e à “posse” do saber. Essas relações de poder – que jamais podem se exprimir tais como são, tornam difícil, senão impossível, o tratamento de casos evocados. A vida intelectual é uma hierarquia como qualquer outra. Tem uma elite, um contingente médio que carrega o piano e um baixo clero, insatisfeito, que ganha mal, procurando oportunidades de respiro na
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política, no jornalismo. Às vezes, não procura a política por boas razões. Não é o caso do Fernando Henrique. Mas muitos intelectuais entre aspas se bandeiam para a atividade política porque na verdade, estão esterilizados, estão insatisfeitos, estão ressentidos, estão insatisfeitos. Fizeram a vida intelectual porque não acharam coisa melhor para fazer. (Micelli, 2001, p. 23) Existem muitos professores que vêem a universidade como uma forma de currículo, uma forma de trampolim do próprio meio político, né? Ele vê a universidade em si como um meio de subida (fala de funcionário, Souto, 1993, p.303)
Há maior “flexibilidade”, maior aceitação de injustiças no meio do trabalho. Existe também o individualismo (Gerreiro & Anderson, 1998), a não mistura com coisas do outro. O pré-julgamento sem procurar se inteirar ou compreender os fatos verdadeiros: “Se existe alguma coisa, é porque algo de errado fez” (p.33). Além do mais, existe a questão da subjetividade, quando podemos nos resvalar com sentimentos como a inveja, a vaidade, o medo e o desejo do poder. As motivações ocultas são de diversas ordens e sua complexidade não é facilmente abordável. Instituição, a sagrada família Para Kaes (1991), que aborda o tema das instituições num olhar psicanalítico, a instituição é, em primeiro lugar, uma formação da sociedade e da cultura, com sua própria lógica, com um conjunto de formas e estruturas instituídas pela lei e o costume; cada instituição é dotada de uma finalidade que a identifica e a distingue, e as diferentes funções podem ser classificadas em três grandes grupos: funções jurídico-religiosas, defensivas e de ataque e as funções produtoras - reprodutoras. Em segundo, ela realiza funções psíquicas múltiplas para os indivíduos em sua estrutura, em sua dinâmica e em sua economia pessoal. Ela mobiliza investimentos e representações que contribuem para a regulação endopsíquica e que asseguram as bases da identificação do sujeito com o conjunto social. Para realizar suas funções específicas, não psíquicas, a instituição deve mobilizar formações e processos psíquicos em que principalmente aqueles que ela contribui para formar ou que ela recebe em depósito, serão particularmente solicitados; admite-se sobretudo que formações psíquicas originais são produzidas e mantidas pela vida institucional visando seus próprios fins: isso significa que se trata de formações que correspondem à dupla necessidade da instituição e dos sujeitos que delas são parte integrante e beneficiária. Essas formações constituem a possibilidade de espaços psíquicos comuns e compartilhados, supondo a construção, a utilização ou a organização de um aparelho psíquico de ligação, de transmissão e de transformação de agrupamento. Considera, ainda, o agrupamento, citando Anzieu, como um lugar para realizar os desejos e para se defender contra sua realização; de um lado, a celebração pelo grupo, que se institui e se desinstitui continuamente, da função criadora do imaginário social e da realização dos desejos “individuais”. Por outro lado, denúncia da instituição instituída e alienante e que pereniza a rigidificação do movimento social, a permanência
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dos poderes coercitivos e a hierarquia dos valores oponíveis à satisfação do desejo. O agrupamento, como formação psíquica intermediária, é o que na instituição une os membros da instituição entre si, numa realização do tipo onírico e pela comunidade dos sintomas, das fantasias e das identificações, de tal forma que possam investir aí os desejos recalcados e encontrar os meios deformados, desviados, travestidos, de os realizar ou de se defender deles. Por aí eles se ligam à instituição, ao seu ideal, ao seu projeto, ao seu espaço. Bourdieu (apud Hochman, 1994) considera que uma das características mais importantes do mundo intelectual é o caráter fechado de uma comunidade que compartilha um “espírito comum”; a autarquização – devida à autonomização deste universo mais do que qualquer outro campo social – produz um grupo que assume a feição de uma “seita ou igrejinha” É devido a esse traço que se pode perceber no comportamento desses intelectuais uma tendência a autoreprodução. Por um lado isso significa proclamar o divórcio dos intelectuais em relação às demandas sociais e, por outro, dizer que sua prática e identidade social se definem por intermédio de sua inscrição acadêmica. O professor tem sido alvo de diversos comentários negativos, costumase responsabilizá-lo pela atual situação crítica do ensino no país. Não há entretanto uma preocupação maior em modificar os estereótipos que representam o professor ora como vítima, ora como culpado. Mantém-se um conveniente desconhecimento sobre a diversidade de razões, interesses, ações, produções, motivos e representações que constróem o cotidiano vivido por cada um dentro da universidade. Ao desconhecimento acrescenta-se a falta de contextualização e compreensão histórica referente ao desenvolvimento da carreira docente e ao concomitante processo de construção e apropriação do saber neste país. (Souto, 1993, p.293)
A universidade foi apresentada como uma instituição esquecida pelo governo do Estado, não recebendo a devida importância. “A universidade está assim: completamente jogada às traças”(fala de um professor) “também tem a universidade como um bico, então eles vêm aqui, dão a aula deles e vão embora e acabou-se” (fala de um professor, Souto, p.303). Em seu estudo, Souto (1993) conclui que alunos e funcionários atribuem ao professor funções e responsabilidades que são mais pertinentes ao âmbito socioinstitucional do que ao individual. Para Nogueira (2001), nos últimos trinta anos os intelectuais perderam progressivamente a possibilidade de continuar desempenhando o papel de serem produtores de sentido para a sociedade: ficaram com mais dificuldade de dialogar com as pessoas e de serem por elas compreendidos, mergulharam nas instituições e se deixaram burocratizar; passaram a ter um público sem precisar ser um intelectual público - seus vínculos são estabelecidos com a rede institucional em que atuam. Correndo pela margem, dentro das instituições, um imaginário construído por picuínhas departamentais, retóricas inflamadas, lutas por posições administrativas e glórias fugazes... existe a burocracia “que dificulta a expressão de descontentamento” (Romano, 1999, p.29).
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Nesse sentido, convém que vários institutos concorram ferozmente entre si, pelo sucesso e pelas verbas, incrementando o desempenho coletivo. O que força as equipes a rivalizar ente si, os professores a competir uns com os outros, e naturalmente os alunos a disputarem as bolsas, migalhas e vagas nas salas superlotadas. Convém ao conjunto do sistema que todos sejam mal aquinhoados, porque só assim sentirão o devido acicate para multiplicar as verbas escassas (Sevcenko, 2000, p.7).
Para Bourdieu (apud Hochman, 1994), o campo científico é um campo de lutas, estruturalmente determinado pelas batalhas passadas, no qual agentes/ cientistas buscam o monopólio da autoridade/competência científica. Os conflitos que ocorrem no e pelo domínio desse campo são entre agentes que têm lugares socialmente prefixados no mesmo, assim como qualquer agente na sociedade, e são fundamentalmente interessados, isto é, desejam maximizar, e se puderem, monopolizar, a competência/autoridade científica – reconhecida pelos pares. O campo científico instaura-se com um conflito pelo crédito científico. Portanto, o campo científico como locus de análise se distancia muito da comunidade de especialistas que cooperam para o avanço do conhecimento. O crédito científico é um capital simbólico, não monetário – a autoridade/ competência científica – uma espécie particular de capital “que pode ser acumulada, transmitida e até reconvertida, sob certas condições em outro tipo de capital” (p.209) em um mercado específico, o da produção de conhecimento científico. Assim, Bourdieu não faz apenas uma analogia do campo científico com o mercado capitalista, mas indo além, propõe que este é um mercado particular dentro da ordem econômica capitalista! (Hochman, 1994). Por que sofremos? ... senti na pele o tratamento respeitoso que um scholar merecia de todas as camadas sociais (e descobri, então, como estava acostumado a ser maltratado). (Santos, 2000, p.4)
A traição com todas as suas motivações, leva ao sofrimento mental dos traídos e talvez dos que traem. Considerando a carga psíquica, no aparecimento das manifestações clínicas, Dejours (1994) aponta para duas possibilidades, em função da estrutura mental: a descompensação psiconeurótica e a descompensação somática. Caso se trate de uma estrutura psicótica, a sobrecarga poderá produzir um quadro de delírio; se a estrutura for neurótica, uma depressão ou ainda, uma doença somática, se ocorrer uma desorganização mental. Kaes (1991) considera que muitas vezes o estudo dos processos e estruturas psíquicas das instituições só é acessível a partir do sofrimento que aí se experimenta, o qual apresenta alguns aspectos que dizem respeito a uma verdadeira patologia da vida institucional. Considera três fontes de sofrimento que podem ser distinguidas pela análise, que aparecem intrincadas na queixa ou na designação da causa: uma é inerente ao próprio fato institucional, outra a uma determinada instituição específica, a sua estrutura social e a sua estrutura
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inconsciente própria e a terceira, à configuração psíquica do sujeito singular. Hegel nos preveniu: viver implica sempre uma luta pelo reconhecimento. Quem diz que luta pelo reconhecimento (dos seus desejos, da sua identidade, da sua força) diz violência, na qual se encontra presente a possibilidade da nossa morte e da do outro. (Enriquez, 1991, p.78)
Nós sofremos pela nossa relação com a instituição, sofremos nessa relação; é por projeção que sofrem os sujeitos da instituição, é a instituição em nós, o que em nós é a instituição, que se encontra sofrendo. Sofremos devido a contratos, pactos, comunidade e acordos inconscientes ou não, que nos unem em uma relação assimétrica, desigual, na qual a violência necessariamente é exercida, na qual se experimenta necessariamente a distância entre a exigência e os benefícios esperados. Sofremos com o excesso da instituição e também com sua falha, com o fracasso para garantir os termos dos contratos e dos pactos, para tornar possível a realização da tarefa primária que motiva o lugar dos sujeitos em seu seio. E sofremos também por não compreender a causa, o objeto, o sentido e a própria razão do sofrimento que experimentamos (Enriquez, 1991). Ainda segundo o mesmo autor, a violência parece ser substancial para a vida institucional, na medida em que procede da legalidade que exige que os homens renunciem à satisfação de suas pulsões e na medida em que, fazendo isso, é capaz de reacender os combates entre os iguais e favorecer o desejo de transgressão das interdições; mas a violência institucional não se reduz à violência legal (Enriquez, 1991). As características pessoais são mobilizadas no mundo do trabalho e acabam interferindo na carreira profissional dos afetados, mudando seu curso; a instituição sai prejudicada em última instância, pois agressores e agredidos dedicam-se a atividades que em nada contribuem à construção do conhecimento e da pesquisa. A instituição tende a perder essas competências, seja pela saída do profissional da instituição ou pela impossibilidade de utilizar os conhecimentos e experiências adquiridos ao longo de sua carreira. Parecenos que as pessoas que traem direta ou indiretamente, apresentam escassas reflexões íntimas de caráter ético (Enriquez, 1991). A traição no trabalho é sempre um processo coletivo; raramente estes fatos ocorreriam se levados por uma só pessoa isoladamente. Para reforçar sua natureza coletiva aqui fazemos nossas as palavras de Dejours (1999, p.132): O que mudou foi a gestão da empresa. Hoje, a base da política pessoal repousa na ameaça ininterrupta aos assalariados, condições e locais de trabalho (...) Antes, se um chefe perseguia alguém, se um empregador fraudava a folha de pagamento de seus operários, se alguém violava os direitos do trabalho, todo mundo entendia isso como uma coisa errada (...) Hoje essas técnicas não são apenas utilizadas, como se tornaram legítimas (...) É necessário que haja alguém que maltrate, humilhe e intimide pelo medo. E também gente que veja tudo e não diga nada. O sistema não caminha sozinho. A gente vê as pessoas serem
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humilhadas e prejudicadas a nossa volta, mas não protesta. A gente aceita as injustiças. Tal consentimento coloca um enorme problema para a maioria de nós, porque temos senso moral. É isso que cria essa forma específica de sofrimento, que é o sofrimento ético: um conflito moral e emocional consigo mesmo. E atrás de tudo isso se esconde uma profunda crise de identidade, pois se sou testemunha de que meu chefe prejudica um colega que não merece isso, mas apesar disso me calo, sei que no fundo sou covarde. E se sou covarde, perco a confiança em mim e nos outros, porque eles se conduzem como eu. Essa desestabilização pode levar à depressão ou a formas mais trágicas como o suicídio, principalmente em locais de trabalho.
Poderíamos supor que essas traições possam ser formas de defesa coletiva, constituindo exploração do sofrimento pela organização do trabalho, onde as estratégias coletivas de defesa também funcionam como sistema de seleção psicológica dos trabalhadores, guardando no seio do coletivo os trabalhadores que trazem contribuição à defesa, eliminando sem dó aqueles que se mostram reticentes, chegando a perseguí-los, e às vezes a considerá-los como bodes expiatórios do sofrimento. (Dejours, 1994, p.132)
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IGUTI, A. M. La traición en las relaciones de trabajo de la Universidad, Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.6, n.11, p.89-104, 2002. Se trata de un pequeño ensayo, en el cual planteamos algunos puntos para reflexión sobre la universidad y la traición en las relaciones de trabajo que, a nuestro parecer, se han intensificado en los últimos años. Tomando como referencia las declaraciones de académicos e investigadores y la literatura disponible, se intentó contextualizar el mundo del trabajo en la universidad, con sus actuales dinámicas que propician este tipo de actitud. Se plantearon algunas posibilidades del porqué de su ocurrencia, entre ellas, las cuestiones del poder y de la envidia. Se considera que la traición puede ser un indicio de la degradación de las relaciones humanas, en una perspectiva individualista, contra la solidariedad y lo colectivo del trabajo. PALABRAS CLAVE: Universidad; relaciones interprofesionales; trabajo.
Recebido para publicação em: 30/01/02 Aprovado para publicação em: 12/06/02
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A formação da identidade do médico: implicações para o ensino de graduação em Medicina Ana Teresa de Abreu Ramos-Cerqueira Maria Cristina Pereira Lima
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RAMOS-CERQUEIRA, A. T. A., LIMA, M. C. The establishment of the physician’s identity: implications for undergraduate medical teaching, Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.6, n.11, p.107-16, 2002.
The article discusses the development of the physician’s identify, starting with professional choice and education. Based on the authors’ experience in medical education, especially in the discipline of Medical Psychology, as well as on the literature in this area, certain elements are discussed, such as: the idealization of the physician’s role, the conscious and unconscious motivations behind the choice of a profession, the difficulties in the first years of Medical School, the beginning of didactic activities in the hospital and the psychological defensive mechanisms triggered by contact with patients. It is essential that medical Schools and their professors be aware of these aspects. They should not only be concerned with curricular and pedagogical issues, but also pay special attention to the teacher-student relationship, given its fundamental role in the establishment of a medical identity. KEY WORDS: Medical education. O artigo discute a constituição da identidade do médico tendo como pontos de partida sua escolha e formação profissionais. A partir da experiência das autoras no ensino médico, em especial na disciplina de Psicologia Médica, e da literatura na área são enfocadas: a idealização do papel do médico, as motivações conscientes e inconscientes na opção profissional, as dificuldades dos primeiros anos na escola médica, o início das atividades didáticas no hospital e os mecanismos psicológicos defensivos acionados no contato com pacientes. É muito importante que as Escolas Médicas e seus professores tenham conhecimento desses aspectos, devendo preocupar-se não apenas com questões curriculares e pedagógicas, mas também com o modelo de relação professor-aluno, considerando o seu papel fundamental na formação da identidade médica. PALAVRAS-CHAVE: Educação médica.
1 Professora do Departamento de Neurologia e Psiquiatria da Faculdade de Medicina de Botucatu, Universidade Estadual Paulista, FMB/ UNESP. <acerqueira@fmb.unesp.br> 2 Professora do Departamento de Neurologia e Psiquiatria da Faculdade de Medicina de Botucatu, Universidade Estadual Paulista, FMB/ UNESP. <mclima@fmb.unesp.br>
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O remédio mais usado em Medicina é o próprio médico, o qual como os demais medicamentos precisa ser conhecido em sua posologia, efeitos colaterais e toxicidade. (Balint, 1975, p.5)
A sociedade, como um todo, estabelece inúmeras atribuições ao médico, freqüentemente deificando este profissional. Birman (1980), procurando transmitir uma idéia desta idealização, escreveu: “O poder alcançado pela Medicina e a sua pretensão ao mesmo, quando atua intencionalmente através do dispositivo das inter-relações pessoais e sociais, é efetivamente assombroso” (p.81). Ainda sobre esse tema, e comentando um texto de Balint (1975), o autor refere que “caracterizado o médico como ‘professor’ dos pacientes, como mago das dificuldades humanas, todas as questões passam a ser incluídas no campo da Medicina” (p.81). Nas Faculdades de Medicina, em especial no contexto dos cursos de Psicologia Médica, com os quais temos lidado nos últimos trinta anos, os alunos expressam esta deificação e, conseqüentemente, suas próprias expectativas em relação ao desempenho profissional no futuro “O médico deve ter como características ser inteligente, estudioso, sensível, seguro, inspirar confiança, saber dosar trabalho e lazer, estar sempre disponível, ser competente tecnicamente, saber compreender o paciente...”3 . Um pequeno trecho do clássico juramento hipocrático, ainda repetido a cada formatura de novos médicos, exemplifica esta idealização: “... Manterei a minha vida e a minha arte com pureza e santidade; qualquer que seja a casa em que penetre, entrarei nela para beneficiar o doente; evitarei qualquer ato voluntário de maldade ou corrupção...”. O embate que se dá entre a idealização do papel médico e a realidade da formação profissional não é tranqüilo, sendo vivido com diferentes graus de sofrimento emocional. Para atender a esta demanda, diversas Faculdades de Medicina têm desenvolvido programas específicos de apoio psicopedagógico, psicossocial, psicológico e psiquiátrico para seus estudantes. Vários destes serviços atendem exclusivamente a estudantes de Medicina, justificando sua criação pelas dificuldades específicas relacionadas à formação médica, constatadas na vivência entre alunos e professores e também em estudos sistemáticos (Milan et al., 1999). Situações de conflito ou potencialmente geradoras de estresse, na verdade, antecederiam o início da formação médica, dando sinais de sua presença já no momento da escolha profissional. A escolha A opção pela carreira médica traz consigo mudanças fundamentais na vida do jovem: em plena adolescência, enfrenta a intensa competição do vestibular, aprendendo precocemente a renunciar a desejos, prazeres, horas de lazer e à companhia de amigos e familiares, preparando-se para a disputa acirrada. A competição por uma vaga nas universidades, em especial as públicas, é uma batalha a ser enfrentada também em outras carreiras. Contudo, desde cedo o estudante entrará em contato com o endeusamento
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Características importantes do médico levantadas com alunos do 3º ano, Faculdade de Medicina de Botucatu, ao longo dos anos.
