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apresentação

Quais as fronteiras a que nos remete o corpo? Quais os motivos que nos levam a escrever a respeito do corpo? Por que o corpo é um tema recorrente ao longo da história da humanidade? E, afinal, o que pode o corpo? Corpo, enigma que desconcerta, seja como objeto de ciência, na sua dimensão física ou orgânica; seja como instrumento da alma ou na relação corpo-alma; seja como questão que se impõe ao pensamento; seja como lugar de combate com o mundo; ou ainda como prática discursiva e não discursiva. As questões são múltiplas porque os corpos são vulneráveis ao nomadismo dos problemas. Os artigos que agregam este dossiê da Interface chamam a atenção para a diversidade, pluralidade e complexidade do corpo como objeto de estudo, por meio de concepções distintas. Estas partem de uma questão comum: as pessoas produzem e atribuem sentidos ao corpo. E as modificações físicas, estéticas, simbólicas e afetivas sobre ele implicam transformações no cuidado de si e nas relações com os outros. Em última instância, as alterações ou intervenções que resultam do desejo de mudar, ou do que poderíamos denominar de contingências, modificam modos de ser e perceber a vida. Tal qual um mosaico, os três textos são fragmentos colados em uma estrutura comum e, portanto, há espaços entre eles cujos limites, para alguns leitores, serão largos e, para outros, estreitos e tênues. Mas será preciso distanciar-se dos textos, assim como fazemos para apreciar um mosaico, se quisermos enxergar a imagem nos seus limites. O texto A produção de sentidos sobre a imagem do corpo chama a atenção para temas que o autor identifica como “Novas questões de Saúde Pública”- como a popularização das cirurgias estéticas, a biotecnociência, a estetização da saúde e as transformações corporais por meio dos implantes e próteses - e para a impossibilidade de uma única disciplina compreender a complexidade dos enfoques que o corpo permite, uma vez que ele estaria entre “o ego e a sociedade”, “a natureza e a cultura” e “o biológico e o simbólico”. Para desenvolver seus argumentos, recorre a autores da psicologia, psicanálise, antropologia, sociologia e filosofia que têm o corpo como objeto de reflexão e análise. Corpo, sexo e subversão: reflexões sobre duas teóricas queer apresenta as principais idéias de duas teóricas queer e suas definições de sexo e gênero para discutir a importância e o lugar do corpo. As autoras tratam de um tema pouco explorado no Brasil mas que tem mobilizado especialmente a comunidade francesa para o debate, sobretudo porque põe de “pernas para o ar” ou “ de cabeça para baixo” os leitores não atentos à discussão, provocando certo desconforto e estranhamento, pois ambas buscam desconstruir as praticas e os saberes discursivos a respeito do corpo. Reinventando a vida: um estudo qualitativo sobre os significados culturais atribuídos à reconstrução corporal de amputados mediante a protetização resulta de investigação a respeito dos significados culturais que indivíduos amputados atribuem aos seus corpos e às suas vidas. A amostra foi definida por dois critérios: ser portador de uma amputação adquirida, por meio de intervenção cirúrgica, e estar em processo de adaptação à prótese, ou ser usuário recente. Acrescentar ou subtrair partes do corpo exige do indivíduo adequações que, necessariamente, passam pela ressignificação do próprio corpo. Com intuito de instigar a leitura dos textos, eu diria ao leitor que os artigos valem mais pela originalidade temática, pela instabilidade que perturba e pelos dilemas que suscitam: reinvenção dos corpos; sexo como objeto central da política e da governabilidade; corpo como carne; corpo biológico; corpo e natureza; tecnologias que alteram funções e padrões de comportamento; corpos mutantes; corpo como produção de subjetividade que permeia o indivíduo, o coletivo e as instituições; paixão, desejo, frustração, perda, morte, e vida no corpo são questões transversais aos três textos. Não podemos, entretanto, nos esquecer dos limites e possibilidades dos olhares dos próprios autores sobre seus recortes e suas opções de análises, caso contrário poderemos perder de vista outras formas de explorar as virtualidades que instigam o corpo... Yara M. Carvalho Departamento de Pedagogia do Movimento do Corpo Humano, Universidade de São Paulo

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What are the frontiers to which the body takes us? What are the reasons that lead us to write about the body? Why is the body a recurrent theme throughout the history of humanity? And, after all, what is the body capable of? The body is a disconcerting enigma, whether as a subject of science, with regard to its physical or organic dimensions; or as an instrument of the soul or in the body-soul relationship; or as a question imposed on thinking; or as a place for fighting the world; or as discursive and non-discursive practices. There are many questions because the body is vulnerable to the drifting nature of the problems. Among the articles forming this dossier of Interface, attention is drawn to the diversity, plurality and complexity of the body as a study subject, through different conceptualizations. These start out from a common question: people produce and attribute meanings to the body. And the physical, esthetic, symbolic and affective modifications to the body imply transformations in caring for it and in relationships with others. Ultimately, the alterations or interventions that result from the desire to change, or from what we could call contingencies, modify the ways of seeing and perceiving life. Just like a mosaic, the three texts are fragments pasted into a common structure, and therefore there are spaces between them that, for some readers, will represent wide separations and for others, narrow and tenuous separations. But we will have to stand back from the texts, just like we would do to appreciate a mosaic, if we want to discern the limits of the image. The text The production of meanings regarding body image draws our attention to topics that the author identifies as “New public health questions”, such as the popularization of plastic surgery, biotechnology, aestheticization of health and body transformation by means of implants and prostheses. It also draws our attention to the impossibility for a single discipline to understand the complexity of the focuses allowed by the body, given that it would be between “the ego and society”, “nature and culture” and “the biological and the symbolic”. For the author to develop his arguments, he refers to studies within psychology, psychoanalysis, anthropology, sociology and philosophy in which the body is a subject of reflection and analysis. Body, sex and subversion: reflections on two queer theoreticians presents the main ideas of two queer theoreticians and their definitions of sex and gender, in order to discuss the importance and place of the body. The authors deal with a topic that has been little explored in Brazil but which has especially mobilized debate within the French community, particularly because this topic turns readers upside down or “feet uppermost” if they are not attentive to the discussion, thereby provoking a certain degree of discomfort and uneasiness, since both of them seek to deconstruct the practices and discursive knowledge regarding the body. Reinventing life: a qualitative study on the cultural meanings attributed by amputees to body reconstruction through implantation of prosthetics results from an investigation on the cultural meanings that amputees attribute to their bodies and their lives. The sample was defined by means of two criteria: having an amputation that was acquired through surgical intervention and being in the process of adapting to a prosthesis; or being a recent user. Addition or subtraction of body parts requires individuals to make adaptations that necessarily involve reassessment of the meanings of their own bodies. With the aim of encouraging readers to peruse these texts, I would say that the articles have extra value through their thematic originality, capacity to unsettle and evocation of dilemmas: reinvention of the body; sex as a central subject of policy and governability; the body as flesh; the biological body; body and nature; technologies that change functions and behavioral patterns; mutant bodies; the body as a product of the subjectivity that permeates individuals, collective groups and institutions; passion, desire, frustration, loss, death and life. These are questions that run through the three texts. However, we cannot forget the limits and possibilities of the authors’ own views on their samples and analysis possibilities, or else we might lose sight of other ways of exploring the virtual elements than provoke the body. Yara M. Carvalho Departamento de Pedagogia do Movimento do Corpo Humano, Universidade de São Paulo COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.12, n.26, p.232, jul./set. 2008


dossiê

A produção de sentidos sobre a imagem do corpo*

Francisco Romão Ferreira1

FERREIRA, F.R. The production of meanings regarding body image. Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.12, n.26, p.471-83, jul./set. 2008.

This article presents some ways to produce meanings regarding body image from a bibliographic review based on studies by authors in the fields of anthropology, sociology, philosophy, psychology and psychoanalysis. According to these authors, the body is constructed socially and is modeled through social conventions that reproduce the symbolic, cultural or political conflicts of each society. The body materializes the subject vs. society relationship, thereby reflecting the dialogue between biology and symbolism with regard to constructing subjectivity, because subjectivation processes are built in direct relationship with the body. From the authors cited in the text, we will see that sociology, psychology, psychoanalysis or anthropology, singly, do not enable understanding of and/or explanations for the complexity involved in producing meanings regarding the body.

Apresentam-se algumas formas de produção de sentidos sobre o corpo a partir de uma revisão bibliográfica com base em autores da antropologia, sociologia, filosofia, psicologia e psicanálise. Para esses autores o corpo é construído socialmente, modelado por meio de convenções sociais que vão reproduzir os conflitos simbólicos, culturais ou políticos de cada sociedade. O corpo materializa a relação sujeito x sociedade, refletindo o diálogo entre o biológico e o simbólico na construção da subjetividade, pois os processos de subjetivação são construídos em relação direta com o corpo. Conclui-se que a sociologia, psicologia, psicanálise e antropologia, isoladamente, não dão conta de entender e/ou explicar a complexidade da produção de sentidos sobre o corpo.

Palavras-chave: Corpo. Subjetividade. Saúde. Produção de sentidos.

Key words: Body. Subjectivity. Health. Production of meanings.

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Elaborado com base em Ferreira (2006). 1 Sociólogo. Núcleo de pesquisa “Ciência e Arte como estratégia de motivação para educação, ciência e saúde”, Instituto Oswaldo Cruz, Fundação Oswaldo Cruz. Rua José Carlos Nogueira Dinis, 75/306 – Recreio do Bandeirantes - Rio de Janeiro, RJ. 22.795-220 fromao@terra.com.br *

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A PRODUÇÃO DE SENTIDOS SOBRE A IMAGEM DO CORPO

Introdução Este trabalho faz parte de uma pesquisa, iniciada em 2002, e contém trechos da tese de doutorado intitulada “Os sentidos do corpo: cirurgias estéticas, discurso médico e saúde pública”, defendida na Escola Nacional de Saúde Pública (Ferreira, 2006), que investigou: a construção de sentidos e valores acerca do corpo, a utilização do discurso científico nessa construção, e a forma como tais sentidos são apropriados e tratados pelos representantes do saber médico. No decorrer da pesquisa, percebemos que são inúmeras as formas possíveis de se abordar a produção de sentidos sobre o corpo. Trata-se de um tema que, como sabemos, é polêmico, multifacetado, permite diferentes abordagens (às vezes antagônicas), mas sua discussão é fundamental para a formação dos profissionais do campo da saúde. Neste artigo, abordaremos alguns aspectos da construção de sentidos sobre o corpo com base em uma revisão bibliográfica que contempla autores de diferentes campos, tais como: sociologia, antropologia, psicologia e psicanálise. Valendo-nos da apresentação desses autores, podemos perceber que o corpo é socialmente construído e que a sociedade tenta controlar o uso social que se dá aos corpos, reforçando o que é institucionalizado e reproduzindo os conflitos simbólicos de cada cultura. A tentativa de compreensão da construção de sentidos sobre o corpo não cabe apenas em uma disciplina ou em um modelo rígido de análise. A pluralidade de perspectivas que influenciam tal construção é essencialmente inter ou transdisciplinar, ou melhor, o corpo é essencialmente indisciplinado, ele não cabe em disciplinas rígidas ou limitadoras. Portanto, compreender os sentidos acerca do corpo implica pensá-los com base em uma outra perspectiva, não mais progressiva e linear, mas por saltos e retomadas, enfrentando essa multiplicidade de pontos de vista.

O corpo como um elo de ligação entre o sujeito e o mundo A antropologia, desde Marcel Mauss (1872-1950), demonstra a diversidade moral e cultural da humanidade, revelando modos distintos de percepção, utilização e relação com o corpo. Marcas corporais e metamorfoses do corpo são comuns em inúmeras sociedades humanas, tais como: subtração ritual de fragmentos do corpo (clitóris, prepúcio, dentes, dedos, pêlos); modificações na pele (escarificações, incisões, cicatrizes salientes, modelagem de dentes etc); inscrições sob a forma de tatuagens definitivas ou provisórias; maquilagem; modificações na forma do corpo (alongamento do crânio, pescoço, deformação dos pés, deformações no tronco); alongamento do lóbulo das orelhas, lábios, mamilos, formas capilares diferenciadas, ou seja, inúmeros tipos de transformação corporal que atuam como formas de distinção do sujeito na coletividade, utilizando o corpo como objeto de interação e adaptação ao meio social (Mauss, 1950). O contexto social e cultural modela o corpo em suas diversas maneiras de falar, andar, pular, saltar, dançar, sentar, rir, ficar de pé, dormir, tocar, ver, viver e morrer, ou seja, o indivíduo modela seu corpo no diálogo com a sociedade. As convenções sociais revelam a relação do indivíduo com o seu meio social por meio de: ritos, etiquetas, características gestuais, formas de percepção, de expressão de sentimentos, distinção de classe, códigos culturais e sociais, jogos de aparência, jogos de sedução, erotização, adornos, moda, técnicas corporais, marcas de distinção (como tatuagens e piercings), entretenimento físico, lazer, prazer, sexo, relação com o sofrimento, com a dor etc. Tudo está inscrito no corpo. Se o corpo é o principal elo de ligação entre o sujeito e o mundo, é ele também que traduz o diálogo “natureza e cultura”. O corpo é socialmente construído e nele se materializa a relação sujeito x sociedade, tornando-se a arena onde acontecem os conflitos simbólicos que refletem questões do nosso tempo. A cultura não é apenas um agrupamento de complexos padrões concretos de comportamentos (costumes, tradições, usos, hábitos), mas um conjunto de mecanismos de controle (planos, receitas, regras, instruções), ou o que os engenheiros de computação chamam de “programas” para governar o comportamento. Para Geertz (1989), o homem é precisamente o animal mais desesperadamente dependente de tais mecanismos de controle, extragenéticos, fora da pele, de tais programas culturais, 472

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para ordenar o seu comportamento. Os padrões culturais agem como sistemas organizados de símbolos, e a cultura, vista como totalidade acumulada de tais padrões, não é apenas um ornamento da existência humana, mas uma condição essencial para ela, a principal base de sua especificidade. A antropologia cultural tem proporcionado recentemente um intenso debate acerca da produção de significados simbólicos sobre o corpo. Outros setores das Ciências Humanas também estão atentos às formas de construção social dos corpos. A sociologia - e, acima de tudo, a sociologia médica - encorajou os historiadores a tratarem o corpo como a encruzilhada entre o ego e a sociedade (Porter, 2001). Nas tribos urbanas, o corpo tem lugar de destaque, nele são colocados marcas, sentidos e desejos diversos, entre eles, os mais recentes de transformação, adequação e, até mesmo, duplicação. O corpo torna-se, então, a arena onde acontecem discursos e conflitos simbólicos, políticos, culturais, étnicos, históricos, religiosos e econômicos, refletindo as questões do nosso tempo, refletindo também uma sociedade marcada pela valorização do individualismo, narcisismo, hedonismo e consumo. Ele é um dos elementos fundadores da presença do sujeito na sociedade. A construção da identidade está atrelada a ele, e, em alguns casos, a (re)construção do próprio corpo é um dos mecanismos de reconstrução da identidade, da autoestima e do estabelecimento da relação com o mundo. As representações do corpo operam de acordo com as representações disponíveis na sociedade, de acordo com as visões de mundo das diferentes comunidades humanas. O corpo é socialmente construído (Le Breton, 1992).

A imagem do corpo e a construção da identidade Para a psicanálise, desde Freud, o Eu é uma extensão da superfície corpórea e sua constituição está diretamente ligada à corporalidade. Os processos fisiológicos e os processos psíquicos são interdependentes, fazendo com que o biológico e o simbólico dialoguem desde o início da construção da subjetividade. As diferenças surgidas na atividade infantil rítmica e repetida que o bebê faz com os lábios ao mamar, com a finalidade de ingerir alimentos, e ao chupar, que é caracterizada pela ausência de uma finalidade biológica, marcam as características da atividade sexual em geral. O bebê não apenas suga o leite da mãe, ele chupa o peito materno. Os lábios do bebê se comportam como uma zona erógena e podem ser considerados como ponto de partida para o estabelecimento do auto-erotismo. O engolir e o cuspir fazem parte da função alimentar do corpo biológico. A função alimentar pode ser vista, então, como um processo psíquico, fantasmático, do corpo sexual, que toma a atividade biológica como modelo. Pela proposição de Freud, as zonas erógenas são as fontes da pulsão, e a estimulação de tais zonas produzem experiências de satisfação que constituem a base da excitação sexual. No entanto, todo o corpo pode funcionar como zona erógena e qualquer parte do corpo pode ser excitada de maneira autônoma. A origem deste processo relacional entre o biológico, o psíquico e o ambiente pode ter sua origem anterior mesmo ao nascimento. Segundo Winnicott (1990, p.147), “devemos presumir que, antes do parto, o bebê já seja capaz de reter memórias corporais, pois já existe uma certa quantidade de evidências de que a partir de uma data anterior ao nascimento, nada daquilo que um ser humano vivencia é perdido”. Dessa forma, o processo de construção da psique e do soma tem sua origem nas primeiras experiências de mudança de pressão, temperatura e outros fatores ambientais simples com as quais o feto entra em contato por meio da mãe; sem contar com as experiências emocionais e vivências afetivas intensas vividas pela mãe, gerando a capacidade de reconhecer tais experiências, organizá-las e dar-lhes valor. No entanto, [...] neste estágio tão inicial não é lógico pensarmos em termos de um indivíduo, e não apenas devido ao grau de dependência ou apenas porque o indivíduo ainda não está em condições de perceber o ambiente, mas também porque ainda não existe ali um self individual capaz de discriminar o Eu e o não Eu. (Winnicott, 1990, p.153)

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Ou seja, não é possível, nem necessário, estabelecer objetivamente os limites da origem da relação corpo-mente, porém, mesmo no momento anterior à formação do indivíduo consciente, podemos supor que essa relação se manifesta. No processo de surgimento da consciência individual, essa relação já está presente, mesmo que de forma caótica. A constituição primária da consciência, que é descontínua e atemporal, vai se moldar e criar as condições de desenvolvimento emocional numa tentativa de dar ordem ao caos dominante. Ele (o caos) “[...] se torna significativo exatamente no momento em que já é possível discernir algum tipo de ordem [...] ele já se transformou numa espécie de ordem, um estado que pode se tornar organizado como defesa contra a ansiedade associada à ordem” (Winnicott, 1990, p.157). No nascimento e nos dias que se seguem, a criança apresenta um esboço do Eu, em virtude das experiências sensoriais realizadas em sua vida intra-uterina, e o contato corporal com a mãe é um fator essencial de seu desenvolvimento afetivo, cognitivo e social na fase adulta. Do mesmo modo, a superfície do conjunto de seu corpo com o de sua mãe pode proporcionar ao bebê experiências tão importantes, por sua qualidade emocional, por sua estimulação da confiança, do prazer e do pensamento, quanto as experiências ligadas à sucção e à secreção. Segundo Didier Anzieu (1989, p.43), “Os cuidados da mãe produzem estimulações involuntárias na epiderme, quando o bebê é banhado, lavado, esfregado, carregado, abraçado. [...] O bebê recebe esses gestos maternos primeiro como uma estimulação e depois como uma comunicação. A massagem se torna uma mensagem”. Por meio dessas interações, vão ser criadas as bases do comportamento psicomotor que serão os precursores dos modelos cognitivos posteriores. Para Winnicott, o rosto da mãe, o holding, o toque, as experiências sensoriais e as reações do círculo humano fornecem o primeiro espelho à criança, que constitui seu Self a partir do que é refletido. Por outro lado, Didier Anzieu evidencia a existência de um equipamento anterior, formado pelas sensações auditivas, que preparam o Self para estruturar as dimensões espacial (orientação e distância) e temporal, de modo que o Self pode ser constituído pela introjeção do universo sonoro (além do gustativo e do olfativo), paralelamente às sensações táteis. Segundo Anzieu (1989, p.192), O choro é primeiro pura descarga motora da excitação interna, de acordo com o esquema reflexo que constitui a estrutura primeira do aparelho psíquico. Depois, ele é entendido pelo bebê e pelas pessoas que o cercam como uma exigência e como o primeiro meio de comunicação entre eles, ocasionando a passagem à segunda estrutura do aparelho psíquico onde intervém, em uma reação circular, o sinal, forma primária da comunicação. A via de descarga adquire assim uma função secundária de extrema importância, a de compreensão mútua.

Estas experiências sonoras, gustativas, táteis ou visuais fundamentam o processo psíquico primário que visa à realização alucinatória do desejo e constitui uma primeira forma de simbolização. Há um conhecimento pré-conceitual anterior à linguagem, permitindo que o corpo se constitua e produza conhecimento com base nas primeiras sensações. Assim, a subjetivação é construída numa relação direta com o corpo. Psique e soma interagem para compreender e, posteriormente, agir no mundo. Dessa forma, a construção do processo perceptivo e cognitivo do sujeito vai estar diretamente ligada à corporalidade. É ela quem fornece os subsídios para a configuração do mundo, a produção de significações e para o estabelecimento de relações objetais. O sujeito age com intencionalidade em relação ao mundo, tentando defini-lo e organizá-lo com base em sua corporalidade. O sujeito organiza, mas não fabrica o mundo, não dá origem a ele e não nega sua materialidade, porém, as representações que ele cria são parte de um processo perceptivo que pode encontrar, no corpo, sua origem. Para Melanie Klein, a experiência original desta unidade e/ou fragmentação corporal se situa no contexto da “fantasia” (Segal, 1996). Esta fantasia inconsciente é a expressão mental dos instintos (pulsões), e existe, como estes, desde o começo da vida. Estas pulsões necessitam de objetos para se relacionar e se projetar. Para cada pulsão, há uma “fantasia” de um objeto ligado a ela, que vai se adequar à sua necessidade, ou seja, para cada impulso instintivo, há uma fantasia correspondente. Para 474

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o desejo de comer, corresponde uma fantasia de algo comestível que poderia satisfazer este desejo. É o que Freud descreve como “realização alucinatória dos desejos”. Desde o momento do nascimento, o bebê enfrenta o impacto da realidade, que começa com a própria experiência do nascimento e prossegue com inúmeras experiências de gratificação e frustração de seus desejos. Estas experiências com a realidade influem diretamente na fantasia inconsciente que, por sua vez, também as influencia. A fantasia não é apenas uma fuga da realidade, é uma ferramenta constante e inevitável para enfrentar as experiências reais, em constante interação com elas. A realidade corporal da criança tem sua estruturação psíquica em relação aos corpos materno e paterno. Depende, porém, primordialmente da existência original das pulsões destrutivas. Para Melanie Klein, esta realidade corporal é fantasmática, pois é por intermédio destas “imagens”, que surgem por meio dos desejos violentos de satisfação e destruição, que a criança descobre seu corpo (Segal, 1996). E também por meio do corpo da mãe, ao sugar, morder, apertar, etc. O corpo é vivido pela criança como uma força perigosa. Há uma agressividade original que afeta a realidade fantasmática de seu corpo, do outro e do mundo, ao experimentar a divisão sob tensão de frustração e angústia. Desde o princípio, há tanto uma tendência de integração como uma tendência de fragmentação, e no decorrer do desenvolvimento, incluindo os primeiros meses, o bebê passa por momentos de integração mais ou menos completa. Porém, quando os processos integradores se fazem mais estáveis e contínuos, surge a “posição depressiva”. Melanie Klein definiu esta “posição depressiva” como um momento do desenvolvimento em que o bebê reconhece um objeto total e se relaciona com ele. Quando um bebê reconhece sua mãe, isto significa que ele já a percebe como um objeto total. Ou seja, cada vez mais, o bebê se relaciona não só com o peito, mãos, rosto e os olhos da mãe como objetos diferenciados. Ele começa a perceber a mãe como pessoa total que pode às vezes ser boa, e às vezes ser má, que pode estar às vezes presente e às vezes ausente, e que ele pode amar e odiar ao mesmo tempo. Este reconhecimento da mãe como uma pessoa total tem muitas conseqüências e abre um mundo de experiências novas. Reconhecer sua mãe como pessoa total significa também reconhecê-la como um indivíduo com vida própria que estabelece e vive relações com outras pessoas. Na medida em que estas experiências se sucedem, o bebê começa a se ver também como uma pessoa independente. A unidade e a fragmentação corporais presentes no adulto correspondem à memória do corpo. Este só é cindido, ou só é sentido como tal, se já sentiu em algum momento esta cisão. As sensações de fragmentação e/ou desamparo só se tornam ameaçadoras na medida em que elas já foram vivenciadas em um outro momento da história daquele sujeito. O “medo do colapso”, a que se refere Winnicott (1994), só é conhecido por quem já o experimentou em algum outro momento e carrega no corpo esta “lembrança”. Para ele, A palavra “colapso” pode ser tomada como significando o fracasso de uma organização de defesa. [...] é um colapso do estabelecimento de um self unitário. O ego organiza defesas contra o colapso da organização. [...] existem momentos em que se precisa dizer a um paciente que o colapso, do qual o medo lhe destrói a vida, já aconteceu. Trata-se de um fato que carrega consigo, escondido no inconsciente. [...] por que o paciente continua a preocupar-se com isso que pertence ao passado? A resposta tem de ser que a experiência original de agonia primitiva não pode cair no passado a menos que o ego possa primeiro reuni-la dentro de sua própria e atual experiência temporal e do controle do onipotente agora. [...] Em outras palavras, o paciente tem que continuar procurando o detalhe passado que não foi experienciado, e esta busca assume a forma de uma procura deste detalhe no futuro. (Winnicott, 1994, p.71-3)

Para Anzieu, toda atividade psíquica se estabelece sobre uma função biológica e a pele desempenha um papel fundamental, ela dá limite ao Eu, sendo a base da formação egóica do sujeito. Por meio dela, com base nas primeiras experiências corporais, a criança progressivamente vai criar uma diferenciação entre o mundo interno e o mundo externo, o dentro e o fora, um ambiente no qual ela se sente mergulhada e que lhe traz a experiência de um continente. E a pele é a fronteira que vai delimitar tais COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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mundos. Para Anzieu, o “Eu-pele” cria a possibilidade de pensamento, e sua constituição é uma das condições da passagem do narcisismo primário ao narcisismo secundário, e do masoquismo primário ao masoquismo secundário. “Assim como a pele envolve todo o corpo, o Eu-pele visa envolver todo o aparelho psíquico [...] Esta continuidade da casca e do núcleo fundamenta o sentido da continuidade do Self” (Anzieu, 1989, p.115). Segundo Lacan (1966), no “estádio do espelho”, a identificação tem sua origem no período infantil de seis a 18 meses, e consiste numa antecipação da aquisição da unidade funcional do corpo pela criança antes que ela utilize a linguagem. Nesse trabalho, ele apresenta o momento genético de identificação afetiva e de unidade que contribuirá para a formação do Eu; porém, antes de afirmar sua identidade, o Eu se confunde com essa imagem que o forma e o aliena. Essa alienação do sujeito pela imagem é a fonte em que se alimentará a agressividade constitutiva da formação, ao mesmo tempo, do Eu e do vínculo social. “A partir daí, nesse jogo identificatório onde o sujeito “se vê” captado por uma imagem estranha e ao mesmo tempo sua, detectemos justamente a função do processo de projeção, que organiza o modo de percepção do sujeito e confere à realidade sua aparente estabilidade” (Kaufmann, 1996, p.158). O Estádio do Espelho indica o momento de organização da estrutura do sujeito, tornando clara a referência simbólica que o outro ocupa, o modo como o sujeito, em relação com o outro, regula sua própria imagem (eu ideal), tendo sempre como referência o modelo onipotente do ideal do eu a que o sujeito e o outro estão sujeitos. Esta identificação jamais se tornará completa, não há correspondência possível entre um Eu social e o inconsciente; ela será uma eterna busca por aquele momento em que a criança se volta para o adulto, como que a buscar, de algum modo, seu assentimento. “Captado por uma imagem para sempre inatingível, o sujeito não cessará, a partir de então, de cobrar a explicação disso a esse outro para o qual dirigiu uma primeira vez seu olhar” (Kaufmann, 1996, p.161). Para Bernard Andrieu, Lacan entende a questão da pele e da formação psíquica do sujeito de forma bem diferente da exposta anteriormente por Didier Anzieu. Enquanto Anzieu vê o Eu-pele como uma construção teórica pela qual o sujeito elabora seu imaginário, representa seu espaço corporal, organiza sua vida mental, seus investimentos libidinais, estabelece um conteúdo psíquico e um continente, distinguindo um dentro e um fora e estabelecendo uma fronteira tanto psíquica quanto somática para o indivíduo, Lacan exclui a imagem libidinal do corpo para promover, por meio do Estádio do Espelho, uma imagem mental do corpo. “Ao invés de considerar a pele como um envelope, ele a considera como o que se encontra no entorno de um buraco” (Andrieu, 2002, p.111). O envelope fornece a representação de um espaço interior fechado em torno do nosso corpo, o limite psíquico e físico do sentimento de si. O orifício, ao contrário do imaginário do envelope e da superfície, fornece a representação de uma luva que se pode não apenas penetrar como também trocar de lado, se inverter. A relação deixa de ser topográfica e passa a ser topológica. “Sendo assim, a pele se organiza entre o buraco de dentro e o buraco de fora” (Andrieu, 2002, p.112). Para Lacan, o ego é uma figuração imaginária da consciência, é o que articula este espaço topológico do corpo em linguagem. O Eu é uma forma de totalidade que tenta dar conta da falta originária, do furo, que é passagem de significantes e de fluxos com o mundo, uma espécie de representação mental da imagem do corpo na construção da identidade, e sempre vai haver algo da realidade que não está representado na imagem do corpo. Há sempre algo da ordem do corpo que não se deixa representar, toda idéia de totalidade deixa algo do lado de fora. Para interagir com a cultura, tenho de aderir a uma identidade exterior e preciso abrir mão de parte da sexualidade e da agressividade. Sendo assim, a identidade, para ser reconhecida, precisa do reconhecimento do outro, e o corpo, ao invés de ser agente, passa a ser objeto da cultura. Neste processo de construção da identidade, a imagem corporal assume o papel de principal veículo da identificação. Pois por intermédio desta identificação o sujeito se constitui e se transforma, assimilando ou se apropriando, em momentos-chave de sua evolução, dos aspectos, atributos ou traços dos seres humanos que o cercam (Roudinesco, Plon, 1998, p.363). A “imagem do corpo” (nos planos fisiológico, psicológico ou social) incorpora sentidos diferentes e pode ser compreendida com base em leituras distintas, como veremos a seguir. Ela não é mera sensação ou imaginação, é a forma como se estrutura em nossa mente a relação com o próprio corpo e

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com o mundo, imprimindo, no inconsciente, contribuições anatômicas, fisiológicas, neurológicas, psicológicas, sociológicas etc. A insatisfação com esta imagem pode levar à dismorfobia, que é uma síndrome psicopatológica que produz a não aceitação do próprio corpo e, freqüentemente, conduz o portador a procurar um cirurgião plástico, solicitando solução cirúrgica para um defeito que o paciente julga ter. Essa obsessão com a aparência física ilustra um fenômeno reconhecido atualmente como uma categoria diagnóstica da psiquiatria, o Transtorno Dismórfico Corporal (TDC), que traduz uma preocupação exagerada com um defeito mínimo ou imaginário na aparência física, trazendo sofrimento significativo ou prejuízo em áreas importantes da vida do indivíduo (Monteiro, 2003). Em termos clínicos, a expressão “imagem do corpo” foi utilizada por Paul Schilder (médico, psiquiatra e filósofo), em 1923, para designar, ao mesmo tempo, as representações conscientes e inconscientes da posição do corpo no espaço, considerando-se três aspectos: o de um suporte fisiológico, o de uma estrutura libidinal e o de uma significação social. O termo foi inspirado na noção de esquema corporal proposto pelo neurologista inglês Henry Haed (1861-1940). A formação interdisciplinar de Schilder (1886-1940), que articula fenomenologia, psicologia da Gestalt e psicanálise, permite analisar a formação da imagem que cada um tem de si próprio na articulação da realidade biológica do corpo com sua realidade erógena e sua projeção no mundo, realizando um estudo minucioso acerca da imagem corporal e do problema psicológico da relação entre as impressões de nossos sentidos, nossos movimentos, nossa motilidade em geral em sua relação com o Outro (Shilder, 1994). Segundo ele, postura corporal, percepção, emoção e personalidade se confundem na experiência psicossomática, existindo sempre uma personalidade que experimenta uma percepção mediada por uma emoção. Somos seres emocionais, personalidades que se revelam na ação, somos narcisistas e amamos nosso corpo. Sendo assim, a topografia do modelo postural do corpo será a base das atitudes emocionais para com o corpo. Nosso conhecimento dependerá das correntes eróticas que fluem através do nosso corpo e também as influenciará. As zonas eróticas desempenharão um papel particular no modelo postural do corpo (Shilder, 1994). Desse modo, as impressões provenientes da postura corporal desempenham importante papel na construção do conhecimento do nosso corpo, mas se confundem também com a estrutura erógena e libidinal, com o suporte biológico e fisiológico, com a projeção da imagem corporal no meio social, a expressão das emoções, a imitação e as identificações e sua relação com o que é considerado Belo. Desta forma, podemos tomar de empréstimo partes do corpo de outra pessoa e incorporá-las à nossa imagem corporal (personalização). Mas também podemos nos identificar com a personalidade de outras pessoas, e isto pode levar a uma atenção e atitude particulares em relação a partes do nosso corpo. Sem se referir a Schilder, Françoise Dolto (1908-1988) retoma o termo “imagem do corpo” para designar a “encarnação simbólica do inconsciente do sujeito desejante”, ou seja, uma representação inconsciente do corpo, distinta do esquema corporal, que seria sua representação consciente ou préconsciente. Segundo ela, o esquema corporal faz parte de uma forma de percepção neurobiológica que é a mesma para todos. Já a imagem do corpo é específica para cada um, pois está ligada ao sujeito, sua história e sua relação com o mundo. Ela é eminentemente inconsciente, suporte do narcisismo e encarnação simbólica do sujeito desejante. As imagens que a pessoa faz do próprio corpo são a síntese viva de suas experiências emocionais vividas através das sensações erógenas eletivas, arcaicas ou atuais, sendo também memória inconsciente de todo o vivido relacional. É na imagem do corpo que o tempo se cruza com o espaço e que o passado inconsciente ressoa na relação presente. Para ela, [...] o esquema corporal, que é a abstração de uma vivência do corpo nas três dimensões da realidade, estrutura-se pela aprendizagem e pela experiência, ao passo que a imagem do corpo se estrutura pela comunicação entre sujeitos e o vestígio, no dia-a-dia, memorizado, do gozar frustrado, reprimido ou proibido (castração, no sentido psicanalítico, do desejo na realidade). (Dolto, 2001, p.15)

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Nos trabalhos de Freud, estão presentes os pressupostos de que o corpo é a fonte básica de toda experiência mental. Ele afirma que não existe descontinuidade na vida mental, nada acontece por acaso (muito menos os processos mentais), existindo sempre uma causa para cada pensamento, sentimento ou ação, e que nos desejos e no corpo ficam rastros dessa “memória” (Freud, 1977). Esses rastros se cristalizam com o tempo, que, para Freud, é descontínuo e não obedece à racionalidade. Para ele, existem conexões entre todos os eventos mentais. Desse modo, todos os eventos possuem um “espaço” no inconsciente e podem ser acessados a qualquer momento. Nele se localizam elementos que nunca foram conscientes e que não são acessíveis à consciência. São materiais que foram “excluídos” da consciência, censurados e reprimidos. Mas esse material não é esquecido ou perdido, apenas não é permitido que seja lembrado. Quando o inconsciente libera memórias para o consciente, essas memórias não perderam nada de sua força emocional, pois os processos mentais inconscientes são atemporais e sua estruturação não é racionalizável. A energia pulsional necessária para administrar as tensões internas obedece às suas próprias leis, portanto, na relação com o corpo e sua “imagem”, se materializam desejos e processos mentais que obedecem à sua lógica interna. Esta energia pulsional se manifesta por meio de processos nos quais a energia libidinal disponível na psique é vinculada ou investida na representação mental de uma pessoa, idéia ou coisa. Freud utiliza o termo “catexia”, que traduz justamente este processo de investimento. Este conceito é criado para instrumentalizar a teoria psicanalítica, que está interessada em compreender onde a libido foi catexizada inadequadamente para poder liberá-la ou redirecioná-la, já que a identificação e a canalização da energia psíquica são fundamentais para a compreensão do sujeito na busca de uma possível administração de conflitos e acordos psíquicos.

Os usos sociais do corpo Na relação sujeito x sociedade, existem interesses e necessidades (conscientes e inconscientes) tanto do sujeito, como, também, os interesses e estratégias de controle da ordem social. Os códigos de conduta, os interditos e os padrões de comportamento aceitos e valorizados socialmente influenciam o comportamento dos sujeitos com relação aos seus corpos. Como foi dito anteriormente, trata-se de uma relação topológica, não havendo o dentro e o fora. Um influencia o outro simultaneamente. O corpo também é visto como submisso à ordem política e social e objeto de dominação identificado com o capitalismo, que impõe sua dominação moral e material sobre os usos sociais do corpo, favorecendo a alienação e fazendo da ordem política uma ordem social dos corpos. Para JeanMarie Brohm (1975), toda ordem política se impõe pela violência, coerção e constrangimento sobre o corpo, de modo que ordem política e ordem social se mesclam ao fazer do corpo seu campo de batalha (Le Breton, 1992). Para Boltanski (1979), o uso social do corpo é determinado pelas condutas físicas dos sujeitos sociais, regulados por uma cultura somática que traduz as condições objetivas da ordem cultural. Para ele, a percepção da doença, o recurso ao médico, o consumo de medicamentos, os meios materiais de existência, as condições de existência e a difusão do conhecimento médico vão impor ao corpo um uso adequado aos interesses do sistema produtivo. Utilizando indicadores como hábitos alimentares, relação com a dor, sentidos corporais e critérios de beleza, ele delimita os usos sociais do corpo nas diferentes classes sociais. Na obra La distinction, de 1979, Pierre Bourdieu amplia e torna mais preciso este pensamento que entende o uso social do corpo como objetivação do gosto de classe. Os hábitos corporais corresponderiam ao conjunto de condutas próprias de comportamentos ligados a uma posição de classe, sendo os hábitos sociais e gostos culturais inscritos num comportamento próprio que funcionaria como uma forma de distinção social. Mas esse controle exercido pela sociedade sobre o corpo não se dá unicamente atendendo aos interesses ideológicos. As estratégias e os interesses são variados. Há uma multiplicidade de processos, de origens diferentes, que se reproduzem e se distinguem, fazendo da construção da imagem do corpo, hoje, não apenas uma forma de controle social que se manifesta diretamente, mas algo que atua na produção de subjetividade e, também, na montagem de uma estratégia de mercado pronto a 478

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atender aos desejos de metamorfose corporal. Os interesses individualistas e narcisistas dos sujeitos vão ao encontro dos interesses dos empresários e profissionais responsáveis pela “indústria da metamorfose”. Ao falar sobre a dominação e o controle disciplinar dos corpos, Michel Foucault (1987) afirma que [...] em qualquer sociedade, o corpo está preso no interior de poderes muito apertados, que lhe impõem limitações, proibições ou obrigações. [...] Forma-se então uma política das coerções que são um trabalho sobre o corpo, uma manipulação calculada de seus elementos, de seus gestos, de seus comportamentos. O corpo humano entra numa maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula e o recompõe. (Foucault, 1987, p.119)

Entretanto, o corpo escapa às determinações e tentativas de controle impostas pelo poder, que, por sua vez, também se metamorfoseia, se adapta, criando novas formas de repressão e controle. Onde antes havia um controle moral, médico ou exploração econômica, hoje há uma erotização que se coloca como uma nova forma de investimento e tentativa de controle sobre o corpo. Segundo ele, “Como resposta à revolta ao corpo, encontramos um novo investimento que não tem mais a forma de controle-repressão, mas de controle-estimulação: “fique nu, [...] mas seja magro, bonito, bronzeado!” (Foucault, 1984, p.147). Após vencer várias barreiras na estrutura do poder, as mulheres conquistaram liberdade, postos de destaque e reconhecimento, tanto em termos legais como profissionais, mas ao mesmo tempo tornaram-se vítimas dessa ditadura da beleza, magreza e juventude; vítimas, também, dos distúrbios relacionados à alimentação, dos cuidados obsessivos com o corpo e com a aparência, da necessidade de corresponder a um modelo idealizado de beleza que é estabelecido socialmente, fazendo com que as conquistas das últimas décadas sejam ofuscadas pela luta inglória contra a balança e o tempo. Velhice e obesidade são motivos para estigmatização. Essas tiranias (da beleza, da magreza e da juventude) estão entre as novas formas de controle disciplinar sobre o corpo. Há um emaranhado de relações que atravessa diferentes instituições e interesses, criando novas tentativas de assujeitamento e controle sobre o corpo por meio da moda, da publicidade, do culto ao corpo, ao dietético e à performance esportiva ou social. Não se trata mais de um controle disciplinar do social por meio de aparelhos repressivos, mas de uma variedade de formas de sedução que fazem da beleza e da juventude o novo conceito que dá sentido ao estatuto do corpo. Para Gilles Lipowetsky, o vestuário foi substituído pela ditadura da magreza e da juventude. A ansiedade que domina as mulheres quando estão gordas ou com celulite mostra essa tirania. Antes, as filhas sonhavam em ser parecidas com as mães, queriam usar roupas parecidas. Hoje, acontece exatamente o contrário, as mães é que desejam ter a aparência mais jovem. Estar em forma e não envelhecer é a obsessão número um de hoje (Lipowetsky, 2002).

A produção da subjetividade relativa ao corpo Para Gilles Deleuze, o corpo não se deixa controlar, ele escapa às tentativas de apreensão e aprisionamento pelos saberes estabelecidos. Segundo ele, o corpo é linguagem. Mas ele pode ocultar a palavra que é, pode encobri-la (Deleuze, 1998). Ou seja, o corpo oculta suas verdadeiras intenções e desejos, ele encerra uma linguagem escondida, própria, abstrata, que vai se traduzir em atos que alguns poderiam chamar de perversões, mas que podem ser vistos também como “hesitação objetiva do corpo” (Deleuze, 1998, p.290), não sujeição, afirmação de uma vontade própria e legítima. Como se houvesse um “corpo sem órgãos” que interagisse com o organismo e o sistema motor e que, às vezes, se opusesse a ele, insatisfeito com aquele conjunto de válvulas, represas, comportas, taças ou vasos comunicantes que não passam de produção fantasmática objetificada, materializada em partes do corpo. O organismo teria apenas a função de atuar como [...] fenômeno de acumulação, coagulação, sedimentação que lhe impõe formas, funções, ligacões, organizações dominantes e hierarquizadas, transcendências organizadas para

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extrair um trabalho útil [...] o Corpo sem órgãos é o campo da imanência do desejo, o plano de consistência própria do desejo (ali onde o desejo se define como processo de produção, sem referência a qualquer instância exterior). (Deleuze, 1996, p.15)

Ou seja, por mais que a sociedade coloque entraves, barreiras ou formas de cercear a atuação do sujeito, a incapacidade de controlar o corpo faz dele um rebelde que não se deixa aprisionar ou que, pelo menos, subverte a tentativa de controle que vem do mundo exterior. Para Guattari (1992), devemos pensar a produção de subjetividade relativa ao corpo como uma produção que envolve instâncias individuais, coletivas e institucionais. E o seu entendimento não se limita a nenhuma disciplina ou instância dominante de determinação que guie as outras instâncias numa causalidade unívoca. Neste sentido, a sociologia, a antropologia, a psicologia, a psicanálise ou a semiologia isoladamente não dão conta de entender e/ou explicar a complexidade de sua (re)produção, não havendo também um pólo único de produção de sentidos, nem uma única forma de produção ou apropriação do que é produzido. As disciplinas se revelam limitadas para dar conta da complexidade e da multiplicidade de abordagens acerca do corpo, ele extrapola as disciplinas, não se deixa aprisionar por nenhuma delas. Esta abordagem da subjetividade nos distancia, cada vez mais, das abordagens acadêmicas clássicas, que privilegiam a construção do conhecimento com base em uma única disciplina tornada a detentora das possibilidades discursivas de entendimento da questão; e nos aproxima do que Guattari chama de Agenciamentos coletivos de enunciação, proposto no livro Caosmose – um novo paradigma estético, no qual ele define a subjetividade como um conjunto de condições e relações que torna possível o surgimento de uma nova forma de pensar que pode ser auto-referencial, individual, mas também pode ser produzida socialmente, fazendo com que a identidade e a alteridade assumam uma mesma postura, obedeçam às mesmas instâncias individuais e/ou coletivas de produção de desejos e sentidos. Tal produção de sentido tanto pode ir de encontro como ao encontro da lógica predominante nas sociedades capitalistas, que tenta bloquear processos de singularização e instaurar processos de individualização. A produção de sentidos sobre a imagem do corpo e a percepção que o sujeito tem do próprio corpo é, ao mesmo tempo, individual e coletiva, opera no social, mas não se limita a ele. Ela se desenvolve para além do indivíduo, das relações interpessoais ou dos complexos intrafamiliares, mesclando intensidades pré-verbais, afetos e códigos sociais de conduta. Para Guattari (1992, p.20), “a subjetividade não é fabricada apenas através das fases psicogenéticas da psicanálise ou dos ‘matemas do inconsciente’, mas também nas grandes máquinas sociais, mass-midiáticas, lingüísticas, que não podem ser chamadas de humanas”. Desta forma, os aparatos conceituais das disciplinas das ciências humanas se mostram insuficientes quando tomados isoladamente. O capitalismo é visto como uma máquina de produção de sentidos que engendra papéis, desejos, pontos de vista, corporalidades e padrões estéticos variados, utilizando-se de comportamentos que tanto se prestam à submissão como à libertação. A subjetividade dessa máquina se instaura em universos de virtualidade que ultrapassam a territorialidade existencial em todos os sentidos. Tal ordem é projetada na realidade do mundo e na realidade psíquica e produz os modos de relações humanas até em suas representações inconscientes. Ela se manifesta nas relações pessoais, nos códigos de conduta, nas formas de trabalhar, amar, gozar, falar, vestir, nos cuidados com o corpo, com a forma do corpo, com a produção de sentidos e de afetos, nos esquemas de conduta, de ação, de gestos, de pensamento, de sentido, de sentimento etc. “Ela incide nas montagens da percepção, da memorização, ela incide na modelização das instâncias intra-subjetivas – instâncias que a psicanálise reifica nas categorias de ego, superego, ideal do ego, enfim, naquela parafernália toda” (Guattari, 1999, p.42). Essa forma de produção de subjetividade não só atua individualmente emitindo estímulos diretamente ao inconsciente, produzindo indivíduos normalizados, submetidos a um sistema hierárquico de valores e expostos à submissão, como também atua na produção de uma subjetividade social, que se manifesta na produção e no consumo, produzindo inclusive nossos sonhos, nossas paixões, nossos desejos, referências de mundo e projetos de vida. As máquinas de produção de subjetividade não se reduzem a modelos de identidade familiares ou do meio social e cultural, mas atuam também nos 480

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Fetichismo - Marx diz que, na sociedade capitalista, os objetos materiais possuem certas características que lhe são conferidas pelas relações sociais dominantes, mas que aparecem como se lhes pertencessem naturalmente. A analogia é feita com a religião, na qual as pessoas conferem a alguma entidade um poder imaginário. Só que não são propriedades naturais. São sociais. Constituem forças reais, não controladas pelos seres humanos e que, na verdade, exercem controle sobre eles; são as formas de aparência objetivas das relações econômicas que definem o capitalismo (Bottomore, 1988). 3

mecanismos de controle social, nos afetos particulares, nos processos cognitivos e interativos e nas instâncias psíquicas que definem as maneiras de perceber o mundo. As formas de construção da identidade, percepção do próprio corpo e construção de um modelo ideal de referência com base em padrões socialmente definidos não escapa a essa lógica, ou seja, a subjetividade é essencialmente fabricada e modelada no registro do social (Guattari, 1999), e os cuidados com o corpo e com a saúde estão no centro deste processo maquínico. Essa produção de subjetividade acerca do corpo é construída socialmente articulando estímulos variados, fazendo com que o indivíduo atue não apenas como consumidor dos produtos, serviços e desejos, mas também como produtor desse universo de desejos, colocando o próprio corpo como objeto reificado2, mercadoria símbolo, tornado ele, também, um produto de consumo devidamente inscrito na órbita do fetiche3 da mercadoria, colocado na hierarquia dos objetos de consumo cotidiano. A construção da individualidade e da singularidade também dialogam com essa tentativa de cooptação, de adequação aos modelos dominantes de individualização (vista aqui como adequação às normas e valores dominantes) e singularização (vista como tentativa de produção original), produzindo às vezes uma pseudosingularização, que tem como referência modelos pré-fabricados de singularidade. Tornando, assim, muito mais difícil escapar a essa lógica social. Uma mulher que voluntariamente não segue o padrão hegemônico, não se preocupa com a dieta, que não pinta seus primeiros cabelos brancos ou que não segue o modelo dominante pode ser discriminada e sofrer as sanções cabíveis em função da sua “rebeldia”. Não lutar contra a passagem do tempo passa a ser crime inafiançável, e a tentativa de escapar da individualização e produzir uma singularização nunca é indolor. A imagem que ela tem do próprio corpo é atravessada por sentidos que estão além do seu controle, e a tentativa de criar uma imagem singular esbarra na barreira imposta pela institucionalização das condutas. O corpo ocupa, assim, um lugar de destaque no processo de diferenciação progressiva e hierarquizada da vida social. A “imagem do corpo” se torna uma forma de capital que define e é definida pelo meio social, por intermédio dela se produzem novos códigos e se reproduzem antigos códigos de valorização e status. Suas possibilidades estéticas permitem transitar por diferentes posições na hierarquia social, alterando e definindo trajetórias afetivas, pessoais, profissionais ou sociais, criando novos espaços na ordem social e produzindo novas formas de distinção social. A variedade de alterações corporais (corretivas ou estéticas) às quais o corpo está sujeito hoje, a ampliação do mercado ligado ao culto ao corpo e à sua transformação, e a valorização de parâmetros estéticos, como definidores das condições de saúde e da concepção do que venha a ser “saudável”, nos colocam diante de diferentes questões na área da saúde que suscitam novas formas de entendimento. Sendo assim, este trabalho pretende contribuir para o debate acerca dos sentidos dados ao corpo no conjunto da sociedade, destacando a impossibilidade de compreensão deste processo com base em uma única disciplina, e ressaltando que o corpo se encontra nessa encruzilhada entre o ego e a sociedade, entre a natureza e a cultura, entre o biológico e o simbólico. A pluralidade de perspectivas que influenciam a construção de sentidos sobre a imagem do corpo é inter e transdisciplinar, envolvendo instâncias psíquicas, individuais, coletivas, culturais, sociais, simbólicas, institucionais, religiosas etc. O desenvolvimento da biotecnociência, o crescimento dos mercados relativos às transformações corporais de natureza estética, a popularização das cirurgias COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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2 Reificação - conceito marxista que define o ato (ou resultado do ato) de transformação das propriedades, relações e ações humanas em propriedades, relações e ações de coisas produzidas pelo homem, que se tornam independentes (e que são imaginadas como originalmente independentes) do homem e governam sua vida. Significa igualmente a transformação de seres humanos em seres semelhantes a coisas, que não se comportam de forma humana, mas de acordo com as leis do mundo das coisas. (Bottomore, 1988)

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plásticas e os problemas ocorridos neste setor colocam as diferentes formas de construção da imagem do corpo, a estetização da saúde (entendida, aqui, como a valorização de parâmetros estéticos como definidores das condições de saúde) e as tentativas de metamorfose corporal (por meio de cirurgias, implantes, próteses, tratamentos, medicamentos, práticas esportivas, marcas corporais etc.) como novas questões de saúde pública a serem discutidas e enfrentadas.

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FERREIRA, F.R. La producción de sentidos sobre la imagen del cuerpo. Interface Comunic., Saúde, Educ., v.12, n.26, p.471-83, jul./set. 2008. Se presentan algunas formas de producción de sentidos sobre el cuerpo a partir de una revisión bibliográfica con base en autores de antropología, sociología, filosofía, psicología y psicoanálisis. Para estos autores, el cuerpo se construye socialmente, modelado por medio de convenciones sociales que van a reproducir los conflictos simbólicos, culturales o políticos de cada sociedad. El cuerpo materializa la relación sujeto – sociedad, reflejando el diálogo entre lo biológico y lo simbólico en la construcción de la subjetividad, pues los procesos de subjetividad se construyen en relación directa con el cuerpo. Conclúyese que la sociología, la psicología, el psicoanálisis y la antropología, aisladamente, no bastan para entender y/o explicar la complejidad de la producción de sentidos sobre el cuerpo.

Palabras clave: Cuerpo. Subjetividad. Salud. Producción de sentidos. Recebido em 30/08/07. Aprovado em 16/05/08.

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Reinventando a vida: um estudo qualitativo sobre os significados culturais atribuídos à reconstrução corporal de amputados mediante a protetização

Luciana Laureano Paiva1 Silvana Vilodre Goellner2

PAIVA, L.L.; GOELLNER, S.V. Reinventing life: a qualitative study on the cultural meanings attributed by amputees to body reconstruction through implantation of prosthetics. Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.12, n.26, p.485-97, jul./set. 2008. The cultural meanings that amputees attribute to their bodies and their daily lives following the use of prosthetics were analyzed. Cultural and sociohistorical studies on the human body were used as theoretical presuppositions. Nine patients (six men and three women) aged 18 to 82 years participated in the study, along with a prosthetician and a physical therapist. The interviews were analyzed using the content analysis technique, and four thematic categories were identified: ”Becoming different: the amputated body”; “Getting accustomed to a different body”; “Imperfection as seen by others”; “The prosthetized body: another version of oneself”. Analysis according to categories revealed that prostheses were seen as a way of recovering body aesthetics as well as lost functions, such that the patients came to see their bodies as whole again. Using a prosthesis signified a way to remain human, even if sustained by an artificial object.

Key words: Amputees. Artificial limbs. Bodily reconstruction.

Analisaram-se os significados culturais que os indivíduos amputados atribuem aos seus corpos e às suas vidas cotidianas após uso de prótese. Foram utilizados, como pressupostos teóricos, os estudos culturais e sóciohistóricos sobre o corpo humano. Participaram da pesquisa nove pacientes, sendo seis homens e três mulheres, com idades variando de 18 a 82 anos, além do protesista e do fisioterapeuta. As entrevistas foram analisadas por meio da técnica de análise de conteúdo, sendo identificadas quatro categorias temáticas: “Tornar-se outro: o corpo amputado”; “Familiarizar-se com um outro corpo”; “A imperfeição vista pelos outros” e “O corpo protetizado: um outro de si mesmo”. A análise por categorias revelou que a prótese foi observada como uma forma de resgatar a funcionalidade perdida e também a estética corporal na medida em que os pacientes viram seus corpos novamente como completos. O uso da prótese significou uma forma de manter-se humano mesmo que sustentado por um objeto artificial.

Palavras-chave: Amputados. Membros artificiais. Reconstrução corporal.

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1 Graduada em Fisioterapia. Centro Universitário Metodista, Instituto Porto Alegre. Rua Tenente Ary Tarragô, 1720/casa 80 Bairro Jardim-Itu-Sabará Porto Alegre, RS 91.225-001 luciana.paiva@ metodistadosul.edu.br 2 Graduada em Educação Física. Escola de Educação Física, Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

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Introdução No transcorrer dos tempos, o corpo humano, por si só, não sofreu grandes transformações em sua matriz biológica, mas sua materialidade foi significada pelas sociedades de diferentes formas, tendo como referências costumes, valores estéticos e morais. Inúmeras verdades e diferentes concepções foram e estão sendo construídas a seu respeito, no decorrer de sua história. Isso significa afirmar que os saberes construídos sobre o corpo humano são provisórios e contextualizados num dado momento histórico. Não há dúvidas de que, na sociedade ocidental contemporânea, o corpo passou a ser visto como um artefato3 de presença que ostenta a identidade dos sujeitos. A aparência corporal, além de ser uma presença inscrita no biológico do corpo, carrega consigo significados que são culturalmente construídos (Sant’anna, 2001). Nesse sentido, algumas marcas corporais são significadas como sinais de beleza, de saúde e de perfeição, enquanto outras carregam consigo o estigma de serem vistas como sinal de feiúra, de doença ou de deficiência (Tucherman, 1999; Sfez, 1996). Marcadas pela falta de um membro ou segmento corporal, as pessoas amputadas trazem inscritos em seus corpos sinais que as identificam como sendo diferentes, não raras vezes, sendo identificadas também como seres imperfeitos e incapazes. No Brasil não há estatística precisa sobre o número de amputações realizadas anualmente, porém aproximadamente 85% delas ocorrem em membros inferiores (Luccia, 2001). Como afirma Omote (1997), apesar de sabermos que são infindáveis as diferenças entre as pessoas, algumas características corporais destacam-se mais que outras, como, por exemplo, as marcas da amputação, as quais são atribuídas como uma diferença desvantajosa entre os indivíduos, podendo levar a um descrédito socialmente construído. Considerando as adversidades encontradas pelas pessoas submetidas a amputação de um membro corporal na sociedade brasileira, este estudo buscou compreender os sentimentos presentes, as emoções e os significados atribuídos por essas pessoas à transformação corporal vivenciada. Mais especificamente, procurou desvelar o processo de amputação e protetização, sob a perspectiva das pessoas que as vivenciaram, questionando seus estigmas, suas mortes reais e simbólicas, e os efeitos provocados pela hibridização com as próteses. Caracteriza-se, portanto, por ser uma investigação de cunho qualitativo, cujo trabalho empírico foi desenvolvido com os pacientes que freqüentavam uma clínica privada situada na cidade de Porto Alegre (RS), com atuação especializada na reabilitação e protetização de pessoas submetidas à amputação. A delimitação do grupo a ser investigado também constitui uma etapa relevante do caminho investigativo (Spink, 2000). Este foi selecionado de forma intencional, e o principal critério de seleção foi ser portador de uma amputação adquirida, por meio de intervenção cirúrgica, tendo em vista que algumas pessoas já nascem com a ausência (agenesia) de membros, além de estarem em processo de adaptação à prótese, ou serem usuários recentes da mesma. Participaram desse estudo nove pacientes, sendo seis homens e três mulheres, com idades variando de 18 a 82 anos, além do protesista e do fisioterapeuta da clínica. Os participantes se dispuseram a colaborar com a pesquisa mediante a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Informado, e seus nomes foram alterados objetivando preservar as suas identidades. A pesquisa de campo foi desenvolvida ao longo do ano de 2004, tendo, como instrumentos de coleta de informações, as entrevistas semi-estruturadas individuais 486

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3 Para Bourg (1996), os artefatos são “objetos técnicos que nós fabricamos” ou “objetos naturais que nós modificamos”. Neste sentido, no texto, artefato significa de forma metafórica o “objeto corpo” modificado constantemente pelo próprio homem, seja pelas vestimentas que usa, os acessórios que carrega, pelos músculos que ostenta etc., construindo pertencimentos.


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e a observação participante, ambas realizadas no decorrer de encontros mensais efetuados com os pacientes amputados, amigos e familiares, durante e após as sessões de fisioterapia e ajustes da prótese. Todos esses momentos foram registrados nos cadernos de campo e tornaram-se fundamentais para a aproximação com os participantes da pesquisa, pois se mostraram como espaços privilegiados para agendar as entrevistas, conhecer suas rotinas da clínica e suas percepções a respeito do processo de protetização. As entrevistas foram gravadas em fita microcassete, tendo uma duração que variou entre vinte minutos a uma hora. A opção pela realização de entrevista semi-estruturada objetivava conferir maior liberdade ao participante para narrar suas experiências individuais. Os eixos norteadores das entrevistas foram compostos pelos seguintes temas: o significado do corpo para si, tornar-se um amputado, o olhar do outro e o processo de protetização. O uso da entrevista como um instrumento privilegiado na coleta das informações partiu da compreensão de que os participantes da pesquisa são pessoas ativas no processo de produção de sentidos. Desta maneira, pode-se afirmar que a interação não inclui apenas alguém que fala e um outro que ouve, mas todos os outros que ainda falam, que ainda ouvem ou que, imaginariamente, poderão falar ou ouvir. Sob esse ângulo, muitas vozes se fizeram ouvir durante as entrevistas, incluindo interlocutores presentes e ausentes (Pinheiro, 2000; Spink, 2000). As narrativas dos participantes do estudo foram analisadas por meio da técnica de Análise de Conteúdo (Bardin, 1977), tendo como base os pressupostos teóricos dos estudos culturais e sociohistóricos sobre o corpo (Couto, 2000; Johnson, 1999; Bourg, 1996). Com base nesta triangulação entre a revisão teórica e as narrativas, foram construídas quatro categorias temáticas: “Tornar-se outro: o corpo amputado”; “Familiarizar-se com um outro corpo”; “A imperfeição vista pelos outros” e “O corpo protetizado: um outro de si mesmo”.

Tornar-se outro: o corpo amputado O processo de construção do conhecimento do sujeito passa, necessariamente, pelo seu corpo, uma vez que nossa existência é corporal (Le Breton, 2006). A subjetividade se constrói com o corpo por meio: de seus prazeres e sofrimentos, de suas qualidades e eficiências, de seus defeitos, do que ele já foi, do que já está deixando de ser, de como gostaríamos que um dia fosse, das formas pelas quais o exercitamos, das técnicas de controle que exercemos sobre ele, dos nossos anseios, da sua finitude e, paradoxalmente, do receio que sentimos diante da possibilidade de um dia se tornar um estranho para nós mesmos. Durante as entrevistas, esse receio se tornou bastante evidente. Não foram poucas as vezes em que os participantes da pesquisa relataram que falar de seus corpos amputados era uma tarefa difícil, pois ao nomeá-los, de certa forma, estavam tornando-os mais visíveis, especialmente nas suas diferenças e imperfeições. Por esta razão, nas entrevistas, seguidamente se reportavam ao passado, a um período que antecedia à amputação, onde seus corpos ainda eram identificados como “perfeitos” e “saudáveis”, consoante os padrões estéticos vigentes na sociedade contemporânea: “Antes da minha amputação, do meu acidente, eu tinha uma vida como um jovem normal. Eu praticava esportes, eu gostava de dançar. Mas agora, com isso, ultimamente eu nem entrei mais na água. Jogar futebol, nadar, dançar, era bom” (Rogério, 18a). A condição de amputado era narrada como integrante de um modo de vida “anormal”, pois já não conseguiam mais se enquadrar nos padrões naturalizados como pertencentes à “normalidade”. Muitos deles afirmavam terem perdido não somente uma parte de seus corpos, mas, junto com ela, a vida que levavam, a saúde que tinham e a sua eficiência corporal. Por certo que, em uma sociedade que privilegia a performance e o dinamismo, “perder” uma perna significa deixar perder “força, rigidez, juventude, longevidade, saúde, beleza [...] critérios que avaliam o valor da pessoa e condicionam suas ações” (Ortega, 2002, p.157). Em decorrência dessa percepção, vários entrevistados mencionaram a necessidade de cuidar dos seus corpos com o intuito de salvá-los diariamente, ou ainda, de salvar aquilo que dele ainda permanece: “Eu valorizo bastante agora, todo o resto que eu tenho. Não quero perder mais nada. E agora, ando me cuidando mais” (Rogério, 18a).

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Dou muita importância porque ainda sobrou um pedacinho da perna que dá pra botar uma prótese. Mais uma vez prova de que o corpo, uma parte do corpo que ficou é muito importante. Faz muita falta pra gente e pra tudo! (Juliano, 76a)

Os cuidados com o corpo foram intensificados após a amputação. Paulatinamente, os participantes tiveram de reaprender a dominar seus corpos renunciando à gratificação imediata de seus desejos mais simples, como ficar em pé novamente sem precisar das muletas. Esse controle sobre seus corpos não se deu sem o despontar de uma série de sentimentos ambíguos: amor e ódio, desejo e repulsão, cuidado e descuido pelo próprio corpo. Suportar esses sentimentos e superar as dores reais e simbólicas atreladas ao processo de amputação foram observadas como uma maneira de resistir à morte, pois alguns passaram pela experiência do coma. Todos mencionaram quanto foi difícil aceitar a cirurgia de amputação, pois, para além do dano físico, tiveram de romper com o seu cotidiano, abdicando, muitas vezes, da presença da família e dos amigos no esforço de salvar seu corpo da degenerescência, ficando, por exemplo, mais de um ano no hospital, na tentativa de reverter uma infecção na perna. Para os participantes, sua saúde dependia, em grande medida, da reposição da peça desgastada, ou seja, do segmento que já não funcionava adequadamente e que teve de ser extirpado por via cirúrgica. A essa representação mecânica do corpo corresponde, também, a percepção de que sua perfeição está na inteireza e que a incompletude é sinônimo de imperfeição (Sfez,1996). É aquela velha história. Quando a gente ‘tá’ todo perfeito, a gente não dá bola. Depois que perde, começa a pensar como era importante aquilo pra gente. Eu acho que as pessoas têm as duas pernas e os braços, vivem reclamando da sua aparência, ou vivem reclamando da vida. (Rogério,18a)

Afinal, como afirma Canguilhem (2000), “ser doente” não significa somente passar a viver uma vida diferente, porque o conceito de doença também está atrelado a um julgamento de valor, “estar doente” significa, da mesma forma, tornar-se alguém nocivo, indesejável ou socialmente desvalorizado. Diante de tal representação, os participantes consideravam que seus corpos passaram a ser imperfeitos após a amputação, e que esta incompletude precisava ser “preenchida” com o uso das próteses. Segundo Omote (1997), apesar de sabermos que são infindáveis as diferenças entre as pessoas, algumas características corporais destacam-se mais que outras, como, por exemplo, as marcas da amputação, as quais são atribuídas como uma diferença desvantajosa entre os indivíduos, podendo levar a um descrédito socialmente construído. A condição de amputado remete a um estilo de vida diferenciado, onde os sujeitos já não conseguem mais se enquadrar nos padrões de normalidade valorizados pela sociedade contemporânea. Perdem, assim, não somente uma parte de seus corpos, mas junto com ela a vida “normal” que levavam, a saúde que tinham e a eficiência corporal. Nas suas falas é possível identificar que o corpo é observado como o principal ponto de referência que sustenta a definição de quem se enquadra ou não em um padrão de saúde e de “normalidade”. O corpo amputado revela, desta forma, um passado que passa a ser presentificado a todo momento. Nesse sentido, a possibilidade de protetização adquire um caráter bastante singular, uma vez que reconstrói o corpo de forma que o sujeito apropria-se dele novamente, voltando a ser visto como alguém “saudável”. Distanciando-se da representação de ser “doente”, este corpo, ainda que reconstruído artificialmente, adquire nova visibilidade e valorização: “O significado do corpo é o mesmo que uma máquina. Se estragar uma peça pára, emperra. Ou tira e para botar outra, às vezes, não funciona. E o corpo completo é uma coisa óbvia, fundamental. Não se pode desprezar nunca. É muito diferente, muito!” (Juliano,76a). De acordo com Le Breton (1995), a condição do ser humano é corporal, pois é seu corpo que o separa do Outro, que o individualiza, aquilo que estabelece a fronteira da sua identidade pessoal. Se o ser humano não existe senão por meio de suas formas corporais, que o colocam no mundo, toda modificação de sua forma faz com que uma outra definição de sua humanidade seja construída. Isso significa que subtrair dele uma parte, como no caso da amputação, ou acrescentar alguma coisa como, 488

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por exemplo, uma prótese, faz com que o indivíduo seja colocado numa posição ambígua, intermediária, afetando simbolicamente o seu vínculo social. Portanto, para os participantes do estudo, realizar uma amputação remete a um outro momento de suas vidas, que vem a ser reconstruir os modos de ver a si próprio, num primeiro momento, aprendendo a conviver com a incompletude. Ao optarem pela protetização, foram em busca de uma outra configuração corporal que, mesmo artificial, carrega em si os signos da completude. Processo esse vivido de forma particular, evidenciando, sobretudo, que, para cada um, o que vem a ser um corpo “perfeito” não é algo estanque, mas que está diretamente relacionado à sua história de vida, que é unívoca e intransferível.

