APRESENT AÇÃO APRESENTAÇÃO Mas já que se há de escrever, que ao menos não se esmaguem com palavras as entrelinhas Clarice Lispector
Relendo Clarice, encontro um jeito de expressar o desafio de escrever a apresentação de um dossiê sobre Saúde Mental. Como não esmagar com as palavras as entrelinhas? Como apresentar três textos densos e provocativos sem aprisionar o que deles escapa? Sim, porque certamente não são os conceitos que trazem, as histórias que contam, o que há ali de mais importante, mas é o que neles vibra. Pois é assim que gostaria de apresentá-los – pela vibração, pelo que emana de luz, calor, vermelho, das entrelinhas, em cada texto. Em tempos que alguns querem cinza porque prometidos de uma monótona ´sanidade´, em tempos nos quais presunçosas sinapses são controladas (pretensamente), há um jorro vermelho, de cor intensa, que escapa. Assim, em São Paulo, Santos, Campinas, Natal – mas poderíamos acrescentar muitos outros municípios, serviços, trabalhadores, usuários... – acompanhamos o movimento da ´Reforma Psiquiátrica no Brasil´, que rompe, mas também captura, avança em conquistas cidadãs e se acomoda a um lugar já instituído de (e para) ser, que resiste se (re)criando. Precisamos contar histórias, todas aquelas que nos comovem porque o olho brilha. O olho não deixa mentir – conta de olho conta sorrindo que pode, agora, se olhar. Antes, era o manicômio e, lá, só se era olhado. Olhado, vigiado, controlado, contido. Não nos iludamos, entretanto, porque, para que esse manicômio desapareça, é necessário que muitos muros caiam. Como nos alertam Alverga & Dimenstein, em artigo que compõe o dossiê “A Reforma Psiquiátrica e os desafios na desinstitucionalização da loucura”, é preciso conjurar os ´desejos de manicômio´ que perpassam o socius, ousar na quebra da identificação nosológica que insiste na acolhida (e produção de demanda reprimida) dos usuários, mais na construção dos projetos terapêuticos, mais no desmonte das barreiras em prol da construção de cidades subjetivas a serem permanentemente (re)singularizadas. Os autores chamam a atenção para a importância de se problematizar não apenas a velocidade na implementação da política de saúde mental em curso, mas para sua direção. Sobre este ponto é o artigo de Elizabeth Lima, “Por uma arte menor: ressonâncias entre arte, clínica e loucura na contemporaneidade”, que nos ajuda a
seguir pelos (des)caminhos da clínica. É na vizinhança, no estar ao lado, que a direção se faz. Beth toma as obras-de-arte produzidas pelos internos dos hospitais psiquiátricos e aposta na ´beleza e força que, do lugar que ocupam hoje na cultura, questionam e fazem estremecer as bases de uma lógica manicomial e um modo de ver a loucura, a doença, a diferença´. Destaca os múltiplos agenciamentos que permitiram (permitem) que a vida continue a pulsar. Vibração, portanto, que, na arte, na clínica, experimentamos como limiares de passagem. Direção que nos argúi todo o tempo para o que vai se manicomializando em nossos fazeres extra-muros. Não nos enganemos, entretanto, de modo que a crítica, necessária, ao que pode nos capturar em experiências que queremos desmanicomializadoras, se confunda, como querem nos fazer crer, com restauração/industrialização dos leitos/hospitais psiquiátricos. O que conquistamos no campo da saúde mental no Brasil, confirmado por Conferências Nacionais e Internacionais, pela lei Federal 10.216 de abril de 2001 – que provê assistência às pessoas com transtornos mentais dispondo, sobretudo, sobre os “seus direitos” –. constitui patrimônio público a ser preservado e melhorado. Neste sentido, o artigo de Luzio & L´Abbate, “A Reforma Psiquiátrica brasileira: aspectos históricos e técnico-assistenciais das experiências de São Paulo, Santos e Campinas”, traz-nos a potente história de enfrentamentos, invenções, rupturas com velhos modelos de cuidado, ousadia de, em tempos neoliberais, avançar num projeto de política pública de saúde que incluísse a loucura como experiência. Esta é a história de uma política que se fez a partir de/com as experiências, como mostram as autoras. Esta é uma política que veio para fazer vibrar, vermelho, cores e luz... e, porque feita destas partes, possível de se reinventar e manter o brilho dos olhos que olham para além de uma `lucidez perigosa`. Estou por assim dizer vendo claramente o vazio. E nem entendo aquilo que entendo: pois estou infinitamente maior que eu mesma, e não me alcanço. Além do que: que faço dessa lucidez? Sei também que esta minha lucidez pode-se tornar o inferno humano - já me aconteceu antes. Clarice Lispector
Regina Benevides, Departamento de Psicologia, Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro <rebenevi@terra.com.br >
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PRESENT ATION PRESENTA But since you have to write, make sure that at least you do not crush what is “between-the-lines with words Clarice Lispector
Re-reading Clarice I find the way of expressing the challenge of writing the introduction to a file on Mental Health. How can I avoid crushing what is ‘between the lines’ with words? How do I introduce three dense and provocative texts without imprisoning what escapes from them? Yes, because what is most important in them is certainly not the concepts they bring us, or the stories they tell, but what vibrates in them. That is precisely how I would like to present them – for their vibration, for the light that emanates from them, the warmth, the red, the ‘between the lines’ in each text. In times which some people want to be gray because they are promised by a monotonous ‘sanity’, in times in which presumptuous synapses are controlled (pretentiously), here there is a splash of red, of intense colors, that escapes. That is what it is like in São Paulo, Santos, Campinas, Natal, but we could add many other cities, services, workers, users... we accompany the movement of ´Psychiatric Reform in Brazil´ which breaks, but also captures, advances with its citizen victories and settles in a place that is already instituted to be (and for being), which resists by (re) creating itself. We need to tell stories, all those that move us, because the eyes shine. The eyes don’t let you lie – the tale of the eye smilingly says that now you can look. Before, it was the lunatic asylum and there you were only looked at. Looked at, spied on, controlled, contained. Let us have no illusion, however, because for this lunatic asylum to disappear many walls need to come down. As Alverga & Dimenstein warn us in their article, which forms part of the file, “Psychiatric Reform and the challenges of the de-institutionalization of madness” we need to conjure up the ´lunatic asylum desires´ that glide past the socius, dare, when breaking the nosological identification that insists on welcoming (and producing the repressed demand of) the users, more in the construction of therapeutic projects, more in knocking down the barriers to construct subjective cities to be permanently (re)singularized. The authors draw our attention to the importance of expressing the problem of not only the speed of the present implementation of the mental health policy, but also its direction. On this point it is Elizabeth Lima’s article “For a lesser art: resonances between art, clinical medicine
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and madness in contemporary life”, which helps us follow the (non)paths of clinical medicine. Closeness, the being alongside, is the direction that is indicated. Beth takes the works of art produced by the inmates of psychiatric hospitals and bets on the ´beauty and strength that, from the place they today occupy in culture, question and shake to the core the bases of lunatic asylum logic and a way of seeing madness, the illness and the difference´. She highlights the multiple agencies that allowed (allow) life to continue pulsating. Vibration, therefore, which in art and in clinical medicine, we experience as thresholds. A direction that bends us the whole time towards what is being turned into a lunatic asylum in our extramural tasks. Let us not be deceived, however, that the necessary criticism, of what can capture us in experiences that we want to be non-lunatic-asylum-making, gets confused, as they want to make us believe, with restoration/ industrialization of beds/psychiatric hospitals. What we have conquered in the field of mental health in Brazil, as confirmed by national and international conferences and by Federal law 10.216 of April, 2001, that provides assistance to people with mental disturbances, by outlining, above all, “their rights”, is public property to be preserved and improved upon. In this sense the article by Luzio & L´Abbate, “ Brazilian Psychiatric Reform: historical and technoassistential aspects of the experiences of São Paulo, Santos and Campinas”, brings us the powerful story of confrontations, inventions, ruptures with old care models, the boldness of, in neo-liberal times, moving forward with a public health policy project that includes madness as experience. This is the story of a policy that is made from and with experiences, as the authors show. This is a policy that came to make us vibrate, red, colors and light...and because it is made of these parts it is possible to reinvent and maintain the shine in the eyes that look beyond a `dangerous lucidity`. I am, to put it like that, seeing the void clearly. And I don’t even understand what I understand: Because I am infinitely greater than myself, And I cannot reach me. Furthermore: what do I do with this lucidity? I also now that my lucidity might become a human hell - it has happened to me before. Clarice Lispector
Regina Benevides, Departamento de Psicologia, Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro <rebenevi@terra.com.br >
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dossiê
A rreforma eforma psiquiátrica br asileir a: brasileir asileira: aspectos históricos e técnico-assistenciais das experiências de São P aulo antos e Campinas Paulo aulo,, S Santos Cristina Amélia Luzio 1 Solange L’Abbate2
LUZIO, C. A.; L’ABBATE, S. The brazilian psychiatric reform: historical and technical-supportive aspects of experiences carried out in the cities of São Paulo, Santos and Campinas. Interface - Comunic., Saúde, Educ. Educ., v.10, n.20, p.281-98, jul/dez 2006.
This article seeks to discuss the experiences carried out during 80s in the cities of São Paulo (capital), Santos and Campinas, in order to understand their material, social and political impacts, the progress in the process of breaking away from the psychiatric ward model, and the establishment of creative and productive groups, required to build up the psychosocial treatment in regard to mental health, as well as to evaluate the contribution that the SUS (Brazilian Public Health System) had on the psychiatric reform in the mentioned cities. The research, which is the basis of this paper, is part of a thesis regarding mental health care, whereby the innovative projects implemented in those cities served as framework and basis for comparison to analyze mental health policy in small and medium-sized cities and towns in the state of São Paulo. KEY WORDS: mental health services. mental health. public health. National Health System (BR). health care reform.
Este artigo tem como objetivo abordar as experiências desenvolvidas, a partir da década de 1980, nos municípios de São Paulo (capital), Santos e Campinas, no sentido de compreender as suas determinações materiais, sociais e políticas, o avanço do processo de rompimento com o modelo manicomial e a emergência de forças criativas e produtivas, necessárias para a construção da atenção psicossocial em saúde mental, bem como conhecer a contribuição do Sistema Único de Saúde no avanço da reforma psiquiátrica nos municípios. A investigação que fundamenta este trabalho é parte de uma tese sobre a atenção em saúde mental, na qual os projetos inovadores desses municípios serviram de moldura e parâmetro para a análise da política de saúde mental em municípios de pequeno e médio portes do estado de São Paulo. PALAVRAS–CHAVE: serviços de saúde mental. saúde mental. saúde pública. Sistema Único de Saúde (SUS). reforma dos serviços de saúde.
1 Departamento de Psicologia Clínica, Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista, Unesp, campus de Assis, São Paulo. <caluzio@assis.unesp.br> 2 Departamento de Medicina Preventiva e Social, Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas, Unicamp, Campinas, SP. <slabbate@fcm.unicamp.br>
Rua Gonçalves Dias, 322 Centro – Assis, SP Brasil - 19.800-110
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Introdução A partir da implantação do Sistema Único de Saúde (SUS), formalizado pela Constituição Federal de 1988, quando muitos municípios do país buscaram viabilizar, em todos os setores da assistência à saúde, os direitos constitucionais dos usuários, constatam-se grandes dificuldades na efetivação das diretrizes gerais, tanto da reforma sanitária como da reforma psiquiátrica. Felizmente, tem sido possível observar a existência de práticas inovadoras que fortalecem o SUS, por meio de propostas que tiveram de enfrentar o “projeto neoliberal” fortemente implantado no país, notadamente no que se referia ao crescimento do sistema privado de saúde e dos conflitos daí decorrentes. Tais práticas vêm trazendo a configuração de um novo desenho da política de saúde e de saúde mental, por intermédio de vários mecanismos institucionais, principalmente o da descentralização. Alguns municípios assumiram a assistência em saúde mental, exigindo que os governos federal e estaduais não apenas cumprissem suas atribuições, como partícipes do processo, mas também construíssem instrumentos técnicooperacionais que lhes permitissem implantar e implementar seus serviços de saúde mental. Assim, ocorrem experiências inovadoras realizadas em alguns municípios do Estado de São Paulo, dentre as quais ressalta-se a criação, em 1987, na cidade de São Paulo, do primeiro CAPS, Centro de Atenção Psicossocial “Prof. Luiz da Rocha Cerqueira”, um modelo realmente inovador para a política de saúde mental, depois reproduzido em outros municípios. Além disso, em 1989, tendo sido eleitos, pela primeira vez, em São Paulo/ Capital, Santos e Campinas, prefeitos do Partido dos Trabalhadores, foram nomeados, como gestores municipais da área de saúde, profissionais comprometidos com o movimento da reforma sanitária, ator fundamental no processo político-institucional da constituição do SUS. Ao assumirem tais atribuições, faziam-no no sentido de construir novos dispositivos na área da saúde mental, considerados altamente relevantes para o movimento da reforma psiquiátrica, na perspectiva da efetivação do Sistema Único de Saúde. A criação do NAPS (Núcleo de Atenção Psicossocial), em Santos, e do CAPS, em São Paulo, como será abordado posteriormente, demonstrou a indiscutível influência direta dessas experiências na política nacional em saúde mental. A publicação da Portaria do MS nº 224/92, em vigor desde janeiro de 1992, que estabeleceu diretrizes e normas para a assistência em saúde mental, foi um exemplo. Ela reafirmou os princípios do SUS, instituiu e regulamentou a estrutura de novos serviços em saúde mental, orientados nas experiências do CAPS e do NAPS. Os novos serviços, denominados pela portaria como CAPS/ NAPS, foram definidos como unidades de saúde locais e regionalizadas, a partir de uma população adscrita segundo a localização, e que deveriam oferecer cuidados intermediários entre o regime ambulatorial e a internação hospitalar. Os CAPS/NAPS podiam constituir-se, ainda, em porta de entrada da rede de serviços para as ações relativas à saúde mental, considerando sua característica de unidade de saúde local e regionalizada. Atendiam, também, a pacientes referenciados de outros serviços de saúde, dos serviços de urgência psiquiátrica ou egressos de internação hospitalar. Deveriam estar integrados a uma rede descentralizada e hierarquizada de cuidados em saúde mental (Brasil, 1997).
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Embora a Portaria nº 224/92 signifique um avanço importante na construção da atenção psicossocial, deve-se ressaltar que ela continha algumas limitações. Uma delas, conforme apontam Amarante & Torre (2001), é o fato de a portaria igualar experiências distintas (o processo de criação do CAPS e do NAPS), cujas inspirações teórico-conceituais e técnico-assistenciais foram diferentes. Enfim, reduzia ambos os processos a apenas mais uma modalidade de serviço, aparentemente advinda de modelos idênticos, perdendo-se a pluralidade nelas contidas. Essa situação foi modificada com a Portaria do MS nº 336/2002. Nela, a denominação de NAPS não aparece mais associada ao CAPS. Ela opta pela nomeação apenas de CAPS, estabelecendo três modalidades definidas com base em seu tamanho/complexidade e abrangência populacional, de modo que possam realizar prioritariamente o atendimento de usuários com transtornos mentais severos e persistentes em sua área territorial, em regime de tratamento intensivo, semi-intensivo e não-intensivo. Assim, os CAPS devem constituir-se em serviço ambulatorial de atenção diária e funcionar segundo a lógica do território e independente de qualquer estrutura hospitalar. Além disso, devem articular todas as instâncias de cuidados em saúde mental desenvolvidas na atenção básica em saúde, no Programa de Saúde da Família, na rede de ambulatórios, nos hospitais, bem como as atividades de suporte social, como: trabalho protegido, lazer, lares abrigados e atendimento das questões previdenciárias e de outros direitos (Brasil, 2002). No entanto, apenas os maiores e mais complexos (CAPSIII), por funcionarem durante 24 horas, têm capacidade de ser um dispositivo estratégico no contexto da mudança do modelo assistencial em Saúde Mental, norteada pela lógica de rede e do território e, portanto, identificados com a proposta dos NAPS. Nesse sentido, este artigo tem como objetivo abordar as experiências ocorridas nessas cidades, a partir da década de 1980, no sentido de compreender as determinações materiais, sociais e políticas necessárias para a construção da atenção psicossocial como um processo de transformações no paradigma manicomial e psiquiátrico, nas esferas político-ideológica e teóricotécnica. Como um processo social complexo, a atenção psicossocial se desenvolve no bojo do processo de transição paradigmático da ciência da modernidade e supõe a articulação de mudanças em várias dimensões simultâneas e inter-relacionadas, referentes aos campos: epistemológico, técnico-assistencial, jurídico-político e sociocultural (Rotelli, 1990; Amarante, 1996, 2003). Portanto, a atenção psicossocial aspira a uma transformação radical do saber e das práticas psiquiátricas e afins, configurando-se como um campo capaz de congregar e nomear todo o conjunto das práticas substitutivas ao Modo Asilar, conservando, ao mesmo tempo, a abertura necessária para a inclusão das inovações que ainda estão se processando em termos de reabilitação psicossocial e para outras que certamente virão. (Costa-Rosa et al., 2003, p.34)
A investigação que fundamenta este trabalho é parte de uma tese sobre a atenção em saúde mental (Luzio, 2003), na qual os projetos inovadores dos
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municípios estudados serviram de moldura e parâmetro para a análise da política de saúde mental em municípios de pequeno e médio portes do estado de São Paulo. São Paulo: experiências distintas em diferentes gestões públicas A proposta da Secretaria de Estado da Saúde (SES): o Centro de Atenção Psicossocial CAPS “Prof. Luiz da Rocha Cerqueira” No estado de São Paulo, de 1982-1986, durante o governo de André Franco Montoro (PMDB), norteado pelo projeto de saúde mental implantado em 1973, por Luiz Cerqueira, ampliou-se a rede de assistência extra-hospitalar, com a criação de ações em saúde mental nas Unidades Básicas de Saúde (UBS) e novos ambulatórios. Nesse contexto, a cidade de São Paulo, na gestão de Mário Covas (PMDB), por intermédio da Secretaria de Higiene e Saúde, em parceria com a Secretaria de Estado da Saúde (SES) de São Paulo, executou o Plano Metropolitano de Saúde, com financiamento do Banco Mundial. Tal experiência trouxe várias contribuições na organização de serviços de saúde mental, inseridos na rede de saúde pública. Para Cesarino (1989), iniciou-se um amplo processo de discussões e reflexões críticas a respeito da prática cotidiana dessas ações e das políticas públicas de saúde mental. Esse processo, ao lado da organização dos trabalhadores, possibilitou a construção de novos dispositivos para o fazer coletivo. Organizamse os Programas de Intensidade Máxima (PIM) nos ambulatórios destinados à clientela com sofrimento psíquico intenso. Esse programa constituiu-se mais uma semente na construção do Centro de Atenção Psicossocial/CAPS, inaugurado em 1987. Segundo Yasui (1989), a criação do CAPS “Prof. Luiz da Rocha Cerqueira” foi [...] Derradeiro gesto de uma administração, foi o lugar que acolheu alguns profissionais que vinham de importantes experiências institucionais na rede pública, onde ocupavam posição de destaque e que foram obrigados a abandonar seus trabalhos e projetos no meio do caminho mas que [...] não perderam a capacidade de sonhar com utopias (uma sociedade sem manicômios reais ou simbólicos, sem violência institucionalizada, mais justa, mais igualitária etc.) e, mais do que isso, de acreditar na possibilidade de construir um caminho na direção delas. (Yasui, 1989, p.51)
O CAPS, localizado na rua Itapeva, a uma quadra da Avenida Paulista, na cidade de São Paulo, foi inscrito no sistema hierarquizado, regionalizado e integrado de ações de saúde já instituído, como uma estrutura intermediária entre o hospital e a comunidade, destinado ao atendimento dos usuários considerados psicóticos e neuróticos graves. Como tal, o CAPS propunha-se a atuar como uma estrutura de passagem, na qual os usuários permaneceriam até apresentarem condições clínicas estáveis para continuar o tratamento definitivo em ambulatórios. Para tanto, a direção do Centro procurou construir uma organização institucional simples, flexível e em permanente mudança, para assegurar maior agilidade e diversidade nas várias modalidades terapêuticas.
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O projeto original previa a criação, pela SES-SP, de uma rede de CAPS, em que privilegiasse a construção de uma prática clínica na qual a fala do doente seria tomada “não pelo reconhecimento do sintoma, mas como produção de um sujeito social dentro dos limites, certamente problemáticos, que a loucura impõe” (Goldberg, 1996, p.21). Dessa maneira, buscava-se romper com o modelo centrado na concepção de doença como erro ou distúrbio e cujo tratamento teria como objetivo a pura remissão de sintomas apresentados pelo doente, por intermédio de práticas morais, mecanicistas, homogeneizadoras e burocratizadas. Enfim, pretendia-se um projeto terapêutico que possibilitasse abordar a “doença mental a partir de um campo terapêutico dilatado, que se constitui na relação médicopaciente para propiciar a emergência do próprio processo de defrontação e conhecimento da doença” (Goldberg, 1996, p.58-9). A proposta clínica do CAPS, então, era o desenvolvimento de uma prática centrada na vida cotidiana da instituição e do usuário, de modo a permitir o estabelecimento de uma rede de sociabilidade capaz de fazer emergir a instância terapêutica. Procurava-se, portanto, a criação de dispositivos coletivos destinados à circulação da fala e da escuta, da experiência, expressão, do fazer concreto e da troca, do desvelamento dos sentidos, da elaboração e tomada de decisão. As intervenções deveriam ativar várias práticas terapêuticas (medicação, psicoterapia, grupos, reuniões de usuários, atividades expressivas) na abordagem global do usuário, ancoradas nas concepções contemporâneas da psiquiatria, em outras áreas do conhecimento e, principalmente, em toda uma bagagem de experiências práticas (Goldberg, 1996). No início de suas atividades a equipe enfrentou muitas dificuldades. Uma delas foi o distanciamento entre os profissionais e usuários devido à inexperiência dos primeiros e, também, ao preconceito para com as pessoas com sofrimento psíquico intenso. Houve, ainda, dificuldade para romper de fato com o modelo médico, com o planejamento hierarquizado das ações, e definir as competências profissionais no processo terapêutico. Aos poucos, a equipe evoluiu, passando a perceber o usuário em sua singularidade, valorizar os projetos coletivos, reconhecer o tratamento como um processo de transformação contínuo e a longo prazo, bem como conceber a instituição como uma referência para os usuários (Goldberg, 1998). Nesse contexto, foi construído um outro dispositivo importante. Foi criada uma entidade civil, a Associação Franco Basaglia, com a participação de usuários, familiares, profissionais e outros interessados. A associação, em conjunto com o CAPS, passou a desenvolver projetos especiais, cuja finalidade era promover a autonomia e maior abrangência da clientela, incentivar a participação da família e de outros segmentos sociais, viabilizar a gestão extraclínica da vida dos usuários (de forma a ampliar o poder contratual e as possibilidades de trocas afetivas e materiais), enfim, fomentar o exercício pleno da cidadania e difundir novos valores, noções, conceitos e modos de perceber a loucura e efetivar sua assistência. Desde o início do projeto, os integrantes da equipe mantiveram interlocução constante com outros serviços que também atendem pessoas com intenso sofrimento psíquico. Entre os intercâmbios, destacam-se os mantidos com: 1) a Clínica La Borde, na França (criada por Jean Oury, em 1953, e onde atuou também Félix Guattari), acerca da formulação de projetos de intervenções
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sensíveis às características da psicose; 2) o Centro de Saúde Mental de Setúbal, iniciado na década de 1970, em Portugal, responsável pela assistência psiquiátrica pública de vários municípios da região, para operar com a concepção de setor utilizado na definição da geodemografia da população a ser atendida pelo CAPS. A proposta da SES-SP de se criar uma rede de CAPS não prosperou, tanto em decorrência dos retrocessos provocados pelos governos Quércia e Fleury (1987 a 1994), como da implementação do processo de municipalização da saúde, uma vez que o governo estadual começou a retrair seus investimentos na criação de novos serviços de saúde. Mas a experiência do CAPS “Prof Luiz da Rocha Cerqueira” permanece como tendo sido bastante promissora e inspiradora da política nacional de saúde mental. A experiência da Secretaria Municipal de Saúde: os Centros de Convivências e Cooperativas (CECCOs) Em 1989, o governo municipal de São Paulo, comprometido com os princípios e diretrizes das reformas sanitária e psiquiátrica, implantou um programa de saúde mental com base em duas premissas fundamentais: a primeira primeira, a de que o sofrimento psíquico era parte integrante e indissociável do sofrimento global dos indivíduos submetidos a desigualdades sociais; a segunda, a importância de uma política de saúde mental que, de fato, rompesse com o modelo hegemônico centrado nas internações psiquiátricas e em outras práticas manicomiais. De acordo com o projeto de saúde mental da Secretaria Municipal de Saúde SP (SMS-SP), essa ruptura se daria por intermédio: · da conscientização popular, do combate dos interesses privados do setor e de uma rede assistencial que criasse condições para a desospitalização; · da priorização de espaços de discussão com a população nos bairros e com as organizações populares e sindicais, objetivando desmistificar a loucura e o transtorno mental, além de promover a reflexão de seus determinantes sociais; · do reconhecimento e da valorização dos saberes e das práticas culturais populares como forma de equilíbrio psicossocial; do investimento na expansão da rede de serviços de Saúde Mental extra-hospitalar, de acordo com os critérios estabelecidos pela Organização Mundial da Saúde – OMS (Braga Campos, 2000). Para essa autora, a política de saúde mental no município de São Paulo retomou o modelo da reforma psiquiátrica centrado na atenção primária à saúde e orientado nos princípios do SUS e na Declaração de Caracas, na qual se definem novos caminhos para a atenção primária. A SMS-SP criou, também, outros serviços de atenção intensiva, orientados no modelo de hospital-dia. Construiu, ainda, ações em espaços públicos com o objetivo de viabilizar a inclusão dos grupos populacionais excluídos do convívio social e das possibilidades de lazer: os Centros de Convivências e Cooperativas (CECCOs) (Scarcelli, 1998). Os CECCOs eram pautados por duas linhas de ações. Por um lado, pretendiam combater a cultura manicomial e resistir ao surgimento de outros signos também manicomiais, além das forças burocráticas das práticas profissionais e institucionais. Por outro lado, propunham inserir o usuário, sua família e a população marginal e dispersa na sociedade.
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Foram instalados 18 CECCOs em parques, centros esportivos, praças e centros comunitários do município de São Paulo. Eles procuraram transformar o bem público em espaço coletivo e, desse modo, possibilitar a convivência das pessoas como um processo para a reconstrução da história de vida e perspectivas futuras, a construção de novos vínculos e de relação entre a experiência, a representação e a realidade (Lopes, 1999). O CECCO era um serviço de perfil cultural, e não somente técnicoprofissional. Utilizava-se essencialmente de recursos do mundo das artes, realizando intersetorialização com outros dispositivos da cultura, com educação, habitação e esporte. As práticas abarcavam música, artesanato, pintura, dança, teatro e esporte. Além disso, os Centros de Convivências promoviam atividades para ressignificar o processo de trabalho, visando à inserção social. Para tanto, criaram-se núcleos de trabalho responsáveis pela produção de bens e serviços. Esses núcleos, além de viabilizar a comercialização dos produtos e a divisão dos lucros, buscavam problematizar todo o processo produtivo, incluindo não apenas o produto a ser vendido, mas também a produção do sujeito que o produz. Em síntese, a experiência desenvolvida pelo gestor municipal no início da década de 1990 reproduziu, de uma maneira geral, a lógica do modelo hierarquizado implantado na década de 1980. Porém, deve-se destacar que a criação dos CECCOs representou uma significativa contribuição para a construção de novos modos assistenciais em saúde mental, embora não tenha sido incorporada pela política nacional de saúde mental. É um dispositivo que compõe uma rede articulada de atenção à saúde mental, com a finalidade de construir o direito à vida, à cidadania e difundir novos valores, noções, conceitos e modos de perceber a loucura e efetivar sua assistência. Durante os governos de Maluf e Pitta (1992 a 2000), esse projeto foi desmontado. Implantou-se o Plano de Assistência à Saúde (PAS), no qual toda a assistência em saúde e saúde mental foi terceirizada, ficando sob responsabilidade das cooperativas profissionais. Os funcionários municipais da saúde, em especial da saúde mental, não aderiram ao PAS e as cooperativas contrataram novos e inexperientes profissionais. Com isso, as ações voltaram a ser restritas às consultas e aos exames, centradas no modelo médico-curativo tradicional. Na realidade, o PAS produziu apenas desassistência e caos na saúde. A partir de 2000, a gestão da prefeita Marta Suplicy buscou reorganizar a saúde do município e implantar a política de saúde mental vigente. Santos: “rachando” o modelo da reforma psiquiátrica brasileira A cidade de Santos, também a partir de 1989, integrou-se à luta pela construção do SUS. Como cidade pólo da região metropolitana da Baixada Santista, no litoral sul do estado de São Paulo, apresentava, naquele momento, uma desorganização do seu espaço urbano, claramente percebida pela ausência de projetos destinados às áreas marginalizadas, multiplicidade de habitações coletivas e aumento da ocupação nas áreas de risco e de favelas de palafitas. Enfim, era explícita a enorme dívida social do governo municipal para com seus cidadãos mais desfavorecidos. A nova administração municipal, comprometida com o tecido social, propôs implantar “uma política urbana integrada, harmoniosa, capaz de melhorar
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a qualidade de vida da população e reduzir as desigualdades na apropriação do espaço e das vantagens da vida urbana” (Capistrano Filho, 1997, p.17). Na área da saúde, de acordo com Campos (1997c), a reforma sanitária não havia produzido, até 1989, ecos em Santos. A organização dos serviços de saúde era deficitária e ineficaz, pois ainda reproduzia a mesma lógica e abrangência da década de 1940. A Secretaria de Higiene e Saúde de Santos (SEHIG), também conduzida por atores importantes do movimento da reforma sanitária, assumiu a implantação do SUS e pôde, assim, demonstrar sua viabilidade e seu compromisso com a “Defesa da Vida”. Para isso, buscou-se combinar as práticas clínicas com as de promoção de saúde, bem como a descentralização e intersetorialidade das ações. Porém, foi na área da saúde mental que ocorreu um maior grau de radicalidade no modelo “em defesa da vida” dos cidadãos (Campos, 1997c). Esse processo foi desencadeado pelo início da intervenção decretada pela prefeita Telma de Souza na Casa de Saúde Anchieta de Santos, após vistoria realizada pela Prefeitura de Santos em conjunto com vários setores da sociedade civil (Nicácio, 1994). Após a intervenção, as ações iniciais foram voltadas para a criação de um ambiente nas dependências do hospital com condições mínimas de convivência. Para isso, foram: · suspensas toda e qualquer situação ou ato de violência, proibindo-se as agressões verbais, físicas, as celas fortes, e os aparelhos de eletrochoque foram desativados; · abertos todos os espaços físicos internos do hospital, possibilitando a circulação das pessoas e o acesso das visitas aos internos; · recuperadas as condições de higiene e alimentação dos internos, bem como suas condições de saúde; · reconstruídas as identidades dos pacientes, por meio do uso contínuo de seus nomes próprios e da definição de locais (quarto e cama) para eles dormirem; · resgatadas as histórias de vida dos internos, bem como realizadas a revisão de diagnósticos e medicação. Esse conjunto de ações continha um significado importante, pois refletia a instauração de uma nova ordem institucional: não-violência; não-humilhação; mais tratamento; mais dignidade; mais liberdade, enfim, a possibilidade de se viver com dignidade. Kinoshita (1997), um dos principais atores daquele processo, definiu o momento como a desconstrução da “velha ordem” e a criação de uma outra comprometida com uma “nova ética”. Essa nova ética, inspirada, sobretudo, na psiquiatria democrática italiana, passou a orientar a implantação de uma política de saúde mental em Santos. Uma política que se originou na radicalidade, tanto no enfrentamento e confronto de forças (poder público x donos do hospital) como na ousadia de virar “o manicômio no avesso”, de instituir um processo de “negação da própria instituição” e romper com a lógica da exclusão. Em síntese, uma política cuja intervenção possibilitou colocar a doença entre parênteses e estabelecer o contato com a pessoa considerada doente, isto é, com sua existência-sofrimento, inserida no tecido social. Internar não é tratar. Enfim, a luta por uma sociedade sem manicômios (Nicácio, 1994). Buscou-se a organização interna do hospital, norteada pela reativação das
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subjetividades de todos os atores envolvidos no processo – internos, familiares, trabalhadores, gestores e população. Não havia um modelo a ser seguido, o ponto de partida era a necessidade dos usuários. Instituíram-se espaços de convivência, recorreu-se à grupalidade, às discussões coletivas de necessidades, conflitos, desejos e reinvindicações. [...] o momento da assembléia representava o desnudamento dos papéis codificados, que possibilitava a profissionais e internos conversarem, pensarem, descobrirem alternativas e possibilidades. (Nicácio, 1994, p.72)
Concomitante às ações dirigidas ao espaço interno da instituição, procurou-se intervir no espaço social da cidade, visando romper a separação hospital/cidade, facilitar intercâmbios entre os internos e a comunidade. Procurou-se, dessa maneira, estimular visitas da comunidade ao hospital, realizando festas, visitas e outros encontros, bem como levar os pacientes para as ruas por meio de passeios, visitas a exposições, idas a cinema, teatro e festas. Além desse intercâmbio cultural, foi introduzida uma outra estratégia para agenciar a relação hospital/cidade. Reorganizou-se o espaço hospitalar de modo que a acomodação dos internos nas alas e enfermarias correspondesse às regiões da cidade. Assim, os vários grupos de internos tiveram suas equipes de referência. Estas, por sua vez, também tiveram a atribuição de conhecer o contexto socio-econômico-cultural das pessoas internadas, buscar recursos e construir projetos nos territórios dos usuários (Kinoshita, 1997). A partir desse momento, iniciou-se a construção de novos serviços e de um novo modelo de atenção em Saúde Mental. No período de 1989/1996, foram criados: cinco Núcleos de Apoio Psicossocial (NAPS), Unidade de Reabilitação Psicossocial, Centro de Convivência Tam-Tam, Lar Abrigado, Núcleo de Atenção aos Toxicodependentes, e Serviço de Urgência nos Prontos Socorros Municipais. Os NAPSs atendiam integralmente à demanda de saúde mental de cada região, principalmente dos casos graves. Eles passaram a funcionar ininterruptamente, realizando ações de hospitalidade integral, diurna ou noturna; atendimentos às situações de crises; atendimento ambulatorial; atendimentos domiciliares; atendimentos grupais; intervenções comunitárias e ações de reabilitação psicossocial. A Unidade de Reabilitação Psicossocial era encarregada de coordenar e acompanhar os projetos de trabalhos dos usuários, visando sua participação social e autonomia, como, por exemplo: lixo limpo, grupo de vendas de apiários, limpezas de caixas d’água, adote uma praça, construção civil. Dessa unidade, originou-se a criação da Cooperativa Mista Paratodos em 1994. O Centro de Convivência Tam-Tam promovia ações culturais e artísticas e dirigia a rádio Tam-Tam. A República acolhia os usuários graves, ex-moradores, sem vínculos familiares, da Casa de Saúde Anchieta. O Núcleo de Atenção aos Toxicodependentes era responsável pelo atendimento de usuários dependentes de drogas por intermédio da hospitalidade integral, atendimento ambulatorial, atendimentos individuais e grupais. Finalmente, o serviço de urgência nos Prontos Socorros Municipais dava retaguarda ao sistema como um todo. Essa rede de serviços substitutiva, construída em Santos, dispunha-se a: 1) respeitar a garantia do usuário ao direito de hospitalidade, bem como sua
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proteção ou continência, de acordo com sua necessidade; 2) disponibilizar uma rotina institucional ágil e plástica, capaz de responder ao pedido de auxílio do usuário ou dos seus familiares; 3) inserir ações assistenciais no território de origem dos usuários; 4) priorizar os projetos de vida nos serviços assistenciais; 5) promover um contínuo processo de valorização dos usuários, com sua conseqüente reinserção social (Kinoshita, 1997). Em síntese, conforme aponta Braga Campos (2000), a experiência santista, ao iniciar seu projeto de saúde mental a partir do interior de um hospital sob intervenção municipal, rompe com a lógica desse modelo, proporciona a ampliação das experiências e a criação de outras “modelagens”, cujas inovações vêm orientando a remodelação da rede de atenção em saúde mental, o rompimento com a lógica manicomial predominante na organização de serviços e no processo de trabalho, bem como a superação de ações hierarquizadas, com o desenvolvimento de ações tendo a rua como espaço terapêutico, a articulação com o PSF e com outros recursos do território. Após 1997, as novas gestões municipais não desestruturam formalmente a rede de atenção à saúde mental construída até aquele momento. Os serviços continuam funcionando, mas sem a continuidade do projeto de saúde mental implementado até 1996. Campinas: a construção de um novo modelo de atenção em saúde e de gestão em dois tempos Em Campinas, desde os anos de 1970, atuava de forma bem organizada o Movimento Popular de Saúde, ator fundamental na construção da rede municipal de unidades básicas de saúde, iniciada em 1976, com o secretário de saúde Sebastião de Moraes, médico de um dos principais hospitais da cidade (L’Abbate, 1990). Já na década de 1980, as autoridades de saúde do município, em conjunto com as direções da Puccamp e Unicamp, não apenas deram continuidade ao processo de construção de um Sistema Integrado de Saúde, como buscaram seu aperfeiçoamento. Segundo L’Abbate (1990), foram implementadas as diretrizes do Projeto Municipal Pró-assistência (a versão campineira do CONASP), e o município passou a organizar e gerenciar os serviços e as ações sob sua responsabilidade. No entanto, em Campinas, como em outros municípios nos quais foi implantada a política de saúde mental vigente no estado, tais propostas não produziram alterações significativas na lógica manicomial dominante. Foi somente a partir de 1989, com a eleição de uma gestão municipal também comprometida com os movimentos populares e com a construção do SUS, que esse quadro mudou. A SMS de Campinas passou a assumir, a partir daí, a direção de planejamento e implementação do processo de municipalização da política de saúde do município, tendo o então secretário de saúde do município na direção da política municipal de saúde, à frente do Conselho Municipal de Saúde (L’Abbate, 1990). A SMS procurou garantir o acesso da população aos serviços de saúde, aperfeiçoando e profissionalizando, de fato, a rede de centros de saúde, transformando-a em porta de entrada, de acordo com as diretrizes dos SILOS. Substituíram-se os Prontos Atendimentos pelos ambulatórios e viabilizou-se o
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Hospital Municipal como um serviço efetivo de urgência no município (L’Abbate, 1990). Ao mesmo tempo, implementaram-se medidas voltadas para a integração da assistência em saúde mental ao sistema geral de saúde, nos vários níveis de complexidade e de maneira progressiva (Braga Campos, 2000). Na política de assistência à saúde mental, a SMS busca provocar ruptura com os modelos direcionados do preventivismo, que reproduziam na Saúde Mental, de forma mecânica, o que era proposto na saúde geral, por meio de um sistema hierarquizado nas atenções primária, secundária e terciária. (Paulin, 1998, p.146)
Medeiros (1994) informa que, naquele momento, foi realizado o I Seminário de Saúde Mental, com profissionais de saúde e administradores municipais de Campinas, bem como implantadas reformas administrativas nos serviços e o sistema de co-gestão no hospital psiquiátrico “Cândido Ferreira”. No I Seminário de Saúde Mental, ocorrido em 1989, segundo essa autora, as conclusões reafirmaram as diretrizes do modelo anteriormente implantado, mas as suas deliberações tiveram entendimentos diferentes entre os atores sociais envolvidos. Isso propiciou demarcações territoriais que desencadearam conflitos e contradições em suas práticas. A busca de rupturas com o modelo preventivista-comunitário A implantação de um projeto assistencial em saúde mental que privilegiasse o centro de saúde como porta de entrada acarretou a ampliação tanto das possibilidades de acesso do usuário, como da capacidade de resolução dos problemas de saúde mental da população. Foi iniciada uma reforma administrativa que fechou o ambulatório de saúde mental, descentralizou os serviços, assim como reorganizou os papéis e funções dos profissionais que atuavam na assistência em saúde mental. Enfim, buscou-se construir um modelo assistencial balizado por novos padrões de gestão e planejamento, de política de recursos, de práticas clínicas mais condizentes com o modelo “em defesa da vida”, e não apenas voltadas para a mera reprodução da força de trabalho (Campos, 1994). As mudanças desencadeadas geraram reações diversas. Houve intransigência por parte dos profissionais mais antigos. De maneira geral, a resistência apareceu centrada na perspectiva de transformações no perfil dos centros de saúde. Segundo Campos (1997b), a rede básica viu-se obrigada a acolher o egresso hospitalar de seu território. As ações deveriam ser planejadas em consonância com as necessidades da população e as condições de trabalho em equipe. Abandonou-se a idéia de equipe mínima, composta por: um psiquiatra, um psicólogo e um assistente social, conforme preconizava a política nacional e estadual vigente. O tipo e o tamanho das equipes da rede básica passaram a ser determinados pelo projeto terapêutico da unidade. A co-gestão do Hospital Cândido Ferreira Em 1990, foi estabelecido o convênio de co-gestão entre a secretaria municipal de saúde e o hospital “Dr. Cândido Ferreira”. O fato representou o
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desafio de se produzir a superação, na prática, do manicômio e suas práticas segregadoras “por dentro” do próprio hospital. Para tanto, iniciou-se ali o processo de revisão diagnóstica, recuperação das histórias de vida e a localização das famílias dos usuários internados. Enfim, o usuário passou a ser o centro das ações terapêuticas. Além da reforma física e funcional dos prédios, houve, no hospital “Cândido Ferreira”, a organização de quatro unidades de produção: hospital-dia, unidade de internação, núcleo de oficinas de trabalho e unidade de reabilitação dos pacientes moradores. Essa organização foi realizada “a partir da definição dos objetivos a serem alcançados em cada situação do processo de desenvolvimento da doença mental em que se encontra o usuário” (Onocko, 1997, p.360). Esse foi um momento de muita efervescência e de enfrentamento de muitos desafios. Segundo Braga Campos (2000), configuraram-se, então, dois modelos de assistência à saúde mental no município: o da rede básica e o da co-gestão do “Cândido Ferreira”. Esses dois modelos compunham uma certa “hibridez” na assistência de saúde mental em Campinas. De um lado, o desafio de construir práticas substitutivas ao modelo manicomial, por intermédio das transformações na rede básica, centradas no planejamento local e na autonomia da equipe sob a área de cobertura. De outro lado, o desafio de desconstruir, e não apenas melhorar um manicômio. Estabeleceram-se intercâmbios com outras experiências em andamento, principalmente em Santos. Intensificaram-se os seminários, cursos e as reuniões no sentido de viabilizar, na assistência em saúde mental, o modelo assistencial orientado pela “Defesa da Vida”. As reformulações empreendidas no hospital “Dr. Cândido Ferreira” tiveram suporte do Laboratório de Planejamento e Administração em Serviços de Saúde (LAPA) do Departamento de Medicina Social e Preventiva da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp. No processo de organização dos serviços, foi utilizado um sistema de gestão e planejamento participativo, a partir das equipes – assistenciais, de apoio técnico e administrativo – das unidades de produção. Nesse contexto, procurou-se conduzir o processo de mudanças orientado nas teorias de planejamento, principalmente de Carlos Matus e Mário Testa, com a finalidade de possibilitar a definição da missão da instituição, o sistema de planejamento comprometido com o desmonte do manicômio e de suas práticas segregadoras por dentro dele, enfim, uma prática histórica comprometida com a mudança social (Onocko, 1997). Os desdobramentos subseqüentes à abordagem dos microprocessos institucionais exigiram outras tecnologias, com objetivo de construir sujeitos coletivos autônomos, éticos e críticos. Nesse sentido, buscou-se um trabalho de intervenção no processo de trabalho das equipes para se conhecer os fenômenos que operavam naquele campo e, também, como se apresentavam suas várias forças. Dessa forma, buscou-se inspiração na análise institucional, notadamente na produção teórica de Lourau, Lapassade e Guattari (L’Abbate, 1997, 2003). Sintetizando, a experiência de Campinas norteou-se não apenas na expansão da rede pública, como também e, fundamentalmente, na necessidade de se reformular as concepções e práticas de administração pública e os modos de se organizar a atenção à saúde. Segundo Braga Campos (2000), também foi iniciado o processo de discussão
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para a criação dos CAPS. Estes deveriam estar abertos, ininterruptamente, durante as 24 horas do dia, para acolher as situações de crise, hospitalidadenoite, bem como desenvolver ações de reabilitação psicossocial. Finalmente, foram criados o Centro de Convivência Infantil e o Centro de Referência ao Alcoolismo e à Drogadição. A construção de um novo modelo de saúde e gestão: a saúde mental e o Programa Paidéia – Saúde da Família
3 Busca-se desenvolver uma experiência singular do Programa Saúde da Família (PSF) integrando, também, a atenção em saúde mental, a exemplo do que ocorreu em outros municípios na década de 1990, como: Quixadá, CE, em 1994; Camaragibe, PE, em 1995; São Paulo, SP, em 1998, entre outros (Lancetti, 2000).
A gestão municipal iniciada em Campinas em 2001 avaliou que a rede básica do município apresentava diversos problemas que indicavam sua incapacidade de absorver a demanda, ou mesmo atender às necessidades básicas de saúde (Secretaria Municipal de Saúde-SMS, 2001a). Dessa maneira, retomou as experiências realizadas na área da saúde ocorridas no período de 1989-1991. A recondução do médico sanitarista e professor da Unicamp, Gastão Wagner de Souza Campos, ao comando da secretaria municipal de saúde, possibilitou a reorganização e ampliação da atenção em saúde, norteada pelos princípios e diretrizes do SUS, e na perspectiva da mudança do modelo assistencial e gerencial, bem como da redefinição do processo de trabalho em saúde e das relações das equipes com os usuários. Assim, a SMS instituiu o Projeto de Saúde Paidéia, que propôs conjugar os conceitos de saúde e cidadania e teve como eixo fundamental não o equipamento de saúde, mas a equipe local de referência às famílias adscritas em um determinado território3. Além disso, priorizou a responsabilização pelo cuidado e a ampliação da prática clínica de modo a abarcar a dimensão subjetiva e social dos processos de saúde e doença. Também procurou aumentar a capacidade da rede básica de resolver problemas de saúde por intermédio da ampliação das ações da saúde coletiva e da integração das ações de promoção, prevenção, cura e reabilitação (Campos, 2003). Dessa forma, foram implantadas, pela secretaria da saúde, equipes locais de referência – as equipes de saúde da família e núcleos de saúde coletiva – e as equipes matriciais. Tais equipes, constituídas como unidades de produção, partilhavam de objetivos comuns, além de deterem um poder gerencial próprio, isto é, tinham uma relativa autonomia para pensar e organizar o processo de trabalho e os projetos terapêuticos. Isso porque a gestão participativa reconhecia que era “no exercício da co-gestão que se irão construindo contratos e compromissos entre sujeitos envolvidos com o sistema” (Campos, 2003, p.165). O sistema de co-gestão era formado por espaços coletivos, como conselhos locais de saúde (coordenação, equipe e usuários), colegiados de gestão (equipe interdisciplinar), outros dispositivos (oficinas, assembléias com usuários, reuniões por categorias profissionais etc.) e gestão cotidiana democrática para análise de temas e tomadas de decisão envolvendo os interessados. Esses espaços coletivos operacionalizavam as diretrizes do governo, fortaleciam os sujeitos e produziam a democracia institucional, a partir da transformação das relações de dominação, criação de novos contratos, composição de consensos, alianças, e implantação de projetos. Enfim, conseguiram aumentar:
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a capacidade de análise e de intervenção dos agrupamentos humanos, melhorar a sua capacidade de reconhecer uma situação sanitária, de identificar os determinantes envolvidos e, apesar das dificuldades do contexto ou das pessoas, ampliar as possibilidades de intervenção sobre o quadro considerado nocivo. (Campos, 2000, p.1)
Para alcançar os efeitos apontados, a SMS - Campinas passou a realizar, com o apoio das universidades e dos Pólos de Capacitação de Saúde da Família, um processo de educação continuada com as equipes locais de referência e de apoio4, com objetivo de modificar o processo de trabalho nas Unidades Básicas de Saúde (UBS) e de ampliar a clínica. Nesse sentido, todos os trabalhadores da saúde foram capacitados para atuar de maneira mais acolhedora, humanizada e com responsabilidade. O modelo pedagógico adotado era o construtivo do conhecimento e de intervenção na realidade, com a articulação entre a informação, o texto, a análise e a práxis. Segundo Braga Campos (2001), a implantação do Programa de Saúde Paidéia constituiu também um desafio para a rede de atenção em saúde mental, uma vez que colocou as equipes de saúde mental das UBS, dos CAPS, Centros de Convivências e outros serviços em contato com uma demanda que não se enquadrava nas modalidades de atendimentos oferecidos pela rede. Os profissionais responsáveis pela saúde mental na rede básica passaram a compor as equipes de apoio matricial às equipes locais de referência do Programa de Saúde Paidéia, com a finalidade de: a) apoiar e acompanhar as equipes locais de referência; b) trocar conhecimentos e contribuir na formação de um raciocínio generalista e multidisciplinar por intermédio da discussão de casos em saúde mental; c) fornecer assistência especializada na perspectiva de uma clínica ampliada, desenvolvida em todo território geográfico, histórico, biográfico e subjetivo (SMS, 2001b). Para manter seu compromisso de responsabilização pelo usuário, ampliaram-se e consolidaram-se os serviços de atenção psicossocial e suas equipes multidisciplinares, de maneira a garantir a flexibilidade de ofertas necessárias ao tratamento mais eficaz e, portanto, romper com o sistema de serviços hierarquizados. Também foi iniciado e concluído o processo de fechamento do Hospital Psiquiátrico Tibiriçá, com realocação do recurso, tanto financeiro quanto humano, na própria rede substitutiva no município. De acordo com o Relatório de Gestão 2001-2004 da SMS, a rede substitutiva em saúde mental, existente nos cinco distritos do município, em 2004, era composta de: cinco Caps III, com oito leitos cada um; um Caps II; cinco Centros de Convivência e Cooperação; vinte Oficinas de Geração de Renda; 33 Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT). Campinas conta, ainda, com ações de emergência e primeiro atendimento no território em saúde mental realizadas pelo SAMU; Atenção à Dependência Química e Atenção à Criança e ao Adolescente (SMS, 2004). Essa experiência implantada em Campinas, de 2001 a 2004, durante o governo do Partido dos Trabalhadores, apontou alguns aspectos importantes para a construção do modelo de atenção psicossocial, de fato, substitutivo ao modelo psiquiátrico tradicional.
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4 Cf. a respeito: Moura et al., 2003.
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Considerações finais Todas as experiências descritas contribuíram muito para os avanços da reforma psiquiátrica brasileira. Em suas semelhanças e diferenças, essas experiências são compromissadas com a implantação e consolidação do SUS, mostrando, com isso, a viabilidade e importância do Sistema Único para a promoção de saúde e assistência de qualidade da população. Para isso, tiveram como eixo orientador a defesa e a qualidade de vida dos cidadãos, e não apenas a relação custo/benefício financeiro de serviços e ações. Cada experiência, à sua maneira, contribuiu para a nova legislação de saúde mental, construída a partir da década de 1990 para viabilizar a atenção psicossocial no SUS dos municípios brasileiros. Observou-se que seus resultados, associados às reflexões e propostas operadas pelo movimento da reforma psiquiátrica, possibilitaram sua visibilidade e disseminação entre os gestores, profissionais, usuários e a sociedade civil, bem como criou tensões nas esferas dos governos federal e estadual, no sentido de que eles não apenas cumprissem suas atribuições como partícipes do processo, mas também construíssem instrumentos técnico-operacionais que permitissem aos municípios implantar e implementar seus serviços de saúde mental. Em síntese, conforme indicado no decorrer do texto, tais práticas não apenas enfrentaram a implantação do “projeto neoliberal” no país, notadamente no que se refere ao crescimento do sistema privado de saúde e dos conflitos dele decorrentes, como também possibilitaram a configuração de um novo desenho da política de saúde e saúde mental. As experiências realizadas em São Paulo, pelos gestores dos níveis estadual e municipal, e a de Campinas, em seu primeiro momento, embora tenham retomado o modelo da reforma psiquiátrica centrado na atenção primária à saúde, sob orientação dos princípios do SUS e da Declaração de Caracas, reproduziram a lógica do modelo hierarquizado, mas também foram inovadoras. Os gestores assumiram, em relação à saúde mental, o desafio de não apenas avançar na humanização das relações entre sujeitos, sociedade e instituições psiquiátricas e na construção de novas tecnologias para a assistência na área, como também buscaram a construção de um outro lugar social para a loucura que não fosse o da anormalidade, da periculosidade, irresponsabilidade, incompetência, insensatez, do erro, defeito e da incapacidade, pois os objetivos estavam centrados na inclusão, na solidariedade e cidadania. A proposta de Santos continha maior ousadia e radicalidade. Ela propiciou o enfrentamento e confronto de forças (poder público x donos do hospital) por intermédio do processo de interdição no hospital psiquiátrico “Casa Anchieta”; produziu um rompimento mais efetivo com a lógica manicomial; garantiu a descentralização e intersetorialidade das ações na perspectiva uma rede de cuidado com recursos do território. No entanto, a ausência de movimentos sociais e, conseqüentemente, da organização da sociedade civil em defesa de políticas públicas voltadas para as necessidades e os interesses da maioria da população, anterior à gestão municipal de 1989, com certeza dificultou a defesa e manutenção das mudanças ocorridas na saúde e na saúde mental. A descontinuidade político-administrativa trouxe efeitos negativos também e, mais acentuadamente, para o município de São Paulo. O desmonte do Sistema de Saúde e da rede de atenção de saúde mental, construída na gestão de Luiza
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Erundina, promovido pelas gestões de Maluf/Pitta, conforme foi apontado anteriormente, provocou o caos e a desassistência, de difícil recuperação. Em Campinas, a situação foi diferente. Desde a década de 1980, o município assumiu a responsabilidade de construir um sistema integrado de saúde. No que se refere à saúde mental, com base na avaliação do trabalho desenvolvido na rede básica de saúde, integrou-se, de modo progressivo e nos vários níveis de complexidade, a assistência em saúde mental ao sistema geral de saúde. Assim, essa experiência, associada às parcerias das duas universidades e do movimento popular por saúde, permitiu a construção de um modelo assistencial “em defesa da vida”, voltado para a reorganização e ampliação da atenção em saúde, norteada pelos princípios e diretrizes do SUS e de um sistema de co-gestão formado por espaços coletivos em que se viabilizam as diretrizes do governo, fortalecem os sujeitos (gestores, trabalhadores e usuários), bem como permite a transformação das relações de dominação, criação de novos contratos, composição de consensos, alianças e implantação de projetos. Em síntese, pode-se concluir que, com o compromisso político dos gestores, a implicação das equipes dos serviços e organização dos usuários, é possível produzir a mudança do modelo de atenção em saúde mental. Por se tratar de uma mudança do modelo psiquiátrico em suas dimensões teórico-conceitual, técnico-assistencial, político-jurídico e sociocultural, pode-se afirmar que as experiências abordadas foram fundantes do processo de transição paradigmática ora em curso. Referências AMARANTE, P. O homem e a serpente: outras histórias para loucura e psiquiatria. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1996. AMARANTE, P.; TORRES, E. H. G. A constituição de novas práticas no campo da Atenção psicossocial: análise de dois projetos pioneiros na reforma psiquiátrica no Brasil. Saúde em Debate, v. 25, n.58, p.2634, 2001. AMARANTE, P. A (clínica) e a reforma psiquiátrica. In: ______. Archivos de saúde mental e atenção psicossocial 1. Rio de Janeiro: Nau, 2003. (Coleção Archivos) BRAGA CAMPOS, F. C. B. O modelo da reforma psiquiátrica brasileira e as modelagens de São Paulo, Campinas e Santos. 2000. Tese (Doutorado) – Faculdade Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas. BRAGA CAMPOS, F. C. Os desafios da gestão de redes de atenção em saúde mental para cuidar em liberdade. In: CONFERÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE MENTAL, 3., 2001. Brasília. Cadernos de texto...: Brasília: Ministério da Saúde, 2001. p.46-51. BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria nº. 224 de 29 de janeiro de 1992 – que estabelece diretrizes e normas para o atendimento ambulatorial e hospitalar em saúde mental. In: CONSELHO REGIONAL DE PSICOLOGIA – 6ª região/SP. Trancar não é tratar: liberdade: o melhor remédio. 2.ed. São Paulo: CRP/6ª, 1997. p.42-8. BRASIL. Presidência da República. Lei 10.216 de 6 de abril de 2001. Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental. In: CONFERÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE MENTAL, 3., 2001, Brasília. Caderno Informativo. Brasília: Ministério da Saúde, 2001. p.58-62. BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria nº. 336, de 19 de fevereiro de 2002. Estabelece as modalidades de serviços nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), definidas por ordem crescente de porte/complexidade e abrangência populacional. Brasília: Ministério da Saúde, 2002. Disponível em: <http://www.saude.gov.br/portarias/2002>. Acesso em: 21 out. 2002.
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LUZIO, C. A.; L’ABBATE, S. La reforma psiquiátrica brasileña: aspectos históricos y técnicoasistenciales de las experiencias de São Paulo, Santos y Campinas. Interface Comunic., Saúde, Educ. Educ., v.10, n.20, p.281-98, jul/dez 2006. El objetivo del presente artículo es abordar las experiencias desarrolladas, a partir de la década de 1980, en los municipios de São Paulo (capital), Santos y Campinas, para la comprensión de sus determinaciones materiales, sociales y políticas, del avance del proceso de ruptura con el modelo habitual de manicomio y la emergencia de fuerzas creativas y productivas necesarias para la construcción de la atención psicosocial en Salud Mental, así como para el conocimiento de la contribución del Sistema Único de Salud para el progreso de la reforma psiquiátrica en los municipios. La investigación que fundamenta este trabajo es parte de una tesis sobre la atención en salud mental, en la cual los proyectos innovadores de dichos municipios sirvieron de base y parámetro para el análisis de la política de Salud Mental en municipios de pequeño y mediano portes del estado de São Paulo. PALABRAS CLAVE: servicios de salud mental. salud mental. salud publica. Sistema Único de Salud (SUS). reforma en atención de la salud.
Recebido em 22/06/05. Aprovado em 16/11/05.
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A rreforma eforma psiquiátrica e os desafios na desinstitucionalização da loucur a loucura Alex Reinecke de Alverga 1 Magda Dimenstein2
ALVERGA, A. R.; DIMENSTEIN, M. Psychiatric reform and the challenges posed by deinstitutionalization. Educ., v.10, n.20, p.299-316, jul/dez 2006. Interface - Comunic., Saúde, Educ. The objective of this study is to discuss the one of the many challenges of the brazilian psychiatric reform process that seeks to construct an integrated mental health network for deinstitutionalized care, to take care of patients in community-based or family-based environments. It discusses certain aspects identified as “asylum desires” that influence the institutions and day-to-day practices and concepts related to mental health. We propose to examine some of these aspects of the Counseling and Psychological Services Center (“CAPS”), the institution that seeks to replace the institutional form of care, through observation of daily activities and photographic records. We hereby reiterate that the major challenge of the psychiatric reform does not lie solely on its slow-paced implementation, but also the direction it has taken. This reform requires an entire break-away and independent thought from the prior model, instead of a mere shift in attitude that continues conformance with what is apparently new and mechanisms that have maintained long-lasting dominance. KEY WORDS: mental health. mental health services. mental health assistance. health care reform.
O objetivo deste trabalho é discutir um dos muitos desafios presentes no processo de reforma psiquiátrica brasileira para a construção de uma rede integrada de atenção em Saúde Mental, para o cuidar em liberdade. Aborda determinadas forças identificadas como “desejos de manicômio”, que perpassam todo o socius e alimentam as instituições, que se fazem presentes cotidianamente nas práticas e concepções no campo da saúde mental. Para tanto, nos propusemos investigar certos aspectos presentes nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), serviços responsáveis pela substituição da atenção manicomial, privilegiando artefatos como a observação de seu cotidiano e seu acervo fotográfico. Discutimos que o principal desafio da reforma psiquiátrica não reside apenas na falta de velocidade na sua implementação, mas na direção que vem tomando. Este movimento, por sua vez, requer rupturas, radicalização, e não uma superação que acaba por promover pactos entre o aparentemente novo e aquilo que representa a manutenção de séculos de dominação. PALAVRAS-CHAVE: saúde mental. serviços de saúde mental. assistência em saúde mental. reforma dos serviços de saúde.
Doutorando em Psicologia Social, Universidade Federal do Rio Grande do Norte; Universidade Federal da Paraíba. <alexreinecke@terra.com.br>
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Coordenadora, Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Universidade Federal do Rio Grande do Norte. <magdad@uol.com.br>
1 Rua Joaquim Correia, 20095 Lagoa Nova - Natal, RN Brasil - 59.064-410
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Introdução A reforma psiquiátrica, apesar dos diversos avanços evidenciados tanto em nível local quanto nacional, ainda apresenta muitos desafios e impasses na gestão de uma rede de atenção em saúde mental para o cuidar em liberdade. Alguns desses pontos podem ser assinalados: a forma de alocação de recursos financeiros do SUS e suas repercussões no modelo assistencial proposto para os serviços substitutivos; aumento considerável da demanda em saúde mental (especialmente os casos de usuários de álcool e outras drogas, bem como de atenção para crianças e adolescentes); diminuição importante, mas ainda insuficiente, dos gastos com internação psiquiátrica (modelo hospitalar ainda dominante, o que reflete a política ideológica dos hospitais psiquiátricos), fragilidades em termos de abrangência, acessibilidade, diversificação das ações, qualificação do cuidado e da formação profissional, bem como um imaginário social calcado no preconceito/rejeição em relação à loucura. Entretanto, e não obstante toda problemática apresentada, pretendemos discutir o que consideramos o pilar central para a sustentação deste processo: a proposta de projetos terapêuticos ancorados na idéia de reinserção social, na busca da afirmação da autonomia e cidadania do louco. Nosso propósito é enfocar esse pilar da reforma, e muito embora cientes da importância fundamental da luta pelos direitos sociais, consideramos tal perspectiva insuficiente para os desafios impostos pela proposta da desinstitucionalização, posicionamento este que nos remete a uma crítica radical à própria constituição da modernidade3. Mais do que isso, estamos interessados – tal como indicado em trabalho anterior (Alverga & Dimenstein, 2005) –, em discutir os “desejos de manicômio”, chamando atenção para o fato de que os mesmos atravessam o tecido social, e, nesse sentido, constituem força motriz que alimenta as instituições4, que se fazem presentes cotidianamente nas práticas e concepções no campo da saúde mental. Por “desejos de manicômio”, estamos nos reportando à discussão de Machado & Lavrador (2001), que ressaltam: Eles (desejos de manicômio) se expressam através de um desejo em nós de dominar, de subjugar, de classificar, de hierarquizar, de oprimir e de controlar. Esses manicômios se fazem presentes em toda e qualquer forma de expressão que se sustente numa racionalidade carcerária, explicativa e despótica. Apontam para um endurecimento que aprisiona a experiência da loucura ao construir estereótipos para a figura do louco e para se lidar com ele. (p.46)
Desse modo, inquieta-nos o fato de que, uma vez capturados em algum nível por essa lógica manicomial, as equipes inseridas nos serviços de saúde mental podem, sem dar-se conta, reproduzir a institucionalização e, portanto, afirmar o manicômio, atendendo, assim, “aos interesses de sobrevivência dos hospitais psiquiátricos” (Barros, 2003, p.198). Partimos do princípio de que formas manicomiais de expressão ou de subjetividade permeiam todo o espaço-tempo, atravessam nossas ações. Isso quer dizer
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Não sendo possível uma apresentação detalhada da complexa e conturbada temática da crise da modernidade, para um maior aprofundamento desta temática, indicamos a leitura de Berman (2001), Santos (2001), Habermas (2000), Taylor (1997), que, sob angulações teóricas e objetivos muito distintos, realizam um rico debate sobre a constituição da modernidade e sua crise.
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Instituição, de acordo com Ardoino & Lourau (2003), é imaterial. Pode ser entendida como um dispositivo que atravessa a materialidade das organizações. “Ela se define, então, como o movimento pelo qual as forças sociais se materializam em formas sociais” (p.25). Tais dispositivos articulam forças que buscam a padronização e normalização (instituído), ou seja, a reprodução de modos de vida naturalizados, mas também constituem forças instituintes que rompem com a cristalização e inauguram novos processos.
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que elas envolvem todos nós, estão dentro e fora dos muros dos hospitais. Neste sentido, as novas modalidades terapêuticas, tais como os serviços substitutivos, não garantem por si só a superação desse desejo de exclusão e de exploração que carregamos. Nossa preocupação se sustenta no fato de que, segundo Baptista (2003, p.226): O uso de modelos fixados a duras identidades alheias ao cotidiano poderá fomentar, até mesmos nos profissionais empenhados na consolidação da reforma psiquiátrica, equívocos políticos que poderão traduzir a luta contra a lógica manicomial em um superficial deslocamento de território, isto é, uma transposição do manicômio para outros espaços destituídos de muros e de exclusão.
Assim, do ponto de vista metodológico, propomos a análise de algumas formulações teóricas presentes no campo da saúde mental sobre a reforma psiquiátrica, bem como uma elaboração cartográfica, ou seja, a produção de um olhar diferenciado sobre os fatos, atores e cenários das práticas psiquiátricas. Para Amarante (1995), a cartografia busca uma leitura transversal da relação entre os atores sociais imersos em uma rede de saberes/práticas/subjetividades, com o intuito de superar leituras que versam sobre a definição causas/ causadores, vítimas/algozes. Esclarecemos que nossa análise não pode ser entendida como uma avaliação de processos locais, próprios ao funcionamento das instituições presentes na cidade de Natal, capital do Rio Grande do Norte e palco de nossa investigação. Na verdade, trata-se de uma reflexão que transcende a cena local para visualizar os contornos de uma problemática posta em emergência pelo próprio paradigma da modernidade. Para tanto, foi feita uma tentativa de subverter a micropolítica do sentido das cadeias semióticas, pensar fora das redes de linguagem, sair do mundo da representação, transformando a constelação de registros de referência disponíveis (Guattari, 2000). Tal perspectiva está norteada pela idéia de que é preciso ir aquém da linguagem, ir nesses registros, nessas zonas onde experimentamos intensidades comunicantes, onde se engendram processos, sejam minoritários ou não, pois o que interessa é exatamente aquilo que se revela de forma naturalizada, mas também o que escapa ao discurso da racionalidade dominante. Seguindo tal inspiração teórico-metodológica, nos propusemos a investigar aspectos presentes no cotidiano dos novos serviços de atenção à saúde mental (CAPS), responsáveis pela substituição da atenção manicomial, privilegiando artefatos como: a observação de seu cotidiano e seu acervo fotográfico. Estávamos interessados em captar, especialmente, os “desejos de manicômio”, já referidos anteriormente como aqueles que habitam usuários, familiares, técnicos, enfim, a sociedade como um todo. Inspirados em Bittencourt (1994), concebemos que, para a consecução de tal intento, necessitávamos lançar mão de dispositivos metodológicos que tinham como foco as linhas que constituem tais desejos. Ao longo do texto, apresentaremos algumas cenas do cotidiano dos serviços, bem como imagens, fragmentos, cenas, flagrantes que expressam, em alguma medida, as engrenagens que mantêm o manicômio vivo.
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De loucos faltantes a cidadãos normais: modos de subjetivação nas políticas de reabilitação e reinserção social todo mundo tem direito à igualdade quando a diferença discrimina, e todo mundo tem direito à diferença quando a igualdade descaracteriza (Santos, 1999, p.62)
Nos últimos anos, a política nacional de saúde mental tem sido orientada5, tal como enfatiza Paiva (2003), na seguinte direção: Trabalha-se com a defesa da reforma psiquiátrica, por ela ser imbuída dos ideais de uma sociedade realmente igualitária e humana, primando pela reinserção social dos excluídos, como são os loucos, baseando-se nos princípios de liberdade, igualdade e fraternidade. Enfim, por uma sociedade livre da opressão, preconceito e ignorância. (p.22)
Observamos, em todo o território nacional, que as mobilizações sociais no campo da saúde mental são guiadas politicamente por uma luta de resgate da cidadania e dos direitos humanos, especialmente por meio das práticas de reabilitação psicossocial. Parte-se do pressuposto de que a operação reabilitadora logrará restituir a cidadania plena a esses que foram excluídos desse direito, desprezando um “paradoxo estrutural”, como revela Birman (1992, p.73): Portanto, não se trata do não-reconhecimento da condição de cidadania dos enfermos mentais de um simples desvio de rota operando sobre um fundo reconhecido de positividade dos seus legítimos direitos sociais, mas de uma positividade que nunca existiu de fato e de direito, sendo esta atribuição de positividade uma ilusão constitutiva da psiquiatria como saber no nosso imaginário. Enfim, a exclusão social da figura da doença mental da condição de cidadania estabeleceu-se estruturalmente na tradição cultural e histórica do Ocidente quando, num lance decisivo, o campo da loucura foi transformado no campo da enfermidade mental, na aurora do século XIX.
Acreditamos que é limitada a luta pela reforma psiquiátrica calcada na perspectiva da reinserção social, busca pela reafirmação dos ideais modernos de liberdade, igualdade e fraternidade, sem uma crítica (ruptura) radical aos fundamentos de um processo societal que se desenvolveu ancorado na rejeição de tudo o que não se identificava com a racionalização da vida cotidiana. Notamos, pois, que a perspectiva de reforma psiquiátrica ancorada no paradigma da reabilitação psicossocial permanece refém do exercício de uma consciência cidadã, perspectiva limitante do que vem a ser a proposta de desinstitucionalização da lógica manicomial que sustenta saberes e práticas cronificadoras e de subjugação de uns pelos outros. Perguntamonos: quem, inserido no cotidiano da saúde mental, não carrega, pelo menos
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5 Tal perspectiva constitui o eixo do que vem a ser o modelo de atenção psicossocial, novo paradigma norteador do processo de reforma psiquiátrica, o qual se propõe a substituir o modelo manicomial. Entretanto, isso não quer dizer que há uma adesão unânime a tal princípio por todas as gestões municipais e/ ou esferas de governo.
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no âmbito de um discurso racional, a desinstitucionalização como referência? Que técnico ou usuário não tem esse princípio como eixo de suas reinvindicações? Mas, a perspectiva da ressocialização ou reabilitação alcança o que a desinstitucionalização aponta? Ou a idéia de reabilitação traz em si concepções ligadas à institucionalização da loucura, à norma, à razão, ao sujeito autônomo, à identidade e cidadania, enfim, promessas lançadas na constituição das sociedades modernas que destoam do desinstitucionalizar? Ancoramo-nos em Santos (2001) para pensar a reforma psiquiátrica como um movimento social mais amplo onde “as formas de opressão e de exclusão contra as quais lutam não podem, em geral, ser abolidas com a mera concessão de direitos, como é típico da cidadania, mas exigem uma reconversão global dos processos de socialização” (p.261). Portanto, é um processo de desinstitucionalização do social, do nosso apego às formas de vida institucionalizadas, onde é preciso produzir um olhar que abandona o modo de ver próprio da razão, abrir uma via de acesso à escuta qualificada da desrazão, e considerar outras rotas possíveis que possam não apenas lutar contra a sujeição fundante da sociabilidade capitalista, mas também instigar a desconstrução cotidiana e interminável das relações de dominação. Assim, distintamente de uma reinserção social – que implica, quase sempre, a culpabilização do indivíduo colocado à margem, bem como uma avaliação da falta de adequação social e necessária adaptação ao que lhe marginalizou –, sabe-se que a reforma deve buscar a emancipação, não meramente política, mas, antes de tudo, uma emancipação pessoal, social e cultural, que permita, dentre outras coisas, o não-enclausuramento de tantas formas de existência banidas do convívio social; que passe a encampar todas as esferas e espaços sociais; que permita um olhar mais complexo que o generalizante olhar do igualitarismo; e busque a convivência tolerante com a diferença. Consideramos que viabilizar a perspectiva acima referida ainda representa um imenso desafio no cotidiano das práticas institucionais e da sociedade em geral, uma vez que processos contraditórios são postos em movimento simultaneamente. Neste sentido, está claro que pensar a luta antimanicomial sem levar em conta que, nessa relação capital/subjetivação, “o desejo investe contra si mesmo e a favor do fortalecimento do status quo” (Rolnik, 1989, p.117); que há movimento de captura dos afectos e conseqüente diminuição da capacidade de afetar e ser afetado; que há perda de potência e de produção de real social, implica desconhecer os processos de produção de subjetividade na contemporaneidade, que tanto podem estar marcados predominantemente por essa desvitalização ou “esterilização de sua potência criadora” (Rolnik, 1989, p.118), quanto podem inaugurar agenciamentos, rupturas, mutações, devires, não mais a serviço da conservação. Esse movimento de forças se materializa em cenas de eventos de luta local.
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Esta imagem, em nossa perspectiva, registra um paradoxo, a manifestação de forças antagônicas apresentadas em dois planos distintos: o primeiro deles, representado pela faixa, e o segundo, pela corda de contenção. Observamos que há uma força discursiva imbuída dos ideais da reforma psiquiátrica na crítica ao preconceito e valorização social da loucura, bem como a movimentação no espaço público como estratégia de ocupação do território físico e existencial da cidade. Dessa perspectiva, observa-se o movimento de forças instituintes circulando, buscando romper com a racionalidade da lógica manicomial, revitalizando o cotidiano de usuários no espaço urbano, fazendo a cidade e seus moradores experimentarem inquietações, mal-estar, o novo. Por outro lado, identificamos um movimento quase invisível coexistindo e expressando a manutenção de elementos que historicamente caracterizam o dispositivo psiquiátrico, evidenciados na corda, na contenção, no isolamento, no ordenamento, na massificação, no controle, na segregação dos loucos e dos “normais”. Observando a fotografia a seguir, chama atenção o olhar dirigido à corda por esse participante de uma das atividades festivas realizadas pelo movimento reformista local. Tomamos a liberdade de fazer algumas especulações a respeito das questões que parecem estar mobilizando tal sujeito, refletidas em um semblante pensativo. Que limites (cordas) são esses que instituem um lugar social demarcado para a diferença? Que forças (braço do segurança) sociais sustentam essa demarcação? Que dispositivos e estratégias de controle estão presentes nos espaços urbanos voltados para o esmagamento uniformizador da vida? O que faz com que essas imposições sejam naturalizadas e mantenham a crença na desconstrução, mesmo quando esta apresenta fortes feições reativas? Por que a loucura apenas encontra caminhos para sua afirmação em uma rota caricaturada, carnavalizada, impregnada pela ditadura da felicidade? Seriam essas questões suficientes para expressar o que esse olhar indica? Certamente não, para quem vive essa condição. Entretanto, observamos que o manicômio persiste, que viver fora dele ultrapassa o geográfico e o visível, que a exclusão não é característica fundamental definidora do manicômio, já que se mantém grudada ao corpo, dentro da alma (Baptista, 2001). A perspectiva desconstrucionista, apresentada pelo filósofo Jacques Derrida, serve para guiar a execução da reforma psiquiátrica em sua radicalidade, ultrapassando os limites impostos a perspectivas como a reinserção social, reabilitação, dentre outras, uma vez que partimos do entendimento de que a desinstitucionalização necessita da desconstrução das relações sociais calcadas no paradigma racionalista problema-solução, processo que atribui nexo causal
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entre o diagnóstico e prognóstico, entre doença e cura, exclusão e reinserção. Portanto, desconstruir práticas e discursos que naturalizam e reduzem a loucura à doença mental. Trata-se de indagar que forças operam no campo da saúde mental e problematizar os modos de subjetivação presentes na contemporaneidade, destacando a relevância das intervenções no plano micropolítico, que, segundo Baptista (1999), é um campo de forças onde é possível “explicitar e interpelar os possíveis manicômios invisíveis incrustados nas práticas sociais, no dia-a-dia, nos modos de funcionamento do pensar” (p.116). Atravessamentos que incidem sobre modos contemporâneos de existência Como podemos separar o conceito de espaço dos mecanismos de controle? Os gângsters do território, as Nações/Estados, tomaram o mapa inteiro. Quem pode inventar pra nós uma cartografia da autonomia, quem pode desenhar um mapa que inclua nossos desejos? (Bey, 2003, p.85)
Para discutir a produção de modos de existência, formas de estar no mundo, partimos da concepção de que a ordem “capitalística” incide nos esquemas de ação, nos gestos, nos sentimentos, nos afetos, dentre outros aspectos. Guattari (1990) nos define o que aqui estamos considerando por ordem capitalística, ao tratar da emergência do capitalismo pós-industrial, preferindo a designação de Capitalismo Mundial Integrado (CMI). Guattari (1990) argumenta que o CMI Tende, cada vez mais, a descentrar seus focos de poder das estruturas de produção de bens e de serviços para estruturas produtoras de signos, de sintaxe e de subjetividade, por intermédio, especialmente, do controle que exerce sobre a mídia, a publicidade, as sondagens etc. (p.31)
Por conseguinte, a ordem capitalística incide na nossa percepção, em nossa memorização e produz os modos das relações humanas até inconscientemente, ou seja, os modos como se trabalha, se ama, se fala. Tal ordem fabrica a relação do homem consigo mesmo e com o mundo; e o que faz a força dessa subjetividade capitalística, que resulta na produção de uma subjetividade manicomial, é que ela se produz e atravessa tanto “opressores” quanto “oprimidos”, tanto “dominantes” quanto “dominados”, e nos leva, na maioria das vezes, a estabelecer uma adesão a essas forças de dominação. Tal produção subjetiva é o que nos permite compreender que uma mesma cena social, tal como expressa nas fotos anteriormente apresentadas, traga elementos para uma radicalização da diferença por meio de uma desconstrução ativa dos preconceitos que baniam a loucura da circulação social, mas também apresente outros aspectos que atualizam os “desejos de manicômio” que alimentam clausuras existenciais. Destarte, necessário se faz destacar que, embora munida das melhores
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das intenções, a desinstitucionalização pode travestir-se de uma desconstrução reativa, como no caso dos Estados Unidos, em que o manicômio obteve a necessidade da sua presença confirmada. As palavras de Doel (2001) parecem nos alertar para esta questão: “... desconstruir, desmantelar ou destruir pode apenas, e sempre, ser uma catástrofe simulada, na medida em que seu único efeito discernível consiste em fornecer os recursos necessários exigidos para uma re-construção” (p. 95). Ainda sobre a desconstrução, Amarante (1994) apresenta o seguinte argumento derridiano: É um gesto a um só tempo estruturalista e antiestruturalista: desmonta-se uma edificação, um artefato, para fazer aparecer as estruturas, as nervuras ou o esqueleto (...). A desconstrução enquanto tal não se reduz a um método (redução ao simples) nem a uma análise; ela vai além da decisão crítica da própria idéia de crítica. É por isso que não é negativa, ainda que muitas vezes, apesar de tantas preocupações, a tenha interpretado assim. Para mim, ela acompanha sempre uma exigência afirmativa; diria até que ela não acontece jamais sem amor. (Derrida, 1990, citado por Amarante, 1994, p.44)
Portanto, acreditamos que a desconstrução pode ser responsável por potencializar a loucura como diferença, com base na recusa das violentas técnicas psiquiátricas que se desenvolveram com uma função social de varrer formas de existência disruptivas, seja enquanto uma realidade material, como a reforma psiquiátrica norte-americana, seja de uma maneira mais sutil, num plano conceitual, como no trabalho da dialética hegeliana, na sua falsa imagem da diferença, como nos apresenta Peters (2000), retomando a argumentação deleuziana que serviu de base para uma formulação radicalmente crítica ao paradigma da modernidade, a filosofia da diferença: A dialética hegeliana consiste, na verdade, em uma reflexão sobre a diferença, mas de imagem invertida. No lugar da afirmação da diferença como tal, ela coloca a negação daquilo em relação ao qual difere; no lugar da afirmação do eu, ela coloca a negação do outro; e no lugar da afirmação da afirmação, ela coloca a famosa negação da negação. (Deleuze, 1983, citado por Peters, 2000, p.34)
Estas questões confirmam ser a reforma psiquiátrica a construção de um novo lugar sociopolítico-conceitual-cultural para a loucura, de novas formas de lidar com a diferença, como defendem Amarante (1994) e outros autores. Do confinamento ao controle: os desafios dos serviços territoriais para a desinstitucionalização da loucura A próxima fotografia representa um retorno para aquilo que, como referido no início do trabalho, de certa maneira, motivou a realização de nossa investigação. Por muito pouco, se não fosse um profundo incômodo instalado e sistematicamente traduzido em questionamentos sobre a realidade da reforma psiquiátrica, este trabalho não seria possível: estivemos sempre conduzindo a
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pesquisa em uma corda bamba, ou conforme as palavras utilizadas por Pelbart (2000), na vertigem por um fio. Após uma trajetória que buscou ajustar o foco para uma analítica que visualizasse aquilo que os outros estudos não discutiam, afirmamos que esta fotografia pode indicar o cerne da problemática da reforma psiquiátrica com apenas duas palavras: confinamento e controle. Mas como essas palavras se relacionam com os desafios da reforma psiquiátrica?
Em sua obra “Conversações”, Deleuze (1992) afirma que estamos passando da sociedade disciplinar, descrita por Foucault, para uma sociedade de controle. As sociedades disciplinares atuam basicamente pelas instituições de confinamento, como: família, escola, hospital, prisão, fábrica. No entanto, depois da Segunda Guerra Mundial, essas instituições entram em crise e desmoronam os seus muros. Assim, a família nuclear burguesa pulveriza-se; a escola entra em colapso; o manicômio vira hospital-dia; a fábrica se atomiza na acumulação flexível; mas, por mais paradoxal que possa parecer, a lógica de controle se generaliza. Dessa maneira, o controle social prescinde das instituições disciplinares e sua decorrente necessidade de confinamento para assumir modalidades mais fluídas, flexíveis, tentaculares, deslizantes (Pelbart, 1997). Acreditamos que a fotografia acima desperta para essa discussão. Nesta perspectiva, a lógica restrita às instituições disciplinares, visando à produção de modelos fixos e circuitos rígidos, cede lugar a uma sociedade de controle com redes moduláveis, abarcando todo o campo social: a vida torna-se uma prisão a céu aberto. Que ordem de questões tal fotografia mobiliza? Não parece depor a favor da idéia desta transição do confinamento dos muros ao controle a céu aberto? Desta maneira, Pelbart (1997) resgata mais uma vez Deleuze ao comentar que a contemporaneidade operou uma diluição das fronteiras entre as instituições, criando para cada uma delas uma extensão ilimitada, irreconhecível, que nunca é inteiramente abandonada, fazendo do sujeito não mais um ser confinado, mas endividado. Assim, não existe mais escola, e sim processo de educação permanente, sendo a própria vida uma incessante e grandiosa escola; não existe mais produção restrita à fábrica, mas trabalha-se em casa; e assim por diante: não existe mais lazer apenas nos espaços de lazer, consumo apenas nos locais de
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consumo. Portanto, quando as fronteiras dos espaços são borradas, tudo vira escola, tudo vira empresa etc. É o processo societal vigente reeditando a vocação de que tudo tende ao maximalismo no paradigma da modernidade. Assim, não existiria apenas o manicômio, embora ainda atuante, mas nesta lógica, surgiria o “Manicômio Mental”, a outra face da clausura (Pelbart, 1990). Para abordar tais aspectos, focalizamos o cotidiano de um serviço substitutivo. Trabalharemos três situações. A primeira que destacamos é a rotina de ingresso de um novo usuário nesses serviços, as atividades de triagem que realizam, por meio de uma entrevista, para o estabelecimento do primeiro vínculo com a instituição. Essa entrevista ocorre com a participação de dois profissionais de qualquer formação, que buscam colher informações sobre a história pessoal e familiar dos usuários, histórico do transtorno mental, dentre outros aspectos. Neste sentido, busca-se “identificar se este apresenta um perfil compatível com os da demanda no NAPS [atualmente CAPS], que priorizam problemas psicóticos e neuroses graves...” (Crives, 2003, p.99100). Desta maneira, chama-nos atenção que, já na primeira atividade do CAPS em relação à chegada do usuário à instituição, o ingresso está condicionado à adequação a um espectro nosológico específico, além do que, ultrapassando essa primeira seleção, o usuário enfrenta uma “lista de espera”, por conta da dificuldade de acolher o contingente da demanda, maior que a capacidade do serviço. Neste sentido, além da denúncia de um dos mais graves problemas da Saúde Pública, a questão da acessibilidade, informa-nos Paiva (2003) que a admissão e as altas desses serviços têm diminuído a cada ano. Além disso, essa demanda reprimida pelo CAPS representa uma proporção equivalente a 44% do total de usuários atendidos, segundo a lista de espera dos serviços consultados. Com base nesses dados, Paiva (2003) indica a possibilidade dos CAPS estarem realizando uma nova modalidade de cronificação, problema já alertado por Amarante (2003), uma vez que os usuários não dispõem de outros serviços de base comunitária. A segunda atividade que caracteriza a chegada de um novo usuário ao CAPS é a elaboração de um projeto terapêutico individualizado. Para tratar dessa etapa, lembramos de uma situação ocorrida durante a visita a um dos CAPS. Um dos pesquisadores encontrava-se bastante empolgado com a maneira diferenciada com que as pessoas participavam na definição de seu projeto terapêutico, aliás, o próprio fato de cada pessoa atendida pela instituição possuir um projeto específico já apontava para uma transformação em relação à massificante realidade manicomial, em um sentido próximo, talvez, daquilo que Crives (2003) denominava, em sua investigação sobre a realidade local, de inovações desse serviço. No entanto, a conversa com alguns usuários do CAPS acrescentava novas dúvidas em relação à direção que essa inovação tomava. Ficava-se bastante intrigado com a maneira como eles respondiam à simples pergunta: “Qual o seu nome?” A resposta apresentava-se muito mais longa que a solicitação e várias referências de pertencimento eram acrescentadas ao que se supunha simples pergunta. Assim, muitas foram as respostas neste sentido, por exemplo: “O meu nome é João da Silva, usuário do CAPS há cinco anos, 36 anos, morador do bairro de Cidade Nova, desempregado, estou aqui porque
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6 As características aqui apresentadas são fictícias para salvaguardar a real identidade dos usuários. No entanto, para a construção desta ilustração, buscou-se respeitar o que seria o perfil predominante de usuários que se encontravam no CAPS, segundo a pesquisa de Paiva (2003). Assim, segundo essa pesquisa, os CAPS de Natal teriam a seguinte caracterização: em relação ao gênero, 54% masculinos e 46% feminino; quanto à faixa etária, 50% estão entre 31 e 40 anos; no que diz respeito ao distrito sanitário de origem, dos quatro existentes no município, 40% são oriundos do distrito sanitário oeste; quanto à ocupação, 66% são desempregados; a categoria diagnóstica predominante é de esquizofrenia.
tenho esquizofrenia6...”. Desta maneira, indagávamos sobre o que parecia depor a favor de uma nova institucionalização, construção de referências massificadas em substituição às manicomiais; enfim, que inovação seria essa? Em contraposição à anterior massificação manicomial, seria agora necessário estabelecer uma identidade própria, mesmo apresentando referências outras? Seria possível escapar da institucionalização sem que isto incorra em uma massificação que nos descaracterize? A segunda situação para a qual chamamos atenção diz respeito a uma dimensão presente na equipe de um dos serviços investigados. No processo de busca para estabelecer uma certa familiaridade com os hábitos da instituição, participávamos diariamente de sua dinâmica. O fato em questão ocorreu logo na primeira semana dos quarenta dias que passaríamos por lá, momento em que almoçamos pela primeira vez no CAPS. O ponto que chamou atenção foi a dinâmica do refeitório. Embora todos estivessem comendo no mesmo cômodo, reparamos que existia uma mesa específica para os profissionais da instituição. Essa divisão não acontecia de maneira explícita, mas o fato de termos sentado junto aos usuários logo motivou o seguinte comentário de uma colega de profissão: “venha sentar aqui conosco, tem um lugar pra você aqui na mesa dos técnicos.” Nesse momento, percebemos que a ciência e a conseqüente barreira entre razão e loucura precisavam se alimentar. No entanto, a situação que mais marcou esses primeiros dias na instituição ocorreria logo após o almoço. Na busca de conhecer mais a rotina do serviço, notamos que os usuários se encaminhavam para uma pia próxima à cozinha para lavar os seus talheres, pratos e copos. Fizemos o mesmo e, ao chegar nossa vez de limpar o que havíamos sujado, fomos “salvos” mais uma vez por tal colega: “você não precisa lavar nada, venha comigo que te mostro onde colocar suas coisas”. Um tanto acanhados, mas de garfo e faca em punho, fomos levados até uma parte do serviço que ainda não conhecíamos: a cozinha. Lá chegando, nos deparamos com uma pessoa de avental, que, com uma cara bastante assustada, caminhou cautelosamente em nossa direção dizendo, com uma voz trêmula: “Você não pode entrar aqui, aqui é só para os técnicos, volte lá ...” A advertência da pessoa responsável pela cozinha foi interrompida pela sempre alerta colega que vinha logo atrás dizendo: “Não se preocupe, ele também é técnico!”. Imediatamente, percebemos toda a história do enclausuramento da loucura sendo reeditada, lançando mais uma vez aquilo que a modernidade tinha produzido enquanto uma promessa da salvação da humanidade perante a emergência de um sujeito razoável e autônomo: um técnico. Estranhamente, na mesma hora, não representávamos mais uma ameaça: “Me desculpe, deixe suas coisas aí que eu lavo pra você, estava gostoso o almoço? Você quer mais um pouco?”. Estando de faca em punho, foi aquela senhora que visivelmente amolou uma arma branca, uma daquelas que são responsáveis por assassinatos microscópicos, facas que rasgam o tecido social para se proteger contra a periculosidade atribuída à figura do louco por séculos de aliança entre a justiça e psiquiatria. Dessa maneira, passamos a focalizar os territórios existenciais das interações que ali se faziam no CAPS, nas minúcias do cotidiano.