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que marca sua escolha, muitas vezes expressa na fala dos alunos: “abrir mão de lazer não foi uma necessidade apenas até o vestibular, será pelo resto da vida”. Na verdade, a crença de que o médico deve passar por algum tipo de sacrifício para que possa exercer plenamente seu ofício remonta à Grécia antiga. Na mitologia grega, Asclépios - considerado a figura mítica iniciadora da Medicina - fora salvo do ventre da mãe cujo corpo havia sido queimado. As dores teriam tornado Asclépios capaz de compreender todo o sofrimento dos doentes, encontrando remédio para todos os males e atraindo assim, doentes e mutilados aos seus templos, em busca de cura (Cassorla, 1995). As motivações que levariam jovens adolescentes a uma opção profissional tão relacionada à dor, sofrimento e morte, pertencem a dois níveis: conscientes e inconscientes. Do ponto de vista das motivações conscientes muitas vezes expressas por estudantes -, as mais apontadas são: o desejo de compreender, de ver, o desejo de contato, o prestígio social, o prestígio do saber, o alívio prestado aos que sofrem, a atração pelo dinheiro, a necessidade de ser útil, a atração pela responsabilidade ou pela reparação, o desejo de uma profissão liberal e a necessidade de segurança. As razões inconscientes, por outro lado, são muitas vezes impensáveis para os estudantes, particularmente quando colocam em xeque seus valores morais. Rocco (1992, p.49) apontou algumas destas motivações: “identificação maior ou menor com os pais, o que o leva a preservar e continuar seus valores”; “desejo de expiar impulsos agressivos - desejo que se manifesta pelo ato de curar, como reparação da agressividade”; “curiosidade inconsciente de conhecer o corpo da mãe”; a “negação da morte”. A partir do processo analítico de médicos e estudantes, são identificados desejos de ver e saber sobre sexo e morte, sobre os tabus que a profissão lhes permite transgredir. O desejo consciente de ver e saber é a manifestação compartilhada daquele mesmo desejo, arcaico e reprimido, de responder às questões angustiantes sobre o sexo e a morte. O desejo de reparar, por sua vez, pode ter origem na reparação da agressividade inconsciente, dirigida às figuras parentais durante as primeiras experiências de individualização e reconhecimento; pode também pretender reparar a própria ferida narcísica: as perdas, a incompletude, a inferioridade. O desejo de poder, além do poder real, poderia estar refletindo o desejo de onipotência frente à angustia de lidar com a falta da mãe, transformando-se em desejo de onipotência sobre a doença e a morte. Blaya (1972), citado por Rocco (1992), sobre a questão da escolha médica, afirmou que: ... ser médico sempre foi... uma das escolhas mais estranhas como vocação, pois implica o desejo de estar sempre próximo ao sofrimento e à morte, contingências tão temidas pelo ser humano (...) é antes de tudo uma curiosidade e um desejo, consciente ou inconsciente, de saber mais e cuidar melhor daquilo que sentimos como doente em nós mesmos. (p.41)
Nos últimos anos, a profissão idealizada, reconhecida como aquela que traz grande prestígio entre as profissões e uma expectativa (fantasiosa) de
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sucesso econômico, vem se contrapondo à realidade de um mercado de trabalho precário e distorcido e às políticas de saúde que não têm se preocupado com as condições mínimas para o exercício adequado da Medicina. Os primeiros anos Atuando no ensino médico, observa-se que o estudante chega ao primeiro ano do curso ainda adolescente e tendo que enfrentar seu primeiro embate intra-curso: não se livrou dos competidores! Conseguiu a duras penas sua vaga e encontra agora ao seu redor uma centena de alunos, com a mesma carga, os mesmos estigmas e as mesmas expectativas e obrigações de primeiros alunos - o que usualmente foram em suas escolas de origem. Como agravante, estes novos “competidores” têm nome e rosto conhecidos e, muitas vezes, moram na mesma república. Assim, muitas vezes, a expectativa de poder partilhar, num ambiente menos exigente, menos competitivo, não se realiza. Em alguns casos, à adaptação à Universidade soma-se a experiência de sair de casa pela primeira vez e suas conseqüências: não há garantia de afeto e de cuidados que assegurem a sobrevivência no cotidiano, acentuando ainda mais sua insegurança adolescente. Tudo está por sua conta: organizar o diaa-dia, descobrir um jeito novo de estudar e estabelecer novos vínculos afetivos. Nessa nova vida enfrentará o contato com pessoas diferentes, a ameaça do trote, as festas, a bebida, as drogas disponíveis e algumas vezes impostas, e as primeiras decepções. A visão idealizada do estudante com relação ao médico, em geral se estenderá para a Faculdade de Medicina e resultará – na quase totalidade das vezes – em frustração. São comuns, particularmente nos primeiros anos, frases do tipo: “a didática dos professores da Faculdade é muito ruim”, “bom mesmo era no cursinho: aulas organizadas e apostiladas que eram um verdadeiro show”. Será frustrante também, na maioria das vezes, seu contato com as disciplinas básicas, na medida em que representam um “adiamento do seu ingresso na Medicina”. Turrel, citado por Rocco (1992), enumerou as seguintes dificuldades a serem enfrentadas pelo jovem estudante: suas inibições e cautelas quanto ao sexo, próprias dos valores éticos da classe média, deverão ceder lugar à frieza e serenidade para estudar estruturas anatômicas e fisiológicas e examinar excrementos sem repugnância; deve dissecar cadáveres, superando o respeito aos mortos que lhe foi ensinado; deve inspecionar e questionar sobre o mais íntimo de homens e mulheres; deve assistir à morte de pacientes, dominando seus sentimentos, e prosseguir seu trabalho sem se deixar abater pelas emoções. Enfim, aprende que o trabalho diário do médico constitui uma transgressão às proibições comuns e um controle absoluto sobre suas emoções. Não há espaço para dividir ou expressar suas emoções, tendo até que escondê-las, por receio de ser “acusado” de ser muito frágil, sensível, “mole” e, portanto, “não servir para ser médico”. Também não há espaço para dúvidas, particularmente quanto a sua escolha profissional. A desistência é
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sempre vista e vivida como um fracasso.
4 Conjunto de técnicas psicodramáticas utilizadas com o intuito de auxiliar o desenvolvimento de um determinado papel, neste caso, o papel de médico, no curso de Psicologia Médica da Faculdade de Medicina de Botucatu
A entrada no hospital Superada - ou não - a fase de adaptação, terá início o ciclo aplicado: o terceiro ano, a entrada no hospital, as novas expectativas, o contato com o doente. Para Rocco (1992) há dois momentos especialmente críticos ao longo do curso médico: a entrada no hospital e a saída da Faculdade - o que equivale na maioria das escolas, respectivamente, ao 3° e 6º anos. Ambos são momentos em que o estudante se aproxima da atuação como médico e teme não realizála plenamente. Para o “terceiranista”, cabe apenas examinar quem já foi examinado, fazer a anamnese de quem já tem diagnóstico, já está internado e em tratamento. Sente que seu trabalho não serve ao paciente e, muitas vezes, se ressente de usá-lo como objeto. Até então nada lhe ensinaram sobre o sentir, o ser da pessoa doente. Uma imagem, construída num role-playing4 , concretizava esta vivência: um estudante com um lado do corpo vestido de jeans, tênis, segurando muitos livros; do outro lado o avental, a roupa e sapatos brancos e ele ali imobilizado, sozinho, dividido, questionando-se sobre seu papel. Como ser médico se ele não agüenta entrar em contato com o sofrimento do doente e nem com a própria escolha de lidar com a dor, a miséria, a morte? Terá poucas opções: lidar com seus sentimentos, fragilizando-se e buscando ajuda ou começar a construir defesas - modeladas pelos mais velhos - distanciandose do paciente, refugiando-se na racionalidade, na técnica, no organicismo. Das diferentes resoluções deste conflito, pautadas por sua subjetividade, terá início a formação psicológica do médico - sua Identidade Profissional. A identidade médica Identidade foi definida por Zimmerman (1992, p.65) como “a propriedade de o indivíduo, independentemente das circunstâncias e de pressões, manter-se basicamente o mesmo e, portanto, é a expressão do que de fato ele é”. Segundo o autor, a palavra vem de idem, que quer dizer o mesmo. Identidade seria, portanto, a expressão do que de fato o indivíduo é nas diversas situações. Como aponta Jacques (1998), a representação de si, a partir da qual pode-se apreender a identidade é sempre um “objeto ausente” (o si mesmo). Assim, segundo a autora a identidade compõe-se de um conjunto de representações que responde à pergunta “quem és”. Hoirisch (1992) refere que a identidade tem dimensões que a fundamentam e impregnam de significado, tais como nome, formação, naturalidade, estado civil e profissão - categorias fundadas no biológico e no social. Referindo-se à formação da identidade médica, o autor descreve ainda, que foi na universidade medieval que o título de doutor (médico) foi criado. Com o título, surgiu também o status no contexto social. No século XV apareceram leis que regulamentavam o exercício da Medicina, criando currículos, exames e concessão do grau. Surgiu então o papel social do médico, com estabilidade e proteção para desenvolver métodos e técnicas, aplicando o conhecimento da Ciência para combater as doenças. Desde então, foi das profissões que mais idealizações provocou: qualidades de altruísmo, mentalidade de pesquisador e
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poder sobre a vida e a morte passaram a ser comumente associados a este papel. Jeammet et al. (2000) descrevem que a concepção atual do médico e aspectos privilegiados da Medicina permitiriam compreender a ambivalência do leigo em relação ao médico: Personagem que possui o saber, a faculdade de curar, é uma autoridade esclarecida e terna. É tranqüilizador... é também inquietante (porque o encarregamos dos segredos... e lhe damos uma potência total de caráter mágico) e isso suscita uma certa agressividade. (Jeammet et al., 2000, p.354)
Muitos trabalhos tentam descrever atributos que seriam próprios do médico. Zimmermam (1992) afirmou que é preciso que o médico, para assegurar uma consistência e coerência profissional, tenha seu esquema referencial como parte de sua identidade profissional. Para o autor, esquema referencial seria o conjunto de conhecimentos, afetos e experiências com os quais se pensa, se age e se comunica. Desta maneira, pode-se observar que há um apagamento da distinção entre o que é o sujeito e o que é seu trabalho. O papel profissional impregna e se confunde com a vida pessoal. A respeito da constituição da Identidade, Violante (1986, p.5) afirma: Identidade é o ponto-síntese de um conjunto de características biosócio-psicológicas de que cada um de nós (indivíduo e/ou grupo) é portador e que permite aos outros e a nós próprios nos reconhecermos e nos fazermos reconhecer, enquanto ser identificado a partir destas características que nos individualizam, diferenciandonos de uns e assemelhando-nos a outros em vários desses aspectos.
Socialmente determinado, ao papel médico também serão atribuídas as funções de autenticar a doença e viabilizar a cura – conferindo-lhe poder sobre o caráter normativo da saúde. A sociedade contemporânea exige destes profissionais características lógicas e racionais, como a competência técnica, a indiscriminação social, étnica etc; a especificidade funcional que só deverá ser válida no âmbito da Medicina, uma mentalidade afetiva e uma atitude altruísta e desinteressada (Jeammet et al., 2000). Sua subjetividade, porém, será exercitada e, de algum modo, percebida pelos doentes, causando um impacto nesta relação. Com freqüência, a competência técnica não é a qualidade médica mais valorizada pelos pacientes. Assim, apesar da racionalidade e dos avanços da Medicina científica, não diminuiu a “irracionalidade” da demanda médica, como atestam os resultados obtidos com placebo ou as avaliações de adesão ao tratamento. Boltanski (1979) descreveu que nas classes populares da França os critérios subjetivos eram mais freqüentemente utilizados pelos pacientes nas avaliações que estes faziam de seus médicos, interferindo nisto os mais variados mecanismos, entre eles os de transferência e contratransferência. O desejo dos pais de exercer a profissão, o desejo de poder cuidar de um familiar doente, o desejo de identificação com um médico de sua família, ou de um médico que “curou” sua família, o desejo de salvar vidas, o contato precoce e sem respaldo com o cadáver - com a morte -, as teorias, os laboratórios, a
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impossibilidade de fragilizar-se ou até mesmo desistir, entre tantos outros aspectos da formação médica, serão os ingredientes do conflito vivido pelo estudante. A organização que resultará em cada um da elaboração desse conflito será fundamental para a constituição do médico. O resultado será diferente caso sejam sublimados na atividade profissional, favorecendo o desenvolvimento da personalidade, ou perpetuem como conflitos no exercício profissional. Contribuirão para essa resolução os acontecimentos do passado, os desejos dos pais e as identificações, dando origem a uma grande diversidade de possibilidades. Exemplo de um caminho menos desejável pode ser visto em um médico que, por sua história pessoal, não pode suportar que sua necessidade de reparação seja questionada. A menor incerteza pode levá-lo a uma prática excessiva de exames subsidiários e a ausência de um distúrbio lesional para as queixas de um paciente, pode lhe ser insuportável: poderá ver a ausência de cura como um defeito pessoal seu ou do paciente. Outro resultado indesejável, na formação desta identidade profissional, é o seu adoecimento. Embora saúde mental e identidade sejam questões distintas, no campo profissional estas podem se imbricar. O enfrentamento de conflitos que surgem para o aluno ao longo de sua formação, deixam marcas em sua identidade profissional e, não raro, produzem sintomas, produzem adoecimento. Estudos comparando médicos e estudantes de Medicina com outros profissionais indicam uma peculiaridade dos primeiros quanto à morbidade e a mortalidade (Tabela 1). Bjorksten et al. (1983), comparando estudantes de medicina e de outros cursos universitários, observou que o “spectrum” de problemas encontrados era o mesmo sendo, porém, significativamente mais intensos no primeiro grupo. Ainda com relação aos estudantes de Medicina, Silver (1982) propôs a utilização da expressão “abuso” para caracterizar o conjunto de circunstâncias desfavoráveis que os cercam. O autor faz uma analogia com o abuso sofrido por algumas crianças pelos seus familiares e a freqüente ocultação deste evento questionando até que ponto o fenômeno existiria nas escolas médicas, mas seria negado pelo conjunto da instituição. A partir de um levantamento realizado com 431 estudantes de escolas médicas, Silver e Glicken (1990) encontraram 46,4% dos alunos referindo algum tipo de abuso sofrido ao longo de seus cursos, estando incluídos nos relatos dos estudantes excesso de trabalho, abuso de hierarquia e abuso verbal ou físico de pacientes, colegas, residentes ou docentes. Uhari et al. (1994), em inquérito aplicado a 163 estudantes de escolas médicas, encontraram taxas elevadas de ocorrência de abuso (74,2% dos estudantes faziam referência ao menos a um episódio). Os autores chamam a atenção para o fato de que, embora a prevalência e forma do abuso variem em diferentes contextos, o fenômeno parece ser comum. Síndromes especialmente relacionadas à atividade médica têm sido descritas: a síndrome da sobrecarga de trabalho caracterizada por fadiga, irritabilidade, distúrbio do sono, dificuldade de concentração, depressão e queixas físicas (Walker, 1980) e a síndrome do estresse profissional também denominada síndrome de “burn-out” (Freudenberg, 1975). Esta última seria uma condição experimentada por profissionais que desenvolvem atividades com alto grau de contato emocional com outras pessoas caracterizada por: sintomas somáticos como exaustão, fadiga, cefaléias, distúrbios gastrintestinais, insônia
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e dispnéia; sintomas psíquicos: humor depressivo, irritabilidade, ansiedade, rigidez, negativismo, ceticismo e desinteresse - esta sintomatologia expressa-se por comportamentos de esquiva: evitar pacientes, consultas rápidas, evitar contato visual, usar rótulos depreciativos. Certamente não se pode atribuir estes achados apenas às condições de estresse da prática médica, desconsiderando a personalidade anterior destes profissionais, sua biografia etc. Alguns autores, inclusive, têm sugerido que predomina um perfil nos estudantes que chegam às escolas médicas, com relação às características psicológicas descritas. Werner e Korsch (1976, p.322) assinalam: o sentimento de vulnerabilidade no estudante de Medicina é extremamente pungente porque uma parte da motivação para a escolha da Medicina é freqüentemente o desejo de se proteger ou de proteger seus familiares do sofrimento e da morte.
Para Kauffman (1988, p.36) o médico complementa o papel do seu doente, representando a saúde, o poder e a vida. Assim, torna-se quase obrigatório para ele o desempenho constante deste papel, cujo objetivo é ser jovem, saudável e, portanto, eternamente vivo, em antítese ao paciente envelhecido, doente, mortal, sem poder...
Meleiro (2000), comparando médicos e outros pacientes de nível universitário internados com problemas cardíacos, observou que os primeiros tendem a apresentar maior resistência a cumprir na íntegra as orientações médicas, sendo que, no período pesquisado houve um maior número de mortes entre médicos do que entre engenheiros e advogados.
TABELA 1: Estudos sobre mortalidade e morbidade entre estudantes de Medicina e médicos. Strecker et al.
1937
EUA Estudantes de Medicina
Spielgelman et al.
1984
EUA Médicos
Menos mortes por: acidentes, condições cirúrgicas e moléstias infeciosas; distúrbios cardio-vasculares 1,8 mais alta que a população (clínicos possuem maior taxa de mortalidade que cirurgiões).
Ross McCue
1973 1982
Estudantes de Medicina
Suicídio é a segunda causa de morte, significativamente maior que o grupo controle; alcoolismo semelhante a pop. Geral; narcóticos 30 a 100 vezes a população geral.
Garvey e Tuason
1979
EUA médicos
Casamentos insatisfatórios, mas duradouros mais que outros profissionais
Pallavicini et al.
1988
Chile Estudantes de Medicina
91% de estresse (100% no 4° e no 5° anos)
Colford e Mcphee
1989
EUA Residentes
Drogadição, ansiedade, depressão, suicídio, problemas profissionais (insatisfação, afastamentos, licenças, erros. Excesso ou falta de confiança, ceticismo e perda de compaixão)
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Traços neuróticos em 46,5%
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Considerações finais
Programa de Incentivo a Mudanças Curriculares nos Cursos de Medicina, Ministério da Educação, Secretaria de Ensino Superior, 2002.