Familiarizar-se com um outro corpo Para os participantes do estudo, a amputação foi identificada como um processo doloroso e inesperado: uma casualidade. Algo que escapou ao controle e que rompeu com o vetor linear do tempo histórico, do esperado, do que seria o “natural”. O corpo amputado foi narrado como um campo de batalha que, ao ser exposto ao olhar do outro, foi desvelado na sua deficiência: um lugar no qual os acontecimentos concretos foram escritos e inscritos como cicatrizes, como alfabeto de dor e sofrimento (Pombo, 2002; Vilela, 2001). A história que vinha sendo construída até o momento da amputação fica interrompida, chega ao fim, pois o indivíduo passa a narrar sua história de vida em dois momentos distintos, ou seja, antes da amputação e depois da amputação. O corpo amputado revela um passado que passa a ser presentificado a todo momento. Revela, também, a morte real de uma parte do corpo, bem como a morte simbólica de um estilo de vida, de uma forma de ser e de uma identidade, ainda que compreendam que optar pela “morte” de uma parte significa, no seu caso, dar vida a todo o restante. Nessa perspectiva, o “fazer viver” tornou-se um imperativo, mesmo que para isso o indivíduo tivesse de abdicar de uma parte de si, de um modo de vida para reviver numa outra “forma” corporal. Em relação à amputação, foi muito difícil. Tu vês, tanto é que durante seis anos eu tentei manter a minha perna. Ela tava toda danificada, tava feia, tava enorme [...[ Mas, mesmo assim, era a minha perna. Eu tinha vontade de manter ela. Fiz doze cirurgias na perna. Eu só não a mantive porque chegou um momento em que eu tive que optar entre a perna ou a minha vida. Se eu não amputasse a perna, eu ia morrer. Então, eu tive que amputar. Foi uma decisão muito difícil. (Júlia, 49a)

Conforme afirma Villaça (1998), os indivíduos atribuem a partes de seu corpo, como por exemplo o sangue, o esperma e o coração, uma carga parcial ou total de sua identidade. Portanto, amputar uma perna pode significar a perda de uma referência, da identificação com relação ao outro, pois o seu corpo “diferente” não serve mais como um parâmetro de igualdade. Nas narrativas dos participantes, percebe-se que, após a amputação, eles viam seus corpos como sendo algo ao mesmo tempo desconcertante e desconhecido, pois sua configuração corporal já não obedecia a qualquer modelo de racionalidade predominante, na medida em que os padrões corporais tidos como normais, tornam-se inviáveis como modelos de semelhança e identificação. O corpo amputado escapa de possíveis enquadramentos, confirma a todo instante ou explicita a diferença, caráter indisfarçável de “eterno estrangeiro” aos olhos dos outros. De acordo com Kristeva (1994), a estranheza e a alteridade podem ser pensadas sob diferentes perspectivas. O estrangeiro pode ser um vizinho calado, aquele que não é do nosso time, partido, grupo, turma, não importa. Na verdade, a condição de estrangeiro é dada por qualquer um diferente de nós mesmos, ou seja, o Outro. Neste sentido, pode-se pensar que o corpo que passou por um processo de amputação “torna-se um estrangeiro”, pois os seus atributos, até então familiares, foram extirpados juntamente com o segmento que perdeu. O corpo amputado é aquele que vive na ambigüidade de um dia ter sido um corpo “completo” em sua materialidade orgânica e que, abruptamente, é posicionado no lugar da diferença, da alteridade, tornado um estranho para o Outro e para si mesmo. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Nesse sentido, a amputação provoca uma modificação permanente na aparência do indivíduo, em sua auto-imagem, suscitando sentimentos perturbadores, como mostram os seguintes depoimentos: Até então, eu não me aceitava muito bem. Não me aceitava mesmo. Não aceitava minha aparência. Quando eu sonhava, eu sonhava que eu era perfeito. Nunca sonhava com essa situação. (Guilherme, 36a) Eu envelheci uns 10 anos... Eu sempre tava de bem com a vida. Eu gostava muito de fazer as coisas diferentes, sabe. Agora, mal dá pra mim defender o necessário [...] Antes eu valorizava muito o meu corpo. Antes, né. Mas, depois que aconteceu isso aqui, nada tem mais valor para mim [...] Já faz tempo e assim, não posso me acostumar [...] Ah! Meu Deus! Coisa feia faltar um pedaço da gente. Que coisa horrível! Eu acho horrível! (Paula, 65a)

O paradoxo do corpo, para Gil (2002), está no fato de ele ser articulável num todo orgânico, onde cada membro que o constitui guarda sua autonomia, seguindo direções próprias. Essa característica, de fato, é que permite que o corpo possa ser desmembrado sem ser destruído. Mas, também, faz com que o corpo não possa mais existir, nem ser definido como “corpo próprio”, pois ele perdeu a integridade de todos os seus membros. Ao nos reportarmos, então, ao corpo amputado, vemos concretizada essa possibilidade de desmembramento de uma de suas partes, onde, ao invés de ser destruído, ele ganha uma nova vida ao ser transformado. Concomitantemente, ao perder a sua integridade, ao tornar-se um corpo incompleto, ele passa a existir e ser subjetivado por outros olhares sociais. Muitos entrevistados mencionaram que o corpo amputado não era o corpo esperado ou desejado, mas ainda assim era o “seu corpo”. Esta situação, inicialmente perturbadora, acabou sendo naturalizada com o passar do tempo, na medida em que se tornou habitual ostentar, sob o olhar do Outro, um corpo com formas diferentes: “Eu não me sinto complexada. Nada, nada, nada. Não tenho preconceito. Eu até estou me achando mais bonita e diferente, viu? Com a prótese. Até me apelidaram de mulher biônica. Eu estou contente, porque Van Gogh cortou a orelha, eu cortei a perna” (Corina, 79a). Não aceitar que seus corpos foram modificados pela amputação significa viver no passado, num eterno luto pelo perdido, por um corpo que não existe mais. Para vários colaboradores da pesquisa, usar uma prótese externa fez com que resgatassem não apenas a funcionalidade corporal mas, ainda, parte de sua estética, na medida em que passaram a vislumbrar esse novo corpo novamente como completo. Assim, a aceitação da amputação passou, necessariamente, por um processo de “naturalização” desse outro corpo artificial, construído pela intervenção cirúrgica e pela sua reconstrução com o auxílio de um artefato tecnológico. Assim, na medida em que a prótese entra em contato com seus corpos, ela passa a ser incorporada a sua imagem corporal, tornando-se um prolongamento de seus corpos, hibridizando-se.

A imperfeição vista pelos outros Com base nos depoimentos dos participantes, foi possível perceber que seus corpos modificados pela amputação causaram um estranhamento não somente para si, mas, sobretudo, para os outros4. Modificaram-se seus corpos e, junto com essa mudança, suas relações sociais também se alteraram. Tornar-se um amputado 490

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Para Ortega (1999), o cuidado de si é inseparável da relação com o outro. E, como afirma Mèlich (1998), o indivíduo é refém do outro, sendo o outro entendido como aquele que transcende infinitamente, aquele que jamais o indivíduo poderá possuir. 4


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foi uma situação, muitas vezes, mais difícil de ser suportada diante do olhar inquisidor do outro do que de si mesmo. Como afirma Kehl (2003), os corpos modificam-se por efeito do que se diz sobre eles e do novo lugar social que se produz, fazendo apelo a um modo diferenciado de estar “dentro da própria pele”. Portanto, não ocorre somente uma mudança estética, pois a experiência do “eu” que se reconhece num corpo desvalorizado socialmente é totalmente diversa daquela vivenciada por quem se representa para as outras pessoas como tendo valor. Desta forma, um corpo investido de um novo discurso produz um novo “eu”, na medida em que nossos corpos são dependentes da rede discursiva onde estão inseridos, como também são dependentes da rede de trocas que estabelecemos, ou seja, troca de olhares, de toques, de palavras e de substâncias. Esta mudança na forma de ser olhado, a partir da amputação, provocou, em alguns participantes, o sentimento de ser outra pessoa: “Quando eu amputei, quando eu tava no hospital, eu pensei: Quando eu for para casa, como será que vai ser? As pessoas vão vir me visitar e vão me olhar como? Isso eu pensava” (Júlia, 49a). Inicialmente, a amputação provocou, nos participantes, a sensação de se sentirem estrangeiros tanto diante de si como diante do outro, o qual passou a ser representado por quem possuía todas as funções e os movimentos corporais e relacionais preservados. Num instante, o indivíduo descobriu-se um cidadão de lugar nenhum, já que, após a amputação, em raras circunstâncias, ele passou a ser visto como “natural”. A partir de então, os participantes passaram a conviver com situações que alteraram seus hábitos, saberes e práticas relacionais diárias, vida sexual, profissional, auto-estima, percepção da própria imagem, mobilidade real e simbólica, no espaço social, produtivo e doméstico. Apesar de estarem cientes da enorme variedade que o ser humano pode apresentar no que diz respeito às características corporais, os participantes evidenciaram que as diferenças físicas passaram a ser vistas como marcas corporais que se sobressaem em relação a outras, pela impossibilidade de serem ocultadas e escondidas. Como afirma Gil (2002), o corpo foi feito para desaparecer, porém quando ele insiste em sua presença, quando dele o indivíduo não consegue se livrar, como ocorre, por exemplo, com a amputação, ele fica condenado a habitá-lo em sua alteridade. Desta forma, sua visibilidade ocasionou, em algumas ocasiões, associações a condições patológicas, onde essas marcas corporais passaram a se configurar como estigmas, orientando a percepção do indivíduo, daquele que olha, a partir dessa característica física, que passa a ser considerada a principal, por ser a mais evidente. Nesse sentido, a amputação foi vista como algo que desacomoda, fazendo com que o indivíduo ganhe visibilidade, colocando seu corpo à mostra, testemunho de sua diferença. Ao indivíduo “normal” está reservado o privilégio de passear numa rua sem suscitar a menor indiscrição. Simultaneamente, o fato de ser olhado pelo outro, constitui-se, assim, numa chamada, num apelo irresistível, pois obriga o indivíduo e exige dele uma resposta (Le Breton, 2006; Ortega, 2002). Situação essa diferenciada para os participantes que, nos seus depoimentos, evidenciaram quanto esses olhares podiam ser perturbadores. Antes de amputar a minha perna, eu convivi muito pouco com pessoas amputadas [...] Só uma pessoa que eu conhecia que era amputado. Então, eu sempre olhei para ele como uma pessoa diferente. E é isso que eu sinto em relação a mim. Que as pessoas também me olham. Ó, essa ali é uma amputada, é diferente. Sabe, é um preconceito que eu acho que eu sempre imaginei que as pessoas têm. Talvez, porque eu sempre tive. (Júlia, 49a) Eu me sinto estranho quando ninguém olha pra mim. Tem alguma coisa errada comigo! Ninguém olhou pra mim! Quando olham pra mim é normal. (Guilherme, 36a)

Esse olhar, inicialmente instigante, revelador de sua diferença corporal, com o passar do tempo, passou a causar menos impacto, permitindo que o indivíduo não se sentisse tão desconfortável com sua situação. Para os participantes o olhar temido era também aquele que emanava sinais de aceitação, permitindo que (re)significassem sua existência. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Buscar ser reconhecido no olhar das outras pessoas, não somente como alguém que possui um corpo amputado, mas como alguém que vive, apesar de possuir um corpo imperfeito, fez com que os participantes procurassem o grupo de apoio realizado mensalmente na clínica onde foi desenvolvida a pesquisa. Nesses encontros, ouvindo os relatos dos presentes e assumindo o lugar de “quem olha”, os participantes sentiam-se acolhidos pelos demais, pois além de compartilhar histórias de vidas marcadas pela amputação, também compartilhavam os mesmos sonhos de poder voltar a ficar de pé e andar após a colocação da prótese. Essas trocas intersubjetivas apareceram em alguns relatos, quando os participantes da pesquisa descreviam suas experiências no grupo de apoio. O grupo tem uma importância fundamental pra mim. Porque eu não me sinto diferente dos outros. Ali todo mundo é igual a mim. Essa troca de experiências, isso foi uma coisa, assim, que a partir dali eu comecei a aceitar a minha amputação. Porque até então, eu não tava conseguindo. Então, o fato de eu ver que tem tanta gente na mesma situação que eu, me ajudou muito. (Júlia, 49a) Eu fui vendo outras pessoas que tinham situações piores. Como é que conseguiam, né? Levar uma vida digna. Ser um ser humano apesar de tudo... Eu fui me acostumando com aquilo. Eu não olhava mais para o problema, quando eu conversava com as pessoas. Eu não olhava se a pessoa caminhava estranho ... eu via era a pessoa na minha frente. (Guilherme, 36a)

No grupo de apoio, a questão do sofrimento, em diferentes medidas, e de forma distinta, aproximou os participantes e os envolveu também, sendo que esses vínculos estabelecidos mostraram-se decisivos no processo de (re)significação dos seus corpos amputados. Na medida em que o reconhecimento do indivíduo passa pelo outro, por meio da negociação constitutiva da própria vida, ele vai e volta, exige e cede, dá e recebe, no espaço intervalar dos entre-lugares. Os indivíduos, então, em suas desditas e encontros, permitem-se desenraizar-se sem que ocorra uma total desidentificação (Guerra Neto, 2002). Nesse processo de renascer num corpo estranho, amputado, o indivíduo não está sozinho, pois diante dos olhares que recebe, torna-se “outro” tanto para si mesmo como para as pessoas ao seu redor, pois já não pode mais ser o mesmo num corpo que deixou de ser o “seu”. Assim, para os participantes, a passagem pela clínica significava estarem em um local onde sentiamse compreendidos, acolhidos e incluídos. Suas marcas corporais, que em outros locais eram interpretadas como sendo sinal de imperfeição, na clínica, passaram a ser vistas como uma característica de pertencimento e de identidade. Desta forma, as reuniões mensais do grupo de apoio, a fisioterapia e as intervenções do protesista constituíam-se como “ritos de passagem” para os participantes da pesquisa. Exercitando seus corpos, falando de suas dificuldades e de seus ganhos, olhando para os corpos dos outros pacientes, compartilhando suas histórias, preparando-se para a protetização, ou seja, toda essa gama de experiências corporais auxiliou no processo de familiarização de seus corpos amputados. Permitiram, portanto, aprender novamente a decifrar seus códigos corporais, subjetivá-los a partir do encontro com outros corpos, os quais apresentavam marcas semelhantes, enfim, tornar o corpo “estranho” em conhecido.

O corpo protetizado: um outro de si mesmo Na sociedade contemporânea, a tecnologia é uma construção na qual o sujeito está profundamente envolvido. Como afirma Couto (2001), o ser humano inventou a técnica e por ela passou a ser inventado, ou seja, a artificialidade está presente desde a formação das primeiras sociedades. Por esta razão, não faz sentido algum separar o natural do artificial, o ser humano da técnica, uma vez que se constituem reciprocamente. Dotado de um caráter inacabado, em processualidade, o corpo humano permitiu que as tecnologias o invadissem, investindo-o, prolongando sua vida, e sua funcionalidade. Nessa perspectiva é possível afirmar que as tecnologias acoplaram-se aos corpos tais como as próteses, tornando-os mais potentes.

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Apesar dos aparatos técnicos atuarem de forma diferenciada, eles têm como função suprir uma deficiência, substituir uma falha, corrigir um desvio ou aumentar sua performance. Independentemente de serem externos e visíveis, ou internos e invisíveis, esses aparatos apresentam a característica em comum de serem objetos “estranhos” ao corpo humano e, por esta razão, precisam ser subjetivados, incorporados, tornados familiar, num processo de íntima convivência entre o humano e a máquina (Couto, 2000; Virilio, 1996). As próteses ortopédicas podem ser analisadas nesse sentido, visto que são observadas como equipamentos que têm a função de substituir o segmento ausente, integrando-se ao corpo, passando a ser um prolongamento, uma extensão de sua cartografia (Moreira, 2004). Durante a pesquisa de campo, foi possível identificar que o processo de protetização era uma preocupação não apenas dos amputados, mas da equipe que atuava na clínica. Nas entrevistas realizadas, como a do fisioterapeuta e a do protesista, essa preocupação se mostrou latente pois estes profissionais preparavam o corpo do indivíduo para receber o artifício. Nos seus depoimentos, mencionaram, por diversas vezes, o caráter individual e provisório da prótese que, como o próprio corpo, está sempre em mutação. Segundo o protesista, seu papel é de “esculpir os corpos”, pois suas mãos modelam a prótese que assumirá as características pessoais de cada paciente, tornando-se única e intransferível, cujo modelo depende tanto da disponibilidade econômica do usuário quanto dos seus desejos e intencionalidades: “A prótese é pessoal, foi confeccionada. Cada um é cada um. Nunca vai ser igual. Dá para fazer uma personalizada. A prótese jamais vai ser para vida inteira. Desde que nascemos, até partir, a característica anatômica vai mudando” (Protesista). Já nos pacientes, a preocupação era de outra ordem. Nos primeiros contatos com a prótese, temiam o desconhecido, o nunca vivenciado, o objeto pouco usual visto, até então, como algo distante de si. Apesar de desejado, o uso da prótese traduzia-se em algo novo e desafiador. Todos estavam cientes de que a sensação nunca seria como a da perna “perdida”, mas que o seu uso permitiria resgatar as funções, os valores e a estética, entre outros atributos perdidos com a amputação. As próteses assumiram o papel de acessórios versáteis que foram acoplados aos seus corpos, objetivando, mesmo que de forma provisória, solucionar a deficiência presente, podendo ser dispensada sempre que fosse desejado. Esta experiência mobilizou nos participantes inúmeras sensações. Quando eu coloquei a prótese pela primeira vez, foi uma sensação, assim diferente. Eu disse: Não é minha perna, mas é uma substituta! (Roberto,70a) Tu sabes que aquilo não nasceu com a gente. Quer dizer, uma coisa que está entrando no corpo da gente. Dali pra diante tem que ser aquilo [...] Mas, o corpo tem que se ajustar à prótese, principalmente a cabeça, que é quem leva o corpo. (Volnei, 63a)

Com base em seus depoimentos, foi possível perceber que, após a amputação, os participantes buscaram na tecnologia a possibilidade de resgatar aquilo que foi extirpado do seu corpo, não sendo somente a materialidade orgânica perdida, mas também o simbólico que foi retirado de sua vida, como, por exemplo, a “independência”, a “autoridade” e a “felicidade”. Tornar-se um usuário de prótese permitiu aos participantes resgatar a humanidade, a dignidade, a autonomia, a felicidade, a vaidade, entre outras maneiras de ser, perdidas com a amputação, na medida em que, com o seu uso, foi possível novamente: ficar de pé sem o auxílio de muletas, liberar as mãos e utilizá-las com outras finalidades além de servir como apoio, caminhar com autonomia, enfim, retomar algumas das práticas sociais e cotidianas que tinham sido impedidas de serem exercidas ou realizadas devido à amputação. Desta forma, podemos dizer que as limitações foram vistas, pelos participantes, como sendo algo temporário, e que o uso da prótese ofereceu outras possibilidades, talvez um porvir incerto, mas eles aceitaram o desafio de novamente transformar sua corporalidade e, junto com ela, construírem novas formas de habitá-la. Tornar-se um usuário de prótese, significou, para os participantes desta pesquisa, deixar que o seu corpo entrasse em contato com outro corpo, transpusesse o seu limite corporal, sendo, portanto, invadido por vivências nunca experimentadas anteriormente. As próteses foram vistas como sendo

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“naturais”, uma mixagem, onde a pele humana e a superfície sintética da prótese unificavam-se numa íntima convivência entre indivíduo e artefato, necessitando de cuidados, tais como substituições, ajustes periódicos, acoplagens e desacoplagens: “Eu acho que nós temos que fazer com que a prótese se encaixe com a gente. A prótese é um corpo estranho e ela fica fazendo parte do corpo. Então, a gente tem que trabalhar em harmonia com ela” (Júlia, 49a). Dia a dia, a prótese passou a ocupar uma posição de destaque no cotidiano dos sujeitos investigados, deixando de ser identificada como um “objeto estranho”, para assumir a função de um “acessório pessoal”. De um modo geral, a prótese foi vista como algo útil, mas ao mesmo tempo um objeto estranho que estava “entrando em seus corpos”. Precisavam, portanto, torná-la familiar, fazer dela uma parte de si. A adaptação à prótese foi narrada como uma experiência paradoxal, permeada de expectativas e receios, alegrias e tristezas, um (re)conhecimento de suas potencialidades, bem como de seus limites físicos, pois o corpo, de alguma forma, sinalizava que um outro corpo estava tentando acoplar-se a ele e reagia. A adaptação foi constituída por um duplo desafio, onde eles tiveram de (re)aprender a dominar seus corpos transformados pela amputação, e, simultaneamente, aprender algo novo, isto é, dominar um “corpo estranho”, a prótese, com a qual dividiriam sua intimidade. Da mesma forma, quando não a estavam usando, sentiam essa ausência como algo desagradável, como se seus corpos demandassem sua constante presença: “Quando eu estou com a prótese, eu tiro ela, eu sinto falta, sabe. Falta alguma coisa. Então, é como se fosse uma perna normal. Tu sentes falta daquilo”(Rogério, 18a). Em face de este acoplamento, a prótese passou a ser percebida, por vários dos entrevistados, como um prolongamento dos seus corpos. Por esse motivo, em determinado momento, deixaram de ocultála, ainda que alguns deles relatassem certo incômodo com os olhares dos Outros: Eu procuro não esconder. Eu acho que faz parte de mim. É como uma pessoa que usa anel, ali bonito, um óculos, um silicone. Eu sou assim! Quem convive comigo aprende a me aceitar do jeito que eu sou e vê que por trás da prótese tem um ser humano. (Guilherme, 36a) Saia, não! Saia com prótese, não! É calça comprida. Eu nunca usava, assim, calça comprida. Mas depois que eu amputei [...] eu pensei assim ó, uma calça comprida é melhor. (Paula, 65a)

Múltiplas foram as formas que cada um utilizou para mudar, atualizar-se e aceitar o desafio de se tornar um outro de si mesmo. Se o corpo protetizado devia estar ou não desvelado ao olhar alheio, veio a ser uma opção pessoal de compartilhar o fato de ter se tornado alguém com características corporais diferenciadas, ou de guardar para si o desafio de ter transgredido seus limites físicos e pessoais. Nos relatos de alguns participantes ficava evidente a identificação que tinham construído de si a partir da mixagem entre seus corpos e a prótese. Quando eu comecei a usar a prótese, eu me achava assim meio máquina. Eu tinha a sensação de ser um homem meio máquina. Eu me olhava no espelho, olhava aquele negócio metálico ali e era diferente. Eu tava me sentindo um robô. Mas depois, aquilo já foi fazendo parte de mim e eu fui me adaptando. E depois eu nem mais percebia que eu tinha prótese. (Guilherme, 36a) Sou um homem biônico. Eu tenho um marca-passo, eu tenho a perna, qualquer dia um olho [...] Tem um netinho meu que já me chama de “vôcop”. (Juliano,76a)

As próteses, para os seus usuários, acabaram transformando a imagem corporal que eles tinham de si mesmos. Além disso, seu uso proporcionou que vivenciassem uma situação de intimidade com um objeto externo ao seu corpo, o que não significou ter havido uma síntese do orgânico com o artificial, mas uma coexistência, uma interação entre esses elementos até então considerados incompatíveis. Como explicitou um dos participantes: “Eu sempre digo que a prótese é importante, mas mais importante é o ser humano que está em cima da prótese. A prótese é só um objeto, é um apoio. Se não tiver a prótese, o ser humano vai viver também” (Guilherme, 36a). 494

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Como afirma Couto (2001), as máquinas passam a ser vistas como componentes íntimos, ou seja, partes amigáveis dos indivíduos. Desta forma, a prótese passa a ocupar um lugar importante na vida dos participantes, compartilhando com eles momentos íntimos e sociais, atividades rotineiras, eventos especiais, enfim, deixa de ser somente um “objeto estranho”, em alguns momentos incômodos, para tornar-se um “acessório pessoal”. Ao não se conformarem com a limitação funcional imposta pela amputação, os participantes dessa pesquisa buscaram, por meio da utilização de próteses, a superação da sua incompletude, fugindo da sua identificação como algo constituído e fixado na deficiência. Articulando-se com territórios de outra natureza, eles acabaram produzindo, a partir de sua imperfeição, de sua incompletude, formas variáveis de presença corporal, móveis e mutantes, refazendo-se a si mesmos, tendo como sua principal aliada a tecnologia, cujo acoplamento promoveu em si e nos seus corpos outras eficiências.

Considerações finais Apesar de a vida humana transformar-se continuamente, sua finitude é insuperável, pois a lei da existência é a “impermanência”, onde o indivíduo é o resultado tanto de ações premeditadas, quanto de causalidades. Neste sentido, a amputação adquirida de um segmento corporal mostra-se como um acontecimento que rompe com a linearidade do tempo histórico, do esperado, do que seria o natural no processo de viver e envelhecer (Guerra Neto, 2002; Pombo, 2002; Vilela, 2001). O corpo amputado foge de possíveis enquadramentos, confirmando e explicitando a diferença, caráter indisfarçável de eterno estrangeiro aos olhos dos outros (Kristeva, 1994). No entanto, a subjetividade não se esgota num único modelo de corpo, mesmo que saibamos que existe um modelo preconizado pela sociedade que seja sinônimo de saúde e beleza. No entanto, para os participantes deste estudo, mesmo tendo corpos que fujam de um possível enquadramento no modelo corporal preponderante, a alteridade instalada pela amputação, ao mesmo tempo biológica e simbólica, torna-se parte do mesmo indivíduo (Tucherman, 1999). No presente estudo, os indivíduos que realizaram a amputação de um segmento corporal reescreveram sua história e reinventaram suas vidas, reportando-se a dois momentos distintos de existência, ou seja, antes e depois da amputação. Marcados em suas corporalidades pela ausência de uma parte de si, ressignificaram suas vidas a partir do olhar de si e das outras pessoas. Ao transpor a limitação física presente, não se fixando numa posição de “impedido” de continuar vivendo, o indivíduo possibilita à subjetividade existir em territórios existenciais em construção, como o corpo protetizado. A fusão entre a carne e o artefato é uma forma recorrente de potencializar os usos do corpo que, por ser dotado de um caráter inacabado, necessita dessa mixagem, dado que somente a sua natureza biológica já não pode lhe garantir (Couto, 2000). Portanto, o ser humano pode ser vislumbrado tanto como um produtor de artefatos, ou ele próprio vir a ser o artifício, pois, ao mesmo tempo em que inventou a técnica, por ela passou a ser inventado. Sob este prisma, o corpo é um objeto ininterruptamente em elaboração, e, por esta razão, o uso da prótese permitiu, aos indivíduos participantes do estudo que realizaram uma amputação, reelaborar sua corporalidade (Couto, 2000; Bourg, 1996). As narrativas permitem pensar que o corpo “natural” não pode ser assumido como um destino, como algo imutável. Ele é constantemente fabricado e moldado, não somente pelas suas vivências, mas também pelas intervenções de várias ordens que nele se podem operar. Neste estudo, os corpos amputados deixaram de ser “incompletos”, para se tornarem corpos performáticos ao serem protetizados. Os participantes reinventaram suas vidas e conseguiram “renascer” com o auxílio das tecnologias. Assim como muitos dos eventos que marcam mudanças biológicas ou sociais em nossas vidas, foi possível compreender que a passagem de um modo de vida “naturalmente” humano, anterior à amputação, para tornarem-se “artificialmente” produzidas pela protetização, significou para essas pessoas um rito de passagem. Nesse processo, deixaram de se observar somente como portadores de corpos imperfeitos, para tornarem-se completos, protetizados, e, mesmo com esse acoplamento, humanos. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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PAIVA, L.L.; GOELLNER, S.V. Re-inventando la vida: un estudio cualitativo sobre los significados culturales atribuidos a la reconstrucción corporal de amputados mediante prótesis. Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.12, n.26, p.485-97, jul./set. 2008. Se analizan los significados culturales que los individuos amputados atribuyen a sus cuerpos y a sus vidas cotidianas tras el uso de prótesis. Se utilizaron como presupuestos teóricos los estudios culturales y socio-históricos sobre el cuerpo humano. Participaron de la pesquisa nueve pacientes, siendo seis hombres y tres mujeres, con edades variando de 18 a 82 años, además del protésico y del fisioterapeuta. Las entrevistas se analizaron por medio de la técnica de análisis de contenido, identificándose cuatro categorías temáticas: “Tornarse otro: el cuerpo amputado”; “Familiarizarse con otro cuerpo”; “La imperfección vista por los otros” y “El cuerpo en prótesis: otro de sí mismo”. El análisis por categorías reveló que la prótesis se observó como una forma de rescatar la función perdida y también la estética corporal en la medida en que los pacientes han visto sus cuerpos nuevamente como completos. El uso de la prótesis ha significado una forma de mantenerse humano aunque sustentado por un objeto artificial.

Palabras clave: Amputados. Miembros artificiales. Reconstrucción corporal. Recebido em 29/06/07. Aprovado em 06/02/08.

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Corpo, sexo e subversão: reflexões sobre duas teóricas queer

Pedro Paulo Gomes Pereira1

PEREIRA, P.P.G. Body, sex and subversion: reflections on two queer theoreticians. Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.12, n.26, p.499-512, jul./set. 2008.

The aim of this text is to present two important queer theoreticians, Beatriz Preciado and Marie-Hélène Bourcier. After outlining their work and highlighting their definitions of sex and gender, I discuss the centrality of the body in the general economy of their works. I conclude by posing some questions, in which I emphasize the urgency of inquiring into the various vectors of differences that result from inequalities and exclusions.

Key words: Body. Sex. Queer. Gender.

Neste texto apresento duas importantes teóricas queer, Beatriz Preciado e MarieHélène Bourcier. Depois de delinear o trabalho das autoras e ressaltar suas definições de sexo e gênero, discuto sobre a centralidade do corpo na economia geral de suas obras. Finalizo elaborando algumas indagações nas quais ressalto a premência de se inquirir sobre os vários vetores da diferença, resultantes de desigualdades e exclusões.

Palavras-chave: Corpo. Sexo. Queer. Gênero.

Graduado em Ciências Sociais. Universidade Federal de São Paulo. Rua Albuquerque Lins, 724, apto. 73. Higienópolis São Paulo, SP 01.230-001 pedropaulopereira@ hotmail.com

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A teoria queer apresenta um campo semântico provocante, composto por vocábulos como: re-conversão, deslocamento, reconfiguração, desnaturalização, subversão, performance, paródia. Muitas dessas expressões são tropos que indicam movimento e transformação, assinalando que algo muda após o ato performático de transformar um insulto numa forma orgulhosa de identificação. Os textos parecem ressaltar, destacar, enfatizar o caráter inusitado e sísmico das inversões e das diferenças – donde o tom hiperbólico das narrativas. Ademais, há uma particularidade pouco observada pelos pesquisadores, mas que se apresenta quando pensamos na sinonímia de paródia: as respostas às vozes homofóbicas que afirmam a abjeção de certos corpos no processo de auto-designação queer são também bem-humoradas, e irreverentes. Nesse contexto – impressionisticamente traçado e que espero delinear mais adiante –, duas autoras se destacam, justamente por serem mordazes e com apurado senso de humor; sensíveis à literatura contemporânea das humanidades, e a ela extremamente críticas. Refirome a Beatriz Preciado e Marie-Hélène Bourcier. Preciado publicou, em 2000, em francês, o Manifeste Contra-sexuel, obra que, em 2002, sairia em espanhol. Bourcier lançou a primeira versão de Queer Zones em 2001, e Sexpolitiques: Queer Zones 2, em 2005. Esses livros não foram traduzidos para o português até o momento, e as referências a eles são raras no Brasil. À exceção da feliz lembrança de uma entrevista com Preciado, publicada nos Cadernos Pagu, e esparsas citações em revistas especializadas, as autoras não parecem ser conhecidas no país, lacuna que nos afasta da frutífera polêmica que vêm causando na Europa2. Neste ensaio, efetuo uma aproximação às principais idéias dessas autoras, buscando, mesmo que de forma rápida e limitada, preencher a lacuna assinalada. Nas seções seguintes, discorrerei sobre os livros mencionados (Bourcier, 2006, 2005; Preciado, 2002) – sem a intenção de ser extensivo ou de abarcar a totalidade das questões tratadas –, para, logo após, ressaltar o lugar e importância do corpo na economia geral dessas obras. Por fim, elaborarei algumas indagações gerais, no intuito de destacar dimensões que me interessam mais particularmente: falo sobre o papel do riso na obra das autoras; defendo a necessidade de se inquirir sobre vetores de diferença, resultantes de desigualdades e exclusões; pondero sobre a premência de se estar atento aos dizeres da forma; abordo a dimensão da violência na sexopolítica.

2 A entrevista foi publicada no dossiê “Sexualidades Disparatadas”, na Pagu, organizado por Richard Miskolci e Júlio Assis Simões (2007). Embora a primeira citação de Preciado no Brasil seja de Daniel Welzer-Lang (2001), acredito que a pioneira no Brasil a divulgar o trabalho da autora mais sistematicamente seja Berenice Bento (2006). Ver também Andréa Lacombe (2007) e Vera Paiva (2006). De Bourcier temos a alusão de Welzer Lang (2001) e de Bento (2006). Sobre o impacto que as autoras vêm causando, basta lembrar que na Espanha, o Manifesto Contrasexual foi recebido como uma das propostas mais inovadoras e provocantes da atualidade, e que Bourcier tem sido aclamada como a crítica queer mais contundente da França. Para análise da teoria queer, ver Louro (2001).

Manifesto contra-sexual O manifesto contra-sexual de Preciado elabora uma proposta de subversão dos mecanismos de poder cultural, social e político que construíram o que hoje se compreende como sexo e gênero. A escolha do termo “contra-sexualidade” se inspira em Foucault, para quem a forma mais eficaz de resistência à produção disciplinar da sexualidade seria a contraprodutividade, ou seja, a produção de formas de prazer-saber alternativas da sexualidade moderna (Bourcier, 2002). E a estruturação da narrativa num “manifesto” se deve à influência do Manifesto para os Cyborgs, de Donna Haraway (Haraway, 1991a, 1991c). A intenção é promover uma análise crítica da diferença gênero-sexo, produto do contrato social heterocentrado, cujas performatividades normativas vêm sendo inscritas nos corpos como verdades biológicas3. Esse contrato heterocentrado deve ser substituído por outro, o contra-sexual, no qual “corpos falantes” buscariam estabelecer procedimentos que possibilitem escapar da sujeição heteronormativa. Além de criticar a naturalização do sexo e do sistema de gênero, o contrato 500

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3 A distinção sexo-gênero teve como base o trabalho de Rubin (1986). Trata-se da idéia de que o sexo (biológico) seria moldado pela intervenção humana e social, realizada de forma convencional. Posteriormente, Rubin (1989) alertou para a necessidade de se analisar em sexualidade e gênero como categorias independentes, problematizando a vinculação entre gênero, sexualidade e subjetividade. Tratarei do assunto mais detidamente adiante.


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Dildo é um objeto desenhado para ser inserido na vagina e no ânus, se diferenciando dos vibradores; estes possuem modelos análogos aos dos dildos, mas com aparato tecnológico que os permitem vibrar. Utilizo aqui a definição de Maria Filomena Gregori (2004). 4

5 A idéia é de Gilles Deleuze e Félix Guattari (1998 apud Preciado, 2002, p.27): “O primeiro órgão a ser privatizado, colocado fora do campo social, foi o ânus.“

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contra-sexual propõe uma sociedade de equivalência, de sujeitos falantes que estabeleçam relações de forma contratual – a elaboração desse contrato, assim, deve muito ao saber prático e, também, contratual das comunidades sadomasoquistas. O manifesto contra-sexual defende a sexualização total do corpo. O que justifica a busca contínua de compreender a práxis das tecnologias do sexo, já que no espaço de paródia e de transformação plástica surgem as primeiras práticas contra-sexuais como possibilidade. Entre elas, a erotização do ânus, a utilização de dildos e o estabelecimento de relações sadomasoquistas4. Os discursos e práticas afirmam a igualdade de natureza e heterossexualidade. O sistema heterossexual surge como aparato social de produção do feminino e do masculino, que opera por divisão e fragmentação dos corpos, e que identifica partes desses corpos-fragmentos como centros naturais e anatômicos da diferença sexual. O ânus surge – no processo de fragmentação do corpo – como um dos primeiros órgãos a ser privatizado e colocado “fora do campo social”5. Em sua tarefa de identificar os espaços errôneos e falhos da estrutura – manifestos, por exemplo, nos corpos intersexuais e hermafroditas –, e reforçar os poderes das formas que desviam do sistema heterocentrado, a contra-sexualidade ressexualiza o ânus, que assume status de centro contra-sexual universal. A heterossexualidade é uma tecnologia social e não se pode pressupô-la como uma “origem fundadora”. Os princípios da contra-sexualidade destinam-se a desmontar o sistema heterocêntrico e subverter as práticas de produção da identidade sexual, os esforços se direcionando para o processo de re-significação do corpo. Ao eleger o ânus como centro contra-sexual universal, por exemplo, temos uma paródia das relações heterocentradas, paródia que subverte a própria base dessas relações, desnaturalizando-a e demolindo a ficção de origem. Nas novas biotecnologias de produção e reprodução do corpo – o corpo aparecendo como espaço da opressão e lócus de resistência –, as próteses assumem destaque especial. O dildo transforma em plástica a expressão sexual, desnaturalizando a noção tradicional de sexo e gênero. A contra-sexualidade se volta para as relações que se estabelecem entre o corpo e a máquina, justamente porque a natureza humana é um efeito da tecnologia social que reproduz os corpos. As práticas de inversão contra-sexual reafirmam a função das próteses. Não se trata, aqui, só do uso de vibradores, mas de converter qualquer parte do corpo em dildo. Muitas vezes, a utilização do vibrador é associada à teoria freudiana da carência de pênis; na teoria contra-sexual, o vibrador supõe uma operação de deslocamento do suposto centro orgânico da produção do prazer para um lugar externo ao corpo – ou para os espaços errôneos do corpo, como o ânus. Esse corpo-fragmento é re-significado: partes errantes são alocadas como centro, partes não associadas ao corpo se transformam em corpo. A ação de se retirarem – ou de se desestabilizarem – os centros de gravidade do corpo heterossexual subverte a própria forma de se pensar o corpo. No caso do dildo, por exemplo, qualquer coisa ou qualquer parte do corpo pode se transformar em dildo, inclusive o pênis. O dildo é a verdade da heterossexualidade como paródia, e assinala que gênero não é simplesmente performativo como desejava Butler (2004, 1998, 1990). O gênero é, antes de tudo, prostético, e se manifesta na materialidade dos corpos, puramente construídos e inteiramente orgânicos. O gênero se assemelha ao dildo, pois sua plasticidade carnal desestabiliza a distinção entre o imitado e o imitador, a verdade e a representação da verdade, a referência e o referente, a natureza e o artifício, e entre órgãos sexuais e as práticas de sexo. Ao se distanciar cada vez mais do referente anatômico, o dildo contra-sexualiza 501


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o corpo, fustigando as ilusões de origem. Quando algumas teóricas lésbicas criticam a utilização do dildo por sua cumplicidade com os signos de dominação masculina, se prendem apenas ao vibrador como pênis no sexo, e olvidam os efeitos acima mencionados, esquecendo o processo de deslocamento e de reversibilidade que possibilita múltiplas combinações. O caráter subversivo do vibrador está relacionado às re-contextualizações das práticas queer. Preciado elabora, ainda, crítica às tecnologias do sexo, seja à heteronormatividade das intervenções dos seres intersexuais, seja às cirurgias realizadas nos transexuais, demonstrando como essas intervenções manifestam um olhar masculino. A autora, entretanto, não essencializa a tecnologia como simples efeito da dominação masculina – o que obnubilaria as dimensões e as possibilidades contra-sexuais dessas mesmas tecnologias –, o movimento devendo ser o oposto: o de compreender o sexo e o gênero como tecnologia.

Zonas queer Bourcier analisa as configurações dominantes de ação biopolítica da contemporaneidade – que ela e Preciado denominam de sexopolítica. A busca é a de compreender zonas de pensamento, focalizando o olhar em formas de expressão como: o cinema pornográfico, o sadomasoquismo, a construção das figuras do travesti, do transgênero e do transexual. As zonas queer constituem – acredita a autora – espaços de intervenção privilegiados. O polêmico filme Baise-moi, de Virginie Despentes e Coralie Trinh-Thi (2000), e as películas do diretor independente LaBruce, são fundamentais para a discussão empreendida6. O cinema desses diretore(a)s e as reações de lesbofobia e de homofobia que suscita levaram Bourcier a aprofundar as possibilidades e as limitações da pornografia como instrumento de liberação e de questionamento da sexualidade. Foucault (1985) afirmou que a função da pornografia não era a de liberar as pulsões, mas a de construir as identidades sexuais. Em suas análises sobre a história da sexualidade, já havia demonstrado que o falar sobre sexo por si não se colocava contra a repressão. A repressão sexual não era o único e nem o principal dispositivo de controle da sexualidade, e a miséria sexual não derivava só da repressão. A questão era ver como se organizavam os mecanismos positivos que produziam a sexualidade. O discorrer de forma livre sobre o sexo pode gerar a mesma miséria sexual atribuída à repressão. Na verdade, o discurso sobre sexo surgiu como tecnologia que naturalizou o casal heterossexual e a heterossexualidade; o discurso, portanto, inventa o sexo. A pornografia – da forma como a conhecemos na atualidade – é produto de regime de produção visual que surge à época da Ilustração e se desenvolve com o positivismo. Ou seja, a pornografia nasce num momento de produção e difusão das análises taxionômicas dos comportamentos humanos, época em que se multiplicam as publicações detalhadas sobre tipologias, sobre as obscenidades e perversões sexuais, e se irrompem as coleções privadas de conteúdo erótico. Aparecem, nesse período, as primeiras publicações que buscavam decodificar e decifrar a sexualidade feminina, sempre do ponto de vista masculino e num processo que objetifivava o corpo feminino. Como se sabe, na construção da mirada pornográfica moderna, a psicologia e a medicina foram fundamentais. Uma película pornô propõe pedagogias de sexualidade e opera normalizando e naturalizando as relações entre os corpos. A pornografia, portanto, cria modelos de sexualidade; assinala como devemos utilizar os órgãos; afirma quais são os órgãos 502

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6 Entre os filmes de LaBruce, Bourcier cita Super 8 et ½ (1994) e Skin Flick (2000).


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sexuais e quais não são; sustenta em que situações, com quem e em qual lugar devem ser utilizados. Não se trata, então, somente de retratar a realidade do sexo, mas de uma produção performática que cria o que almeja descrever. A existência de um regime pornográfico monopolizador, que se sustenta num cine pornô hetero, não nubla, assevera Bourcier, a possibilidade de existirem outras formas de ações, de vivências e de representação das práticas sexuais. A autora acredita que está surgindo um novo tipo de discurso pornográfico, por ela denominado de “pós-pornografia”, com diretas conexões com os pressupostos queer. E, com base na noção da sexualidade como performance, identifica elementos da pós-pornografia em novas propostas fílmicas – como as do já citado filme Baise-moi. Esse filme utiliza alguns recursos narrativos das películas pornôs modernas, mas de uma perspectiva que neutraliza seus efeitos, desestabilizando a mirada heterocentrada. Nele se processa uma desnaturalização do discurso pornográfico que ocorre por meio de uma inversão dos papéis de gênero e de uma releitura dos motivos temáticos habituais. Tais experiências rompem, sempre segundo a autora, com o regime de produção sexual hegemônico e buscam criar novas formas – em novas performances – de experiências sexuais. Se a pornografia moderna é um regime de produção da verdade sobre o sexo, a pós-pornografia indica uma ruptura nos códigos da mirada tradicional do gênero, propondo mudança de papéis sexuais que acaba por colocar diretoras e atrizes como agentes da produção sexual. A pós-pornografia não se constitui mais num campo reservado a homens. Ao desnaturalizar o discurso pornográfico por meio de uma inversão dos papéis de gênero e de uma reinvenção dos motivos temáticos, a pós-pornografia surge como gesto político que se conecta às estratégias queer de reapropriação de noções abjetas, conferindo-lhes novos significados. Com o título Baise-moi, as diretoras se reapropriam de uma frase, adstrita a um cenário heterossexual, que os homens gostam de ouvir das mulheres para confirmar seu desejo e seu poder; Nadine e Manu, as duas protagonistas do filme, e Despentes e Trinh-Thi, por amálgama, ressignificam essa fórmula consagrada. Elas se reapropriam da sentença pornô, mas desabilitam a autoridade e o privilégio da masculinidade dominante, pois Baise-Moi quer dizer Fuck me! e também Fuck off! O filme opera uma re-conversão pelas mulheres na economia da sexualidade. O pornô é uma celebração hiperbólica e hiper-realista das normas da heterossexualidade. O realismo pornográfico – que é uma ficção realista como as outras, uma organização da representação, e não a “realidade” do sexo – parece anunciar uma mudança de caminhos. A pornografia tradicional está em plena desconstrução, já que suas funções principais – a renaturalização da diferença sexual, o congelamento das identidades de gênero e das práticas sociais – são reconfiguradas. Despentes e Trinh-Thi se apossam dos códigos de representação pornográfica e os desnaturalizam. Elas se tornam agentes de representação pornô, e não mais seus objetos; quando filmam como homens, embaraçam o essencialismo masculinista segundo o qual a pornografia é a expressão naturalmente masculina. Se as mulheres podem filmar pornôs como os homens, invalida-se a oposição entre homens e mulheres, entre os que amam o pornô e os que amam o erotismo. Como vimos, o contrato contra-sexual é herdeiro do saber prático – e também contratual – das comunidades sadomasoquistas, e é sobre essa experiência que Bourcier direcionará seu olhar. O desejo dessas autoras, como se nota, é de expor os leitores aos poderes subversivos e às limitações das subculturas do corpo. Em 19 de fevereiro de 1997, a Corte Européia de Direitos Humanos começa a legislar sobre o sadomasoquismo como prática sexual desviante, se debruçando sobre o caso de Laskey, Jaggard e Brown, três ingleses que foram condenados ao cárcere privado por práticas sadomasoquistas. Os policiais britânicos entraram em seus domicílios para confiscar as provas das seções de S/M. O evento passou a se denominar caso spanner em seguida. No desenrolar jurídico do caso, os ingleses argumentaram que a pena a eles conferida contradizia a própria Convenção dos Direitos Humanos e constituía uma ingerência de uma autoridade pública na vida privada dos acusados. O problema jurídico em questão não era saber se a ingerência na vida privada era legítima, dado que a lei prevê situações nas quais ela é justificada, sobretudo diante do argumento de proteção à saúde e à moral (parágrafo 2 do artigo 8). O ponto era o caráter de ingerência numa sociedade democrática. E mais, uma das argumentações utilizadas foi a de que as práticas S/M foram efetuadas sem a adequada atenção médica. 503


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Tal evento evidenciou a dimensão política do sadomasoquismo – como exercício contratual diferenciado – demonstrando como essas práticas se colocam contra as instâncias que legislam sobre os corpos. As práticas sexuais diferenciadas, em situações tidas como não habituais, em público, com muitas pessoas, em lugares distintos do quarto do casal hetero, se defrontam com o habitual confinamento da sexualidade na esfera privada e doméstica. A ressexualização se traduz por uma relocalização e uma ressocialização que faz emergir novas dimensões sociais, políticas e epistemológicas do sexo. Além da análise da pornografia e do sadomasoquismo, a autora realiza uma abordagem das figuras do travesti, do transgênero, do transexual, salientando aspectos como as origens da regulação médico-jurídica da “transexualidade”, e as novas teorias sobre a performatividade dos gêneros. Em Sexpolitique. Queer zones 2, Bourcier volta a examinar a pornografia e o sadomasoquismo, abordando também outros temas, como o sujeito feminino unitário e a polêmica da utilização do véu. Mais próxima dos estudos póscoloniais, esses temas tornam-se relevantes na crítica sobre o desejo de abolir as diferenças e a vontade civilizadora francesa, ou seja, sobre o desejo de exercer um cosmopolitismo civilizador como forma de controlar a diversidade. A autora elabora, ainda, crítica ao que denomina de “universalismo unissexo de Badinter”. Todavia, talvez um dos momentos instigantes de Sexpolitique seja sua crítica da conhecida análise de Bourdieu da “dominação masculina”. A autora almeja romper com o que denomina de “descrição reificante da dominação masculina”, já que para ela a formulação de Bourdieu se ancora numa concepção dualista de gênero, que acaba por colar sexo e genital, e genital e gênero. A análise de Bourdieu da dominação masculina se sustenta, na percepção de Bourcier, no sistema binário da hierarquia entre gêneros. Quando Butler redefiniu os gêneros como performance e performatividade, interrogou-se sobre a produção e reprodução do sistema sexo/gênero normativo e binário, concluindo que, da mesma maneira que sexo e sexualidade não são a expressão de si ou de uma identidade, mas, o efeito do discurso sobre o sexo – um dispositivo disciplinar, portanto –, o gênero também não é uma expressão do sexo. Se a feminilidade não deve ser necessária e naturalmente a construção cultural de um corpo feminino; se a masculinidade não deve ser necessária e naturalmente a construção cultural do corpo masculino; se a masculinidade não é colada aos homens e se não é privilégio dos homens biologicamente definidos; é porque o sexo não limita o gênero, e o gênero pode exceder os limites do binarismo sexo feminino/sexo masculino (Bourcier, 2005)6. Todo gênero é uma performance de gênero, ou seja, uma paródia sem original. Bourcier salienta que, na análise de Bourdieu da dominação masculina, existe uma dissociação da força simbólica que possibilita a dominação e a força da performatividade de gênero. Com efeito, se a força da performatividade que preside os gêneros é derivada, se os gêneros são re-significáveis, então as características da força performativa não são as mesmas da força simbólica que impõe a dominação masculina. Ao contrário, o exercício da dominação está localizado na tentativa de colocar limites na força performativa. Na abordagem de Bourdieu, as mulheres kabyles e suas estratégias simbólicas são anuladas e insuficientes para subverter a dominação masculina; mas, se é verdadeiro que a força performativa é reversível, ela pode suscitar uma variedade de locais de resistência e de apropriação/derivação da construção de identidades. A homogeneização das mulheres é um universalismo mascarado, pois as mulheres

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7 Gênero, para autoras como Butler ou Bourcier, deve ser compreendido como ordem social que antecede ao sexo, e que fornece possibilidades de leitura e de atuações para o próprio sexo. Assim, gênero não se limita ao sexo, na medida em que ele transita de um corpo ao outro independente do sexo. O que Bourcier enfatiza nessa frase é a possibilidade de tipos de identidades em que o gênero não decorra do sexo e em que o desejo e as práticas não decorram nem do sexo nem do gênero, como manifesto nos corpos queer .


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não são um grupo explorado, mas uma coalizão política a construir, e que não se define unicamente pelo gênero ou pela opressão de gênero.

Corpos queer A categoria gênero surgiu nas discussões sobre a Mulher, e sobre mulheres, como sujeitos históricos, sempre na busca de interrogar a universalidade atribuída ao Homem; categoria esta pensada como constituída por relações sociais baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos, e que se instituíam no interior de relações de poder. Gênero era, enfim, a organização social da diferença sexual. A diferença sexo-gênero – ou seja, a relação de gênero e as diferenças percebidas entre os sexos – pressupunha a antecedência do sexo. Tal pressuposição, no entanto, acabava por colocar o sexo como elemento pré-discursivo, como não tardou em assinalar certa crítica feminista que, ancorada em análises de autores como Foucault e Laqueur, passou a refletir sobre o caráter histórico do sexo. Tal movimento permitiu afirmar que, em realidade, o sexo é resultado discursivo, e que o gênero constituía o sexo. Butler, por exemplo, foi uma das autoras mais incisivas a questionar a categoria gênero como interpelação cultural do sexo, afirmando que gênero não está para cultura assim como o sexo está para a natureza. Questionou, portanto, a constituição pré-discursiva do sexo. Ademais, argumentou a autora, a distinção entre sexo e gênero acaba por manter o binarismo da complementaridade categórica estável entre homem e mulher – o qual reproduz a lógica da normatividade heterossexual. A diferença sexogênero deveria, pois, ser criticada, tratando-se de redargüir concepções que estabeleçam idéias de identidade estável de gênero. Gênero para Butler seria performance social, e a performatividade do gênero é um efeito do discurso – o sexo consistiria, portanto, num efeito do gênero. As regras discursivas da heterossexualidade normativa produzem performances de gênero, que são reiteradas e citadas. A própria sexualização dos corpos deriva de tais performances. No processo de reiteração das performances de gênero, algumas pessoas, fora da matriz heterossexual, passam a ser consideradas como abjetas. A política queer consiste em perturbar os binários de gênero e brincar com as menções feitas sobre gênero – espaço privilegiado para as teorizações e práticas queer. Contudo, a crítica à distinção sexo-gênero acabou por desestabilizar tanto a categoria do sexo biológico quanto a de identidade de gênero – como apontaram Toril Moi (2001) e Íris Marion Young (2003). Se essa desestabilização possibilitou pensar na pluralidade de identidade e práticas, aumentou também sua abstração em relação à corporeidade e, simultaneamente, tornou o conceito de gênero virtualmente inútil para teorizar a subjetividade e identidade (Moi, 2001). Dentro desse quadro, surgem as obras de Preciado e de Bourcier, simultaneamente herdeiras de Butler, e buscando algo mais do que uma teoria de performatividade que se sustenta num modelo de linguagem fundamentada em atos de fala; atuantes de uma política queer que aposta nas possibilidades subversivas dos corpos anormais (abjetos, estranhos, queer), e em busca de uma materialidade dos corpos. Donde a aproximação às técnicas que constroem os corpos (vibradores, pornografia, cinema, cirurgias), e a necessidade de historicizar as categorias de sexo, carne, corpo, biologia e natureza – tal como conclamava Haraway (1991b). O que torna o conceito de sexopolítica e a importância conferida ao corpo questões centrais nos argumentos das autoras. Sexopolítica é a configuração dominante da ação biopolítica no capitalismo contemporâneo (Preciado, 2005a). O sexo – os denominados órgãos sexuais, as práticas sexuais e os códigos de masculinidade e feminilidade – é elemento fundamental dos cálculos do poder, já que o sexo e as tecnologias de normatização das identidades sexuais são agentes de controle da vida. A heterossexualidade, concebida como regime político de administração dos corpos e gestão da vida, conforma-se numa tecnologia destinada a produzir a normalidade, a produzir corpos héteros. Porém, o corpo é múltiplo e plástico, possuindo uma pluralidade de expressões que não podem se reduzir ao masculino e feminino. A categoria gênero foi inventada para restringir essa multiplicidade à masculinidade e feminilidade.

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Há, portanto, um vínculo entre produção de identidades e a fabricação de certos órgãos como sexuais e reprodutores. O sexo se converte num objeto central da política e da governabilidade. Daí a necessidade de regular, controlar e normalizar os corpos – definir a normalidade e estabelecer o que se definiria como anormal. Esse controle depende de uma produção tecnológica – fluxos de silicone, hormônios, técnicas cirúrgicas –, além de um fluxo de representações. Como nem tudo circula de forma previsível e constante, a apropriação pelos corpos não é uniforme, existindo deslocamentos dos órgãos nos corpos e a reinvenção constante dos corpos. O corpo está longe de ser o efeito de um sistema fechado de poder ou de idéias que atuam na matéria passiva; ao contrário, pode-se defini-lo como o nome de um dispositivo sexopolítico – a medicina, a pornografia, os vibradores –; dispositivo este que é re-apropriado pelas minorias sexuais, pelos seres “abjetos” e “anormais”.7 O corpo não é um dado passivo de um biopoder, mas a potência que torna possível a incorporação prostética dos gêneros; a sexopolítica não é apenas um lugar do poder, mas o espaço de uma criação onde se sucedem e se justapõem homossexuais, movimentos feministas, transexuais, inter-sexuais, transgêneros. Esses corpos desestabilizam a heterossexualidade e a própria economia do poder. As tecnologias que objetivam produzir corpos normais e a normalização dos gêneros são ressignificadas. Se os corpos queer carregam a marca dessas tecnologias de normalização – como fracasso ou como resíduo – podem intervir nos dispositivos biotecnológicos de produção da subjetividade sexual. Nesse contexto, os corpos e as identidades anormais são potências políticas – potências que tornam possível a incorporação prostética dos gêneros. Bourcier e Preciado salientam, pois, as reapropriações e reconversões dos discursos – da medicina ou da pornografia, por exemplo – que construíram corpos queer. A ênfase recai sobre a re-apropriação das disciplinas dos saberes/poderes sobre os sexos, sobre a rearticulação e reconversão das tecnologias sexopolíticas da produção dos sexos. Os corpos queer se rebelam contra a própria construção de corpos normais e anormais, subvertendo as normas de subjetivação da sexopolítica. O queer promove uma virada da força performativa dos discursos justamente na reapropriação das tecnologias sexopolíticas de produção de corpos anormais, e entra no cenário atual como proposta de transformação na circulação dos discursos e na mutação dos corpos.

Temas estranhos e risadas inconvenientes Parece evidente, depois do exposto, que as narrativas de Preciado e de Bourcier primam por uma infidelidade à Academia (Bourcier, 2005), “infidelidade” que pode ser observada em, pelo menos, três dimensões que gostaria de ressaltar: a postura extremamente crítica e polêmica, os temas elegidos e a própria forma de dizer. O caráter crítico e polêmico sugere a “infidelidade” em relação às próprias fontes de inspiração. Poucos autore(a)s escapam ileso(a)s da escrita. Butler é um dos primeiros alvos. Como já mencionei, Preciado e Bourcier afirmam que as análises queer ortodoxas em termos de gênero como performance são insuficientes para entender os processos de incorporação de sexo e gênero. Ao acentuar a possibilidade de cruzar os gêneros por meio da performance teatral, Butler havia subestimado os processos corporais e de transformação sexuais presentes nos corpos transexuais e transgenéricos, mas também as técnicas 506

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Talvez seja interessante efetuar uma comparação entre Toril Moi e Preciado e Bourcier, buscando verificar como o corpo é pensado por essas autoras. Se todas chegam à conclusão da importância e centralidade do corpo, parece que os significados de corpo são diferenciados (refiro-me, obviamente, à diferença entre as autoras queer por mim analisadas e a proposta de Toril Moi), bem como diferentes são os caminhos teóricos percorridos pelas autoras. 8


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estandardizadas de estabilização de gênero e de sexo que operam nos corpos normais9. A crítica transgenérica colocou em pauta as transformações corporais, sexuais sociais e políticas que ocorrem no espaço público. Outro alvo das críticas é Foucault. A noção de sexopolítica, apesar de se inspirar nesse autor, questiona a concepção política segundo a qual o biopoder só produz disciplinas de normalização e acaba por determinar as formas de subjetivação. Nas narrativas de Preciado e de Bourcier, os corpos queer aparecem como potências políticas, e não como simples efeitos dos discursos sobre o sexo. Ademais, a própria forma de manifesto, tal como elaborada por Preciado, a despeito de se fundamentar na contraprodutividade proposta por Foucault, não compartilha a desconfiança do autor de Vigiar e Punir em relação à identidade como lugar de ação política. Por fim – e só para ficarmos em três das principais referências teóricas de Preciado e Bourcier, fundamentais na economia geral de suas obras, como se depreende, por exemplo, da própria discussão da fragmentação do corpo –, o outro alvo: o autor de Anti-Édipo. Segundo Preciado, Deleuze criticava o que denominava de identidade “homossexual molar” porque pensava que promovia o gueto gay, e idealizava a homossexualidade molecular, que lhe permitia fazer das boas figuras homossexuais – de Proust ao travesti afeminado – exemplos do processo de “devir mulher”. Falar em homossexualidade molecular possibilitou a Deleuze dissertar sobre a homossexualidade em vez de questionar suas premissas heterossexuais. Além desse caráter polêmico, os temas recorrentes são aqueles muitas vezes evitados pela Academia e pelo feminismo tradicional: jogos sexuais, prostituição, sexualidade anal, designação do sexo dos meninos inter-sexuais, operações de mudança de sexo, sadomasoquismo e fetichismo. Temas e objetos “menores”, como vibradores, pin-ups, filmes pornôs, a “cultura de massa”, freqüentemente desprezados, ganham visibilidade, e sobre eles se voltam os olhares intrigantes das autoras. Não obstante o impacto e a importância desse novo direcionar da mirada, talvez seja, sobretudo, a forma de dizer o que mais singulariza as narrativas em análise. Butler (1990) afirmou, logo no prefácio de Gender Trouble, que rir de categorias sérias é indispensável para o feminismo; para Preciado e Bourcier esse riso de que fala Butler está no centro das argumentações. O movimento de perceber o corpo em mutação, sustentando uma hipersexualização e um hiperconstrutivismo do corpo e de seus órgãos sexuais, parece assinalar com cores fortes a dimensão de paródia das performances de gênero. Paródia que, como a própria sinonímia indica, não se pode separar do riso. E basta uma pequena passada de olhos nos títulos dos capítulos dos livros analisados para verificarmos a importância do riso e do humor. No Manifiesto Contra-sexual: Dildotectónica, La lógica del dildo o las tijeras de Derrida, Breve genealogía de los juguetes sexuales o de cómo Butler descubrió el vibrador, De la filosofía como modo superior de dar por el culo; em Queer zones: Baise-moi encore, Ceci n’est pas une pipe: Bruce La Bruce pornoqueer; e em Sexopolitique. Queer zones 2: Dirty talk, Nique la Rep. Dominator contre Madonna, Il y a une vie aprés l ‘ éjac faciale, Nique ton genre. ZAP la psy. O riso aqui se refere a um sentido de humor que questiona a seriedade e a normalidade da vida. No momento em que Preciado e Bourcier colocam o riso no centro das narrativas, parecem sustentar que, quando o insulto se transforma em elogio; quando os corpos anômalos advogam normalidade; quando a estética se confunde; quando os corpos mudam sua lógica e exibem a centralidade de partes e órgãos antes menoscabados; então, o riso queer emerge sustentando que o COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Pelo que se depreende da argumentação de Preciado e Bourcier, a subestimação do corpo se constitui numa particularidade teórica de Butler, a despeito das tentativas efetuadas em Boddies that Matter e Undoing Gender. 9

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poder que constrói corpos normais é falho, incongruente. O humor surge como atos de percepção que transcendem a realidade da vida ordinária, mostrando, muitas vezes hiperbolicamente, o abalo das re-configurações. Não se trata, portanto, de fugir da realidade, mas de questioná-la, de reinventar e perceber as reinvenções. Narrativas com tamanha verve crítica, textos que se expõem tão fortemente, tornam-se mais vulneráveis às críticas. Discorrerei um pouco mais sobre essa “exposição” ao final deste ensaio, mas, antes de concluir, gostaria de fazer algumas observações sobre: 1) a premência de se inquirir sobre os vários vetores da diferença; 2) a necessidade de se estar atento aos dizeres da forma; 3) a dimensão da violência na sexopolítica. 1) Poderíamos nos questionar sobre a possibilidade de a experiência queer, no singular, estendida para todos os lugares e conjunturas – e sem delimitação mais precisa sobre os contextos de nacionalidade e de raça, por exemplo –, acabar naturalizando aquilo que se almeja desnaturalizar. Essa possibilidade conduz a algumas indagações. A experiência do transexual de hoje, ainda para exemplificar, seria equivalente à do gay universal, ou seja, a transexualidade independeria dos contextos locais e teria uma aplicabilidade universal? As experiências queer seriam as mesmas em todos os lugares? Quais as dimensões de uma das principais fontes de identidades do mundo moderno – a nação – e quais seus efeitos na experiência queer? Dito de outra forma: qual seria a relação entre o queer e os dilemas identitários de nação ou de raça? Seguindo o próprio movimento teórico de Preciado e Bourcier, podemos elaborar, ainda, as seguintes questões: como pensar as tecnologias que constroem corpos racializados? (ver, por exemplo, a abordagem de hooks (1997) sobre a representação da sexualidade feminina negra). De que maneira as biotecnologias são reinventadas no que se refere à raça? E como elas atuam? Enfim, estou indagando sobre o lugar de variantes como raça e nação na teoria queer10. Esta questão é fundamental para a teoria queer, já que o descuido com as diferenças, e com a política da diferença, implica, muitas vezes, universalizar determinados aspectos – cultura, raça, classe, orientação sexual –, apagando as especificidades dos sujeitos. Sobre esse aspecto, inclusive, Butler (1998) já havia afirmado que gênero – que nem sempre é constituído de maneira coerente e consistente nos diferentes contextos históricos – seria intersectado por modalidades raciais, étnicas, sexuais, regionais e de classe das identidades discursivamente constituídas. Sendo assim, é impossível separar gênero das intersecções políticas e culturais por meio das quais ele é invariavelmente produzido e mantido. Se no Manifiesto Contra-Sexual, Preciado não aborda direta ou extensamente tais questões, em trabalhos posteriores está atenta ao que denomina de sobrecruzamento de opressões (Preciado, 2007). A questão, alerta a autora, não é apenas a de ter em conta a especificidade racial ou étnica da opressão como uma variante a mais, junto à opressão de sexo e gênero, mas a de inquirir sobre a constituição mútua de gênero e raça (Preciado, 2005b). Bourcier (2005), por sua vez, adverte contra certa vontade civilizadora francesa e o desejo de exercer um cosmopolitismo civilizador como forma de controlar a diversidade. Da forma como leio, as autoras sinalizam que poderemos esperar, em obras futuras, análises mais detidas nesses aspectos. 2) Uma proposta teórica que não queira apenas girar em torno de si, abdicando sua vocação crítica, tem de enfrentar a especificidade dos discursos e das linguagens. O cinema não é um discurso ideológico entre outros; tampouco, apenas um documento histórico-social. Não se trata, portanto, de apreendê-lo com um discurso à parte, mas de percebê-lo em sua particularidade, de maneira 508

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10 São diversas as teóricas que procuram compreender estas intersecções, como hooks (1990) e Young (1990).


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11 Acompanho, aqui, além do texto de Vance (1989), a leitura de Gregori sobre as dimensões de prazer e perigo (2004, 2003).

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que o objetivo principal não se centre exclusivamente no estudo dos temas tratados, mas no estilo, nas relações intrínsecas entre forma e conteúdo (Pereira, 2006). Os aspectos socioeconômicos e a posição do autor – seu lugar diferencial – , assim sendo, necessitam ser localizados como integrantes do texto ficcional. Nessa perspectiva, cabe a indagação: a “pós-pornografia”, tal como visualizada por Bourcier nos filmes de Despentes e Trinh-Thi e de LaBruce, consegue romper com a linguagem tradicional da pornografia? A maneira de contar se altera? Ou se perpetua a forma de narrar da pornografia tradicional, apenas se alterando centralidade, gênero e tipos de personagens? Acredito que os textos de Bourcier, de uma forma ou outra, abordam – ou tocam – os aspectos acima salientados; o que estou sugerindo nessa defesa da necessidade de uma maior atenção aos dizeres da forma é que talvez uma abordagem que insista mais na especificidade fílmica possa radicalizar tanto a crítica das películas pornôs tradicionais, como apresentar a mirada queer da pós-pornografia. 3) Vance (1989), problematizando a associação direta da sexualidade aos modelos coercitivos de dominação – assim como a articulação desses modelos a posições estáticas de gênero –, afirmou que a sexualidade envolve as dimensões de prazer e de perigo11. Prazer porque há uma promessa de erotismo e uma busca de novas alternativas eróticas em transgredir as restrições impostas à sexualidade quanto tomada apenas como exercício da reprodução. Perigo na medida em que é importante refletir sobre aspectos como o estupro e o abuso como elementos do exercício da sexualidade. Há, contudo, alertou Vance, certa tendência em dissociar o prazer do perigo, tomando-os disjuntivamente, sem examinar as conexões das duas dimensões. No sadomasoquismo, por exemplo, há a disposição a uma concepção de prazer como força libertadora, sobretudo quando submetido ao consentimento entre parceiros; o perigo sendo tratado como se o consentimento, como um ato de vontade, garantisse na tradução em prazer, olvidando-se, assim, a dimensão da violência. Um exemplo pode ajudar a tornar mais claras as relações entre prazer e perigo. Entre os anos de 2004 e 2005, realizei uma pesquisa, direcionando o olhar na “pornografia heterossexual”. Percorri, na época, o caminho de divulgação e de trânsito desses filmes, como bancas de revistas, internet, sites, grupos de discussão. A análise do material que consegui e da experiência vivida nesse período me sugeriu que essas películas trabalhavam com a violação como um pressuposto – utilizei, então, a definição de violação de Segato (2003). A pornografia heterossexual se constituía em performances da violação, tratando-se, pois, de um tipo de cinema que alegoriza a violação, transformando-a em objeto de fantasia. O prazer sinalizado – pelo menos nos filmes que consegui ver e analisar – é aquele que possibilita, no nível da fantasia, a resposta de um sujeito masculino que performatiza a violação sobre o sujeito feminino. Dessa maneira, a violência se colocava como estrutura da pornografia. Concentrar-me em filmes pornôs heteros me possibilitou verificar o papel da violência – ou do perigo – na pornografia, mas a focalização num tipo de cinema acabou por demonstrar os limites desse tipo de análise; limites que podem ser observados na abordagem de Bourcier e em seu direcionamento a outros experimentos fílmicos (na póspornografia). Contudo, concentrar a análise na subversão não estaria colocando em segundo plano a dimensão da violência, tanto na pornografia quanto no sadomasoquismo? As práticas queer mostram que as subversões surgem justamente nas falhas da cadeia de repetição, sugerindo outras repetições que questionam a prática reguladora de identidade. Até que ponto, então, dirigir o olhar ao movimento de subversão não acabaria por invisibilizar traços e conteúdos violentos envolvidos em 509


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práticas sadomasoquistas e na pornografia? Dito de outro modo, as subversões queer implicariam – para utilizar os termos de Vance – uma concentração no prazer e uma invisibilidade do perigo? De que forma a pós-pornografia e as atuais experiências S/M se afastam – ou se relacionam – na gramática de gênero da violência? Os pontos assinalados como possíveis ressalvas ao pensamento de Preciado e Bourcier já vêm sendo – como antes sugeri – desenvolvidos pelas próprias autoras. Ainda que acredite que questões como a dimensão da violência na sexopolítica ou a possibilidade de uma universalização da experiência queer que desconsidere os contextos locais e raciais devam ser mais bem esclarecidos e mais enfocados, noto o esforço e o movimento das autoras nessa direção. De qualquer maneira, a leitura de Preciado e Bourcier seria interessante não só pelas dimensões que venho assinalando até aqui. Devemos acrescentar, além disso, que as autoras: 1) alertam, na própria ação de perturbar, que a utilização sem questionamentos de autore(a)s consagrado(a)s é prejudicial ao próprio pensamento queer; 2) salientam a necessidade da mirada queer (crítica, perturbadora) voltar-se para todos os autore(a)s, inclusive para as fontes de inspiração e para os principais interlocutore(a)s; 3) ressaltam que o movimento de apenas “aplicar” a teoria queer implica se distanciar de qualquer coisa que possa se denominar queer; 4) assinalam a instabilidade do próprio queer – que deve ser também um dos alvos das ações de distorcer, transgredir, estranhar, perturbar. O que é possível concluir, enfim, diante das narrativas de Preciado e Bourcier? Temas menores, estranhos, ditos de forma inadequada, num tom inapropriado. Evidentemente, tais considerações só poderiam ser expressas dentro do ponto de vista de um olhar que as próprias autoras desejam evitar e subverter. Se os discursos causam estranheza por parte de pensamentos mais ortodoxos ou conservadores, tal fato, ao contrário de desqualificar as autoras, indica suas características: elas perturbam, desestabilizam, incomodam; invertem miradas, criticam cânones, aborrecem os mais acomodados; subvertem a própria forma de narrar e de polemizar. Estranhar, subverter, perturbar, desestabilizar – parecem reafirmar, insistente e hiperbolicamente, as autoras – são marcas da própria experiência queer. Disse anteriormente que todos os que se expõem abrem flancos para futuras críticas. Mas, acredito que essa “exposição” realça os pontos fortes e as fragilidades das obras, e esse “realçar” permite uma dimensão reflexiva, autocrítica, constante e intensa – características que conferem à teoria queer sua vitalidade. O ato de se expor talvez seja um grande convite ao debate; e talvez as críticas, as risadas constantes e os temas polêmicos devam ser percebidos como uma incitação ao diálogo. Almejei, de alguma forma, responder a essa incitação neste ensaio; no entanto, a intenção foi menos a de me movimentar pelos possíveis flancos, na busca de apontar limites ou expressar discordâncias, do que a de indicar as potencialidades das abordagens de Preciado e Boucier – teóricas queer centrais nos debates contemporâneos sobre corpo, sexo e gênero.