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Em aprofundamento ao que estávamos buscando, tratamos de realizar outro ajustamento em nosso foco analítico e encontramos, dessa vez na obra de Pelbart (1997), os elementos para pensarmos a cidade sob uma ótica pouco convencional, relacionando-a com a produção de subjetividade, ou seja, a cidade enquanto um subterrâneo da memória e do desejo. Assim, partindo de uma das principais obras do movimento surrealista, “O Camponês de Paris”, de Louis Aragon, Pelbart nos relata que a cidade pode ser descrita como um “reservatório inesgotável de detalhes, associações, surpresas, personagens, um campo de deambulação e de errância” (Pelbart, 1997, p.43). Dessa maneira, trata-se não unicamente de uma descrição de uma cidade, mas segundo Jeanne Marie, que realiza o prefácio da obra de Aragon, representa uma metáfora para o pensamento, ou seja, “perder-se na cidade, perder as referências, perder-se a si mesmo, eis o que o pensamento deveria poder aprender” (Pelbart, 1997, p.43). Deste modo, ao caminhar pelas cidades, não estaríamos apenas transitando por uma realidade concreta e palpável, mas por várias camadas superpostas, rastros e ruínas. Em outras palavras, a cidade remete sempre a um passado com todos os futuros que foram soterrados, como nos informam Pelbart (1997) e a foto anteriormente apresentada: Conforme as belas análises de Walter Benjamim, se o homem habita uma cidade real, ele é, ao mesmo tempo, habitado por uma cidade de sonho. A realidade onírica remete aqui ao sonho coletivo, ao sonho do coletivo, ao desejo do corpo coletivo, suas utopias e esperanças abortadas, as miragens e fantasmagorias que o assediam. Os trajetos reais dos personagens na cidade remetem aos trajetos do sonho do coletivo, como se houvesse duas cidades superpostas, uma real, outra imaginária, e a apologia de um trânsito metódico entre elas. (Pelbart, 1997, p.43)
A partir de então, consideramos importante realizar a articulação da idéia de serviços territoriais (CAPS) com a concepção de cidades subjetivas, proposta por Guattari (2000), as quais “engajam tanto os níveis mais singulares da pessoa quanto os níveis mais coletivos” (p.170). Assim, as cidades são pensadas como imensas máquinas produtoras de subjetividade, por meio de equipamentos materiais e imateriais. Os CAPS são cidades subjetivas que fazem parte do socius, que “em toda a sua complexidade, exige ser re-singularizado, re-trabalhado, re-experimentado” (p.176). No entanto, faz-se necessário ressaltar que esse exercício de pensamento errante não corresponde a uma dimensão ilusória ou abstrata, como indica Pelbart (1997, p.44): ... [o que] o pensamento persegue no seu exercício errante não é mais subjetivo do que aquilo que se vê, embora abra o campo da nossa subjetividade, nem é mais ausente do que aquilo que está dado, mesmo sendo invisível, nem é mais imaginário do que aquilo que se toca, conquanto impalpável. Enfim, essa dimensão não é menos operativa do que a concretude que se cruza – ela é apenas mais molecular.
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Esse debate nos aproxima, então, da terceira situação focada neste trabalho: o projeto Loko.Motiva. Crives (2003) informa o contexto da formação e dos objetivos do projeto, que iniciou em maio de 2000 na capital potiguar: Assim, a inexistência de uma rede de serviços em saúde mental, inserida no contexto do SUS em Natal, tem sido motivo de muitas inquietações das próprias equipes dos NAPS [atualmente CAPS]. Não existe uma “rede”, no sentido de serviços de complexidades e objetivos diferentes, mas complementares e integrados. O que temos, é um pequeno conjunto de unidades pouco articuladas, cujo ponto comum de maior contato é o projeto do movimento e a coordenação central. Dessa forma, os profissionais destas equipes se encontravam muito preocupados e angustiados com a falta de espaços para além do NAPS, que contribuísse com o processo de reabilitação e inclusão social do portador de transtorno mental. Foi nesse contexto que surgiu, em 2000, a idéia do Projeto Loko.Motiva que, através da expressão artística e da convivência social, pretendia contribuir para romper com o estigma e o preconceito com a loucura a partir de um trabalho no interior dos serviços de saúde mental da SMS SMS. Nesse sentido, este projeto procura ampliar os espaços de convivência, diversificando as trocas entre os usuários e a sociedade e discute a cidadania do portador de transtorno mental. (Crives, 2003, p.86-7) (grifos nossos)
Chamamos atenção para a contradição presente na argumentação acima destacada, pois mesmo aquilo que se pretende realizar para ampliar a rede é materializado fisicamente dentro dos próprios serviços. Apesar de ser concebido como “um espaço de convivência, criação e produção... como um recurso terapêutico que permite a passagem da loucura para o campo sociocultural da cidade” (SMS, 2000, s/p), as atividades desenvolvidas pelo projeto ocorriam no interior dos serviços, por meio de oficinas de pinturas em telas e camisetas, confecções de cartões, coral etc., de forma que a concepção inicial de funcionar como um centro de convivência e produção voltado para a cidade nunca aconteceu. Alguns dos impasses para a operacionalização do projeto são assim descritos por Crives (2003): falta de profissionais e recursos financeiros para gratificá-los; falta ou insuficiência de matéria-prima e material de consumo; e dificuldades na coordenação do projeto. Acreditamos que, embora os dois primeiros aspectos levantados sejam um forte condicionante para a falta de continuidade do projeto, vamos nos ater no que a referida autora classificou como dificuldades de coordenação do projeto. No entanto, ampliaremos a sua definição para o entendimento de que esta problemática diz respeito às concepções subjacentes às práticas profissionais. É importante pensar nos sentidos assumidos pelo projeto Loko.Motiva, pois as suas atividades ocorriam basicamente por meio da rotina de oficinas terapêuticas no interior dos serviços. Esta modalidade de tratamento (oficinas terapêuticas) é uma das principais ferramentas na lida diária do usuário com o seu sofrimento. No entanto, quando participamos de uma
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dessas oficinas, um primeiro questionamento surgiu: o que está sendo concebido por arte? Seria uma instância de criação ou adequação aos padrões estéticos comerciáveis? Do que estamos tratando quando dizemos que os usuários estão produzindo? Que foram reinseridos na norma produtiva, na mesma norma que é responsável por sua alienação e a produção de sua anormalidade? Algumas perguntas ficaram sem resposta. Percebeu-se que as oficinas de teatro, pintura e desenho, jornal, escrita aconteciam com a participação voluntária dos usuários e eram encorajados a participar, sobretudo, aqueles que tinham mais dificuldade de expressar seus sentimentos e encontravam na arte um plano de expressão mais amplo e livre que a verbalização. Desse modo, presenciamos ricos momentos em experiências criativas que favoreciam o reconhecimento de singularidades em situação de sofrimento, situação que era enfrentada na coletividade da oficina. Porém, mais uma vez atentos aos fatores que contribuíam para o entrave do processo criativo, percebíamos a dificuldade em manter o material necessário para o andamento das atividades, tanto no nível de insumos (tinta, lápis de cor, papel, telas etc.) quanto do ponto de vista dos recursos humanos, notadamente os profissionais ligados à arteterapia, à música, processo descrito na investigação de Crives (2003). Ao questionarmos o porquê dessas dificuldades, encontramos um bom esclarecimento na resposta da coordenadora de um dos CAPS. Dizia ela que a Secretaria Municipal de Saúde só entendia que era necessário remédio, não sabia como eram necessários tantos papéis, tintas e outras coisas desta natureza para um serviço de saúde. A mesma lógica se dava em relação ao pagamento dos profissionais voltados para as atividades artísticas, que possuíam um frágil vínculo, não formalizado pela mesma concepção de saúde que era ancorada na atuação de profissionais do espectro médico-curativo. Entretanto, para além dessas dificuldades materiais, percebemos um entrave no plano da concepção daquelas atividades, como expresso por Crives (2003, p.103): A Oficina de Artes estimula a possibilidade que os usuários expressem seus sentimentos, emoções e sua forma de perceber a vida, através de suas potencialidades criativas que se materializam na atividade plástica. O principal objetivo dessa oficina é propiciar forças sociais e interação entre os usuários, embora a questão da beleza estética seja observada, respeitando-se os limites de cada um deles no processo terapêutico. (grifos nossos)
Mais adiante, a pesquisadora prossegue avaliando as oficinas: O resultado do trabalho produzido em algumas destas oficinas, como quadros pintados com diferentes técnicas, poesias, camisetas, entre outros, são apresentados em exposições, feiras e outros espaços de circulação de mercadorias e de produção artístico-culturais, onde se espera que sejam vistos e, eventualmente, comprados pelos visitantes. Esses produtos das oficinas não são expostos como trabalho do “coitadinho”, mas como frutos das atividades de pessoas capazes de se expressarem artisticamente a partir de seus sentimentos e emoções, muitas vezes com qualidade estética. (Crives, 2003, p.104-05) (grifos nossos)
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Dessa maneira, concebíamos que o posicionamento da autora revelava a concepção que animava as oficinas. Tratava-se de uma ditadura do belo, de uma clausura evidenciada por juízos estéticos que desprezavam o caráter de singularização e o potencial de criação e subversão da arte, sobretudo naquilo que nos ensinou o espanhol Pablo Picasso, ao declarar o seu ponto de vista a respeito de movimento surrealista: “O belo não me interessa”. No entanto, o belo ainda apresentava-se como a medida das ações nas oficinas terapêuticas, e assim nos perguntávamos: como pode a vida se expressar em toda a sua potência sob o crivo da clausura do belo? Além disso, como poderia a arte escapar dos condicionantes impostos pela aspiração de se tornar mercadoria a ser consumida pelo olhar estrangeiro a procura do exotismo? Este último questionamento é bastante pertinente, se levarmos em consideração a vocação turística exercida pela capital potiguar, sobretudo nas duas últimas décadas. Considerações finais Esses foram alguns aspectos do complexo e rico cotidiano de serviços substitutivos em saúde mental que elegemos para discutir os atravessamentos e desafios impostos ao processo de reforma psiquiátrica em curso no país. Confirmamos o que já havia sido indicado anteriormente, que essas reflexões não pretendem emitir julgamento acerca do valor e pertinência do trabalho que vem sendo realizado nesses serviços. Ao contrário, nosso interesse volta-se para a reafirmação de um compromisso de luta, especialmente no contexto atual de recrudescimento de posições retrógradas contra a reforma psiquiátrica Brasileira, retomando a defesa do hospital psiquiátrico como estratégia hegemônica de cuidado, não reconhecendo as conquistas que, malgrado as insuficiências ainda sentidas, obtivemos nas últimas décadas, fruto de uma luta nos campos ético, político, epistemológico, tecnológico e cultural.7 Manifesto dos participantes do XI Congresso Mundial de Saúde Pública (WFPHA) e VIII Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva (ABRASCO) sobre a Reforma Psiquiátrica brasileira (Rio de Janeiro, agosto de 2006).
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Para finalizar nossa discussão, ressaltamos que os desafios para a desinstitucionalização da loucura requisitam uma complexidade de fatores administrativos, financeiros, organizacionais, técnicos, afetivos, subjetivos, enfim, uma gama de questões que estão no socius articuladas com a produção de formas de vida em sociedade, especificamente a produção de outros modos de existência. Tal perspectiva não pode ser interpretada como um abandono da luta por financiamento, avanços técnicos, organizacionais, mas significa manter sempre vigilante nosso foco analítico em virtude da sedução fácil de determinados ganhos que aparentemente indicam a superação de modelos, mas apenas camuflam uma manutenção aprofundada de elementos fascistas que habitam em nós. Dessa maneira, consideramos que o principal desafio para a reforma psiquiátrica não reside apenas na sua falta de velocidade para implementação, mas na sua direção. Os primeiros passos para essa trajetória implicam um imprescindível abandono do lugar de especialista ocupado por vários dos atores sociais envolvidos com a reforma. Este percurso requer atenção especial
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para aquelas pequenas amarras que conduzem as nossas próprias vidas, que nos fazem reproduzir valores, preconceitos, para não dizer “paixões tristes”, culpabilização, infantilização, todas em nome da razão. Este movimento requer rupturas, uma radicalização, e não uma superação que acaba por promover pactos entre o aparentemente novo e as articulações de manutenção de séculos de dominação. Mas, não guardamos em nosso íntimo a veleidade de que essa tarefa seja fácil e que este trabalho represente uma tentativa bem-sucedida disso, uma vez que somos constantemente capturados por nossos desejos de controle, fixidez, identidade, normatização, subjugação, ou, em outras palavras, nossos desejos de manicômio. Por conseguinte, analisamos que a nossa caminhada requer um esforço analítico que considere não apenas os condicionantes que atravessam a realidade micro, mas aqueles que estão em um plano mais extenso, como é o caso do CMI. Essa lógica de funcionamento acaba por evidenciar uma disposição incessante para a exclusão. Então, muitos são os desafios na produção/invenção da desinstitucionalização da loucura, de afirmação de uma potência criadora de espaços de liberdade. Referências ALVERGA, A. R.; DIMENSTEIN, M. A loucura interrompida nas malhas da subjetividade. In: AMARANTE, P. (Org.). Archivos de saúde mental e atenção psicossocial 2. Rio de Janeiro: NAU, 2005. p.45-66. AMARANTE, P. Algumas reflexões sobre ética, cidadania e desinstitucionalização na reforma psiquiátrica. Saúde em Debate, v.45, p.43-6, 1994. AMARANTE, P. Loucos pela vida: a trajetória da reforma psiquiátrica no Brasil. Rio de Janeiro: SDE/ ENSP, 1995. AMARANTE, P. (Org.). Saúde mental, políticas e instituições: programa de educação à distância. Rio de Janeiro: FIOTEC/FIOCRUZ, EAD/FIOCRUZ, 2003. ARDOINO, J.; LOURAU, R. As pedagogias institucionais. São Carlos: RiMa, 2003. BARROS, R. B. Reforma psiquiátrica brasileira: resistências e capturas em tempos neoliberais. In: CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA (Org.). Loucura, ética e política: escritos militantes. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2003. p.196-206. BAPTISTA, L. A. A cidade dos sábios. São Paulo: Summus, 1999. BAPTISTA, L. A. Narrações contemporâneas: vagabundos e turistas nas práticas da saúde mental. In: JACÓ-VILELA, A. M.; CEREZZO, A. C.; RODRIGUES, H. B. C. (Orgs.). Clio-Psyché hoje: fazeres e dizeres psi na história do Brasil. Rio de Janeiro: Relume Dumará/FAPERJ, 2001. p.71-84. BAPTISTA, L. A. A reforma psiquiátrica e o cotidiano nos serviços residenciais: a formação dos profissionais da saúde mental em questão. In: JACÓ-VILELA, A. M.; CEREZZO, A. C.; RODRIGUES, H. B. C. (Orgs.). Clio-Psyché paradigmas: historiografia, psicologia, subjetividades. Rio de Janeiro: Relume Dumará/FAPERJ, 2003. p.225-34. BERMAN, M. Tudo que é sólido se desmancha no ar: a aventura da modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. BEY, H. Caos: terrorismo poético e outros crimes exemplares. São Paulo: Conrad Editora do Brasil, 2003. BIRMAN, J. A cidadania tresloucada. In: BEZERRA JR., B.; AMARANTE, P. (Orgs.). Psiquiatria sem hospício: contribuições ao estudo da reforma psiquiátrica. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1992. p.71-90. BITTENCOURT, L. A. Fotografia enquanto instrumento etnográfico. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1994. p.225-41. (Anuário Antropológico, 92)
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ALVERGA, A. R.; DIMENSTEIN, M. La reforma psiquiátrica y los desafíos en la desinstitucionalización de la locura. Interface - Comunic., Saúde, Educ. Educ., v.10, n.20, p.299-316, jul/dez 2006. Este trabajo tiene el objetivo de discutir uno de los muchos desafíos presentes en el proceso de reforma psiquiátrica brasileña para la construcción de una red integrada de atención en salud mental para el cuidar en libertad. Se trata de determinadas fuerzas identificadas como “deseos de manicomios” que atraviesan el socius y alimentan las instituciones presentes en las prácticas y concepciones en la salud mental. Con ese propósito, investigamos aspectos del cotidiano de los CAPS, servicios responsables por la substitución de la atención manicomial. Se utilizó el recurso de la observación y el acervo fotográfico del servicio de salud. Discutimos que el principal desafío de la reforma psiquiátrica no reside solo en la falta de velocidad en su implementación, sino en la dirección que está siguiendo. Ese movimiento, a su vez, requiere rupturas, radicalización y no una superación que acaba por promover pactos entre lo aparentemente nuevo y aquello que representa la permanencia de siglos de dominación. PALABRAS CLAVE: salud mental. servicios de salud mental. atención en salud mental. reforma en atención de la salud.
Recebido em 28/11/05. Aprovado em 04/10/06.
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Por uma ar te menor: rressonâncias essonâncias entr te, arte entree ar arte, clínica e loucur a na contempor aneidade loucura contemporaneidade
Elizabeth Maria Freire de Araújo Lima 1
LIMA, E. M. F. A. A smaller art: significance between art, clinics and madness nowadays. Interface - Comunic., Educ., v.10, n.20, p.317-29, jul/dez 2006. Saúde, Educ.
We discuss the changes that were brought about in Brazil in the 20th century related to the acceptance of works of art produced in clinics or, in any other way, other than those conventionally accepted by the artistic community. The enlargement of this field, now including dissenting works of art, seems to indicate a change in contemporary sensibility therefore shifting the relationship between the domain of art, clinics and madness itself. KEY WORDS: art. health facility environment. madness. occupational therapy. mental health.
Desenvolvemos uma reflexão sobre as transformações ocorridas durante o século XX, no Brasil, em relação à recepção de obras de arte produzidas em situações clínicas ou, de qualquer outro modo, fora do espaço instituído da arte. A abertura da arte para acolher essas produções dissidentes é vista por nós como índice de uma mutação na sensibilidade contemporânea, que produz um deslocamento nas relações entre os campos da arte, da clínica e da loucura. PALAVRAS-CHAVE: arte. ambiente de instituições de saúde. loucura. terapia ocupacional. saúde mental.
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Elaborado a partir da tese de doutorado (Lima, 2003).
Docente, curso de Terapia Ocupacional, Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP); coordenadora, Laboratório de Estudos e Pesquisa “Arte e Corpo em Terapia Ocupacional”, Departamento de Fisioterapia, Fonoaudiologia e Terapia Ocupacional, FMUSP, São Paulo. <elizabeth.lima@uol.com.br> 1
Rua Ministro Américo Marco Antônio, 351 Alto de Pinheiros - São Paulo, SP Brasil - 05.442-040
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Uma literatura menor não é a de uma língua menor, mas antes, a que uma minoria faz em uma língua maior. (...) A segunda característica das literaturas menores é que, nelas, tudo é político. (...) A terceira característica é que tudo adquire um valor coletivo. (...) E se o escritor está à margem ou afastado de sua frágil comunidade, essa situação o coloca ainda mais em condição de exprimir uma outra comunidade potencial, de forjar os meios de uma outra consciência e de uma outra sensibilidade. Deleuze & Guattari, 1977, p.25
Introdução No cotidiano de uma prática em terapia ocupacional, construída na interface com o universo da arte, nos deparamos freqüentemente com experimentações estéticas que agenciam tintas, argila, máquina fotográfica, sons e movimentos a experiências-limite rejeitadas em alguma medida pela cultura. São obras ou acontecimentos que podem, em momentos privilegiados, atravessar a fronteira que as separa da produção cultural e atrair outros olhares além daquele dos especialistas clínicos. Mas mesmo quando não ultrapassam as delimitações do espaço de tratamento, encarnam uma experiência de criação que se faz sobre uma linha fronteiriça na qual uma vida disputa com a doença, a miséria, a morte. São fragmentos estéticos ou performances que não podem ser reproduzidos e constituem momentos privilegiados em que arte, saúde, loucura e precariedade se conectam, colocando em cheque os limites entre a arte e não-arte, entre arte e vida, associando-se de maneira fecunda à pesquisa que movimenta e alimenta toda a arte moderna e contemporânea. Diante dessas obras produzidas na vizinhança com a clínica ou, como dissemos, fora do espaço instituído da arte – e, muitas vezes, o que é mais grave para alguns, sem a intenção de fazer arte –, uma pergunta insiste: isto é arte? Inicialmente, procuraremos explorar esta pergunta para, em seguida, pensar as relações entre o campo da arte, da clínica e da loucura no contemporâneo. Isto é Arte? Esta questão não é só formulada diante dos trabalhos de usuários de Serviços de Saúde Mental, mas é uma questão que a própria modernidade na arte coloca. Favaretto apud Santos (2000) esclarece que a arte moderna e contemporânea coloca em questão uma imagem de arte fixada pela tradição romântica, que identifica arte com obra-prima e a relaciona às idéias de harmonia, acabamento e unicidade. Ao colocar em questão essa imagem, a arte do nosso tempo gera estranhamento e exige um outro modo de ver a arte: um olhar produtivo e que pergunta, “Então, isso também é arte?”. Para Favaretto, esta é a grande pergunta moderna e que balança em nossas cabeças, instaurada quando a arte se tornou um amplo campo de jogo que abriga experimentações variadas e que estendem o próprio campo da arte para outros espaços até então inexplorados. No entanto, a enunciação da pergunta nesses termos, diante de desenhos ou pinturas produzidas em espaços clínicos ou em propostas de inclusão social,
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Bispo do Rosário considerava sua obra sua missão na Terra e dizia: “Eu faço isso obrigado. Senão não fazia nada disso. (...) recebo ordens e sou obrigado a fazer” (Bispo apud Hidalgo, 1996, p.142). Não é pouco freqüente encontrarmos depoimentos de artistas e escritores sobre seus processos de criação que revelam uma tal experiência de submissão do criador à obra. Para Kandinsky, o artista não deveria se considerar o senhor da situação, “mas alguém que está a serviço de um ideal particularmente elevado, o que lhe impõe deveres preciosos e sagrados. (...) A tarefa que lhe é atribuída é penosa, com freqüência, uma pesada cruz” (Kandinsky, 1996, p.128). Para Picasso, “a arte é mais forte do que eu. Obriga-me a fazer o que quer” (Picasso apud Righetti, 1970, p.46).
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implica, pelo menos, duas ordens de pensamento. Em primeiro lugar, essa pergunta pode ser formulada porque há um olhar que, muitas vezes, partindo do universo da arte, se debruça sobre essas produções que lhe são exteriores e confere a elas algum índice de valor. Mas, se a pergunta é formulada, é também porque esses objetos não são imediatamente artísticos. E por que não? Porque a forma como foram produzidos, os espaços em que foram produzidos, não estão incluídos no sistema da arte e, portanto, a pergunta implica simultaneamente que essas obras colocam em questão o próprio sistema da arte. Em resumo, não só estamos diante de produções que utilizam a matéria e a linguagem da arte, como, muitas vezes, produzem rupturas nesta mesma linguagem; são objetos criados na fronteira da arte, que mobilizam nossa sensibilidade, nos inquietam, nos põem a trabalhar, pois não formulamos essa pergunta diante de todo rabisco, toda imagem, linha, forma, frase que encontramos num cotidiano povoado de estímulos visuais, sonoros, gráficos. No texto “O limiar da arte”, Righetti (1970, p.44) debruça-se sobre a questão do valor artístico de obras produzidas em espaços clínicos, ao entrevistar um psicanalista, um psicólogo e um crítico de arte que possuem, cada um deles, uma perspectiva própria em relação à questão. Mas o modo como a formula, oculta também um a priori ideologizante. Na tentativa de explorar as relações entre “expressões de tipo artístico e doenças mentais”, a autora formula a questão de forma ampla, perguntando se “no caso de pinturas ou desenhos realizados por doentes mentais, podemos falar de obras de arte”. O desígnio de “doente mental” tem anterioridade ao contato com a obra; o fato de o produtor do trabalho ser louco tem mais importância do que a apreciação do trabalho em si para a designação do seu valor artístico. Desta forma, corre-se o risco de, por um lado, pensar que aquilo que o louco faz não pode ser arte porque ele é louco, não é senhor de sua própria razão; por outro, de se estabelecer uma relação imediata entre arte e loucura, como se, para fazer arte, fosse preciso ser, ao menos, um pouco louco, ou se todo louco fosse artista. A resposta do crítico de arte Dorfles à pergunta de Righetti (1970) não deixa dúvidas. Ele toma partido de uma dessas vertentes: “a obra de arte não pode ser definida como tal, se não existe uma técnica e uma vontade precisa de fazer uma obra de arte” (p.48). Sob esse ponto de vista, não poderíamos considerar arte o trabalho de Bispo do Rosário, já que ele deixava claro, para aqueles que ficavam encantados com sua produção, que se pudesse, não realizaria a obra, mas que não tinha escolha2 (Hidalgo, 1996). Mas, se tomamos partido da segunda opção, criamos uma mistificação em torno da figura do louco, que bastante romantizada torna-se o emblema do artista por excelência – aquele que, livre das amarras sociais, pode criar livremente. Desta forma, mantemos intacta a idéia de que a criação é uma esfera da experiência humana somente acessível a poucos eleitos, gênios, ou pessoas especiais. A discussão colocada desta forma perde a obra produzida – que é o que deveria ser apreciado quando se trata de perguntar se alguma coisa é ou não um objeto de arte.
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Todavia, sabemos que o que hoje classificamos como arte está submetido a um regime de valor que é próprio do nosso tempo e, portanto, nem eterno, nem universal. Hoje, podemos reconhecer arte e objetos de arte em todas as civilizações, grupos, tribos: onde há homem, há arte. Mas esse reconhecimento se dá com as lentes do nosso tempo, porque entendemos arte de uma certa maneira, definimos e classificamos esta atividade humana com base em um determinado código. Para muitos povos, aquilo que hoje encontramos e, maravilhados, depositamos neles o mais alto valor artístico, era uma forma de “atravessar uma montanha”,3 um utensílio para preparar uma comida, ou uma tentativa de controlar magicamente as intempéries do mundo, os deuses, os inimigos, os animais. A definição de algo como objeto de arte depende, assim, de parâmetros circunstanciais e datados. Mas, o que em nossa cultura faz uma determinada produção pertencer a um universo de sentido, e não a outro? O que faz um objeto qualquer passar a ser compreendido e percebido como uma obra de arte? No contemporâneo, estamos às voltas com inúmeras definições de arte e tentativas de compreender essa esfera da criação humana como autônoma. No livro Arte é o que eu e você chamamos arte, Morais (1998) nos apresenta 801 definições de arte e do sistema da arte. Mas mesmo que possamos definir arte de infinitas maneiras ou, ainda, que não consigamos defini-la de maneira alguma, nossa cultura toma alguns objetos criados como arte, e outros não. A partir do final do séc. XIX, e mais radicalmente durante o séc. XX, o território coberto por essa categoria se deslocou para abranger, em seu interior – mesmo que de forma categorizada como arte bruta, arte virgem, arte dos loucos ou arte incomum –, algumas produções de algumas pessoas-margem. O que isso indica?
Deleuze & Guattari (1997, p.98) citam um texto de Elie Fauvre (Histoire de l’art: l’art médiéval), sobre um povo itinerante da Índia que, em sua passagem pelo interior de montanhas de granito, iam deixando para trás, esculpidas nas rochas, formas magníficas.
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Exposições de obras de internos de hospitais psiquiátricos e sua recepção Este deslocamento do território coberto pela categoria de arte pode ser observado se acompanharmos a trajetória das obras produzidas na Seção de Terapêutica Ocupacional do Hospital do Engenho de Dentro, na década de 1940, e que posteriormente constituíram o Museu de Imagens do Inconsciente. Desde as primeiras exposições desses trabalhos, o debate sobre seu valor artístico esteve em pauta. A polêmica entre os críticos Campofiorito e Pedrosa, instalada em torno dessas exposições em 1947 e 1949, exemplifica bem este debate. Campofiorito defendia a posição de que, nas expressões plásticas dos alienados, não há trabalho formador, já que a elas falta a interferência da inteligência ou da razão como força configuradora que lhes conferiria qualidades estéticas. Pedrosa exerceu uma crítica de arte liberta das restrições da arte instituída e marcada por uma ética de afirmação do direito de qualquer um de contribuir com sua expressão para o universo cultural e artístico de uma sociedade. Nesta perspectiva, a questão em torno do valor artístico das produções plásticas de psicóticos dava lugar a uma avaliação estética que não tomava como parâmetro o estado clínico de seu criador4.
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4 Para uma apresentação mais aprofundada desta discussão, ver Lima, 2003.
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Durante a década de 1980, três grandes exposições – Arte Incomum, da XVI Bienal de São Paulo, Região dos desejos e Arte e loucura: limites do imprevisível – estiveram em cartaz em São Paulo, atestando a continuidade do interesse cultural pela questão. Segundo Frayze-Pereira (1995), nesses momentos muito se falou e se escreveu sobre a relação entre doença mental e arte, num contexto em que, freqüentemente, os artistas eram tratados como gênios que se aproximavam das crianças e dos ingênuos e o valor dos eventos recaía sobre a curadoria das exposições ou sobre o responsável pelo trabalho clínico que havia possibilitado a produção daquelas obras. A exposição de Arte Incomum, de 1981, trazia ao lado das obras, ainda como nas mostras da década de 1940, o diagnóstico dos pintores e uma rápida história de caso. A esse respeito, Benetton (1984) conta que jovens em tratamento no Hospital-dia “A Casa” foram visitar essa exposição e ficaram indignados com essa forma de apresentação dos trabalhos que enfatizava mais a discussão clínica que os procedimentos ou a linguagem da obra. Quase vinte anos depois, em 2000, o Módulo Imagens do Inconsciente, da exposição Brasil 500 anos: Mostra do Redescobrimento – um panorama que pretendeu abarcar toda a produção visual brasileira –, parece finalmente apontar para um novo patamar na relação entre o campo da arte e certas populações em sofrimento ou em desvantagem social. Nessa exposição, não encontramos mais, ao lado das obras, os diagnósticos de cada artista, como se esses trabalhos tivessem finalmente se libertado dos últimos resquícios que os ligavam ao campo psicopatológico, para serem definitivamente assimilados à produção cultural brasileira – o que parece ser o índice de uma pequena revolução, sutil e silenciosa, que tem se operado no campo em que a arte se encontra com essas pessoas-margem. Aguilar – curador-chefe da mostra – considera que essa exposição corrige um equívoco histórico. “Apesar dos esforços por enquadrá-la racionalmente, não há adjetivos para a arte, ela aflora de qualquer ambiente, em qualquer condição.” (Aguilar apud Cancino, 1999, p.4), ou seja, a tentativa de categorização de um acontecimento criativo revela-se cada vez mais uma tentativa supérflua. A referência a Nise da Silveira, presente nesse módulo da exposição, indica a importância de alguém que, com seu esforço e delicadeza, possibilitou que muitas dessas obras fossem produzidas, significou-as de forma inovadora e colocou-as em contato com outros olhares exteriores ao campo clínico, procedimento fundamental para que se desse um deslocamento do lugar que ocupavam no universo cultural. A apresentação, por meio de vídeos, sobre o lugar onde viveram os artistas desse módulo, não está mais a serviço de questionar se essas produções são ou não arte, mas de marcar o lugar de exclusão e marginalidade a que foram confinados por muito tempo artistas e obras. Durante todo o século XX, muitos foram os que lutaram para a inclusão social das pessoas com experiência de sofrimento mental; outros, como Pedrosa, pela inclusão de suas obras no circuito cultural e artístico. Mas, por que estão presentes os pequenos relatos da vida de cada um dos pintores? E por que não deveriam estar? Não estão, nessas obras, arte e vida indissoluvelmente ligadas? Não é esta ligação profunda que tantos artistas modernos procuraram e que, aqui, fulgura com brilho intenso? E não é
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também parte dessas obras, e forte marca cultural e histórica de nosso tempo, o lugar onde foram produzidas? E não é ainda mais espantoso que pessoas vivendo uma vida que nos parece tão empobrecida tenham tido a força de produzir tanta beleza? Beleza e força que, do lugar que ocupam hoje na cultura, questionam e fazem estremecer as bases de uma lógica manicomial e um modo de ver a loucura, a doença, a diferença. Talvez este seja um dos efeitos mais poderosos dessa obra coletiva. Obra composta pelas produções plásticas de cada um dos artistas; pelos bons encontros que as obras e suas realizações promoveram para todos os envolvidos; pelos monitores de ateliê; pelo trabalho incansável daqueles que continuam sua labuta no Engenho de Dentro, seja na criação de formas de atenção aos novos pacientes, seja no cuidadoso trabalho de arquivo, memória e recuperação dos trabalhos realizados e que, nessa Mostra do Redescobrimento, nos expõem essas preciosidades de forma impressionantemente bela. Obras compostas, enfim, pelo dispositivo que acolheu e produziu uma bricolage de artistas, terapeutas, produções criadoras de mundos, como a nos dizer que toda obra é sempre coletiva, realizada com base em compostos heterogêneos, das pessoas que circulam em torno dela, dos afetos que produzem os signos que é função dela decifrar. O módulo Imagens do Inconsciente tem ainda uma outra importância: inclui, mesmo que seja em um espaço exterior ao módulo Arte Moderna e Contemporânea Brasileira, a produção desses artistas, reconhecendo sua importância para a arte brasileira do século XX, como deixa claro a apresentação desse módulo presente no folheto da exposição distribuído ao público: Vozes que partem do interior do hospital psiquiátrico dialogam com as vanguardas artísticas do século 20, nublando os limites entre normalidade e patologia, e afirmando-se decididamente como obras de arte. (Brasil +500 – Mostra do Redescobrimento, 2000)
Uma mutação da sensibilidade contemporânea A trajetória das obras dos artistas do Hospital do Engenho de Dentro aponta para uma transformação da crítica de arte em relação às produções ocorridas fora do espaço institucional da arte, em especial daquelas ligadas à situação de internamento associado à loucura. Mas se isso implica uma ampliação da concepção de arte que, de forma mais ou menos clara, passou a comportar produções estéticas marginais, indica também, e principalmente, uma mutação na sensibilidade contemporânea. De alguma maneira, como nos sugere Pelbart (1998, p.66), o desafio que atravessa o projeto estético contemporâneo de “presentificar o excesso do impresentificável, utilizando o informe como indício desse mesmo impresentificável”, pedindo uma estética fragmentária, complexa, feita de fluxos, atravessa, também, algumas experimentações estéticas que se fazem na fronteira da clínica ou da patologia e que evocam dor e colapso, além de metamorfoses e intensidades sem nome. Talvez não seja, por acaso, que dois artistas plásticos contemporâneos brasileiros desenvolveram obras marcadas por uma inquietante proximidade com o espaço clínico e habitaram essa zona de indiscernibilidade entre arte e
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5 Para alguns críticos, como Ferreira Gullar (1997), a obra de Lygia desemboca na invenção de um procedimento terapêutico. Esta não é a visão de Rolnik (1997), nem de Brett (1997). Ambos enfatizam a importância de não reduzirmos sua obra a nenhum dos dois campos, mas, pelo contrário, manter aberta a tensão que a obra instaura entre eles.
clínica de maneira muito bem-sucedida e com efeitos muito poderosos: um artista louco, Bispo do Rosário, e uma artista que se quer terapeuta, Lygia Clark. Ambos nos interessam justamente por colocarem em questão o sistema da arte que eventualmente pode não defini-los como artistas, ou como arte aquilo que fazem. No trabalho de Clark, o quadro e sua moldura constituíram a primeira metáfora do limite a ser estendido, questionado ou mesmo atravessado ou abolido, em direção a outros suportes. O desdobramento desse projeto poético levou à obra Caminhando, a partir da qual a artista passou a atribuir uma importância cada vez maior ao ato realizado pelo espectador, agora participante da obra. A obra passa a ser o ato, a experiência que se vive naquele fragmento de tempo. “É preciso – diz ela – absorver o sentido do precário para descobrir, na imanência do ato, o sentido da existência” (Clark apud Clark, 1997, p.164). Essa pesquisa levou-a ao limite do campo artístico. A artista acabou por desembocar numa região fronteiriça na qual arte e clínica estão implicadas em suas conexões, em suas dissonâncias, gerando um espaço de tensões que provoca desestabilização nos dois campos. As proposições que desenvolveu em seu consultório experimental, muitas vezes, não foram consideradas artísticas, o que denota uma tentativa de manter claras as fronteiras entre os dois campos5. Mas essas experimentações estético-clínicas escapam a toda tentativa de uma leitura puramente terapêutica de seu trabalho e trazem para o universo das artes uma dimensão clínica ainda de difícil compreensão. Da mesma forma, não parece ser apenas uma coincidência que a produção impressionante e descomunal de Bispo do Rosário possa ser analisada no contexto da arte contemporânea, tal como o fez Morais, para afirmar que ela transita com absoluta originalidade e competência no território da arte atual. Aos que insistem em separar as esferas da loucura e da arte, Morais (1990, p.18) retruca que “arte tem a ver com tudo, inclusive, com a loucura”, acrescentando que a criação artística nunca é um ato totalmente consciente. Para este crítico, “Bispo é tosco, direto e rude, pois que lida com materiais pobres, os “materiais da vida”. Ele é um fazedor de coisas, um demiurgo, alguém capaz de arrancar as coisas de sua banalidade e de sua concretude material para dar-lhes um novo significado, como Marcel Duchamp” (Morais, 1990, p.22). Transitando entre a indigência e a loucura, Bispo do Rosário passou grande parte de sua vida num manicômio. Podemos dizer que sofreu a concretização de processos de exclusão que seguem de perto certas existências. Contudo, o que a trajetória de Bispo nos mostra é que ele criou, dentro do manicômio, agenciamentos que permitiram que a vida continuasse pulsando em seu corpo. Durante quarenta anos, Bispo conseguiu driblar choques-elétricos, lobotomias e até medicação (dizendo que esta lhe minava a capacidade de trabalho), e proteger a si e a sua produção, construída fora de qualquer proposta terapêutica, por uma necessidade de tal intensidade, que nem as amarras institucionais foram capazes de apaziguar. Somente nos anos 1980 sua obra atravessaria os muros da Colônia Juliano Moreira. Com a abertura política, jornalistas e cinegrafistas cruzaram os portões do Manicômio e flagraram um inferno, até aquele momento
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escondido de todos, e um universo paralelo, o de Bispo do Rosário. Teve início, então, a polêmica em torno de sua obra: seria ou não arte? Em 1982, aconteceu a única exposição de seus trabalhos enquanto estava vivo, no MAM do Rio de Janeiro. Chamava-se “À margem da vida”. Teria estado Bispo à margem da vida? Ou, ao contrário, não esteve a vida, em toda a sua potência criadora, habitando aquela pequenina cela de um manicômio? De que tipo de vida esteve Bispo, em sua passagem pela Terra, à margem? Essa trajetória mostra uma outra face daquilo que podemos chamar de marginalidade: um movimento de desterritorialização, de ruptura em relação a certos códigos disponíveis, que pode conter em seu bojo uma possibilidade de reterritorialização em outro lugar. Sobre Bispo do Rosário, Aguilar afirmou: “Ao tecer aqueles suntuosos mantos, Bispo (...) provou que, nos hospitais psiquiátricos brasileiros, se produziu uma extrema vanguarda, sem precedentes na história da arte” (Aguillar apud Cancino, 1999, p.4). Porém, além das ressonâncias entre suas construções e aquelas da arte contemporânea, ressaltadas por Morais, chama a atenção a potência de seu processo criativo, que escapa a toda tentativa de leitura psicopatológica, e a força com que esse processo criativo protegeu e fez surgir criador e obra. Ao lado do produto construído em anos de reclusão, vemos um produto imaterial, a própria vida que ali se fez. Dessas duas trajetórias, de Bispo do Rosário e Lygia Clark, interessa-nos afirmar seu caráter estético e, ao mesmo tempo, manter, de alguma forma, sua exterioridade em relação ao sistema da arte e a desterritorialização que provocam. Outros acontecimentos no campo da arte evocam ressonâncias com a clínica. Em 1989, Arnaldo Antunes foi convidado para organizar uma mostra com base no vasto material do acervo do MAC-USP. No convite, conta-nos que seu intento era criar uma exposição marcada pelo signo da precariedade (Antunes, 2000). Procurou, no acervo, obras em que o processo de criação fosse mais aparente, ou ainda, se tornasse o próprio objeto estético, como cadernos de anotações, esboços, obras inacabadas. Transitou, dessa forma, como ele nos diz, por não-obras ou quase-obras ou por obras fora da obra. Os estudos de crítica genética se debruçam sobre o processo criador em sua manifestação na arte, processo marcado pela estabilidade precária das formas, por meio do qual algo que não existia antes passa a existir. O interesse desses estudos é ultrapassar os limites da obra entregue ao público e observar a arte sob o prisma do gesto e do trabalho. “Ao introduzir, na crítica, essa noção de tempo, seus pesquisadores passam a lidar com a continuidade, que nos leva à estética do inacabado” (Sales, 1998, p.20). Na perspectiva desses estudos, a arte não é só o produto considerado acabado pelo artista, mas compreende um estado de criação de contínua metamorfose que delineia um percurso feito de formas de caráter precário. Trata-se de uma visão que põe em questão o conceito de obra acabada, colocando-nos diante de uma realidade em constante metamorfose. A obra entregue ao público é apenas um dos momentos do processo, um emolduramento do transitório. “Esquemas perceptivos ligados à recepção da obra em seu estado de perfeição e acabamento são abalados” (Sales, 1998, p.25). Assume-se, assim, uma nova perspectiva estética que nos leva a
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considerar a “beleza da precariedade de formas inacabadas e da complexidade de sua metamorfose” (Sales, 1998, p.160). A própria idéia de obra de arte torna-se obsoleta. Favaretto apud Santos (2000) conta que, em meados dos anos 1960, a idéia de objeto teve a força de codificar todo um conjunto de transformações que vinha ocorrendo desde o início do século, e de abrir perspectivas para o que viria depois. As obras de arte abandonam essa designação e passam a ser chamadas indistintamente de objetos. Hoje, muitas são as formas de arte que não se materializam numa coisa ou objeto e, em alguns casos, nem sequer podem ser vistas, existem apenas na cabeça de quem as pensa, como no caso da arte conceitual. Outras existem apenas no momento em que as experimentamos e, depois, se desfazem com a efemeridade daquilo que é mais da ordem da duração que da extensão. A arte, sem adjetivações, passa a ser povoada por performances, ações e experimentações. Como nos ensina Favaretto apud Fabrini (1994, p.7) Na busca de novos rumos da sensibilidade contemporânea (...), a atividade artística desloca o acento das obras para a produção de acontecimentos, ações, experiências, objetos (...), liberando uma significação básica: a reinvenção da arte é condição para que ela possa intervir na transformação radical do homem e do mundo. Assim fazendo, estaria realizando e ultrapassando as categorias de arte, tornadas categorias de vida, seja pela estetização do cotidiano, seja pela recriação da arte como vida.
Para Favaretto apud Santos (2000), a arte pode ser muitas coisas, mas é, sobretudo, uma experiência da delicadeza. A percepção das nuances na arte é uma espécie de treinamento não consciente para a percepção de outras esferas da vida. Neste sentido, uma experiência estética pode provocar uma mutação da sensibilidade. O artista deixa de ser o mago criador para tornar-se propositor de situações que vão chamar a interferência dos ex-espectadores, agora participantes, e ambos irão configurar o que se chamava obra. Neste contexto, artísticos podem ser momentos clínicos de intensidade ímpar, que não podem ser repetidos, mas que têm a potência de provocar mutações subjetivas, ampliar a capacidade de alguém de ser afetado e potencializar a vida. Por outro lado, experimentações criadoras de sujeitos que são estrangeiros ao mundo das artes ganham uma outra dimensão e outro valor. No encontro com a diversidade de formas de existência e as formas expressivas as mais inusitadas, artistas buscam uma ruptura da linguagem artística e do sistema da arte para que se instaure a expressão (Gullar, 1982). Poderíamos dizer que se busca resgatar a eficácia da obra de arte, que diz respeito à sua potência para engendrar um devir, uma posterioridade, para instaurar novas esferas de possibilidades, novos campos de visibilidade e gerar seus próprios sujeitos. Entre a busca de ruptura da linguagem e o esforço por inserir na linguagem expressões singulares, solitárias e, até então, sem sentido, o fazer artístico e o fazer terapêutico se encontram. Se a arte passa a poder comportar esse tipo de experiência-limite e, assim, “preparar, para além da cultura, uma relação com aquilo que a cultura rejeita” (Blanchot apud Pelbart, 2000, p.56), isso terá também profundas conseqüências para a clínica.
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A ressonância entre a sensibilidade contemporânea e o funcionamento esquizo6 de algumas existências dissidentes – um funcionamento cuja produtividade está ligada a um plano de produção que funciona por agenciamentos, conexões de fragmentos heterogêneos –, abre um caminho para que se dê “visibilidade ao mais impalpável e legitimidade àquilo que o senso comum social despreza, teme ou abomina, [invertendo-se, assim,] o jogo das exclusões sociais e sua crueldade” (Pelbart, 1998, p.66). Este fato tem um poderoso efeito sobre a vida das pessoas que experimentam estados clínicos, efeito que já havia sido vislumbrado por Nise da Silveira. Cada sujeito, ao construir um objeto, pintar uma tela, cantar uma música, faz algo mais que expor a si mesmo e o próprio sofrimento. Ele realiza um fato de cultura (Napolitani apud Righetti, 1970). O valor que determinadas produções podem ganhar, passando a interessar justamente por seu caráter de singularidade, dissidência, deriva e inacabamento, e sua circulação num coletivo, provoca um enriquecimento dessas vidas; e aqui estamos tomando a vida, e não a arte, como critério. Ao se articularem aos modos de expressão dominantes, modos de expressão dissidentes atravessaram a linha divisória que os separavam da produção cultural, ganhando cidadania cultural (Frayze-Pereira, 1995) e um certo poder nas reais relações de força (Guattari & Rolnik, 1986), o que é de extrema importância. No entanto, esses modos de expressão não são investidos de valor somente em um agenciamento com a cultura dominante. Os mais diversos níveis de conexões – com o grupo, com uma coletividade local, com um outro que se constitua interlocutor – são promotores de valor. E mais: o valor de troca que a obra ganha quando é introduzida no circuito das artes, valendo-se de agenciamentos com críticos e artistas, não deve descaracterizar seu valor de uso como prática estética, possibilitando que subjetividades em obra possam construir-se a si mesmas, configurando e dando forma ao caos e às rupturas de sentido que, muitas vezes, as habitam. Por isso, se, por um lado, nos interessamos por pensar a relação da recepção com a obra, os sentidos que são depositados nelas, por outro, voltamos nosso olhar para o processo de criação, para tomá-lo a partir de seu efeito na vida e na autoprodução de sujeitos, mapeando os sentidos que a criação tem para aquele que cria. Para além da opinião, interessa-nos pensar o plano de composição que é possível criar, a consistência que é possível ganhar por meio da manipulação de uma matéria de expressão, e os agenciamentos que poderão ser produzidos. Enfim, pensar as relações que se podem estabelecer entre a criação e a produção de uma certa saúde, a invenção de uma forma de enfrentamento da doença, da solidão, do isolamento. Dar mais valor à designação de arte ou não arte do que ao processo de experimentação que produziu uma obra, mesmo que precária e efêmera, seria limitar a sensação ao campo da opinião de um espectador (mais ou menos autorizado), “ao qual cabe eventualmente ‘materializar’ ou não, isto é, decidir se é arte ou não. Tanto esforço para reencontrar no infinito as percepções e afecções ordinárias, e conduzir o conceito a uma doxa do corpo social ...” (Deleuze & Guattari, 1997, p.254).
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6 “Nós distinguimos a esquizofrenia enquanto processo, e a produção do esquizo como entidade clínica boa para o hospital: os dois estão, antes, em razão inversa. O esquizo do hospital é alguém que tentou alguma coisa e que falhou, desmoronou. [Mas] afirmamos que há um processo esquizo, de decodificação e de desterritorialização, que só a atividade revolucionária impede de virar produção de esquizofrenia” (Deleuze, 2000, p.36).
POR UMA ARTE MENOR: RESSONÂNCIAS...
Conclusão A mutação da sensibilidade contemporânea, que possibilitou outro olhar sobre as obras produzidas na fronteira com o campo clínico foi, também, de alguma forma, por essas obras produzida. Essa mutação provocou um deslocamento nas relações entre arte, loucura e clínica no contemporâneo. Como se, de alguma forma, cada um desses campos, como blocos monolíticos e isolados do conjunto das práticas sociais, houvessem sido implodidos e passassem a se cruzar em múltiplas conexões, em outros tantos territórios. De certa forma, é como se o investimento artístico feito na produção dos loucos tivesse contribuído para libertá-los, ao menos um pouco, de carregar uma desterritorialização que a sociedade não comporta, e tivesse ajudado a espalhar essa desterritorialização, fazendo com que se busque o processo esquizo na imanência do processo criador, e não numa entidade nosológica que é também exterioridade cultural. Nesse processo, a loucura encontrou uma linha de fuga que extrapola o campo de uma interioridade subjetiva; a arte, uma segunda linha, que pode levá-la para espaços que extrapolam o campo de uma atividade delimitada e autônoma; a clínica, uma terceira linha, que pode levá-la a extrapolar o domínio do patológico. Do mesmo modo, a relação entre os campos também foi deslocada. A arte não estará mais interessada na loucura como entidade psicopatológica, mas numa certa forma de produção esquizo, uma desterritorialização que fica adensada nos esquizofrênicos. Segundo René Scherer (1999), o lugar da arte é, hoje, esse lugar do resíduo que compreende as anomalias da vida humana irredutíveis a um modelo ideal. Anomalias, que se afastando do normal, nos permitem a pesquisa de uma utopia, no sentido da não- aceitação da realidade reduzida a seus aspectos objetivos. A arte é pensada, assim, em sua dimensão utópica – concebida como abertura a possíveis –, que promove o reencontro com o mundo da vida, para além ou aquém dos artifícios que o encobrem, e com o homem em seu corpo vivente e sempre precário. Nesse sentido, anomalia, precariedade e inacabamento encarnam forças de resistência à modelização dos funcionamentos e dos corpos e se aproximam instigadoramente da arte, seja do produto artístico, seja do processo de criação. A clínica, nesta nova configuração, é aquela que se faz no território. Ela não está voltada para a remissão dos sintomas, mas para a promoção de processos de vida e de criação, e poderá, portanto, comportar uma outra saúde. Não uma saúde de ferro dominante, mas uma irresistível saúde frágil, como diria Deleuze (1997), marcada por um inacabamento essencial que, por isso mesmo, pode se abrir para o mundo; “uma saúde tal, que não somente se tem, mas que constantemente se conquista ainda, e se tem de conquistar, porque se abre mão dela outra vez, e se tem de abrir mão!” (Nietzsche apud Vieira, 2000, p.15). Em consonância com alguns movimentos na arte, algumas práticas clínicas, que utilizam atividades artísticas deslocaram a ênfase do produto e da visão deste como expressão de um universo interior já existente, para investir na idéia de indissociabilidade entre o processo e seus múltiplos produtos. Esses produtos podem ser materiais e imateriais: obras, quase-obras, acontecimentos
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e efeitos sobre os corpos que criam signos a serem decifrados. Na decifração desses signos se produz vida, se produz subjetividade. O sentido de fazer obra, aqui, é o de encontrar ferramentas para a recomposição de universos existenciais e para uma produção mutante de enunciação (Guattari, 1992). Para essa clínica, marcada pela idéia de desinstitucionalização, não interessa o sistema da arte ou a arte institucionalizada, mas os procedimentos artísticos associados a uma arte do efêmero e do inacabado, que comporte as desterritorializações e os desequilíbrios dos sujeitos dos quais se ocupa. Quanto aos sujeitos criadores – aqueles que diriam, com Artaud apud Encontro (1992), “não temos nada a ver nem com a arte nem com a beleza. O que procuramos é a emoção interessada. Um certo poder de deflagração ligado aos gestos e às palavras” –, bem, esses continuam agarrados por um conjunto de impossibilidades, escavando saídas, criando possíveis, buscando construir linhas de fuga que, por fim, servem para todos nós. Pois, como diria Drummond: “o problema não é inventar. É ser inventado, hora após hora, e nunca ficar pronta nossa edição convincente.”
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POR UMA ARTE MENOR: RESSONÂNCIAS...
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LIMA, E. M. F. A. Por un arte menor: resonancias entre arte, clínica y locura en la contemporaneidad. Interface - Comunic., Saúde, Educ. Educ., v.10, n.20, p.317-29, jul/dez 2006. En este texto desarrollamos una reflexión sobre las transformaciones ocurridas durante el siglo XX en Brasil, con relación a la recepción de obras de arte producidas en situaciones clínicas o de cualquier otro modo, fuera del espacio instituido por el arte. La apertura del arte para acoger esas producciones disidentes es vista por nosotros como índice de una mutación en la sensibilidad contemporánea, que produce un desplazamiento en las relaciones entre los campos del arte, de la clínica y de la locura. PALABRAS CLAVE: arte. ambiente de instituciones de salud. locura. terapia ocupacional. salud mental.
Recebido em 08/08/05. Aprovado em 10/01/06.
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Par a uma análise existencial da saúde ara
artigos
Roberto Passos Nogueira1
NOGUEIRA, R. P. An existential analysis of health. Interface - Comunic., Saúde, Educ. Educ., v.10, n.20, p.333-45, jul/dez 2006.
Heidegger’s fundamental ontology in Being and Time has been used as an invaluable source of inspiration for researchers in the areas of mental and collective health, in spite of the difficulty in interpreting it. Binswanger’s misunderstanding of this work, in the attempt to transpose it to psychoanalysis, is an great example of such and briefly discussed based on Loparic’s in depth study. In this article, the author assumes that Heidegger’s anti-metaphysical language can help bridge what he refers to as the false ontological gap between mental health and physical health. In the first half, the article revisits some common misinterpretations related to Heidegger’s ontology, and outlines criteria pertaining to non-objection and non-determination. Subsequently the author provides his contribution, expounding his own interpretation regarding existential ontological analysis of health, using terms such as ailing, aiding and recovery. KEY WORDS: ontology. health-disease process. existentialism.
A ontologia fundamental de Heidegger de Ser e Tempo tem servido de fonte de inspiração para investigadores que realizam seus trabalhos nas áreas de saúde mental e saúde coletiva, a despeito das dificuldades de interpretação dessa obra. O entendimento equivocado por Binswanger, na tentativa de transpô-la para a psicanálise, serve de exemplo e é brevemente exposto com base na análise detalhada feita por Loparic. Neste artigo, parte-se do pressuposto de que a linguagem antimetafísica de Heidegger pode ajudar a fechar o que denomina de fenda ontológica entre saúde mental e saúde do corpo. Na primeira parte, recapitulam-se alguns equívocos que podem ser cometidos na interpretação da ontologia heideggeriana e delineiam-se os critérios de não-objetivação e não-determinismo. Na segunda, o autor aporta sua contribuição pessoal, ao explicitar sua própria interpretação da analítica existencial da saúde, articulada em torno de termos, tais como: padecimento, socorro e reatamento. PALAVRAS-CHAVE: ontologia. processo saúde-doença. existencialismo.
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Núcleo de Estudos de Saúde Pública, Universidade de Brasília. <roberto.nogueira@ipea.gov.br>
SBS Quadra 1, Bloco J – Ed. BNDES Centro - Brasília, DF Brasil - 70.076-900
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Introdução Desde sua publicação, em 1927, Ser e Tempo, de Heidegger, é uma obra que tem servido de inspiração para muitos que investigam a saúde pelo prisma das Ciências Humanas. Os primeiros a serem atraídos pela ontologia heideggeriana foram os psiquiatras e psicanalistas com têmpera filosófica. O mais proeminente talvez tenha sido Binswanger (1881-1966), psiquiatra suíço que elaborou uma doutrina que partia, de forma direta, embora criticamente, da análise do Dasein (Loparic, 2002). A psiquiatria daseinanalítica de Binswanger entendia que a essência do homem não consiste apenas de um “ser-no-mundo”, que é um “ser-para-a-morte”, marcado por sua contingência, conforme descrito por Heidegger (Loparic, 2002). Em Formas fundamentais e conhecimento do Dasein humano, de 1942, Binswanger propõe uma reinterpretação segundo a qual o Dasein humano2 projeta-se igualmente numa condição cósmica, universal e permanente, que se fundamenta na disposição do amor. Portanto, o Dasein seria um ser-no-mundo-para-além-do-mundo. Ele pretendia que esse tipo de adendo à obra de Heidegger resultasse não de uma abordagem de filosofia moral, mas de um desenvolvimento teórico do mesmo nível ontológico de Ser e Tempo. Boss, da Universidade de Zurich, foi seguidor de Binswanger e introduziu diversas modificações em sua doutrina. Ele tornou-se amigo de Heidegger e os dois mantiveram uma longa correspondência pessoal. Por dez anos, a partir de 1959, Boss devotou-se a organizar, onde morava, em Zollikon, encontros de Heidegger com um grupo de médicos e outros profissionais convidados, durante os quais se discutiam as questões da fenomenologia e sua relação com a teoria e prática da psicanálise (Heidegger, 2001b). No Brasil, a reflexão sobre a obra heideggeriana em conexão com esta e outras teorias psicanalíticas vem-se difundindo há pelo menos duas décadas. Há uma Associação Brasileira de Daseinanalyse (ABD) que divulga trabalhos de Boss e estudos originais de autores nacionais sobre o tema; em algumas universidades já existem centros de pesquisa e debate sobre Heidegger e psicanálise, devendo ser destacado o Grupo de Filosofia e Práticas Psicoterápicas, sob a orientação do professor Loparic, da Universidade de Campinas. Loparic é um entusiasta da psicanálise do amadurecimento humano, desenvolvida por Winnicott, a quem considera ser o único autor cuja contribuição científica no campo da psicanálise é compatível com a ontologia heideggeriana, embora reconheça que Winnicott não foi diretamente influenciado por Heidegger ou por qualquer outro filósofo. Fora das disciplinas da saúde mental, vamos encontrar, no Brasil, um interesse crescente por Heidegger e pelos demais autores da linhagem hermenêutica nos pesquisadores da saúde coletiva. Um dos focos desse interesse tem sido a questão do cuidado em saúde, para a qual se pretende desenvolver referenciais adequados, levando em conta seus aspectos éticos e técnicos (Ayres, 2003, 2004; Bressan & Scatena, 2002). Mas também têm destaque os temas da relação saúde-doença (Caprara, 2003), do cuidado no âmbito da promoção da saúde (Ayres, 2004), bem como da
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Esta expressão é um pleonasmo, já que não existe o Dasein dos animais, mas não foi evitado nem em Ser e Tempo, como nota Heidegger (2001b, p. 146).
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abordagem hermenêutica e fenomenológica de problemas específicos de saúde (Lopes & Souza, 1997; Caprara & Veras, 2005). A saúde coletiva brasileira vem deixando claras as implicações éticas e metodológicas desses temas para a organização dos cuidados na clínica médica e na prática da saúde pública. Novos investigadores vêm adentrando nesses campos de saber que até pouco tempo atrás praticamente só eram freqüentados pelos psicanalistas. Por outro lado, em sintonia com o horizonte filosófico, aparece já um anseio de buscar apoio interpretativo nos fatos ônticos da saúde e da doença, inclusive, nas formas específicas de adoecimento. Outra linha de esforço interpretativo aponta para a necessidade de estender e aprofundar os estudos propriamente hermenêuticos e ontológicos da saúde, que partam da singularidade da vivência humana da enfermidade. Este artigo pretende contribuir com o campo da investigação filosófica sobre fenômenos do adoecimento humano que estão articulados com a estrutura geral do Dasein. Um pressuposto é que, sem a compreensão desse plano existencial da saúde, estaremos sempre esbarrando nas elaborações metafísicas tradicionais que predefinem todos os fenômenos como relações entre entes objetivos e, que, no caso da medicina, aparecem na classificação das enfermidades por tipos e variantes. No meu entender, a questão central da analítica existencial da saúde é a fenda ontológica criada entre saúde mental e saúde do corpo. A crítica ao determinismo freudiano avançou até o ponto em que as teorias da psicanálise abraçaram, nas décadas, um não-determinismo que é próprio da compreensão do Dasein, como já se evidencia em Winnicott. Mas o que dizer das enfermidades somáticas? Estão para sempre fadadas a serem compreendidas numa ótica determinista, apenas relativizada pelo multicausalismo, como quer a epidemiologia? Esse tipo de dualismo leva a entender que, quando acometido de problemas mentais, o homem realiza sua liberdade de escolher seu ser, mas algo semelhante não ocorre quando sofre de problemas corporais. O corpo humano continuaria a ser interpretado pela ontologia reificadora das ciências naturais: é uma coisa no meio de outras e está determinado por causas precisas (vírus, genes, ambiente etc.). Pode o entendimento das doenças do corpo ser objetivista e determinista, enquanto, em contrapartida, o entendimento da saúde mental há tempo se abriu para uma interpretação não-determinista e não-objetivante? É esta a fenda ontológica que precisa ser fechada em qualquer análise existencial da totalidade da saúde orientada pela ontologia heideggeriana. Fica cada vez mais claro que a enfermidade do corpo (chame-a como se quiser) não é essa espécie de soma de causas e sinais (por exemplo: lesão + sintomas + agentes físicos), mas é o produto das escolhas do Dasein, em relação a todas as pessoas e todos seus afazeres como ser-no-mundo. Ainda quando se diz comumente que a enfermidade física não é um ente, mas um processo, não se resolve o problema, porque na compreensão da ciência e da filosofia ocidentais, em todo processo, são pressupostos relacionamentos de objetos com objetos. Tampouco está resolvido quando se fala do paciente como sujeito da sua saúde. Isto porque o sujeito, segundo a ontologia cartesiana, que serve de fundamento para a ciência moderna, nada mais é que um ente pensante entre os demais entes do mundo (Heidegger, 2001a). Não temos, então, como evitar as armadilhas que se armam em todos os planos de
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análise pelo fato de a linguagem estar profundamente imbuída da ontologia tradicional. É justamente por esse motivo que, para tratar da totalidade existencial do Dasein, Ser e Tempo teve de inaugurar sua própria linguagem, que busca eliminar todas as dicotomias que resultam da distinção de relações entre objetos ou entre sujeitos e objetos, como resultado da uma crítica fenomenológica à epistemologia de Descartes e Kant. Assim, a questão que deve ser colocada inicialmente no plano da compreensão nitidamente filosófica é esta: é possível elaborar, com base em Ser e Tempo, um tipo de interpretação que ajude a cobrir a fenda entre saúde mental e saúde do corpo? Tendo em conta esta questão (que bem sei representar um enorme desafio de elaboração filosófica), proponho-me a realizar um curto experimento com a linguagem ontológica de Heidegger, falando da totalidade existencial da saúde nesse idioma. Por exemplo, o termo padecimento indica o conjunto de fenômenos defectivos tanto da saúde mental quanto da saúde física. Mas deve ficar bem claro, para o leitor, que todas as palavras e noções propostas neste experimento não fazem parte do vocabulário original de Heidegger, nem se relacionam diretamente com suas cogitações fenomenológicas, expressas em Ser e Tempo e outras obras. Estou ciente de ter me envolvido num experimento arriscado, porque a linguagem de Heidegger está prenhe de sutilezas semânticas e léxicas, que decorrem do rigor que exigiu de si no desenvolvimento de sua ontologia fundamental, e os equívocos de “adaptação” e de “inovação” podem ser cometidos a cada passo. Por isto, o artigo é parcimonioso e propõe um número reduzido de aportes interpretativos. Neste sentido, representa apenas um esboço de um projeto de análise existencial da saúde, que o autor espera ulteriormente desenvolver com mais precisão e detalhe.
Equívocos de leitura e critérios de investigação Nos encontros de Zollikon, Heidegger fez críticas mais ou menos ácidas às interpretações de Ser e Tempo por Binswanger. Afirmou, por exemplo, que ele não percebeu que o amor não tem, tal como o cuidado, um primado ontológico, e que não pode pertencer de direito a uma compreensão da estrutura ontológica do Dasein. Binswanger reconheceu, posteriormente, que havia cometido um erro ao conceder ao amor um estatuto ontológico fundamental para o “ser-no-mundo”, mas que esse havia sido um equívoco produtivo porque o ajudara a conceber a abordagem psiquiátrica da daseinanálise, em que a fenomenologia do amor tem importância crucial. Nessa crítica a Binswanger, Heidegger (2001b) deixa claro que a questão do “ser-no-mundo” é inseparável da compreensão do ser, e que tal compreensão está ausente na obra desse médico-filósofo, que baseou sua análise apenas na constituição fundamental do ser-no-mundo. Não basta determinar o Dasein como ser-no-mundo: é preciso ter a compreensão da questão do ser do Dasein, que enquanto um ser-aí se encontra numa relação privilegiada com o ser e com sua compreensão. Resumidamente, as críticas de Heidegger apontam para dois tipos de equívoco na leitura de Ser e Tempo: a) querer agregar fenômenos ônticos de uma maneira não articulada ou conflitante com a estrutura existencial do
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PARA UMA ANÁLISE EXISTENCIAL DA SAÚDE
Dasein: não se pode ignorar, por exemplo, que o amor é uma realização ôntica do modo essencial de ser do Dasein, que é o cuidado (sorge); b) querer derivar compreensões extensivas e isoladas de um único existencial (ser-no-mundo): é preciso ter em conta todos os existenciais que compõem a estrutura fundamental do Dasein que estão em conexão com a questão do ser, tais como: o cuidado, a angústia, a temporalidade e o ser-para-a-morte. Mas há, também, problemas de ordem epistemológica e metodológica a serem considerados. Toda nova interpretação afinada com a crítica heideggeriana das ciências naturais e que tenha a ver com fenômenos antropológicos, incluindo, portanto, a questão do patológico, deve atender a alguns critérios. Segundo Loparic (2002), tais critérios são apenas em número de dois e de caráter negativo, a saber: não-objetivação e nãodeterminismo. Isto quer dizer que não se pode falar do homem como se fosse um ente a mais na paisagem do mundo, definido por suas relações com tudo que o cerca. Numa abordagem dos fenômenos de saúde e doença que aspire ser consistente com a ontologia fundamental, a interpretação tem de partir do seguinte pressuposto: o homem pode experimentar limitações ou dificuldades de ser o que ele é em essência. Estas são dificuldades de existir à altura da liberdade do Dasein. Loparic (1999) afirma que a psicanálise de Winnicott pode ser entendida como uma efetivação não-intencional do projeto heideggeriano de uma patologia e de uma terapia daseinanalíticas. É a única abordagem que, em sua opinião, satisfaz esses critérios epistemológicos e metodológicos de uma ciência do homem (incluindo, portanto, a ciência do normal e do patológico). Pela teoria winnicottiana, o amadurecimento tem início num ponto em que a criança está enlaçada numa condição em que não é nem idêntica nem realmente distinta da mãe. É longo o caminho percorrido pela criança para perceber-se como independente da mãe e dos entes que compõem o mundo, experimentando com sua liberdade. A criança “cria” a externalidade das coisas e dos seres que são semelhantes a ela, ao mesmo tempo em que desenvolve um sentido de identidade própria e de liberdade de escolha. Esse percurso da criança só é possível porque existe alguma coisa permanente e fundadora da experiência existencial do amadurecimento, que é a natureza humana, caracterizada por um potencial próprio de crescimento e de tendência à condição de unidade (integração). Loparic conclui que, em Winnicott, o processo de maturação só se realiza a partir de necessidades não-causais do ser e que tem, como contrapartida, uma presença devotada de outros seres humanos, que também é de tipo não-causal. Por isto, a única coisa que a psicanálise pode fazer é ajudar para que cada um faça o reencontro com o que Winnicott chama de natureza humana, com seu potencial intrínseco de maturação e integração. A pergunta que se pode fazer, neste ponto, é a seguinte: do ponto de vista da ontologia heideggeriana, a que remete esse reencontro com a natureza humana, à medianidade do modo de ser impessoal como cotidianidade do serno-mundo, ou às possibilidades de singularização asseguradas pelo modo de ser próprio e pessoal do Dasein? Esta questão não fica clara na exposição de Loparic, apesar de sua insistência na grande afinidade entre a visão científica de Winnicott e a visão filosófica de Heidegger. Mas o que é, afinal, uma análise existencial da saúde? Nas palavras de
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Heidegger (2001b, p. 141), “a analítica tem a tarefa de mostrar o todo de uma unidade de condições ontológicas. A analítica como analítica ontológica não é um decompor em elementos, mas a articulação da unidade de uma estrutura”. Contudo, a analítica existencial da saúde não aporta algo essencialmente novo para a compreensão da estrutura ontológica do Dasein, embora tenha de partir dela. Todos os existenciais3 que interessam a uma antropologia filosófica da saúde já estão presentes nessa obra. O que uma antropologia filosófica da saúde busca acrescentar, enquanto análise de uma “região” do Dasein, é uma adequada articulação desses existenciais, mediante certas modalizações existenciárias que permitem interpretar os fenômenos ônticos das enfermidades e dos sofrimentos humanos a elas associados, já que estes são fenômenos de singularização do ser. No entanto, a saúde, enquanto tal, recobre um amplo território de interpretação do Dasein, que já está por inteiro contido em Ser e Tempo. Entendo que, com base nessa obra, é possível distinguir o que de fato caracteriza ontologicamente a saúde. E se sabemos o que é a saúde, fica mais fácil sabermos o que é a sua privação, a doença. Contudo, o estar doente é sempre uma forma singular de ser; por isto, os fenômenos da enfermidade não podem fazer parte da estrutura geral de compreensão do Dasein. Tais fenômenos só são acessíveis pela compreensão dos modos existenciários do ser doente. Creio que foi algo assim que Heidegger (2001b, p.73-4) quis dizer sobre essa questão, numa de suas exposições nos Seminários de Zollikon, embora tenha tratado do assunto de forma tangencial: A doença é um fenômeno de privação. Em toda privação, está a co-pertinência essencial, aquilo a que falta algo, de que algo foi suprimido. Isto parece uma trivialidade, mas é extremamente importante justamente porque a profissão dos senhores movese neste âmbito. Na medida em que os senhores lidam com a doença, na verdade, os senhores lidam com a saúde, no sentido da saúde que falta e deve ser recuperada. (...) Assim, também o estar-não-são, o estar doente é uma forma privativa do existir. Por isso, não se pode conceber adequadamente a essência do estar doente sem uma determinação suficiente do estar são.
A “determinação suficiente do estar são”, no meu entender, está contida nas análises de Ser e Tempo. Uma analítica existencial da saúde deveria dar conta das duas alternativas de compreensão ontológica da saúde, que aí podem ser encontradas: a) a saúde como o recuperar das possibilidades do ser do Dasein na medianidade do cotidiano; e b) a saúde como a abertura do Dasein para as possibilidades que lhe são mais próprias, possibilidades colocadas no horizonte temporal da antecipação da morte e fundadas na angústia. Isto leva a considerar que há uma saúde que corresponde ao modo impessoal e não-próprio de ser, assim como há uma saúde que corresponde ao modo próprio e pessoal de ser. Como primeira aproximação à analítica existencial da saúde, trato de caracterizar alguns modos existenciários em que essas duas alternativas se
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3 Na tradução brasileira, o termo existencial (Existenzial) é reservado para as estruturas de composição do Dasein. Por sua vez, o adjetivo existenciário (Existenziell) “indica a delimitação factual do exercício de existir que sempre se propaga numa multiplicidade de singularidades, situações, épocas, condições, ordens etc.” (Heidegger, 2001a, p.310). Considerei que, não obstante, pode-se reter a denominação de “analítica existencial da saúde” porque nessa interpretação os modos existenciários da saúde e da enfermidade são remetidos continuamente ao plano de articulação com a estrutura existencial.
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apresentam para o Dasein. Mas evitei incluir a análise da relação terapeutapaciente, da ajuda e do próprio significado do cuidado em saúde. O que coloquei em primeiro lugar é a auto-apreensão da saúde, como saúde para si mesmo, que considero ser o modo próprio de indagar numa investigação existencial da saúde. Anotações preliminares para uma analítica existencial da saúde
4 Todas as referências breves e marcantes, colocadas entre parênteses, são extraídas de Ser e Tempo.
A postura existencial própria à saúde. A maioria dos estudos e das práticas de saúde é feita na terceira pessoa. A saúde é algo que pertence aos outros: na clínica, pertence aos pacientes, na epidemiologia, à população em geral. Neste caso, quem pretende conhecer ou questionar a saúde apenas procura saber e avaliar o que acontece com os outros. Ao contrário, num posicionamento existencial da saúde, cada um tem de se reconhecer em jogo em tudo o que se refere à saúde. Assim, para que eu tenha a intuição existencial da saúde, é preciso que eu a assuma como algo que compõe a compreensão do meu ser no mundo. A saúde, de modo ainda incompleto, mas já bem claro, é dada na espontânea compreensão existencial do ser: estou bem ou estou mal. Só posso ter um acesso existencial adequado à saúde quanto a tomo como a minha própria saúde, e não como aquilo que observo nos outros. Mas, para fazer isso, tenho de assumir que o que está em jogo na questão da saúde é meu modo de ser-no-mundo, minha existência como ser-para-amorte. Minha saúde, mesmo quando ainda não sei o que é, posso ver que está entranhada naquilo que compreendo como minha existência. Compreender minha saúde é compreender a mim mesmo como estando num jogo existencial, que inclui o tempo e a história, o que posso ser no mundo e abarca a perspectiva angustiante da morte. É assim que cada um de nós pode ser convertido ao modo próprio de indagar existencialmente sobre a saúde, sendo este, simultaneamente, um modo de indagar sobre a compreensão dos modos de ser do Dasein, tanto na cotidianidade quanto em suas possibilidades mais próprias. O Dasein é um ser-para-a-morte, já que a morte lhe é a possibilidade de se compreender como estando em jogo, enquanto um ser lançado ao mundo: a morte é o seu “poder-ser mais próprio, irremissível e insuperável”4. O homem se diferencia dos animais porque, primeiro, tem o dom da linguagem, e, segundo, porque, sendo o ser do Dasein, compreende a si mesmo como um ser-para-a-morte. O ser do Dasein desde sempre se compreende envolvido em dois modos existenciais que se articulam numa unidade e que são modos de ser do cuidado: a) a ocupação, que se dá no encontro com entes dispostos para uso, ou seja, entes que estão à mão (mundo da manualidade); b) a preocupação, que se dá em relação à presença de outros entes que têm a característica peculiar do Dasein. Neste sentido, o Dasein jamais está isolado, mas surge e se compreende situado numa totalidade criada por esses dois modos de ser no mundo. Por isto, a análise existencial nunca é uma análise da “subjetividade”, mas da existência mesma, que se dá sempre num mundo circundante, envolvendo tanto o que entendemos como sociedade como o que entendemos como meio ambiente. O Dasein, antes de tudo, é um ser que cuida ao se descobrir
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“lançado ao mundo”. O cuidado é o ser-no-mundo do Dasein: o Dasein, em sendo, mostra cuidado. O que se denomina “cuidado em saúde” remete a esses dois modos fundamentais do Dasein e de sua forma de ser como cuidado. Todo cuidado de saúde, numa compreensão do concreto, deriva da combinação possível desses dois modos de ser: manualidade (aspecto técnico, que usa instrumentos tais como os medicamentos) e preocupação (porque se dirige a um ente que tem o modo de ser do Dasein, o homem). O Dasein está originalmente numa disposição, que pode ser descrita resumidamente como humor. O humor é essencialmente variável e indica como estou: bem ou mal, alegre ou deprimido, estranho ou tranqüilo. A disposição é o modo de ser do Dasein que pode fazer com que se defronte consigo mesmo e com sua responsabilidade de ser e de se tornar, ao estar entregue a si mesmo. No entanto, a rápida passagem de um humor a outro faz com que o Dasein se mantenha mais que nada dedicado à ocupação e à preocupação no mundo, ou seja, às tarefas e relacionamentos que lhe são habituais na cotidianidade. Por outro lado, o Dasein, de algum modo, originalmente se compreende como um poder-ser ou possibilidade de ser. Esta compreensão sustenta a abertura do Dasein para todas suas possibilidades, tanto as que foram no passado (as que deixou passar), como as possibilidades presentes e as futuras. Nesta compreensão, o Dasein sabe como anda, isto é, “a quantas anda o seu poder ser”. Quando me pergunto sobre minha própria saúde, o humor e a compreensão estão sintonizados entre si no que sou, no meu Dasein. Isto significa que a compreensão da saúde, como qualquer outra a respeito do simesmo, não se dá num movimento intelectual puro, separado do humor (“sentimentos”). Toda compreensão da minha própria saúde é sustentada pelo humor. Dado o pressuposto de um modo próprio de indagar sobre a saúde e a existência, podemos nos deslocar tentativamente para o conteúdo da compreensão existencial da saúde. O que segue é apenas um passo inicial para a analítica existencial da saúde. O padecimento (do latim patescere, associado ao grego pathos (?), sofrimento, paixão).. O padecimento é um conjunto dos fenômenos existenciários, radicados no cuidado, no humor e na compreensão do ser pelo Dasein: é, em primeiro lugar, esse emaranhado de sofrimentos que tenho enfrentado e ainda, por certo, enfrentarei; esta e outras doenças, esta e outras dores, esta e outras culpas, esta e outras crises de ansiedade, esta e outras formas de me sentir incapaz. O padecimento é também meu modo de ser no mundo, modificado, isto é, defectivo em relação ao ser são; é o modo diferente como me entrego a minhas ocupações e relações com os outros, sob efeito desse emaranhado de sofrimentos. Isto porque não ocorre que, em primeiro lugar, eu padeça, para, posteriormente, conforme vá melhorando ou me restabelecendo, possa voltar ao mundo. O Dasein não se retira do mundo na vigência do padecimento; com efeito, isto só acontece com a morte. O padecimento dá-se ao mesmo tempo em que o Dasein é, enquanto cuidado, nos modos da ocupação e preocupação. A ocupação (execução de tarefas, entretenimento etc.) e a preocupação (junto a outros) dão-se como modos de ser modificados na vigência do padecimento:
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ocupo-me no mundo de outra maneira. Por exemplo, posso chegar tarde ao trabalho, tomar um táxi em vez de dirigir meu próprio carro, posso dirigir um carro especialmente adaptado para mim (se tenho alguma forma de invalidez). A preocupação também se modifica: posso prestar menos atenção às pessoas ou pedir aos outros que me ajudem em alguma tarefa ou diretamente que cuidem de mim. Se, no padecimento, o Dasein se sente autorizado a modificar seu modo de ser no mundo, também o mundo está autorizado a se modificar para acolher o padecimento: por exemplo, as ambulâncias têm prioridade no trânsito; os banheiros e as calçadas são adaptados para que os incapacitados possam ter acesso em cadeiras de rodas etc. O Dasein padece numa totalidade, não só pelo que sente, mas pelo que faz continuamente como ser-no-mundo: não sei distinguir onde termina a culpa que me rói por dentro e onde começa essa coisa que os médicos chamam de alergia (talvez sejam ambas que me fazem espirrar sem cessar...). Assim, existencialmente, não há um padecimento que seja determinável como um ente particular, uma coisa só, tal como a medicina busca fazer ao distinguir as doenças enquanto unidades do diagnóstico. A distinção entre formas de padecimentos físicos, psíquicos e espirituais só é possível com referência ao conhecimento de uma autoridade médica ou religiosa, embora o senso comum também acabe se orientando por essas distinções. A medicina oficial trata de diferenciar um ente do padecimento e classificá-lo em tipos nosológicos, separados daquilo que é essa totalidade. Contrariamente, certas correntes alternativas da medicina (como a homeopatia) declaram que buscam determinar exatamente aquilo que identifica o Dasein em seu padecimento e dizem poder apreender a unidade de seu padecimento em meio à multiplicidade das queixas do paciente, de suas enfermidades e particularidades (modo de ser-no-mundo). É preciso levar em conta, portanto, que, nesse plano geral da análise existencial da saúde, não cabe a interpretação das causas ou dos modos de se apresentar das enfermidades. Por outro lado, o padecimento que nomeamos é sempre algo peculiar ao homem e nada do que se diz aqui pode ser estendido a uma interpretação da saúde animal. O padecimento, em suas possibilidades existenciárias, está essencialmente fundado na angústia, da qual ninguém pode ser efetivamente “curado”. Pela angústia, o Dasein pode defrontar-se com suas possibilidades mais próprias, saindo da impessoalidade do mundo cotidiano. O significado existencial do padecimento encontra-se nas transformações do cuidado: o padecimento levame a me preocupar comigo mesmo e confrontar-me com o que sou e quero ser; posso receber generosamente a atenção e o carinho dos outros; posso me retirar das ocupações no mundo e ter espaço e tempo para estar comigo mesmo. Com isso, há a chance de que eu saia do modo impessoal de ser-nomundo, e me entregue à angústia, porque, neste dar-se tempo, o Dasein incomoda-se com suas possibilidades de poder-ser e com seu ser-para-a-morte. Entregando-me à angústia, posso me assumir nas possibilidades que me são mais próprias e tomar a decisão de forjar meu projeto singular de ser-nomundo. Por outro lado, posso contornar a angústia ou não experimentá-la por completo. Perturbado, busco “deixar pra lá” a angústia, para me
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restabelecer, voltar a ser o que eu era antes, na mundanidade cotidiana, onde me espera um bem-estar confortável. Ainda quando o padecimento estreita meu projeto existencial em meu horizonte de possibilidades, ele me ajuda a fazer de mim uma pessoa sem igual: afinal, sou o único a padecer no mundo desta maneira. Estou lançado ao mundo como ser que padece desta maneira e, graças a isto, sou reconhecido e acolhido. Assim, o padecimento é sempre um modo de ser singularizador e, por isto, tem de ser compreendido nessa condição de particularidade, em sua dinâmica ôntica, existenciária. O padecimento abre essas duas possibilidades ao Dasein: de uma parte, pode deixá-lo entregue a sua angústia e preparar o advento do modo de ser mais próprio; de outra parte, pode trazer o anseio da recuperação no modo não-modificado de ser no mundo, que é a reinserção na mundanidade cotidiana, com sua familiaridade tranqüilizadora. O socorro. Como não padeço no vazio, mas no mundo, com minhas ocupações e preocupações, mais ou menos modificadas, e que “estão a esperar por mim”, tenho de lidar com meu padecimento para continuar a ser quem sou. O socorro é aquilo que me permite lidar com meu padecimento e ir adiante no cotidiano. Tem o modo de ser do cuidado na preocupação, mas é dotado de manualidade: tenciona buscar um efeito bem definido, que é o sair do padecimento. Na sua origem, constitui uma modificação da preocupação, ou seja, do meu modo de ser com os outros e comigo mesmo, em que me sinto compelido a buscar ajuda e ajudar-me de algum maneira. Assim, surge pela aflição e pela compreensão de que “estou mal” e que preciso de ajuda urgente. O cuidado joga o Dasein no modo de ser existenciário do socorro: busco não só isto e aquilo, mas tudo que encontro à mão. Assim, o socorro acaba por fazer o Dasein recorrer a uma ampla gama de possibilidades, no plano da manualidade do cuidado. Mas o socorro não dá lugar apenas a uma ajuda emergencial ou paliativa. Qualquer tipo de ajuda é ansiado e bem recebido. Por isso, o socorro tem um destino existencial indeterminado e assinala apenas que o Dasein está lidando com seu padecimento para seguir adiante no mundo. O restabelecimento. O restabelecimento é a modalidade existenciária que faz o Dasein, sempre que pode e o mais rapidamente possível, retomar seu modo de ser na cotidianidade, aquilo que lhe é familiar. É, ao mesmo tempo, o objetivo e percurso do que se chama usualmente de cura. Desde sempre, o Dasein se encontra lançado ao mundo, que é o espaçotempo da ocupação e da preocupação. O mundo do Dasein configura-se como a cotidianidade, ou seja, o conjunto repetitivo de tarefas e de preocupações de todos os dias, em que o Dasein se perde numa efervescência de coisas a fazer, de opiniões e de falas intermináveis (o falatório). Este é o modo impessoal de ser-no-mundo, mas é também, por assim dizer, o modo de ser regular, ordinário, “normal”, do Dasein. Fechando suas possibilidades, o Dasein deixa de se ocupar consigo e com seu ser-para-a-morte que lhe mais próprio. O cotidiano revela-se, para ele, um ambiente seguro e confortável, um lugar para estar em paz e em bem-estar. Por isto, o Dasein foge do padecimento e busca, de novo, pôr-se por inteiro nesse modo de ser da cotidianidade, onde encontra tranqüilidade e bem-estar.