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Os dados e reflexões apresentados, resultado de nossa experiência docente na formação do médico, remete-nos a refletir sobre o papel da escola médica, no sentido de ajudar a esclarecer seus alunos sobre a imensidade de questões que estão envolvidas em sua formação, uma vez que só se pode apreender e interferir no processo de formação da identidade profissional, analisando a correlação de forças atuantes no processo de socialização dentro da instituição (Violante, 1986). Para Martins (1991, p.363) “O ensino médico que não reflete sobre o ser humano que há no médico participa de modo altamente prejudicial nas deformações adaptativas do futuro profissional”. No momento em que as escolas médicas encontram-se estimuladas a rever seus projetos pedagógicos, quer pela divulgação das diretrizes curriculares, quer pelos estímulos que os ministérios da Educação e da Saúde5 estão oferecendo, é fundamental que se reflita sobre a construção da subjetividade desse profissonal. As reformas curriculares e a busca de novas técnicas pedagógicas são fundamentais, contudo podem ser insuficientes para auxiliar os alunos a elaborar a diversidade de embates afetivos com os quais irão lidar. Mesmo os serviços de atendimento psicopedagógico correm o risco de ficar restritos ao papel de “pronto-socorro” nas situações de emergências, caso os professores não retomem sua função de educadores e formadores, refletindo sobre suas próprias escolhas, suas práticas, suas frustrações e criando mecanismos precoces de detecção de problemas emocionais e dificuldades no desenvolvimento profissional. Autores têm destacado a importância da relação professor-aluno na construção da relação aluno/médico-paciente (Kauffman, 1988; Lima, 1997). Desse modo, além de rever as estruturas acadêmicas como número de alunos por sala e outros índices quantitativos, talvez se pudesse também rever, no contato cotidiano com os estudantes, os modelos de relação professor-aluno oferecidos, componentes essenciais na formação da identidade dos futuros médicos. Referências
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RAMOS-CERQUEIRA, A. T. A., LIMA, M. C. La Formación de la identidad médica: implicaciones para la enseñanza de graduación en Medicina, Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.6, n.11, p.107-16, 2002. El articulo discute la constitución de la identidad del medico teniendo como puntos de partida la elección y formación profesionales. A partir de la experiencia de las autoras en la enseñanza medica, especialmente en la disciplina de Sicología Médica y de la literatura del área son enfocados: la idealización del papel medico, las motivaciones conscientes y inconscientes de la opción profesional, las dificultades de los primeros años en la escuela medica, el inicio de las actividades didácticas en el hospital y los mecanismos sicológicos defensivos accionados en el contacto con los pacientes. Es muy importante que las Escuelas Medicas y sus profesores tengan conocimiento de estos aspectos, y se preocupen no solo con las cuestiones curriculares y pedagógicas sino también con el modelo de relación profesor-alumno, considerando su papel fundamental en la formación de la identidad médica. PALABRAS CLAVE: Educación médica. Recebido para publicação em: 18/07/01. Aprovado para publicação em: 15/05/02
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Medicina Baseada em Evidências: “novo paradigma assistencial e pedagógico”?
debates
Evidence Based Medicine: “a new paradigm for teaching and the provision of care?” PALAVRAS-CHAVE: Medicina baseada em evidências; Educação médica; condutas na prática dos médicos. KEY WORDS: Evidence-based medicine; medical education; physician’s practice patterns. PALABRAS CLAVE: Medicina basada en evidencia; educación médica; conductas en la práctica de los médicos. Luis David Castiel Eduardo Conte Póvoa
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Parte I A denominada ‘medicina baseada em evidências’ (MBE) originou-se do movimento da epidemiologia clínica anglo-saxônica, iniciado na Universidade McMaster no Canadá no início dos anos noventa. É definida em termos genéricos como o “processo de sistematicamente descobrir, avaliar e usar achados de investigações como base para decisões clínicas” (Evidence Based Medicine Working Group, 1992). Atualmente, a MBE está bastante em voga no âmbito biomédico, aí assumindo um papel de destaque, de tal modo que suas influências nas condutas médicas se manifestam significativamente. Basta consultar o Medline para obter profusas referências, atestando a difusão da proposta. Vale ressaltar que os adeptos da MBE propõem uma escala tipológica da força das evidências que deve ser considerada para os processos decisórios nas práticas biomédicas. Tipos e Níveis de Evidências I- Evidência forte de, pelo menos, uma revisão sistemática (metanálise) de múltiplos estudos randomizados controlados bem delineados; II- Evidência forte de, pelo menos, um estudo randomizado controlado bem delineado, de tamanho adequado e com contexto clínico apropriado; III- Evidência de estudo sem randomização, com grupo único, com análise pré e pós–coorte, séries temporais ou casocontrole pareados; IV- Evidência de estudos bem delineados não-experimentais, realizados em mais de um centro de pesquisa; V- Opiniões de autoridades respeitadas, baseadas em evidência clínica, estudos descritivos e relatórios de comitês de expertos ou consensos (Drummond & Silva, 1998)
Temos, deste modo, a pretendida meta de aperfeiçoar o uso do raciocínio para além da casuística clínica de cada médico e de seus potenciais vieses. Para tal finalidade ser atingida, devem-se seguir determinados princípios, bem sintetizados por Jenicek (1997, p.189):
COOK, 1981
formulação de uma clara questão clínica a partir do problema do paciente que precisa ser respondido; busca na literatura por artigos relevantes e por outras fontes de informação; avaliação crítica da evidência (informação trazida por pesquisa original ou por síntese de pesquisas, p. ex. meta-análise); seleção da melhor evidência (...) para a decisão clínica; vinculação da evidência com experiência clínica, conhecimento e prática; implementação dos achados úteis na prática clínica; avaliação da implementação e do desempenho geral do profissional da MBE; ensino a outros médicos como praticar a MBE.
Pesquisador do Departamento de Epidemiologia da Escola Nacional de Saúde Pública - FIOCRUZ. <castiel@ensp.fiocruz.br> Coordenador do Curso de Pos-Graduação em Psicologia Médica e Psicossomática da Universidade Estácio de Sá, Rio de Janeiro. <econtepovoa@ig.com.br>
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DEBATES
Podemos resumir que a MBE se dirige a apoiar a experiência clínica com dados provenientes da epidemiologia clínica, complementadas com revisões sistemáticas da literatura, para critérios decisórios em condutas assistenciais. É recomendável o uso da informática médica como meio mais rápido e seguro de acesso ao que há de mais recente em termos de publicações. Na verdade, estas publicações são norteadas pelos centros ligados ao movimento da MBE, tais como o Cochrane Collaboration na Inglaterra. Os mesmos possuem uma rede de vínculos em várias partes do mundo, incluindo principalmente faculdades de Medicina. No entanto, mesmo assumindo que as revisões do Cochrane são, em média, mais sistemáticas e menos enviesadas que estudos do mesmo teor publicados em outros periódicos, há investigações indicando que os resultados produzidos pelo Cochrane Collaboration também estão sujeitos a erros (incluindo problemas em métodos das análises). Esta foi a conclusão de uma meritória investigação realizada por participantes da seção nórdica do próprio grupo em relação a uma amostra de revisões de 1998. Muitas vezes, as conclusões dos trabalhos superestimavam benefícios de novas intervenções (Olsen et al., 2001). Parte II É preciso salientar a curiosa metamorfose gramatical ocorrida no processo de evolução da epidemiologia clínica para MBE. O adjetivo – ‘clínica’ se transforma em substantivo de maior amplitude – ‘medicina’, e recebe uma locução adjetiva de indiscutivel efeito retórico. O ‘baseada’ veicula a sugestiva idéia de solidez, como ‘fundação/fundamento’ que será constituído pelo elemento sensorial humano considerado mais fidedigno (a visão) para testemunhar-se fatos que poderão ser, então, evidenciados como ‘verdades’ (Castiel, 1999) Independente dos aspectos discursivos, a MBE tem sido alvo de intenso debate nos domínios das ciências da saúde (Jenicek, 1997; Jackson et al, 1998). Não é nossa intenção detalhar aqui as múltiplas discussões acerca do campo em foco com críticas de caráter ético, conceitual e metodológico. Porém, vale destacar a problemática integração com a experiência clínica, conhecimento e prática de cada médico. Principalmente, porque não são explicitadas no movimento MBE que as formas de operar categorias na biomedicina podem se dar mediante modos de raciocínio que podem eventualmente se superpor – hipotético-dedutivo, indutivo e abdutivo - em diferentes momentos do processo clínico. Tomemos o fato de textos produzidos pelo movimento da MBE anunciarem tratar-se de um “novo paradigma assistencial e pedagógico” (grifos nossos) (Sackett et al., 1997). Alguns explicitam tal propriedade como um subtítulo na própria capa do livro (Drummond & Silva, 1998). Como mostram Sayd e Nunes-Moreira (2000), em um pertinente texto sobre as possíveis afinidades propositivas encontradas no pensamento filosófico cético e no movimento da MBE, esta não constituiria novo paradigma, pois, consiste em um modelo cognitivo adaptado à prática clínica que não rompe com modos lógico-racionais de produção de conhecimento científico. Importa, agora, salientar que tal noção kuhniana sofreu uma impressionante popularização, tornandose, de certa forma, um termo abusivamente empregado, não obstante sua polissemia. Mesmo no campo da filosofia da ciência sua imprecisão semântica já foi discutida e, inclusive, reelaborada pelo próprio Kuhn (1974). Cabem aqui alguns comentários sobre o uso desgastado da idéia de ‘paradigma’ não apenas nos domínios acadêmicos mas, também, para além de suas fronteiras. Jesus de Paula-Assis (1993) mostra como a importação de termos kuhnianos - especialmente da ‘Estrutura das revoluções científicas’ (Kuhn, 1970) - por parte de autores das ciências sociais e humanas é pouco fiel às intenções de Kuhn. Acreditamos que isto vale também para o uso feito pelos autores e divulgadores da MBE. Kuhn é um teórico e crítico da racionalidade científica e propõe um modelo de análise para a racionalidade humana, seus efeitos e consequëncias com base nas ditas ciências naturais. Estas, por sua vez, constituem, cada vez mais, elementos centrais da cultura ocidental com vistas à produção de conhecimento e de objetos técnicos. Como já foi indicado (Castiel, 1999), o enfoque da MBE permanece eminentemente vinculado às tradições da razão cientificista. Aliás, não poderia ser de outra forma, pois a prática médica se vê como uma disciplina diretamente vinculada às biociências. Apenas, porém, há uma alteração de enfoque, com a ênfase nos modos empiricistas de investigação na ciência, veiculados especialmente pelos estudos da epidemiologia clínica ao abordar dimensões diagnósticas/terapêuticas/prognósticas na prática biomédica. Em outras palavras, se a Medicina é vista por alguns como uma mescla de ‘ciência’ e ‘arte’ (poder-se-ia até dizer ‘artesanato’, no qual o mestre-artesão se constituiria como autoridade, expert (perito) na sua especialidade), a MBE reforçaria bem mais a dimensão ‘ciência’, para evitar os riscos de erros em
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DEBATES
decisões baseadas em intuições originárias na experiência acumulada, conferida somente pela mestria nas ‘artes clínicas’. Parte III Um importante aspecto nesta discussão diz respeito à autonomia do paciente que pode ser levada em conta, mas, no entanto, fica subjacente à primazia de abordagens objetivantes, universalizantes e previamente qualificadas – a escolha do médico junto a seu paciente passaria a ser a escolha da “melhor evidência”, prevalecendo, em tese, o princípio bioético da beneficência. Podemos utilizar o conceito de “função apostólica” que Balint (1998) atribuiu aos médicos quando pretendem impor regras a seus pacientes. A diferença parece ser que, a partir dos parâmetros para se atingir a “melhor evidência”, o médico também é influenciado por outros parâmetros: aqueles avalizados pela expertise em MBE. Ou seja, ele próprio deve alcançar níveis de expertise - baseada em evidências mediante recursos de pesquisa via informática médica. Parece que a consideração da subjetividade do paciente perde cada vez mais seu espaço. Parâmetros, protocolos, meta-análises, dados epidemiológicos, são de extrema relevância na produção de conhecimento e, portanto, de teoria médica, mas não deverão substituir a arte do cuidar que demanda afinidades empáticas, habilidades intuitivas, para, eventualmente, em determinado caso, abrir mão da incorporação de “evidências”. O que vale questionar não é evidentemente a gama de ferramentas que o avanço tecnológico traz para o arsenal diagnóstico e terapêutico, mas se toda esta corrida em direção a evidências científicas baseadas em dados estatísticos, epidemiológicos e a valorização da informática médica, não seria a tentativa de transformar metonimicamente partes da Biomedicina em toda esta. Podemos perceber que grande parte das propostas feitas pelos defensores da MBE, constitui evolução de um mesmo tipo ideal, ou seja, de uma mesma racionalidade médica organizada em torno do caráter cientificista, com vistas a parametrizar a prática médica, mantendo a doença como entidade nosográfica tal como é categorizada pelos manuais taxonômicos como objeto de diagnóstico e intervenção em detrimento da valorização da singularidade da saúde humana em sua hipercomplexidade (Morin, 1990). Pelo menos no que tange ao conceito kuhniano de paradigma, a MBE está longe de ser a proposta de um novo paradigma. Se esta proposta critica com pertinência a forma infundada de (muitas vezes) que determinados médicos se utilizavam para decidir por determinadas práticas, da mesma forma, pode, muitas vezes, cercear médicos no exercício de sua capacidade clínica intuitiva, empática, para perceber aquilo que não é da ordem do concreto, do objetivamente evidenciável. Com estas considerações não se pretende propor a abstenção de métodos científicos que possam ajudar na produção de conhecimentos clínicos. O que se procura enfatizar é o modelo hegemônico em que predomina a pretensa ilusão de que a Medicina Ocidental seria levada a ‘verdades’, orientada por uma “soberania” científica. É perceptível a “nuvem de fumaça” que o objetivismo e o modelo mecanicista da Biomedicina vem deixando diante de aspectos subjetivos, psicológicos e sócio-culturais dos pacientes, permanecendo como objeto principal a preocupação com a DOENÇA. Camargo-Jr. (1992, p.10-1) comenta: Penso que supor, como Kuhn, a ciência como um empreendimento apenas parcialmente como determinante fundamental na forma como o cientista percebe o mundo, abre perspectivas no estudo do que chamei de paradoxos da clínica. Refiro-me em especial ao papel condicionante que as teorias correntes acerca das categorias diagnósticas e de sua gênese têm no modo como o médico traduz o sofrimento que seus pacientes apresentam, supervalorizando os aspectos objetiváveis, traduzidos em doença, e deixando de lado o universo subjetivo do sofrer.
Em outras palavras, nossa argumentação propõe que as proposições da MBE não trazem mudanças de paradigma à Medicina. Poderíamos até ousar dizer que se trata de uma tentativa de ratificar a racionalidade médica ocidental já existente, por meio da sofisticação e refinamentos de objetos e técnicas, segundo os cânones dos empreendimentos científicos. Parte IV Como diz Rushton (2001, p.349) em uma pertinente crítica à MBE: Muitas vezes a resposta baseada em evidências a maioria destas questões não é clara ou a ‘evidência é incompleta’. De alguma forma, em nossa volúpia dos dados duros (hard data), estas
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DEBATES
respostas desconhecidas transformam-se em ‘não’. Se não há clara e convincente evidência, o modo ‘automático’ (default) é encarar a prática como sem valor. Reduções drásticas em despesas hospitalares e recusa de pagamentos utilizam esta abordagem para cortar duramente atividades destituídas do impossível, muitas vezes inalcançável, peso da evidência.
É preciso reiterar o hiperdimensionamento que se tenta dar a uma faceta da biomedicina (entre várias), tanto no que se refere a sua prática e ao ensino, assim como a seu desdobramento no campo semântico (o método se transforma em toda uma Medicina). Há, portanto, que se ter muito cuidado quando se propõe a mudança de um paradigma pedagógico para a formação médica: em primeiro lugar, pelos aspectos já referidos, em segundo lugar, pelo que se pretende dizer epistemologicamente com a palavra “paradigma”, e, em terceiro lugar, pela necessidade de se colocar as seguintes questões: Do que é que a Biomedicina mais carece? Ou, ainda, de que tipo de treinamento nossos médicos precisam para estar atentos tanto à qualidade de vida pessoal quanto às intervenções técnicas (não sendo possível descurar de aspectos subjetivos de seus pacientes e suas famílias)? Qual seria a dimensão da saúde a ser alcançada? Se é verdade que nossa formação médica é ainda predominantemente cartesiana e que sua racionalidade científica vem reduzindo a percepção da importância da complexidade humana, como incluir elementos para lidar com as limitações que outras disciplinas/saberes sinalizam (como a Antropologia Médica, a Psicanálise) para abordar tais aspectos, diante de mais esforços dirigidos para um conhecimento baseado em supostas verdades científicas? Certamente estamos diante de um desafio muito maior: pensar em saúde de forma complexa – isto é, levando em consideração suas múltiplas dimensões: subjetivas, sócio-culturais, biológicas, sem desconsiderar evidentemente a vertente científica e o que ela tem a nos oferecer. Mas vale a pena ressaltar que diante da perplexidade e das incertezas humanas, o método científico mais acurado acaba por ser apenas um dos modos de abordar e ordenar o real. Cabe aos profissionais da área de saúde cogitarem que a ampliação conseqüente do cuidado em saúde talvez só seja possível por meio de significativas superações – de vaidades, de preconceitos, do corporativismo, da falta de compaixão pelo sofrimento humano. Em suma, há necessidade de uma ética compartilhada entre profissionais de saúde e sociedade civil. Além disto, possivelmente diante da força retórica da expressão, presencia-se a proliferação de atividades propostas baseadas em evidências (BE). Mesmo assumindo que a epidemiologia sempre atuou como fonte de evidências para a saúde pública, ainda assim, propugnam-se uma ‘saúde pública BE’ (Muir Gray, 1997), ‘processos decisórios para programas de saúde comunitária BE’ (Jackson et al., 1998), promoção à saúde BE, (Jenicek, 1997) e, também, uma ‘escolha por parte dos pacientes BE’ (Eysenbach & Diepgen, 2001). Parte V Apesar das contribuições das atividades técnicas na Medicina, que procura basear-se em evidências, parece existir uma sobrecarga de busca de evidências na relação médico-paciente, em detrimento de tal relação. Isto pode ser ilustrado em um significativo estudo qualitativo empregando grupos ‘estilo Balint’ (sem a presença de psicanalista) com ‘general practitioners’ ingleses (Freeman & Sweeney, 2001). Os achados mostraram que há circunstâncias que interferem na implementação de ações médicas BE. Por exemplo: as experiências pessoais e profissionais do médico; a relação que o médico estabeleceu com seu paciente individual e a percepção da evidência em relação ao caso específico; a forma de se expressar nas consultas pode induzir pacientes a aceitar ou rejeitar evidências clínicas; as condições logísticas de internamento, do tratamento, da gravidade do caso, das situações pessoais dos pacientes podem influenciar na adoção de medidas BE. Além disto, há uma tensão entre médicos de atenção primária e da atenção secundária em lidarem com as abordagens BE. Há uma percepção que especialistas seguiriam mais facilmente protocolos BE. A nosso ver, os obstáculos maiores não se referem às dificuldades provenientes de, nem sempre, dispor-se de evidências seguras sobre determinadas questões, ou, mesmo quando estão disponíveis, não haver certeza sobre quais seriam as melhores escolhas. Ou, ainda, problemas em se operar com variáveis (in)determinadas ou nas limitações na implementação de medidas de promoção à saúde. Preocupações centrais deveriam, na medida do possível, tomar como base a questão de a saúde se configurar como uma macrocategoria multifária. Pois admite, conforme os contextos, múltiplas definições, com distintas repercussões e decorrências. Especialmente, no âmbito humano, apesar das dificuldades de defini-la, ‘saúde’, certamente, é distinto de ‘doença’, mas também é diferente de ‘vida’. A saúde seria um pré-requisito para o ‘viver’, que, inclui o prazer, a dor, a invenção, a criatividade, os arrebatamentos. E ‘viver’, infelizmente, não é passível de ser baseado em evidências.