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dossiê

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Palabras clave: Cuerpo. Sexo. Queer. Género. Recebido em 20/01/08. Aprovado em 06/06/08.

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artigos

Enseñando investigación cualitativa en salud: evaluación de un curso de formación en la perspectiva de los alumnos

Francisco Mercado-Martínez1 Luz María Tejada-Tayabas2 Elizabeth Alcántara-Hernández3 Abel Mercado-Martínez4 Irma Xóchitl Fuentes-Uribe5 Brenda Trigueros-Becerra6

MERCADO-MARTÍNEZ, F. et al. Teaching qualitative health research: evaluation of an educational program based on the students´ point of view. Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.12, n.26, p.515-26, jul./set. 2008. Several educational strategies have been used to teach qualitative research. However, few studies have evaluated its processes and results, particularly from the participants´ point of view. This paper reports on an evaluation of a specialization in qualitative health research from the student’s perspective. The course was carried-out on four different occasions and its evaluation was a qualitative one. Approximately eighty health and social science professionals attended and evaluated the course. Triangulation methods were used for data gathering: an open-ended questionnaire, individual interviews, and participants´ feed-back; a modified SWOT method was also used. Data was analyzed using content analysis. From the participants´ point of view, the course allowed them to acquire knowledge on qualitative research approaches and methods and, to lesser extent, on how to write a research project. Participants encountered difficulties: lack of time, limited resources as well as lack of support. Several strategies are suggested for improving the course.

Key words: Qualitative research. Teaching. Health. Evaluation.

Se implementaron numerosas intervenciones educativas visando la capacitación en pesquisa cualitativa. No obstante son escasos los trabajos que valoran sus procesos o resultados, sobre todo considerando la perspectiva de los participantes. Este estudio valora un curso de especialización en pesquisa cualitativa en salud a partir de la perspectiva de los alumnos. El curso se realizó en cuatro ocasiones, siendo su valuación de tipo cualitativo. Aproximadamente ochenta profesionales de salud y ciencias sociales participaron del curso. Para la obtención de los datos se utilizó triangulación de métodos: cuestionarios con preguntas abiertas, entrevistas individuales y la retroalimentación de los participantes. Una variante del método SWOT fue utilizada. Se empleó el análisis de contenido para el tratamiento de las informaciones. Según los alumnos, el curso les permitió adquirir conocimientos y aprender teorías sobre pesquisa cualitativa y, en menor escala, elaborar proyectos de pesquisa. También se refirieron a dificultades y obstáculos, como falta de tiempo, de recursos y de apoyo. Se sugieren varias estrategias para perfeccionar el proceso de formación valuado.

Palabras clave: Investigación cualitativa. Enseñanza. Salud. Evaluación.

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1 Médico. Centro Universitario de Ciencias de la Salud, Universidad de Guadalajara. Sierra Mojada, n. 950 CP 44340 Col. Independencia Guadalajara, Jalisco México. fjaviermercado@ yahoo.com.mx 2 Licenciada en Enfermería. Facultad de Enfermería, Universidad Autónoma de San Luís Potosí. 3 Médica. Centro Universitario de Ciencias de la Salud, Departamento de Salud Pública, Universidad de Guadalajara. 4 Licenciado en Sociología. Centro Universitario de Ciencias Económicas y Administrativas, Universidad de Guadalajara. 5 Licenciada en Administración. Centro Universitario de Ciencias Económico Administrativas, Universidad de Guadalajara. 6 Médica. Centro Universitario de Ciencias de la Salud, Universidad de Guadalajara.

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Introducción La investigación cualitativa (IC) ha sido objeto de creciente atención en diversas áreas y disciplinas tanto en países desarrollados como en vías de desarrollo (Denzin, Lincoln, 2000). El tema no ha pasado desapercibido en el área de la salud (Pope, Mays, 2006). Cada vez más se publican estudios cualitativos en revistas médicas y se organizan e implementan actividades de formación, docencia y capacitación en instituciones educativas y sanitarias (Amescua, Garricondo, 2002), además de que numerosas agencias de financiamiento apoyan trabajos que utilizan metodologías cualitativas. La enseñanza de la investigación cualitativa, paralelamente, ha tenido en años recientes un crecimiento espectacular en los países anglosajones e Iberoamericanos en el ámbito de la salud (Gastaldo et al., 2002), ya sea en cursos de licenciatura y postgrado ó en programas de capacitación y actualización de los profesionales. Las instituciones educativas, por su parte, han mostrado interés por organizar modalidades académicas para capacitar sus recursos humanos dedicados a la docencia, la investigación y la asistencia. La investigación cualitativa, por todo ello, se ha convertido en un tema obligado para quienes toman decisiones en las instituciones educativas y de servicios. Estos han respondido de distintas formas; mientras algunos implementan cursos de actualización, otros proponen reorganizar los contenidos de los planes de estudio. No obstante las numerosas iniciativas realizadas hasta el momento, se cuenta con pocos trabajos que hayan evaluado los procesos y los productos de las propuestas académicas impulsadas para enseñar la investigación cualitativa. A diferencia de lo ocurrido en otros campos como en la educación (Bogdan, 1983); la antropología (Grant, May, 1999), la gerencia y los negocios (Humphreys, 2006; Harlos, Mallon, Jones, 2003) y la mercadotecnia (Hopkinson, Hogg, 2004), pocos trabajos han evaluado este proceso formativo en el campo de la salud (Eakin, Mykhalovskiy, 2007; Rifkin, Hartley, 2001). Más aún, los escasos trabajos publicados en esta área se han orientado a evaluar los niveles de licenciatura y postgrado (Clark, Lang, 2002; Kleiman, Copp, Henderson, 1997; Charmaz, 1991) o a dar cuenta del proceso desde la perspectiva de los docentes (Stallings, 1995; Talley, Timmer, 1992). Pero hasta donde tenemos conocimiento, ningún trabajo ha evaluado la perspectiva de los profesionales que atienden alguna modalidad de enseñanza / aprendizaje de la investigación cualitativa en un proceso de actualización. Hasta hoy en día tampoco se ha llevado a cabo en Ibero América una evaluación sistemática de los seminarios, los cursos, los diplomados, los talleres y las conferencias de pregrado que se han organizando desde hace años en el área de la salud. A diferencia de las evaluaciones sobre la enseñanza de otras disciplinas como la salud pública o la atención primaria (Carvalho, 2006). El asunto es relevante porque suele asumirse que cualquier intervención educativa es benéfica tanto para quien participa como para las instituciones involucradas. Tales beneficios comprenderían la capacitación de investigadores, el desarrollo de proyectos de investigación y el fortalecimiento académico de las instituciones, sea para impulsar la investigación o justificar el uso de los recursos. En este sentido reviste fundamental importancia evaluar la pertinencia y utilidad de las actividades académicas implementadas en este campo, en la medida que ello permitirá incorporar las acciones necesarias para enfrentar los obstáculos detectados a la par que fortalecer los avances y logros alcanzados. Por todo lo anterior, el propósito de este trabajo ha sido evaluar un Diplomado de actualización implementado para la enseñanza de la investigación cualitativa en salud.

Metodología Se llevó a cabo una evaluación cualitativa de un Diplomado de investigación cualitativa en salud. El mismo fue implementado en cuatro ocasiones entre 2001 y 2007. Las sedes fueron tres universidades públicas mexicanas (Universidad Autónoma de San Luis Potosí, Universidad Autónoma de Guanajuato y Universidad Autónoma de Querétaro), la cuarta fue en una universidad privada colombiana (Universidad del Bosque). Cada Diplomado se impartió en la ciudad sede de la dependencia organizadora. Los participantes. En promedio acudieron 18 asistentes a cada Diplomado. Todos eran profesionales de diversas disciplinas, sobre todo de la salud y aproximadamente 75% del total eran mujeres. Participaron principalmente enfermeras, médicos, psicólogos y odontólogos; pero también hubo 516

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profesionales de las ciencias sociales, como sociólogos y antropólogos. La mayoría eran académicos de alguna universidad pública, otros estudiaban un postgrado y unos cuantos eran asistentes de investigación, aunque también acudió personal de los servicios de salud. En general, los participantes tenían nula o mínima experiencia previa en investigación cualitativa, o bien era de tipo cuantitativa. Algunos residían en la ciudad sede pero otros tenían que viajar desde su lugar de origen, en un caso hasta ocho horas en autobús. La mayoría de los alumnos asistió a todos los módulos del Diplomado; aunque unos cuantos acudieron solo a algunos, sea porque un tema no era de su interés particular o porque no les fue posible asistir a la totalidad de ellos. En estas circunstancias se les consideró como alumnos en cursos de actualización. Obtención, manejo y análisis de la información. La información se obtuvo mediante la triangulación de estrategias: Previo al inicio del primer módulo se entregó a los asistentes un formato con la finalidad de conocer sus datos socio-demográficos, sus experiencias e intereses en investigación cualitativa, así como sus expectativas sobre el Diplomado. Al final de cada módulo se les solicitó llenar un cuestionario con preguntas abiertas. Así se obtuvieron 180 evaluaciones en total. Se utilizó el método denominado Fortalezas, Obstáculos, Debilidades y Amenazas (SWOT, por sus siglas en inglés). Este constituye una herramienta proveniente del análisis estratégico que permite obtener un panorama de los factores internos y externos que inciden en un programa u organización (Koontz, Weihrich, 1998; Morrisey, 1996). Si bien esta herramienta fue empleada originalmente en el ámbito de los negocios, la misma ha sido aplicada en áreas tan diversas como el análisis de proyectos de renovación urbana, planeación de carreras, diseño de páginas Web y evaluación de centros de investigación académica. De todo ello ha resultado evidente que la herramienta puede ser aplicada para evaluar y guiar cualquier actividad humana organizada para lograr un objetivo (Rizzo, Kim, 2005). Así, y en base a la experiencia de un trabajo previo (Mercado et al., 2005), cada módulo del Diplomado fue evaluado en función de cuatro temas: a) las expectativas de los asistentes sobre el mismo; b) sus logros, avances y beneficios; c) los obstáculos, problemas y dificultades enfrentados y d) las sugerencias y propuestas para mejorar tanto el módulo como el Diplomado. Tal información se caracterizó por ser confidencial y basada en el anonimato. A lo largo del Diplomado también se llevaron a cabo entrevistas informales a aproximadamente la tercera parte de los asistentes. El análisis de la información se hizo mediante análisis de contenido (Weber, 1990). Tres autoras (EA, XF, BT) hicieron una revisión preliminar de la información, identificaron los temas centrales de cada módulo, y posteriormente clasificaron los temas en un esquema general donde se incluían observaciones y citas textuales. Los temas generales y específicos sirvieron para comparar las similitudes y diferencias entre los módulos y para hacer un análisis conjunto de la información. Posteriormente se sistematizó y comparó la información de los cuatro Diplomados. Por último, otro autor (FJM) revisó y contrastó los análisis preliminares de cada uno de los módulos y los Diplomados e hizo un análisis conjunto de la información. El resultado se compartió con el resto de los coautores. El análisis final es producto del diálogo y consenso de todos los autores. Una vez elaborado un documento preliminar, el mismo fue enviado por correo electrónico a los profesores participantes y a todos los asistentes a fin de conocer sus reacciones. Por esta vía también se recibieron comentarios y sugerencias, las cuales se incorporaron al documento final.

El diplomado El Diplomado de Investigación Cualitativa en Salud se organiza anualmente bajo la iniciativa del Programa de Investigación y Evaluación Cualitativa en Salud (Progiecs <www.cucs.udg.mx/progics>), ubicado en la Universidad de Guadalajara, en México. El Diplomado ha sido rotatorio por lo que se ha impartido en colaboración con diferentes universidades. El mismo se dirige a la formación y capacitación de profesionales del área de la salud y las ciencias sociales con interés en la investigación cualitativa. Sus objetivos son dos: brindar a quienes participan herramientas teórico conceptuales, metodológicas y técnicas de la investigación cualitativa aplicada al estudio de la salud-enfermedadatención y establecer un espacio que promueva el diseño e implementación de proyectos de COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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investigación con un enfoque cualitativo. Su propósito final es que los asistentes elaboren un protocolo de investigación a lo largo del mismo. El Diplomado se divide en seis módulos, impartiéndose uno cada mes, por lo cual se lleva a cabo durante seis meses. Su duración es de 180 horas; y cada módulo se cursa de forma intensiva una semana al mes. Cada módulo requiere de 24 horas presenciales y al menos seis horas adicionales para la lectura de los materiales bibliográficos, la elaboración de los resúmenes así como de los avances del proyecto de investigación. Incluye contenidos sobre los fundamentos teóricos del tema, aspectos metodológicos y actividades de integración planeadas de manera secuencial y ejercicios prácticos. Ello permite a los participantes integrar los contenidos revisados para la concreción del proyecto de investigación. Los asistentes trabajan en un proyecto individual, excepto en casos extraordinarios cuando colaboran dos o más personas en un estudio. Estos avances son enviados por correo electrónico al respectivo docente de cada módulo para su lectura y retroalimentación. El módulo I comprende los orígenes, el contexto, las propuestas, las orientaciones y las características de la investigación cualitativa (en salud). El Modulo II analiza las similitudes y diferencias entre las perspectivas cuantitativas y cualitativas de la investigación, las bases conceptuales y técnicas implicadas en la construcción del objeto de estudio, fuentes de ideas para formular un problema de investigación y particularmente las interrogantes, los objetivos y las hipótesis. El Módulo III revisa diferentes diseños metodológicos, la selección del área y los informantes, así como la calidad y el rigor de la investigación cualitativa. El Módulo IV incluye la revisión de las estrategias y técnicas empleadas en las metodologías cualitativas y el diseño de instrumentos para la recolección de la información. Se llevan a cabo ejercicios para la aplicación de técnicas de obtención de datos cualitativos, las estrategias para la trascripción de la información y la elaboración de notas y el diario de campo. El Módulo V abarca el análisis cualitativo de los datos y particularmente de métodos como el análisis de contenido y la teoría fundamentada, así como generalidades sobre el análisis cualitativo asistido por computadora. El Módulo VI se centra en la redacción de textos cualitativos, sus componentes, características y puntos problemáticos y las condiciones sociales que rodean la redacción de un escrito científico. Se efectúan ejercicios para la redacción de cada apartado de un artículo y la preparación de un manuscrito para su envío a una revista indizada y de reconocimiento internacional. Para la admisión al Diplomado se solicita a los aspirantes contar con título de Licenciatura en el área de la salud o en ciencias sociales, tener conocimientos generales sobre metodología de la investigación y contar con un tema, problema o interrogante de investigación. La finalidad última es desarrollar el protocolo durante el Diplomado así como presentarlo al término del mismo. Los proyectos de investigación sobre los cuales han trabajado los participantes versan sobre temas tan diversos como la familia y los cuidadores, la experiencia del padecimiento crónico, la violencia intra-familiar, la investigación educativa, el proyecto de vida de los estudiantes, perspectiva de los aspirantes a primer ingreso, proceso de aprendizaje, los procesos de reprobación y deserción; la evaluación de programas de salud, agricultura y políticas públicas, las mujeres en el área de medicina, el embarazo en la adolescencia, el consumo de drogas y la prostitución infantil. Aproximadamente la mitad de los asistentes han terminado el Diplomado elaborando su respectivo proyecto de investigación. En las dos últimas ediciones se ha organizado una sesión final de presentación de los protocolos, las cuales han sido abiertas al debate de la comunidad académica, además han contado con la participación de investigadores invitados como comentaristas externos. Este Diplomado no forma parte de los cursos regulares de la universidad; el mismo es parte de las actividades de actualización. Su costo aproximado ha sido de 800 US dólares por participante. La mayoría de ellos han obtenido apoyo de su respectiva institución para el pago de la inscripción y unos cuantos fueron becados. Los participantes foráneos han tenido que cubrir gastos de hospedaje y alimentación durante los días de su estancia en la ciudad sede. Además del coordinador académico general, cada módulo cuenta con un docente a quien se le considera como coordinador o facilitador. Todos los docentes colaboran sistemáticamente con el Progiecs y a excepción de una, todos cuentan con el grado de doctor (Antropología Urbana, Antropología Social, Salud Pública y Ciencias Sociales). Cuatro pertenecen al Sistema Nacional de Investigadores de México. Al momento de participar en el Diplomado, todos ejercían funciones de 518

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investigación y docencia. Sólo una docente también ejercía funciones clínico-asistenciales. Ninguno residía en la ciudad donde se llevaron a cabo los Diplomados. Los docentes están adscritos a la Universidad de Guadalajara, una a la Universidad Autónoma de San Luis Potosí y otro al Instituto Mexicano del Seguro Social (IMSS).

Resultados Un mismo inicio, propósitos diferentes No encontramos diferencias en las expectativas de los asistentes a los cuatro Diplomados; más bien, tales diferencias se dan en otros sentidos y respondiendo a circunstancias particulares. Entre quienes asisten por primera vez a un diplomado o curso de naturaleza semejante se aspira por lo general a adquirir nuevos conocimientos, técnicas y metodologías de investigación cualitativa en función de tres propósitos: a unos les interesa conocer en términos generales el objeto de la investigación cualitativa, o sea, se trata eminentemente de una actividad exploratoria en la cual suele prevalecer una actitud cercana al escepticismo. Para otros, en cambio, el Diplomado les representa la posibilidad de enriquecer su trabajo docente en tanto esperan aprender herramientas que les permitan combinar las metodologías cuantitativas y las cualitativas. Otro tercer subgrupo reducido, pero no por ello menos significativo, espera asistir y cumplir con el programa en un mar de actividades académicas y administrativas que llevan a cabo en la institución donde laboran. En este caso, su intención es asistir lo más posible a fin de estar al día en cuanto a los nuevos enfoques en materia de investigación para enriquecer su trabajo de planeación, conducción o evaluación de los programas educativos. A diferencia de los anteriores, otras expectativas parecen prevalecer entre quienes asisten al Diplomado pero contando con conocimientos o experiencias previas sobre la investigación cualitativa. El propósito de algunos de ellos es formarse como investigadores en tanto su intención es dedicarse a la investigación cualitativa en el futuro. Otros dos propósitos complementarios suelen ser mencionados paralelamente: algunos asistentes se proponen aprender en especial el tipo de investigación cualitativa que llevan a cabo ciertos docentes que lo imparten porque han leído sus trabajos y están convencidos de que se trata del enfoque idóneo para orientar su proyecto. Algunos otros se proponen concluir el Diplomado habiendo enriquecido las investigaciones que llevan a cabo en el área de la salud o la educación. Estos últimos, por lo general, son mujeres, jóvenes y docentes que estudian en forma paralela algún programa de postgrado, sobre todo un doctorado en el extranjero, por lo cual están sumamente comprometidas con la realización de su tesis.

Entre avances y logros, sus razones Los alumnos de los cuatro Diplomados aquí evaluados destacan haber obtenido una variedad importante de logros y avances, lo que en conjunto trasmite una imagen bastante positiva del proceso. Al agruparlos en orden de importancia, tales logros remiten al aprendizaje de nuevos conocimientos, sobre todo teorías, la elaboración del protocolo de investigación, situaciones vinculadas a la mejoría de la docencia y otros logros aislados. De hecho, varios asistentes hacen referencia a múltiples beneficios obtenidos durante el Diplomado, tal como se desprende del comentario de una docente de San Luis Potosí “de manera personal he podido definir de forma clara mi estudio, he despejado dudas y he podido encaminar mi proyecto de una manera más sólida. Mis perspectivas de la investigación (cualitativa) también son más claras”. Según la mayoría de los asistentes, el principal logro obtenido en el Diplomado consiste en haber adquirido conocimientos, sobre todo enfoques y teorías relacionadas con la investigación cualitativa. Entre otras cosas, destacan la adquisición de nuevos conceptos, enfoques teóricos y determinadas técnicas, especialmente las relacionadas con los programas de cómputo para el manejo y análisis de la información; así como el tener mayor claridad en cuanto a la elaboración de un artículo. Entre tantos comentarios semejantes, otra participante de San Luis Potosí señala sobre este particular “(el Diplomado COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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me ha permitido) contar con un amplio panorama acerca de los paradigmas que han surgido y que nos permiten tener un acercamiento a las implicaciones de la investigación cualitativa en cuanto a métodos, estrategias y experiencias relacionadas con este campo”. En un siguiente plano, algunos participantes reconocen que el Diplomado les ha posibilitado enriquecer sus proyectos de investigación al solucionar múltiples problemas que enfrentaban en función de la elaboración del objeto de estudio, el esclarecimiento de sus bases metodológicas, la selección de determinadas estrategias para la obtención de la información y el análisis de los datos. Precisamente a ello hace referencia una participante del Diplomado realizado en la Universidad de Guanajuato estaba llevando a cabo (mi investigación) de manera empírica, y por sentido común. Y conforme hemos avanzado en los temas del Diplomado he podido entender y reflexionar sobre la metodología cualitativa, lo que me ha servido para darle un fundamento teórico a todas esas acciones que realizaba por sentido común.

Otro conjunto de señalamientos positivos de los asistentes hacen referencia a los mismos docentes que imparten los módulos. Entre otras cosas, suelen destacar de forma constante, aunque también en términos bastante escuetos, la calidad de los docentes, su disposición a apoyar, su apertura, sus conocimientos amplios sobre el tema y su profesionalismo. Por último, una serie de comentarios de diversa índole también son mencionados en términos bastante positivos. Entre ellos, aquel que reconoce la posibilidad de interactuar con los profesores y demás asistentes, aprender a hacer lecturas críticas y a pensar de forma diferente respecto a los modelos tradicionales de hacer investigación. Precisamente a ello se refiere una participante de la Universidad Autónoma de Querétaro cuando señala “se motiva al alumno a pensar de un modo alternativo, real y humanista acerca de la investigación”.

Dificultades en el camino Los participantes reconocen la existencia de un buen número de logros y avances al cursar el Diplomado de investigación cualitativa, pero ello no les impide reconocer una cantidad semejante de obstáculos y dificultades que enfrenta durante el proceso. Vale la pena mencionar al respecto que casi la mitad de los participantes sistemáticamente refiere no haber encontrado problema o dificultad alguna en el módulo o Diplomado correspondiente al que asistieron. Aunque tal señalamiento no se aplica de forma homogénea a todos los módulos, ya que mientras algunos módulos sobresalen por la nula o mínima referencia a problemas, de otros se hacen múltiples reportes sobre las dificultades enfrentadas durante el proceso. Entre ellos destacan los relativos a la escasez de tiempo, y en menor grado, a las dificultades en la comunicación y vinculación entre los docentes de los diversos módulos y los organizadores, así como a los obstáculos para entender determinados contenidos. Se mencionaron también otros temas de índole diversa, como la falta de recursos y apoyos, sobre todo de sus instituciones de adscripción. La falta de tiempo es el motivo principal de queja y preocupación por parte de los asistentes al Diplomado. Para algunos se trata de un programa demasiado corto para los fines propuestos, esto es, para la elaboración de un protocolo de investigación cualitativa. También destacan el hecho de que debido a la carga académica y/o administrativa que tienen asignada, muchos asistentes no disponen del tiempo necesario para hacer las lecturas correspondientes, avanzar en el proyecto de investigación, redactar las tareas solicitadas, revisar los trabajos asignados y recibir asesorías de los docentes. Por ejemplo, la queja principal de los asistentes de la universidad colombiana fue la dificultad para avanzar en sus proyectos de investigación al no recibir apoyo de los administradores para reducir su carga laboral que les posibilitara dedicar más tiempo al Diplomado. En muchos casos, se trata de profesores de tiempo parcial que dedican parte importante de su labor a las tareas docentes por lo cual cualquier actividad dedicada a la investigación habrá de llevarse a cabo durante su tiempo libre. En otros casos se trata de docentes de tiempo completo que tienen asignadas múltiples actividades docentes y administrativas motivo por el cual no tienen tiempo para hacer las lecturas previas, ni avanzar en sus 520

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protocolos respectivos, aunado a que deben salir de las sesiones con cierta frecuencia ante las demandas académicas y administrativas de que son objeto. En un plano siguiente, al cual se le da relativamente menos importancia, un grupo de asistentes con poca o nula experiencia y conocimientos en investigación cualitativa destaca la falta de coordinación entre los docentes y los coordinadores, pero ante todo entre los mismos docentes. En particular mencionan la diversidad de puntos de vista entre los docentes de los módulos, lo cual genera confusión entre los asistentes al no contar con elementos que les permitan evaluar lo apropiado y útil entre posturas discrepantes sobre el mismo tema. Una asistente al Diplomado realizado en la Universidad de Guanajuato lo plantea de la siguiente forma “la investigación cualitativa es una metodología nueva para mí y en este curso es difícil unificar las ideas porque los profesores que imparten los módulos opinan de forma diferente. Existe contradicción (entre ellos), es necesario unificar criterios para mejorar el protocolo de investigación”. Muchas otras dificultades de índole diversa son mencionadas, aunque cada una de forma esporádica. Entre estas vale la pena resaltar una serie de cuestionamientos críticos ante el uso de textos en inglés y la imposibilidad de comprenderlos. También se menciona el costo del alojamiento y del traslado a la ciudad sede; así como el costo elevado de la inscripción, sobre todo por ser gastos cubiertos por algunos asistentes que viajan desde lugares distantes. Algunos asistentes reciben apoyo económico de sus centros laborales, como es el caso de algunas universidades, pero ello no siempre aplica entre quienes trabajan en otros espacios, tales como los centros asistenciales y algunas universidades privadas, ya que se les otorga el permiso de asistir pero sin goce de sueldo y sin apoyo para cubrir la incscipción. El comentario de una asistente al Diplomado en la Universidad Autónoma de Querétaro refleja esta preocupación “(un problema que enfrento es) el costo, porque solo se me dio un descuento de 20% (en la inscripción) y mi institución no pagó nada…”.

Las alternativas propuestas Los participantes de los cuatro Diplomados a que hacemos referencia distan de ofrecer un cuadro homogéneo de sugerencias y propuestas para mejorar el programa, su proceso o los productos. No obstante las diferencias específicas encontradas en los módulos y los mismos Diplomados, vistas en conjunto, tales sugerencias aluden a temas bien delimitados que se desprenden de los apartados anteriores. Entre otras cosas, se propone continuar con la dinámica empleada, incrementar o disminuir el tiempo asignado al Diplomado, la entrega de materiales con mayor tiempo de anticipación, una mejor coordinación y organización entre los docentes y una variedad de propuestas aisladas. Cerca de la tercera parte de las evaluaciones recibidas no hacen sugerencia alguna para mejorar el Diplomado; sin embargo, un número semejante propone seguir la dinámica tal cual se lleva a cabo hasta ese momento. La razón que subyace en esta propuesta es que la incorporación de docentes con conocimientos y experiencias en el campo es vital para el aprendizaje, aunado a que los docentes participantes suelen estar abiertos a la discusión e interesarse en las necesidades de los asistentes. Los comentarios de dos participantes del Diplomado realizado en Irapuato reflejan la imagen de las características deseables de los docentes a que hacen referencia comentarios de esta índole “contar con expositores con paciencia y sobre todo conocimiento y retroalimentación es lo más importante, porque (eso) hace sentir muy bien al alumno”, “un ponente con lenguaje sencillo y ameno me hace sentir muy bien, da confianza al exponer, dan muchas ganas de participar. Sugiero continúen así”. El siguiente grupo de propuestas alude al tiempo, en términos aparentemente contradictorios. Por un lado, hay quienes sugieren ampliar el tiempo dedicado al Diplomado a fin de cumplir con el objetivo propuesto de elaborar el protocolo de investigación. En torno a ello hay propuestas específicas como aquella en la cual se sugiere eliminar el primer módulo dedicado a los paradigmas y teorías, o a destinar un módulo a la teoría y otro a la práctica; otra propone dedicar más tiempo para trabajar en los protocolos de investigación; y otra donde se sugiere invertir más tiempo en la elaboración de apartados específicos de los proyectos. Y más que asignar tiempo a la revisión teórica o a determinados autores, la mayoría de los asistentes parecen coincidir en su interés en trabajar más en talleres o en recibir asesorías de los docentes en torno a sus proyectos específicos en tanto se comparte la preocupación de que no se avanza suficientemente en el protocolo. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Un siguiente bloque de comentarios sugiere proporcionar los materiales bibliográficos, o los insumos empleados antes de iniciar el Diplomado. Esto se hizo bastante evidente en los dos primeros Diplomados impartidos. No obstante, el asunto pasó prácticamente desapercibido en el último Diplomado realizado en la Universidad Autónoma de Querétaro al ser resuelto porque los materiales fueron enviados a los asistentes por correo electrónico al menos una semana antes de su inicio. El problema de fondo respecto a la bibliografía en estas instituciones educativas radica en que no cuentan con la infraestructura básica para adquirir los materiales bibliográficos necesarios para un Diplomado de esta naturaleza; por lo cual, los organizadores deben generar mecanismos para obtener, reproducir y distribuir dichos materiales. Otros comentarios de los asistentes en torno a la bibliografía remiten a dos situaciones interrelacionadas. Por una parte, algunos de ellos refieren tener dificultades cuando se les proporciona los materiales en inglés, y otros se quejan de la mala calidad de algunos textos; sobre todo de los escritos en castellano, al intentar sustituir los textos en inglés. Unos cuantos participantes también proponen mejorar la coordinación y organización entre los propios docentes. Entre otras propuestas se sugiere una mejor organización en la presentación de algunos módulos y, ante todo, intentar llegar a acuerdos entre los mismos docentes, sea para no repetir los temas ó las actividades realizadas o para no confundir a los asistentes menos familiarizados con la investigación cualitativa al adoptar posturas distintas, así como emplear técnicas didácticas alternativas. Por último, diversas propuestas aisladas son mencionadas por los asistentes para mejorar esta modalidad educativa. Entre otras observaciones se consigna la necesidad de incrementar la participación del grupo ante la pasividad de algunos asistentes, reducir las entradas y salidas constantes de los asistentes a las sesiones para evitar las distracciones, mejorar las condiciones del lugar donde se llevan a cabo las sesiones de trabajo, fomentar las redes entre los asistentes que trabajen en temas semejantes y hacer cambios en los horarios de las sesiones iniciales y finales de los módulos, teniendo en consideración la situación de quienes no viven en la ciudad sede.

Discusión El objetivo de este trabajo ha sido evaluar cualitativamente una intervención educativa desde la perspectiva de los asistentes. Tal Diplomado se ha orientado a la capacitación de profesionales de diversas disciplinas en la investigación cualitativa en salud. Un trabajo de esta naturaleza intenta favorecer la comprensión de las intervenciones educativas desde la perspectiva de los profesionales interesados en ella. El propósito final es contribuir a llenar un vació existente en torno al tema, sobre todo en Ibero América. La enseñanza de la metodología de la investigación a los profesionales de las ciencias sociales y de la salud constituye un desafío, al igual que la enseñanza de la investigación cualitativa en salud, temas íntimamente relacionados (Mercado, Lizardi, Villaseñor, 2002). Por ello, el Diplomado ha pretendido resolver limitantes que enfrentan modalidades académicas cortas para la enseñanza de la investigación cualitativa, tales como los cursos, los talleres o los seminarios, ya que si bien éstos suelen revisar de manera sucinta un tema o profundizar en determinado aspecto teórico-conceptual o técnico, por lo general sus resultados distan de favorecer el aprendizaje de la investigación cualitativa, sobre todo la elaboración e implementación de proyectos de investigación. En este sentido, el propósito del Diplomado ha sido contribuir a la apertura y consolidación de un espacio teórico y práctico ligado a la educación permanente en salud (Ceccim, 2005). No obstante los propósitos de los organizadores sobre los productos del Diplomado, desde la perspectiva de los asistentes uno de sus logros más significativos ha sido el aprendizaje a nivel teórico y conceptual. A la par, una de las mayores dificultades ha sido avanzar en la elaboración del proyecto de investigación y su consecuente implementación. Varios motivos podrían explicar esta situación: un número importante de asistentes no cuenta con la experiencia en el tema y sus expectativas y actividad prioritaria no se centran en la investigación, ya que la misma pasa con frecuencia a segundo termino frente a su carga docente, administrativa o asistencial. Teniendo en consideración el contexto universitario donde labora la mayoría de los asistentes a este Diplomado, incluso pareciera que el aprendizaje de la investigación cualitativa consiste en una práctica contradictoria ya que por un lado, las 522

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instituciones educativas favorecen la realización de programas de esta índole, pero al mismo tiempo, limitan al máximo los apoyos necesarios para que los docentes destinen el tiempo y cuenten con los recursos necesarios para formarse en este campo. Estos hallazgos concuerdan con quienes señalan que la investigación habrá de consolidarse en la medida que se destinen más recursos y se otorgue más tiempo a la misma (Organisation for Economic Co-operation and Development, 1998). Otra constante referida por los asistentes remite al tiempo. Para algunos de ellos se requiere más tiempo para cumplir los objetivos del Diplomado, mientras que para otros se necesita menos. Los primeros son aquellos para quienes la investigación (cualitativa) les representa una actividad vital, sea como parte de un proyecto personal, académico o social. Para este grupo los seis meses que dura el Diplomado son insuficientes ya que no sólo se comprometen en la elaboración del protocolo de investigación, sino también al desarrollo del estudio. Ante esta circunstancia se requeriría más tiempo y actividades complementarias para elaborar el protocolo, implementar el estudio y trabajar en el análisis y presentación de los resultados. En cambio, seis meses es a todas luces demasiado tiempo para aquellos participantes cuyas expectativas se reducen a explorar y conocer el campo, sea como parte de un proyecto personal, académico o administrativo. De ser validos estos hallazgos, una propuesta derivada como consecuencia es que se requieren modalidades educativas diferentes para ambos grupos, ya que la versión actual no satisface ni a los unos ni a los otros. Una alternativa para los primeros sería ampliar el programa pero en una modalidad más cercana a una maestría, o abrir un segundo diplomado para la implementación del estudio y la elaboración de los productos (Mercado et al., 2005). Una de las estrategias posibles en esta dirección sería implementar una modalidad educativa basada en los nuevos sistemas de información, particularmente de la internet. ¿Por qué una parte significativa de los asistentes no reporta haber tenido problemas ni dificultades durante el Diplomado? No nos parece que se trate de una respuesta políticamente correcta. Desde nuestra perspectiva, ello pudiera obedecer a varias situaciones que confluyen en las expectativas de los asistentes. Para quienes se enfrentan por primera vez con la investigación cualitativa y buscan un conjunto de modelos establecidos, al igual que con la investigación tradicional o cuantitativa, las principales preocupaciones tienen que ver con la comprensión de una propuesta homogénea y la búsqueda de estrategias relativamente claras. En cambio, las dificultades y problemas entre quienes se proponen enriquecer su proyecto de investigación se vinculan más con el cómo avanzar en el protocolo y la elaboración de los apartados para lo cual se requiere contar con asesoría individualizada y pertinente. De allí sus propuestas específicas a dedicar más tiempo al proyecto de investigación y a tener más contacto con los docentes del curso. Otra dificultad reportada por algunos asistentes remite a la diversidad de perspectivas y conceptos entre los docentes de distintos módulos que ocasiona confusión entre ellos. Sin embargo, para algunos, tal diversidad evidencia la heterogeneidad que caracteriza la investigación cualitativa, la multiplicidad de enfoques existentes así como de perspectivas teóricas y tradiciones que confluyen a su interior. ¿Cómo resolver este conflicto cuando uno de los principios del Diplomado subraya la necesidad de elaborar investigaciones con solidez teórica a la par que aspira a terminar el protocolo en un periodo determinado? El asunto no es de fácil solución, por lo menos si se tiene en mente la falta de formación teórica de la mayoría de los asistentes al provenir del área de la salud y, por otra parte, ante su falta de experiencia en investigación. Pero el asunto también colinda con otros temas de igual o mayor complejidad, tal como el reconocimiento de múltiples perspectivas al interior de la investigación cualitativa y el debate en torno al otro y la otredad (Mercado, Bosi, 2007). Otro asunto que subyace es aquella postura de la investigación tradicional en la cual se asume la existencia de verdades únicas y eternas. En este contexto, nos parece que programas educativos de esta naturaleza deben insistir en que uno de los elementos centrales de la investigación cualitativa es el asunto de la diferencia. La información obtenida en este trabajo concuerda entre los diferentes métodos empleados, sea en las entrevistas, los cuestionarios o la retroalimentación de los participantes, a diferencia de lo reportado en otros trabajos. Por ejemplo, Oliver-Hoyo y Allen (2006); así como Bryans y Mavin (2006) reportan haber encontrado coincidencias en las entrevistas y el diario de campo, mas no con los cuestionarios. En nuestro estudio todo indica que hay coincidencias en los métodos empleados, aunque reconocemos la necesidad de explorar el tema utilizando otras estrategias. 523


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¿Cuáles son las limitaciones que reconocemos en este trabajo? La primera y más evidente es la de haber centrado la atención en la voz de uno de los actores involucrados: los alumnos asistentes. Esta decisión deja de lado la posibilidad de escuchar a otros actores cuyos argumentos y razones diferentes pueden tener igual o más peso. Pudimos haber entrevistado a los coordinadores de los Diplomados, los docentes, el personal administrativo involucrado, entre muchos otros. Por otro lado, tampoco podemos pasar por alto posibles limitantes del método SWOT empleado. Frente a las fortalezas del tal método, no podemos sino preguntarnos cuales hubieran sido los resultados si hubiéramos empleado otras estrategias como la observación participante e incluso los grupos focales o los nominales. Aún con las limitaciones de la información obtenida mediante esta estrategia, estamos convencidos que los hallazgos encontrados son valiosos no solo para repensar la pertinencia de seguir organizando diplomados semejantes, sino también para valorar otras experiencias educativas sobre el mismo tema.

Agradecimientos A los coordinadores de cada Institución donde se llevó a cabo el Diplomado por su colaboración y profesionalismo. A quienes dedicaron su tiempo a la evaluación de una versión previa. A los docentes por su colaboración desinteresada y sus comentarios, particularmente a Bernardo Jiménez, Teresa Torres y Enriqueta Valdez; a María Lúcia Bosi y Dense Gastaldo por su apoyo en la traducción. Colaboradores Francisco Mercado concibió la idea original, analizó la bibliografía, revisó y modificó el análisis y participó en la redacción. Luz María Tejada hizo la búsqueda bibliográfica, organizó la información y su análisis, redactó partes del artículo y estuvo a cargo de la edición. Elizabeth Alcántara participó en la búsqueda y análisis de la bibliografía, revisó los materiales, participó en la obtención, y análisis de la información y en la revisión de versiones previas del manuscrito. Abel Mercado participó en la revisión de bibliografía y del material y su análisis, y en la revisión de las versiones previas. Irma Xóchitl Fuentes participó en la organización y análisis de la información así como en la elaboración del manuscrito. Brenda Trigueros participó en la obtención, organización y análisis de la información.

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Palavras-chave: Pesquisa qualitativa. Ensino. Saúde. Avaliação. Recebido em 22/06/07. Aprovado em 19/02/08.

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artigos

O caso de uma comunidade avaliativa emergente: re-apropriação pelos pares-multiplicadores da apreciação de suas próprias ações preventivas contra DST/HIV/AIDS, Amazonas, Brasil Hélène Laperrière1

LAPERRIÈRE, H. The case of an emerging evaluative community: peer multipliers’ reappropriation of the assessment of their own preventive and social actions against STD/HIV/Aids, Amazonas, Brazil. Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.12, n.26, p.527-40, jul./set. 2008. This paper reports on the systematization of an experience of evaluative and participative investigation relating to a DST/HIV/Aids prevention program that was implemented in the red-light zones of a remote municipality in the State of Amazonas. This perspective of qualitative evaluation emphasized issues that were not considered at the time of initially implementing this project among sex workers, relating to the dimensions of the constructions of collective meaning that were directly linked to the implementation of peer-based education. We have focused on this experience of community investigation with peer multipliers for the project and the reappropriation of the evaluation of their preventive and social actions. The results and discussion are presented as a double prism: 1 the sequence of “emerging” thematic questioning over the course of the participative action/investigation in the field; and 2 the pragmatic practices of the evaluative investigation within the sociocultural and sociopolitical context.

Key words: Community investigation. Evaluation of results from preventive actions. Popular healthcare education. HIV/Aids. Amazonas.

Este artigo relata a sistematização de uma experiência de pesquisa avaliativa e participativa de um projeto de prevenção de DST/HIV/AIDS implantado nas zonas de prostituição de um município do interior do estado do Amazonas. Essa perspectiva de avaliação qualitativa enfatizou aspectos não considerados durante a implantação do projeto inicial, referentes à construção dos significados coletivos diretamente ligados à implantação da chamada educação pelos pares. O relato enfatiza a experiência comunitária dos pares-multiplicadores do projeto e sua apropriação da avaliação de suas ações preventivas e sociais. Os resultados e a discussão são apresentados numa dupla perspectiva: 1 da seqüência dos questionamentos temáticos que emergiram no percurso da pesquisa-ação participativa no campo; e 2 das práticas de investigação avaliativa desenvolvidas num dado contexto sociocultural e sociopolítico.

Palavras-chave: Investigação comunitária. Avaliação de resultados de ações preventivas. Educação popular em saúde. HIV/AIDS. Amazonas.

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Enfermeira. School of Nursing, Faculty of Health Sciences, University of Ottawa, Canada. 451, Smyth Rd Ottawa Ontario - K1H 8M5 hlaperri@uottawa.ca 1

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Introdução Este artigo relata a sistematização de uma experiência de pesquisa avaliativa e participativa junto a pares-multiplicadores de projetos de educação em zonas de prostituição no interior da Região Norte do Brasil. O duplo desafio para a consecução dessa pesquisa consistiu em morar próximo ao ambiente de circulação desses pares-multiplicadores e criar aí um espaço de produção coletiva de saberes úteis para esses agentes nas suas atividades de educação para prevenção de doenças sexualmente transmissíveis (DST) e HIV/Aids. A perspectiva dessa pesquisa-ação visava privilegiar uma auto-avaliação que respeitasse o potencial avaliador dos próprios pares-multiplicadores. Compartilhando, nesse contexto sociocultural e sociopolítico, as práticas de enfermagem em DST/HIV/Aids adquiridas anteriormente, as atividades de pesquisa foram conduzidas em zonas de prostituição e bairros populares de um dado município, num raio de cinco a trinta minutos a pé a partir da casa onde a pesquisadora residia. Esta perspectiva de avaliação é qualitativa e enfatizou aspectos não avaliados durante a implantação do projeto inicial, que deu origem ao desdobramento que descreveremos doravante. Os objetivos específicos da investigação participativa e avaliativa eram: 1 incorporar a participação dos principais atores locais que poderiam ser engajados como pares-multiplicadores na educação da comunidade; 2 explorar uma avaliação empírica dos “impactos globais” das ações preventivas por meio de um processo de auto-avaliação sem as limitações ligadas à produtividade planificada no programa de prevenção de DST/HIV/Aids nas áreas consideradas de alto risco, ligadas à prostituição, e 3 estimular o acúmulo de conhecimentos relacionados às práticas da pesquisa-ação participativa e comunitária. Os pares-multiplicadores participavam das decisões sobre os temas a serem discutidos e sobre as formas de mobilizar os atores locais, importantes para o desenvolvimento da chamada educação pelos pares. O processo de pesquisa avaliativa foi percebido pelos envolvidos sobretudo como uma recuperação das histórias pessoais e coletivas. Os laços de confiança estabelecidos nas experiências comunitárias e profissionais realizadas anteriormente, entre 1994 e 2000 (envolvendo a Pastoral Social e da Saúde, Comunidades Eclesiais de Base, a Associação de Mulheres, programas de prevenção à hanseníase e a DST/HIV/Aids), orientaram nossa reinserção nos bairros periféricos e nas áreas de prostituição acima referidos. Descobrimos juntos, pesquisadora e atores sociais engajados, dimensões significativas relativas aos pares-multiplicadores, como os elos de ajuda, mudanças nas trajetórias pessoais e coletivas, transferência dos saberes e também das condições de trabalho educativo nas áreas de alto risco. A perspectiva desta pesquisa participativa e avaliativa era reafirmar a necessidade da apropriação do saber produzido na atividade de “agentes de fronteira” nos programas de saúde pública, vivendo na comunidade. Este artigo descreve o mais objetivamente possível as transformações metodológicas inevitáveis, decorrentes da participação radical na comunidade e, com isso, da partilha estabelecida entre os participantes.

Problematização: a avaliação num contexto de imprevisibilidade, imprecisão e incerteza Em 1999, num contexto em que o ecoturismo era estimulado como possibilidade de desenvolvimento do interior da Amazônia brasileira, um membro regional dos programas ligados a DST/ HIV/Aids implantou um projeto inicial de prevenção nas áreas de prostituição, onde alcançava populações das mais marginalizadas, para as quais a prática da prostituição freqüentemente se tornava o único meio de sobrevivência. A chamada educação pelos pares se desenvolvia como uma intervenção específica junto aos trabalhadores do sexo na cidade. Foi nesse período que recebi o convite para acompanhar os pares-multiplicadores e oferecer consultas de enfermagem em DST/HIV/Aids. Esse trabalho consistia na disseminação, entre os trabalhadores do sexo e seus clientes, de informações sobre DST e Aids, e a respeito do uso de preservativo (em 1998, 350 trabalhadores do sexo foram identificados no município, que contava com oitenta mil habitantes). Os pares-multiplicadores faziam intervenções noturnas nos bares flutuantes do porto ou nos pontos de encontro (hotéis, parques públicos, ruas, barcos). O projeto se propunha a: estimular a organização de grupos de defesa dos 528

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direitos da população-alvo, instruir sobre práticas sexuais sem risco e providenciar a assistência de profissionais da saúde para o tratamento de DST. Financiado por uma fundação estrangeira, com colaboração local e regional, ele teve início com cinco pares-multiplicadores, que eram agentes da comunidade treinados, monitorados e remunerados (Benzaken et al., 2003). Em 2002, as avaliações das pesquisas epidemiológicas e dos questionários evolutivos sobre os comportamentos sexuais, assim como o número crescente de preservativos distribuídos, tinham como objetivo legitimar as ações preventivas (Benzaken et al., 2007, 2003, 2002). Note-se que havia dificuldades geográficas e socioeconômicas para a produção de pesquisas de avaliação, e mesmo de pesquisas que pudessem valorizar tanto a eficácia prática dos agentes de fronteira quanto a participação de todos os envolvidos. Nos seis anos de residência na região amazônica brasileira, vivendo com populações ribeirinhas em contextos incertos, inseguros, imprevisíveis e violentos, foi bastante difícil obedecer ao rigor científico ocidental, que valoriza sobretudo o distanciamento do pesquisador e a observação isenta. Os métodos de avaliação dos projetos sanitários eram, quase sempre, impostos por agências financiadoras nacionais e internacionais, que descartam a compreensão da influência do contexto sociocultural e sociopolítico na implantação das ações. Composta por grupos comunitários e profissionais da saúde pública, a Comissão Interinstitucional de Controle e Prevenção das DST e da Aids do Estado do Amazonas reconheceu que a aliança precária dos usuários dos serviços de saúde com os profissionais por meio de organizações não governamentais (ONGs) representa uma verdadeira “ditadura dos projetos”. Para a Comissão, essas ONGs, financiadas por instituições internacionais, pedem para “ver e medir resultados”, em oposição aos resultados “vagos e imprecisos” do ativismo e da intervenção cultural (Comissão Interinstitucional de Controle e Prevenção das DST e da Aids, 2003, p.15). Além do mais, os pesquisadores tornam-se, freqüentemente, os leitores dessa realidade e produzem dela uma tradução que dificilmente é acessível aos participantes locais, retornando a eles sob a forma de resultados abstratos (Latour, 2000). Demo (1999) denuncia a obsessão inovadora do conhecimento moderno, que não raro ignora as desigualdades entre países ricos e pobres quanto à capacidade de produzir e usar um saber próprio. Qual será o discurso de avaliação que permite a expressão da experiência local? Um discurso capaz de alcançar os que estão longe dessa cultura, cujos interesses não estão diretamente envolvidos com a realidade local? O desafio dessa avaliação é reconhecer as distâncias internacionais e nacionais, as descontinuidades culturais entre as regiões centrais e periféricas, as diferenças de tempo na produção local de saberes. Só assim é possível responder prontamente às necessidades básicas de uma comunidade e ao atendimento em saúde para suas populações. Sem esse esforço, dificilmente as condições locais serão entendidas, pois as competências dos pesquisadores e avaliadores, em nível internacional e nacional, é que falarão por elas. Frente aos desafios geográficos característicos de localidades da região amazônica, é preciso recorrer a registros de outro tipo para formular uma avaliação flexível o suficiente em sua metodologia, considerando a epistemologia que isso implica (Zúñiga, Laperrière, 2006). Como Tanaka e Melo (2004) anotam, “a avaliação tem que ser compreendida no contexto em que é pensada e a partir das perguntas avaliativas a que se quer responder” (p.121). Esse construtivismo na avaliação supõe uma flexibilização dos métodos positivistas de pesquisa (Campbell, 1984). Nesse tipo de campo, a avaliação que considera os agentes, os quais efetivamente atuam sobre os resultados, foi reconhecida com os trabalhos de Guba e Lincoln (1989) e os diferentes trabalhos que se inspiraram na abordagem da “avaliação da quarta geração” de forma crítica (Zúñiga, 2005; House, Howe, 1999). A noção de “participação” define a ênfase dessas orientações no que tange à avaliação de programas internacionais (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento e Organização Mundial da Saúde). Mas a legitimidade da participação na América Latina origina-se de autores latinoamericanos, entre os quais Freire (1974), Fals-Borda (1980), Brandão (1985) e Vasconcelos (2002). A perspectiva participativa, decorrendo também da educação popular, está ligada sobretudo aos movimentos populares: Movimentos sociais de gênero, de etnia, de cultura, de luta pelos direitos humanos, de ação comunitária, de vocação ambientalista, em muitos casos se reconhecem como incorporando, de algum modo, o espírito originário e o ideário das práticas atuais da educação popular. O

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advento das várias modalidades de pesquisa participante esteve quase sempre vinculado ao ideário e às práticas de educação popular. (Brandão, 2002, p.151 - grifos originais)

Metodologia Esta pesquisa avaliativa refere-se à participação radical que, no contexto em que se deu, muito exigiu de todos os envolvidos quanto à capacidade de elaboração e reelaboração dos processos e de sua condução. Trata-se de uma metodologia que valoriza a pesquisa-ação (Vasconcelos, 2002; Reason, 1998) e as significações culturais, valendo-se dos métodos de educação popular desenvolvidos nos movimentos sociais brasileiros (Brandão, 2002). No que diz respeito à contextualização de uma pesquisa (ou groundedness) e aos aprendizados empíricos locais, a noção de imprevisibilidade implicava que os meios iniciais de avaliação poderiam ser modificados no decurso da pesquisa, conforme as situações e oportunidades. Assim, as ferramentas de base utilizadas foram construídas coletivamente pela coalizão quebequense dos órgãos comunitários de luta contra a Aids (Jalbert et al., 1997) e, levadas a diversos movimentos sociais e voluntários, encorajam a participação radical dos agentes de fronteira, valorizando seu potencial avaliador e prescindindo da presença de um avaliador externo ligado ao Estado (Ministério da Saúde e Agência de Saúde Pública). As entrevistas coletivas dos grupos de apreciação partilhada (GAPs) foram privilegiadas por trabalharem com os pares-multiplicadores. O GAP é uma ferramenta que permite alimentar a reflexão e a autoavaliação coletiva (Jalbert et al., 1997). Não se trata de um trabalho com um grupo focal, pois os participantes decidem sobre a forma e os temas a discutir, tendo início num roteiro sugerido pela ferramenta de auto-avaliação (Figura 1), sobre o qual as entrevistas coletivas vão propondo modificações, sugeridas pelos próprios participantes, no decurso da pesquisa avaliativa. Desse modo, o GAP valorizava as informações que se sobressaíam nos encontros formais e também nos comentários informais entre os participantes. Esse exercício destina-se a levar diferentes agentes à partilha de suas análises sobre o projeto em curso e, assim, contribui para a construção de uma ação efetivamente coletiva, permitido, entre outras coisas, emitir julgamentos sobre as práticas e eventualmente conceber ajustes.

FICHA 5: ROTEIRO PARA ENTREVISTAS COLETIVAS (Jalbert et al., 1997, tradução nossa) O GRUPO DOS MULTIPLICADORES 1. Apresentação Como você se tornou um multiplicador? Como você conheceu o projeto? Descreva as tarefas que você tem realizado nesse trabalho? 2. A integração ao projeto Como se deu sua integração no projeto? Você recebeu uma formação? Que orientação você recebe da equipe? 3. O funcionamento da equipe Sente-se membro de uma equipe de trabalho? Como funciona essa equipe? 4. A importância dos multiplicadores para o projeto Como você vê o papel dos multiplicadores no projeto? Sente-se como parte importante dele? Sente-se compromissado ou sente-se usado pelos demais participantes? Você acha que as suas idéias são importantes e valorizadas? Percebe que sua participação na missão do projeto é sempre solicitada, desejada e encorajada? Sente que você tem influência sobre as decisões importantes para a continuidade do projeto? 5. Os contatos com os outros membros Tem contatos com outros membros do projeto? Esses contatos contribuem para o seu trabalho? 6. A contribuição do projeto Como você vê a sua contribuição para o projeto? Você pode contribuir para as mudanças que acha necessárias à evolução do projeto? Que ação você desenvolveria para melhorar o projeto? 7. Passos seguintes e avaliação do processo

Figura 1. Roteiro das entrevistas coletivas com os pares-multiplicadores.

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As atividades de entrevista coletiva se desenvolviam sob a forma de perguntas, com uma duração aproximada de 1h15m com cada grupo. Elas foram realizadas em conjunto com as atividades práticas dos projetos de prevenção (reuniões de equipe, visitas às áreas de prostituição e ao local dos projetos de educação pelos pares). O roteiro de base propunha temas como a apresentação do participante, a integração no projeto, o funcionamento da equipe, a importância dos multiplicadores, os contatos com os outros membros, a contribuição para o projeto, entre outros temas significativos para os participantes do GAP (Figura 1). Na medida do possível, os resultados das deliberações foram obtidos por consenso. Além das formas de animação oriundas das minhas experiências com educação popular brasileira (nas Pastorais Sociais e da Saúde), as ferramentas adaptadas de Epsilon 1 (Jalbert et al., 1997) permitiram a abordagem dos problemas relacionados à percepção do papel que têm em seus projetos, à avaliação que fazem das ações coletivas preventivas e sociais, e aos caminhos de melhoramento que vislumbram. Após cada um dos encontros, uma grade de avaliação dos GAPs servia para resumir os intercâmbios por temas e receber os comentários sobre a experiência. Cada participante ganhava uma cópia dos resultados resumidos do encontro a fim de validar e analisar seu conteúdo com o grupo. Uma pasta plástica foi entregue para guardar esse material. Uma última entrevista coletiva, no fim do processo, permitiu tomar conhecimento das análises e, então, atuar sobre os resultados “finais”. Os grupos deveriam chegar a um duplo resultado: a produção de uma síntese da percepção coletiva e uma interrogação sobre as ações futuras que poderiam qualificar “o agir” da organização (Jalbert et al., 1997, p.40). Para viabilizar a observação participativa, foi importante viver próximo ao local pesquisado, com vistas a conhecer “por dentro” a realidade em foco. Disso decorreu o estabelecimento de relações de confiança que permitiram assistir a um conjunto de acontecimentos sociais aos quais os estrangeiros geralmente não têm acesso. A observação participativa representava um meio para observar e captar as práticas. A imersão no campo orientava as decisões de transformar o roteiro, de visitar os pontos de trabalho dos multiplicadores, de implicar-se nas atividades dos projetos. A vivência anterior e as experiências havidas durante o estudo favoreceram o entendimento do contexto sociocultural e sociopolítico implicados na investigação comunitária. A utilização de um diário auto-etnográfico permitiu descrever a experiência pessoal de pesquisadora, que reflete os pensamentos e as significações culturais como ator social e sujeito nas situações vividas. Com os pares-multiplicadores, além da coleta de dados por GAPs, outras fontes de informação, que não são analisadas neste artigo, completaram o processo de auto-avaliação. Também foram realizadas entrevistas individuais com políticos, administradores municipais, coordenadores regionais e locais, voluntários e usuários dos projetos. A confiabilidade dos processos e resultados é fortalecida pelo fato de que os participantes da pesquisa também analisaram os dados (Huberman, Miles, 2003). A suposta objetividade científica foi substituída pela confluência de diferentes pontos de vista, com a promoção de um diálogo e uma deliberação coletiva (House, Howe, 1999). Uma consideração ética importante nasceu da necessidade de preservar em sigilo informações potencialmente prejudiciais aos participantes, como sua identidade e a explicitação dos tipos de contatos entre eles. Além disso, para evitar problemas ligados a coerções e manipulação, os participantes tinham o direito de vetar a circulação do material de pesquisa sobre eles. O diálogo, a deliberação e a eventual renegociação com os participantes permaneceram em todo o percurso da pesquisa. O estudo recebeu aprovação dos Comitês de Ética da Fundação Alfredo-da-Matta e da Université de Montréal. A avaliação não foi solicitada nem financiada por instituição de saúde pública. O protocolo foi aceito, de forma que os resultados iam diretamente aos participantes para serem utilizados por eles, que podiam se valer dos relatórios para dar suporte às decisões coletivas frente às agências financiadoras. O trabalho de pesquisa avaliativa era voluntário. O Ministério da Educação quebequense ofereceu uma bolsa para esse estágio internacional, cobrindo as despesas de transporte, viagens entre o município pesquisado e a capital do estado do Amazonas e fotocópias dos relatórios. A Comunidade Eclesial de Base com a qual tinha estado compromissada em oportunidade anterior patrocinou as despesas referentes a hospedagem, alimentação e segurança física no local da pesquisa.

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Análise dos resultados Os resultados e a discussão são apresentados na seqüência dos questionamentos temáticos emergentes no processo da pesquisa-ação participativa, no seu contexto sociocultural e sociopolítico. Os resultados expõem, assim, os aprendizados havidos no percurso da pesquisa de campo. Eles são acompanhados de excertos de entrevistas que ilustram as análises e interpretações coletivas. Para melhor apresentar o processo das transformações que aconteceram ao longo da pesquisa, no convívio com os participantes na comunidade, esta parte mescla questões de metodologia com resultados e discussão. Essa forma não convencional de apresentação dos dados colhidos pareceu a mais apropriada para comunicar a maneira como os participantes influenciavam e modificavam o processo de pesquisa. Vivia-se um período pré-eleitoral no município pesquisado, e os participantes queriam aproveitar esse espaço de reflexão para otimizar a utilização das informações compartilhadas nos encontros. O tópico anterior, sobre a metodologia de que nos valemos, pontuou os elementos previstos no protocolo antes de entrar no campo. Aqui, pretendemos expor honestamente as questões de imprevisibilidade e registrar as múltiplas direções que vêm tomando as análises na realização concreta dessa pesquisa avaliativa e participativa.

Desenvolvimento da pesquisa-ação participativa em atos: transformar a imprevisibilidade em oportunidade A descrição de uma metodologia consiste numa atividade crítica que pretende fazer aparecer uma justificação das escolhas num processo de pesquisa. Nesta pesquisa-ação participativa, as considerações importantes foram: 1 o desempenho de uma avaliação em contextos situados nos limites do controle por parte da pesquisadora; 2 o confronto com uma realidade complexa e uma ampla variedade de atores; 3 os riscos de perigo sociopolítico; e 4 a situação social que torna difícil as previsões de planos estruturados com rigidez. Os métodos escolhidos deviam levar em conta esse conjunto de variáveis. Nesse sentido, o termo “imprevisibilidade” foi usado para legitimar uma perspectiva que tentou otimizar as oportunidades de acesso a informações úteis para nós (os pares-multiplicadores e a pesquisadora) e a atualização desses saberes nos contextos concretos de práticas preventivas. Enfim, a noção de imprevisibilidade permitiu contemplar o impacto de variáveis contextuais não controláveis na pesquisa avaliativa (ingerências políticas; ausência de recursos indispensáveis, como eletricidade e água; vulnerabilidade a crises climáticas, criminalidade e corrupção). A imprevisibilidade na aplicação do método inicialmente definido foi também acentuada pela participação de pessoas habitualmente excluídas desses fóruns, desacostumadas a terem suas opiniões contempladas, como no caso dos programas sanitários – uma exclusão devida a suas formas de vida (em bairros distantes ou comunidades ribeirinhas isoladas, sendo uma região de riscos advindos de inundação) e atividades de trabalho (em geral, trabalhadores do sexo, traficantes e detentos). A cooperação estabelecida significava que os participantes e eu confiávamos em nosso potencial de melhoramento rápido das condições concretas de vida e trabalho (desde o primeiro dia) e, além disso, os pares-multiplicadores viviam um período atormentado entre a urgência de agir e a necessidade de refletir sobre o que fazer. Além disso, ainda que fosse possível propor um calendário e um plano de desenvolvimento da pesquisa avaliativa, os limites de infra-estrutura da localidade exigiriam uma lógica mais prática, na qual o método tentou se inserir da maneira mais natural possível. A imprevisibilidade tinha apoio inclusive no consenso entre os participantes de que a pesquisa comunitária teria um impacto positivo não somente na produção de novos conhecimentos acadêmicos, mas também na qualidade das condições de trabalho dos pares-multiplicadores. Para promover essa auto-avaliação entre colegas, os pares-multiplicadores, que eram trabalhadores do sexo antigos ou novos, fui morar numa casa num bairro central, ao qual todos tinham fácil acesso. Desse modo, os participantes podiam me observar na relação com os vizinhos e em minhas atividades cotidianas no comércio, nos parques, nos pontos de trabalhos do projeto, nas celebrações e festas, nas casas, nas regiões portuárias, nos centros de saúde e nos espaços rurais próximos ao município. Como se vê, não se tratava exatamente de uma abordagem etnográfica tradicional, pois estava sediada em minha moradia e cultivava relações com vizinhos e colegas desde 1994. O contexto da auto-avaliação 532

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era, então, um espaço aberto não só aos participantes da pesquisa, mas também a eventuais acompanhantes, como os vizinhos e outros moradores da comunidade. Nas entrevistas individuais ou coletivas, eu era chamada por meu nome ou por vizinha, amiga, colega e enfermeira. Essa participação exigiu negociações, pois, logo no início, a coordenação regional dos programas já em curso questionava: “O que as meninas [pares-multiplicadores] terão em troca por sua participação, sua contribuição para o projeto de pesquisa? Troca faz parte da prostituição” (excerto da discussão com a coordenação local e regional, 2004). Além disso, a coordenação local considerava que o projeto de pesquisa estava chegando a um momento estratégico em que deveríamos resgatar toda sua história para lhe dar novo impulso. Considerava-se importante incluir dois outros projetos de educação sobre DST/ HIV/Aids pelos pares-multiplicadores do município. E, então, eles foram incluídos nas atividades de investigação comunitária: um projeto voltado aos homens que fazem sexo com homens (HFSH) e um outro que se dirige mais especificamente aos jovens de bairros periféricos. As mudanças de trajetória e de comportamento dos participantes foram enunciadas como as principais preocupações da coordenação local: “Será que os usuários deixam a prostituição após o contato com os projetos de prevenção? Sobretudo, eu queria dar espaço aos pares-multiplicadores para que eles digam o que importa para eles” (excerto da discussão com coordenação local e regional, 2004). Após uma semana de integração nesse município, três grupos de apreciação partilhada (GAPs) foram constituídos, respectivamente, por pares-multiplicadores dos projetos voltados para os trabalhadores do sexo (n = 5), dos HFSH (n = 7) e dos jovens de bairros periféricos (n = 5), com um total de 17 participantes. Em vez de realizar uma única entrevista coletiva, decidiu-se estender o roteiro por um período de tempo determinado com vistas a otimizar o processo de reflexão por meio das práticas cotidianas. Assim, do dia 4 de março até 16 de abril de 2004, seis entrevistas coletivas semanais por grupo permitiram acompanhar as temáticas do roteiro durante os períodos habituais de reunião da equipe (18 reuniões com presença de 75% dos pares-multiplicadores implicados nos projetos). Ao longo do processo, os encontros passaram a ser iniciados com o retorno, aos participantes, do conteúdo das entrevistas coletivas anteriores. A deliberação e a negociação dos dados coletados exigiam flexibilização do método de grupo focal. Encontros complementares foram necessários para rever os objetivos da pesquisa e avaliar nossa compreensão comum das conseqüências da divulgação futura das informações colhidas. A convivência cotidiana no campo sugere que a educação para prevenção de DST/HIV/Aids pelos pares implica uma avaliação dinâmica com os trabalhadores do sexo, considerando não somente a implantação, mas também as mudanças que se produzem no método no decurso dos trabalhos. No nosso caso, a ancoragem na dinâmica local certamente favoreceu a eleição de critérios que selecionaram pessoas de fato empenhadas no êxito do projeto.

A pesquisa-ação participativa para os participantes Demo (2001) afirma que a arte do processo de investigação participativa é tratar sabiamente das preocupações de auto-sustentação e de sobrevivência, como sendo consolidação da cidadania. Se a participação for radical e honesta, é necessária uma apropriação local das decisões metodológicas da pesquisa avaliativa. É preciso que partilhemos (pesquisadores e pares-multiplicadores) a apropriação dos objetivos, dos procedimentos e dos modos de análise: todos são necessários para que haja uma apropriação dos resultados: “Para entender como alguém lê, é necessário saber como são seus olhos e qual é sua visão de mundo” (Boff, 2003, p.9). Este excerto ilustra a maneira como os participantes entendiam o processo de relatar as atas das entrevistas coletivas nas reuniões: Um inicia com uma idéia; um outro a acrescenta. Enfim, este processo termina com um texto coletivo que tem sentido para nós. Isto justifica a importância, numa próxima reunião, de voltar sobre os temas discutidos no encontro anterior. Esta é uma forma de consenso sobre o que é importante para nosso projeto, para nos propulsar em direção à ação. É uma forma de saber construído conjuntamente, que é a nossa imagem, com suas imperfeições, mas ligado à nossa realidade concreta, ao nosso trabalho, às nossas práticas do cotidiano. (Transcrição de um GAP, 18-03-2004)

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O método participativo previsto tinha uma estrutura inicial equivalente a 25% do trabalho (roteiro de base e protocolo de pesquisa). Demandava uma consciência coletiva de que a participação exigiria um significado co-construído, isto é, de que todos deveriam estar de acordo sobre o que tentávamos construir conjuntamente. Conseqüentemente, a participação era uma negociação cultural. A cooperação na investigação participativa supunha uma lógica de participação coletiva, de inclusão das opiniões de participantes habitualmente excluídos das avaliações e das gestões municipais (em geral, trabalhadores subalternos, jovens, trabalhadores do sexo, moradores de invasões ou parques públicos). Assim, a perspectiva da avaliação participativa radical precisava de uma comunicação aberta que não se dava habitualmente nos contextos de poder político, social e econômico. Vivíamos num contexto em que, apesar de quaisquer esforços em contrário, as informações escapariam do grupo e se disseminariam. Mencionou-se, certa vez, que nos gruops havia participantes ligados à política partidária. Por isso foi de suma importância discutir abertamente essa situação durante as entrevistas coletivas, pois estávamos em período pré-eleitoral e era imprescindível uma definição coletiva de confidencialidade e ética: Certo, existem histórias mais pessoais, anedotas, situações vividas por uma só participante. A apresentação destes trechos de histórias são inestimáveis para o grupo. Estas situações ou estes eventos escolhidos para serem escritos no relatório estão lá para dar uma imagem dos temas escolhidos e discutidos em grupo. Para preservar a confidencialidade dos atores, estas histórias são apresentadas de forma impessoal e sem nome. Nós sabemos quem são os atores de tal história falada no encontro anterior, nós nos relembramos, mas devemos o mais possível tentar preservar o anonimato para permitir que estes participantes possam continuar a se expressar espontânea e livremente durante os encontros. É certo que os participantes podem retirar trechos de histórias pessoais que não querem que apareçam no relatório oficial. (Transcrição de um GAP, 18-03-2004)

As modificações no protocolo previsto podiam ser percebidas como imprevisibilidades indesejáveis do ponto de vista da instituição de pesquisa e da administração de saúde pública. Afinal, é bastante possível que um estrangeiro não saiba decodificar os fatores de variabilidade contingente desse pequeno município longínquo e, então, os veja como obstáculos intransponíveis. Minha experiência no campo durante o período pré-eleitoral sugeria que responder às necessidades de ajustes para contornar os obstáculos aparentemente sem saída implicava uma compreensão evolutiva das preocupações dos participantes e uma capacidade de encaminhar as transformações possíveis sem expor a riscos as pessoas envolvidas (refiro-me a problemas como falta de água e eletricidade, ameaças aos participantes por gangues de rua, à cooptação para campanhas eleitorais e congêneres). Creio que temos de aceitar a premissa de que a ciência do povo é o conhecimento prático, vital, empírico, que o permitiu sobreviver, interpretar, criar, produzir e trabalhar por séculos, e tem sua própria racionalidade e sua própria estrutura de causalidade (Fals-Borda, 1980). Em determinado momento dos intercâmbios, alguns participantes manifestaram o desejo de entrevista individual em forma de narração de vida ou poema. Eles contavam a história de sua infância e dos primeiros contatos com o projeto inicial de educação pelos pares. Tratava-se de uma forma de dar o testemunho de experiências com a intenção de ajudar outras pessoas vivendo situações semelhantes. Para os pares-multiplicadores, dos quais alguns tiveram transformada sua trajetória pessoal no contato com o projeto, o trabalho formal de educador da saúde era percebido como uma oportunidade de inclusão social. Muitos ilustravam essa transformação como a passagem de um estado “de animal a humano”, no qual se pode “ser chamado de Senhor [Mr.]” e “ser cumprimentado por policiais” (transcrição de excertos de entrevista individual, março 2004). Essas entrevistas individuais (“em particular”, como referiam os participantes) não estavam previstas no método inicialmente elaborado, mas vieram acrescentar profundidade às discussões coletivas sobre as mudanças pessoais atribuídas ao projeto inicial com trabalhadores do sexo. Alguns participantes multiplicadores recuperaram o resumo do “relato de vida” deles como material educativo no contato com os pares:

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Foi ali que teve o primeiro contato com o projeto, no cais [...] Ouviu uma palestra e nesta o multiplicador falou sobre DST e Aids. Admirou-se de ver como um homossexual podia dar palestra, fazer este trabalho, fora das áreas tradicionais de trabalho homossexual, como os cabeleireiros. Achava que não tinha esperança para o trabalho de um homossexual. (Excerto de um relato de vida construído numa entrevista individual, abril 2004)

A convivência cotidiana no campo e as experiências anteriores de prática comunitária de enfermagem no município ofereceram uma proximidade peculiar com os participantes. Os laços de confiança e a restituição sistemática das informações recolhidas foram os pontos-chave para a concretização dessa participação. Podíamos facilmente fazer comentários, recortar pedaços, discutir a forma de divulgação, até conversar sobre conteúdos pessoais mais íntimos, tanto dentro da casa que servia de ponto de encontro, como em espaços não institucionais (nas lanchonetes, nos bares ou nos parques, na rua etc.).