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PARA UMA ANÁLISE EXISTENCIAL DA SAÚDE
O restabelecimento é tudo o que sinto e faço na rota que me permite voltar à plenitude da cotidianidade. Sinto-me, finalmente, bem e posso voltar às ocupações e às preocupações que anteriormente me eram habituais, deixando de lado as modificações que adotei durante o padecimento. Pouco a pouco me restabeleço num mundo que me é familiar. Por isto, posso deixar para trás o socorro. Mas é possível que, nesse retorno à minha situação habitual, o padecimento tenha simplesmente se esquivado e permaneça oculto algures. Escondeu-se em um desvão ou foi esquecido, suprimido, excluído. Mas certamente subsiste em potência. Pode reaparecer, revestido de outra figura ou com a mesma figura que antes havia se revelado. Assim, o padecimento não findou, mas apenas deixou temporariamente de obstruir ou modificar o meu modo de ser-no-mundo. O reatamento. Ao longo do curso temporal em que lida com seu padecimento, o Dasein, compelido pelo cuidado e pela angústia, pode decidir projetar-se em suas possibilidades de ser mais próprias. Isto só pode ocorrer se não foge da angústia nem se refugia no padecimento como forma de ser singular. A angústia não é algo que surge a partir de algum ente específico que venha ao encontro do Dasein (como ameaça ou outra característica qualquer). Fundamentalmente, a angústia se angustia com o próprio ser-no-mundo. Mas a angústia é a condição necessária para que o Dasein projete-se no mundo com uma nova visão de suas ocupações e de suas preocupações. É uma forma de ser que singulariza o Dasein; em outras palavras, confere identidade a seu projeto de vir-a-ser. A angústia envolve um sentir-se estranho, desconfortável, que já se faz presente no padecimento, e do qual o Dasein, no modo existenciário do socorro, é tentado a escapar. A angústia opõe-se ao bem-estar da cotidianidade; no entanto, é justamente ela que desenha o horizonte das possibilidades mais originais do Dasein. A angústia é, também, um angustiar-se com o ser-para-a-morte, a morte como uma possibilidade própria, pessoal, do Dasein. Por isto, o Dasein foge da angústia, que acompanha o padecimento, em busca de um rápido restabelecimento no mundo cotidiano. Aí, sente-se em condições de tratar da morte em forma impessoal: é algo que acontece aos outros e não a si, é apenas um risco, em vez de ser o que lhe é de fato, a possibilidade mais própria ou mais decisiva. Mas a antecipação da morte é a possibilidade irremissível do Dasein, é a possibilidade que o libera para existir de modo mais próprio e para um modo próprio de compreender sua saúde. Mas posso dar-me a escolha de me confrontar por inteiro com a angústia, e reconhecer que há uma tarefa que me pertence, que tenho, desde logo, a cumprir, lidando com meu padecimento. O reatamento surge nesse reencontro do Dasein com seu ser-no-mundo, em que, por assim dizer, refaz sua totalidade existencial. Como desde sempre sou “junto ao mundo” e jamais posso ser “desatado” ou “isolado”, esse re-atar é apenas o que chamamos de uma impressão: é o que posso entender existenciariamente em minha exaltação e alegria, como um nascer de novo, vir novamente ao mundo em que sempre sou e do qual nunca saí. O que isto pode significar ontologicamente é que me ponho no horizonte de todas as minhas possibilidades no modo próprio do Dasein: sou por inteiro livre em minhas
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possibilidades, e não naquilo que a efervescência das ações do mundo impessoal me dá a entender como obrigação. Deixo para trás o ser-nomundo impessoal e cotidiano, e singularizo-me em meu projetar-me para as novas possibilidades abertas no meu ser-no-mundo. No reatamento, o socorro a que me entreguei deixa de ser tomado como um curativo, uma ajuda providencial. O socorro pode ser um suporte para meu reatamento, mas é o reatamento, em seu lugar, que se releva como a tarefa que me é mais própria. Evito fazer do socorro uma ponte rápida e eficaz para chegar, logo, a meu restabelecimento. Reatamento não é um padecimento remediado para que o Dasein siga adiante; é, ao contrário, a condição em que o Dasein refaz aquilo que ele é, nos modos de ser da ocupação e da preocupação. Mas já de si, o padecimento é uma totalidade que não pode ser dividida em múltiplos aspectos, tais como: os corporais, os psíquicos e os espirituais. O reatamento envolve, desde logo, a totalidade do Dasein e a totalidade daquilo que esses aspectos analíticos representam, porque, de outro modo, seria apenas um restabelecimento. O que acontece, então, com o padecimento quando se dá o reatamento? Pode desaparecer ou não. Pode desaparecer porque, na origem, surgiu de meu modo anterior de ser-no-mundo na cotidianidade. Ou pode persistir, mas não mais me perturba como fazia antes, porque aprendi a conviver com o padecimento e com a angústia que lhe é natural: não simplesmente para seguir adiante na mundanidade cotidiana, mas em sendo de uma maneira própria, à altura da liberdade do Dasein. O reatamento é essa recuperação de uma totalidade existencial que é minha, mas foi perdida no modo impessoal de ser. Mas o reatamento não diz respeito só ao modo de compreender a saúde e de apresentar como são para si e para os outros. É ao mesmo tempo uma recuperação da essência da saúde e o alcance da existência própria. Porém, o reatamento não deve ser tomado no sentido de um episódio único e definitivo. Ele inaugura as possibilidades de um novo ciclo existencial. Daí em diante, o Dasein está confrontado com as escolhas que possa fazer nesse modo próprio e pessoal de ser, assumindo por inteiro sua responsabilidade pelas ocupações e preocupações que dele fazem um ser-nomundo.
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NOGUEIRA, R. P. Para un análisis existencial de la salud. Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.10, n.20, p.333-45, jul/dez 2006. Educ. La ontología fundamental de Heidegger en Ser y Tiempo ha servido como fuente de inspiración para investigadores en las áreas de la salud mental y de la salud colectiva, a pesar de las dificultades de la interpretación de esa obra. La comprensión errónea de Binswanger, en la tentativa de transportarla al psicoanálisis, sirve de ejemplo y es expuesta brevemente con base en el análisis detallado realizado por Loparic. En este artículo, el autor asume que el lenguaje antimetafísico de Heidegger puede ayudar a cerrar lo que él llama grieta ontológica entre la salud mental y la salud del cuerpo. En la primera parte, el artículo recapitula algunos equívocos que pueden ser cometidos al interpretar sobre la ontología de Heidegger y delinea los criterios de no-objetivación y no-determinismo. En la segunda, el autor aporta su contribución personal, al explicitar su propia interpretación de la analítica existencial de la salud, articulada alrededor de términos tales como padecimiento, ayuda y religación. PALABRAS CLAVE: Ontología. proceso de la salud-enfermedad. existencialismo.
Recebido em 27/09/05. Aprovado em 14/07/06.
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ZORAN, 1999
Medicalização social (II): limites biomédicos e propostas par a a clínica na atenção básica* para Charles Dalcanale Tesser 1
TESSER, C. D. Social medicalization (II): biomedical limits and proposals for primary care clinics. Interface Educ., v.10, n.20, p.347-62, jul/dez 2006. Comunic., Saúde, Educ.
Social medicalization diminishes or even eliminates people’s autonomy regarding disease and health, and generates an endless demand on health services, consequently posing an significant challenge on the Brazilian unified public health system (“SUS”). This article discusses the limits of biomedical knowledge/practices vis-à-vis its contribution in promoting users’ autonomy and offers some guidelines regarding how to deal with these limitations; concluding that intervention technologies, biomedical knowledge and its cognitive procedures have contributed very little to promoting patients’ autonomy. In view of this reality, the author recommends that a shift in applying biomedical knowledge’s, focusing on health professionals’ healing role, seeking to reestablish patients’ autonomy, prevent and heal genuine ailments, in addition to diagnosed illnesses. It upholds that a reorganization of primary care biomedical clinic’s values and goals should be made , including diagnosis’ relativity, putting an end to disease and risk ontology, as well as the obsession with control, the fight against biomedical dogmatism, and giving priority to therapy as a treatment. KEY WORDS: social medicalization. epistemology. family health program. primary care. clinical medicine. clinical competence. A medicalização social destrói ou diminui a autonomia em saúde-doença das populações e gera demanda infindável aos serviços de saúde, consistindo em relevante desafio para o SUS. Este artigo discute limites dos saberes/práticas biomédicos quanto à sua contribuição para a promoção da autonomia dos usuários e propõe algumas diretrizes para o manejo desses limites. Conclui que as tecnologias de intervenção, os saberes biomédicos e suas operações cognitivas pouco contribuem para a autonomia dos doentes. Frente a tais limites, sugere uma ressignificação dos saberes biomédicos, centrada na função “curandeira” das equipes de saúde, vista como missão de reconstruir a autonomia, prevenir e curar os adoecimentos vividos, além dos diagnosticados. Defende uma reorganização de valores e metas da clínica biomédica na atenção básica, como a relativização dos diagnósticos, a desontologização das doenças e dos riscos, o fim da obsessão por controle, o combate ao autoritarismo biomédico e a priorização da terapêutica. PALAVRAS-CHAVE: medicalização social. epistemologia. programa saúde da família. atenção primária à saúde. clínica médica. habilidade clínica.
*
Este artigo deriva de parte de estudo de mestrado (Tesser, 1999).
1
Professor Adjunto, Departamento de Saúde Pública, Universidade Federal de Santa Catarina. <charlestesser@ccs.ufsc.br>.
Rua Sebastião Laurentino da Silva, 1307 Córrego Grande - Florianópolis, SC Brasil - 88.037-400
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TESSER, C. D.
Introdução A realidade da medicalização social crescente, aliada às múltiplas crises da atenção à saúde, de que fala Luz (1997), tem indicado a necessidade de rediscussão e desenvolvimento do tema da medicalização, de suas conseqüências e do seu manejo nos serviços públicos de saúde (rede básica e Programa Saúde da Família - PSF). Grosso modo, a medicalização é um processo de expansão progressiva do campo de intervenção da biomedicina por meio da redefinição de experiências e comportamentos humanos como se fossem problemas médicos. Segundo Illich (1975), a expansão da medicina científica ou biomedicina, a outra face da medicalização social, gera o fenômeno da contraprodutividade: um fenômeno moderno das sociedades industriais, em que a utilização de ferramentas sociais e tecnológicas tem como resultado efeitos antagônicos ao seu objetivo. No caso, instituições de saúde que produzem doenças, medicina que produz iatrogenias. Tal fenômeno pode se dar por monopólio das funções ou por excesso de uso da ferramenta, ou ambos, como é o caso da biomedicina. As conseqüências da contraprodutividade das ações de saúde institucionais e a tese illicheana de que se perderam as condições sociais e culturais que permitiam sinergia positiva entre ações autônomas (realizadas pelo indivíduo ou seus pares no seu meio social autóctone) e ações heterônomas em saúde (realizadas e controladas por agentes profissionais institucionalizados especialistas) ressaltam a importância do tema da medicalização e da questão autonomia-heteronomia. Elas foram discutidas recentemente por Nogueira (2003) e significam relevante desafio para o Sistema Único de Saúde (SUS). A medicalização social está associada ao que Illich (1975) chamou de iatrogenia cultural, uma forma difusa e sub-reptícia de iatrogenia da biomedicina: a perda do potencial cultural para manejo da maior parte das situações de dor, adoecimento e sofrimento. O carro-chefe das propostas desse autor consiste em incrementar, reinventar e/ou resgatar a autonomia das pessoas em saúde-doença, de forma a caminhar no sentido do reequilíbrio entre ações autônomas e heterônomas. Isso remete ao papel que a atenção à saúde institucional desempenha nesse processo. Segundo Tesser (2006), a medicalização social pode ser considerada o resultado do sucesso da empreitada científica na saúde, que buscou monopolizar a legitimidade epistemológica oficial no ocidente. Usando a concepção epistemológica de Fleck (1986), Tesser interpreta a medicalização social como o resultado do sucesso da socialização dessa medicina para grandes contingentes populacionais pouco modernizados, o que implica um epistemicídio de saberes e práticas não-científicos, populares ou tradicionais. Até pouco tempo, esses saberes foram importantes fornecedores de lastro cultural e técnico para ações autônomas em saúde-doença; lastro este em processo de extinção ou intensa transformação. Adotando posição inspirada em Boaventura Santos (2000, 2004), o autor propõe que a biomedicina seja considerada indispensável e necessária e, simultaneamente, inadequada e perigosa. Um dos seus perigos é justamente sua atuação no processo de medicalização e iatrogenia cultural de que falou Illich. Sob o ponto de vista da construção de estratégias de ação prática para o SUS, essa proposição demanda clareza e compreensão sobre o poder da ação
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MEDICALIZAÇÃO SOCIAL II: LIMITES...
Utiliza-se aqui o termo saber “clínicoepidemiológico”, em geral intercambiável com “biomédico”, apenas para ressaltar que se trata de um conjunto integrado que envolve as disciplinas e os saberes tanto da epidemiologia e disciplinas auxiliares quanto da clínica e auxiliares, unidade esta proposta por Camargo Jr. (1992a, b, 1993) como um paradigma clínico-epidemiológico a orientar a biomedicina. Desse modo, apenas é evitada, explicitamente, a tendência de desvincular clínica (medicina) de epidemiologia (saúde coletiva).
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medicalizante da atenção básica, bem como sobre o modus operandi da atuação dos médicos e seus saberes sobre a cultura em saúde dos usuários, sempre reconstruída em cada interação usuário-serviço ou médico-paciente. Neste sentido, estratégias e orientações para uma atenção à saúde na rede básica, de caráter “desmedicalizante” e/ou minimizador da medicalização, tornam-se valiosas e são relativamente escassas. A importância desse tema fica ressaltada ao se levar em conta o momento atual do SUS, que investe na ampliação e reorientação da rede básica por meio da estratégia do PSF. Entrando facilmente nos domicílios brasileiros, o PSF é uma “faca de dois gumes”: uma chance para a reconstrução da autonomia e/ ou, simultaneamente, uma nova e poderosa força medicalizadora. Assim, uma interrogação sobre o saber/prática biomédico contemporâneo (clínico-epidemiológico2) parece necessária para se poder vislumbrar quais as possibilidades e desafios dessa medicina quanto à sua relação com o crescimento (ou não) da autonomia dos sujeitos em saúde-doença. Essas são as justificativas para os dois objetivos deste artigo: 1) refletir sobre a biomedicina quanto aos seus limites para a reconstrução e o fomento da ação autônoma; e 2) esboçar algumas diretrizes para o exercício da clínica médica na atenção à saúde na rede básica e no PSF. Qual o grau de adequação ou inadequação do saber/prática biomédicos para o resgate da ação autônoma? Como é o modus operandi da ação biomédica no seu sentido medicalizante (inadequado)? Visando a transformação ou minimização desse sentido, que estratégias podem ser propostas para o trato do problema na clínica da atenção básica? O primeiro objetivo é abordado por intermédio de um ensaio que discute algumas características do saber e das tecnologias biomédicas de prevenção e cura, bem como dos movimentos cognitivos comumente executados pelos profissionais médicos no dia-a-dia da atenção à saúde na rede básica. A interação médico-doente é usada como foco de referência para a análise que segue (e, por hipótese, pode ser adaptada com as devidas correções para a atuação de outros profissionais de saúde. Por meio dessa análise, almeja-se discutir as duas primeiras questões formuladas. O segundo objetivo – a terceira questão – é desenvolvido por meio de considerações baseadas em estudo de mestrado e em experiências profissionais e institucionais do autor como médico generalista e sanitarista, discutidas como contribuição para a construção de diretrizes técnico-filosóficas para o trato do manejo da medicalização no nível microssocial dos serviços básicos de saúde – obviamente sem nenhuma pretensão de esgotar o tema. Biomedicina e autonomia Os processos interativos entre profissionais de saúde e doentes estão sempre sob tensões de múltiplas naturezas, cujos resultantes gerais têm sido altamente medicalizantes. Além de condicionantes culturais, de gestão dos serviços e de (de)formação profissional dos profissionais médicos, a tese aqui defendida é que os saberes e as tecnologias correntes na biomedicina – no seu funcionamento, no seu uso – tendem a pressionar a interação médicodoente para o reforço da medicalização. Portanto, possuem uma força medicalizante “intrínseca”, por assim dizer.
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Neste tópico é esboçado um olhar crítico sobre o saber biomédico (clínicoepidemiológico), com vistas a um dimensionamento dos limites e desafios do saber clínico-epidemiológico quanto à sua relação com o crescimento (ou não) da autonomia dos doentes ou usuários, ou seja, esmiuçando alguns aspectos “internos” dessa força medicalizante. O saber clínico-epidemiológico atual, a instituição médica e a prática da biomedicina estão inextricavelmente imbricados, motivo pelo qual esses termos serão usados em seu sentido coloquial, sem pretensão de rigorosa conceituação, desnecessária para os fins desta discussão. Para efeito de análise, os saberes e práticas biomédicos podem ser divididos em duas grandes áreas: uma área de prevenção e uma área de terapêutica. Ainda que ligadas por um mesmo saber fisiopatológico, é comum, tanto no saber como na prática biomédica, que ocorra a prevenção sem o tratamento, ou ocorra o tratamento sem que seja tocada a prevenção. Abordam-se, a seguir, estas duas grandes áreas. A prevenção Uma parte da prevenção na biomedicina circula pelo que se pode chamar de noções de higiene, que dizem mais respeito, nesse saber, às doenças infectoparasitárias. Aqui, a biomedicina contribui para a autonomia dos sujeitos, enriquecendo sua visão com explicações sobre o que considera a patogenia dos microorganismos e a importância profilática da higiene. Ainda que tais noções de higiene não sejam exclusividade deste saber, nada induziria receio quanto à relação dessa parte da biomedicina com o fomento da ação autônoma. Isso vale para os cuidados pessoais e sanitários, no sentido do bloqueio dos meios de transmissão e contaminação, por intermédio de resíduos, água, dejetos, animais etc. Outra grande parte dessa área preventiva diz respeito a profilaxias específicas, via imunização. Esta é uma parcela nobre do saber dessa medicina, dados os seus investimentos frente a doenças consideradas infecciosas, bem como algumas conquistas atribuídas ao desenvolvimento das vacinas. Responsável por parte da legitimidade e do sucesso da medicina científica no seu embate contra esse tipo de doença, essa parcela de saberes e práticas mostra-se, a uma primeira vista, ambígua quanto à sua contribuição para o crescimento da ação autônoma. Se, por um lado, esses saberes e suas tecnologias correlatas permitem a existência e a vida de muitas pessoas antes talvez condenadas a sofrimentos, seqüelas ou mesmo morte precoce, por outro lado, eles remetem as pessoas à dependência estrita da instituição médica (via saúde pública), visto que ao cidadão fica atribuída apenas a submissão aos procedimentos tecnicamente determinados. Supõe-se, pela Biociência, o benefício das imunizações, e não se discute com as mães usuárias do SUS sobre se devem ou não vacinar seus filhos, senão quando da rebeldia de algumas, para enquadrá-las. Nesse sentido, o saber biomédico em nada fomenta a autonomia dos sujeitos, pois todo poder, saber e capacidade de decisão estão alheios a eles. Aos cidadãos, cabe apenas anuir o que lhes é prescrito, ou, às vezes, imposto. Pode-se tentar explicar às pessoas as razões pelas quais deveriam adotar o instituído, mas isso não chegaria nem perto do universo de saberes, incertezas,
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polêmicas científicas, riscos, estatísticas, pressões políticas e circunstâncias que norteiam tais decisões. Pouco se contribui, aqui, com a expansão da autonomia, embora se possam diminuir certas morbidades e mortalidades e, assim, prevenir doenças ou suas complicações e, possivelmente, salvar vidas, o que não é nada trivial. Outra parte dos saberes e técnicas de prevenção é a relacionada a atitudes, costumes, alimentação, estilos de vida, atividade física, etc. Aqui se reúnem as chamadas “orientações higieno-dietéticas” e de “estilo de vida”. Não é necessário um detalhamento desse universo, mas cabem algumas considerações sobre um aspecto que permeia o saber biomédico. É o corolário da busca da medicina por um conhecimento objetivo e universal, no qual a separação entre o ser cognoscente e o conhecido é pressuposta. O saber médico científico divorciou-se da vida e da percepção pessoal, cultural e social dos homens. Ganhou um caráter técnico, esotérico e positivo, um saber dito de terceira pessoa, gerando um abismo entre o que sabem e podem saber o paciente e o médico. Santos (1982) discute essa cisão epistemológica entre saber científico e o que se considera de senso comum, chamando-a de “primeira ruptura epistemológica”. Institucionalizado como ciência, vitorioso social e politicamente, o saber médico é sempre um saber sobre outrem, com características especiais. É um saber sobre as doenças ou probabilidades e riscos de doenças do corpo (ou psique). E, além disso, ainda é: um saber que está além do próprio profissional que supostamente o domina, radicando-se na instituição “Ciência”. Este saber concentrou, de forma espetacular, sua fundamentação e seu poder numa instituição que é representada por um outro transcendente, alheio à pessoa doente, distante dela e inacessível. Tendo sido seu objeto de atenção reduzido de sujeito doente a corpo (ou psique) doente, corpo portador de doença e, por fim, doenças e seus riscos, o saber clínico-epidemiológico desconhece a saúde e a vida dos sujeitos, as quais vão se transformando em medidas que instrumentos quantificadores e padrões de imagens registram em termos de constantes e variantes fisiológicas, dinâmicas funcionais e fatores de risco estabelecidos por padrões estatísticos (Luz, 1996). O precedente é dito no sentido de contextualizar teoricamente uma constatação sobre os saberes profiláticos da biomedicina: esta criou um fosso quase intransponível entre o sujeito e os conhecimentos sobre sua própria saúde-doença; entre o saber médico e o saber individual que, na prática, orienta as pessoas e ganha significado e valor diferenciado para cada sujeito, conforme as suas características pessoais, sociais, culturais e econômicas. A “segunda ruptura epistemológica”, proposta por Santos (1982) como necessária, parece dificílima na saúde, e mesmo quando buscada parece que nunca chega satisfatoriamente – senão sob a forma de medicalização e sua dependência generalizada. Com isso, o saber biomédico profilático desligou-se da perspectiva existencial do sujeito doente, pouco dizendo que lhe faça significado vital e lhe remeta a processo de revisão valorativa, no sentido de abrir possibilidades de crescimento, ação e responsabilização em relação a si mesmo, seus próximos e seus problemas de saúde. Como conseqüência, muitos saberes preventivos estabelecidos por essa medicina ganham caráter de prescrições que não se integram ao universo vivenciado pelo sujeito. Revestem-se de um tom
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monástico, asséptico, pouco convincente e operacionalizável, por seu caráter rígido e restritivo: não beba, não fume, não use drogas, durma bem, alimentese moderadamente, sem excessos, coma mais vegetais, restrinja o açúcar, o sal, a gordura, faça exercícios regularmente, não se estresse etc. Além disso, a situação da profilaxia se agrava pelo imbróglio valorativo e filosófico no qual esse saber se encontra: destituído de espaço filosófico próprio (como, de resto, a biomedicina como um todo, devido a sua adesão ao modelo científico positivista que transformou esse espaço em debate metodológico), é difícil amalgamar uma proposta de revalorização da questão saúde (vida) que possa articular o saber profilático acumulado pela biomedicina com o universo simbólico e cultural dos doentes. Talvez só o próprio mundo simbólico e ideológico da instituição biomédica consiga essa façanha, onde tudo se resume à luta contra entidades patológicas – e seus riscos – sempre à espreita, prontas para atacar. Este mundo vive, recentemente, uma obsessão pela prevenção, pelo “estilo de vida saudável”, que se expandiu para a sociedade em geral e a mídia, chamada por Nogueira (2003) de higiomania moderna. Ficam, assim, tais saberes desamarrados em meio à massa de técnicas, valores e ideologias que reforçam a dependência institucional, o consumo farmacêutico e de procedimentos e serviços especializados, a desvalorização da autonomia e de outros saberes ou valores próprios do doente ou de outras referências filosóficas ou culturais diversas. Na prática profissional daí derivada, tais saberes tendem a minimizar o que subsiste de autonomia nos sujeitos. A terapêutica Com relação à parte terapêutica do saber biomédico, o diagnóstico é uma categoria central. Se o diagnóstico permite ao médico concluir sobre o que se passa, propor ações terapêuticas e executá-las, permite ao doente uma interrelação com esse saber biomédico e sua interpretação para a situação de doença vivida. É na direção do diagnóstico que se orienta o fluxo de operações cognitivas na biomedicina. Estas são retomadas, a seguir, para uma discussão de sua relação com a autonomia do doente. O doente e sua história, na abordagem biomédica, são metamorfoseados em história clínica e dados de exame físico. Estes permitem a geração de hipóteses diagnósticas sindrômicas, fisiopatológicas, anátomo-funcionais e/ou etiológicas, que orientam, conforme o caso, a mobilização de técnicas diagnósticas mais ou menos intervencionistas cujo fim é a construção de um diagnóstico: a leitura médica da situação, que opera ou tenta operar a identificação de uma ou mais patologias no corpo e ou psique do doente. O(s) diagnóstico(s) determina(m) o quadro interpretativo que o saber clínico-epidemiológico propicia ao profissional de saúde. Este, então, pode oferecê-lo (se isto acontecer) ao doente como explicação para a sua situação e para a terapêutica. Quando exitoso este processo, ele refere-se a uma “doença”, entidade de existência supostamente autônoma, distinta do paciente e no seu corpo instalada, a ser explicada (em geral, apenas nomeada) ao doente e eleita como alvo e objeto das suas atenções, como inimigo a ser combatido e vencido. Vale ressaltar, a respeito da “teoria das doenças” dessa medicina e do imaginário reinante no mundo medicalizado, que as doenças são vistas como
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3 Para uma visão crítica e epistemológica desse ideário, ver Tesser & Luz, 2002.
“coisas”, relacionadas a lesões a serem investigadas no interior do corpo físico e corrigidas com alguma intervenção concreta (Camargo Jr., 1993). É desnecessário comentar que, mesmo em ambientes especializados, o caráter convencional e construtivo das doenças é extremamente difícil de ser percebido, dado que um dos efeitos da construção dos fatos científicos é o apagamento dos vestígios de sua construção, dando-lhes a aparência de pura objetividade (Latour, 2000a, b; Latour & Woolgar, 1997)3. Ora, operou-se pela via do saber, da interpretação, um movimento de focalização da atenção na doença, como entidade distinta e alheia ao sujeito. Operou-se um desvio específico do olhar, que deixou de lado a vida do sujeito e seu adoecimento nas suas condições de existência (sociais, econômicas, emocionais, ambientais, espirituais), e apresentou as categorias fisiopatológicas, fatores etiológicos e de risco com que trabalha a biomedicina. (Gonçalves, 1994). Em princípio, tal saber funciona de modo auto-referenciado. Assim, ignora outras perspectivas ou fatores que não aqueles com que trabalha. Caso o profissional possa conceber ou perceber alguma relação distinta, em geral, não poderá fazê-la dialogar com a interpretação do saber clínicoepidemiológico e as terapêuticas respectivas traçadas pelo diagnóstico. Por exemplo, uma infecção é uma infecção, independentemente de ter sido desencadeada ou estar envolvida em vivências de ordem emocional, existencial ou ambiental. Poderá ser estabelecido um segundo diagnóstico, de ordem “psi”, em geral, mas aí se recai na dicotomia psique-soma. Freqüentemente, isso é impossível: uma otite em lactente por “pegar vento frio” é apenas uma otite. Uma “hipertensão arterial” devidamente investigada e bem controlada quimicamente, com anos de evolução, é uma “hipertensão”: não importa se começou especificamente com a perda de um ente querido e se tal dor persiste por décadas, a ponto de desencadear prantos catárticos à segunda pergunta sobre o tema. Ainda que sejam tomadas providências tardias quanto ao problema “emocional” (psicotrópico? psicoterapia?), a pressão alta será tratada independentemente enquanto persistir elevada, em paralelo a outras intervenções para “outros” diagnósticos. Tais exemplos mostram que essas dicotomias e limites estão inscritos também no saber. Feito o diagnóstico, o doente é “convidado” a aceitar a interpretação técnica do profissional. Mesmo que haja relevantes diferenças culturais, como ocorre na maioria das vezes no Brasil, há um certo grau de sucesso na apropriação pelo doente da interpretação biomédica. Ainda que o saber médico aponte causas enraizadas na vida do doente, como comumente ocorre nas doenças crônicas, este, enquanto sujeito, praticamente não aparece: é portador de fatores de risco, genéticos, comportamentos de risco etc., todas coisas que são do âmbito de sua vida vivida, mas que lhe ficam estranhas no isolamento e na objetivação biomédica, por mais seus que possam ser. Além disso, ainda que os diagnósticos sejam sindrômicos ou apenas descritivos, operam uma objetivação dos sintomas. Estes receberão intervenção supostamente local (especificamente dirigida), a qual tenderá a desviar a atenção dos sujeitos no sentido já apontado. Ao diagnóstico segue a terapêutica. As intervenções terapêuticas
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biomédicas podem ser resumidas em três grandes tipos, para os fins desta discussão: 1) Combate à etiologia e sua eliminação se possível, comum nas chamadas doenças infecciosas e parasitárias, onde se identifica um agente –um microorganismo ou parasita – como causa única da doença. Este tipo de atuação reproduz e reforça o movimento já operado pelo ato diagnóstico. É relativamente pobre do ponto de vista restrito do fomento da autonomia, ainda que possa salvar muitas vidas, o que não é trivial. Esta é uma das poucas áreas da biomedicina em que os médicos falam em cura sem mal-estar. Em que a sua eficácia, particularmente nos casos graves, não é praticamente questionada por ninguém. 2) A intervenção nos mecanismos fisiopatogênicos ou na sua expressão, para seu controle: usada em todas as doenças não-infecciosas e crônicas, em que não se conhece uma “causa única”. Isso se dá na grande maioria dos casos, particularmente os crônicos. Esse tipo de terapêutica é a grande massa de saberes terapêuticos biomédicos, e está envolvida nas profundas transformações na identidade, nas práticas e nas representações sobre saúdedoença desses doentes, considerados incuráveis. 3) O combate aos sintomas é uma terceira proposta de ação terapêutica que merece destaque, não por alguma especificidade própria, mas pela sua força econômica e cultural, disseminação social e expansão ideológica no meio biomédico e nas populações. A rigor, esta espécie de intervenção pertenceria ao tipo anterior, já que diz respeito à intervenção nos mecanismos semiogênicos para controle da expressão de processos fisiopatogênicos subjacentes, muitas vezes desconhecidos. Mas a força cultural, simbólica e emocional (também comercial e industrial) impõe que sejam categorizados à parte. A vinculação do combate aos sintomas com o saber médico é ambígua. Ela se dá pelo dever ético de sedar a dor e aliviar o sofrimento, como regra geral e arremedo de doutrina médica. No entanto, isso se confunde com o comodismo profissional e com a impotência do saber biomédico ao se defrontar com queixas e sofrimentos não-enquadráveis na grade nosológica. Não podendo dar sentido ou interpretação satisfatória aos adoecimentos e queixas, ficando com diagnósticos descritivos, o médico tem de recorrer a noções vagas de somatizações, distúrbios funcionais e/ou psicológicos, com os quais a proximidade do saber da biomedicina é pequena. Tais sintomas são, provavelmente, a maioria do que é relatado pelos pacientes. Daí a válvula de escape da inibição de sintomas, altamente medicalizante e de apelo quase irresistível. Doutra parte, mesmo quando se conseguem definir diagnósticos, muitas vezes, a terapêutica restringe-se ao combate aos sintomas. Esses três tipos de intervenção se realizam por meio de três tipos de tecnologias: farmacológicas, higieno-dietéticas (já comentadas) e cirúrgicas. Essas tecnologias, em qualquer um dos tipos de intervenção terapêutica, padecem dos problemas do ato diagnóstico quanto à sua relação com a ação autônoma. Elas reforçam a heteronomia, no geral, focalizando a atenção na patologia ou no sintoma, que receberá tratamento (idealmente) específico (Sayd, 1998). Por intermédio dessas duas categorizações (tipos de intervenção e tecnologias de intervenção) associadas à reflexão precedente sobre o momento diagnóstico na biomedicina, pode-se constatar a pouca contribuição do saber
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clínico-epidemiológico para o crescimento da ação autônoma. Sintetizando essas reflexões, pode-se dizer que as estruturas conceituais da biomedicina e suas práticas sociocognitivas, sinergicamente com outras forças aqui não analisadas, impõem-lhe limites e problemas quanto ao desafio da reconstrução da ação autônoma, alimentando, de forma importante, a medicalização. Usando os tipos de tecnologia propostos por Merhy (1997a, b) e Merhy & Chakkour (1997), pode-se dizer que o pólo “duro” do saber biomédico (enquanto tecnologia leve-dura) se sobressai e predomina de forma excessiva sobre o pólo “leve” do mesmo. O paradigma clínico-epidemiológico domina tão largamente o universo conceitual, simbólico e prático dos profissionais e instituições biomédicas, que se mostra pouco permeável ao seu pólo “leve” e à agregação enfatizada de outros saberes “leves” (como os do tipo “psi”) que propiciem uma melhor intermediação nas interações dos profissionais com os doentes, particularmente quanto à reconstrução da autonomia. O conhecimento gerado na biomedicina amplia a capacidade heterônoma de intervenção material no corpo e nos seus mecanismos fisiopatológicos concebidos e conhecidos; converge técnica, filosófica e politicamente com a medicalização social, a higiomania e a dominação, mas deixa a desejar quando se trata de considerá-lo tecnologia promotora de autonomia. Ressalta-se a importância desse conhecimento e suas técnicas, muito valiosos nos casos em que adoecimentos graves, situações emergenciais, politraumas, fraturas, estágios avançados de desequilíbrio e colapso orgânico necessitam de intervenções em que eles são eficazes e podem salvar vidas, sendo desejável que o façam. Apenas é preciso reconhecer que as situações em que isso ocorre são uma pequena minoria dos problemas de saúde em geral e dos que chegam na rede básica ou no PSF. Sugestões para a abordagem do problema
Pode-se dizer que toda ferramenta suficientemente dura carrega, embutida na sua estrutura e conformação, em seu funcionamento, os valores e fins projetados para seu uso. Não se pode apertar parafuso de fenda com chave de boca. O que não quer dizer que não se pode deformar uma ferramenta ou usá-la, com adaptações, certas dificuldades e limitações, para fins distintos daqueles nela embutidos. Isso é justamente o que se propõe a seguir.
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Afastadas as ilusões ingênuas quanto à potência do saber e da tradição biomédica como ferramentas emancipatórias4 para a atenção à saúde (a clínica), a seguir discutem-se algumas estratégias sugeridas para o enfrentamento do problema, do ponto de vista das práticas cotidianas institucionais. As sugestões se centrarão num momento típico da atenção à saúde biomédica: a consulta médica. Deve ficar claro que o que segue tem sentido se inserido em um rol de atividades e esforços institucionais, multiprofissionais e gerenciais coerentes com a “filosofia prática” desmedicalizante, adiante sugerida. Os dilemas da medicalização devem ser abordados nas seguintes ações: além-consulta médica, intersetoriais, grupais, educativas, políticas, sanitárias, em parceria com instituições culturais, políticas, educativas etc. Essas ações, não discutidas por estarem fora do escopo deste artigo, são essenciais para evitar a medicalização desenfreada que a pura oferta de consultas médicas comumente gera. Todavia, mesmo em ambiente institucional adverso, as sugestões apresentadas se propõem a contribuir para uma melhoria do que acontece durante a consulta médica. E, também, para a orientação dos gestores locais na discussão e avaliação da clínica praticada em seus serviços. Defende-se a necessidade urgente da construção de critérios e saberes para o reconhecimento, o crescimento e a disseminação de inovações na prática médica, na direção de uma clínica ampliada (Campos, 1992, 1997a, b; Cunha,
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2004). Algo como uma “desconstrução” da clínica hegemônica e invenção de novos modos e abordagens dos problemas de saúde (tecnicamente diagnosticados ou não). As sugestões sintetizadas a seguir se baseiam mais em experiências práticas do que na literatura, embora sejam, em parte, antigas orientações da boa clínica, hoje esquecidas ou restritas ao discurso. Ressalta-se que elas portam eficácia se admitidas em conjunto, já que são interdependentes entre si. 1 A primeira sugestão é a eleição do tema da medicalização como objeto de atenção na clínica do dia-a-dia. Como um instrumento de auto-análise e autoaperfeiçoamento, a questão autonomia-heteronomia é um poderoso analisador das práticas corriqueiras da atenção médica (Campos, 1992). Nesse sentido, há sempre em jogo dois componentes básicos em toda a situação na qual uma pessoa procura ajuda num serviço de saúde. O primeiro é um componente que envolve o desejo de reconhecimento e legitimação do adoecimento e da impotência frente à situação vivida. Aí está presente a expectativa de uma atenção compassiva, solidária, bem como de uma resposta do terapeuta que interprete o adoecimento e proporcione um tratamento. Comumente, também ocorre uma forte projeção de poder no profissional, nos exames e drogas. Este primeiro componente envolve uma passividade, que será maior quanto mais medicalizado for o doente. Tanto a satisfação completa como a frustração total desta expectativa geram uma tendência à repetição desse movimento, na próxima consulta, no outro exame, no especialista. Este é o campo, interno ao usuário, em que cresce a dependência, a medicalização e a heteronomia. Por outro lado, há um segundo componente na procura por atenção à saúde: um componente de iniciativa, esperança e desejo de encontro com um curador, que indique quais são os problemas e o que fazer para curá-los ou melhorá-los. Há uma abertura, mesmo que oculta, para um encontro cujo fruto seja o caminho de melhora, mais liberdade, mais saúde. Esse lado, se explorado, pode se revelar fonte de insuspeitadas capacidades e engajamentos em ações geradoras de maior autonomia, participação e responsabilidade; ele revela o potencial de inovação e de resistência latente em todos. Para a realização de uma atenção à saúde “desmedicalizante” (promotora de autonomia), o profissional deverá satisfazer, em parte, o primeiro componente mencionado. Mas, simultaneamente, deverá oferecer perspectivas de ação, interpretações para seus problemas, convites para a manutenção da esperança, terapêuticas que possam ser uma possibilidade de movimento em direção à solidariedade e ao auto-serviço, à responsabilização e ao aprendizado vivencial, portanto, ao resgate da autonomia. Dentro deste duplo movimento necessário, de reconhecimento de sua situação de impotência momentânea no que tange à saúde-doença – que permite fazer vínculo – e de convite/oferecimento para um novo movimento em direção à autonomia, o desafio do profissional será estimular o usuário para o segundo componente, em busca conjunta de terapêuticas eficazes e apropriadas, sustentáveis, viáveis, passíveis de acesso ou desenvolvimento. 2 Uma questão crucial para o sucesso dessa empreitada é a idéia definitiva de que cabe ao profissional, como quesito indispensável ao cumprimento da “relação de cura”, o oferecimento de interpretação para o adoecimento do doente, que lhe faça sentido, de modo a tentar reorganizar as representações,
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5 Está, ainda, subvalorizada a importância do acompanhamento longitudinal para a educação permanente e o ensino médico, no seu potencial de melhoria da qualidade da clínica. Tal possibilidade, quase obstruída pelo ambiente hospitalar, pela especialização da biomedicina e pela sua centralidade nas entidades doenças, é de vital importância para a construção de uma tradição inovadora que compense a inadequação, o perigo e as iatrogenias da prática médica na rede básica (e sua percepção), e particularmente quanto à medicalização social.
medos, ansiedades e desejos do paciente. Isso, em geral, envolve diálogo e explicação sobre causas, tratamentos e prognóstico. Tal interpretação pode ser provisória, parcial ou pode ser adiada para um encontro subseqüente. O importante é que precisa ser abordada e ser personalizada, ainda que signifique a assunção de ignorâncias, e dificuldades de diálogo (devido a bloqueios comunicativos, de linguagem ou alteridade cultural). O assumir integral e emocional, permanente e repetidamente dessa função curandeira (de construir uma eficácia simbólica, conforme Lévy-Strauss, 1975), a cada encontro, tem um poder desmedicalizante significativo, desde que acompanhado das demais sugestões propostas. 3 Em meio medicalizado, vive-se numa paranóia complexa, uma luta constante contra doenças graves e seus riscos, que por sua vez retroalimenta a medicalização. Sugere-se que os médicos não deslizem para a compulsão do estabelecimento de diagnóstico (cuidando de fazê-los quando possível), considerando riscos e benefícios de ordem terapêutica, econômica e social, priorizando, a princípio, as conseqüências terapêuticas. Aprender o que Kloetzel (1980, 1999) chamou de demora permitida é essencial para qualquer clínica, embora isso não seja fácil de ser aprendido. Tal aprendizado torna-se possível e facilitado em ambiente que permita acompanhamento longitudinal (ao longo do tempo) dos doentes, o que é justamente permitido pelo PSF, sendo esta uma das mais fundamentais mudanças implementadas por essa estratégia5. A tradição biomédica opera como se fizesse diagnósticos precisos; a tecnologia científica proporcionará tratamento eficaz das doenças e, por conseqüência, dos doentes. Este é um pressuposto necessário, porém não suficiente, e muitas vezes falho, nas suas duas partes. Por isso, paralelo a ele, não se pode perder de vista o tratamento dos doentes, para o qual há que se desenvolver habilidades emocionais, cognitivas e tecnológicas para abordagem dos adoecimentos vividos sem a compulsão do fechamento de diagnósticos, ou mantendo grande dose de incerteza diagnóstica – o que é o muito comum – com tranqüilidade emocional. Isso, aliás, aperfeiçoa a autocrítica, a competência diagnóstica e a intuição, esta última de grande importância na prática clínica. 4 Ao se construírem diagnósticos, há que tomar extremo cuidado com as palavras. Particularmente, não se deve cerrar o destino dos doentes com nomes das doenças e sua incurabilidade ou controle, já que ambos são relativos aos padrões da medicina científica, cujo poder de previsão com respeito à vida individual de um doente pode variar muito. Os diagnósticos são uma fotografia estática, a vida está em movimento complexo e infindável, ou pode entrar nele. Mas é preciso cuidar de não privar o doente dos conhecimentos e saberes médicos sobre sua situação. A biomedicina é um saber limitado e restrito. A complexidade dos adoecimentos, as múltiplas dimensões (sociais, emocionais, ambientais, existenciais, culturais etc) envolvidas, a fantástica capacidade de cura e transformação da natureza humana fazem com que não se deva resumir todas as possibilidades interpretativas aos diagnósticos biomédicos, e as potencialidades terapêuticas aos tratamentos cientificamente correntes. Tal diretriz está relacionada ao processo de absolutização dos limites pessoais e científicos, sempre difíceis de serem assumidos, que gera “desengano” dos doentes,
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frustrações bilaterais, e iatrogenias simbólicas. Esta absolutização também se relaciona à arrogância epistemológica herdada da Ciência, segundo a qual todo o saber válido está restrito ao cientificamente validado (Tesser, 2004). 5 Nesse sentido, outro desafio consiste em não sucumbir à tendência de construção e fixação do mito da entidade doença que o doente carrega, nem para o paciente nem para o profissional. Ou seja, tentar desontologizar a doença e o sofrimento, devolvendo-os ao doente, partilhando sua angústia e buscando terapêuticas para a situação. Isso demanda uma profunda mudança cultural no imaginário médico, trabalho que praticamente não se iniciou e não terá fim. Esta mudança é necessária e viável se for resgatado o personagem que não tem lugar na “teoria das doenças”: o sujeito doente. Na biomedicina, os doentes e suas vidas orbitam ao redor das doenças. A revolução copernicana necessária nessa medicina implica fazer as doenças orbitarem ao redor dos doentes e suas vidas. Isso, no ambiente especializado da construção do saber científico, não está nem ao menos concebido. Mas na prática clínica, fica facilitado e pode acontecer com uma simples, mas profunda, mudança de enfoque, que aos poucos altera todo o processo cognitivo do raciocínio clínico (Tesser, 2004). O fim de uma consulta pode não ser apenas uma receita, um pedido de exame ou encaminhamento, mas o início de um novo patamar de diálogo, centrado na situação do doente e seu sofrimento, suas condições psicossocioexistenciais e, principalmente, seus desafios terapêuticos e possibilidades outras de interpretação. É em tal investigação e intervenção que ambos, curador e doente, podem viabilizar melhora clínica e autonomização progressiva. 6 Outro desafio para a clínica biomédica é o resgate ou a reconstrução de antigas diretrizes técnico-éticas genéricas, que fornecem orientação segura, e que quase nunca têm conseqüência prática nas condutas profissionais. Uma poderia ser “primum non nocere”, “primeiro, não ser nocivo”. Toda intervenção em que a relação risco/benefício terapêutico for duvidosa, por princípio, deve ser evitada. Outro adágio se revelaria na missão de proteção que o profissional tem em relação ao doente: protegê-lo, com a biomedicina, dos perigos iminentes, dos agravos à saúde que o estejam ameaçando, seja com risco de vida, de complicação ou seqüela importante, etc., mas também, e isso é imprescindível que fique marcado, protegê-lo dos perigos em que a biomedicina pode se transformar e vem se transformando quando usada sem cuidado, apenas com critérios técnicos convencionais, descolados da vida do usuário (o que já se chamou de prevenção quaternária). 7 É também missão do profissional trabalhar para desmistificar a potente ação inibidora e controladora dos quimioterápicos, particularmente os sintomáticos, que tanto atraem e encantam com sua potência momentânea no alívio de sintomas. Isso pode ser feito conversando-se com o doente, falando a ele sobre o outro lado dessa moeda: o efeito transitório, os efeitos adversos, possíveis efeitos rebotes, o fato de o sintomático intervir em mecanismos apenas semiogênicos, etc. Levando em conta as reflexões até aqui traçadas, pode-se dizer que todos os sintomáticos químicos, em princípio, devem ser evitados, por várias ordens de motivos. Todo sintoma é, por hipótese, um sinal de alarme de algum processo subjacente, conhecido ou, muitas vezes, desconhecido. Desligar o alarme é indesejável, além de ser alienante, estimulador do consumo, da dependência
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dos fármacos e da busca de gerenciamento químico de quaisquer sensações e incômodos. Aqui aparecem limites estilísticos e culturais da biomedicina, que muitas vezes sente-se obrigada a intervir quimicamente para alívio sintomático. Mas isso é abrandado, em grande parte, por meio da boa relação curador-doente e do cumprimento da relação de cura, que maximiza medidas não-quimioterápicas bem-orientadas, e de recursos terapêuticos diversos, seja de outras racionalidades médicas ou mesmo de terapias populares ou caseiras várias. Uma vez que, freqüentemente, remetem a terapêutica e a atenção do doente para sua vida cotidiana, tais medidas facilitam a entrada nos “porquês” e “comos” dos seus problemas, buscando soluções, compreensões e prevenções autonomamente geridas. Se forem usados sintomáticos químicos, que sejam por tempo estritamente necessário para seu objetivo: alívio rápido e momentâneo dos sintomas, sempre com as devidas orientações quanto ao caráter da droga, seu poder de ação e seus efeitos indesejáveis. Recomenda-se encarar o sintomático como o que é, apenas, um alívio momentâneo, que torne possível e factível o convite-estímulo para a busca e prática de outros movimentos de mais efetiva ação terapêutica, tanto sobre o problema em si quanto sobre a capacidade do paciente para administrá-lo autonomamente. 8 Não se pode deixar de mencionar duas características típicas dos médicos, altamente problemáticas na atenção básica. Em parte derivado do aprendizado intra-hospitalar e sua tradição autoritária, o autoritarismo biomédico dificilmente deixará de ser suficientemente combatido em todos os ambientes profissionais. Particularmente na rede básica, ele tem conseqüências desastrosas, dado que a viabilização e a negociação da terapêutica, a legitimação da relação de cura e a aderência dos pacientes estão, a todo o momento, em questão (Cunha, 2004). Associado a esta idiossincrasia biomédica, relacional e emocional, está a obsessão pelo controle. Ambas são aprendidas por semelhança nos hospitais de ensino, anteriores a qualquer reflexão e imunes à abordagem racional. Segundo Lacey (1998), o controle é um valor científico de primeira ordem. Ele está imiscuído, evidentemente, em toda a estrutura do saber científico em geral e do saber médico em particular. Diluído nos processos cognitivos dos médicos, o controle como valor se mistura inextricavelmente com o autoritarismo, causando dificuldades relacionais e medicalizantes na clínica da atenção básica, de proporções assustadoras. As sugestões quanto a este problema passam por longo aprendizado emocional, cognitivo e relacional sobre a assunção das responsabilidades de curandeiro (oficial) sem a ilusão da obtenção do controle, com o cultivo do que se pode chamar de humildade curandeira – a qual contrabalança a arrogância e o autoritarismo viscerais dos médicos. O ambiente de cuidado continuado de uma coorte de pacientes, proporcionado pelo PSF, parece ser o mais rápido meio de tratamento dessas idiossincrasias medicalizantes, tanto na formação médica como na educação permanente. 9 A prática dessas sugestões implica uma busca continuada por terapêuticas que incrementem a eficácia clínica e simbólica, além da autonomia dos doentes, sempre levando em conta avaliações compartilhadas de risco-benefício terapêutico. Isso significa alimentar uma eterna procura de interpretações e terapêuticas, que, a princípio, não precisa respeitar nenhuma racionalidade médica (Cunha, 2004; Tesser, 2004).
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Segundo Almeida (1996), a terapêutica é a grande provedora de feedback, a verdadeira retroalimentação às teorias e práticas médicas. No entanto, a terapêutica biomédica e seu feedback estão “amarrados” pela metodologia científica dos ensaios clínicos, que monopolizou a legitimidade para dizer o que “realmente” acontece ou não como resultado dos tratamentos de saúde (Tesser, 2004). A terapêutica “impõe, obriga, constrange o pensamento e a ação na busca da finalidade; é geneticamente teleológica” (Almeida, 1996, p.174). Para esse autor, a premissa da busca do resultado terapêutico abala as fronteiras doutrinárias. A natureza do campo da terapêutica não só permite como demanda o ecletismo, uma categoria excluída da medicina científica. “Nessa perspectiva, o ecletismo significaria a determinação médica de capacitar-se de forma ampla ou, simplesmente, de admitir a multiplicidade de recursos terapêuticos e das medicinas, cujo acesso é um direito do paciente” (Almeida, 1996, p.168). Para melhorar a atenção biomédica e abrir espaço para o reconhecimento, estudo e uso de outras terapêuticas e racionalidades médicas, faz-se mister a assunção dessa revalorização da terapêutica, a qual exige um ecletismo que faz reemergir o empirismo. Daí pode nascer uma reconstrução da clínica e a abertura do ambiente da atenção básica para o enriquecimento e a ampliação das práticas em saúde, sejam biomédicas ou não. Assim, fica facilitado o desenvolvimento de ações de maior eficácia terapêutica e promotoras de autonomia, restringindo ao máximo a medicalização. Para finalizar, vale ressaltar que a construção de uma tradição de prática clínica menos medicalizante na rede básica e no PSF é uma tarefa urgente, tanto para a formação médica como para a educação permanente. A juventude relativa do SUS e do PSF e sua dificuldade em interagir com a formação médica, em parte, explicam a lentidão dessa construção; mas ela compromete, em muito, a potencialidade do PSF e do investimento na sua rede básica, caso continue por longo tempo. Isto significa, concretamente, o perigo de uma aceleração na medicalização social, caso o PSF cresça sem inovar na clínica que oferece a seus usuários.
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Recebido em 09/01/06. Aprovado em 30/04/06.
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Natur alização e medicalização do Naturalização corpo feminino: o controle social por meio da rreprodução eprodução*
Tonia Costa1 Eduardo Navarro Stotz2 Danielle Grynszpan3 Maria do Carmo Borges de Souza 4
COSTA, T. ET AL. Naturalization and medicalization of the female body: social control through reproduction. Educ., v.10, n.20, p.363-80, jul/dez 2006. Interface - Comunic., Saúde, Educ.
This study discusses, through bibliographic research, the recurrence of naturalization as the basis for medicalization of the female body, as a means of social control through biological reproduction, whereby behavioral standards, social class, ethnic and race differences are rearranged/redefined. Through this process male, patriarchal and class predominance is maintained and the rift of social and gender inequalities grow wider. It is important to identify the role of technological developments and its complexities – which do not allow lower-income classes to take decisions in regard to their own bodies and reproductive health – and schooling – specially through science and physical education classes – whereby upper-class predominance is sustained. KEY WORDS: human reproduction. medicalization. naturalization. social control.
Trata-se de pesquisa bibliográfica sobre a recorrência do processo de naturalização como alicerce da medicalização do corpo feminino. Este processo institui uma forma de controle social com base na reprodução biológica, em que padrões de comportamento e diferenças de classe social, raça/etnia são ordenados/ redescritos. Assim, se mantém a hegemonia masculina, patriarcal e de classe, e se aprofundam as desigualdades sociais e de gênero. Destaca-se a importância do desenvolvimento e da complexidade da tecnologia – que afastam as classes populares das tomadas de decisão sobre o próprio corpo e a saúde reprodutiva – e da escola – sobretudo, em aulas de ciências e educação física – para manter e perpetuar a hegemonia burguesa. PALAVRAS-CHAVE: reprodução humana. medicalização. naturalização. controle social.
* Este estudo é parte integrante de levantamento bibliográfico para elaboração de tese de doutorado sobre a infertilidade. Departamento de Fundamentos de Educação, setor Biologia, Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro. <toniac@terra.com.br>
1
2
Departamento de Endemias, Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). <stotz@ensp.fiocruz.br>
3
Departamento de Biologia, Istituto Oswaldo Cruz/ Fiocruz. <danielle.grynzpan@terra.com.br>
4
Instituto de Ginecologia, UFRJ. <mariadocarmo@cmb.com.br>
1 Rua Santa Clara, 327/ 303 Copacabana - Rio de Janeiro, RJ Brasil - 22.041-010
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Introdução Em A medicalização do corpo feminino (Vieira, 2003) há o relato de uma paciente, que, indagada acerca de quantas vezes deveria procurar o médico, respondeu: Todo dia! (p.11). A exaltação e hegemonia do médico como o profissional responsável por ordenar e normalizar questões referentes ao corpo feminino não é recente. Foi construída passo a passo e está profundamente entrelaçada com a construção da medicina como área de saber científico. Contudo, é importante explicitar o processo histórico a que se refere o nosso estudo. O século XVIII configura a emergência da Medicina como área de saber técnico-científico, de domínio masculino que, desde então, se vê cada vez mais entrelaçada aos interesses de controle populacional, disciplinarização da força de trabalho e higienização dos espaços e das relações sociais. Mas essas preocupações variam de acordo com os contextos e as épocas. Assim, entre os séculos XIX e XX, é preciso considerar a existência de um continente europeu superpovoado, em oposição às Américas que, demandando por povoamento, absorveram imigrantes e, também, discussões e idéias da Europa. Os ideais eugênicos, por exemplo, que caracterizam a fase colonialista do imperialismo europeu, em curso já no fim do século XIX, são visíveis no Brasil apenas na segunda década do século XX. Em contrapartida, discursivamente associada à melhoria da raça e desenvolvimento populacional, a eugenia assumiu forma agressiva e destrutiva sob o nazifascismo na Europa dos anos 30-40 do século XX, formas que encobriram as necessidades de controle da força de trabalho industrial e de combate às lutas de classes por distribuição de riquezas e aos ideais socialistas. No cenário mundial do século XXI, a propagação do tema da reprodução em jornais de grande circulação, com manchetes que destacam o aumento de fertilidade na favela, bem como a maior taxa de natalidade entre adolescentes nas camadas populares, ilustra a importância e atualidade deste assunto e mais: a perpetuação de uma hierarquia de gêneros e a manutenção da estratégia biopolítica referida por Foucault (1989), em que [..] As formas atuais de organização da medicina e a complexidade da tecnologia a elas associada [...] em muitos casos, afastam ou aprofundam o afastamento das pessoas comuns das tomadas de decisão relativas ao próprio corpo, ao seu bem-estar e, no limite, ao destino de suas vidas. (Corrêa, 2001, p.25)
O presente estudo é parte da revisão bibliográfica integrante do desenvolvimento de tese de doutorado do Programa de Pós-Graduação em Ensino de Biociências e Saúde do Instituto Oswaldo Cruz (IOC)/Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), sobre a recorrência da naturalização como base do processo de medicalização do corpo feminino. O texto apresenta a visão consensual da literatura (Alves-Mazzotti & Gewandsznajder, 2004) em relação a dois blocos temáticos, assim organizados: na parte 1, discute a recorrência histórica do processo de naturalização como alicerce da medicalização do corpo feminino, que institui uma forma de controle social com base na reprodução. A parte 2 apresenta uma discussão sobre a medicalização do corpo feminino na atualidade.
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NATURALIZAÇÃO E MEDICALIZAÇÃO DO CORPO FEMININO...
O conceito de medicalização é atribuído a Ivan Illich (Nogueira, 2003). A medicalização social é uma vertente do que Illich (1975) denominou medicalização da vida, um dos mecanismos de controle institucional da população. A medicalização social ou iatrogênese social (Nogueira, 2003) decorre de uma crescente dependência da população para com drogas, comportamentos e medidas prescritas pela medicina, que dissemina uma atitude passiva e dependente da autoridade médica. A base da medicalização foram as descobertas biológicas que ampliaram o poder social da Medicina, cujo discurso naturalista, universalizante, foi gradativamente adquirindo legitimidade (Birman, 2005) e ingressando nos espaços privados das famílias, ditando normas e táticas médicas-higiênicas burguesas (Costa, 1983). Medicalização, então, compreende a capacidade do saber médico de se apropriar de problemas cotidianos e revesti-los de significado e explicações da Medicina – como questões a serem refletidas e resolvidas por este saber (Silveira, 2001) – e de estimular o aumento de consumo de bens e serviços médicos. Decorre da convicção de que o indivíduo pode alcançar o pleno bem-estar desde que cada aspecto de sua vida seja regulado cientificamente – missão a ser exercida por profissional especializado – o médico (Singer et al., 1988).
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Pesquisa exploratória inicial, realizada na Biblioteca Virtual de Saúde, encontrou 78 referências sob o título medicalização (67 na base Lilacs – literatura latino-americana e do Caribe em Saúde Pública; oito na BDEnf – Base de dados de enfermagem; duas na Medline e duas na Adolec – saúde na adolescência). Na base Hisa (história da saúde pública da América Latina e do Caribe/ Casa de Oswaldo Cruz/ Fiocruz), foram encontradas 19 referências, sendo que, dentre as compatíveis com este estudo (sete), a maioria era de teses. Sob o título medicalização do corpo, havia apenas três referências (Lilacs). Sob medicalização e corpo feminino, três (Lilacs) e, sob naturalização e corpo feminino, apenas uma (Lilacs). Para o título história da ginecologia, foram encontradas 473 referências, muitas das quais tratavam de períodos anteriores aos contemplados. Dentre os temas encontrados, destacou-se a visão histórica – o processo de medicalização dos hospitais, do parto, da sociedade, a luta entre profissionais e parteiras, a relação entre medicalização e exclusão social, a configuração da ginecologia, a imagem social do ginecologista, a medicalização do corpo feminino, lutas feministas. Referências mais gerais discutiram a medicalização social como dispositivo biopolítico, a medicalização da gestação e do corpo feminino, a naturalização versus os direitos reprodutivos. Ainda foram incluídos dados estatísticos de pesquisas nacionais que fizeram alusão à saúde reprodutiva feminina. O uso de tecnologia foi salientado para descrever, por meio de dados numéricos coletados na literatura, como se compõe o processo de medicalização que aprofunda as desigualdades de gênero/raça/classe, ao mesmo tempo em que mantém e perpetua a hegemonia burguesa. Quanto à naturalização, dados que possibilitaram a discussão da maternidade como condicionante da identidade feminina também foram considerados. Parte 1: Sobre a recorrência do processo de medicalização Medicalização social e medicalização do corpo feminino O nascimento da medicina moderna, consolidada como saber científico, pode ser situado no fim do século XVIII. Gradativamente, vai se configurando como ciência experimental, fundada em racionalidade e neutralidade, excluindo qualquer juízo de valor ou de subjetividade e baseando, na observação neutra, a elaboração de leis universais (Vieira, 2003). Promove, dessa forma, uma mudança na relação entre o visível e o invisível (Foucault, 1980). A medicina antiga se caracteriza por um limitado instrumental diagnóstico e terapêutico e uma estreita intervenção técnica. A grande mudança no papel da medicina deu-se por meio da normalização social via desenvolvimento de regras morais ligadas ao trabalho e aos hábitos cotidianos e princípios de higiene. Essa normalização, aliada à ampliação de atos, produtos e, mesmo, de consumo médico, compreende a medicalização social. A normalização médica discursiva passa a redescrever eventos fisiológicos considerados naturais e comportamentos sociais desviantes, e acaba remetendo à intervenção de práticas especializadas. Dessa forma, qualquer aspecto da vida – social ou individual – pode ser redescrito em termos médicos (Ilich, 1975)5. Segundo Corrêa (2001, p.25), a medicalização compreende:
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De um lado, ampliação de atos, produtos e consumo médico; de outro, interferência da medicina no cotidiano das pessoas, por meio de normas de conduta e padrões que atingem um espectro importante de comportamentos individuais.
O nascimento da medicina moderna se dá pela gradativa valorização do saber médico, compreendendo estratégia biopolítica (Foucault, 1989), ou seja, a medicina como saber científico no bojo do surgimento da sociedade capitalista investiu no somático, no biológico, no corporal. É um “controle social que começa no corpo, com o corpo. [...] O corpo é uma realidade biopolítica. A medicina é uma estratégia biopolítica” (Foucault, 1989, p. 47). Entretanto, o autor ressalta que “não é o consenso que faz surgir o corpo social, mas a materialidade do poder se exercendo sobre o próprio corpo dos indivíduos” (Foucault, 1989, p.82). A partir do capitalismo, o corpo passa a ser entendido como força de produção e a medicina ganha um novo estatuto (Foucault, 1980), que permite o nascimento da profissão médica e do mito da erradicação das doenças (Herzog, 1991), os quais proliferam e retroalimentam a medicalização, que se expande num processo contínuo. A diferença mais importante da medicina moderna, se comparada aos modelos anteriores ao século XVIII, compreende a associação entre a função de cura do médico e sua própria figura, à função política de criação e transmissão de normas (Martins, 2005; Corrêa, 2001). O processo de medicalização social transforma o papel social do médico e da medicina, mas também a construção das doenças (nosologia) e o corpo médico, que passa a se organizar profissionalmente. A consolidação do ensino universitário garante a competência e regula a atividade técnica pela instalação de um código moral. Assim, são separados charlatões e pessoas que faziam uso de práticas empíricas (as parteiras são bom exemplo). O papel social do médico é ampliado, incorporando funções de educador e guardião da moral e dos costumes. A definição de um novo objeto da medicina, que desloca o foco da doença para a saúde, inicia o controle das virtualidades, da periculosidade e, também, a prevenção (Vieira, 2003). O discurso médicohigiênico considera a doença como um desvio, cujas causas são a desorganização e o mau funcionamento social, sobre os quais a medicina deveria atuar visando “neutralizar todo o perigo possível” (Costa, 1987, p.10). Esse papel decorre do projeto de higienização iniciado no espaço público das cidades, que vai se interiorizando nos lares, no espaço privado das famílias. Por meio da regulação dos indivíduos, para adaptá-los a uma nova ordem, há a produção de características corporais, sentimentais e sociais. O Estado moderno, movido por interesses industriais, necessita manter o controle – demográfico e político – da população adequado a essa finalidade. Para tal, deveria atacar a estrutura organizacional da população, ou seja, a família (Costa, 1983). O objetivo era disciplinar a concepção e os cuidados físicos dos filhos e, para as famílias pobres, prevenir as perigosas “conseqüências políticas da miséria e do pauperismo” (Costa, 1979, p.51). O positivismo – relacionando determinações biológicas e sociais –, em vigor no século XIX, eleva a biologia ao status de portadora de leis (universais) que devem reger as sociedades. Apoiando-se na própria evolução biológica do
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NATURALIZAÇÃO E MEDICALIZAÇÃO DO CORPO FEMININO...
O termo Eugenia é atribuído a Francis Galton (1822-1911) e pode ser definido como: o estudo dos agentes sob o controle social que podem melhorar ou empobrecer as qualidades raciais das futuras gerações – física ou mentalmente. Em 1865, Galton publicou o livro Hereditary Talent and Genius, defendendo a idéia de que a inteligência é predominantemente herdada, e não fruto da ação ambiental. Em 1908, foi fundada, em Londres, a Eugenics Society,primeira organização a defender a eugenia de forma organizada e ostensiva. Sociedades semelhantes proliferaram em vários países europeus e americanos. A Sociedade Paulista de Eugenia, a primeira do Brasil, foi fundada em 1918.
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indivíduo e em supostas condições “ótimas” para essa evolução, houve a mudança na organização familiar, culminando com o que Costa (1979) denominou criaturas médicas. Essa medicalização da vida privada atingiu, prioritariamente, mulheres e crianças. As características da mulher vão sendo redefinidas, seu papel cultural cresce, assumindo condição de geradora da principal riqueza nacional: a população. Mãe e filho equacionamse, na medida em que “a mãe devotada e a criança bem-amada vão ser o adulto e a semente do adolescente” (Costa, 1979, p.73). Em 1859, Charles Darwin apresenta a teoria da evolução no livro Sobre a origem das espécies através da seleção natural ou a preservação de raças favorecidas na luta pela vida. Esta teoria e a da hereditariedade, que começava a ser desenvolvida na mesma época, propiciam o nascimento de uma corrente de pensamento caracterizada pelo fatalismo genético que culminará no eugenismo6. A teoria evolucionista, então, não se restringiu à biologia, mas impregnou outras disciplinas. A diversidade humana era determinada pela natureza. A hierarquia humana justificava divisões e distinções – de classe, de status e de trabalho – que deveriam ser valorizadas, pois garantiriam o progresso da sociedade. “Liberdade, igualdade e fraternidade se transformavam em ficções metafísicas desacreditadas, herdadas do século XVIII ainda não científico” (Rohden, 2001, p.26). Para os cientistas do século XIX, a natureza era eminentemente hierárquica e, portanto, não-democrática e, assim sendo, teria decretado a desigualdade (Moscucci, 1996; Peter, 1980). O homem branco, civilizado, europeu representaria a maturidade evolutiva em contraste com a mulher, o negro, o primitivo, o nãoeuropeu. A própria natureza já definia as escalas e os valores. Os cientistas apenas serviam como intérpretes de suas determinações. A junção desse tipo de perspectiva teórica com a visão de mundo de homens educados em um ambiente de privilégio da autoridade masculina e forte distinção entre as esferas pública e privada e entre as funções sociais de homens e mulheres é que estaria na raiz da produção de conhecimento sobre a mulher e a diferença sexual no século XIX. (Rohden, 2001, p.27)
A mulher, sobre a qual os preceitos higiênicos haviam dirigido o foco (ao lado da criança), vinha, desde então, ameaçando a hegemonia – do homem, patriarca, cientista, intelectual, trabalhador – da burguesia. Rago (2000) ressalta a luta das primeiras mulheres médicas brasileiras, na segunda metade do século XIX, para ingressar no mundo tradicionalmente masculino da medicina. A ameaça do domínio burguês traduzia-se na maneira pela qual mulheres que reivindicavam direitos eram apontadas pela medicina: “espécies híbridas, não-sexuadas, mulheres-homens, degeneradas, vampiras, assassinas”, incapazes para conseguir marido ou manter família (Gay 1984 apud Rohden, 2001, p.27). No fim do século XIX, era comum um processo de doencificação da transgressão dos padrões femininos. Ninfomania e histeria ocultavam o receio da perturbação da ordem (burguesa) em decorrência da emancipação feminina.
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A natureza irracional das mulheres, em contraste com a racionalidade masculina, já estava presente no discurso iluminista. A exigência de formulação de classificações gerais e leis universais (método científico) produziu, pelo discurso da ciência, dois grupos separados, bem definidos e com homogeneidade interna: homens e mulheres, cujas naturezas – masculina e feminina – eram também distintas. Desde o fim do século XVIII, a natureza feminina era associada gradativamente aos órgãos reprodutivos. Essa associação referendava o discurso médico e de autoridades acerca das limitações dos papéis das mulheres (sociais e econômicos). A divisão sexual do trabalho, reforçada por meio do capitalismo industrial urbano, restringia as atividades femininas ao espaço doméstico. As descrições médicas dos corpos de homens e mulheres, em que a diferença era salientada, aliavam-se a evidências de que a sexualidade feminina também associava-se às funções de mãe e esposa, e que o desejo sexual das mulheres era, por natureza, menor do que o dos homens. Com base nos papéis diferenciados na reprodução, são prescritos papéis sociais distintos para homens e mulheres: aos primeiros destinam-se atividades do mundo público, do trabalho, da política e do comércio e, às últimas, atividades na esfera privada da família, desempenhando funções de mães e esposas (Martins, 2005). Em contrapartida, alterações na natureza feminina compreendiam doenças, cujas origens residiam nos órgãos reprodutivos e poderiam ser curadas pela cirurgia ginecológica, meio mais garantido de tratamento. Assim, consolidavase o status profissional de uma nova especialidade médica: a ginecologia (Rohden, 2001), responsável por normalizar padrões de comportamento sexual. Esses padrões, entretanto, aplicavam-se de forma mais efetiva às mulheres, já que os homens não eram definidos pela genitália e, embora tivessem mais desejo sexual, poderiam controlá-lo, e seu excesso não necessariamente estaria associado à doença. Ao contrário, a normalidade feminina é, por natureza, potencialmente patológica (Moscucci, 1996). As mulheres, por serem menos afeitas ao controle de si mesmas, mais facilmente cediam ao sexo, o que caracterizava não apenas doença, mas perigo para a família, para a civilização e para a ordem moral, já que esses comportamentos anormais poderiam ser hereditários e incuráveis. Essa ameaça vai ganhando importância à medida que as mulheres reivindicam oportunidades de experiência sexual e autonomia. As condições de vida das mulheres estavam mudando a partir da segunda metade do século XIX, o que contradizia a prescrição dos papéis exclusivos de mãe e esposa. Contrariamente à presumida passividade, modéstia e domesticidade, as mulheres começavam a demandar acesso à educação, a se engajar nos debates públicos sobre prostituição e direitos, a se juntar à força de trabalho, a se casar mais tarde e reduzir o número de filhos. Enquanto os médicos esperavam definir a feminilidade como fixa e estática, ela se apresentava instável e fluida. (Rohden, 2001, p.28)
A necessidade de controlar as populações, aliada ao fato de a reprodução ser focalizada na mulher, transformou a questão demográfica em problema de natureza ginecológica e obstétrica, e permitiu a apropriação médica do corpo
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feminino como objeto de saber, ou seja, a medicalização do corpo feminino. A via para medicalizar foi a reprodução. O “gerenciamento da reprodução é fundamental, expresso em um interesse maior na gravidez, no parto, no aleitamento, na puericultura e até no casamento” (Rohden, 2001, p.23-4). O conhecimento cirúrgico e tecnológico aproxima a medicina do parto (Vieira, 2003), possibilitando a criação da obstetrícia (século XVIII) como área de saber médico e a quebra da hegemonia das parteiras (mulheres). A configuração da ginecologia e a instalação de maternidades (espaços específicos e adequados aos nascimentos), no século XIX (Rohden, 2001), promovem a exaltação da maternidade como algo inerente à “natureza feminina”. Segundo Vieira (2003, p.69-70), é a produção de idéias sobre uma “natureza feminina”, no contexto do projeto maior de higienização da sociedade capitalista no século XIX [...] que [permite] sua medicalização. A autora alerta sobre a existência de múltiplas naturezas femininas: uma de acordo com a condição de sexo e outras de acordo com a condição social. Assim, a naturalização é a base da medicalização do corpo feminino. [...] por meio da legitimação do saber médico construíram-se parâmetros de normalidade restritos para a formação da identidade feminina, limitando as mulheres à função de boa reprodutora e educadora dos filhos [...] O gênero feminino constrói-se, então, sancionado como verdade pela incontestabilidade da ciência, inexoravelmente natural, no espaço estreito de uma normalidade reprodutora. (Vieira, 2003, p.71)
Controle da natalidade, eugenia e maternidade-patriótica: o controle da reprodução até as primeiras décadas do século XX Desde a segunda metade do século XIX, havia questionamentos e proposições acerca do tema reprodução, nos quais a fecundação e a fertilidade eram enfatizadas, sobretudo pelos médicos. Rohden (2003) analisou estudos da época, alguns dos quais são destacados a seguir. O tema reprodução foi primeiramente abordado por Guimarães, em tese da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro (1872). Em 1908, Crescencio Antunes da Silveira considerou imorais os processos cujas performances se davam em detrimento da concepção, ofensivos ao casamento e delito contra a sociedade (brasileira). O povoamento era a preocupação central. A diminuição da natalidade de forma voluntária é definida como comportamento antinatural, com conseqüências sérias para a ordem social e para a nação. “Enquanto há mulheres que se recusam o dever da maternidade, outras existem que vivem no mais ardente desejo de um raio de luz na obscuridade de seus sonhos, na angústia infinita de ser mãe” (Carvalho apud Rohden, 2003, p.28). Esse quadro não era exclusivo do Brasil. A natalidade e a higiene da raça perpetuada por ideais eugênicos caracterizou a relação entre medicina e poderes públicos em diversos contextos (Rohden, 2001, 2003). Embora, no período que posteriormente foi denominado transição demográfica (de 1870 a 1920), a redução do número de filhos seja considerada fenômeno complexo e
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resultado de diversas transformações, há uma tentativa de controlar a natalidade por parte dos indivíduos, verificando-se o aumento da utilização de contraceptivos e do aborto, o que, na prática, permitia a fusão destas duas estratégias (Rohden, 2003). Especialmente para mulheres trabalhadoras, restringir o número de gestações e de filhos, ou seja, deter o controle reprodutivo, seria chave para o controle de suas vidas. Particularmente no meio urbano, os métodos contraceptivos e o recurso ao aborto compreendiam mercado lucrativo e de amplas dimensões. Brodie (1994, apud Rohden, 2003) destaca o papel dos ginecologistas nas campanhas contra o aborto e a contracepção, cujo pano de fundo evidente era frear a liberdade sexual feminina, trazendo prestígio para a nova especialidade médica que se constituía por meio da definição da saúde da mulher como problema médico (medicalização do corpo feminino). Ao mesmo tempo, promoviam o crescimento das nações dentro dos já citados padrões eugênicos. Da intrincada relação entre maternidade, contracepção e eugenia decorre a afirmação reincidente de que o médico (aliado aos legisladores) deve estar à frente dos estudos e controle das questões relativas à reprodução e, em especial, ao controle da natalidade. Para casais saudáveis, a regra é procriar e condenar formas de controle da natalidade. A vida familiar e a maternidade são valorizadas, como viabilização do projeto eugênico. Havia grande interesse no estudo científico sobre a humanidade, incluindo suas divisões em classes, raças, nações. A diferenciação e a hierarquia eram ressaltadas nas reflexões dos cientistas da época (Wells et al., 1950). Programas eugênicos incentivavam a reprodução de indivíduos considerados talentosos e bem dotados, desencorajando a reprodução dos indesejáveis. A formação de uma população saudável, garantia do futuro das nações, preconizada nas ações dos médicos (ponta mais visível da intervenção do Estado), abarcou a luta contra a degradação progressiva e hereditária aliada ao incentivo e controle do nascimento de cidadãos saudáveis. De fato, ao aperfeiçoamento da raça se condicionava o aumento da natalidade das classes mais altas, já que os pobres eram responsabilizados pela reprodução de degenerados. É interessante que os próprios médicos admitam que há uma pressão social – e alguns dizem que é mais forte entre as mulheres – para a propagação da contracepção. É em função dessa pressão que os doutores se dizem convocados a reagir. Sua resposta vem na forma de um projeto de valorização da maternidade que passa pela propaganda em prol da natalidade, especialmente frente às mulheres. Diante do panorama instalado pela eugenia e pelo nacionalismo, que via o número de cidadãos como garantia de soberania, era preciso convencer as mulheres sadias da importância do seu papel de mães, [...] recuperar em seus espíritos, talvez abalados pelo excesso de civilização, educação e trabalho, o instinto materno. E também [...] melhorar a capacidade de ser mãe de acordo com os princípios da eugenia, da higiene e da puericultura. (Rhoden, 2003, p.118-9)
Aqui, além de certo deslizamento entre a noção de raça e de classe, o que fica
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Na verdade, isto vem acontecendo desde o advento da medicina moderna (medicina social), mas, no Brasil, se consolida nas primeiras décadas do século XX.
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evidente, mais uma vez, é o processo de naturalização do corpo feminino como base de sua medicalização, o que possibilitou a apreensão desse corpo por especialistas com finalidade de normalizar comportamentos sexuais e reprodutivos. A reprodução, cada vez mais, deixa de ser um assunto de âmbito privado e assume face pública, à qual deve ser dirigido controle7. Controle da natalidade e diminuição da pobreza: discurso neoliberal e eugenia Ao contrário do período de transição demográfica, de incentivo à procriação e natalidade, desde 1960, os planos de desenvolvimento internacional promovem o controle populacional como forma de diminuição da pobreza, expresso no investimento maciço na pesquisa de métodos anticoncepcionais. A “anticoncepção é um produto histórico da evolução médica e das idéias que se tornaram populares e foram disseminadas depois da metade do século XX” (Vieira, 2003, p.62). Novas tecnologias e mudança de valores que permearam o processo de birth control (Back apud Vieira, 2003) são vislumbradas, por exemplo, no desenvolvimento de técnicas de esterilização cirúrgica – “extremo dos aspectos da medicalização da anticoncepção” (Vieira, 2003, p.62). Assim, se antes a esterilização ocorria com finalidades eugênicas, passa a ser escolha voluntária, solução para o controle da fertilidade, legitimada pela medicina e até financiada pelo Estado (Vieira, 2003; Barroso, 1984). No Brasil, a taxa de fecundidade permaneceu praticamente constante de 1930 até 1965, quando teve início seu declínio. A fecundidade total (TFT) caiu de 5,8 filhos em 1970 (Ipea, 1996) para 2,3 em 2003 (Pesquisa Nacional por Amostragem Domiciliar – Pnad, IBGE, 2003). Após 1970 foi evidenciado o aumento do uso de anticoncepcionais, da prática do aborto e da esterilização (Berquó, 1982; Barroso, 1984), com diferenças regionais: a esterilização era relativamente mais importante no Nordeste do que em São Paulo, com maior expansão entre mulheres de nível mais baixo de instrução (Rodrigues et al., 1979, 1980; Nakamura & Fonseca, 1978). A esterilização representava realidades muito diversas para os grupos sociais e compreendia ligadura tubária (LT), e não a vasectomia (Barroso, 1982). Segundo a Pesquisa Nacional sobre Demografia e Saúde (PNDS, Bemfam, 1997), 43% das mulheres brasileiras se submeteram à LT. O uso de anticoncepção, de 77%, incluía limitar gestações (63%) e espaçá-las (14%), refletindo coerência com a alta prevalência de esterilização (Bemfam, 1997). Análise da PNDS demonstrou risco de esterilização superior em 44% para mulheres pardas, em comparação com as brancas. Quanto às pretas, o risco de esterilização foi estatisticamente significativo e inferior ao das brancas, o que indica “obstáculos e dificuldade de acesso, por parte deste grupo de mulheres, até mesmo à esterilização” (Caetano, 2004, p.242). As brancas apresentam o maior percentual de uso de métodos contraceptivos (sendo a pílula ou outro mais moderno, os mais prováveis). De modo inverso, é das negras a menor chance de utilização, ou seja, a maior chance de não estarem usando nenhum procedimento contraceptivo. Sobre as pardas recai a maior proporção de mulheres esterilizadas. Dados
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semelhantes têm sido reportados na literatura (Carreno et al., 2006; Olinto & Olinto, 2000; Costa & Olinto, 1999). As dificuldades de acesso e de utilização de métodos contraceptivos vêm sendo supridas, especialmente em áreas mais pobres, pela esterilização. A combinação de uma estrutura social iníqua com um sistema de saúde que tem historicamente privilegiado a medicina hospitalar, curativa e intensiva em tecnologia é um fator determinante na configuração desta realidade, a qual tende a afetar, desproporcionalmente, a população negra. (Caetano, 2004, p.244-5)
As causas e os mecanismos da prática crescente de esterilização, sobretudo entre mulheres de baixa renda, foram alvos da atenção de ativistas e pesquisadores sociais, especialmente a partir do fim dos anos 1980. Dentre as causas levantadas, encontravam-se o processo de medicalização do corpo feminino (Vieira, 2003; Corrêa & Loyola, 1999), por meio do qual médicos, agentes decisivos sobre a vida cotidiana, influenciaram esta opção para a população de baixa renda, em cujo contexto havia escassas opções contraceptivas. Uma marcante preocupação, mormente por parte do Movimento Negro, consistia em denunciar uma suposta motivação racista e eugênica encoberta pela maciça esterilização de mulheres pobres. Embora, em novembro de 1997, o Ministério da Saúde tenha regulamentado a implementação dos serviços de esterilização no Sistema Único de Saúde (SUS) – tornando-a, inclusive, remunerada pelo governo – e o Programa de Atenção Integral à Saúde da Mulher (PAISM) seja um exemplo de política pública nacional profundamente influenciada pelo movimento de mulheres (Osis, 1998), o estudo de Caetano (2004) demonstra o esvaziamento das propostas dos movimentos sociais e uma apropriação que encobre desigualdades de classe e de gênero. Em contrapartida, o controle populacional não parece ter sido efetivo na diminuição da pobreza. Os resultados de prevenção de nascimentos em países periféricos, em 1990, estimam que 412 milhões de nascimentos tenham sido evitados (Jejeebhoy, 1990), enquanto a diminuição da pobreza não se deu segundo as expectativas, o que demonstra que “a rede de programas de “desenvolvimento com controle populacional” é um exemplo fulminante de fracasso de políticas internacionais dirigidas à diminuição da pobreza” (Giffin, 2002, p.105). Além disso, a transição de gênero, materializada na mulher provedora, mesmo acumulando funções naturais historicamente a ela imputadas – expressa na figura da mulher independente –, oculta o “aprofundamento da dupla jornada, da exploração e da forma em que estas estratégias contribuem para a reprodução da desigualdade em nível de gênero e de classe social” (Giffin, 2002, p.105). Assim, a velha divisão sexual do trabalho se reestrutura e reforça a feminilização da pobreza, como alerta Brito (2000): dos 1,3 bilhões de pessoas em condições de pobreza em todo o mundo, 70% são mulheres. A divulgação dos resultados da PNAD (IBGE, 2003) revela, de forma inédita, a presença de um percentual de 12,48% de trabalhadores domésticos, ou seja, composto por pessoas que, quando da realização do estudo, trabalhavam
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“prestando serviço doméstico remunerado em dinheiro ou benefícios, em uma ou mais unidades domiciliares” (IBGE, 2003, p.25). Este número (6.047,710 pessoas) é superior ao encontrado no setor agrícola (4.426,871 trabalhadores) e concentra percentual significativo de mulheres (5.618,902 ou 92,91%). A feminilização da pobreza, ao acompanhar a feminilização da força de trabalho, atualiza e reformula vulnerabilidades dos gêneros somadas ao número cada vez maior de excluídos, ou seja, “cada vez mais vulneráveis homens, mulheres, crianças e idosos, que sobrevivem ainda interlaçados, neste tecido social em processo de esgarçamento” (Giffin, 2002, p.106), decorrente do modelo macroeconômico vigente. No campo da saúde reprodutiva, o gênero deve ser enfocado como relacional e transversal (Kergoat, 1996; Saffioti, 1992), ou seja: interativo de classe social, raça/etnia, diferenças de geração, capital cultural, etc., e não como uma condição que determina, por si só, diferenciais de vulnerabilidade [...] as vulnerabilidades de gênero não podem ser abstraídas das vulnerabilidades resultantes da pobreza (Giffin, 2002, p.109).
A vivência de questões relativas à saúde reprodutiva e o tipo e a qualidade dos direitos a essa saúde sofre forte influência da raça, classe social e/ou origem étnica. “Etnicidade, racialização, gênero e sexualidade estão relacionados” (Sansone, 2004, p.57), e a “raça é uma dimensão inescapável da trajetória reprodutiva das brasileiras” (Bastos, 2004, p.255). PARTE 2: Sobre a medicalização na contemporaneidade Direitos reprodutivos, contracepção, maternidade e naturalização: ainda a medicalização da reprodução? Segundo Giffin (2002), o processo de controle de fecundidade no Brasil compreende um caso de modernidade perversa. A pobreza e a falta de cidadania condicionam as escolhas reprodutivas (face perversa), ao mesmo tempo em que os métodos e as taxas de uso são modernos (modernidade). O uso de métodos contraceptivos reflete desigualdades sociais e sexuais entre distintos grupos sociais da mesma sociedade (Citeli et al., 1998). Embora a pílula anticoncepcional tenha sido referida como o método mais procurado e o primeiro a ser utilizado (Citeli et al., 1998), a esterilização cirúrgica é o procedimento de controle de fecundidade que mais vem sendo utilizado no Brasil (Caetano, 2004; Giffin, 2002), e teve o suporte da alta prevalência de partos cirúrgicos (36,4%), um dos mais altos do mundo (Vieira, 2003; Giffin, 2002; Correa & Loyolla, 1999). Uma discussão em relação à LT diz respeito à formação de uma cultura na qual esta cirurgia passa a ser vista como fenômeno corriqueiro da vida reprodutiva. A esterilização, então, instala-se definitivamente como momento natural, ponto de chegada da experiência reprodutiva feminina.
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A naturalização fica evidente num novo ciclo estabelecido menarca-concepçãogestação-parto-esterilização em lugar do ciclo menarca-concepção-gestaçãoparto-menopausa (Citeli et al., 1998). Com relação à gravidez e maternidade, o mesmo processo de naturalização impregna e perpassa a história das sociedades, chegando ao século XXI. Paim (1998), ao descrever as relações de gênero nas classes trabalhadoras urbanas, ressalta as atribuições distintas assumidas para manter a reprodução social. O espaço doméstico, interno, privado e natural como domínio feminino; ao homem, a exterioridade, o social e o público. Assim, de um lado, o marido provedor, de outro, as tarefas de cuidar (do marido, dos filhos, do lar), a contracepção, a gravidez e a amamentação como responsabilidades femininas. Ser mulher, nos grupos populares, inclui a maternidade como condição inerente e necessária para sua completa realização como sujeito. [..] A gravidez e a maternidade são vividas não apenas como processo corporal, mas como a atribuição de um status superior à mulher – em relação às mulheres sem filhos [...]. (Paim, 1998, p.35)
Dados do Censo de 2000 (IBGE, 2003), acerca do perfil das mães brasileiras, corroboram o estudo de Paim. De 1991 a 2000, o crescimento do número de jovens entre dez e 14 anos que foi mãe pela primeira vez ilustra a desigualdade como marca social brasileira e deve ser interpretado com base em um conjunto de fatores – baixa escolaridade, baixa renda, despertar precoce da sexualidade. Das mães dessa faixa etária, mais de 80% engravidaram ainda no ensino fundamental (30,2% tinham de um a três anos de estudo; 53,19 de quatro a sete anos), 25,29% não possuíam nenhum rendimento e 52% viviam em famílias com renda de até três salários-mínimos. A falta de informações sobre métodos anticonceptivos nem sempre configura a principal causa da gravidez, mas a busca por auto-estima – ser mãe é uma forma de encontrar seu lugar no mundo e ter relativa independência em relação aos pais (Escóssia & Lins, 2005), num universo em que não há perspectiva de crescimento profissional ou intelectual (escola). A importância da primeira gravidez e da maternidade como ritos de passagem em grupos populares já havia sido demonstrada (Paim, 1998). O status de adulto, valorizado nas classes trabalhadoras, permite a aceitação da gravidez das jovens logo após ficarem mocinhas (Duarte, 1986). Gravidez e maternidade, então, são elementos constitutivos da identidade feminina (Leal, 1995; Leal & Lewgoy, 1995), sendo a primeira percebida como manifestação de saúde (Paim, 1998). “Assim, nos grupos populares, a identidade feminina completa está muito vinculada ao desempenho do papel de mãe e de esposa” (Paim, 1998, p.36). Scholze (2002), examinando representações sobre a mulher em romances de escritoras contemporâneas, salienta a recorrência das imagens femininas e de discursos historicamente construídos: o espaço doméstico, privado, das mulheres, a exaltação à maternidade (versus a frustração do ventre seco), a exclusão da sexualidade feminina pelo recato. Concluindo: a constatação de que “mesmo contrárias às regras sociais vigentes, as mulheres se autopunem” (Scholze, 2002, p.27), [...] “num infinito sentimento de culpa, fracasso, culpa ...” (Scholze, 2002, p.32).