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Referências BALINT, M. O médico, seu paciente e a doença. Rio de Janeiro: Atheneu, 1988. CAMARGO-JR, K. R. Paradigmas, ciência e saber médico. Rio de Janeiro: Cadernos do Instituto de Medicina Social, 1992. CASTIEL, L. D. A medida do possível... Saúde, risco e tecnobiociências. Rio de Janeiro: Ed. Contracapa/Ed. Fiocruz, 1999. DRUMMOND, J. P., SILVA, E. Medicina baseada em evidências. Novo paradigma assistencial e pedagógico. Rio de Janeiro: Atheneu, 1998. EVIDENCE-BASED WORKING GROUP. Evidence-based medicine. A new approach to teaching the practice of medicine. JAMA, v.268, p.2420-5, 1992. EYSENBACH, G., DIEPGEN, T. L. The role of e-health and consumer health informatics for evidence-based patient choice in the 21st century. Clin. Dermatol., v.19, p.11-7, 2001. FREEMAN A. C., SWEENEY, K. Why general practitioners do not implement evidence: qualitative study. BMJ, p.323, p.1-5, 2001. JACKSON, C. A., PITKIN, K., KINGTON, R. Evidence-based decisionmaking for community health programs. Washington: Rand, 1998. JENICEK, M. Epidemiology, evidenced-based medicine, and evidence-based public health. J. Epidemiol., v.7, n.4, p.187-97, 1997. KUHN, T. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 1970. KUHN, T. Second thoughts on paradigms. In: SUPPE, F. (Org.) The structure of scientific theories. Chicago: University of Illinois Press, 1974. p.7-28. MORIN, E. Ciência com consciência. Lisboa: Publicações Europa–América: Biblioteca Universitária, 1990. MUIR GRAY, J.A. Evidence-based public health – what level of competence is required? J. Public Health Medicine, v.19, n.1, p.65-8, 1997. OLSEN, O., MIDDLETON, P., EZZO, J., GOTZSCHE, P.C., HADHAZY, V., HERXHEIMER, A., KLEIJNEN, J., MCINTOSH, H. Quality of Cochrane reviews: assessment of sample from 1998. BMJ, v.323, p.829-32, 2001. PAULA-ASSIS, J. Kuhn e as ciências sociais. Estudos Avançados, v.7, n.19, p.133-64, 1993. RUSHTON, J. L. The burden of evidence. BMJ, v.323, p.349, 2001. SACKETT, D. L., RICHARDSON, W.S., ROSENBERG, W., HAYNES, R.B. Evidence-based medicine. How to practice and teach EBM. London: Churchill Livingstone, 1997. SAYD, J. D., NUNES-MOREIRA, M. C. Medicina baseada em evidências – Ceticismo terapêutico, recorrência e história. Physis, v.10, p.1, 2000.
STAGNARO, 1981
PADIN, 1981
JANKOVIC, 1981
Recebido para publicação em: 16/01/02 Aprovado para publicação em: 22/02/02
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Álvaro Nagib Attalah
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Oh Deus, onde está o conhecimento que perdi entre tantas informações? T. S. Eliot
O texto de Luis Castiel e Eduardo Póvoa contribui positivamente para a avaliação de uma nova metodologia que visa auxiliar profissionais da saúde e pacientes a tomarem decisões com menor grau de incerteza ou com maior probabilidade de dar certo, que recebe o nome de Medicina Baseada em Evidências*. Poderia ter outros nomes como, Medicina Baseada nas Melhores Evidências Existentes, Análise de Decisões Clínicas, Tomada de Decisões com Base em Pesquisas Clínicas etc. Mais do que a semântica do nome, importam o método, o compromisso da busca das melhores evidências científicas existentes, sua rigorosa avaliação crítica, sua adaptação ao contexto de cada caso específico, a experiência do médico (ou profissional da saúde) e a tomada de decisão conjunta, após o paciente ter sido informado dos riscos e benefícios prováveis daquela decisão. Nada mais coerente, nada mais ético. Importa também saber o quanto das decisões em saúde têm apoio na melhor ciência. Erra quem considera esse conjunto de procedimentos um paradigma novo. Quando Lindt, em 1753, fez o primeiro Ensaio Clínico mostrando a efetividade das frutas cítricas na cura do escorbuto, já utilizava o modelo de pesquisa clínica considerado hoje o padrão ouro para comparar se intervenções diferentes para um mesmo problema médico ou não. Em 1948 o ensaio clínico comparando a efetividade da estreptoquinase com o repouso para a cura radiológica da tuberculose do Medical Research Council, aprimorou substancialmente o método e, em seguida, foi-se progressivamente acumulando conhecimentos, que, devido à proliferação de informações de menor qualidade científica, que crescem em maior escala, foram sendo encobertos. Em 1972, Archibald Cochrane publicou Effectiveness and Efficiency que traduzia bem esse questionamento de se investir em condutas cientificamente cegas em detrimento da eqüidade em saúde. Dizia ele: “Tudo que for efetivo deve ser gratuito” (para a população). Mas para tal é preciso saber o que é mais efetivo. E se for efetivo, se é eficiente, se eficiente, se é seguro. Quem, em sã consciência, não quer esse norteamento na decisão dos profissionais da saúde? Mas, para a colocação dessas informações na prática, é necessário metodologia clara, treinamento dos profissionais e entendimento da forma de pensar dos atores envolvidos, ou seja, profissionais e pacientes. É por isso que a Epidemiologia Clínica e em particular o Inclen (Rede Internacional de Epidemiologia Clínica), há mais de duas décadas, incorporaram o ensino e a pesquisa de cientistas sociais na pesquisa clínica. É preciso entender porque alguns indivíduos se sentem ameaçados pela ciência e outros não. Por que o homem tem mais facilidade de aceitar a fantasia do que a razão? Por que o auto-engano atinge os cientistas e os leigos? O homem é um animal fabuloso. Ele cria fábulas, vende fábulas, compra fábulas, tem benefícios financeiros disto. E acaba acreditando em suas próprias fantasias. O rigor da metodologia de pesquisa clínica visa isolar as emoções, fantasias e interesses, para que seja possível chegar o mais próximo possível da verdade. Em 1834, Pierre Charles Alexander Louis, cansado do fato de grande número de doenças serem tratadas com sangria, sugeriu que uma boa pesquisa clínica para ter credibilidade requeria: a) Observação cuidadosa dos desfechos clínicos, b) História natural dos controles não tratados, c) Definição precisa da doença antes do tratamento, d) Observação cuidadosa dos desvios do tratamento proposto. Sugiro ao leitor verificar que esses requisitos continuam ignorados com freqüência, mesmo em teses de doutorado, apresentadas e aprovadas no terceiro milênio.
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Universidade Federal de São Paulo; Centro Cochrane do Brasil. <atallahmbe@uol.com.br>
* Um maior detalhamento a respeito da Medicina Baseada em Evidências pode ser obtido no site do Centro Cochrane do Brasil. <http@www.centrocochranedobrasil.org>
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Diga-se de passagem que mulheres com eclampsia foram sangradas por cerca de 2000 anos sem que nesse período ninguém questionasse se aquela conduta trazia mais benefícios do que malefícios para os pacientes. E ainda hoje, gestantes são submetidas a várias condutas que contrariam as melhores evidências. O movimento do uso dos conceitos da Medicina Baseada em Evidências visa apenas prevenir algumas dessas aberrações, que ocorrem em grande escala. É uma forma de avançar da lógica da predição teórico-experimental da fisiopatologia, para a tomada de decisão com base em resultados de pesquisas clínicas de boa qualidade, ou seja, sair daquilo que é hipoteticamente esperado, para o que se demonstrou ter acontecido com maior freqüência. O que requer mais do que apenas a evidência, podendo incluir-se aí o que se chama de arte médica. O grande mérito de Archibald Cochrane foi evitar a controvérsia entre a Epidemiologia Pura e a Prática Clínica e ao mesmo tempo utilizar os métodos epidemiológicos para que os clínicos (e os epidemiologistas) pudessem avaliar e reduzir as incertezas nas decisões em saúde mediante metodologia rigorosa com a prevenção de viezes e efeitos do acaso. Atualmente, uma evidência que reduza a mortalidade e ou a incapacidade física apenas por infarto do miocárdio ou acidente vascular cerebral pode beneficiar milhões de pessoas por ano em todo o mundo. Mas não basta termos o conhecimento (evidência), é preciso que a mesma seja entendida no seu valor e levada à prática com metodologia multidisciplinar. E que esse processo não seja obstruído por aqueles que possam se sentir ameaçados em sua autoridade, em suas limitações ou interesses. Concordo com os autores quando questionam o sentido de novo paradigma da Medicina Baseada em Evidências. Esse termo, sugerido por profissionais de países anglo-saxônicos, não tem o sentido completo dado por Thomas Khun para os modelos científicos da física e da química. Entretanto, é o melhor modelo para tomada de decisão em saúde. Recebido para publicação em: 24/06/02 Aprovado para publicação em: 10/07/02
Fátima Adriana D’Almeida
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A crescente influência da Medicina Baseada em Evidências (MBE), tanto na prática clínica como na educação médica, tem sido objeto de intenso debate por parte de educadores, clínicos e administradores de instituições de saúde. Dois aspectos podem ser considerados em uma análise crítica da MBE: o assistencial e o pedagógico. As mudanças significativas ocorridas nos sistemas de saúde durante o século XX estão exigindo novas competências dos profissionais de saúde, entre elas: ênfase no cuidado em atenção primária, participação na coordenação da assistência, capacidade de assegurar assistência custo-efetiva e apropriada, envolvimento de pacientes e familiares nas decisões, promoção de hábitos de vida saudáveis, capacidade de acessar e manejar adequadamente a informação existente na literatura, prover aconselhamento em assuntos éticos. Buscando enfrentar alguns destes desafios, educadores têm enfatizado a necessidade de introduzir nos currículos médicos as disciplinas: epidemiologia clínica, bioestatística, informática médica e habilidades em comunicação. É neste cenário de mudanças e desafios que emerge a MBE, comumente entendida como a integração do conhecimento avaliado criticamente, a experiência clínica e os valores e crenças dos pacientes, no processo de tomada de decisão (Sackett et al., 2000).
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Docente da disciplina de Clínica Médica da Faculdade de Medicina de Marília. <fadriana@terra.com.br>
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Em revisão da literatura das publicações que envolvem críticas a MBE, Straus & McAlister (2000) apontam as seguintes questões, decorrentes de: 1. Limitações da prática da Medicina - dizem respeito à ausência de evidência científica consistente em relação a determinado assunto e dificuldades em aplicar as evidências estabelecidas na assistência a um paciente individual. 2. Limitações relacionadas a MBE – tratam das críticas ligadas à necessidade de os profissionais desenvolverem novas habilidades, adequadas à realidade de recursos limitados e à capacidade de avaliação do impacto da própria evidência. 3. Concepções errôneas sobre a MBE, como a de que: denigre a experiência clínica, ignora os valores e preferências dos pacientes, promove um “livro de receitas” para a Medicina, serve simplesmente para cortar custos e está limitada à pesquisa clínica. Por outro lado, a MBE tem sido também entendida como um meio de preparar, em diversas dimensões, os profissionais de saúde para os desafios postos à organização da assistência à saúde na medida em que se apresenta com potencial para: melhorar a continuidade e uniformidade assistencial por meio de abordagens comuns e diretrizes clínicas desenvolvidas pelos seus praticantes; fornecer instrumentos para ajudar os gerentes a um uso criterioso de recursos escassos permitindo sua alocação mais adequada; envolver pacientes e familiares no processo de tomada de decisão, ressaltando a necessidade de habilidades de comunicação por parte dos profissionais de saúde; desenvolver, em estudantes e profissionais, a prática de buscar na literatura respostas às suas próprias dúvidas e questões clínicas melhorando, com isso, o processo de tomada de decisão (Green, 1999; Goroll et al., 2001). Desta forma, desafios são colocados como objetos de futuras pesquisas que poderão ajudar a responder à pergunta de Castiel e Póvoa. Para tanto, é necessário: 1. Desenvolver atividades de educação continuada para promover as necessárias habilidades de aprendizagem para a prática de todos os passos da MBE, usando métodos educacionais adequados para este propósito e o desenvolvimento de técnicas que possibilitem aplicar as evidências encontradas na assistência a pacientes individuais (Hatala, 1999). 2. Desenvolver e disseminar diretrizes baseadas em evidências e fontes eletrônicas com conhecimento científico já criticamente avaliado, de fácil acesso e compreensão como o Best Evidence, POEMS, CATs, Bandolier, Chrocrane, principalmente em serviços movimentados, para profissionais sobrecarregados. 3. Disponibilizar os equipamentos necessários no local de trabalho, como computadores, acesso à internet etc. 4. Conduzir mais estudos para verificar se, e como, a MBE afeta a assistência ao paciente. Seria, assim, a MBE um novo paradigma? Inovações levam tempo para ser difundidas e se tornarem bem estabelecidas na prática clínica. Seja qual for o nome que se dê a essa nova prática, mudança ou não de paradigma, eu empresto as palavras de Wallace & Leipzig (1997, p.90): “a disciplina de Medicina Baseada em Evidências pode provocar entusiasmo e intensa implementação em alguns e resistência e uma direta hostilidade em outros. Até o presente momento, ela é uma ciência em desenvolvimento, e sua influência na prática e nas diretrizes de saúde está crescendo. A Medicina Baseada em Evidências parece ter vindo para ficar”. Referências GOROLL, A. H., MORRISON, G., BASS, E. B., JABLONOVER, R., BLACKMAN, D., PLATT, R., WHELAN, A., HEKELMAN, F. P. Reforming the core clerkship in internal Medicine: the SGIM/ CDIM Project. Ann. Intern. Med., n.134, p.30-7, 2001. GREEN, M. L. Graduate medical education training in Clinical Epidemiology, critical appraisal, and evidence-based Medicine: a critical review of curricula. Acad. Med., n.74, p.686-794, 1999. HATALA, R. Is Evidence-based Medicine a teachable skill? Ann. Emerg. Med., v.34, n.2, p.226-8, 1999. SACKETT, D. L., STRAUS, S. E., RICHARDSON, W. S., ROSEMBERG, W., HAYNES, R. B. Evidence-based Medicine: how to practice & teach EBM. 2.ed. London: Churchill Livingstone, 2000. STRAUSS, S. E., MCALISTER, F. A. Evidence-based Medicine: a commentary on common criticisms. Can. Med. Assoc. J., v.163, n.7, p.837-41, 2000. WALLACE, E. Z., LEIPZIG, R. M. Doing the right thing right: is evidence-based Medicine the answer? Ann. Intern. Med., v.127, n.1, p.91-4, 1997. Recebido para publicação em: 08/06/02. Aprovado para publicação em: 26/07/02
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Luiz Augusto Facchini
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DESAFIOS NA TRANSFORMAÇÃO DA PRÁTICA MÉDICA O texto de Castiel e Póvoa é uma excelente contribuição ao debate sobre a crise da prática médica contemporânea e suas alternativas de superação. A Medicina do século XIX foi fortemente marcada pela valorização da experiência clínica e da erudição médica, enquanto cresciam os recursos tecnológicos. No século XX, houve uma clara inversão dessa relação. Novas drogas e novos procedimentos diagnósticos e terapêuticos começaram a se incorporar ao cotidiano da prática médica cada vez mais rapidamente (Entralgo, 1978; Piñero, 1982). No século XXI, a Medicina continua vivendo intensamente o impacto da revolução científico-tecnológica. A genética, os sofisticados meios diagnósticos por imagem e a revolução provocada pela indústria da informática, estão trazendo grandes mudanças no modo de exercer a profissão (Tosteson et al., 1994). Vivemos o desenvolvimento de uma ciência que se destaca por transferir a racionalidade médica, de modo cada vez mais aperfeiçoado, para os equipamentos. A possibilidade de chegar a um diagnóstico por meio da semiologia clínica como linguagem mediadora, hoje também está ao alcance das máquinas. Este desenvolvimento tornou possível a realização de diagnósticos sem a intervenção do médico e a definição de condutas também sem seu auxílio (Tosteson et al., 1994). Nos próximos anos, estes fatos se tornarão ainda mais comuns. Isso significa que parte do trabalho médico poderá ser executado por máquinas, principalmente as tarefas mais estruturadas e que possam ganhar eficácia mais facilmente ao utilizar a tecnologia em desenvolvimento. O mais surpreendente neste início de século é o contraste existente entre o fantástico desenvolvimento instrumental da Medicina, o avanço e a disseminação de sua capacidade diagnóstica e terapêutica, e a crise estrutural da formação de médicos e dos modelos de assistência à saúde. A fragmentação da Medicina, em um processo incessante de especialização e ruptura de suas tradicionais características de atividade artesanal, tem contribuído para o esvaziamento do ato médico, enquanto arte de cuidar de pessoas (Piccini et al., 2000). Esta fragmentação propicia uma incorporação irracional de tecnologias e insumos e, assim, o incremento crescente dos custos para o sistema de saúde. A ampliação do acesso da população aos serviços de saúde, sem o correspondente aumento da satisfação dos usuários e de impacto positivo nos indicadores de qualidade da atenção médica, acaba tornando-se uma prática ineficiente (Dias da Costa, 2002). Muitas alternativas pedagógicas e assistenciais têm sido propostas para enfrentar a crise, sendo algumas, como por exemplo, a Medicina baseada em evidências (MBE), divulgadas como novos paradigmas científicos (Sackett et al., 1997). Integração do ciclo básico com o profissionalizante, ensino em tutoria para pequenos grupos, aprendizado baseado em problemas, cuidados médicos gerenciados e inserção em atividades clínicas desde o início do curso também integram o conjunto de propostas dirigidas à reforma dos currículos médicos e, em conseqüência, à transformação da prática assistencial (Tosteson et al., 1994). A superação da crise da Medicina requer a utilização de todo o arsenal técnico-científico disponível, incluída a MBE. Mas, dificilmente a utilização da MBE canalizará as transformações capazes de superar a crise da prática médica, caso suas raízes estruturais permaneçam intocadas. A relevância dos recursos da MBE é indiscutível, mas não há protocolo capaz de tornar um médico mais receptivo e acolhedor às demandas dos pacientes, caso não ocorra uma revolução do paradigma médico, hoje fortemente vinculado à prescrição de medicamentos e exames complementares e ao encaminhamento a outro nível de complexidade do sistema de saúde.
1 Professor do Departamento de Medicina Social da Universidade Federal de Pelotas/ UFPel; Secretário Municipal de Saúde de Pelotas. <lfachini@zaz.com.br>
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Por exemplo, a padronização de medicamentos baseada em evidências clínicas e a ampliação do acesso aos serviços ambulatoriais de saúde mental são instrumentos essenciais para a boa prática em saúde, mas não são suficientes para diminuir o número de indivíduos que usam regularmente medicação psicotrópica, sem necessidade. Ao contrário, podem acabar estimulando o uso da medicação, caso a facilidade de acesso seja desacompanhada de uma qualificação do cuidado. A tomada de decisão médica baseada em evidências clínicas (ou epidemiológicas) não assegura a transformação da prática médica e a qualidade do sistema de saúde (Brook, 1997; Márquez, 1990). Logo, a disponibilidade de evidências não altera a lógica da atenção à saúde, a menos que seja incorporada como um dos instrumentos da reorganização das práticas de saúde, incluindo reformulações estratégicas do sistema de saúde e da formação dos profissionais (Dias da Costa, 2002). Portanto, a superação da crise requer um novo paradigma assistencial capaz de reorganizar o trabalho médico, oportunizando ao profissional a atualização permanente sobre os recursos diagnósticos e terapêuticos disponíveis, mas, principalmente, a compreensão complexa do sofrimento do paciente. O novo paradigma deve reforçar a responsabilidade do médico em acompanhar e cuidar do usuário em sua trajetória na busca de cura ou alívio para seus sofrimentos. O novo paradigma assistencial deverá solucionar os conflitos de um modelo de prática médica que, além de caro e crescentemente oneroso, é avaliado como inadequado às necessidades de saúde da população e às possibilidades econômicas de financiamento. Recursos como a MBE e os Cuidados Gerenciados de Saúde (Health Managed Care), apesar de valiosos, não solucionam a crise da prática médica, assim como o aprendizado baseado em problema e o ensino por tutoria, não solucionam a crise da formação médica (Brook, 1997). A crise não será superada pela padronização do raciocínio clínico e uso de recursos diagnósticos e terapêuticos. A superação da crise requer a qualificação da prática médica, a valorização de seu caráter mais humanizado, mais particular, mais artesanal: a relação do médico com seu paciente e com sua comunidade. A reestruturação da prática médica deverá reforçar a percepção do profissional sobre os limites da intervenção medicamentosa e dos procedimentos armados, e sobre as possibilidades de ampliar o cuidado médico, incluindo as características do indivíduo, de sua família e de sua comunidade para lidar melhor com o sofrimento humano e a busca de uma vida melhor. A revolução paradigmática da Medicina requer a ampliação e valorização das dimensões do trabalho médico que não podem ser capturadas por equipamentos tecnológicos. A significação do sofrimento humano, das queixas referidas por usuários de saúde, deverá extrapolar os resultados de exames complementares, testes terapêuticos e revisões sistemáticas da literatura médica, incluindo o cuidado integral das necessidades bio-psico-sociais da população, o acompanhamento dos problemas crônicos, a eqüidade na distribuição de cuidados preventivos e a indução a atitudes saudáveis. A transformação da prática médica requer que os médicos disponham de tempo para o envolvimento com populações e indivíduos sob sua responsabilidade e de capacitação permanente, não apenas para a atualização sobre revisões clínicas sistemáticas, mas também para desenvolvimento de atitudes e habilidades direcionadas à humanização do cuidado e à gestão coordenada das ações de saúde. A humanização da Medicina deve ser encarada como um salto de qualidade em seu desenvolvimento, especialmente no que diz respeito à ampliação das dimensões psíquica e social do ser humano. A gestão criteriosa do uso dos recursos técnicos e a responsabilidade com as necessidades de saúde dos pacientes, ampliam o significado do trabalho médico, valorizando o ato criativo. Referências BROOK, R. Managed care is not the problem - quality is. JAMA, v.278, n.19, p.1612-4, 1997. DIAS DA COSTA, J. Análise de custos ambulatoriais em Saúde: um estudo de base populacional no Sul do Brasil. Porto Alegre, 2002. Tese (Doutorado). Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Curso de PósGraduação em Medicina. ENTRALGO, P.L. Historia de la Medicina. Barcelona: Salvat Editores, 1978. MÁRQUEZ P.V. Control de costos en Salud: experiencias en paises de las Américas. Bol. Of. Sanit. Panam., v.109, n.2, p.111-132, 1990.