Produção e transmissão rápida dos saberes para melhoramento concreto das condições de trabalho dos pares-multiplicadores Durante o percurso dos encontros, construímos, juntos, novas informações que serviam imediatamente para reorientar as atividades nos pontos de trabalho. Por exemplo, houve uma ocasião em que discutimos sobre a diminuição de trabalhadoras do sexo nas consultas de DST/Aids na sede do projeto. “Pensa-se que seria porque o atendimento custa muito tempo e, às vezes, os donos [cafetões] não vão deixar as mulheres irem para consulta, uns outros sim. [...] Mas tem que saber realmente o que está acontecendo...” (transcrição de um GAP, 7-04-2004). Propôs-se, então, reunir pequenos grupos de mulheres e conversar com elas, saber melhor o que pensavam sobre as consultas. Num outro momento, discutiu-se o valor da não-divulgação de certas informações para permitir aos participantes falarem livremente durante os encontros. Esses novos procedimentos desenvolvidos no contexto da investigação decorreram das preocupações com as práticas educativas junto aos trabalhadores do sexo, pois o sigilo é igual a lavar roupa suja em casa. Por exemplo, sobre a informação relativa aos testes rápidos de sífilis, é importante que os resultados fiquem confidenciais, é uma informação que se passa entre o médico e a paciente. Tem que trabalhar com muito sigilo. (Transcrição de um GAP, 25-03-2004)

As observações permitiram constatar que, durante suas conversas informais, os pares-multiplicadores compartilhavam suas aprendizagens, seus conhecimentos, suas reflexões sobre a maneira de abordar os trabalhadores do sexo ou os donos de bar, as dificuldades encontradas nos flutuantes e a organização de nova atividade no município. Desde o início do processo, vários pares-multiplicadores manifestaram preocupações frente à descontinuidade dos serviços de atendimento a esse grupo. O fato de “saber para onde elas vão” e “saber como se organizar” foi apontado várias vezes como relevante (transcrição de um GAP, 4-032004). Foi importante, então, observar indicadores tangíveis no processo de auto-avaliação dos projetos. Desse modo, as entrevistas coletivas levaram em consideração a lucidez dos pares-multiplicadores locais quanto às possibilidades reais de transformação social no município. Eles sabiam muito mais sobre o que podia realmente ser concretizado e o que ultrapassava as possibilidades de mobilização coletiva dos trabalhadores do sexo na cultura local. E, ao longo do processo de auto-avaliação, os paresmultiplicadores dos três projetos acabaram por se unir para iniciar visitas sanitárias nas duas prisões municipais. Eles queriam oferecer atendimento médico, testes rápidos de sífilis e palestras educativas às mulheres detentas. No final do estudo, em junho de 2004, essas atividades foram incorporadas ao cronograma dos projetos de prevenção DST/HIV/AIDS. O processo de auto-avaliação, com seu potencial de mobilização, tem “gerado práticas e saberes imprevisíveis” (Vasconcelos, 2002, p.114).

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Percepção do processo de auto-avaliação: resgatar a história coletiva Neste tópico, tratamos de uma narrativa que apresenta o olhar dos pares-multiplicadores sobre o trabalho de educação de que participam. Um texto construído coletivamente expõe os elementos considerados essenciais. Após deliberação em grupos, sem minha presença, eles escolheram excertos dos encontros em GAPs que consideraram significativos para divulgação ao público externo. A seguir, alguns dos excertos do texto coletivo enviado para o jornal interno da coalizão quebequense de luta contra a Aids: Nós, multiplicadores, saímos de casa às 20h00 na quinta-feira e vamos até o ponto de encontro que fica localizado na praça frente ao cais do porto. [...] Algumas [trabalhadoras do sexo] contam o que tem acontecido no seu dia-a-dia e de repente nós viramos confidentes ali mesmo na mesa de um bar. Recebemos confidências como, por exemplo, a história aonde elas falam sobre a filha que foi morta por um marginal [...]. (Transcrição de um GAP, 14-04-2004) Trabalhar junto com a carência. Os multiplicadores têm que conquistar estas pessoas... vão dar carinho, vão trabalhar com estas carências – claro que não é chantagem emocional. [...] contato é primordial – pois os multiplicadores não são robôs distribuidores de camisinhas e informação. (Transcrição de um GAP, 25-04-2004) Trabalho de conjunto. Outro acrescenta que todo mundo vai junto no trabalho, não trabalham sozinhos... Deste jeito, cada um coloca sua idéia, mostra uma coisa para os outros. [...] O projeto tem como meta a Educação pelos pares, então, vamos dois ou três (formando uma equipe). Em relação aos preconceitos, tem que ir juntos, para enfrentar as pessoas, dar as palestras nas escolas, mostrar slides... (Transcrição de um GAP, 18-03-2004)

Discutimos também a importância dos valores humanos (cordialidade, paz, crescimento, coragem, esperança, benevolência), de um trabalho coletivo e de parceria, das preocupações com a transmissão dos saberes que adquiríamos no percurso das ações educativas. Vários pares-multiplicadores expressaram preocupação com a percepção da população em geral frente ao compromisso deles com trabalhadores do sexo, e desejavam que o trabalho de pares-multiplicadores fosse reconhecido como contribuição social para todo o município. Na avaliação do método dos GAPs, sobressaiu a dimensão de recuperação da história coletiva. “Assim, foi deliberada esta questão do retorno das informações, das palavras, dos temas através dos relatórios do GAP e das discussões sobre isto em cada reunião. No final, parece que é o único método de trabalho para auto-reflexão pessoal e coletiva” (transcrição de um GAP, 10-03-2004). Em um dos GAPs, mencionou-se especificamente que o retorno “das palavras” pode ser vivido como uma certa autodiscriminação. “Foi explicado que ler no papel a ‘história’ que foi dita verbalmente provoca uma certa discriminação de si mesmo, pois a pessoa vive numa sociedade que a discrimina e a marginaliza” (transcrição de um GAP, 25-03-2004). A maioria dos participantes mencionou que os encontros ajudavam a relembrar sua história no projeto de prevenção a DST/HIV/Aids. E, juntos, também relembramos as dificuldades para chegar até hoje, a origem dos projetos voltados aos homossexuais e aos adolescentes de bairros periféricos com base na experiência inicial nas zonas de prostituição do município. Para Brandão (1985), isso significa “aprender a reescrever a história a partir de sua história” (p.111). O conteúdo das entrevistas coletivas foi retornado, primeiro, aos respectivos GAPs, sob forma de minutas das temáticas discutidas e analisadas coletivamente durante os encontros. Os três grupos participantes receberam um relatório para que pudessem dialogar com os resultados e lhes dar as feições finais. Eles foram convidados a usar esses dados para divulgação nos congressos nacionais ou nas negociações com agências financiadoras. Com o retorno sistemático das informações construídas nos GAPs, o processo gerou uma constante reflexão sobre situações emergentes e urgentes no município. No momento da avaliação final, os participantes descreveram a experiência como um “fortalecimento 536

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como pessoa e como projeto”, “um despertar” que “aumentou a auto-estima”, “deu uma renovada”, uma “vira-volta”, permitiu “mudar o cotidiano”, “um pensar em incorporar outras atividades (sobre uso de drogas injetáveis, visitas às penitenciárias, encontros em novos pontos das trabalhadores do sexo etc.)” (transcrição de um GAP, 28-05-2004). A re-apropriação do discurso de nossas ações suscitou uma “re-apropriação dos atos” (Mendel, 1998) e a criação de um novo “agir”, tanto no processo da pesquisa avaliativa quanto nas práticas de educação pelos pares.

Considerações finais A pesquisa avaliativa teve início no campo no momento em que os pares-multiplicadores se questionavam sobre a auto-sustentação dos projetos municipais de prevenção em curso. Sem ajustes ou adaptações dos procedimentos metodológicos inicialmente previstos, os resultados da pesquisa teriam sido distantes das preocupações concretas dos participantes. A análise da experiência mostra que existe um processo evolutivo tanto nas práticas de educação pelos pares quanto na pesquisa. A percepção do dinamismo das transformações durante esse processo não teria sido possível por meio de uma abordagem transversal. Foi pesquisa avaliativa com inserção no campo que permitiu a observação dessas mudanças. Os esforços de compreensão foram dirigidos para esse dinamismo interno, mais do que para o acúmulo de dados possivelmente inúteis para os pares-multiplicadores. O confronto cotidiano com a realidade pesquisada ressaltou formas de inércia, oposições e distorções nas relações sociais e políticas constitutivas dos projetos de prevenção levados a cabo pelos pares. Diante disso, um participante notou que a reflexão fomentada pelos GAPs permitiu “desatar os nós” que freavam as atividades dos projetos. A pesquisa-ação participativa suscitou a revelação de dimensões que não eram necessariamente levadas em consideração nas avaliações quantitativas anteriores. Os intercâmbios deram relevo, entre outras coisas, a dimensões da realidade, como a territorialidade dos grupos nos bairros periféricos, que são difíceis de alcançar quando os objetivos preestabelecidos ignoram as características variáveis do contexto local. Já que essas dimensões da realidade não encontram indicadores mensuráveis e reconhecidos cientificamente, permitindo sua expressão pública, muitas atividades realizadas pelos agentes de fronteira não são ouvidas ou são censuradas. É o caso das ações de solidariedade, das formas originais de estabelecimento dos elos de confiança, que permitem a superação dos obstáculos de um contexto caracterizado por alto nível de periculosidade. Como registrou um membro da coordenação do programa, para avaliar as ações de saúde no contexto amazônico, de saída é preciso levar em consideração as previsões das cheias e das vazantes do rio, já que as distâncias são percorridas por via fluvial: O meio geográfico é propício para o desenvolvimento de uma inteligência prática em ligação com uma realidade palpável e aos problemas do cotidiano da sobrevivência. As aprendizagens desta forma de pensamento concreto são criadas a partir das analogias com a natureza, as comparações com situações similares, experiências vividas coletivamente ou individualmente. (Transcrição de entrevista individual, abril 2004)

Nosso resgate histórico da implantação do projeto inicial de educação pelos pares nos meios de prostituição sugere um processo de transferência das aprendizagens coletivas realizadas pelos paresmultiplicadores, que foram utilizadas na criação de dois outros projetos de prevenção no município. Os aprendizados relativos às experiências de participação e de auto-avaliação com base no projeto inicial, levado a cabo em 1999 com trabalhadores do sexo, foram inseridos nas atividades dos novos projetos de 2003 e 2004. Contemplar tais dimensões de participação contribuiu para transformar trajetórias pessoais e mesmo coletivas (como é o caso, particularmente, da comunidade homossexual). Parece, então, de suma importância que se leve em consideração que essas mudanças de trajetória e as aprendizagens práticas dos participantes (inclusive da pesquisadora) continuam no tempo. O exemplo que os pares-multiplicadores projetam em seus bairros, junto a suas famílias e a seus próximos faz desses atores locais agentes de transformação sanitária e social fora da rede institucional de saúde. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Por fim, pode-se dizer que a maior dificuldade desta pesquisa é a generalização da experiência da perspectiva de participação popular (Vasconcelos, 2002). Firestone (1990) argumenta que, na elaboração de uma investigação, é preciso refletir sobre três critérios: 1 a generalização, 2 a precisão e o controle das medidas, e 3 o realismo existencial. Mas esses três critérios não podem ser elaborados e postos em prática simultaneamente, o que coloca o pesquisador num dilema. A ênfase de um critério provoca a obnubilação dos outros; assim, a etnografia clássica é extremamente acurada no que diz respeito ao realismo existencial, porém apresenta resultados com menor potencial de generalização e precisão. De fato, não há um método melhor do que outro: tudo depende do enfoque de análise. No nosso caso, a avaliação era valorizada como possibilidade de aprendizagem (Kushner, 2000), era uma tentativa de interface entre saberes populares, sociais e profissionais na produção de conhecimentos sobre prevenção de DST/HIV/Aids, na qual a comunidade se tornou avaliativa. Neste estudo, propus avaliar os projetos em curso, de forma qualitativa e participativa, para melhor entender uma realidade complexa dando voz a quem, em geral, é “abafado” nas avaliações externas.

Agradecimentos Agradeço aos pares-multiplicadores dos projetos referidos e à Dra. Adele Schwartz Benzaken, coordenadora do Setor DST/HIV/Aids da Fundação Alfredo-da-Matta, pelo convite para retornar ao interior do Amazonas a fim de desenvolver esta pesquisa; assim como pela qualidade da sua abordagem na prevenção de DST/ HIV/Aids com trabalhadores do sexo. Agradeço, também, ao professor Ricardo Zúñiga, do Serviço Social da Universidade de Montreal, que me orientou com seus conselhos sobre avaliação comunitária e metodologia participativa. Referências BENZAKEN, A.S. et al. Intervenção de base comunitária para a prevenção das DST/Aids na região amazônica, Brasil. Rev Saúde Pública, n. 41 (Supl.2), p.118-26, 2007. BENZAKEN, A.S. et al. Risk perception for STD and behaviour changes in sex professionals of Manacapuru municipality. DST J. Bras. Doenças Sex. Transm., v.15, n.2, p.9-14, 2003. BENZAKEN, A.S. et al. Baixa prevalencia de DST en profesionales del sexo en un municipio del interior de Amazonas. DST J. Bras. Doenças Sex. Transm., v.14, n.4, p.9-19, 2002. BOFF, L. A águia e a galinha: uma metáfora da condição humana. 4.ed. Petrópolis: Vozes, 2003. BRANDÃO, C.R. A educação popular na escola cidadã. Petrópolis: Vozes, 2002. ______. Pesquisa participante. São Paulo: Brasiliense, 1985.

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O CASO DE UMA COMUNIDADE AVALIATIVA ...

LAPERRIÈRE, H. El caso de una comunidad evaluativa emergente: reapropiación por los pares-multiplicadores de la apreciación de sus propias acciones preventivas y sociales contra las ITS/VIH/Sida en Amazonas, Brasil. Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.12, n.26, p.527-40, jul./set. 2008. Este artículo relata la sistematización de una experiencia de investigación evaluativa y participativa de un proyecto de prevención de las ITS/VIH/Sida implantado en las zonas de prostitución de un municipio del interior del estado de Amazonas, Brasil. La perspectiva de evaluación cualitativa ha enfatizado aspectos que no fueron considerados en la implantación del proyecto inicial, referentes a la construcción de los significados colectivos directamente unidos a la implantación de la educación por los pares. El relato enfatiza a experiencia comunitaria de los pares-multiplicadores del proyecto y su reapropiación de la evaluación de sus acciones preventivas y sociales. Los resultados y la discusión se presentan en un doble prisma: 1 de la secuencia de los cuestionamientos temáticos que emergieron en el campo, y 2 de las prácticas de investigación evaluativa desarolladas en un determinado contexto sociocultural y sociopolítico.

Palabras clave: Investigación comunitaria. Evaluación de resultados de acciones preventivas. Educación popular en salud. VIH/Sida. Amazonas. Recebido em 08/05/06. Aprovado em 28/08/07.

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artigos

Narrativas, processos reflexivos e prática profissional: apontamentos para pesquisa e formação

Taís Quevedo Marcolino1 Maria da Graça Nicolletti Mizukami2

MARCOLINO, T.Q.; MIZUKAMI, M.G.N. Narratives, reflective processes and professional practice: contributions towards research and training. Interface Comunic., Saúde, Educ., v.12, n.26, p.541-7, jul./set. 2008. This study offers methodological contributions for research and educational projects involving the use of narratives and reflective processes. Based on a study on professional practice, written narratives from clinical sessions within Occupational Therapy were analyzed using the categories proposed by Hatton and Smith (1995), to show the process of reflecting on actions: descriptive narration, reflective description, dialog reflection and critical reflection. The results presented in this paper relate to the details involved in putting this methodology into operation, especially regarding the format (grammatical structure) and the content (manifested reflection) of each category. In this respect, it was sought to complement the work of Hatton and Smith, through providing better systematization for using these categories.

Este trabalho oferece contribuições metodológicas para projetos de pesquisa e formação que envolvam o uso de narrativas e processos reflexivos. Com base em um estudo sobre prática profissional, foram analisadas narrativas escritas de sessões clínicas de Terapia Ocupacional utilizando-se as categorias propostas por Hatton e Smith (1995), para evidenciar o processo de reflexão-sobre-a-ação: narração descritiva, descrição reflexiva, reflexão dialógica e reflexão crítica. Os resultados apresentados referem-se ao detalhamento da operacionalização da metodologia, sobretudo em relação à forma (estrutura gramatical) e aos conteúdos (reflexão evidenciada) de cada categoria. Neste sentido, procura-se complementar o trabalho de Hatton e Smith, oferecendo uma melhor sistematização para o uso dessas categorias.

Key words: Narrative inquiry. Education. Research methodology. Reflexive practitioner. Occupational therapy.

Palavras-chave: Narrativas. Educação. Metodologia de pesquisa. Profissional reflexivo. Terapia ocupacional.

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Terapeuta ocupacional. Doutoranda, Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal de São Carlos. Rodovia Washington Luís, km 235, Caixa Postal 676 São Carlos, SP 13.565-905 taisquevedo@gmail.com 2 Pedagoga. Centro de Comunicação e Letras, Programa de PósGraduação em Educação, Arte e História da Cultura, Universidade Presbiteriana Makenzie, São Paulo. 1

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NARRATIVAS, PROCESSOS REFLEXIVOS E PRÁTICA ...

Introdução Desde a década de 1980, tem aumentado o interesse, em diversas profissões, de investigar a prática profissional, especialmente após as contribuições de Donald Schön (2000; 1983) sobre a natureza desta prática, que passou a ser compreendida, não como uma aplicação de teorias, mas como conhecimento produzido pelo profissional com base em situações onde existe incerteza, singularidade, complexidade e conflito de valores. Estas proposições também promoveram transformações nas práticas de ensino das profissões, tanto na formação inicial como na formação continuada, sobretudo ao se valorizarem atividades formativasinvestigativas voltadas para como os estudantes e/ou profissionais constroem suas compreensões sobre seu fazer profissional (Mizukami et al., 2002; Almeida, Feuerwerker, Lhanos, 1999). O conhecimento que se demonstra em situações do dia-a-dia é um conhecimento tácito, ou implícito – o profissional sabe que sabe, mas não consegue explicar o que sabe (Schön, 1983) – e necessita se tornar explícito para que possa ser conhecido e avaliado. Nesta direção, o profissional precisa se envolver em um processo de reflexão sobre a ação, com base no qual ele poderá descobrir se suas ações estão coerentes com suas crenças e compreensões pessoais, redefinir seus significados e até produzir novos conhecimentos valendo-se dessas reflexões. O processo reflexivo, caracterizado como um tipo de pensamento atrelado à ação e que demanda uma ação qualificada diferente da rotineira (Rodgers, 2002; Hatton, Smith, 1995; Dewey, 1976), tornou-se um dos elementos mais importantes para se compreender a construção do conhecimento prático-profissional. Além disso, também se tornou o eixo para nortear a aprendizagem da prática, ao propiciar uma maior compreensão das relações que se estabelecem com outras experiências e idéias e, assim, criar uma condição de continuidade da aprendizagem (Rodgers, 2002). Desse modo, diversas estratégias têm sido utilizadas tanto para pesquisa como para formação para acessar a reflexão sobre a prática, sendo a principal delas o diário reflexivo (Zabalza, 1994). O conteúdo do diário caracteriza-se como uma narrativa sobre a prática, na qual o estudante ou o profissional pode relatar quais foram suas reflexões e suas ações em determinada situação, permitindo o acesso ao pensamento, fixando a ação no contexto em que ela ocorre, e explicitando suas compreensões, em um movimento que permite retornar à experiência (Rodgers, 2002; Cunha, 1997). Todo este processo demanda o que o psicólogo Jerome Bruner (1997) nomeou de pensamento narrativo, que é um tipo de pensamento trilhado no particular e que se preocupa com as conexões entre os eventos específicos para explicar os motivos. O processo de narrar a própria experiência possibilita ao sujeito reconstruir sua trajetória e lhe oferecer novos sentidos, estabelecendo uma relação dialética entre experiência e narrativa, mediada pelos processos reflexivos (Rodgers, 2002; Cunha, 1997). Desta forma, compreender como estes processos reflexivos acontecem e o que realmente evidenciam tornou-se bastante relevante neste contexto de ensino e pesquisa. Hatton e Smith (1995), em pesquisa realizada com alunos do curso de formação inicial de professores reflexivos da Universidade de Sydney, Austrália, indicaram que as narrativas escritas mostraram-se as ferramentas mais adequadas para se evidenciarem diferentes tipos de reflexão utilizados pelos alunos. Para a análise destes relatos, os autores elegeram uma estrutura operacional apoiada no modelo de níveis reflexivos, proposto por Van Manen (1977 citado por Hatton, Smith, 1995), derivado do trabalho do filósofo Habermas, com base na qual foram evidenciados quatro tipos diferentes de relatos, que variaram desde uma simples descrição dos eventos, a modos reflexivos que tanto justificavam as ações como explicitavam as compreensões de forma mais ampla, envolvendo experiências anteriores e outros contextos. São eles: redação descritiva, descrição reflexiva, reflexão dialógica e reflexão crítica (a tradução dos termos seguiu o trabalho de Mizukami et al., 2002). Tanto o conteúdo como as diferentes estruturas de linguagem utilizadas nos relatos auxiliaram na categorização dos tipos de reflexão, embora este processo não tenha sido explicitado no artigo. Todos os tipos de reflexão foram encontrados nos resultados apresentados por Hatton e Smith (1995), mas com diferenças qualitativas entre eles. Os autores ressaltaram a importância de não se colocar uma hierarquia entre estes diferentes tipos, pelo menos sem contextualizar de que forma ela 542

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MARCOLINO, T.Q.; MIZUKAMI, M.G.N.

artigos

pode acontecer. Um exemplo para este fato foi a qualidade dos relatos caracterizados como reflexão crítica (consciência de que as ações e os eventos não são apenas explicados por muitos pontos de vista, mas também pelos diferentes contextos sociohistórico-político-culturais), pois embora estes relatos procurassem incluir contextos mais amplos, o conteúdo das reflexões encontradas mostrou ser bastante superficial. Em contraponto, os relatos caracterizados como reflexão dialógica explicitavam conteúdos reflexivos mais consistentes. Estas categorias também foram utilizadas para a análise dos dados de uma pesquisa interessada em compreender a dimensão educativa presente nos procedimentos terapêuticos de Terapia Ocupacional com base na investigação das narrativas de uma profissional sobre sua prática (Marcolino, 2005). Durante o processo de análise dos dados, foi possível construir um maior detalhamento no uso das categorias, identificando características singulares para cada uma delas, de modo a complementar o trabalho de Hatton e Smith (1995).

Metodologia

Atendimento na área de Saúde Mental. Na época, a paciente era uma adolescente de 16 anos, com diagnóstico clínico de esquizofrenia, e que já estava em atendimento de Terapia Ocupacional, em clínica particular, há seis meses.

3

Este trabalho é parte dos resultados da pesquisa supracitada, com ênfase no detalhamento do uso das categorias utilizadas para evidenciar os processos reflexivos presentes nas narrativas escritas. Deste modo, os dados da pesquisa foram provenientes de narrativas escritas, por uma terapeuta ocupacional, de dez sessões de atendimento clínico de uma única paciente, coletadas no período de março a maio de 20043. Foi solicitado à terapeuta ocupacional que estes relatos pudessem expressar a descrição dos eventos e suas reflexões sobre o que julgasse relevante (reflexão sobre a prática). A análise dos dados pautou-se nas categorias dos diferentes tipos de processos reflexivos, propostas por Hatton e Smith (1995). No processo de análise dos dados, em um primeiro momento, após a leitura de todos os relatos escritos das sessões de atendimento, procurou-se identificar os trechos em que houvesse indícios de reflexão. Desta forma, obteve-se um quadro contendo trechos de descrição, caracterizados como narração descritiva, e trechos reflexivos. Cada trecho deste foi chamado de evento. Após esta etapa, foi feita uma nova leitura dos trechos reflexivos, mediante a qual foi possível categorizar os eventos reflexivos, pois, em alguns trechos, a terapeuta ocupacional justificava suas ações, caracterizando uma reflexão descritiva, e em outros trechos expandia suas reflexões em uma conversa consigo mesma, envolvendo acontecimentos passados relacionados ao tratamento, à relação com a paciente, às informações coletadas anteriormente em conversas e em suas observações, o que caracteriza a reflexão dialógica. Não foram encontrados relatos tipo reflexão crítica. Ainda assim, restavam dúvidas sobre em qual categoria deveriam ser incluídos alguns fragmentos, de estrutura similar, que se caracterizavam por expressar a percepção da terapeuta sobre a paciente. Estes eventos, embora pudessem ser enquadrados como uma conversa consigo mesmo, pareciam se referir ao momento atual, e não a um retorno ao passado. Além disso, não se caracterizavam por uma ação prévia ou posterior e, neste sentido, não ofereciam uma justificativa. Portanto, embora pudessem parecer casos de reflexão dialógica, inferiu-se que estes fragmentos estariam mais próximos da narração descritiva, pois descreviam uma observação subjetiva da terapeuta, na qual ela levantava uma hipótese, mas não a explorava. Sendo assim, estes fragmentos foram mantidos junto à narração descritiva. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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NARRATIVAS, PROCESSOS REFLEXIVOS E PRÁTICA ...

Em nova etapa, cada tipo de relato reflexivo foi analisado separadamente. Neste momento, foi possível identificar as semelhanças entre eles, tanto no que se refere ao seu propósito e conteúdo, como sua estrutura gramatical que, na grande maioria das vezes, continha elementos que se repetiam. Cabe ressaltar que as categorias propostas por Hatton e Smith (1995) não estavam delineadas com detalhes e os autores não discutiram profundamente a forma como trabalharam na análise dos relatos dos estudantes. Este fato, ao mesmo tempo que deixa em aberto a possibilidade do uso de tais categorias, não oferece uma estrutura clara de como utilizá-las. Pretendemos, com este trabalho, oferecer contribuições para um melhor delineamento destas categorias, para seu uso em pesquisa e no ensino, ressaltando que há linhas tênues entre a separação de um ou de outro tipo de reflexão.

Resultados A seguir, serão apresentados os diferentes tipos de relato narrativos e reflexivos encontrados, ressaltando-se o conteúdo evidenciado e a estrutura gramatical associada a cada tipo. Cada categoria será seguida de um excerto narrativo ou reflexivo, a título de exemplo, no qual a estrutura gramatical aparecerá sublinhada em tracejado.

Narração descritiva A narração descritiva é o registro dos eventos em que não há justificativa para a ocorrência das ações. Os excertos de narração descritiva se detêm na descrição da situação e de seu contexto, apresentam o desenrolar da trama, mostrando as ações dos personagens envolvidos, sem suas justificativas explícitas. Como foi apresentado anteriormente, na narração descritiva incluiu-se um tipo de fragmento que apresenta a percepção da terapeuta sobre a paciente e que parece descrever uma observação subjetiva da terapeuta no momento presente. As expressões gramaticais características desses eventos foram: parece que, observo, percebo. Além de outras expressões gramaticais que parecem indicar uma observação subjetiva da terapeuta sobre o que poderia estar acontecendo com a paciente, tais como: [a paciente estaria] tentando entender, prestando atenção, tenta compreender. Vou chamar F. na sala de espera, F. entra rapidamente na sala dizendo que precisava fazer dois presentes para o aniversário de duas meninas de sua sala de aula, um para o dia 1 de abril e outro para o dia 4 de abril. Falo que antes de começarmos os projetos eu necessitava conversar uma coisa importante com ela e falo sobre a pesquisa. F. rapidamente fala que aceita, falo da necessidade de conversarmos com a mãe, já que era ela que deveria assinar o termo de compromisso (consentimento). F. fala que adora ajudar as pessoas... Logo que termino de falar F. rapidamente pede para eu ajudá-la a fazer algo para dar de presente para as meninas ... e da necessidade de ser rápido para dar tempo de fazer dois presentes. Falo do tempo que tem disponível para fazer, conto quantos atendimentos ainda tem para acabar os presentes, F. parece não escutar e logo começa a abrir as gavetas, andando de um lado para o outro. (1ª sessão)

Descrição reflexiva A descrição reflexiva procura oferecer justificativas para as ações baseadas no julgamento pessoal ou em referências da literatura. É uma tentativa de reflexão, mas de modo descritivo. Reconhece diferentes pontos de vista e aparece sob duas formas: a) centrada na perspectiva pessoal; b) centrada no reconhecimento de múltiplos fatores (Hatton, Smith, 1995).

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artigos

Foram encontradas duas espécies de relatos tipo descrição reflexiva, de mesma estrutura, mas que diferiam quanto ao tipo de justificativa para as ações: um deles evidenciava a finalidade da ação (a); e o outro uma intenção investigativa (b). No primeiro caso (a), a construção gramatical mais comum foi o uso de um verbo na primeira pessoa do singular, no Presente do Indicativo, mostrando ações diretivas da terapeuta ocupacional, como: faço, mostro, tento associar, tento fazer, resolvo, pergunto; seguido de uma expressão que denota a idéia de finalidade: na tentativa de, para que, com o objetivo de, para tentar, tento fazer com que, estava tentando. Pergunto se ela tinha pensado em alguma coisa que gostaria de fazer para presentear, ela fica andando de um lado para o outro e fala que não sabe, e que eu tinha que ajudá-la a pensar em algo. Primeiramente começo a mexer nos materiais, convido-a mexer também, com o objetivo de provocá-la a chegar em algum produto. (1ª sessão)

No segundo caso (b), a mesma construção gramatical (uso de um verbo na primeira pessoa do singular, no Presente do Indicativo) foi seguida de uma expressão para caracterizar a postura investigativa, como: para investigar, para entender melhor, na tentativa de entender melhor, na tentativa de conhecer, para ver se, para tentar entender, para conhecer melhor, com o objetivo de conhecer, para tentar observar. Peço para ela me explicar mais sobre sua religião que eu não conhecia muito bem e tinha vontade de aprender (faço isso na tentativa de conhecer como ela se relacionava com a religião, relação de espírito e sintomas psicóticos, alucinações). (4ª sessão)

Reflexão dialógica Episódios de reflexão dialógica foram comuns na narrativa da terapeuta ocupacional e apareceram em quase todos os relatos. A reflexão dialógica caracteriza-se por uma forma de discurso consigo mesmo, um retorno aos fatos usando diferentes alternativas para levantar e explicar hipóteses. Como a descrição reflexiva, aparece sob duas formas: centrada em julgamentos pessoais e no reconhecimento de múltiplos fatores (Hatton, Smith, 1995). A estrutura gramatical associada a este tipo de reflexão apresentou-se da seguinte forma: expressões que indicam uma ação de refletir – lembro das vezes em que, penso que, pensei que, fiquei pensando, acho que, pude observar, faço hipóteses, tento lembrar, havia observado, já observei momentos em que, venho percebendo, fiquei pensando, fiz associação – muitas vezes em conjunto com expressões que apontam para um tempo passado – já teve atendimentos em que, em outros atendimentos, em vários atendimentos, em momentos anteriores. Logo que termino de falar F. rapidamente pede para eu ajudá-la a fazer algo para dar de presente para as meninas (observo que ela não fala “amigas”, parecendo algo distante e desconhecido, uma vez que sua vida é despovoada de amigas, relacionando-se apenas com a mãe e os avós, algo que surgiu em outros atendimentos, paciente reconhece a falta e carências dessas pessoas em sua vida, acredito que ela esteja em um processo de aproximação de algumas pessoas na escola”). (1ª sessão)

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NARRATIVAS, PROCESSOS REFLEXIVOS E PRÁTICA ...

Discussão O delineamento da operacionalização destas categorias ofereceu parâmetros para se identificarem os diferentes tipos de reflexão explicitados nas narrativas escritas, tendo como eixo a construção gramatical de cada tipo associada à intenção da reflexão. Deste modo, a descrição reflexiva, que se caracteriza por evidenciar justificativas para as ações, apresentou uma construção gramatical em que aparece uma ação da profissional (verbo na primeira pessoa do singular, no Presente do Indicativo) associada a expressões que denotam ora intencionalidade, ora uma postura investigativa, ambas evidenciando o que estava implícito na decisão tomada pela profissional. Na reflexão dialógica, que se caracteriza por ser uma ampliação do pensamento com base em experiências anteriores, tanto para explicar como para levantar hipóteses, a construção gramatical incluiu expressões que indicam uma ação de refletir, seguida do alvo da reflexão, e expressões que apontam para um tempo passado, seguidas do relato das experiências anteriores que se relacionam com a situação do presente. Esta estrutura parece favorecer a compreensão sobre como experiências anteriores são resgatadas para a construção de sentidos sobre uma situação singular. É importante ressaltar que, muitas vezes, não há uma linha bem demarcada entre uma categoria e outra, como foi visto ao se incluírem determinados fragmentos com estrutura reflexiva, que descreviam percepções subjetivas, na categoria narração descritiva, pois não havia exploração posterior deste pensamento. Entretanto, este aspecto pode ser melhor explorado em pesquisas posteriores, assim como uma melhor caracterização da categoria reflexão crítica, que não foi encontrada nos dados desta pesquisa. De modo geral, o uso deste formalismo metodológico em pesquisas que envolvam narrativas escritas e o pensamento reflexivo pode favorecer a compreensão sobre: como se dá a construção de conhecimento pelo profissional-prático; os modos pelos quais os profissionais organizam seus pensamentos para tomarem decisões e agirem; como os referenciais teóricos são acessados na prática; como experiências anteriores vão sendo incorporadas à prática profissional, tanto para a construção de sentidos de situações singulares como no reconhecimento de padrões (ao longo da carreira). A utilização da análise dos diferentes tipos de reflexão em experiências formativas pode favorecer uma maior compreensão do estudante ou do profissional sobre os motivos de suas ações na prática; possibilitar o questionamento destas ações; aumentar a consciência sobre como os referenciais teóricos estão presentes na prática; ampliar as possibilidades de reflexão quando o profissional se depara com situações onde há incerteza e conflito de valores, e, também, servir como fonte de evidência para a melhoria da prática. Por um lado, todas estas indicações apontam a relevância do uso destas categorias em projetos formativos e investigativos em torno do profissional reflexivo; e, por outro, também deixam em aberto a necessidade de maiores investigações neste campo.

Considerações finais A construção do arcabouço teórico-metodológico para esta pesquisa, com foco em elementos da prática profissional, incluiu o paradigma da racionalidade prática, o pensamento narrativo, as narrativas e os processos reflexivos. As narrativas escritas se mostraram instrumentos capazes de fixar a ação em seu tempo e contexto e, assim, possibilitar o acesso ao pensamento do profissional implicado em um processo de reflexão sobre a ação. A vinculação entre reflexão e ação, proposta originalmente por Dewey (1976), e assumida pelos autores que referenciaram este trabalho, caracteriza o tipo específico de pensamento reflexivo analisado. Neste sentido, de modo a colaborar para uma melhor sistematização das pesquisas que envolvem os processos reflexivos e para seu uso na formação profissional, o presente trabalho procura preencher a lacuna sobre como operacionalizar as categorias propostas por Hatton e Smith (1995), criando critérios para a identificação destas categorias. 546

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MARCOLINO, T.Q.; MIZUKAMI, M.G.N. Narrativas, procesos reflexivos y práctica profesional: contribuciones para investigación y formación. Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.12, n.26, p.541-7, jul./set. 2008. Este trabajo ofrece contribuciones metodológicas para proyectos de investigación y formación que envuelvan el uso de narrativas y procesos reflexivos. Con base en un estudio sobre práctica profesional, han sido analizadas narrativas escritas de sesiones clínicas de Terapia Ocupacional utilizándose las categorías propuestas por Hatton e Smith (1995) para evidenciar el proceso de reflexión – sobre-la-acción: narración descriptiva, descripción reflexiva, reflexión dialógica y reflexión crítica. Los resultados presentados en este trabajo tienen por objetivo detallar la ejecución de tal metodología, sobre todo en relación a la forma (estructura gramatical) y al contenido (reflexión evidenciada) de cada categoría. De este modo, se busca complementar el trabajo de Hatton e Smith y ofreciendo una mejor sistematización en el uso de las categorías.

Palabras clave: Narrativas. Educación. Metodología de investigación. Profesional reflexivo. Terapia ocupacional. Recebido em 01/08/07. Aprovado em 24/02/08.

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Análise de redes sociais informais: aplicação na realidade da escola inclusiva*

Rafael Barreto de Mesquita1 Fátima Luna Pinheiro Landim2 Patrícia Moreira Collares3 Cícera Gilvaní de Luna4

MESQUITA, R.B. et al. Analysis of informal social networks: application to the reality of inclusive school. Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.12, n.26, p.549-62, jul./set. 2008.

Within the educational field, the idea of social inclusion is related to the development of community-based, compulsory universal education, taking the realities of individuals with special needs into account. Inclusion strategies can be strengthened by placing value on informal links and relationships provided by social support networks that aim to encourage participation by everyone and to reduce exclusionary pressures. The present study, for which the empirical basis was the intentions of a group of educators involved in actions to include individuals with special needs, used the methodology of social network analysis to study the potential of this group for organization and network action. The methodology was shown to be valid for this type of application, thus enabling understanding of the role of each player in the socio-educational inclusion network of people with special needs, such as those who stand out in favorable positions for constituting, maintaining and expanding this network.

No campo educacional, a idéia de inclusão social está associada ao desenvolvimento de uma educação comunitária, compulsória e universal, considerando-se a realidade das pessoas com necessidades especiais. As estratégias de inclusão ganham reforços na valorização dos elos informais e das relações proporcionadas pelas redes de apoio social que visam incentivar a participação de todos e a redução das pressões excludentes. O presente estudo, que teve como base empírica os intentos de um grupo de educadores envolvidos em ações de inclusão de pessoas com necessidades especiais, emprega a metodologia de análise de redes sociais para estudar o potencial de organização e ação em rede desse grupo. A metodologia apresentouse válida nesse tipo de aplicação, permitindo compreender o papel de cada ator na rede de inclusão socioeducacional de pessoas com necessidades especiais, assim como daqueles que se destacam em posições favoráveis para a constituição, sustentação e expansão dessa rede.

Key words: Education and social inclusion. Social networks. Social support networks. Methodology of social network analysis.

Palavras-chave: Educação e inclusão social. Redes sociais. Redes de apoio social. Metodologia de análise de redes sociais.

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Esta pesquisa recebeu o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). 1 Acadêmico de Fisioterapia. Centro de Ciências da Saúde, Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Rua Frei Odilon, n. 1638 Presidente Kennedy 60.355-290 rafaelfisioterapia@ yahoo.com.br 2 Enfermeira. Graduação em Enfermagem e Mestrado em Saúde Coletiva, Universidade de Fortaleza (UNIFOR). 3 Fisioterapeuta. Mestrado em Saúde Coletiva, Universidade de Fortaleza (UNIFOR). 4 Graduada em Letras Português/Literatura. Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA). *

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Introdução Educação inclusiva: contextualização do tema e questões que se apresentam Nas duas últimas décadas, o sistema educacional brasileiro tem vivenciado uma transição ensejada pela inclusão escolar das pessoas com necessidades educativas especiais no ensino regular. Destarte, as instituições de ensino têm encontrado dificuldades na implementação da proposta, a começar pelo diagnóstico das dificuldades de aprendizagem, passando pela pouca capacitação profissional para atender pedagógica e psicologicamente essa população (Enumo, 2005). Considerando essa problemática – e para além do desafio de implementar programas, políticas e as mais variadas estratégias de inclusão –, estudiosos advogam a necessidade de transformação da escola, cabendo a ela adaptar-se às características de todo aluno, o que leva, necessariamente, a uma ruptura, por parte dos protagonistas, com o “statu quo” e com as posturas mais resignadas dentro do modelo tradicional de ensino (Barros, 2007; Gomes, Rey, 2007; Gomes, Barbosa, 2006; Cacciari, Lima, Bernardi, 2005; Rey, 2001). Consoante os escritos de Gomes e Rey (2007), o momento exige mudança de enfoque, passandose a considerar tanto um novo contexto escolar, como a exigência de novos posicionamentos, a fim de reconstruir as práticas educativas tradicionalmente oferecidas. Os autores seguem afirmando que os redirecionamentos dados às práticas educacionais nesse campo não ocorrerão como mera instrumentalização da proposta inclusiva, mas partirão de uma organização singular, consensual e subjetiva que impulsione a busca por novas posturas profissionais e pela efetivação de uma escola de qualidade para todos. Em estudo realizado por Cacciari, Lima e Bernardi (2005), além das dificuldades enfrentadas com o excesso de alunos por sala de aula e a falta de recursos materiais, a conclusão mais importante a que chegaram foi a de que o sucesso da inclusão da criança não estava preso a questões de ordem prática, mas dizia respeito, essencialmente, às dificuldades subjetivas em lidar com as diferenças. Os discursos trazidos pelos atores entrevistados remetiam à figura e à expectativa do trabalho com um aluno ideal, bem como com a atuação do professor também ideal, dentro de uma instituição igualmente idealizada. Sobretudo, esses discursos cristalizavam queixas dentro de cotidianos institucionais peculiares, demonstrando que os professores relacionavam-se com a patologia e com os sintomas apresentados pelos alunos, e não com o sujeito singular que constituía cada um deles. Para muitos professores, a queixa constitui uma terapia por meio da qual denunciam seu mal-estar. Diante da fantasia de trabalhar com alunos idealizados socialmente, ou que correspondam às expectativas subjetivas, os fatores paralisantes para o professor repousam na ordem do desconhecido, do que foge à regra, não cabendo na normatização da língua e da aprendizagem (Cacciari, Lima, Bernardi, 2005). Quando se considera a meta de atender todos os alunos e desenvolvê-los indistintamente, a idéia de inclusão encontra-se, pois, associada ao campo de uma educação comunitária, compulsória e universal, que se faz presente no espaço institucional, mas que, sobremaneira, parece esbarrar em aspectos subjetivos de incorporação desses alunos, residindo aqui soluções e também o início dos problemas e das dificuldades. Uma das possíveis abordagens produtivas nesse campo, defendida por Cacciari, Lima e Bernardi (2005), considera imprescindível que o educador seja escutado, assim como a instituição, no que eles trazem de angústias e sofrimentos. Sobre o assunto, Gomes e Rey (2007, p.416) escrevem: Enquanto esses profissionais não forem reconsiderados como sujeitos construtores e singulares, dotados de crenças, desejos, frustrações e afetos, não poderão assumir o papel de educar todo e qualquer aluno, de modificar e redirecionar sua prática profissional para ações mais igualitárias e, dessa forma, a instituição escolar continuará reproduzindo o círculo cruel da diferenciação e exclusão dos alunos.

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Se, de um lado, a literatura explora a tendência dos movimentos no sentido de atender às necessidades subjetivas dos educadores, de outro, constata-se que alguns integrantes da área da educação já começam a receber crianças com necessidades especiais e a vivenciar as dificuldades inerentes às ações de inclusão, com iniciativas que sinalizam a procura por ajuda. As necessidades mais latentes manifestadas resumem-se em saber sobre o diagnóstico, as características da patologia e o prognóstico do quadro, bem como buscar orientações sobre como lidar com aquelas crianças especificamente (Cacciari, Lima, Bernardi, 2005). Esse fenômeno tem levado a formações de grupos com as características do Grupo de Apoio às Ações Pró-Inclusão (GAAPI), objeto específico desse estudo. Os 23 participantes do referido grupo vinham se reunindo desde 2005, após a participação de alguns deles no II Seminário Nacional de Formação de Gestores e Educadores do Programa Educação Inclusiva: Direito à Diversidade, promovido pelo Ministério da Educação. O aludido programa foi criado em 2003, tendo como objetivo principal a formação de gestores e educadores para efetivarem a transformação dos sistemas educacionais em sistemas inclusivos, possuindo, como princípio, a garantia do direito de acesso e permanência, com qualidade, dos alunos com necessidades educacionais especiais nas escolas regulares. O GAAPI tinha caráter heterogêneo, ou seja, era composto de educadores, técnicos, coordenadores e diretores de escolas da rede municipal de ensino, atuando nas regiões urbana e metropolitana da cidade de Fortaleza, capital do estado do Ceará. Dentre os participantes, merecem destaque alguns técnicos e gestores que assumiam posição privilegiada na Secretaria Municipal de Educação (SME), em Fortaleza, favorecendo o intercâmbio entre o GAAPI e a SME. Em comum, essas pessoas tinham o interesse desperto com base na própria experiência e no desafio de trabalhar com a inclusão de crianças com necessidades especiais em suas escolas. O GAAPI reuniase periodicamente para discutir medidas de construção do espaço escolar inclusivo no município de Fortaleza. Também era oportunizado aquele espaço para que os participantes partilhassem as dificuldades, as dúvidas e os interesses.

Metodologia de análise das redes sociais: teorizando o campo de aplicação Autores escrevem que as redes sociais são construções de sujeitos articulados de maneira ativa, voluntária e não hierárquica. Essa articulação implica, sobremaneira, compartilhar propósitos e valores comungados pelos demais integrantes, cujas conexões destinam-se a permitir apoio mútuo (Tomaél, Marteleto, 2006; Landim, Nations, Frota, 2003; Feuerwerker, 2000). Definem-se, assim, as redes pessoais como estruturas de interações que apontam algum tipo de mudança concreta na vida do indivíduo, no coletivo e/ou na(s) organização(ões) envolvidas (Aguiar, 2006). Muito embora, no Brasil, a literatura ainda seja restrita, de acordo com o que escreve Aguiar (2006), nos últimos cinco anos, é crescente a utilização da técnica de Análise das Redes Sociais (ARS) em pesquisas realizadas pelos vários campos do conhecimento. O interesse de compreender o impacto da rede sobre a vida social fez com que cada um desses campos originasse diferente técnica de análise, tomando, como ponto em comum, as relações entre os indivíduos numa estrutura de rede (Marteleto, Silva, 2004). O histórico de aplicação da técnica ARS resgata quatro principais vertentes: a dos antropólogos da escola de Manchester, que documentaram a relação entre a estrutura da rede e a conduta pessoal em situações de luta política e conflitos sociais; a da escola de estudos de comunidades, tradicional no estudo das redes constituídas por parentes, amigos e vizinhos que proporcionam informações e ajuda em geral; a da escola de estudos de estimação do tamanho das redes pessoais, e a aplicação delas segundo os critérios de contatos acumulados, contatos ativos, centralidades e laços fortes; e, por fim, a da escola de estudo do capital social e redes pessoais, centrada nos estudos do capital social com foco na pessoa, do capital social centrado na rede e do capital social focado na sociedade civil organizada (Guimarães, Melo, 2005). Neste artigo adota-se a vertente conhecida como de estimação do tamanho das redes pessoais, como forma de operacionalizar o seguinte objetivo: analisar o potencial de organização e de atuação em rede do GAAPI, considerando suas motivações, suas questões e seus objetivos. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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No campo da educação, a forma de organização das pessoas vem evidenciando e concretizando seu potencial, de modo que têm surgido várias redes de apoio à construção de comunidades que promovam a inclusão. A esse respeito Stainback e Stainback (1999) escrevem que “comunidade é algo difícil de ser definido”, e, para que haja sua promoção, é essencial que se desenvolva um “sentido de comunidade”, o qual, reportando-se aos mesmos autores, é característica pertinente às comunidades que fornecem suporte aos seus membros, em que todos assumem responsabilidades e desempenham papéis de ajuda mútua. Acredita-se que os prejuízos nos relacionamentos, bem como no acesso aos espaços sociais, possam ter seus efeitos minimizados por meio das redes de apoio social (Landim et al., 2006; Landim, 2006). É considerando esse potencial das redes que se põem em discussão as suas reais contribuições no âmbito da inclusão de crianças com necessidades especiais no ensino regular. O grande preconceito existente em relação a esse público é o que denota a necessidade de um meio social preparado para incluí-los, sobretudo no ambiente educacional. Nesse sentido, vem se processando – mais intensamente a partir de 1996 e após a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – o movimento de transformação do sistema educacional brasileiro (Aquino, 1998). Stainback e Stainback (1999) vislumbram metas a serem alcançadas pelo Estado, pelos alunos e pelos professores, que necessitam tecer verdadeiras redes de apoio mútuo direcionadas ao favorecimento dessa inclusão. Levando-se em conta que a perspectiva de inclusão parte do princípio de que há diversidade dentro de grupos comuns, e de que essa inclusão está vinculada ao desenvolvimento de uma educação comunitária compulsória e universal, e tendo em mente a realidade das pessoas portadoras de necessidades especiais em nosso país, as estratégias de inclusão ganham reforços na valorização dos elos informais e das relações proporcionadas pelas redes de apoio social, que se destinam a incentivar a participação de todos e a redução das pressões excludentes (Booth, 2006). Reforça-se, desse modo, a importância do papel das redes de apoio social no propósito da inclusão social, acrescentando-se que tais redes atuam como agente de integração do indivíduo na sociedade, diminuindo os riscos de exclusão social (Araújo et al., 2006). A criação de redes de apoio à educação inclusiva, entretanto, surge não somente com o objetivo específico de favorecer a educação inclusiva propriamente dita, mas pode, também, atuar, de forma indireta, como retrata Howes et al. (2005), para capacitar os atores a desenvolverem e avaliarem uma rede de práticas inclusivas, aperfeiçoando tais práticas participativas. É reconhecido que a característica participativa da rede não é de todo fácil, como alerta Costa (2005). Estar articulado com outros indivíduos em rede numa sociedade implica uma constante e árdua negociação entre preferências individuais e interesses mais coletivos. Nesses termos é que uma análise nesse campo proporcionaria evidenciar dados acerca dos reais recursos e capacidades propositivas dos atores envolvidos nessa estratégia, favorecendo, ainda, uma verificação dos efeitos e das repercussões das redes com base: no reconhecimento dos atores em sua forma de organizar-se, na participação de cada um, e nos papéis que desempenham nos espaços sociais e políticos de mobilizações suscitadas pelo próprio desenvolvimento das redes.

Metodologia O estudo foi desenvolvido de acordo com os pressupostos da metodologia de Análise de Redes Sociais, durante o período de agosto de 2005 a junho de 2006, junto ao GAAPI, um grupo composto de educadores, técnicos, coordenadores e diretores de escolas da rede municipal de ensino da cidade de Fortaleza. A coleta de dados ocorreu por meio de resposta individual a um questionário (Guimarães, Melo, 2005) e teve curso em escola de Ensino Fundamental da rede municipal, localizada no centro de Fortaleza. Era, também, nos espaços físicos dessa escola que se davam as reuniões do GAAPI, em que os participantes debatiam temas relacionados à educação inclusiva, em prol da mesma, e deliberavam sobre suas ações em rede.

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artigos

Elegeu-se a modalidade de ARS, que considera os grupos fechados, sendo uma das primeiras atitudes a identificação dos participantes. Identificaram-se 23 pessoas componentes do grupo-alvo, entretanto apenas 18 responderam ao questionário. O motivo pelo qual os cinco sujeitos restantes não foram contados no estudo foi por se ter respeitado o princípio da autonomia, uma vez que estes, ao serem abordados, manifestaram recusa em participar. No levantamento da rede pessoal, foi solicitado a cada pessoa mapeada que indicasse outras pessoas que fossem importantes para a execução das deliberações do grupo em relação à inclusão de crianças com necessidades especiais na escola de procedência da pessoa-alvo. Nessa solicitação foi dada opção para que o informante tanto pudesse indicar pessoas do grupo-alvo como de fora dele, sem limite determinado. O questionário utilizado nessa fase denominou-se gerador de nomes. Esse mesmo instrumento serviu ao propósito de qualificar a relação de uns, quanto ao tipo e ao grau de relacionamento com os outros. Para tanto, em relação a cada pessoa identificada, o entrevistado era solicitado a responder um conjunto de questões sobre as características desse relacionamento (Guimarães, Melo, 2005; Silva, 2003). Na elaboração do conjunto de questões a serem aplicadas, optou-se por aquelas que permitissem identificar: as principais tendências de relacionamento de confiança e amizade, se dentro ou fora do grupo mapeado, bem como a posição hierárquica da pessoa com quem se relacionava (acima, igual, abaixo), proximidade física com essa pessoa (mesma sala, mesma escola, mesma cidade, mesmo país), tempo de relacionamento (menos de um ano, entre um e três anos, mais anos), freqüência com que interagiam (todo dia, uma vez por semana, uma vez por mês). Na linguagem da ARS, os dados a serem obtidos servem ao propósito de estimar: o tamanho da rede, em termos de participações percebidas pelos seus integrantes; a densidade, dada pelo quociente das ligações efetivamente existentes e o total de ligações possíveis; e as distâncias geodésicas, definidas por meio de medidas que calculam o caminho mais curto entre dois atores quaisquer da rede (Silva, 2003). Esses mesmos dados foram o ponto de partida para calcular outras medidas da rede: atores pontos de corte e seus blocos de segmentação; centralidade de grau de entrada e de saída; centralidade de intermediação; centralidade de Bonacich. A medida de centralidade de cada ator, além de medir a acessibilidade de uma pessoa, mede também o número de caminhos de comunicação que passam por ela. Com base nessas medidas, foi possível fazer inferências acerca dos atores que vinham desempenhando papéis críticos, ou seja, papéis importantes dentro da rede, a saber: conector central, corretor de conteúdo transacional e expansor de fronteiras. Após a coleta, foi realizada análise do relacionamento do grupo como um todo, e, também, do papel de cada indivíduo dentro da rede mapeada. A geração do mapa, bem como o cálculo das medidas de análise foram favorecidos pela aplicação de dois programas computacionais: UCINET 6.123, para entrada e manipulação dos dados, e NetDraw 2.38, que acompanha o primeiro para visualização do mapa da rede (Borgatti, Everett, Freeman, 2006). As etapas exatas de todo esse processo podem ser assim sintetizadas: seguindo-se à devolução dos questionários, foi feita a codificação dos nomes dos atores estudados de acordo com a sigla “Ed.”, simbolizando a palavra “educadores”, e, em seguida, numerados de 001 a 118 (ex.: Ed. 001, Ed. 002, Ed. 003 etc.), sendo este último o total de nomes gerados para as duas redes juntas (amizade e comunicação). Em seguida, os dados foram separados segundo o conteúdo transacional dessas redes (de amizade ou de comunicação) e inseridos no software UCINET 6.123 na forma de matrizes. Após as matrizes feitas, foram transferidas para o software NetDraw 2.38, para que o mapa da rede fosse gerado. Ainda utilizando-se das matrizes e do software UCINET 6.123, obtiveram-se as características estruturais, como tamanho, densidade e distância geodésica. No passo seguinte, identificaram-se os índices de centralidade para o posterior reconhecimento dos atores críticos da rede. Este estudo teve aprovação do Comitê de Ética em Pesquisas em Seres Humanos da Universidade de Fortaleza (Coética), sob parecer de no. 235/2005.

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Resultados e discussão Na determinação do tamanho da rede mapeada, identificou-se que cada um dos 18 atores do grupo estudado citou o mínimo de três e o máximo de 19 nomes de pessoas compondo a sua rede pessoal de relacionamento. No total, foram indicados 118 nomes, incluindo os 18 informantes do estudo, tornando evidente o predomínio de indicações fora do grupo-alvo. O tamanho da rede é muito importante, uma vez que pode ser um ponto crítico para a estrutura das relações sociais, sobretudo quando considerado que a complexidade das relações cresce com a quantidade de atores na rede, bem como os recursos existentes (que podem ser limitados). Composta de cento e dezoito atores, a rede já pode ser considerada de tamanho grande. Dizer que uma rede é grande implica dizer que ela é complexa em termos do número de relações possíveis de serem feitas (a densidade da rede) e, conseqüentemente, das características internas que ela assume, levando em conta os vários e diferentes interesses que estão envolvidos, a quantidade e o tipo de trocas (ou de suportes) que podem ser realizadas entre as pessoas etc. Na medida de densidade, o cálculo realizado pelo software UCINET 6.123 acusou uma densidade de 0.0146, considerada extremamente baixa, indicando que apenas 1,46% das relações potenciais da rede estão sendo efetivadas. Isso significa que, de um universo de 9.120 relações calculadas pelo programa como possíveis de acontecer, apenas 133 relações efetivamente se concretizavam. Verificar a densidade é também buscar conhecer quanto os atores da rede estão interagindo, possibilitando, ao tempo que interagem, trocas de suporte. Redes nas quais todas as interações logicamente possíveis estão presentes - a denominada rede saturada - são o ideal de se obter, porque nelas estaria ocorrendo todo o intercâmbio (as trocas de suporte social necessárias) possível, mas elas são também extremamente raras de acontecer, de acordo com Molina (2002). Entretanto, é útil observar em que medida uma rede está a ponto de alcançar todo seu potencial ou, ao contrário, se está longe disso, necessitando de uma intervenção. Neste estudo, optou-se pela evidenciação do mapa (ou grafo) como recurso visual que possibilita obter uma noção intuitiva da importância empreendida pelas medidas que vão caracterizando a rede social analisada. Destaque-se que, no mapa, os atores participantes do grupo de estudo estão grafados como: Ed. 001, Ed. 009, Ed. 010, Ed. 013, Ed. 014, Ed. 015, Ed. 017, Ed. 021, Ed. 030, Ed. 032, Ed. 033, Ed. 040, Ed. 076, Ed. 077, Ed. 056, Ed. 085, Ed. 089 e Ed. 101. Os demais foram pessoas de fora do grupo citadas pelos informantes. A convergência de mais de uma seta em ator de dentro do grupo indica que esse ator foi citado por mais de um informante (Figura 1). Observa-se, com o apoio do mapa, como são poucas as conexões existentes e relativas a cada ator, significando que os indivíduos não se expõem aos intercâmbios, às trocas de suporte material, emocional e informativo. Nesse sentido, pode-se inferir que se está diante de uma rede pouco coesa. Os envolvidos por esse tipo de dinâmica de rede podem não se aperceber, mas se portam de forma pouco tolerante diante dos colegas, resolvem com grande dificuldade os pequenos problemas, bem como se tornam menos cooperativos quando solicitados. Em conseqüência, diante de um momento de enfrentamento de problemas ou de necessidade de se votarem medidas de resolução, o grupo não tem facilidade de chegar a um consenso sem gerar conflitos. Tomando outro conceito, o de distância geodésica, ou seja, o número mínimo de relações que separam dois atores quaisquer na rede, o cálculo realizado pelo programa UCINET 6.123 revelou uma distância geodésica média de 2.763. Para a realidade do grupo estudado, essa distância evidenciou-se consideravelmente baixa, resultado este com características positivas para atestar a eficácia da rede, já que esse cálculo tem importância porque informa que cada um dos 96 atores necessita, em média, de três contatos para alcançar qualquer outro ator, permitindo, caso desejar, fazer circular na rede, com certa agilidade, os suportes desejados.

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Figura 1. Mapa gerado a partir da matriz da rede pessoal dos componentes do GAAPI, mar./abr. de 2006.

Na identificação dos atores críticos, esta análise evidencia os que desempenham diferentes papéis críticos dentro da rede. Ainda com respeito às possibilidades metodológicas oferecidas pelo programa de análise de redes, foram selecionados os critérios estruturais, ou seja, os conceitos cujas medidas interessavam, particularmente, ao alcance do objetivo de identificação dos atores que desempenham tais papéis na rede: atores pontos de corte e seus blocos de segmentação; centralidade de grau de entrada e de saída; centralidade de intermediação; centralidade de Bonacich. Destaque-se que as médias aritméticas dos índices de centralidade e dos blocos de segmentação, feitas sobre os 18 atores estudados, são necessárias para a posterior identificação do papel dos atores na rede. Dentre esses, foram identificados 16 atores como ponto de corte da rede: Ed. 001, Ed. 010, Ed. 013, Ed. 015, Ed. 017, Ed. 033, Ed. 030, Ed. 040, Ed. 021, Ed. 032, Ed. 076, Ed. 077, Ed. 056, Ed. 085, Ed. 089 e Ed. 101. Esses 16 atores são considerados pontos de corte porque, se eles forem retirados da rede, levam consigo um ou mais conjunto de pessoas. Esses conjuntos de pessoas são chamados de blocos de segmentação. Foram encontrados 74 blocos de segmentação referentes a esses 16 atores. A Tabela 1 apresenta os 18 atores do grupo estudado com o respectivo número de blocos de segmentação que cada um levaria consigo, caso saísse da rede ou dela fosse retirado. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Tabela 1. Atores estudados do GAAPI com seus respectivos blocos de segmentação, mar./abr. de 2006. Atores

Número de blocos

Ed. 001 Ed. 009 Ed. 010 Ed. 013 Ed. 014 Ed. 015 Ed. 017 Ed. 033 Ed. 030 Ed. 040 Ed. 021 Ed. 032 Ed. 076 Ed. 077 Ed. 056 Ed. 085 Ed. 089 Ed. 101 Média

6 0 4 2 0 1 2 2 5 2 5 3 6 4 11 3 11 7 4,11

Os 16 atores identificados como ponto de corte constam dos 18 participantes do grupo estudado. Os dois remanescentes do grupo que não foram identificados como pontos de corte são Ed. 009 e Ed. 014. Ressalta-se que o Ed. 009 ocupa importante cargo na Prefeitura Municipal de Fortaleza, enquanto o Ed. 014 é técnico em educação de uma Secretaria Executiva Regional (SER) do município, sendo, inclusive, uma das pessoas responsáveis pela educação inclusiva na área de jurisdição dessa SER. Considerando as posições formais de liderança que ocupam fora do grupo estudado, é crítica a posição assumida pelos dois atores, requerendo estudo que foque as razões pelas quais eles não atuam também com destacada liderança no interior do grupo. As medidas de centralidade de grau de entrada e de saída foram calculadas para cada um dos atores da rede, sendo apresentados, neste momento, somente os 18 estudados. Utilizando-se o programa UCINET 6.123, foram encontrados os resultados listados na Tabela 2. Na Tabela 2, observam-se os dados organizados em colunas segundo os seguintes tópicos: OutDegree, que representa a centralidade de grau de saída; InDegree, representando a centralidade de grau de entrada; NrmOutDeg, que apresenta, na forma de porcentagem, a centralidade de grau de saída; e NrmInDeg, apresentando a centralidade do grau de entrada na forma de porcentagem. Calcular a centralidade de um ator significa identificar a posição que ele se encontra em relação às trocas na rede. Essa posição não é fixa, hierarquicamente determinada, mas tem embutida em si a idéia de poder. “Quanto mais central é um indivíduo, mais bem posicionado ele está em relação às trocas [...], o que aumenta seu poder na rede” (Marteleto, 2001, p.76). Por meio dos dados, identifica-se que Ed. 010 é o ator mais central, o que significa ter sido o mais citado por elementos do grupo, contabilizando grau de entrada de 9.000, ou, em termos percentuais, 9,47% de centralidade, o maior índice dentre os atores analisados. Esse resultado, em termos de grau de centralidade, era possível de se esperar para o ator específico, haja vista tratar-se de um dos articuladores do local, representante da Prefeitura Municipal de Fortaleza nos movimentos pela educação inclusiva nesse município.