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Uma última questão acerca da naturalização da condição feminina deve ser acrescentada. Trata-se do papel do magistério da igreja, sobretudo católica, sobre a procriação humana, de grande importância num país predominantemente católico como o Brasil. O matrimônio é uma instituição divina, fundada na lei natural e, nesse sentido, os aspectos unitivos e procriativos do ato conjugal são inseparáveis. Na Encíclica Mulieris Dignitatem, está explícita a expectativa do magistério quanto ao papel do gênero feminino na maternidade e na virgindade consagrada. Em contraste, na Instrução e no Comunicado Final, a representação da mulher centra-se em seu papel na gestação, como meio (útero) para desenvolvimento de outra pessoa. Nesse sentido, parece-me que o obscurecimento da dimensão de gênero nos textos está menos relacionado ao igualitarismo da doutrina do que à incorporação da linguagem da biomedicina que “consagra a autonomia do corpo e a indiferença do sujeito que o encarna”, representando a pessoa humana em termos de um “arquipélago de órgãos isolados metodologicamente uns dos outros. (Le Breton, 1995, p.187)
Entretanto, não é apenas no universo das escolas católicas que esses processos se dão. Segundo Louro (2003), a escola forma sujeitos num esquema binário rígido dicotomizado, supondo dois universos opostos: o masculino e o feminino. A constituição dos sujeitos atende a essa dicotomia e baseia-se no que é natural: sujeitos masculinos e femininos heterossexuais. Ao mesmo tempo, análises de livros didáticos e paradidáticos apontam para a concepção de dois mundos distintos: um público – masculino – e, outro, privado – feminino. Além disso, a representação e indicação de atividades “características” de homens e de mulheres, bem como de profissões ou atribuições também “características” de brancos/as, negros/as e índios/as confirmam e aprofundam, na maioria das vezes, a hegemonia do homem branco. Aliadas a essas representações, a da “família típica constituída de um pai e uma mãe e, usualmente, dois filhos, um menino e uma menina” (Louro, 2003, p.70). O poder, inscrito no currículo, estabelece e reforça desigualdades (de gênero, de raça, de classe). Assim, a escola colabora para a manutenção de uma sociedade dividida, fabricando sujeitos e produzindo, por meio da relação de desigualdade, identidades – de gênero, de classe, de raça – de acordo com as concepções que circulam nessa sociedade (Louro, 2003). A escola, se por um lado apresenta e possibilita a discussão em torno de novas tecnologias, por outro, mantém e aprofunda uma estrutura sexista binária dicotomizada, na qual a discussão sobre o corpo – do homem e da mulher – deve enquadrar-se em padrões biológicos predeterminados e será cuidado pelo profissional que dele entende: o médico. Voltando ao estudo do IBGE, observa-se, em contrapartida, para as mulheres com mais de quarenta anos, mães pela primeira vez, a estabilidade financeira e o alto nível de escolaridade, demonstrando a profunda desigualdade da realidade brasileira no tocante à saúde reprodutiva. A importância atribuída à maternidade, mesmo nesse grupo, evidencia a demarcação do papel da maternidade na configuração da identidade de gênero feminino, “[...] já que seu papel é tido como biologicamente definido e caracterizado pela
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maternidade [...], ou seja, para ser uma mulher completa, ela deve ser mãe” (Borlot & Trindade, 2004, p.64). É importante salientar que as novas tecnologias reprodutivas permitem que essas mulheres tenham o direito de definir quando querem ser mães. E a crescente busca por serviços de reprodução assistida compreende, mais uma vez, o processo de medicalização, já que a ausência de filhos configura patologia. A estratégia biopolítica de dominação, mantida por meio da medicalização, provoca um nível de ambigüidade evidenciado no interior das práticas e dos discursos das pessoas, sobretudo das mulheres. Da mesma forma que o processo de naturalização “empurra” as mulheres para a maternidade, como condição e identidade natural, a estrutura tênue das famílias atuais e o modelo de economia capitalista as fazem questioná-la: “por que ter filhos se não tenho condições de criá-los e provê-los?” Este mesmo raciocínio mantém a estratégia biopolítica, pois a saída é a esterilização cirúrgica realizada, geralmente, durante o parto cesáreo, ou seja, atrelada à maternidade. Contudo, o arrependimento pela LT, relatado na literatura (Osis et al., 1999; Osis, 1998; Ades, 1997; Cedenho et al., 1996; Barbosa et al., 1994, Prado & Venegas, 1993), expressa a força do desejo da maternidade (sobretudo no contexto de uma nova família constituída) e, mais uma vez, o recurso à medicalização (reversão cirúrgica). De um lado, extremamente medicalizado. De outro, sem efetivo acesso universal aos cuidados médicos das sociedades concretas. É assim que se apresenta o corpo feminino, produto de uma medicalização que privilegia a reprodução ou sua negação. Esse é o prisma fundamental pelo qual o corpo feminino vem sendo tratado. (Vieira, 2003, p.68)
Considerações finais O controle da reprodução, base da medicalização do corpo feminino, atravessa os séculos. Compreende uma forma de controle social, por meio do qual padrões de comportamento e diferenças de classe social, raça/etnia são ordenados/redescritos, mantendo a hegemonia e aprofundando desigualdades de gênero e de classe. Ao longo do tempo, pode ser identificada a manutenção e perpetuação da representação de gravidez e maternidade como algo inerente à natureza feminina, requeridas à constituição da identidade feminina e à sua plena realização como sujeito. Essa naturalização perpetua e aprofunda desigualdades de gênero e, sobretudo, de classe, uma vez que, especialmente nas camadas populares, o desejo de ser mãe usualmente configura-se como projeto da vida, perceptível no aumento de gravidez na adolescência, enquanto em grupos sociais mais abastados, a maternidade pode ser programada e dotada de recursos tecnológicos específicos para este fim. Do ponto de vista da saúde reprodutiva, as diferenças entre classes, raças/ etnias expressam claramente os processos de exclusão (e eugenia). As mulheres negras são as mais afetadas, inclusive, por um processo de esterilização cirúrgica naturalizado como fim da vida reprodutiva.
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Os problemas apontados ilustram também as dificuldades de acesso a serviços de saúde na vida das mulheres desde cedo (Carreno et al., 2006). Ampliar o acesso aos meios para a regulação da fecundidade, e a informações sobre métodos disponíveis (Lei 9263/97 – Planejamento Familiar) seria o caminho para assegurar um dos elementos fundamentais do conceito de saúde reprodutiva: que as pessoas possam, de fato, decidir sobre quando e quantos filhos ter e regular sua fecundidade por meio de métodos anticoncepcionais em vez de esterilização. A visibilização do gênero (Giffin, 2002) é parte integrante de políticas macroeconômicas hegemônicas e encobre o aprofundamento das desigualdades sociais e os conflitos entre mulheres de diversas classes sociais. O estado neoliberal, no desmonte de si mesmo, suprime a noção de justiça e bem-estar social, e a noção de eqüidade restringe-se apenas aos mais necessitados. Rifkin (2005) alerta acerca da inadequação, ao século XXI, do velho sonho americano de realização individual, num ambiente que conjuga igualdade de oportunidades ao máximo de liberdade e ao Estado mínimo. Caminhar em direção a bem-estar social, tolerância, cooperação e multiculturalismo talvez seja um dos caminhos possíveis para a instalação de um direito reprodutivo real, em que a noção de eqüidade se refira à inclusão e vislumbre a dimensão transversal de gêneros.
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COSTA, T. ET AL. Naturalización y medicalización del cuerpo femenino: El control social por medio de la reproducción. Interface - Comunic., Saúde, Educ. Educ., v.10, n.20, p.36380, jul/dez 2006. El presente estudio pretende discutir, por medio de investigación bibliográfica, la recurrencia del proceso de naturalización como fundamento de la medicalización del cuerpo femenino. Este proceso instituye una forma de control social con base en la reproducción biológica, en que patrones de comportamiento y diferencias de clase social, de raza/ etnia son ordenados/ redescriptos. Así se mantiene la hegemonía masculina, patriarcal y de clase y se aumentan las desigualdades sociales y de género. Se destaca la importancia del desarrollo y de la complejidad de la tecnología - que distancian a las clases populares de las tomas de decisión sobre el propio cuerpo y la salud reproductiva - y de la escuela - sobre todo en las clases de ciencias y educación física - para mantener y perpetuar la hegemonía burguesa. PALABRAS CLAVE: reproducción humana. medicalización. naturalización. control social.
Recebido em 28/11/05. Aprovado em 16/08/06.
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Sentidos da violência ou a violência sem sentido: o olhar dos adolescentes sobr sobree a mídia
Kathie Njaine1
NJAINE, K. The significance of violence or senseless violence - the adolescents’ perspective vis-à-vis the media. Interface - Comunic., Saúde, Educ. Educ., v.10, n.20, p.381-92, jul/dez 2006.
This is a qualitative study that seeks to identify the significance attributed by adolescents to violence disseminated by the media, especially on television, and how this group interacts with this media. The study hopes to increase understanding on how the phenomenon of violence divulged by television is interpreted, incorporated, or not by adolescents in their day to day. Focus groups with seventh and eighth-grade students from the city of São Gonçalo, state of Rio de Janeiro, were interviewed in two public schools and two private schools. The study concludes that one of the public health challenges is to expand its activities in preventing violence given the important role media has in regard to how violence is perceived. The study identified, as a positive aspect of the media, its assistance in education and promoting child and adolescent health. KEY WORDS: violence. mass media. adolescent. health promotion. perception.
Trata-se de estudo qualitativo que investiga os sentidos atribuídos pelos adolescentes à violência na mídia, especialmente na televisão, e as formas como esse grupo interage com o meio. Busca-se aprofundar a compreensão sobre como o fenômeno de violência, mediado pela televisão, é interpretado e incorporado ou não pelos adolescentes em seu cotidiano. Foi utilizada a técnica de grupos focais com alunos das sétimas e oitavas séries do ensino fundamental do município de São Gonçalo/RJ, em duas escolas públicas e duas escolas privadas. Conclui-se que um dos desafios para a área de saúde pública está na ampliação da sua atuação na prevenção da violência, tendo em conta a importância da mídia no discurso da violência. Aponta-se, como aspecto positivo da mídia, a parceria na educação e promoção da saúde de crianças e adolescentes. PALAVRAS-CHAVE: violência. meios de comunicação de massa. adolescente. promoção da saúde. percepção.
Pesquisadora, Centro Latino-Americano de Estudos de Violência e Saúde Jorge Careli, Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz (CLAVES/ENSP/FIOCRUZ); Universidade do Planalto Catarinense – UNIPLAC. <kathie@claves.fiocruz.br>
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Av. Brasil, 4036, sala 700 Manguinhos - Rio de Janeiro, RJ Brasil - 21.040-361
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Introdução Este artigo analisa os sentidos atribuídos pelos adolescentes à violência na mídia, especialmente na televisão, investigando a forma como esse grupo etário interage com o meio e como se apropria de suas mensagens. Busca-se, fundamentalmente, investigar o modo como o fenômeno de violência, mediado pela televisão, interpela esse grupo etário, e de que maneira essa mediação reconstrói novos sentidos no cotidiano dos adolescentes. Considera-se, para fins deste estudo, a percepção dos adolescentes sobre as faces da violência simbólica exercida pela televisão, no sentido de Bourdieu (1997). Para esse autor, ...a violência simbólica é uma violência que se exerce com a cumplicidade tácita dos que a sofrem e também, com freqüência, dos que a exercem, na medida em que uns e outros são inconscientes de exercê-la ou de sofrê-la. (Bourdieu, 1997, p.141)
Uma face dessa ação simbólica da televisão, de acordo com Bourdieu (1997), está no fato de esse meio especificamente ter uma espécie de monopólio das informações, criar uma determinada importância para algumas informações em detrimento de outras, e dramatizar alguns acontecimentos, banalizando-os e espetacularizando-os. São consideradas, também, as percepções dos adolescentes sobre as formas de representação da violência auto-infligida, interpessoal e coletiva, tipologia utilizada no Relatório Mundial sobre Violência e Saúde (Krug et al., 2002). A violência auto-infligida refere-se ao comportamento suicida e aos atos de automutilação. A violência interpessoal refere-se à violência familiar (abusos contra a criança, idoso e conjugal) e à violência comunitária (violência juvenil, violência institucional e atos de violência como o estupro). A violência coletiva é a violência exercida por pessoas que se identificam como membros de um grupo contra outro grupo ou conjunto de indivíduos, para alcançar objetivos políticos, econômicos ou sociais. Esta violência expressa-se sob diversas formas: conflitos armados, genocídio, repressão e outras violações dos direitos humanos, terrorismo e crime violento organizado. O conhecimento sobre como o discurso sobre a violência, produzido pela televisão, é compreendido pelos adolescentes pode indicar alguns elementos para a elaboração de medidas de prevenção da violência pelas áreas da saúde pública, educação, comunicação e outras áreas que lidam com a adolescência. Estudos realizados em países da América do Norte, Europa e Ásia, desde a década de 1960, procuram demonstrar os efeitos adversos (direitos e indiretos) da violência na televisão, sobretudo relacionada ao público infantil (Von Felitzen, 1999; Wartella et al., 1999). Os principais efeitos adversos relatados, em uma revisão da literatura de mais de mil estudos, apontam que a exposição de crianças e adolescentes à violência na mídia pode: (a) suscitar atitudes anti-sociais e agressivas; (b) tornar o espectador insensível à violência na vida real; (c) aumentar a sensação de medo (Strasburger, 1999). De modo diferente deste enfoque mais funcionalista,
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foram surgindo outras pesquisas que privilegiavam o contexto cultural e os processos de recepção das mensagens, influenciadas, sobretudo, pelas correntes do interacionismo simbólico, dos estudos culturais ingleses e latino-americanos. Essas correntes teóricas contemplam o receptor como sujeito ativo no processo comunicacional (Mattelart & Mattelart, 2000). Refletindo sobre a problemática da violência na mídia e a atuação da saúde pública no país, Njaine & Minayo (2004) reconhecem que a presença cada vez maior da mídia eletrônica na vida de crianças e adolescentes necessita ser mais investigada, tanto do ponto de vista da inter-relação estabelecida entre este grupo com esses meios, como também o potencial proativo da mídia na prevenção da violência e promoção da saúde do mesmo. O teórico da comunicação Vicente Romano García aponta alguns aspectos da interação com a mídia: O entretenimento dos meios pode servir tanto para a evasão da realidade, da obrigação e da responsabilidade, como para o encontro social (“parassocial”), a descarga temporal das tendências associais, pode servir de tema de conversa, pode relaxar, aliviar, ativar emoções, estimular ilusões, oferecer orientação, confirmar o saber cotidiano e muitas coisas mais. Todos esses são processos normais, às vezes terapêuticos. Com duas limitações: 1) que as mensagens midiáticas só desempenham essa função, temporalmente, de maneira transitória; e 2) que todo consumo midiático excessivo é perigoso e é provável que apresente efeitos nocivos. Ou seja, que o uso dos meios pode ser também ´disfuncional` para o indivíduo. (García , 2002, p.18)
Muitos desses efeitos interferem no processo de socialização dos indivíduos e ocorrem de forma subliminar (Ferrés, 1998). Esta visão coincide com o investimento em novos estudos sobre os efeitos da mídia, “latentes, implícitos no modo como determinadas distorções na produção das mensagens se refletem sobre o patrimônio cognitivo dos destinatários” (Wolf, 2001, p.143). O “massacre” de informações, segundo Levisky (1998), por meio de imagens e sons, por vezes, pode interferir negativamente no aparelho psíquico da criança, deixando-a passiva, dependente, irritada, intolerante e com problemas de linguagem, sobretudo, quando um adulto não está presente. Para o autor, o conteúdo violento na mídia não se apresenta somente no ato físico contra o corpo. Ela está na excessiva excitação que atinge o sistema psíquico, oriunda do mundo externo ou da vida pulsional, e que vem ameaçando a capacidade psíquica do indivíduo de selecionar, elaborar, discriminar... (Levisky, 1998, p.157)
Essas interferências também afetam as formas de o adolescente vivenciar sua subjetividade e seus processos de identificação, reestruturando seus espaços de interação e produzindo novos sentidos sobre a realidade social (Colonnese, 1998; Spink et al., 2002).
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Violência contra a criança e o adolescente no Brasil – breve panorama Sob a ótica da saúde pública, considerando crianças e adolescentes, a população de zero a 19 anos de idade e as mortes por causas externas como a expressão mais grave da violência social, Souza & Mello Jorge (2004) apresentam um panorama epidemiológico deste fenômeno que acomete esse grupo etário. Segundo as autoras, de cada dez crianças ou adolescentes que morrem nas principais capitais do país, sete chegam a óbito devido a uma causa violenta ou por acidente. No ano de 2000, crianças e jovens do sexo masculinos representaram 84,1% dos óbitos, e as mortes femininas, 15,9%. O perfil dessas vítimas é de pouca escolaridade, viver em periferias das grandes cidades, pertencer à população mais empobrecida, ser negro ou ter ascendência negra. As principais causas de morte foram os acidentes de trânsito e transportes (38,8%) e homicídios (24,6%), o que representou mais da metade da mortalidade geral (63,5%) de crianças e jovens. Na faixa de zero a quatro anos, os acidentes domésticos são os maiores responsáveis pela mortalidade, revelando a face oculta da violência familiar, expressa sob a forma de negligência dos pais ou responsáveis pelos cuidados da criança. Entre cinco e nove anos, os acidentes de trânsito são os maiores responsáveis pelas mortes de crianças. Porém, na adolescência, o lado mais cruel da violência se concretiza nos homicídios. Dentre os principais fatores potencializadores da violência contra crianças e adolescentes, Souza & Mello Jorge (2004) apontam o uso de álcool e outras drogas e o uso de armas de fogo. Essas expressões da violência, na vida real ou ficção, são representadas majoritariamente nos meios de comunicação, de forma descontextualizada de suas causas e de suas conseqüências. Metodologia Trata-se de um estudo qualitativo que tem como base interpretativa o referencial metodológico da hermenêutica em profundidade (Thompson, 1995), enfatizando o processo de compreensão e interpretação das formas simbólicas do fenômeno da violência mediado pela televisão e interpretada pelos adolescentes. Para a abordagem com os adolescentes, adotou-se a técnica de grupo focal, que procura contemplar as opiniões, os valores e as percepções de um determinado grupo que compartilha características identitárias semelhantes (Krueger, 1994). Busca-se compreender os significados atribuídos pelos adolescentes à violência representada na mídia. Para tal, foi elaborado um roteiro de entrevistas sobre questões gerais relacionadas ao hábito de ver televisão, preferência da programação, opiniões sobre a imagem dos jovens na televisão, relações de consumo, mediações da família; e questões específicas sobre os sentidos atribuídos à violência representada na mídia. Foram selecionados quatro grupos focais, com alunos das sétimas e oitavas séries do ensino fundamental do município de São Gonçalo, Estado do Rio de Janeiro, em: duas escolas públicas (uma estadual, localizada num bairro com ocorrência freqüente de eventos violentos, e outra municipal, situada num bairro tranqüilo do município); e duas escolas particulares (uma que atende à
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clientela de estrato social médio, e outra de natureza religiosa, que atende à clientela de estrato social mais baixo). O trabalho de campo foi realizado em abril de 2003, abrangendo um total de 33 alunos (17 meninos e 16 meninas) com idade entre 12 e 14 anos (três grupos contaram com quatro meninos e quatro meninas; um grupo com cinco meninos e quatro meninas). Alunos de uma escola pública encontravam-se defasados na relação série/idade, com idades entre 15 e 17 anos. As sessões foram conduzidas por uma pesquisadora e uma assistente e tiveram, em média, uma hora e meia de duração. Foi realizado um pré-teste com alunos de uma escola particular, com idades entre 12 e 13 anos. A participação dos adolescentes nos grupos focais ocorreu mediante a assinatura de um termo de Consentimento Livre e Esclarecido, conforme preconizado na Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde. A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa sob o parecer no 08/03. O processamento dos dados qualitativos foi feito mediante a transcrição das entrevistas, leitura flutuante e categorização dos temas. Resultados e discussões Na inter-relação dos adolescentes de São Gonçalo com a televisão, um programa de ficção e um telejornal estão entre os preferidos pelos jovens. A preferência pela novela “Malhação” da Rede Globo, produção dirigida a adolescentes, reafirma os resultados de uma pesquisa com 1.220 jovens do município do Rio de Janeiro (Minayo et al., 1999), demonstrando o efeito catalisador desse entretenimento na vida desses jovens. Sobre a forma como determinados temas relacionados a situações de risco são abordados por esse programa, os alunos de São Gonçalo confirmam a opinião dos jovens da cidade do Rio de Janeiro, que consideram que a novela trata de maneira superficial e banal questões como as drogas e gravidez na adolescência. Outra queixa é que muitas das situações na ficção não correspondem à vida real, uma vez que as experiências com as drogas ou com a gravidez na adolescência são muito mais complicadas e conflituosas. Apesar das críticas a essa novela, os adolescentes dizem gostar do programa porque também é divertido, e muitas das tramas são parecidas com outros aspectos de suas vidas. Na programação de não-ficção, o Jornal Nacional, também da Rede Globo, foi citado como o mais assistido pelos jovens. Na compreensão dos alunos entrevistados, esse telejornal ajuda os jovens a “reagir a alguns problemas da vida” (aluno 7a /pública), como a violência e o desemprego, e “é uma forma de nos precavermos das coisas” (aluna 8a/pública). O telejornal é visto como uma espécie de sinalizador para a prevenção aos riscos, como o da violência e o das doenças. A veiculação de determinados problemas que constituem risco à vida e à saúde faz parte de uma seleção própria do campo jornalístico, os quais são destacados repetidamente por meio de imagens e notícias. A opinião dos jovens indica como a mídia pode reorganizar o cotidiano e o espaço físicotemporal dos receptores, valendo-se da circulação de determinadas noções, como a de risco. Spink et al. (2002) verificaram o crescimento de uma linguagem de riscos na mídia impressa, na década de 1990, sobretudo, nas seções de economia, esportes e segurança pública. A noção de risco também é empregada diretamente para fazer menção a situações de perigo à vida e à saúde das pessoas. Com freqüência, essa noção é utilizada na perspectiva da
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responsabilização e culpabilização do indivíduo por sua saúde e segurança. Este modo de apropriação da noção de risco aparece nas falas dos entrevistados e indica uma forma de apreensão do sentido da violência, mediado pela televisão e descontextualizado do campo da saúde pública. Essa noção de risco está relacionada à responsabilidade do indivíduo em relação ao seu sentimento de medo e insegurança, não indicando em que medida os riscos podem ser prevenidos do ponto de vista das instituições sociais e das políticas públicas. Em relação à forma como a televisão interpela a vida cotidiana dos adolescentes, dois aspectos relevantes podem ser compreendidos com base na fala dos alunos de São Gonçalo. Primeiramente, há uma percepção dos adolescentes de que a mídia constrói imagens distorcidas da adolescência, representadas, na programação ficcional, por meio da supremacia de meninos e meninas brancas e com estilos de vida muito aquém das condições de vida da maioria da população jovem brasileira. No plano simbólico, essa forma de exclusão é quase invisível, não fosse o fato de afetar indiretamente e negativamente o processo de construção da identidade social de crianças e adolescentes. Em relação ao jornalismo eletrônico, os adolescentes (em particular, sobretudo, os das camadas sociais menos favorecidas) observam que sua imagem representada na televisão aparece muitas vezes associada a atos de delinqüência. Em síntese, os adolescentes de São Gonçalo percebem que a televisão, ao representar a violência envolvendo os jovens, opera uma distinção radical entre os estratos mais altos da população e os populares, tanto nos eventos dos quais são vítimas quanto nos que são produtores. Os alunos ilustram essa percepção com o caso real de uma jovem de classe alta de São Paulo, acusada de matar brutalmente seus pais. Esse caso foi tratado pela mídia, em geral, como um ato cometido por uma pessoa doente psicologicamente. A despeito das teorias que atribuem determinados crimes hediondos a patologias graves, para os adolescentes de São Gonçalo, se o crime fosse cometido por um jovem pobre, o fato, na mídia, seria reduzido à sua condição de pobreza. Essa face de discriminação, de certa maneira naturalizada em alguns programas de entretenimento e no jornalismo, é assim percebida pelos jovens: ... o jovem que faz a coisa certa e que passa na televisão, não é um jovem que a gente vê no dia-a-dia. Às vezes, o garoto tem o cabelo pintado, é uma pessoa legal, e a televisão não passa. O jovem que passa na televisão é um rapaz branco, de camisinha pólo, olhos azuis.... ...às vezes, tem um grupo se divertindo, não está fazendo nada de errado, aí a polícia diz ‘olha, é um viciado´. Aí [a televisão] bota que é bandido”. (alunos da 7ª série/escola pública)
Uma outra forma de interpelação da mídia, constatada no relato dos adolescentes, se dá no comportamento social, em particular, no estímulo ao consumo em geral, na moda e no estilo de ser. Canclini (1999), investigando a relação entre consumo e cidadania, afirma que, atualmente, as identidades se definem pelo modo de consumir, materialmente ou simbolicamente, de acordo com o que se tem ou o que se pode chegar a ter. Metade dos alunos acredita que, no impulso de consumir, a mídia pode influenciar na conduta delituosa de
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alguns adolescentes que desejam obter bens materiais, muitas vezes inacessíveis ao seu poder aquisitivo. O comportamento imitativo de atitudes violentas na mídia (mais suscetível a crianças menores expostas à violência na vida real) também foi lembrado como uma forma de influência da televisão. A exposição constante às formas de violência na vida real e na ficção impacta na vida de crianças e adolescentes de forma nociva, tornando-as, muitas vezes, intolerantes e confusas frente aos conflitos violentos. Profissionais da área de psicologia alertam que as crianças necessitam da presença de um adulto que as ajude a discernir os fatos violentos que presenciam na vida real ou vêem nos meios de comunicação (Levisky, 1998). No entanto, uma outra parte dos adolescentes entrevistados não acredita que a mídia tenha esse poder de influenciá-los, apesar de reconhecerem que existem distorções na forma como a mídia representa o fenômeno da violência. Programas sobre casos policiais, como Linha Direta e o programa de auditório Ratinho, causam reações paradoxais entre os adolescentes entrevistados. Com discursos que defendem a justiça e a verdade, esses programas ora funcionam com um caráter messiânico “porque ajuda as pessoas” (aluna 7a /pública) e mostram “aqueles casos que é realidade (...) a agressividade, a matança” (aluno 8a /pública), ora causam repulsa entre os jovens, pela espetacularização da violência e exploração do sofrimento humano. O discurso da mídia sobre o fenômeno da violência produz um sentimento difuso na maioria dos adolescentes. Ao mesmo tempo que criticam os programas jornalísticos e de ficção, pela forma banalizada com que tratam da questão da violência, os adolescentes procuram usar essas informações para criar mecanismos de defesa contra a violência. No âmbito da vida, esses sentimentos de medo, difundidos pela mídia, provocam efeitos desestabilizadores no modo como os adolescentes organizam sua rotina. Alguns adolescentes dizem sentir pânico ao ver a repetição de imagens de criminosos na tv, evitam determinados lugares ligados a ocorrências de violência, mas não refletem sobre as formas mais graves da violência familiar e institucional, indicando pouco conhecimento sobre seus direitos. Constata-se, por vezes, que, nesse contexto, inexiste o diálogo tão fundamental no espaço escolar e familiar. A comunicação como ação humana essencial para a interação é quase que totalmente substituída pelo discurso midiático, que constrói as imagens de uma violência sem contexto e sem respostas. A maioria dos jovens entrevistados reconhece que a omissão dos pais ou responsáveis e a ausência de uma comunicação afetiva pode afetar os filhos. Entendem que o convívio familiar é importante para o controle sobre a programação a que as crianças assistem e para o desencadeamento da conversa entre pais e adolescentes. Rappaport et al. (2002) afirmam que, em ambientes nos quais as relações familiares privilegiam a resolução dos conflitos por meio do diálogo e onde há uma troca afetuosa entre pais e filhos, a criança sofrerá menos as influências negativas dos conteúdos da televisão. Segundo Orozco (1993), dentre os elementos intervenientes na relação televisão versus audiência, a família é o mais importante. Como confirma a opinião de uma jovem: ...a televisão pode até influenciar (...) mas eu tenho os conselhos do meu pai, então, eu não sou influenciada, pelo menos eu acho que não
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sou tão influenciada, porque eu vejo uma coisa lá e em casa eu vejo outra (aluna 8a /particular).
Cenas de violência na ficção, quando representadas dentro de um contexto explicativo, têm o poder de transmitir para os jovens um modelo que não deve ser copiado. Alguns estudantes consideram que certos comportamentos de personagens da tv, no entanto, geram conflitos em casa. Esta pesquisa constatou que muitos valores que a mídia transmite entram em choque com os valores morais da família. Por exemplo, o horário para voltar para casa à noite, determinado pelos pais, é questionado por muitos adolescentes que vêem na ficção uma permissividade maior para os personagens da mesma idade. Poucos alunos dizem que não têm o hábito de assistir televisão ou que não se importam com os programas de tv, valorizando mais o convívio com a família e com os amigos. Somente um aluno de uma escola pública afirma que a mídia não exerce nenhuma influência sobre o seu comportamento: “se a televisão influenciasse alguém, eu seria o maior bandido do mundo!”. Esse jovem diz ocupar seu tempo com música, conversando com o pai e os amigos, não tendo interesse algum pela programação televisiva. A violência na vida dos adolescentes – a dimensão do real A violência vivenciada e testemunhada por muitos adolescentes do município de São Gonçalo suplanta a ficção e os fatos. A maioria dos entrevistados sofreu ou presenciou alguma forma de violência na família, escola e comunidade. É o caso de um jovem que viu seu amigo ser assassinado: “um colega que eu tinha (...) veio se acabar na minha frente. O pai não tinha condição (...) ele queria carro, moto, essas coisas que mostra na novela” (aluno 8a /particular). Muitas situações de conflito familiar, na escola e no bairro, foram relatadas durante o grupo focal e após a sessão, revelando uma intricada trama de violência, na qual o real e o simbólico se retroalimentam. Alguns entrevistados revelaram que são tratados de forma diferenciada pelos pais, sobretudo, quando suas qualidades são freqüentemente comparadas com as de algum irmão preferido da família. Desafetos com outros membros da família, principalmente padrastos e madrastas, também são citados como causadores de conflitos “Eu tenho padrasto, mas eu não me dou bem com ele, eu odeio ele” (aluna 7a /pública). Um estudo epidemiológico, em 2002, com 1.714 escolares do município de São Gonçalo/RJ, investigou a questão da auto-estima e violência entre adolescentes de 11 a 19 anos de idade. Esse estudo constatou que 55,4% dos entrevistados sofreram algum tipo de maus-tratos durante a infância e a adolescência, causados por pais ou pessoas significativas. A pesquisa verificou uma correlação da violência intrafamiliar sofrida por esse grupo com a violência sofrida na escola e na comunidade (Assis & Avanci, 2004). Alguns adolescentes da presente pesquisa disseram sofrer agressão verbal por parte de professores, como foi citado o caso de um professor de uma escola particular que costuma chamar os alunos de “burros” em sala de aula. A violência na comunidade também acomete, de forma direta e indireta, o cotidiano dos adolescentes, sobretudo, daqueles que vivem próximos às áreas de ação do tráfico de drogas. Para alguns jovens, a morte simboliza a
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conseqüência mais trágica da violência e, por vezes, não reconhecem ou minimizam os eventos violentos não-fatais, denotando a necessidade de ampliar a consciência sobre as conseqüências deixadas por esses eventos. Em que pese a relação lúdica que os jovens podem estabelecer com alguns produtos culturais mais criativos e informativos da televisão, em relação às situações de risco, a maioria dos adolescentes é bastante crítica, como ressalta a fala de um aluno: A televisão não está informando assim para alertar os jovens, os idosos, as crianças. Ela está trocando informações por dinheiro, porque hoje em dia tudo para a tv é audiência, nada mais que audiência (aluno 8a /pública). Alunos de uma escola pública situada em área violenta do município, e que se encontram defasados na relação série/idade, dizem que não existe na televisão um programa que sinceramente fale para a juventude. Atribuem isso ao fato de que comercialmente não é vantajoso para a mídia esse tipo de programa. Comparam a falta de interação e identificação de interesse na mídia com o momento de realização do grupo focal, quando puderam se colocar e falar livremente sobre vários assuntos de interesse dos jovens. Uma minoria mais crítica avalia que, nas mensagens da televisão, “tanto ruim como boa há informação e ajuda para você conversar (...) tem que ter consciência de uma coisa que é ruim e que é boa. Você tem que saber separar as coisas” (aluna 8a /particular). Poucos acham que não se deve supervalorizar o conteúdo violento desses gêneros, porque a ficção é um produto da criatividade do autor. Mas consideram importante a televisão mostrar mais a “a vida real”, porque “o dia-a-dia das pessoas não é um filme (...) se o cara cortou a cabeça do outro moço, a cabeça vai ficar lá no chão, sangrando” (aluno 8a / pública). Conclusões As opiniões dos adolescentes sobre si mesmos não são amorfas ou sem crítica. Eles conseguem desconstruir a imagem hegemônica dos jovens representada pela televisão e demonstrar que sua identidade não é exclusivamente determinada por essa imagem. Assim, não interiorizam completamente a imagem negativa que, na sua opinião, algumas mídias e a própria sociedade criam da juventude, em especial, da juventude pobre e negra.. Alguns adolescentes buscam ressaltar as situações de risco a que são expostos, ou por viverem em áreas dominadas pelo tráfico de drogas, ou por relacionarem-se com pessoas envolvidas com a criminalidade. Entretanto, a grande maioria declara resistir ao aliciamento ou à sedução do tráfico. Contrariando essa atitude de resistência dos jovens, a televisão rotula todo e qualquer morador de áreas ocupadas pelo tráfico de drogas de “marginal” ou potencial “marginal”. Essa representação negativa do jovem pela mídia reforça, no mínimo, duas formas de vitimização: a) a truculência de alguns policiais ao abordarem os jovens de forma geral, e de forma especial os jovens moradores de periferias e favelas, julgando-os pela simples aparência para justificar a violência contra esse grupo; b) o tratamento preconceituoso
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e descortês dispensado por muitos serviços (públicos e privados) e pela sociedade, de maneira geral, aos grupos das camadas populares. Esta é uma das mais graves formas de violência simbólica, conforme aponta Bourdieu (1997). Além dessa violência mais invisível, a espetacularização das outras formas de violência também é reprovada pelas meninas e meninos. Nenhum dos adolescentes aprova o sensacionalismo da tv, mas reconhecem, nas abordagens mais contextualizadas, uma maneira de aprenderem e refletirem sobre o fenômeno da violência. É o caso do marketing social inserido em algumas telenovelas, que têm tratado, por exemplo, a temática da violência intrafamiliar em um contexto da saúde e da prevenção. Apesar das contradições da produção midiática em relação à sua função pública de informar, a televisão constitui uma fonte de informação importante para os adolescentes, que acabam por apreender um sentido de risco à violência dado prioritariamente por esse meio, ou somente por ele. Na ausência de políticas de prevenção, entende-se, portanto, o lugar privilegiado que a televisão ocupa no cotidiano dos adolescentes. Por que os adolescentes, mesmo criticando algumas formas de representação da violência, buscam na televisão uma maneira de se protegerem das situações de risco, como a violência? Uma primeira explicação possível está no fato de a mídia ocupar esse espaço de mediação e considerar que deve e pode falar de todos os temas, porque tudo é “informação” e que toda informação é de interesse público. Uma outra explicação se refere à omissão das instituições sociais responsáveis pela tarefa de cuidar e proteger crianças e adolescentes e à indiferença dessas instituições em relação ao discurso hegemônico da mídia sobre a violência e seu papel socializador. Para Canclini (1999), abordando a relação das camadas populares com os meios de comunicação, “o público recorre à rádio e à televisão para conseguir o que as instituições cidadãs não proporcionam: serviços, justiça, reparações ou simples atenção” (1999, p.50). Um dos desafios para a área de saúde pública ampliar a atuação no campo da prevenção da violência está na compreensão dessas questões. Há, por exemplo, uma necessidade cada vez mais urgente de se conhecer a dimensão e o impacto psicológico da violência midiatizada sobre crianças e adolescentes brasileiros, uma vez que vêm gerando sensações de medo, angústia e sentimento de insegurança. De forma positiva, a mídia deve ser vista como uma parceira fundamental na educação e promoção da saúde desse grupo, conforme apontam Njaine & Vivarta (2005). Importantes projetos em educação para a mídia estão em curso no país e comprovam o potencial proativo das diversas mídias. A desnaturalização de algumas noções de violência dadas pela mídia e a construção de espaços coletivos e democráticos para os jovens se expressarem e se colocarem no mundo são alguns caminhos para qualificar essas interações e fortalecer a cidadania.
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Agradecimentos Agradecimentos especiais a Joviana Quintes Avanci, que contribuiu para a realização dos grupos focais.
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NJAINE, K. Sentidos de la violencia o la violencia sin sentido - la visión de los adolescentes sobre la media. Interface - Comunic., Saúde, Educ. Educ., v.10, n.20, p.381-92, jul/dez 2006. Se trata de un estudio cualitativo que investiga los sentidos atribuidos por los adolescentes a la violencia en la media, especialmente en la televisión y las maneras como ese grupo interactúa con este medio. Se busca profundizar la comprensión sobre cómo el fenómeno de violencia mediado por la televisión es interpretado e incorporado o no por los adolescentes, y cómo esta mediación reconstruye nuevos sentidos en su cotidiano. Fue utilizada la técnica de grupos focales con alumnos del séptimo y octavo años de la educación primaria del municipio de São Gonçalo/RJ, en dos escuelas públicas y dos escuelas particulares. Se concluye que uno de los desafíos para el área de salud pública está en la ampliación de su actuación en la prevención de la violencia tomando en cuenta la importancia de la media en el discurso de la violencia. Se apunta como aspecto positivo de la media la colaboración con la educación y promoción de la salud de niños y adolescentes. PALABRAS CLAVE: violencia. medios de comunicación de masas. adolescente. promoción de la salud. percepción.
Recebido em 28/06/05. Aprovado em 18/08/06.
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Sobr tida: Sobree pontos de par partida: planejamento em comunicação e integr alidade da atenção em saúde integralidade
Áurea Maria da Rocha Pitta 1 Francisco Javier Uribe Rivera 2
PITTA, A. M. R.; RIVERA, F. J. U. The starting point: a methodological proposal for communication planning, based on comprehensive healthcare. Interface - Comunic., Saúde, Educ. Educ., v.10, n.20, p.395-410, jul/dez 2006.
The text proposes, as a starting point of communication planning, an analysis of Strategic Situational Planning – (“PES”), widely disseminated in the area of collective health. It discusses the relationship between concepts used in Strategic Situational Planning and political economics of the significant. The authors wrote the paper based on both the authors own opinion and that of others regarding institutional dynamics and health-citizen relationship at a local level. KEY WORDS: health communication. health services. health care (public health).
O texto propõe, como ponto de partida do planejamento em comunicação, o momento explicativo do Planejamento Estratégico Situacional – o PES, largamente difundido no campo da saúde coletiva. Tece relações entre noções que permeiam o PES e uma economia política do significante. Possui como base diferentes momentos da produção e ausculta dos autores a dinâmicas institucionais e relações serviços de saúdepopulação em âmbito local. PALAVRAS-CHAVE: comunicação em saúde. serviços de saúde. atenção à saúde.
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Pesquisadora, Departamento de Comunicação e Saúde/CICT, Fundação Oswaldo Cruz/FIOCRUZ. <aureapitta@cict.fiocruz.br>
Pesquisador, Departamento de Administração e Planejamento de Saúde, Escola Nacional de Saúde Pública, ENSP/FIOCRUZ. <uribe@ensp.fiocruz.br> 2
1 Praia de Botafogo, 96/1906 Botafogo - Rio de Janeiro, RJ Brasil - 22 250-040
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PITTA, A. M. R.; RIVERA, F. J. U.
Introdução A história dos movimentos sociais, acadêmicos e profissionais do campo da saúde coletiva vem apontando, há mais de quatro décadas, para novas lógicas de organização dos modelos de atenção à saúde assentadas no conceito de integralidade da atenção e das necessidades de saúde. Neste texto procuramos resgatar o que consideramos ser um ponto nevrálgico das políticas de comunicação social no âmbito dos serviços e das instituições de saúde, de forma a contribuir não apenas para a construção de uma necessária coerência destas metodologias com os propósitos de uma política pública de comunicação para a saúde, mas para a definição de linhas de apoio e fomento que possibilitem a viabilidade efetiva de implementação de outros modos de compreender e definir prioridades de investimentos em projetos e ações neste campo, em que são investidos, anualmente, recursos nada modestos do orçamento público. Se o debate no campo dos modelos tecno-assistenciais e de atenção, com base em necessidades de saúde, vem sendo retomado com bastante consistência e visibilidade nos últimos anos, ainda é pontual e episódico no que diz respeito a um enfoque público de comunicação no campo da saúde coletiva. Para tanto, valendo-nos da definição sumária de três possibilidades de pontos de partida para o planejamento em comunicação, que precisam ser “desconfundidos”, pretendemos contribuir para a reflexão teóricometodológica sobre as relações (“radicais”, digamos) entre um enfoque público de comunicação e uma política pública de saúde que tenha como ponto de partida a lógica das necessidades sociais e de saúde. Tentaremos, aqui, um primeiro delineamento de possíveis fronteiras teóricometodológicas sobre a questão. Uma primeira forma de planejar é aquela desenvolvida pela livre iniciativa no exercício de uma dada “liberdade de imprensa”. São diversificadas e bastante complexas as articulações entre empresas do chamado complexo informativo-publicitário - constituído por rádios, TVs privadas, empresas de publicidade e propaganda, entre outras, e empresas voltadas ao consumo de bens e serviços relacionados a saúde-doença. Os fortes condicionamentos de natureza lucrativa, na grande maioria das vezes, acabam por permear a definição da agenda de temas em circulação na dimensão pública. Condicionamentos que acabam por definir uma menor ou maior visibilidade de questões que integram a “ordem do dia” do mercado das Comunicações3. Os discursos em saúde-doença e Ciência e Tecnologia (C&T) em saúde são produzidos e circulam, portanto, com base nas relações de produção e nos processos de trabalho que entrelaçam os interesses de mercado da grande mídia, em especial, os dos complexos médico-industrial, do laser, da beleza e juventude, do fitness (Luz, 2006), entre outros, como os de bebidas alcoólicas e medicamentos. Soma-se a isto, o (desigual) acesso e possibilidades de expansão deste padrão de discursividade às novas velocidades hoje permitidas pelas (tele)comunicações e internet, deste mesmo mercado. A conseqüência de tomarmos o que já circula neste mercado como ponto de partida do planejamento em comunicação nos faz incorrer no risco de considerar este o espaço privilegiado de definição de
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3 Para um aprofundamento da questão, que passa por estudos em torno do objeto, seus atributos e formas de enquadramento ou framing na composição da agenda da mídia – enfoque agendasetting, consultar Azevedo, 2004. Optamos por trabalhar esta questão específica em outro momento.
SOBRE PONTOS DE PARTIDA: A PLANIFICAÇÃO...
4 No caso da aids, ressaltamos o diferencial de uma política de comunicação bastante inclusiva no que diz respeito aos atores que a enunciam, dada a força dos movimentos nacionais e internacionais em torno da pandemia. 5 Ainda reduzida a análises em torno dos impactos do “dia D”.
critérios de relevância pública das questões ligadas à saúde, doença, vida e morte. É o caso, muitas vezes, de alguns programas em canais governamentais que, para assumirem ares de atualidade e afinidade com os temas tratados na grande mídia, se alinham pontual ou permanentemente à lógica de agendamento aí presente, subvertendo, na maior parte das vezes, os critérios de relevância pública a que deveriam estar atentos. Resultado: grandes descompassos das possíveis escolhas com um temário mais coerente com a lógica das necessidades sociais e de saúde. Um segundo ponto de partida, usual no planejamento setorial em comunicação, são os próprios sistemas de informações em saúde e suas bases de dados e estatísticas, que se estruturam com base na relação entre demanda e oferta disponível nos serviços de saúde locais. Neste caso, podemos citar como exemplo os grandes investimentos em comunicação que tomam de nossas bases de dados, em especial, doenças de notificação compulsória e de grande interesse transfronteiras, como o caso da aids4 e da dengue5, em detrimento de outras tantas, como a esquistossomose, doença de chagas, malária e hanseníase. A partir da década de 1990, identifica-se uma crítica à insuficiência desta modalidade de planejamento em comunicação, baseada em doenças ou entidades nosológicas acolhidas por sistemas de informação organizados segundo uma racionalidade normativa de planejamento em saúde (Rivera, 1995) e transformada em produtos ou compostos de publicidade e propaganda (diferentes “campanhismos”), já que o que se passa no campo da oferta de serviços, nos campos da clínica e da epidemiologia e vigilâncias, em muito se distancia daquilo que lhes é demandado ou permanece não identificado pelas instituições de saúde junto ao público. Esse condicionamento da demanda pela própria oferta de serviços acaba por permitir, na melhor das hipóteses, o compromisso de equipes de saúde com uma “integralidade possível”, já que, por mais comprometidos que possam ser os profissionais de uma equipe de saúde e por mais comunicacionais que sejam as suas práticas, jamais esta integralidade será plena, já que essa plenitude passa pela melhoria das condições de vida e pelo acesso a tecnologias para prolongar a vida (Cecílio, 2006). No sentido dessa “integralidade possível”, diferentes alternativas e propostas emergem desde a década de 1970. Surgem perspectivas de trabalho em rodas (Campos, 2005) e redes de conversação no momento do acolhimento nos serviços de saúde. Momento em que a questão democrática se manifesta na sua forma mais plena e humana - uma riqueza só percebida nesses espaços onde se podem exercitar micropolíticas coerentes com o que é chamado de “democracia viva em ato”, que permite, na prática cotidiana, cultivar, na rigidez dos processos de organização da assistência e seus “dispositivos técnico-assistenciais”, a ausculta ao que se chamou com muita propriedade de “poéticas sociais” (Teixeira, 2003). Haveria uma incapacidade, apontada por diferentes autores, de ausculta dos serviços à totalidade do fenômeno saúde-doença (não apenas no campo da clínica), que se expressa pela proliferação de queixas “para além da oferta” disponível. Muitos dos casos, segundo os técnicos e gestores, são identificados como doenças da emoção, como vamos chamar aqui e, em seu limite, encaminhadas a psicólogos ou mesmo a serviços de psiquiatria e...
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medicalizados. Outros tantos, carregados de um sofrimento social indistinto e com queixas diversas em relação à família e ao trabalho, dão entrada nos sistemas de informações locais da unidade na categoria “queixas difusas”, que expressam agravos biopsicossociais ou um “sofrimento” e “mal-estar” difusos (Valla, 1999 e Luz, 2001, apud Lacerda & Valla, 2005). Essas situações escapam às metodologias de planejamento setorial desatentas ao sofrimento humano e às suas poéticas – os mais relevantes referentes éticopolíticos de ações comprometidas com a equidade e a integralidade da atenção à saúde. Abrem-se perspectivas e reflexões sobre o trabalho com “pessoas em sofrimento”, com experiências de vida complexas, cujas necessidades transbordam dos muros das unidades de saúde, e para as quais o espaço do acolhimento no mundo dos serviços de saúde é apenas parte de demandas mais amplas por um bem-estar que deve necessariamente estar expresso no cotidiano da moradia, renda, do trabalho, da família e dos grupos e redes de pertencimento. Trazendo as redes de conversa para a dimensão mais ampla do espaço das cidades, defendemos, como ponto de partida para o desenho de estratégias de comunicação com vistas à integralidade da atenção, uma “rede de conversações” com base em problemas de saúde compartilhados por grupos sociais de um determinado espaço-população – redes sociodiscursivas. Desta noção de “rede de conversações” mais ampla e que ultrapassa os muros das unidades de saúde como “espaço físico”, é necessário ressaltar algumas questões: uma delas, que a conversação ou a comunicação6, passa, em si, a se tornar o ponto de partida para a definição do leque de ações instrumentais de comunicação a serem definidas, agora a partir da lógica das necessidades em saúde-doença. Vários autores brasileiros, como Mehry (2004), Campos (2003) e Teixeira (2003), sustentam esta noção de rede de conversações no interior do sistema de serviços. Para Teixeira (2003), o acolhimento é uma forma de diálogo (a base do acolhimento é a conversação), orientado a distinguir e hierarquizar necessidades, ajudando, assim, a definir a trajetória ou os fluxos do paciente pelo sistema, ou seja, colaborando para a sua integração sistêmica. Mehry chama a atenção para uma ampliação da noção de acolhimento nas interfaces entre serviços, níveis de complexidade diferenciados de atenção e profissionais de saúde. As relações entre esses níveis corresponderiam a uma rede de petições e compromissos que permitiria garantir essa integração. Neste particular, o autor se apropria da concepção lingüística das organizações (Flores, 1989), segundo a qual a organização é uma rede de conversações recorrentes e o ponto de partida é sempre uma demanda social - ou uma petição. Para o autor, essa rede pode ser rastreada e se constituir em um sistema de monitoramento de compromissos com instrumentos adequados, valendo-se de determinados softwares (por exemplo, o Coordenador). Da mesma forma, Campos (2005) assinala que o ideal de uma clínica ampliada seria articular o melhor da clínica a uma preocupação com a subjetividade (com o eu) e uma preocupação com o contexto social do usuário. O autor chama a atenção para a necessidade de uma escuta acurada do sujeito envolvido na relação terapêutica e para as variações clínicas
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6 Os autores fazem a opção por não discutir aqui as possíveis diferenças entre as terminologias.
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decorrentes dos planos da subjetividade e do contexto social. Para Campos, uma clínica do sujeito implicaria, portanto, articular a clínica a um agir comunicativo (Campos, 2005). Tanto Teixeira quanto Campos ressaltam uma dimensão comunicativa ou conversacional da atenção e se referem à necessidade de equipes multiprofissionais, dada a impossibilidade de um único profissional deter todo conhecimento necessário ao diagnóstico e à terapêutica de situações particulares. Esses autores reforçam, portanto, uma concepção organizacional como rede conversacional, ligada à perspectiva da integralidade. O que propomos, aqui, é uma ampliação desta concepção para fora dos muros dos serviços. O mapeamento dessas redes sociais extramuros e a ausculta aos discursos sociais para além da relação oferta-demanda junto aos serviços significa, em última análise, levar em consideração uma discursividade ampliada capaz de redefinir uma agenda pública e demandas sociais informadas por um conceito ampliado de saúde, com a perspectiva da promoção da saúde e da intersetorialidade das ações. Este trabalho com grupos e redes de pertença no espaço do território (em muitos casos já desenvolvido por profissionais, agentes de saúde, organizações políticas e sociais) instiga, ainda, uma reflexão sobre possíveis empregos de novas tecnologias de comunicação que possam dar visibilidade pública a essa rede ampliada de conversações. Uma rede pública de desenho (“design”) inclusivo e participativo, capaz de agregar aos processos de explicação situacional recursos que permitam o empoderamento e posicionamento público de atores sociais envolvidos com o problema explicado. Cabe ressaltar que os problemas de saúde, tomados como uma realidade insatisfatória e identificados como relevantes por um determinado indivíduo ou grupo, quando analisados em sua totalidade, com base em abordagens situacionais e comunicativas, não devem ser entendidos como “objetos dados que se oferecem passivamente a observação”, mas como conseqüência de uma “negociação complexa entre vários atores, cujos resultados são contingentes e instáveis ao longo do tempo” (Camargo Jr., 2005). Tomando a crítica ao Planejamento Estratégico Situacional - PES - na sua abordagem comunicativa (Rivera, 1995), é o “momento explicativo” desta modalidade de planejamento o ponto de partida mais coerente com o planejamento de qualquer ação com vistas às necessidades sociais e de saúde. Para alguns autores, como Mendes (1996), Rivera (2003), Artmann (2000) e Lefévre & Lefévre (2004), o PES é um enfoque de planejamento particularmente útil para a promoção de formas de coordenação horizontal no interior de grandes e pequenas organizações de qualquer natureza, por trabalhar com problemas explicados de uma forma totalizadora, apontando causas ou nós críticos que dependem de vários setores, unidades e departamentos, mas que enfrentam questões em comum a partir de processos de trabalho, técnicas e operações de natureza transversal à organização (Quadro 1). O caráter totalizador do momento da chamada “explicação situacional” do PES, portanto, fortalece e facilita um enfoque de intervenção marcado pela intersetorialidade; daí sua importância metodológica no que diz respeito à noção de promoção da saúde, concebida como paradigma da vigilância à saúde.
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PITTA, A. M. R.; RIVERA, F. J. U. Quadro 1. Dois enfoques de planejamento para a área social* Planejamento normativo em Comunicação
Planejamento estratégico situacional em Comunicação
Postulado 1. A planificação supõe um “sujeito” que planeja um “objeto”. O sujeito é o Estado e o objeto é a realidade socioeconômica. O sujeito e o objeto planejado são independentes, e o primeiro pode “controlar” o segundo.
Postulado 1. O “sujeito” que planeja está compreendido no “objeto planejado”. Por sua vez, o objeto planejado compreende outros sujeitos que também planejam. É impossível distinguir o sujeito do planejamento e o objeto planejado; ambos se confundem: não são independentes. Um ator que planeja não assegura de antemão sua capacidade de controlar a realidade planejada, porque ela depende da ação do outro.
Postulado 2. O sujeito que planeja deve previamente “diagnosticar” a realidade para conhecê-la. Esse diagnóstico se orienta pela busca da verdade objetiva, que deve ser única e absoluta. Há um só ator que planeja, um só diagnóstico, um só conceito do tempo e uma verdade única e absoluta.
Postulado 2. Na realidade coexistem vários atores com capacidades de planejamento diferenciadas. Em conseqüência, há várias explicações da realidade e todas elas estão condicionadas pela inserção particular de cada ator nesta realidade. Não são possíveis o diagnóstico único e a verdade objetiva. Só é possível uma explicação situacional onde cada sujeito explica a realidade a partir da posição de enunciação que ocupa frente ao objeto planejado.
Postulado 3. Para compreender a realidade e adquirir capacidade de previsão de sua futura evolução, é necessário descobrir suas “leis” de funcionamento. Se a realidade é um objeto social, seu funcionamento é reduzível a “comportamentos sociais”, ou seja, à reação do homem com as coisas expressadas como uma associação estável entre condutas resultantes e variáveis associadas e condicionantes de tais condutas rotineiras.Toda ação é uma ação-comportamento, exceto a ação do sujeito único que planeja.
Postulado 3. Para compreender a realidade e adquirir capacidade de previsão de acontecimentos futuros, não é suficiente nem possível reduzir a ação humana a “comportamentos” previsíveis. O ator que planeja sozinho não se relaciona com as coisas, senão com outros atores que são oponentes ou aliados. Nessa relação, as ações são irredutíveis a comportamentos: são “cálculos interativos” ou “juízos estratégicos”, próprios da interação entre atores sociais. As relações iniciativa-resposta se entrelaçam com as relações causa-efeito. A predição é, de um modo geral, impossível: deve ser substituída pela previsão.
Postulado 4. Se o ator que planeja não compartilha a realidade com outros atores de capacidades equivalentes, então, não existem oponentes e o planejamento pode referir-se somente ao econômico-social, seu critério de eficácia pode ser somente econômico, e seu cálculo se restringe a um cálculo econômico. Em conseqüência, o planejamento pode identificar-se com o cálculo normativo de “desenho” de um “deve ser”, que é discrepante com o “tende a ser”, que revela o diagnóstico. O objeto planejado não “contém” atores sociais capazes de produzir ações estratégicas, mas agentes econômicos sujeitos a comportamentos previsíveis.
Postulado 4. Se o ator que planeja compartilha a realidade com outros atores que também planejam, então, necessariamente, o planejamento deve abraçar o problema a ser vencido e identificar as possíveis resistências dos outros ao próprio plano. Em conseqüência, o planejamento não se pode confundir com o desenho normativo do “deve ser”, mas deve levar em consideração o que “pode ser” e a “vontade de fazer”. Por isto, inevitavelmente, o planejamento deve sistematizar o cálculo político e centralizar sua atenção na conjuntura. O planejamento econômico é somente um âmbito do planejamento sociopolítico: as forças sociais e os atores sociais são o centro do plano em vez dos grandes agentes econômicos.
Postulado 5.Se o planejamento se refere ao desenho de um “deve ser”, então, pode referir-se a uma normativa socioeconômica certa, de onde está eliminada a incerteza e os eventos probabilísticos mal definidos, e de onde o político pode considerar-se como um marco restritivo externo ao plano socioeconômico; não podem existir os “problemas quase-estruturados”.
Postulado 5. Desde o momento em que o planejamento de um ator se realiza em um meio ativamente resistente e em conflito com outros atores, o normativo só é um “momento” do estratégico e do operacional, e, em consciência, todo está permeado por forte incerteza. Muitas vezes, não se podem enumerar todas as possibilidades nem identificar probabilidades. Somos obrigados a tratar com “problemas quase-estruturados”. Os problemas políticos não podem ser considerados como um marco ou como um dado restritivo do econômico; é necessário que estes problemas sejam reconhecidos por meio de variáveis políticas endógenas na sistemática do plano.
Postulado 6. O plano é produto de uma capacidade exclusiva do Estado, se refere a um conjunto de objetivos próprios e, no papel, tem “final fechado”, porque a situação terminal é conhecida, e também os meios para alcançá-las. Dadas as certezas dos efeitos causais, tudo se reduz a cumprir o plano para alcançar os objetivos. A racionalidade técnica deve impor-se para encontrar uma solução ótima aos problemas.
Postulado 6. O plano não é um monopólio do Estado. Qualquer força social luta por objetivos próprios e está em capacidade de fazer um cálculo que precede e preside a ação. Em conseqüência, existem vários planos em competição e o conflito, bem como o final, estão sempre “em aberto”: há mais possibilidades do que as que podemos imaginar. O problema de cumprir um plano não se limita a manipular variáveis econômicas. As soluções ideais ou ótimas devem ceder lugar às soluções satisfatórias que reconhecem a continuidade dos problemas sociais no tempo.
* extraído e simplificado de Sá, 1993.
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Para Mendes (1996), o PES rompe com a fragmentação de um problema concreto, ou com a departamentalização de uma organização, já que enseja, a partir do paradigma da produção social da saúde, uma perspectiva de análise e intervenção intersetorial. Desta maneira, é extremamente coerente com (e potencializa) o princípio organizativo-assistencial da integralidade, um dos eixos da estratégia da regionalização sanitária. Por outro lado, não devemos esquecer a visão que Matus (1993) tem da explicação como uma aposta argumentativa, o que reforça o caráter intersubjetivo e discursivo da explicação situacional. Apoiado na teoria da argumentação (Toulmin apud Matus,1993), propõe ainda um modelo argumentativo de validação do processo de explicação situacional – perspectiva dialógica de sucessivas e diferenciadas abordagens do real. Esta literatura começa a ser difundida no Brasil a partir, em especial, do pensamento de Matus, Testa e Rivera, criando vertentes aqui e ali, mas assentando as bases de novos pontos de partida para a ação estratégica e intervenções no campo das políticas sociais e de saúde em países em desenvolvimento com ampla escassez de recursos para investimentos no campo das políticas sociais. Uma abordagem da noção de problema de saúde
7 Espaços que não se confundem com espaços físicos por serem transfronteiras e desenhados segundo os lugares sociais e discursivos da rede de atores sociais que deles fazem parte. Podendo entrelaçar, portanto, a casa, profissionais no espaço territorial do município, estado, país, e fronteiras transnacionais.
Um problema de saúde é, como já se tem dito de forma recorrente, um problema inaceitável segundo os sentidos atribuídos à saúde por uma dada cultura. Em nosso heterogêneo arsenal cultural, uma doença na família, uma demanda em saúde não atendida pelos governos, uma indústria poluidora em zona residencial, a presença de criadouros de Aedes aegypti domiciliares e peridomiciliares, a disseminação da aids nas populações de baixa renda e entre os idosos, ou a emergência abrupta da doença de Chagas de forma aguda, são exemplos de questões que podem ser interpretadas como problemas relacionados à saúde individual ou coletiva e que guardam especificidades segundo o contexto em que emergem ou as condições sociais, políticas e, assim, simbólicas, que os sustentam ao longo do tempo. Perguntas que não querem calar: diante do sofrimento e das necessidades sociais e em saúde, que éthos deve nortear a escolha dos pontos de partida para o planejamento em comunicação? Que conceito de relevância pública deve orientar estas escolhas? Como lidar com situações concretas que acontecem em espaços-sociais7 também concretos e passam a demandar recortes e aproximações daquilo que é, por sua natureza, denso, instável e mutante? Que metodologias utilizar para uma maior aproximação possível do real em toda a sua densidade e espessura? Se o que conseguimos traçar deste real são enquadres, recortes, aproximações, como nos reportam os estudos no campo da Antropologia e das Ciências Humanas em geral, o processo de planejar – com vistas à superação ou redução de um dado problema de saúde a um problema de menor valor e impacto sobre vida das pessoas –, a nosso ver, não pode prescindir de uma teia explicativa, de natureza eminentemente discursiva, que promova a maior aproximação possível à totalidade complexa onde o problema se inscreve. A escolha de um ponto de partida, como a metodologia nos propõe, nem sempre recai naquilo que é mais evidente - na
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doença em si ou nos modos de evitá-la via comportamentos ou estilos de vida saudáveis, mas na rede de causalidades que se entrelaça ao problema e o faz emergir ou se manter inalterável ao longo do tempo. Portanto, é a busca de “nós” críticos o momento crucial da metodologia. É ela que vai definir o melhor ponto de partida de qualquer ação: aqui, em especial, as ações comunicacionais. “Nós” muitas vezes delicados, sutis, apreensíveis por explicações sucessivas de um mesmo problema no momento “vivo” da “explicação” de seu processo de produção social. “Nós” críticos, muitas vezes, altamente resistentes ao interior desse enredamento mutante, dessas formas de determinação de nossas fragilidades – do indivíduo no coletivo e dos coletivos de indivíduos. É da própria dinâmica dos processos sociais, em sua complexidade, estarem inseridos em contextos específicos que, momento a momento, se transformam discursivamente, apresentando maiores ou menores regularidades, maiores e menores visibilidades sociais, conformando o que chamamos aqui de uma “economia política”8 dos processos de produção discursiva, textual: “do significante” (Pinto, 1994; Pitta, 2004). Com esta postulação, Pinto coloca qualquer diferença de sentido atribuída a dois ou mais discursos sociais, mesmo que pequenas, como determinadas pelas condições de produção de cada discurso em questão, já que o sentido de um “objeto significante”, ou como chamou Verón, “pacote significante” (Verón apud Pinto, 1996), ou ainda “texto” (Eco apud Pinto, 1996), é “diferencial”, e depende do contexto ou da “situação de comunicação” na qual este objeto é produzido: das dimensões pragmática, histórica e sociocultural dessa situação. Cada uma das múltiplas variáveis situacionais passam, assim, a “imprimir marcas” e “deixar traços de natureza léxicogramatical e retórica” que os diferenciam sempre de um outro, abrindo caminhos para a formulação de uma teoria das operações enunciativas que vincula sentidos, discurso e situações - ou condições concretas de produção dos mesmos. O postulado, enfim, ao negar a existência de uma relação linear e unívoca “significante-significado”, liberta o significante de sua prisão, como propõe o autor, já que, ao procurarmos significados, estaremos sempre encontrando novos significantes, processo que constitui o que é chamado de semiose infinita ou intertextualidade (Kristeva, 1975; Verón apud Pinto, 1994). O postulado, finalmente, abre espaço para percebermos a estreita relação existente entre produção do sentido, poder, luta política e luta simbólica, inerentes às relações de dominação, e resistências e negações a ela, que atravessam as práticas sociais. Passado o momento de sua produção social, e aprisionados em suporte fílmico, impresso, digital, ou outro, os discursos sociais, recolhidos em sua efemeridade, transformam-se em “produtos comunicacionais”, que fixam, no tempo, uma determinada proposta de relação entre sujeitos de um processo que já se desfez em vida, já é passado. Passam a conformar, assim, como propõe De Marinis (1982), um outro tempo: um tempo que é representado. Uma pausa no tempo cotidiano. Produtos que, se podem ser analisados por delicados e perspicazes procedimentos de análise do discurso, já não pertencem mais, em termos de temporalidade, à instantaneidade do processo de produção discursiva em seu momento mesmo de produção, de “funcionamento”, de ação.
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8 Utilizado, aqui, numa concepção marxiana da produção social do significante, é necessário ressaltar, conforme Pinto, 1994 e Verón, 1980, que nada acede à condição de significante fora de um processo de comunicação e de troca, e de um conjunto de condições de produção que estabelecem e validam a construção e a existência, no tempo, dos objetos de uma dada cultura. Da mesma forma, destacamos os estudos de Bolaño (2005) sobre a importância e centralidade dos estudos de uma economia política das comunicações na contemporaneidade.
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X
X
Nível dos fatos mais aparentes X
Figura 1. Os três âmbitos da produção social (e discursiva) segundo Matus (1993)
X
X X
X X
Nível das acumulações sociais
X
Momento, para Matus, expressa um marco temporário provisório em que se realiza preferencialmente uma dada fase do planejamento. É o conceito que distingue, de forma radical, a opção metodológica matusiana daquela do planejamento tradicional em etapas. Lida com as várias fases do planejamento como imbricadas. Ora prevalecendo uma, ora outra, ora outra, mas sempre “tudo ao mesmo tempo e agora”, como no jargão popular.
11
X
10 Conceito de origem marxiana que é vital, em termos metodológicos, a qualquer abordagem com base numa economia política das trocas simbólicas ou disputas de sentido.
Nível das regras do jogo X
9 Desconfundir as coisas continua sendo necessário aqui, já que o termo “comunicação social” se cristalizou ao longo das décadas com diferentes sentidos, inclusive, aqueles que a colocam como área técnica de apoio a garantir a legitimidade (às vezes a qualquer custo) de instituições públicas ou privadas aos olhos do que é da ordem do público (daquilo que é do uso de todos).
Voltando à nossa questão inicial dos problemas de saúde, passa a ser compromisso ético-político do profissional de comunicação do campo da saúde coletiva, dar o necessário passo atrás no momento de planejar, com vistas a ações coerentes com a noção de integralidade em saúde. Especialmente quando se tem em conta que a tematização dos problemas de saúde com que lida o profissional de comunicação é orientada quer pelas bases de dados, estatísticas e epidemiologia dos grandes números, quer pelo discurso ritualístico da grande imprensa e suas articulações menos ou mais explicitas com interesses de mercado junto ao senso comum. Se tratarmos os problemas de saúde com base na teoria da produção social proposta por Matus (Figura 1), em especial, a sua crítica com base no agir comunicativo e na sua vertente habermasiana (Rivera, 1995), chegamos a uma aproximação bastante eloqüente da necessidade de redefinição dos pontos de partida para o planejamento e definição de ações comunicacionais. Sob este ponto de vista, a questão comunicacional no campo da saúde passa a não mais se reduzir a planejamento e elaboração de produtos comunicativos, mas a se conformar como um conjunto mais complexo de processos, estratégias, táticas e inventividades, entre as quais os produtos comunicacionais são apenas parte. No campo do planejamento “em comunicação” para a área social e de saúde”,9 estamos diante da necessidade de incorporação dos conceitos e noções de tempo, situação, totalidade10. De olhar para totalidades discursivas que, ao mesmo tempo em que são regidas por certas regularidades, se movimentam e moldam momento a momento, frame a frame, enquadre a enquadre, e condicionadas pela incerteza, o que chamamos de real. Talvez, desta forma, possamos evitar recortes parciais de objetos e problemas que são, na sua essência, altamente complexos, dada a extrema e veloz plasticidade dos processos sociais e dos sentidos dados a vida, a doença e a morte: em que, ao conceito de momento11 (Matus, 1984) pode-se agregar a noção de totalidade discursiva inerente a uma viva e dinâmica economia política do significante (Pinto, 1996). Para Matus, a realidade social é “produzida” permanentemente pela ação dos sujeitos, dos atores sociais que participam permanentemente de situações e problemas concretos, o que, para a semiologia dos discursos sociais, significa dizer que o discurso social é, em si, o motor da produção da própria realidade e dos objetos de uma dada cultura, ou o próprio objetorelação do planejamento situacional em saúde (Sá, 1993).
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Essa “produção” social e discursiva é descrita por Matus, para fins metodológicos, em três âmbitos. Um primeiro, dos fatos mais aparentes: daquilo que é produzido como discurso por um determinado grupo social, seja na forma de relações interpessoais e no plano tácito, seja em fatos inusitados que ganham o estatuto de “rumor” na vida cotidiana, ou ainda em fatos que, na medida da seletividade com que opera a imprensa e seus dispositivos de enunciação, se transformam em acontecimentos diariamente hierarquizados nos diferentes produtos comunicacionais (em textos acadêmicos, discursos políticos e muitos outros “textos”). Este âmbito, dos processos de produção social, configura o nível mais aparente da vida social (a aparência que assume em público). Podemos observar o movimento dessa produção de forma direta em nossa própria casa, no trabalho, em uma pequena organização ou em espaços mais amplos. Às vezes, não são percebidos dadas as suas sutilezas ou, por vezes, são ruidosos, pela articulação com meios de comunicação que essas produções sociais mobilizam. Neste primeiro âmbito da aparência, proposto por Matus, como em toda a vida em sociedade, estão a ocorrer diuturnamente disputas de sentidos e, assim, de poder – poder de dizer, citar, falar, defender, acusar, mostrar... produzir sentidos. Poderes que, mobilizados pelo discurso em seu mais amplo sentido, dão origem a processos de produção de consensos e dissensos, de acumulação/desacumulação de novos poderes. Assim se conformam, nesses enredamentos discursivos, “nós de rede” que não representam necessariamente unanimidades, e que se refazem incessantemente ao longo do tempo. Pontos de adensamento de grande plasticidade, em função dos processos de cooperação, negociação ou conflito que aí ocorrem. Por haver sempre dissensos, adotamos aqui a noção de consensos normativos mínimos (Moisés, 1992) que, ao se romperem, desestabilizam “densidades”, consensos criam pontos de ruptura. Enfim, atores, encenações, processos de construção e reconstrução de consensos, dissensos, poder e sentidos em disputa permanente. A nosso ver, é a permanência de consensos mínimos, ao longo do tempo, que confere estabilidade a esses adensamentos discursivos, a ponto de se constituírem grupos, instituições, que podem adquirir desde uma estabilidade relativa ao longo de séculos, a uma instabilidade tal que não os permita sobreviver a décadas, anos, meses ou mesmo dias. Este segundo âmbito proposto por Matus, o das acumulações, não tem sua dinâmica discursiva interna tão aparente. Para sermos mais precisos, as acumulações, aqui, corresponderiam a esses consensos mínimos que adquirem estabilidade ao longo do tempo e se traduzem em recursos simbólicos ou culturais de poder, em saberes legitimados ou atos de fala coagulados como saberes consensuais (pontos de adensamento), utilizados por atores sociais e políticos, com capacidade de influenciar os outros recursos de poder, políticos, econômicos e organizativos (e de ser influenciados pelos mesmos). Para garantir sua estabilidade e dar visibilidade aos seus consensos mínimos ao longo do tempo, grupos e instituições (atores) precisam reiterá-los permanentemente - contexto a contexto, situação a situação, utilizando ou não meios de comunicação massivos, mas dando visibilidade de forma ritualística a seus discursos no tempo. Situação, aqui, tomada como um construto complexo, dinâmico, permanentemente fugidio, resultado de imbricações,
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transmutações, entrelaçamentos de campos... conformando pontos, “nós”, absolutamente singulares de uma complexa rede de interdeterminações que configuram processos de fragilização - individuais ou coletivos – processos saúde-doença (Pitta & Oliveira, 1995). Situações de saúde que são, em si mesmas, situações de comunicação: um entrelaçar de condições de produção discursiva em que os objetos significantes são produzidos e circulam, deixando restos, traços, vestígios em sua efemeridade ou em sua imobilização em suportes materiais. No entanto, esse âmbito em que o conflito parece estar regulado por um mínimo de acordos (formais ou não) e que acaba condicionando o âmbito das “aparências”, às vezes, determina ou condiciona a existência, a nãoexistência ou, mesmo, o silêncio de um sujeito, processo ou objeto – tem consigo o poder de uma espécie de “validação” de determinados padrões de normalidade culturalmente aceitos. É aqui que o que é considerado “deriva” de sentidos ou, ainda, “desrazão” acabam sendo reduzidos a “ruídos”, “murmúrios” longínquos para a planificação normativa (Certeau, 1995), expressão de processos de exclusão discursiva e, assim, exclusão social. Neste âmbito, discursos e consensos mínimos que assumem maior regularidade e estabilidade, bem como maior visibilidade nos jogos discursivos, passam a competir agora em uma arena em disputa de suas “verdades” - já que mais estáveis ao longo do tempo, e consagradas socialmente como mais legítimas. Num terceiro âmbito, a produção social analisada por Matus assume o poder de regra, norma socialmente aceita ou lei a ser acatada, que expressa o arsenal normativo dos poderes das nações e determinam e/ou condicionam os outros dois níveis e, neste, não vamos nos deter. Se concordamos, ao menos parcialmente, com este tosco desenho de âmbitos dos processos de produção social propostos pelas metodologias do PES, bem como com a idéia da existência de uma economia política do significante à qual pertencem os problemas de saúde-doença, podemos seguir em frente. Um possível ponto de partida para um planejamento em comunicação com vistas à integralidade da atenção
12 Conjunto de constrangimentos situacionais inerentes aos processos de produção do discurso social.
13 Conceito cunhado por Moisés (1992).
Partimos do pressuposto de que os discursos sociais estão em viva relação uns com os outros, conformando uma malha discursiva, intertextual, plural. Entendemos também que são produzidos em contextos sociais específicos que condicionam e “constrangem” esse processo de produção12. E, ainda, que os contextos são o palco de um diálogo entre as múltiplas vozes que os instituem e que se expressam na materialidade de encenações, geração de consensos ou dissensos que se alteram ao longo do tempo, que podem ou não adquirir maior ou menor visibilidade no espaço público, na medida em que sobrevivem aprisionados ou impressos em produtos comunicacionais ou culturais de menor ou maior circulação e acesso público. A compreensão e o reconhecimento dessa rede complexa de mediações discursivas são o ponto de partida conceitual e, conseqüentemente, metodológico do planejamento em comunicação coerente com os propósitos de uma atenção integral à saúde. Um dinâmico fazer e refazer de pontos de adensamento: de construção de consensos normativos mínimos13 que se
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entrelaçam na prática política e social cotidiana. Rede que assume, contexto a contexto, situação a situação, sistema a sistema de governo ou projeto de gestão, diferenciais de conflitualidade - portanto, de inclusividade (Pitta, 2001). Explicar problemas de saúde como ponto de partida do planejamento em comunicação significa não apenas romper com um modelo de planejamento em comunicação que tem como ponto de partida a lógica de produção de informações das bases de dados oficiais, e nas quais domina o olhar técnico14. Significa, para os sujeitos enredados em um dado problema de saúde concreto, a possibilidade de delimitar as fronteiras do problema a ser enfrentado, suas causas, conseqüências e o âmbito de seus espaços de ação, experimentando, segundo seus pontos de vista e na condição de sujeitos, as suas próprias possibilidades e habilidades de ação política, de traçar cenários futuros que passam a mobilizar a partir do mundo do desejo, pleno de ações tácitas e estratégias – movendo-se como agentes de transformação de sua própria realidade insatisfatória. Se esta proposta metodológica “estratégica-situacional”, para uma comunicação pública e com base em necessidades sociais e de saúde concretas não garante o apagamento da distância entre a experiência vivida e as soluções tomadas como consensos, cria, no mínimo, novas possibilidades de buscar, dado o envolvimento dos sujeitos com o problema, estratégias de comunicação com base nos determinantes biopsicossociais do problema a ser enfrentado. A distância ou o afastamento do que é proposto em um primeiro momento só pode ser superado pela construção de novos consensos, e assim sucessivamente: momento a momento do planejamento situacional – uma proposta essencialmente política e, assim, de planejamento e avaliação incessante ao longo do tempo tempo, categoria cara para a metodologia em questão. A título de exemplo, recuperamos, aqui, um problema de saúde em uma de suas possíveis teias ou enredamento (Quadro 2). A face visível dentro das possibilidades da metodologia, de seus pontos ou “nós” críticos, a serem desfeitos com vistas à redução do problema a um problema de menor valor para o grupo social em questão e a partir dos quais corresponderiam, segundo o ponto de vista aqui discutido, as ações comunicacionais, envolvendo ou não aparatos técnicos ou mídias, como o rádio, tvs, internet e outras tantas em acelerada convergência.
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14 Que tem como ponto de partida os sistemas locais de informações em saúde com base na relação oferta-demanda por serviços.
SOBRE PONTOS DE PARTIDA: A PLANIFICAÇÃO...
Quadro 2. Planejamento em comunicação - sobre pontos de partida
Incapacidade física Rejeição Dependência do Estado Alto custo reabilitação
X 20. Falta de sensibilização e deficiência na capacitação dos atores envolvidos
X
21. Desorganização das ações no Posto de Saúde
19. Prostituição localizada principalmente em Pedrinhas
X
X
X
D1
D7. Ocorrência de casos de DST no Posto de Saúde Santo Antônio
X
D6. Registros de casos de cólera confirmados laboratorialmente
X
X
D5. Ocorrência de óbitos por doenças infecciosas no bairro, em 1993
Desnutrição Baixo rendimento escolar e no trabalho
Impacto negativo na economia perda de controle da epidemia grande dispêndio de recursos
X
X
X
D4. A maioria dos informantes referiu as verminoses como as doenças mais freqüentes no bairro
Esterilidade Ca de colo Anomalias congênitas Estigma/Aborto
X
Desnutrição Baixo rendimento escolar e no trabalho
D3. A maioria dos casos de hanseníase notificados no serviço de referência provém do Santo Antônio
X
X
D2. Ocorrência de casos de tuberculose no bairro Santo Antônio
18. Presença de insetos e roedores
14. Existência de casas de diversão sem acompanhamento pela Saúde
X
17. Esgoto a céu aberto
X X
X
X D1. A maioria dos informantes referiu as IRAs como um das doenças mais freqüentes no bairro
X
X
X
Precárias condições de higiene
16. Acúmulo de lixo
13. Deficiência nas ações de Vigilância Sanitária
X
X
X
15. Poluição ambiental no Cocobó
12. 9% das famílias do bairro não têm água encanada
10. Falta de rede de esgoto no bairro. 11. 18% das famílias não têm instalações sanitárias nas MAR
X
9. Deficiência na coleta de lixo nas MAR
X
X
X
8. Precárias condições de habitação nas micro áreas de risco [MAR]
4. Não implementação da Política Nacional de Saúde vigente
X
7. Baixo nível de escolaridade no bairro
X
6. 90% das famílias S. Antônio e 80% das 7 de Setembro recebem até um salário mínimo
3. Processo histórico de desassistência à população de baixa renda pelos órgãos competentes
X
X
X
X X
5. Presença de beneficiadora de arroz emitindo partículas poluentes
X
2. Péssima distribuição de renda
1. Descumprimento por parte da empresa da legislação sanitária relativa ao meio ambiente
Absenteísmo escolar e no trabalho / Óbitos evitáveis
Acurcio & Santos, 1994.
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A título de novas frentes de trabalho e debate no campo das metodologias de planejamento em comunicação Não há como definir, na letra cristalizada de nossos papéis, que estratégias poderiam ser definidas frente ao problema explicado no exemplo - problema explicado “em vida” -, fica apenas aqui a provocação da riqueza de pontos de partida frente a uma rede de causalidades que enreda o problema de saúde - na maioria das vezes, tomados apenas em sua aparência, e a partir de seus descritores (D1, D2, D3,...), como únicos pontos de partida dos processos de trabalho de produção em suportes técnicos e que toma a comunicação como “elaboração, distribuição e avaliação de produtos em linguagens adequadas”, como nos propõem as abordagens teórico-metodológicas de Schanonn e Schramm15. O próprio PES e sua crítica com base no agir comunicativo definem algumas “tipologias” de estratégias a serem adotadas, apontando outros modos de abordar um problema, que, no que diz respeito a planejar e definir ações comunicacionais, devem ser consideradas (Rivera, 1995). Ao mesmo tempo, os chamados “produtos comunicativos” devem ter sua eficácia avaliada, ao longo de sua existência, como ação discursiva, e na perspectiva de “resultados” - nem sempre os esperados e nem sempre verificáveis por metodologias quali-quantitativas tradicionais de avaliação em comunicação16, já que passam a fazer parte dessa discursividade ampliada ou intertextualidades, e da permanente fluidez dos processos sociais complexos. Compreendidos os discursos sociais como intertextos, ações que nomeiam e transformam a realidade (mesmo podendo estar imobilizados em papel, filme, vídeo, fotografia) e que estão em ação permanente no fervilhar de nosso dia-adia, as teias discursivas que “explicam” e respondem a um problema de saúde concreto estarão em movimento contínuo, num amplo espectro de ações entre sujeitos em situação. Ressaltamos que, no caso da saúde, o processo de definição de ações comunicacionais depende necessariamente da melhor compreensão possível de situações que são específicas e complexas e representam o domínio do sofrimento e das fragilidades humanas e de um mundo de práticas sociais ritualizadas, repleto de fugas, derivas, desvios - a reivindicar, talvez, metodologias de pesquisa de recorte longitudinal. Processos que não se dão de forma linear e pontual nos âmbitos dos fatos aparentes, das acumulações e das regras do jogo, como na proposta matusiana, mas num permanente (re)posicionamento discursivo dos sujeitos ao longo do tempo, e numa permanente transformação daquilo que é percebido, ou “explicado”. Desta forma, cabe-nos o exercício do aprendizado constante; de lidar com o embate cotidiano entre posições discursivas, e equipar o olhar para esta discursividade ampliada extremanente fluida e móvel – apreensível apenas em suas cristalizações, na forma de situações concretas. Situações em que o cálculo racional entra e é refeito - ou “se perde” para uns. Situações, portanto, carregadas de um inapreensível que nos convoca permanentemente a olhar das mais variadas formas e nos mais variados tempos, um mundo de delicadezas: de “pistas”, “traços”, “rastros”, “murmúrios”, que se interpõem entre o eu e o outro dos processos de planificação, como nos lembra Certeau (1995). Afinal, o grande desafio da gestão comunicativa seria este fazer cotidiano permanente. O mesmo que move o instrumentista atento ao interior da orquestra – um
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Estes modelos teóricos estão tratados de forma extensiva em Pitta, 2001.
15
Sobre o tema, ver Jensen & Jankowski, 1993.
16
SOBRE PONTOS DE PARTIDA: A PLANIFICAÇÃO...
entre múltiplos instrumentos, um entre múltiplas vozes. Muitos num esforço interminável de conferir harmonia àquilo que pertence, de forma irremediável, à dimensão de uma “não-ordem”. Agradecimentos À Renata C. Ruiz, pelo apoio e sugestões ao texto, e à Ronari de Faria e ao Ruben Fernandes, pelo apoio em informática. Agradecimento especial de Áurea da Rocha Pitta aos pareceristas deste artigo, que possibilitaram, à primeira autora, um rico e dinâmico diálogo anônimo, cujo fruto é esta primeira parceria com o professor Rivera. Referências ACURCIO, F. A.; SANTOS, M. A. A aplicação de um método de planejamento local: relato de uma experiência em Iguatu. In: OPS/OMS. Planejamento e programação local da vigilância da saúde no distrito sanitário. Brasília, 1994. Série Desenvolvimento de Serviços de Saúde, 13. ARTMANN, E. Planejamento estratégico-situacional no nível local. Rio de Janeiro: COEP/UFRJ, 2000. (Cadernos da Oficina Social 3). AZEVEDO, F. A. Agendamento da política. In: RUBIM, A. A. C. (Org.). Comunicação e política – conceitos e abordagens. Salvador: Edufba, 2004. BOLAÑO, C. La centralidad de la economia política de la comunicación (EPC) en la construcción del campo acadêmico de la comunicación: una contribuición crítica. In: ENCONTRO LATINO DE ECONOMIA POLÍTICA DA INFORMAÇÃO, COMUNICAÇÃO E CULTURA, 5., 2005, Salvador. Anais... Salvador, 2005. CAMARGO JR, K. R. Das necessidades de saúde à demanda socialmente constituída. In: PINHEIRO, R.; MATTOS, R. A. Construção social da demanda. Rio de Janeiro: IMS/UERJ-CEPESC-ABRASCO, 2005. p.91-101. CAMPOS, G. W. S. Um método para análise e co-gestão de coletivos. 2.ed. São Paulo: Hucitec, 2005. CAMPOS, G. W. S. Saúde, Paidéia. São Paulo: Hucitec, 2003. CECÍLIO, L. C. O. As necessidades de saúde como conceito estruturante na luta pela integralidade em saúde. In: PINHEIRO, R.; MATTOS, R. A. Os sentidos da integralidade na atenção e no cuidado à saúde. Rio de Janeiro: IMS/UERJ, CEPESC, ABRASCO, 2006. p.113-26. CERTEAU, M. A cultura no plural. Campinas: Papirus, 1995. CERTEAU, M. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1994. DE MARINIS, M. Semiotica del teatro - l’analisi testuale dello spettacolo. Milão: Bompiani, 1982. FLORES, F. Inventando la empresa del siglo XXI. Santiago: Hataché, 1989. JENSEN, K. B.; JANKOWSKI, N. W. (Orgs.). Metodologias cualitativas de investigación en comunicación de massas. Barcelona: Bosh Casa Editorial, 1993. LACERDA, A.; VALLA, V. V. As práticas terapêuticas de cuidado integral à saúde como proposta para aliviar o sofrimento. In: PINHEIRO, R; MATTOS, R. A. (Orgs.). Cuidado: as fronteiras da integralidade. Rio de Janeiro: IMS/ UERJ, CEPESC, ABRASCO, 2005. p.91-102. LEFEVRE, F.; LEFEVRE, A. M. C. Promoção de saúde: a negação da negação. Rio de Janeiro: Vieira & Lent, 2004. LUZ, M. T. Políticas de descentralização e cidadania: novas práticas de Saúde no Brasil atual. In: PINHEIRO, R.; MATTOS, R. A. Os sentidos da integralidade na atenção e no cuidado à Saúde. Rio de Janeiro: IMS/UERJ, CEPESC, ABRASCO, 2006. p.39-64. MATUS, C. Política, planejamento e governo. Brasília: Editora Ipea, 1993. MATUS, C. Politica y plan. 2.ed. Caracas: Iveplan, 1984.
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PITTA, A. M. R.; RIVERA, F. J. U. Sobre puntos de partida: la planificación en comunicación y la integralidad de la atención a la salud. Interface - Comunic., Saúde, Educ. Educ., v.10, n.20, p.395-410, jul/dez 2006. El texto propone, como punto de partida de la planificación de la comunicación, el momento explicativo de la Planificación Estratégica-Situacional – PES, ampliamente difundido en el campo de la salud colectiva. En este contexto, el texto establece relaciones entre conceptos de la planificación estratégica situacional e una economía política del significante, basado en diferentes momentos de la producción y del sondeo de los autores a dinámicas institucionales y relaciones servicios de salud-población en ámbito local. PALABRAS CLAVE: comunicación en salud. servicios de salud. atención a la salud.
Recebido em 27/09/05. Aprovado em 07/07/06.
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A lider ança como intersubjetividade lingüística liderança
Francisco Javier Uribe Rivera 1 Elizabeth Artmann2
RIVERA, F. J. U.; ARTMANN, E. Leadership as a function of linguistics intersubjectivity. Interface - Comunic., Educ., v.10, n.20, p.411-26, jul/dez 2006. Saúde, Educ.
This paper sums up some concepts regarding leadership and seeks to highlight the growing importance of the vision of a leader in assisting in organizational learning, based on team-work, and in coordinating linguistic communication processes oriented towards understanding the organization’s mission, structure, and dynamics. Upholding that, in addition to their ability to implement strategic management, leaders must also develop communication skills and support change, in order to manage more effectively intersubjective relationships among organizational subjects, to make the organization more competent. KEY WORDS: leadership. personnel management. organizations.
Este artigo traz uma síntese de várias concepções de liderança e seu objetivo é destacar a importância crescente da visão do líder como instância da aprendizagem organizacional, de base coletiva, e coordenador de processos de comunicação lingüística cujo telos é o consenso sobre a imagem, a estrutura e a dinâmica de funcionamento das organizações. Sustentamos que, além de capacidades de análise estratégica, o líder deve desenvolver competências comunicativas e apoiar a mudança para gerir com mais eficácia as relações intersubjetivas dos atores organizacionais, tornando a organização competente. PALAVRAS-CHAVE: liderança. administração de recursos humanos. organizações.
1 Pesquisador, Departamento de Administração e Planejamento de Saúde, Escola Nacional de Saúde Pública, Fiocruz (DAPS/ENPS/ FIOCRUZ). <uribe@ensp.fiocruz.br> 2
Pesquisadora, DAPS/ENSP/FIOCRUZ. <artmann@ensp.fiocruz.br>
1 Rua Almirante Alexandrino, 3780, apto. 201, Bloco E1 Santa Tereza - Rio de Janeiro, RJ Brasil - 20.241-266
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RIVERA, F. J. U.; ARTMANN, E.
Apresentação Neste trabalho, fazemos uma síntese de quatro concepções de liderança: a da liderança transformadora, de Warren Bennis (1985, 1999), da Universidade da Califórnia do Sul, e consultor especializado no tema; o enfoque de liderança da Escola da Organização que Aprende (Learning Organization), representada por Peter Senge (1997, 2000), professor da Escola de Administração do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT); a concepção de liderança estratégica de Paulo Roberto Motta (1991), da Fundação Getúlio Vargas/RJ; e a noção de liderança como fenômeno lingüístico, que podemos atribuir, em grande medida, ao professor Fernando Flores, acadêmico e consultor em Gestão, especialista em Filosofia da Linguagem. Esta análise comparativa visa distinguir os pontos comuns, que corresponderiam a um questionamento da liderança carismática, vertical e tradicional, e a uma afirmação de um tipo de liderança comunicativa, caracterizada pelo desenvolvimento de algumas competências aqui apresentadas. Por fim, defendemos a noção de liderança coletiva ou comunicativa como a mais adequada ao gerenciamento do setor saúde, considerando suas características específicas. A liderança na perspectiva de Bennis Na distinção polar que Bennis (1985 apud Crozier & Sérieyx, 1994) estabelece entre liderança e gestão, a primeira sabe o que é necessário fazer e o que é certo, enquanto o gestor sabe como fazer as coisas de forma certa (quadro 1) .