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PICCINI, R.X, FACCHINI, L.A., SANTOS, R.C. (Orgs.) Preparando a transformação da Educação Médica: projeto CINAEM III Fase. Pelotas: Editora Enfoque/UFPel, 2000. PIÑERO, J. L. Medicina, Historia, Sociedad. Barcelona: Siglo XXI de España, 1982. SACKETT, D. L., RICHARDSON, W.S., ROSENBERG, W., HAYNES, R.B. Evidence-based medicine. How to practice and teach EBM. London: Churchill Livingstone, 1997. TOSTESON, D., ADELSTEIN, S.J., CARVER, S. (Ed.) New pathway to Medical Education. Cambridge: Harvard University Press, 1994. Recebido para publicação em: 11/06/02. Aprovado para publicação em: 10/07/02
Rita Barradas Barata
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Há, no texto de Castiel e Póvoa, três ordens de questões das quais eu gostaria de tratar neste breve comentário. A primeira, de ordem mais geral, refere-se à utilização do termo paradigma e à flagrante contradição entre os pressupostos lógicos e epistemológicos que informam a “sociologia da ciência” de Thomas Khun e os pressupostos da Medicina baseada em evidência. Face a esta total incompatibilidade tendo a achar que a escolha do termo paradigma é aqui feita em sua acepção literal e não epistemológica, vale dizer, paradigma no discurso desses autores significa padrão, modelo, regra, norma, como no Aurélio. Não sei se vale a imputação de uso incorreto neste caso. A segunda ordem de questões, estas sim substantivas, remetem para a concepção de ciência por trás do rótulo. Os pressupostos da Medicina baseada em evidências demonstram, como o artigo salienta muito bem, sua filiação ao que Bachelard em sua Filosofia do não classificou como interpretação realista da ciência. Estas epistemologias científicas se caracterizam por desqualificar qualquer forma de saber que não seja o saber científico, além de considerar como saber científico apenas aquele referido a objetos perfeitamente delimitados (reducionismo) a materiais (positivismo) permanentes e não-contraditórios (formalismo). Portanto, assumir tal paradigma como modelo pedagógico de formação implicaria em reduzir o objeto do conhecimento e da prática médica apenas a objetos com tais características. No limite, contribuições como as da Biologia Molecular e da Genética, para permanecer no estrito campo biomédico, a rigor, teriam inúmeras dificuldades de sobreviver a esses cânones. O termo evidência contém em si, de maneira sintética, esta crença nuclear do realismo ingênuo de que a ciência está capacitada por seus métodos, a prevenir o raciocínio humano da ação nefasta dos “ídolos” baconianos, captando a realidade em sua existência real, já que a essência é matéria para a metafísica. Portanto, ao adotar a Medicina baseada em evidências, os médicos e os pacientes estariam protegendo sua relação da intromissão de aspectos indesejáveis tais como sentimentos, intuições, desejos, analogias. A hierarquização das evidências aponta para um certo deslocamento desta posição realista a um racionalismo instrumental na medida em que o método passa a ser soberano na classificação da força da evidência. Assim, não basta observar metodicamente a realidade para obter a evidência sendo necessário aplicar um método que “importe” a realidade para o laboratório a fim de que os ídolos possam efetivamente ser isolados (nada mais anti-kuhniano!).
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Departamento de Medicina Social da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa, São Paulo. <chmedsoc@santacasasp.org.br>
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Ao mesmo tempo, porém, a introdução do rigor metodológico como critério supremo fica imediatamente prejudicada por preconceitos evidenciados na ordem de importância conferida a cada fonte de evidência. A mais alta posição é ocupada por meta-análise de estudos clínicos controlados e randomizados, o critério aqui parece ser “more is better”. A posição seguinte cabe aos estudos clínicos controlados e randomizados ainda que solitários, portanto o critério parece ser o método experimental. Em seguida, são colocados no mesmo patamar estudos observacionais tipo coorte, caso-controle, controles históricos e séries temporais e os estudos de casuística, nos quais não existem grupos controle, prevalecendo então como critério a obtenção da informação por meio da observação seja ela metodicamente controlada ou não. Na quarta posição aparecem os estudos observacionais multicêntricos, sugerindo que, neste caso, “mais não é melhor”, ou seja, o multicêntrico perde posição face aos estudos observacionais isolados. Finalmente, a última posição é ocupada por estudos descritivos, experiência profissional, “expertise” e opiniões de autoridade! A racionalidade desse ordenamento, vamos convir, deixa um tanto a desejar! Mas, os problemas estão longe de terminar. A terceira ordem de questões tem implicações tão ou mais importantes, seja para a prática profissional seja para a prática pedagógica. A emergência da proposta da Medicina baseada em evidências é bastante coerente com a organização do trabalho médico “pós-clínica”. Principalmente a partir da segunda metade do século XX, a clínica tal qual se constituiu no século XIX, rapidamente dá lugar a um novo modo de produção de cuidados médicos no qual a prática perde seu caráter artesanal, a relação médico-paciente é substituída por uma relação instituição-clientela e a tendência à parametrização é fortalecida. Enfim, por analogia, poderíamos dizer que se passa de um modo de produção mercantil artesanal para a manufatura e a indústria. A parametrização de procedimentos diagnósticos e terapêuticos, embora seja apresentada como garantia de qualidade para a clientela, desempenha certamente um outro papel que não se deixa evidenciar tão claramente, o de facilitar o exercício de controles administrativos e, portanto, a introdução de uma lógica gerencial no campo médico. O que seria das Health Managment Organization (HMO) sem os parâmetros (guidelines) de conduta? Esta administração, além do mais pode ser exercida sem o concurso de profissionais médicos que poderiam contaminar tais funções com seu inevitável traço corporativo. Este aspecto da “domesticação” de uma prática originalmente dita liberal tem sido pouco enfatizado face aos mitos de neutralidade científica, qualidade na assistência e objetividade. Outro aspecto igualmente relevante para a prática assistencial, também mencionado pelo artigo, é a inadequação existente na transposição, sem as necessárias mediações, de conhecimentos obtidos em “sets” completamente artificiais, como são aqueles onde se realizam os ensaios clínicos controlados, para o cotidiano de trabalho dos profissionais de saúde. Os critérios de inclusão e exclusão de indivíduos nos grupos de estudo e controle representam sérias limitações para a validade externa dessas investigações. Melhor dizendo, os constrangimentos éticos e metodológicos acabam por estreitar a amplitude da extrapolação possível das informações da amostra estudada para o conjunto de potenciais beneficiários. As condições ideais de aplicação das intervenções e de acompanhamento dos grupos, muito diferentes da situação real, principalmente para os pacientes externos ou ambulatoriais, implicam também pior desempenho face à eficácia esperada. Ter a Medicina baseada em evidências como paradigma único da assistência ou da formação de profissionais médicos seria provavelmente catastrófico, pois significaria, em última instância, a tentativa de reduzir a prática e o ensino da Medicina a seus aspectos puramente técnicos, reforçando ainda mais a “desumanização” do cuidado, o descaso ante o vivido, o descompromisso face os determinantes dos processos, a despolitização do empreendimento. A conseqüência previsível de tal iniciativa no campo da formação seria o “enquadramento” dos novos profissionais às características desse processo de trabalho aparentemente muito qualificado, por seu embasamento científico, porém relativamente desqualificado face aos demais componentes do cuidado médico. Sem dúvida, o fortalecimento das bases científicas da Medicina aliado a outros saberes, científicos ou não, visando a formação de um profissional capaz de fazer frente aos desafios postos pela complexidade do objeto saúde-doença, respeitar a dignidade e individualidade de seus pacientes e assumir plenamente os compromissos sociais de sua prática profissional seria extremamente bem vindo.
Recebido para publicação em: 29/04/02 Aprovado para publicação em: 22/05/02
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DEBATES
Réplica - Luis David Castiel A intenção e o sentido que caracterizam o comportamento e a linguagem dos homens estão indissoluvelmente ligados entre si. Henri Atlan
O bebê e a água do banho
Primeiramente, cabe destacar a competência dos comentadores que acrescentaram novas dimensões à discussão e enriqueceram visivelmente a proposta da seção. Também, a forma atenciosa e elegante com que os colegas abordaram nosso texto. Interessante assinalar o fato de vários tópicos apontados por determinados debatedores servirem como réplicas a questões apresentadas pelos outros. Nossa tendência é nos alinharmos com BarradasBarata e Facchini. A primeira mostra implicações críticas pertinentes: do termo ‘evidência’, dos excessos do racionalismo instrumental e da idéia de ‘rigor metodológico’ e de seus efeitos indesejáveis na prática assistencial e pedagógica (obs.: é, de fato, a acepção kuhniana de paradigma que autores da Medicina baseada em evidências (MBE) estão considerando - ver capítulo 1 - “O que é MBE?” de Drummond, JP (Drummond & Silva, 1998). Já Facchini traz consistentes aportes sobre descompassos entre a racionalidade biomédica, seus avanços tecnobiocientíficos e as crises da formação médica e dos modelos de cuidados em saúde coletiva. Neste enfoque, aponta limitações de propostas como a MBE e ressalta itens cruciais para possíveis superações de tais crises. Concordamos com argumentos relativos a inegáveis aspectos da eficácia instrumental da MBE na prática clínica, apesar da aparente interpretação realista da ciência subjacente ao texto de Attalah e mais vigorosamente ainda em D’Almeida. Tentamos frisar esta questão no artigo original e voltamos a reiterá-la. Seria absurdo não considerar as vantagens de uma assistência à saúde aperfeiçoada pela pesquisa médica - que também poderia ser mais um outro nome para a MBE (Haynes et al, 2002). Agora, vale enfatizar que nomes são muito importantes ao se constituírem em atos de fala, como desenvolveu Austin (1975) em sua clássica distinção entre: ato locucionário – que apresenta algum sentido no enunciado; ato ilocucionário – que porta intenção em sua enunciação; ato perlocucionário – que produz efeitos, desejados ou não. Por que a designação escolhida pelo movimento MBE foi justamente aquela que inclui ‘evidência’ – no sentido usual anglo-saxônico do vocábulo – prova de indicação de verdade (inclusive jurídica)? Difícil saber sem indagar aos que propuseram tal termo. Mas, é fascinante a vinculação entre termos (e procedimentos) comuns jurídicos e científicos – investigação, prova, contraprova, lei, protocolos, demonstrar, fundamentar etc (para uma hipótese acerca desta conexão ver Samaja, 1993). Em ambos, lida-se com duas etapas: a) coleta de informações/dados; b) estabelecimento de juízos diante dos resultados para chegar a decisões/vereditos (‘ditos verdadeiros’). Esta é uma excelente oportunidade para explorar a relevante questão de vivermos numa era hipercomunicacional em que designações, marcas, slogans participam ativamente da criação e sustentação do interesse para aquilo que se pretende difundir (e eventualmente gerar consumo). Isto vale, mutatis mutandis, também para o âmbito científico. Latour (1998) enfatiza o estarrecedor desenvolvimento científico no século passado e como o entendimento deste avanço mudou drasticamente. Para ele, teria havido uma transição da cultura da ‘ciência’ para a cultura da ‘pesquisa’. Esquematicamente, a idéia era de que a Ciência seria uma forma (iluminista) de permitir que indivíduos, treinados em técnicas de estudo e experimentação, pudessem evitar fontes de desvio oriundas das ideologias, paixões, emoções (âmbito da subjetividade) para aproximarem-se de modo ‘objetivo’ das verdades, com o propósito de fazer avançar o conhecimento sobre o mundo, resolver problemas e minimizar as fragilidades humanas. A pesquisa seria algo produtor de controvérsias, envolvendo riscos, realizada por indivíduos treinados, mas que também se preocupam com suas carreiras, com a visibilidade/divulgação dos resultados de seus estudos. Ademais, lidam com intrincadas relações com fontes de financiamento e com influências de poderosas empresas produtoras de tecnologias. Em suma, a pesquisa mostra que Ciência e
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DEBATES
Sociedade não podem ser separadas. A atividade científica atual não mais se institui em uma sociedade caótica para organizar, trazer a ordem e até dirimir controvérsias. Eventualmente, ela própria pode introduzir mais ruído a este contexto. Um exemplo: as conclusões de pesquisadores acerca de ensaios clínicos randomizados (ECRs) foram significantemente mais favoráveis na direção da intervenção experimental quando as pesquisas foram financiadas somente por organizações com fins lucrativos. Neste estudo de ensaios clínicos publicados no BMJ no período de janeiro de 1997 a junho de 2001, as conclusões dos autores foram avaliadas em uma escala e comparadas com interesses competidores de ordem financeira, pessoal, acadêmica ou política. Tal associação ocorreria porque as referidas organizações, de modo hábil ou fortuito, financiariam somente aqueles ensaios nos quais a intervenção é melhor que o controle. Ainda assim, pode haver viés de publicação. A associação entre interesses financeiros competidores e as conclusões dos autores não foi explicada por qualidade metodológica, poder estatístico, tipo de intervenção experimental (farmacológica ou não), tipo de controle da intervenção (placebo ou droga ativa) ou especialidade médica (Kjaergard & Als-Nielsen, 2002). Estes achados afetam a solidez objetivante dos estudos que buscam evidências para reduzir incertezas em respectivos casos que requeiram decisões de tipo ‘intervenção ou não’? Adeptos da MBE terão de saber as fontes de financiamento de ECRs e se isto produz efeitos nas conclusões? Como ponderar estes aspectos nas meta-análises? Nós, profissionais de saúde, diante de propostas inovadoras, entre as quais a MBE atua como emblema, não podemos descurar do fato de que nas relações ciência/sociedade proliferam situações do tipo ‘bebê e água do banho’. Pior: às vezes, nem um, nem outro são claramente discerníveis. Enfim, por mais que boas intenções inspirem nossa atuação, diz-se, popularmente, que ‘existe’ um lugar desconfortável repleto delas.
Referências AUSTIN, J.L. How to do things with words? Cambridge: Harvard University Press, 1975. DRUMMOND, J.P.; SILVA, E. Medicina baseada em evidências. Novo paradigma assistencial e pedagógico. Rio de Janeiro: Atheneu, 1998. HAYNES, R.B.; DEVEREAUX, P.J.; GUYATT, G.H. Physicians’ and patients’ choices in evidence based practice. BMJ., n.324, p.1350, 2002. KJAERGARD, L. L.; ALS-NIELSEN, B. Association between competing interests and authors’ conclusions: epidemiological study of randomized controlled trials published in the BMJ. BMJ., n.325, p.249, 2002. LATOUR, B. From the world of science to the world of research? Science, v.280, n.5361, p.208-9, 1998. SAMAJA, J. Epistemología y metodología. Elementos para una teoría de la investigación científica. Buenos Ayres: Eudeba, 1993.
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Réplica - Eduardo Conte Póvoa A capacidade de escutar constitui uma nova habilidade, que exige uma modificação considerável, embora limitada, da personalidade do médico (...) não existem perguntas absolutamente diretas capazes de trazer à superfície o tipo de informação que ele busca. Michael Balint
Se o uso do termo “evidência” é inevitável, podemos inicialmente parafrasear Edgar Morin (1990) a partir do título de um de seus livros: “Ciência com Consciência”, falando de “evidência com consciência”. Semântica sempre tem sua importância, pois é pelas palavras que buscamos dar sentido àquilo que de fato pretendemos. Por esta razão não nos furtamos à utilização de termos, para tentar enfatizar nossos pressupostos. Vale sempre ressaltar a importância do significado conceitual que advém de nossas opções. Nossa preocupação se relaciona com o possível uso desmesurado de determinadas ferramentas, que acabariam hipertrofiando ou pelo menos ratificando a postura cientificista da biomedicina, deixando pouco espaço para o fomento de outras habilidades que os médicos clínicos devem desenvolver. A epidemiologia sempre foi considerada importante pela medicina ocidental contemporânea – compõe o conjunto de dispositivos da racionalidade da biomedicina. Contudo tem sido muito mais difícil implementar estratégias na formação médica e no contexto das práticas de cuidado e atenção em saúde, que levem em consideração a subjetividade, a capacidade empática e intuitiva que os médicos devem desenvolver. Podemos perceber que a complexidade da saúde exige muito mais que busca de “evidências” , pois lidar com o sofrimento humano em sua integralidade psicossomática, no contexto sócio-cultural, exige uma postura muito mais ampla e inevitavelmente dialógica. A perplexidade que nos atinge a cada momento na esfera da assistência, não permite a expropriação da arte e da intuição médicas. Sabemos, por exemplo, que a maioria dos casos clínicos que se atende em unidades de pronto atendimento é da ordem dos Transtornos Somatoformes (quadros sintomatológicos, cuja lesão orgânica não existe para justificá-los). Logo, a arte de cuidar de um ser humano exige conhecimento técnico, treinamento metodológico, mas sempre como meio e não como fim. A verdadeira arte consiste no manejo apropriado da técnica, considerando o respeito aos desejos e anseios dos pacientes. Voltando a enfatizar a importância da semântica, faz-se pertinente comentarmos o termo “fantasia” utilizado por Attalah. No sentido em que foi considerado, implica uma ressalva: na racionalidade médica ocidental contemporânea predomina o pensamento concreto, a objetividade, entre outras características. Portanto não poderíamos generalizar que todos os grupos teriam a predominância de uma ou de outra tendência. Contudo a capacidade de fantasiar, no sentido psicanalítico, pode ser considerada como uma das manifestações saudáveis de um determinado indivíduo, pelo fato de expressar a capacidade de simbolização. Pierre Marty (1993) e colaboradores, representantes do Instituto de Psicossomática da França, consideram que indivíduos que possuem esta capacidade reduzida estariam mais vulneráveis às doenças psicossomáticas. Ainda sobre fantasia, é necessário que os médicos estejam mais preparados para compreender os devaneios, as metáforas, os anseios, os desejos, os conflitos psicológicos e/ou as dificuldades afetivas de seus pacientes. É desta consciência que nos parece que a biomedicina mais carece. Enfim, talvez não devamos viver dicotomicamente. O pensamento cartesiano vem sendo a forma predominante pela qual a medicina ocidental vem norteando suas práticas. Os estudiosos do projeto “racionalidades médicas” (coordenado por Madel Luz) consideram que a doutrina da racionalidade médica ocidental vem sendo caracterizada pelo pensamento cartesiano. Desta forma, muitos médicos vêm exercendo suas práticas de forma dissociativa e reducionista. Não se pretende desconsiderar as ferramentas que a epidemiologia clínica e a informática médica nos traz, mas que possamos considerálas no contexto do pensamento complexo (Morin, 1990), mantendo uma postura integral e reflexões filosóficas para que as diversas dimensões da vida sejam consideradas no processo saúde/doença. Assim nos permitiremos abrir mão eventualmente de “evidências”, e quando tivermos que levá-las em conta, faremos com consciência crítica. Referências MORIN , E . Ciência com consciência . Lisboa: Publicações Europa – América LDA – Biblioteca Universitária, 1990. MARTY, P. A psicossomática do adulto. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 1993.