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Tabela 2. Índices da centralidade de grau de entrada e de saída da rede informal de amizade do GAAPI, com suas respectivas porcentagens, mar./abr. de 2006. Actors

OutDegree

Ed. 056 Ed. 010 Ed. 089 Ed. 076 Ed. 009 Ed. 015 Ed. 101 Ed. 030 Ed. 001 Ed. 017 Ed. 013 Ed. 014 Ed. 021 Ed. 032 Ed. 077 Ed. 033 Ed. 085 Ed. 040 Média

19.000 15.000 11.000 9.000 9.000 8.000 8.000 7.000 7.000 6.000 5.000 5.000 5.000 5.000 4.000 4.000 3.000 3.000 7.000

InDegree 1.000 9.000 1.000 0.000 8.000 3.000 1.000 1.000 7.000 1.000 2.000 2.000 2.000 1.000 0.000 2.000 1.000 0.000 2.000

NrmOutDeg

NrmInDeg

20.000 15.789 11.579 9.474 9.474 8.421 8.421 7.368 7.368 6.316 5.263 5.263 5.263 5.263 4.211 4.211 3.158 3.158 7.777

1.053 9.474 1.053 0.000 8.421 3.158 1.053 1.053 7.368 1.053 2.105 2.105 2.105 1.053 0.000 2.105 1.053 0.000 2.456

Opostos a esse ator encontram-se: Ed. 056, Ed. 089, Ed. 101, Ed. 030, Ed. 017, Ed. 032 e Ed. 085. Todos apresentaram índice de centralidade de grau de entrada de 1.000, o menor dos índices dentre os atores estudados, que são representados por professores de sala de apoio, coordenadores, diretores e técnicos, dentre outros cargos de menor vulto. Referente ao ator central, quanto ao número de pessoas que citou (ou de centralidade de saída), destaque-se Ed. 056, que apresenta os índices mais elevados dentre os atores analisados, 19.000, ou 20% dessa centralidade. Dizer que esse ator possui um alto índice de centralidade de grau de saída significa dizer que ele indicou muitas pessoas quando questionado sobre quais pessoas funcionavam como amigos ou bons companheiros, na sua rede particular de relacionamento, que apóiam a educação inclusiva. Por outro lado, esse mesmo ator está entre aqueles com menor índice de centralidade de grau de entrada, o que indica que, embora tenha referido várias pessoas dentro do grupo, ele foi pouco citado. Para explorar esse tipo de comportamento em um grupo, aplica-se o conceito de “indivíduo rejeitado” (Moreno, 1994). Trata-se de indivíduo que desperta “sentimentos ativos”; é foco de grande antipatia, de maneira que não realiza contatos satisfatórios porque os demais atores no grupo rejeitam-no ou são indiferentes a ele. Os atores Ed. 085 e Ed. 040 apresentaram o menor índice de centralidade de grau de saída dentre os atores analisados, 3.000, correspondente a 3,158% dessa centralidade. Também são baixos os índices de centralidade de grau de entrada desses atores. Esse fato pode estar indicando que apenas começaram esses atores a despertar para o verdadeiro desenvolvimento de grupo. Ainda de acordo com Moreno (1994), “neste nível as inter-relações surgem pela proximidade física”. Destaque também deve ser dado ao ator Ed. 077 que, na ARS, evidenciou-se como alguém que, mesmo participando do grupo, não vinha usufruindo ou colaborando com o princípio norteador da rede, que é o de troca. No grupo, esse ator figurava como nó isolado, visto que se posiciona de maneira a não se conectar com ninguém dentro dele, algo revelado pelo mapa, seja porque não foram identificadas pessoas que o citam, ou porque esse ator não cita pessoa alguma dentro do grupo. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Desde o momento em que uma rede não está bem conectada, podem se dar condições para fragmentação e conflito. No âmbito individual, o grau em que uma pessoa está ligada a outras pode indicar até que ponto os indivíduos estão separados do conjunto ou até que ponto estão isolados. Tal isolamento pode ter uma significação psicossocial. Se um ator não pode alcançar outro ou não pode ser alcançado por outro, então pode ser que não exista aprendizado, ajuda ou influência de qualquer outra dimensão (Molina, 2002). Apoiando-se em Moreno (1994), infere-se, ainda, a possibilidade de o ator Ed. 077 encontrar-se na vivência do estágio de “isolamento orgânico”, caracterizado pela fase em que o indivíduo ainda não conhece os demais participantes do grupo, nem é reconhecido por eles, o que torna limitado o potencial de interação, sendo muito mais fácil para ele buscar apoio em laços consolidados anteriores à sua participação no grupo-alvo. De mesmo modo pode ser avaliado o conjunto periférico determinado por esse ator (Ed. 078, Ed. 080, Ed. 079 e Ed. 081). Na linguagem da ARS, eles vão compor o subgrupo, o denominado clique. Os cliques têm particular importância em qualquer rede social porque determinam a existência de alguns elos que ocorrem entre atores, motivados por interesses, necessidades ou problemas comuns. Entretanto, caso não se esteja atento para o tipo de atuação destes, corre-se o risco de seguirem dentro do grupo sem partilharem dos interesses mais gerais, não tendo, portanto, participação expressiva (Silva, 2003). No que diz respeito à centralidade de intermediação, a Tabela 3 apresenta os índices calculados pelo programa, separados em colunas de acordo com os tópicos: Betweenness, que indica o índice próprio, e nBetweenness, que indica a porcentagem do índice de centralidade. Apenas 15 dos 96 atores da rede atuam como atores ponte. Dentre esses 15, mais uma vez se destaca Ed. 010 como o ator mais atuante em tal papel, com índice de 395.667, equivalente a 4,43%. O que se pode concluir a esse respeito é que Ed. 010, além de ter mais contatos diretos, ainda mantém contatos estratégicos para mediação, otimizando as relações dos atores menos centrais. Isso é a ele possibilitado, devido, muito provavelmente, ao seu trabalho como articulador no grupo. No outro extremo, encontra-se Ed. 014. Esse ator foi o que menos atuou no papel de ponte, com índice de 5.000, equivalente a 0,05%. Os 81 demais atores não funcionaram em nenhum momento como atores ponte. Na Tabela 4, ao lado dos índices “brutos” da centralidade de Bonacich, designados pelo tópico Eigenvec, há as respectivas representações dos mesmos na forma de porcentagens, segundo o tópico nEigenvec. Verifica-se, por meio da leitura dessa tabela, que o sujeito que apresentou mais alto índice de centralidade de Bonacich foi, mais uma vez, o Ed. 010, com uma pontuação de 0.450, equivalente a 63,68% desta centralidade. De forma semelhante às centralidades anteriores, o ator Ed. 010 aparece como um dos atores de mais alto índice em relação aos demais. Esse elevado índice indica que esse ator possui, ligado a ele, nodos de prestígio alto, quando comparado aos demais nodos. Levando-se em conta todas as medidas calculadas, buscou-se identificar os atores que pudessem desempenhar papéis críticos em relação ao grupo, beneficiando a rede mapeada: conector central, expansor de fronteiras e corretor de conteúdo transacional. Como atores que assumiam o papel de conector central, consideraram-se aqueles que possuíam índices superiores às médias nas centralidades de grau (de entrada e de saída) e de Bonacich, simultaneamente. Desta forma, os atores identificados foram: Ed. 009, Ed. 010 e Ed. 015, em ordem decrescente de relevância, segundo a centralidade de Bonacich indicada pela Tabela 4. Os demais atores não atenderam a, pelo menos, um dos pré-requisitos. Com base nesse achado, pode-se inferir, de acordo com Cross e Prusak (2002) apud Silva (2003), que esses atores são os responsáveis por ligarem a maior parte das pessoas umas às outras e, também, por proverem as informações necessárias para facilitar a dinâmina de trabalho no interior da rede. Os atores desempenhadores desse papel encontram-se, normalmente, em posição privilegiada, tanto para receber como para fornecer informações aos demais membros da rede. Isso favorece a disseminação de informações diversas na rede, o que, de acordo com Tomaél e Marteleto (2006), poderá assegurar ganhos aos atores da rede, reduzindo incertezas, promovendo o crescimento mútuo e favorecendo o alcance dos objetivos da rede - nesse caso, a inclusão educacional de crianças com 558

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Tabela 3. Índices da centralidade de intermediação da rede informal de amizade do GAAPI com suas respectivas porcentagens, mar./abr. de 2006. Actors

Betweenness

Ed. 010 Ed. 009 Ed. 015 Ed. 017 Ed. 089 Ed. 056 Ed. 101 Ed. 001 Ed. 021 Ed. 030 Ed. 085 Ed. 032 Ed. 033 Ed. 013 Ed. 014 Média

395.667 263.667 256.000 132.000 121.000 117.500 80.000 60.167 55.000 50.000 33.000 30.000 24.000 20.000 5.000 91.278

nBetweenness 4.431 2.953 2.867 1.478 1.355 1.316 0.896 0.674 0.616 0.560 0.370 0.336 0.269 0.224 0.056 1.022

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Tabela 4. Índices da centralidade de Bonacich da rede informal de amizade do GAAPI com suas respectivas porcentagens, mar./abr. de 2006. Actors

Eigenvec

Ed. 001 Ed. 009 Ed. 010 Ed. 013 Ed. 014 Ed. 015 Ed. 017 Ed. 033 Ed. 030 Ed. 021 Ed. 032 Ed. 040 Ed. 056 Ed. 076 Ed. 077 Ed. 085 Ed. 089 Ed. 101 Média

0.360 0.379 0.450 0.176 0.198 0.258 0.182 0.134 0.084 0.084 0.145 0.067 0.329 0.143 0.000 0.027 0.047 0.039 0.172

nEigenvec 50.913 53.559 63.676 24.858 27.934 36.437 25.701 18.968 11.928 11.928 20.567 9.414 46.486 20.216 0.000 3.881 6.640 5.462 24.365

necessidades especiais. Destaque-se que, entre os atores identificados, Ed. 009 e Ed. 010 atuavam na Prefeitura Municipal de Fortaleza, na articulação de estratégias para a inclusão de crianças com necessidades especiais em escolas regulares de ensino. A alta média referente à centralidade de grau de entrada remete à conclusão desses atores como fortes fornecedores de apoio social, sendo vital sua participação para o desenvolvimento dos propósitos da rede, como denotam inúmeros estudos (Litwin, 2006; Lyyra, Heikkinen, 2006; Costa, Ludermir, 2005; Lin, Dumin, 1986), mostrando a relação benéfica entre o apoio social e os diversos desfechos relacionados à saúde. O papel de expansor de fronteiras foi identificado com base nos atores pontos de corte que alcançaram pontuação superior à média referente aos blocos de segmentação. Esses atores são, em ordem decrescente de relevância: Ed. 056, Ed. 089, Ed. 101, Ed. 001, Ed. 076, Ed. 021 e Ed. 030. Afirmar que esses atores são expansores de fronteiras significa dizer que eles são nodos importantes para realizar a expansão dessa rede, ligando-a a outras redes que assumam propósito similar, ou seja, a implementação dos programas de inclusão. Ainda, atuar como expansor de fronteiras nessa rede de apoio à educação inclusiva pode favorecer a esses sujeitos a condição de estarem em permanente contato com novas pessoas e informações, estando, dentro da lógica das redes sociais, abertos a novas possibilidades trazidas pelos novos sujeitos da rede. O papel de corretor de conteúdo transacional foi determinado com base na identificação dos atores que superam a média referente à centralidade de intermediação. Alcançar alta pontuação nessa centralidade indica que esses atores funcionam várias vezes como intermediário em relações entre outros atores da rede, favorecendo a coesão e as ações deliberadas pela rede em prol da inclusão. Os atores identificados no papel de corretor de conteúdo transacional foram: Ed. 010, Ed. 009, Ed. 015, Ed. 017, Ed. 089 e Ed. 056, agrupados em ordem decrescente de relevância. Segundo Cross e Prusak (2002) apud Silva (2003), desempenhar tal papel significa manter o suporte informacional circulante dentro da rede, entre os diferentes subgrupos, impedindo, assim, a fragmentação da rede ou sua ineficiência. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Neste estudo, todos os atores identificados desempenhando o papel de corretor de conteúdo transacional, com exceção dos dois últimos apontados (Ed. 089 e Ed. 056), são técnicos em educação, ocupando cargos importantes na Prefeitura Municipal de Fortaleza, tanto na Secretaria Municipal de Educação como nas Secretarias Executivas Regionais, funcionando justamente como intermediários entre os acontecimentos em educação inclusiva no município e na escola. A posição desses atores na rede poderá beneficiar a eles mesmos ou a outros atores na rede, já que eles se encontram permeando a comunicação entre outros atores, detendo, assim, um certo poder sobre o “ir-e-vir” das informações (Gould, Fernandez, 1989).

Conclusão No que diz respeito à organização/funcionamento da rede, evidenciou-se que, para o correto funcionamento de grupos de apoio semelhantes ao que foi analisado por este estudo, faz-se necessário, inicialmente, tornar claro os objetivos que o grupo tem para se reunir, assim como os papéis a serem desempenhados por participante. O método ARS vem justamente auxiliar nessa identificação dos papéis para o correto funcionamento do grupo, e sua aplicação exige, portanto, uma devolução desses resultados, o que deve ser previsto em qualquer proposta de pesquisa que se utiliza do método. Na realidade do grupo aqui investigado – GAAPI –, os resultados apontaram para um enfraquecimento da rede, devido à sobreposição de papéis desempenhados por poucos atores e às medidas deficientes de tamanho e densidade, fazendo prever uma desintegração do grupo. Todavia, tal desintegração, ao ser previsível, pode ser evitada por meio da conscientização dos atores envolvidos, sendo essa uma das mais relevantes contribuições do método ARS. Bem informados e aptos a decidir, assumem os atores o domínio de situações, compreendendo a necessidade de se reforçarem social e politicamente sob a forma de redes, o que permite aos indivíduos responsabilizarem-se por si e pelos outros do grupo, beneficiando a rede no geral. A Análise de Redes Sociais apresentou-se válida para a análise de redes voltadas para a educação inclusiva. Ressalta-se, porém, a necessidade e a importância de se verificar o correto fornecimento de suporte social aos integrantes de redes com as características aqui estudadas, com base em estudos que investiguem os suportes reais existentes ou disponibilizados pela rede, e os percebidos e utilizados pelos seus integrantes.

Colaboradores Este artigo consta de parte dos resultados do relatório de Iniciação Científica de Rafael Barreto de Mesquita, sob a orientação de Fátima Luna Pinheiro Landim e co-orientação de Cícera Gilvaní de Luna. Patrícia Moreira Collares colaborou na elaboração do projeto, análise dos dados e revisão final do artigo.

Referências AGUIAR, S. Redes Sociais e Digitais. Revista do Terceiro Setor, 2006. Disponível em: <http://arruda.rits.org.br/notitia1/servlet/newstorm.notitia.apresentacao. ServletDeSecao?codigoDaSecao=10&dataDoJornal=1157123080000>. Acesso em: 2 out. 2006.

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MESQUITA, R.B. et al.

artigos

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ANÁLISE DE REDES SOCIAIS INFORMAIS...

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MESQUITA, R.B. et al. Análisis de redes sociales informales: aplicación en la realidad de la escuela inclusiva. Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.12, n.26, p.549-62, jul./set. 2008. En la educación, inclusión social está asociada al desarrollo de una educación comunitaria, compulsoria y universal, considerándose la realidad de las personas con necesidades especiales. Las estrategias de inclusión ganan refuerzos en la valorización de los eslabones informales y de las relaciones proporcionadas por las redes de apoyo social que buscan incentivar la participación de todos y la reducción de las presiones excluyentes. Ese estudio, que tuvo como base empírica los intentos de un grupo de educadores envueltos en acciones de inclusión de personas con necesidades especiales, emplea la metodología de análisis de redes sociales para estudiar el potencial de organización y acción en red de este grupo. La metodología fue válida para tal tipo de aplicación, permitiendo comprender el papel de cada actor en la red de inclusión socio educacional de personas con necesidades especiales, así como de aquellos que se destacan en posiciones favorables para la constitución, sustentación y expansión de esta red.

Palabras-clave: Educación e inclusión social. Redes sociales. Redes de apoyo social. Metodología de análisis de redes sociales. Recebido em 17/11/06. Aprovado em 29/06/08.

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artigos

Análise socioantropológica da vivência do diabetes: um estudo de caso*

Reni Aparecida Barsaglini1

BARSAGLINI, R.A. Socio-anthropological analysis of living with diabetes: a case study. Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.12, n.26, p.563-77, jul./set. 2008.

The construction of experience of diabetes was analyzed, emphasizing explanations about its concept, discovery and causes, and about ways of managing this disease. The study started from the perspective of a person with diabetes (type 2, noninsulin dependent), considering this person’s course through life, experience of the disease, the course of the disease and the significance and meanings attributed to it. A case study with data collection using the oral reporting technique was presented. In experiencing diabetes, such individuals are supported through social representations, their own experience and other people’s, in order to attribute meaning to the situation and to manage the disease. Thus, the prescriptions are adjusted according to non-medical daily demands; ideas and meanings within health, disease, diabetes and its treatment; signs; feelings; ways of using the body; and meaningful and prioritized aspects of life. Through this, it becomes possible to feel physically and morally well.

Analisou-se a construção da experiência com o diabetes, enfatizando as explicações sobre o conceito, a descoberta, as causas e as formas de gerenciar essa enfermidade. Partiu-se da perspectiva de um portador de diabetes (tipo 2, não insulino dependente), considerando sua trajetória de vida, a experiência e o curso da doença e os significados e sentidos atribuídos a ela. Propôs-se um estudo de caso com coleta dos dados pela técnica do relato oral. Na vivência do diabetes o adoecido se apóia em representações sociais, na própria experiência e de outros para atribuir significado à situação e gerenciar a doença. Assim, as prescrições são ajustadas em meio às demandas diárias não-médicas, às idéias e aos significados de saúde, doença, diabetes; e o seu tratamento, aos sinais, às sensações, aos usos do corpo e aos aspectos significativos e prioritários da vida, viabilizando o sentir-se física e moralmente bem.

Key words: Anthropology and health. Experience of illness. Diabetes. Case study.

Palavras-chave: Antropologia e Saúde. Experiência da enfermidade. Diabetes. Estudo de caso.

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Elaborado com base em Barsaglini (2006), projeto aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa/FCM/UNICAMP, que contou com financiamento do CNPq (processo 470043/2006) e apoio da Secretaria de Estado de Saúde de Mato Grosso. 1 Pedagoga. Escola de Saúde Pública do Estado de Mato Grosso. Av. Adauto Botelho, 552. Cuiabá, MT 78.085-200 renibars@terra.com.br *

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ANÁLISE SOCIOANTROPOLÓGICA DA VIVÊNCIA...

Introdução Os estudos da experiência da enfermidade enfatizam o processo subjetivo da vivência da doença, dando voz aos adoecidos que a interpretam nas situações concretas do mundo da vida. Como tema, a experiência fez-se presente na Antropologia Médica norte-americana desde os anos 60, emergindo como resposta às abordagens do adoecimento pautadas pela teoria funcionalista. No Brasil, as produções científicas de Alves (1993) e Rabelo et al. (1999) são exemplos dessa abordagem, que encontrou espaço no campo das Ciências Sociais e Saúde a partir da década de 1990, até então, fortemente influenciado pelas teorias histórico-estruturais macroanalíticas (Canesqui, 2005a). Espera-se, todavia, que o enfoque no sujeito não implique negligenciar o papel das estruturas na compreensão da experiência da enfermidade, mas que tome essas externalidades articuladamente em meio aos imperativos da vida cotidiana. Nessa direção, o presente estudo entende a experiência influenciada: pela trajetória da doença; pela persistência de construtos prévios (idéias, crenças que levam às constantes explicações e reinterpretações) diante das mudanças de sintomas, das respostas ao tratamento, dos efeitos colaterais e da satisfação com o cuidado; e pelo ambiente social da vida diária e inserção do sujeito na estrutura social (Hunt, Jordan, Irwin, 1989). As explicações sobre a enfermidade envolvem significados e processo, não obedecem a um padrão rígido, não são únicas nem definitivas (Hunt, Arar, 2001), variando no tempo, no espaço e no curso da doença (Young, 1982). Para elaborar as explicações, o sujeito se apóia numa multiplicidade de elementos disponíveis no seu contexto sociocultural, mas que serão apropriados diferentemente devido à sua distribuição desigual e às singularidades da trajetória pessoal (Adam, Herzlich, 2001). Contudo, o fator cultural (princípios, costumes, valores, significados compartilhados e transmitidos tradicionalmente) não se coloca de forma determinística ou isolada, mas situado e afetado por um contexto particular, composto de elementos históricos, econômicos, sociais, políticos e geográficos da sociedade mais ampla (Helman, 1994; Anderson, 1991; Frankenberg, 1980). Acrescenta-se que a sociedade contemporânea (sobretudo as populações urbanizadas) dispõe de múltiplas referências para a construção da experiência (Canesqui, 2003) da enfermidade, efetivada num movimento simultâneo e permanente de compartilhamento e diferenciação de significados e práticas (Guedes, 1998), permitindo que os sujeitos interpretem de modo específico as suas vivências. Ressalta-se a não passividade do adoecido que, sempre provisoriamente, (re)interpreta conceitos e recomendações na vivência da enfermidade crônica. E assim, na sua singular trajetória de vida, se entrecruzam elementos culturais e sociais, estruturais e subjetivos, materiais e simbólicos, historicamente construídos, que informam, delimitam e imprimem sentido à sua experiência que, embora subjetiva, comporta e transcende os planos individual, situacional e imediato. Neste sentido, o estudo não polarizou a análise na primazia do social ou do estrutural (incluindo a cultura) e nem na autonomia do indivíduo, mas admitiu haver influência circular entre os termos (Corcuff, 2001), sendo a experiência considerada não apenas biograficamente, mas transpessoal e conectada ao contexto sociocultural. Analisou a construção da experiência do diabetes, enfocando as explicações sobre o conceito, a descoberta/início, as causas e as formas de gerenciar essa enfermidade; tomadas na perspectiva do adoecido, considerando sua trajetória de vida, a experiência e o curso da doença, bem como os significados e sentidos atribuídos ao diabetes. Para tanto, no contexto da pesquisa qualitativa, propôs-se um estudo de caso com coleta dos dados pela técnica do relato oral. O estudo de caso ocupou lugar de transição no contexto de desenvolvimento da pesquisa qualitativa, distinguindo-se das modalidades típicas do modelo positivista – tão inclinado às quantificações (Triviños, 1987) – ao tomar por objeto uma unidade, cuja análise das características e da complexidade é profunda e orientada pela amplitude dos suportes teóricos do pesquisador. Na área de saúde, o estudo de caso surgiu no âmbito das pesquisas médicas e de psicologia, reportando-se à análise detalhada de um indivíduo com uma patologia (Deslandes, Gomes, 2004). Nas Ciências Sociais, o caso típico pode ser um indivíduo ou um conjunto de casos individuais, uma organização, uma prática social ou uma comunidade (Becker, 1993). Um caso pode ser estudado pelo interesse intrínseco em toda a sua particularidade ou combinado com um interesse instrumental ou externo quando apóia ou facilita avanços teóricos e conceituais, 564

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proporcionando comparações e transposições futuras (não imediatas ou mecânicas) para outros casos, situações e questões (Stake, 2000). Contudo, as inferências sobre o caso devem ser cuidadosas, pois sua análise possibilita generalizar conceitos e questões de pesquisa, mas não resultados, o que simplificaria a relação todo/parte. O caso deve ser estudado como um sistema “delimitado”, localizado, microscópico que não reflete todo o conjunto das relações sociais, mas se constitui em um recorte, uma aproximação da realidade do caso que não se esgota nas pesquisas, embora seja possível dialogar densamente com os sistemas mais amplos nos quais se insere (Stake, 2000). Nesse sentido, observar como um fenômeno ou processo existe e opera numa experiência particularizada impele o investigador a lidar, ao mesmo tempo, com questões empíricas e teóricas (Becker, 1993). A técnica do relato oral fornece autonomia de expressão ao depoente, que é relativizada pelos limites temáticos controlados pelo pesquisador, distinguindo-se da história de vida em que o entrevistado conduz a narrativa e destaca as questões que considera relevantes (Queiroz, 1987). Todavia, o relato oral é flexível e sensível aos “imponderáveis” da pesquisa qualitativa e adequado para verificar como o sujeito situa e explica o evento do adoecimento, na totalidade de sua vida, e a quais acontecimentos ou comportamentos ele vincula a sua ocorrência. Embora o evento seja “pinçado” e relatado pelo ângulo pessoal, o que é transmitido ultrapassa o caráter individual e se insere nas coletividades, pois o adoecimento é perpassado por múltiplas influências, e o depoimento sobre ele sintetiza informações pertinentes: às relações do sujeito com o seu grupo, ocupação, camada social; à sociedade global; à sua experiência direta e indireta com a enfermidade; às tradições e às crenças sobre saúde e doença - cabendo ao pesquisador desvendar ou estabelecer as possíveis conexões ao proceder a análise (Queiroz, 1987). A seleção do caso foi intencional por apresentar as condições que permitiam explicitar os aspectos da experiência com o diabetes e pela disponibilidade do informante de relatá-la. Os dados foram coletados com base em três entrevistas com duração média de uma hora cada uma, realizadas na residência do informante, bem como em conversas “informais”, decorrentes de um estudo mais amplo (Barsaglini, 2006), ocorridas na sala de espera do Posto de Saúde freqüentado pelo entrevistado. As entrevistas estimularam a espontaneidade e se pautaram pelas temáticas de um roteiro semi-estruturado, aberto à incorporação de questões novas e não previstas que se mostrassem pertinentes à compreensão do objeto. Mediante a anuência do informante, as informações foram gravadas ou registradas em caderno, e todos os nomes próprios empregados no texto são fictícios.

Cosme: seu contexto e cotidiano Cosme tem 64 anos, cursou até a 2ª série do Ensino Fundamental, reside na região de Piracicaba/SP, e é metalúrgico aposentado desde 1986, mas, retornou ao mercado de trabalho como porteiro numa empresa, até o ano de 2003. Paralelamente, desenvolveu atividades como vendedor autônomo e, atualmente, negocia produtos de limpeza nas cidades da região. Possui casa própria, onde convive com a esposa, ocupada exclusivamente com os afazeres domésticos, e uma filha solteira, tendo, ainda, dois filhos casados que moram nas respectivas casas. Embora tenha ocupado cargo de liderança, considera o valor da sua aposentadoria baixo, que, somada aos seus rendimentos extras, perfaz uma renda familiar estimada de R$ 1.200,00 (3,5 saláriosmínimos, aproximadamente). A filha exerce atividade remunerada, mas Cosme afirma desconhecer o seu salário (calculado entre dois e três salários-mínimos) e não incluí-lo no orçamento doméstico. Por outro lado, um dos compromissos centrais ligados ao papel do homem na casa é prover o sustento da família (Sarti, 2003), assegurando a satisfação das necessidades básicas das pessoas que estão sob a sua responsabilidade, de modo que aceitar a contribuição da filha pode significar possível falha moral. No dia-a-dia, Cosme acorda por volta das 6h30, toma seus remédios, o café da manhã, e faz caminhada, em dois dias da semana, com um grupo vinculado a determinado segmento religioso do qual faz parte. É comum encontrá-lo, em outros dois dias pela manhã, no Posto de Saúde do bairro no período que antecede as atividades físicas organizadas por esse serviço, em que é verificada a pressão arterial dos participantes. Depois de ter a pressão arterial aferida, Cosme auxilia os profissionais de saúde registrando as medidas de cada pessoa, mostrando conhecê-las, tratando-as pelo nome e evidenciando COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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estreita relação com o serviço de saúde, além de comprovar a importância da sociabilidade propiciada pela prática de atividades conjuntas que transcende os benefícios físicos. Nesses dias, participa das atividades de alongamento e relaxamento, mas não acompanha a caminhada, justificando praticá-la com o outro grupo. Dedica o restante do dia às vendas, faz os pagamentos de contas e visita parentes, evitando, ao máximo, ficar em casa, referindo ser um local gerador de “nervoso” devido aos conflitos conjugais. Não obstante, o incômodo pode decorrer de o espaço doméstico se associar ao universo feminino, em contraste com o espaço público/da rua pertencente ao etos masculino, podendo acentuar o desconforto e a sensação de deslocamento – o que é comum ser sentido por homens doentes, desempregados e aposentados, que são situações nas quais o trabalho, enquanto sustentáculo da masculinidade, está comprometido ou temporariamente suspenso (Nardi, 1998).

O conhecimento de senso comum sobre o diabetes: causalidade, conceito, classificação e curso da enfermidade A descoberta do diabetes ocorreu há 16 anos, e Cosme relatou com minúcias a identificação de sensações corporais estranhas, levando a suspeitar de que algo estava errado, sendo preciso procurar ajuda especializada. Inicialmente, buscou a opinião do irmão (antes do profissional de saúde) que trabalha no setor saúde, confirmando que, diante de sintomas físicos ou psíquicos, o indivíduo se depara com uma rede complexa de possibilidades de escolhas, cujo percurso traçado foi designado, na literatura socioantropológica, de itinerário terapêutico (Gerhardt, 2006). Essa busca por cuidados é variada e complexa, sem um padrão único e predefinido de operação, e envolve procedimentos interpretativos de experiências e delineamento de ações, que não estão isolados do domínio dos macroprocessos socioculturais (Alves, Souza, 1999), sendo condicionados por: atitudes, valores, representações, características da doença, acesso econômico e disponibilidade de tecnologias, além da estrutura e da mobilização da rede de apoio social na qual o sujeito se insere. A origem da enfermidade é relatada em meio a um emaranhado de eventos corporais diante dos quais buscam-se cuidados e explicações causais do que pode ter levado a desenvolvê-la, que somente ganham sentido quando reportados ao contexto (econômico, social e cultural) em que aconteceram. Assim, o diabetes foi descoberto pelo descompasso do estado de saúde, cujo silêncio corporal foi rompido por algo que incomodou no ambiente de trabalho onde, segundo Torres-Lopez (1999), o impacto da doença é mais significativo aos homens. Como fator provocante, Cosme focaliza um consumo alimentar habitual equivocado e exagerado: [...] trabalhava de guarda das 21h30 às 6h30 e, o tempo de levar uma garrafa de leite com café, eu levava refresco toda noite, deixava na geladeira e ia tomando golinhos. Um belo dia percebi que o refresco estava amargo e pensei “o que está acontecendo? Estragou?” Notei que ia ao banheiro direto para urinar e concluí não estar bom. Meu irmão trabalha como técnico de raio X, e disse serem sintomas (dor nas pernas e no corpo, secura na boca, muita sede) de diabetes e falou para eu passar no médico. Fiz exame e constou 220 de diabetes, e o médico falou “agora está aqui o seu cardápio, a comida que você vai comer, o que pode ou não comer”. [...] Eu sabia o que tinha me deixado daquele jeito – foi muito refresco e nunca tomei adoçante, só usava açúcar.

A extravagância representada pelo consumo “extra” e excessivo, aliada à combinação inadequada de alimentos nas formas líquidas e sólidas, figuram entre as causas do diabetes e da obesidade. Por analogia ao comportamento animal, o comer à vontade aproxima o homem de um estado de natureza que o coloca fora da ordem social pela falta de regras para se alimentar, desapropriado ao ser humano. Ao seu lado, a causa hereditária perde a força explicativa diante da evidência concreta dos perfis de adoecimento e morte entre os familiares, como explica: Diabetes é por causa de extravagância: comer bastante carne gordurosa, tomar refresco e suco demais. Tinha um médico cardiologista que dizia, “nós humanos ao sentarmos à mesa,

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temos que deixar o líquido de lado, porque se você comer e tomar suco, refresco, bebida, o seu estômago fica como a uma lavagem2...” A pessoa engorda, fica ruim porque isso se faz com porco - quando ele está grandão é colocado sozinho na ceva e é tratado à vontade: o bicho chega a cair deitado de tão gordo. Eu costumava tomar suco no almoço. A diabetes vem disso. Falam que vem de família, é hereditário, mas pelo que sei não foi disso que a minha mãe e irmãs morreram. O meu pai eu conheci muito pouco (até os sete anos). Então, o único com diabetes na família sou eu. Como pode?

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2 Refere-se à prática, comum no meio rural, de coletar as sobras das refeições, misturálas a uma porção de água e empregá-las na alimentação de porcos.

A representação do diabetes vincula-se à causa, caracterizando-se pelo excesso de açúcar no sangue que enfraquece o pâncreas ou prejudica seu funcionamento. O fato de pessoas cometerem excessos e não desenvolverem diabetes se explica pelo prisma metafísico e religioso, podendo ser atribuído ao destino, à fatalidade ou, como Laplantine (1991) sugere, a uma salvação (ser poupado da doença, infortúnio) pela “graça” que independe das obras, ou seja, a despeito do que fez ou deixou de fazer para evitar o agravo. Sobre a fraqueza, ela se opõe à força e remete a um valor moral por comprometer a capacidade de trabalhar, tanto do sujeito como do órgão, mas que, igualmente, incide na relação homem-trabalho-família. O caso do sangue, naturalmente salgado, ficar doce denota certa desordem porque o açúcar está fora do seu lugar, estático e em abundância, sobrecarregando o pâncreas, incapaz de processá-lo. Dessa forma, o diabetes ora deixa transparecer o seu caráter ontológico, configurando-se como entidade que ataca e danifica o pâncreas, ora como disfunção (e não doença em si), expressa numa taxa que se altera cada vez mais, trazendo outros problemas ao organismo. Como mostram os trechos a seguir: Diabetes é entrar muito no açúcar, no refresco, na massa. Tem gente que come e bebe de tudo e o diabetes não ataca, mas em outros ataca. Não sei bem por quê ... às vezes tem que ser. O pâncreas pára de funcionar e não queima o açúcar no corpo e é onde se pega o diabetes. O sangue fica doce, com açúcar. Se o pâncreas funcionar direito a pessoa não pega diabetes, mas se ele estiver fraco demais, o diabetes altera cada vez mais. O diabetes faz sentir dor nas pernas, fraqueza, porque ataca os rins, o estomago, a vista, ataca tudo. Estou com a vista ruim e terei que operar de catarata e foi do diabetes...

O potencial de se disseminar negativamente pelo corpo, citado acima, evidencia uma típica tendência do diabetes em agravar-se com o passar do tempo, o que Cosme relata como testemunha dessa trajetória degenerativa e irreversível. Na sua classificação do diabetes em fraca e forte ou grave, subjaz o critério das altas taxas de glicemia (mil ou quinhentos) que podem levar ao coma, sendo possível passar de um tipo para o outro dependendo, em parte, de quanto se consegue controlá-la, mas também podendo evoluir a despeito do tratamento (porque o corpo acostuma-se com o medicamento), carregando nuance de fatalismo. O auge da trajetória nefasta do diabetes, para Cosme, concretiza-se pela indicação da insulina, que, cogitada pelo médico, diante da dificuldade em manter a glicemia em níveis aceitáveis, soou-lhe como ameaça. A aversão manifestada à insulina pode ser atribuída aos incômodos práticos do uso diário, mas também pelos seus significados, como sinalizar que a enfermidade se agravou por um processo natural ou resultante da negligência do seu portador, que não seguiu as recomendações para controlá-la (Hunt, Valenzuela, Pugh, 1997). Acrescenta-se o fato de a insulina suscitar traços estigmatizantes no adoecido (Hopper, 1981), por dar visibilidade à dependência de COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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medicamento injetável (alusivo às drogas ilícitas), sendo preferível o comprimido pela sua discrição, que não denuncia ser portador da enfermidade. Como se entrevê: O diabetes ataca mesmo tratando. Eu tomava Diabinese, depois passei para Metformina (mais forte) e depois fui para Daonil com Metformina. Mesmo com o remédio, com o tempo, os anos vivendo com o problema no corpo, acaba tomando insulina, que é o último recurso. É como calmante que vai indo e o corpo acostuma e não faz mais efeito. Quando isso acontece, o médico receita outro mais forte. Com o diabetes é igual. O Dr. Ivo falou em passar insulina e eu falei, “pelo amor de Deus! Vou me controlar, tenho certeza que a minha diabetes vai controlar, vou me virar”. É que a insulina tem que tomar todos os dias, você ou outra pessoa tem que aplicar. Tem que ficar na geladeira e eu não paro, saio, vou para outra cidade. E eu não vou sair daqui da minha casa para outra cidade e levar insulina: vou tomar quente? Não pode. Então, o comprimido eu ponho no bolso ou na carteira só o que vou tomar e pronto.

Aspectos do gerenciamento do diabetes O gerenciamento refere-se às ações empreendidas pelos adoecidos para “controlar” o diabetes e viver tão normalmente quanto possível, o que não exclui que tais ações se orientem, em parte, por representações sobre o diabetes e os elementos do seu manejo. Toma-se a questão em primeira pessoa e como autoregulação (Conrad, 1985), evitando termos que possam remeter a uma relação terapêutica médico-centrada atenta aos desvios, própria da tradição funcionalista, como é o caso de “obediência” ou “submissão” às ordens médicas (Cyrino, 2005). Sob a perspectiva médica, o gerenciamento do diabetes assenta-se no padrão genérico do uso de medicação, mudança de comportamentos (dieta e exercícios físicos) e monitoramento da taxa de glicemia (Sociedade Brasileira de Diabetes - SBD, 2003; Hunt, Jordan, Irwin, 1989; Cohen et al., 1994). Contudo, reproduzir verbalmente essas recomendações não corresponde observá-las integralmente (fato que intriga os profissionais de saúde), pois os comportamentos em relação ao diabetes se orientam, em parte, por conceitos, critérios, princípios, fatores e valores, às vezes, incompatíveis com as prescrições, requerendo que ajustes sejam feitos para viabilizar o controle da enfermidade. A categoria controle é central para profissionais e adoecidos, mas carrega significados diferentes, embora coincidam com a dimensão gerencial do diabetes, apresentando pontos de convergência e divergência. Para gerenciar o diabetes, o adoecido elabora e aprimora rotinas, levando em conta, simultaneamente, as atividades cotidianas que despendem esforços físicos, a dieta e os medicamentos, para manter a glicemia em níveis aceitáveis/toleráveis. Essas medidas destinam-se a controlar o diabetes e evitar crises hiper e hipoglicêmicas ou sintomas/sensações desagradáveis, e não impedir o desempenho dos compromissos diários. Os ajustes serão viáveis, porém, se forem coerentes, ao menos em parte, com os valores do adoecido, preexistentes ao diabetes. No desenrolar desse processo, denominado “normalização3” (Adam, Herzlich, 2001), Cosme se deparou, após o diagnóstico, com a imposição de regras (“ter de”) ao comportamento alimentar. E, embora demonstrasse disposição para segui-las, elas se revelaram incompatíveis com o padrão alimentar anterior e com os valores de força cuja manutenção depende do tipo de dieta praticada (Canesqui, 2005; Duarte, 1986) - esta, quando inadequada, pode levar à morte física (por fraqueza corporal) e moral (pelo comprometimento do trabalho). 568

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3 A normalização nunca é um retorno ao estado anterior à enfermidade, mas um conjunto de ações e interpretações que possibilita construir uma “nova atitude natural” e conviver com a doença, que somente poderá ser aceita se estiver de acordo, ao menos em parte, com os valores do adoecido (Adam, Herzlich, 2001).


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A crise por hipoglicemia relatada ocorreu como corolário à incompatibilidade da adesão estrita à dieta recomendada, que Cosme posteriormente ajustou, passando a consumir moderadamente determinados alimentos, usando adoçante e fazendo caminhadas. Essa decisão embute a rejeição em se submeter acriticamente às ordens médicas privando-se dos alimentos valorizados (com alto teor energético e substâncias essenciais ao corpo), dos quais gosta e na quantidade considerada adequada. Os valores médicos e os da cultura de origem de Cosme se antagonizaram, impedindo-o de seguir uma dieta restritiva, como observou Samuel Bloom no clássico estudo de caso de uma diabética – a senhora Tomasetti apud Nunes (2003): O médico deu o cardápio para eu comer duas colherinhas de arroz, uma de feijão, um bife mais grelhado ou assado do que frito, sem gordura e bastante salada. Sabe o que aconteceu? Fiz quatro meses essa dieta/regime, mas um belo dia estava na praça esperando abrir o banco e começou uma atordoação. Entrei no banco pendendo de um lado e pensei que iria morrer antes do tempo e falei: não vou ficar desse jeito, não. Comendo deste jeito não dá, a gente é acostumado a comer bastante. Voltei no dia seguinte ao médico e falei “doutor: eu estou morrendo porque duas colherinhas de arroz no almoço, duas no jantar, uma de feijão e um pedacinho de carne e salada não está resolvendo... Estou sentindo muita fraqueza...”. Ele receitou uma vitamina para combater a fome, mas pensei - sabe qual vitamina eu vou fazer? Vou chegar em casa, pegar umas cinco, seis colheres de arroz, umas três, quatro de feijão, salada à vontade, carne de frango, de vaca do jeito que vier. Não farei regime – quatro meses e quase fui! Estou comendo quase normal. Não exagero, como aquela comida no almoço, faço caminhada, como um bocado no jantar e, às vezes, faço outra caminhadinha, mas aumentei a comida. E graças a Deus, estou controlando.

Percebe-se, no trecho acima, que os indícios subjetivos são importantes para identificar as alterações da glicemia, e integram a aprendizagem da convivência com o diabetes, que é aprimorada com o tempo de diagnóstico e por confirmação de hipóteses (se abaixou ou subiu) por meio das informações objetivas dos testes e exames laboratoriais. Esses recursos aumentam a confiança do adoecido na sua capacidade de decifrar e distinguir as situações (aumento/queda), e de agir para evitar ou contornar as alterações e ter o diabetes controlado. A relevância dos testes sobressai na presença de outras patologias, como a hipertensão arterial, comumente associada ao diabetes, que podem apresentar sintomas semelhantes confundindo o adoecido e agravando a situação se forem tomadas medidas de controle equivocadas. Assim, o adoecido não se apóia exclusivamente no dado técnico da taxa de glicemia, mas também no conselho médico e na sensação de bem-estar, que variam no curso da doença - esse cotejamento no manejo do diabetes se reporta à noção de “equilíbrio” (Paterson, Thorne, Dewis, 1998) e permeia o relato: Diabetes faz sentir dor no corpo, nas pernas, secura na boa, sede, vai muito ao banheiro, atordoação, vista embaçada. Mas quando está descontrolada. Se estiver normal não sente nada. Tenho essa noção porque faz tempinho (desde 1990) que eu estou nessa vida aí. Se abaixar complica, sente-se problema de desmaio, atordoação também. Quase o mesmo sintoma de quando está alta. Se abaixar COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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demais é hipoglicemia e se subir é hiperglicemia. Quando se sente mal tem que ir ao Posto fazer o teste do dedo e ver como está o diabetes.

Os fatores que podem descontrolar o diabetes são aprendidos pela convivência com a enfermidade, como o consumo de bebidas alcoólicas e as transgressões alimentares. As recomendações alimentares assumem a conotação de normas que são vigiadas, de modo que a desobediência a elas carrega um peso moral, gerando sentimentos de culpa, explicando por que o transgressor procura ocultar os comportamentos contrários às regras, fazê-los às escondidas, quase sorrateiramente, ou omiti-los, para evitar repreensões (Broom, Whittaker, 2005), aplicadas por si mesmo ou por outros atores envolvidos. Esses comportamentos, contudo, serão atenuados ou tolerados nas ocasiões de descontração compartilhadas com amigos e familiares, em que o adoecido autoriza-se às “licenças sociais” (Paterson, Thorne, Dewis, 1998) pautadas pelos benefícios sociais do sentimento de integração, solidariedade e pertença, que são mais valorizados do que os possíveis danos físico-biológicos não manifestos imediatamente. Ademais, o adoecido desenvolve estratégias pontuais de controle para compensar as extrapolações, como ser mais rigoroso com a dieta, tomar chás específicos ou manipular o medicamento (doses suplementares, alterar o horário de ingeri-las). Nesse sentido, nota-se o cuidado na ingestão do remédio antes ou depois do consumo de bebida alcoólica, que se baseia na crença de que misturá-los pode trazer sérias complicações à saúde. Acrescenta-se que a vontade divina também contribui para que o diabetes se mantenha controlado ou permite que o adoecido seja capaz de controlá-lo: É lógico que a gente faz extravagância, não fica direto só fazendo regime, como quando a mulher faz doce e põe na geladeira... é uma tentação. O doce parece atrair o diabético. Se ela faz brigadeiro, pego dois ou três e como escondido. O doce de leite com coco pego uma colher de vez em quando e ponho rápido na boca. A gente não consegue ficar sem comer, mas se percebo que estou ficando ruim, tomo um comprimido para diabetes depois do jantar e se eu notar que estou meio ruim ainda, tomo outro antes de deitar. Desse jeito controla e vai levando. Bebida de álcool não bebo, não fumo. Se vou na casa do meu filho e ele oferece uma cervejinha para acompanhar a carninha assada, então, tomo 2 ou 3 latinhas e já não fico muito bom porque não sou acostumado. Chego em casa e tomo um remédio. Não posso tomar o remédio e depois a bebida de álcool – complica tudo.

Outro fator que pode alterar a glicemia, referido e baseado em experiência pessoal, é o “susto” que foi constatado, logo após a sua ocorrência, por meio do teste de glicemia capilar. O episódio relatado mostra a resposta orgânica motivada por uma suposta falha de responsabilidade no cuidado com outra pessoa, corroborando que “o social atravessa a pele” (Herzlich, 2005), não sendo possível compreender o adoecimento dissociado das dimensões corporal e social. O “susto”, nesse caso, se aproxima da noção de nervoso, enquanto um código específico referente aos embaraços nos planos vivenciais (Duarte, 1986), decorrentes de avaliação empreendida pelo sujeito, na qual teores material, moral e físico-corporal se imbricam. Reciprocamente, o risco de a situação ocorrer no trânsito denuncia o impacto da enfermidade na vida social, restringindo atividades e podendo levar ao isolamento. Após fazer a cirurgia da vesícula, tinha um senhor no meu quarto com as duas pernas amputadas. Seu acompanhante saiu e pediu que tomasse conta. Tudo bem. Fui dar uma voltinha no corredor e de repente escutei um grito e um baque e pensei, “o homem caiu da cama!”, e mesmo não podendo nem andar direito, saí correndo. E a cada meia hora a enfermeira vinha furar o meu dedo para controlar a diabetes, que estava normal em 70, 75. Tomei aquele susto – e com diabetes não pode: é como um choque térmico, pode morrer. Pensar que o homem tinha caído da cama – fiquei responsável por ele, o que a família ia falar de mim? Corri até o quarto e, graças a Deus, não tinha sido com ele. Quando a enfermeira veio fazer o teste de novo estava em 230. Contei o que houve e ela falou que, se eu dirigia, era para tomar cuidado e seria bom até parar, porque se eu ou outro batesse no meu carro, eu poderia perder a direção.

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É clássica e apropriada a análise de Duarte (1986) sobre o “nervoso” nas classes populares, reportado às “perturbações físico-morais”, como condições, situações ou eventos que extrapolam a corporalidade, afetando a vida moral, os sentimentos e a auto-representação do sujeito. Não obstante, o nervoso no discurso masculino se relaciona mais ao ambiente de trabalho, embutindo as preocupações sobre o sustento e a honra familiares; e, no feminino, refere-se ao espaço doméstico no cumprimento das obrigações de mãe/esposa/dona de casa; que são responsabilidades complementares e recíprocas para manter a unidade do grupo (Sarti, 2003), como evidencia o primeiro trecho abaixo. Ademais, o “nervoso” figura como causa e fator que altera o diabetes, sendo o trabalho uma das suas fontes, engendrado pelas relações interpessoais tensas de mando e subordinação requerida pelo cargo de liderança ocupado pelo informante (Schraiber, Gomes, Couto, 2005); ao mesmo tempo em que era coagido a suportá-las pelas expectativas desse desempenho no exercício da masculinidade. Observa-se, nessa questão, um aspecto geral operando nos meandros de um plano macrossocial representado pelos valores e categorias compartilhados pela classe trabalhadora (trabalho, nervoso), mas que apresenta diferenciais sutis, à medida que a análise é refinada pela variável microssocial de gênero. Os fragmentos de relato seguintes explicitam a relação não dicotômica entre mente e corpo, própria da classe trabalhadora, e que conflui para o nervoso, mas é inversa ao entendimento biomédico que, em geral, limita-se a tratá-lo agressivamente eliminando os sintomas. Contrário ao modelo de relação médico-centrada, que pressupõe passividade do adoecido para aceitar e seguir as recomendações, Cosme faz julgamentos e espera um conhecimento específico do profissional ajudando-o a se cuidar, mas não excluindo o autoconhecimento dos seus problemas. Essa modalidade de interação médicopaciente, que pressupõe ajuda mútua e participação efetiva do adoecido, mostra-se mais apropriada às doenças crônicas em geral (Bloom apud Nunes, 2003). Assim, as prescrições médicas passam pelos crivos dos valores do adoecido, como é o caso da resistência em tomar calmantes por associá-los aos problemas de natureza psiquiátrica, mental ou por conter compostos químicos fortes (simbolizados pela “tarja preta”; receita controlada) que podem causar dependência. Analogamente, a generalização da prescrição é rejeitada por Cosme, diante das singularidades pessoais, dos estímulos do seu meio e relações e das respostas idiossincráticas ao tratamento. Enfim, são exemplos de uma relação assimétrica prenhe de conflito latente entre perspectivas culturais diferentes – profissional e profana (Freidson, 1972). Embora haja pontos de convergência e divergência nessa relação, a aparente “não docilidade” do sujeito apenas manifesta o seu ensejo em participar das decisões que o atingem. As questões do nervoso e a negociação no encontro terapêutico se expressam: Por muito tempo, eu mandava embora e ajustava - tomava conta da fábrica inteira e não levava queixa ao meu superior [...] O sistema nervoso que eu passei, e passo agora em casa, é que faz subir a minha diabetes. Falei para o médico que o meu sistema nervoso faz o diabetes e a pressão subirem. Ele falou em receitar calmante, mas eu não tomo. E controlei comprando quatro maracujás grandes, mandei minha esposa bater no liquidificador e eu tomava com adoçante. Fui consultar com o Dr. Ivo e falei que meu diabetes foi para 400 e a pressão para 18 porque estava nervoso demais. Não posso passar contrariedade em casa – porque o problema é em casa, e não com os outros – fico nervoso, o diabetes sobe e a pressão acompanha. Ele disse: “nesse assunto, então terei que receitar calmante para todos os diabéticos que vêm aqui [...]” E falei, “não doutor, não é assim não. Cada pessoa tem um sintoma: eu tenho um, fulano e ciclano tem outro. Não é todo mundo igual.”

A postura crítica diante da biomedicina pode decorrer do vasto contato com ela, atestada pela intensa incursão nos serviços de saúde e submissão às intervenções, fazendo o adoecido se sentir à vontade para questioná-la. No entanto, o saber médico usa de mecanismos para designar e nomear os problemas físicos de saúde e para criar a realidade social da doença (Adam, Herzlich, 2001), mesmo

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quando ela ainda não foi percebida e não existe na consciência do sujeito (Clavreul, 1983). Para tanto, além da autoridade reconhecida e imputada, em parte, pela alta especialização dos profissionais consultados (professores), soma-se a imagem intracorporal que dá forma e conteúdo concretos ao estado de saúde. Desse modo, as explicações tornam-se significativas ao entendimento, à aceitação e à “crença” no prognóstico funesto e assustador, podendo intimidar o adoecido em contestá-lo, fazendo-o ceder à intervenção, mesmo numa ação preventiva. Camargo Jr. (2003) lembra que o saber e a prática biomédicas se assentam e são validados por estudos epidemiológicos com as suas análises estatísticas e, por isso, o emprego dos seus resultados deve ser cuidadoso e o seu potencial de abrangência e generalização relativizados; evitando a “matematização” do real ou o rótulo de científico como critérios de “verdade”. Por outro lado, quando o adoecido reconhece um sofrimento e busca ajuda profissional biomédica, ele sabe o que está escolhendo e o que pode esperar obter desse saber, frustrando-se quando a sua expectativa não é satisfeita, como mostra o segundo excerto a seguir. Todavia, nas enfermidades agudas, nota-se passividade do adoecido que, embora consciente, se submete às intervenções, numa relação de quase total dependência, delegando ao profissional de saúde a decisão sobre os procedimentos, cabendo-lhe simplesmente cooperar, assumindo o seu “papel de doente” (Parsons, 1984). É o que ocorreu na cirurgia de vesícula relatada com sabor de vitória, pois se mostrou grave, demandou urgência, grande sofrimento e força extrema para superá-la, tornando o seu protagonista um vencedor na luta contra a enfermidade, e reafirmando a fortaleza masculina diante das adversidades, duplamente representada: por procurar o médico em extrema necessidade e por sobrepujar o problema de saúde. Nas suas palavras: O dr. João e o irmão dele – são professores de médico de vista – me mostraram numa bola plástica que imita o olho e no fundo tem veiazinhas miudinhas e graúdas. Em mim, as miudinhas estão estourando e se estourar a maior pode dar hemorragia e me cegar. Ele falou que deveria fazer o laser na vista dentro de seis meses. Ficaria caro, não melhoraria, mas não pioraria. Fiz quatro aplicações de laser em cada vista além da consulta e gastei uns cinco mil reais nessa brincadeira. Fui ao médico ver a dor nas costas e ele mandou caminhar, e eu falei “paguei consulta para ouvir que tenho que andar?! Ao menos poderia receitar alguma coisa para ajudar a gente, não é?” Estava há três ou quatro dias soltando bílis pela boca. Não comia, não bebia, fiquei ruim mesmo – porque só vou ao médico na última necessidade. Fui na médica e não podia nem relar na barriga, na boca do estomago porque doía e ela acalcou três vezes. Gritei porque estourou a vesícula na sua mão. Ela encaminhou ao Pronto Socorro para internar urgente. Mediram e minha diabetes estava 230, tomei medicamento forte para abaixar e fazer a cirurgia. Internei no dia 18 e no dia 19 o médico passou à noite e perguntou se estava preparado para operar amanhã cedo. Respondi, “o senhor é quem sabe”. Marcou e entrei às 6h30 e só saí às 14h30 da sala de operação. Um colega achou que eu tinha morrido e fora levado ao necrotério. Mas saí dessa [...]

O intenso contato com o sistema biomédico não exclui o emprego de recursos terapêuticos pertinentes a outros modelos de cura, como o consumo dos chás caseiros e dos fitoterápicos. Cosme conhece e já experimentou alguns chás para controlar o diabetes, porém, pela pouca praticidade do seu uso, pelo fato de ficar muito tempo fora de casa, e pelos resultados nem sempre serem imediatos, eles acabaram sendo relegados. Soma-se a isso o fato de que as atividades masculinas identificam-se com o espaço público, gerando desconforto em manejar e consumir os chás, que impõem o trânsito no ambiente doméstico e remetem ao universo feminino. O recurso religioso se faz presente seja na capacidade do adoecido controlar o diabetes, seja não permitindo que complicações se desenvolvam, em detrimento de seguir recomendações. A essa combinação de recursos Camargo Jr. (2003) denominou “sincretismo terapêutico”, não limitado aos pacientes, mas que, sem as amarras doutrinárias dos profissionais, verbalizam suas escolhas 572

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e transitam mais facilmente nas diferentes racionalidades segundo a percepção dos seus problemas e do que cada medicina oferece. Como mostram os depoimentos: Calmante para mim é chá de cidreira, de erva-doce, maracujá que são coisas caseiras. Mas remédio calmante de farmácia, eu não tomo. Graças a Deus, estou controlando o diabetes. Já tomei o chá da planta insulina, tomei “casco-de-vaca” com folha de “joão-bolão”, mas nada resolveu. O Daonil e o Metformina estão controlando bem, mas chá não tomo mais porque é dor de cabeça. Só suja o fogão e deixa a mulher brava com a gente [risos].

Quanto à prática de exercícios físicos, ela incide na relação com o corpo que, na classe trabalhadora, é o anteparo da força de trabalho necessária à sobrevivência própria e da família. As atividades físicas são valorizadas pela oportunidade de estreitamento dos laços sociais (praticada conjuntamente) e pela movimentação e dispêndio de energias que requerem força e esforços físicos. No entanto, a baixa adesão da classe trabalhadora a essa atividade programada pode ser atribuída, em parte, à redundância de realizá-la, já que o uso intenso que fazem do corpo não difere, fundamentalmente, do seu uso profissional (Boltanski, 1979), especialmente em trabalhos manuais, cujos resultados à saúde são interpretados como equivalentes à prática de exercícios físicos. Finaliza-se com um fragmento de relato que exprime a complexidade do gerenciamento do diabetes no dia-a-dia, mostrando que vários aspectos se dão em meio às demandas diárias. Nota-se a quantidade de medicamentos ingeridos, inclusive para contornar problemas advindos desse consumo constante; o uso de fitoterápico e a manipulação de doses e horários de acordo com os hábitos alimentares do informante e a experiência com a doença, buscando legitimar esse comportamento junto ao profissional de saúde. Ao narrar uma crise de hipotensão, deixa entrever a estreita relação com o serviço e os profissionais de saúde que o aconselharam na situação que antecedeu o problema. Contudo, os riscos e os compromissos sociais a serem honrados foram avaliados, diante dos quais se decidiu pelo uso da medicação e o cumprimento das exigências da vida cotidiana. A manifestação da crise, percebida pelas sensações desagradáveis, que podem confundir na elevação ou queda da pressão arterial, exigiu a comprovação pela aferição e a tomada de decisão rápida para solucionar o problema, empregando medidas baseadas em conhecimentos populares (antes mesmo de cogitar recorrer ao serviço oficial de saúde). São soluções “caseiras” que o adoecido crônico, em geral, desenvolve, aprimorando-as conforme a convivência com a enfermidade, suas peculiaridades e contexto – o que não é diferente no diabetes. Os malabarismos diários permeiam o depoimento: Antes do café tomo o Daonil, depois tomo outro remédio para calçar o estômago e aí tomo o ginkobiloba. Se percebo que a pressão está meio ruim, tomo o Nifedipina. Falei para o médico que de manhã minha pressão está controlada, mas depois do almoço – porque gosto da comidinha com sal – ela altera um pouquinho mais, então tomarei o remédio da pressão depois do almoço, se tomar pela manhã cairá demais. Como aconteceu dias atrás: passei no Posto, a pressão estava 16X8 e eu ia viajar. A enfermeira achou melhor eu não ir, mas ando com o remédio no bolso, tomei e fui. Cheguei, resolvi meus problemas e fui na casa de uma família conhecida e comecei a passar mal: quentura no corpo, o rosto ficando roxo. Pensei ser pressão baixa e fui acompanhado na farmácia para medir e confirmou: estava 13X6 – era baixa para mim. Se tomasse remédio para abaixar, sem medir, ia complicar podendo cair mais. Sorte é que fui à farmácia. Sabe o que fiz? Pensei em comer umas duas azeitonas ou colocar uma pelotinha de sal embaixo da língua. Cheguei na casa do colega, a mulher fazia o almoço e tinha umas rodelonas de cebola e pedi uma – cebola é bom para circulação, coração – coloquei sal e comi e já começou a controlar. Depois almocei e vim tomar o meu remédio de pressão aqui em casa. Fiquei bom, normalizou tudo. E com o diabetes não dá para bobear também.

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Enfim, a vivência do diabetes é um processo permanente, interpretativo, prático e contextualizado. O adoecido se apóia nas representações sociais, na própria experiência e de outras pessoas enfermas para atribuir significado à situação vivida e para gerenciar a doença. A vivência do adoecimento é sensível às necessidades cotidianas e aos recursos (materiais, relacionais, simbólicos) disponíveis, acessíveis e mobilizados pelo sujeito no seu contexto imediato; além de ser intermediada por elementos da estrutura social, de gênero, da organização e oferta de serviços de cura (oficiais e alternativos), e, ainda, pelos sistemas de valores e as referências culturais que ganham sentido quando reportadas a uma trajetória pessoal única, como ilustrou o caso analisado.

Considerações finais O estudo de caso mostrou-se oportuno à compreensão da construção da experiência do diabetes, podendo ser aplicado a outras enfermidades crônicas, guardadas as suas especificidades. A noção de estoque de conhecimentos estendeu-se às relações mais amplas, num movimento de mão dupla nos planos micro e macrossociais. Ao lidar com o diabetes, o informante apóia-se na experiência vivida e nos conhecimentos de senso comum sobre a saúde, o diabetes e o seu manejo, sendo (re)interpretados quando ativados em situação. É preciso, porém, compor um espaço de reflexão que não se prenda a uma só teoria, mas mobilize várias problemáticas diante da especificidade e complexidade envolvidas na compreensão do objeto desse estudo. Para o adoecido, a origem do diabetes é pluricausal e relacional, remetendo à compreensão holista da doença oposta às explicações individualizantes modernas, que não são total e acriticamente assimiladas nos segmentos populares. O conceito do diabetes constrói-se incorporando saberes de várias ordens e origens, que são ressignificados segundo os construtos prévios sobre saúde, doença e a experiência corporal. O gerenciamento é influenciado por fatores do indivíduo, do próprio diabetes e do contexto imediato e mais amplo, envolvendo um processo de aprendizagem, pela qual as prescrições são ajustadas em meio às demandas diárias não médicas, às idéias e significados de saúde, doença, diabetes; e o seu tratamento, aos sinais, às sensações, aos usos do corpo e aos aspectos significativos e prioritários da vida. Assim, os ajustes integram o gerenciamento do diabetes viabilizando o sentir-se física e moralmente bem. As prescrições médico-científicas centram-se nas ações técnicas e individuais da fórmula medicamento–dieta–controle glicêmico–exercícios físicos, e são ajustadas pelo adoecido, podendo convergir e divergir dos padrões biomédicos. Embora predomine, a medicina científica convive com outras práticas terapêuticas que se complementam em virtude da complexidade do sofrimento (físico e moral). Enfim, considerar a não passividade do adoecido diante da enfermidade e das recomendações terapêuticas, bem como a existência da multiplicidade de influências que moldam a experiência da enfermidade, constitui desafio necessário que se coloca aos profissionais de saúde, de modo que a formulação e a implementação das intervenções sejam sensíveis e ofereçam alternativas coerentes com as especificidades socioculturais e contextuais dos diferentes grupos sociais, encarnadas numa biografia singular.

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Palabras clave: Antropología y Salud. Experiencia con la enfermedad. Diabetes. Estudio de caso. Recebido em 26/09/07. Aprovado em 25/04/08.

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artigos

A internet, o paciente expert e a prática médica: uma análise bibliográfica

Helena Beatriz da Rocha Garbin1 André de Faria Pereira Neto2 Maria Cristina Rodrigues Guilam3

GARBIN, H.B.R.; PEREIRA NETO, A.F.; GUILAM, M.C.R. The internet, expert patients and medical practice: an analysis of the literature. Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.12, n.26, p.579-88, jul./set. 2008. Over recent years, the world has witnessed a wide-ranging technological transformation that has substantially expanded the access to information, especially through the internet. In the field of healthcare, more and more information is available. Access to technical-scientific information, along with increased educational levels among the public, has given rise to patients who search for information about their diagnoses, diseases, symptoms, medications and costs of hospitalization and treatment: expert patients. This article discusses the way in which information obtained through the internet modifies or interferes with the doctor-patient relationship. Thus, the controversy between Freidson and Haug regarding the deprofessionalization of doctors is resurrected. Methodologically, we analyzed the opinions of authors who published articles on this topic between 1997 and 2005, in two important English academic journals in this field. We concluded that the positions found were distinct and even adversarial. In Brazil, despite digital exclusion, this question needs to be analyzed.

Key words: Doctor-patient relationship. Patient acceptance of medical care. Internet.

O mundo presenciou nos últimos anos uma ampla transformação tecnológica que ampliou substancialmente o acesso à informação, sobretudo por meio da Internet. Na área da saúde há cada vez mais informação disponível. O acesso à informação técnico-científica, aliado ao aumento do nível educacional das populações tem feito surgir um paciente que busca informações sobre sua doença, sintomas, medicamento e custo de internação e tratamento: o paciente expert. Este artigo discute de que modo as informações obtidas na internet modificam ou interferem na relação médico-paciente. Recupera-se a controvérsia entre Freidson e Haug sobre a desprofissionalização do médico. Metodologicamente, foram analisadas opiniões dos autores que publicaram artigos sobre o tema, entre 1997 e 2005, em duas importantes revistas acadêmicas inglesas da área. Conclui-se que as posições encontradas são distintas e até antagônicas, e o Brasil, apesar da exclusão digital, precisa analisar esta questão.

Palavras-chave: Relações médicopaciente. Aceitação pelo paciente de cuidados de saúde. Internet.

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1

Médica. Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz (Ensp/Fiocruz). Rua Leopoldo Bulhões, 1480 - Manguinhos Rio de Janeiro, RJ 21041-210 helena.garbin@ ensp.fiocruz.br 2 Historiador. Casa de Oswaldo Cruz, Fiocruz. 3 Médica. Ensp/Fiocruz.

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A INTERNET, O PACIENTE EXPERT E A PRÁTICA...

Introdução O mundo presenciou, nos últimos vinte anos, uma intensa e radical transformação tecnológica que, entre outras conseqüências, tem proporcionado um crescimento acentuado do acesso à informação. Há mais informação disponível e ela é, cada vez mais, fácil e rapidamente acessível (Giddens, 2002). Dois exemplos podem ser dados neste sentido: a televisão e a internet. Hoje em dia, quase todos os lares dispõem de um aparelho de televisão. Muitos deles com canais a cabo, que, somados aos canais abertos, disponibilizam informações sobre os mais diferentes assuntos. Além disso, a informação via satélite, transmitida pela televisão, tem permitido que um acontecimento seja visto no instante em que ele está ocorrendo. A televisão oferece, portanto, uma gama enorme de informações, em um tempo cada vez mais reduzido, a um contingente cada vez maior da população do planeta. A informação, via internet, por sua parte, alcançou um potencial inimaginável há anos. Hoje, podese saber de tudo e de todos, a qualquer hora do dia ou da noite, de qualquer lugar do planeta. Essa brutal transformação ocorreu em pouco mais de dez anos. Ela foi presenciada por muitos de nós. A internet se diferencia da televisão por duas características: a infinidade de fontes de informação disponíveis e a postura ativa do indivíduo. Por mais que existam dezenas ou até centenas de canais de televisão, eles são finitos, enquanto, na internet, as fontes de informação disponíveis são incontáveis. Por mais que o indivíduo possa mudar o canal da televisão se não encontrar a informação que está procurando, na internet ele se torna o agente do processo de aquisição de informações. Os inúmeros sites de busca facilitam, ainda mais, esta posição proativa do indivíduo diante da internet. No Brasil esta transformação tecnológica tem se desenvolvido de forma assimétrica. Enquanto mais de 90% de domicílios particulares permanentes possuem, pelo menos, um aparelho de televisão, apenas 16% têm acesso à internet (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2005). Os altos custos do computador e do acesso à rede, aliados à baixa escolaridade da ampla maioria da população têm criado o fenômeno do denominado excluído digital (Sorj, Guedes, 2005; Néri, 2003). Apesar disso, nos últimos anos, o Brasil tem apresentado um sensível crescimento do número de residências que possuem computador com acesso à internet. Segundo estimativas recentes, existem atualmente no Brasil cerca de trinta milhões de usuários de internet (O Globo, 2006). A saúde é uma das áreas onde há, cada vez mais, informação disponível para um número cada vez maior de pessoas. A televisão e a internet têm se tornado os principais veículos de difusão da informação na área da saúde. Muitos canais de televisão apresentam uma programação exclusiva sobre saúde. Na internet são incontáveis os sites sobre temas vinculados, de alguma forma, às questões relativas à saúde-doença. Este destaque se justifica na medida em que a saúde tornou-se, nos últimos anos, uma das principais preocupações do homem, adquirindo um valor inédito na história da humanidade. Por esta razão, é cada vez maior o número de pessoas que acessam a internet e a televisão para obter alguma informação sobre sua condição de saúde ou de um parente ou amigo. Pesquisas recentes têm demonstrado que as mulheres, mais que os homens, buscam informação sobre saúde na internet, pois assim procuram prevenir, evitar ou reduzir os custos de um tratamento de um dos membros da família, ajudando na gestão do orçamento familiar (Pandey, Hart, Tiwary, 2003). Os jovens compõem um outro grupo que se destaca no uso da internet. O acesso à rede, facilitado nas escolas, e a garantia do anonimato têm feito com que eles busquem confirmar ou complementar informações sobre saúde já recebidas nos livros escolares ou na sala de aula (Skinner, Biscope, Poland, 2003). Alguns estudos sugerem que existe uma relação significativa entre adoecimento e busca de informações sobre saúde (Berger, Wagner, Baker, 2005), isto é, indivíduos ou familiares de indivíduos atingidos por alguma enfermidade estariam mais propícios a buscar informações sobre determinada doença na rede. Os doentes e suas motivações para a busca de informações na internet têm levado à configuração das ‘comunidades virtuais’. Este fenômeno sociológico, extremamente interessante, tem se organizado nos últimos anos. Ele reúne doentes portadores de diversas patologias, em especial doenças crônicas, raras ou estigmatizantes (Berger, Wagner, Baker, 2005; Ziebland, 2004). Se a informação sobre saúde e doença está acessível na internet, muitas vezes ela é incompleta, contraditória, incorreta ou até fraudulenta. Por esta razão, o cidadão comum muitas vezes tem 580

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dificuldade de distinguir, por exemplo, o certo do enganoso ou o inédito do tradicional. Esta é uma das muitas questões levantadas por Castiel e Vasconcellos-Silva (2003). Eles chamam a atenção para as dificuldades encontradas por pacientes leigos com a linguagem médica e com a incerteza advinda da multiplicidade de informações. Somam-se a isso os problemas decorrentes do estímulo à automedicação. Independente do segmento social que mais acesse a Internet ou da qualidade e veracidade da informação disponível, tem surgido um novo ator na área da saúde: o paciente expert. Ele é um paciente que busca informações sobre diagnósticos, doenças, sintomas, medicamentos e custos de internação e tratamento. O fato de ter acesso à quantidade de informações disponíveis na internet, independente de sua veracidade, pode fazer com que este paciente esteja potencialmente menos disposto a acatar passivamente as determinações médicas. O paciente expert é, portanto, um consumidor especial dos serviços e produtos de saúde, pois detém informações que devem ser, pelo menos, levadas em consideração (Hardey, 1999). O paciente expert não é apenas um paciente informado. Ele se sente, de alguma forma, um entendido em um determinado assunto. Em linhas gerais, a literatura sobre o assunto considera que ele seja fruto da melhoria do nível educacional das populações, do acesso às informações técnico-científicas e da transformação da saúde em um objeto de consumo (Fox, Ward, O’Rourke, 2005; Blumenthal, 2002). O paciente expert tem, portanto, condições potenciais de transformar a tradicional relação médico-paciente baseada na autoridade concentrada nas mãos do médico. Neste artigo pretendemos discutir até que ponto o paciente expert, portador de inúmeras informações disponíveis na internet, consegue interferir na autoridade e prestígio social do médico e, conseqüentemente, alterar a relação médico-paciente, tradicionalmente baseada na assimetria de informações. A hipótese do aumento do poder (empowerment) do paciente nesta relação pode levar, em uma situação extrema, à desprofissionalização do médico. Esta discussão vem sendo travada antes do advento da internet. No início dos anos 70, Haug (1973) sugeriu que a elevação do nível educacional das populações e o acesso a conhecimentos técnicocientíficos iriam promover a desprofissionalização de diversas atividades, isto é, promoveriam “a perda, por ocupações profissionais, de suas qualidades únicas, particularmente o monopólio sobre o conhecimento, a crença do público no ethos de serviço, [ ...] e autoridade sobre clientes” (Haug, 1973, p.197). Haug (1988) defendia que o crescente acesso ao conhecimento científico acabaria por desmistificar a profissão médica, reduzindo seu poder, autoridade e prestígio social. No seu entender, o cidadão, ciente de seu estado de saúde, teria melhores condições de resistir à postura paternalista do médico. Apesar de entender que o conhecimento advém da experiência e que, portanto, “não é facilmente codificado e guardado” (Haug, 1973, p.202), esta autora defendia, desde meados dos anos 70, que a profissão médica estaria perdendo seu estatuto profissional, pois estaria deixando de controlar as informações que lhe foram outrora exclusivas. Freidson (1993, 1989) contestou esta idéia defendida por Haug (1988, 1973), uma vez que, no entender dele, a relação entre médico e paciente baseia-se na autoridade do primeiro em relação ao segundo. Esta autoridade deriva do conhecimento que o primeiro tem sobre o problema que o segundo vive. Como este conhecimento é aplicado e resolve, em geral, os problemas do segundo, o paciente se submete a esta autoridade. Para ele, a distância entre o conhecimento leigo e o científico, sobre um determinado tema, continua existindo: A noção de que a população apresenta hoje, em média, um melhor nível educacional que no passado é verdadeira, mas a suposição de que isso reduz o ‘gap’ de conhecimentos entre a medicina e o consumidor da saúde é válida somente se o conhecimento e a técnica médica tivessem estagnado e não tivessem evoluído. (Freidson, 1989, p.185)

Embora os estudos de Freidson e Haug precedam o boom da internet, podemos deduzir que Freidson defenderia posição oposta àquela sustentada por Haug quanto ao poder do paciente expert alterar a relação médico-paciente. Para Freidson, o acesso à informação não reduz a autoridade e o prestígio social do médico, nem promove sua desprofissionalização. Pelo contrário, ao buscar COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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A INTERNET, O PACIENTE EXPERT E A PRÁTICA...

informações sobre a ciência, o cidadão comum inscreve-se, cada vez mais, na lógica dominante da medicina ocidental. Com isso, o paciente semeia o terreno para que o diagnóstico e o tratamento médico sejam aceitos mais facilmente. O profissional, por seu lado, não pode estar desatualizado. Ele deve ser mais expert que seu paciente.