Quadro 1. Distinção entre gestão e liderança. Gestão (fazer bem as coisas) Preocupação maior com: · Administração · Manutenção · Sistema /Estrutura · Curto prazo · Como? · Sistemas, recursos, tecnologias · Obediência · Controle
Liderança (saber o que fazer) Preocupação maior com: · Inovação · Desenvolvimento · Gente/Confiança · Longo prazo · O Quê? Por quê? · Visão · Comprometimento · Poder
Fonte: Crozier & Sérieyx apud Rivera, 2003.
Para justificar esta polarização um tanto rígida, o autor sustenta que as organizações sofreriam de uma saturação de gestão “procedimental” e de uma ausência flagrante de liderança. Em função desta falta, as organizações teriam concentrado suas energias nos instrumentos de gestão, criando muitas vezes monstros burocráticos. Seria necessário contrabalançar a gestão burocrática com liderança, entendida como uma abordagem da condução preocupada com a inovação e a mudança (desenvolvimento), as pessoas, a visão futura de
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A LIDERANÇA COMO INTERSUBJETIVIDADE LINGÜÍSTICA...
organização, o comprometimento e o poder. A liderança é vista como o uso justo do poder, como energia fundamental para lançar e sustentar uma ação ou para traduzir intenção em realidade. Posteriormente, o autor procura compensar essa polarização afirmando que uma das habilidades primordiais da liderança seria conjugar capacidade visionária com capacidade gerencial, realçando a capacidade de apresentar e de obter resultados (Bennis, 2001). O modelo gerencial defendido pelo autor como o mais adequado para as preocupações de uma liderança transformadora seria a gestão por objetivos, por meio de projetos integradores e dinâmicos, desenvolvidos por equipes interdisciplinares com grande autonomia. Dentro desta perspectiva de reforço das equipes ou dos grupos, o discurso do autor se aproxima da concepção de uma liderança mais disseminada ou coletiva. De fato, para Bennis & Nanus (1988), a liderança não se relaciona com a posição hierárquica ou com a função exercida; nas organizações modernas, cada trabalhador deveria ser o líder de alguém, sobretudo dele mesmo Essa compreensão coincide com o questionamento teórico feito por eles a cinco grandes mitos: a) a liderança é um dom raro; b) os líderes são inatos, não feitos; c) são carismáticos; d) só existe liderança no escalão mais alto da organização; e) o líder controla, dirige, estimula, manipula. Na esteira dessa crítica, a liderança é percebida como resultado de processos de aprendizagem, no qual é importante o envolvimento na criação de um clima amplo de interação de idéias, de um modelo organizacional e de uma arquitetura social que permitam gerar capital intelectual e ajudem a liberar o poder de cada pessoa/equipe de trabalho (Bennis, 2001). Ao analisar as habilidades ou requisitos da liderança transformadora, o autor prioriza a formulação da imagem de futuro da organização e a comunicação sobre a mesma. Segundo Crozier & Sérieyx (1994), Bennis sustenta que essa imagem/visão teria a capacidade de incentivar uma mobilização dos sujeitos organizacionais, na medida em que fizesse com que estes descubram novos horizontes, ou na medida em que a visão ilumine novas possibilidades de ação. A visão/imagem organizacional corresponderia a um sonho/desejo que deve ser partilhado, comunicado, objetivando a adesão do corpo organizacional. A habilidade de justificar comunicativamente a visão seria, portanto, um dos requisitos básicos da liderança. A construção da visão organizacional supõe colocar-se um passo à frente para se ter uma perspectiva sobre o que está acontecendo, especialmente quando os cenários da empresa se tornam cada vez mais complexos (Bennis; 2001), e se subentende a paixão para atingi-la. Para que a mobilização em torno de uma imagem organizacional possa ser efetiva, o líder deve, igualmente, inspirar confiança, a qual estaria relacionada não só à noção de ‘ser exemplo’, mas também à postura de constância e coerência. A melhor maneira de demonstrar a coerência, além do seu próprio comportamento, seria passar de intenções a atos concretos modificando, por exemplo, de forma positiva, os processos de gestão e a estrutura organizacional (Bennis, 1985, apud Crozier & Sérieyx, 1994). Contudo, a concepção de liderança de Bennis é uma construção contraditória, pois, embora, em alguns momentos se insira discursivamente na
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RIVERA, F. J. U.; ARTMANN, E.
proposta de uma liderança disseminada, como potencial de aprendizagem coletiva, predomina, ainda, nesse autor, a concepção de liderança visionária, que se apóia na prerrogativa exclusiva de sintetizar a visão por meio de processos não aprofundados teoricamente. Todo o discurso do autor explora uma semântica recorrente sobre líderes fortes e vigorosos. Por exemplo, a afirmação taxativa de que todo grande grupo tem um líder vigoroso (Bennis & Biederman, 1999); a afirmação de que, se temos líderes fortes desde o início, eles criarão atitudes e um ambiente no qual a liderança poderá se desenvolver (Bennis, 2001); ou a afirmação de cunho estratégico de que a criatividade de um grande grupo supõe a presença ou a invenção do inimigo externo (Bennis, 1999). Esta interpretação um tanto personalista da liderança, que atribui ao líder possibilidades exageradas de conduzir o conjunto organizacional para a mudança, em detrimento de uma construção coletiva, não considera condições resultantes de restrições sistêmicas e de complexas interações entre os sujeitos organizacionais, as quais ficam subsumidas à sua interpretação e direção. Em termos críticos, podemos sustentar que, embora encontremos aspectos comunicativos presentes no modelo de Bennis, estes ficam subsumidos pela busca da adesão do coletivo a uma visão predeterminada pelo líder, o que traz um caráter um tanto indutor e estratégico à formulação da visão. A liderança como potencial de aprendizagem coletiva Senge (apud Starkey, 1997) caracteriza os requisitos ou novas habilidades que a liderança da organização que aprende deveria incorporar. Para ele, o líder deve ser um idealizador, professor e regente. No exercício do primeiro papel, a liderança se envolve como idealizador dos propósitos da organização e, de sua tradução prática, das políticas e estratégias, construídas coletivamente. Se a responsabilidade primeira da liderança é com esse planejamento, isto não quer dizer que o ato seja solitário. O termo construção coletiva sugere conceber o processo de planejamento das políticas e estratégias como um processo de aprendizagem organizacional ampla. Citando Mintzberg (1985), o autor assume que o planejamento não pode ser visto como um esquema racional elaborado no plano abstrato e implementado em toda a extensão da organização, mas como um fenômeno emergente. Organizações de sucesso “fabricam sua estratégia”, uma vez que estão continuamente aprendendo com as constantes mudanças nas condições dos negócios, ponderando o desejável e o factível. O segredo não está em obter a estratégia certa, mas sim em promover o pensamento estratégico. A escolha do projeto específico é apenas parte da necessidade do criador da política. O mais importante é a necessidade de conseguir enxergar a complexidade e formular conceitos e visões de mundo para lidar com essa complexidade. A promoção de um ambiente de aprendizagem por meio da difusão do pensamento estratégico seria uma das funções essenciais da liderança. O líder-professor corresponde à visão do mentor, do guia, do facilitador. Seus objetivos fundamentais seriam trazer à tona e ajudar a reestruturar os modelos mentais e as visões da realidade das pessoas, promovendo o pensamento sistêmico, no sentido de buscar as causas estruturais ou profundas dos fenômenos e suas relações.
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A LIDERANÇA COMO INTERSUBJETIVIDADE LINGÜÍSTICA...
O líder-regente é uma instância que se compenetra dos ideais de alta responsabilidade que caracterizam uma organização que aprende e que se coloca a serviço dos interesses superiores da organização. O conceito de uma liderança que presta serviços (servant leadership) é o oposto da liderança egocêntrica. Entre as habilidades que a liderança deve desenvolver, Senge destaca: · A construção de visões compartilhadas, implicando em alguns requisitos: a) o líder deve saber comunicar sua visão e pedir apoio, no sentido de conferir se ela merece o comprometimento dos outros e de questionar seu ponto de vista, assumindo uma construção interativa; b) as visões pessoais devem ser estimuladas, e não anuladas; c) a construção da visão é um processo contínuo, que não se deixa apreender pela figura da “declaração da missão” em reuniões especiais, mas que corresponde à difusão do pensamento estratégico capaz de apoiar o questionamento quotidiano do que realmente queremos conseguir em cada circunstância prática; d) a liderança deve poder combinar visões extrínsecas (do tipo vencer um concorrente) com visões intrínsecas (criar um novo produto, um novo padrão de satisfação de necessidades); e) a liderança deve saber distinguir visões positivas (alicerçadas em aspirações) e negativas (baseadas no medo), fortalecendo as primeiras. · Trazer à tona e testar modelos mentais, considerando os requisitos: a) a possibilidade de perceber saltos de abstração, questionando generalizações; b) equilibrar indagação e argumentação, assumindo que situações complexas exigem um aprendizado cooperativo; c) distinguir a teoria assumida (o que alguém diz que faz) da teoria em uso, entendendo (com base em Argyris, 1992) que uma distância entre o declarado e o implícito é crítica para o aprendizado; d) reconhecer e dissipar rotinas defensivas. · Desenvolver o pensamento sistêmico, que corresponde a: a) enxergar inter-relações, não coisas, processos, não fotos instantâneas; b) ir além das acusações, assumindo que a fonte das falhas não está nas pessoas, mas nos sistemas; c) concentrar-se na complexidade dinâmica (saber relacionar causas e efeitos distantes no tempo e espaço e distinguir conseqüências remotas), e não na complexidade de detalhes; d) concentrar-se, em termos da ação, em áreas de alta alavancagem; e) evitar soluções sintomáticas. · Criar uma rede de proteção para a reflexão individual e coletiva, capaz de sustentar a possibilidade da inovação e da mudança. Aqui, a capacidade de garantir um tempo livre para a reflexão dos sujeitos organizacionais é fundamental. Em “A dança das mudanças”, Senge (2000) desenvolve a versão mais atualizada de sua noção de liderança. Valendo-se da metáfora do jardim, o autor se contrapõe à imagem do lider-herói. O líder “jardineiro” não é o que, prostrado sobre as plantas, brada: “Cresçam plantas, cresçam com afinco”. Essa liderança, ao contrário, reconhece que o crescimento depende de seu potencial e decide acompanhar seu ciclo natural, preocupando-se com as condições que reforçam e que limitam seu crescimento como água, solo, nutrientes, sol, outras árvores. Subjacente a esta imagem, está a idéia de que as organizações devem ser vistas como sistemas biológicos, e não como máquinas, cuja peça defeituosa deve ser trocada. No caso do jardim, uma planta não morre para ser substituída por outra, simplesmente. O que acontece é que uma nova vai crescendo e acaba por tomar o lugar da velha. O mesmo ocorre com o
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comportamento. Se um comportamento novo é mais eficaz do que o antigo, então, o novo acaba conquistando espaço. Desta maneira, o líder-jardineiro seria aquele que tenta atuar sobre as condições limitadoras e promotoras do desenvolvimento potencial das pessoas organizacionais, especialmente sobre as condições básicas para uma aprendizagem coletiva solidária. Embora a metáfora do jardim possa ser simplista, ao pensarmos sobre organizações complexas como as da área da saúde, o que destacamos da proposta de Senge são as condições de aprendizado como fatores propulsores ou realizadores do potencial de crescimento das pessoas, potencial esse que poderia ser tolhido em contextos impositivos e objetivantes. A liderança, para Senge, não seria um fator individual. Sua visão de liderança corresponde a uma capacidade coletiva para moldar as mudanças. Na organização, haveria vários líderes, em várias instâncias, e não necessariamente executivos. Destacam-se, dentre eles, os “que portam a semente”, isto é, aqueles que detêm a capacidade de estabelecer redes mais ou menos informais de comunicação, de impulsionar em todos os níveis, em relações de transversalidade, a possibilidade da transferência de habilidades e de conhecimentos. Esses líderes retirariam seu potencial da capacidade de estabelecer interconexões entre inovadores. Para o autor, os grandes problemas que a mudança enfrenta são de tipo gerencial. Estes referem-se: à incapacidade de gerar uma dinâmica de negociação de uma visão compartilhada; à dificuldade de trazer a tona temas “indiscutíveis” mediante o desenvolvimento das habilidades de reflexão e indagação; à tendência de evitar o enfrentamento das causas mais complexas dos problemas em prol de um tratamento baseado nos sintomas; a um tipo de conduta defensiva que escamoteia medidas que podem afetar interesses, entre outros. Essas restrições podem ser compensadas por intermédio de estratégias de aprendizagem. Mas isto não é suficiente. A mudança exigiria uma maior concentração sobre os aspectos limitadores do crescimento, entendendo mudança não como troca ou substituição, ou produção de algo absolutamente novo, mas como crescimento ou como evolução do novo a partir do antigo. Para Senge (2000), a partir de Maturana (1998), o reconhecimento de tendências naturais de compensação ou de limitação do crescimento deve ser o alvo privilegiado de uma reflexão estratégica sobre como agir para enfraquecer ou atenuar essas tendências e para adiar os momentos de inflexão compensadora. Toda esta reflexão aponta para a necessidade de pensar não em termos de impor mudanças, mas de cultivar mudanças. Esta perspectiva não pretende afirmar que a liderança não possa ser individual. Contudo, o foco reflete sobre as relações entre capacidades individuais e sociais. Pretende-se aqui, reforçar a idéia de que líder é quem fomenta os processos de aprendizagem que podem gerar uma liderança disseminada e de que o desenvolvimento da liderança como instância individual depende de interações típicas do fenômeno social da aprendizagem. A liderança da gestão estratégica Para Motta (1991), a essência da liderança consiste em capacidades de domínio do contexto (análise estratégica do ambiente e dos problemas organizacionais,
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previsão de futuro e formulação da visão), de manejo intersubjetivo (comunicação e negociação) e individuais (como o bom conhecimento de si, a capacidade de socialização e a autenticidade). Sobre as habilidades organizacionais, o autor salienta: · O bom conhecimento da missão e dos objetivos internos, para que estes possam ser comunicados, e das características da ambiência externa, de modo a facilitar a interação da empresa com a realidade existente. · A capacidade de descoberta permanente e de processamento contínuo de problemas e soluções. · A capacidade de articular, agregar e processar continuamente idéias e alternativas de ação para redefinir o sistema de autoridade e de responsabilidade, com base em valores compartilhados. · Formulação de uma visão (intuição sobre o futuro) e capacidade de orientar-se em termos prospectivos. Em relação às habilidades interpessoais, o autor destaca: · A capacidade de aprender a aceitar as pessoas como realmente são e de reconhecer o seu valor positivo. · Estimular o contato direto permanente com as pessoas, aumentando a confiança mútua. · Desenvolver as capacidades de comunicação e de negociação, reforçando o compartilhamento de informações, a interação permanente e a participação. · Praticar um tipo de gestão que contribua para diminuir a distância social. A respeito das habilidades individuais, Motta considera que devam ser encaradas de maneira flexível, por serem passíveis de aprendizado ou não necessariamente inatas. Destaca algumas habilidades básicas, como: o bom conhecimento de si mesmo, de suas potencialidades e limitações; a iniciativa; o otimismo; a persistência; a integridade e autenticidade. Reforçando a dimensão subjetiva, o autor se detém na importância do ilógico e da intuição na gestão administrativa, que explicam o caráter às vezes pouco coerente e racional da mesma. Para ele, a intuição mistura elementos de racionalidade formal e informal e apóia-se fortemente na experiência acumulada pela liderança. A dimensão subjetiva não-formal ou racional da liderança reforça, aqui, um argumento importante de não-omissão da natureza individual da mesma. O autor sintetiza as qualidades da liderança, usando o quadro:
Quadro 2. Mitos e realidades sobre liderança. Liderança não é
Liderança é
1. mágica ou mistério 2. propriedade de pessoas eminentes 3. fruto de qualidades especiais inatas
1. habilidade humana e gerencial 2. alcançável por pessoas comuns 3. produto de habilidades e conhecimentos aprendidos 4. forma de comunicação e articulação de uma missão e de futuros alternativos 5. uso do poder existente para garantir o alcance de propósitos comuns
4. panacéia para a solução de todos os problemas 5. uso do poder pessoal para garantir seguidores ou propósitos pessoais Fonte: Motta,1991. p.222.
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A liderança como fenômeno lingüístico A concepção de liderança como fenômeno lingüístico foi desenvolvida por Flores (1989, 2004) e Echeverria (1997, 2000). Estes autores aplicam a taxonomia dos atos de fala de Austin (1962) e Searle (1976) ao campo organizacional. Estes últimos entendem os enunciados lingüísticos como formas de interação social que geram compromissos e, por essa característica, correspondem a formas de ação que precedem outras ações. O caráter de ação do ato de fala deve-se à sua potencialidade para criar novas realidades no mundo. Assim, esses autores questionam a visão representacional da linguagem, que se limita a reconhecer a sua condição de representação de realidades do mundo objetivo, de nomear objetos preexistentes. Ao invés disso, postulam a capacidade de a linguagem criar realidades. As declarações, por exemplo, são atos de fala que, diferentemente das afirmações, não pretendem dar conta de um estado de coisas no mundo, mas que têm o poder de transformá-lo. São atos que, quando proferidos, geram uma nova realidade no mundo. A contratação ou a demissão de pessoal pertence ao universo dos atos declarativos administrativos. Quando um juiz declara um par marido e mulher, está criando uma nova realidade só possível com base nessa declaração, ancorada numa autoridade reconhecida para tal. Esta questão é importante: declarações precisam estar ancoradas na autoridade; legitimidade do ator”sujeito que as profere. A tomada de decisões corresponde, em geral, ao terreno das declarações. Ainda em relação à concepção da linguagem como geradora de compromissos, Austin e Searle sustentam que, nas várias classes de atos de fala, os atores ou interlocutores se comprometem com algo, variando a natureza desse compromisso e o critério de aferição do mesmo. Por exemplo, no caso dos atos constatativos ou das afirmações, os locutores se comprometem a fornecer, se for necessário, evidências, razões ou garantias que apóiem as afirmações, de modo a ingressar em processos argumentativos que mostrem a veracidade das mesmas (compromisso com a verdade). Por outro lado, no caso dos atos compromissários, os locutores se comprometem com a sinceridade das promessas assumidas, com a disponibilidade de competência para impulsionar esses compromissos, e, com a responsabilidade, que implica não mudar a prioridade das promessas assumidas no percurso posterior à declaração das mesmas. No caso das petições, os locutores se comprometem com a sinceridade e consistência das mesmas, que significa a disposição de não voltar atrás. Assim, em todos os atos de fala, os atores contraem compromissos, seja com a verdade da afirmação proferida, com a sinceridade a respeito das promessas feitas ou com a consistência de suas petições. O nível de cumprimento desses compromissos lingüísticos está na base de um determinado juízo sobre a confiança que a fala e ação de um ator/locutor suscita nos outros atores. Os juízos são uma forma especial das declarações. Segundo Echeveria (2000), os juízos representam formas de avaliação valorativa, que adquirem matizes específicos dentro da classe das declarações. Quando declaramos que tal pessoa é competente para coordenar reuniões, emitimos um juízo que pode ser contestado – esta condição pode ou não ser reconhecida por outros. Assim, um juízo supõe sempre a possibilidade do contrário. Os juízos contribuem para reduzir a complexidade ou incerteza do
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mesmo, para aumentar os níveis de confiança em relação ao futuro. No caso do juízo anterior, este sugere que a pessoa aludida seja indicada no futuro para coordenar reuniões. Mas, a solidez dos juízos depende do passado, da apresentação de fatos ou experiências do passado por meio dos quais seja possível mostrar ou evidenciar tal capacidade. Os juízos precisam ser fundamentados por intermédio de afirmações ou constatações de situações do passado, responsáveis por sua solidez, ao mesmo tempo em que se referem ao futuro. Quando dizemos que um médico é bom, emitimos um julgamento que suscita confiança. O juízo é um tipo de enunciado lingüístico voltado para o futuro, que nos ajuda a restringir possibilidades futuras, que nos permite seguir com um determinado médico e estabelecer com ele uma relação pautada pela credibilidade, ancorada em seus atos coerentes, consistentes, responsáveis, acertados (Artmann & Rivera, 2006). É no processo da interação.... que nós podemos fundamentar os juízos que permanentemente fazemos sobre a fala e a capacidade do outro, sobre a disposição do outro. Dizem os autores aludidos (Flores & Echeverria) que os juízos sobre a confiança que fazemos remetem, em última instância, a juízos de caráter ético, representados pelo respeito mútuo. (Artmann & Rivera, 2006, p.24)
A liderança dentro desse contexto interpretativo expressa um juízo sobre a capacidade de alguém estabelecido pela coletividade. A liderança existe para a coletividade, não é uma realidade objetiva divorciada da avaliação feita. Esta avaliação é um juízo sobre a fala e a ação dos líderes. Representa um juízo sobre: a veracidade das narrativas situacionais do líder (e da informação por ele fornecida); a autenticidade e a consistência de suas petições; a autenticidade e grau de responsabilidade das promessas e compromissos assumidos; a autoridade que fundamenta suas declarações e a consistência das mesmas; e, finalmente, uma avaliação sobre os juízos que a própria liderança estabelece sobre a sua competência e a dos outros, ou seja, um juízo sobre a solidez desses julgamentos. Echeverria (2000) articula a esse juízo sobre a liderança uma teoria da confiança. Sustenta que a confiança é uma resultante do grau de cumprimento dos compromissos sociais inerentes às diferentes classes de atos de fala proferidos pela liderança no exercício do poder. A confiança, portanto, implica: (1) capacidade de escutar; (2) competência para fornecer e usar informação verdadeira, sobre a qual apóia-se o processo de tomada de decisões. Esta capacidade corresponde ao entendimento de que as afirmações, como atos de fala, iluminam a situação onde atuaremos; (3) capacidade de declarar, em função de uma autoridade reconhecida ou legítima, e de ser consistente com as declarações; (4) capacidade de fundamentar os juízos e de receber juízos críticos, e (5) capacidade de mostrar sinceridade, competência e responsabilidade no exercício dos compromissos. Um rompimento dos níveis de compromisso declarados com a fala se traduziria em uma diminuição da confiança e avaliação negativa da liderança de alguém. Flores (2004) critica a abordagem tradicional do fenômeno da liderança, que oscila entre a compreensão como capacidade de comandar e como
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capacidade visionária. Para ele, a primeira visão é estreita na medida em que os líderes não apenas conseguem que as coisas sejam feitas, mas também são os inventores do que pode ser feito. A segunda visão é questionada quando esta compreensão visionária se refere a algo misterioso, mágico ou inato, que alguns poucos detêm, ou seja, a uma capacidade que não poderia ser objeto de aprendizagem ou desenho. O autor chama a atenção sobre o algo comum e amplamente aceito às várias acepções do fenômeno da liderança: (1) a capacidade de gerar um sentido de pertencimento a uma comunidade, uma identidade coletiva, uma mobilização em torno de uma causa comum; (2) a contribuição como fonte de significado para as pessoas, afetando suas identidades e suas formas de interpretação do mundo e o futuro; (3) a relação com a questão do poder, que, nesta medida, representaria a capacidade de motivar, de ampliar as possibilidades de ação das comunidades. Apesar de conterem aspectos parcialmente válidos, todas as acepções tradicionais, para o autor, são limitadas, pois enfocam o fenômeno do ponto de vista de seus resultados, e não de sua geração. Para Flores, a necessidade de explicar e produzir o fenômeno da liderança, de enfocar como este é gerado, leva-o a discutir as relações entre linguagem e liderança. As competências que geram a liderança são essencialmente lingüísticas, e, entre estas, o autor destaca as seguintes: · A capacidade de ler o mundo. As narrativas que um ator realiza sobre mundo o fazem colocar-se a si mesmo, ao referir o mundo a preocupações e interesses humanos. Uma narrativa abre e fecha possibilidades de ação. Um aspecto importante desta capacidade é a competência para ler o mundo considerando as narrativas dos outros. Outro aspecto refere-se à capacidade de distinguir afirmações de avaliações, e de avaliar a veracidade das afirmações e a validez das avaliações. As narrativas construídas dependem de um sistema de distinções (socioculturais e lingüísticas) que definem as possibilidades ou oportunidades de ação. Estão condicionadas, finalmente, pelos estados de ânimo da liderança, que permitem declarar possibilidades não previstas por outros. · A capacidade de declarar uma missão. A liderança se baseia na capacidade de fazer declarações e de com elas gerar novas realidades ou mundos possíveis. A missão do líder corresponde à declaração do que é possível, junto com o compromisso de fazer que aconteça. A missão depende tanto da leitura de mundo realizada quanto das próprias ações desencadeadas com base naquele compromisso, pois estas ações vão modificar o mundo e, com isso, a estrutura do possível. · A capacidade de declarar uma organização e de nomear os indivíduos. Para atingir a missão, a liderança precisa recriar um agente coletivo, uma estrutura de coordenação da ação de diferentes indivíduos, com papéis e competências diferenciadas, uma organização. Uma organização gera um pano de fundo de compreensão com base no qual os indivíduos atuam na consecução de compromissos básicos. Uma organização também permite que se estabeleçam sistemas de recorrência, em particular, práticas sociais que são necessárias para o alcance de suas metas. Esta capacidade de declarar essa estrutura junto com a nomeação dos ocupantes dos cargos é uma delegação de poder que amplia o espaço para a liderança. Ao delegar poder, os líderes expandem sua capacidade de ação e a liderança, a qual passa a ser entendida como a necessidade de uma
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competência estendida e altamente disponível, como liderança disseminada, para além de uma visão limitada à condição de um dom misterioso de poucos indivíduos. · A capacidade de comprometer-se a desenvolver a produção necessária à missão. Os líderes devem produzir as ações necessárias ao alcance da missão declarada. Devem cumprir as promessas feitas e devem gerar as condições de satisfação das mesmas. Esta conversação particular se chama produção. Para desenvolver a produção, é necessária a coordenação das ações de muitos indivíduos. A administração teria a competência de exercer essa coordenação. Os líderes e administradores aparecem como dois domínios conversacionais e de interesses diferentes. Os líderes aparecem mais conectados com a realização das declarações básicas e promessas que constituem uma organização. Os administradores aparecem mais envolvidos com o manejo da coordenação de promessas específicas que unem a organização. A responsabilidade final é sempre dos líderes, pois a eles cabe avaliar, sistematicamente, o alcance da delegação e o grau de satisfação das exigências de coordenação. · A capacidade de cuidar da carreira dos funcionários, de sua identidade pessoal, de tomar conta das preocupações de outras pessoas. Não há liderança sem que as pessoas adotem como sua a missão organizacional, o que acontece quando as pessoas sentem que a missão declarada dá conta de suas próprias preocupações pessoais. O que os líderes declaram como possível expande o horizonte de possibilidades das pessoas, contribui para mudar a forma de avaliação de si mesmas, suas identidades, e sua forma de avaliação do mundo e do futuro. Seus interesses passam a estar contemplados de forma diferente, conectados com a organização, e modificam os estados de ânimo das pessoas. Portanto, a liderança se fortalece na medida em que o líder subordina seu eu privado aos interesses da comunidade. Isto implica a transformação do líder em um espaço de possibilidades para a comunidade. A liderança não é um fenômeno individual, mas social. · A capacidade de fazer alianças. As alianças respondem à necessidade de ampliar nossa capacidade de poder, ou de produzir mais e novas ações. Uma aliança faz parte da conversação sobre o poder. Baseia-se na avaliação dos jogadores de que, apoiando-se mutuamente, aumentarão suas capacidades particulares para a ação. Uma condição constitutiva das alianças é a confiança. Sem confiança não podemos fazer alianças. A confiança aparece como a avaliação que os jogadores fazem uns dos outros a respeito do cumprimento das promessas de mútuo apoio, conforme o acordado. Flores (2000) reafirma que a liderança é um conjunto de juízos sobre alguém, baseados em observações da fala e das ações do mesmo. Esses juízos estão baseados em padrões sociais, também de caráter lingüístico. A liderança, para o autor, não é apenas uma avaliação, mas um domínio de ação em si mesmo. Uma vez que observamos as ações de alguém é que ocorre o fenômeno da liderança. Ora, as ações básicas da liderança são lingüísticas; os líderes falam às pessoas que eles dirigem. Mais ainda, é na interação lingüística onde acontece esse fenômeno. Um líder é alguém que faz ofertas, pedidos, promessas. Um líder gera uma interpretação do presente, declara a possibilidade de um futuro diferente, e é capaz de gerar confiança em outras pessoas. Sem linguagem, essas ações não poderiam ser realizadas.
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Análise geral dos modelos de liderança Destas linhas, podemos depreender que o novo paradigma de liderança acentua a necessidade de que esta tenha uma clara visão estratégica e atributos de comunicação e de negociação que a facultem a operar mais como fator de mobilização do que de imposição. Como insinuamos acima, é importante salientar que essa disponibilidade de uma visão privilegiada para a mudança (como vários autores culturalistas reafirmam) não pode ser entendida como uma visão personalista e manipuladora de liderança, mas como um olhar posto a serviço da argumentação crítica (para além da persuasão de base emocional), e construído na base da escuta ativa dos outros e de sua cultura. A análise dos autores nos permitiu entender a visão da liderança transformadora como uma concepção um pouco personalista, característica de uma liderança visionária que atribui à comunicação o significado instrumental de um meio para convencer o coletivo ou para conseguir sua adesão. A comunicação está, aqui, a meio caminho entre o modelo da simples transmissão de informação e a comunicação discursiva bilateral. Há, porém, uma série de aspectos positivos na análise de liderança patrocinada por Bennis, como foi apontado acima. O modelo de liderança da organização que aprende chama a atenção para a noção de liderança coletiva, cada vez mais aceita, acima de tudo, em organizações profissionais em que o poder está muito disseminado. Pensamos que essa escola apresenta uma perspectiva de análise fortemente pragmática, que lhe impede de aprofundar a temática da aprendizagem e da comunicação, de modo que sua visão de liderança não se articula explicitamente com a linguagem, como é o caso da corrente de Flores. No entanto, temos de reconhecer que a corrente da aprendizagem organizacional tem feito esforços para incorporar o conceito de aprendizagem de Maturana (1998 apud Rivera, 2003), como processo contínuo de mudanças de comportamento induzido pela necessidade de um acoplamento estrutural entre indivíduo e meio. Dentro dessa ótica, a aprendizagem corresponde às mudanças ocorridas ao longo da vida em função de uma rede de interações com os outros e o meio, que se orienta para desafios diante de demandas recorrentes. Nesse processo histórico, tanto se dá a reprodução do indivíduo quanto do meio. A aprendizagem, como a cognição, está orientada para o fazer. Aprender é mudar para fazer. Aprender é fazer. Visão semelhante à de Maturana é sustentada por Habermas (1987), para o qual a aprendizagem subentende o questionamento das representações simbólicas que fazem parte do mundo da vida das pessoas e grupos, quando estas se tornam disfuncionais para dar conta dos problemas colocados pelo meio. A aprendizagem ligada ao fazer supõe a superação desses conteúdos e o surgimento de novos a partir do exercício de formas de discurso ou de argumentação crítica. Esse processo de aprendizagem é individual, mas subentende uma relação permanente para fora, uma intersubjetividade discursiva e uma relação com o objeto em geral, em situações de práxis (Artmann, 2001). Dito de outro modo, as capacidades de cognição e de socialização que tipificam o mundo subjetivo ou da
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personalidade (responsáveis pela aprendizagem individual) constituem estruturas que se alimentam principalmente da dinâmica das estruturas do mundo social, das normas e dos fatos sociais (Habermas, 1987 apud Rivera, 2003). Para Maturana & Habermas, o processo da aprendizagem se dá dentro e por meio da linguagem. É esta concepção da aprendizagem como fenômeno mediado pela comunicação inerente à linguagem que permite estabelecer uma articulação entre a concepção de liderança voltada para aprendizagem e a concepção da liderança como fenômeno lingüístico. Devemos lembrar que uma parte importante da teoria da Pragmática Universal (teoria da comunicação habermasiana) foi construída com base na incorporação da teoria dos atos de fala, de Austin e Searle, o mesmo arcabouço teórico usado por Flores. Esta teoria estabelece a ponte entre Habermas e a concepção da liderança como fenômeno lingüístico. Por fim, a partir de Rivera (2003), observamos que uma parte importante da escola da aprendizagem organizacional, particularmente a Ciência da Ação de Argyris (1992), declara, segundo Amatucci (1999), uma sorte de filiação à Teoria Crítica da Sociedade, mais especificamente à Teoria do Agir Comunicativo de Habermas. Assim, surge uma conexão interessante entre uma metateoria filosófica e uma escola de educação e comportamento organizacional, que ajuda a solidificar a metáfora das organizações que aprendem. Desta maneira, consideramos que há uma ampla possibilidade de diálogo entre aqueles que sustentam a visão de uma liderança ecológica, coletiva, a serviço da aprendizagem, e a visão de liderança como fenômeno lingüístico. Há, entre essas visões, elos profundos no nível de sua moldura teórica. Liderança coletiva e saúde Com base nos seguintes argumentos: a não-padronização absoluta dos processos e resultados; a diversificação crescente dos seus produtos e o alto nível de dependência que se estabelece entre serviços e categorias profissionais para a geração dos mesmos; a necessidade de acertar coletivamente mecanismos de avaliação; a forte autonomia profissional; o caráter fortemente interativo do trabalho final, sustentamos que o modelo mais adequado de gerenciamento, no setor saúde, é o comunicativo, que busca a negociação e o consenso (Rivera, 2003). Uma análise das organizações profissionais de saúde (Mintzberg, 1982) estabelece que o poder, nas mesmas, está fortemente disseminado, distribuído entre os vários centros operacionais, com ligações fracas. A fragmentação do processo de tomada de decisões, a necessidade de uma política de integração, a duplicidade de comando – administrativo e assistencial (ou governança clínica) –, recomendam o desenvolvimento de formas de negociação e de comunicação lateral, de práticas de discussão que permitam acertar a estratégia e um mínimo de integração. Contandriopoulos et al. (2005) assumem que os hospitais são organizações pluralistas, pois não dependem de uma única liderança individual, envolvendo conselhos de administração, chefias de serviço e representações corporativas etc. Da mesma maneira, ao analisar os processos
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de regionalização e descentralização na França e no Quebec, destacam que o exercício da liderança não supõe apenas alargar a capacidade de decisão dos dirigentes locais e regionais, mas a necessidade de articular várias lideranças, situadas em diversas esferas de poder e níveis do sistema. Nesta perspectiva, sustentam o conceito de liderança coletiva como o mais adequado ao gerenciamento do setor. A necessidade de integração, inerente à regionalização sanitária, põe em destaque a articulação de redes. Franco et al. (2004) entendem essas redes à luz de Flores (1989), como redes de petições e compromissos, formas de diálogos permeadas pela vontade do mútuo acolhimento, o que implica, segundo Teixeira (2003), a aceitação da demandas e das promessas do outro como reivindicações legítimas ou fundadas no princípio da correção normativa, ou seja, na adequação aos direitos, normas legais e princípios de convivência social. Esta formulação traz uma compreensão interessante sobre o acolhimento, baseada em sua percepção como uma rede de conversações (Artmann & Rivera, 2006). Seriam redes intersubjetivas de pactuação, construídas a partir do seu reconhecimento como formas de reconhecimento do outro como legítimo outro na convivência (Maturana, 1998 apud Teixeira, 2003). Para Campos (2003), um atendimento clínico de qualidade implica conciliar a clínica tradicional e a clínica do sujeito. Com base na noção de clínica ampliada, o autor sustenta que é muito importante conhecer aspectos genéricos dos processos saúde-doença-atenção, mas também aprender com a variação, saber escutar e saber perscrutar cada caso singular. As decisões devem ser ponderadas, valendo-se de opiniões de outros profissionais, exposição de incertezas, compartilhamento de dúvidas. Para esse autor, a clínica do sujeito demanda trabalho em equipe e um agir comunicativo. A escuta à subjetividade do paciente e a escuta ao seu contexto social trazem, para o interior da produção do cuidado individual, um senso da integralidade marcado pelas idéias de acolhimento e vínculo (Artmann & Rivera, 2006). A clínica ampliada não deixa de conceder ao médico o caráter de uma liderança disseminada, que desenvolve uma rede intensiva de conversações com os usuários e com os outros profissionais das equipes consideradas necessárias para um cuidado mais integral e resolutivo. Por fim, concordando com Contandriopoulos et al. (2005), a liderança das organizações sanitárias deveria deslocar-se do ápice organizacional ou hierárquico para operar como mais um fator de negociação do processo de relações interprofissionais, no seio da governança clínica, ou seja, do gerenciamento local dos centros operadores fortemente influenciado pelo saber profissional como poder. Esse tipo de enfoque está muito mais próximo de uma noção de liderança coletiva ou comunicativa, que se desenvolve por meio de rodas de conversação e jogos de linguagem, do que de uma visão de liderança visionária ou herói, egocêntrica.
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A LIDERANÇA COMO INTERSUBJETIVIDADE LINGÜÍSTICA...
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RIVERA, F. J. U.; ARTMANN, E. El liderazgo como intersubjetividad lingüística. Interface Educ., v.10, n.20, p.411-26, jul/dez 2006. Comunic., Saúde, Educ. Este trabajo es una síntesis de varias concepciones de liderazgo e su objetivo es destacar la importancia creciente en la literatura especializada de la visión del líder como instancia de aprendizaje organizacional, de base colectiva, y como coordinador de procesos de comunicación lingüística orientados al entendimiento sobre la misión, la estructura y la dinámica de funcionamiento de las organizaciones. El artículo sustenta que el liderazgo debe desarrollar, además de las capacidades de análisis estratégico, competencias comunicativas y apoyar el cambio para gerenciar con más eficacia las relaciones intersubjetivas de los actores organizacionales, para que la organización sea competente. PALABRAS CLAVE: liderazgo. administración de personal. organizaciones.
Recebido em 29/03/06. Aprovado em 08/08/06.
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Desenv olvimento da rrelação elação de cooper ação esenvolvimento cooperação mediada por computador em ambiente de educação a distância Ivan Ferrer Maia 1 Carla Lopes Rodriguez 2 Flaminio de Oliveira Rangel 3 José Armando Valente4
MAIA, I. F. ET AL. Increase of cooperation permitted by computers in a distance education environment. Educ., v.10, n.20, p.427-41, jul/dez 2006. Interface - Comunic., Saúde, Educ. This article analyzes part of the results of a social research program developed along with neighborhood health agents of São Marcos and Santa Mônica in Campinas, state of São Paulo. It was a longitudinal study carried out over a period of a year and a half carried out throughout three phases: face-to-face, intermediary stage and pure distance work. In this article we solely discuss the activities during the face-to-face phase, whereby agents learnt how to use the computer and the TelEduc system. We opted to apply qualitative observation given that the main objective of this research was to identify Piaget’s developmental stages within the context of the agents’ capacity to understand tangible and intangible aspects of the technological universe. This relationship was possible when the subjects began to interact with basic elements of the computer and with TelEduc. After overcoming a state of anomia and understanding the tools that allowed a heteronomous attitude, agents used resources allowing them to enter a relationship of cooperation. KEY WORDS: cooperative behavior. distance education. community developmental stages. computer user training. computer leteracy.
O artigo contempla parte dos resultados de uma pesquisa-ação desenvolvida junto aos agentes de saúde dos bairros São Marcos e Santa Mônica, em Campinas-SP. Trata-se de pesquisa longitudinal, com duração de um ano e meio, envolvendo três fases: presencial, semipresencial e a distância. Aqui tratamos apenas das atividades ocorridas na fase presencial, nas quais os agentes começaram a aprender a utilizar o computador, e do TelEduc. Para tanto, optamos por uma observação qualitativa, já que o objetivo principal foi aferir os estágios de desenvolvimento de Piaget com a capacidade dos agentes em dominar as entidades tangíveis e intangíveis da informática (compreendem-se as entidades tangíveis como os elementos de hardware; e as entidades intangíveis, como os de software). Essa relação foi possível quando eles, de maneira presencial, começaram a interagir com os elementos básicos do computador e com o TelEduc. Após superarem a anomia e terem dominado as ferramentas que favoreceram posturas heterônomas, os agentes manipularam recursos que permitiram o começo de uma relação de cooperação. PALAVRAS-CHAVE: comportamento cooperativo; educação a distância. desenvolvimento da comunidade. capacitação de usuário de computador. conhecimentos em informática.
1 Universidade Estadual de Minas Gerais, UEMG, campus de Campanha; Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais (FAPEMIG/MG); Departamento Multimeios, Instituto de Artes, Universidade de Campinas (IA/Unicamp). <ivan.fm2@terra.com.br>
Departamento Multimeios IA/Unicamp; Tecnologia da Informação no Desenvolvimento da Internet Avançada - Aprendizado Eletrônico (TIDIA-AE /FAPESP/SP). <clrodriguez@terra.com.br>
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Departamento Multimeios IA/Unicamp; Faculdade de Educação, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (FE/PUC-SP). <f.o.r@terra.com.br>
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Departamento Multimeios, IA/Unicamp; FE/PUC-SP. <jvalente@unicamp.br>
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Rua Cônego Antônio Felipe, 252 Campanha, MG Brasil - 37.400-000
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Introdução Esta pesquisa está vinculada ao programa de políticas públicas Comunidade Saudável, que desenvolve atividades voltadas para a promoção da qualidade de vida em comunidades carentes. Uma dessas comunidades, envolvida neste estudo, é o complexo dos Amarais, em Campinas-SP. Composto por mais de 35 mil habitantes, é constituído pelos bairros Santa Mônica, São Marcos, Barro Preto, Jardim Campineiro e Vila Esperança. A população desses bairros, formada, sobretudo, a partir da abolição da escravatura e do alto índice de imigração (Lapa, 1996), habita em locais periféricos. O complexo dos Amarais apresenta atualmente um baixo Índice de Condição de Vida (Rangel & Martins, 2004): renda econômica fraca, alta taxa de analfabetismo, saneamento básico precário, domicílios densos, alto índice de mortalidade, incidências de doenças, desnutrição e porcentagem exagerada de adolescentes grávidas. Os agentes de saúde são profissionais que atuam na região e tentam promover a melhoria da situação de vida da população local. Cada agente é responsável por acompanhar um número predefinido de famílias, tendo como principal função chegar às moradias dessas pessoas. Essa atividade possibilita o acesso às informações referentes à realidade da saúde pública local. De acordo com os próprios agentes, casos críticos identificados na comunidade deveriam ser discutidos com os demais agentes e profissionais relacionados à área da saúde. Contudo, a falta de disponibilidade de tempo para reuniões periódicas dificulta a troca de informação e de experiências. Diante dessa realidade, confiamos que o ambiente virtual TelEduc5 poderia contribuir com parte das atividades desses agentes, no sentido de que teriam a oportunidade de cooperar entre si, sem grandes demandas de locomoção. No entanto, primeiramente, os agentes estiveram reunidos presencialmente, para aprender a dominar os elementos básicos do computador e do TelEduc. O presente artigo trata, sobretudo, desta fase, do domínio de alguns conceitos elementares do computador e do ambiente de Educação a Distância (EAD) TelEduc. A questão principal, portanto, era verificar se o desenvolvimento desse domínio poderia ser relacionado com os estágios piagetianos. Objetivo e relevância O objetivo deste estudo constituiu analisar como os agentes superaram os estágios de anomia e heteronomia para alcançar a relação de cooperação, enquanto dominavam as entidades tangíveis e intangíveis do computador, construindo operações concretas e abstratas, a ponto de manipular os recursos básicos do computador e as ferramentas de comunicação do TelEduc. A importância de capacitar os agentes de saúde para dominar o universo da informática é justificada pelo grande aglomerado de informações que são produzidas no mundo, pela velocidade com que elas circulam e pela necessidade de dominar um sistema que possibilite a comunicação e a aprendizagem coletiva. Torna-se relevante a capacitação qualificada do agente, abrangendo competências amplas e diversificadas, que compreendem o domínio crítico das tecnologias. A falta de experiência dos
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O ambiente de EAD TelEduc é uma plataforma para criação, participação e administração de cursos a distância via internet, desenvolvido pelo Núcleo de Informática Aplicada à Educação (NIED) da Unicamp. Foi concebido de forma participativa, tendo como meta o oferecimento de cursos de formação de professores para a utilização da informática na educação. Suas ferramentas foram “(...) idealizadas, projetadas e depuradas segundo as necessidades relatadas por seus usuários” (Rocha, 2002, p.197).
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agentes para utilizar essas tecnologias exigiu que a aprendizagem fosse feita inicialmente de maneira presencial, mediada pelos pesquisadores-formadores, mesmo que em determinados momentos tenham surgido manifestações a distância. Assim, eles estavam aprendendo, simultaneamente, tanto o domínio da máquina, quanto de um software bastante sofisticado e complexo, no caso, o ambiente de EAD TelEduc. Essa dinâmica foi importante na medida em que também proporcionou aos pesquisadores-formadores aprenderem o modo de introduzir essas tecnologias para outros agentes, para depois promover atividades a distância. Outro aspecto relevante da pesquisa foi o estudo do processo pelo qual, adultos, no caso os agentes de saúde, constróem o conhecimento em relação ao domínio da informática. Paralelamente, tivemos a possibilidade de entender como se estabelece a relação de cooperação entre os agentes em ambiente de EAD. Considerando que a EAD está sendo cada vez mais utilizada na educação continuada e que um dos recursos fundamentais que ela oferece é a possibilidade dos profissionais trocarem idéias e experiências, formando uma rede cooperativa (Lévy, 1993), é importante entender como o domínio da informática acontece e os diferentes estágios do processo de constituição da rede de cooperação. Aspectos metodológicos A pesquisa configurou-se como uma combinação da metodologia de pesquisaação (Thiollent, 2004) com o desenvolvimento da interação (Teberosky & Tolchinsky, 1997), pressupondo uma atitude participativa e investigativa dos atores envolvidos, agentes e pesquisadores-formadores. O uso dessa metodologia buscava a democratização das práticas educativas e sociais, nos locais onde ocorria a pesquisa-ação. Completando o método, optamos por uma observação qualitativa, que considera a subjetividade e o aspecto sociocultural de cada participante. Os instrumentos utilizados foram entrevistas, relatórios das discussões e atividades em grupo, os registros das atividades realizadas no computador e pelas ferramentas do TelEduc. A pesquisa foi longitudinal, com duração de um ano e meio, envolvendo três fases: presencial, semipresencial e a distância. Em cada fase, foi montado um laboratório de informática, respectivamente nos seguintes locais: Laboratório Interdisciplinar de PesquisaAção – LIPA (Unicamp), centro comunitário Espaço Esperança do bairro São Marcos e Centros de Saúde dos bairros São Marcos e Santa Mônica. Neste artigo, enfocamos apenas as atividades ocorridas na fase presencial (LIPA-Unicamp), que teve a duração de um semestre, nas quais os agentes começaram a aprender a utilizar o computador e algumas ferramentas do TelEduc. Para viabilizar o desenvolvimento das atividades de capacitação para o uso desses recursos foram instalados, no LIPA, três computadores, dois 486 e um pentium III, todos com acesso à internet via banda larga. Participaram dessa fase três agentes de saúde do bairro São Marcos: duas mulheres e um homem. Apenas o agente possuía computador em casa, mas afirmou ter pouca experiência na utilização dos recursos. As duas agentes nunca tiveram contato direto com a informática. Por esse motivo, os três agentes desenvolveram, inicialmente, atividades mais simples como, por exemplo, ligar e desligar o computador, criar e-mails, elaborar textos, buscar e
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copiar informações da internet. Posteriormente, o uso das ferramentas do TelEduc foi gradativamente introduzido e os agentes puderam disponibilizar conteúdos de seu interesse no portfólio individual e no mural, interagir no bate-papo, discutir assuntos elaborados nos Fóruns de discussão etc. Essas atividades foram realizadas de modo presencial. Entretanto, no final dessa fase, os agentes começaram a se comunicar também a distância, acessando o ambiente em momento e locais diferentes dos usados para os encontros presenciais. Os encontros presenciais com os agentes ocorriam uma vez por semana, com três pesquisadores-formadores para mediar a aprendizagem. Essa mediação era necessária na medida em que os recursos informatizados estavam sendo apresentados aos agentes. As atividades de capacitação eram previamente planejadas e visavam proporcionar aos aprendizes a utilização prática do computador e seus recursos. Os dados da pesquisa foram coletados paralelamente às atividades de capacitação, por meio de observações in loco, sistematicamente anotados em diários de campo e mediante análise das informações registradas no TelEduc, inseridas pelos próprios agentes. Os pesquisadores também se encontravam semanalmente para debater as informações coletadas e sistematizar os estudos. Além dos encontros presenciais, utilizavam uma outra instância do ambiente TelEduc, restrita somente aos pesquisadores, para discussões e armazenamento dos diários de campo. Relação de cooperação Neste tópico, apresentaremos o conceito de cooperação com base nas teorias de Piaget e Vygotsky. Conceito de cooperação A cooperação surge nas relações entre os sujeitos e, para isso, é necessário que a moral de cooperação prevaleça sobre a coação. Entende-se coação no sentido de autoridade, de regulações impostas e formadas pela condição histórica, social, política e econômica, que impossibilita o sujeito de exercer a sua autonomia em relação à construção de conhecimentos. Piaget, opondo-se ao conceito de coação, define cooperação como “(...) toda relação social na qual não intervém qualquer elemento de autoridade ou de prestígio” (Piaget apud Montangero & Maurice-Naville, 1998, p.120). Ele também afirma que a cooperação é um processo criador de realidades novas, e não simples troca entre indivíduos desenvolvidos. (...) cooperar na ação é operar em comum, isto é, ajustar, por meio de novas operações (qualitativas ou métricas) de correspondência, reciprocidade ou complementaridade, as ações executadas por cada um dos parceiros. (Piaget, 1973, p.105)
Para que haja cooperação, as partes reacionais têm de estar em “equilíbrio móvel” (Piaget, 1973), possuírem conhecimentos e autonomia para agir. E a
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autonomia se consegue na relação com o outro (Rangel et al., 2003). As relações sociais são um postulado básico para germinar o espírito crítico diante da realidade econômico-social. Conforme constatou Vygotsky (apud Oliveira, 1992), a aprendizagem desperta processos internos de desenvolvimento que só podem ocorrer quando o indivíduo interage com outras pessoas dentro de um contexto histórico-crítico. Enfim, cooperação é um método de relação sociocultural complexa, que requer operações, atividades ou ações conjuntas e sócio-organizadas para alcançar propostas de interesse comum, benefícios recíprocos e desenvolvimento de sujeitos mais críticos. A cooperação só existe fundamentada na moral do bem coletivo, no respeito mútuo, na consciência autônoma e na responsabilidade intersubjetiva. Esse “bem-viver” não pode ser confundido como uma forma inibidora da postura crítica, e condicionado ao pragmatismo alienante. Ao contrário, a relação de cooperação só tem sentido dentro de uma lógica social, enquanto importante instrumento para o despertar da consciência, e o vislumbre de uma possível superação da exclusão social, econômica e do conhecimento. Os três estágios Na obra “Juízo moral na criança”, Piaget aborda três estágios de desenvolvimento (Piaget, 1994): - anomia ou sensório-motor (24 a trinta meses de vida): a regra ainda não é coercitiva, é puramente motora, suportada inconscientemente por exemplos interessantes, e não por realidade obrigatória. No estágio de anomia, existe o apelo ao imaginário, à fantasia, ao misticismo, com atitudes e crenças, que o desenvolvimento intelectual eliminará; - heteronomia ou o egocêntrico (por volta dos dois anos até oito anos): a regra é considerada como sagrada e intangível, ela tem origem nos adultos, ou seja, a sua essência é externa e, qualquer modificação no teor das regras é considerada pela criança como uma transgressão. Nesse estágio, começa o desenvolvimento do sentido de organização de conjuntos, mas de maneira ainda intuitiva, e não sistemática. A criança, intuitivamente, demonstra um interesse pelas causas dos fenômenos e, por isso, pergunta tudo sobre tudo. O estágio de heteronomia é uma conduta intermediária entre as condutas socializadas e as puramente individuais; - cooperação nascente ou autonomia (começa a aparecer por volta dos sete e oito anos): a criança considera a regra como uma lei, criada pelo consentimento mútuo, cujo respeito é obrigatório. As regras podem ser modificadas desde que haja consenso. No estágio de cooperação, as crianças conseguem articular pensamentos abstratos por meio do domínio dos objetos intangíveis. O diálogo torna-se discussão sobre um tema com diferentes pontos de vista. Busca alcançar uma conclusão, ou tomada de decisão, com partilhas de tarefas pelo grupo, o que significa distribuição de ações que exigem responsabilidade coletiva. A transição para o estágio de cooperação desperta a conscientização às regras e ao social. Temos o desenvolvimento do intelecto, que liberta das crendices, e o sujeito começa a perceber o seu potencial para modificar as regras. Embora os participantes de nossa pesquisa fossem adultos e já trouxessem em si todo o marco regulatório adquirido na vida, ao contrário das crianças de
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Piaget, consideramos que existe um paralelo entre os três estágios e as posturas adotadas pelos agentes nas atividades com o computador. Ações e resultados As interações utilizando as ferramentas do computador e do TelEduc, na primeira fase da pesquisa, foram realizadas presencialmente, isto quer dizer que a escrita dividiu importância com outros canais de comunicação: a oralidade, as expressões faciais, corporais e a fotografia. Assim, cada agente ficou em um local separado, porém eles estavam perto entre si, o que permitiu um influenciar o outro, embora trabalhando em computadores distintos. Como resultado dessa primeira fase, podemos dizer que todos os agentes conseguiram manipular as entidades computacionais básicas (tanto os elementos de hardware quanto os de software), tais como: ligar e desligar o computador, navegar pela internet, cadastrar e fazer uso de e-mails, manipular algumas ferramentas do TelEduc (perfil, portfólio, fóruns de discussão, mural, bate-papo, correio eletrônico etc). Contudo, o que iremos analisar é como os agentes superaram os estágios de anomia e heteronomia, enquanto dominavam as entidades tangíveis e intangíveis do computador, realizando operações concretas e abstratas, a ponto de manipular os recursos básicos do computador e as ferramentas de comunicação do TelEduc. Estas ferramentas, que podem proporcionar o estabelecimento de relações sociais, permitiram que os agentes se aproximassem do desenvolvimento de uma relação de cooperação, que, no final dessa fase, começou a manifestar-se a distância, de forma assíncrona, conforme as disponibilidades de acesso. No domínio do computador e do TelEduc, pudemos identificar os três momentos ascendentes dos estágios de Piaget: anomia, heteronomia e cooperação. Eles estão interligados, mas a cada atividade, um se mostrava mais evidente que o outro. Anomia: o imaginário e o sensório-motor Os três agentes, no final das atividades, apresentaram domínio geral sobre o hardware (entidades tangíveis) e conhecimento básico de software (entidades intangíveis). A conquista desses conhecimentos revelou comportamentos dos agentes que coincidiram com o estágio de anomia, por dois motivos: o sensório-motor e o imaginário. Descreveremos essa experiência, iniciando pela constatação de que ainda era necessário desenvolver uma relação “sensóriomotora” desses com o computador e, para isso, seria importante a aquisição de saberes para o manuseio do aparelho. Os três agentes se reuniram perante o pentium III, enquanto os outros dois computadores (486) eram configurados para terem acesso à internet. Quando apresentamos uma seqüência de ações – ligar e desligar o computador –, e solicitamos que os mesmos a repetissem, evidenciou-se um problema sensóriomotor e de conhecimento básico sobre informática, principalmente nas mulheres. Conforme Piaget (1994), no estágio inicial de desenvolvimento, a criança busca primeiramente superar o limite sensório-motor e o sujeito apresenta dificuldade em operacionalizar conhecimento abstrato, focalizando apenas nos elementos concretos. Percebemos que os adultos também demonstraram essas características. Pois, as agentes apresentaram poucas
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habilidades com o mouse, dificuldades em posicionar o cursor no local desejado e confusão na concepção das entidades tangíveis. Por exemplo, as duas agentes, quando foram desativar o computador, desligaram o que estava mais visível sobre a mesa: o monitor, pensando que estariam desligando o equipamento como um todo. Nesse exemplo, os agentes ficaram centrados na operação com o objeto concreto, tangível. Outro equívoco ocorreu por motivo da ambigüidade existente na interface do sistema operacional MS Windows. Quando foram desativá-lo, não encontravam o botão Desligar. Custaram a descobrir que deveriam “clicar” no botão Iniciar apresentado na tela inicial do software. Mais tarde, a ferramenta agenda, disponível no ambiente TelEduc, também foi mal-interpretada. Eles relacionaram a utilidade dessa ferramenta com a mesma função das agendas que se vendem em papelaria, ou seja, para anotações pessoais. Na agenda do TelEduc, todos os participantes de determinado “curso” podem visualizá-la, porém somente os formadores podem acrescentar informações para todos, como os prazos das atividades. O segundo motivo que nos levou a considerar os agentes em fase de anomia foi o imaginário. Comecemos pelos conceitos que surgiram durante o diálogo estabelecido entre os agentes quando estiveram diante do TelEduc. Apenas observavam a tela, sem tocar em qualquer parte do computador. À primeira vista, não conseguiam interpretar o que viam na interface do TelEduc. Por isso, comparamos o ambiente com as próprias casas e o centro de saúde, salientando as repartições utilizadas de acordo com as funções de cada um. Discutimos que havia uma correlação entre o TelEduc e o local onde moravam e trabalhavam. Essa rápida experiência nos permitiu identificar a questão imaginária dos agentes. Eles não se atreviam ao toque. Segundo os relatos, a falta de conhecimento sobre informática poderia levá-los a “estragar” o computador (objeto de valor). Notamos que havia um sentimento de medo de cometer erros (fetiche). Não deixava de ser uma visão fantasiosa, mistificação do computador, que estabelecia uma relação de coação na qual o computador aparecia como um “objeto caro”, por demais complicado e que eles não poderiam ter acesso. Embora Piaget tenha afirmado que não existe coação no estágio de anomia, notamos que os agentes estavam intimidados diante da tecnologia. Cabe, portanto, apoiarmo-nos na teoria “sócio-histórica” de Vygotsky (2000). A postura coagida dos agentes, diante do computador, apresentava-se como expressão cultural do desequilíbrio social. Basta recordarmos o breve histórico que apresentamos na introdução. Foram citadas a herança escravagista (não, por acaso, os três agentes são pardos) e a crise social e econômica que repercute na formação de favelas. Esses exemplos demonstraram que os agentes estavam com maiores dificuldades na concepção das entidades intangíveis. Pois, como afirmou Valente (1987), o adulto principiante na informática irá inicialmente operacionalizar objetos concretos, para depois assimilar aspectos intangíveis, de estrutura abstrata. Pudemos observar que a postura dos agentes foi se modificando gradativamente, principalmente as mulheres que, no início, por serem totalmente inexperientes, estavam mais acuadas. No entanto, a relação delas com o agente homem, mais experiente no uso do computador e de alguns recursos, não se configurou em cooperação, no sentido de Piaget (1973), de modo que não houve operação em comum ou reciprocidade. Apesar de haver
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doação por parte dele, estabeleceu-se uma relação de desequilíbrio, unilateral. A falta de conhecimento das mulheres dificultou uma relação de cooperação, restando somente os incentivos. Elas não puderam trocar o que não possuíam. Heteronomia: procura-se um rosto Essa fase identifica-se com o estágio de heteronomia pelo fato de que os agentes buscaram uma identidade, mantendo-se limitados às regras, sem tomar decisões transgressoras. Nesse momento, a preocupação era egocêntrica. Analisemos duas atividades: a inscrição dos agentes no TelEduc e a inserção de dados pessoais, na ferramenta perfil. Os três computadores disponíveis estavam conectados à internet e cada agente, acompanhado por um pesquisador-formador, acomodou-se em frente a um computador. Agora, era preciso se cadastrar no TelEduc. Para isso, é necessário que o sujeito tenha um endereço eletrônico (e-mail), para o qual são enviados automaticamente, pelo sistema, a senha e o login definidos, a fim de que possa acessar o ambiente. Os agentes tiveram de realizar dois cadastros: o da empresa particular fornecedora de webmail gratuito, já que não possuíam correio eletrônico, e o do TelEduc. Para ambos, foi necessário: preencher um formulário eletrônico e escolher um nome de acesso, o login. No caso do cadastramento no webmail, ainda foi necessária a definição de uma senha. O problema maior ocorreu nas operações que exigiam assimilação de concepções de objetos intangíveis, principalmente em relação à definição das senhas e dos logins (digitação errada e esquecimento dos caracteres destes). Os mesmos problemas se repetiram no cadastramento no TelEduc. Nessas situações, mediávamos possíveis soluções: manter a tecla Caps Lock desativada, criar senhas e logins de fácil memorização, sugerir a anotação das informações em papel. Apesar das dificuldades, eles conseguiram criar os e-mails e cadastrar-se no TelEduc, mas não constituíram uma equipe na qual debateram ou enfrentaram os problemas juntos. Nenhum deles chegou a formular qualquer questão sobre o cadastro para o colega. Como não possuíam conhecimento sobre o assunto, estavam centrados em si mesmos, tentando resolver os problemas que apareciam. Retomamos a afirmação de Piaget que diz que, para haver relação de cooperação, as partes reacionais têm de estar em “equilíbrio móvel”. Por outro lado, os agentes evocavam constantemente os mediadores para fazer perguntas e tirar dúvidas, lembrando a fase intuitiva do estágio de heteronomia, ressaltado por Piaget. Uma vez cadastrados, começaram a trabalhar com a ferramenta perfil, acrescentando dados pessoais: formação escolar, local de trabalho, hobbies etc. (Quadro 1). Falar sobre si proporcionou pensar a própria condição atual e o contexto, o local onde vive, o trabalho, o lazer, a família etc. Também foi colocada a fotografia de cada um, tirada enquanto os agentes preenchiam o perfil. Quando os agentes viram suas fotos no computador, tiveram reações eufóricas. Empolgados, chamaram outras pessoas, ali presentes, para mostrá-las na tela do computador – agora, também estavam “fazendo parte do mundo cibernético”. Com a presença do outro, o efeito da fotografia sobre os agentes foi otimizado. Naquele momento, o riso foi a linguagem universal. Podemos dizer que foi o ponto de mutação, em que eles perceberam que poderiam
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dominar as máquinas, humanizá-las, pois relembrando Bergson, “só o homem é risível. Se rirmos de um objeto ou animal, nós o tomamos por homem e o humanizamos” (Bergson apud Vygotsky, 2001, p.295). Ocorreu a troca de calor humano, de emoções durante as atividades presenciais. Se os agentes tivessem visto as imagens sozinhos, sem o entusiasmo dos colegas, talvez não tivessem ficado tão mobilizados. A presença do outro foi significativa, contudo, o prazer foi essencialmente “egocêntrico”, e não prazer social, típico da heteronomia. A ferramenta Perfil contribuiu para que os agentes saíssem da fase de “apatia” em relação ao outro, para enxergá-lo, mostrar-se no virtual e ser reconhecido. Mas ainda, era uma comunicação de via única, sem diálogo. Por isso, consideramos que eles estavam no estágio de heteronomia. O que existia eram informações na tela, que os outros sujeitos poderiam acessar, sem poder comentar, até mesmo porque o Perfil não permite o diálogo.
Quadro 1. Uso da ferramenta perfil por um agente de saúde*.
Agente 01 Email: XXX@XXX.com.br Função: aluno
Retrato do Aluno
Olá ! Sou casado, já estou na meia-idade, resido em Campinas a mais de três décadas, desde que cheguei sempre morei no Jd.São Marcos. Vim do interior de São Paulo. Tive uma infância muito sofrida não tive oportunidade de estudar quando criança, minhas oportunidades só vieram depois de casado, quando completei o 1° e 2° grau , fiz um curso técnico de transação imobiliária (corretor de imóveis) cheguei a cursar o 3° ano completo de direito (tive que abondonar por motivo alheio a minha vontade ). Tenho 05 filhos com idade de 18-17-10-09 e 07 anos, dos quais 04 ainda são estudantes. Sou agente de saúde no C.S São Marcos onde trabalho com mais 15 companheiros juntos à comunidade local desenvolvendo um trabalho na área de saúde, educação e cidadania. Gosto de ler tudo que me traga boas infomações, aprendizagem e cultura . Lugar interessante para mim ainda continua sendo Campinas onde tenho muitos amigos com os quais troco informações e jogo muita conversa fora , por hoje é só no decorrer do curso vamos nos conhecer melhor até... * Alguns dados pessoais, como o retrato, foram alterados para preservar a identidade.
Contudo, nesse estágio, algumas ferramentas do TelEduc foram mais assimiladas e manipuladas. Os agentes conseguiram inserir suas “identidades” no computador, passaram a ter e-mails, perfis disponíveis, e já dominavam o jargão básico da internet. Cooperação nascente: do diálogo à ação Veremos, neste tópico, que após terem dominado os recursos que favoreceram posturas heterônomas, os agentes manipularam ferramentas
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que permitem a relação social, alcançando um grau de abstração maior. Sustentaremos esta assertiva mediante as interações realizadas em três destas ferramentas: bate-papo, portfólio e mural. Pela primeira vez, os agentes participaram de uma sessão de bate-papo online. Os três, no mesmo local, separados por uma distância de aproximadamente quatro metros, trocavam informações livremente por meio da ferramenta bate-papo. O diálogo informal predominou. As expressões faciais não eram as mesmas quando preencheram os formulários eletrônicos de cadastro. Viam-se sorrisos e olhares atentos à tela. O clima de “boa relação” existente na condição presencial fora estendido para o TelEduc. O prazer era social, e não egocêntrico, como na fase heterônoma. Podemos ver, no extrato abaixo, durante uma sessão de bate-papo, um dos agentes conversando, de maneira bem-humorada, com sua colega. O assunto é o transporte, uma perua (VW Kombi) que chegou no LIPA, local dos nossos encontros, para levá-los embora. (17:48:47) Agente 02 fala para Todos Todos: A combi chegou (17:49:28) Agente 01 fala para Todos Todos: eu já sei! Apirua né minina (17:49:47) Agente 02 fala para Todos Todos: é uma pena que estamos indo embora (17:50:05) Agente 01 fala para Todos Todos: é memo né (17:50:07) Agente 02 fala para Todos Todos: seu caipira (17:50:27) Agente 01
fala para Todos Todos: ta bao so
O Agente 01 “transforma” suas palavras em uma linguagem cômica de caipira. O bom humor, contrariando as normas de autoridade e de opiniões impostas, proporcionou uma reciprocidade na simpatia. Para Piaget (1973), na relação de cooperação, o elemento de autoridade ou de prestígio não intervém. Isso não quer dizer que os agentes manifestaram uma relação de cooperação. No entanto, começaram a estabelecer o diálogo, sustentado pelo bom convívio. Estavam tendo, no bate-papo, a mesma desenvoltura natural diferente da postura coagida no início das atividades. O diálogo descontraído, sem a carga da autoridade e da coação, facilitou a relação entre os agentes, minimizou as manifestações individualistas e otimizou a descentração - do estágio de heteronomia para o diálogo com o outro. Questões de trabalho também foram temas no bate-papo. Abaixo, uma agente informa ao seu colega sobre uma reunião e a sua possível presença. (17:41:11) Agente 02 responde para Todos Todos: voce esta sabendo da reunião não? (17:41:26) Agente 01 fala para Agente 02 02: eu ainda não (17:42:05) Agente 02 surpreende-se com Todos Todos: a coordenadora não comentou com voce, ela falou comigo 02 eu nãvi a maria hoje! (17:42:42) Agente 01 fala para Agente 02: (17:43:21) Agente 02 surpreende-se com Agente 01 01: Então, eu aho que sera a semana que vem (17:44:03) Agente 01 fala para Agente 02 02: tomara que seja porque assim posso participar
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Temos, aqui, um processo de negociação, por meio do diálogo: se a reunião fosse adiada para outra semana, o agente poderia participar. No próximo exemplo, existe uma preocupação da mesma agente sobre a organização do local de trabalho. (17:45:04) Agente 02 pergunta para Agente 01 01: Precisamos arrumar aqueles armários das pastas cadastradas, porque estamos com pouco espaço, segunda ou terça temos que arruma
A agente ressalta a necessidade do trabalho conjunto, visando resolver a questão de falta de espaço nos armários, que contêm os arquivos da população atendida no centro de saúde. Solicita a participação do outro, tanto na reunião, quanto para organizar os armários. Porém, falar sobre a ação conjunta não quer dizer que agiram em conjunto. Nos dois exemplos, o diálogo diz respeito aos assuntos do trabalho formal, que atua, nesse caso, como elemento regulador. Não há uma discussão de construção de idéias que o transcende e que busque projetos sociais. A ação predominante é a comunicação. Os agentes apresentaram idéias, mas não tomaram decisões. Configurariam relações de cooperação, no pensamento piagetiano, caso ocorresse construção coletiva de uma idéia ou distribuição de tarefas pelo grupo. Conforme interagiam com as ferramentas, novas possibilidades de relacionamento cooperativo apareciam. Vejamos o caso a seguir. Os agentes buscaram, na internet, informações de interesse pessoal e disponibilizaramnas na ferramenta portfólio. Depois, acessaram o portfólio do colega e comentaram. Os temas e os links anexados foram: doenças contagiosas, trabalho infantil e ginástica chinesa. Vamos destacar este último. A agente que buscou informações sobre ginástica chinesa era professora voluntária de Lian Gong. Ela utilizou a ferramenta portfólio como meio de divulgação da ginástica Lian Gong para quem fosse acessar o TelEduc, e tinha o interesse de reproduzir os textos para serem utilizados nas aulas. Abaixo, podemos visualizar como ela disponibilizou as informações no portfólio.
Quadro 2. Uso da ferramenta portfólio.
Título
Data
Compartilhamento
Ginástica Chinesa
21/06/2002 18:05:00
Totalmente compartilhado
Texto Essa ginástica é realmente ótima, se você quiser acessar e conferir o endereço é Endereços da Internet Ginástica Chinesa (www.campinas.sp.gov.br) Ginástica Chinesa (www.lianggong)
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A agente transcende a busca de informações para o trabalho formal. Existiu uma conscientização da utilidade do TelEduc para fomentar os projetos sociais, tanto da agente, quanto da comunidade como um todo, pois comentaram que, se as regiões tivessem laboratórios de informática disponíveis, haveria uma rede de comunicação e de informações sobre os projetos desenvolvidos nos locais. Os agentes também utilizaram o mural para disponibilizar informações de interesse da comunidade. As mensagens postadas eram referentes à campanha contra a dengue, reuniões de trabalhos e atividades sociais. Um dos agentes acessou o TelEduc, utilizando o computador de sua casa e usou a ferramenta mural para apoiar a colega na divulgação das aulas de ginástica. Temos aqui um primeiro exemplo de atividade a distância (Quadro 3). Mas foi só o inicio. Outras atividades a distância ocorreram em outras fases da pesquisa.
Quadro 3. Informações na ferramenta mural.
ginástica
Agente 01
31/08/2002 02:47:54
Anotação olá pessoal quem tiver afim de dar uma relaxada legal é só contratar a Agente 02 para uma aula de LIANG GONG essa ginastica é o máximo, e mais é GRATUITO!!!!!
O anúncio representou um apoio afetivo, que a incentivou a reforçar o convite das aulas de Lian Gong para os usuários do TelEduc e para todos que pudessem acessá-lo. O apoio afetivo, para Piaget (1994), é condição sine qua non para a construção da relação de cooperação. Tabela 4. Informações na ferramenta mural.
Convite: Lian Gong
Agente 02
22/11/2002 13:59:47
Anotação Convido a todos que puderem fazer aulas de lian Gong, ou a divulgação para as pessoas que queiram aprender é toda segunda e quarta à partir das 8:30 no espaço Esperança. Conto com sua presença e colaboração. Desde já agradeço.
Apesar de os agentes terem usado a tecnologia para favorecer as aulas de ginástica, suas ações se configurariam como uma legítima relação de cooperação caso houvesse envolvimento mútuo e tomadas de decisões coletivas, que promovessem novas atitudes na região, ou seja, uma “recontextualização” da realidade, com base em idéias “descontextualizadas” (Valente & Prado, 2002).
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Na terceira fase, ficou mais visível uma tendência à relação de cooperação, pois o uso do TelEduc estava atrelado aos textos captados da internet para uso da comunidade. Até porque os três agentes já possuíam conhecimentos básicos de como manusear o computador. A preocupação não era mais a questão sociomotora do estágio de anomia ou de operações centradas no próprio agente, como no estágio de heteronomia – mas a intenção era como utilizar o computador enquanto recurso social. Esboçou-se com mais veemência o processo de conscientização, formada com a estruturação interna dos agentes com o social, anunciando uma cooperação nascente. Discussão e considerações finais Os agentes, que inicialmente não possuíam as habilidades e competências para o domínio do computador, manusearam as ferramentas para buscar, armazenar, avaliar as informações e comentar as contribuições postadas pelos colegas. Com isto, articularam operações mais complexas no domínio das entidades intangíveis e das ferramentas que permitem a relação de cooperação. Antes de discutir os três estágios, é importante reafirmar que analisamos adultos, para os quais a consciência e a personalidade já estavam formadas e atuavam como modeladoras e reguladoras de suas ações. Todavia, alguns elementos dos estágios piagetianos foram identificados nos relacionamentos entre eles, como apontam os resultados obtidos no processo e apresentados a seguir. No que concerne ao primeiro estágio (anomia), a relação de cooperação ficou comprometida por fatores de ordem motora e psicológica. Embora se comportando aparentemente à vontade diante do computador, os agentes demonstravam-se apreensivos e introspectivos. Eles estavam atrelados à preconcepção ou idéia fantasiosa de que o computador só poderia ser manipulado por uma classe social preparada para tal, e que eles estavam aquém dessa possibilidade. Parece-nos confirmar um estágio fantasioso. Encontramos, nos agentes, o peso da coação exercida pelas condições sociais desfavoráveis, enquanto legado histórico e destrato político. Relembrando Piaget (1994), a coação é o oposto da cooperação. Entre os aspectos cognitivos, os agentes manipulavam o computador de maneira livre, demonstravam assimilação centrada nos objetos concretos, ou seja, o foco das ações apelava ao sensório-motor. A passagem do estágio de anomia para o de heteronomia foi mediada pela ferramenta Perfil, que facilitou a troca de olhares. Nesse caso, buscaram um retrato: um olhar a mais. A heteronomia, enquanto estágio intermediário entre a anomia e a cooperação, se fez necessária para o processo de descentração. Com o retrato na tela do computador, os agentes se encantaram com a própria imagem. Esse prazer individual funcionou como uma ponte para aproximá-los do computador e potencializar outras atividades operacionais superiores. Os agentes conseguiram interpretar sinais, operar entidades intangíveis, perceber a dinamicidade do sistema, que é possível modificá-lo, sobretudo, após a inserção de dados pessoais. Surgiram melhores condições para diálogo e operações abstratas com a ferramenta bate-papo. Os agentes conduziram o diálogo para assuntos de interesse do centro de saúde. Houve troca de idéias, mas não tomada de
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decisões. Enquanto a ferramenta bate-papo era utilizada para trocar idéias, referentes ao trabalho formal, o uso do portfólio e do mural transcendeu os limites do centro de saúde. Com a proposta da ginástica chinesa, a ação não ficou moldada pela obrigação do ofício, mas pela iniciativa própria e criativa da agente, que manipulou as ferramentas do TelEduc e recursos da internet para uma construção de ordem coletiva. Durante o uso das ferramentas de comunicação, os agentes articularam operações mais complexas, como registrar a própria idéia e opinar sobre o comentário dos colegas. A relação entre os agentes foi se estabelecendo dentro do processo de crescimento cognitivo, referente ao domínio do computador e das possibilidades que as ferramentas ofereceram. Os agentes superaram os estágios de anomia e heteronomia conforme dominavam os elementos básicos do computador e as ferramentas do TelEduc. Nesse processo, pôde-se notar que os agentes estabeleceram operações mais complexas e abstratas, a ponto de manipular as ferramentas que permitem a socialização. Ficou evidente que o TelEduc possui ferramentas que podem suportar a relação de cooperação. No entanto, essa relação não surge do nada. Foi necessário criar um ambiente favorável à aprendizagem, centrado no contexto dos agentes, situação que, aliada à mediação consciente dos formadores – chegando a serem cúmplices dos aprendizes –, contribuiu para a formação de uma espiral ascendente de melhoria individual e social. Dessa forma, ficou evidente que a relação de cooperação ocorreu quando os agentes começaram a superar a herança histórica de coação, e despertaram os sentidos de empoderamento,6 ou seja, sentiram-se capazes de interagir com a tecnologia e mudar a própria realidade.
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6 Adaptação da expressão em inglês empowerment, que significa apropriar-se do poder por meios legítimos.
DESENVOLVIMENTO DA RELAÇÃO DE COOPERAÇÃO
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MAIA, I. F. ET AL. Desarrollo de la relación de cooperación mediada por el ordenador en ambiente de educación a distancia. Interface - Comunic., Saúde, Educ. Educ., v.10, n.20, p.427-41, jul/dez 2006. Este artículo contempla parte de los resultados de una investigación-acción desarrollada juntamente con los agentes de salud de los barrios Sao Marcos y Santa Mônica, Campinas/ Sao Paulo. Fue una investigación longitudinal, con duración de un año y medio, que constó de tres fases: Presencial, semipresencial y a distancia. En este artículo tratamos solamente de las actividades ocurridas en la fase presencial, en la cual los agentes comenzaron a aprender a utilizar el ordenador y TelEduc. Optamos por una observación cualitativa, ya que el objetivo principal fue asociar las tres fases de desarrollo piagetianas -anomia, heteronomia y cooperación - con la capacidad de los agentes de dominar las propiedades tangibles e intangibles de la informática. Esta asociación fue posible cuando ellos empezaron a interactuar con los elementos básicos del ordenador y del TelEduc. Después de superar la anomia y de dominar las herramientas qué favorecieran actitudes heterónomas, los agentes manipularon recursos que permitieron el comienzo de una relación de cooperación. PALABRAS CLAVE: conducta cooperativa. educación a distancia. desarrollo de la comunidad. capacitación de usuário de computador. conocimientos en informática.
Recebido em 28/06/05. Aprovado em 18/08/06.
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Intervenção sobre “Figuras” (AZRA, 1999)
O professor e a boa prática av aliativ a no avaliativ aliativa ensino superior na perspectiv a de estudantes perspectiva
Maura Maria Morita Vasconcellos 1 Cláudia Chueire de Oliveira 2 Neusi Aparecida Navas Berbel 3
VASCONCELLOS, M. M. M. ET AL. The university teacher and appropriated evaluation practices in higher education: a student’s perspective. Interface - Comunic., Saúde, Educ. Educ., v.10, n.20, p.443-56, jul/dez 2006.
This article is the result of an investigation done in the preservice teaching education courses at Londrina State University (UEL), which tried to understand evaluation practices of university teachers working in those courses nominated by students as good evaluators. The study included semi-structured interviews with 48 teachers, recorded and transcripted for treatment and qualitative analysis. One of the main aspects was to observe personal aspects which stimulate the evaluation practice in higher education, focusing on the teachers personal experiences, self-evaluation, and the reflective process on their teaching practice. The values and conceptions which embody the evaluation practice were also investigated. The main objective of the research was to extract lessons from the positive practice of the evaluation for university teachers in general. Some of the noteworthy lessons included: the assumption of a comprehensive conception on teaching which surpasses the limits of the classroom itself, the self-evaluation as a continuous process of the evaluators practice, and the predominance of the objectives over the procedures in the evaluation process. KEY WORDS: higher education. university teacher. teaching. evaluation.
Este artigo é resultado de investigação realizada em cursos de licenciatura da Universidade Estadual de Londrina (UEL) visando conhecer práticas avaliativas de professores indicados por alunos como bons avaliadores. Foram realizadas entrevistas semi-estruturadas com 48 desses docentes, gravadas e transcritas para tratamento e análise qualitativa. Uma das vertentes do estudo preocupou-se em desvelar aspectos pessoais que movem a prática avaliativa no ensino superior, enfatizando: as experiências pessoais; a autoavaliação e o processo reflexivo sobre a prática; e valores e concepções que embasam as práticas avaliativas. O objetivo principal da investigação foi extrair lições das práticas positivas de avaliação para professores de ensino superior em geral. Entre as lições extraídas, destacam-se: a assunção de uma concepção de ensino mais ampla que ultrapasse os limites da sala de aula e da aula em si; a auto-avaliação como prática permanente dos avaliadores; e a prevalência dos fins sobre os meios no processo de avaliação. PALAVRAS-CHAVE: educação superior. professor universitário. ensino. avaliação.
1
Docente, Departamento de Educação, Universidade Estadual de Londrina, Paraná. <mmorita@sercomtel.com.br>
2
Docente, Departamento de Educação, Universidade Estadual de Londrina.<claudiachueire@uol.com.br>
3
Docente, Departamento de Educação, Universidade Estadual de Londrina. <berbel@uel.br>
1
Rua Pensilvânia, 172 Londrina, PR Brasil - 86.060-040
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A investigação a que este artigo se refere teve início com um Projeto Integrado de Pesquisa intitulado Avaliação no Ensino Superior: significados e conseqüências, especialmente por intermédio do subprojeto Avaliação da Aprendizagem nos Cursos de Licenciatura da UEL, que buscou conhecer, junto aos alunos desses cursos, práticas avaliativas consideradas como positivas e negativas, vivenciadas por eles no ensino superior. O conteúdo das respostas foi analisado e dele foram extraídos diferentes significados, assim como possíveis conseqüências para a vida dos alunos. Os resultados foram ricos e provocadores de reflexão, mas naquele momento, intencionalmente, apenas os alunos foram ouvidos. A produção resultante encontra-se publicada em Berbel et al. (2001). Foram obtidos 428 questionários respondidos, de um total de 738 alunos de terceiras e quartas séries dos 14 cursos de licenciaturas da UEL. O instrumento, constituído por duas perguntas abertas, solicitava aos alunos que relatassem as experiências avaliativas que os tivessem marcado positiva ou negativamente. Posteriormente, destacamos as experiências positivas que foram realçadas por esses mesmos alunos. Foram várias as práticas avaliativas consideradas por eles como apropriadas, positivas, estimuladoras de sua aprendizagem e de seu desenvolvimento. Para algumas delas, os alunos indicaram também o nome dos professores responsáveis. Ao todo, 48 docentes foram indicados pelos alunos das licenciaturas como aqueles que realizaram práticas avaliativas positivas. Esse foi o ponto de partida desta investigação. O trabalho seguiu os passos da Metodologia da Problematização (Berbel, 1995, 1996), que se utiliza do Esquema do Arco de Maguerez (apud Diaz Bordenave & Pereira, 1982). Buscamos conhecer mais de perto as práticas avaliativas que possivelmente estariam rompendo com padrões tradicionais de atuação docente e, com isso, promovendo melhores condições de aprendizagem para os alunos, de elaboração do conhecimento e conseqüente desenvolvimento. Consultamos os 48 professores indicados pelos alunos nas 14 licenciaturas da UEL e que se dispuseram a colaborar com informações. Numa abordagem predominantemente qualitativa, os professores (41 licenciados e sete bacharéis) foram ouvidos por meio de entrevistas semi-estruturadas, gravadas e transcritas para tratamento e análise do conteúdo dos dados, com base em Minayo (1994). Entre outras perguntas que permitiam desenhar o perfil dos entrevistados, os docentes responderam três questões fundamentais: Seus alunos destacaram sua atuação positiva com a avaliação (as indicações foram explicitadas a cada docente). Poderia descrever um pouco mais esta forma de avaliar? O que faz? Por que faz assim? Como avalia sua própria prática avaliativa? Como são os resultados? Considera que alguma experiência relativa à avaliação que vivenciou como aluno influencia sua prática hoje? Optamos por descrever, analisar e aprender com as experiências positivas desses professores. A análise das informações obtidas junto aos professores seguiu uma orientação aproximada do recomendado para a análise de conteúdo (Minayo, 1994), extraindo das respostas às entrevistas elementos convergentes para alguns focos que tomamos para reflexão. Nos aspectos específicos destacados neste trabalho, nosso referencial teórico,
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O PROFESSOR E A BOA PRÁTICA AVALIATIVA...
com base na dialética, apóia-se na concepção de educação e ensino explicitada por Gimeno Sacristán (1999). Mesmo sem a pretensão de responder todos os nossos questionamentos, tivemos, como professoras de Didática, algumas preocupações que nos mobilizaram para o estudo, entre elas a de que os professores que atuam nas licenciaturas, em geral, tiveram formação em licenciatura, tiveram formação para serem professores e para formar novos professores. Ainda assim, como explicar que alguns atuem positivamente enquanto outros têm atuação negativa, como revelaram os alunos das diferentes licenciaturas na pesquisa anterior? Se alguns professores atuam positivamente com seus alunos em relação à avaliação, o que seria necessário para que outros docentes também o fizessem? Seria uma questão de conhecimento? Dependeria das crenças e valores de cada um? Seria uma questão de continuidade de experiências vividas no tempo em que eram alunos? Ou uma conseqüência da disposição para a inovação? Já há algum tempo, a literatura sobre avaliação vem apontando na direção de transformação das práticas de avaliação, deixando para trás a avaliação tradicional rumo a paradigmas emergentes que enfatizam a avaliação, sobretudo, em seus aspectos diagnóstico e formativo. É preciso lembrar que as determinantes maiores de qualquer problema ligado à avaliação educacional têm suas raízes na própria história da educação de nosso país. Questões de avaliação sempre serão problemas de ensino e fazem parte de todo um sistema tradicional que está em crise e tem sido questionado cada vez mais. Nesse contexto, descobrir, explorar e extrair lições de práticas positivas de avaliação significa atuar em busca de superação de situações problemáticas ligadas ao ensino em geral, rumo a concepções inovadoras de ensino e avaliação que valorizem a formação, o crescimento e o amadurecimento dos alunos. O ensino, na maioria das instituições e na nossa, caracteriza-se como uma prática limitada ao tempo/espaço da sala de aula. A instituição prevê em seu regulamento acadêmico um sistema de avaliação vinculado a notas e procedimentos inerentes ao processo de aprovação/reprovação. Essa forma de conceber o ensino e a avaliação torna possível a manutenção de um status quo que justifica práticas de avaliação pontuais e supervaloriza a nota. Neste quadro, torna-se, então, relevante procurar saber como os professores que praticam avaliações consideradas positivas pelos alunos se movimentam dentro da situação dada, utilizando sua autonomia e liberdade pedagógica para atuar de forma diferenciada dos antigos modelos estabelecidos. Na busca de esclarecimentos a respeito das práticas desses professores, impôs-se a necessidade de considerar, primeiramente, aspectos pessoais envolvidos na questão, pois o que acontece em educação tem muito a ver com ações de pessoas concretas em que “só os indivíduos agem, e não as instituições sociais e outras estruturas coletivas semelhantes” (Giner apud Gimeno Sacristán, 1999, p.30). Em educação, não podemos simplesmente analisar condutas à margem dos atores que as praticam, visto que toda ação educativa é ação de um sujeito, com biografia e história pessoal e coletiva (Gimeno Sacristán, 1999). Por isso, conhecer características pessoais e de formação dos professores pesquisados torna-se indispensável. Desvelar os valores que fundamentam as opções, as
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escolhas desses docentes, poderá levar-nos a compreender as razões que movem sua ação educativa. O que valorizam? Quais suas concepções? Quais seus princípios? O que revelam suas ações? Quais suas preocupações em relação à formação do aluno? Quando refletimos sobre as razões pelas quais uma determinada prática avaliativa, em vez de outra, se estabelece, não podemos deixar de pensar que existem muitos fatores que interferem nas decisões tomadas pelos docentes em relação à sua atuação. Entre esses fatores estão as políticas educacionais que interferem na organização das instituições, nas concepções, condutas e práticas dos docentes de ensino superior. As transformações socioeconômicas que vêm ocorrendo no mundo desde o século passado, especialmente os fenômenos de globalização da economia, trouxeram para o mundo da educação a influência do modelo taylorista do mundo do trabalho. A idéia de que a escola deva servir à comunidade como uma empresa vem-se cristalizando, especialmente na América Latina, em razão de políticas neoliberais (Enguita, 1994). O sistema educacional sofre uma intensa reestruturação em suas políticas, cujas conseqüências têm profundo impacto para a universidade e, conseqüentemente, para todo seu funcionamento e pessoal. Dois efeitos perversos dessa dinâmica são a massificação e a privatização. Nesse universo, a docência sofre a influência de mudanças que colaboram para instaurar ou intensificar uma crise de indefinição sobre fins da educação, valores e papéis a assumir (Trindade, 2001). A própria avaliação institucional, ao priorizar aspectos da docência mais voltados para pesquisa e publicações, já influencia boa parte de docentes, que não valorizam ou não dão a devida importância às questões relativas ao ensino e às questões pedagógicas. Entender o que acontece no mundo educativo pressupõe compreender as relações entre o individual e o social ou institucional, porque a prática educativa é ação de pessoas, entre pessoas e sobre pessoas. Sem negar o poder das estruturas, temos de reconhecer o valor das ações e o papel dos sujeitos, para pensarmos na educação e sua possível transformação (Gimeno Sacristán, 1999). Na tentativa de buscar os elementos que impulsionam as decisões e práticas avaliativas no ensino superior, optamos por considerar os aspectos que envolvem a pessoa do professor como agente pedagógico. Neste texto, destacamos aspectos trazidos à tona pela análise dos depoimentos dos docentes, e que representam temáticas para reflexões a respeito de práticas avaliativas: questões pessoais, intenções, valores e concepções de docentes avaliadores, no ensino superior. Nossos dados demonstram que as ações e decisões são baseadas, entre outros, em três aspectos: experiências pessoais, reflexões geradas pelo processo de auto-avaliação e valores, e as concepções que os docentes possuem, como desenvolvemos a seguir. Experiências pessoais Tudo o que uma pessoa faz, sem dúvida, expressa o que ela é. O professor, quando age, expressa sua condição humana, por mais que alguém possa querer conceber o ofício como algo predominantemente técnico. É claro que essa ação
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se dá em interação com outros seres humanos que se influenciam mutuamente, sendo a ação, na realidade, a expressão de um sujeito dotado de uma cultura subjetiva. No entanto, o social não anula as singularidades e não é possível considerar a ação educativa entre pessoas sem contemplar os sujeitos individualmente. Devemos, portanto, levar em consideração o professor como pessoa e como agente pedagógico. Cada docente age de acordo com suas próprias motivações e, desse universo, fazem parte sua história de vida, suas experiências e influências recebidas (Gimeno Sacristán, 1999). Verificamos que a repetição dos modelos é uma prática comum. As experiências positivas servem como modelo de ação e de inspiração. Nesse aspecto, constatamos que o ensino de conteúdos sobre avaliação, praticado por docentes da área pedagógica, é uma forma de possibilitar mudanças de postura a respeito de como deve ser a avaliação, conforme revela o depoimento abaixo: Então uma professora da pedagogia (não lembro o nome da disciplina que ela dava), muito competente, muito mesmo, e ela me deu muito ensinamento, de como deveria ser a avaliação... (L 2)
Outros depoimentos revelam a possibilidade de mudança na forma de compreender a avaliação de docentes pela prática de formas diferenciadas de avaliação. Ela foi um modelo positivo para mim, diferente, fez eu ter uma visão diferente do que é chegar no final do ano, tirar um pouco da significância daquela nota, daquele número. (E 1) Eu tive professoras que conversaram muito, que dialogaram muito, foram mais devagar com o conteúdo, sentaram e realmente se debruçaram sobre o objeto de análise, e respeitaram que teria que ser devagar mesmo. Acho que foi esse o elemento que eu trouxe. Essa possibilidade de realmente se discutir e refletir, de ler duas páginas hoje, amanhã pega mais duas, vai questionando com os alunos. (F 1)
Já o depoimento abaixo enfatiza a indissociabilidade entre as formas de avaliar e as formas de ensinar: No colegial, eu tive um professor de botânica que foi marcante na minha vida, talvez essa tendência pela disciplina, não é? Mas tive ótimos professores também na graduação, na fase da metodologia e prática de ensino. Talvez isso tenha despertado, em mim, o gosto, não só a forma de avaliar, mas a forma de conduzir a disciplina como um todo e culminando com a avaliação, porque você tem que fazer uma amarra aí. (M 1)
Entre os professores marcantes, também estavam aqueles que eram exigentes, mas que, acima de tudo, ensinaram: ...havia professores que eram tão inacessíveis que eu não aprendi
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nada, por outro lado, eu tive professores que eram tão competentes e exigentes que me corrigiam, me avaliavam, eu refazia os trabalhos, não foram muitos os professores, mas aos poucos me ensinaram muito e eu tento passar essa experiência. Fora os autores que eu li que falam o que deve ser a avaliação. (L 3)
Por outro lado, as experiências negativas também servem como inspiração para uma boa prática, pois, mesmo que as experiências tenham sido negativas na época, hoje, servem como exemplo do que não se deve fazer com os alunos, e assim transformam a ação do docente em práticas positivas de avaliação. Entre as experiências negativas que influenciaram a forma de ver a avaliação, destaca-se o repúdio ao uso da avaliação como punição, a intenção de prejudicar o aluno e a incoerência entre o nível do curso e o nível das avaliações. A questão da subjetividade da avaliação também foi mencionada. Outro questionamento é sobre a nota. O que ela significa? A experiência docente que se adquire com o tempo tem um papel preponderante na formação e evolução de atitudes docentes. O aprendizado gerado pela experiência é citado por vários docentes como muito importante em sua atuação. Uma coisa fundamental para minha formação é a experiência docente, a própria experiência docente é uma formação. (G 2) É uma somatória de coisas, você vai crescendo como aluna, vai crescendo como professora e sai mudada a sua prática. (F 5) E eu acho que quando você começa a tua docência, você vai sendo modelado um pouco pelas contingências a que você vai sendo exposto e aí você vai perceber o retorno do aluno, que o aluno sente dificuldade, que ele não está conseguindo ver relação disso com aquilo que ele está fazendo lá na frente, então aí você vai amadurecendo. (B 1)
Temos de considerar também que toda ação pressupõe uma intencionalidade que exerce sobre a própria ação um papel decisivo. A intencionalidade, embora por si só não explique a ação, é o que lhe dá sentido, significado, valor. Como explica Gimeno Sacristán (1999, p.33): Esclarecer o sentido da ação humana, e da educativa em particular, é uma questão complexa. Ao tentar elucidar o que nos move, aparecem conectados conceitos de difícil delimitação que penetram em um mundo pouco sistematizado e que são utilizados, de maneiras distintas, em diferentes disciplinas: propósitos, intenções, interesses, motivos, fins, necessidades, paixões que gravitam sobre o agente ou sujeito que desenvolve ações.