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DEBATES
MARIA DO SOCORRO, 2001
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Fórum Social Mundial e a Saúde: por uma ética global da vida
notas breves
The World Social Forum and Health: for the global ethics of life
Emerson Elias Merhy
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ser igual é reconhecer a igualdade do outro a minha liberdade é a sua liberdade Disputando imaginários e políticas Construir lugares em que grupos e indivíduos possam se posicionar sobre seus desejos e intenções, demarcados pelo terreno das relações sociais e implicados com a construção democrática de projetos e ações de saúde, é um dos principais caminhos que os movimentos sociais deste campo vêm apostando como forma de torná-lo profundamente envolvido com a produção de um modo de viver que não viole a potência de vida que há no mundo das coisas, das sociedades e das pessoas. Qualidades que não podem ser compartilhadas pelas relações sociais governadas por mecânicas instrumentais que a tudo transformam em recursos usáveis, como são as capitalísticas dirigidas. Estas têm sido demarcadas pela antiprodução da vida. Têm matado a cada dia a vitalidade naqueles mundos. Produzir modos de viver coletivos que, ao construírem vida não gerem destruição, não só é possível como é um desafio a ser fabricado no dia a dia pelos coletivos sociais, que não querem se submeter aos processos capitalísticos. Hegemônicos, sem dúvida. Mas, isto exige lutas sem tréguas. Lutas pela possibilidade de ser imaginada. De ser desejada. De ser constituída. Produzida. E isto não é privilégio de um modo correto e único de viver, porém, é com certeza mais viável quanto mais múltiplos forem os modos de se inventar o viver, compatíveis com as muitas distintas maneiras de se poder criar e recriar os desejos e suas concretizações, com a aposta de que a minha vida é a sua vida, a minha liberdade é a sua liberdade, o meu direito é o
seu direito. A minha igualdade é a sua igualdade. Na medida em que somos responsáveis pelo que construímos e estamos profundamente implicados com a produção da igualdade como a aceitação da singularidade do outro, com a defesa intransigente de que todos somos tão iguais, que devemos ser diferentes. Pensando assim, poderemos usufruir da crença em um futuro distinto do atual e mais rico para todos. Mas, ledo engano de que isto seja tranqüilo de ser construído. Sua justeza não se traduz em facilidades; estas situações são duras de acontecer. Remam contra os processos exploradores da vitalidade das coisas, contra os interesses mesquinhos e de poucos, mas poderosos e dominantes. Contra a força do mercado. Contra a massacrante massificação de uma globalização capitalística que a todos se quer como iguais. Exigem a produção permanente de coletivos autônomos, que não tenham medo de se publicizarem, de se submeterem às tensões tão necessárias dos encontros nos espaços públicos. Exigem construir um Fórum atado à noção de que um outro futuro, diferente do predominante, é possível e que isto está vinculado às distintas maneiras de se criar e participar de processos coletivos de produção de novas subjetividades, implicadas com a defesa intransigente da vida individual e coletiva e a criação de situações interrogadoras para estes coletivos que lhes permitam pensar sobre a realidade vivida, duvidar dela e intervir na busca de novos sentidos para si. Com estes desejos, enormes, é que vejo a
1 Departamento de Medicina Preventiva e Social da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) <emerhy@fcm.unicamp.br>
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NOTAS BREVES
importância de se refletir sobre as idéias fundamentais de um Fórum não espelhado simplesmente em Davos (o lugar do capital, do lucro, da exploração), mas seu fantasma. A possibilidade de sua negação imaginária, na ação. O “pessoal da saúde” deve procurar se apropriar dessas idéias na perspectiva de permitir a expressão de sua multiplicidade interna no seu modo de buscar novos sentidos para sua prática, com a intenção de trocar vivências e experimentos, de produzir redes de produções de saberes, de solidariedades, de pautar eixos problematizadores, de se espalhar pelo mundo. Permitindo que suas conquistas e erros apareçam em espaços mais abrangentes, ampliando as possibilidades de compreensão. Nesta direção, como exercício, proponho uma sistematização de alguns dos eixos problematizadores - apreendidos pela luta, no Brasil, por políticas e práticas de saúde totalmente voltadas à geração de mais vida -, que procuram se colocar em cada microprocesso institucional, tensionando-o como lugar de produção de novas subjetividades. Construindo eixos problematizadores que favoreçam a busca de novos sentidos para as ações de saúde Colocar na parede, criar tensão produtiva. Por em dúvida o sentido perseguido. Apontar certos lugares implicados com uma aposta centrada na vida. Criar pautas de conversas em coletivos produtores de atos de saúde, em gestores de políticas e em operadores de serviços. Estas são as apostas dos eixos problematizadores. Produzir interrogações que possam disparar processos coletivos de elaborações protagonizadoras. Que vêem o movimento do micro para o macro como o processo mais acumulativo e produtivo para as mudanças dos rumos em direção a um futuro diferente. Neste sentido, os eixos apontados servem como idéias-apostas para serem usadas pelos coletivos, diante de muitas outras que os mesmos criarem, que podem operar a construção de novas maneiras de agir em saúde. Não são as únicas e nem as mais adequadas, necessariamente, diante das múltiplas realidades vivenciadas no território da saúde, mas funcionam como possibilidades de criar, no conjunto dos vários sujeitos interessados neste território, modos de um certo “olhar analítico” sobre o dia a dia das práticas de saúde, que abram para julgamento, compreensão e transformação, as várias maneiras de os trabalhadores coletivos operarem a construção dos sentidos de suas práticas, do ângulo da produção
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totalmente comprometida com a constituição de uma sociedade global mais implicada com a ética da vida. Aposto que coletivos mais interrogadores, que colocam em dúvida seus microprocessos políticos, organizacionais e produtivos, tornam-se mais nítidos para si e para os outros, aumentando a chance de produzirem mecanismos mais solidários de agir. Tornam-se mais responsáveis e mais públicos. São mais democráticos. Possibilitam mexer no mundo aqui e agora de modo mais implicado. a vida de todos, e de cada um, é igualmente fundamental Considerar-se como território de saberes e práticas tecnológicas, produtoras de distintas maneiras de cuidar em saúde, envolvidas com a construção de homens e mulheres cada vez mais autônomos e qualificados para apostarem na produção da vida, como valor de uso inestimável para si e para os outros, em todas as suas formas de expressão e dimensões, é a grande missão do campo da saúde. Sem dúvida, a humanidade construiu muitos tipos distintos de saberes nesta direção, não sendo privilégio de nenhum, em particular, ser eficaz e efetivo no cumprimento desta missão. São muitas as formas de realizá-la. Entretanto, independente da conformação tecnológica que o agir em saúde adquirir, deverá responder sempre as mesmas questões-chave: do ponto de vista da ética da vida, o que você produz? você aposta na vida? como? Se o agir estiver voltado para si mesmo e não para o mundo das necessidades de saúde dos usuários dos serviços de saúde, forma de expressão do que a potência de viver ambiciona, não será um caminho interessante a ser defendido. Se este agir não permitir a clareza de que a vida de cada um, e de todos, é igualmente importante, não poderá contribuir para uma sociedade mais solidária. Terá de contribuir sem titubeio, no seu modo de operar no dia a dia a produção da saúde, com a produção de um imaginário social no qual a vida é um valor em si a ser preservado, sob todas as suas formas de expressão, e que as melhores maneiras disso ser constituído é respeitar e apostar na qualificação da vida dos seres humanos e na evidência de que, pela importância que estes têm em protagonizar novos sentidos para o mundo, eles estão fundamente responsabilizados pela possibilidade de sobrevivência da vida ou da sua destruição, aqui na Terra. Terá que apontar para outros caminhos que não os que as sociedades capitalísticas, incrivelmente
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NOTAS BREVES
instrumentais, construíram para praticar o consumo da vida individual e coletiva. Ou seja, terá que mostrar a compatibilidade entre produzir vida para os humanos, produzindo vida para o mundo como um todo, em um sentido invertido em relação às sociedades atuais. visualizando possibilidades de gestões democráticas do público As sociedades, hoje, têm caminhado para consagrar a imagem de que o privado, sob qualquer forma, é o que vale. E, neste processo, vai-se consolidando como natural que tudo que é público, que é coletivo, é ruim ou pouco interessante. E, com isso, os indivíduos e coletivos vão também se convencendo e vivendo de acordo com estas idéias. A tensão público e privado vai pendendo para o individualismo, pela não responsabilização pública dos atos pessoais, pela premissa do aqui e agora, pela ética da não prestação de contas. A possibilidade de colocar em cheque esta forma de só responder à sua consciência ou, no máximo, no caso da saúde, à sua corporação profissional ou política, é uma idéia-aposta fundamental se o que se deseja é a ação individual e coletiva, no dia a dia da produção da saúde, como maneiras de produzir a defesa da vida. Perguntar no seu dia a dia: se há clareza dos rumos; se todos procuram conversar sobre suas limitações e potencialidades, sobre seus resultados conquistados; sobre que apostas estão fazendo e como as estão construindo coletivamente; sobre que tipos de privilégios existem nos seus agires e de que modo podem colocar em debate público e processar decisões em torno dos seus modos de atuarem; é um dos movimentos interessantes de serem feitos nos microprocessos pelos coletivos de trabalhadores envolvidos, que não podem esquecer de que devem ambicionar, neste círculo, a conhecer e submeter a uma discussão os processos de outros níveis colocados além do seu terreno do coletivo, em particular aqueles que definem o que são os fundos públicos ou sociais que financiam as ações de saúde e como sua gestão é feita. Quem os governa? De que modo e com que finalidades? A que interesses obedecem? E como determinam suas decisões? Como praticam a democracia em seu âmbito? De que modo são influenciados pelos desejos dos que estão na construção das práticas de saúde, no dia a dia da vida? A gestão democrática das intenções das políticas, bem como do operar o cotidiano dos processos produtivos em saúde, deve estar em interrogação o
tempo todo junto aos coletivos em círculos de tensões enriquecedoras. enfrentando a revolução tecnológica do setor, centrada no capital, com projetos centrados na vida Para inverter a lógica da globalização capitalística que vem inventando uma nova lógica produtiva para o setor saúde, centrada no capital, pela da cidadania solidária e da defesa radical da vida individual e coletiva, contrapondo-se aos projetos neoliberais do grande capital e dos médicos empresários, deve-se interrogar a que intenções do agir tecnológico, obedece. Operase os saberes tecnológicos – nas suas expressões duras (equipamentos), leves (relacionais) e leve-duras (clínica, epidemiologia) – em função da lógica centrada em procedimentos, na lógica lucrativa do capital? Ou na lógica de satisfazer as necesidades dos usuários? Uma forma de os coletivos interrogarem estes possíveis sentidos, em qualquer nível, no da política, da organização ou da produção do cuidado, é tomando como referencial a complexa forma de expressão do mundo das necessidades dos usuários, individuais ou coletivos. Cabe, em última instância, perguntar de que modo e com que capacidade o agir tecnológico contribui para satisfazer as necessidades de boas condições de vida, de se viver em processos sociais de inclusão, de ser alguém singular, sujeito de direito e cidadão, ser nominal; de que modo contribui para garantir o acesso a todas as tecnologias que melhorem e prolonguem a vida, de ser acolhido e ter vínculo com um profissional ou equipe (sujeitos em relação), poder acessar e ser recebido e bem acolhido em qualquer serviço de saúde que necessitar, tendo sempre uma referência de responsabilização pelo seu atendimento dentro do sistema; de que modo produz autonomia e autocuidado na escolha do modo de “andar a vida” (construção do sujeito), sujeito do saber e do fazer, em produção, que irá a cada momento “operar” seu próprio modo de andar na vida? Submetendo, assim, seu modelo tecno-assistencial a um julgamento centrado no usuário, o lugar legítimo a definir o sentido e as intencionalidades do agir em saúde. a saúde é um bem público e como tal deve ser tratada pelas políticas: socializar o estado e dar novos sentidos sociais para o privado A disputa efetiva que é travada no mundo entre a saúde como bem público, direito de todos e problema
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NOTAS BREVES
de toda a sociedade, ou de mercado trocável por qualquer moeda, é uma tensão central em todos os lugares. Porém, deve-se reconhecer que a forma privada de prestação de serviços de saúde é um dado da realidade não tão fácil de ser negado, tornando-se questão-chave a possibilidade de equacionar as distintas modalidades de produção de saúde sobre sua natureza pública e subordinar qualquer uma destas modalidades à lógica última deste interesse. Apostar que mesmo a produção privada de serviços de saúde pode almejar intenções de comercialização, produzindo saúde e respeitando-a como bem público. Nesta direção, regular o privado tem sido um ganho no mundo que trata da ótica do direito universal e eqüânime. O caminho que não torna incompatível a produção privada de serviços de saúde, ou similares, com a própria produção da vida e com o eixo ordenador do agir em saúde, em função da construção de uma vida mais autônoma e mais qualificada, para cada um e para todos, é um tremendo desafio, mas não impossível. Em particular, naquelas sociedades em que a vida é vista por uma lógica muito instrumental e nas quais só a de alguns é valorizada como um valor de uso inestimável. A produção privada de serviços de saúde, ou similares, deve ser enfrentada sob o princípio realista de que as sociedades humanas terão que equacionar a responsabilização social de qualquer um que esteja operando neste campo de práticas, inclusive os próprios serviços estatais, que por si só não são públicos, nos sentidos que vimos tratando neste texto, e, por isso, uma das grandes aprendizagens é a de que só uma grande capacidade de regular e impor certos percursos para alguns processos produtivos é que os têm tornado lugares dos interesses mais públicos, dos interesses de todos. Trabalhar com o lema: quem quiser operar a produção de serviços de saúde de modo privado (visando um bem de mercado), que opere, mas que o faça produzindo saúde (governado pela produção do valor de uso saúde), conforme o que o conjunto dos interesses sociais, pautados pela defesa radical da vida individual e coletiva, impõe. Deste modo, algumas das questões que podem ser colocadas para os gestores das políticas governamentais em saúde, são: suas atividades de regulação e controle sobre o conjunto dos produtores de práticas de saúde, conformam o quê? Direcionalidades para o agir tecnológico que o impliquem com o mundo das necessidades dos usuários, ou se ordenam pelos interesses econômicos e/ou corporativos dos empresários,
gestores e trabalhadores, do setor, em si? Para isso, favorecem a produção de saúde ou a sacrificam pelos interesses particulares dos empresários e dos trabalhadores do setor? Creio que os únicos interesses privados do setor saúde que devem ser respeitados, acima de tudo, são os dos usuários, reais expressões corporificadas do que são as necessidades de saúde. Enfim Procurei, neste texto curto, dar conta de muitas questões, o que pode, muitas vezes, ter sacrificado a clareza, mas há uma que é central: o Fórum Social Mundial não deve ser visto como uma dada corrente política e que adota um projeto programático fechado. Deve, sim, representar o encontro de multiplicidades que apostam que sujeitos sujeitados podem emergir como sujeitos autônomos produtores de novos sentidos para o viver, mais efetivos nos seus compromissos com a vida como o valor de uso máximo a ser preservado; apostar que processos interrogadores sejam dispositivos eficazes para contribuir para este tipo de processo; ambicionar o instigamento de coletivos e indivíduos, sobre questões que possam colocá-los em tensões produtivas de novas subjetividades, em torno das problemáticas que podem afetar a possibilidade e a capacidade de se produzir saúde ou não. Entretanto, provocar que isso se transforme em situações de intervenções sobre a realidade, em uma busca militante por um novo sentido para a vida, comprometido com a cumplicidade por todas as suas formas de expressão: humanas, sociais e ecológicas, é responsabilidade de cada um e de cada coletivo, que por suas ações podem produzir ou desproduzir mais vidas. Aposta-se aqui, que coletivos e indivíduos em tensões criativas em torno de suas responsabilidades por isso, tornam-se mais sujeitos de seus destinos, mais sujeitos de uma ética global da vida, mais comprometidos com a liberdade e a igualdade.
PALAVRAS-CHAVE: Ética; ação intersetorial; política de saúde. KEY WORDS: Ethics; intersectorial action; healthcare policy. PALABRAS CLAVE: Ética; acción intersectorial; política de salud.
Recebido para publicação em: 30/05/02. Aprovado para publicação em: 28/06/02
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Contribuições ao desenvolvimento curricular da Faculdade de Medicina de Botucatu: descrição e análise dos casos dos cursos de Pediatria e Saúde Coletiva como iniciativas de mudança pedagógica no terceiro ano médico Contributions for the development of the curriculum of the Botucatu Medical School: description and analyses of cases from the Pediatrics and Collective Health courses as initiatives for making pedagogical changes in the third year of the medical course
Um movimento amplo vem se estruturando para responder à formação do médico crítico, criativo, com responsabilidade, ético e mais humano e que participe ativamente da construção do Sistema Único de Saúde. Em 1998, docentes dos Departamentos de Pediatria e de Saúde Pública iniciaram a construção de novos cursos a serem ministrados ao terceiro ano de graduação médica. O objetivo desta investigação foi descrever os casos de inovação dos cursos de Semiologia Pediátrica e de Saúde Coletiva III para o desenvolvimento da proposta de reforma curricular da instituição. Foram escolhidos dois casos singulares: Saúde Coletiva III, com a participação de cinco disciplinas: Administração, Ciências Sociais, Epidemiologia, Ética e Nutrição em Saúde Publica, oferecido em 1999 e Semiologia Pediátrica ministrado em 2000. Para descrição e avaliação dos casos, utilizaram-se métodos quantitativos e qualitativos. O de Saúde Coletiva III foi organizado em três núcleos temáticos: Problemas em Saúde Publica; Nutrição em Saúde Pública; Planejamento em Saúde. O modelo de ensino centrou-se na problematização de situações concretas vivenciadas na prática da Saúde Pública, trabalhando-se em centros de saúde, serviços e organizações de saúde da região de Botucatu. O de Semiologia Pediátrica privilegiou a atenção integral à saúde da criança. O modelo de ensino centrou-se na aprendizagem baseada em problemas e no aprendizado prático da semiologia pediátrica em diferentes cenários, enfatizando-se o ensino em ambulatório. Nos dois casos, privilegiou-se o trabalho em pequenos grupos, com orientação docente. A avaliação foi uma preocupação constante, apresentando aspectos diferentes para os dois cursos. Os cursos estudados inovaram pelo esforço
de Departamentos que tiveram autonomia e independência para formulá-los. A principal missão colocada voltou-se à utilização de estratégias que pudessem proporcionar a valorização do ensino centrado no estudante e sua capacidade de construir conhecimento com maior autonomia. No caso da Pediatria, avançou-se rumo ao modelo da Medicina Integral, com um enfoque mais amplo do modelo de atendimento à criança. No caso da Saúde Coletiva, aproximou-se do modelo da Medicina Comunitária, proporcionando a problematização de situações concretas do trabalho no SUS e, em especial, na atenção primária. Tanto alunos como professores sentiram-se muito beneficiados com as inovações e a utilização de novas tecnologias educacionais. Os cursos demonstram a possibilidade de mudanças no ensino e podem contribuir para o processo de inovação institucional. Eliana Goldfarb Cyrino Tese de Doutorado, 2002 Faculdade de Medicina de Botucatu Universidade Estadual Paulista/Unesp <ecyrino@fmb.unesp.br>
PALAVRAS-CHAVE: Educação médica; inovação; currículo. KEY WORDS: Medical education; innovation; curriculum. PALABRAS CLAVE: Educación medica; inovación; curricula.