Procedimentos metodológicos Metodologicamente, analisaremos esta questão verificando como alguns autores têm tratado este tema. Ou seja, trata-se de um trabalho de base bibliográfica, que não utilizou fontes primárias de investigação. Em relação à abrangência da amostra, nos restringimos, neste artigo, a duas das principais revistas na área de ciências sociais e humanas em saúde: “Social Science and Medicine” e “Sociology of Health & Illness”. Os dois periódicos são ingleses. Segundo o “ISI Journal Citation Report” de 2005, eles estão, respectivamente, em segundo e quarto lugares entre as mais importantes revistas do mundo em Sociologia e em Ciências Sociais e Biomedicina. Para a pesquisa dos artigos na internet, realizada por meio do “Portal Brasileiro de Informação Científica” da Capes, foram utilizados os seguintes termos de busca: deprofessionalization, expert patient e internet. Os termos foram usados de forma independente nas categorias título, resumo e palavras-chave para o período de 1997 a 2006. Isto é, não foi necessária a ocorrência concomitante dos três termos. Com base nos resultados obtidos com cada termo, foi realizada uma análise individual de cada título e resumo para avaliar a adequação, ou não, de cada artigo à nossa pesquisa. O período da amostra (dez anos) foi determinado, sobretudo, em função do tema do estudo. Considerando-se o período de existência da internet, é fácil entender que há pouquíssimos estudos realizados nos anos anteriores a 1997. Na verdade, a grande incidência de estudos nesta área se dá a partir de 2001, sobretudo em 2004 e 2005, visto ser o fenômeno do paciente expert bastante recente. Apesar disso, o período selecionado produziu uma amostra bastante significativa, pois foram encontrados 45 artigos. Destes, selecionamos 15 trabalhos e estes envolvem 33 autores de 18 universidades diferentes no Reino Unido, Holanda, EUA e Canadá. Os departamentos aos quais esses pesquisadores pertencem são das seguintes áreas: Ciências Sociais (12) e Saúde (11). Foram excluídos textos sobre saúde mental, aconselhamento genético, eutanásia com consentimento livre e esclarecido, por fugirem ao objetivo de nosso artigo. Estes quinze artigos foram selecionados para serem aqui analisados porque discutem as possíveis conseqüências que o fenômeno do paciente expert pode ter sobre a profissão médica como um todo e/ ou sobre o saber médico/medicina oficial dominante (biomedicina).

Discussão A maioria dos artigos identificados nesses dois periódicos e analisados neste trabalho entende que os pacientes que têm acesso às informações, via internet, tornam-se potencialmente poderosos (empowerment). Para esses autores, esta nova condição pode influir e até transformar a relação dos médicos com seus pacientes. Em termos gerais, acreditam que é fundamental que os profissionais procurem trabalhar com o paciente, ao invés de para ele, usando mais tempo para escutar, absorver e valorizar as necessidades cognitivas, sociais e emocionais de seus pacientes. O médico deve valorizar a vida do paciente, e não somente seu corpo. Assim, deve fornecer informações de boa qualidade, discutir questões referentes ao diagnóstico, tratamento e resultados, respeitando os desejos do paciente em relação à tomada de decisões. Para tal, é fundamental que os próprios médicos se mantenham informados e atualizados. Lendo e analisando os quinze artigos, pudemos identificar pelo menos três posições sobre o tema. Alguns autores acreditam, como Haug, que a aquisição de informações sobre saúde pelo paciente, via internet, abala o status e a autoridade da profissão médica, contribuindo para o processo de desprofissionalização do médico. Outros autores reconhecem o potencial que esta nova realidade 582

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detém de alterar a tradicional relação médico-paciente, mas entendem que, por este processo, a racionalidade biomédica torna-se ainda mais fortalecida junto a seu público. Em geral, quando a discussão abrange o campo da ciência e da prática médica hegemônica, a biomedicina, esses autores tendem a concordar com a visão de Freidson (1989) quando este diz que o corpo de conhecimentos não está sendo substituído por outro vindo de fora. Um terceiro grupo fica numa posição intermediária, pois entende que o paciente expert, ao mesmo tempo, preserva e condena a autoridade e status da profissão médica. Vejamos como estão dispostos os argumentos e seus protagonistas.

O paciente expert promove a desprofissionalização do médico Hardey (1999) e Dretrea e Moren-Cross (2005) filiam-se a esta primeira visão. Hardey publicou, em 1999, artigo relatando sua pesquisa realizada no sul da Inglaterra em residências onde os moradores usualmente buscavam informações sobre saúde na internet, e entrevistou todos os moradores de cada residência. O autor concluiu que os médicos vêm usando o monopólio do conhecimento como forma de controlar os encontros com pacientes e manter uma posição de poder, uma vez que o livre acesso à informação “representa o desafio à expertise médica contemplada pela noção de desprofissionalização de Haug” (Hardey, 1999, p.832). Acredita que tal processo pode levar a uma redução da reverência e da confiança dos pacientes nos médicos, podendo promover a busca por terapias alternativas. Dretrea e Moren-Cross (2005) são autores que também acompanham, em linhas gerais, a visão de Hardey. No seu trabalho, as autoras estudaram uma comunidade virtual dedicada à questão da maternidade, buscando descobrir se a comunidade fomenta ou gera suporte social e capital social para suas participantes. Apesar de não citarem explicitamente Haug (1988, 1973), Dretrea e Moren-Cross entendem que o site analisado “tem um papel na desprofissionalização da medicina e na consolidação e reforço do poder dos movimentos de auto-ajuda. Este web site transferiu a informação da ciência e dos profissionais, para as próprias mulheres” (Dretrea e Moren-Cross, 2005, p.938), concordando assim com as conclusões de Hardey (1999). A diferença entre os dois trabalhos é que enquanto o primeiro foi baseado em entrevistas, o segundo foi baseado em análise do discurso das mensagens postadas para a comunidade e observação participante.

O paciente expert transforma a relação médico-paciente Apesar de existir um certo consenso sobre o aumento do poder do paciente expert, alguns autores acreditam que esta modificação não implique na desprofissionalização do médico, nem na condenação do saber biomédico dominante. Para eles, o aumento do conhecimento do paciente sobre seu estado de saúde ou doença não implica diretamente a perda de autoridade do médico. Eles defendem que o empowerment dos pacientes pode se contrapor ao “modelo paternalista”, onde o poder de decisão está nas mãos do médico e o paciente adota uma postura mais passiva sobre sua própria saúde, aceitando plenamente a supremacia da expertise profissional. A reformulação do modelo tradicional de relação médico-paciente, para muitos deles, parece inevitável. Colocando-os na ordem em que foram publicados, tivemos condições de identificar oito artigos. O primeiro é de Henwood et al. (2003). Apesar de admitirem o potencial empowerment dos pacientes quando da aquisição de informações, constataram, em seu estudo sobre mulheres, que em última instância elas confiam mais no médico do que em sua expertise quando se trata de tomar a decisão mais acertada, pois “é para isso que eles (os médicos) foram treinados” (Henwood et al., 2003, p.597). Eles sugerem que a relação médico-paciente deve passar a ser baseada na troca de informações e na tomada de decisão compartilhada, independente do grau de participação de cada um dos atores neste processo de decisão. No mesmo ano, Pandey, Hart e Tiwary (2003) publicaram um artigo fruto de um estudo quantitativo retirado de uma enquete com mulheres feita por telefone no Estado de Nova Jérsei (EUA). O estudo procurou compreender por que este grupo social usa a internet para a obtenção de informações sobre saúde. Os autores concluíram que os médicos ainda são a principal fonte de informação, e que as mulheres usam a internet sobretudo como forma de complementar as informações sobre seu estado de COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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saúde. Em função disto, defendem que os médicos respondam de forma mais objetiva e direta às necessidades dos pacientes, e que a relação médico-paciente deveria ser mais igualitária e simétrica. Em 2003, Skinner, Biscope e Poland descreveram sua pesquisa, realizada com jovens, para entender quais são suas perspectivas em relação à obtenção de informações sobre saúde na internet, e a importância da qualidade do acesso, com destaque para a privacidade. Os autores valorizam o empowerment dos pacientes e vêem os profissionais de saúde como grandes colaboradores neste processo. Gillet (2003), em seu trabalho de cunho empírico, não apresenta formalmente uma posição sobre a polêmica que motivou nossa investigação, a saber: de que modo as informações obtidas na internet modificam ou interferem na relação médico-paciente. Ele busca entender a relação entre o uso da internet por pessoas diretamente afetadas por problemas de saúde, pesquisando sites criados por pessoas com HIV/AIDS. Muitos sites defendem o trabalho dos pacientes com o médico. Os sites não rejeitam o conhecimento profissional e o papel do médico, mas reconhecem a legitimidade do conhecimento leigo. Este conhecimento advém da vivência do adoecimento que, ao ser divulgada, contribui para educar e melhorar a vida de outras pessoas, além de criar uma rede social por meio do compartilhamento. Gray et al. (2005) relatam pesquisa em que buscam entender as percepções e experiências de adolescentes norte-americanos e britânicos em relação ao uso da internet para obtenção de informações sobre saúde. Os autores sugerem que, apesar do potencial de conflito e questionamento que a aquisição de informações pode trazer para a relação médico-paciente, os profissionais ainda são vistos como informantes de confiança, e que é possível combinar a pesquisa na internet com a consulta médica. Cotten e Gupta (2004) constataram que o médico ainda é a primeira fonte de informações tanto para os indivíduos que obtêm informação sobre saúde na internet quanto para aqueles que obtêm suas informações por outras mídias. Assim a visão destes autores aproximou-se em muito daquela dos mencionados anteriormente. A pesquisa quantitativa que deu origem ao artigo de Berger, Wagner e Baker (2005) foi realizada, nos EUA, com pessoas acometidas por doenças consideradas estigmatizantes, como: depressão, ansiedade, incontinência urinária ou herpes. Os autores não discutem se as informações obtidas na internet modificam ou interferem na relação médico-paciente. Defendem, no entanto, que o uso da internet para a busca anônima de informações sobre saúde e doença aumenta a procura pelo atendimento médico. Sua conclusão parece reforçar o modelo biomédico dominante, reiterando a proeminência da profissão médica. Seale e Nettleton, Burrows e O’Malley, em trabalhos recentes (2005), discordam que a internet seja, na realidade, uma forma de resistência efetiva ao saber biomédico hegemônico. Apesar de admitirem a existência de sites de resistência e discordância ao modelo hegemônico, afirmam que as informações disponíveis na rede estão comprometidas com interesses poderosos, como os da indústria farmacêutica, das grandes empresas, dos institutos e escolas médicas, diferindo muito pouco da mídia convencional. O trabalho de Nettleton, Burrows e O’Malley (2005) foi realizado na Inglaterra e procura entender as razões do uso da internet por leigos na busca de informações sobre saúde, e como estes avaliam estas informações. Este estudo qualitativo foi realizado por meio de entrevistas com pais de crianças que apresentam uma de três doenças crônicas específicas (asma, eczema e/ou diabetes). Os autores não acreditam que o acesso à informação em saúde via internet ameace a profissão médica ou a medicina oficial dominante – biomédica. Baseados na análise das “retóricas de confiança” apresentadas pelos entrevistados, eles concluem que a busca de informações sobre saúde na internet “reforça os discursos do profissionalismo e da biomedicina” (Nettleton, Burrows, O’Malley, 2005, p.989).

O paciente expert preserva e condena a profissão médica Se alguns autores prevêem a desprofissionalização da prática médica, existem os que admitem que a existência do paciente expert alterará o padrão tradicional de relação médico-paciente, mas não promoverá o vaticínio de Haug, como vimos acima. Existem ainda autores que não podem ser enquadrados em nenhuma das duas visões: é o caso de dois artigos de Fox, Ward, O’Rourke (2005a, 584

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artigos

2005b), que analisam diferentes objetos (comunidades virtuais) com posturas e objetivos diferentes. No primeiro artigo, os autores analisam um fórum de discussões na internet sobre obesidade e o uso de xenical (orlistat). Eles concluem que o fenômeno do paciente expert, da forma como é observado neste fórum, não se constitui num desafio ao poder e à autoridade da profissão médica e, muito menos ainda, à hegemonia do modelo (bio)médico. No entender desses autores, neste caso, a obtenção de informações facilita a comunicação entre os dois atores e transforma os pacientes em colaboradores do médico por meio da participação ativa no controle de sua saúde. Eles consideram que um paciente, quando se torna expert, pode estar ainda mais submetido ao poder biomédico: “Neste contexto, ser um paciente expert não é apenas ser informado e engajado, mas estar aberto ao escrutínio, à normalização e à padronização impostos pelo médico” (Fox, Ward, O’Rourke, 2005a, p.1307). Se eles acreditam que a busca por informações e suporte pode resultar em uma maior aceitação e submissão aos modelos socialmente estabelecidos, como no caso acima, eles também admitem que este processo possa significar uma reação a esses modelos dominantes, como podemos ver no segundo artigo dos mesmos autores selecionado para esta discussão. No segundo estudo, estes mesmos autores analisaram uma comunidade virtual reunida em torno da anorexia, e observaram que a proposta é a de não-tratamento e a perspectiva é a da anti-recuperação. Essa comunidade “sustenta uma expertise que se contrapõe aos modelos médico e social dominantes... E como tal, representa um exemplo de uma comunidade baseada na resistência a esses modelos” (Fox, Ward, O’Rourke, 2005b, p. 965). O trabalho de Sue Ziebland (2004) se aproxima dos dois artigos de Fox, Ward e O’Rourke mencionados acima, mas guarda sua singularidade. Fox, Ward e O’Rourke observaram reações diferentes de comunidades virtuais que usam xenical e de outras que sofrem de anorexia. De acordo com o caso, estes autores encontraram reações diferentes ao modelo biomédico dominante. Sue Ziebland (2004) não analisa objetos distintos, mas sim confronta momentos diferentes. Ela é pesquisadora do Departamento de Cuidados Primários da Universidade de Oxford, e se dedica ao estudo da experiência pessoal do adoecimento e da relação entre médicos e pacientes. Ela integra o grupo de pesquisa que obtém e disponibiliza informações sobre a “experiência pessoal de saúde e doença” na internet (DIPEX). Este website (www.dipex.org) é detentor de vários prêmios na categoria de site de informação em saúde, inclusive o da “Associação Médica Britânica”. Em seu artigo, publicado em 2004, analisa o uso que os pacientes fazem da informação que obtêm na internet. Ela considera que o fato de o paciente ter acesso à informação que antes era reservada aos médicos pode, de fato, implicar redução de autoridade destes, constituindo uma ameaça ao controle que o médico tem da relação, e assim contribuir para a desprofissionalização da medicina. No entanto, questiona se a Internet vai continuar a ser usada de forma ativa no futuro, e se os profissionais médicos não vão terminar por transformá-la em um “suporte para seu trabalho e para sua comunicação com os pacientes” (Ziebland, 2004, p.1792), preservando, assim, a assimetria de informações e, em conseqüência, o poder na relação com seu paciente.

Considerações finais Os estudos identificados neste levantamento bibliográfico e analisados neste artigo apresentam posições distintas e até antagônicas sobre o potencial que as informações obtidas na internet têm de modificar ou interferir na relação médico-paciente. De qualquer forma, cabe salientar que enquanto alguns estudos apontam os médicos como a principal fonte de informação para pacientes (Cotten, Gupta, 2004), o papel da internet tem sido crescentemente valorizado, pois oferece uma imensa quantidade de informações, acessíveis a qualquer momento, de forma rápida e atualizada. Estas informações podem ser obtidas não só em sites sobre saúde, onde os pacientes podem obter informações técnico-científicas, alternativas ou não, mas também nas diversas comunidades virtuais e grupos de apoio existentes na grande rede mundial. Em relação às medicinas alternativas, alguns autores salientam que o paciente pode ter acesso a incontáveis sites onde o saber biomédico hegemônico é questionado (Hardey, 1999), enquanto outros COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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consideram a internet já bastante comprometida com o saber/prática dominante (Nettleton, Burrows, O’Malley, 2005; Seale, 2005). Também aparece com destaque, neste estudo, o papel das comunidades virtuais que reúnem on line pessoas acometidas por doenças crônicas, raras ou estigmatizantes (Berger, Wagner, Baker, 2005; Fox, Ward, O’Rourke, 2005a, 2005b; Ziebland, 2004). Elas desempenham um papel fundamental para a reaproximação dos indivíduos e proporcionam uma recuperação de sentidos, oferecendo suporte e um retorno às questões humanas do adoecer. Além disso, as comunidades virtuais permitem que as informações sejam trocadas entre os principais interessados. Cabe lembrar, entretanto, que algumas comunidades, assim como muitos sites, podem ser simplesmente veículos de empresas comerciais, interessadas em divulgação de medicamentos, de novas tecnologias, ou mesmo de valores que levem os usuários a buscar seus produtos. Ressaltamos também os problemas causados pelos sites que divulgam informações erradas ou contraditórias (Castiel, Vasconcellos-Silva, 2003). De qualquer forma, as informações disponíveis na internet têm potencial para modificar a relação médico-paciente. Ao elevarem o poder decisório do paciente, colocam em questão a formação e autoridade profissional médica e desafiam o médico a estar constantemente atualizado. Assim, criam a possibilidade de decisões mais compartilhadas (Henwood et al., 2003). Neste artigo realizamos uma revisão narrativa centrada na categoria paciente expert. Os critérios utilizados e as etapas de pesquisa desenvolvidas foram apresentados de forma criteriosa. Tivemos o cuidado de delimitar o escopo do objeto e o alcance (circunscrito) de nossas observações. O artigo contribui, em termos exploratórios, para o debate nacional, e retorna a um tema – a desprofissionalização da prática médica - que foi bem enfocado em nosso país no passado, e que necessita de atualizações. O debate aqui desenvolvido baseou-se, sobretudo, na controvérsia existente entre Freidson (1993, 1989) e Haug (1988, 1973). Vários outros autores enfrentaram este debate de forma destacada na sociologia e na história, como, por exemplo: Magali Larson (1977), Pedro Entralgo (1982), Erik Olin Wright (1981) e Claus Offe (1989). No Brasil, Maria Helena Machado (1996) e Lilia Schraiber (1993) trataram do tema em sua produção bibliográfica. Em nosso estudo, privilegiamos a análise de artigos publicados em dois importantes periódicos ingleses. Apesar do seu alto impacto, cabe enfatizar que outros periódicos publicam artigos com preocupações semelhantes e merecem pesquisas futuras, como: o Journal of Medical Internet Research, o British Medical Journal e o Health Informatics Journal, entre muitos outros. Assim, gostaríamos de sugerir uma possível agenda de pesquisa sobre o tema, esperando com isso encorajar outros pesquisadores a se debruçarem sobre a questão, inspirando-se, desta vez, em outros autores e analisando outros periódicos. Por ser este um trabalho de base bibliográfica, não foi nosso objetivo verificar até que ponto a informação disponível na internet é uma ameaça potencial ao poder médico, nem tão pouco discutir a assimetria da relação médico-paciente. Consideramos, no entanto, que pesquisas empíricas podem possibilitar especulações produtivas sobre a interferência da internet nessa relação, e discutir por que razão, a despeito da recente abundância de outras fontes de informação sobre saúde, os médicos têm se tornado cada vez mais fortes nos diferentes mercados e o núcleo da profissão permanece sólido e dominando tecnologias cada vez mais difíceis de serem apropriadas por não médicos. É bom lembrar que, se hoje os pacientes tentam preservar sua autonomia procurando informações na rede, o movimento de busca de informações fora do consultório ou do hospital, com vizinhos, parentes ou amigos, sempre existiu. Os cidadãos, em todos os momentos históricos, quando se tornam pacientes, procuram conhecer, fora do circuito médico, a experiência de outras pessoas sobre aquela doença, instituição ou profissional. Esta atitude fez e continuará fazendo parte da trajetória terapêutica de cada um de nós que, contemporaneamente, pode contar com o auxílio desta importante ferramenta que é a internet.

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GARBIN, H.B.R.; PEREIRA NETO, A.F.; GUILAM, M.C.R. Internet, el paciente experto y la práctica médica: un análisis bibliográfico. Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.12, n.26, p.579-88, jul./set. 2008. El mundo ha presenciado en los últimos años una amplia transformación tecnológica que ha ampliado substancialmente el acceso a la información, sobre todo por medio de Internet. En el área de la salud hay cada vez más información disponible. El acceso a la información técnico-científica, aliado con el aumento del nivel educacional de las poblaciones ha hecho surgir un paciente que busca informaciones sobre su enfermedad, síntomas, medicamento y costo de internación y tratameinto: el paciente experto. Este artículo discute de que modo las informaciones obtenidas en Internet modifican o interfieren en la relación médico-paciente. Se recupera la controversia entre Freidson y Haug sobre la des-profesionalización del médico. Metodológicamente se analizan opiniones de los autores que han publicado artículos sobre el tema, entre 1997 y 2005, en dos importantes revistas académicas del sector inglesas. Se concluye que las posiciones encontradas son diferentes e incluso antagónicas; y Brasil, pese a la exclusión digital, necesita analizar esta cuestión.

Palabras clave: Relaciones médico-paciente. Aceptación por el paciente de los cuidados de salud. Internet. Recebido em 12/06/07. Aprovado em 22/04/08.

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artigos

Aconselhamento em contracepção: grupo de capacitação de profissionais médicos do Programa de Saúde da Família

Manoel Antônio dos Santos1 Elisabeth Meloni Vieira2

SANTOS, M.A.; VIEIRA, E.M. Contraception counseling: training group for physicians within the Family Health Program. Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.12, n.26, p.589-601, jul./set. 2008. The potential for a group intervention with the purpose of training medical residents within the family health program for contraception counseling is analyzed. The intervention is based on the assumption that sexuality needs to be incorporated within this field. Strategies aimed at raising health professionals’ awareness of the need to listen to the sexual issues that are implicit in contraception counseling are discussed. Qualitative methodology was used, and the corpus was constructed based on the technique of participant observation. It consisted of reports coming from transcription of the group coordinator’s field diary notes. It was seen that the opportunity to share knowledge in a horizontal relationship facilitated revision of the beliefs and values that support medical practice. Thus, this helped health professionals to surmount the technical view of contraception guidance.

Key words: Contraception. Directive counseling. Family practice. Reproductive Behavior. Sexuality. Medical education.

Analisam-se as potencialidades de uma intervenção em grupo com o propósito de capacitar médicos residentes do Programa de Saúde da Família (PSF) para aconselhamento em contracepção. Ancorados no pressuposto da incorporação da sexualidade nessa área, os autores trabalharam com estratégias que se destinam a sensibilizar os profissionais para ouvir as questões sexuais que estão subentendidas na orientação para a contracepção. Foi utilizada metodologia qualitativa. O corpus foi construído com base na técnica de observação participante e consistiu em relatos provenientes da transcrição das notas do diário de campo da coordenadora do grupo. Observou-se que a possibilidade de compartilhar saber, numa relação de horizontalidade, favoreceu a revisão de crenças e valores que sustentam a prática médica, ajudando profissionais a transcenderem uma visão tecnicista da orientação em contracepção.

Palavras-chave: Anticoncepção. Aconselhamento diretivo. Medicina de família e comunidade. Comportamento reprodutivo. Educação médica.

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1 Psicólogo. Departamento de Psicologia e Educação, Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo. Rua Cerqueira César, 974, apto. 91 Centro - Ribeirão Preto, SP - 14.010-130 masantos@ffclrp.usp.br 2 Médica. Departamento de Medicina Social, Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo.

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ACONSELHAMENTO EM CONTRACEPÇÃO ...

Por que aconselhamento em contracepção? Uma das maiores dificuldades enfrentadas pelo profissional, na prática médica, é lidar com os aspectos afetivos e comportamentais envolvidos na relação com o paciente. Particularmente, quando a tarefa envolve aspectos da conduta sexual, a dificuldade é ainda mais flagrante. No caso do aconselhamento em contracepção, por tratar-se de objeto de intensa medicalização, verifica-se uma tendência à normatização prescritiva e à redução ao corpo biológico, levando a uma naturalização da questão e, muitas vezes, a uma total ignorância sobre as questões de gênero. Medicalizar o corpo e reduzi-lo ao seu aspecto meramente biológico têm sido estratégias comuns da prática médica, de forma a não lidar com os aspectos afetivos e sociais da vida cotidiana, para os quais os médicos sentem-se despreparados. Além disso, com o uso recorrente dessas estratégias, reforça-se a idéia da necessidade intensa do especialista e da solução medicalizada para questões psicossociais cuja resposta pode estar além desta prática (Vieira, 2002). No caso do corpo feminino, existem várias análises que apontam para sua “expropriação” pelo saber médico como estratégia de controle social, negando às mulheres autonomia e poder de decisão sobre o próprio corpo (Enrenreich, English, 2003; Vieira, 2002; Illich, 1975). Por outro lado, no caso do Brasil, existe uma necessidade real de contracepção das mulheres que não encontra resposta no sistema de saúde. Segundo dados da Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde de 1996, cerca de metade das mulheres não queria ter tido o último filho ou queria ter tido essa gravidez em outro momento da vida (BEMFAM/Macro, 1997). O aconselhamento em contracepção é um procedimento fundamental para permitir o acesso aos meios contraceptivos e seu uso correto, aumentando sua eficácia de ação, sobretudo para a população com baixo poder aquisitivo e pouco acesso à informação científica. Nesse sentido, os profissionais de saúde – médicos, enfermeiros, assistentes sociais, psicólogos – desempenham um papel crucial, pois podem fornecer orientações adequadas, legitimando essa busca. O Programa de Residência Médica em Saúde Comunitária e Medicina da Família da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo busca capacitar os médicos para uma abordagem integral, colocando como prioritárias as questões de saúde pública e aquelas que envolvem o estabelecimento de uma boa relação médico-paciente. Esse programa baseia-se nas premissas que regulam o Programa de Saúde da Família (PSF). No contexto hospitalar, as aproximações mecanicistas da doença e da cura são hegemônicas e geram insatisfação tanto nos pacientes como nos profissionais de saúde. Os programas de saúde da família privilegiam outra ótica do cuidar. O cuidado integralizado, humanizado e solidário deve restituir a unidade do ser humano e apreender os problemas humanos em suas múltiplas dimensões: biológicas, sociais, psicológicas e existenciais. O PSF compreende uma política pública de atenção primária à saúde destinada à operacionalização dos princípios e diretrizes do SUS, organizando o sistema em uma rede articulada com os outros níveis de atenção à saúde (Brasil, 1997). Nessa rotação de perspectiva operada pela estratégia saúde da família, os PSFs se configuram como um campo fértil para a experimentação de modalidades diferenciadas de intervenção na área da saúde (Camargo-Borges, Cardoso, 2005). Uma das vertentes dessa produção de conhecimentos e de práticas inovadoras ou transformadoras é aquela que se propõe a abordar e repensar a relação médico-paciente.

Relação médico-paciente em tempos de transição social e paradigmática Atualmente, a formação médica é considerada um componente estratégico da Reforma Sanitária Brasileira (Aguiar, 2005). Da educação médica depende, em grande medida, o aprimoramento do modelo assistencial em direção a uma prática em saúde humanizada e competente, voltada para os interesses coletivos e regulada por eficiente controle social. Autores como Camargo (1992), Schraiber (1997, 1993), Minayo (1993a) e Machado (1997) colocam em discussão a formação médica e o cotidiano do trabalho em Medicina. Um dos aspectos levantados é a supressão de dimensões importantes da experiência humana com o advento da medicina científica. As 590

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SANTOS, M.A.; VIEIRA, E.M.

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múltiplas facetas, social-comunitária, emocional e espiritual, que compõem o existir humano, além da dimensão biológica, encontram-se dissociadas, diluídas ou completamente negligenciadas na produção do saber médico. Clavreul (1983) reconhece aí uma estratégia sutil de destituição da subjetividade do paciente que não pode ser acolhida na prática médica. Para que essa prática pudesse se constituir historicamente, tal como hoje a conhecemos, demandou que se colocasse em suspeição tudo o que escapa à captura do olhar anatomopatológico e que, portanto, não pode ser traduzido em termos exclusivamente racionalistas. Ao esculpir a profissão médica nesses moldes, o discurso médico tem efeitos diretos na prática clínica. Discutindo a qualidade da assistência médica, alvo de constantes questionamentos e descontentamentos, Schraiber (1993) menciona a falta de compromisso que surge quando o profissional se crê isento de responsabilidade pessoal sobre suas ações, delegando-a às instituições, ao governo ou a qualquer outra instância externa. Esse fenômeno, no qual pessoa e ato se dissociam, está vinculado ao que a autora denomina de “despersonificação dos cuidados e desumanização da assistência” (Schraiber, 1993, p.128). Para combatê-las, é necessário que se incorporem, ao exercício da Medicina, as dimensões perdidas do ser humano e que se proporcione, efetivamente, um cuidado do emocional em saúde (Sá, 2003). É preciso compreender que as raízes dessa dissociação repousam na própria constituição do objeto de estudo da Medicina como um corpo-máquina, na melhor tradição do pensamento cartesiano. Assim, “o objeto do saber médico é a doença e seu acontecimento num corpo redutível às necessidades biológicas” (Souza, 1998, p.91), tentando apagar a dimensão do corpo erotizado ou, no mínimo, erotizável no campo de uma relação intersubjetiva que se estabelece no ato do cuidado. Para que o corpo erógeno não irrompa sobre o discurso do corpo biológico, perturbando sua inteligibilidade com base em categorias puramente racionais, pensar (saber) e sentir precisam permanecer desconectados. Isso implica inibições, angústias e formação de sintomas, porque há sempre o risco de erotização ou sua negação. Neste caso – com a negação desse risco – recai-se na banalização do corpo, a sustentar a presunção de que se trata de um corpo exclusivamente biológico, o que supostamente garantiria a neutralidade da “postura profissional”. O imaginário social credita à figura do médico um poder simbólico superlativo. As pessoas normalmente transferem para o médico o respeito e a veneração que devotam aos seus pais, de maneira análoga ao que Freud (1996) detectou na relação do aluno com o professor, que se assemelharia à relação do filho com o pai. Se for verdade que o paciente tende a ver no profissional a encarnação de uma figura paterna sábia e protetora, o médico pode se aproveitar de sua posição privilegiada para tentar moldá-lo à sua imagem, reforçando sua dependência infantil em vez de alimentar o seu desejo legítimo de aprender mais sobre si mesmo, de saber o que ainda desconhece de si, valendo-se do discurso sobre sua sexualidade. Por outro lado, o excesso de expectativas depositadas sobre os ombros do médico leva a uma idealização extraordinária, difícil de ser sustentada na prática, por exemplo, quando o tratamento se mostra incapaz de evitar a morte do paciente, o que suscita enorme decepção. Logo, o médico é percebido sempre com certa ambivalência pelo outro que o coloca como aquele de quem se espera um saber seguro e verdades fundamentais, mas também como alguém que pode falhar e sucumbir ao sentimento de impotência. Assim, poder e impotência permeiam o exercício da Medicina e constituem o discurso médico (Clavreul, 1983). Educado para encarnar aquele que detém todas as respostas, não é fácil para o médico admitir os limites de seu conhecimento e conviver com incertezas e imprecisões, sobretudo quando se põem em questão os ideais e a ambição de cura. Acontece que esse saber prescritivo, que se quer absoluto, é inevitavelmente confrontado em um campo escorregadio como o da sexualidade, que se esquiva de categorizações cristalizadoras que fixem as atitudes e ações humanas em categorias descritivas. É particularmente desconfortável para o médico admitir que nem ele nem ninguém detém todo o saber, e de que não existe apenas uma verdade. O desaparecimento da certeza conferida pela posse de um saber positivo, que é o marco que caracteriza a transição para a pós-modernidade, exige que se reconheça o imprevisível e que se tolerem os paradoxos e ambigüidades, a incompletude e a singularidade próprias da condição psíquica de cada indivíduo. 591


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No âmbito da relação médico-paciente, isso significa renunciar ao conforto que uma identificação plena com o lugar do suposto saber assegura ao profissional. Isso implica permitir-se navegar muitas vezes por uma rota desconhecida, exposto ao perigo das intempéries. Por vezes, o inesperado poderá fazer uma surpresa, quando a relação com o paciente revelar algo que diz respeito ao profissional, colocando em causa sua própria subjetividade. O que dá margem para a instigante indagação “quem educa quem?”, que inspira as reflexões de Ramos, Cardoso de Melo e Souza Soares (1989) acerca da relação médico-paciente, sugerindo que, vista na perspectiva da intersubjetividade, é sempre uma via de mão dupla. Vivemos em tempos de transição paradigmática (Grandesso, 2000; Santos, 1989) que incide de maneira peculiar no campo da saúde. Nos últimos anos, em conformidade com os pressupostos da Promoção em Saúde, o processo saúde-doença tem sido compreendido como produção social e cultural, que não pode ser compreendida se a isolarmos do acervo de conhecimentos construídos e partilhados pela comunidade, em contexto local e historicamente situado. Temos assistido à passagem do individual para o grupal na contemporaneidade, isto é, da ênfase excessiva no individualismo para a consideração da dimensão da coletividade. Por conseguinte, do profissional em tempos de interdisciplinaridade exige-se, cada vez mais, uma habilidade peculiar para conviver com a pluralidade das potencialidades humanas e com realidades sociais heterogêneas, locais e historicamente situadas. Por essas realidades plurais, circula um sujeito que é, a todo momento, fundado e refundado na intersubjetividade e no seu devir histórico (Souza, 1998). Um sujeito que convive com a incerteza e o desamparo que, sobretudo na clínica, fazem sua aparição. Atualmente, a epidemiologia clínica já reconhece a incerteza no exercício da clínica (Sackett et al., 1994). Como salienta Souza (1998, p.9), “a clínica traz ao médico a tensão subjetividade/objetividade, singularidade/objetividade, singularidade/universalidade, doente/doença, as tensões inevitáveis, dentro das quais o difícil ato médico se produz, considerando-se a oposição inclusiva entre esses pares antinômicos”. Estudos contemporâneos têm abordado a questão da educação médica no contexto das necessidades sociais de formação de recursos humanos para a organização do Sistema Único de Saúde (Amoretti, 2005). O modelo tecnicista, biologicista, voltado para a prática hospitalar, que caracteriza a estratégia de formação hegemônica, não tem dado conta de satisfazer as necessidades básicas de saúde da população. Em decorrência de uma sensibilidade crescente a tais limitações, o processo de formação dos profissionais de saúde vem passando por transformações, como a implementação de currículo integrado que, em sua metodologia de ensino, tem enfatizado a diversificação de cenários de aprendizagem (Ferreira, Silva, Aguer, 2007). O atual cenário de transição social exige um profissional que seja capaz de operar a identificação das necessidades locais de saúde e que articule saberes provenientes de distintos campos cujos vetores convergem na assistência. É preciso superar a compartimentalização dos saberes e colocá-los em diálogo, para que se possa evoluir da fragmentação à integralidade do cuidado. Esses pressupostos têm de ser levados em consideração nos projetos de aperfeiçoamento da educação médica.

Oficina pedagógica como estratégia de ensino médico Entre as aplicações da prática grupal na área educacional, em constante expansão, destacam-se os grupos de reflexão e os programas de educação continuada (Osório, 2003 a). Os grupos de reflexão emergiram na década de 1960, com o objetivo de proporcionar aos alunos a oportunidade de participarem de um grupo no qual pudessem elaborar as tensões suscitadas pelo curso e pela relação com professores e colegas. Os programas de educação continuada promovem a troca vivencial dos participantes no que concerne à prática de seus ofícios. O emprego de grupos na educação médica não constitui uma novidade. O grupo Balint tem uma tradição estabelecida de décadas de aplicabilidade (Kelner, 1999; Balint, 1984), e é definido como um grupo homogêneo, constituído por médicos, que funciona como instrumento de investigação, ensino e aprendizagem da relação médico-paciente, sendo que o coordenador atua como agente catalisador do processo grupal. 592

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Souza (1998) defende a utilização da estratégia grupal como locus privilegiado de aprendizado para discutir a formação clínica do médico. Reuniu em um grupo de reflexão alunos da fase inicial do ciclo clínico e professores. Analisando os relatos transcritos do grupo, organizados em torno do questionamento da prática clínica, a autora aponta as coerções do discurso a que estão submetidos esses sujeitos pela racionalidade anatomoclínica e do poder disciplinar que, segundo vários autores, como Luz (1988), informa e conforma o discurso do saber no sistema institucional da medicina. Esses trabalhos que buscam explorar as potencialidades da modalidade grupal valorizam as relações interpessoais no âmbito da educação médica, tentando integrar o saber e o sentir na prática clínica. A despeito das diferenças de enfoques, os autores convergem em algumas crenças, como a de que o preparo profissional do aluno requer o convívio com as incertezas produzidas pela incompletude de seu domínio, do cada vez mais vasto conhecimento médico. Outra pauta de consenso em relação ao processo educativo é a necessidade de se abordar a negação da morte e da angústia de desamparo experimentada no exercício de uma profissão sustentada por uma ciência intrinsecamente imperfeita como a Medicina. Dentre as tendências inovadoras, Souza (1998) destaca o trabalho de Hunter (1996), nos Estados Unidos, com introdução de literatura no curso médico, valorizando a necessidade de desenvolver a competência narrativa do futuro médico. Por competência narrativa entende-se a capacidade de adotar outras perspectivas e de seguir o encadeamento de histórias complexas, freqüentemente caóticas, que o paciente oferece. Também pressupõe, segundo Souza (1998), a capacidade de tolerar frustração e ambigüidades, e de reconhecer os múltiplos e, por vezes, contraditórios significados das experiências vividas pelas pessoas. Além disso, esse trabalho almeja aumentar a tolerância à incerteza da prática clínica e favorecer o estabelecimento de uma relação empática com os pacientes. A dinâmica grupal permite perceber com maior clareza a continuidade que existe entre o indivíduo e o grupo – os diversos grupos nos quais ele está inserido ao longo do ciclo vital, em todas as dimensões em que a vida ocorre: familiar, social, cultural, profissional, espiritual. Freqüentemente, as pessoas que se dispõem a vivenciar a experiência como integrantes de um grupo se constituem em evidências vivas das potencialidades da grupalidade na conquista de uma maior integração da identidade profissional e de melhor qualidade de vida. Tendo em vista tais considerações, este artigo tem por objetivo descrever uma intervenção em grupo para capacitar médicos residentes do Programa de Saúde da Família (PSF), em abordagem do aconselhamento em contracepção. Este estudo destina-se a discutir o grupo como estratégia pedagógica na capacitação de médicos, empreendendo uma revisão teórica de algumas balizas conceituais sobre a temática abordada. Para tanto, relatamos uma experiência-piloto de um grupo de ocorrência única como referência dessa discussão dialogada.

Método O propósito do estudo é contribuir para repensar a formação e as práticas médicas que dignifiquem o ofício da Medicina, colocando-as em sintonia com os novos paradigmas que emergem na contemporaneidade, em todos os campos do conhecimento humano.

Tipo de estudo Trata-se de um estudo descritivo e exploratório, de natureza qualitativa, considerada uma estratégia apropriada de investigação científica para estudar situações e fenômenos humanos que ocorrem em condições naturalísticas. A abordagem qualitativa é aqui assumida porque interessa compreender as potencialidades da intervenção em grupo, segundo a perspectiva dos participantes da situação em estudo (Goldemberg, 1997; Haguette, 1992; Triviños, 1987). A pesquisa qualitativa busca lidar com um nível da realidade que não é passível de quantificação, ou seja, “o universo de significados, motivos, aspirações, crenças, COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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valores e atitudes, o que corresponde a um espaço mais profundo das relações, dos processos e dos fenômenos que não podem ser reduzidos à operacionalização de variáveis” (Minayo, 1993b, p.22). Além disso, o estudo tem um caráter de pesquisa participante (Tedlock, 2000), em que o pesquisador se insere como parte do fenômeno investigado e, portanto, sua presença está longe de ser neutra, e suas ações contribuem para modificar aquilo que é observado.

Marco referencial teórico A estratégia metodológica escolhida são as oficinas pedagógicas. A perspectiva que fundamenta a análise e a discussão dos dados tem como enfoque teórico a psicanálise, com sua centralidade na postulação de um inconsciente dinâmico, considerando a condição do sujeito do conhecimento/ desconhecimento constituído na linguagem. Assim, é adotada uma leitura que articula o referencial da psicanálise ao grupo (Bezerra Junior, 1994).

Local/contexto e justificativa da opção metodológica A intervenção em grupo ocorreu em sala apropriada para esse tipo de atividade, com condições de conforto e privacidade adequadas, nas dependências da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. Este estudo descreve uma estratégia utilizada em abordagem do aconselhamento em contracepção com a finalidade de sensibilizar os profissionais para a importância de escutar as questões de sexualidade subentendidas na orientação que deve ser fornecida aos usuários. Ao privilegiar o trabalho em grupo, buscou-se entrar em sintonia com o que preconiza a literatura da área, que aponta a estratégia grupal como uma ferramenta primorosa para a criação de um ambiente de aprendizagem propício para a revisão de crenças, valores e significados, destinado a alcançar possíveis mudanças de atitudes dos indivíduos. Entende-se também que a abordagem grupal é sintonizada com os princípios que regem a estratégia saúde da família, com o redirecionamento do olhar para contextos locais, situados e relacionais, e para a lógica da integralidade.

Participantes Participaram da pesquisa oito médicos residentes do Programa de Residência Médica em Saúde Comunitária e Medicina da Família da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, sendo cinco homens e três mulheres, todos solteiros, com idades variando entre 24 e 28 anos.

Material e procedimento O trabalho de campo: a implementação do grupo A capacitação foi planejada e coordenada por uma médica especialista em saúde reprodutiva, supervisora do referido Programa. Dentro do pressuposto da incorporação da sexualidade em contracepção, trabalhou-se com uma estratégia facilitadora da dinâmica grupal. Essa estratégia consistiu em apresentar um conjunto de “mitos”, “realidades” e “desafios”, como questões disparadoras para o debate, provocando a livre circulação de idéias no grupo. A coordenadora buscou fomentar a discussão dos participantes, contribuindo para a criação de um clima de confiança e permissividade, de modo a favorecer a exposição dos pontos de vista individuais. A sessão de grupo durou em torno de uma hora e 15 minutos. Propôs-se um jogo do tipo charada para categorizar 15 afirmações escritas, sorteadas de um recipiente. Cada participante lia em voz alta uma afirmação que poderia ser categorizada como “mito”, “realidade” ou “desafio”. Ao emitir sua opinião, o médico deveria procurar justificá-la da maneira a mais completa possível, explicitando os argumentos em que se baseava para classificar o enunciado, segundo as três categorias sugeridas. 594

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O rol de afirmativas está apresentado no Quadro 1 em suas categorias “corretas”. Todas as afirmações são relativas à sexualidade no contexto da assistência à contracepção. Os enunciados categorizados como mitos são aqueles que exploram questões que se configuram como barreiras que obstaculizam a abordagem da sexualidade na atenção à contracepção. As afirmativas categorizadas como realidade e desafios baseiam-se em resultados de experiências de vários programas de planejamento familiar implementados em diversos países (Population Reports, 1998).

Quadro 1. Mitos, realidades e desafios para incorporar a questão da sexualidade em Programas de Planejamento Familiar. Mito

Desafio

Realidade

1. Sexualidade é um assunto Precisamente porque sexo é um tema tão privado, as pessoas sentem necessidade de encontrar pessoal, e as pessoas não oportunidades construtivas para falarem de suas querem falar sobre isso. experiências sexuais, preocupações e necessidades.

Encontrar formas de tornar os indivíduos mais confortáveis para discutirem a sua vida sexual com os profissionais de saúde.

2. Sexo é uma atividade voluntária entre indivíduos de status igual.

A dinâmica de poder dentro de uma relação influencia fortemente a atividade sexual; um número significante de mulheres e meninas, e, algumas vezes, de rapazes, são coagidos a fazer sexo.

Identificar e aliviar as desigualdades de poder entre parceiros íntimos.

3. Os(as) usuários(as) preferem métodos contraceptivos que não interferem no coito.

A tendência da mulher em escolher métodos não associados ao coito é tipicamente mais influenciada por fatores tais como: o viés do provedor desses métodos e a preocupação mais com o parceiro do que em relação às suas próprias necessidades e escolhas.

Ajudar a usuária a fazer uma escolha informada sobre os métodos contraceptivos mais adequados para sua relação e necessidades.

4. Um programa de oferta de contracepção deve estar preparado para responder às perguntas e necessidades dos usuários em relação à sexualidade.

Os provedores podem saber como explicar melhor o uso de um método contraceptivo, mas poucos são treinados em como facilitar a comunicação com clientes sobre tópicos complexos e íntimos.

Ajudar os provedores a desenvolverem os valores necessários, habilidades de comunicação e informações técnicas para responderem a dúvidas sobre sexualidade do(s) usuário(s).

5. Se incluirmos a questão da sexualidade nos programas de planejamento familiar, será criada uma imensa demanda.

O aumento da satisfação do cliente e o uso mais efetivo de contraceptivos sugerem que abordar temas de sexualidade é um investimento que vale a pena.

Ajudar os programas de planejamento familiar a desenvolverem um leque de serviços que abordem a saúde sexual e reprodutiva.

Tendo como pretexto procurar pela categoria correta, após o sorteio e a leitura de cada afirmação, solicitou-se ao grupo que expressasse sua opinião sobre qual categoria corresponderia à afirmação lida, que deveria ser classificada, e o porquê desta classificação. Além disso, foi indagado aos participantes quem compartilhava a mesma opinião ou se havia alguém com opinião diferente, visando a explorar a adoção de diferentes perspectivas de focalizar a mesma questão, entendendo-se que a multiplicidade de vozes e visões dos integrantes do grupo, a respeito de um determinado tema, reflete as diferentes versões que circulam na coletividade. Esses pontos de vista, uma vez colocados em circulação, constituem ingredientes preciosos para fomentar e enriquecer a discussão, gerando possibilidades de reconstrução de novos significados no coletivo grupal.

Coleta e análise de dados O corpus foi construído com base na observação participante e consistiu em relatos provenientes da transcrição das notas do diário de campo da coordenadora do grupo. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Para a análise do conteúdo, realizou-se a transcrição do diário de campo e, posteriormente, realizouse uma leitura flutuante do material transcrito, seguida de uma leitura minuciosa na qual foram sublinhadas e marcadas as idéias principais vinculadas à fundamentação teórica. Os temas emergentes foram mapeados, permitindo pontuar os aspectos mais importantes a serem discutidos. A análise qualitativa foi fundamentada no enfoque da psicanálise aplicado aos grupos, buscando-se extrair os sentidos que emergiram nas falas dos participantes. Os membros do grupo formalizaram sua anuência com a realização do estudo mediante assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. O projeto obteve aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da instituição.

Resultados e discussão Após a proposição da tarefa, notou-se a participação imediata e entusiasmada dos profissionais, assim que a primeira afirmação foi sorteada. Várias situações pelas quais os participantes já haviam passado foram relatadas em livre associação com as afirmações enunciadas. Uma jovem médica relatou o caso de um senhor de 73 anos que a procurou com queixa de desinteresse sexual e disfunção erétil. A médica percebeu que esse senhor estava mais aflito com a perda da potência sexual do que com a diminuição da libido, embora essas queixas parecessem associadas. Ela se mostrou preocupada, pois se considerava muito jovem e inexperiente, e não sabia o que responder ao paciente. Além disso, tinha plena consciência de que a escola médica não a preparara suficientemente para este tipo de consulta na qual o paciente, além de buscar uma solução para sua problemática, mostrava interesse em compartilhar suas apreensões em relação ao relacionamento com sua esposa, abalado pela dificuldade de consumar o ato sexual, e suas conseqüências perturbadoras em sua vida conjugal. Outros participantes aproveitaram o ensejo para comentar que muitas queixas sexuais lhes chegam no cotidiano, sobretudo de mulheres, e eles não sabem como abordá-las. Um dos médicos confidenciou que, na sua experiência, utilizar a interdição sexual como “receita médica” era um artifício que havia lhe rendido bons resultados, já que o máximo que os casais suportavam de restrição das relações sexuais era um mês. Ainda que de forma intuitiva, esse profissional demonstrava fazer uso prescritivo do paradoxo, na medida em que ordenava a abstinência sexual compulsória ao(à) paciente que se queixava de problemas sexuais. Esse médico esclareceu que apostava, em seu íntimo, que as dificuldades sexuais, nesses casos, teriam uma origem psicogênica e que deveriam ser tratadas com instrumento próprio do arsenal psicoterapêutico. Intuitivamente, apreendeu que aquilo que é de natureza eminentemente psíquica solicita uma terapêutica igualmente psíquica que mobilize a dimensão da eficácia simbólica própria do humano. Percebeu-se que esse profissional, de modo inconsciente, captou o lugar simbólico que ocupa na relação com as pacientes e se valeu do papel transferencial que desempenha para exercer a posição paterna, de autoridade responsável pela função interditora (Freud, 1996). Sua perspicácia está no uso que ele faz dessa função, ao atuar na relação como aquele que enuncia um imperativo que produz uma vivência paradoxal em determinada paciente que se queixava de insatisfação sexual e de não conseguir manter relações sexuais com o marido. O desejo, nesse caso, era colocado inteiramente no outro, não nela. Cabia-lhe apenas dizer sim ou não às investidas do marido que detinha sempre a iniciativa da relação sexual. Ao aconselhá-la a se manter em abstinência sexual por, no mínimo, um mês, como recomendação médica, o profissional, na verdade, a levou a se confrontar com seu próprio desejo e, evidentemente, auxiliou-a a se remeter ao que permanecia velado em seu inconsciente. Assim, diante da voz que lhe “ordenava” que se mantivesse abstinente, a mulher acabou “infringindo” a norma antes do prazo fixado pelo médico, retomando sua vida sexual com muito mais desenvoltura e prazer. Era como se a vivência paradoxal houvesse contribuído para destravar o mecanismo inibitório que a impedia de desfrutar dos prazeres da relação íntima com o parceiro. A produção do vínculo nas relações é foco da estratégia saúde da família, que ressalta o acolhimento como modalidade de intervenção que oferece apoio contínuo ao usuário no processo de atendimento, 596

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não se limitando ao acesso ao serviço (Camargo-Borges, Cardoso, 2005). No encontro em que esse vínculo é produzido, há um processo de identificação e negociação das necessidades de quem busca ajuda. Necessidades que, ao serem nomeadas, possibilitam a transformação da queixa em demanda. Isso foi evidenciado no grupo, quando uma médica comentou que a contracepção é uma responsabilidade que a sociedade designa como exclusivamente da mulher e que esse vício é reproduzido pelos médicos em sua prática profissional, já que não se cogita de incluir, na anamnese, a pergunta, dirigida aos homens, sobre o tipo de contracepção que estão utilizando. Houve consenso no grupo quanto à necessidade de estar atento para escutar (que é mais do que somente ouvir) o paciente, em sua unidade somatopsíquica, e considerar a sexualidade componente da atenção à contracepção, aprender mais sobre comunicação e incorporar uma visão crítica das desigualdades de gênero. Para tanto, o profissional necessita desapegar-se dos estereótipos que levam à coerção da espontaneidade e à limitação na expressão das emoções. No decorrer da atividade de capacitação, notou-se um aumento na disponibilidade dos participantes para transcenderem os aspectos meramente tecnológicos da orientação em contracepção. A estratégia mostrou-se apropriada para o alcance do objetivo de sensibilizar os profissionais para a escuta das questões de sexualidade que subjazem à orientação para a contracepção. O caráter informal e lúdico da atividade encontrou ampla receptividade junto aos médicos residentes, que puderam se sentir respeitados e valorizados em suas opiniões. O grupo pode ser entendido como uma área de experimentação, no sentido que Oliveira (2003) propõe em sua abordagem da grupalidade. O que assegura que o grupo funcione como tal é a possibilidade de brincar, cujo conceito tem um significado muito diferente daquele em que geralmente é empregado. É uma atividade séria, que se desenvolve muito cedo na vida de cada indivíduo, com base no modelo de relação estabelecido com a mãe, ou seja, de uma experiência satisfatória de maternagem. Brincar é ousar exteriorizar algo sobre o qual não se tem certeza. “É possível pensar nos grupos como um ambiente muito especial no qual o brincar pode ocorrer, talvez mais do que em qualquer outro lugar” (Oliveira, 2003, p.157). Mas, para garantir que os grupos sejam estimulantes e facilitem a emergência dessa área intermediária entre a realidade subjetiva e objetiva que compreende o brincar, “é preciso que se construa um ambiente suficientemente confiável e fidedigno” (Oliveira, 2003, p. 158), adaptando-se ativamente às necessidades de expressão dos seus integrantes. Nesse sentido, a atividade lúdica pode contribuir para colocar o médico em contato com sua própria área intermediária da experiência, valorizando a produção de um saber que emana de suas próprias reflexões, inquietações e questionamentos. Essa proposta de trabalho com grupos de profissionais parece ter uma função vitalizadora, já que busca capacitá-los mediante o desenvolvimento de seus recursos. Essa função vivificante do grupo deve ser particularmente ressaltada no contexto da profissão médica, pois estamos lidando com quem escolheu fazer do contato contínuo e constante com dor e morte o seu ofício (Pitta, 1991). Assim, esses profissionais se defrontam com situações de sofrimento e dor, como uma espécie de pão de cada dia, que colorem ou tingem de cinza seu cotidiano. Situações que, a todo momento, testam os limites humanos da suportabilidade, nas quais somos interpelados no cerne de nosso ser por inúmeras perdas – da saúde, dos sonhos, das certezas, das crenças que davam garantia aos ideais, da razão de viver e, no limite, da vida. É nesse contexto que se dá a constituição de um olhar clínico, muito calcado no “saber ver” e bem pouco no “saber ouvir”. Porém, para desenvolver a habilidade de ouvir o outro, é preciso que o profissional, no decorrer do seu processo de formação, possa ter a experiência de “ser ouvido”. Nesse sentido, Bellodi (2007) mostra a necessidade de se oferecer uma retaguarda psicológica para o aluno de medicina. Para tanto, as instituições de ensino superior devem envidar esforços para institucionalizar serviços específicos. Souza (1998) entende que, para melhor compreender a formação da identidade profissional, é necessário valorizar que “é na linguagem e pela linguagem que o estudante estrutura a experiência e constitui, para além de um olhar anatomoclínico, uma perspectiva com a qual exercerá a prática médica” (p.90). Nesse sentido, entendemos que dar voz ao médico é uma maneira de diminuir a distância entre a experiência narrada pelo paciente e o vivido no cotidiano pelo profissional. A possibilidade de compartilhar o saber numa relação de horizontalidade pode favorecer a reavaliação de crenças e a revisão de valores nos quais as atitudes e posições assumidas por cada 597


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profissional encontram-se alicerçadas. Essa postura crítica é essencial para o exercício da profissão, pois propicia reconceitualizações e redescrições do papel do médico, adotando-se uma escuta mais atenta aos aspectos relacionais, o que informa um olhar clínico despido de preconceitos e prejulgamentos. A estratégia grupal pode fornecer um contexto propício para se respeitar e acolher a diversidade dos seres humanos, percebendo-a como elemento que agrega valores, e não como fator adverso (Osório, 2003b). A abordagem freudiana possibilita relacionar a sexualidade à linguagem, isto é, ao campo das representações inconscientes que estão vinculadas às experiências vividas no corpo. Essas representações psíquicas inscrevem simbolicamente o corpo na mente e determinam a sexualidade. Desse modo, a diferença sexual não é determinada apenas pela anatomia ou fisiologia, mas pela inscrição simbólica (Dal-Cól, Oliveira, 2005). A separação entre o biológico e o simbólico se esboça na margem em que a sexualidade se destaca do corpo. O ser humano é marcado pelo desejo, como condição de sua humanidade (Dal-Cól, Oliveira, 2005). Considerar que há uma história do desejo, contada no discurso dos usuários em torno da contracepção, abre espaço para emergir o sujeito do desejo. Sujeito portador de um inconsciente, se focarmos sua dimensão subjetiva. Sujeito portador de direitos, se o olharmos por meio da esfera do social e do político. Esse marco referencial teórico produz um reposicionamento do profissional em relação ao aconselhamento em contracepção. Ele não se sente mais detentor de um saber do qual o outro supostamente se encontra alijado, mas valoriza a escuta que dá contornos ao saber do outro. Ele se mostra sensível e permeável aos saberes produzidos localmente, e não apenas àquilo que é considerado como correto, legítimo e verdadeiro. Só assim, munido desse novo olhar, o médico poderá contribuir para as necessárias transformações, operando como agente de mudança.

Considerações finais Compartilhar experiências trouxe ao grupo enriquecimento com reflexão e crítica sobre aspectos sociais e individuais que emergem na prática médica que exercem. Os profissionais puderam identificar e discriminar mitos, realidades e desafios que permeiam sua atuação no campo da contracepção. Reconhecer como uma realidade que “as pessoas sentem necessidade de terem oportunidades construtivas para falar de suas experiências sexuais, preocupações e necessidades” auxilia a combater o mito de que “a sexualidade é um assunto estritamente pessoal e que as pessoas não querem falar sobre isso”(mito 1). Assim, ao desconstruírem essa crença errônea, os médicos residentes podem se preparar para enfrentar o desafio de “encontrar formas de tornar os indivíduos mais confortáveis para discutir a sua vida sexual com os profissionais de saúde” (desafio 1). A intervenção propiciou aos médicos oportunidade de falarem e, ao mesmo tempo, ouvirem uns aos outros e socializarem suas experiências, preocupações e necessidades que surgem durante a consulta. Esse espaço de escuta é um dispositivo potente para sensibilizar o profissional acerca da importância de oferecer uma abertura genuína e empática ao outro, no exercício de um acolhimento gentil que valoriza as narrativas e a experiência relacional. Por essa razão, compreende-se a prática clínica como lugar privilegiado de exercício de convivência com o diverso e de aprendizagem informal sobre a condição humana. Assim como o grupo com finalidade de ensino-aprendizagem é um espaço valioso de construção e partilha. A formação médica e os programas de capacitação profissional não podem prescindir de espaços que referendem o valor transformador do diálogo e da escuta para operar mudanças estruturais na convivência. O ensino deve incorporá-los aos processos tradicionais de transmissão do conhecimento teórico e técnico que orientam o fazer clínico. Para a inserção nas práticas de saúde, é necessário que se desenvolvam habilidades e competências de relacionamento humano que vão além dos clássicos requisitos de competência técnica normalmente exigidos do médico. É preciso desenvolver valores, habilidades de comunicação e capacidade de apreensão do significado das informações técnicas necessárias para responder às dúvidas dos usuários no campo da sexualidade, resistindo à tentação de medicalizar as questões psicossociais. 598

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Por essa razão é preciso investir nos espaços relacionais, como os grupos de compartilhamento, nos quais os profissionais se reúnem para conversar sobre problemas semelhantes, formando redes de conversação em que a subjetividade de cada um possa ser valorizada como possível instrumento de produção de saber. Os profissionais, ao final da intervenção, puderam se mostrar mais sensíveis à possibilidade de escutar e acolher as dúvidas e perguntas das pacientes, construindo possibilidades de conversação sobre a temática sexual sem pretensão de juízo moral. Conscientes do enorme desafio que é ultrapassar a visão tecnicista, perderam o medo de ouvir e sair do lugar do especialista, abdicando do poder imaginário que, de forma velada ou explícita, deseja normatizar a sexualidade do outro, sob pretexto de “fazer o bem”. Nesse contexto, o presente trabalho pode ser compreendido como uma contribuição para a produção de referências para a prática do médico, no contexto de um programa de Saúde Coletiva, tendo em vista o desenvolvimento da profissão numa postura crítica, transformadora e interdisciplinar. Atende, desse modo, a um importante anseio de ampliar as possibilidades de criação de propostas que fundamentem a inclusão de práticas que seguem a lógica de trabalho que norteia a estratégia saúde da família. Oferece subsídios, particularmente, para a incorporação da questão da sexualidade em Programas de Planejamento Familiar, reforçando o compromisso social da medicina enquanto profissão de saúde.

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SANTOS, M.A.; VIEIRA, E.M.

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SANTOS, M.A.; VIEIRA, E.M. Recomendaciones en contraconcepcíon: grupo de capacitacíon de profesionales médicos del Programa de Salud de la Familia. Interface Comunic., Saúde, Educ., v.12, n.26, p.589-601, jul./set. 2008. Se analizan las potencialidades de una intervención en grupo con el propósito de capacitar a médicos residentes del Programa de Salud de la Familia (PSF) para recomendaciones en contraconcepción. Ancorados en el presupuesto de la incorporación de la sexualidad en esta área, los autores han trabajado con estrategias que se destinan a sensibilizar a los profesionales para tener en cuenta las cuestiones sexuales que están sobrentendidas en la orientación para la contraconcepción. Se utilizó metodología cualitativa. El corpus se construyó con base en la técnica de observación participante y consistió en relatos provenientes de la transcripción de las notas del diario de campo de la coordinadora del grupo. Se ha observado que la posibilidad, favoreció la revisión de creencias y valores que sustentan la práctica médica, ayudando a los profesionales a trascender una visión tecnicista de la orientación.

Palabras clave: Anticoncepción. Consejo dirigido. Medicina familiar y comunitaria. Conducta reproductiva. Educación médica. Recebido em 26/09/07. Aprovado em 03/03/08.

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ONGs, vulnerabilidade juvenil e reconhecimento cultural: eficácia simbólica e dilemas

Paulo Artur Malvasi1

MALVASI, P.A. NGOs, juvenile vulnerability and cultural recognition: symbolic efficacy and dilemmas. Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.12, n.26, p.605-17, jul./set. 2008.

The search for cultural recognition, as a strategy for confronting vulnerability among adolescents, has become predominant among Brazilian NGOs (non-governmental organizations). After ten years of growth of this form of action, we seek to analyze its symbolic efficacy and its dilemmas. This article starts by discussing the concepts and practices involved in this scenario. It then turns to the field of Brazilian NGOs operating among adolescents in vulnerable situations through artistic and cultural activities, aiming to recognize the symbolic elements within this context. Furthermore, it presents a case study that observes the experience of an NGO. This article highlights a dilemma common to NGO actions dealing with juvenile vulnerability: how to reconcile actions of a cultural nature aimed at strengthening the private repertoire among workingclass adolescents with enablement of access to the structures and basic resources from which they are distanced.

Key words: Social vulnerability. Nongovernmental organization. Cultural recognition. Efficacy. Material redistribution.

A busca pelo reconhecimento cultural como estratégia no enfrentamento da vulnerabilidade entre jovens tornou-se predominante entre as ONGs (organizações não governamentais) brasileiras. Após dez anos de crescimento desta forma de ação, analisamos sua eficácia simbólica e seus dilemas. O artigo debate, inicialmente, conceitos e práticas envolvidas nesse cenário. Em seguida, volta-se para o campo das ONGs brasileiras que atuam com jovens em situação de vulnerabilidade, por meio de atividades artísticas e culturais, com o intuito de reconhecer os elementos simbólicos presentes neste contexto. Apresenta-se, ainda, um estudo de caso sobre a experiência de uma delas e destaca-se um dilema comum às ações das ONGs no enfrentamento da vulnerabilidade juvenil: o de conciliar as ações de caráter cultural que valorizam o repertório particular dos jovens de classes populares com a viabilização do acesso a estruturas e recursos básicos dos quais estão afastados.

Palavras-chave: Vulnerabilidade social. Organização não governamental. Reconhecimento cultural. Eficácia. Redistribuição material.

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Graduado em Ciências Sociais. Programa de Mestrado Profissional Adolescente em Conflito com a Lei, Universidade Bandeirante de São Paulo. Rua Pedro Alvim, 20 Centro - Atibaia, SP 12.940-000 paulomalvasi@hotmail.com 1

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Introdução Nos últimos anos, um fator atuante no enfrentamento da vulnerabilidade juvenil tem sido o aumento de ações e projetos de Organizações Não Governamentais (ONGs) que se apresentam como alternativa ao ingresso no “mundo do crime” e outros “riscos sociais” atuando no âmbito das atividades culturais – música, dança, artes plásticas etc - para denunciar a exclusão, reivindicar o direito à cidadania, criar novas redes de sociabilidade. Tais ações apostam no reconhecimento cultural das manifestações dos jovens das classes populares como estratégia para enfrentar os estigmas e preconceitos que sofrem. Este artigo procura reconstituir o significado social desta prática de ONGs e analisar os dilemas que surgem ao se defrontarem com aspectos da vulnerabilidade que se referem às condições materiais necessárias para a inclusão.

Refletindo sobre os termos Falar em ONGs é definir um universo em que as representações e as práticas são tão diversas e complexamente construídas que se torna difícil defini-las como algo uno. Tratá-las como forças “negativas” ou “positivas” é tão ingênuo quanto limitante. Por trás do termo ONG (assim como do terceiro setor e sociedade civil) encontramos uma diversidade muito grande de iniciativas. Dentro de cada instituição a ambivalência está colocada. A noção de campo de Bourdieu (1983) é uma referência interessante para refletirmos sobre o fenômeno das ONGs no Brasil, pois se trata de um universo em que agentes (indivíduos e organizações) tramam uma rede de influência recíproca e de disputas por recursos e poder. Em Bourdieu, a ação social explica-se em termos de uma interação socialmente estruturada. Os indivíduos agem orientados por disposições duráveis internalizadas que conformam e condicionam as possibilidades de apreensão do mundo - o habitus. Com base nesta orientação, os indivíduos não são meros executores de normas ou reprodutores de estruturas. A ação social acontece em campos em que as posições dos sujeitos já estão objetivamente estruturadas, embora tais posições sejam o resultado de um jogo dinâmico que depende dos objetos de disputa de cada campo. Portanto, a noção de campo procura comportar a dinâmica das interações sociais e a estrutura das relações de poder. Partir da idéia de campo de Bourdieu implica observar a existência de atores estruturados que estão competindo (Bourdieu, 1983). Façamos, então, algumas reflexões sobre o campo das ONGs. A partir dos anos 1990 houve um processo de extraordinária diversificação e ampliação das ONGs no Brasil. No início dessa década, as organizações não governamentais passam a se articular de forma efetiva como um campo autônomo em relação aos movimentos sociais, num claro esforço de construção de sua face pública, buscando influir nas decisões de poder e superar a ‘síndrome de clandestinidade’ que marcara seus primeiros anos, verifica-se o surgimento de diversas articulações através de fóruns regionais ou nacionais, e até mesmo de associações formais, como é o caso da ABONG – Associação Brasileira de ONGs, fundada em 1991. (Doimo, 1995, p.153)

Até a década de 1980, ainda havia uma considerável especialização e segregação entre as associações e movimentos – cada qual ligada a uma “causa” (educação popular, por exemplo) ou a um “público” particular (de negros, de mulheres, de jovens etc.); na década de 1990 se constroem novos espaços de interação entre as diversas associações, a partir da incorporação crescente de categorias transversais – como gênero, juventude e expressões artístico-culturais, por exemplo, que deixam de marcar um tipo de ONG, mas passam a ser elementos importantes em várias delas. Daniel Simião (2002) analisou esse movimento de surgimento de temas transversais que perpassam diversas ONGs, destacando a categoria gênero. O autor parte de um pressuposto teórico para refletir sobre este tema: podemos dizer que os conceitos que grupos e pessoas utilizam para se posicionar no mundo – como o conceito de gênero nos discursos e nas relações entre atores do universo das ONGs –

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3 Condições de vida material, dificuldades de acesso a oportunidades sociais e culturais, e fatores motivados pelo imaginário social, como a discriminação e o medo, deixam segmentos da juventude efetivamente mais expostos aos riscos das grandes cidades e da violência estimulada, sobretudo, pela desigualdade social do Brasil. 4 Como um exemplo desta tendência, segue a citação de um livro da Unesco: “A vulnerabilidade social das populações que residem em áreas periféricas é também destacada em mapeamento da cidade de São Paulo, promovido pela Organização Mundial de Saúde, cujo interesse seria avaliar a vulnerabilidade dos jovens às drogas. Neste estudo, defende-se recorrer a atividades de lazer, cultura e esportes como forma de inibir o uso de energia e tempo em violências e no uso de drogas.” (Castro, 2001, p.22)

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2 O número de mortes violentas entre jovens; os potenciais malefícios causados pelo consumo de substâncias psicoativas; os limites de instituições como a escola para promover o jovemindivíduo-cidadão; o aumento da “informalização” e do trabalho não regulamentado, assim como das atividades ilegais (em especial o tráfico de drogas) como efetivo mercado de trabalho para estes jovens, e o uso da violência física e outras formas de coação como forma de mediação na relação entre eles compõem alguns dos principais aspectos elencados para associar segmentos da juventude à noção de vulnerabilidade (Adorno, 1998).

são bastante reveladores, não apenas de consciências individuais, mas de formas sociais de estar no mundo (Simião, 2002). O estudo de Simião (2002) mostra como na década de 1990 se constroem novos espaços de inter-relacionamento entre as ONGs, por meio da incorporação de categorias transversais, que servem para a mobilização, a veiculação e para arregimentar financiamentos para os “projetos”. A análise do autor aponta como as agências internacionais de cooperação foram determinantes neste processo, deixando claro, em textos de diferentes agências internacionais, a compreensão de gênero como um enfoque transversal que deveria estar presente nos projetos propostos por qualquer ONG. Parece-nos que este uso instrumental de categorias transversais, que representam idéias apreciadas no desenvolvimento das ações coletivas a partir da década de 1990, tornou-se uma forma de as ONGs se posicionarem no campo. Outras “palavras-chave”, além de gênero, presentes no campo das ONGs são: cultura e juventude. Em suma, as ONGs que conseguem ostentar um tipo de trabalho que contempla temas transversais valorizados pelos financiadores, ganham preciosos pontos em seu capital social, e facilitam o acesso a pleiteados recursos e financiamentos específicos das agências de cooperação internacional, dos governos e das empresas privadas. A noção de vulnerabilidade também é uma “palavra-chave” para as ONGs utilizarem em seu repertório na busca de apoios e financiamentos. Na maior parte dos casos, a noção de vulnerabilidade juvenil remete à idéia de fragilidade e de dependência que se vincula à situação de jovens, sobretudo os mais pobres. Diversos fatores têm levado à associação corrente entre juventude e vulnerabilidade2. Tais fatores enfatizam os aspectos negativos da experiência de segmentos menos favorecidos da juventude, relacionados à crescente violência urbana, às transformações da ordem socioeconômica no mundo contemporâneo e à falta de garantia dos direitos e oportunidades nas áreas de educação, proteção social, entre outras que asseguraram os direitos humanos dos jovens. Essa forma negativa - que é reforçada e reforça o senso comum - de pensar em algumas situações a que segmentos da juventude estão expostos, associa a juventude ao “risco”, caracterizando-a como problema, e leva a uma visão do jovem como incapaz de responder às suas carências e debilidades. Embora a utilização da noção de vulnerabilidade “negativa” possa abrir caminhos para a defesa e proteção de jovens pobres, rejeitados pela escola, sem oportunidades, buscando transformar este quadro, ela pode, por outro lado, estigmatizá-los ainda mais. Mesmo que haja um consenso de que esses jovens se encontram em situações socialmente negativas3, é importante reconhecermos a força criativa e as potencialidades presentes na vida cotidiana deles. Tal esforço tem sido realizado em torno da idéia de “vulnerabilidade positiva”. Nesse caso, deve-se identificar o potencial inovador dos jovens, a possibilidade do positivo, “ou seja, a consciência quanto a riscos e obstáculos vividos e a busca por uma ética de vida que representaria um capital simbólico e cultural, que se insinua através do exercício da crítica social” (Castro, Abramovay, 2004, p.3). Na última década, grandes estruturas que orientam as linhas de fomento ao trabalho das ONGs, como a UNESCO e a Organização Mundial de Saúde, passaram a estimular os trabalhos que se utilizam de expressões culturais para enfrentar as situações de vulnerabilidade4, fortalecendo desta forma a busca das organizações para instrumentalizarem o tema da cultura como estratégia de intervenção junto a jovens. Por outro lado, o ingresso no mundo do trabalho surge neste contexto como um desafio que necessariamente tem de ser enfrentado.