Nos relatos a seguir, esses aspectos transparecem, especialmente quando se gosta do que se faz.
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Mas eu gosto do que faço, gosto de preparar a avaliação. É cansativo corrigir uma prova escrita? É. Não vou fazer demagogia, mas eu gosto também até de detectar problemas com clareza, ou obviamente de ver quando um aluno atinge os objetivos plenamente, o que acontece também. (F 2) Um aluno certa vez me disse que eu dou aula com os olhos e eu disse a ele que eu também preciso dos olhos deles, os olhos arregalados, brilhantes, isso pra mim é uma referência. Quando não tem brilho nos olhos, não me motiva, e eu, claro, quero dar uma aula que brilha. (N 2)
Ainda segundo Gimeno Sacristán (1999), a intencionalidade, os objetivos, os significados das ações projetam uma dimensão do profissionalismo docente pouco transitada pelos pesquisadores e pouco considerada nos programas de formação. O mundo em crise em que vivemos exige recuperar a discussão das filosofias da educação que esclareçam as diretrizes do desenvolvimento pessoal, social e da cultura que propõem, além de falar de atribuições ou de profissionalismo cognitivo e de estímulos externos da docência. (Gimeno Sacristán, 1999, p.41-2)
Para esse autor (1999, p.32), “a qualidade em educação é indissociável da qualidade humana dos docentes”. Somente a vontade, a intencionalidade pode projetar o futuro, o possível, para além da realidade que vivemos. Isso, a nosso ver, implica a assunção de um projeto educativo que não nos exime da responsabilidade diante da questão da formação docente. A auto-avaliação e o processo reflexivo sobre a prática No contexto acadêmico, a questão do desempenho docente é posta em relevância quando os professores são avaliados, seja pela instituição, seja pelos discentes, seja pelos órgãos de apoio da pós-graduação. De uma forma geral, segundo Lipman (1995), profissionais acadêmicos são estimulados a pensar criticamente em algumas ocasiões. Destas, algumas referem-se especialmente a situações de julgamento de desempenho nosso e de nossos colegas: . Quando o trabalho de um colega é lido ou revisto. . Quando se trabalha em um comitê que deve julgar a proposta de um colega. . Quando se registra uma reclamação e devem ser tomadas algumas atitudes. . Quando os alunos questionam os critérios pelos quais os cursos são avaliados, as matérias que são ensinadas ou a pedagogia utilizada. . Quando se compara a atual conduta profissional com aquilo que se pensa que esta deveria ser. . Quando se detectam tendências ou preconceitos em si mesmo e nos outros.
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. Quando se buscam alternativas para práticas estabelecidas, porém insatisfatórias. Nos últimos anos, os parâmetros e as concepções sobre formação do docente do ensino superior, em virtude do contexto da realidade educacional do país, têm sofrido algumas alterações. Cada vez mais, exige-se deste profissional que ele seja: um cidadão competente, inserido na sociedade e no mercado de trabalho; com maior nível de escolarização; capaz de utilizar tecnologias de informação na docência; capaz de trabalhar em redes acadêmicas nacionais e internacionais; um sujeito que domine o conhecimento contemporâneo, manejando-o na resolução de problemas; capaz de integrar sua matéria de ensino ao contexto curricular e histórico-social; capaz de utilizar formas de ensinar variadas (Cunha, 1993). Nem sempre o docente tem em vista todas essas competências, mas, de modo geral, observamos que a auto-avaliação gera realmente um processo de reflexão que, sem dúvida, é capaz de motivar, alterar ou aperfeiçoar práticas. Alguns depoimentos revelam a importância dessa reflexão. Por exemplo: Eu estou mais satisfeita do que estava anos anteriores, mas ainda não me dou por satisfeita completamente. Acho que ainda tenho que buscar uma avaliação mais interativa. (F 3) Eu procurei me ver muito naqueles momentos. Tudo isso me ajudou na formação. (M 3)
Às vezes, a insatisfação com o próprio desempenho e a preocupação com a qualidade do próprio trabalho são desencadeadores de uma reflexão necessária: Este ano não estou gostando muito das minhas aulas, elas estão muito repetitivas porque eu assumi a chefia do departamento e são muitos os problemas e os mais variados. Tudo isso, fora o tempo para se estudar e elaborar o que pretendo trabalhar. Não estou tendo o tempo que eu gostaria para dedicar-me à sala de aula. Depois desta gestão, vou ficar, por muito tempo, longe disso. (L 1) Eu já errei muito, já fui muito chata, como profissional, eu sempre fui muito dedicada, mas eu gosto do que eu faço, dessa troca de experiências. (L 3)
A constatação de que a auto-avaliação, muitas vezes desencadeada pela avaliação que os alunos fazem da disciplina ou da atuação do docente, é fundamental para que ocorram mudanças e tentativas de aperfeiçoamento das práticas avaliativas. Podemos confirmar isso no seguinte depoimento: Olha, sinceramente, estou sempre mudando, porque antes de mais nada, a avaliação é para ver a sua atuação também, né? Não só do aluno, acho que mais para ver a nossa atuação, então estou sempre mudando, como esse ano... (G 1)
O processo de auto-avaliação auxilia também nas reflexões que o docente possa
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desenvolver em relação ao seu conceito de ensino, de aprendizagem, ao seu comprometimento com a educação e com o seu papel de educador, como mostram os dois depoimentos abaixo: Fundamento-me na concepção que eu tenho do que é ensino, do que é desenvolvimento, do que é aprendizagem, e eu procuro manter uma coerência entre essas minhas concepções do referencial teórico que sustenta essas minhas concepções e a forma de avaliação que eu adoto. Essa prática reflexiva, a questão do feedback, são dois momentos de aprendizagem, em que eu preciso investir. (C 1) Assim, a minha tentativa é de despertar motivação, coloco muito à vontade: ó gente se não quer ouvir, se é questão de presença, então a presença está dada. Minha preocupação é de criar um grupo de trabalho mais solidário pra participar dos projetos de extensão que procure transformar essa sociedade individualista, competitiva. Eu não sou professora, eu sou educadora! (B 3)
Pelo que pudemos perceber, a auto-avaliação é um exercício que possibilita ao professor colocar-se na trilha da reflexão sobre sua prática, revelando motivações e intenções. Pode ser considerada, também, um grande recurso na busca da conscientização sobre a importância da avaliação e das questões pedagógicas no ensino superior.
Valores e concepções que embasam as práticas avaliativas A tarefa de avaliar, sendo um julgamento de valor, envolve tanto aspectos objetivos quanto subjetivos. O professor, em sua função, tem de tomar decisões e empreender ações que envolvem não somente sua competência técnica, mas valores e opções de vida que afetam outras pessoas (Vasconcellos, 2002). Toda a história da educação, a realidade educacional atual e a organização e estrutura das instituições influenciam, é claro, nas mentalidades e nas concepções de muitos dos sujeitos envolvidos no processo educacional: os professores e alunos. Não raro essas concepções estão ligadas a um modelo de ensino e formação tradicionais, no qual o papel do professor se resume a transmitir informações, e o do aluno, a receber o máximo dessas informações passivamente. Isso justifica o alto valor dado ao acúmulo de conhecimentos específicos numa área e à transmissão de grande quantidade de conteúdo no processo de ensino. Quando a idéia não é essa, exatamente, e se pretendem inovações, o conceito de inovação está vinculado à utilização de novas tecnologias e o conceito de professor competente pode estar vinculado a uma melhor performance no manejo dessas tecnologias. Treinamento em novas tecnologias é a palavra de ordem nesses casos (Vasconcellos, 2005). Ocorre que o ensino não é uma ação mecanizada. É guiado por motivos que não são indiferentes a valores, porque cada ação envolve uma escolha entre alternativas e se desenvolve por meio de relações entre pessoas, dirigindo suas
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vidas e exercendo posições de poder, e porque muitas vezes são tomadas decisões que têm a ver com as relações de igualdade. O currículo é uma seleção cultural valorizada e é decidido entre outras possibilidades. Conceber a prática ou as ações de ensino como um assunto moral envolve, pois, não só dar esse caráter aos objetivos do currículo e aos motivos pessoais, mas às atividades, ao como fazer, às interações entre professores e estudantes, aos métodos à avaliação, porque cada ação tem significado e é uma possibilidade entre outras que deveria ser calculada. Em síntese, pode-se dizer que se trata de uma caracterização epistemológica do pensar sobre educação como algo aberto em sua concepção, quanto à possibilidade de que tenha diversos significados e diferentes desenvolvimentos, o que obriga a propor-se, sempre, a pergunta nobre: o quão é aceitável cada ação, antes de analisar sua eficácia, quer se trate da ação com um aluno, da escolha de um método, de uma prática de avaliação, de uma política educativa ou de uma reivindicação profissional dos professores. (Gimeno Sacristán, 1999, p.45)
Entre as concepções e os valores que encontramos, está o reconhecimento da importância da relação humana com os alunos e a importância da forma de relacionamento que se estabelece entre professores e alunos, como se pode confirmar nos depoimentos que seguem: Aluno também gosta de carinho, aluno não gosta de professor malhumorado, quem gosta? Aluno não gosta de professor que responde muito bruto, eles não gostam de professor que responde só sim e não, eles gostam de professor que comunica, aluno gosta de professor que olha no olho dele. Eu tenho uma prática que é um detalhe muito meu... daqui a uns 20 ou 30 minutos eu vou dar aula numa turma do bacharelado, são 40 alunos em sala de aula e, durante as duas horas que fico com eles, com certeza, durante dois momentos da aula, eu olhei no olho deles com certeza (E 2). Eu leio muito sobre a corporeidade do professor em sala de aula, professor não pode ficar sentado, ficar parado, ficar apático e isso tudo eu já sabia desde quando eu tinha 16 ou 17 anos. A molecadinha adora você do ladinho deles, adora você pegando na mão, o adolescente adora encontrar você na cantina e você dar um abraço, um aperto de mão, um beijo (E 2).
Entendemos que a manifestação corporal do professor em relação a seus alunos não é um ato isolado de paternalismo ou de sedução para sua aula. Acreditamos que se trata de um exemplo do que Gimeno Sacristán (1999) chama de moral do pensar a educação em suas ações cujos significados têm possibilidades que devem ser calculadas. Assim, a aproximação corporal explicitada pelo professor reflete a importância atribuída à construção de interações com os alunos e, conseqüentemente, ao favorecimento de uma boa relação didática.
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Outros elementos demonstram a busca de significados em relação ao conhecimento (Gimeno Sacristán, 1999), tais como: A valorização de uma postura humilde e não presunçosa em relação ao conhecimento: É interessante uma coisa, meio socrática, quanto mais a gente estuda mais descobre o quanto a gente é ignorante. Assim, a gente vai tomando consciência do grau de ignorância que a gente tem, é muito maior do que a gente imaginava. (G 2)
A valorização do desenvolvimento de uma postura crítica dos alunos: Estou muito mais preocupado com a consciência crítica do aluno do que se ele vai conhecer o que é uma metodologia da problematização, se ele vai saber exatamente como aplicar as regras do positivismo, da dialética, enfim, se ele conhece estes pressupostos, mas sim se ele é capaz de sentir que ele é docente, que ele é professor e que ele tem uma responsabilidade social e política muito grande. (A 1)
E a importância da qualidade do ensino, e não da quantidade de conteúdos: É isso que tem sentido, e é como eu penso uma escola, sobretudo, de terceiro grau, os alunos não podem ficar só recebendo informações, sem colocar em prática o seu pensamento, o exercício de um pensamento, de uma idéia, de uma opinião, de uma crítica. Se não, nós não estamos avançando em nada. (F 4)
A postura de respeito pela pessoa do aluno e a preocupação com a formação para a cidadania está expressa nos depoimentos a seguir: Eles têm uma liberdade para falar. Eu busco durante o seminário não interromper o aluno, normalmente eu espero que ele acabe de falar sobre aquele texto, aquele assunto, para fazer alguns comentários. Evito fazer correções, acabo eventualmente corrigindo quando é uma informação errada, que às vezes há algumas situações assim. (F 2) Então a minha avaliação é uma avaliação completa. Eu avalio tudo desde a hora que ele chega na sala de aula até a vida dele, às vezes o problema, o porquê ele não está acompanhando as atividades. Então a minha avaliação está no homem, a minha preocupação está em formar o homem, não só o profissional, porque antes de tudo ele deve ser homem, cidadão. (J 2)
A reflexão sobre quão é aceitável cada ação, como destacou Gimeno Sacristán (1999), está revelada na consciência do autoritarismo implícito em muitas práticas de avaliação, e na reflexão sobre o comportamento inadequado, tanto do professor quanto do aluno:
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Na minha concepção, a avaliação é um instrumento de poder, tanto ele pode ser positivo, como também negativo. O professor tem que trabalhar muito bem esta questão, caso contrário o professor pode até “abortar” a carreira de um aluno. (L 5) Por exemplo, aquele professor que dá uma prova para o aluno fazer em sala, uma prova relativamente objetiva, não de marcar X ou de preencher lacuna, mas uma prova de informação, e um professor que sai de sala, vai passear, fica vinte minutos lá fora, enquanto isso a turma está discutindo: ah, onde está isso no texto, dá aí para eu copiar! Eu não posso considerar isso uma prática positiva, não considero de jeito nenhum. (F 2)
Para nosso estudo, foram relevantes os depoimentos que revelaram formas positivas de compreender a avaliação. A avaliação é vista, nesses casos, como uma situação que facilita o crescimento do aluno, contribui para o processo de aprendizagem e permite o diálogo e interação pessoal entre professores e alunos. Uma prova dissertativa com consulta, por exemplo, proporciona ao aluno um momento de reflexão ao permitir que adote a consulta ao material. Não interessa, como aponta um docente, “se eles decoraram as definições, mas sim como eles se utilizam do referencial teórico para ler a realidade” (C 1). Os depoimentos que apresentamos revelam que, além de todas as influências externas, provenientes das políticas educacionais que orientam o sistema educacional como um todo e, conseqüentemente, exercem poder sobre as instituições de ensino, na motivação das práticas avaliativas atuam outros fatores ligados mais diretamente aos agentes da ação. O professor, como pessoa e como agente pedagógico, atua também por motivos individuais e de acordo com sua experiência pregressa. Sua história como aluno, sua capacitação na pós-graduação e sua experiência no cotidiano da sala de aula são fortes componentes na fundamentação de sua forma de agir em relação ao ensino e às práticas de avaliação. Suas ações, seus dizeres, suas posturas e atitudes são reveladoras de concepções e de valores que se refletem na intencionalidade e nas opções e decisões que direcionam suas práticas no complexo campo da docência, no ensino superior. Concluindo Retomamos nosso objetivo inicial da investigação realizada: extrair lições das práticas de avaliação consideradas positivas dos professores indicados pelos alunos. Neste texto, destacamos lições mais diretamente ligadas a este foco de análise, que diz respeito a questões pessoais, intenções, valores e concepções de docentes avaliadores, no ensino superior. As observações a seguir podem ser consideradas lições, na busca permanente de uma forma positiva de atuar na complexa tarefa de avaliar, no ensino superior. A assunção de uma concepção de ensino mais ampla que ultrapassa os limites da sala de aula e da aula em si. O compromisso que o professor tem com seus alunos vai além dos limites impostos pela burocracia institucional e deixa claro que o vínculo que o professor cria com seus alunos extrapola suas
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“obrigações” tradicionalmente estabelecidas (dar aula no horário estabelecido, dar notas etc.). Temos claro que a assunção de uma concepção mais ampla de ensino, como a que descrevemos acima, depende justamente dos fatores aqui enfatizados: a experiência pessoal e profissional, as oportunidades de realizar reflexões pessoais sobre estas questões, e os valores e concepções que os docentes possuem. Esta questão insere-se no bojo de nossas preocupações com o tema da formação do docente de ensino superior que necessita urgentemente resgatar dimensões que vão além do conhecimento científico, da técnica ou da política, e se inscrevem no plano da ética. (Vasconcellos, 2005). A auto-avaliação como prática permanente dos avaliadores. A auto-avaliação é um importante recurso de reflexão na busca da consciência sobre o sentido das práticas avaliativas e das questões pedagógicas, no ensino superior. Auxilia nas reflexões que o docente possa desenvolver em relação ao seu conceito de ensino, aprendizagem e ao seu comprometimento como educador, além de possibilitar novos motivos, alterações e aperfeiçoamento de suas práticas. A prevalência dos fins sobre os meios. As formas de avaliar podem ser muitas, e variadas as suas combinações, mas o que importa mesmo é a intenção com que são realizadas e que elas possam resultar em aprendizado efetivo dos alunos, em seus processos de formação. Gostaríamos de salientar que as lições extraídas da pesquisa – com base nos aspectos aqui destacados: experiências pessoais, reflexões geradas pelo processo de auto-avaliação e valores e concepções que os docentes possuem – formam um conjunto de reflexões a respeito de elementos importantes a serem considerados e vivenciados na formação docente e seria desejável que estivessem contemplados nos projetos pedagógicos dos cursos, para que pudessem ser intencionalmente trabalhados.
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VASCONCELLOS, M. M. M. ET AL. El profesor y la práctica evaluative en la enseñanza superior. Interface - Comunic., Saúde, Educ. Educ., v.10, n.20, p.443-56, jul/dez 2006. Este artículo es resultado de una investigación realizada en cursos de formación de profesores de la UEL, para conocer las prácticas evaluativas de profesores señalados por los alumnos como buenos evaluadores, a través de entrevistas con 48 profesores de los cursos investigados. Los sujetos fueron escuchados em entrevistas semi-estructuradas, que fueron grabadas y transcriptas para tratamiento y análisis cualitativo. Una de las vertientes del estudio se preocupó en analizar aspectos personales que mueven las prácticas evaluadoras en la enseñanza superior enfatizando: las experiencias personales; la auto-evaluación y el proceso reflexivo sobre la práctica; y valores y concepciones que basan las prácticas evaluadoras. El objetivo principal de la investigación fue observar los puntos positivos de las prácticas evaluadoras para profesores de enseñanza superior en general. Entre los resultados del estudio se destacan: la presencia de una concepción de enseñanza más amplia que ultrapasa los límites de la sala de clase; la auto-evaluación como práctica permanente de los evaluadores y el predominio de los fines sobre los medios en el proceso de evaluación. PALABRAS CLAVE: enseñanza superior. profesores. enseñanza. evaluatión.
Recebido em 21/07/05. Aprovado em 20/08/06.
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O ensino da S aúde Coletiv a no curso médico Saúde Coletiva da Unicamp: experiências inovadoras junto a unidades básicas de saúde Sérgio Resende Carvalho1 Rosana Aparecida Garcia 2 Daniel Carvalho Rocha 3
CARVALHO, S. R. ET AL. Teaching Collective Health at the medical school of the Unicamp: innovative experiences at the basic health units. Interface - Comunic., Saúde, Educ. Educ., v.10, n.20, p.457-72, jul/dez 2006.
This article describes and analyzes teaching-learning scenarios faced by first year undergraduate medical students from the Unicamp School of Medicine. Research regarding Collective Health teaching experiences at a Health Center in the city of Campinas, São Paulo State, between 2002 to 2004 was conducted to use as basis for their study. The contact with health services started from the very early stages of the course, allowed students to bond with health workers in partnerships and concrete life experiences. The problem-oriented approach helped establish a commitment between health service workers and the academic researchers. It also allowed the students to be able to respond to the demands of the health service and helped students develop a Academic Network made up of university professors, health service professionals and managers; a network that had invaluable worth in teaching, strengthening management skills of all professionals involved. KEY WORDS: medical education. teaching methodology. collective health. Este artigo descreve e analisa cenários de ensino/aprendizagem vivenciados por alunos do primeiro ano do curso médico da Unicamp. Realizou-se, para tanto, investigação sobre o ensino em Saúde Coletiva em uma unidade básica de saúde (UBS) de Campinas-SP, entre 2002 e 2004. A partir de vivências concretas e parcerias com os trabalhadores, os alunos tiveram a oportunidade de vincular-se, desde o início da graduação, aos serviços de saúde. A abordagem problematizadora utilizada contribuiu para a parceria entre a academia e o serviço de saúde. Ela possibilitou aos alunos atenderem às demandas da UBS e, por outro lado, induziu a criação de uma “rede docente” - constituída pelo gestor, pelos profissionais e docentes da Unicamp -, que deu inestimável contribuição à formação discente, fortalecendo, no processo, a capacidade de gestão dos serviços por parte dos profissionais envolvidos. PALAVRAS-CHAVE: educação médica.. ensino-aprendizagem. saúde coletiva
1 Docente, Departamento de Medicina Preventiva e Social, Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP. <srcarvalho@gmail.com> 2
Coordenadora, Centro de Saúde DIC III, Secretaria Municipal de Saúde de Campinas. <roapgarcia@terra.com.br>
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Aluno de graduação em Medicina, Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas. <carvalhorocha@gmail.com>
1 Rua Macedo Soares 1110, Cidade Universitária II - Campinas,SP Brasil, 13.083-130
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Introdução Nos últimos anos tem ocorrido um processo de mudança no ensino de graduação das profissões de saúde no Brasil, inspirado, entre outros, na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional - LDB (Brasil, 2001a). Buscando qualificar a formação discente e contribuir para a melhoria da assistência prestada aos usuários do Sistema Único de Saúde - SUS, tem sido elaborada uma nova legislação (Brasil, 2001b) e implementados programas específicos (Brasil, 2002, 2004, 2005a, 2005b) que buscam responder às necessidades do setor saúde. A resolução que institui as diretrizes curriculares nacionais do curso de graduação em medicina define, por exemplo, princípios, fundamentos, condições e procedimentos para a formação dos médicos. Preconiza, entre outros, que cada profissional deva “assegurar que sua prática seja realizada de forma integrada e contínua com as demais instâncias do sistema de saúde”, e que seja capaz de pensar criticamente, analisar os problemas da sociedade e procurar soluções para os mesmos. Recomenda, no artigo 3º, que o curso de graduação em Medicina tenha, como egresso, um médico com formação generalista, humanista, crítica e reflexiva, capacitado a atuar, pautado em princípios éticos, no processo de saúde-doença em seus diferentes níveis de atenção, com ações de promoção, prevenção, recuperação e reabilitação à saúde, na perspectiva da integralidade da assistência, com senso de responsabilidade social e compromisso com a cidadania, como promotor da saúde integral do ser humano (Brasil, 2001b). O AprenderSUS recomenda, por sua vez, que a formação dos profissionais de saúde deva englobar a “produção de subjetividade, produção de habilidades técnicas e de pensamento e o adequado conhecimento do SUS”, visando à mudança das práticas profissionais e da organização do trabalho, que responda às necessidades dos usuários (Brasil, 2004). Ao valorizar a rede básica como componente estratégico na prestação dos serviços, o Programa Nacional de Reorientação da Formação Profissional em Saúde (Pró-Saúde) defende que a formação em saúde tenha como princípio norteador o preceito constitucional que afirma a “saúde como um direito e um dever do Estado” e, como diretriz, garantir uma atenção à saúde universal, integral e de qualidade a todos os brasileiros (Brasil, 2005a, 2005b). Partindo-se desses pressupostos, é sugerido o desenvolvimento, por parte das Instituições de Educação Superior (IES), de programas de ensino que viabilizem a interação ativa do aluno com a população e com os profissionais de saúde desde o início do processo de formação, com o objetivo de proporcionar ao estudante a oportunidade de trabalhar sobre problemas reais, “assumindo responsabilidades crescentes como agente prestador de cuidados compatíveis com seu grau de autonomia” (Brasil, 2005b). Espera-se, com isto, o ingresso, no mercado de trabalho, de profissionais melhor qualificados e com atuação voltada a uma assistência universal e integral à população. Estas premissas colocam em evidência a importância do ensino, nos cursos de graduação em saúde, de conteúdos vinculados ao modelo teórico-conceitual da saúde coletiva, um campo de saberes e de práticas que toma a saúde como um fenômeno social e de relevância pública, afirmando-a como um direito. Ao tomar como objeto de estudo as condições de vida da população, a formulação
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EXPERIÊNCIAS INOVADORAS DE ENSINO/APRENDIZAGEM...
de políticas, gestão de instituições e do trabalho em saúde e organização dos serviços, a saúde coletiva desenvolve um arcabouço teórico-conceitual que, ao longo das duas últimas décadas, vem dando sustentação à implementação das diretrizes e princípios do SUS (Carvalho, 2005). Ao articular o social e o psíquico na explicação do processo saúde/doença, esta formulação tem contribuído para a reconceitualização do objeto de práticas na saúde, redefinição de processos de trabalho e reconfiguração do agente/sujeito das práticas sanitárias (Paim, 2002), colaborando, desta maneira, para o desenvolvimento das premissas do SUS. Contribui, igualmente, para o fortalecimento dos processos de reorientação do modelo de atenção e para a formação de profissionais capazes de assumir os desafios dessa transformação (Teixeira, 2003). Em resposta às necessidades acima mencionadas, nos últimos anos, distintas IES vêm desenvolvendo projetos voltados para a transformação do ensino de graduação, dentre as quais cabe mencionar a Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas – FCM/UNICAMP - que inicia, a partir de 2001, projeto de reforma curricular. Este tem como objetivo qualificar o ensino de medicina, visando à formação dos profissionais com uma sólida formação geral e que sejam capazes de prestar uma atenção integral e de qualidade aos usuários dos serviços de saúde. À semelhança de outras experiências (Cyrino & Rizzato, 2004; Garcia et al., 2004), a FCM/Unicamp vem desenvolvendo, desde o início de seu programa de graduação, atividades junto às unidades básicas de saúde. No primeiro ano da graduação, os alunos de medicina têm uma inserção por meio da disciplina “Ações de Saúde Pública” (ASP), nos serviços da rede do SUS de Campinas. Essa disciplina, coordenada por professores do Departamento de Medicina Preventiva e Social, é ministrada semanalmente durante os dois semestres letivos, perfazendo um total de 120 horas/ano. Os alunos, divididos em subgrupos de 10 a 17 membros, realizam a maior parte de suas atividades no centro de saúde (CS) e seu entorno e, pontualmente, na sala de aula, em atividades como: as de abertura do semestre letivo, aulas expositivas, reuniões de avaliação e de intercâmbio de experiências entre distintas turmas e apresentação final dos trabalhos. As ementas da disciplina, no período investigado, privilegiaram aspectos referentes à atenção e gestão, explorando distintos elementos do saber/fazer saúde, entre os quais: SUS, cidadania e direito à saúde, integralidade da atenção, processo saúde/doença, devir médico, ações coletivas de saúde, território, necessidades e tecnologias em saúde. Dando sustentação a estes conceitos e práticas, encontra-se o modelo teórico-conceitual da saúde coletiva brasileira e, dentro desta, as elaborações da corrente em Defesa da Vida (Campos, 2000; Merhy, 2002; Merhy & Onocko, 1997; Carvalho, 2005). Apresentamos, a seguir, resultados de investigação sobre a referida disciplina, tomando como objeto a experiência vivenciada no Centro de Saúde Santa Lúcia (CSSL), no período compreendido entre os anos 2002 e 2004. Essa unidade de saúde atende a uma população de 27 mil pessoas na região sudoeste da cidade, uma das regiões mais carentes do município de Campinas. O serviço está inserido no Projeto Paidéia de Saúde de Campinas, sendo reconhecido pela qualidade de suas ações, distinguindo-se no contexto do município pela ativa participação de usuários e trabalhadores nos processos
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atinentes à organização dos serviços prestados à população e por ser um campo de estágio de distintos programas de capacitação de técnicos, graduandos e pósgraduandos do setor saúde. Metodologia de investigação Ao analisarmos essa experiência, tomamos como objeto o processo ensino/ aprendizagem vivenciado pelos alunos em cenários pedagógicos que variaram segundo o local em que se deram as práticas e a dinâmica relacional dos sujeitos que habitavam o território em questão (Feuerwerker et al., 2000; Marins, 2004). Realizamos, para isso, um estudo de caso buscando, no processo, descrever os arranjos e dispositivos construídos, priorizando, na análise, aspectos concernentes à metodologia de ensino, à relação docente/ discente e à apreensão dos conteúdos pelos alunos. Ao discutirmos as mencionadas temáticas, procuramos refletir sobre a natureza e os desafios existentes no encontro (e nos desencontros) entre as práticas de ensino e a gestão dos serviços de saúde. Os dados foram coletados por meio de diferentes técnicas e métodos, entre os quais: a) formulário qualitativo e quantitativo semi-estruturado, aplicado ao corpo discente pela Comissão de Ensino de Graduação da FCM/Unicamp; b) textos elaborados pelos educandos, comentando aspectos teóricos, pedagógicos e vivências na disciplina; c) projetos de intervenção formulados pelos alunos; e d) programa e planos de ensino. Utilizamos, ainda, informações provenientes dos diários de campo dos investigadores - no caso, o docente e a gestora da unidade de saúde - com o objetivo de acrescentar evidências e contextualizar as informações coletadas. Na descrição e análise dos dados, assumimos, como premissa, o entendimento de que o processo de construção do conhecimento deve estar alicerçado em fundamentos e referenciais teóricos que contemplem um modelo de sociedade em que existam sujeitos capazes de refletir, construir e reconstruir ações. Não perder de vista esse “norte” é um desafio para o educador e constitui um elemento valorativo que pode impedir que o mesmo caia na armadilha de criar ambientes de aprendizagens inovadores sem compromisso com a mudança e transformação do status quo. Julgamos que metodologias ativas podem ser de pouca serventia se não contemplarem processos e conceitos que transcendam ao método. Problematizamos com qual finalidade? Refletimos a prática com qual objetivo? Educamos para quê? Compartilhamos, neste sentido, as idéias de Bordenave & Pereira (1998), quando afirmam que é desejável ao processo educativo traduzir o esforço conjunto do educando e do educador para alcançar uma modificação significativa e duradoura das habilidades intelectuais, atitudes e dos comportamentos do educando, na direção de objetivos pessoais e sociais que se deseja. No estudo em questão, interessou-nos, em particular, refletir sobre a metodologia utilizada – no caso, a abordagem problematizadora, inspirada na metodologia da problematização (Berbel, 1998) – buscando avaliar sua capacidade de efetivar mudanças junto ao processo de ensino/aprendizagem e à realidade sob o qual este se realiza. Vale lembrar que, como afirma Berbel (1995), a metodologia da problematização tem como elemento de distinção o
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compromisso com a trans-form-ação, o que aponta para a necessidade de um retorno à realidade “com as informações coletadas, sugestões e/ou ações coletivas” (Berbel, 1995, p.14). Em outras palavras, é uma metodologia que trabalha com o objetivo de resolver problemas, tendo como ponto de partida a realidade complexa e dinâmica que funciona como dispositivo disparador de ações e processos de ensino/aprendizagem que têm como propósito a transformação desta mesma realidade. Resultados Aspectos metodológicos Um dos problemas comuns à implementação de práticas de integração docente-assistencial é constituído pelo mútuo estranhamento entre práticas e culturas institucionais distintas. Não é fácil compatibilizar as necessidades de ensino com as necessidades do serviço de saúde. Não bastam boas intenções ou a alteração de formatos educativos para modificações na formação, uma vez que é necessário também mudar conteúdos e a gestão cotidiana das práticas de ensino (Feuerwerker, 1999). Esse entendimento estimulou o corpo docente da disciplina a realizar uma adaptação da proposta à realidade e às necessidades do serviço. Neste sentido, procurou-se criar múltiplos e variados arranjos e dispositivos pedagógicos que buscaram: a) integrar processos de ensino/aprendizagem a processos de gestão da unidade de saúde; b) ampliar o grupo de docentes/mediadores do processo ensino/aprendizagem; c) estimular a produção de projetos de intervenção por parte dos alunos que contribuíssem para a qualificação das ações de saúde; d) garantir uma efetiva co-gestão do processo de ensino. Foram constituídos, para isto, fóruns de planejamento, gestão e avaliação do processo de ensino/aprendizagem, dos quais participaram o docente responsável, a gestora/tutora e trabalhadores do CS. A participação dos responsáveis pela disciplina ASP no CS Santa Lúcia no conselho de docentes da disciplina e em instâncias deliberativas da unidade (Colegiado Gestor Núcleo da Saúde Coletiva, Conselho Local de Saúde) foi uma prática constante. A gestão cotidiana do processo foi realizada de maneira compartilhada pelo docente e pela gestora da unidade. Os desafios da disciplina ASP motivaram, igualmente, a criação do “Grupo de Investigação em Docência e Atenção à Saúde” (GIDAS/ DMPS/UNICAMP), um coletivo de pesquisa e estudos sobre a relação ensino/ serviço de saúde, que procura refletir sobre os aspectos epistemológicos, metodológicos, pedagógicos e políticos das experiências e fortalecer a capacidade de intervenção e análise de seus membros. Cenários pedagógicos A disciplina procurou possibilitar aos alunos vivenciar e conhecer o CS nas suas relações internas – organização do serviço, processos de trabalho, equipes interdisciplinares, gestão colegiada etc. – e em suas relações com as instituições e territórios geopolítico-sanitários que lhe são externas. A produção do conhecimento se deu por meio da leitura de textos específicos e discussões com o docente, mas antes, e prioritariamente, pela vivência dos alunos com os
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vários sujeitos que constroem o dia-a-dia dos serviços de saúde. Após estudar e debater diferentes aspectos do SUS e travar conhecimento com território sociossanitário do CSSL e seu entorno, os alunos procuraram, a partir do final do primeiro semestre letivo, construir e desenvolver projetos de investigação e de intervenção sobre a problemática local em saúde. Essas vivências tiveram como eixo teórico orientador os conteúdos da disciplina. Estes foram trabalhados de uma forma flexível que nem sempre respeitava o cronograma disposto nas ementas da disciplina. Cada grupo ou subgrupo discente vivenciou, ao longo dos três anos aqui analisados, variados cenários de ensino/aprendizagem. Essas variações ocorreram devido a uma combinação de fatores, entre os quais: as oportunidades surgidas no cotidiano da unidade, distintas conjunturas gerenciais, a governabilidade docente sobre os possíveis cenários de ensino/aprendizagem e, não menos importante, os interesses e momentos afetivos/cognitivos dos alunos. A título de exemplo, no Quadro 1, ilustramos o trajeto percorrido pela turma de 2004. A dinâmica que o Quadro 1 sintetiza é devedora de um projeto pedagógico que valorizou determinadas metodologias e recortes, mas acima de tudo, das oportunidades surgidas no cotidiano do fazer saúde. Nesse processo, desvios e mudanças em relação ao planejado foram uma constante. São muitos os exemplos que ilustram e explicam as “surpresas” no percurso realizado. Como ilustração, citamos um “acidente de percurso” advindo de uma tensa conversa envolvendo, por um lado, profissionais e alunos e, por outro, uma adolescente de 13 anos com vida sexual ativa e que manifestava o desejo de engravidar. Esse encontro mobilizou e indignou os alunos, provocou polêmica e disparou questões sobre temas tão díspares como as relações intersubjetivas envolvendo usuário/trabalhador, o respeito às diferenças e à privacidade, a natureza normatizadora das práticas de promoção e educação, o projeto terapêutico singular e a ética em defesa da vida. Tecer uma rede de conhecimento que respondesse aos desafios postos pelo problema advindo da prática, garantindo a manutenção do eixo temático da disciplina, demandou muita criatividade por parte da equipe docente. Entre as atividades realizadas nos meses posteriores ao citado acontecimento, mencionamos: a realização de discussões entre o corpo docente e os alunos, em que foram privilegiados conteúdos da ementa da ASP, reuniões entre o docente e os alunos no “espaço protegido” do ônibus que fazia o percurso Unicamp/ CSSL, para discutir questões éticas e sigilosas; e parceria envolvendo a universidade e o serviço, que viabilizou a realização de seminário abordando o tema “Singularidades no acolhimento ao adolescente no Centro de Saúde Santa Lúcia”, tendo como público alunos e trabalhadores da unidade e, como convidado, um pedagogo especialista no tema da adolescência. Esta e outras experiências vivenciadas ao longo dos anos nos fazem concordar com Berbel em relação à impossibilidade de se controlar os resultados das questões problematizadas em termos da produção do conhecimento, uma vez que estes são buscados para responder ao problema em estudo (...) considerandose suas possíveis causas e determinantes, que em geral ultrapassam os aspectos técnico-científicos. Os resultados não são de todo previstos, a não ser em termos da vivência das atividades pelo aluno
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Quadro 1. Atividades realizadas pelos alunos na disciplina Ações em Saúde Pública, Campinas, primeiro semestre de 2004.
Atividades desenvolvidas
Datas do estágio 11/03
Aula Inaugural (FCM/Unicamp)
18/03
Apresentação da ementa, da equipe de tutores/facilitadores e dos serviços e instalações físicas do CS
25/03
01/04
sem data
Visita ao território: Distrito de Saúde Sudoeste VISA Sudoeste (vigilância em saúde) CAPS Novo Tempo Visita ao território e microáreas: Equipe 1 – “Ocupação’ do Jardim Bordon Equipe 2 – Ferro Velho do Antenor (lacrado) Equipe 3 – Ocupação Chico Amaral Equipe 4 – Margens do córrego da regiãoVila União – Módulo de Saúde da Família da Vila União Oleodutos da Petrobras Arrastão da Dengue (caminhão fazendo o cata-bagulho) Intercâmbio de experiências entre grupos (FCM/Unicamp)
15/04
Acompanhamento do Grupo de Ginástica Postural na comunidade São Paulo Apóstolo
22/04
Discussões sobre as equipes de referência e apresentação das microáreas Apresentação do Núcleo de Saúde Coletiva (tuberculose e hepatites)
13/05
Visita domiciliar com o ACS para pacientes em tratamento supervisionado de tuberculose
20/05
Elaboração de um questionário para entrevistas com usuário, lideranças comunitárias e trabalhadores do CS sobre as concepções de saúde/doença
27/05
Entrevistas com usuário, lideranças comunitárias e trabalhadores do CS sobre as concepções de saúde/doença
03/06
Entrevista com benzedora, mãe-de-santo e curandeiro
10/06
Apresentação do trabalho à comunidade e aos trabalhadores do centro de saúde
17/06
Preparação do trabalho final (FCM/Unicamp)
23/06
Apresentação pública do trabalho final (FCM/Unicamp)
em todas as etapas do processo. Os conteúdos tanto podem não satisfazer ao professor, em termos do que gostaria de ver apreendido pelos alunos, quanto podem surpreendê-lo e ao próprio grupo, quando descobrem aspectos e relações não programados. (Berbel, 1998, p.150)
Essas situações exigem do corpo docente habilidade para lidar com o desconhecido, e flexibilidade diante dos imprevistos, rompendo, se necessário, com o planejado. Demandam, igualmente, capacidade de gestão para responder aos desafios da dinâmica complexa, indeterminada e pouco estruturada dos processos de trabalho em saúde e para viabilizar vivências em cenários pedagógicos que sejam produtivos para os objetivos que se almeja. A “rede docente” do Centro de Saúde Santa Lúcia A complexidade do desafio metodológico mencionado estimulou a criação de uma parceria entre os distintos sujeitos envolvidos no processo de ensino/ aprendizagem, que resultou na constituição de uma “rede docente”. Esta teve
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como núcleo formulador e coordenador o docente da Unicamp e a tutora/ gerente do CSSL, apoiados, na medida em que fosse necessário, pelos trabalhadores da unidade de saúde. Esses profissionais acompanhavam os alunos nas visitas domiciliares, discutindo casos clínicos, monitorando encontros com os usuários, planejando e avaliando atividades da disciplina e participando dos momentos de discussão, contribuindo para uma reflexão sobre as práticas vivenciadas. O grupo de monitores era composto por profissionais de distintas categorias - médicos, enfermeiros, dentistas, auxiliares de enfermagem e agentes de saúde -, e eram indicados, no início do ano, pelo Colegiado Gestor da unidade, variando a composição nos diferentes anos letivos. Para viabilizar a participação, esses profissionais eram liberados, pelo gestor local, de suas tarefas assistenciais quando fosse necessário. Como no processo o imprevisto era, antes, uma regra do que uma exceção, os trabalhadores buscaram, na prática, realizar as tarefas docentes mesmo em situações em que não estavam liberados de suas tarefas no CSSL. É importante mencionar que tal postura foi uma constante ao longo dos três anos investigados e envolveu a maior parte dos setenta profissionais do CS. Tal parceria trouxe, em alguns momentos, tensões e questionamentos, tendo como focos: a pressão cotidiana da demanda, o processo de escolha dos participantes e o problema do “desvio” de função dos trabalhadores. Debates internos, ações da gestora/tutora, o reconhecimento e satisfação dos trabalhadores com as atividades dos alunos e a participação do Conselho de Saúde foram alguns dos fatores que contribuíram para a manutenção do apoio dos funcionários da unidade de saúde. Buscou-se, no processo, valorizar as vivências e experiências compartilhadas para qualificar a gestão da instituição. Dúvidas, polêmicas, sugestões dos alunos e achados relevantes foram utilizados como provocadores de reflexões sobre o trabalho em saúde por parte dos profissionais da unidade, ensejando a constituição de fóruns e rodas de debate que envolviam docentes, gestores, trabalhadores, alunos e convidados. Buscando reforçar o processo, em meados de 2004 foi iniciado um projeto de educação permanente dos trabalhadores, que visava atingir o duplo objetivo de qualificar o processo de trabalho e a capacidade dos membros da “rede docente”. Julgamos que esse apoio foi decisivo para o processo de ensino/ aprendizagem, tendo contribuído sobremaneira na criação de vínculos entre futuros e atuais profissionais de saúde, para a co-gestão do processo e a criação de um ambiente estimulante e acolhedor para o trabalho desenvolvido. Esta constatação é corroborada pela fala dos alunos: Fiquei surpresa com a participação dos profissionais do posto, seu entusiasmo com nossa presença. Foram todos grandes professores, sempre dispostos a discutir os assuntos nas aulas, esclarecer dúvidas e compartilhar idéias. (aluno, avaliação da disciplina, turma de 2002) Muito impactante esta participação de vários profissionais. Todos têm diferentes conhecimentos e nós acabamos recebendo conhecimentos das várias áreas, além de perceber o trabalho em equipe. (aluno, avaliação da disciplina, turma de 2002)
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Ao partirmos da premissa de que todos os envolvidos no processo de ensino/ aprendizagem tinham algo a contribuir para a produção coletiva do pensar/ fazer saúde, buscamos trabalhar com dinâmicas participativas que facilitassem o intercâmbio e a interação entre os profissionais e os alunos. Um dos alunos comenta esta relação opinando que todos os trabalhadores se mostraram muito flexíveis e nós, alunos, sempre fomos ouvidos, consultados, antes de qualquer decisão e mesmo a mais simples questão era debatida antes de ser estabelecida (...) nos sentimos importantes, sentimos que poderíamos fazer alguma coisa, já que tantos pareciam acreditar em nossas capacidades. (aluno, avaliação da disciplina, turma de 2002)
Estas considerações sustentam a nossa visão de que o arranjo “rede docente” permite que aprofundemos o debate sobre a função do tutor (Venturelli, 1997; Bellodi, 2003), na medida em que traz à tona a possibilidade de construção de arranjos e dispositivos que venham a se constituir em uma espécie de dobra na gestão/docência. Para que essa dobra se concretize, é necessário realizar um deslocamento de papéis e funções dos atores envolvidos, com o objetivo de possibilitar que os trabalhadores de saúde se assumam e se reconheçam como sujeitos dos saberes e potenciais membros do corpo docente. Ela demanda, igualmente, o domínio, por parte do docente responsável, de metodologias ativas de ensino/ aprendizagem, o conhecimento de conteúdos temáticos da disciplina e da dinâmica do serviço de saúde, e o compromisso com a qualificação das ações de saúde que se desenvolvem no território do centro de saúde em questão. Projetos de investigação e de intervenção desenvolvidos pelos alunos Os alunos produziram, ao longo dos anos, projetos de investigação e/ou de intervenção que buscaram responder a seus interesses, à demanda da unidade de saúde, e às necessidades postas pelos eixos temáticos da disciplina. Tais projetos cumpriram um papel de mediação entre a teoria e a prática, resultando em vivências singulares que tiveram um duplo objetivo: ampliar a competência dos alunos para lidar com a complexa realidade sociossanitária em saúde e contribuir para a gestão dos processos de trabalho no CSSL. Entre os projetos produzidos nessa parceria, citamos: a elaboração de um roteiro de visita domiciliar à gestante, para os agentes de saúde; fôlderes que tematizam os direitos da gestante e que orientam a revisão do parto; a produção de um áudio-visual e uma peça de teatro abordando múltiplos aspectos do cuidado do paciente asmático no CS, e a realização de investigação sobre o papel da subjetividade do usuário portador de tuberculose no tratamento da doença. Na opinião de um aluno, a participação em projetos de intervenção “contribui para nos estimular a empenharmos ainda mais nesse fim de semestre com esse projeto, já que com tal participação pudemos adquirir a confiança de que aquilo em que estávamos trabalhando tem uma função prática, da qual o sistema de saúde carece” (aluno, avaliação da disciplina,
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turma de 2004). Outros manifestam a satisfação com o resultado do trabalho e a oportunidade de realizar uma devolutiva para os serviços, fazendo as seguintes afirmações: Achei muito interessante... a atenção dada pelos funcionários, que praticamente saíram de seu expediente normal de trabalho para assistir à nossa apresentação informal e conhecer nossa visão sobre o grande trabalho desenvolvido por eles. (aluno, relatório de atividade, turma de 2004) A reunião com integrantes do distrito sudoeste foi bastante proveitosa para todos nós (...) nós pudemos expor tudo o que estudamos neste ano (...) realmente estavam interessados pelos casos trabalhados por nós. (aluno, relatório de atividade, turma 2004)
Estes relatos parecem confirmar a idéia de que é possível, e útil, que os graduandos em Medicina sejam induzidos e estimulados a participar, desde os primórdios de sua formação, em projetos de intervenção. Para isso, é preciso superar a compreensão de que o recém-ingressado seja uma folha em branco a ser preenchida, ao longo dos seis anos do curso, pela inserção e incorporação gradativa de conteúdos e conhecimentos. Na experiência relatada, constatamos que os alunos têm se mostrado como sujeitos, exigentes, críticos e, em especial, capazes de se solidarizar com o usuário e de contribuir para o esforço de produção de saúde realizado por profissionais. Conteúdos temáticos Território em saúde Um dos objetivos da disciplina ASP é o de colocar o aluno em contato com o território sociopolítico e geográfico da rede básica, procurando ampliar noções sobre o processo saúde-doença e necessidades em saúde, trazendo à tona o tema da iniqüidade social e do trabalho intersetorial. Ao considerarmos o conceito de território em saúde como tudo aquilo que faz referência aos serviços de saúde e a seu entorno, buscamos possibilitar aos alunos vivências em distintos espaços sociossanitários da região. Em relação ao entorno do centro de saúde, buscamos priorizar aspectos referentes às microáreas de risco, à relação com os equipamentos sociais e com as instituições da sociedade civil que lidam direta, ou indiretamente, com a problemática de saúde dos moradores da região em questão. As atividades realizadas, a exemplo das que foram mencionadas no Quadro 1, possibilitam aos alunos refletir sobre os determinantes do processo saúde/doença e o significado de “necessidades em saúde”. Visitando uma microárea de risco, os alunos descrevem e refletem sobre suas vivências ao comentarem que:
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(...) as casas, que embora sejam de alvenaria, não tinham reboco, as portas e janelas em más condições, o chão do quintal era de terra, com muita sujeira, que também se acumulava em vários cantos, inclusive, fezes de animais. (aluno, relatório de atividade, turma de 2002) (...) o que me chamou muita atenção foi encontrar três barracos em um terreno baldio. Pude ver a precariedade na qual aquelas pessoas viviam, o risco que corriam por estar morando ao lado de um local onde passavam tubulações da Petrobras, e comecei a pensar nas implicações para a saúde daquelas pessoas. (aluno, relatório de atividade, turma de 2002)
O devir médico Ao avaliar a disciplina ASP, um aluno da turma de 2002 pondera que esta foi muito útil devido ao fato de colocar o estudante em contato com a realidade do SUS/ Paidéia de forma direta. O estudante, atuando em um posto de saúde e acompanhando o trabalho dos agentes de saúde, aprende a perceber o território, não só geograficamente, como também em seus aspectos sociais. Assim, cria-se uma noção de percepção de lideranças locais e suas influências, tratamentos diferenciados para pessoas diferenciadas e, é claro, as necessidades em saúde da população da região atendida pelo posto de saúde. (aluno, avaliação da disciplina, turma de 2002)
Ao entrevistarem uma benzedeira, uma mãe de santo e um curandeiro da região, no ano de 2004, refletem sobre as práticas científicas e populares em saúde, extraindo ensinamentos que serão úteis em sua prática profissional: No final da conversa, houve um direcionamento para discussão sobre o espírito humano e a influência da fé nos tratamentos. Falamos muito sobre o espiritismo (...). Vimos que essa visão pode ser eficiente para ajudar os médicos a enfrentar a dor da morte. Falamos, também, da influência da fé do paciente para o processo de cura, julgando que essa é importante no tratamento (...). Com isso, veio à tona o problema de como o médico deveria fazer para criar essa fé no paciente sem passar a ele a idéia de que seu caso é muito difícil, sem passar uma idéia de desesperança. (grupo de alunos, relatório de atividade, turma de 2004)
Casas construídas sobre oleodutos da Petrobrás, pessoas que vivem em condição de miséria, sem carteira assinada e vivendo de “bicos”, adolescentes que engravidam muito jovens por falta de outros projetos de vida, crianças que se alimentam apenas quando estão em equipamentos sociais, foram alguns exemplos de problemas e situações que levaram os alunos a refletirem sobre sua inserção social e profissional:
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de tudo o que vivenciei (...) cheguei à conclusão de que, como médico, é difícil eu resolver, por exemplo, a questão da falta de renda dessas pessoas, por mais que eu quisesse pegar o meu salário e sustentar essas pessoas, pelo menos dando o que comer a elas, eu jamais resolveria os problemas. (...) a questão é política e de distribuição de renda. (aluno, relatório de atividade, turma de 2002)
Ao investigar o acolhimento ao usuário adolescente, uma aluna registra suas impressões: Fiquei surpreendida ao conversar com elas (gestantes adolescentes) e perceber como a minha visão era preconceituosa em relação à situação delas (...) a nossa entrevista serviu para desvincular a imagem dessas mães a rótulos e julgamentos convencionais (...) Depois das entrevistas (com as gestantes adolescentes) voltei para casa pensando: quem sou eu para julgá-las? O que sei da realidade em que vivem? Só sei que é bem diferente da minha, que só estudo e por isto achava que sabia mais da vida delas do que elas mesmas. É fácil falar: use preservativo, não engravide. Mas o que fazer quando ter filhos é um projeto de vida? (aluno, relatório de atividade, turma de 2002)
Essas múltiplas experiências provocam impacto no imaginário do futuro profissional médico: (...) não adianta eu ter só o conhecimento técnico e ficar recebendo estas pessoas no meu consultório. (...) eu preciso mais do que isso, é necessário conhecer a realidade destas pessoas, o quanto elas sofrem e me colocar no lugar delas para aí sim, eu usar o meu conhecimento de maneira eficaz e adequada às condições dessas pessoas (aluno, relatório de atividade, turma de 2002).
São experiências de ensino/aprendizagem que mobilizam afetos e saberes, que provocam indignação e raiva, mas também esperança e desejo de contribuir para a transformação do estabelecido, conforme expressado por um aluno: “como médico tenho o dever de lutar por estas pessoas (...) que eu seja um agente promotor de medidas simples que torne mais digna a vida delas” (aluno, relatório de atividade, turma de 2002). Com base nos relatos acima, julgamos que a utilização de metodologias ativas que valorizam os ensinamentos advindos do real e do cotidiano do viver/ fazer saúde possibilitou uma produção compartilhada de saberes e práticas por meio das quais os alunos cumprem um papel relevante. Eles têm sido capazes de se surpreender e interagir com a complexa realidade local e, no processo, de se revelarem como sujeitos de saberes e do devir. No convívio com a dinâmica do CS e seu entorno, no contato com trabalhadores e usuários, na identificação de problemas, na elaboração e implementação de projetos de intervenção e na reflexão teórica sobre a prática, os alunos tiveram a oportunidade de adquirir competências, ou seja, capacidade de mobilizar conhecimentos, habilidades e atitudes para responder a problemas
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postos por distintos contextos. Consideramos essas competências de fundamental importância para seu percurso como profissionais e cidadãos. O SUS Conforme mencionado, a disciplina possibilitou aos alunos uma vivência e um olhar sobre vários aspectos do SUS. Ao visitarem o Distrito e unidades secundárias (por exemplo, CAPS, Pronto Socorro, Ambulatório de Especialidades etc.), os alunos puderam ter uma primeira noção sobre a rede de cuidados. Ao focar o seu aprendizado na compreensão da complexa dinâmica do CS e seu entorno, puderam vivenciar e discutir as múltiplas dimensões da integralidade em saúde, correlacionando-as com as tecnologias de prevenção, promoção, cura e reabilitação disponibilizadas pelo serviço. A parceria com os trabalhadores da unidade possibilitou um aprendizado significativo sobre a importância do trabalho interdisciplinar e a experiência sobre os processos de co-gestão e de trabalho em equipe (Campos, 2000). O contato com o território sociossanitário, as conversas com lideranças locais, visitas a instituições de apoio à comunidade (pastorais da igreja, centros comunitários, ONGs, creches etc.) e aos usuários contribuíram para permear as reflexões sobre a prática da saúde com a temática da cidadania e da promoção da saúde. Acreditamos que esse percurso, aliado à qualidade da atenção prestada no CSSL, contribuiu para mostrar aos alunos a complexidade que envolve o cuidado em saúde e, sem que lhes fossem escamoteados os problemas existentes, contribuir para que percebessem o sistema público como um local digno de trabalho e de produção de vida. No processo, foi possível observar a superação de pré-conceitos e a incorporação de novas percepções por parte dos alunos: sempre escutei sobre o serviço público queixas e reclamações, que nada funcionava, que havia filas imensas de espera, que os médicos não davam atenção aos pacientes, que havia falta de medicamentos, ou seja, somente um lado negativo. (aluno, relatório de atividade, turma de 2002) Eu esperava encontrar um local malcuidado, com trabalhadores malhumorados e pronunciando monossílabos, paredes sujas, descascadas, dezenas de pessoas esperando sonolentas desde o dia anterior. Imagine o meu choque ao adentrar o centro (de saúde)! Um lugar limpo e organizado, com pessoas sorridentes e prestativas e remédios com grande estoque. (aluno, avaliação da disciplina, turma de 2002) Sempre imaginei um SUS caótico, com grandes problemas estruturais... e percebo o sistema organizado e tem grandes méritos. (aluno, relatório de atividade, turma de 2002)
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Considerações finais O recorte temático e metodológico com que a disciplina ASP da FCM/Unicamp direcionou suas práticas no CSSL possibilitou, aos alunos do primeiro ano de graduação, uma visão abrangente sobre as múltiplas facetas do pensar/fazer saúde. Valendo-se de vivências concretas e de parcerias com os trabalhadores, o corpo discente teve a oportunidade de vincular-se, desde o início da graduação, aos serviços de saúde, e de refletir sobre temáticas díspares e essenciais à prática profissional, tais como: cidadania, participação social, territórios de risco, necessidades em saúde, trabalho em equipe, tecnologias na saúde, clínica ampliada e relações intersubjetivas. Esse amplo eixo temático facilitou a parceria com o CS pelo fato de que, no período investigado, o município de Campinas vinha procurando implementar o Projeto de Saúde Paidéia, cujas diretrizes e estratégias coincidiam, em muitos casos, com os eixos disciplinares mencionados. A semelhança entre as premissas do projeto político pedagógico da disciplina ASP e as premissas do projeto organizacional e de gestão da SMS/Campinas foi, sem dúvida, um elemento facilitador e potencializador do processo de ensino/aprendizagem. Do ponto de vista metodológico, o ensino baseado na prática contribuiu para a parceria orgânica entre a academia e o serviço de saúde, uma vez que possibilitou aos alunos atenderem às demandas dos trabalhadores/gestores e, também, a constituição de uma rede docente formada pelo gestor, pelos profissionais e pelo docente responsável, o que deu uma inestimável contribuição à formação discente. A investigação demonstrou, ainda, que essa abordagem demanda condições logísticas, capacidade de gestão e acúmulo teórico/prático de todos os envolvidos. O cotidiano da disciplina foi marcado o tempo todo pela surpresa advinda da complexa realidade dos serviços de saúde. A realidade dos serviços dificilmente obedece à lógica estruturada da ementa e dos planos de curso, e coloca desafios complexos e exigentes para o ensino de graduação. O que fazer? O coletivo docente da disciplina ASP no CSSL optou por arriscar. Mergulhou no processo e buscou encontrar, testando, companheiros e cenários de aprendizagens que fossem úteis aos alunos e à unidade de saúde. O estudo em questão parece sugerir o sucesso da travessia; às vezes, heterogênea e truncada, soando, em certas situações, insegura e improvável. As falas dos alunos aqui reproduzidas indicam que algo caminhou: são discursos afetivos e afetados pelo complexo texto, rico e desafiador, do cotidiano das relações sociais. Em muitos casos, são falas representativas de uma idade aberta ao novo e que ainda se dá o direito de viver incertezas e correr riscos. Idade de sonhos e generosidade que demandam vivências pedagógicas que os valorize e que dê concretude àquilo que aparece como potência, um vir-a-ser. Consideramos igualmente essencial, para o sucesso do processo analisado, a decisão da Faculdade de Ciências Médicas de implementar a reforma curricular a partir de 2001. A adesão diferenciada dos docentes ao processo de mudança, dificuldades estruturais (por exemplo, dificuldade de fixação de docentes e de suporte logístico às disciplinas realizadas junto à rede SUS), diversidade de concepções sobre o rumo da reforma não diminuem a importância da referida política institucional para a transformação do ensino médico, pelo contrário. Do ponto de vista da gestão da disciplina, consideramos ser fundamental aprimorar os mecanismos de gestão compartilhada, fortalecidos a partir de 2004,
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EXPERIÊNCIAS INOVADORAS DE ENSINO/APRENDIZAGEM...
buscando superar coletivamente os inúmeros entraves e dificuldades existentes, valorizando, no processo, a parceria com os gestores do SUS e o respeito à singularidade das distintas experiências de ensino/aprendizagem. No que se refere aos conteúdos da disciplina, consideramos que estes significam um avanço em relação às concepções de ensino de Saúde Pública que vêm se pautando pelo ideário preventivista, de Medicina Comunitária e de Atenção Primária à Saúde, que pouco puderam fazer quanto a mudanças mais profundas na escola médica e na educação médica em geral (Santini, 1986). Estes conteúdos representam, igualmente, uma alternativa ao status quo do movimento sanitário, que tem privilegiado, até o momento, o referencial do projeto de Vigilância à Saúde/Promoção à Saúde como referência para as mudanças em cursos de graduação nas áreas de saúde (Salum et al., 1998; Teixeira, 2003). Acreditamos, igualmente, que o estudo aqui relatado traz contribuição para o esforço empreendido por instituições como Abrasco – Associação Brasileira de Saúde Coletiva (2006) e Rede-Unida (2003) que, ao reconhecerem a condição marginal de inserção da saúde coletiva nos currículos das profissões de saúde, vêm buscando definir competências, conteúdos e metodologia específicos que dêem sustentação às mudanças no ensino de graduação. Referências ABRASCO. 1ª Oficina de ensino de graduação na área de políticas, planejamento e gestão. São Paulo: Abrasco, 2006. (mimeogr.). BELLODI, P. L. O que é um tutor? Representações do papel em um grupo de professores de medicina durante o processo de seleção. Rev. Bras. Educ. Méd., v.27, p.205-12, 2003. BERBEL, N. A. N. Metodologia da problematização: uma alternativa metodológica apropriada para o ensino superior. Semina, v.17, n. esp., p.9-19, 1995. BERBEL, N. A. N. A problematização e a aprendizagem baseada em problemas: diferentes termos ou diferentes caminhos? Interface – Comunic., Saúde, Educ., v.2, p.139-46, 1998. BORDENAVE, J.D.; PEREIRA, A.M. Estratégias de ensino-aprendizagem. Rio de Janeiro: Vozes, 1998. BRASIL. Ministério da Educação. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Brasília, 2001a. BRASIL. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. Câmara de Educação Superior. Resolução CNE/CES nº 4, de 7 de novembro de 2001. Institui diretrizes curriculares nacionais do curso de graduação em medicina. Brasília, 2001b. BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Políticas de Saúde. Coordenação Geral da Política de Recursos Humanos. Programa de incentivos às mudanças curriculares para as escolas médicas PROMED. Brasília, 2002. BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde. AprenderSUS: O SUS e os cursos de graduação da área da Saúde. Brasília, 2004. BRASIL. Ministério da Educação/Ministério da Saúde. Portaria Interministerial nº 2.101, de 3 de novembro de 2005: Institui o Programa Nacional de Reorientação da Formação Profissional em Saúde – Pró-Saúde. In: Diário Oficial da União, 04 nov. 2005a. Seção 1, p.111. Disponível em: <http://www.abemeducmed.org.br/promed/do1-111.pdf>. Acesso em: 07 dez. 2005. BRASIL. Ministério da Saúde/Ministério da Educação. Pró-saúde: Programa nacional de reorientação da formação profissional em saúde. Brasília, 2005b. CAMPOS, G. W. Um método para análise e co-gestão de coletivos. São Paulo: Hucitec, 2000. CARVALHO, S. R. Saúde coletiva e promoção da saúde: sujeito e mudança. São Paulo: Hucitec, 2005.
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CARVALHO, S. R. ET AL. Enseñanza de Salud Ccolectiva en el curso médico de Unicamp: experiencias innovadoras junto a centros de salud. Interface - Comunic., Saúde, Educ. Educ., v.10, n.20, p.457-72, jul/dez 2006. Este artículo describe y analiza escenarios de enseñanza-aprendizaje vividos por los estudiantes del primer año del curso médico de la Unicamp a partir de una investigación sobre la enseñanza de Salud Colectiva en un centro de salud de Campinas, SP, entre 2002 y 2004. A partir de vivencias concretas y de alianzas con los trabajadores, los alumnos tuvieron la oportunidad de vincularse desde el comienzo del programa de graduación a los servicios de salud. El enfoque centrado en la problematización contribuyó para la asociación entre la academia y el servicio de salud. Esta posibilitó que los alumnos atendieran a las demandas del centro de salud e indujo la creación de una red docente, constituida por el gestor, por los profesionales y docentes de la Unicamp, que dio inestimable contribución a la formación del estudiante y fortaleció la capacidad de gestión de los servicios de los profesionales involucrados. PALABRAS CLAVE: educación médica. enseñanza. aprendizaje. salud colectiva.
Recebido em 25/08/05. Aprovado em 20/06/06.
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A prática dos tutor es em um progr ama tutores programa de formação pedagógica a distância: avanços e desafios*
Maria de Fátima S. O. Barbosa 1 Flavia Rezende 2
BARBOSA, M. F. S. O.; REZENDE, F. Tutors’ experience in a distance educational program: progress and challenges. Interface - Comunic., Saúde, Educ. Educ., v.10, n.20, p.473-86, jul/dez 2006.
This study was carried out among nursing professionals engaged in distance educational program, and it sought identify the tutor’s experience, the obstacles and challenges they dealt with the distance program. The main obstacles mentioned by tutors included: difficulty to assimilate the constructivist pedagogical concepts in their activities (translate the course lessons to practice); difficulty in assimilating new technologies; lack of adequate telecommunications infrastructure in many towns; lack of time to develop course activities. Tutors believe that it was a challenging experience, since there was no model to follow. These results indicate that tutors haven’t culturally assimilated distance education and overcoming the distance can be even more difficult for nursing professionals given that in many cases they have double shifts. KEY WORDS: distance education. professional education. nursing. preceptorship.
Este trabalho foi realizado no âmbito de um programa de formação pedagógica a distância de trabalhadores da área de enfermagem, buscando conhecer a prática dos tutores e os obstáculos e desafios enfrentados por eles na ação educativa a distância. Os obstáculos apontados pelos tutores foram: dificuldade em assimilar a concepção pedagógica construtivista nas atividades de tutoria (transpor a proposta pedagógica para a prática); dificuldade no uso das tecnologias; falta de infra-estrutura de telecomunicações de alguns municípios; dificuldade em realizar atividades necessárias ao desenvolvimento do curso em função da falta de tempo. Os tutores consideraram um desafio desempenhar a tutoria, por ser uma experiência nova para a qual não há modelo predefinido a seguir. Os resultados indicaram que a educação a distância ainda não foi culturalmente assimilada pelos tutores e que superar a distância pode ser ainda mais difícil para profissionais de enfermagem que possuem dupla jornada de trabalho. PALAVRAS-CHAVE: educação a distância. educação profissionalizante. enfermagem. tutoria.
* Trabalho elaborado a partir de dissertação de mestrado (Barbosa, 2004), financiada pelo Programa de Apoio à Pesquisa em Educação à Distância, PAPED-CAPES. 1
Professora, Universidade Estácio de Sá, Rio de Janeiro. <fatimabarbosa@mls.com.br>
Professora, Laboratório de Tecnologias Cognitivas, Núcleo de Tecnologia Educacional para a Saúde, Universidade Federal do Rio de Janeiro. <frezende@nutes.ufrj.br> 2
1 Av. Presidente Vargas, 642 Centro - Rio de Janeiro, RJ Brasil - 20.071-001
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O contexto do estudo As diretrizes básicas para a política atual de Saúde no Brasil foram elaboradas no âmbito da Constituição de 1988, quando foi implantado o Sistema Único de Saúde (SUS), alicerçado no Art. 1o. (da Constituição), que promulga que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, assegurando o acesso universal e igualitário às ações e serviços de saúde para sua promoção, proteção e recuperação, mediante políticas sociais e econômicas (Brasil, 1999). O SUS oferece um novo paradigma no campo da saúde, rompendo de forma decisiva com o modelo médico-assistencial privatista de prestação de serviços e trazendo uma nova concepção de atendimento. Por isso mesmo, a exigência de práticas voltadas para a vigilância à saúde desenvolvidas pelos seus profissionais (Bomfim & Torrez, 2002). Essas práticas envolvem novos conhecimentos, procedimentos e abordagens sobre: processo saúde-doença, segurança no trabalho, novas maneiras de lidar com o público que procura o Sistema de Saúde, novas funções administrativas e gerenciais, dentre outros. Além disso, os profissionais da área de Enfermagem inseridos nessa prática devem ser capazes de usar conhecimentos científicos e saberes tácitos, razão e emoção, racionalidade e utopia para o exercício do cuidar, verbo “fundante” dos profissionais de Enfermagem, e utilizar as novas práticas profissionais que lhes são exigidas nesse novo cenário (Kuenzer, 2006). O Ministério da Saúde, considerando as reivindicações da sociedade organizada e a histórica luta da área da saúde, lança, em 1999, o Projeto de Profissionalização dos Trabalhadores da Área de Enfermagem – PROFAE (Brasil, 2002), financiado pelo Banco Internacional para a Reconstrução e o Desenvolvimento (Banco Mundial), Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), Organização das Nações Unidas (ONU), Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL). Este Projeto está estruturado em dois componentes de atuação: o Componente 1 (Profissionalização e Escolarização), que se ocupa da formação profissional e da complementação do ensino fundamental dos trabalhadores em Enfermagem, e o Componente 2 (Conhecimento e desenvolvimento em Saúde), com o objetivo de “impulsionar as condições que darão sustentabilidade à política de Educação Profissional na área de Saúde” (Torrez, 2001, p.13). Neste componente, é oferecido o Curso de Formação Pedagógica em Educação Profissional na Área de Saúde: Enfermagem (CFPE), em nível de especialização, dirigido aos enfermeiros que exercem a docência nos cursos do Componente 1. O CFPE é oferecido em todo o Brasil utilizando a modalidade da educação a distância (EaD), e se apóia em pressupostos teóricos inovadores, materiais educativos impressos, na mediação pedagógica exercida por tutores, e no uso dos recursos tecnológicos da informática. O curso tem como objetivos suprir a necessidade urgente de formar professores especializados no campo da ação educativa na área de saúde (Enfermagem), e oferecer uma alternativa de atualização para os docentes que almejam alcançar melhores níveis de qualificação profissional e autonomia, mediante a utilização dos meios tecnológicos de comunicação e informação. A modalidade de EaD representa, para os profissionais da saúde, uma alternativa viável para a formação continuada, na medida em que eles não
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A PRÁTICA DOS TUTORES EM UM PROGRAMA DE...
precisam se afastar de seu local de trabalho para estudar, fator de grande relevância para essa clientela, com múltiplos vínculos de trabalho (Fiocruz-EaD/ ENSP, 2000). Tendo em vista o caráter inovador do PROFAE, no que se refere à educação profissional na área de enfermagem, aos princípios pedagógicos adotados no CFPE e à utilização da modalidade de EaD por profissionais que estão desempenhando pela primeira vez o papel de tutores, torna-se importante investigar a prática desses tutores no sentido de realimentar a própria implementação do projeto. O objetivo geral da pesquisa foi investigar os processos educativos a distância no âmbito do CFPE. O objetivo específico foi caracterizar a prática dos tutores do CFPE em diferentes contextos regionais de atuação, tendo como eixos as seguintes questões norteadoras: Como os tutores se apropriam dos pressupostos pedagógicos e dos materiais educativos do curso?; Como os tutores se apropriam dos meios de comunicação para estabelecer a ação educativa a distância?; e Quais são as principais dificuldades inerentes à prática do tutor do CFPE? Espera-se contribuir nos aspectos teóricos e práticos para a EaD no contexto da educação profissional em enfermagem, principalmente, no que diz respeito à compreensão do papel dos tutores. Funções e estratégias do tutor na EaD Nas primeiras experiências em EaD, quando os cursos eram oferecidos por correspondência, o ensino se inspirava no modelo fordista de divisão de tarefas, baseadas na transmissão de informação e calcadas no cumprimento de objetivos. O aluno estudava por módulos instrucionais, que tinham a função de ensinar. Nesse modelo, a figura do tutor era praticamente inexistente e sem muito valor, já que ele desempenhava apenas o papel de ‘acompanhante’ do processo de aprendizagem do aluno. Esse modelo de ensino repercutiu muito negativamente na aceitação da EaD, porque eram identificados, em seus processos, os elementos do modelo fordista da produção industrial (Belloni, 1999). A partir da década de 1980, acompanhando as mudanças sociais, novas concepções pedagógicas de ensino e aprendizagem passam a influenciar projetos e programas na modalidade a distância (Maggio, 2001). A ênfase que era dada à transmissão de informação e ao cumprimento de objetivos foi substituída pelo apoio à construção do conhecimento e aos processos reflexivos, aparecendo a idéia de tutor como aquele que dá apoio à construção do conhecimento. Segundo Belloni (1999), a partir de então, passam a coexistir duas orientações teórico-filosóficas no campo da educação e, particularmente, da EaD: o modelo antigo, baseado nos processos “fordistas” de ensino; e o modelo mais moderno, cujos objetivos e estratégias visam a se afastar do behaviorismo de massa em direção a um modelo mais aberto, flexível, humanista e menos tecnocrata (Belloni, 1999). Nesse percurso da EaD, a tutoria passa a ser considerada como um dos fatores fundamentais para o bom desempenho do aluno. Assim, o tutor tem sido objeto de estudo de diversos autores e, de acordo com as concepções pedagógicas do curso no qual ele está envolvido,
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recebe variadas denominações, tais como: orientador, professor, facilitador da aprendizagem, tutor-orientador, tutor-professor, e até mesmo animador de rede. Entretanto, o perfil de tutor ainda não está completamente configurado e, nessa indeterminação de funções, o professor é quem tem ocupado esse lugar. Belloni (1999) lista algumas das funções que o professor está assumindo para desempenhar o papel de tutor na EaD (Quadro 1).
Quadro 1. Funções que o professor assume no papel de tutor.
Função
Professor no papel de tutor
. .
Professor formador
. . .
Professor pesquisador
Conceptor e realizador de cursos e materiais
Professor tutor Tecnólogo educacional
. Professor “recurso” . Monitor
. .
Orientar o estudo e a aprendizagem do aluno.
. . .
Pesquisar e se atualizar em sua disciplina.
Preparar os planos de estudos, currículos e programas.
Orientar o aluno em seus estudos.
Organizar pedagogicamente os conteúdos adequados a cada suporte técnico.
. .
Providenciar respostas às dúvidas do aluno.
Coordenar grupos de estudo nas ações presenciais de EaD.
Garcia Aretio (2001) apresenta três funções para o tutor: a função orientadora, mais centrada na área afetiva, a função acadêmica, mais relacionada ao aspecto cognitivo, e a função institucional, que diz respeito à própria formação acadêmica do tutor, ao relacionamento entre aluno e instituição e ao caráter burocrático desse processo. A função orientadora se apóia nos processos de integralidade – orientação dirigida a todas as dimensões da pessoa; universalidade – orientação dirigida a todos os orientandos; continuidade – orientação durante todo o processo de ensino-aprendizagem; oportunidade – orientação nos momentos críticos da aprendizagem; e participação – todos os tutores devem participar do processo de aprendizagem do aluno matriculado em mais de uma disciplina na mesma instituição. Na EaD, a tutoria pode ser desempenhada de forma presencial, semipresencial ou a distância (Moran, 2005). A modalidade presencial, que se realiza por contatos presenciais com os alunos, individualmente ou em grupos, visa a elucidar questões referentes às dificuldades de conteúdo e dúvidas quanto à metodologia ou aos aspectos estruturais do curso, tais como provas, trabalhos acadêmicos etc. (Belloni, 1999; Landim, 1997; Litwin, 2001; Maggio, 2001). A tutoria semipresencial ainda é o tipo mais utilizado pelos centros que oferecem ensino a distância, por ser considerado o método mais eficaz para a tutoria. No que diz respeito à tutoria a distância, realizada por meio de correio postal, eletrônico, carta, fax, telefone, Garcia Aretio (2001) alerta que nem sempre o aconselhamento pode ser feito por correio postal ou eletrônico, dado que nem tudo pode ser expresso facilmente por escrito, uma vez que nem todos têm facilidade
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A PRÁTICA DOS TUTORES EM UM PROGRAMA DE...
para redigir uma carta ou mensagem eletrônica. O autor aponta o telefone como um meio recomendável para a tutoria a distância, já que permite uma relação imediata e interpessoal com a mesma rapidez com que a relação que poderia acontecer numa sala de aula. Além de poder transmitir informações, resolver problemas pontuais, gerando idéias e reflexões (Garcia Aretio, 2001), a tutoria por telefone, em muitos casos, é um meio de superar a sensação de solidão do aluno nessa modalidade de ensino, além de resolver dúvidas, dar orientação, conectar oralmente tutor e aluno e, em casos específicos, evitar deslocamentos; levando em consideração estas características, a tutoria por telefone tem muitas das funções da tutoria presencial.
O Curso de Formação Pedagógica em Educação Profissional – Enfermagem (CFPE) Principais características O CFPE é um curso oferecido a distância para graduados, pós-graduados e licenciados em Enfermagem, com carga horária prevista de 660 horas, contando com encontros presenciais entre tutor e aluno e provas presenciais, em sintonia com a lei e decretos que regulamentam a EaD (Brasil, 1998). Nesse curso, o aluno é reconhecido como aluno-enfermeiro-professor e o tutor, em sua maioria mestres e doutores, como tutor-professor. O objetivo das avaliações dos alunos do CFPE privilegia o desenvolvimento de atitudes que, além de contribuírem para uma formação crítico-reflexiva do aluno-enfermeiroprofessor, poderão contribuir também para o desenvolvimento das competências sociopolíticas desse aluno. Entre os recursos de comunicação utilizados, além dos Correios e Telégrafos, o curso dispõe de uma linha 0800, fax, e tem o apoio complementar de um site na internet, ambiente para veicular informações sobre eventos e seminários, troca de informações entre alunos e tutores, contendo uma biblioteca virtual na qual os alunos têm acesso às notas, aos textos complementares dos módulos impressos e ao “Fale conosco”. Esse ambiente é acessado via senhas dos tutores, coordenadores e alunos. O material didático do CFPE tem como objetivo apoiar as atividades pedagógicas do tutor e do aluno. A elaboração do material didático envolveu uma equipe multidisciplinar de diferentes áreas do conhecimento. Foi desenvolvido pelo Programa de EaD-Fiocruz, especificamente para o curso, por especialistas das áreas de educação e enfermagem privilegiando conteúdos programáticos que garantem estreita e concomitante relação entre teoria e prática. Esse material é composto de 11 módulos impressos, divididos em três núcleos: contextual, estrutural e integrador. Os módulos são organizados de modo a permitirem que o aluno percorra um caminho que parte da educação para a educação profissional e, ao fim, atinja a competência profissional críticoreflexiva. Nos temas dos núcleos contextual e estrutural, os alunos realizam as atividades propostas em cada módulo, enviadas ao tutor para avaliação. Já as atividades propostas nos movimentos do núcleo integrador incluem momentos presenciais, quando o aluno participa de grupos de trabalho nas instituições de educação profissional de nível técnico em saúde.