Recebido para publicação em: 30/06/02 Aprovado para publicação em: 06/07/02
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Mudanças na educação médica: os casos de Londrina e Marília Changes in medical education: the cases of Londrina and Marília As escolas médicas brasileiras encontram-se diante do desafio de mudar para formar profissional crítico, capaz de aprender a aprender, de trabalhar em equipe, de levar em conta a realidade social para prestar atenção humana e de qualidade. As mudanças necessárias são profundas porque implicam a transformação de concepções, práticas e relações de poder, tanto nos espaços internos das universidades, como em suas relações com a sociedade, especialmente com os serviços de saúde e a população. O objetivo deste estudo foi analisar algumas das principais causas das sucessivas histórias de resultados desfavoráveis nas tentativas de mudar a educação médica; analisar como essas questões e problemas cruciais vêm sendo tratados em dois processos de mudança atualmente considerados promissores, quais sejam as transformações curriculares de Londrina e Marília; e construir um conjunto de idéias, propostas e instrumentos que contribuam para a produção de mudanças efetivas na educação médica no Brasil. A metodologia adotada foi a de estudo de caso, informada pelo referencial crítico-dialético. Foi feita uma análise política dos processos, assumindo o poder como categoria analítica central. Nos dois casos estudados estão em curso mudanças profundas no âmbito da organização institucional, das concepções e das práticas, bem como das relações entre professores, estudantes, profissionais dos serviços e população. Há avanços significativos, mas também problemas e conflitos, níveis diferentes de acumulação de poder técnico e político, sendo necessário um período de consolidação. Laura Camargo Macruz Feuerwerker Tese de Doutorado, 2002. Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo <lcmf@wkkf.org>
PALAVRAS-CHAVE: Educação médica; aprendizado baseado em problemas; relações comunidade/instituição. KEY WORDS: Medical education; problem-based learning; community/ institucional relations. PALABRAS CLAVE: Educación medica; aprendizaje basado en problemas; relaciones comunidad/institución.
Recebido para publicação em: 24/06/02. Aprovado para publicação em: 06/07/02
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O ensino médico no Brasil e na Argentina: uma abordagem comparativa Medical education in Brazil and in Argentina: a comparative approach
A tese, composta por três partes (artigos), descreve, por meio de uma abordagem comparativa, dois processos de reformulação curricular de cursos de Medicina, nas últimas décadas: o da Universidade Federal Fluminense (UFF) e o da Universidade de Buenos Aires (UBA). A idéia de comparar dois processos em dois países partiu da premissa de que no Mercosul se desenvolveria a discussão da homogeneização dos cursos de Medicina e compará-los traria elementos úteis para a análise de cada experiência e para a comparação entre as duas. A aproximação teórica e a metodologia utilizada foi baseada na área de educação superior comparada. No primeiro artigo, “O modelo biomédico e a reformulação do currículo médico da Universidade Federal Fluminense” discutimos a construção do modelo biomédico, as críticas ao modelo identificadas na reformulação curricular do curso de medicina da Universidade Federal Fluminense e a análise desse processo de reformulação curricular. O artigo analisa a construção do modelo a partir do qual vem se baseando o currículo das faculdades de Medicina nas Américas e na maioria dos países europeus. As críticas que vêm sendo feitas a esse modelo são identificadas na
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reformulação curricular do curso de Medicina da Universidade Federal Fluminense. A análise do documento de reformulação curricular da UFF, de 1992, à luz da história do modelo biomédico, da teoria curricular e da Epistemologia de Ludwik Fleck, aponta em que medida essa reformulação significa uma alternativa ao modelo biomédico de formação dos médicos, ao reducionismo do ser humano a seu organismo biológico. O novo currículo — com um aumento de 25% da carga horária e a introdução de grande número de aulas práticas, desde o início do curso —, apesar de ainda estar centrado nos aspectos biológicos, já se volta para uma formação mais humanista e se propõe a questionar as “verdades científicas”. No segundo artigo, “O processo de reformulação curricular do curso de Medicina da Universidade de Buenos Aires”, apresentamos um relato das diversas tentativas de reformulação curricular da medicina desenvolvidas na UBA desde a década de 80, os antecedentes históricos e culturais da universidade Argentina e as interfaces do modelo universitário. Buscamos identificar, no processo analisado, algumas marcas da mudança por que passa o Estado desde a década de noventa e percebemos que as várias propostas de modificação no currículo estiveram vinculadas às modificações do panorama mundial. Alguns dos eixos que estiveram presentes na realidade estudada e que vêm conformando o processo de reformulação curricular da Faculdade de Medicina da UBA, por mais de duas décadas, foram: - as mudanças no Estado, seus reflexos na Lei Argentina de Educação Superior (1995) e as propostas do Mercosul Educativo; - a dinâmica interna própria das universidades públicas argentinas, herdadas da Reforma de 1918 (atravessada pela disputa política); - a dimensão pedagógica que faz com que os profissionais da área de educação tenham grande prestígio e indiquem os caminhos a seguir nos processos de reformulação curricular da Medicina da UBA (Currículo Baseado em Resolução de Problemas ou Currículo por disciplinas). O terceiro artigo, “O processo de reformulação curricular do curso de Medicina no Brasil e na Argentina: uma abordagem comparativa”, compara os dois processos de reformulação curricular descritos nos dois primeiros artigos, o da UFF e o da UBA, no contexto das reformas educacionais que os dois países vêm sofrendo e nas tentativas de conciliar as
demandas internas do campo de Saúde e Educação com as exigências das agências financiadoras internacionais. Partimos do marco das reformas do ensino superior na América Latina e suas discussões na área de educação. Buscamos revelar um conjunto de tensões que se produzem entre as particulares culturas de organização universitária, as demandas pela uniformidade da mundialização e a busca do controle burocrático derivado da regionalização do Mercosul (a necessidade de equivalências no credenciamento de programas e títulos, uniformidade de condições de acesso etc.). Ambos os países estão passando por processos de profunda reformulação de seus sistemas educacionais, articulados com as políticas neoliberais de reforma econômica e de diminuição do papel do Estado nas respectivas sociedades. Entretanto, mesmo existindo semelhanças formais em diversos aspectos, o exame das realidades brasileira e argentina revela diferenças que não devem ser negligenciadas. As particularidades de cada caso passaram a receber a devida atenção e destaque a partir da abordagem comparativa. Lilian Koifman Tese de Doutorado, 2002 Escola Nacional de Saúde Pública, FIOCRUZ <liliankoifman@hotmail.com>
PALAVRAS-CHAVE: Educação médica; educação superior; currículo médico; reformulação curricular. KEY WORDS: Medical education; higher education; medical curriculum; curricular reform. PALABRAS CLAVE: Educación médica; educación superior; curricula medico; reforma curricular.
Recebido para publicação em: 28/04/02 Aprovado para publicação em: 06/07/02
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La dirección de centros y sus metáforas:
símbolo, acción y ética.
Estudio de un Caso The direction of centers and its metaphors: symbol, action and ethics. Case study.
Se trata del estudio de la dirección escolar y su práctica en la vida cotidiana de los centros educativos, utilizando la metáfora como instrumento de análisis. Son cuatro los grandes temas que se abordan: a) el acceso a la función directiva y el modelo de dirección; b) el ámbito de la acción directiva (dimensión dinámica) definido por la confianza, la razón y los sentimientos (con especial atención en la soledad como sentimiento particularmente vinculado a la dirección); c) la ética en la práctica directiva y el papel del silencio como instrumento micropolítico en la organización escolar, identificando toda serie de silencios posibles, y d) la práctica de la acción directiva en la que se analiza el tiempo y su vivencia en el trabajo de la dirección (el tiempo multidimensional de la acción directiva) y las tareas directivas interpretadas y analizadas desde la dimensión práctica de la acción directiva. Para ello, se ha llevado a cabo una investigación etnográfica con estudio de un caso en un centro de Primaria de la provincia de Cádiz (España). Rosa Vázquez Recio Teses de Doutorado, 2002 Facultad de Ciencias de la Educación. Universidad de Cádiz <rmaria.vazquez@uca.es>
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PALAVRAS-CHAVE: Metáfora; simbolismo; ética; organização e administração; escolas. KEY WORDS: Metaphor; symbolism; ethics; organization and administration; schools. PALABRAS-CLAVE: Metafora; simbolismo; etica; organización y administración; escuelas.
Recebido para publicação em: 13/06/02 Aprovado para publicação em: 19/06/02
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Três fórmulas para compreender “O suicídio” de Durkheim Three formulas for understanding Durkheims “Suicide”
Ricardo Rodrigues Teixeira
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As formas elementares de uma concepção religiosa Le croyant s’incline devant Dieu, parce que c’est de Dieu qu’il croit tenir l’être, et particulièrement son être mental, son âme. Nous avons des raisons d’éprouver ce sentiment pour la collectivité Emile Durkheim
O positivismo, como se sabe, ao lado de ser uma doutrina científica, é fundado como uma doutrina religiosa por Auguste Comte (1798-1857), logo após a morte de sua amada Clotilde de Vaux (1846), que foi “canonizada” e se constituiu objeto personalizado de culto desta nova religião. Seu marco literário foi a publicação do Système de philosophie positive, ou traité de sociologie instituant la religion de l’humanité (1848) e, enquanto uma religião de caráter missionário, não abdicou nem mesmo de ter seu catecismo (Catéchisme positiviste, 1852).
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Auguste Comte
Sanitarista, doutorando em Medicina Preventiva na Faculdade de Medicina de Universidade de São Paulo, FMUSP. <ricarte@uol.com.br>
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A religião positivista é fundamentalmente uma sociolatria. Seu Deus, seu objeto de culto último e principal, é a sociedade. Seus crentes concebem a sociedade como uma totalidade orgânica passível de ser conhecida, nos moldes de uma ciência positiva, por uma “física social”, cuja “estática” estaria incumbida de produzir uma teoria positiva da ordem. Complementarmente, concebem a história dessa sociedade como a realização de formas definidas como estágios necessários de um progresso, cuja teorização, sempre nos moldes de uma ciência positiva, estaria a cargo de uma “física social dinâmica”. A rigor, essa teoria positiva do progresso nada mais é do que a tradução “cientificista” de determinadas convicções (cuja expressão máxima talvez seja o pensamento das Luzes) a respeito do sentido da história européia, que entendem que o sistema medieval, caracterizado pelo poder espiritual (teológico e papal) e pelo poder temporal (militar e feudal), teria sido substituído por um sistema positivo (científico e industrial). Além disso, Comte também interpretava que, à sua época, o curso deste progresso estaria sendo obstaculizado por forças retrógradas, que impediam a Revolução francesa de se completar e tentavam restaurar a Idade Média. O positivismo, como única “autêntica doutrina orgânica”, viria restabelecer a ordem e o progresso, sendo, sem dúvida, essa manifesta pretensão, o que sempre conferiu a esta fé “cientificista” um indisfarçável caráter salvacionista. Este é o esquema básico ou a fé fundante: as formas elementares de uma concepção religiosa a respeito da sociedade. É tão impossível ignorá-la, quanto não perceber as marcas dessa sociolatria comtiana claramente presentes em um de seus mais eminentes discípulos: Durkheim. Para Durkheim, a sociedade é uma realidade distinta das instituições e dos indivíduos, que não podem existir sem ela. Toda sua sociologia está fundada nas premissas de que é a forma das coletividades que determina as atitudes individuais e de que existe uma autêntica consciência coletiva. Sabemos que Durkheim provém de uma família de rabinos e que se interessou pelo estudo das religiões, produzindo um clássico da antropologia sobre o assunto, mas, até onde sei, jamais se envolveu com a “religião” de seu mestre (indireto, é bom lembrar), nem freqüentou os “templos positivistas” em que se rendia culto a Clotilde. Seu credo não ia além de uma sociolatria mitigada na teoria, mas suficiente para gerar um campo de transcendência para sua sociologia. E é exatamente essa última questão que desejo destacar neste momento: a de que sua sociologia já nasce marcada pela transcendência (esse a priori sobre a ordem e o sentido do progresso social). E, pelo que se vê, uma transcendência fundamentalmente religiosa ou, pelo menos, fundada numa certa mística do social.
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Ora, essa religião positivista pode muito bem ser vista, com vantagens para sua compreensão, como uma espécie de seita particular de uma “religião” ainda mais “católica” (no sentido de mais “universal”, mas também no sentido figurado de mais “exata, perfeita”) que, com uma certa liberdade, poderíamos chamar de “religião moderna”. Ela igualmente possui suas crenças “esclarecidas” a respeito do sentido da história européia e estas também estão fundadas na idéia de que teria havido uma ruptura radical com um passado antigo e medieval. É exatamente essa, aliás, segundo afirma Bruno Latour (1994), a principal crença dos modernos: a de que uma ruptura revolucionária nos separa (“nós”, os modernos) dos prémodernos (“eles”). Ainda segundo este sociólogo francês, essa dicotomia básica se desdobraria numa série de outras dicotomias decisivas na caracterização das posições modernas, destacadamente: a dicotomia geral “nós”/“eles”, como nossa forma geral de trato com as diferenças (culturais, sociais, políticas etc.); e a dicotomia entre as “representações dos humanos” nas ciências sociais e as “representações dos não-humanos” nas ciências naturais. “Nós”, os sujeitos-civilizados, “eles”, os objetos-selvagens: o conjunto humano se encontra tão separado do mundo natural, quanto a civilização moderna nos separa das formas sociais pré-modernas. Contudo, para Latour, essa crença na ruptura revolucionária, a crença moderna, não passa disso mesmo: uma crença. Faz parte do culto antropocêntrico e narcísico da sociedade moderna. Na realidade, tais revoluções jamais se deram! Jamais fomos modernos! (Latour, 1994). Portanto, não estamos cortados com nosso passado, nem somos diferentes d’“eles”, nem estamos separados dos nossos “objetos”, nem há distinção tão marcada entre as “representações humanas” e as “representações dos objetos”, já que cada vez mais nos percebemos – humanos e objetos - misturados em toda parte (de resto, exatamente como “eles” sempre se perceberam...), e isso não sem relação com o fato de os modernos possuírem uma capacidade especialmente marcante de produzir estes seres híbridos. A interessante proposição latouriana é retomada, no presente contexto, não apenas pela originalidade de sua concepção antropológica da modernidade, que nos oferece saídas interessantes para o impasse estabelecido – como corolário da dicotomia “humano” e “não humano” entre o construtivismo e o realismo, mas sobretudo por nos fazer ver como esses dois grandes pólos de nossa gnose dual estão relacionados com a cisão básica em que está fundada a fé moderna: a crença numa ruptura revolucionária. No meu esforço de compreender Durkheim, procurei, antes de mais nada,
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situá-lo por referência às linhas e demarcações gerais traçadas por tais crenças positivistas e modernas. Ainda que esse não seja, em si mesmo, o objetivo desse ensaio de interpretação, parece-me um esforço útil para se começar a compreender as regras do modo de conhecer desta sociologia ou, pelo menos, ... Algumas regras de seu método sociológico
“On n’explique qu’en comparant.” Emile Durkheim
Durkheim é considerado o fundador da Sociologia mas, pelo que foi dito até aqui, sua paternidade deveria mesmo recair sobre Comte, que foi quem primeiro intuiu seu “objeto sui generis”. É, contudo, Durkheim que é tido como o legítimo pai, por ter sido ele quem efetivamente estendeu o método das ciências positivas ao estudo dos fenômenos sociais, por ter postulado que o verdadeiro conhecimento sociológico é o conhecimento daquilo que hoje nomeamos as “correlações funcionais entre diversas variáveis”. Assim mesmo, é interessante notar como a démarche durkheimiana, para além deste seu aspecto mais formal, não deixa de dar prosseguimento à elaboração do “objeto sui generis”, divinizado por Comte. A extensão do método empregado nas ciências naturais ao estudo dos fenômenos sociais não significou nenhuma espécie de “naturalização” desses fenômenos. Sobre isso, não me parece haver dúvidas: para Durkheim, considerar os fatos sociais como coisas e estudá-los segundo os métodos das ciências positivas, não significava que se tratassem de fenômenos naturais, como queriam, por exemplo, os sociólogos da escola italiana de Pareto (1848-1923), que pretendiam explicar o suicídio a partir das variações de temperatura2 . Pelo contrário, Durkheim afirma o caráter sui generis do social na própria aplicação do método das ciências positivas, que consiste em observar, comparar e explicar uma variável por outra: Durkheim só admite observar, comparar e explicar um fato social por um outro fato social (as taxas de suicídio só podem ser explicadas em função dos meios sociais, dos divórcios, das crises econômicas etc.). O social só se explica pelo social: proposição teórico-metodológica que não deixa de reverberar a máxima tautológica do positivismo de que o que dá estabilidade à ordem social é a própria... ordem social. Esse testemunho de fé positivista, ao mesmo tempo em que afirma a natureza singular da coisa social3 , consagra a separação cortada entre
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2 O que foi veementemente refutado por Durkheim, na parte II do capítulo III do Livro Primeiro (Le suicide, 1986; particularmente páginas 94 e seguintes), quando discute os trabalhos de Lombroso e Ferri comparando as taxas de suicídio no Norte e no Sul da Itália.
3 Em suas Regras do Método Sociológico (1895), Durkheim postula que “a primeira regra fundamental (da sociologia) é considerar os fatos sociais como coisas”, reafirmando a singularidade que marca esta “coisa” ao definir o “fato social” como “qualquer modo de ação que seja capaz de exercer um constrangimento externo sobre os indivíduos”.