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ONGs, vulnerabilidade juvenil e cultura: relações simbólicas Temos um testemunho da centralidade que o tema transversal cultura ganhou entre as ONGs que trabalham com jovens em situação de vulnerabilidade, ao voltarmos nosso olhar para o livro Cultivando vidas, desarmando violências, resultado de pesquisa em âmbito nacional, organizada pela Unesco (Castro, 2001), com trinta das principais instituições que trabalham com jovens em todo o Brasil5: todas atuam com algum projeto que envolve o conceito arte-cultura ou arteeducação. Constrói-se, assim, um discurso que relaciona a mudança na vida dos jovens à participação em atividades culturais. Por que “arte” e “cultura” para “jovens carentes”? Por que ONGs contemporâneas que trabalham com a juventude chegaram a este “sentido cultural”? Qual a base cultural que permite a reivindicação e a instrumentalização da dança, do teatro ou da percussão para a concepção de uma organização com o fim público de proporcionar cidadania para “jovens carentes”? Um ponto a se considerar é a centralidade que a juventude assume nestes anos como “problema social”, sobretudo (mas não só) a juventude pobre, passando os rapazes particularmente a serem mais associados à delinqüência, ao consumo de drogas, à violência. Outro aspecto é a idéia de que a “cultura” oferece um contraponto, elemento estratégico para se trabalhar com jovens em situação de vulnerabilidade social. Neste cenário ganham destaque as expressões culturais identificadas com os setores populares e, em particular, com aspectos de identidade étnica negra, como o rap, a capoeira, a percussão, entre outros. Algumas organizações tiveram um papel central na construção da visibilidade do tema cultura na ação junto a “jovens vulneráveis”, e tal construção está associada à questão da identidade étnico-racial. O Olodum e o Afro Reggae, entre outros, surgem em um movimento de valorização da cultura negra no Brasil e no mundo. Tais organizações conquistaram legitimidade social, difundiram suas ações em grandes veículos de comunicação, e difundiram o tema cultura entre ONGs que trabalham com jovens em todo o Brasil. Nas últimas décadas, a valorização desse tipo de ação está inserida no complexo processo de valorização de expressões culturais relacionadas à negritude. A difusão e visibilidade dessas ONGs se relacionam a intercâmbios simbólicos em níveis locais e globais, envolvendo uma gama variada de agentes e instituições. Lívio Sansone aponta para a existência de um intercâmbio simbólico entre negros nos dois lados do Atlântico, uma convergência entre culturas negras locais e a constituição de uma cultura negra internacionalizada. Nesta construção cultural típica de nossa época, destaca-se a estetização da negritude por meio, sobretudo, de estilos jovens de alta visibilidade e da música pop, entre os quais estão o hiphop e o reggae (Sansone, 1995), e também a música percussiva e as danças afro. O autor salienta fatores estruturais que determinam as condições de vida das populações negras, ou afrodescendentes, em diferentes países, e estes se relacionam diretamente com as construções simbólicas sobre a negritude. Existem traços semelhantes na composição econômica dessas populações, que, de maneira geral, são alijadas da participação plena no mercado de trabalho. Ao mesmo tempo, a construção social das imagens relativas ao trabalho associa simbolicamente os negros ao lazer e à naturalidade. Estas imagens transnacionais da negritude são veiculadas tanto por brancos quanto por negros, num processo que envolve a indústria musical e a da moda, as migrações de populações negras e o fortalecimento da produção e da resistência cultural negra (Sansone, 1995). A situação dos negros no Brasil, em relação ao mercado de trabalho e à (auto)imagem do ser negro, segue tendências semelhantes. Apesar das 608

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5 Para compor o campo da pesquisa entre as ONGs, foram selecionadas cinco experiências de cada um dos estados de Pernambuco, Rio de Janeiro e Bahia, quatro do Estado de São Paulo, três do Ceará e dois de cada um dos estados do Maranhão, Pará, Paraná e Mato Grosso, perfazendo trinta no total.


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dificuldades de acesso e integração à sociedade, os negros e mestiços brasileiros, num processo paradoxal, têm gozado cada vez mais de prestígio, quando o tema é brasilidade. A este processo de valorização da cultura negra, somam-se dois aspectos que engendram mudanças na atitude dos jovens negros e mestiços, no sentido de assumir expressões culturais negras: com a dificuldade do acesso ao emprego, ganha centralidade o consumo e o lazer na busca de status, dignidade e direitos civis; existe um forte desejo de “ser alguém” e de “pertencer” (Sansone, 1995, p.75). Esta forma de assumir a identidade negra combina-se com ser jovem e de classes populares no consumo e na produção de elementos da cultura afro-brasileira – como a percussão e a capoeira (Sansone, 1995). Sabemos que, no Brasil, muitas vezes, as articulações e tensões sociais não adquirem explicitamente uma atribuição de cor, mesmo quando se trata de temas que remetem a ela, como, por exemplo, o caso de jovens moradores de favelas que tocam percussão e jogam capoeira (expressões remetidas a uma origem africana) ou participam do movimento hip-hop (também identificado com a negritude) como meio de conquistar auto-estima e reconhecimento, ou o que for que se esteja denominando de cidadania. Fica subentendido que esta manifestação cultural é característica de segmentos negros e/ou mestiços, mas há um deslocamento para a condição social, ou seja, a pobreza. Como assinalamos há pouco, identificações com elementos da cultura afro, nos dias de hoje, mesclam-se com o pertencer a classes populares e jovens. Além da questão racial, o problema que se coloca nas grandes cidades brasileiras é o da periferia, dos perigos presentes nos grandes centros urbanos e dos jovens nesse contexto, retratado como de violência, tráfico de drogas, desemprego, falta de perspectiva. O advento do hip-hop na cidade de São Paulo parece ter um papel de destaque nesta valorização da música como forma de contestação, atuação e transformação entre jovens moradores da periferia da cidade. Como sugere Maria Eduarda Araújo Guimarães (Guimarães, 1999, p.47): “O rap transformou a periferia em referência para a cultura, assim como o samba já havia definido o morro como idealização de um Brasil mulato [...]”. A diferença primordial é que enquanto o samba é um representante da cultura nacional, e a música dos blocos afros um elemento de resgate da cultura de raízes africanas, o rap tem como objeto a denúncia das desigualdades e discriminações que acontecem com populações jovens em São Paulo, no Brasil, mas também em toda parte do mundo, “seu universo refere-se a um local que está remetido diretamente ao global” (Guimarães, 1999, p.47). Outras análises sobre o hip-hop encontradas na coletânea Rap e Educação, Rap é Educação (Andrade, 1999), reforçam a idéia de que o rap tem influenciado uma grande parte dos jovens, de todas as “classes” e “cores”. O movimento hip-hop como forma de expressão e ação tem extrapolado sua influência para além dos seus integrantes. Muitos jovens que não são membros do movimento hiphop consomem os discos, cantam em festas ou mesmo em encontros ocasionais e, de certa forma, dividem com os cantores de música rap a atitude de discordância social. As letras de rap denunciam a violência, o preconceito e a discriminação sofrida por jovens pobres, especialmente os negros, e os conclamam a se organizarem e a mudarem seus destinos. Espalha-se, assim, uma “cultura de conscientização”, que tende a tornar os jovens mais receptivos a projetos que apresentam alguma similaridade estrutural com as peculiaridades do hip-hop. Qual a melhor forma, então, de atuar com o grupo etário que se tornou foco de tensões sociais? Na problemática da violência urbana, os jovens são considerados os principais protagonistas, mas, em grande medida, as possibilidades de lidar com os problemas vieram, paradoxalmente, deles mesmos. A parcela da juventude mais exposta e vulnerável ao crime e à violência encontrou, em expressões musicais como o samba-reggae, o funk e o rap, formas de se posicionar no mundo, redimensionando suas condições de vida e tornando possível seu ingresso no mundo de imagens, símbolos, comportamentos e valores do mercado de bens culturais. Tais expressões musicais introduzem outras formas de expressão artística – corporal, por meio das danças; textual, por intermédio das letras; plástica, por meio da “grafitagem” dentro do movimento Hip Hop - e apontam para a reivindicação de um espaço para os jovens comunicarem suas idéias por intermédio da linguagem artística. Todas estas articulações, peculiares das décadas de 1990 e 2000, envolvendo juventude, “problemas sociais” e “arte-cultura”, entraram na pauta das práticas de prevenção e saúde pública voltadas para este segmento. Paralelamente, projetos de ONGs voltados a este público-alvo incorporaram estas 609


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expressões, apontando para a tendência de valorização do repertório sociocultural dos jovens como meio mais eficaz para seduzi-los e dar alternativas às carências a que estão submetidos. Na última década, por todo Brasil, vemos então a expansão e a variação de programas alternativos, voltados para a educação para a cidadania, em organizações não governamentais de diferentes portes norteadas para os jovens. Há uma ampla aceitação coletiva deste tipo de “projeto social”, o que pode ser observado pelo crescimento vertiginoso de experiências e pelas inúmeras e repetidas reportagens sobre trabalhos com este perfil. O crescimento deste tipo de ação social está ancorado, também, no respaldo do Estado via programas oficiais. Verifiquemos exemplarmente o que o Programa Regional de Ações para o Desenvolvimento da Juventude na América Latina (PRADJAL, 1995-2000) também recomenda: atenção para a situação dos jovens em situação de risco social; e atenção à importância da cultura, em suas múltiplas derivações conceituais, para a construção da cidadania ou para diversos tipos de cidadania, inclusive para o lidar/responder com a pobreza e outras exclusões sociais, como as relacionadas às relações étnico-raciais e de gênero. (Castro, Abramovay, 1998, p.571)

Um estudo de caso: eficácia simbólica e dilemas em uma organização não governamental6 As informações e fatos abaixo descritos e interpretados sobre o caso de uma ONG foram coletados em um processo de pesquisa que lançou mão de contribuições do método antropológico conhecido como etnografia7. A observação participante foi a técnica privilegiada da pesquisa. Observou-se o cotidiano e realizaram-se conversas formais e informais, tanto com os adolescentes e jovens que participavam das atividades da ONG, quanto com seus educadores, técnicos e gestores. Aliadas à observação participante, foram realizadas entrevistas individuais com trinta jovens e com dez membros do staff e diretores da organização. A pesquisa de campo realizou-se entre março de 2001 e abril de 2003, embora o primeiro contato e a realização de pesquisa exploratória tenham ocorrido ainda em 19998. A associação pesquisada nasceu em meio ao vertiginoso aumento das ONGs no transcorrer da década de 1990. Sabe-se que, no campo da ação coletiva, este foi um período marcado pela crescente participação das ONGs na criação e na execução de ações sociais voltadas a diversos segmentos da população, sobretudo aos considerados menos favorecidos. De forma resumida, podemos dizer que, entre as ONGs, é reforçada a idéia de que os indivíduos devem interagir voluntariamente com a sociedade, visando a atenuar (ou erradicar talvez) vulnerabilidades sociais. As ONGs se organizam em torno de questões sociais, públicos-alvo e formas de ação (ou atividades) que proporcionam o sentido original da empresa. A escolha de temas entre as ONGs relaciona-se, entre outras motivações, com a valorização que estes têm frente aos financiadores. No caso da ONG investigada, a proposta foi enfrentar o problema da juventude em situação de vulnerabilidade com o “poder transformador da música”, segundo as palavras de seu presidente. A entidade começou como um grupo de ensaio de percussão. O discurso oficial é o de que esta foi a atividade que permitiu e promoveu a reunião de jovens de favelas locais, e também a deles com jovens de outras classes, a criação 610

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6 Estudo realizado em nível de mestrado no Programa de PósGraduação em Antropologia Social da Universidade de São Paulo (PPGAS/USP), entre os anos de 2001 e 2004. Para preservar a organização e os atores institucionais, os nomes serão mantidos em sigilo. 7 A etnografia apresenta características peculiares: de um lado, por meio de descrições detalhistas e pormenorizadas, ela procura nos revelar um universo particular, com suas minúcias, contradições e até idiossincrasias; de outro, e com base no conhecimento do específico, esta prática busca iluminar fatos que perpassam atores e realidades sociais mais amplas, pois existem recorrências nos casos particulares que mostram aspectos estruturantes da vida social. 8 O primeiro contato do pesquisador com a entidade ocorreu em 1999, em pesquisa para a disciplina Pesquisa de Campo em Antropologia, do curso de Ciências Sociais da Universidade de São Paulo. Valendo-me desta experiência, elaborei um projeto em nível de mestrado que propunha, como objetivo principal, interpretar as representações dos integrantes da entidade (tanto dos adultos do staff quanto de seus jovens associados) sobre o significado da ação social por meio da música voltada para jovens em situação de vulnerabilidade. A recepção em 1999 seguiu a espontaneidade que o grupo experimentava. Mantive o vínculo com a organização durante o ano de 2000. Quando voltei a fazer pesquisa de campo em 2001, já era conhecido e próximo dos membros da organização, o que facilitou o desenvolvimento da pesquisa.


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de laços afetivos e, sobretudo, de um território existencial em que pessoas cotidianamente discriminadas pudessem produzir sua dignidade e sua vontade de viver. Os principais símbolos construídos para representar a entidade, assim como os elementos reivindicados na auto-representação dos jovens que a integram, são fornecidos pela atividade musical. Existe um item do repertório sociocultural, estereotipado sem dúvida, mas muito presente entre os brasileiros, de que nós temos um dom natural - e aqui se lê, sobretudo, a população afrodescendente, em grande medida pobre – para tocar música rítmica. Parece haver um diálogo entre a elaboração deste “projeto social” e este elemento do imaginário da cultura nacional. Ele é projetado tanto para dentro quanto para fora da instituição. O solo no qual o idealizador da associação plantou a percussão como atividade foi o de jovens paulistanos moradores de bairros populares e favelas da zona sul de São Paulo. Nesse chão, a música percussiva fertilizou, porque se trata de uma linguagem que faz parte do repertório cultural desses jovens, ou que, pelo menos, é assim socialmente validada: para jovens afrodescendentes, fazer “batuque” é algo encarado como “normal”. Com efeito, a percussão é uma atividade musical típica de camadas populares, especialmente negra e mestiça, nos grandes e pequenos centros. Durante os anos de pesquisa de campo, várias vezes ouvi, na organização, expressões como “a percussão está no sangue” ou “estes jovens têm um dom natural para a música”, tanto de professores de artes, esportes e de coordenadores, quanto dos jovens participantes. Esta representação “naturalizada” da qualidade de jovens mestiços, brasileiros, de classes populares, para tocarem e dançarem música percussiva é um elemento básico para a seleção deste gênero musical. As variáveis percussão e cidadania são utilizadas pela ONG, em sua comunicação com a sociedade, como elementos que dão legitimidade ao trabalho, propiciando-lhes também acesso às políticas institucionais na busca de financiamentos e parcerias. As concepções de “cidadania” que são encontradas no vídeo e no site, nos textos institucionais presentes no discurso veiculado, inclusive pela mídia ao retratar a ONG, situam-na no cenário das políticas públicas e ações da “sociedade civil” voltadas para a população em situação de vulnerabilidade social, especialmente jovem. Neste tipo de concepção, amplamente difundida entre ONGs e órgãos governamentais, é necessário proporcionar aos “desfavorecidos” um conjunto de repertórios para que eles possam exercer sua “cidadania”. Atividades genericamente chamadas de “culturais” estão no centro destas representações. No bojo destas concepções correntes em nossa sociedade, a percussão é usada tanto como “isca” para atrair o público-alvo quanto como mecanismo de expressão e projeção pública do grupo. As apresentações, enquanto extensão e concretização da atividade artística, atuam no mesmo sentido, proporcionando marcas de pertencimento social aos jovens integrantes e afirmando o trabalho da instituição perante platéias que representam a sociedade em geral. Lembramos ainda que a utilização desta vertente musical na associação é uma via de mão dupla. Por um lado, estabelecida como opção inicial pelos fundadores da instituição, só foi mantida e gradativamente ampliada porque teve, de outro, a adesão de jovens. Nesta perspectiva, os posicionamentos dos integrantes da ONG (tanto adultos, coordenadores e professores, quanto jovens que participam das atividades) são equacionados pela mesma variável - a percussão. Reconhecemos, neste estudo de caso, a eficácia do arranjo simbólico desta entidade: o tripé jovens-percussão-cidadania. A pesquisa mostrou-nos que, embora os coordenadores tivessem ascendência sobre os jovens, seus comportamentos, valores e práticas não eram reproduções ou simples aceitações do modelo proposto pela ONG. Percebemos que havia uma certa disputa pelas definições e valores dentro da entidade. Com o crescimento institucional, uma das primeiras estratégias usadas para a criação de pessoal foi o recrutamento de jovens integrantes. O grupo de estagiários que já existia foi incrementado e gradativamente profissionalizado. Num primeiro momento, a criação da figura dos estagiários em período integral destinava-se a deixar sob controle jovens considerados, pela coordenação, em risco de sucumbir a grupos criminosos ou ao uso abusivo de drogas. Ação institucional inicialmente adotada por demanda, tornou-se estratégica ao atender simultaneamente à carência de mão-de-obra da instituição e à necessidade particular destes jovens de obterem emprego. Para selecionar os jovens, considerou-se prioritariamente o vínculo de proximidade e a identidade que estabeleceram com a instituição; conforme declaração de funcionários da administração e de 611


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coordenadores, na separação das funções que exerceriam, o critério foi a qualificação profissional: o manuseio ou não do computador, o uso correto da língua escrita e falada, conhecimento técnico de ajuste nos instrumentos, entre outras habilidades. Este critério profissional ocasionou a tendência de separar os que possuíam maior escolaridade - em geral os jovens oriundos da classe média, que foram trabalhar em serviços gerais de escritório e em atendimento ao público - daqueles com pouca qualificação para estas funções, escalados para trabalhar no setor de manutenção. A relação destes jovens com a ONG adquiriu uma natureza profissional, inexistente até então. O vínculo anterior era apenas de jovens (público-alvo) a quem se destina a atuação da ONG. Neste movimento, alguns optaram por uma dedicação profissional. Outros se dividiram entre a experiência anterior e a nova. Aceitaram e se dedicaram ao trabalho proposto, mas se mostraram desencantados e descontentes com mudanças na instituição. Estes jovens constituíram um grupo informal que ficou conhecido na associação como “velha guarda”9. A chamada “velha guarda” passou a discordar sobretudo da tendência “profissional” da entidade, envolvendo-se em situações de conflito aberto com integrantes mais novos (que chamavam de “playboys”) e com funcionários (segundo eles) “mercenários”. Para os mais antigos no projeto, os jovens que chegaram a partir de 2001 não vinham da “favela”, não precisavam dele - só estavam ali porque era de graça e porque “apareciam na TV” - e os funcionários só estavam por causa do dinheiro. O discurso destes jovens aponta uma dicotomia entre o vínculo sentimental com o projeto que eles, da “velha guarda”, representariam e o vínculo de interesse que ligava integrantes e funcionários mais novos à instituição. Como integrantes com uma íntima relação com a trajetória institucional, manifestam discordância dos novos rumos por meio da comparação entre o que era e o que é o projeto, indicando diferentes interpretações sobre o crescimento da ONG. O “conflito de representações” na organização investigada manifestou-se, em grande medida, nas crises que surgiram do cruzamento de duas formas de se conceber a ONG: uma que enfatiza a identidade e os valores de grupo, e outra que destaca uma lógica de eficiência10. Idéias sobre “protagonismo juvenil”, “solidariedade”, “conhecimento”, “pertencimento”, “respeito”, de um lado - e “qualidade”, “valor”, “competência”, “profissionalismo”, de outro - dão o tom do debate. Condutas cotidianas dos agentes fornecem a animação desta “guerra simbólica”. No quesito música, os jovens da “velha guarda” detiveram uma posição que lhes permitiu desenvolverem estratégias de fortalecimento. Aprenderam, durante os anos de participação na ONG, as técnicas da produção dos shows - estão entre os mais habilidosos com os instrumentos, conheceram os ritmos e as técnicas de improvisação durante uma apresentação. Como a “banda Show” chega a ter cem componentes, dependendo do espetáculo, tornam-se imprescindíveis para que a música não desande. Eles formam a linha de frente da banda, tocam os instrumentos mais difíceis e “vestem a camisa”, tocando nas apresentações com “raça” - como gostam de dizer. Os jovens, sobretudo aqueles que passaram dos dezoito anos, precisaram adquirir, além da habilidade com a música, “competência profissional”, pois é o que pode assegurar sua permanência na entidade. Os jovens da “velha guarda” sofreram pressões dentro da ONG no que diz respeito ao referencial do “profissionalismo”. Ficaram na berlinda, pois não seguem os padrões de comportamento da eficiência organizacional – horário, produtividade, posturas corporais etc.; brincam, dão pausas nos trabalhos, têm posições menos 612

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9 “Velha guarda” foi o nome informalmente dado a um grupo de jovens lideranças que estão na entidade desde o começo, que se tornaram ícones pela habilidade desenvolvida com os instrumentos, e pelo fato de trabalharem “carregando o piano” no dia-a-dia da instituição.

10 A busca pela eficiência dentro das ONGs não é uma novidade. Desde a década de 1980, as agências internacionais de fomento aos movimentos sociais procuraram estabelecer com as ONGs critérios e procedimentos que garantissem os resultados dos trabalhos, como avaliação sistemática e planejamento. A lógica de “projetos”, característica das ONGs contemporâneas, pede o estabelecimento de propostas de ação com metas, prazos e verbas bem definidos, o que exige profissionalismo e qualidade na gestão. Além da lógica de projetos, o crescente relacionamento entre ONGs e fundações empresariais também estimulou a profissionalização das entidades.


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O debate em torno do marco redistribuição e reconhecimento é um dos mais interessantes na teoria social contemporânea. Autores como Charles Taylor, Axel Honneth e Nancy Fraser têm se debruçado sobre esta temática, oferecendo importantes referências para a compreensão das dinâmicas sociais contemporâneas (Mattos, 2006). 11

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comprometidas com a idéia corrente de eficácia, sendo, portanto, considerados, pela administração da entidade, como “moles para trabalhar” - e “incompetentes”. O argumento é que prejudicam a dinâmica de trabalho, influenciando outros jovens. “São mau exemplo”. A ênfase do posicionamento dos jovens da “velha guarda”, entretanto, não é na questão profissional, mas antes nos laços afetivos. Eles têm ciência de que são admirados pelos mais jovens e acabam, por isto, sendo “formadores de opinião” como disse o presidente. Influenciam o comportamento de outros jovens, pois, em certo sentido, eles são o “vir-a-ser” desejado de boa parte de garotos e garotas que entram na ONG. Afinal, como disseram, formam a “linha de frente” da banda, conhecem - vivenciaram - toda a história da entidade, fizeram viagens internacionais, “ficam” (namoram) uns com os outros. Com todo este “currículo”, acabam definindo, em grande medida, quais os elementos “não institucionais” para o pertencimento. Para a presidência, surgiram questões embaraçosas na relação com a “velha guarda”. Com relação ao grupo, em grande medida composto por jovens com mais de 18 anos, qualquer atitude drástica da presidência seria difícil, mesmo de acordo com o estatuto, portanto, dentro da lei. Cortá-los do projeto seria embaraçoso porque poderia representar um fracasso da entidade caso a saída fosse brusca e violenta, ou caso esses jovens, ao sair, “se perdessem” (praticassem crimes ou abusassem de álcool e drogas) - ou, ainda, caso não se integrassem à sociedade por meio do trabalho. Alguns jovens que entraram na mesma época da “velha guarda” foram presos ou participam de grupos criminosos - segundo relatos, inclusive de coordenadores. Lembremo-nos de que o começo do estágio na associação era uma estratégia para “segurar” jovens “em situação de vulnerabilidade”. Por outro lado, mantê-los na entidade implicaria lidar com o “estilo bad-boy”/”moleque da favela” dos jovens, que não se harmoniza com o desejo da instituição de uniformizar alguns comportamentos considerados corretos. Os jovens da “velha guarda” passaram a viver este dilema, pois faz parte das “personagens” que eles construíram de si mesmos, de suas “identidades pessoais”, da posição que assumiram na entidade - o ser “malandro”, “moleque da favela”, “100% periferia”, “tirar sarro da cara dos outros”, “apavorar os comédia”, como dizem. Entretanto, são cobrados a se ajustarem ao padrão de comportamento esperado em um “projeto social” – “respeitar os outros”, “ser educado”, “não agredir” etc. Cada vez mais, entram jovens com perfil diferenciado – maior escolaridade, melhor renda familiar, melhores condições de moradia etc. Estes jovens ganharam espaço na entidade, e as falas da coordenação pedagógica e dos educadores, de forma geral, apontam para o crescimento e o fortalecimento deste perfil dentro da ONG. Os jovens da “velha guarda” enfrentam alguns questionamentos: mudar de “identidade” para serem aceitos no “contexto do conhecimento” seria perder a sua especificidade e sua força particular? São colocados em situação de aceitar regras impostas pela presidência da ONG, com que às vezes podem não concordar... mas e sair? O que fazer fora da ONG? E dentro, quais as suas chances, se lhes faltam algumas competências para crescerem profissionalmente?

Redistribuição material e reconhecimento cultural: o dilema das ONGs no enfrentamento da vulnerabilidade juvenil No artigo “From redistribution to recognition? Dilemmas of justice in a ‘postsocialist’ age”, Fraser (2001) propôs uma reflexão sobre as relações entre lutas culturais pelo reconhecimento e lutas pela redistribuição no mundo COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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contemporâneo - inspiradora quando o tema é ações coletivas11. Em uma abordagem pragmática feita com base no exame da realidade empírica, a autora destaca os conflitos políticos cotidianos da contemporaneidade e sua gramática específica. Dessa forma, a análise de Fraser permite a construção de um diálogo interpretativo interessante com o caso concreto acima descrito. Fraser revela uma preocupação com a ênfase que a luta pelo reconhecimento ganha, sobretudo a partir da década de 1990, no contexto de lutas pela cidadania: a identidade de grupo suplanta o interesse de classe como meio principal da mobilização política (Fraser, 2001). Segundo a autora, o problema é a desconexão entre as dimensões econômica e cultural nas pautas e ações de movimentos sociais. Em um mundo marcado por profundas desigualdades econômicas, a separação dessas dimensões é falsa. O não reconhecimento de identidades culturais e a desigualdade social estão entrelaçados e apoiados um no outro. Para Fraser, é necessário problematizarmos simultaneamente a proteção à identidade grupal e questões redistributivas. Com base nessa apreensão, ela procurou diagnosticar o que pode acontecer quando se reivindica justiça econômica e reconhecimento cultural simultaneamente. Estamos diante de um difícil dilema, segundo Fraser. Pessoas sujeitas à injustiça cultural e à injustiça econômica necessitam de reconhecimento e redistribuição. Necessitam de ambos para reivindicarem e negarem sua especificidade. Como isso é possível? (Fraser, 2001). Ela chama os grupos que necessitam tanto de redistribuição quanto de reconhecimento de “coletividades bivalentes”. A juventude pobre e em situação de vulnerabilidade social pode ser pensada como uma “coletividade bivalente”. Ela é diferenciada tanto em virtude da estrutura político-econômica quanto da estrutura cultural-valorativa da sociedade. Esta parcela da juventude é predominantemente afrodescendente, e o desenvolvimento histórico da pobreza e da exclusão no Brasil está relacionado à questão racial, o que faz com que haja um forte intercâmbio entre a questão de classe social e a de raça em nossa sociedade. Tais jovens sofrem de má distribuição socioeconômica, crescem em contextos de miséria, carência de infra-estrutura e falta de preparo para o mundo do trabalho formal - não são capacitados técnica e intelectualmente para atividades produtivas valorizadas na sociedade. Desta forma, são considerados “incompetentes” para ingressar no mercado de trabalho, restando para eles atividades de baixa remuneração, baixo status, enfadonhas. Por outro lado, também sofrem estigmatização do ponto de vista da valoração cultural. Com freqüência, são identificados com o tráfico de drogas, assaltos, furtos, crimes em geral. Não é por acaso que estes jovens são as maiores vítimas da violência policial e a parcela da população que mais morre por homicídio no Brasil. Estes jovens sofrem representações estereotipadas e humilhantes na mídia (como criminosos, brutais e estúpidos), e são discriminados em todas as esferas da vida cotidiana. Segundo a análise de Fraser (2001), “coletividades bivalentes” são fonte de um dilema político. Se elas investem na “luta pelo reconhecimento cultural”, afirmam a identidade de grupo valorizando suas especificidades e acabam marcando diferenciações na sociedade. Se, por outro lado, a ênfase é a “luta pela redistribuição”, estas coletividades devem buscar mecanismos que minimizem e deslegitimem as distinções sociais que lhes são creditadas. Como afirmar e negar, a um só tempo, a especificidade de um grupo? Parece-nos que a reflexão de Fraser (2001), mais do que marcar dois pólos separados de “luta pela cidadania”, representa a construção de dois tipos de questões que estão atravessando as ONGs e as ações coletivas de forma geral. Neste artigo propomos re-atualizar a discussão. Podemos ver nas ONGs, da mais pragmática à mais caritativa, o desejo de reconhecimento, assim como necessidades distributivas das populações a quem as ações se destinam. A experiência relatada no estudo de caso mostra que este dilema pode colocar-se de forma paradoxal em diferentes contextos. Voltemos à questão do pertencimento encontrada no estudo de caso. A representação dominante desta categoria na ONG aponta para uma identidade de grupo que incorpora a questão da injustiça econômica. Nesta organização, a questão valorativa-cultural de jovens pobres e afrodescendentes é encaminhada com a proposta de incorporação de uma forma de identificação coletiva miscigenada e multiclassista. A solução da organização foi trabalhar a “luta pelo reconhecimento” por meio de um convívio entre classes sociais e mediante o reconhecimento pela qualidade do que fazem – expressos, sobretudo, na prática musical baseada em tambores e nas apresentações públicas. 614

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A percussão tornou-se um elemento de valorização cultural para a população afrodescendente. Na entidade estudada, os jovens pobres e afrodescendentes destacam-se, muitas vezes, em relação aos jovens brancos de classes média e alta - o que permitiu, por vezes, um reconhecimento e uma forma de se posicionarem na entidade. Também significou o reconhecimento público como parte de uma banda que destaca elementos afro-brasileiros, embora a presidência não estimulasse deliberadamente este aspecto. A questão redistributiva, por sua vez, é pensada pela presidência da associação de forma privada: os serviços de qualidade que ela disponibiliza aos jovens são vistos como formas de redistribuição. Embora passem a ter acesso a uma série de bens, serviços e oportunidades, isto só ocorre naquele espaço privado da ONG, e, mesmo assim, mantendo algumas divisões quanto ao tipo de ocupação que os jovens de diferentes classes exercem. A pesquisa mostrou que a prática musical efetivamente mobiliza mecanismos de sociabilização, de criação de identidades, reforça sentimentos de pertencimento, amplia horizontes espaciais e alteridades. Sem dúvida, cria uma sensação de reconhecimento, mas e fora da banda show, qual é o espaço que esses jovens adquirem na sociedade? De fato eles se afastam das situações sociais críticas que os desfavorecem? A passagem entre o fazer musical proposto pela instituição e a efetivação dos objetivos mais amplos, como a construção da cidadania (incluindo o acesso ao mercado de trabalho) parece, às vezes, aparente, conflituosa ou pouco trabalhada. O contato entre jovens de diferentes classes sociais pode ser um instrumento de cidadania, mas, se pouco trabalhado, pode resultar na exacerbação da diferença. Os problemas que os jovens menos escolarizados sofreram no processo de crescimento da organização explicitaram o conflito e a dificuldade da transposição do status adquirido no “palco”, para fora deste. Um dos termos-chave utilizados na entidade é protagonismo juvenil. Também faz parte do “vocábulo de sentidos” das ONGs que trabalham com jovens por meio de “arte e cultura”. Ele traduz uma ação pela participação dos jovens nos contextos em que estão inseridos, no sentido de coorganização, de proposição de caminhos, para a concretização da condição de cidadania. No caso estudado, tal participação mostrou-se limitada. Alguns (poucos) jovens que se destacam podem vir a ser monitores (auxiliar o professor no ensino aos iniciantes), ou se efetivarem como funcionários da ONG em alguma área de serviços. Mas a participação efetiva na formatação das atividades da entidade ainda não se dá. Quem sabe, um caminho para a concretização de objetivos mais amplos seja ouvir - além da música dos jovens integrantes de ONGs - os ecos de suas contradições, buscando compreender que “música” elas tocam de fundo. Não deixa de ser um paradoxo a idéia de criar-se uma forma de identificação coletiva (o pertencimento) sob uma base diversificada socioeconomicamente. Parece existir uma “identidade coletiva fragmentada e conflitante” - uma contradição nos seus próprios termos. Jovens convivem, passam a dividir alguns símbolos e valores, criam alianças e laços de amizade. E possivelmente a experiência irá, de alguma forma positiva, marcar “muitos” com tão “poucas” perspectivas de vida neste Brasil - país injusto - em que a desigualdade social é concreta, presente em diversas dimensões na vida dos jovens moradores das periferias das grandes cidades brasileiras, levando-os, muitas vezes, a diversas situações sociais negativas.

Considerações finais Neste artigo, reconhecemos a existência de efeitos importantes conquistados pelas ONGs que trabalham com jovens em situação de vulnerabilidade por meio de atividades artístico-culturais. Elas têm estimulado o reconhecimento de habilidades e inteligências de uma parcela da juventude brasileira tantas vezes esquecida e estigmatizada. ONGs que utilizam o tema transversal cultura mostram-se eficazes simbolicamente sob a perspectiva dos jovens que aderem em grande número a este tipo de empreendimento por todo o Brasil, e também sob a perspectiva da opinião pública que aceita, apóia e

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divulga tais iniciativas. Entretanto, para o conjunto dos jovens consumidores de sua ideologia, aquelas organizações não garantem perspectivas concretas de atendimento às suas necessidades materiais, ilusões efêmeras de uma vida digna. O caso concreto analisado remonta a um encontro de grupos sociais que ocupam um mesmo espaço, mas que poucas vezes convivem. Tal encontro consubstanciou-se em sociedade entre estes sujeitos, formatada por intermédio de valores, princípios e símbolos comuns a outras ONGs do campo estudado. Tão perto e tão longe, os atores envolvidos nestas organizações (sejam profissionais, coordenadores, jovens participantes) aprendem a respeitar-se e a conviver, mas continuam afastados por um abismo de diferenças e de desigualdades. “Como” conseguir, entretanto - e de fato - aliar ideais de reconhecimento cultural, participação e solidariedade à efetiva redistribuição das riquezas? Esta é uma questão sobre a qual precisamos refletir e buscar soluções conjuntas (ONGs, governos, universidades, sociedade) para o enfrentamento das situações sociais negativas que desfavorecem segmentos da juventude.

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MALVASI, P.A. ONGS, vulnerabilidad juvenil y reconcimiento cultural: eficacia simbólica y delemas. Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.12, n.26, p.605-17, jul./set. 2008. La búsqueda por el reconocimento cultural como estrategia en la confrontación de la vulnerabilidad entre jóvenes se hizo predominante las ONGS (organizaciones no gubernamentales) brasileñas. Después de die anõs de crecimiento de esta maneira de acción buscamos analizar su eficacia simbólica y sus dilemas. El artículo debate, inicialmente, conceptos y prácticas comprendidas en este escenario. En seguida, se vuelve para el campo de las ONGS brasileñas que actúan con jóvenes en situación de vulnerabilidad a través de actividades artísticas y culturales, con la intención de reconocer los elementos simbólicos presientes artísticas y culturares, con la intención de reconocer los elementos simbólicos presientes en el contexto estudiado. Se presenta tambíen un estudio de caso que observa la experiencia de una organización no gubernamental. El artículo destaca un dilema común a las acciones de las ONGS en el enfrentamiento de la vulnerabilidad juvenil, cual sea, conciliar las acciones de carácter cultural que tienen por objeto la valorización del repertorio particular de los jóvenes de clases populares con la viabilidad del acceso a estructuras y recursos básicos de los cuales están alejados.

Palabras clave: Vulnerabilidad social. Organización no gubernamental. Reconocimiento cultural. Eficacia. Redistribución material. Recebido em 26/09/07. Aprovado em 27/02/08.

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Alcoolismo: representações sociais elaboradas por alcoolistas em tratamento e por seus familiares

Muriella Sisa Dantas dos Santos1 Thelma Maria Grisi Velôso2

SANTOS, M.S.D.; VELÔSO, T.M.G. Alcoholism: social representations made by alcoholics undergoing treatment and by their relatives. Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.12, n.26, p.619-34, jul./set. 2008. Results are presented and analyzed from a qualitative study that aimed mainly to compare the social representations regarding alcoholism made by alcoholics undergoing treatment at the Fazenda do Sol Rehabilitation Center, in Campina Grande, Paraíba, with those made by their relatives. Twelve semistructured interviews were held: six with alcoholics and six with their relatives. These interviews were subjected to thematic analysis as proposed by Bardin. The interviewees generally represented alcoholism as a disease and said that individuals needed help to recover from it. Furthermore, alcoholism was represented as something that caused losses, as the act of excessive drinking, as an inherited dependence, as a punishment or as something of demonic nature. Regarding the reasons that led them to chemical dependence, most of the interviewees attributed their dependence to family problems and friendships.

Apresentam-se e analisam-se os resultados de uma pesquisa qualitativa cujo objetivo principal foi comparar as representações sociais sobre o alcoolismo elaboradas por alcoolistas em tratamento no Centro de Recuperação Fazenda do Sol, Campina Grande/PB, com as de seus familiares. Foram realizadas 12 entrevistas semi-estruturadas – seis com alcoolistas e seis com familiares – as quais foram submetidas à análise temática proposta por Bardin. De modo geral, os entrevistados representaram o alcoolismo como uma doença e, para recuperar-se dela, o indivíduo necessita de ajuda. Ressaltam-se, ainda, representações do alcoolismo como algo que provoca perdas; como o ato de beber em excesso; como uma dependência hereditária; um castigo e algo do demônio. No que se refere aos fatores que os levaram à dependência química, a maioria dos entrevistados atribui a dependência a problemas vividos na família e às amizades.

Key words: Social representations. Alcoholism. Alcoholics undergoing treatment.

Palavras-chave: Representação social. Alcoolismo. Alcoolistas em tratamento.

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1 Psicóloga. Colégio Diocesano Seridoense. Rua Olegário Vale, 1361 Centro - Caicó, RN 59.300-000 muriellasisa@bol.com.br 2 Psicóloga. Departamento de Psicologia da Universidade Estadual da Paraíba.

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Introdução O álcool tem sido apontado como a droga mais consumida ou, pelo menos, experimentada no Brasil. A facilidade com que essa droga é comercializada - por ser lícita - tem favorecido o seu elevado consumo, o que é apontado como umas das causas do alcoolismo, um problema que atinge milhões de brasileiros, que é considerado, por órgãos competentes, como um dos maiores problemas de saúde pública no Brasil e um dos grandes responsáveis por fatalidades em acidentes de trânsito, homicídio, suicídio e agressão (Bucher, 1992). Pesquisas epidemiológicas demonstram que o consumo do álcool continua crescendo. As pesquisas mais abrangentes sobre o uso dessa droga foram as realizadas pelo Centro Brasileiro de Informação sobre Drogas Psicotrópicas (CEBRID). Realizaram-se quatro estudos (1987, 1989, 1993, 1997), nas mesmas dez cidades, todos com estudantes de 1º e de 2º graus, empregando-se a mesma metodologia. Quanto ao uso pesado de álcool, observou-se um aumento significativo na maioria das cidades estudadas, mostrando que, nos últimos anos, a juventude tende a beber com mais freqüência (Galduróz, Caetano, 2004). Carlini et al. (2002) realizaram um levantamento sobre o uso de drogas psicotrópicas no Brasil, abrangendo as 107 maiores cidades do país. Os resultados obtidos revelam que o consumo de drogas lícitas, especialmente o álcool e o tabaco, é superior ao das drogas ilícitas: 11,2% da população pesquisada é dependente do álcool. Como afirma Alfaro (1993), estudos sobre o alcoolismo são relevantes, pois se fazem urgentes novos elementos para a compreensão do fenômeno, já que se trata de um problema de saúde pública com custo social. Nessa perspectiva, encontramos vários estudos que têm provocado uma reflexão sobre essa temática. O estudo realizado por Neves (2004), por exemplo, ressalta que é preciso compreender os modos moralizantes de representação do alcoolismo: seus efeitos sobre a construção das relações sociais e sua atribuição como fator dissolvente de unidades sociais fundamentais, como a família, ou perturbador do exercício de papéis básicos, como o de trabalhador e esposo. Em consonância com esse pensamento, Mota (2004) defende que, embora o álcool, de certa forma, seja considerado, inicialmente, como um agente produtor de sociabilidade - um dos significados da bebida em nossa sociedade - ao qual se atribui um valor positivo, ele se torna, para uma parcela da população, um agente de dissociação, um fator que gera rupturas no campo das relações sociais, na família e no trabalho. Por outro lado, as propostas mais recentes na área de saúde pública evidenciam novas expectativas com relação ao papel da família, ressaltando o seu comprometimento no processo de promoção e prevenção da saúde, haja vista a própria Lei de Reforma Psiquiátrica no Brasil (Lei 10.216/2001). Em virtude dessas considerações, desenvolvemos, inicialmente, uma pesquisa, vinculada ao Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC), que privilegiou a representação social de alcoolistas em tratamento sobre o alcoolismo. Naquela pesquisa, comparamos as representações sociais sobre o alcoolismo, formuladas por alcoolistas em tratamento, no Centro de Recuperação para Dependentes Químicos Fazenda do Sol, com as de alcoolistas da Clínica Psiquiátrica Dr. Maia, ambas situadas em Campina Grande/Paraíba. Em conseqüência de estarmos estagiando no Centro de Recuperação Fazenda do Sol, o nosso interesse cresceu no sentido de ampliar a compreensão sobre o alcoolismo, razão por que optamos por desenvolver uma pesquisa escolhendo, mais uma vez, aquela instituição. Sendo assim, realizamos uma pesquisa em 2004, cujo objetivo principal foi o de comparar as representações sociais sobre o alcoolismo, formuladas por alcoolistas em tratamento na Fazenda do Sol, com as de seus familiares. Os nossos objetivos específicos foram: analisar os fatores que alcoolistas e familiares apontam como responsáveis pela dependência; verificar em que medida o discurso religioso, inscrito na forma de tratamento da Fazenda do Sol, interfere na elaboração das representações dos alcoolistas sobre o alcoolismo, como também se existe alguma marca do discurso religioso nas representações dos familiares; e identificar elementos que assinalem a representação que alcoolistas e familiares elaboram sobre uma possível recuperação. Para isso, fundamentamo-nos na área da Psicologia Social, especificamente no campo de estudos da Teoria das Representações Sociais. 620

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Para Moscovici (1978), a representação social é um conjunto organizado de figuras (que se constituíram em imagens) e de expressões socializadas (que se constituíram em linguagem) que realçam e simbolizam as situações e os atos. A representação produz comportamentos, visto que define a natureza dos estímulos que nos rodeiam e provocam; ao mesmo tempo, determina esses comportamentos, à proporção que define o significado das respostas a serem dadas aos estímulos. A representação social é uma modalidade de conhecimento particular, resultante de uma atividade psíquica, ligada a valores, normas e regras sociais, cuja função é a de elaborar conhecimentos, comportamentos e comunicação entre indivíduos. Ao representar, o indivíduo reproduz um objeto (que pode ou não ser socialmente valorizado). Enquanto reprodução do real, a representação não pode ser analisada apenas como um reflexo de um objeto na consciência individual ou coletiva. Ela detém um caráter ativo, uma vez que tal reprodução implica um remanejamento das estruturas, uma reconstrução de dados, uma remodelação dos elementos. O indivíduo, sobretudo, cria; repensa o objeto, reexperimenta-o e o refaz. “Aliás, o dado externo jamais é algo acabado e unívoco; ele deixa muita liberdade de jogo à atividade mental que se empenha em apreendê-lo” (Moscovici, 1978, p.26). Assim, entendemos Representação Social como sendo uma forma de conhecimento que é elaborado cotidianamente pelo indivíduo e que tem, ao mesmo tempo, origem e conseqüência na produção de comportamentos e na comunicação entre indivíduos.

Metodologia

3 A Fazenda do Sol disponibiliza tratamento apenas para alcoolistas do sexo masculino.

No que se refere ao percurso metodológico, optamos por realizar uma pesquisa qualitativa, uma vez que, segundo Minayo (1994), é um tipo de pesquisa que se aprofunda no universo dos significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes, e que, portanto, preocupa-se com um nível de realidade que não pode ser quantificado. Para a coleta de dados, realizamos entrevistas semi-estruturadas que, segundo Cruz Neto (1994), consistem na articulação de duas modalidades de entrevistas: as estruturadas - que pressupõem perguntas previamente formuladas - e as nãoestruturadas - em que o entrevistando aborda, livremente, o tema proposto. Foram realizadas 12 entrevistas, seis com alcoolistas do sexo masculino3 que se encontravam em tratamento, na época da pesquisa, no Centro de Recuperação para Dependentes Químicos Fazenda do Sol, e seis com seus familiares: cinco, do sexo feminino, e um, do sexo masculino. A idade dos alcoolistas variava de 22 a 44 anos, e a dos familiares, de 18 a 63 anos. Dos seis alcoolistas entrevistados, três eram casados, e três, solteiros; destes, dois cursaram o primeiro grau completo, dois não o concluíram, um cursou o segundo grau completo, e um não havia concluído o segundo grau. O tempo de permanência na instituição variava de dois meses a dois anos e um mês. Com relação à profissão, um era pintor de automóveis, dois eram vigilantes, um era segurança, um trabalhava como motorista e um era garçom. No grupo dos familiares, quatro eram casados, e dois, solteiros; um havia cursado o primeiro grau completo, dois não haviam concluído, dois cursaram o segundo grau completo, e um, o superior. Quanto ao grau de parentesco dos familiares, quatro eram irmãos de alcoolistas, uma era filha, e uma, mãe. No que diz respeito à profissão, o grupo era formado por: uma estudante, duas COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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supervisoras do lar, uma lavadeira de roupas, uma professora e um comerciário. Quanto à origem social dos entrevistados, segundo o coordenador da instituição Fazenda do Sol, eles se disponibilizam a receber pessoas de todas as classes sociais, no entanto, os que mais procuram a instituição são os pertencentes às classes sociais baixa e média. As entrevistas foram realizadas com base em um roteiro de questões contendo 12 perguntas, previamente elaboradas de acordo com os propósitos da pesquisa. O número de entrevistas foi determinado de acordo com o número de alcoolistas internos no momento da pesquisa, pelo critério de acessibilidade e pelo número de familiares que residiam na mesma cidade em que está localizada a instituição. As entrevistas foram gravadas em fitas cassete, transcritas na íntegra e analisadas com base na técnica da análise de conteúdo, mais precisamente da análise temática, proposta por Bardin (1977). No que se refere à Fazenda do Sol, segundo informações obtidas na instituição, ela foi fundada no dia 13 de agosto de 2001, por um grupo de profissionais (um juiz, três médicos, um comerciante, um advogado e empresários), todos ligados à Igreja Católica, que se reuniram e decidiram criar a instituição, que se mantém por meio de trabalhos voluntários e ajudas filantrópicas, recebendo grande apoio da Igreja Católica. Além disso, os internos que têm melhores condições financeiras pagam um salário-mínimo de entrada e meio salário por mês. Os demais contribuem com o que podem. A terapia ocupacional desenvolvida na Fazenda do Sol consiste num preenchimento do tempo dos internos, com atividades desenvolvidas por eles próprios, tais como: fabricação de tapetes; reciclagem de espuma; artesanato com jornais; limpeza em geral; reciclagem de madeira; montagem de placas eletrônicas etc. Aos sábados, participam de um trabalho de terapia de grupo, coordenado por uma psicóloga, que é católica. Observamos que, enquanto facilitadora do grupo, essa profissional se utilizava do discurso religioso, reforçando, entre outras coisas, a idéia de que a recuperação é algo dado por Deus. Além dessas atividades, a Igreja Católica realiza, todos os domingos, uma missa na instituição, parte essencial do tratamento. A visita dos familiares, que são convidados a participar da missa, é também aos domingos, uma vez ao mês. Vale salientar ainda que o próprio coordenador do grupo também é da Igreja Católica e acredita ter recebido o chamado divino para coordenar a Fazenda. Assim, diariamente, fazia orações com todos os internos no pátio da instituição, sobretudo antes das refeições, com a finalidade de renovar a fé na recuperação, por meio da crença em Deus. Vale também sublinhar que os Alcoólicos Anônimos (AAs) costumam realizar palestras na Fazenda do Sol.

O que é o alcoolismo

Neste artigo, apresentaremos uma parte da pesquisa - as representações sociais elaboradas pelos nossos entrevistados sobre o alcoolismo e sobre as causas que os levaram à dependência. O alcoolismo é uma doença A análise das representações sociais sobre o alcoolismo, elaboradas pelos seis alcoolistas em tratamento na Fazenda do Sol e por seus familiares, conduz-nos às seguintes considerações: em primeiro lugar, o alcoolismo foi representado como doença, porém essa representação, como poderemos observar a seguir, vem associada à tristeza/solidão, a algo incurável, grave ou, ainda, a uma doença que, estando o indivíduo com ela, necessita de ajuda para recuperar-se. A representação do alcoolismo como doença assemelha-se à interpretação elaborada pelo modelo biomédico, que circunscreve a doença alcoólica no âmbito biológico e fisiológico. Nesse sentido, Campos (2005), em seu estudo acerca das representações de ex-bebedores sobre o contágio e a doença, defende que a maioria concebe o alcoolismo como uma “doença inata”, enraizada no organismo do alcoólico, que constrange a vontade do indivíduo, impedindo-o de agir de modo responsável. Assim, a representação do alcoolismo como doença nos remete aos universos reificados do saber. Moscovici (1981) apud Sá (1993) considerava, nas sociedades contemporâneas, a coexistência de duas classes distintas de universos de pensamento: os universos reificados e os universos consensuais. Nos universos reificados, circulam as ciências e o pensamento erudito em geral; nos universos consensuais, as atividades intelectuais da interação social cotidiana, ou teorias do senso comum, por meio das quais 622

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A fim de manter o anonimato dos alcoolistas entrevistados, abreviamos seus nomes usando, em seguida, o termo alcoolista, também abreviado, como por exemplo: VAL é o nome abreviado do entrevistado; alcoo significa que ele é alcoolista em tratamento. No caso dos familiares, abreviamos o nome do familiar e, em seguida, explicitamos o grau de parentesco. 4

Segundo Campos (2004), os AAs abordam o alcoolismo enquanto uma doença físico-moral e espiritual. É uma irmandade de homens e mulheres que compartilham suas experiências, forças e esperanças, cujo objetivo é ajudar os alcoólicos a evitar o primeiro gole e, assim, manter sua sobriedade. 5

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são produzidas as representações sociais. Nesse contexto, uma realidade social é criada apenas quando o novo ou o não familiar, que geralmente se encontra nos universos reificados, passa a ser incorporado aos universos consensuais, representando, assim, o não usual em nosso mundo usual. A fim de compreender esse fenômeno, o referido autor estabeleceu o princípio da “transformação do não familiar em familiar”, justificando a formação das representações sociais. Para ele, a tensão gerada pelo não familiar impede que a habituação mental domine completamente, pois o estranho intriga e perturba as pessoas, por isso é necessário transformar o estranho em familiar. Não podemos, pois, deixar de sublinhar que, embora o discurso médico (universo reificado) influencie na representação do alcoolismo como doença, essas informações são ressignificadas pelos sujeitos a partir do contexto econômico e sociocultural no qual estão inseridos, porquanto, como afirma Arruda (2002, p.134), “O sujeito do conhecimento é um sujeito ativo e criativo, e não, uma tábula rasa que recebe passivamente o que o mundo lhe oferece, como se a divisória entre ele e a realidade fosse um corte bem traçado.” Como dito anteriormente, o alcoolismo é representado como uma doença que traz tristeza/solidão, como mostra a fala seguinte: Pra mim, o alcoolismo em si é uma doença. Mas beber pra mim antes era um refúgio, era um desabafo, era uma... fugir da tristeza, né? Fugir da solidão. Era isso que eu pensava antes de adoecer. Agora o alcoolismo é totalmente o inverso do que eu pensava, é onde tá a solidão, de onde vem a tristeza, onde vem a falta de confiança, onde vem tudo aquilo que a pessoa não quer ser, não quer passar na vida. No princípio você diz que vai tomar uma pra alegrar, tomar uma pra passar o frio, tudo é em vão. A bebida não é nada mais do que a morte. (VAL, alcoo)4

Observa-se que esse entrevistado, remetendo-se à sua experiência pessoal, ao mesmo tempo em que representa o alcoolismo como doença, deixa explícito que sua visão mudou após “adoecer”. Antes, beber, para ele, era uma fuga de situações que traziam tristeza. Hoje, é completamente o oposto, o alcoolismo o faz se deparar com sentimentos de solidão, tristeza e desvalorização de si próprio - “a bebida é a morte”. Convém destacar que nenhum familiar associou o alcoolismo à tristeza/ solidão. Podemos constatar também, por intermédio das entrevistas, que o alcoolismo é representado como uma doença incurável, como assinala o discurso: O alcoolismo é uma doença, é uma doença que ela é incurável, mas ela tem um tratamento, e você querendo, você morre sóbrio sem ingerir nenhuma gota de álcool, aí só depende de si mesmo. Você tem a ajuda, porque os Alcoólicos Anônimos mostra o caminho certo a gente, a gente segue se quiser. A gente nunca é obrigado a fazer aquilo que não quer, mas lá ele ensina a gente, digamos assim, a obrigar a fazer a coisa certa [...] eu me conscientizei que eu sou doente alcoólatra, eu não posso ingerir a primeira dose porque tudo começa pela primeira. (SEB, irmão)

Verificamos que, embora veja o alcoolismo como uma doença incurável, esse familiar também consegue encontrar para ela uma possível solução, que seria evitar o primeiro gole de álcool, o que denota uma referência ao discurso dos AAs.5 Durante COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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as entrevistas, ficamos sabendo que o entrevistado, SEB, participou desse grupo e hoje se considera um ex-dependente do álcool. Cumpre assinalar que alguns internos também já participaram desse grupo. O alcoolismo é representado, ainda, como uma doença grave: “Pra mim, eu digo hoje, com toda a afirmação, o alcoolismo é uma doença, uma doença e grave, né? Que chega até a matar, se a pessoa não procurar ajuda em tempo, né? É... o meu jeito que eu sei do alcoolismo é esse” (RUB, alcoo). Podemos observar que RUB representa o alcoolismo como uma doença grave, que leva à morte se a pessoa não procurar ajuda. Da mesma forma, uma familiar, quando questionada sobre o que é um alcoolista, também representa o alcoolismo como uma doença que, uma vez estando o indivíduo com ela, precisa de muita ajuda para recuperar-se: O alcoólatra é uma pessoa doente, né? Que precisa de muita ajuda. No meu ponto de vista, uma pessoa que tá dependente assim de qualquer vício, né só o álcool não, é uma pessoa que tá precisando de ajuda, é uma pessoa doente, é uma doença, com certeza, pra mim é mais do que uma doença uma pessoa que tem qualquer tipo de vício [...]. (JOA, irmã)

Dados semelhantes foram encontrados em estudo realizado por Campos (2004) acerca das representações sobre o alcoolismo dos integrantes do grupo AAs, situado num bairro da periferia de São Paulo. O referido autor afirma que alguns entrevistados representam o alcoolismo como uma doença, sendo necessário àquele que está acometido por ela procurar ajuda. Os membros dos AAs reconhecem-se como “doentes alcoólicos em recuperação”, em oposição à imagem de “bêbado e cachaceiro” dos tempos do alcoolismo ativo, adquirindo assim um status de doente, com uma positividade não encontrada na condição do “bêbado” e do “cachaceiro”. Para o referido autor, os AAs defendem uma teoria segundo a qual o indivíduo não é responsável pela aquisição do alcoolismo, visto que esse mal é considerado inato, inerente ao organismo do alcoólico, e pelo qual ele não pode ser responsabilizado. Em um estudo posterior, Campos (2005) assinala que os AAs redefinem os termos de responsabilidade do doente alcoólico, pois, se o indivíduo não é responsável pela aquisição dessa doença, ele o é por sua recuperação. Dessa forma, o discurso dos AAs possibilita ao alcoolista a reconstrução de sua identidade, e o álcool passa a ser entendido como elemento impuro, que deve ser evitado devido a sua relação direta com a doença alcoólica. A recuperação consiste, então, em evitar tudo o que está relacionado a essa droga. Assim, é essa representação do álcool e do alcoolismo que orienta as ações em direção à sua recuperação. O alcoolismo é uma dependência hereditária O alcoolismo é representado ainda como dependência hereditária: É uma dependência hereditária acompanhada por alguns fatores. Eu acho que as pessoas bebem por causa de um problema, porque o álcool faz elas esquecerem por alguns instantes. Aos poucos, a mente vai ficando dominada e se não tiverem ajuda, não conseguem sair. (RUZ, irmã)

Em outro momento da entrevista, essa informante afirma que existem, em sua família, mais pessoas que são alcoolistas. Com isso, supomos que seja por esse motivo que ela representa o alcoolismo como uma dependência hereditária. O álcool é visto por ela também como um paliativo para o esquecimento dos problemas. Conseqüentemente, com o uso excessivo, a pessoa vai se tornando alcoólatra. Para RUZ, o alcoolismo ainda é representado como algo que domina a mente do indivíduo, deixando-o numa posição de passividade e de sujeição ao álcool. Esse aspecto aparece também em outra entrevista, como vimos. Convém enfatizar que o alcoolismo não é representado como dependência hereditária por nenhum dos alcoolistas.

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O alcoolismo é o ato de beber em excesso Ao ser questionada sobre o que entende por alcoolismo, outra entrevistada deu a seguinte resposta: Alcoolismo eu acho que é isso que ele tá vivendo agora, você começa com uma dose pequena, dizendo: “Ah, eu vou experimentar”. Meu avô mesmo antes de comer, ele tomava uma dose porque ele dizia que era pra abrir o estômago pra receber a comida. Mas não é, isso é alcoolismo, é alcoólatra, ele tá viciado já. Eu acho que alcoolismo é isso, é beber mesmo, beber sem parar, eu acho que você pensa: “Ah não, vou beber só hoje, experimentar”, ou por questão social: “Vou beber numa festa, social”. E sem saber que aquilo ali pode até viciar você. (ELI, filha)

Para essa informante, o vício da bebida pode começar por meio de pequenas doses, somente para experimentar, ou, ainda, “por questão social”. Entretanto, são essas práticas que, segundo ela, levam a pessoa ao vício - o alcoolismo é um vício que vai sendo adquirido aos poucos. Vale sublinhar que nenhum alcoolista representou o alcoolismo como o ato de beber em excesso. O alcoolismo é uma droga Um dos alcoolistas entrevistados representa o alcoolismo como droga, segundo a fala: O alcoolismo, pra mim, do jeito que eu pensava antigamente, era um divertimento. Se a pessoa tivesse uma raiva e começasse a beber esquecia tudo. Se a pessoa pegasse uma confusão e fosse beber, a pessoa pensa que passa tudo. E eu pensei que era isso. Só que depois que eu participei de várias reuniões aqui na Fazenda do Sol sobre o alcoolismo, nesses dois meses, eu garanto que se eu sair daqui, arrumar um emprego e continuar trabalhando, todo domingo eu tô aqui. Eu já falei isso pra minha mãe. Já falei isso pra família toda. Depois que eu comecei a assistir várias reuniões aqui sobre o alcoolismo foi que eu comecei a saber que o alcoolismo é uma droga. (VAN, alcoo)

VAN afirma que “o alcoolismo é uma droga”, e não, que “o álcool é uma droga”, o que nos leva a supor que ele pode estar tanto se referindo ao álcool como uma droga, quanto usando o termo droga num sentido negativo, sendo, portanto, o alcoolismo uma droga porque é algo ruim, prejudicial. Para esse entrevistado, como também para outro, como já podemos observar, o alcoolismo deixa de ser algo positivo, um divertimento, e passa a ser visto como algo muito negativo, no caso, a droga. Ao fazerem uma comparação de suas representações de alcoolismo, hoje, com as que tinham no passado, constroem uma imagem que reitera o discurso veiculado pelo tratamento recebido, afinal, são alcoolistas em tratamento num centro de recuperação. Vale sublinhar, ainda, que um familiar, após ser perguntado sobre o que é o alcoolismo, também o representa como droga: “Uma droga, pra mim, é uma droga como qualquer outra” (VAG, irmã). Ainda analisando o discurso de VAN, quando ele diz: “se a pessoa tivesse uma raiva e começasse a beber, esquecia tudo”, podemos perceber que o álcool é representado pelo entrevistado como um alívio para os problemas, um bálsamo. Essa representação também é encontrada no estudo de Brasileiro, Brasileiro e Ramalho (1999) sobre as representações do álcool, alcoolismo e alcoolista, de funcionários de uma instituição pública. Segundo os referidos autores, aqueles que apresentam atitudes valorativas em relação ao álcool é porque o viam como paliativo para esquecer os problemas. Em uma pesquisa com adolescentes pernambucanos, Quintela et al. (2004) apud Castanha, Araújo (2006) também encontraram dados sobre o uso do álcool associado à questão do prazer, e observam que o principal motivo para que eles o ingerissem pela primeira vez eram as sensações prazerosas. O alcoolismo é algo que provoca perdas Com relação às perdas sofridas, o alcoolismo é concebido como algo que afeta os neurônios, conforme afirma a seqüência discursiva que segue:

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O alcoolismo é um dos fatores que tá atingindo muita gente, e chegou a me atingir porque hoje eu tenho um pouco de problema de decorar as coisas em mente, né? [...] Me tirou alguns neurônios, eu acho que hoje eu tenho dificuldade em decorar as coisas, e paciência em estudar algo, né? [...] Então, o fator que ela [a bebida] causa é a destruição de alguns dons que Deus nos dá e não tem como recuperar, né? (GEF, alcoo)

Essa seqüência discursiva ressalta uma perda cognitiva sofrida devido ao alcoolismo, o que nos remete à representação do alcoolismo como doença. O alcoolismo destrói, segundo o entrevistado, “os dons que Deus nos dá”. Nesse sentido, uma familiar representa o alcoolismo como destruição: “Pra mim, o alcoolismo... eu não sei não, viu? O que eu tenho a dizer sobre o alcoolismo é uma destruição. A pessoa que tá dependente do álcool é uma pessoa que tá dominada, destrói a família, acaba o emprego, casamento, se for casado, se destrói também” (JOA, irmã). De acordo com essa entrevistada, o alcoolismo acarreta problemas na família, como, também, no casamento e no emprego. No decorrer da entrevista, ela afirmou que todas essas perdas foram vividas por seu irmão. É importante destacar que as repercussões do álcool na vida familiar aparecem também nas representações de Agentes Comunitários de Saúde (AC’s), estudados por Castanha e Araújo (2006), no município de Ipojuca, Pernambuco. Campos (2004) afirma que as representações de membros dos AAs também se remetem às perdas sofridas na família, no trabalho e nas amizades. Para o autor, é a partir da tomada de consciência das perdas acumuladas durante o tempo de contato com a bebida alcoólica que os alcoolistas se dão conta de que estão “dominados pelo álcool” e que precisam de ajuda para se recuperar, o que os leva a buscarem os AAs. O referido autor assinala que o alcoolismo, embora seja considerado um mal individual, ao mesmo tempo em que atinge o dependente também afeta sua família e o local de trabalho, deteriorando os vínculos sociais e os afetos. Caracteriza-se, portanto, como “uma doença da família”. Nesse sentido, Fainzang (2007), em seu estudo sobre a Associação Francesa de Ex-bebedores Vie Libre, toma por base os discursos recolhidos junto aos cônjuges dos antigos alcoólicos, membros do movimento, para delimitar os elementos constitutivos da idéia do alcoolismo como doença contagiosa, e identificar as suas dimensões em contraposição à definição médica de doença contagiosa. A autora expõe que os cônjuges dos bebedores atribuem a si mesmos um status de doentes por contágio, apesar de saberem que essa doença não é contagiosa em termos médicos. Assim, a referida autora defende que o alcoolismo é uma doença igualmente assumida fisiologicamente pelos próximos, já que algumas de suas marcas podem ser também lidas no corpo dos outros, como, por exemplo, alguns sintomas relatados pelos cônjuges: depressão nervosa, dificuldades para dormir e raciocinar, dores no estômago, problemas de memória, dentes danificados, falta de apetite. Dessa forma, o “contágio” provocado pelo alcoolismo pressupõe não apenas uma proximidade física, mas também social. A autora defende que, Se as condições de possibilidade do contágio comportam o compartilhamento de um mesmo espaço físico, do mesmo ar, elas implicam necessariamente, além disso, o compartilhamento de um mesmo espaço social. A transmissão da doença de um corpo a outro não se faz ao acaso, por simples proximidade corporal. É necessária uma proximidade social, sendo que a do cônjuge, neste aspecto, é exemplar, visto que ele partilha com o bebedor não apenas o mesmo ar, o mesmo espaço doméstico, poluído pelo hálito do alcoólico, como também o mesmo destino, podendo o espaço doméstico ser superposto ao vínculo matrimonial ou àquele criado pela vida em comum. (Fainzang, 2007, p. 92)

No que diz respeito às conseqüências que o alcoolismo trazem para a família, um dos entrevistados afirma:

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Pra mim, eu acho que seja o fim da carreira do que se entrega à cachaça, porque ela traz muita desgraça. Eu digo, primeiramente por mim, porque eu perdi o amor da minha família, graças a Deus, graças a Deus, tô recuperando, dos meus dois filhos, perdi minha mulher, em vez de eu ter pensado, né? [...] E aí sempre me acabando, perdendo o que eu tinha que era o amor das minhas filhas, da minha família. (AG, alcoo)

Essa seqüência discursiva reforça a idéia de que o alcoolismo destrói não só a própria pessoa - o alcoolista - mas também a relação familiar. Ressaltam-se, assim, as rupturas que são geradas na família. O alcoolismo é representado, também, como uma derrota: “O alcoolismo, eu acho que seja uma coisa muito... uma derrota na vida de uma pessoa que se dá nesse tipo de... né? Nesse tipo de droga. Olha, pra mim, fumou, bebeu, teve vício, nenhum presta, todos é a derrota, a infelicidade de qualquer um que entrar nesse negócio” (MIR, mãe). Para essa familiar, o alcoolismo é visto como algo que leva uma pessoa à infelicidade, reiterando sua representação como uma perda, uma derrota e como uma droga, algo extremamente negativo. O alcoolismo é um castigo O alcoolismo é representado ainda como castigo: Primeiramente Deus, depois a Fazenda do Sol. Porque eu nunca pensava em passar dois meses do jeito que eu vinha, três meses sem beber. Passava três, quatro dias. Quando chegava o final de semana, parece que era um castigo mesmo. [...] Tá vendo aí o que eu fiz da minha vida? Mas se Deus quiser, Deus vai melhorar não só a minha vida como a de todos que tão aqui na Fazenda do Sol. (VAN, alcoo)

No discurso religioso, o castigo significa algo que vem para punir uma pessoa de algum mal que ela cometeu. Dessa forma, o alcoolismo é representado pelo entrevistado como uma punição de que a pessoa tenta se livrar e não consegue. A recuperação, nesse discurso, não é conseguida por méritos próprios, mas sim, por uma dádiva de Deus que, dentro do discurso religioso, é visto como aquele que só faz o bem e que tem o poder de mudar a vida. Portanto, tendo fé n’Ele, o entrevistado acredita em sua recuperação. É importante ressaltar, conforme já mencionado, que faziam parte do tratamento dos internos, dentre outras atividades, as missas proferidas pela Igreja Católica, das quais a família também participava. Além disso, a psicóloga que ali desenvolvia um trabalho de terapia de grupo era também católica e usava o discurso religioso nas reuniões com os internos, reforçando a idéia da recuperação como um dom oferecido por Deus. Na Fazenda do Sol, o próprio coordenador do grupo (“líder espiritual”) era um ex-dependente do álcool, que acreditava ter recebido a missão divina de trabalhar com os alcoolistas para ajudá-los em sua recuperação: “Olha, eu tô aqui porque foi uma longa história, eu acho que foi, foi coisa de Deus... Cheguei aqui como um enviado, né? Que recebi o chamado e vim, e esse chamado eu tô respondendo até hoje. Cada vez ele é maior” (ED, coordenador da Fazenda do Sol). Mediante o exposto, observamos que as representações trazem as marcas do discurso religioso veiculado na instituição. Nesse sentido, um alcoolista, ao representar o alcoolismo como uma doença mental, sugere, em seguida, que ele é coisa do diabo: O alcoólatra é aquela pessoa que ver o álcool em primeiro lugar, troca até Deus, troca até uma oração. [...] Aí é uma doença mental, você não tem controle não. Você tenta se livrar dela, muito difícil, parece que é coisa do diabo, que você quer se afastar, aí mais aparece, pode faltar comida, cachaça não, sempre aparece alguém pra te oferecer. (VAL, alcoo)

A Teoria das Representações Sociais define dois processos de formação das representações: a ancoragem e a objetivação. Jodelet (1988), principal colaboradora e continuadora do trabalho de

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Moscovici, conceitua o processo de objetivação como sendo o modo por meio do qual se faz concreto o abstrato, representado pela palavra que o materializa (intercâmbio entre percepção e conceito). O segundo processo, o de ancoragem, caracteriza-se pela integração cognitiva do objeto representado dentro do sistema de pensamento preexistente e das transformações derivadas desse sistema. Em outras palavras, ancorar significa incorporar o estranho ao familiar e, assim, tornar o objeto da representação conhecido do sujeito. Constitui-se em relação dialética com a objetivação, resultando na integração da novidade no sistema representativo, na interpretação da realidade e na orientação das condutas e relações sociais, expressando-as e contribuindo para sua constituição. Observamos, então, que o entrevistado incorpora o conceito de alcoolismo ao pensamento social existente sobre doença mental e sobre o demônio. Interessante perceber como o discurso sugere que a doença mental tanto é algo incontrolável quanto é coisa do diabo. Nesse sentido, adverte-nos Lima Júnior (2003, p.46): De acordo com Foucault (1975), o louco era considerado, até o advento de uma medicina positiva, como um possuído. E todas as histórias da Psiquiatria, até então, quiseram apontar, no louco da Idade Média e do Renascimento, um doente ignorado, preso no interior da rigorosa rede de significações religiosas e mágicas. Assim, teria sido necessário esperar a objetividade de um olhar médico sereno e, finalmente, científico para descobrir a deterioração da natureza lá onde se decifravam apenas perversões sobrenaturais.