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Os objetivos do CFPE presumem a aprendizagem orientada para a cidadania, a participação ativa e o desenvolvimento do pensamento crítico. Para isso, o modelo pedagógico do curso utiliza a abordagem problematizadora (Berbel, 1999) como geradora de temas de discussões e debates entre tutor, aluno e grupo, consoantes com a prática cotidiana de um profissional de enfermagem. A prática em enfermagem deve ser orientada pelo comprometimento com o outro, com o social, contemplando um currículo aberto, com possibilidade de trocas entre os atores, e deve orientar seus tutores-professores e alunosprofessores a serem sujeitos de sua práxis pedagógica. A prática do tutor O CFPE pode ser visto como um modelo de EaD que apresenta, em sua estrutura, as características de transição do modelo fordista de ensino para o modelo mais flexível, dinâmico e descentralizado, com uma concepção fundamentada na prática pedagógica crítica e reflexiva, humanista e menos tecnocrata de seus tutores (Freire, 1996, 1994). A proposta pedagógica do curso enfatiza a relação dialógica (Bernstein, 1990; Freire, 1996) que centraliza o processo de ensino-aprendizagem no aluno, no qual o papel do tutor é de parceria, constituindo-se em estímulo para a aprendizagem e incentivo à reflexão. Neste aspecto, um dos desafios do curso é alavancar essa mudança de papel dos tutores, uma vez que estes vêm de uma “formação de racionalidade técnica de inspiração positivista” (Bomfim & Torrez, 2002, p.17). Além disso, a relação entre tutores e alunos traz para esses atores algumas dificuldades sobre os limites e ações dessa prática, que esbarram tanto nas questões burocráticas quanto nas questões do discurso pedagógico que se estabelece entre ambos (Bernstein, 1999). O desenvolvimento do processo pedagógico do curso deve ser apoiado pela tutoria, tanto a distância quanto em momentos presenciais, tendo o aluno como centro do processo educacional e o movimento reflexão na ação como caminho para a construção do conhecimento (Fiocruz-EaD/ENSP, 2000). No entanto, percebe-se que ainda há necessidade de inovações que proporcionem melhor adequação dos processos avaliativos e burocráticos ao modelo pedagógico do curso e à modalidade específica da EaD. O CFPE prevê que, além da formação acadêmica, com formação a partir da especialização, o tutor tenha um papel diferenciado para atender aos princípios pedagógicos do curso. Para tal, o tutor recebe uma formação inicial, que é oferecida na Oficina de Tutores, visando garantir sua preparação, e um acompanhamento contínuo, propiciado por espaços próprios que visam a incentivar a troca e construção de conhecimentos entre o grupo de tutores. Coerentemente com os pressupostos pedagógicos do CFPE, o tutor deve orientar o aluno para que esse possa ser gestor de seu próprio conhecimento, assim como dominar um conjunto de técnicas que possibilite a ele planejar seus estudos no que se refere à pesquisa, estruturação de carga horária semanal ou diária de estudo, agendamento dos encontros presenciais etc. Esse planejamento insere-se no âmbito da construção da autonomia do aluno que, ao final do curso, deve estar apto a: atuar como agente multiplicador de concepções de saúde compatíveis com os pressupostos do SUS; e a disseminar
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uma maneira de cuidar que resgate a dignidade do usuário, desperte sua consciência social e respeite sua cidadania. Em relação à dimensão da comunicação, o CFPE pretende estabelecer entre tutor-professor e aluno-enfermeiro-professor um diálogo criativo, viabilizado pelos meios de comunicação, de modo a tornar a ausência física uma presença quase real. Esse diálogo se alicerça nos pressupostos de Freire (1996), segundo os quais a comunicação dialógica assume as perspectivas filosófica, social, antropológica e histórico-crítica. O tutor do CFPE tem como tarefa formar professores-profissionais, “que formarão, por sua vez, cuidadores de pessoas”. Isto exige dele compromisso ético que, nesse contexto, é a responsabilidade social inerente a quem atua na área de educação, incluindo aí a adoção de relações pautadas no diálogo, respeito, na justiça e solidariedade (Fiocruz-EaD/ENSP, 2000), haja vista que as situações-problema, que surgem como desafios para o profissional de saúde, não podem ser resolvidas apenas com conhecimento técnicocientífico. A prática em saúde requer ações que extrapolam o âmbito puramente científico, no qual a utilização de métodos e técnicas seriam suficientes para dar conta dos resultados a alcançar. Nesse sentido, o CFPE estabelece que a prática dos tutores deve estar pautada em um conjunto de competências que se baseiam nas competências humanas para a saúde e que estão em sintonia com as funções do tutor, apresentadas no quadro 1. Dentre suas atividades, o tutor do CFPE deverá propor a discussão de situações-problema do cotidiano profissional do aluno, que é o cerne da metodologia do curso; avaliar os trabalhos elaborados pelos alunos; dar respostas às mensagens eletrônicas dentro da maior brevidade possível; registrar as avaliações do aluno no site do curso; esclarecer dúvidas pessoalmente ou por um dos meios de comunicação; gerir a aprendizagem do aluno, estimulando-o a buscar informações e a formular hipóteses. Essas ações não são predefinidas e pré-modeladas: cada tutor fará seu próprio percurso, carregado de sua experiência como docente, de acordo com a necessidade do aluno e com a situação que ele enfrenta. Deve-se ressaltar que a prática dos tutores é uma intersecção de diferentes contextos e regida por regulações organizacionais (Nóvoa, 1999), fatos que influenciam na autonomia desses profissionais. Além disso, essa mudança no papel educativo do tutor, requer, tal como para os professores, também uma mudança cultural (Nóvoa, 1999). Metodologia O estudo apresenta uma abordagem quanti-qualitativa tendo um olhar para a compreensão da prática dos tutores do CFPE. Segundo Goldenberg (1999, p.62), “a integração da pesquisa quantitativa e qualitativa permite que o pesquisador faça um cruzamento de suas conclusões de modo a ter mais confiança nos dados”. Este tipo de pesquisa permite entrevistar, aplicar questionários, investigar diferentes questões em diferentes ocasiões, utilizar fontes documentais e dados estatísticos (Goldenberg, 1999). Neste estudo foram utilizados o questionário e a entrevista. O questionário foi escolhido como instrumento apropriado para
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colher informações com os tutores em função da localização geográfica variada da população-alvo da pesquisa, levando-se em conta a praticidade para a obtenção de respostas e a facilidade de distribuição do instrumento. Para aprofundar algumas questões, foi escolhida a entrevista, pois esta é, segundo Gil (1994), uma forma de interação social na qual uma das partes está buscando coletar dados e a outra se apresenta como fonte de informação. O questionário foi elaborado com 55 perguntas fechadas, dez semi-abertas (respostas fechadas e abertas na mesma pergunta) e quatro questões abertas sobre aspectos da prática do tutor e da EaD. Esse questionário foi enviado por correio eletrônico para os coordenadores de Núcleo de Apoio ao Docente-NAD das cinco regiões do Brasil, que deveriam redistribuí-lo para os tutores de seu núcleo. Esse instrumento era acompanhado de uma carta de apresentação na qual se solicitava a participação dos tutores, e mais os termos de consentimento livre e esclarecido para utilização dos dados na pesquisa. Os coordenadores de NAD foram contatados previamente durante uma oficina de capacitação e, nesse encontro, eles se comprometeram a repassar o questionário aos tutores que estavam sob sua coordenação. Do total de 377 tutores trabalhando no projeto na época da pesquisa (2002 a 2004), 67 responderam ao questionário, enviando-o à pesquisadora tanto por correio eletrônico como por correio postal. A amostra do trabalho foi composta por esses 67 tutores que responderam ao questionário. Foram realizadas entrevistas com uma aluna, uma tutora e com uma coordenadora, gravadas em fita K-7. A transcrição foi literal e todo o conteúdo foi analisado, seguindo as etapas de pré-análise, exploração de material e tratamento dos resultados (Bardin, 1977). A fase de análise e interpretação dos resultados caracterizou-se pelas inferências e interpretações realizadas com base no levantamento dos temas e das categorias da análise de conteúdo. Para isso, foram considerados temas que exprimissem percepções dos tutores sobre a experiência de tutoria. A soma dos resultados gerados por esses instrumentos compõe um quadro amplo da prática dos tutores do CFPE, que permitiu fazer interpretações e aprofundar questões específicas envolvidas na realidade estudada. Resultados do estudo Caracterização da amostra A análise dos dados pessoais da amostra de tutores do CFPE mostrou que a grande maioria dessa população é constituída de mulheres, em média, com 45 anos, brancas, casadas, com filhos e naturais do Estado onde atuam como tutoras. A faixa salarial dos tutores do CFPE está em torno de dois a quatro mil reais, padrão que pode ser considerado alto para a realidade brasileira em relação ao salário das enfermeiras. O nível salarial dos tutores da região Centro-Oeste se equiparou ao de regiões mais desenvolvidas, como Sul e Sudeste. A formação dos tutores do CFPE é, majoritariamente, em enfermagem, com mestrado na área de saúde. Parte dos tutores estudados tem doutorado e poucos são especialistas, além de terem cursos de extensão em Informática ou, pelo menos, conhecimentos básicos na área, o que significa que o CFPE possui
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um quadro de tutores com formação adequada para o exercício das funções requeridas. Apropriação dos pressupostos pedagógicos do CFPE Muitos tutores afirmaram que já utilizavam os pressupostos pedagógicos do CFPE no ensino presencial e não apontaram dúvidas quanto ao entendimento desses pressupostos. No entanto, há uma contradição nesse aspecto, na medida em que muitos indicaram o núcleo contextual como o mais difícil, sendo justamente, neste núcleo, discutidos os pressupostos filosóficos e teóricos da educação, os quais fundamentam a formação pedagógica dos alunos. Este resultado pode indicar a dificuldade desses tutores, mestres e doutores em transpor a formação de racionalidade técnica de inspiração positivista para a prática pedagógica crítica e reflexiva, humanista e menos tecnocrata, citada anteriormente. Para executar um bom trabalho de tutoria, os tutores precisam também do comprometimento dos alunos quanto às atividades que têm de ser desenvolvidas. Entretanto, os tutores responderam que seus alunos não têm apresentado empenho nas leituras complementares, que fazem parte do roteiro de atividades. Isso pode representar mais trabalho para o tutor, que tem de incentivar o aluno a utilizar estratégias para tentar reverter a situação, e também pode repercutir no desempenho do aluno, gerando avaliações negativas. Os tutores do CFPE dão plantões de quatro horas semanais para os atendimentos presenciais, complementados pela orientação a distância ou presencial de duas a 16 horas semanais. Esse intervalo mostrou que há uma grande diferença quanto ao tempo de dedicação dos professores à tutoria. Os tutores informaram que dedicam de duas a quatro horas semanais para o estudo do material didático, que, somadas à sobrecarga de atividades cotidianas e profissionais, tornam o trabalho do tutor um exercício oneroso. Consideraram que a metodologia de EaD é mais difícil de ser assimilada pelo aluno do que por eles. O material didático do curso foi considerado bom pela aluna, pela tutora e pela coordenadora entrevistadas, por oferecer referenciais teóricos que estão modificando a prática educativa tanto do tutor quanto do aluno. Entretanto, apesar de ter sido considerado de boa qualidade pelas entrevistadas, isto não tem garantido que as alunas realizem as leituras complementares sugeridas. Na análise da entrevista com a aluna, pôde-se perceber que os aspectos metodológicos do curso e a relação pedagógica entre ela e sua tutora foram os fatores que contribuíram, satisfatoriamente, para a conclusão do curso. A metodologia enfatizada pelos pressupostos teóricos do CFPE foi posta em prática quando a tutora propôs a análise de um problema real, trazido pela aluna, que gerou discussões e atividades posteriores, coerentes com a metodologia da problematização (Berbel, 1998). A atuação da tutora foi considerada, pela aluna, como grande impulsionadora do desempenho no curso, já que criava situações interacionais com o grupo, mobilizando os alunos para a discussão e buscando deles o envolvimento nas tarefas. Para isso, a tutora estimulava o processo comunicacional, estando acessível a qualquer momento. Segundo a aluna, esse diferencial contribuiu para que ela e seus
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pares conseguissem um resultado satisfatório no curso, diferentemente de outros casos de tutores dos quais ela teve notícias por meio de outros alunos. Apropriação dos meios de comunicação Com respeito à utilização dos meios de comunicação, o telefone fixo foi o meio mais utilizado pelos tutores para comunicação com o aluno, seguido do correio eletrônico, celular, fax e correios. Apesar de a infra-estrutura do curso oferecer todos os meios para que a comunicação se efetive, nem sempre os alunos respondem satisfatoriamente à comunicação necessária, demonstrando certa resistência em utilizar os meios disponíveis para a comunicação. Nesse caso, o tutor utilizava o telefone fixo para manter contato, tanto para tirar as dúvidas sobre as atividades do curso, quanto para incentivá-los a permanecer no curso. Muitas vezes, esse incentivo repercutiu numa relação mais imediata e interativa, fato relatado pelos tutores. A ferramenta “Fale conosco” do site do curso não é utilizada, pois os tutores preferem utilizar seus próprios endereços eletrônicos para comunicação com os coordenadores, alunos e gerência.
Principais dificuldades enfrentadas pelos tutores Muitas atividades que o tutor e o aluno desempenham no seu cotidiano são difíceis para ambos, acarretando dificuldades tanto cognitivas (como, por exemplo, não dominar “o processo de internet” ou “entender o processo de EaD”), quanto operacionais (como, por exemplo, “a falta de comunicação com aqueles que não têm email”). Os dados permitem inferir que a modalidade de EaD ainda não foi culturalmente assimilada pelos tutores do CFPE, já que alguns consideraram que a interação com o aluno é fria e sentem falta do “olho no olho”. Os dados revelaram que o tutor tem dificuldade para dar conta de todas as atividades necessárias à tutoria, e o aluno tem dificuldade para cumprir os prazos estabelecidos pelo curso para entrega de trabalhos, em função da falta de tempo, pois, ambos, tutor e aluno desse curso, têm mais de um emprego (Polak & Reich, 2002). Outro problema enfrentado, relatado pelos tutores, diz respeito à comunicação com o aluno, que não é satisfatória, e os motivos que contribuem para isso podem ser não conseguir localizar o aluno ou pela falta de infra-estrutura de telecomunicações de alguns municípios, que impede a comunicação por telefone fixo e correio eletrônico. Mas, mesmo quando os meios estão disponíveis, a comunicação é insuficiente, talvez pela falta da cultura3 inerente ao processo educativo a distância. Os tutores consideram muito trabalhoso desempenhar a tutoria, seja por representar uma sobrecarga de trabalho, seja por ser uma nova experiência para a qual não há modelo predefinido a ser seguido. Para eles, dar conta de todas as exigências que o processo educativo a distância impõe e, ainda, manter a constante interação com o aluno, é um grande desafio.
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3 Cultura é entendida, aqui, como um conjunto de características humanas que não são inatas, e que se criam ou se preservam ou aprimoram por meio da comunicação e cooperação entre indivíduos em sociedade (Novo Aurélio, século XXI, 1999).
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A tutora entrevistada revelou que a oficina de tutores não foi vista como uma experiência proveitosa. A tutora apontou alguns pontos negativos da oficina, como o excesso de atividades a executar em um curto espaço de tempo e conversas dispersivas em detrimento da objetividade que seria necessária ao contexto. A entrevista com a coordenadora revelou suas atribuições relacionadas com a administração educacional do curso e o modo como resolveu questões relacionadas com a preparação dos tutores e com a comunicação entre tutores e alunos, criando pólos estratégicos para oferecer condições de o aluno participar das atividades presenciais, o que pode indicar necessidade de mudança em aspectos da administração do curso.
Conclusões e recomendações Os resultados obtidos neste estudo possibilitaram traçar um quadro da prática dos tutores do CFPE e permitiram avançar na compreensão dessa prática. Os resultados indicaram que os tutores do CFPE desempenham a função orientadora (Garcia Aretio, 2001), que visa todas as dimensões da pessoa humana, além da orientação planejada de todo o processo de aprendizagem do aluno. Essa conclusão pode ser um indício de que a prática dos tutores é coerente com a que foi idealizada pela coordenação do curso. Alguns aspectos da concepção pedagógica adotada pelo curso não foram completamente assimilados no transcorrer das atividades de tutoria. Isto pode ser resultado da dificuldade dos tutores em transpor a proposta pedagógica para a prática. No entanto, há indícios de que os pressupostos teóricos norteadores do construtivismo e da autonomia do aluno (Freire, 1996) foram fatores de impacto na prática dos tutores, sobretudo, se considerada a formação positivista dos profissionais de enfermagem (Torrez, 2001; Carvalho, 2000; Polak & Reich, 2002). A modalidade de EaD ainda não foi culturalmente assimilada pelos tutores do CFPE, na medida em que a interação a distância com o aluno é considerada “fria”. Essa percepção é aceitável se considerarmos que a cultura brasileira privilegia o contato físico, a comunicação, as relações de vizinhança, diferentemente da cultura européia, na qual se orienta o ensino a distância. Além disso, lidar com a distância pode ser ainda mais difícil para os profissionais de enfermagem, cuja prática se apóia intrinsecamente no contato físico. A questão da dificuldade de tutores e alunos em lidar com a não-presença física precisa ser objeto de estudos futuros sobre EaD. Neste sentido, cabe entender se essa é uma das questões culturais envolvidas no processo educativo a distância e especificamente ligadas ao público-alvo do CFPE, como já citado. Dada a importância do uso do telefone como meio de comunicação entre tutores e alunos do CFPE, sugere-se o estudo de aspectos metodológicos envolvidos na tutoria utilizando essa mídia, para que se possa, no futuro, obter melhor proveito de sua utilização. O telefone celular também é um meio de comunicação importante no contexto do CFPE, pelo fato de que os alunos do curso se deslocam bastante no seu dia-a-dia em função dos vários empregos. Mas, esse meio pode elevar os custos do curso ou o orçamento do aluno. Essa é uma questão que deve ser levada em consideração no desenvolvimento de
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cursos a distância para atingir profissionais como os do CFPE. Recomenda-se, assim, que seja assegurado o uso do 0800 no curso, e que seja criado um plantão do tutor exclusivamente para atendimento ao telefone, para ajudar tutores e alunos a enfrentarem a barreira da não-presença física e tirarem vantagem desse contato quase presencial. A questão do uso das tecnologias da informação e comunicação precisa ser discutida no âmbito do CFPE, na medida em que há problemas relativos tanto ao tutor que não usa o “Fale Conosco” do curso, quanto ao aluno que não usa o correio eletrônico satisfatoriamente, mesmo quando dispõem do recurso. Esta questão poderia estar relacionada à falta da cultura de EaD, à falta da apropriação da tecnologia e à ausência das condições ideais, principalmente do tempo livre necessário para o envolvimento no processo educativo a distância, por parte de alunos e tutores. Na educação profissional a distância, o fator tempo se revelou de extrema importância, na medida em que tanto tutor quanto aluno têm mais de um emprego, sobrecarga esta que limita o desenvolvimento adequado das atividades. Portanto, recomenda-se que um curso na modalidade de EaD, oferecido para profissionais com perfil como o dos enfermeiros, deve considerar o tempo como uma das maiores dificuldades a serem enfrentadas. Neste sentido, recomenda-se que a estrutura de um curso a distância de formação profissional ofereça flexibilidade nos prazos de envio de tarefas ou de provas, o que poderia diminuir a sobrecarga de trabalho de tutores e alunos. Outra questão que deve ser levada em consideração é quanto ao consenso sobre o papel que o tutor deve exercer em sua prática junto ao aluno, já que a literatura consultada (Landim, 1997; Maggio, 2001; Litwin, 2001; Garcia Aretio; 2001) aponta uma multiplicidade de papéis para esse profissional. Pelos relatos dos tutores, essa abrangência é um fator que gera insegurança em relação à sua prática, levando-os a necessitar de retorno dos supervisores e dos alunos para balizar sua atuação. Também podem ser objetos de reflexão questões relacionadas à profissionalização do tutor (Nóvoa, 1999) que envolvem a contabilização de aspectos como: tempo real dedicado à tutoria, gastos privados com telefonia e conexão à internet e horas extras de trabalho, o que viria a reduzir a faixa salarial desse profissional. Aponta-se, aqui, a necessidade de uma definição quanto aos papéis, competências e atribuições (Ramos, 2001) desse profissional. Visando criar uma memória da prática pedagógica dos tutores do CFPE, recomenda-se o registro, pela coordenação do curso, das experiências desses tutores, de modo a gerar um banco de dados a ser disponibilizado tanto em material impresso quanto no site do curso. Na comunidade de tutores do CFPE, essas informações poderiam ser discutidas, o que possivelmente levaria ao enriquecimento de sua prática (Perrenoud et al., 2001). A divulgação mais ampla desse banco de experiências poderia servir, ainda, de base para a prática de tutores de outros cursos a distância que tenham como contexto a educação profissional.
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BARBOSA, M. F. S. O.; REZENDE, F. La práctica de tutores en un programa de formación pedagógica a distancia: progresos y desafíos. Interface - Comunic., Saúde, Educ. Educ., v.10, n.20, p.473-86, jul/dez 2006. Este trabajo fue realizado en el ámbito del programa de formación pedagógica profesional a distancia para trabajadores del área de enfermería, buscando entender la práctica, los obstáculos y los desafíos de los tutores en la acción educativa a distancia. Los obstáculos principales relatados por los tutores fueron: dificultad en asimilar el modelo pedagógico constructivista en sus actividades pasar de la propuesta pedagógica a la práctica); dificultad en la asimilación de nuevas tecnologías; falta de infraestructura de telecomunicaciones de algunas ciudades; dificultad en realizar las actividades necesarias para el desarrollo del curso, por falta de tiempo. Los tutores consideraron un desafío desempeñar la tutoría ya que representa una nueva experiencia para la cual no hay modelo predefinido a ser seguido. Los resultados sugieren que la modalidad de la Educación a Distancia no fue aún culturalmente asimilada por los tutores y que superar la distancia puede ser todavía más difícil para los profesionales de Enfermería, debido a que tienen doble jornada de trabajo PALABRAS CLAVE: educación a distancia. educación profesional. enfermería. tutoria.
Recebido em 11/03/05. Aprovado em 28/06/06.
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Conhecimentos e práticas de tr abalhador as de trabalhador abalhadoras cr eches municipais rrelativ elativ os ao cuidado da creches elativos criança com infecção rrespir espir atória aguda espiratória Juliana Martins 1 Maria de La Ó Ramalho Veríssimo 2
MARTINS, J.; VERÍSSIMO, M. L. Ó. R. Experience and practices of municipal day care workers regarding taking care of children with acute respiratory infection. Interface - Comunic., Saúde, Educ. Educ., v.10, n.20, p.487-504, jul/dez 2006.
This study identified experiences and practices used by day care center workers in regard to prevention, early diagnosis and care of children with acute respiratory infections, given the extent of the problem in these locations. The data was collected during semi-structured interviews carried out with 14 children social workers and two nurse assistants from two municipal day care centers. The data was then organized in categories through thematic analysis of content and themes were quantified. Bronchitis was the most remembered illness, and fever, coughing and fatigue were the symptoms most mentioned; the seriousness were seldom mentioned; reference was made to negligence by mothers in causing ailments; many workers stated that they did not know how curb the occurrence of these illnesses. Some workers mentioned appropriate measures on how to carry out child care, but the majority based their actions on common sense and are unaware of specific care. Improvement of workers knowledge may help systematize care, as upheld by the Health Schools model. KEY WORDS: child health. child day-care centers. respiratory tract infections. professional practice. school health. Este trabalho identificou conhecimentos e práticas de trabalhadoras de creches relativos à prevenção, detecção precoce e manejo das infecções respiratórias agudas na infância, dada sua magnitude nesses locais. Após análise temática de conteúdo, os dados obtidos em entrevistas semi-estruturadas, com 14 auxiliares de desenvolvimento infantil e dois auxiliares de enfermagem de duas creches públicas, foram categorizados e quantificados. Bronquite foi o agravo mais lembrado, assim como febre, tosse e cansaço foram os sinais de doença mais referidos; os sinais de gravidade foram pouco citados; houve referência de associação das doenças ao descuido materno; muitas trabalhadoras referem desconhecer intervenções para diminuir a ocorrência desses agravos. Parte das trabalhadoras relatou ações apropriadas para o cuidado infantil, a maioria fundamenta suas ações no senso comum e desconhece cuidados específicos. A melhoria de conhecimentos pode favorecer a sistematização do cuidado, como preconizado no modelo das Escolas Promotoras de Saúde. PALAVRAS-CHAVE: saúde da criança. creches. infecções respiratórias. prática profissional. saúde escolar.
1
Departamento de Pediatria, Hospital Universitário, Universidade de São Paulo. <ju310781@yahoo.com.br>
Departamento de Enfermagem Materno–Infantil e Psiquiátrica, Escola de Enfermagem, Universidade de São Paulo. <mdlorver@usp.br> 2
1 Rua Caiubí, 1276, apto. 64 Perdizes - São Paulo, SP Brasil - 05.010-000
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Introdução A mortalidade infantil no Brasil vem apresentando taxas menores a cada ano, mas ainda apresenta índices elevados em algumas regiões do país, bem como em grupos populacionais que têm condições de vida precárias. Assim, a estimativa brasileira de mortalidade infantil em 2002, de 25,06, não exprime a realidade encontrada em muitos municípios do país e periferias de grandes cidades (Datasus, 2005a). No Brasil, as infecções respiratórias agudas (IRA) encontram-se entre as principais causas de morbidade e mortalidade infantil. Na cidade de São Paulo, aparecem como a primeira causa de óbitos infantis na faixa de um a quatro anos, compreendendo cerca de 25% destes, sendo a pneumonia a primeira causa isolada de mortalidade (Datasus, 2005b). Ainda, constituem a principal causa de consulta médica por doença na rede pública e de 20 a 40% das internações pediátricas (Brasil, 2002). A freqüência à creche é importante fator de risco para a ocorrência de IRA, devido a maior exposição das crianças aos agentes infecciosos pelo confinamento e aglomeração (Victora, 1998). Uma pesquisa acerca da mortalidade de crianças usuárias de creches no município de São Paulo constatou que 36,8% dos óbitos, no período de 1995 a 1999, foram por doenças respiratórias, sendo 29,6% por pneumonia. Nos menores de um ano, as doenças respiratórias foram responsáveis por 49,3% dos óbitos e atingiram 51% nas crianças de um a dois anos, índices que foram diminuindo nas idades superiores (Vico, 2001). Verificam-se, assim, maiores taxas de óbito por tais afecções na população de creches do que na população em geral, que ficou em torno de 25% nesse período (Datasus, 2006). Observando os resultados do estudo de Vico (2001), parece-nos que a mortalidade total entre as crianças que freqüentam creches seria inferior à mortalidade da população infantil em geral, mas a pesquisa não analisou os dados dessa forma. Seria importante a realização de estudos que pudessem esclarecer essa dimensão. Atualmente, as creches3 estão alocadas no setor da educação, sendo preconizado, pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), que a formação mínima de docentes para atuar na Educação Infantil seja de nível médio, modalidade magistério ou normal (Brasil, 1996). Com isto, pretende-se aprimorar o atendimento oferecido às crianças nessas instituições, dada a importância dos primeiros anos de vida no processo de desenvolvimento humano. Entretanto, ainda existem grandes variações na formação e capacitação profissional entre as trabalhadoras responsáveis pelo atendimento direto às crianças nesses locais. Isto se reflete nas diferentes denominações atualmente atribuídas a elas, tais como: auxiliar de desenvolvimento infantil (àquelas que não têm formação específica) ou professora de desenvolvimento infantil (as que têm formação específica e foram aprovadas em concurso), adotadas na Secretaria Municipal de Educação de São Paulo. Em que pesem essas diferenças, essas trabalhadoras, em geral, vêem o cuidado à criança como algo que não demanda habilidades ou
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3 Atualmente, a Educação Infantil engloba creches, que atendem crianças de zero a três anos, e préescolas, que atendem crianças de quatro a seis anos. Utilizaremos o termo creche neste artigo, embora as instituições estudadas contem com crianças de zero a cinco anos, considerando que este é o descritor mais conhecido na área.
CONHECIMENTOS E PRÁTICAS DE TRABALHADORAS...
conhecimentos específicos, de menor valor e subsidiário em relação à educação (Veríssimo & Fonseca, 2003). Tal compreensão relaciona-se à insuficiência da sua formação escolar para “o atendimento aos cuidados essenciais associados à sobrevivência e ao desenvolvimento da identidade” da criança (Brasil, 1998). O foco dessa formação centra-se na educação, mais especificamente, em disciplinas e conteúdos escolares (Veríssimo, 2001). Como afirma Barreto (1994), é um desafio para os mecanismos de formação contemplar a dupla função de educar e cuidar na educação infantil. Além disso, as instituições de educação infantil devem “garantir qualidade não só no aspecto individual da educação e cuidados, mas também naqueles de ordem coletiva e epidemiológica que minimizem riscos à saúde e promovam o pleno crescimento e desenvolvimento das crianças” (Vico, 2001, p.17), o que justifica o aprimoramento do cuidado relacionado ao controle das IRA nesses locais. A Organização Panamericana de Saúde (OPAS) preconiza as atividades educativas em saúde como uma das frentes para o controle das IRA (Benguigui, 1998). Isto se justifica uma vez que medidas apropriadas de prevenção, detecção precoce de sinais de doença, principalmente sinais de gravidade, e manejo adequado dos principais agravos que acometem crianças pequenas, dependem dos conhecimentos que sustentam as práticas de cuidado no domicílio e em outros locais onde as crianças permanecem no seu dia-a-dia. Entre as medidas de promoção da saúde e prevenção de agravos respiratórios, destacam-se: imunização, aleitamento materno, alimentação nutricionalmente adequada, higiene ambiental e pessoal para prevenção de disseminação de infecções – em especial, lavagem das mãos, higiene nasal, manutenção de ventilação no ambiente e desinfecção de objetos manuseados pelas crianças (Benguigui, 1998; Veríssimo & Sigaud, 2001). Em relação ao manejo adequado, inclui-se tanto a atenção padronizada pelos trabalhadores de saúde quanto o reconhecimento precoce de sinais de gravidade, ou seja, respiração rápida e dificuldade para respirar, demonstrada por retrações na caixa torácica. A presença desses sinais demanda atenção de saúde imediata e, portanto, é recomendado que todos os cuidadores infantis saibam identificá-los. Conforme Benguigui (1998), é fundamental que os responsáveis pelas crianças saibam quando devem buscar atenção fora de casa, bem como compreendam a necessidade de implementar corretamente as terapêuticas prescritas, uma vez que o tratamento antimicrobiano é essencial para a redução da mortalidade por pneumonia. Estas medidas de controle das IRA atualmente estão sistematizadas pela estratégia de Atenção Integrada às Doenças Prevalentes na Infância (AIDPI) (Veríssimo & Sigaud, 2001). Além disso, os primeiros anos de vida da criança são um período de formação de hábitos, que poderão durar por toda a vida, tais como o cuidado de si, da própria saúde. Sendo assim, a instituição educativa se constitui excelente lugar para aplicação de programas de promoção da saúde, que podem contribuir para a melhoria das práticas de cuidado diretamente oferecido às crianças, bem como estimular a adoção de hábitos saudáveis desde a infância. Para atender a esta perspectiva ampla do cuidado de saúde, a instituição educativa pode apoiar-se num referencial que supere a abordagem tradicional centrada em práticas curativas e higienistas. O referencial das Escolas
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Promotoras da Saúde responde a esta perspectiva, pois é uma estratégia de promoção da saúde no âmbito escolar, fundamentada nos princípios de educação para a saúde com enfoque integral e multidisciplinar; criação e manutenção de ambientes saudáveis e provisão de serviços de saúde para escolares (IppolitoShepher, 2003). Visa contribuir para a alfabetização em saúde que é “a capacidade para obter, interpretar e compreender informação básica sobre saúde e serviços, e a competência para usar essas informações e serviços para a melhoria das condições de saúde” (Ippolíto-Shepher, 2003, p.41). Como uma das etapas do desenvolvimento de um projeto de pesquisa e extensão universitária, fundamentado nos pressupostos das escolas promotoras de saúde, realizou-se o presente estudo, que teve como objetivo identificar conhecimentos e práticas de auxiliares de desenvolvimento infantil e auxiliares de enfermagem de creches municipais relativos à prevenção, detecção precoce e ao manejo das infecções respiratórias agudas infantis.
Metodologia O estudo foi realizado em 2002, em duas creches de administração direta do município de São Paulo, na região do Butantã, indicadas pela coordenação do NAE-12 (Núcleo de Ação Educativa), órgão responsável pelas creches municipais dessa região, considerando a percepção da coordenadora de que essas instituições seriam receptivas à pesquisa. Ambas as creches atendiam cerca de 130 crianças e, na época, todas as trabalhadoras que atuavam diretamente com as crianças eram denominadas Auxiliares de Desenvolvimento Infantil (ADIs), independente de sua formação. Uma contava com uma auxiliar de enfermagem e a outra com duas, porém uma delas não se encontrava em atividade no período da coleta de dados. Cada creche tem uma diretora e é supervisionada por uma encarregada do NAE-12. A orientação pedagógica é definida por uma pedagoga do NAE e a programação das atividades é feita em conjunto pela diretora e ADIs. A amostra foi constituída por 14 ADIs (cerca de 30% do total em atividade), indicadas pelas diretoras das creches e as duas auxiliares de enfermagem. Definiu-se esta população, pois as ADIs ficam permanentemente com as crianças, realizando todas as atividades educativas e de cuidado, e as auxiliares de enfermagem são as responsáveis pelas decisões relativas ao cuidado de saúde das crianças no serviço. O número de ADIs foi delimitado pela saturação das informações. A coleta de dados deu-se mediante entrevistas semi-estruturadas, realizadas pela pesquisadora, após treinamento. Partia-se de perguntas elaboradas anteriormente, e, quando necessário, eram citados alguns exemplos ou solicitados maiores esclarecimentos, para dar continuidade à entrevista. O formulário de entrevista foi pré-testado e continha uma parte de caracterização dos sujeitos e uma parte de questões abertas sobre conhecimentos e práticas relacionados às IRA. O projeto foi apreciado por Comitê de Ética e pela coordenação das creches do município de São Paulo. As trabalhadoras, após esclarecidas de acordo com as normas para pesquisa com seres humanos, expressaram seu consentimento assinando o termo de consentimento livre e esclarecido.
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As entrevistas foram gravadas, transcritas integralmente e submetidas à análise temática de conteúdo, que “consiste em descobrir os núcleos de sentido que compõem uma comunicação cuja presença ou freqüência signifiquem alguma coisa para o objetivo analítico visado” (Minayo, 1993, p.209). As fases seguidas para a análise temática foram leitura repetida das transcrições, buscando apreender as idéias de forma compreensiva; identificação dos temas presentes nos discursos e agrupamento dos temas segundo sua relação com as categorias de análise predefinidas. O referencial para discussão dos resultados foi o modelo das Escolas Promotoras da Saúde e a Estratégia de Atenção Integrada às Doenças Prevalentes da Infância. Os dados das ADIs e auxiliares de enfermagem foram analisados inicialmente em separado. Após a análise, optamos por apresentar em conjunto os resultados que não evidenciavam diferenças qualitativas entre os dois tipos de trabalhadoras e separadamente aqueles qualitativamente diferentes. Assim, utilizamos o termo trabalhadoras para nos referirmos a ambas as categorias e, quando necessário destacar uma ou outra categoria, utilizamos especificamente os termos ADIs ou auxiliares de enfermagem. Os resultados que se mostraram diferentes, segundo a escolaridade das trabalhadoras, estão discriminados. Foram utilizadas duas categorias de escolaridade: nível médio (62,5%), aquelas com ensino médio completo e superior incompleto, e nível fundamental (37,5%), aquelas com ensino fundamental incompleto e ensino médio incompleto. Resultados Caracterização das trabalhadoras As idades das trabalhadoras situavam-se na faixa de 41 a 63 anos, e todas eram do sexo feminino. Nove (56%) entrevistadas tinham ensino médio completo, e duas (12,5%), o magistério; três (19%) estavam cursando o magistério nível médio; uma (6%) tinha ensino médio incompleto; duas (12,5%) ensino fundamental incompleto (4ª e 6ª série), e uma (6%) trabalhadora possuía ensino superior incompleto. As duas auxiliares de enfermagem cursaram o ensino médio completo. O menor tempo de trabalho com educação infantil foi de três anos, e 69% (11) estavam há mais de dez anos nas creches do estudo. Quanto à capacitação específica em educação infantil, cinco (31%) se referiram ao treinamento de uma semana à época da admissão na creche (incluindo quem entrou há um ano e meio, assim como quem entrou há 15 anos), e cinco (31%) citaram cursos esporádicos realizados pela prefeitura. Os conteúdos do treinamento e dos cursos não foram relatados. Três (19%) entrevistadas disseram não ter nenhum tipo de capacitação específica; duas (12,5%) citaram palestras; uma (6%) citou o magistério, e uma (6%) um curso de baby-sitter. A maioria das ADIs exerceu ou exercia, na época, outras atividades de trabalho não relacionadas à educação infantil. Ao serem questionadas sobre o hábito de leitura, a maioria revelou ler esporadicamente jornais, revistas ou livros.
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Conhecimentos de trabalhadoras de creches sobre problemas respiratórios na infância Esta categoria originou-se dos temas: “problemas respiratórios conhecidos”; “problemas respiratórios mais comuns na creche”; “sinais dos problemas respiratórios”; “sinais de gravidade dos problemas respiratórios”, e “causas dos problemas respiratórios”. Apenas uma (6%) trabalhadora disse não se lembrar de qualquer problema respiratório, dez (62,5%) citaram nomes científicos e sinais clínicos, e cinco (31%) apenas sinais clínicos. Duas (12,5%) ADIs somente responderam após a entrevistadora ter citado alguns exemplos, visando a continuidade da entrevista. O agravo mais citado foi bronquite (mencionada por 50%), seguido de falta de ar/canseira (37,5%), pneumonia (19%), asma (12,5%), rinite (12,5%), resfriado (12,5%), além de tuberculose, laringite, tosse, chiado, coriza, olhos fundos, sinusite, enfisema pulmonar, “IVAS”, alergia a pó, crise alérgica, “ronquidão”, dificuldade para respirar, engolir e sugar, citados apenas uma vez cada. Rinite e resfriado foram citados apenas por trabalhadoras com ensino fundamental. Apesar de algumas participantes demonstrarem bastante segurança ao mencionar os problemas respiratórios conhecidos, outras demonstraram receio e dúvidas. pelo nome, assim? Por nome eu não sei dizer. Olha, eu não sei se seria, eu acho que é...?. Ué bronquite, né? Bronquite, pneumonia, tuberculose tá fora, não tá?
Ao perguntarmos sobre os problemas respiratórios mais comuns na creche, lembrávamos dos problemas citados e ainda de outros que não haviam sido respondidos na primeira pergunta, mas que se constituem em problemas epidemiologicamente destacados. O problema respiratório referido como mais comum na creche foi o resfriado (citado por 69%), seguido de pneumonia (50%), bronquite (50%), gripe (44%), infecção de garganta (37,5%), infecção de ouvido (19%), sendo citados, apenas uma vez, rinite alérgica, falta de ar, fadiga, crise alérgica, peito cheio e febre. A escolaridade não interferiu nas respostas. Dentre os sinais de problemas respiratórios, em primeiro lugar, apareceu mudança de comportamento, tal como “criança quieta”, “chorosa”, “amuada”, “fica molinha”, “muda o comportamento” (81% das respostas); seguido de febre (50%), perda de apetite (37,5%), coriza (37,5%), tosse (31%), falta de ar/cansaço (19%). Foram mencionados, ainda: “a criança se queixa” (12,5%), espirro (12,5%), olhos lacrimejando (12,5%), “a criança pede muita água” (6%). Perda de apetite, coriza e tosse foram citados em maior número pelas trabalhadoras com ensino fundamental. Ah, pelo olhar, o jeito mesmo (...). É a febre, aqui na creche é a febre. (...) tem muita coriza, o nariz escorre, espirra bastante, tosse (...)
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O sinal identificado pela maioria como de gravidade foi a febre, e, pela minoria, outros como tosse, mudança de comportamento, coriza e alterações da respiração (Gráfico 1); sendo citados, apenas uma vez: vômito, queixa da criança, resfriado constante, peito chiando, manchas no corpo. Eu acho que é febre, febre alta. A respiração, o olhar da criança (...).
No gráfico 2, aparecem as causas dos problemas respiratórios segundo as trabalhadoras. Clima inclui mudança de temperatura, friagem, poluição e vento. Falta de cuidado das mães abarca falta de higiene, andar descalço, sair sem agasalho, tomar gelado. Causas ligadas ao biológico são: falta de vitamina, alergias, herança genética, má alimentação, desenvolvimento de cada criança. Em relação ao ambiente, aparecem: a umidade, cheiro de tinta e de cera, falta de ventilação, poeira, pó. A transmissão foi relacionada ao contato com microorganismos e/ou ao início da freqüência da criança na creche, pela aglomeração de crianças. Muita coisa vem do ar, poluição, é do tempo, é difícil... (...) agora o que causa isto, eu acho que deve ser mesmo gripes e resfriados malcurados. (...) às vezes você fala, fala, e a mãe não cuida (...) Ah, se é uma criança que sai descalço, a gripe pega primeiro pelo pé (...) crianças que sai descalço, um frio às vezes sai sem um agasalho adequado, entendeu, tomar coisa muito gelada...
Gráfico 1. Sinais de gravidade referidos pelas trabalhadoras, segundo escolaridade.
70 60 50
Nível fundamental
30 20 10 Perda de ape tite
Tosse
Mudan ça de compo rtamen to Alteraç ões n respira a ção Coriza /catarr o espess o
0 Febre
%
Nível médio
40
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Gráfico 2. Causas dos problemas respiratórios citados pelas trabalhadoras, segundo escolaridade
80 70 %
60 50
Nível médio
40
Nível fundamental
30 20 10 Gripes /resf. mal cu rados
ões de vida Condiç
issão Transm
Ambien te
as Biológic
e cuida do da mãe Falta d
Clima
0
Quanto ao que as trabalhadoras consideravam importante saber para cuidar da criança com problema respiratório, a maioria das respostas (62,5%) foi genérica, como: “saber cuidar direito”, “saber o que fazer”. Os exemplos de cuidado foram: saber como agir com a criança, o que fazer para ajudar, socorrer a criança, alimentar direito, agasalhar, saber tomar providências, e saber diferenciar os problemas respiratórios. (...) eu acho que é necessário, sim, a gente estar sempre sabendo e aprendendo mais como tratar deles. Importante a gente entender um pouquinho para poder socorrer a criança, poder fazer alguma coisa com ele até a mãe chegar.
Algumas trabalhadoras (44%) relacionaram o cuidado ao conhecimento específico sobre o tema, destacando que precisariam de um melhor conhecimento para saber cuidar melhor. Houve referência à importância de “conhecer a situação da criança” (19%) e “maior atenção por parte da ADI” (6%). Uma das auxiliares de enfermagem disse que não há mais nada que as ADIs precisem saber, pois “as ADIs sabem de tudo”, restando apenas realizar aquilo que sabem. As fontes dos conhecimentos das trabalhadoras são bastante diversificadas, sendo citadas: a própria experiência de vida (56%), a convivência com as crianças na creche (56%), experiências com família, principalmente com os filhos (50%), e leituras (37,5%). Além destas, foram indicadas: orientações médicas (12,5%), troca de informações com as colegas de trabalho e treinamento recebido antes de entrar na creche (12,5%), e diálogo com os pais
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(6%). Uma auxiliar de enfermagem mencionou sua experiência de trabalho em hospital. A leitura foi citada em maior número por trabalhadoras com maior nível de escolaridade. Olha, eu acho que isso daí, com o tempo, principalmente a gente quando é mãe, a gente vai aprendendo aos poucos e as mães, as avós também falam muito sobre estas coisas.
Observando em separado as respostas das auxiliares de enfermagem, verifica-se que não há diferenças expressivas na maioria das questões: apenas uma delas nomeia agravos; ambas citam sinais clínicos para caracterizar os problemas respiratórios; associam, como suas causas, mudanças climáticas, falta de cuidado e de higiene, e têm, como principal fonte de conhecimento, a prática cotidiana. Porém, ambas citam sinais mais específicos (tosse e dificuldade para respirar) de IRA. A prática das trabalhadoras de creches relativa aos problemas respiratórios na infância Formou-se esta categoria pelos temas: “ações da ADI quando a criança tem sinal de problema respiratório”; “ações da trabalhadora de enfermagem na creche”; “medidas para controlar os problemas respiratórios”; “dificuldades para o cuidado da criança com problema respiratório”. As ações das ADIs, quando ocorre uma situação de problema respiratório, constituem, em sua maioria, ações de âmbito individual, destacando-se: encaminhar para a enfermagem, chamar a mãe, e atividades relacionadas diretamente aos sinais físicos, principalmente no que diz respeito à febre, e promoção de conforto e bem-estar (Gráfico 3). Se tiver febre alta, a gente pode até fazer compressas, ou dar um banho, não digo gelado, mas um pouco frio. Um banho, pra poder ajudar a baixar a febre. Se ela estiver dormindo, procuro elevar mais a cabeça dela para que ela fique em uma posição com a cabeça mais elevada, observo mais.
A medicação aparece como uma prática realizada na creche, desde que haja autorização materna ou prescrição médica, e várias trabalhadoras ressaltaram o fato de não poderem dar medicação sem a autorização da mãe como um limite a suas ações: A gente dá banho, medicar a gente não pode, é limpar o nariz, ficar observando, a gente dá água.
A limpeza nasal só acontece caso a secreção esteja saindo naturalmente, e não são realizadas freqüentemente medidas para fluidificar a secreção como, por exemplo, a instilação de soro nasal ou aumento da oferta de líquidos. Chama a atenção que várias ADIs finalizam sua resposta dizendo não saber o que fazer com a criança que apresenta algum sinal de problema respiratório, ou que não há muito que fazer na creche nesses casos, mencionando falta de
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orientação e de recursos, ainda que algumas delas tenham citado ações apropriadas ao cuidado infantil. Acho que é só, aqui não dá pra fazer muito, a gente não tem orientação. Geralmente, é encaminhada pra estar levando ao hospital, alguma coisa do tipo, aqora, aqui dentro da unidade eu acho que a gente não tem recurso pra isto.
Entre as medidas de higiene para evitar a transmissão, foram citadas: deixar a sala bem arejada e ventilada (31%); lavar bichinhos do berçário; separar colchonetes; deixar sempre o ambiente limpo; trocar diariamente os lençóis; orientar a criança a limpar o nariz com papel higiênico e depois lavar as mãos; ensinar a criança a colocar a mão na boca quando espirra; não secar a criança com a mesma tolha usada em outra; usar papel descartável para limpar o nariz; não misturar com os outros – citados uma vez cada. Apenas uma ADI mencionou várias destas medidas. Ah, a gente procura deixar a sala bem ventilada, não secar a criança com a mesma toalha, trocar o lençol, porque geralmente elas dormem, aí tira o lençol que elas deixam aquela secreção no lençol, aí a gente troca (...).
Gráfico 3. Ações realizadas pelas ADIs quando ocorrem situações de problemas respiratórios na creche, segundo escolaridade. 100 90 80 %
70 60
Nível médio
50
Nível fundamental
40 30 20 10 Relac aos sin ionadas ais físic os Confort o e be m-esta r Medica ção Limpez a nasa l Evitar exposiç ão ao frio Aspecto s emo cionais Chama r a mãe Evitar a trans missão Não sa bem o que faz er Encam inhar p a ra a enferm agem
0
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(...) a gente orienta bem a criança de estar limpando o nariz com papel higiênico, lavando a mãozinha após limpar para não passar também para outras crianças (...) (...) deixar sempre tudo muito arejado, pra que eles não tenham e a gente também não.
As auxiliares de enfermagem e três ADIs mencionaram ações que consideram serem exclusivas da trabalhadora de enfermagem, como: entrar em contato com a família, dar medicação e outros cuidados específicos (limpeza nasal, verificar temperatura), e providenciar encaminhamento ao serviço de saúde. Aí encaminha pra enfermeira daqui, aí ela encaminha pra mãe levar ao médico, dá o encaminhamento.
Uma das auxiliares, ao ser questionada sobre suas ações com a criança com problema respiratório, disse que não podia fazer nada. Entretanto, logo em seguida citou várias medidas eficazes no controle dos problemas respiratórios, como tapotagem e preparação do soro caseiro para limpar as narinas. A dificuldade mais citada pelas trabalhadoras, quando da ocorrência de agravo respiratório, foi a necessidade de maior atenção à criança (44%), seguida de: dificuldade de encontrar a mãe (19%), dificuldade na alimentação (19%), a mãe levar a criança doente para a creche (12,5%), dificuldades para evitar a transmissão (12,5%), desconhecimento dos sintomas, dificuldade para identificar gravidade e para socorrer, não poder tomar providências, dificuldade na higiene, no entrosamento da criança nas atividades, e falta de recursos materiais e humanos – citados uma vez cada. Uma única trabalhadora não mencionou dificuldades. Ela vai precisar de mais atenção, ela vai ficar mais quieta, você vai ter que insistir mais para ela comer, coisa assim. (...) a dificuldade maior, muitas vezes é quando não acha a família para vir buscar (...)
A maioria das entrevistadas disse não saber o que fazer para prevenir, controlar ou diminuir os problemas respiratórios (Gráfico 4), algumas por desconhecerem medidas para isto, e outras por concluírem que não estão ao seu alcance, uma vez que entendem que tais problemas são causados por fatores relacionados à natureza. Acho que até dá, mas eu não sei o procedimento para terminar com..., eu acho que até tem, na verdade, mas assim especificamente eu não sei. Como que nós vamos diminuir estes problemas respiratórios, aqui em São Paulo, com esta poluição?
Em relação aos cuidados com o ambiente, aparecem ações relacionadas com a
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limpeza, como deixar o ambiente arejado, sem cortinas e tapetes. Os cuidados diretos à criança são: alimentação, não tomar chuva, friagem, e não andar descalço. Tem que estar sempre limpinho, não tem que ter muita cortina, muito tapete, tem que estar sempre muito limpinho, tomar bastante líquido, se alimentar bem. Eu acho que depende muito da própria mãe e do pai, de levarem eles, eles de terem o cuidado de levarem ao médico sempre que necessário (....)
Foram citadas, isoladamente, hipóteses que as trabalhadoras formulam, mas cuja viabilidade desconhecem, como uma vacina, medicamento ou algum trabalho com os pais. Ah, se tiver algum tipo de trabalho, alguma coisa assim com os pais, alguma coisa assim, dá pra diminuir, mas como, ao certo, eu não sei te dizer.
Discussão Os dados de caracterização das trabalhadoras das creches investigadas mostramse um pouco melhores do que os encontrados na rede de creches municipais em São Paulo há poucos anos, quando a maioria possuía apenas ensino fundamental completo ou incompleto (Vico, 2001; Avancini, 2000). Talvez esse fato deva-se à localização das creches em uma região próxima ao centro da cidade, ou porque esteja havendo uma melhoria no quadro, conforme preconizado pela LDB. Ainda assim, uma porcentagem significativa das trabalhadoras tem baixo nível de escolaridade e a maioria não possui capacitação específica para o trabalho com educação infantil, a despeito de atuar na área há muitos anos. Isto mostra como ainda há um grande caminho a ser percorrido até que seja atingido o patamar recomendado na lei quanto à formação profissional dos educadores de creche/pré-escola (Brasil, 1996). Em relação aos conhecimentos das trabalhadoras sobre IRA, um grande número identifica-os por meio de sinais clínicos, vários destes efetivamente relacionados a essas patologias, mas alguns inespecíficos, pois também se manifestam em outros problemas de saúde. A bronquite foi a principal doença respiratória citada como conhecida, provavelmente por apresentar elevado índice de morbidade. As afecções do trato respiratório superior, como gripe, resfriado, dor de garganta, e otite, apesar da alta incidência na população infantil, foram pouco lembradas. Possivelmente, porque não são compreendidas pelas trabalhadoras como respiratórias, o que denota sua pouca familiaridade com as classificações científicas. Quase todas as trabalhadoras se referiram à gripe ou ao resfriado como os agravos mais comuns nas creches, o que é compatível com sua incidência, pois se trata de doença “comum” da infância, que ocorre rotineira e repetidamente. Segundo Bricks & Leone (1996), em estudo realizado em creches da rede pública municipal de São Paulo, os dez principais diagnósticos de morbidade
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Gráfico 4. Medidas citadas pelas trabalhadoras para controlar/diminuir os problemas respiratórios na creche, segundo escolaridade
50 40 %
30 Nível médio 20
Nível fundamental
10
Não sa be
Depen de dos pa is
Cuidad os com a criança
Cuidad os com o ambien te
0
levantados estavam relacionados ao aparelho respiratório, entre eles, resfriado, bronquite e amigdalite. A pneumonia também foi citada como agravo freqüente nas creches, o que chama a atenção, pois não chega a ser propriamente um agravo freqüente, como as afecções de vias aéreas superiores. Mas a percepção das educadoras se coaduna aos elevados índices de incidência e hospitalização por pneumonia na infância, caracterizando sua maior gravidade, o que pode explicar ser um evento marcante na sua memória. Segundo levantamento feito nas creches em questão, a incidência de pneumonia em crianças menores de três anos, em 2003, foi de 0,16 casos/criança-ano em uma delas, e 0,68 na outra (Veríssimo, 2005). Considerando que estes dados foram obtidos nos registros locais, devem estar subestimados, pois se referem, principalmente, aos casos diagnosticados no período letivo e que deram continuidade ao tratamento na própria creche. As trabalhadoras mencionaram, como sinais de doença respiratória e de gravidade, tanto sinais específicos como inespecíficos, sendo que os sinais específicos de agravos respiratórios foram citados por um pequeno número de trabalhadoras. Tal como apontado na introdução, é fundamental que os cuidadores de crianças reconheçam os sinais de gravidade que demandam atenção de saúde imediata. Conforme destacam Chiesa & Bertolozzi (1997), o desconhecimento dos sinais que realmente demandam intervenção ou indicam gravidade pode resultar em demora na procura de atenção, ou mesmo em não procura e, conseqüentemente, em maior probabilidade de agravamento dos casos, restringindo as possibilidades de tratamento e recuperação das crianças e explicando, em parte, os óbitos infantis por esta causa. Também podem levar a
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um excesso de encaminhamentos aos serviços médicos, gerado pela preocupação com todo tipo de sinais. A grande maioria demonstrou não conhecer as principais causas dos problemas respiratórios, mesclando informações de senso comum e crenças populares a noções oriundas da ciência, incluindo as auxiliares de enfermagem. Assim, relacionam a causa a fatores climáticos e falta de cuidado da mãe. Notamos que a maioria das trabalhadoras não sabe diferenciar os fatores que causam os problemas respiratórios diretamente daqueles que favorecem ou contribuem para o adoecimento. A preocupação das trabalhadoras com a necessidade da criança transparece quando elas destacam como principal ação chamar a mãe para que ela providencie atenção médica. Por outro lado, são realizadas medidas esporádicas para o controle e prevenção desses agravos na creche. Assim, por exemplo, foram pouco citadas medidas de prevenção de disseminação de infecções, que são imprescindíveis particularmente em ambiente coletivos, tais como a lavagem das mãos, higiene nasal, manter o ambiente ventilado. Apenas uma ADI falou da lavagem das mãos, embora seja considerado princípio universal de higiene. Nas creches, essa prática simples e eficaz é uma das mais difíceis de acontecer, quer seja na freqüência desejável, quer no modo correto de realizá-la (Maranhão, 1998; Vico, 2001). Isso demonstra que não há sistematização de ações voltadas ao controle de infecções na instituição, o que pode ser devido a dois grupos importantes de razões: conhecimentos limitados sobre causas do adoecimento e a percepção das trabalhadoras quanto às suas funções profissionais. Observa-se, no discurso das trabalhadoras, apreensão parcial do conhecimento, possivelmente devido ao fato de este se construir no cotidiano, a partir das experiências, mas sem aprofundamento do assunto. Muitas medidas são mencionadas sem compreensão de sua utilidade, como no caso citado da higiene, que é referido como um problema principalmente doméstico, não sendo compreendido como um fator de risco maior na creche do que no domicílio. Tal pode ser observado também nas causas de IRA referidas, como má alimentação e aspectos do ambiente doméstico, que se denota serem relacionadas à precária condição de vida das famílias, enquanto problemas individuais, não havendo uma reflexão mais abrangente das causas sociais e seu impacto sobre a saúde infantil. Além disto, cerca de metade das trabalhadoras diz não saber o que fazer, ou que na creche não há o que fazer para prevenir e controlar os problemas respiratórios. Isto reforça a falta de conhecimento acerca da importância dos cuidados que realizam com este fim, bem como pode indicar falta de valorização às ações de cuidado, decorrente da compreensão de estas estarem além de suas competências profissionais. Por outro lado, a idéia de que “não há muito que fazer na creche”, porque faltam recursos humanos e materiais, sugere que as trabalhadoras pensam em ações de diagnóstico e tratamento específico, as quais, realmente, não são do âmbito de sua competência. Mas, há medidas de proteção à saúde que devem ser implementadas na instituição, de maneira sistemática e fundamentada, garantindo o bem-estar infantil. Embora todas as trabalhadoras apresentemse preocupadas com a situação de saúde das crianças e realizem várias medidas de cuidado, elas percebem-se muito mais limitadas do que são
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realmente, bem como não têm experimentado oportunidades de aprimoramento em questões do cuidado de saúde. Quanto aos relatos que enfatizam que quem deve cuidar da criança, quando ela adoece, é a mãe, bem como os que culpam a mãe pelo adoecimento infantil e apontam como grande dificuldade encontrar a mãe quando necessário, foi possível perceber uma relação conflituosa entre as trabalhadoras e famílias, que precisa ser melhor identificada e trabalhada. Esta é possivelmente gerada por uma compreensão de que a creche seja uma entidade educativa, e não assistencial, bem como pela concepção materna vigente em nossa sociedade, segundo a qual a mãe é a principal provedora de cuidado e educação infantil. Entretanto, a creche também tem a função de compartilhar os cuidados e a guarda da criança com a família, o que inclui garantir ambiente saudável e atenção ao desenvolvimento e à saúde individual (Brasil, 1998). A própria decisão de chamar ou não a mãe é de sua competência e depende da capacidade das trabalhadoras para identificar e interpretar os sinais de comprometimento de saúde. Embora a escolaridade das trabalhadoras não tenha resultado em diferenças em algumas questões, mostrou-se como um fator possivelmente associado aos conhecimentos de causas específicas dos agravos respiratórios, à implementação de ações de controle de transmissão, à utilização de leituras como fonte de conhecimento, e à percepção de pouco conhecimento sobre o tema – respostas apresentadas em maior proporção entre as com nível médio de ensino. Isto aponta a relevância da melhoria do nível educacional das trabalhadoras como intrínseca à possibilidade de oferecer cuidados e educação mais adequados na instituição educativa, mas não suficiente. Um primeiro desafio é o de que as trabalhadoras assumam o cuidado como ação profissional. Para tanto, além das mudanças na formação, é imprescindível a formação continuada em serviço, que abranja aspectos tanto relativos ao processo educativo como ao cuidado cotidiano. A implementação de cuidados adequados também favorece a formação de hábitos saudáveis nas crianças, que tem início desde a mais tenra idade – o que pode ser alcançado com o componente da educação em saúde com enfoque integral, que abrange inserir educação em saúde no projeto institucional e desenvolver conhecimentos e habilidades para estilos de vida saudáveis. A estratégia das Escolas Promotoras da Saúde define que a promoção da saúde, no âmbito escolar, tem três componentes relacionados entre si: educação em saúde com enfoque integral, incluindo o desenvolvimento de habilidades para a vida; criação e manutenção de ambientes físicos e psicossociais saudáveis; oferta de serviços de saúde, alimentação saudável e vida ativa (Ippolíto-Shepher, 2003). Os aspectos discutidos neste estudo relacionam-se a estes componentes, razão pela qual afirmamos seu potencial para contribuir para a qualificação do cuidado oferecido na creche. Particularmente para a realidade das creches e pré-escolas, o documento de credenciamento das creches australianas apresenta propostas aplicáveis que correspondem a esses componentes, como a seguir: toda a equipe é capacitada e pronta a observar sinais de doenças em crianças; a creche oferece apoio e recursos para a equipe e para os pais a respeito de muitos aspectos da saúde e do bem-estar das crianças; a equipe é fiel a princípios de higiene, o que reduz a propagação de doenças infecciosas; a equipe incentiva a criança a seguir regras
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simples de higiene; a equipe está familiarizada com procedimentos médicos, de emergência e em caso de acidentes; a equipe é incentivada a participar de cursos relacionados à saúde infantil e adulta; a equipe se reúne regularmente para discutir saúde infantil e adulta, e para conversar com os pais (Piotto et al., s.d.). Considerações finais e recomendações Pensar a questão do cuidado de saúde na creche e pré-escola não significa substituição da ação da instituição de saúde. Assim, o que se espera das trabalhadoras não é uma ação diagnóstica, mas atuação adequada na prevenção e controle de agravos no cotidiano, ou seja, a sistematização de conhecimentos e práticas que viabilizem o cuidado profissional das crianças, tal como preconizado para as instituições de cuidado e educação infantil. Dada a magnitude das IRAs na infância, é imprescindível definir metas de qualidade do cuidado nesses ambientes, voltadas para transformar esse quadro. Uma das ações prioritárias seria a educação em saúde na formação e educação continuada das trabalhadoras, proposta na estratégia das Escolas Promotoras de Saúde (Ippolito-Shepher, 2003). Como afirmam Amorim et al. (2000, p.16) a formação fará com que instituição e educadores passem a ativamente assumir seu papel de agentes de saúde, tornando-os mais aptos a diagnosticar precocemente e encaminhar mais adequadamente as diferentes doenças que possam acometer as crianças. Além disso, possibilitará que tenham tanto uma perspectiva preventiva, como competência para dar assistência de emergência, em caso de necessidade.
Agradecimentos À Fapesp, pelo apoio mediante bolsa de iniciação científica, Processo 02/06967-6.
Referências AMORIM, K. S.; YAZLLE, C.; ROSSETTI-FERREIRA, M. C. Binômios saúde-doença e cuidado-educação em ambientes coletivos de educação da criança pequena. Rev. Bras. Cresc. Desenv. Hum., v.10, n.2, p.3-18, 2000. AVANCINI, M. Pesquisa mostra má qualidade de creches. O Estado de São Paulo. São Paulo, 30 out. 2000. Caderno A, p. 7. BARRETO, A. M. R. F. Por que e para que uma política de formação do profissional de educação infantil? In: BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria de Educação Fundamental. Por uma política de formação do profissional de educação infantil. Brasília: COEDI/MEC, 1994. BENGUIGUI, Y. Bases técnicas para a prevenção, diagnóstico, tratamento e controle das IRA no primeiro nível de atenção. In: BENGUIGUI, Y.; ANTUÑANO, F. J. L.; SCHMUNIS, G.; YUNES, J. Infecções respiratórias em crianças. Washington: OPAS, 1998. Cap.16, p.335-53 (Série HCT/AIEPI-1.P).
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MARTINS, J.; VERÍSSIMO, M. L. Ó. R. Conocimientos y prácticas de trabajadoras de guarderías infantiles municipales relativos al cuidado del niño con infección respiratoria Educ v.10, n.20, p.487-504, jul/dez 2006. aguda. Interface - Comunic., Saúde, Educ., Este trabajo identificó los conocimientos y prácticas de las trabajadoras de guarderías referentes a la prevención, detección precoz y manejo de las infecciones respiratorias agudas en la infancia, debido a su gran magnitud en esos lugares. Los datos fueron recolectados en entrevistas semiestructuradas, organizados en categorías a través del análisis temático de contenido y los temas fueron cuantificados. Participaron 14 auxiliares de desarrollo infantil y duas auxiliares de enfermería de dos guarderías públicas. La bronquitis fue el agravante más mencionado, y la fiebre, tos y cansancio fueron las señales más referidas de la enfermedad; las señales de gravedad fueron poco citadas; hubo referencia de asociación de las enfermedades con el descuido materno; muchas trabajadoras desconocen las intervenciones para disminuir la ocurrencia de esos agravantes. Parte de esas trabajadoras hizo referencia a acciones apropiadas para el cuidado infantil, la mayoría fundamenta sus acciones en el sentido común y desconoce los cuidados específicos. La mejoría de los conocimientos podrá facilitar la sistematización del cuidado como fue preconizado en el modelo de las Escuelas Promotoras de la Salud. PALABRAS CLAVE: salud del niño. jardines infantiles. infecciones del tracto respiratorio. práctica profesional. salud escolar.
Recebido em 31/01/05. Aprovado em 31/05/06.
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Ação social e intersetorialidade: relato de uma experiência na inter face interface entr a entree saúde, educação e cultur cultura
espaço aberto
Roseli Esquerdo Lopes1 Ana Paula Serrata Malfitano 2
Oficina de fotografia, Núcleo UFSCar do projeto Metuia e projeto Rotas Recriadas Centro de convivência Tear das Artes, 2005
Este trabalho teve apoio da Secretaria de Ensino Superior do Ministério da Educação, por meio do Programa de Apoio à Extensão Universitária Voltado às Políticas Públicas– PROEXT 2004 /SESu-MEC, e da Pró-Reitoria de Extensão da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).
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1 Professora adjunta, Departamento de Terapia Ocupacional e Programa de Pós-Graduação em Educação, UFSCar; coordenadora, projeto Metuia, São Carlos, SP. <relopes@power.ufscar.br> 2 Terapeuta ocupacional, projeto Rotas Recriadas e projeto Metuia; professora assistente substituta, Departamento de Terapia Ocupacional, UFSCar. <amalfitano@uol.com.br>
1 Departamento de Terapia Ocupacional, Universidade Federal de São Carlos. Rodovia Washington Luiz, Km 235 Caixa Postal 676 - São Carlos, SP Brasil - 13.565-905
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ESPAÇO ABERTO
O serviço: apresentando as rotas e seus desafios Apresentamos a experiência de um projeto de extensão desenvolvido por meio da parceria entre Universidade e Serviço, envolvendo a Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e o projeto Rotas Recriadas – Campinas/ SP3. Esta experiência contou com financiamento do Ministério da Educação, por intermédio da Secretaria de Ensino Superior – SESu, Programa de Apoio à Extensão Universitária voltado às Políticas Públicas – PROEXT/ 2004, e da Pró-Reitoria de Extensão da UFSCar. O projeto Rotas Recriadas: crianças e adolescentes livres da exploração sexual em Campinas-SP4 foi implementado pela Prefeitura Municipal de Campinas, em uma proposta intersetorial, que reuniu ONGs (Organizações Não-Governamentais) locais por meio do Conselho Municipal de Direitos da Criança e do Adolescente – CMDCA/ Campinas. Esse projeto contou com um financiamento da empresa Petrobras, com recursos de isenção fiscal. A equipe da empresa Petrobras – com base no conhecimento das rotas de exploração sexual de crianças e adolescentes – convidou, em 2004, sete parceiros técnicos para o desenvolvimento de projetos de intervenção e elaboração de metodologias sociais (pesquisa-ação) de enfrentamento ao referido fenômeno. Foram eles: Manaus e Belém: Centros de Defesa; Piauí: Universidade Federal do Piauí (intervenção em quatro municípios); Aracajú: Prefeitura Municipal de Aracajú; Goiânia: Universidade Católica de Goiânia (intervenção em quatro cidades); Foz do Iguaçu: ONGs, e Campinas: Prefeitura Municipal de Campinas e Conselho Municipal de Direitos da Criança e do Adolescente (Campinas, 2004a). A temática da violência na sociedade perpassa as esferas da cultura, do imaginário, do contexto social, incluindo a violência sexual como um de seus componentes. A violência sexual envolve uma gama de conceitos e problemáticas que são de extrema complexidade, exigindo ações articuladas, intersetoriais e interdisciplinares para seu enfrentamento. Sua compreensão deve englobar o abuso sexual intra e extrafamiliar, atentado violento ao pudor, estupro e a exploração sexual comercial (Faleiros, 2000). A violência sexual contra crianças e adolescentes acontece em escala mundial, esteve sempre presente em toda a história da humanidade, e em todas as classes sociais, articulada ao nível de desenvolvimento e civilizatório na sociedade em que acontece. (...) É consensual nos estudos sobre a violência sexual contra crianças e adolescentes que esta é uma relação de poder entre desiguais, exercida através da dominação e/ou da sedução. (Faleiros, 2005, p.2)
O aspecto da relação de poder abordado por Faleiros é consensual nas diversas explicações sobre o fenômeno da exploração sexual, sendo aqui entendido como o uso da criança ou do adolescente para propósitos sexuais em troca de algo (favores, dinheiro, afeto, etc.), praticado por um cliente, familiar, intermediário, agenciador ou qualquer pessoa que se beneficie dessa prática por meio de uma relação de poder (Hazeu, 1998). A exploração sexual comercial de crianças e adolescentes desdobra-se nas modalidades atualmente evidenciadas no mundo da economia global: prostituição, turismo sexual, pornografia e tráfico para fins sexuais (Leal, 2003). As ações desenvolvidas pelo projeto Rotas Recriadas dedicaram-se ao enfrentamento da subcategoria prostituição, evento fortemente constatado na cidade e região. Para o estabelecimento das ações, considerando as multicausalidades que envolvem a problemática da violência sexual infanto-juvenil, acredita-se ser essencial a implantação de programas intersetoriais e a construção de redes de serviços, com fluxos complementares (Vasconcelos & Malak, 2002).
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Projeto desenvolvido pelo Programa de Extensão da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar): Metuia – Terapia ocupacional no campo social. O projeto Metuia é um grupo interinstitucional de estudos, formação e ações pela cidadania de crianças, adolescentes e adultos em processos de ruptura das redes sociais de suporte, do qual participam docentes, discentes e profissionais da área de terapia ocupacional de três universidades paulistas: Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Universidade Federal de São Carlos e Universidade de São Paulo (Barros et al., 2002). Dedica-se à realização de estudos, pesquisas, formação de alunos de graduação e pósgraduação e implementação de intervenções, no campo social, que discutam o papel social dos técnicos, em especial do terapeuta ocupacional, e suas contribuições no enfrentamento de problemáticas contemporâneas.
4 Projeto premiado no 4º. Marketing Best de Responsabilidade Social, tendo sido apresentado pela empresa Petrobras, por meio de seu financiamento para implementação das ações.
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Nessa direção, o projeto Rotas integrou, para a constituição da rede, o Plano Municipal da Infância e Juventude e o Plano Municipal de Enfrentamento à Violência Sexual InfantoJuvenil (Campinas, 2003). Buscando contemplar a interface entre os campos de atuação, no intuito de constituir uma proposta intersetorial e interdisciplinar, o projeto foi desenhado em eixos de intervenção, a saber: · Prevenir – oferta de atividades culturais e esportivas para os adolescentes, constituindo espaços de convivência nos bairros e fomentando grupos associativos e/ou cooperativas. · Buscar e diagnosticar – implementar um sistema de informação unificado; realizar busca ativa das crianças e adolescentes em pontos conhecidos, por meio de educadores sociais. · Cuidar e proteger – oferta de tratamento médico, psicológico, terapêuticoocupacional, trabalho corporal, terapias complementares, prevenção DST/ AIDS, redução de danos, etc. Apoio jurídico, casa de acolhimento provisório, retorno familiar, auxílio financeiro para proteção (bolsa auxílio). · Capacitar – capacitar profissionais participantes do projeto e da rede local de equipamentos sociais (servidores públicos e de ONGs, lideranças do bairro – adultos e adolescentes). · Comunicar – produção de material informativo e educativo, divulgação nos meios de comunicação oficial e na mídia. · Fiscalizar – criar uma rede de ajuda entre as instituições públicas que têm, entre suas missões, a fiscalização, como: o Conselho Tutelar, Ministério do Trabalho, Ministério Público, Vara da Infância e Juventude, Delegacia da Mulher, dentre outras. · Gestar - acompanhamento das ações, prestação de contas, captação de financiamento. A gestão é realizada por intermédio de uma coordenação para cada eixo e de um colegiado (Campinas, 2004a). Este trabalho se detém na discussão das ações centradas nos eixos Prevenir e Cuidar, apresentados, a seguir, com mais detalhes. Eixo Cuidar
5 A divisão distrital segue os princípios do Sistema Único de Saúde – SUS, que preconiza a descentralização do atendimento à saúde, de modo que o território de Campinas encontrase subdividido em cinco regiões/distritos, com serviços de saúde circunscritos a cada um.
O eixo Cuidar foi concebido com o intuito de oferecer à população-alvo cuidados em saúde, em especial em saúde mental, para apoio, formação de vínculo e auxílio para a construção conjunta e participativa de novos projetos individuais que se traduzam na (re)criação de novas rotas e percursos em suas vidas. Para a realização do trabalho, foram escolhidas, como estratégia de implementação, três ações: inserção de um técnico de saúde mental em cada distrito de saúde da cidade5, criação de uma equipe especial para a região central, local notoriamente reconhecido enquanto espaço de maior concentração da temática no município, e alocação de um técnico para atuar em um bairro historicamente conhecido como área de prostituição local. A equipe do eixo Cuidar elegeu o acolhimento, a escuta qualitativa, o vínculo, a construção de projetos de vida, a diminuição de fatores de vulnerabilidade social, e o fortalecimento da rede pessoal e significativa de suporte, como referências e instrumentais prioritários de trabalho (Campinas, 2004b). Eixo Prevenir O eixo Prevenir tinha a missão de implantar centros de convivência em diferentes pontos da cidade e ofertar atividades culturais e esportivas para as crianças e os adolescentes que vivem em regiões carentes de espaços de lazer e daquelas atividades, localizadas nas rotas em que existem indícios de exploração sexual.
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Tais centros de convivência compõem a estratégia que busca facilitar e/ou viabilizar o acesso a bens culturais e criar espaços de pertencimento e convivência em comunidades com poucos equipamentos sociais, objetivando promover ações de prevenção concernentes ao campo, assim como a qualificação de suas abordagens e metodologias. Pretendeu-se, também, implementar oficinas e grupos culturais que propiciassem a geração de renda, visando ao fomento de grupos associativos e/ou cooperativas, por meio da utilização de linguagens que estimulassem a participação dos jovens e o protagonismo juvenil (Projeto Rotas Recriadas, 2004b). Os centros de convivência, na proposição do projeto Rotas Recriadas, deveriam ser eleitos como locais prioritários para a presença dos técnicos do Eixo Cuidar, pois se constituíam como espaços atribuídos à convivência, o que os caracterizava enquanto equipamento educativo e promotor de desenvolvimento psicossocial. A inserção do profissional da área de saúde no espaço da ação social, educação e cultura almejava a aproximação com os adolescentes, o levantamento de demandas, a realização de ações de mediação e de encaminhamentos para as necessidades apresentadas. Portanto, fazia-se necessário o apoio técnico como subsídio para as ações locais, potencializando as atividades e as relações humanas enquanto meio de criação de vínculos, convivência e aprendizado, e não como fim por si só, mas, também, fundamentando a necessária conexão, para o trabalho, nesse campo, entre saúde, educação e cultura. Aposta-se na convivência e na atividade enquanto elementos-chave para a aproximação, para o vínculo e para o estabelecimento de trabalhos com adolescentes em situação de vulnerabilidade social.
Oficinas de fotografia: o que há por trás das lentes?
Oficina de Fotografia – Núcleo UFSCar do Projeto Metuia e Rotas Recriadas Centro de Convivência Boa Vista – 2005
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A proposta
6 Agradecemos aos alunos Ana Dourado, Bárbara Miranda, Bruna Toledo, Bruno Maxta, Diana Garcia, Diana Cavaglieri, Iara Guimarães, Letícia Matias, Lisiane M. Yonezawa, Luana Amâncio, Patrícia Bueolni, Paula Furlan, Priscila Silva, Renata Fornacierir, Sara Sfair e Wagner Oda,pela participação e contribuição significativa no projeto.
A parceria estabelecida buscou oferecer apoio aos técnicos do projeto Rotas, discutindo a efetivação do projeto com essa população, bem como a formação de alunos de graduação e a produção e divulgação de materiais sobre o tema. Quanto às atividades diretamente realizadas com a população-alvo do trabalho, foram feitas oficinas, com a temática da imagem – por meio da utilização da fotografia enquanto recurso, durante dois meses, em dez locais do projeto Rotas, tendo sido priorizados os centros de convivência, pelas razões anteriormente expostas. As oficinas se deram em oito centros, em um espaço comunitário ligado ao centro de saúde local e em um Centro de Atenção Psicossocial – CAPS infantil. Para a operacionalização das oficinas, contamos com a intervenção de 16 estudantes6 de graduação da UFSCar, sendo quinze estudantes do curso de terapia ocupacional e uma do curso de psicologia. Eles eram acompanhados por profissionais dos equipamentos sociais nos quais estavam alocados e contavam, também, com supervisão individual e coletiva. As oficinas de fotografia trabalharam, no nível individual, com a percepção de si e de seu local de pertencimento, utilizando as fotos como recursos facilitadores, por intermédio de uma perspectiva de participação coletiva das crianças e jovens (Dale, 1999), tendo sido utilizada a presença de adultos de referência para a efetivação da proposta. A imagem possui um potencial de significação que, muitas vezes, proporciona a aproximação com a criança e com o jovem, podendo ser utilizada enquanto um instrumento intermediário para que se favoreça a formação do vínculo, vínculo este que permite ao profissional oferecer novas possibilidades de vivências e de cotidiano para aquele que se encontra em situação de vulnerabilidade social (Lopes et al., 2002a). A inserção de um elemento novo, como a máquina fotográfica, diferencia-se do cotidiano daquela população, atraindo sua atenção para novas ações que possam ser realizadas e fundadas nos espaços que ocupam. Para que estes aspectos sejam alcançados, ressaltamos a necessidade de se trabalhar numa perspectiva do protagonismo juvenil, que vislumbre, na criança e no jovem, o principal interventor na sua vida (Costa, 2004). A realização das oficinas de fotografia objetivou, também, a inserção desse recurso nas ações dos profissionais locais, permitindo que se apropriassem de novas formas de linguagem e de aproximação com aquelas crianças e adolescentes. As oficinas de fotografia: outros significados A realização das oficinas de fotografia integrou um processo de diferentes etapas: a aproximação com aquele território e o equipamento social em questão; o conhecimento e contato com as crianças que o freqüentam; o relacionamento com o profissional de referência daquele local, enfim, a inserção dos técnicos. A partir daí, a efetivação da proposta: o início da oferta da atividade, a busca da integração em um grupo específico, a proposição e o desenvolvimento do tema da imagem e auto-imagem, o trabalho com a máquina fotográfica, a exposição dos resultados alcançados. A opção por estar em uma diversidade de espaços propiciou-nos conhecer a multiplicidade de perfis que se aproximam de uma proposição como a deste projeto. Cada local está ligado à cultura de seu território e ao histórico de cada equipamento em sua região. Transitamos da periferia ao centro da cidade, em contato com a população infantil e juvenil, em locais como: bairros com uma rede de equipamentos sociais mais efetiva; outros com uma organização comunitária que se destaca; espaços nos quais o tráfico de drogas tem grande influência; a região central onde meninos e meninas em situação de rua são o público-alvo, dentre outras características singulares. Estar nesses locais nos permitiu o contato com uma parte da infância e juventude da
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cidade, que se encontra em vulnerabilidade social. As vulnerabilidades são muitas, passando pela violência doméstica, negligência de cuidados, evasão escolar, falta de aportes sócio-afetivos, uso abusivo de substâncias psicoativas, pobreza extrema, entre outras. Trata-se de fatores complexos presentes na sociedade contemporânea, que se ligam, em algumas histórias de vida, à exploração sexual. Não é possível abordar a exploração sexual sem fazer uma conexão com a desigualdade social, com a violência e com fatores macroeconômicos (Leal, 2003). Tal abordagem, porém, não pretende se traduzir em uma concepção ‘medicalizante’ da sociedade, na busca de “doenças sociais” ou de “indivíduos em risco”. Pelo contrário, lidar com o tema em sua complexidade implica que ações de prevenção, como aquelas previstas para os centros de convivência do projeto Rotas, dediquem-se a oferecer suportes sociais para as crianças e adolescentes daquele território, por meio de ações de cultura, saúde e educação, em uma perspectiva social, que se traduzam em pertencimento e aportes. Algumas dessas características levantadas estiveram presentes no desenvolvimento das oficinas: fazer uma maquete de bairro e relembrar de onde veio sua família; falar sobre imagem e apontar quanto é difícil reconhecer a própria imagem; fotografar o bairro e ter o desejo de denunciar suas mazelas; utilizar a máquina fotográfica e ter – pela primeira vez – um retrato de seu bebê. Estes, dentre tantos exemplos, foram fragmentos que propiciaram a inserção das histórias de vida no processo das oficinas de fotografia. Para o acolhimento dessas demandas, visualizamos a atividade enquanto instrumento intermediário e potencializador da aproximação, do vínculo e da ressignificação, a partir de novos modelos e experiências a serem vivenciados. É de extrema relevância que essa forma de utilização da atividade, enquanto elementomeio, e não elemento-fim, ocorra junto com o arte-educador local, para que ele perceba as outras possibilidades inseridas em seu trabalho, para além da formação na oficina específica, como hip-hop, capoeira, dança, arte circense etc. O resultado concreto – aprender a técnica – é de grande valia para aqueles que possuem aquele talento específico, não devendo ser menosprezado ou não serem propiciadas novas oportunidades de desenvolvimento desse talento; porém, estar em grupo, conviver, ser acolhido, são ganhos intermediários, de extremo valor, que os centros de convivência devem estabelecer tendo, portanto, que estar no horizonte dos resultados do trabalho local, inclusive do arte-educador. Durante o desenvolvimento das oficinas, o contato com a máquina fotográfica foi um momento de grande atração e novidade nos espaços. Como destacamos acima, trata-se de um elemento novo, curioso, interessante. As crianças e adolescentes tiraram fotos livres, para aproximação com o equipamento, e, posteriormente, temáticas, para uma exposição final do trabalho realizado. Todos puderam escolher fotos para si, levando-as para casa como um dos seus produtos. Elemento-meio e elemento-fim estiveram presentes durante o processo. Como proposta de finalização das oficinas de imagens, realizamos uma exposição para a divulgação do material produzido pelas crianças e adolescentes participantes. O local escolhido foi a sede da Secretaria de Cultura do Município – um dos órgãos responsáveis pelos centros de convivência do projeto Rotas Recriadas, por ser uma referência cultural para a cidade, local de exposições, shows, feiras etc. A inauguração da exposição contou com a presença dos participantes das dez oficinas realizadas, além de profissionais dos centros de convivência, funcionários do projeto Rotas Recriadas e profissionais relacionados à área da infância e adolescência no município. Para animar a festa, grupos de samba e de dança, vindos dos centros de convivência participantes das oficinas, apresentaram-se no local. Buscou-se, com esse evento, colocar em evidência o processo do trabalho realizado, pautando as crianças e adolescentes como seus autores. Destacamos, por fim, que, por trás das lentes das câmeras fotográficas, abordamos subjetividades, singularidades, histórias, vulnerabilidades que estão presentes no cotidiano daqueles meninos e meninas.
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O processo de formação de recursos humanos Os projetos desenvolvidos no campo social têm demandado pessoas qualificadas que se dediquem a intervenções em seu contexto. São contratados profissionais da saúde, educação, cultura, ciências humanas e sociais, dentre outros, aos quais se solicitam diferentes contribuições na composição da chamada equipe interdisciplinar. O campo social é uma esfera de interface, apresentando uma diversidade de núcleos a serem desenvolvidos por diferentes áreas (Malfitano, 2004), fator que se almeja encontrar nos profissionais deste campo; seriam os “operadores sociais”, conforme denomina Barros (1991). Porém, a formação de grande parte dos profissionais não prevê suportes para a atuação enquanto “operadores” do campo social e encontra-se, na absoluta maioria das vezes, calcada em apenas um aspecto de intervenção, não se direcionando para a dimensão territorial, da convivência, da superação da clínica e da manutenção das singularidades de cada história. Estes fatores eram vivenciados cotidianamente no projeto Rotas Recriadas. Dentro deste contexto – por meio do desenvolvimento desta proposta – foi uma das intenções da Universidade a viabilização da formação de estudantes de graduação naquilo que se direcione para a sua sensibilização para intervir com um outro olhar no campo social, com ações voltadas ao território, reconhecendo a funcionalidade e a relevância da atuação na promoção de redes de suporte locais para a população infantojuvenil. Trata-se, ainda, de pautar essa importante problemática do território nacional, a exploração sexual de crianças e adolescentes, enquanto preocupação dos técnicos, que devem buscar contribuir para criar caminhos alternativos para um quadro sabidamente complexo, implementando práticas sociais que produzam resultados efetivos na diminuição das vulnerabilidades às quais estão expostas nossas crianças e adolescentes. Propomos o debate sobre o projeto pedagógico para a formação de novos profissionais, vislumbrando a formulação de uma prática interdisciplinar e intersetorial, que valorize e estabeleça a conexão entre saúde, cultura e educação; profissionais esses que se dediquem ao enfrentamento das grandes situações de vulnerabilidades vivenciadas pela infância e juventude brasileiras. Projetos no campo social: qual proposição de sustentabilidade? A experiência aqui relatada refere-se a uma proposta realizada por uma parceria entre a Universidade e o projeto em desenvolvimento. Nesse processo, contudo, integrávamos também a equipe de implantação do projeto e vivenciamos diferentes fases do curso da proposta. O trabalho com a população infanto-juvenil em situação de exploração sexual tem sido apontado como prioritário por diferentes instâncias do governo (Miranda, 2005), sendo que, no nível federal, tem havido diversos incentivos para intervenções, pesquisas e publicações em torno dessa temática. Observa-se, contudo, que grande parte das ações desenvolvidas é de responsabilidade de ONGs em parceria com o Estado, que realizam projetos pontuais aos quais não é garantida a sua continuidade em virtude, sobretudo, da questão do financiamento dos mesmos. Isso acaba por ocasionar uma pontualidade e transitoriedade das experiências que não chegam a se consolidar, produzindo impactos bastante restritos em relação às problemáticas para as quais direcionam sua atenção. Esta é uma realidade da maioria dos projetos sociais no Brasil atualmente. O advento do “terceiro setor” – privado, porém público, na expressão de Fernandes (1994) – tem
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propiciado a retirada do Estado enquanto provedor de ações e serviços sociais (Montaño, 2002), colocando-o como parceiro da sociedade civil para o oferecimento de serviços à população. Esses aspectos estiveram presentes no projeto Rotas Recriadas. A metodologia proposta para o trabalho, dividida em eixos de intervenção, apresentou-se, nos nove meses de implantação, adequada para abordagem com aquela população. Contudo, apontou necessidades de ajustes, aperfeiçoamentos e adequações, que não se relacionavam, porém, em nossa opinião, com a necessidade de mudança no desenho metodológico em andamento. É relevante destacar que o aspecto mais desafiador, verificado também na experiência aqui apresentada, diz respeito à concretização da intersetorialidade nas práticas das ações, na integração entre os eixos de intervenção – sendo que nosso trabalho buscou, com muito empenho, concretizar essa interface entre o cuidar e o prevenir – e na efetivação de um compartilhamento de saberes, com horizontalidade e integração de diferentes profissionais e ações, para o qual as relações hierarquizadas e de poder em nada contribuem. Contudo, o projeto Rotas Recriadas enfrentou enormes dificuldades em relação à sua continuidade, e que passaram pela questão da redução do financiamento, pelo fato de estar em um momento de mudança de gestão municipal, pela dificuldade de diálogo e debate dos técnicos e da direção do projeto com o Conselho Municipal de Direitos da Criança e do Adolescente, dentre outros, que refletiam claramente a realidade vivenciada por ações dessa natureza e sua fragilidade de sustentação. Cabe questionarmos o que significa a priorização nacional em torno da criança e do adolescente, segundo o ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente, e as diretrizes criadas para o enfrentamento de suas demandas, como, por exemplo, a problemática da exploração sexual infanto-juvenil. Qual a possibilidade de real impacto em tão complexa problemática, se a maioria das propostas em andamento no país restringe-se a projetos-parceriastransitórios? Neste ponto, vale destacar a relevância da função social desempenhada por esses projetos, especialmente no campo da produção de subjetividades mais fortalecidas diante da vulnerabilidade; contudo, sua fragilidade e pequena incorporação pela esfera pública, fundamentalmente enquanto política pública que lide com os direitos decorrentes da cidadania e que, portanto, devem atendê-los, produzi-los e ampliá-los, limitam fortemente a possibilidade de resultados efetivos, e a maioria deles propicia “apenas” resultados pontuais. O projeto Rotas Recriadas, após ficar, aproximadamente, cinco meses sem implementar suas ações, retornou ao cenário da cidade com uma mudança de desenho metodológico e com propósitos diferenciados em algumas das ações desenvolvidas. Após uma série de debates, optou-se pela gestão do projeto por meio da centralização da intervenção em três ONGs do município, ficando a maior parte das ações sob a responsabilidade e gerência de uma delas: o CRAMI – Centro Regional de Atenção aos Maus-Tratos na Infância – Campinas. Esse encaminhamento provocou um esvaziamento e a finalização das ações desenvolvidas nos equipamentos sociais públicos até então utilizados, como os centros de saúde e centros de convivência, tornando prioritária a realização do trabalho por meio das ONGs. Ainda, tal direcionamento cessou o investimento que vinha sendo feito no fomento de discussões sobre o fenômeno da exploração sexual no âmbito das unidades de saúde, das escolas, dos centros de convivência, dentre outros equipamentos sociais públicos nos quais, raramente, tal assunto é tratado. Também, como conseqüência desse reordenamento do projeto, destacamos a retirada da busca concreta da ação intersetorial do seu cotidiano. O desafio de tecer a conjunção entre saúde, educação e cultura, visando à criação de estratégias para a aproximação e trabalho com a criança e o adolescente, deixa de ser prioridade em prol do desenvolvimento de intervenções locais e individualizadas.
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Consideramos que a complexidade de projetos dessa natureza demanda uma maior incorporação por parte do Estado, nos diferentes níveis de gestão e instituições, bem como um lugar de efetiva prioridade para que se possa, a partir de uma sustentabilidade mínima enraizada, lançar-se ao desafio da mudança de rotas de vidas de muitas de nossas crianças e adolescentes. Considerações finais O projeto Rotas Recriadas, no enfrentamento da temática da exploração sexual no município de Campinas, almejava a constituição de uma prática intersetorial de ações, da prevenção ao cuidado, que envolvessem propostas do campo da educação, cultura, saúde, justiça, trabalho e assistência social, compondo a rede de serviços sociais para a população infantojuvenil. No âmbito das ações direcionadas às crianças e aos adolescentes, compartilhamos do ideal e da dificuldade da implantação de ações intersetoriais e interdisciplinares, que reconheçam o campo social em sua complexidade e estabeleçam os elos e os trânsitos necessários entre as diferentes áreas. Acreditamos que a perspectiva da promoção dos direitos, estabelecida pelo ECA (Brasil, 1990), deve ser o elemento norteador dos projetos dedicados a essa população. O ECA preconiza, em seu artigo 5º: Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punindo na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais.