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ciências sociais e ciências naturais, deixando todo o “naturalismo” para estas últimas. Uma vez mais, destaco a já mencionada cisão “moderna”, na solução durkheimiana: a afirmação do caráter sui generis do objeto da sociologia tem como preço o divórcio completo entre ação humana e natureza. É da obra de Peter Berger & Thomas Luckmann (1974), que extraio uma eloqüente expressão dessa dimensão do pensamento durkheimiano. Como autênticos e qualificados representantes da importante reação antiempirista que marcou a trajetória da sociologia anglo-saxônica (particularmente, norte-americana), na segunda metade do século XX, reconhecem o papel da linguagem e da interpretação no fazer das ciências sociais, ou seja, o caráter construído do conhecimento, sendo que o antinaturalismo de Durkheim foi decisivo para que se conduzissem nesta direção: A ordem social não faz parte da ‘natureza das coisas’ e não pode “Ao insistir na afirmação de que a ordem social não se baseia em quaisquer ‘leis da natureza’, não estamos ipso facto tomando posição quanto a uma concepção metafísica de ‘lei natural’. Nosso enunciado limita-se aos fatos da natureza empiricamente acessíveis.” (p.76-7)
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ser derivada das ‘leis da natureza’4 . A ordem social existe unicamente como produto da atividade humana. (...) Tanto em sua gênese (ordem social resultante da atividade humana passada) quanto em sua existência em qualquer instante do tempo (a ordem social só existe na medida em que a atividade humana continua a produzi-la), ela é um produto humano. Embora os produtos sociais da exteriorização humana tenham um caráter sui generis, por oposição ao seu contexto orgânico e ambiental, é importante acentuar que a exteriorização enquanto tal é uma necessidade antropológica5 . O ser humano é impossível em uma esfera fechada de interioridade quiescente. O ser
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“Foi Durkheim quem insistiu mais fortemente sobre o caráter sui generis da ordem social, especialmente em suas Regras do Método Sociológico. A necessidade antropológica da exteriorização foi desenvolvida tanto por Hegel quanto por Marx.” (p.76-7)
humano tem de estar continuamente se exteriorizando na atividade. Esta necessidade antropológica funda-se no equipamento biológico do homem. A inerente instabilidade do organismo humano obriga o homem a fornecer a si mesmo um ambiente estável para sua conduta. O próprio homem tem de especializar e dirigir seus impulsos. Estes fatos biológicos servem de premissas necessárias para a produção da ordem social. Em outras palavras, embora nenhuma ordem social existente pode ser derivada de dados biológicos, a necessidade da ordem social enquanto tal provém do equipamento biológico do homem. (Berger & Luckmann, 1974, p.76-7)
6 “As tautologias, embora possam nos guiar na nossa busca empírica do conhecimento, não contêm em si qualquer informação sobre qualquer questão factual.” (Ayer, 1991, p.69).
O esquema básico ou a fé fundante: o natural apresenta-se no início e depois se retira deixando lugar apenas ao puro fato construído; na produção da ordem social, o fato natural só esteve presente no início e, assim mesmo, como falta, incompletude, como causa da necessidade de uma ordem social, e depois se retirou deixando lugar a uma pura ordem social como causa de si própria, a ordem social remetendo a si própria, sem passar por nenhuma outra referência6 ... Mais uma vez, o que vemos é a dicotomia aprofundar-se na cisão. Além disso, ao se lançar um olhar mais “semiológico” sobre esse modo durkheimiano de conceber o “objeto sui generis” das ciências sociais e seu
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comportamento, é possível compreender um aspecto central em suas “regras” de conhecimento sociológico: seu “objeto” é, em última instância, um “objeto representado”; o fato social é um fato construído com material sígnico. Isso fica evidente, logo nas primeiras páginas da obra em questão, no próprio processo de formulação de uma definição válida de suicídio para os propósitos de seu estudo. Na realidade, o problema se apresenta logo na primeira linha: trata-se do problema do “sentido da palavra suicídio”. A pré-condição para que um fato social possa ser estudado cientificamente é que o sentido dos signos que o representa possa ser controlado e estabilizado pelo pesquisador, o que implica uma série de operações lógicogramaticais de construção de enunciados. Só, então, um fato social pode ser cientificamente comparado a outro fato social, ou seja, outro conjunto de signos cujo sentido foi igualmente controlado; do mesmo modo que, paralelamente, no campo das ciências naturais, um objeto natural é comparado a outro, como se não passasse por nenhuma mediação sígnica ou técnica, segundo as crenças realistas próprias às visões positivistas e modernas das ciências naturais. O esquema básico ou a fé fundante: o social e o natural são duas “naturezas” separadas e incomunicáveis, seus objetos não são da mesma ordem de realidade e não são intercambiáveis, só podendo produzir explicações dentro de sua própria ordem; a unificação das duas “naturezas” só se realiza sob a forma única do método científico que se aplica aos dois tipos de objetos que as constituem: observar a ocorrência dos fatos, compará-los a outras ocorrências da mesma ordem para, a partir destas comparações, procurar explicá-los. À Sociologia, só cabe estudar os fatos produzidos pelos atos humanos. Como é o caso dos suicídios. Da divisão do suicídio social Chaque société est prédisposé à fournir um contingent déterminé de morts volontaires. Cette prédisposition peut donc être l’objet d’une étude spéciale et qui ressortit à la sociologie. Emile Durkheim
Todas as questões expostas nas partes precedentes são parâmetros importantes na leitura e compreensão do estudo de Durkheim sobre o suicídio enquanto fenômeno social. Em primeiro lugar, temos a já mencionada construção lógico-gramatical da categoria suicídio. Ela segue rigorosamente os dois eixos fundamentais da linguagem: o paradigmático e o sintagmático. Constrói a definição útil de suicídio efetuando a composição sintagmática que percorra todas as equivalências paradigmáticas essenciais para esta definição, equivalências paradigmáticas que marcam as escolhas que incluem ou excluem os eventos que cabem na definição. Esquematicamente, temos mais ou menos os seguintes passos: 1 morte resultante de um ato perpetrado pela própria vítima; 2 morte resultante de um ato, positivo ou negativo, perpetrado pela
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própria vítima; 3 morte resultante, direta ou indiretamente, de um ato, positivo ou negativo, perpetrado pela própria vítima; 4 morte resultante, direta ou indiretamente, de um ato, positivo ou negativo, perpetrado pela própria vítima, que sabia que esse resultado se produziria (o que, então, pressupõe a noção de “tentativa de suicídio”, sempre que esse ato for incapaz de fazer com que a morte suceda). Nous disons donc définitivement: On appelle suicide tout cas de mort qui résulte directement ou indirectement d’um acte positif ou négatif, accompli par la victime elle-même et qu’elle savait devoir produire ce résultat. (Durkheim, 1986, p.5)
Mas, o fato assim definido ainda não está suficientemente elaborado para ser tema de trabalho do sociólogo. O ato individual de um suicida pode ser assunto para a psicologia; para a sociologia, temos que fazer a passagem do fato singular para o conjunto dos suicídios cometidos numa sociedade. E, só assim, estará concluída a construção de seu “objeto sui generis”: Com efeito, se em lugar de apenas vermos os suicídios como acontecimentos particulares, isolados uns dos outros e que demandam ser examinados cada um separadamente, nós considerássemos o conjunto dos suicídios cometidos numa sociedade dada, durante uma unidade de tempo dada, constata-se que o total assim obtido não é uma simples soma de unidades independentes, um todo de coleção, mas que ele constitui por si só um fato novo e sui generis, que possui sua unidade e sua individualidade, conseqüentemente sua natureza própria, e que, ademais, é uma natureza eminentemente social. (Durkheim, 1986, p.8)
Bem, uma vez obtida a definição lingüística da coisa a ser estudada, passa-se à aplicação do método das ciências positivas: em primeiro lugar, observar a ocorrência, principalmente as variações de ocorrência no tempo e no espaço, da coisa estudada (no caso, a “taxa de mortalidade-suicídio própria à sociedade considerada”); em seguida, comparar as ocorrências (as “taxas”) encontradas em diferentes momentos (anos) da mesma sociedade e em diferentes sociedades; e, por fim, com base nestas comparações, procurar uma explicação social da coisa (no caso, explicar as causas sociais do suicídio). De um ponto de vista semiótico-lingüístico, o método positivo repete a operação lógico-gramatical sobre os dois eixos básicos da linguagem: a busca do sintagma explicativo resultante das comparações entre as múltiplas variáveis paradigmáticas. Esta operação comparativa é da máxima importância nas ciências sociais, porque é por ela que se resgata plenamente a dimensão “referencial” do conhecimento sociológico e se mantêm vivas as aspirações realistas próprias a uma ciência positiva: é nela que se evidencia a realidade do “referente” das construções intelectuais sociológicas. Ainda em
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termos semióticos (e de uma semiótica pierceana, relida por Roman Jakobson, 1995), temos que as aproximações comparativas produzem signos copulativos, verdadeiros “ícones de relação” (diagramas, como são chamados por Charles Sanders Pierce) que reativam a função de similitude (a “iconicidade”) do signo com seu objeto de referência, já que as comparações entre grandezas (taxas, variações comparadas das taxas, média das taxas, desvio máximo e mínimo da média das taxas, tabelas e outras representações diagramáticas) são representações de proporções reais, representações das únicas características do objeto diretamente observadas no real e que atestam, por assim dizer, sua identidade sui generis. Antes de mais nada, Durkheim (1986) compara a taxa de mortalidadesuicídio com a taxa de mortalidade geral, particularmente suas variações ao longo do tempo e observa que: “Não somente a taxa (de mortalidadesuicídio) permanece constante durante longos períodos de tempo, mas sua invariabilidade é mesmo muito maior do que aquela observada nos principais fenômenos demográficos” (p.11), já suspeitando que isso se tratasse de um indício do forte lastro social das taxas de suicídio observadas numa sociedade. Em seguida, compara as variações anuais nas taxas de suicídio (que só acusam discretas mudanças), com as variações entre diferentes sociedades (que podem ir do dobro ao quádruplo ou ainda mais), o que lhe permite concluir que as taxas de suicídio são, portanto, “num grau bem mais alto que as taxas de mortalidade, pessoais a cada grupo social do qual elas podem ser vistas como um índice característico” (Durkheim, 1986, p.13). Em suma, temos sempre o mesmo esquema geral operando em dois eixos (o da permanência das taxas ao longo do tempo para uma mesma sociedade e o da variação das taxas quando comparamos diferentes sociedades) e confirmando o sentido social daquelas taxas: A taxa de suicídios constitui, portanto, uma ordem de fatos única e determinada; é o que demonstram, ao mesmo tempo, sua permanência e sua variabilidade. Já que esta permanência seria inexplicável se ela não se devesse a um conjunto de caracteres distintivos, solidários uns com os outros, que, apesar da diversidade das circunstâncias ambientes, se afirmam simultaneamente; e esta variabilidade testemunha a natureza individual e concreta destes mesmos caracteres, uma vez que variam como a própria individualidade social. (Durkheim, 1986, p.14)
Minha presente leitura, reconhecidamente circunscrita a alguns aspectos bastante restritos e formais do multifacetado estudo de Durkheim, e que sequer chega a comentar seus resultados, quer ser acima de tudo uma contribuição para a decifração do modus operandi do pensamento deste autor, do seu modo de conhecimento. Sobretudo isso: o encontro com uma “forma de pensar”, ou seja, encontro em que me detenho concentradamente nas “formas do pensamento”, descobrindo seus fundamentos “religiosos”, suas cumplicidades com uma certa sociolatria: sua fé fundante, seu esquema básico.
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No recém lançado romance-documentário da escritora inglesa Susan George, O relatório Lugano, os métodos de eliminação de Auschwitz são comparados aos métodos (tidos como mais eficazes) de autoeliminação dos excluídos (ou “descartáveis”, como denomina o Comandante Marcos das guerrilhas zapatistas) na fase neoliberal do capitalismo.
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No entanto, mesmo ficando mais circunscrito ao modo de conhecer do que ao efetivamente conhecido, não poderia deixar de fazer ao menos um comentário no campo dos resultados e, com ele, encerro este ensaio de interpretação. No plano teórico, Durkheim propõe a categorização de quatro tipos de suicídios (egoísta-altruísta, anômico-fatalista), baseado no grau de desequilíbrio de duas forças sociais: integração social e regulação moral. Dedica uma parte importante do Livro II (Das causas e tipos sociais) ao suicídio egoísta, cujas altas taxas estariam relacionadas aos fenômenos ligados a uma diminuição da integração social (por exemplo: maiores taxas entre homens solteiros do que entre casados). Particularmente interessante, no capítulo II, a discussão a respeito de suicídio e religião, de fato uma discussão a respeito da relação entre suicídio e “individualismo religioso”, por meio da comparação entre as taxas de suicídios de católicos e protestantes (nesse ponto, cumpre enfatizar que as comparações de Durkheim entre as taxas de suicídio de católicos e protestantes e suas especulações sobre o “individualismo” não contradizem as interpretações de Weber (1864-1920), relacionando a “ética protestante” e o “espírito do capitalismo”. Esta relação entre suicídio e baixa integração social me parece um dos resultados mais interessantes de sua investigação. Nos termos de sua teoria da integração social, enunciada em A Divisão do Trabalho Social (1893), temos que as forças sociais que contribuem para a anomia e o egoísmo são o resultado natural do declínio da “solidariedade mecânica”, sem a adequada instituição da “solidariedade orgânica”, que decorreria da divisão do trabalho e da industrialização. Ora, a “solidariedade orgânica”, cada vez mais, só parece se tratar de um artigo de fé do ideário religioso positivista, enquanto a sociedade científicoindustrial moderna (o sistema positivo) se revela mesmo uma grande produtora de “egoísmo” e “des-integração social”, com suas conseqüentes elevadas taxas de suicídio. Mais do que isso, o que a sociedade científicoindustrial tem efetivamente nos revelado, em sua fase atual, é a face mais sinistra da tanatocracia, sendo geradora de índices crescentemente altos de mortes voluntárias, ou seja, mortes em que os próprios indivíduos “deliberam” sua auto-eliminação, para o cumprimento das taxas sociais de morte7 . Esse, talvez, o irônico Suicídio de Durkheim: o suicídio da sua idéia de progresso...
Emile Durkheim (1858-1917) 1893 1895 1897 1912
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Division du travail social Règles de la méthode sociologique Le suicide Les formes élémentaires de la vie religieuse
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Referências
AYER, A. J. Linguagem, verdade e lógica. Lisboa: Presença, 1991. BERGER, P., LUCKMANN, T. A construção social da realidade – tratado de Sociologia do Conhecimento. Petrópolis: Vozes, 1974. DURKHEIM, E. Le suicide. Paris: PUF, 1986. GEORGE, S. O relatório Lugano. São Paulo: Boitempo, 2002. JAKOBSON, R. Lingüística e Comunicação. 20.ed. São Paulo: Cultrix, 1995. LATOUR, B. Jamais fomos modernos. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994.
This is an essay interpreting the sociology of Durkheim, based on a brief contextualization of his thoughts within the scope of a given view of modernity and of a particular approach to his “Suicide”. Divided into three parts, the text intends to explore certain aspects of this Sociology, while at the same time exposing one of its possible aporiae. KEY WORDS: Sociology; suicide; religion and science. Trata-se de um ensaio de interpretação da sociologia durkheimiana, a partir de uma breve contextualização de seu pensamento no quadro de uma certa visão da modernidade e de uma particular leitura de sua obra “O Suicídio”. Dividido em três partes, o texto procura explorar alguns sentidos desta Sociologia, ao mesmo tempo que expõe uma de suas possíveis aporias. PALAVRAS-CHAVE: Sociologia; suicídio; religião e Ciência. Tres fórmulas para comprender “El suicidio” de Durkheim Se trata de un ensayo de interpretación de la sociología durkheimiana, a partir de una breve contextualización de su pensamiento en el cuadro de una cierta visión de la modernidad y de una particular lectura de su obra “El Suicidio”. Dividido en tres partes, el texto intenta explorar algunos sentidos de esta Sociología, al mismo tiempo que expone una de sus posibles aporías. PALABRAS CLAVE: Sociología; suicidio; religión y Ciencia.
Recebido para publicação em: 30/12/01 Aprovado para publicação em: 14/05/02
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criação
Fotografia na Enfermaria de Ortopedia: pesquisando espaços de comunicação Photography in an Orthopedic Ward: researching areas of communication
Maria Lúcia Toralles Pereira Trajano Sardenberg Heloísa Wey Berti Mendes
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A transformação do indivíduo em paciente inclui a vivência de uma série de separações, marcadas, freqüentemente, por experiências de fragmentação e perda de autonomia sobre o próprio corpo. Deitado na cama de hospital, a situação que o paciente experimenta é, como observa Sant’Anna (2000, p.13), a da “fragmentação do tempo, do corpo e das atividades”. Em situações de maior imobilidade no leito, o teto e a superfície superior das paredes passam a referenciar suas relações com objetos e experiências no interior do quarto. Essa condição de imobilidade e privação de autonomia diante de situações rotineiras, somadas à experiência de intimidação gerada pelo cenário dos equipamentos de uma Enfermaria de Ortopedia (serra elétrica, brocas, perfuradoras, instrumentos de tração, martelos etc) trazem, para a prática em Saúde, a preocupação com a qualidade do atendimento/ tratamento, entendida não sob a ótica das condições materiais ou técnicas implicadas na assistência, mas no que se refere à dimensão subjetiva daqueles que vivenciam tais experiências.
1 Professora do Departamento de Educação, Instituto de Biociências de Botucatu, Universidade Estadual Paulista/Unesp. <toralles@ibb.unesp.br> 2 Professor do Departamento de Cirurgia e Ortopedia, Faculdade de Medicina de Botucatu, Universidade Estadual Paulista/Unesp. <tsarden@fmb.unesp.br> 3 Professora do Curso de Enfermagem, Faculdade de Medicina de Botucatu, Universidade Estadual Paulista/Unesp. <weybe@uol.com.br>
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CRIAÇÃO
Conhecer o modo como essas situações são vividas, pensadas e valorizadas na dimensão subjetiva do paciente, foi a proposta da pesquisa. Entregamos câmeras fotográficas a cinco pacientes acamados, internados na Enfermaria de Ortopedia de um hospital universitário, no segundo semestre do ano de 2001, propondo que registrassem sensações, idéias e experiências vividas como pacientes, procurando responder às perguntas: o que significa estar doente? O que é bom e o que é ruim em sua rotina na Enfermaria?
Um tombo de moto me fez ficar quinze dias em cima de uma cama sem poder me levantar, nem para ir ao banheiro, nem tomar banho... só banho no leito, uma coisa que incomoda bastante... você vê o banheiro perto de você e não pode ir até ele, tem que pedir, ficar dependendo de favor dos outros. É incômodo demais... (LF)
Aqui tem uma parte boa e ruim. A parte boa é que eu conheci, pelo tempo que fiquei aqui, muitas pessoas que passaram por esta cama, que ficaram comigo, uma semana, cinco dias... E a parte ruim é que você fica um tempo sozinho também. O quarto só tem duas camas. Você fica sozinho um período, daí é pior ainda. Aquela solidão danada! Não tem com quem conversar, só a televisão... (AD)
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CRIAÇÃO
Tirei esta foto por causa dos biombos. Achei que eles estavam bem sujos, poderia ser melhorado isso... E melhoraria até a privacidade da gente. ... às vezes, eles não estão bem encaixados... a gente tá tomando banho... tá até em posições meio desconfortáveis... (AR)
A televisão... é o único, praticamente o único lazer que tem. Apesar de ter leitura, ter outras coisas também, às vezes é só televisão mesmo. E este é o ângulo que eu tenho de onde eu estou... (AD)
É a bandeja da comida. ... não que seja ruim, a comida do hospital é boa. Só que a gente, na condição que se encontra aqui, não tem apetite. Então volta muita comida. Às vezes, até dá dó pelo desperdício. É um negócio que estava conversando com outras pessoas, ... a quantidade de alimento que vem, cinco refeições... e a proximidade uma da outra. Você toma café, oito e pouco, quando é onze já tá chegando o almoço, aí às duas já vem outro café, quando é cinco já está jantando. A alimentação é muito seguida. No trabalho a gente não está acostumado com isso, não se alimenta dessa forma. O dia a dia da gente não é assim. Eu acho que a janta poderia ser mais tarde um pouco ... (AD)
Recebido para publicação em: 28/06/02 Aprovado para publicação em: 10/07/02
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