É com base nesse referencial que elegemos o trabalho territorial desenvolvido nos centros de convivência como o objeto de nosso foco. A intervenção no território – propiciando o acolhimento, a escuta e o encaminhamento para as diferentes demandas das crianças e adolescentes – é uma tecnologia possível que permite a tessitura, com fios e pontos mais firmes, de redes pessoais e sociais de suporte (Lopes et al., 2002). Para tanto, utilizamos, nesta experiência, a atividade, sob a forma de oficinas de imagem, como o elemento-meio para o desenvolvimento de tais princípios. E verificamos o potencial do recurso da fotografia como componente facilitador do trabalho. Destacamos, ainda, a necessária formação de recursos humanos voltados a intervenções territoriais, à promoção da convivência e ao estabelecimento de equipamentos sociais que tenham a pertença e o suporte como estratégias e resultados. Por fim, ressaltamos a viabilidade e adequação de propostas que dêem enfrentamento ao desafio da constituição de projetos intersetoriais e interdisciplinares, traçando elos conectivos entre as áreas, almejando um campo mais efetivo técnica e politicamente, onde saúde, educação e cultura se entrecruzem e se conectem, somando esforços para a diminuição das vulnerabilidades, e onde se criem e se fortaleçam as redes sociais de suportes para a infância e juventude. Referências BARROS, D. D.; LOPES, R. E.; GALHEIGO, S. M. Projeto Metuia - terapia ocupacional no campo social. O Mundo da Saúde, v.26, n.3, p.365-9, 2002. BARROS, D. D. Operadores de saúde na área social. Rev. Ter. Ocup. USP, v.1, n.1, p.11-6, 1991. BRASIL. Estatuto da criança e do adolescente. São Paulo: Cortez, 1990. CAMPINAS. Secretaria Municipal de Saúde. Projeto Rotas Recriadas: crianças e adolescentes livres da
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exploração sexual. Cartilha de divulgação. Campinas: Conselho Municipal de Direitos da Criança e do Adolescente, Prefeitura Municipal de Campinas, Laboratório Cisco, 2004a. (mimeogr.). CAMPINAS. Secretaria Municipal de Saúde. 3º. Relatório técnico. Campinas: Conselho Municipal de Direitos da Criança e do Adolescente, Prefeitura Municipal de Campinas, 2004b. (mimeogr.). CAMPINAS. Câmara Municipal de Campinas. Plano municipal de enfrentamento da violência sexual infanto-juvenil. Campinas, 2003. (mimeogr.). COSTA, A. C. G. O adolescente enquanto protagonista. Disponível em: <http://www.adolec.br/bvs/ adolec/P/cadernos/capitulo/cap07/cap07.htm>. Acesso em: set. 2004. DALE, R. A. Participación infanto-juvenil: un reto social. El Salvador: OPS/OMS, 1999. Disponível em: <http://www2.ops.org.sv/adolec/tc/participacion_social.htm>. Acesso em: mar. 2005. FALEIROS, E. T. S. Exploração sexual comercial de crianças e adolescentes. Disponível em: <http:// www.violenciasexual.org.br/textos/PDF/exploracao_sexual_eva_faleiros.pdf>. Acesso em: mai. 2005. FALEIROS, E. T. S. Repensando os conceitos de violência, abuso e exploração sexual de crianças e de adolescentes. Brasília: CECRIA /MJ-SEDH-DCA /FBB /UNICEF, 2000. FERNANDES, R.C. Privado, porém público: o terceiro setor na América Latina. Rio de Janeiro : RelumeDumará, 1994. HAZEU, M. Exploração sexual de crianças e adolescentes: o comércio. Belém, 1998. (mimeogr.). LEAL, M. L. P. Globalização e exploração sexual comercial de crianças e adolescentes. Rio de Janeiro: Save the Children, 2003. LOPES, R. E.; BARROS, D. D.; MALFITANO, A. P. S.; GALVANI, D.; BARROS, G. O vídeo como elemento comunicativo no trabalho comunitário. Cad. Ter. Ocup. UFSCar, v.10, n.1, p.61-72, 2002a. LOPES, R. E.; BARROS, D. D.; MALFITANO, A. P.; GALVANI, D. Histórias de vida: a ampliação de redes sociais de suporte de crianças em uma experiência de trabalho comunitário. O Mundo da Saúde, v.26, n.3, p.426-34, 2002b. MALFITANO, A. P. S. Políticas públicas e movimentos sociais: atenção à infância e o Programa de Saúde da Família. 2004. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas, Campinas. MIRANDA, N. Motorista cidadão em defesa das crianças e adolescentes. Rev. CNT, fev. 2005. Disponível em: <http://www.cnt.org.br/cnt/comunicacao_revistacnt_fevereiro_2005_opiniao.asp>. Acesso em: 18 mai. 2005. MONTAÑO, C. Terceiro setor e questão social: crítica ao padrão emergente de intervenção social. São Paulo: Cortez, 2002. VASCONCELOS, M. G. O. M.; MALLAK, L. S. (Orgs.). Compreendendo a violência sexual em uma perspectiva multidisciplinar. Carapicuíba: Fundação Orsa Criança e Vida, 2002.
Trata-se da análise de uma experiência desenvolvida junto ao Projeto Rotas Recriadas, em Campinas – SP, que se dedicou a constituir formas de enfrentamento à violência sexual infantojuvenil, em especial à exploração sexual. Com base em uma parceria com o Núcleo UFSCar – Universidade Federal de São Carlos – do Projeto Metuia, foram realizadas atividades de extensão, formação acadêmica e desenvolvimento de pesquisas. Trabalhou-se com oficinas de atividades, tendo a imagem, individual e coletiva, como elemento catalisador da possibilidade de ressignificação pessoal, em dez Centros de Convivência. Buscou-se, nessa perspectiva, a inserção do profissional de saúde no espaço da ação social, educação e cultura, para: a aproximação com os adolescentes, levantamento de demandas, realização de ações de mediação e de encaminhamentos para as necessidades apresentadas. Discute-se a convivência e a atividade enquanto elementos-chave para a aproximação, para o vínculo e para o estabelecimento de trabalhos com adolescentes em situação de vulnerabilidade social. PALAVRAS-CHAVE: adolescente. parcerias em saúde. vulnerabilidade social. pesquisa interdisciplinar. violência sexual. serviço social. Social programs and intersectionality: reporting an experience where health, education and culture cross lines This paper is an analysis of an experience developed along with the Projeto Rotas Recriadas, in Campinas (state of São Paulo), a project designed to combat child and teenager sexual abuse, and in specific sexual exploitation. Through the partnership with Projeto Metuia, promoted by the Federal University of São Carlos, participants carried out academic and research activities. Workshop activities were developed, using individual and collective images as elements to assist in reestablishment of self, at ten Social Centers. In this project health professionals were introduced in a social, educational and cultural sphere, seeking to reach the teenagers, identify their demands and promote actions aiming to mediate and address the specific needs identified. The paper discuss the need for social interaction and activities as key elements in the process of bonding, creating ties and establishing goals for teenagers who are socially vulnerable. KEY WORDS: adolescent. health consortia. social vulnerability. interdisciplinary research. sexual violence. social works. Acción social e intersectorialidad: historia de una experiencia en la interfaz entre salud, educación y cultura Este trabajo es un análisis de una experiencia desarrollada junto al Proyecto Rutas Recreadas, en Campinas – SP, el cual se ha dedicado a constituir maneras de enfrentar la violencia sexual infanto-juvenil, más especialmente la explotación sexual. Por medio de un convenio con el Núcleo UFSCar – Universidade Federal de São Carlos – del Proyecto Metuia, se han realizado actividades de extensión, formación académica y desarrollo de investigación. Han sido realizados talleres de actividades, utilizando la imagen, individual y colectiva, como elemento catalizador de la posibilidad de resignificación personal, en diez Centros de Convivencia. Se ha buscado la inserción del profesional de salud en el espacio de la acción social, educación y cultura, para la aproximación a los adolescentes, relevamiento de demandas, realización de aciones de mediación y de encaminamientos de las necesidades presentadas. Se discute la convivencia y la actividad como elementos clave para la aproximación, para el vínculo y para la realización de trabajos con adolescentes en situación de vulnerabilidad social. PALABRAS CLAVE: acolescente. consorcios de salud. vulnerabilidad social. investigación interdisciplinaria. violencia sexual. servicio social.
Recebido em 09/01/06. Aprovado em 15/08/06.
REDON,1878
O sujeito coletiv o que fala coletivo
Fernando Lefevre1 Ana Maria Cavalcanti Lefevre 2
3 A grande maioria das pesquisas qualitativas de opinião adota este modelo, visto como uma “opção natural”, já que depoimentos são considerados, generalizadamente, como eventos essencialmente individuais que, então, só poderiam ser colocados na escala coletiva pela interposição do metadiscurso do pesquisador. 4 Já nas pesquisas de opinião de corte quantitativo, os depoimentos são simplesmente suprimidos (nos questionários com alternativas de resposta prefixadas) ou são equalizados pela via da categorização de respostas (nos questionários com perguntas abertas).
Introdução O presente ensaio tem como objetivo refletir sobre as possibilidades oferecidas para expressar, empiricamente, a opinião ou o pensamento coletivo. Considerando-se que a opinião coletiva, como fato empírico, ou é veiculada apenas indiretamente pelo meta discurso3 do pesquisador, ou por meio de alguma fórmula matemática perde sua forma imanentemente discursiva,4 propõe-se como alternativa expressiva o Discurso do Sujeito Coletivo (DSC). A proposta do Discurso do Sujeito Coletivo (Lefevre & Lefevre, 2003), associada ao software Qualiquantisoft (www.spi-net.com.br) com base, sobretudo, nos pressupostos da Teoria das Representações Sociais (Jodelet, 1989), elenca e articula uma série de operações sobre a matéria-prima de depoimentos coletados em pesquisas empíricas de opinião por meio de questões abertas, operações que redundam, ao final do processo, em depoimentos coletivos confeccionados com extratos de diferentes depoimentos individuais – cada um desses depoimentos coletivos veiculando uma determinada e distinta opinião ou posicionamento, sendo tais depoimentos redigidos na primeira pessoa do singular, com vistas a produzir, no receptor, o efeito de uma opinião coletiva, expressando-se, diretamente, como fato empírico, pela “boca” de um único sujeito de discurso. A aplicação da técnica do DSC a um grande número de pesquisas empíricas no campo da saúde e também fora dele (banco de DSCs) tem demonstrado sua eficácia para o processamento e expressão das opiniões coletivas.
1
Professor titular, Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo (USP). <flefevre@usp.br>
2
Instituto de Pesquisa do Discurso do Sujeito Coletivo. <ana@ipdsc.com.br>
1
Faculdade de Saúde Pública da USP Av. Dr. Arnaldo, 715 São Paulo - SP Brasil - 01.246-904
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A experiência acumulada com o uso da metodologia do DSC mostra um crescente aperfeiçoamento da técnica e de suas inúmeras aplicações. Assim, de um modo geral, os trabalhos mais recentes com o uso da metodologia apresentam-na em forma mais evoluída. Nesse sentido, gostaríamos de destacar, a título de exemplo, no que toca a teses acadêmicas, as defendidas recentemente por Valverde (2006), sobre obesidade, por Medina (2005), sobre fórum na internet envolvendo violência urbana, e por Akiyama (2006), sobre intervenção fonoaudiológica na surdez. No que diz respeito a trabalhos não-acadêmicos, vale citar o relativo à Pós-Graduação da Escola Nacional de Saúde Pública (Rivera, 2005), que representa importante aplicação da metodologia à avaliação institucional, e o de Lefèvre et al. (2005), que usando, entre outros recursos, o discurso de escolares pré-adolescentes, permite descrever, em detalhes, a representação subjetiva do cotidiano das relações entre pais e filhos, quando afetada pelo consumo de cigarros pelos pais. Os impasses na expressão do pensamento coletivo O desafio a que o DSC busca responder é o da auto-expressão do pensamento ou opinião coletiva, respeitando-se a dupla condição qualitativa e quantitativa destes como objeto. Com efeito, considerando-se o quadro da pesquisa empírica, o pensamento, materialmente falando, isto é, como matéria significante, é um discurso, e sendo esse discurso um resultado previamente desconhecido (pela pesquisa empírica) a ser obtido indutivamente, tal pensamento apresenta-se, indubitavelmente, como uma variável qualitativa, ou seja, como um produto a ser qualificado a posteriori, como output, pela pesquisa. Mas sendo esse pensamento coletivo, configura-se também como uma variável quantitativa, na medida em que tem de expressar as opiniões compartilhadas por um quantitativo de indivíduos, que configuram a coletividade pesquisada. Sendo assim, um dos desafios a ser superado para que o pensamento coletivo possa se auto-expressar por meio da pesquisa empírica, seria a constituição de um sujeito portador desse discurso coletivo. Mas como expressar, verbalmente, esse sujeito coletivo como um sujeito-que-fala, diretamente, e não, como se faz habitualmente, como uma expressão matemática ou um “eles” sobre o qual a ciência (como “se”, ou sujeito impessoal) fala? Ora, aparentemente tal sujeito coletivo não pode falar porque, se permanecermos positivisticamente atrelados às possibilidades oferecidas pela língua (a portuguesa e muitas outras), só disporemos de um modo precário para acessar, diretamente, o sujeito coletivo, que é o pronome “nós” da primeira pessoa do plural, não existindo a alternativa do “eu coletivo”. Ora, um sujeito coletivo, como o entendemos no Discurso do Sujeito Coletivo, é muito mais do que um “nós”, que expressa apenas um tipo muito particular de sujeito coletivo que fala;5 e, também, menos, já que um único indivíduo também pode ser um sujeito coletivo. Nas pesquisas de opinião tradicionais, o sujeito da opinião (aquele que fala: “na minha opinião....”; ou “eu acho que....”;ou “eu acredito que...”) é, quase sempre, um indivíduo ou, no máximo, um “nós”. Assim, um sujeito coletivo da opinião não encontraria formas diretas de se expressar e, “portanto”, passaria a não existir, ou, mais precisamente, a não ser visto como um falante, sendo apenas passível de ser indiretamente resgatado como um “eles” de quem se fala ou como um sujeito artificial não-lingüístico do tipo “30% dos usuários do posto de saúde acham que...” Por outro lado, para o senso comum (e também para o pesquisador-senso-comum),
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5 Aquele resultante de um acordo explícito de indivíduos, presente em frases do tipo: “nós, metalúrgicos, reunidos em assembléia, decidimos paralisar...”
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o sujeito que fala a opinião, diretamente, é só o falante individual do “eu” ou falante limitadamente coletivo do “nós”, que são vistos como os únicos sujeitos naturais do discurso da opinião, uma vez que, para esse senso comum, um sujeito opinante está falando apenas quando há secreção lingüística (ou transcrição escrita desta secreção) de uma só “boca” (mesmo, no caso do “nós”, é apenas uma “boca” que fala). Assim, posto que não há “boca” coletiva, uma coletividade opinante não poderia falar, diretamente, só poderia ser falada (pela “boca” meta lingüística) ou ser reconstituída não discursivamente, como, por exemplo, em “30% dos homens brasileiros acham que...”. Por isso, acredita-se que não há, ou não existe, empiricamente, tal fala coletiva da opinião! Ora, tal postura estreitamente positivista e “naturalista” precisa ser superada, o que não constitui tarefa fácil, admitindo-se que o tratamento científico e sistemático do objeto “opinião coletiva “ vai requerer construtos metodológicos específicos que permitam que seja mantido o necessário vínculo com a realidade empírica, e que a opinião coletiva possa ser reconstituída artificialmente (já que não é possível, neste caso, não ser artificial) como um objeto qualitativo. Além do mais, um sujeito “eu” ou “nós” é também um sujeito de opinião reconstituído, na medida em que se abandona a ilusão lingüística e psicológica de que a sede natural da opinião seja a consciência individual. A proposta do DSC O Discurso do Sujeito Coletivo é, por isso, uma proposta explícita de reconstituição de um ser ou entidade empírica coletiva, opinante na forma de um sujeito de discurso emitido na primeira pessoa do singular. Por que essa opção? Porque o social falando (estrutura estruturante) ou falado (estrutura estruturada) (Bourdieu, 1990) nos indivíduos, na primeira pessoa do singular, é o regime natural de funcionamento das opiniões ou representações sociais. De fato, as opiniões ou representações sociais são eficientes, funcionam, justamente, porque os indivíduos acreditam que suas opiniões são suas, ou seja, geradas em seus cérebros. Por isso, o DSC, como esse sujeito de discurso aparentemente paradoxal, já que redigido na primeira pessoa do singular, mas reportando um pensamento coletivo, é, sociologicamente, possível. Mas a coletividade, falando na primeira pessoa do singular, não apenas ilustra o regime regular de funcionamento das representações sociais como também é um recurso para viabilizar as próprias representações sociais como fatos coletivos atinentes a coletividades qualitativas (de discursos) e quantitativas (de indivíduos). De fato, ninguém duvida que indivíduos compartilhem a(s) mesma(s) idéia(s), mas quando tais indivíduos opinam, individualmente, veiculam apenas uma parte do conteúdo da idéia compartilhada. Um sujeito coletivo, no DSC, vem se constituindo numa tentativa de reconstituir um sujeito coletivo que, enquanto pessoa coletiva, esteja, ao mesmo tempo, falando como se fosse indivíduo, isto é, como um sujeito de discurso “natural”, mas veiculando uma representação com conteúdo ampliado. Dois exemplos de DSC Primeiro exemplo Apresenta-se, aqui, um Discurso do Sujeito Coletivo elaborado como exercício, pelos alunos (adolescentes entre 16 e vinte anos), durante curso de formação oferecido pela
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Faculdade de Saúde Pública da USP, no contexto do Projeto Bolsa Trabalho: formação de pesquisadores juniores. Convênio PMSP/Secretaria do Trabalho/Unesco/Faculdade de Saúde Pública da USP – 2003. Como uma das atividades didáticas de tal curso, foi proposta a realização, pelos alunos, de uma pesquisa usando o DSC no bairro da Casa Verde, São Paulo, onde os alunos residiam. Tal pesquisa foi realizada e seus resultados publicados em revista especializada (Lefevre et al., 2004). Reportam-se, aqui, apenas alguns resultados parciais: Pesquisa: opinião da população da Casa Verde sobre violência contra a criança. Pergunta: na sua opinião, o que leva um pai a espancar uma criança? Categoria de resposta: álcool e drogas Expressões-chave6 das respostas dos sujeitos Sujeito 5 - ... ou se ele usar qualquer tipo de droga, mesmo sendo o alcoolismo. Sujeito 9 - ... droga e álcool. Sujeito 12 - ... O alcoolismo e as drogas fazem com que os pais se alteram dentro de casa... Sujeito 14 - ... quando ele chega embriagado em casa ou até drogado. Sujeito 19 - ... drogas, se for dependente delas. Sujeito 20 - ...quando um pai tem problemas com a bebida e as drogas. Aí ele se torna uma pessoa agressiva, batendo no seu filho... Sujeito 1 - O alcoolismo, a droga... Sujeito 8 - ... pai ou uma mãe que utiliza bebidas alcoólicas ou drogas... Sujeito 6 - ... uso de bebidas alcoólicas e, também, o uso de drogas...
Discurso do Sujeito Coletivo É o alcoolismo, a droga. Quando o pai ou uma mãe que utilizam ou são dependentes de bebidas alcoólicas ou drogas e chegam, em casa, embriagados ou até drogados, eles se alteram, tornando-se pessoas agressivas, batendo em seus filhos.
Observe-se que o DSC foi composto na primeira pessoa do singular, com as expressõeschave de depoimentos de sentido semelhante, provenientes de nove indivíduos distintos. Essa pessoa coletiva está, aqui, falando como se fosse um indivíduo, isto é, como um sujeito de discurso “natural”, mas que está veiculando uma representação de vários indivíduos, o que permite a emergência, tanto qualitativa quanto quantitativa, de uma opinião coletiva: qualitativa porque se trata de um discurso com conteúdo ampliado e diversificado, e quantitativa na medida em que nove sujeitos contribuíram para a construção deste DSC. Segundo exemplo A pesquisa aqui reportada (Seragi et al., 2005) teve por objetivo analisar a representação atual de alguns aspectos da Vigilância Sanitária, pela população do município de Águas de Lindóia, com vistas a subsidiar processos de capacitação, formação e desenvolvimento de pessoal técnico, bem como para fornecer material para planos de comunicação e marketing destinados a aproximar o serviço da população. A pesquisa foi realizada no Município de Águas de Lindóia. Para a realização das entrevistas, foi utilizado um roteiro semi-estruturado. A amostra foi formada por sessenta usuários das três unidades de saúde do município, que são: Unidade Básica de Saúde Alexandre Gatoline, no bairro Casas Populares; Unidade Básica de Saúde Bela Vista, do Bairro Bela Vista, e Pronto Atendimento Municipal, no centro da cidade.
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As “expressõeschave”, as “idéias centrais” e os “discursos do sujeito coletivo” são os principais operadores metodológicos do DSC. As primeiras são trechos literais dos depoimentos, que sinalizam os principais conteúdos das respostas; as segundas são fórmulas sintéticas, que nomeiam os sentidos de cada depoimento e de cada categoria de depoimento, e o terceiro, os signos compostos pelas categorias e pelo seu conteúdo, ou seja, as expressões-chave que apresentam idéias centrais semelhantes agrupadas numa categoria (ver Lefevre & Lefevre, 2005).
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A amostragem foi feita escolhendo-se, ao acaso, um usuário com mais de 18 anos em cada unidade, por período de funcionamento (manhã e tarde), totalizando seis entrevistas por dia, durante dez dias. O usuário selecionado era abordado na sala de espera da unidade e indagado se gostaria de participar da pesquisa. No caso de resposta positiva, era conduzido a uma sala previamente reservada, onde o entrevistador informava sobre o mecanismo e a finalidade da pesquisa e iniciava o preenchimento do cadastro, anotando as informações dadas pelo entrevistado. No cadastro, os entrevistados foram nomeados seqüencialmente de ÁGUAS 01 até ÁGUAS 60. Em seguida, era procedida a leitura do Termo de Consentimento e solicitada a sua assinatura pelo entrevistado. Após o acionamento do gravador, o entrevistador iniciou nomeando a entrevista de acordo com o nome do cadastro (entrevista: ÁGUAS n), passando, a seguir, à primeira pergunta do questionário. Reportaremos, aqui, apenas os resultados qualitativos e quantitativos da QUESTÃO: Uma pessoa compra um alimento e percebe que está estragado. O que esta pessoa poderia fazer? Para esta questão, a síntese das idéias centrais foi a seguinte, juntamente com a proporção das respostas obtidas:
Reclamar junto ao fornecedor
20%
B
Devolver, trocar ou ser ressarcido pelo fornecedor
34,44%
C
Ligar e reclamar ao SAC do fornecedor
1,11%
D
Denúncia inespecífica
10%
E
Denúncia a instituições específicas (PROCON, VISA, Delegacias etc.)
24,44%
A
F
Descartar o produto, não comprar, inspecionar e fiscalizar pessoalmente
7,78%
G
Não ter medo de denunciar
1,11%
H
Idéia central excluída
1,11%
O DSC B, Devolver, trocar ou ser ressarcido pelo fornecedor, foi a idéia mais compartilhada entre os entrevistados em relação à questão, resultando neste discurso: Eu acho que ele deveria voltar ao supermercado e devolver, porque é um abuso contra o consumidor vender coisa estragada, e a responsabilidade é da pessoa que está vendendo: você não vai consumir alimento estragado e nem perder o seu dinheiro. O consumidor deve, então, procurar o dono deste comércio, ter um diálogo, entregar (o produto) e tentar entrar num acordo, pra que ele tome providência, pois a gente quer outro produto ou ser ressarcido pelo que pagou por ele. Já aconteceu isso comigo, voltei ao mercado, reclamei e pedi outro alimento, porque eu paguei por isso. Como vou comprar uma coisa que está estragada? Troca, devolve e pega outro!
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Conclusão O DSC e a dupla representatividade Assim sendo, pode-se colocar que a novidade que o DSC apresenta é a dupla representatividade – qualitativa e quantitativa – das opiniões coletivas que emergem da pesquisa: a representatividade é qualitativa porque na pesquisa com o DSC cada distinta opinião coletiva é apresentada sob a forma de um discurso, que recupera os distintos conteúdos e argumentos que conformam a dada opinião na escala social; mas a representatividade da opinião também é quantitativa porque tal discurso tem, ademais, uma expressão numérica (que indica quantos depoimentos, do total, foram necessários para compor cada DSC) e, portanto, confiabilidade estatística, considerando-se as sociedades como coletivos de indivíduos. As camadas discursivas e a semiose infinita Mas as representações sociais que o DSC expressa precisam ser observadas, na perspectiva da semiótica peirceana (Peirce, 1975), como camadas sucessivas de discursos vistos como signos interpretantes com base em uma entidade primária que poderíamos chamar de pensamento da coletividade. Os Discursos do Sujeito Coletivo conformam um painel de representações sociais sob a forma de discursos que, enquanto pesquisas sociais empíricas, buscam, com base numa série de artifícios metodológicos, resgatar o pensamento coletivo de uma forma menos arbitrária (Bourdieu & Passeron, 1970) do que geralmente vem acontecendo nesta pesquisa empírica, seja nas quantitativas seja nas qualitativas. Evidentemente, o DSC não pretende dar conta de representação social como semiose infinita, nem muito menos funcionar como “a palavra final” no que toca a essas representações ou a seus sentidos e significados: ele é apenas um signo interpretante (Peirce, 1975) que busca reconstruir as representações num determinado nível. Os DSCs, portanto, não são as representações sociais, mas buscam apenas constituir uma camada delas; diretamente sobre essa camada outra camada pode ser agregada, constituída por um ou vários discursos ou formações discursivas ou ideologias (Verón, 1980) em ação nos DSCs.7 O problema reside na definição dos passos metodológicos que possam garantir rigor e padronização nos procedimentos para o adequado resgate dessa camada discursiva ou signo interpretante.
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7 Devemos esta idéia dos “discursos nos discursos do DSCs” a um comentário de Inesita Araújo (outubro de 2005).
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Discute-se aqui o Discurso do Sujeito Coletivo como proposta qualiquantitativa para as pesquisas de opinião ou representação social. Propõe-se a apresentação, nas pesquisas, da opinião coletiva como uma variável empírica de natureza qualitativa e quantitativa capaz, pela interposição de um sujeito de discurso ao mesmo tempo individual e coletivo, de se exprimir, diretamente, sem a mediação do metadiscurso do pesquisador e sem a transmutação da opinião em variável quantitativa, com prejuízo de sua natureza essencialmente discursiva. PALAVRAS-CHAVE: discurso do sujeito coletivo. metodologia. pesquisa qualitativa. representação social. The collective subject that speaks This paper discusses the Discourse of the Collective Subject as a qualitative-quantitative proposal for opinion polling or social representation research. It proposes that research use the collective opinion as a empirical variable of qualitative and quantitative nature that may, by the interposition of specific discourse subject, to express itself directly without the mediation of researchers meta discourse and avoiding to transform the opinion in a quantitative variable. KEY WORDS: discourse of the collective subject. methodology. qualitative research. social representations. El sujeto colectivo que habla Se discute aquí el Discurso del Sujeto Colectivo como propuesta cualicuantitativa para las investigaciones de opinión o representación social. Se propone la presentación en las investigaciones de la opinión colectiva como una variable empírica de naturaleza cualitativa y cuantitativa capaz, por la interposición de un sujeto de discurso al mismo tiempo individual y colectivo, de expresarse, directamente, sin la mediación del metadiscurso del investigador y sin la transmutación de la opinión en variable cuantitativa, con perjuicio de su naturaleza esencialmente discursiva. PALABRAS CLAVE: discurso del sujeto colectivo. metodología. iInvestigación cualitativa. representación social.
Recebido em 25/10/05. Aprovado em 28/05/06.
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Implementando as unidades educacionais do curso de Enfermagem da F amema: Famema: relato de experiência* Kátia Terezinha Alves Rezende1 Elisabete Takeda2 Elaine Morelato Vilela Fraga 3 Luzmarina A. Doreto Braccialli 4 Mara Quaglio Chirelli 5 Maria Cristina Guimarães da Costa 6 Maria Cristina Martinez Capel Laluna 7 Maria Elizabeth S. Hernandes Correa 8 Sílvia Franco da Rocha Tonhom 9
Início do processo de mudança na formação de enfermeiros
10 A Fundação W. K. Kellogg financiou e apoiou os projetos de instituições de ensino superior na área de saúde, os quais pretendiam provocar mudanças no modelo de atenção à saúde e de formação de profissionais de saúde. Entre as instituições contempladas, no Brasil, encontra-se a Famema.
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Este artigo é produto do Grupo de Pesquisa “Educação em Enfermagem”.
1 - 7, 9 8
A Enfermagem brasileira vem discutindo as mudanças na formação da sua força de trabalho desde a década de 1970, momento este em que estava sendo organizado o Movimento da Reforma Sanitária, o qual apresentou grandes contribuições para a reformulação da Constituição Nacional no que diz respeito ao capítulo da saúde e de sua Lei Orgânica (Brasil, 1990). Na nova Constituição (Brasil, 1988), fica determinado que o setor saúde deverá organizar-se por meio de um Sistema Único de Saúde (SUS) e, para que haja a sua implementação, uma das estratégias necessárias para a reorganização do modelo de atenção deverá ser a reformulação dos processos de formação dos profissionais. O curso de enfermagem da Faculdade de Medicina de Marília (Famema), criado em 1981, vem desenvolvendo um processo de mudança curricular desde 1993, quando iniciou a implementação do Projeto UNI10 (Uma Nova Iniciativa na educação dos profissionais da saúde: união com a comunidade) na instituição, financiado pela Fundação Kellogg (1992). Esta mudança, segundo Laluna (2002), passou por três fases: sensibilização dos docentes sobre o processo de revisão curricular; reconstrução dos programas de ensino na perspectiva problematizadora, e elaboração do currículo integrado.
Docentes, curso de Enfermagem, Faculdade de Medicina de Marília (Famema) Marília, SP. <katia@famema.br>
Docente, disciplinas de Epidemiologia e Bioestatística, Famema.
1 Rua dos Brilhantes, 30 Bairro Maria Isabel - Marília, SP Brasil - 17.516-270
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Na primeira fase, foi realizado um programa de capacitação pedagógica auxiliado por várias assessorias, dentre estas a “Capacitação pedagógica para instrutores/supervisores na área da saúde”, na qual foi dada ênfase à metodologia da problematização, conforme proposto por Diaz-Bordenave & Pereira (1991) e Freire (2003), por esta já estar sendo aplicada na formação dos profissionais de enfermagem do nível médio, mediante o Projeto Larga Escala, proposto pelo Ministério da Saúde (Brasil, 1997), e no programa de pósgraduação em enfermagem em saúde pública da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Estes influenciaram a nossa escolha metodológica, por terem como intencionalidade a mudança das práticas em saúde e em enfermagem, em resposta ao projeto político da reforma sanitária. Na segunda fase, após realização de planejamento para a construção das estratégias para a mudança curricular, instalaram-se grupos para o desenvolvimento dos temas: perfil do enfermeiro, revisão curricular, modelo assistencial e capacitação pedagógica. Para essa fase, contou-se com assessorias do Programa de Desenvolvimento em Enfermagem (PRODEn) da UFMG, que auxiliaram na construção dos programas de ensino adotando a metodologia da problematização, o que despertou nos docentes a necessidade da discussão do referencial filosófico. Para essa atividade, contou-se com a participação do Grupo Educacional Equipe de São Paulo, que contribuiu para a construção do entendimento de que a mudança pedagógica não se restringe à alteração das estratégias didáticas, mas está sustentada no referencial filosófico do processo de formação. Esses processos determinaram a elaboração do Projeto Político-Pedagógico (PPP) (Famema, 1997), que se constituiu na terceira fase da mudança curricular. Mediante a instalação de grupos de trabalho compostos por docentes do curso de enfermagem e por profissionais dos serviços11, elaboramos o PPP, com o desenvolvimento do histórico do curso, os referenciais filosóficos, psicológicos e socioculturais, o perfil do enfermeiro, os objetivos educacionais, a metodologia da problematização e as áreas temáticas. A inclusão destas áreas temáticas se deu em função da estrutura do currículo mínimo vigente no período de 1994 a 1997, estabelecido pelo Ministério da Educação, sendo estas: bases biológicas e humanas da enfermagem; fundamentos da enfermagem; assistência de enfermagem; administração em enfermagem; estágio supervisionado (Brasil, 1994). Esse documento norteou a construção do currículo integrado, com a elaboração da rede explicativa dos conteúdos, a delimitação das unidades educacionais e os desempenhos esperados em cada uma dessas. Considerando o contexto do processo de implementação do PPP, as avaliações e pesquisas realizadas (Rezende, 1998; Braccialli, 2000; Chirelli, 2002; Vilela, 2002; Laluna, 2002) e as mudanças ocorridas, o presente trabalho tem como objetivo relatar o desenvolvimento do currículo ao longo das quatro séries do curso de enfermagem da Famema no ano de 2003, apontando reflexões sobre a prática pedagógica. O relato de experiência empregou a análise documental dos programas de ensinoaprendizagem de cada série, referente ao ano de 2003, com posterior reflexão, pelos autores, sobre a prática pedagógica proposta e a desenvolvida. A análise revelou aspectos que necessitam ser trabalhados no sentido da concretização dos fundamentos do PPP, e mudanças que contribuíram para a implementação do currículo integrado e orientado por competência. Durante a elaboração do trabalho, solicitou-se autorização institucional ao grupo gestor do curso de enfermagem para que as informações sobre a organização do currículo fossem divulgadas. Estrutura pedagógica das séries do curso de enfermagem da Famema em 2003 O curso de enfermagem da Famema desenvolveu-se considerando as seguintes diretrizes: atuação do enfermeiro nas áreas de gerência, assistência, educação e investigação;
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11 Docentes das áreas: básica (fisiologia, bioquímica, farmacologia, anatomia, patologia, parasitologia, imunologia, histologia, genética, microbiologia), clínica e de saúde coletiva.
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interação com a comunidade e com os serviços; participação dos enfermeiros assistenciais e dos docentes no processo assistencial e de supervisão, e integração dos estudantes de medicina e enfermagem. Desde 1998, estamos implementando o novo PPP, num processo de construção e reconstrução das unidades educacionais. A organização curricular do curso (Quadro 1) ocorre por meio de Unidades Educacionais (UE) específicas para a enfermagem e uma Unidade Educacional que integra os estudantes de medicina e enfermagem, nominada Interação Comunitária (IC).
Quadro 1. Organização curricular do curso de enfermagem, Famema, 1998. 1º ANO
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UE 1 Saúde e Sociedade 110 hs.
UE 2 Trabalho em Saúde 110 hs.
UE 3 Realidade e Saúde 440 hs.
UE 4 Produção Social em Saúde 120 hs.
UE 5 Urgência/ emergência pré-hosp. 95 hs.
UE6 - Interação Comunitária 1 - 120 hs. Educação Física - 30 hs. 2º ANO UE 7 Avaliação do estado de saúde 480 hs.
UE 8 Saúde da Criança 110 hs.
UE 9 Saúde do Adolesc. 60 hs
UE 10 Saúde do Adulto 110 hs.
UE 11 Saúde da Mulher no ciclo grav./puer. 80 hs.
UE 12 Saúde do Idoso 80 hs.
UE 13 - Interação Comunitária 2 - 120 hs. Educação Física - 30 hs. 3º ANO UE 14 Org.e proc. de trab. no hosp. 75 hs.
UE 15 Cuidado ao adulto hospitalizado 410 hs.
UE 16 Urgência Emergência Intra-Hospitalar 160 hs
UE 17 Cuidado à mulher hospitalizada situações gineco-obstétricas 160 hs.
UE 18 Cuidado à criança/ adolescente hospitalizado 160 hs.
UE 19 - Interação Comunitária 3 - 120 hs. 4 º ANO UE 20 - Estágio supervisionado em serviços não-hospitalares 470 hs.
UE 21 - Estágio supervisionado em serviços hospitalares 470 hs.
Interação Comunitária 4 - 120 hs. UE - Unidade Educacional * Unidade Educacional “Introdução ao Curso de Enfermagem” - 40 hs.
Davini (1994, p.47) define a unidade educacional como: uma estrutura pedagógica dinâmica, orientada por determinados objetivos de ensino-aprendizagem, em função de um conjunto articulado de conteúdos e sistematizada por uma metodologia didática. Cada unidade
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guarda certa autonomia com respeito às demais, porém, ao mesmo tempo, encontra-se articulada com as outras com vistas à totalização das áreas de atribuições e do perfil profissional.
O processo de avaliação foi construído ao longo das unidades educacionais e está fundamentado numa concepção dialógica, enfocando a avaliação formativa e somativa, considerando três eixos: avaliação do desempenho do estudante, avaliação do professor e avaliação da unidade educacional. Em 2003, na primeira série dos dois cursos, iniciou-se uma mudança na unidade de integração, que foi denominada de Unidade de Prática Profissional (UPP), (Quadro 2) e as unidades específicas do curso de enfermagem passaram a ser implementadas de forma articulada, formando uma única UE - Enfermagem, Saúde e Sociedade (Quadro 3). Reflexões sobre o desenvolvimento da prática pedagógica na primeira série Em 2003, como se verifica na comparação entre os Quadros 1 e 3, houve necessidade de superar a fragmentação que as unidades inicialmente apresentaram. Assim, as “antigas” unidades didáticas que compunham o currículo em cada série foram articuladas em unidades educacionais e serão apresentadas nas séries subseqüentes. Apesar do esforço para se utilizarem estratégias de ensino-aprendizagem relacionadas à prática profissional, identificamos a dificuldade de se articular teoria e prática, uma vez que os estudantes não estavam inseridos no mundo do trabalho e, portanto, isso comprometia a reflexão de uma prática que ainda não existia. Este fato fez com que o currículo, mais uma vez, se voltasse com mais ênfase para o conteúdo. Além disso, apesar das diversas capacitações que ocorreram, ainda havia dificuldade para implementar a metodologia da problematização, tal como proposto por Rego (1995) e Duarte (2000); acresce-se a esta o pouco tempo para a realização do trabalho em pequenos grupos; a falta de articulação dos professores da enfermagem com os das disciplinas das cadeiras básicas e clínicas. Quanto à Unidade de Prática Profissional, foram identificados os seguintes pontos fortes: interação com a comunidade; fortalecimento da parceria ensino-serviço; articulação entre os cursos de enfermagem e medicina; formação do estudante com base na prática reflexiva; e algumas dificuldades – tais como: de reconhecer que não havia distinção entre os desempenhos dos estudantes da medicina e da enfermagem; de trabalhar com situações semi-estruturadas; de não se ter clareza dos momentos do ciclo pedagógico; de integração na equipe das unidades de saúde; da falta de entendimento sobre a elaboração do portfólio reflexivo, e falta de articulação com a unidade educacional “Enfermagem, Saúde e Sociedade”. Reflexões sobre o desenvolvimento da prática pedagógica na segunda série A segunda série, desde 1998, constituiu-se pelas Unidades Educacionais 7, 8, 9, 10, 11, 12 e 13 e, a partir de 2003, todas as UES, com exceção da última, foram integradas em uma unidade nominada “Assistência de Enfermagem à Família no Nível Primário de Atenção à Saúde”, na perspectiva de integração dos desempenhos (Quadro 4). Ao longo do ano de 2003 reconheceu-se que houve avanços, principalmente no que se refere à articulação entre os professores das disciplinas das cadeiras básicas e clínicas, e continuidade das atividades nos mesmos cenários de prática profissional da primeira série do ano anterior. No entanto, foram identificadas algumas dificuldades: superação do modelo tradicional com ênfase nos aspectos biológicos e na dimensão individual; implementação do método da problematização (ação – reflexão – ação); primazia do conteúdo; realização da avaliação integrada e na articulação teoria-prática.
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ESPAÇO ABERTO Quadro 2. Unidade de “Prática Profissional 1”, Famema, 2003. Elementos do planejamento da Unidade Educacional
Caracterização
Propósito
Desenvolver capacidades cognitivas, psicomotoras e afetivas que instrumentalizem a identificação de necessidades de saúde das pessoas, famílias e comunidade, formulação de problemas e elaboração e execução de planos de ação, utilizando os métodos clínico e epidemiológico.
Desempenhos
Identifica necessidades de saúde; Formula problemas de saúde; e Elabora plano de cuidados. Cenário: dez USFs (Unidade de Saúde da Família), sendo que cada unidade recebe um grupo de 12 estudantes (quatro do curso de Enfermagem e oito do curso de Medicina), acompanhados por um docente enfermeiro e um docente médico.
Organização
Avaliação
Semana-padrão: três períodos destinados a ação/reflexão/ação. Dinâmica de desenvolvimento da Unidade: - Confronto experiencial; - Síntese provisória em grupo/elaboração de questões de aprendizagem; - Busca de informações; e - Nova síntese em grupo. Avaliação do estudante (avaliação de desempenho, portfolio reflexivo e exercício de aprendizagem da prática profissional); Avaliação da unidade educacional e Avaliação do professor.
Quadro 3. Unidade Educacional “Enfermagem, Saúde e Sociedade”, Famema, 2003. Elementos do planejamento da Unidade Educacional
Propósito
Desempenhos
Caracterização
Assistir o indivíduo, família e comunidade, com vistas à promoção da saúde e prevenção de doenças, entendendo que as condições de vida e trabalho determinam o processo de viver, adoecer e morrer, articulando os eixos epidemiológico, clínico, administrativo e pedagógico, na atenção primária à saúde. Compreende o trabalho em saúde e em enfermagem; Conhece a organização social da comunidade e da unidade de saúde; Presta assistência de enfermagem aos indivíduos e às famílias, empregando método clínico; Presta assistência de enfermagem à comunidade, analisando o trabalho em saúde e em enfermagem, correlacionando-os com as políticas econômicas, sociais e de saúde; e Estabelece relações interpessoais com colegas, profissionais, usuários e familiares.
Organização
Cenário: sala de aula, laboratórios de anatomia e morfofuncional. Corpo docente: três docentes das disciplinas de Administração Aplicada à Enfermagem e Enfermagem em Saúde Coletiva, dois da Enfermagem Clínica e um da Enfermagem em Saúde Mental/Psiquiátrica. Semana-padrão: atividades teóricas: cinco períodos* distribuídos em estudo individual e/ou em grupo, plenárias, conferências e visitas a instituições prestadoras de serviços relacionados à saúde. Dinâmica de desenvolvimento dos temas: inicialmente, propuseram-se os seguintes movimentos: ação/reflexão/ação para o desenvolvimento dos temas de estudo. Posteriormente, a dinâmica restringiu-se ao estudo teórico de temas, seguindo os movimentos: orientação de estudo, busca de informações/estudo, plenária.
Avaliação
As estratégias utilizadas foram: auto-avaliação, exercícios práticos, apresentação de seminários, relatórios e avaliação cognitiva.
* considera-se período a carga horária de 3 ou 4 horas.
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ESPAÇO ABERTO
Quadro 4. Unidade Educacional “Assistência de enfermagem às famílias no nível primário de atenção à saúde”, Famema, 2003. Elementos do planejamento da Unidade Educacional Propósito
Desempenhos
Organização
Avaliação
Caracterização
Assistir o indivíduo, família e comunidade no nível primário de atenção à saúde, utilizando a Sistematização da Assistência de Enfermagem (SAE). Utiliza recursos de ensino/aprendizagem no desenvolvimento das atividades; Trabalha em grupo; Realiza trabalho com grupo; Realiza visita domiciliária (VD); Trabalha em equipe interdisciplinar e multiprofissional; Desenvolve a capacidade de observação, comunicação e análise crítica com base em princípios éticos e de cidadania; Utiliza precauções padrão; Assiste o indivíduo, família e comunidade, utilizando a Sistematização da Assistência de Enfermagem (SAE), no nível primário de atenção à saúde, enfocando as necessidades de oxigenação, alimentação, eliminação, circulação, reprodução, sexualidade e as medidas de proteção específica; e Compreende os fundamentos do atendimento de urgência e emergência pré- hospitalar. Cenário: seis Unidades Básicas de Saúde, sendo que cada unidade recebe um grupo de seis a sete estudantes, acompanhados por um docente enfermeiro. Corpo docente: dois docentes da disciplina de Enfermagem em Saúde Coletiva, um da Enfermagem Clínica, um da Enfermagem Pediátrica, um da Enfermagem Gineco-Obstétrica e um da Administração Aplicada à Enfermagem e Saúde Coletiva. Semana-padrão: Atividades práticas: três períodos Atividades teóricas: quatro períodos, distribuídos em estudo individual e/ou em grupo, plenárias e conferências. Interação comunitária: um período. Dinâmica de desenvolvimento dos temas: Realização de uma atividade prática; Discussão para levantamento de conhecimento prévio e elaboração de questões de aprendizagem; Busca de fundamentação teórica; Discussão em plenária, com especialista de cadeira básica e clínica; e Retorno à realidade nos momentos de atividade prática. Avaliação do estudante: estudo de caso, exercícios, apresentação de seminários e atividades práticas. Avaliação do professor Avaliação da unidade educacional.
Reflexões sobre o desenvolvimento da prática pedagógica da terceira série A reconstrução e readequação da terceira série deu-se com a integração das unidades educacionais 14, 15, 16, 17 e 18 em uma única unidade - “Cuidado ao indivíduo hospitalizado” - segundo os ciclos de vida (Quadro 5). A série caracteriza-se pela introdução dos estudantes na Unidade Hospitalar para desenvolver cuidados ao indivíduo hospitalizado. O processo de mudança foi permeado por conflitos relacionados ao referencial pedagógico e dificuldades no relacionamento interpessoal, pois, até então, os docentes trabalhavam em unidades educacionais separadamente. Além disso, até esse momento, os enfermeiros responsáveis pelos serviços hospitalares em cada uma das especialidades eram os mesmos que respondiam pelas unidades didáticas. Com a reestruturação da série, esses profissionais ficaram com a atividade docente e esse processo gerou uma
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separação entre as atividades práticas das unidades de internação e as atividades dos estudantes. Houve, ainda, dificuldades para se estabelecer o recorte de conhecimentos pertinentes ao cuidado ao indivíduo hospitalizado. Para superar essas dificuldades, houve a supervisão de uma docente da disciplina de psicologia quanto ao trabalho do grupo de docentes, assim como a instituição do processo de educação permanente, o que permitiu a avaliação do processo, revisão de conceitos e estratégias que refletissem os pressupostos do PPP do curso de enfermagem.
Quadro 5. Unidade Educacional “Cuidado ao indivíduo hospitalizado”, Famema, 2003. Elementos do planejamento da Unidade Educacional
Propósito
Desempenhos
Organização
Avaliação
Caracterização
Proporcionar aos estudantes conhecimentos técnico-científicos para o cuidado de enfermagem sistematizado ao indivíduo hospitalizado, em situações clínico-cirúrgicas e obstétricas, considerando sua inserção na família e sociedade, as políticas públicas e a organização hospitalar para esta prática. Participa do processo de trabalho da enfermagem na unidade de internação hospitalar: . realiza assistência de enfermagem ao indivíduo, utilizando o método clínico e epidemiológico e a sistematização da assistência de enfermagem; . presta cuidados de enfermagem de forma humanizada;. trabalha em equipe de enfermagem, multiprofissional e interdisciplinar; . aplica medidas de biossegurança e. aplica os princípios da ética e bioética; Trabalha em grupo; e Aplica os princípios da metodologia problematizadora. Cenário: Hospital das Clínicas de Marília (HC) – Unidades I e II, desenvolvendo atividades nas unidades de internação clínica e cirúrgica, moléstias infecciosas, centro-cirúrgico, ginecologia, obstetrícia, centro obstétrico, pediatria e berçário de cuidados intermediários. Corpo docente: três docentes da disciplina de Enfermagem Clínica, três da Enfermagem GinecoObstétrica, dois da Enfermagem Pediátrica. Docentes colaboradores: dois docentes da Enfermagem Clínica e um da Enfermagem em Saúde Mental/Psiquiátrica. Semana-padrão: Atividades práticas: quatro períodos. Há também um encontro semanal com um docente da disciplina de Enfermagem em Saúde Mental/Psiquiátrica com os grupos, no campo de atividade prática, para discussão das questões de aprendizagem sobre o processo grupal/relações interpessoais e prestação de cuidados. Atividades teóricas: três períodos, distribuídos em estudo individual e/ou em grupo, plenárias e conferências. Nas atividades teórico-práticas os estudantes rodiziam ao longo do ano nas áreas do adulto, da criança e da mulher. Interação comunitária: um período. Dinâmica de desenvolvimento dos temas: Realização de uma atividade prática; Discussão para levantamento de conhecimento prévio e elaboração de questões de aprendizagem; Busca de fundamentação teórica; Discussão em plenária, com especialista de cadeira básica e clínica e Retorno à realidade nos momentos de atividade prática.Foram desenvolvidas seqüências de atividades em conjunto abordando os seguintes conceitos-chave: sistematização da assistência de enfermagem, biossegurança, higiene e conforto, administração de medicamentos, suporte avançado de vida, ética e bioética, hospital como unidade prestadora de serviços de saúde e o processo de trabalho da enfermagem. Os demais conceitos-chave específicos foram abordados nas Unidades Educacionais separadamente com cada grupo de professores (adulto, criança e mulher) estabelecendo as seqüências de atividades e estratégias de ensino-aprendizagem. Avaliação do estudante: avaliação cognitiva e de desempenhos. Avaliação do professor; e Avaliação da unidade educacional.
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Reflexões sobre o desenvolvimento da prática pedagógica da quarta série Esta série desenvolve um processo de ensino-aprendizagem, por meio da modalidade de estágio supervisionado, objetivando a vivência do estudante no mundo do trabalho e a participação do enfermeiro do serviço nesse processo (Quadro 6). Desde 2001, a carga horária da Unidade Educacional Interação Comunitária 4 foi utilizada para o Estágio Eletivo, o qual consiste na escolha, pelo estudante, do local de realização do mesmo, oportunizando a participação ativa na construção curricular, escolhendo e definindo área de interesse, de fragilidade e de aprofundamento do seu conhecimento e desenvolvimento de habilidades e atitudes. Durante o desenvolvimento das atividades na área hospitalar, não houve participação dos enfermeiros vinculados aos serviços no processo de reconstrução da série, mesmo tendo sido realizadas várias tentativas de integração ensino-serviço. A decisão da participação dos enfermeiros no processo de supervisão foi tomada pelos gerentes do serviço.
Quadro 6. Unidade Educacional “Estágio supervisionado e eletivo”, Famema, 2003. Elementos do planejamento da Unidade Educacional Propósito
Desempenhos
Organização
Avaliação
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Caracterização
Pretende que o estudante analise os problemas do contexto real do trabalho e proponha intervenções que visem a transformação da realidade de saúde. Participa da organização do trabalho da Enfermagem; Participa da previsão de recursos materiais e equipamentos; e Presta assistência nos três níveis de atenção à saúde: planeja a assistência no serviço de saúde e planeja a assistência ao indivíduo/família. Cenários: oito campos de estágios distribuídos no Hospital das Clínicas de Marília (HC) – Unidades I e II:unidades de internação clínica e cirúrgica, pronto-socorro, obstetrícia e pediatria; dez Unidades de Saúde da Família; diversos cenários de escolha do estudante para a realização do estágio eletivo, podendo ser nos serviços de saúde do município ou fora dele. Corpo docente: cinco docentes da disciplina de Enfermagem Clínica, um da Administração Aplicada à Enfermagem/Enfermagem em Saúde Coletiva, um da Administração Aplicada a Enfermagem/Enfermagem Clínica e três da Enfermagem Psiquiátrica/Saúde Mental. Semana-padrão: Atividades de estágio: seis períodos; Atividades de supervisão: um período; Atividade de teorização: um período quinzenal para discussão de temas definidos pelos serviços de saúde em conjunto com a academia. Atividade para Trabalho de Conclusão de Curso (TCC): um período. Obs: para que o estudante vivencie o trabalho no hospital, em todos os períodos, tornou-se necessária a realização de quatro plantões de 12 horas divididos entre dois diurnos e dois noturnos, sendo realizado um por mês. Para que a carga horária não ultrapassasse, cada plantão substituiu dois períodos de estágio na semana. Dinâmica de desenvolvimento do estágio: Os estudantes rodiziaram, ao longo do ano, nos diversos cenários (Hospital das Clínicas e Unidades de Saúde da Família) e ainda estagiaram no cenário escolhido para o eletivo. As atividades dos estudantes nos diversos cenários de ensino-aprendizagem foram norteadas pelos desempenhos, com supervisão direta do enfermeiro de serviço. O docente, quinzenalmente, participava de encontros, cujo objetivo era refletir sobre o processo de trabalho do estudante e do enfermeiro de serviço. Avaliação do estudante: avaliação de desempenhos e TCC. Avaliação do professor e do enfermeiro assistencial; e Avaliação da unidade educacional.
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ESPAÇO ABERTO
Nesse cenário, apenas o estudante e, às vezes, a equipe de enfermagem participaram das discussões para elaboração do planejamento em saúde, junto com o docente. No entanto, na rede básica de saúde, nota-se um maior envolvimento da equipe; a cada encontro o enfermeiro do campo, o docente e o(s) estudante(s) organizaram-se para que a atividade de supervisão fosse realizada em conjunto, contudo, esta nem sempre foi possível em função da incompatibilidade das agendas dos profissionais. Houve dificuldade de se realizar a supervisão dos estudantes com base na reflexão sobre a sua prática, revelando a falta de clareza sobre o referencial do planejamento em saúde, a concepção de estágio supervisionado, o papel do docente e do enfermeiro dos serviços de saúde, os desempenhos dos estudantes e a avaliação nesta lógica curricular. No entanto, o avanço é patente ao se inserir os estudantes nos cenários de ensinoaprendizagem das Unidades de Saúde da Família. Este fato consolida a participação dos enfermeiros das unidades de atenção básica à saúde no processo de formação dos estudantes e fortalece a parceria ensino-serviço. Considerações finais A possibilidade de descrever e analisar as séries que compõem o curso de enfermagem em 2003 favoreceu o reconhecimento do processo de mudança que vem sendo desenvolvido tanto na formação desses profissionais quanto na transformação que vem ocorrendo nessa categoria (enfermagem), no âmbito da Famema que, com certeza, irá contribuir para uma reflexão mais profunda sobre a prática da enfermagem no cenário brasileiro. Neste movimento de reflexão, verificam-se os pontos que necessitam ser trabalhados no sentido da concretização dos fundamentos do PPP, como: desarticulação da teoria e prática, no início do curso, sobretudo, entre a unidade educacional que substituiu as unidades didáticas e a unidade educacional de prática profissional da primeira série; redefinição dos papéis dos docentes e do enfermeiro dos serviços de saúde nessa nova concepção de organização curricular e pedagógica; diferentes entendimentos sobre o referencial da metodologia da problematização, planejamento em saúde e estágio supervisionado; desintegração entre as disciplinas básicas e clínicas; falta de clareza sobre a distinção entre os desempenhos dos estudantes de medicina e enfermagem; insegurança dos professores em trabalhar com a incerteza no processo ensinoaprendizagem, que se concretizava no cenário da prática profissional; diferentes concepções sobre o referencial de competência, gerando dificuldades para se trabalhar numa nova lógica de recorte de conteúdos (conhecimentos, habilidades e atitudes). Por outro lado, também identificamos mudanças realizadas que contribuíram para a implementação do currículo integrado e orientado por competência, entre as quais destacam-se: o fortalecimento da parceria ensino-serviço; a articulação entre os cursos de enfermagem e medicina; o fortalecimento da aplicação dos princípios da aprendizagem significativa; instituição do processo de educação permanente, permitindo a avaliação de processos e estratégias do PPP. Atualmente, as experiências acumuladas ao longo dos anos de implementação do PPP vêm possibilitando outras mudanças na prática pedagógica e na organização curricular das séries, que estão centradas na implementação da UPP nas segundas, terceiras e quartas séries, evidenciando o processo dinâmico de permanente reflexão e reconstrução desta prática, tal como propõem Gadotti & Romão (1995).
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Referências BRACCIALLI, L. A. D. Mulheres e aborto: as ambigüidades do discurso autorizado. 2000. Dissertação (Mestrado) - Escola de enfermagem, Universidade de São Paulo, São Paulo. BRASIL. Portaria nº 1721, de 15 de dezembro de 1994. Dispõe sobre currículo mínimo e duração do curso de enfermagem. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 16 dez. 1994. Seção 1, n. 238, p.19801-2. BRASIL. Ministério da Saúde. Projeto de formação de pessoal de nível médio em larga escala: acordo MEC/MPAS/MS/OPAS. Brasília, 1997. BRASIL. Constituição (1988). Da ordem social. In: ______. Constituição: República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, 1988. p.131-7. BRASIL. Lei n.8080, de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 10 set. 1990. Seção 1, p.18055-9. CHIRELLI, M. Q. O processo de formação do enfermeiro crítico-reflexivo na visão dos alunos do curso de enfermagem da Famema. 2001. Tese (Doutorado) - Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Riberão Preto. DAVINI, M. C. Currículo integrado. In: BRASIL. Ministério da Saúde. Coordenação Geral de Desenvolvimento de Recursos Humanos para o SUS. Capacitação pedagógica para instrutor/supervisor - área da saúde. Brasília: Ministério da Saúde, 1994. p.39-58. DIAZ-BORDENAVE, J.; PEREIRA, A. M. Estratégias de ensino-aprendizagem. 12.ed. Petrópolis: Vozes, 1991. DUARTE, N. Vygotsky e o “aprender a aprender”: crítica às apropriações neoliberais e pósmodernas da teoria vygotskiana. Campinas: Autores Associados, 2000. FAMEMA. Currículo do curso de enfermagem da Faculdade de Medicina de Marília. Marília: Faculdade de Medicina de Marília, 1997. FREIRE, P. Educação e mudança. 27.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2003. FUNDAÇÃO MUNICIPAL DE ENSINO SUPERIOR DE MARÍLIA. Projeto UNI-Marilia. Marília, 1992. 2v. GADOTTI, M.; ROMÃO, J. Autonomia da escola: princípios e propostas. São Paulo: Cortez, 1995. LALUNA, M. C. M. C. O planejamento como instrumental da gerência em enfermagem: construindo o desempenho do planejamento participativo no currículo integrado. 2002. Dissertação (Mestrado) - Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Riberão Preto. REGO, T. C. Vygotsky: uma perspectiva histórico-cultural da educação. Petrópolis: Vozes, 1995 REZENDE, K.T.A. O ensino de enfermagem no contexto UNI Marília: desvelando os pressupostos ideológicos da prática docente. 1998. Dissertação (Mestrado) - Escola de Enfermagem, Universidade de São Paulo, São Paulo. VILELA, E. M. Interdisciplinaridade no ensino de graduação em enfermagem: um estudo de caso. 2002. Tese (Doutorado) - Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Riberão Preto.
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O trabalho tem como objetivo relatar o desenvolvimento do currículo ao longo das quatro séries do curso de enfermagem da Faculdade de Medicina de Marília (Famema) no ano de 2003. Utilizou-se, como método, a reflexão sobre a prática pedagógica, com base na análise documental dos programas de ensino-aprendizagem de cada série. Nos resultados, verificam-se pontos a serem trabalhados no projeto político-pedagógico, como: redefinição dos papéis dos docentes e do enfermeiro dos serviços de saúde; diferentes entendimentos sobre os referenciais da metodologia da problematização e competência; insegurança dos professores em trabalhar com a incerteza no processo ensino-aprendizagem. Identificam-se, também, mudanças que contribuíram para a implementação do projeto, destacando: o fortalecimento da parceria ensino-serviço; a articulação entre os cursos de enfermagem e medicina; a utilização dos princípios da aprendizagem significativa; instituição do processo de educação permanente, permitindo a avaliação de processos e estratégias do currículo. PALAVRAS-CHAVE: enfermagem. educação em enfermagem. currículo. Implementing educational program for Famema’s nursing course: reporting the experience The project seeks to report the development of the syllabus for the four-year nursing course of Marília Medical School (Famema) in 2003. The method used was a reflection on the pedagogical practice, based on documental analysis of the teaching-learning programs for each year. The results identified some points that the political-pedagogical project needed to improve, such as: redefining health service professors’ and nurses’ roles; different understandings regarding methodology reference related to problematization and ability; professors’ insecurity in working with uncertainty in the teaching-learning process. It was also possible to identify changes that contributed to the implementation of the project, which included: the strengthening of the partnership between teaching and service; the relation between the medical and nursing courses; the use of the principles of the meaningful learning; introduction of the continuous education process, enabling one to evaluate processes and strategies of the curriculum. KEY WORDS: nursing. education nursing. curriculum. Implementando las unidades educacionales do curso de enfermería de Famema: un relato de experiencia El trabajo tiene como objetivo relatar el desarrollo del currículo a lo largo de las cuatro etapas del curso de enfermería de la Facultad de Medicina de Marília (Famema) en 2003. El método usado fue la reflexión sobre la práctica pedagógica, fundamentado en el análisis documental de los programas de instrucción-aprendizaje de cada etapa. Los resultados demuestran puntos que deben ser trabajados en el proyecto político-pedagógico, por ejemplo: redefinición de los papeles de los profesores y del enfermero de los servicios de salud; diversas comprensiones sobre los referenciales de la metodología de la problematización y de la capacidad; inseguridad del profesor en trabajar con incertidumbre en el proceso instrucción-aprendizaje. Se identifican también los cambios que contribuyeron a la implementación del proyecto, destacando: la consolidación de la alianza enseñanza-servicio; la articulación entre los cursos de enfermería y medicina; el uso de los principios del aprendizaje significativo; institución del proceso de educación permanente, permitiendo la evaluación de procesos y de las estrategias del currículo. PALABRAS CLAVE: enfermería. educación en enfermería. currículo.
Recebido em 19/10/05. Aprovado em 20/09/06.
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HOLSCHUH-KRAISS, 1998
livros BETTIOL, L. M. Saúde e participação popular em questão: o Programa Saúde da Família. São Paulo: Editora UNESP, 2006.
A finalidade da ciência é aliviar a miséria da existência humana.
Esta frase de Brecht, citada no livro Saúde e participação popular em questão, dá o tom apaixonado da escrita do tema por Líria Maria Bettiol, assistente social, pesquisadora e docente de uma pequena cidade do noroeste paulista. Poderia ser, inclusive, a epígrafe dessa obra de 155 páginas, dedicadas ao estudo do processo, das possibilidades e dos limites da implantação do SUS no nível da atenção básica no pequeno município de Estância Turística de Santa Fé do Sul, parte da realidade da imensa maioria dos pequenos municípios brasileiros. O livro, referente a uma dissertação de mestrado do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da UNESP, Campus de Franca, Estado de São Paulo, está organizado em três capítulos: a história das políticas de saúde no Brasil; o Programa Saúde da Família; a participação e a atenção básica. A proposta de pesquisa, desenvolvida com o objetivo de avaliar a participação popular e a atenção básica nas ações de saúde no âmbito do município de Santa Fé do Sul, enraíza-se nas preocupações da autora como assistente social atuante no Programa Saúde da Família daquele município. De fato, a perspectiva orientadora da profissão serve para a tomada de posição diante das contradições entre teoria e prática e discurso e política com que a autora se depara em sua prática. No primeiro capítulo, “A história das políticas de saúde no Brasil: da revolta da vacina (1904) ao programa Saúde da Família – PSF (1994)”, a autora expõe a história da luta popular pela saúde e, ao mesmo tempo, situa seu referencial teórico, ao evidenciar a impossibilidade de uma teorização neutra diante dos processos sociais e políticos. Para ela, a participação popular está
intimamente vinculada à questão do poder, isto é, da dominação e resistência no contexto de relações de classes sociais. A participação popular direta e concreta é uma forma de distribuir esse poder, o que não ocorre sem disputa e conflito. Somente há distribuição desse poder sob a forma de políticas sociais garantidas por direitos quando há mobilização da classe trabalhadora, afirma a autora numa passagem ao usar as palavras de Potyara Pereira. Na realidade, as dificuldades da efetivação dos princípios do SUS estão relacionadas, em boa medida, à desmobilização política da classe trabalhadora numa época de controle neoliberal da máquina do Estado. Embora não seja propósito do trabalho analisar este processo, vale observar a pertinência do conceito histórico de classe social proposto pelo historiador inglês Edward Thompson na importante obra A formação da classe trabalhadora na Inglaterra, referida pela autora, para entender fases de organização e desorganização da classe trabalhadora, as dificuldades e possibilidades para a assunção de uma posição de classe. No segundo capítulo, confronta o slogan do PSF, como “porta de entrada para o SUS”, com a realidade local ao lembrar, num chiste provocativo, da canção A Casa, de Vinícius e Tonga, cantada pelo grupo Boca Livre: “Era uma casa/ muito engraçada/não tinha teto/não tinha nada/...” As razões desta situação estão relacionadas, do seu ponto de vista, ao processo político nacional (o PSF teve uma “arrancada” na gestão de Serra, usada por ele na campanha à presidência da república) e à cultura política centralizadora vigente em nosso país. As conseqüências aparecem em vários níveis de organização dos sistemas locais de saúde analisados no trabalho, a exemplo da baixa arrecadação própria frente ao aumento dos
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LIVROS
gastos estimulados pelos incentivos federais com base na cobertura populacional; do aumento da rotatividade dos médicos e a sobrecarga de trabalho dos demais profissionais de saúde – ameaças à universalização do acesso e ao direito à saúde. Outro problema apontado é o risco de o financiamento do PSF, apoiado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BIRD) por meio do PROESF – Projeto de Implantação e Consolidação da Saúde da Família, reforçar a orientação neoliberal de políticas focalizadas nos problemas de saúde considerados mais graves da população mais pobre. Um tópico interessante é o das experiências internacionais em Saúde da Família, no qual assinala o caráter não originário da proposta brasileira e a compara com as encaminhadas no Canadá, em Cuba e na Colômbia. O capítulo conclui com uma espécie de raio-X do sistema de saúde em Santa Fé do Sul. Como não podia deixar de ser, as informações oficiais sobre o sistema de saúde local deixam a desejar, mas a apresentação dos dados disponíveis poderia dar lugar a uma caracterização do município de um ponto de vista demográfico, econômico, social e, sobretudo, político – caracterização esta, a meu ver, fundamental para o entendimento do terceiro e último capítulo, dedicado à avaliação do sistema de saúde local. A avaliação considera as opiniões de profissionais de saúde, lideranças comunitárias e usuários dos serviços a respeito do modelo de atenção, do SUS e da participação popular. O desconhecimento sobre o sentido do PSF, a ênfase no tratamento das doenças em detrimento da prevenção, o problema das filas no atendimento, as dificuldades na referência aos serviços especializados compõem o quadro da baixa capacidade resolutiva das unidades do programa para lidar com os problemas de saúde da população. Será a participação popular a solução? Neste último tópico do livro, impressiona o senso crítico e o realismo das opiniões de alguns profissionais de saúde sobre o pequeno envolvimento das comunidades em cada local de moradia, bem como de seu próprio papel na implementação da estratégia da Saúde da Família. De fato, tudo fica muito distante da missão das equipes de Saúde da Família de
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“elaborar, com a participação da comunidade, um plano local para enfrentar os determinantes do processo saúde-doença”, conforme definição oficial constante na página do Ministério da Saúde relativa ao ano de 2003. Assim como fica igualmente distante a possibilidade de os conselhos de saúde representarem de fato os interesses dos diferentes segmentos da população devido à interferência do poder político local em todo o processo. A autora não analisa a dinâmica dos conselhos, mas se detém na análise da preparação das conferências de saúde em cada unidade do PSF de Santa Fé do Sul, realizada pela Secretaria Municipal de Saúde em 2003. Resta a perseverante vontade de que o controle público seja, de fato, exercido pela população em algum momento. Neste ponto, percebe-se que a falta de uma revisão bibliográfica sobre o tema do controle social/público na área da saúde diminuiu o alcance dos resultados da sua pesquisa acadêmica. Isso se deve, a meu ver, ao privilégio concedido aos autores do Serviço Social, na interlocução sobre o tema com as áreas da Saúde Coletiva e das Ciências Humanas. Neste sentido, vale assinalar a importante polêmica sustentada entre “otimistas” e “pessimistas” sobre as possibilidades e limites de os conselhos de saúde exercerem de fato o controle social do SUS (Cortes, 1998), que atravessa boa parte das publicações de dissertações, teses, artigos e livros escritos desde então. Vale ressaltar as contribuições de Machado (1999) e de Gazeta (2004) a respeito da autonomia dos conselhos de saúde, analisada sob o ângulo da gestão local em governos de orientação político-partidária oposta. O último autor salienta o fato de estarmos diante de um controle meramente formal do fundo público pelos conselhos de saúde. Isso abre uma discussão importante: será realista esperar o controle do SUS exercido mediante a fiscalização dos gastos, ou seja, no âmbito da gestão, no qual a participação popular quase sempre se restringe a “carimbar” despesas e, assim, a legitimar o sistema de saúde e a ordem política vigentes? Ou, alternativamente, a participação popular não será efetiva apenas quando relacionada à dinâmica da vida social, na identificação dos problemas de saúde, de seus determinantes e dos meios mais adequados para enfrentá-los – com o que se desloca o âmbito do
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controle social/público da gestão para o da formulação da política de saúde? Se este passo decisivo for dado, então, quem sabe as conferências de saúde poderão vir a ser espaços democráticos, nos quais a mais ampla participação popular terá como resultado deliberações a favor da saúde da população, a serem encaminhadas em cada nível de organização do sistema de saúde. Eduardo Stotz Departamento de Endemias Samuel Pessoa, Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro. <stotz@ensp.fiocruz.br>
Referências CORTES, S. V. Conselhos municipais de saúde: a possibilidade dos usuários participarem e os determinantes da participação. Ciênc. Saúde Col., v.3, n.1, p.5-35, 1998. GAZETA, A. P. Democracia e participação social: a experiência dos Conselhos Municipais de Saúde no interior de São Paulo. Em Tese, v.1, n.2, p.1-19, 2004. Disponível em: <http://www.emtese.ufsc.br>. Acesso em: 6 out. 2006. MACHADO, H. O. P. Controle social e agenda política do SUS no município do Cabo de Santo Agostinho-PE. 1999. Dissertação (Mestrado) - Centro de Pesquisas Aggeu Magalhães, Fundação Oswaldo Cruz, Recife.
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Nav egar é pr eciso: avaliação de impactos do uso Navegar preciso: da internet na relação médico-paciente
teses
Sailing is necessary: evaluation of the impacts of internet access on the doctor-patient relationship
Trata-se de pesquisa com abordagem qualiquantitativa com objetivo de: verificar se indivíduos que acessam a internet a utilizam para consultar informações sobre saúde e doenças; se o paciente, acessando a internet, muda sua atitude de paciente e se verifica mais ativo e mais participante do processo de decisão sobre sua saúde; e se, do ponto de vista do paciente, houve mudança na atitude do profissional médico frente ao maior uso da internet por parte desse paciente. Como procedimento metodológico empregou-se a técnica do Discurso do Sujeito Coletivo – DSC, que possibilita a identificação e a construção de sujeitos e discursos coletivos distintos, por meio da análise de material individual e da extração das idéias centrais, compondo-se, com o conteúdo das idéias centrais semelhantes, discursos-síntese que expressam as representações sociais de uma coletividade. Para a coleta de dados, utilizou-se um questionário on-line, que ficou disponível por três meses na internet. A análise dos dados indica que a maioria dos entrevistados acessa a internet com freqüência de, pelo menos, uma vez por semana; a utiliza para consultar informações sobre saúde e doença, relacionadas a casos vivenciados por eles ou por aqueles que os afetam diretamente (familiares) e após alguma consulta médica, para verificar, entender ou complementar as informações oferecidas por seus médicos. Parte significativa dos sujeitos consideram que as informações acessadas na internet sobre saúde e doenças são úteis; utilizam-se dessas
informações para conversar com seus médicos em consultas posteriores e demonstram mudança de atitude, em termos de uma postura mais participativa no processo de decisão sobre sua saúde. A diversidade de discursos coletivos distintos resultantes do estudo, analisados e organizados em tipos e escalas, auxilia na compreensão de questões, tais como: tipo de participação do paciente durante a consulta médica, grau de autonomia do paciente, tipos de interação entre médico e paciente, e tipos de reação produzidas pelos profissionais médicos durante tal processo. Wilma Madeira Dissertação (Mestrado), 2006 Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo, São Paulo. <wilmams@usp.br>
Texto completo: http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/6/6135/ tde-30102006-103313/
PALAVRAS-CHAVE: relações médico-paciente. internet. comunicação. KEY WORDS: physician patient-relations. internet. communication. PALABRAS CLAVE: relaciones médico-paciente. internet. comunicación.
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A violência por par ceiro íntimo (VPI) dur ante a gestação parceiro durante Violence and pregnancy: study among public health care users in Grande São Paulo
A violência por parceiro íntimo (VPI) durante a gestação tem sido considerada importante problema de saúde pública, pela sua alta magnitude e impacto na morbidade e mortalidade materna e infantil. Neste trabalho pretendeu-se: a) estimar a prevalência da VPI na gestação e verificar sua associação com fatores sociodemográficos, de saúde reprodutiva, sexual e mental entre usuárias de serviços públicos de saúde da Grande São Paulo; b) conhecer se a ocorrência da VPI na gestação está associada à recorrência e gravidade da VPI na vida da usuária; c) identificar aspectos da vulnerabilidade individual e contextual relacionados à violência. Os procedimentos metodológicos incluíram: a) entrevistas estruturadas (questionário) com 1.922 usuárias, entre 15 e 49 anos, em 14 serviços públicos de saúde; b) três grupos focais com gestantes, e c) 4 entrevistas em profundidade com mulheres que sofreram VPI na gestação. Na análise quantitativa dos dados observou-se que 20% das gestantes investigadas (IC 95% 18,2 a 21,8) referem algum episódio de VPI na gestação. Em análise multivariada, foi contrastada a variável dependente “violência por parceiro íntimo durante a gestação”, dicotômica (presença ou ausência), contra 14 variáveis que, em análise univariada, estiveram associadas a VPI na gestação. Observou-se que: sofrer violência psicológica por familiar (ORa 1,54; IC: 1,10 a 2,14); sofrer violência física por familiar (ORa 1,98: IC: 1,30 a 3,03); ter mais de três gestações (ORa 3,44:
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IC 2,39 a 4,96); início da vida sexual antes dos 15 anos (ORa 1,98: IC: 1,37 a 2,85) e a presença de Transtorno Mental Comum (ORa 2,16: IC 1,68 a 2,77) são fatores associados à VPI na gestação, controlados pela escolaridade da usuária. Em uma subamostra composta pelas usuárias que referiram VPI alguma vez na vida (n=1165), realizou-se análise univariada e observou-se que a VPI na gestação está associada a: sofrer VPI psicológica grave ao longo da vida (RP= 2,69: IC: 1,86 a 3,91); sofrer VPI física grave ao longo da vida (RP= 1,96: IC 1,61 a 2,40); sofrer VPI psicológica “muitas vezes” (RP= 2,94: IC: 2,02 a 4,27); sofrer violência física “muitas vezes” (RP= 2,2; IC 1,8 a 2,70). Constata-se, portanto, que as usuárias que referem VPI na gestação apresentam padrão mais grave e freqüente de VPI na vida. No estudo qualitativo, foram caracterizadas as condições de vulnerabilidade à VPI na gestação, segundo aspectos da trajetória social da usuária, da interação da trajetória dela e do parceiro, e do contexto social. Constatou-se que, no nível da trajetória social, o fenômeno relaciona-se com desproteção na família de origem, com a experiência de desenraizamento social e com projeto de vida de reinserção social por meio do casamento. No âmbito da interação das trajetórias, a dúvida quanto à paternidade, a gravidez indesejada, as mudanças no corpo e na libido da mulher, e a percepção da gestação como momento de dependência feminina são fatores que tornam mulheres vulneráveis à VPI na gestação. E, por fim, no
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TESES
Águas da P edagogia da Pedagogia Implicação: intercessões da educação para políticas públicas de saúde
âmbito do contexto social, a concepção de que a vida reprodutiva e as medidas contraceptivas são atribuições femininas também favorece a ocorrência de VPI na gestação. A alta prevalência de VPI na gestação e sua associação com agravos à saúde mental sugerem que esta questão deve ser vista como importante problema de saúde pública. Além disto, o estudo demonstra que a VPI na gestação está relacionada a padrão grave de violência na vida e sinaliza a importância de intervenções nesse período. Julia Garcia Durand Dissertação (Mestrado), 2006 Departamento de Medicina Preventiva, Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo, São Paulo. <juliadurand@ hotmail.com>
Texto completo: http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/5/5137/ tde-24052006-155058/
PALAVRAS-CHAVE: maus tratos conjugais. gravidez. violência doméstica. fatores socioeconômicos. KEY WORDS: spouse abuse. pregnancy. domestic violence. socioeconomic factors. PALABRAS CLAVE: maltrato conjugal. embarazo. violencia doméstica. factores socioeconomicos.
Waters of pedagogy of implication: intercessions of the education for public health policies
A dissertação reporta a construção e apresenta a defesa de uma pedagogia da implicação, proposta que configura o ensinoaprendizagem como a gestão de processos de mudança de si e dos entornos, detectada na realização de cursos de aperfeiçoamento e especialização componentes de um projeto político de saúde. A formação aparece como eixo estrutural de uma política de saúde mental inovadora e ousada. A organização e os métodos de educação escolhidos tornaram a ação de formação muito mais ousada que a habilitação de pessoas para uma prática técnica, política ou administrativa diferente; funcionaram como agregadores de coletivos, disparadores de desejo e ativadores de processos de mudança, mobilizando atos e estratégias políticas no interesse do acolhimento de pessoas em projetos de vida e de presente, da democracia, cidadania e autoria. Para o percurso da escrita, na procura de uma teoria, foi utilizada a imagem das águas e das navegações. Os grandes itinerários estão nos cursos de saúde mental coletiva e no “curso” da saúde mental coletiva em sua história, geografia e sentidos nas políticas públicas de saúde; no “curso” da educação permanente em saúde, e no “curso” dos movimentos sociais que preenchem uma educação da cidadania. Esses “cursos” produziram a “correnteza” da saúde mental coletiva, modos coletivos de gestão e de
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atenção em saúde, processos de educação permanente em saúde e o Fórum Gaúcho de Saúde Mental. As âncoras de uma Pedagogia da Implicação são categorias analisadoras, conceitos caixa-de-ferramenta e o encontro com a invenção/criação de dispositivos operadores singulares, tendo em vista propiciar um poder-aprender-saber-fazer no cotidiano dos percursos, bem como na (re)definição das rotas. A saúde mental coletiva não existia antes desse percurso, ela se fez em percurso de desejo molhado pelas vidas singulares de trabalhadores, gestores, participantes e seus familiares e formadores implicados com a despsiquiatrização da loucura e com a gestão de processos de mudança de si e dos entornos.
O trabalho emite uma Carta Náutica ou uma carta-leitura das Intercessões da Educação para uma Política Pública de Saúde, com os traçados entrelaçados por matriciamentos e transversalizações, com pontos de sustentação, vazios de incompletude, produtora de devir e com outras vontades de potência: convite à implicação. Uma carta náutica das transformações da Nau da Liberdade Saúde Mental Coletiva, navegando nas águas da Pedagogia da Implicação. Sandra Maria Sales Fagundes Dissertação (Mestrado), 2006, Programa de Pós-Graduação em Educação, Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. <sandrafagundes@cpovo.net>
Texto completo: http://www2.ghc.com.br/GepNet/gestaoaguasdapedagogia.pdf
PALAVRAS-CHAVE: saúde mental. saúde pública. políticas públicas de saúde. educação em saúde KEY WORDS: mental health. public health. health public policy. health education. PALABRAS CLAVE: salud mental. salud pública. políticas públicas de salud. educación en salud.
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TESES
Estudo sobr etrizes e práticas de atenção à saúde sobree dir diretrizes mental: um enfoque nos procedimentos de avaliação inicial e planejamento terapêutico em serviços substitutivos de Botucatu Guidelines and mental health pr actices study: a focus on initial evaluation practices procedures and therapeutic planning in Botucatu substitute health services
O presente trabalho revê a organização do sistema de saúde brasileiro ao longo da história, com destaque para o desenvolvimento da assistência à saúde mental dentro desse processo. São enfocados os movimentos sociais em busca de mudanças, como o Movimento Sanitário e a Reforma Psiquiátrica no país, assim como as políticas públicas que marcaram significativamente a situação atual. Além disso, apresenta questões relativas às articulações existentes na estrutura política do país que determinaram, de acordo com o modo de produção adotado, o olhar para a doença e para o doente, resultando que as ações no campo da saúde estivessem ligadas e voltadas principalmente à condição produtiva dos indivíduos. Apresentam-se, ainda, algumas considerações sobre o contexto da assistência à saúde mental contemporânea e seu processo de transformação a partir de análise de documentos e revisão bibliográfica não exaustiva, com a proposta de compreender aspectos preconizados pela Organização Mundial da Saúde e Legislação Brasileira para o cuidado em saúde mental, apontando influências internacionais. A partir dessa breve compreensão, entende-se que informações sobre os pressupostos para o tratamento são subsídios importantes para a construção da luta pela saúde mental e cidadania. Considera-se, neste trabalho, que a reestruturação da prática cotidiana dos serviços de saúde mental é condição essencial
para a transformação proposta para o modelo assistencial em nosso país. O presente estudo questionou profissionais de equipes de serviços substitutivos de saúde mental do município de Botucatu, em relação aos sentidos atribuídos por eles aos procedimentos de avaliação inicial e planejamento terapêutico, como constituintes do tratamento oferecido nestes serviços. Para tanto, utilizou-se a perspectiva das práticas discursivas e produção de sentidos no cotidiano proposta por Spink. Observaram-se diferenças conceituais e paradoxos que explicitam o período de transição pelo qual o modelo está passando. Tais observações mostram a necessidade de transformar não apenas a norma legal, mas também os conteúdos implícitos nas ações diárias por parte dos profissionais, possibilitando a ressignificação das relações sociais que ali se estabelecem. Helen Isabel de Freitas Dissertação (Mestrado), 2006 Programa de Pós-Graduação em Saúde Pública, Faculdade de Medicina de Botucatu, Universidade Estadual Paulista, Botucatu. <hifreitas@yahoo.com.br>
PALAVRAS-CHAVE: políticas de saúde mental. reforma psiquiátrica. avaliação inicial. planejamento terapêutico. práticas discursivas. KEY-WORDS: mental health policy, psychiatric reform. first assessment. therapeutic project. discursive practices. PALABRAS CLAVE: políticas de salud mental. reforma psiquiátrica. valuación inicial. proyecto terapéutico. prácticas discursivas.
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.20, p.541-6, jul/dez 2006
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A atenção em saúde mental em municípios de pequeno e médio por tes: ressonâncias da reforma psiquiátrica portes: Psychosocial attention in small and medium-sized towns: resonances of the psychiatric reform
Este estudo busca conhecer as ressonâncias da reforma psiquiátrica em municípios de pequeno e médio portes, situados na região oeste do Estado de São Paulo. Com base na análise da política nacional de saúde mental formulada nos últimos anos e nas experiências desenvolvidas, após 1987, em São Paulo (capital), Santos e Campinas, procura-se: compreender como o Sistema Único de Saúde (SUS) tem contribuído para o avanço da reforma psiquiátrica nos municípios; verificar como a assistência oferecida, nesses municípios, está viabilizando os princípios da reforma psiquiátrica e a melhora das condições de vida dos usuários, bem como pesquisar o papel dos trabalhadores e dos gestores na construção de novas práticas de cuidado em saúde mental. A análise das práticas discursivas encontradas nos textos, documentos, bem como de entrevistas semiestruturadas com gestores, trabalhadores, usuários dos serviços de saúde mental apontam que os vários segmentos sociais envolvidos na saúde mental conhecem os princípios e propostas da reforma psiquiátrica. No entanto, as gestões municipais não assumem integralmente as propostas do Ministério da Saúde para a área, sob a alegação de falta de recursos financeiros para a contrapartida exigida. No município menor, o serviço de saúde mental se organiza no centro de saúde, oferecendo uma assistência mais integral aos usuários, com pouca incidência de encaminhamentos desencontrados. No município maior, realizam-se mais ações de reinserção psicossocial, tendo um Centro de Atenção
Psicossocial em funcionamento. Os usuários e seus familiares têm gradativamente assumido as novas propostas de intervenção, mas os mecanismos de participação e organização popular ainda são incipientes na saúde mental. Finalmente, deve-se destacar que, para uma efetiva consolidação das propostas atuais da reforma psiquiátrica, é necessário, entre outras ações: maior compromisso dos gestores com a atenção em saúde mental; maior investimento nas equipes multiprofissionais; estímulo à organização e participação dos usuários e familiares, e integralidade dos dispositivos de saúde, de assistência social e de cultura existentes nas cidades, com objetivo de construir uma rede de cuidado e reinserção social. Cristina Amélia Luzio Tese (Doutorado), 2003. Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas. <caluzio@assis.unesp.br>
PALAVRAS-CHAVE: reforma psiquiátrica. atenção psicossocial. saúde mental. saúde coletiva. KEY-WORDS: psychiatric reform. psychosocial attention. mental health. collective health. PALABRAS CLAVE: reforma psiquiátrica. atención psicosocial. salud mental. salud colectiva.
criação
Auto-retrato
caminhos pelo desconhecido Self-por tr ait Self-portr trait a journey through the unknown
“Se de imediato não vemos auto-retrato, o título sugere procurar um equivalente dele. afias algo como um vver er fotografias Ver nas fotogr através avés.. E assim por diante. diante.”” atr avés Luiz Gonzaga Leal
“Fotografar é poder enxergar o invisível”. Foi com essa visão que percorri os labirintos do Hospital Ulysses Pernambucano em abril de 2000. Fiquei encantada com o trabalho que ali estava sendo desenvolvido. “Tudo muda a partir do olhar”. Foi o que constatei nesta viagem pelas entranhas do hospital. No início era apenas um ensaio fotográfico sobre a loucura, mas a partir do primeiro encontro percebi “quantas coisas podem ser vistas, quantas coisas devem ser mostradas! Eu quis ver tudo!”. No projeto de ensaio e de oficina fotográfica para os pacientes, eles viraram fotógrafos, modelos, intérpretes de uma vida também cheia de afeto, beleza, doçura e fragilidade. Auto-Retrato não é o retrato da loucura, mas da vida, da emoção, dos sonhos. É o meu retrato, e o de cada um de nós. O retrato de nossa alma. Gyzia Pimentel
Gysia Dias Pimentel, fotógrafa, idealizadora e coordenadora do
projeto Auto-retrato - caminhos pelo desconhecido, uma oficina e ensaio fotográfico com os pacientes do Hospital Ulysses Pernambucano, Recife. <gyzia@uol.com.br>
Rua Maria Carolina, 299, apto. 602 Boa Viagem - Recife, PE Brasil - 51.020-220
CRIAÇÃO
São comuns na literatura - especializada ou não - as imagens de doentes mentais... sombrias, tristes, emolduradas pela solidão. Imagens captadas por um olhar que petrifica, imobiliza, captura o sujeito fixando-o em sua ausência. O trabalho de Gyzia, junto com os pacientes do Hospital Ulysses Pernambucano, utiliza uma outra química para fazer revelações. No lugar de mostrar “aquilo de que sou excluído” (Barthes), as imagens que vão surgindo pelo jogo lúdico de colocar-se atrás ou diante das lentes da câmera revelam, ao mesmo tempo, o brilho da surpresa, as cores do prazer, o deslumbramento que possibilita a emergência do desejo. Capturam também o sujeito. Sem fixá-lo, propõem remetê-lo a outro lugar, lugar do vir a ser, lugar de sujeito desejante. A oficina de fotografias, este ensaio e todo o projeto do ciclo Iluminuras desenvolvido no hospital, cumprem a função de deslocar o olhar ou, numa linguagem mais própria ao tema, fixar o foco em ângulo que permita a criação de subjetividades. Maria Amélia Lyra Diretora do Hospital Ulysses Pernambucano
Auto-retrato – caminhos pelo desconhecido propõe um percurso pelo mistério da ruptura, temporária ou permanente com a realidade. Mergulha no território dos desassossegados. Estas imagens não se submetem. Pelo contrário, captam os movimentos de dignidade dos que pulsam, incendiados, em todas as direções. Com isso, dão golpes nos preconceitos. Não entendo bem o processo de loucura... Penso que o que separa a chamada saúde psíquica da loucura dita oficial é um fio tênue que pode romper-se a qualquer momento. Portanto, ninguém deveria se vangloriar da robustez da saúde mental. Vejo reflexos da tensão vital de cada um dos envolvidos com o projeto. Um ato a mais em favor da vida. Porque é preciso construir algo por meio do qual possamos nos fertilizar. Ivana Moura Jornalista
Interface
- Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.20, p. , jul/dez 2006
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CRIAÇÃO
De quem é o olhar Que espreita por meus olhos? Quando penso que vejo Quem continua vendo enquanto Estou pensando? Fernando P essoa Pessoa
Eu posso compreender o porquê de pessoas com tal teor de sensibilidade e afeto viverem aladas em seus pensamentos. E este ensaio fotográfico me faz compreender mais ainda. Sinto por eles um respeito enorme. È um mistério absurdo! Revela sonoridades e cores... mostra que o interessante é olhar. É como olhar, é quem olha – o olhador. Observar, ver o que não se viu. Ver diferente o que já foi visto. Onde está a beleza? No objeto? Ou no universo interno de quem reconhece? As fotografias não querem impressionar, querem falar, comunicar uma vez mais o incomunicável de uma visão individual. Um timbre singular, que não pode ser dito, nem tão pouco calado. Algo aligeira–se dentro de cada um como sopro, tocando–os à surdo, acariciando as sombras, os contornos, a leveza que transforma as coisas. Apaziguadoras imagens imagens. Diante desta assombrosa experiência disse-me um deles: “Os olhos da gente não tem fim”. Luiz Gonzaga Pereira Leal Supervisor Geral do Centro de Atividades-HUP, coordenador do Ciclo Iluminuras
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Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.20, p.547-52, jul/dez 2006