Por outro lado, é importante sublinhar que, no discurso religioso, o diabo é visto como um tentador. Na seguinte passagem bíblica, vemos que Jesus, aquele que, segundo os preceitos religiosos, é representado como bom, foi tentado por ele: “A seguir, foi Jesus levado pelo espírito ao deserto, para ser tentado pelo diabo” (MATEUS, 4-1) (Bíblia Sagrada, 1993, p.634). Para o entrevistado VAL, o alcoolismo é visto como uma tentação da qual ele quer se livrar, mas isso é muito difícil. O que leva a supor que, para se livrar do alcoolismo, o alcoolista carece da ajuda de Deus. Mariz (1994) apud Campos (2005), em seu estudo sobre os pentecostais, assinala também que, para eles, o alcoolismo não é entendido propriamente como uma doença, mas identificado tanto às causas sociais como à influência do elemento sobrenatural, expresso pelo “inimigo oculto, o espírito maligno o demônio”. Fainzang (2007) sublinha que a ligação entre religião e grupo de bebedores é antiga. Para a autora, a religiosidade demonstrada por certos grupos é percebida por muitos observadores como uma necessidade para compensar a supressão do elemento alcoólico, passando-se assim de uma dependência a outra. Ao analisar os trabalhos dos AAs, a autora defende que os sujeitos se entregam, de fato, a um novo mestre: Deus. Em relação a esse aspecto, Campos (2005, p.77) afirma: O alcoólico anônimo deve ter um orientador ao qual deverá se entregar da mesma forma que se entregava ao álcool. Deus vem substituir sua antiga referência, o álcool. É esse novo “senhor” que passará a organizar a sua vida, fazendo perdurar a relação de dependência na qual o alcoólico está inscrito. (grifo do autor)

A marca do discurso religioso nas representações dos nossos entrevistados nos leva também a refletir sobre a seguinte consideração: as representações sociais refletem o contexto em que elas estão sendo veiculadas. Nesse sentido, Spink (1993, p.93) assevera: Sendo uma forma de conhecimento, é inevitável que o estudo das Representações Sociais esteja fortemente ancorado à esfera cognitiva. Mas, o conhecimento, nessa perspectiva, jamais poderia ser entendido apenas no nível individual. Sendo produto social, o conhecimento tem de ser remetido às condições sociais que o engendraram. Ou seja, só pode ser analisado tendo como contraponto o contexto social em que emerge, circula e se transforma.

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Não podemos perder de vista também que a destinatária do discurso - no caso, a entrevistadora - era estagiária da instituição. Portanto, representava-a, de certo modo. Talvez o discurso tenha sido construído com base nas expectativas religiosas, que os entrevistados acreditam ser as da instituição e aquelas expectativas que a agradam. Também não desconsideramos que o próprio fato de escolherem um tratamento com base na religião já denota uma opção religiosa. Vale ainda ressaltar que nenhum familiar representou o alcoolismo como doença mental ou como coisa do diabo.

O que os levou ao alcoolismo? De acordo com os estudiosos, os fatores que podem levar ao alcoolismo são variados, podendo ser de ordem biológica, psicológica, social ou, ainda, ter a contribuição de todos esses fatores. Para os entrevistados - tanto os familiares quanto os alcoolistas - os problemas vividos na família e as amizades foram os motivos principais. Entretanto, há aqueles que citam apenas as amizades, outros que se referem a problemas familiares, um que cita os problemas familiares e as amizades e, ainda, aqueles que mencionam o desemprego e as amizades como os fatores que os levaram ao alcoolismo. É importante assinalar que a maioria dos entrevistados não se baseia no modelo biomédico, ou seja, não atribui as causas do alcoolismo ao modelo biológico e fisiológico, mas formula as causas de sua dependência ligadas a um contexto sociocultural específico. Assim, um dos alcoolistas entrevistados acredita que o que o levou ao alcoolismo foram as amizades, conforme expressa este seu discurso: “Eu acho que foi muito pela amizade. Festinha. ‘Vamos ali numa festinha e tal’” (VAN, alcoo). É possível constatar que, segundo VAN, as amizades o influenciaram para sair, ir às festas, e assim, começar a beber até o ponto de tornar-se um alcoolista. Já para seu familiar, os fatores responsáveis por levá-lo ao alcoolismo teriam sido o desemprego e as amizades, conforme veremos mais adiante. No momento, vale ainda ressaltar que um familiar também menciona as amizades como sendo o fator responsável por levar seu filho ao alcoolismo: Quem levou mais ele ao alcoolismo, esses cabras já tão tudo debaixo do chão, não existem mais. Foi as amizades.[...] Meu rapaz mais velho não me dá trabalho, e esse só me deu porque se envolveu com essas mau amizades, porque se não tivesse se envolvido, ele era igual ao rapaz mais velho, não tinha entrado no álcool. (MIR, mãe)

Observa-se que, para essa informante, seu filho jamais teria entrado no alcoolismo por vontade própria. Ela afirma que, se não fosse a influência dos amigos, seu filho não teria se tornado um alcoolista. Interessante registrar que o alcoolista entrevistado, filho dessa senhora, confirma que foram as amizades que o levaram ao vício, como podemos constatar na fala: As amizades e até meu pai também, porque ele saía pra beber e me levava junto, pra eu levar ele pra casa. Então eu comecei nessa luta aos nove anos de idade, ele me levava pra os barzinhos e a gente jogava uma sinuquinha, e depois ele vinha bêbado e eu trazendo ele, e eu ficava curioso pra saber como era, né? Então uma vez eu fui pra um aniversário que teve a bebida, [...] aí bebi muito [...] e gostei do clima que ela traz, fica mais agitado. (GEF, alcoo)

Podemos notar que não só as amizades são citadas por GEF como responsáveis por torná-lo um dependente, mas também a influência da figura paterna. Por meio do pai, ele começou a ter contato com ambientes onde existia a bebida, e isso lhe despertou curiosidade, conseqüentemente, levando-o a beber. Não podemos deixar de enfatizar que os efeitos trazidos pelo álcool - os aspectos positivos do álcool, como já explicitamos - são ressaltados como aquilo que o estimulava a beber mais. A influência familiar aparece em outros discursos. Nesse sentido, uma entrevistada associa o alcoolismo, na vida de seu pai, ao fato de ele ter tido influência da própria família para beber: “Então eu acho que foi muito por influência de familiares, meu tio é alcoólatra, meu avô também é alcoólatra, o pai da minha mãe também foi alcoólatra, é de família isso, sabe?” (ELI, filha). COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Nessa seqüência discursiva, quando a entrevistada diz: “É de família isso”, reforça o que já dissera em outro momento de sua entrevista, citado anteriormente, e que nos leva a supor que, para ela, o alcoolismo seria algo hereditário, ou seja, passado em sua família de geração em geração. Há que se ressaltar que nenhum alcoolista associa o alcoolismo apenas à influência de familiares, nem o próprio parente dessa entrevistada. Enquanto ELI atribui o fato de seu pai ter-se tornado um alcoolista a um fator externo, ele é o único de todos os entrevistados que assume a responsabilidade de ter se tornado um alcoolista por si mesmo, segundo confirma seu discurso: “Rapaz, eu acho que foi eu ter começado cedo demais, não me cuidei, aí pronto, me tornei um dependente do álcool.” (EVA, alcoo). Em outro momento do discurso do entrevistado acima, ele diz ter começado a beber aos 15 anos. Para Bucher (1992), o jovem, ao buscar a droga, pode estar procurando provar que é alguém, que tem um valor e que, além de ter uma existência própria, é independente. No estudo de Brasileiro, Brasileiro e Ramalho (1999), os autores defendem que a adolescência seria a fase na qual o sujeito experiencia a transição ao comportamento adulto, estando assim suscetível ao consumo abusivo do álcool. Por outro lado, o que mais nos chamou a atenção no discurso de EVA foi que ele não atribui o fato de ter se tornado um alcoolista a fatores externos. Fainzang (2007) defende que há uma diferença nos discursos da causalidade alcoólica no que concerne ao alcoolismo dos homens em relação ao alcoolismo das mulheres. Nas mulheres, há uma tendência a priorizar causas psicológicas, enquanto, nos homens, há uma evocação às causas sociológicas (transmissão, pressão social, más condições de trabalho). Assim, a causa do alcoolismo masculino se situa, então, fora do bebedor (ela lhe é exógena), enquanto ela está dentro da mulher, intrinsecamente frágil (ela lhe é endógena). A autora explica por que isso acontece ao considerar que É preciso encontrar uma razão psicológica (depressão, fragilidade) para a mulher em quem a alcoolização é estigmatizada, mas não deve haver razão psicológica alguma (sendo necessário evocar o hábito ou a transmissão) no caso do homem, em quem a alcoolização é valorizada, na medida em que ela atesta ao mesmo tempo a sua força física – capaz de “agüentar” o álcool – e a convivência na qual está inserida. (Fainzang, 2007, p.42, grifo da autora)

O alcoolismo, nas representações dos nossos entrevistados, ainda foi associado à morte da mãe, como mostra a seguinte fala: “A perda da minha mãe, porque eu perdi ela com oito anos de idade, fui morar com o meu pai, com 14 anos saí de casa, sabe? Aí eu comecei a ficar desgostoso, sabe?” (AG, alcoo). Para esse entrevistado, a perda da mãe trouxe um sentimento de desgosto, desencadeando outros conflitos, o que o fez tornar-se um alcoolista. Supomos que, para ele, o álcool seria representado como um bálsamo para os problemas, como encontramos em outras entrevistas. Portanto o consumo do álcool é representado como aquilo que gera esquecimento dos acontecimentos ruins da vida. Nenhum familiar atribui o alcoolismo à perda da mãe. O irmão desse entrevistado, por exemplo, cita as amizades como sendo o fator responsável por levar seu irmão ao alcoolismo: “Amizade, né? Porque como a gente chama, no linguajar da gente, aquelas almas sebosas, né? Porque antes ele era um menino ótimo, [...] aí depois que começou a se juntar com as amizades, aí começou a beber.” (SEB, irmão). A expressão “alma sebosa” nos remete para a idéia de “alma impura”. O discurso de SEB ainda sugere que, por causa dos amigos, o irmão deixa de ser uma “pessoa ótima”, começa a beber. Nesse sentido, vale sublinhar que o irmão do entrevistado constrói uma imagem do alcoolista como uma pessoa irresponsável, desclassificada, “[...] um homem que não é homem, que nem o povo diz assim: ‘é um cachorro’.” (AG, alcoo). Já outro entrevistado atribui à separação dos pais o fator que o levou ao alcoolismo, pois o conflito vivido por ele, por conta da separação, fê-lo tornar-se independente antes da hora, tendo de buscar amigos (de bar) para desabafar os problemas:

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Primeiro foi a controvérsia na minha família que aí atrapalhou tudo [...] Com esse problema, a gente sem tá preparado, teve que se separar, uns irmãos dos outros, pai e mãe, aí cada um teve que ficar independente, aí onde eu procurei amizades mais pra desabafar dos problemas foi com os amigos de bar, o motivo principal é mais ou menos esse aí, a separação da família. (VAL, alcoo)

Analisando essa seqüência, verificamos que ela nos sugere que o entrevistado, com a separação dos pais, deparou-se repentinamente com alguns problemas e recorreu aos amigos de bar para buscar ajuda. É possível constatar, mais uma vez, a representação de que as amizades levam o indivíduo ao alcoolismo. A irmã desse entrevistado também assinala que seu irmão se tornou um alcoolista por causa das amizades: “Talvez tenha sido falta de trabalho e de oportunidades, acompanhado da influência de amigos. Ele saía pra beber com os amigos e daí começou a vender tudo dentro de casa pra beber, vendeu a casa e isso fez ele entrar cada vez mais no alcoolismo.” (RUZ, irmã). Verificamos, com base nesse discurso, que, apesar de a falta de trabalho ser considerada um dos aspectos responsáveis pelo alcoolismo, a influência das amizades também é ressaltada. Não raro, a família, como uma forma de se defender da possível culpa que sentiria ao se considerar responsável pelas escolhas de seus membros, transfere essa culpa para os outros, geralmente os amigos. Esse tipo de argumento protege a instituição social família de quaisquer críticas sobre o seu papel fundamental na socialização ideal esperada (Reis, 1992). Outra familiar também se refere ao desemprego como sendo o fator que levou seu parente ao alcoolismo: Foi o desemprego. Ele tava desempregado, e você sabe, hoje em dia é comum a pessoa tá desempregado. E tem esposa que quando o marido tá desempregado, ela tando trabalhando, em vez de ajudar, ela quer é destruir. Foi o que aconteceu na situação do casamento dele. Quando ele viu que não conseguia mesmo emprego, [...] se juntou com os colegas e começou a beber mesmo, foi o desemprego que fez ele entrar nessa depressão e nesse alcoolismo. (JOA, irmã)

Percebemos, nesse discurso, que o desemprego aparece como algo que veio desencadear problemas no casamento do irmão da entrevistada, gerando nele uma situação que acabou levando-o à depressão e ao alcoolismo. Então, o alcoolismo é desencadeado, também, por questões sociais. No entanto, é importante ressaltar que a esposa e as amizades também influenciaram o irmão da entrevistada a tornar-se um alcoolista. As causas do alcoolismo são, portanto, remetidas, mais uma vez, aos fatores externos. Como vimos anteriormente, apenas um dos entrevistados atribui a si mesmo a responsabilidade por se tornar um alcoolista. Não estamos querendo enaltecer a responsabilização/culpabilização individual, pois sabemos dos inúmeros fatores que interferem na construção da identidade dos indivíduos. Mas não podemos perder de vista que representar esse vício como algo advindo de fatores externos, sem se responsabilizar por esse processo, exime o alcoolista da sua participação no processo de aquisição do vício de beber, reforçando a necessidade da ajuda de Deus para deixá-lo. Assim, como adverte Campos (2004), o alcoolista, assumindo a condição de passividade frente ao alcoolismo, exime-se da culpa por ter ingressado nesse mundo e se sente impotente, necessitando, pois, de procurar ajuda.

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Considerações finais Por meio da análise das entrevistas realizadas, constatamos que o alcoolismo foi representado como doença pela maioria dos entrevistados. No entanto, essa representação ora foi associada à tristeza/ solidão, ora a um mal incurável, ora a uma doença grave. Foi considerado ainda como: algo que provoca perdas, o ato de beber em excesso, dependência hereditária, castigo, coisa do diabo. Se, de um lado, o alcoolismo é representado como uma “doença do indivíduo”, de outro, é uma “doença da família”, pois interfere diretamente nas relações familiares. Verificamos, ainda, que o discurso dos AAs, que proferem palestras na Fazenda do Sol, influencia as representações, assim como o discurso religioso veiculado pela instituição, por meio da Igreja Católica. No que se refere aos fatores que os levaram à dependência química, constatamos que apenas um alcoolista assume total responsabilidade pela dependência. Todos os demais, alcoolistas e familiares, atribuem a dependência química a algum fator externo: a problemas vividos na família e/ou às amizades, havendo, também, quem se refira ao desemprego. O estudo das representações sociais nos auxilia a encontrar pistas para entender como os indivíduos pensam e orientam as suas ações. Assim, temos elementos para refletir e encaminhar as nossas intervenções que, a nosso ver, devem privilegiar a autonomia, o poder de decisão, a criatividade e a participação dos atores sociais envolvidos. Então, considerar os alcoolistas como pessoas com todas as suas potencialidades, e não apenas como alcoolistas/dependentes, que necessitam de ajuda, parecenos um caminho promissor. O questionamento daquelas estratégias terapêuticas que induzem à substituição da dependência química pela “dependência divina” é outro aspecto que deve ser privilegiado nas discussões daqueles que se ocupam dessa temática e dos profissionais que estão envolvidos com as próprias políticas públicas de saúde.

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SANTOS, M.S.D.; VELÔSO, T.M.G. Alcoholismo: representaciones sociales elaboradas por alcoholizados en tratamiento y por sus familiares. Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.12, n.26, p.619-34, jul./set. 2008. Este artículo presenta y analiza los resultados de una investigación cualitativa cuyo objetivo principal fue comparar las representaciones sociales sobre el alcoholismo elaboradas por alcoholizados en tratamiento en el Centro de Recuperación Fazenda do Sol e en el estado brasileño de Paraiba con las de sus familiares. Fueron realizadas 12 entrevistas semiestructuradas – seis con alcoholizados y seis con familiares. Las entrevistas fueron sometidas al análisis temático propuesto por Bardin. De modo general, los entrevistados representaron el alcoholismo como una enfermedad y, para recuperarse de ella, el individuo necesita ayuda. Se ponen de relieve, también, representaciones del alcoholismo como algo que provoca pérdidas; como el acto de beber en exceso; como una dependencia hereditaria; como un castigo; como algo del demonio. Respecto a los factores que los llevaron a la dependencia química, la mayoría de los entrevistados atribuyen la dependencia a problemas vividos en la família y a amistades.

Palabras clave: Representación social. Alcoholismo. Alcoholizados en tratamiento.

Recebido em 08/09/07. Aprovado em 25/04/08.

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artigos

A educação na perspectiva marxista: uma abordagem baseada em Marx e Gramsci

Amarilio Ferreira Jr.1 Marisa Bittar2

FERREIRA JR., A.; BITTAR, M. Education in a marxist perspective: an approach based on Marx and Gramsci. Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.12, n.26, p.635-46, jul./set. 2008. The objective of this article is to discuss the humanistic principles of education inherent to Marx’s and Gramsci’s writing. According to both authors, the real conditions of existence organized by men for their subsistence provide the premises on which humanistic education is based. Indeed, men engage in certain kinds of social relations of production that play a double transformative role of humanizing nature and men themselves at the same time. In a society founded on the principle of private propriety of the means of production, this process of humanization is interrupted by man’s alienation with respect to the objects he himself produces. In sum the complete man (omnilateral), educated in the arts of doing (non-alienated labor) and speaking (emancipation policy), will only emerge historically in socialist society, marked by the absence of private propriety of the means of production. However, the premises for his emergence have already been laid down within the sphere of capitalist society.

Keywords: Marxism. Education. Work.

Explicitam-se os princípios humanistas da educação inerentes às obras de Marx e Gramsci. Os fundamentos de uma educação humanista em ambos os autores têm como premissas as condições reais de existência que os próprios homens organizam para se manterem vivos. Assim, os homens travam determinados tipos de relações sociais de produção que desempenham um duplo papel transformador: humanizar a natureza e os próprios homens a um só tempo. Na sociedade fundada no princípio da propriedade privada dos meios de produção, esse processo de humanização fica interrompido pela alienação que o homem manifesta em relação aos próprios objetos produzidos. Em síntese: o homem completo (omnilateral), educado nas artes do fazer (trabalho não alienado) e do falar (política de emancipação), cujas premissas já estão postas no âmbito da sociedade capitalista, só se realizará historicamente na sociedade socialista, marcada pela ausência da propriedade privada dos meios de produção.

Palavras-chave: Marxismo. Educação. Trabalho.

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Historiador e Pedagogo. Departamento de Educação e Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal de São Carlos. Rua XV de Novembro, 1740 - apto. 131 São Carlos, SP 13.560-240 ferreira@ufscar.br 2 Historiadora. Departamento de Educação e Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal de São Carlos.

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Introdução Este artigo tem como objetivo o estudo da dimensão humanista que a educação assume no âmbito da concepção marxista de mundo. Perspectiva humanista da educação que se manifesta em dois momentos distintos, mas dialeticamente interligados: (a) quando faz a crítica da alienação produzida pelo processo educativo engendrado no contexto de uma sociedade fundada no primado da propriedade privada dos meios de produção, e cujo principal resultado é a mutilação do homem; (b) e, a um só tempo, quando propugna a possibilidade da omnilateralidade humana no âmbito da sociedade revolucionada com base nos pressupostos econômicos, sociais, políticos e culturais defendidos pelo socialismo. Além disso, parte da premissa de que a educação tem, como um dos seus corolários, o processo de produção e reprodução de conhecimentos inerentes às mediações necessárias à práxis que resulta na humanização dos homens; e, por conseqüência, o conhecimento clássico acumulado historicamente pela humanidade é tomado como meio essencial e predominante da ação educativa. Assim, o conhecimento humano – científico, tecnológico e cultural – constitui-se em elemento superestrutural engendrado nas múltiplas e contraditórias relações sociais que os homens estabelecem entre si e com a natureza durante o processo de realização das suas condições materiais e espirituais de existência. Nesta perspectiva, o conhecimento, como representação abstrata da realidade concreta do mundo, expressa as duas dimensões da práxis social dos homens, isto é, a relação dialética entre teoria e prática, tal como afirmaram Marx e Engels (1980, p.25): A produção de idéias, de representações e da consciência está em primeiro lugar direta e intimamente ligada à atividade material e ao comércio material dos homens; é a linguagem da vida real. As representações, o pensamento, o intercâmbio intelectual dos homens surge aqui como emanação direta de seu comportamento material.

Assim sendo, existe uma conexão estreita entre o conhecimento e as relações de produção materiais desenvolvidas historicamente pelas formações socioeconômicas. Entretanto, o conhecimento, uma vez gerado, guarda uma relativa autonomia em relação ao contexto histórico formador; e, além disso, só se torna parte constitutiva do patrimônio universal da humanidade quando é capaz de apreender e explicar, na forma de síntese, o movimento histórico antinômico e complexo do seu tempo, assim como formulou Gramsci (1999, p.141): É verdade que uma época histórica e uma determinada sociedade são representadas, sobretudo, pela média dos intelectuais e, conseqüentemente, pelos medíocres; mas a ideologia difusa, de massa, deve ser diferenciada das obras científicas, das grandes sínteses filosóficas, que são, ademais, as suas verdadeiras chaves de interpretação; tais sínteses devem ser nitidamente superadas, ou negativamente demonstrada a sua falta de fundamento, ou positivamente, contrapondo-lhes sínteses filosóficas de maior importância e significação.

Dessa forma, o conhecimento acumulado historicamente pelo processo de desenvolvimento da humanidade sofre um crivo seletivo por parte das agências societárias de caráter ideológico. Uma universidade, por exemplo, opera o conhecimento num duplo sentido: de um lado, efetiva um ordenamento com o propósito de reproduzi-lo por meio da educação de novas gerações de homens; do outro, explicita a própria lógica epistemológica da construção de tais conhecimentos, ou seja, padroniza métodos teóricos de produção de novos conhecimentos. Desde os seus primórdios, nos marcos das sociedades greco-romanas, a dita civilização ocidental criou a escola como locus social encarregado de sistematizar tanto a reprodução quanto a produção do conhecimento, tornando-se o principal mecanismo para realizar o processo de transmissão do conhecimento entre as gerações dos homens. Ao longo da História, a educação foi pensada também numa outra dimensão, conforme percebemos em Tolstói (1988), que, de certa maneira, foi um precursor das idéias sobre o ativismo pedagógico. Ele escreveu, já na velhice, assim: 636

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Meditei muito sobre a educação. Há questões em que cheguei a conclusões duvidosas, mas também há questões sobre as quais as conclusões a que cheguei são definitivas e não me sinto capaz de as mudar ou de lhes acrescentar o que quer que seja. A educação só é uma tarefa complexa e difícil se quisermos educar os nossos filhos ou outra pessoa qualquer sem nos educarmos a nós próprios. Se compreendermos que só através de nós podemos educar os outros, desaparecerá a questão da educação e restará uma questão da vida: como devemos viver? (Tolstoi, 1988, p.235)

Nessa perspectiva, a instrução acabou por se constituir num dos ramos do próprio conhecimento clássico acumulado pela práxis social dos homens e, por conseguinte, não é de todo apropriado estabelecer uma separação mecânica entre educação e instrução. Aliás, Gramsci (2000), criticando a reforma educacional proposta pelo fascismo italiano, que distinguia os tradicionais estudos humanísticos (educação) da aprendizagem profissional especializada (instrução), argumentava que: Não é completamente exato que a instrução não seja também educação: a insistência exagerada nesta distinção foi um grave erro da pedagogia idealista, cujos efeitos já se vêem na escola reorganizada por esta pedagogia. Para que a instrução não fosse igualmente educação, seria preciso que o discente fosse uma mera passividade, um ‘recipiente mecânico’ de noções abstratas, o que é absurdo, além de ser ‘abstratamente’ negado pelos defensores da pura educatividade precisamente contra a mera instrução mecanicista. (Gramsci, 2000, p.43-44)

A distinção que se estabeleceu entre educação e instrução traz em si também uma concepção elitista da escola, na medida em que impõe uma separação mecânica entre formação propedêutica e formação profissional. No âmbito da história da educação, essa dicotomia tomou o seguinte sentido: para os filhos das elites, a escola de educação humanística geral, que tem como escopo final o ensino superior configurado nas artes liberais. Já para os filhos dos trabalhadores, o ensino elementar seguido da formação nas artes mecânicas. Com base nessa concepção educativa, argumenta-se que o acesso de todas as crianças à escola tradicional implicaria, inexoravelmente, o rebaixamento do nível de qualidade do ensino, isto é, a escola seria gradativamente colocada no mesmo plano da “cultura” da multidão popular. Ou como teria dito, de outra forma, o próprio Gramsci (2000, p.33): “a divisão fundamental da escola em clássica e profissional era um esquema racional: a escola profissional destinava-se às classes instrumentais, enquanto a clássica destinava-se às classes dominantes e aos intelectuais”. Já Manacorda, intérprete de Gramsci, em seu livro História da Educação, argumenta que este sempre foi, em qualquer época, o medo dos conservadores, ou seja, o de que “o excesso numérico” pudesse mecanizar e levar a escola gradativamente a se rebaixar “ao nível das multidões”; e lembra “que este risco subsiste somente se não se criarem efetivamente as condições para que a difusão da instrução seja também elevação” (Manacorda, 1989, p.331). A propósito, ele nos remete à Grécia antiga ao evocar Pitágoras, para quem a educação, como condição superior humana, é um bem que se transmite sem se perder, ou seja, aquele que o difunde continua sendo portador do conhecimento que socializou.

A concepção de educação em Marx e Gramsci O advento da sociedade capitalista e sua consolidação na segunda metade do século XIX mereceram a análise de Marx e Engels que, no Manifesto Comunista (1848), expuseram os avanços e as contradições do sistema econômico e social. Nesta obra clássica que, aliás, inaugura a forma interpretativa da síntese histórica globalizante, seus autores apontam as transformações revolucionárias protagonizadas pela burguesia em ascensão, mas denunciam as condições de exploração a que estavam submetidos os trabalhadores fabris. A partir de então, empenhados na compreensão das contradições da sociedade capitalista e na sua superação, as suas propostas políticas objetivaram uma estratégia global capaz de colocar termo ao próprio capitalismo. Nesta perspectiva, a educação não foi o tema central de COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Marx e Engels, mas aparece nas suas preocupações sobre a construção do homem plenamente desenvolvido em suas potencialidades físicas e espirituais, não subjugado ao domínio do capital. Contudo, é o próprio locus da produção capitalista, a grande indústria, que permitiu a Marx e a Engels a formulação de uma teoria social capaz de formular a superação das condições que mutilavam e impediam a plena formação do homem. Partiram dos próprios trabalhadores as primeiras reivindicações que extrapolassem a formação meramente manual, segundo o que lemos nas resoluções aprovadas pelos trabalhadores norte-americanos reunidos no congresso geral de Baltimore em agosto de 1866: Nós, os trabalhadores de Dunkirk, declaramos que é demasiadamente longa a jornada de trabalho exigida no presente sistema e que, longe de deixar ao trabalhador tempo para repouso e educação, o reduz à condição de servo, apenas ligeiramente melhor que a de escravo. Por isso, resolvemos que 8 horas bastam para uma jornada de trabalho e devem ser legalmente reconhecidas como suficientes. (Marx, Engels apud Marx, 1984, p.343)

Juntamente com a jornada de oito horas diárias de trabalho, o movimento sindical operário conquistou também uma legislação fabril proibitiva do trabalho infantil que não estivesse acompanhado de um atestado de freqüência escolar. Foi na esteira da combinação entre escolaridade e trabalho que Marx formulou o cerne da sua concepção educacional, ou seja, o entendimento de que era possível, por meio da educação, aliada à práxis social, formar o homem novo, consciente das suas potencialidades históricas, que embrionariamente já se manifestava nos marcos da própria Revolução Industrial. O esboço dessa pedagogia ficou consubstanciado no seguinte excerto de O Capital: Do sistema fabril, conforme expõe pormenorizadamente Robert Owen, brotou o germe da educação do futuro que conjugará o trabalho produtivo de todos os meninos além de uma certa idade com o ensino e a ginástica, constituindo-se em método de elevar a produção social e de único meio de produzir seres humanos plenamente desenvolvidos. (Marx, 1984, p.554)

Precisamente, qual é o significado dessa concepção pedagógica da educação? Fundamenta-se em estabelecer a ligação orgânica entre a prática e a teoria. Além disso, temos de levar em consideração o fato de que, na obra O Capital, o objeto de estudo de Marx foi a sociedade capitalista das fábricas de chaminés, isto é, um determinado nível do desenvolvimento das forças produtivas e das relações sociais de produção capitalista, num dado período da sociedade capitalista. Nessa fase, ela se caracterizava por certo grau de avanço tecnológico das forças produtivas (trabalhadores, máquinas, ferramentas e matérias-primas), em que a produção das riquezas materiais se dava pela interação da força física dos operários com o trabalho mecânico das máquinas. No âmbito desse contexto, para a qualificação profissional dos operários, bastava a escola pública, também ela uma legítima filha do tecido societário burguês, que possibilitava a capacidade de ler, escrever e efetuar as quatro operações matemáticas. Eis aí, portanto, a proposta mínima de educação tornada possível, pela sociedade burguesa, aos trabalhadores fabris. Já nas primeiras quadras do século XX, Gramsci (2000), retomando o sentido de prática e teoria no âmago da concepção marxista de educação, criticou a possibilidade de manifestação plena deste preceito no âmbito da sociedade capitalista: A crise terá uma solução que, racionalmente, deveria seguir esta linha: escola única inicial de cultura geral, humanista, formativa, que equilibre equanimemente o desenvolvimento da capacidade de trabalhar manualmente (tecnicamente, industrialmente) e o desenvolvimento das capacidades de trabalho intelectual. Deste tipo de escola única, através de repetidas experiências de orientação profissional, passar-se-á a uma das escolas especializadas ou ao trabalho produtivo. (Gramsci, 2000, p.33-4)

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Com a atual etapa do desenvolvimento das forças produtivas atingida pelas relações capitalistas de produção, ou seja, a fase da revolução técnico-científica, as fábricas de chaminés estão, paulatinamente, dando lugar a um novo locus do trabalho. Nele, ao contrário da grande indústria capitalista do século XIX, a qualificação dos trabalhadores se coloca como questão fundamental, pois, não basta apenas saber ler, escrever e realizar as quatro operações matemáticas. Ao mesmo tempo, a escola pública, tal como se desenvolveu na sociedade burguesa, não conseguiu realizar a relação efetiva entre educação escolar, formação tecnológica e ginástica, tal como propugnou Marx, isto é, a combinação da formação intelectual e física com o trabalho produtivo. Talvez, hoje, ela devesse ser mais requisitada no sentido que Gramsci previa, ou seja, com forte acento na formação geral, humanista e intelectual. Atualmente, porém, ao mesmo tempo em que vivemos a chamada era da “sociedade informática” que suscitou perspectivas otimistas sobre a possibilidade de conquista do tempo livre, ou seja, a possibilidade de o ser humano finalmente livrar-se da “maldição de Sísifo” - que simboliza a repetição, o eterno recomeço, e a prisão ao trabalho pesado -, continuamos a viver sob graves desigualdades socioeconômicas que vitimam a maior parte da sociedade. O agravante, além disso, é o domínio do capital sobre todas as relações sociais em escala jamais vivida pela humanidade, coisificando os próprios homens, o que exige de nós reflexões urgentes e cada vez mais complexas, inclusive nas salas de aula e na convivência com os nossos alunos, pois a escola, neste momento de reestruturação produtiva do capitalismo, está se ajustando aos ditames do mercado e se convertendo, cada vez mais, no espaço do não-conhecimento e do esvaziamento do seu sentido. E, nesse contexto, é necessário que haja uma ação de resistência à tendência dominante destinada a fazer da escola o locus da reflexão, da crítica e da contra-hegemonia. Ademais, reportamo-nos a Aristóteles (384-322 a.C.) que, como sabemos, era uma das referências de Marx. O filósofo grego, na esteira da concepção homérica de educação, também defendia a concepção pedagógica fundada nas artes do falar e do fazer como processo formativo do cidadão que decidia o destino político da polis nas assembléias da ágora. Ou seja, artes, ensinadas a um só tempo, que formavam o homem omnilateral, mas que eram potencialmente exercidas em idades distintas durante a vida do cidadão: na juventude, preferencialmente se desenvolvia a arte do fazer (a guerra), como atividade responsável pela garantia da base material de sustentação da sociedade; e, na velhice, praticava-se a arte do falar, isto é, de bem governar a polis. Aristóteles, porém, foi um dos primeiros pensadores a projetar a idéia de uma escola de Estado e a criticar a educação a cargo específico da família, entendendo que só a polis poderia educar para o bem comum, embora restringisse esse entendimento aos cidadãos. Quanto à possibilidade de se realizar a utopia do trabalho mecânico inteligente, como forma de substituição dos escravos que realizavam as chamadas “artes vulgares”, afirmou o seguinte: Na verdade, se cada instrumento pudesse executar a sua missão obedecendo a ordens, ou percebendo antecipadamente o que lhe cumpre fazer, como fala o poeta, ‘entram como autômatos nas reuniões dos deuses”, se, então, as lançadeiras tecessem e as palhetas tocassem cítaras por si mesmas, os construtores não teriam necessidade de auxiliares e os senhores não necessitariam de escravos. (Aristóteles, 1988, p.18)

Já Marx e Engels não pensaram na libertação de uma determinada classe social, mas de todas. Projetaram a utopia de um mundo baseado na igualdade e no qual não haveria uma classe explorada, submetida ao trabalho manual; mas, ao contrário, uma sociedade na qual todos pudessem aperfeiçoarse no campo em que lhes aprouvesse, não tendo, por isto, uma esfera de atividade exclusiva, mas onde fosse possível “fazer hoje uma coisa, amanhã outra, caçar de manhã, pescar à tarde, pastorear à noite, fazer crítica depois da refeição, e tudo isto a meu bel-prazer, sem por isso me tornar exclusivamente caçador, pescador ou crítico” (Marx, Engels, 1980, p.41). O ideal de um mundo e de uma educação baseada no princípio da plena realização humana ainda é utópico, mas, como escreveu Manacorda, somente o homem quebrou os vínculos da unilateralidade natural e inventou a possibilidade de tornar-se outro e melhor, e até omnilateral. Segundo ele, se esta COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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possibilidade, dada apenas pela vida em sociedade, foi negada pela própria sociedade à maioria, ou melhor, negada a todos em menor ou maior grau, o imperativo categórico da educação do homem pode ser assim enunciado: “Apesar de o homem lhe parecer, por natureza e de fato, unilateral, eduque-o com todo empenho em qualquer parte do mundo para que se torne omnilateral” (Manacorda, 1989, p.361).

A concepção de homem omnilateral em Marx e Engels Assistimos à passagem do século XX para o XXI em meio à crise provocada pelo fim do “socialismo real” e a reestruturação produtiva do capitalismo, que desencadeou uma onda de ataques ideológicos aos chamados “velhos esquemas interpretativos”, valorizando, assim, as ditas “novas teorias pósmodernas” de construção do conhecimento, bem como propagando a “morte do marxismo”. Ou seja, presenciamos o reduzido valor dos “produtos” marxistas no “mercado de bens simbólicos”, fartamente alimentado pelos “novos paradigmas”. Ao mesmo tempo, persistem as críticas que revelavam desconhecimento da obra de Marx e Engels, entre elas, por exemplo, a de que o marxismo seria antihumanista por haver substituído o homem por “forças produtivas e relações de produção”. Entretanto, neste início do novo século em que se fala tanto da redescoberta do valor do indivíduo, há algo mais atual do que o lugar que Marx reservou para o indivíduo na sua concepção de emancipação humana? Foi com Marx que aprendemos que o capitalismo é um sistema no qual o processo de produção domina os homens, e não os homens o processo. O humanismo de Marx em O Capital não é um simples protesto moral: ele rasga o véu mítico da reificação, decifra o “hieróglifo” do valor, apreende a realidade social (humana) oculta pela opacidade do mercado. Nessa obra em que dissecou o processo de degradação física e intelectual dos trabalhadores, o capítulo sobre o fetichismo é a chave para a compreensão do seu humanismo. Mas será que os “novos críticos” a leram? Quanto ao conceito de homem, remetemo-nos aqui aos textos que melhor expressam os princípios que guiam a antropologia e também a pedagogia de Marx: a) o papel central e dialético do trabalho; b) a idéia de homem omnilateral (na qual harmoniza “tempo de trabalho” e “tempo livre”). Para Marx e Engels, não é possível falar de educação sem referir-se à realidade socioeconômica e à luta de classes que a caracteriza e sustenta. Desse modo, a educação perde todo o aspecto idealista e neutro, bem como rejeita toda reminiscência romântica antiindustrial. Esse modelo interpretativo introduziu duas propostas consideradas revolucionárias: a) a referência ao trabalho produtivo, que se punha em contraste com toda uma tradição educativa intelectualista e espiritualista; b) a afirmação de uma constante relação entre educação e sociedade. No conjunto das obras de Marx e Engels, esses textos apresentam com coerência, num intervalo de trinta anos, as suas idéias sobre a formação do homem, que coincidem com a história do movimento operário. Isto ocorre na redação de três programas políticos: a) para o primeiro movimento histórico que assume o nome de Partido Comunista (1847-1848); b) para a primeira Associação Internacional dos Trabalhadores (1866); c) para o primeiro Partido Unitário Operário na Alemanha (1875). Neste artigo apenas esboçaremos seus traços principais. Já em 1848, no Manifesto do Partido Comunista, Marx e Engels propuseram a escola politécnica: “Educação pública e gratuita de todas as crianças, abolição do trabalho das crianças nas fábricas, tal como é praticado hoje. Combinação da educação com a produção material etc.” (Marx, Engels, 1982, p.125). Vê-se que, desde o início de sua formulação, o marxismo tem como princípio o papel do trabalho na transformação social e pleno desenvolvimento humano. Mais de uma vez, Marx chamou a atenção para este aspecto essencial de sua filosofia, como na crítica que fez ao programa partidário aprovado pelo Partido na cidade de Gotha (1875), quando abordou a questão da seguinte maneira: “O parágrafo sobre as escolas deveria exigir, pelo menos, escolas técnicas (teóricas e práticas), combinadas com a escola primária” (Marx, 1985, p.27). Ainda na Crítica ao Programa de Gotha, posiciona-se contrário a uma “educação popular a cargo do Estado”, afirmando:

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Isso de educação popular a cargo do Estado é completamente inadmissível. Uma coisa é determinar, por meio de uma lei geral, os recursos para as escolas públicas, as condições de capacitação do pessoal docente, as matérias de ensino, etc, e velar pelo cumprimento destas prescrições legais mediante inspetores [...] outra coisa completamente diferente é designar o Estado como educador do povo! Longe disto, o que deve ser feito é subtrair a escola a toda influência por parte do governo e da Igreja [...]. (Marx, 1985, p.27)

Aqui fica evidente a distinção entre o Estado garantir o funcionamento das escolas e ser o educador, além da emancipação simultânea do homem perante a Igreja e o Estado, tese mais do que atual. Já nas Instruções aos delegados do primeiro Congresso da Associação Internacional de Trabalhadores (Genebra, 1866), Marx, além de reafirmar que todo adulto deve trabalhar tanto com o cérebro quanto com as mãos, explicita que “por ensino compreendemos três coisas: ensino intelectual; físico; e tecnológico” (Marx, 1983, p.83-4). Mas, a efetiva materialização da educação assentada nessas três dimensões do ensino só pode ser colocada em prática com a conquista do poder político pelos trabalhadores, como se lê: Se a legislação sobre as fábricas, que constitui a primeira concessão arrancada com grande esforço ao capital, combina unicamente o ensino elementar com o trabalho de fábrica, não há dúvida que a inevitável conquista do poder político pela classe trabalhadora trará a adoção do ensino tecnológico, teórico e prático, nas escolas dos trabalhadores. (Marx, 1984, p.559)

Ainda em O Capital, Marx enfatiza a idéia sobre a superação da unilateralização do homem pela omnilateralização, mostrando que a propriedade privada tornou o homem obtuso e unilateral. A divisão do trabalho cria unilateralidade e sob esse signo, precisamente, colocam-se todas as determinações negativas, do mesmo modo que, sob o signo oposto da omnilateralidade, colocam-se todas as perspectivas de humanização. Mas que sentido tem a omnilateralidade em Marx e Engels? O conceito, como não poderia deixar de ser, está ligado ao de trabalho, que é uma das categorias fundamentais do materialismo histórico, ocupando, por conseguinte, lugar central na proposta pedagógica marxiana. Distintamente da concepção hegeliana, Marx não vê o trabalho apenas pelo seu aspecto positivo. Hegel, escreve ele nos Manuscritos de 1844, “se coloca no ponto de vista dos modernos economistas nacionais. Ele compreende o trabalho como a essência, como a essência do homem que se afirma; ele vê somente o lado positivo do trabalho, não o seu [lado] negativo” (Marx, 2004, p.124). Sendo a essência subjetiva da propriedade privada no capitalismo, aparece ao trabalhador como propriedade de outro, alheia a ele. Na obra citada, Marx chama a atenção para o problema da relação do trabalhador com a produção, assinalando que a alienação não consiste apenas na sua relação com os produtos de seu trabalho, mas também no próprio ato da produção, concluindo, afinal, que o trabalho é o homem que se perdeu a si mesmo, tal como escreveu: Até aqui examinamos o estranhamento [alienação], a exteriorização do trabalhador sob apenas um dos seus aspectos, qual seja, a sua relação com os produtos do seu trabalho. Mas o estranhamento não se mostra somente no resultado, mas também, e principalmente, no ato da produção, dentro da própria atividade produtiva. [...] Em que consiste, então, a exteriorização (Entäusserung) do trabalho? Primeiro, que o trabalho é externo (Äusserlich) ao trabalhador, isto é, não pertence ao seu ser, que ele não se afirma, portanto, em seu trabalho, mas nega-se nele, que não se sabe bem, mas infeliz, que não desenvolve nenhuma energia física e espiritual livre, mas mortifica sua physis e arruína o seu espírito. O trabalhador só se sente, por conseguinte e em primeiro lugar, junto a si [quando] fora do trabalho e fora de si [quando] no trabalho. Está em casa quando não trabalha e, quando trabalha, não está em casa. O seu trabalho não é portanto voluntário, mas forçado, trabalho obrigatório. [...] Finalmente, a externalidade (Äusserlichkeit) do trabalho aparece para o trabalhador como se [o trabalho] não fosse seu próprio, mas de um outro, como se [o

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trabalho] não lhe pertencesse, como se ele no trabalho não pertencesse a si mesmo, mas a um outro. Assim, como religião e auto-atividade de fantasia humana, do cérebro e do coração humanos, atua independentemente do indivíduo e sobre ele, isto é, como atividade estranha, divina ou diabólica, assim também a atividade do trabalhador não é a sua autoatividade. Ela pertence a outro, é a perda de si mesmo. (Marx, 2004, p.82-3)

Assim, o processo de alienação do homem tem origem na divisão do trabalho, e todo homem submetido a esta divisão passa a ser um homem unilateral e incompleto. A unilateralidade é, pois, o aspecto negativo do conceito de trabalho em Marx e Engels. Por outro lado, eles mostram que sem o trabalho, que é parte histórica da atividade humana, a própria vida não existiria, tal como ficou demonstrado nos Manuscritos: “o trabalho, a atividade vital, a vida produtiva mesmo aparece ao homem apenas como meio para a satisfação de uma carência, a necessidade de existência física” (Marx, 2004, p.84). Além disso, ambos afirmaram que para poder “fazer história” os homens devem estar em condições de viver e que, por conseguinte, a primeira ação histórica foi a criação dos meios para satisfazer essas necessidades, a produção da própria vida material. Sobre esta base, lê-se em A ideologia alemã que: Pode se referir a consciência, a religião e tudo o que se quiser como distinção entre os homens e os animais; porém, esta distinção só começa a existir quando os homens iniciam a produção dos seus meios de vida, passo em frente que é conseqüência da sua organização corporal. Ao produzirem os seus meios de existência, os homens produzem indiretamente a sua própria vida material. (Marx, Engels, 1980, p.19)

E só depois de ter constatado a multiplicação das necessidades sobre aquela primeira base produtiva, a reprodução dos homens, a sua organização social na produção, se constata que: [...] o homem possui também uma consciência; mas não se trata de uma consciência que seja de antemão consciência ‘pura’ [...]. A consciência só surge com a necessidade, as exigências dos contactos com outros homens. Onde existe uma relação, ela existe para mim. O animal não se encontra em relação com coisa alguma, não conhece de facto qualquer relação; para o animal, as relações com os outros não existem enquanto relações. A consciência é pois um produto social e continuará a sê-lo enquanto houver homens. (Marx, Engels, 1980, p.35-6)

O homem, portanto, possui todas as condições objetivas e subjetivas para atuar com vontade própria e conscientemente, pois é esse caráter voluntário e universal da atividade humana que se contrapõe ao domínio da naturalidade e da casualidade. Mas, as relações sociais de produção assentadas na propriedade privada dos meios de produção alienam o próprio homem da sua capacidade de agir conscientemente; e, por conseguinte, esse mesmo homem passa a não mais dominar as relações sociais necessárias ao seu desenvolvimento material e espiritual, mas a ser dominado - não é indivíduo total, mas membro unilateral de uma determinada esfera, e vive, numa palavra, no reino da necessidade, e não no da liberdade. Marx e Engels mostram que, no capitalismo, o trabalho perdeu toda a aparência de manifestação pessoal. Portanto, só ao apropriar-se da totalidade dos instrumentos de produção se pode chegar à manifestação pessoal, ou seja, “unicamente neste estádio a manifestação pessoal coincide com a vida material, a qual corresponde à transformação dos indivíduos em indivíduos completos” (Marx, Engels, 1980, p.93). Chegamos aqui a um ponto fundamental: as perspectivas de desenvolvimento do homem omnilateral efetivam-se, precisamente, sobre a base do trabalho, isto é, na possibilidade da abolição da exploração do trabalho, da divisão do trabalho e da sociedade de classes, e do fim da divisão do homem, dado que isso acontece unicamente quando se apresenta como divisão entre trabalho manual e trabalho intelectual, já que o último necessita de tempo livre para o seu pleno desenvolvimento, ou seja, de “ócio produtivo”, como diriam os gregos da Antigüidade Clássica. Pois, as duas imagens do 642

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homem dividido, cada uma delas unilateral, são essencialmente a do trabalhador manual e a do intelectual, tais como gerados pela divisão social do trabalho no âmbito da sociedade capitalista. A ideologia alemã é a chave para compreendermos o sentido da omnilateralidade em Marx e Engels, pois estão ali os elementos para a reflexão sobre a petrificação do nosso próprio trabalho num poder objetivo que nos domina e escapa ao nosso controle, contrariando a nossa expectativa. Segundo eles, desde o momento em que o trabalho começa a ser repartido, cada indivíduo tem uma esfera de atividade exclusiva que lhe é imposta e da qual não pode sair sob pena de perder seus meios de subsistência. A acepção negativa do trabalho aparece aqui, como, aliás, já estava claramente delineada nos Manuscritos de 1844, obra na qual Marx mostrou o trabalhador física e mentalmente rebaixado a uma máquina, tornado, pela divisão do trabalho, cada vez mais unilateral e dependente, considerado pela economia política como um animal reduzido às mais estritas necessidades corporais. Os Manuscritos Econômicos e Filosóficos denunciam essas condições vividas pelo operário. Neles, Marx escreve: Sem dúvida. O trabalho produz maravilhas para os ricos, mas produz privações para o trabalhador. Produz palácios, mas cavernas para o trabalhador. Produz beleza, mas deformação para o trabalhador. Substitui o trabalho por máquinas, mas lança uma parte dos trabalhadores de volta a um trabalho bárbaro e faz da outra parte máquinas. Produz espírito, mas produz imbecilidade, cretinismo para o trabalhador. (Marx, 2004, p.82)

Percebe-se, ao longo dessas obras, a caracterização negativa, quer do trabalhador alienado, quer do capitalista, produtos contraditórios da mesma sociedade contraditória, e a caracterização apenas parcialmente positiva de alguns aspectos de um ou de outro perfil. Como interpretou Manacorda (1991, p.75), “talvez se possa dizer, parafraseando o discurso de Marx sobre o que é o trabalho segundo a realidade e segundo a possibilidade, que o trabalhador é, segundo a realidade, unilateral, e, segundo a possibilidade, omnilateral”. Marx assinala que a propriedade privada tornou-nos obtusos e unilaterais. São freqüentes, também, as caracterizações da unilateralidade até dos capitalistas, pois, tudo o que se manifesta no operário como atividade de expropriação, de alienação, se manifesta no não-trabalhador como estado de apropriação, de alienação. A mesma concepção aparece em A Sagrada Família: A classe possuinte e a classe do proletariado representam a mesma auto-alienação humana. Mas, a primeira das classes se sente bem e aprovada nessa auto-alienação, sabe que a alienação é o seu próprio poder e nela possui a aparência de uma existência humana; a segunda, por sua vez, sente-se aniquilada nessa alienação, vislumbra nela sua impotência e a realidade de uma existência desumana. (Marx, Engels, 2003, p.48)

Assim, é a divisão do trabalho que cria a realidade na qual a atividade espiritual e a atividade material, a fruição e o trabalho, a produção e o consumo caibam a indivíduos diversos. Entretanto, o privilégio da atividade espiritual, da fruição, do consumo é apenas aparente e parcialmente positivo porque o poder do capital a tudo subverte. O dinheiro converte a representação em realidade e a realidade em simples representação, como assinalou Marx nos Manuscritos de 1844: Enquanto tal poder invasor, o dinheiro se apresenta também contra o indivíduo e contra os vínculos sociais etc., que pretendem ser, para si, essência. Ele transforma a fidelidade em infidelidade, o amor em ódio, o ódio em amor, a virtude em vício, o vício em virtude, o servo em senhor, o senhor em servo, a estupidez em entendimento, o entendimento em estupidez. (Marx, 2004, p.160)

Por essa razão, a fruição de que pode dispor a classe possuidora, é uma condição de positividade apenas relativa, porque a divisão do trabalho submete todos a seu signo, sem deixar lugar para a omnilateralidade, mas, no máximo, uma multiplicidade de necessidades e prazeres. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Assim, a divisão do trabalho cria unilateralidade, e sob o seu signo se reúnem as determinações negativas, assim como, sob o signo oposto da omnilateralidade, reúnem-se as perspectivas positivas do ser humano. Todavia, como o estudo de Marx recaiu sobre o modo de produção capitalista, dispomos muito mais de elementos explicativos sobre a unilateralidade do que sobre a omnilateralidade. Dado o caráter não utópico da pesquisa marxiana, faltam ao esboço do homem omnilateral determinações tão precisas como as que vimos em relação ao homem unilateral. Em resumo, como analisou Manacorda, a concepção de omnilateralidade em Marx comporta elementos de disponibilidade, variação e multilateralidade, como, também, a posse de capacidades teóricas e práticas (Manacorda, 1991). No primeiro caso, a assertiva é plenamente exemplificada na oposição à sociedade dividida, tal como aparece nesta conhecida página de A Ideologia Alemã: Na sociedade comunista, porém, onde cada indivíduo pode aperfeiçoar-se no campo que lhe aprouver, não tendo por isso uma esfera de actividade exclusiva, é a sociedade que regula a produção geral e me possibilita fazer hoje uma coisa, amanhã outra, caçar de manhã, pescar à tarde, pastorear à noite, fazer crítica depois da refeição, e tudo isto a meu bel-prazer, sem por isso me tornar exclusivamente caçador, pescador ou crítico. (Marx, Engels, 1980, p.41)

Além dessa hipótese de uma sociedade comunista onde não existam pintores, mas, no máximo, homens que também pintam, a perspectiva da omnilateralidade aparece mais estreitamente unida à vida da fábrica, isto é, da fábrica moderna mecanizada (hoje, diríamos, mecanizada eletronicamente), na perspectiva da reunificação das estruturas da ciência (microeletrônica, microbiologia e energia nuclear) com as da produção. Avessa ao objetivo exclusivo da formação técnica, a concepção de Marx sobre educação, entretanto, é freqüentemente acusada de basear-se no homo ecomomicus, quando, na verdade, não é o marxismo, mas o capitalismo que limita os trabalhadores ao ensino da prática. A concepção de homem em Marx e Engels derruba inteiramente a tese de um ser mutilado; entretanto, os adversários ideológicos dos dois pensadores os acusam de terem se preocupado meramente com a dimensão material da existência humana, ou seja, a dimensão econômica. Para refutar essa tese, citaremos apenas um belo excerto do Terceiro Manuscrito de 1844, no qual Marx enfatiza a dimensão subjetiva da existência humana para além da alienação: Pressupondo o homem como homem e seu comportamento com o mundo enquanto um [comportamento] humano, tu só podes trocar amor por amor, confiança por confiança etc. Se tu quiseres fluir da arte, tens de ser uma pessoa artisticamente cultivada; se queres influência sobre outros seres humanos, tu tens de ser um ser homem que atue efetivamente sobre os outros de modo estimulante e encorajador. Cada uma das tuas relações com o homem e com a natureza – tem de ser uma externação (Äusserung) determinada da vida individual efetiva correspondente ao objeto da tua vontade. Se tu amas sem despertar amor recíproco, isto é, se teu amor, enquanto amor, não produz amor recíproco, se mediante tua externação de vida (Lebensäusserung) como homem amante não te tornas homem amado, então teu amor é impotente, é uma infelicidade. (Marx, 2004, p.161)

Assim, a crítica ao modo de produção capitalista e ao homem dividido, em Marx, assume, em última instância, a defesa radical do pleno desenvolvimento da subjetividade humana, já que o indivíduo não pode desenvolver-se omnilateralmente se não tem uma totalidade de forças produtivas, e uma totalidade de forças produtivas não pode ser dominada senão pela totalidade dos indivíduos livremente associados. “Trata-se na realidade do desenvolvimento original e livre dos indivíduos na sociedade comunista” (Marx, Engels, 1980, p.92-3). A omnilateralidade é, portanto, a chegada do homem a uma totalidade de capacidades produtivas e, ao mesmo tempo, a uma totalidade de capacidades de consumos e prazeres, em que se deve considerar, sobretudo, o gozo dos bens espirituais, além dos materiais, e dos quais o trabalhador tem estado excluído em conseqüência da divisão do trabalho. Se esse ideal ainda não foi realizado, isto não 644

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artigos

o invalida. A utopia serve, antes de mais nada, para nos fazer lembrar de olhar sempre para o alto, melhor: para o futuro do presente.

Considerações finais A concepção marxista de educação propõe uma formação omnilateral do homem. Trata-se, pois, de uma proposta educacional radicalmente humanista. Assim sendo, o marxismo opera com o princípio de que tanto o corpo como a espiritualidade do homem têm que se desenvolver de forma harmoniosa e concomitante, ou seja, o homem não é apenas materialidade corporal ou, muito menos, se reduz somente à subjetividade adstrita, por exemplo, a uma visão teleológica do mundo circundante. Para o marxismo, a omnilateralidade somente pode se realizar no âmbito de uma sociedade auto-regulada do ponto de vista da produção, organização e distribuição dos objetos necessários para garantir a base material e espiritual do homem. Portanto, a realização do homem omnilateral depende da existência, em iguais condições, do tempo livre necessário para o pleno desenvolvimento das suas potencialidades físicas e mentais. Homero, Platão e Aristóteles, por exemplo, descreveram a importância do ócio produtivo no processo de materialização histórica do homem completo, isto é, da realização pedagógica das artes do falar e do fazer como manifestações das duas expressões fundamentais da cotidianidade do homem. Realização esta que, no contexto da sociedade escravista, se concretizava na preparação do corpo para a guerra e da retórica para a política. Contudo, com o fim da Antigüidade Clássica e a emergência do cristianismo, operou-se uma ruptura na concepção omnilateral de homem. Na saga religiosa do monoteísmo, o cristianismo negou relevância para a cultura do corpo, pois a carne era encarada como fonte inesgotável do pecado, notadamente o pecado fundado na sexualidade. Findava-se, assim, por longos séculos, a concepção harmoniosa de homem, ou seja, um homem plenamente desenvolvido do ponto de visto do corpo e da subjetividade. Depois, com o advento do capitalismo mercantil e do humanismo renascentista, passamos a assistir, no âmbito da modernidade, a um processo ideológico de retomada do princípio da conjugação de ambas as artes como fundamentos pedagógicos na formação do homem completo. Entretanto, por influência da atividade econômica da burguesia, a arte do fazer havia mudado de natureza: não era mais a preparação do corpo, por meio da ginástica, para a guerra; mas, sim, o trabalho, que no início se manifestou por meio do fazer artesão no interior das corporações de ofícios, e, mais tarde, com o aparecimento da maquinaria moderna, o trabalho se deslocou para o âmbito da grande indústria. Foi no contexto dessa inflexão histórica da arte do fazer que o marxismo redimensionou a concepção de formação omnilateral do homem, mesmo reconhecendo que a sua manifestação não pode se realizar no contexto da sociedade capitalista. Mas, ao mesmo tempo, o marxismo defende que o processo da omnilateralidade do homem não se dará nos marcos do “zero histórico”, ou seja, o movimento em si já nasce no âmago das próprias relações capitalistas de produção. Assim sendo, para o marxismo, o capitalismo engendrou a possibilidade histórica, de forma embrionária, da educação omnilateral por meio da combinação da educação geral, educação tecnológica e ginástica. Ou, como afirmou Mario Manacorda (1989, p.360): “parece-me, contudo, que o caminho do futuro seja aquele que o passado nunca soube percorrer, mas que nos mostrou em negativo, descortinando suas contradições”.

Referências ARISTÓTELES. Política. 2.ed. Trad. Mário da Gama Kury. Brasília: Editora UnB, 1988. GRAMSCI, A. Caderno 12 (1932). Apontamentos e notas dispersas para um grupo de ensaios sobre a história dos intelectuais. In: _____ . Cadernos do cárcere. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. v.2. p.13-53.

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GRAMSCI, A. Caderno 11 (1932-1933): introdução ao estudo da filosofia. Apontamentos para uma introdução e um encaminhamento ao estudo da filosofia e da história da cultura. In: _____. Cadernos do cárcere. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999. p.93-168. v.1. MANACORDA, M.A. Marx e a pedagogia moderna. Trad. Newton Ramos-de-Oliveira. São Paulo: Cortez/Autores Associados, 1991. ______. O princípio educativo em Gramsci. Trad. William Lagos. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990. ______. História da educação: da Antigüidade aos nossos dias. Trad. Gaetano Lo Monaco. São Paulo: Cortez/Autores Associados, 1989. MARX, K. Manuscritos econômico-filosóficos. Trad. Jesus Ranieri. São Paulo: Boitempo Editorial, 2004. ______. Crítica do Programa de Gotha. In: MARX, K.; ENGELS, F. Obras escolhidas. Trad. José Barata-Moura. Lisboa: Editorial Avante!, 1985. v.3. p.5-30. ______. O capital: crítica da economia política. Livro primeiro: o processo de produção de capital. 9.ed. Trad. Reginaldo Sant’Anna. São Paulo: DIFEL, 1984. v.1. ______. Instruções para os delegados do Conselho Geral Provisório. As diferentes questões. In: MARX, K.; ENGELS, F. Obras escolhidas. Trad. José Barata-Moura. Lisboa: Editorial Avante!, 1983. v.2. p.79-88. ______. Teses sobre Feuerbach. In: MARX, K.; ENGELS, F. Obras Escolhidas. Moscovo: Edições Progresso, 1982. v.1. p.1-3. MARX, K.; ENGELS, F. “A crítica crítica” na condição de quietude do conhecer ou a “crítica crítica” conforme o senhor Edgar. In: _____ . A sagrada família ou a crítica crítica: contra Bruno Bauer e consortes. Trad. Marcelo Backes. São Paulo: Boitempo Editorial, 2003. p.29-67. ______. Manifesto do Partido Comunista. In: ______. Obras escolhidas. Trad. Álvaro Pina. Lisboa: Editorial Avante!, 1982. v.1. p.106-36. ______. A ideologia alemã. Trad. Conceição Jardim et al. Lisboa: Editorial Presença, 1980. p.11-102. v.I. TOLSTÓI, L.N. Obras pedagógicas. Trad. J.M. Milhazes Pinto. Moscou: Edições Progresso, 1988.

FERREIRA JR., A.; BITTAR, M. La educación en la perspectiva marxista: um enfoque basado em Marx y Gramsci. Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.12, n.26, p.635-46, jul./set. 2008. Se explican los princípios humanistas de la educación inherentes a las obras de Marx y Gramsci. Los fundamentos de una educación humanista en ambos autores tiene como premisas las condiciones reales de existencia que los propios hombres organizan para mantenerse vivos. Así los hombres traban determinados tipos de relaciones sociales de producción que desempeñan un doble papel transformador: humanizar la natureza y los propios hombres al mismo tiempo. En la sociedad fundada en el principio de la propiedad privada de los medios de producción, este proceso de humanización queda interrumpido por la alianza que el hombre manifiesta en relación a los propios objetos producidos. En síntesis: el hombre completo (omnilateral) educado en las artes del hacer (trabajo no alienado) y del hablar (política de emancipación), cuyas premisas ya están puestas en el ámbito de la sociedad capitalista, sólo se realizará históricamente en la sociedad socialista, marcada por la ausencia de la propiedad privada de los medios de producción.

Palabras clave: El marxismo. Educación. Trabajo. Recebido em 16/08/07. Aprovado em 28/02/08.

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Análise do Discurso: uma reflexão para pesquisar em saúde

Laura Christina Macedo1 Liliana Muller Larocca2 Maria Marta Nolasco Chaves3 Verônica de Azevedo Mazza4

Introdução Consideramos a Análise do Discurso (AD) como possibilidade de captar o sentido não explícito no discurso, portanto como forma de aproximação do processo saúde-doença por meio da interpretação da linguagem, pois é no terreno da linguagem que explicamos a determinação de vários fenômenos e conceitos, sendo a palavra uma espécie de ponte lançada entre um ou mais locutores e um ou mais interlocutores. Podemos considerar que a palavra é o modo mais puro e sensível de relação social, configurando-se como fenômeno ideológico5 por excelência. É precisamente na palavra que melhor se revelam as formas básicas e ideológicas da comunicação. Assim, entendemos que é também por meio da palavra que nos definimos em relação ao outro ou em relação à coletividade (Bahktin,1979). Logo, acreditamos, para efeito desta reflexão, que a organização e a estruturação das palavras definem os discursos e possibilitam a compreensão dos fenômenos e dos conceitos. A palavra expõe as contradições e os conflitos existentes em uma dada realidade, pois é construída a partir do emaranhado de fios ideológicos que expressa o repertório de uma época e de um grupo social; portanto a compreensão do discurso exige a compreensão das relações sociais que ele expressa (Minayo, 2004). O objetivo desta reflexão é incorporar a AD à área da saúde, enfatizando este método como rica contribuição das Ciências Sociais. A saúde não constitui campo separado da realidade social; pelo contrário, faz parte de uma realidade complexa que expõe simultaneamente problema e intervenção, o que demanda conhecimentos distintos e ao mesmo tempo integrados. Isso torna a análise qualitativa em saúde especialmente importante. Entre as várias possibilidades de interpretação na pesquisa qualitativa, consideramos que a AD, como método de compreensão dos fenômenos, pode colaborar na reflexão geral sobre as condições de produção e apreensão da significação de textos produzidos nos mais variados campos, entre eles o da saúde (Minayo, 2004). As falas e os textos escritos estão impregnados da cultura, do contexto e das intenções daquele que ali se expressa. As interpretações destes materiais têm sido COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

1-4 Enfermeiras. Departamento de Enfermagem, Universidade Federal do Paraná (UFPR). Rua Padre Camargo, 120, Alto da Glória, Curitiba, PR. 80.060-240. lcmacedo2003@ yahoo.com.br

5 Neste texto entendemos ideologia como sendo um conjunto de idéias dominantes numa dada formação social que explicam e justificam a realidade (Fiorin, 2005).

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consideradas como uma difícil arte de ler verdadeiramente o sentido não aparente dos discursos. Nesta perspectiva, uma técnica apropriada deverá ser estabelecida pelo analista para que, ao realizar a análise em si, consiga construir uma interpretação que lhe permita captar o sentido não aparente dele. Para Maingueneau (1989), a AD, a partir da década de 1960, articulou-se sob a égide do estruturalismo, em torno de uma reflexão sobre a escritura, a lingüística, o marxismo, a psicanálise e a história. Porém, se faz mister esclarecer que as metodologias utilizadas na AD não formam um especialista da interpretação, capaz de dominar “o” sentido dos textos, mas, sim, contribuem para a construção de procedimentos que evidenciem o “olhar leitor”. O analista do discurso contribui para as hermenêuticas contemporâneas, onde se supõe a presença de um sentido oculto que deve ser captado, sendo imprescindível esclarecer que este “sentido oculto”, sem uma técnica apropriada, permanece inacessível. Segundo Japiassu e Marcondes (1998), a hermenêutica-dialética representa a explicação e a interpretação de um pensamento, considerando a realidade concreta e o movimento histórico, nos quais a natureza é um todo e os fenômenos se condicionam reciprocamente, provocando lutas de tendências contrárias, gerando, assim, o processo do conhecimento. Para Minayo (2004, p.231), “é o método hermenêutico-dialético [...] o mais capaz de dar conta de uma interpretação aproximada da realidade. Ele coloca a fala em seu contexto para entendê-la a partir do seu interior e no campo da especificidade histórica e totalizante em que é produzida [...]”. O discurso revela a compreensão do sujeito sobre determinado contexto sociohistórico, no qual se evidenciam suas relações para a produção do próprio discurso. Na saúde, os discursos dos sujeitos projetam sua visão da sociedade e da natureza, da historicidade das relações, da forma de organização da sociedade, das condições de produção e reprodução social (Minayo, 2004). Atualmente, há que se considerar que a AD pode designar diferentes produções de linguagem, visto que a aproximação para a compreensão dos fenômenos, por meio desta análise, permite ao analista afirmar o conteúdo apresentado como produções discursivas; porém estas nem sempre se encontram fundamentadas no rigor proposto pela metodologia da AD. Sendo assim, ao analisar discursos, não examinamos um corpus como produção de um sujeito, mas consideramos sua enunciação como o correlato de certa posição sociohistórica, na qual os enunciadores se revelam substituíveis.

A metodologia da AD Um dos aspectos que nos levaram à construção deste texto são as várias noções de discurso, bem como a diversidade de enfoques metodológicos que existem para contemplar esta pluralidade, que ecoa em perspectivas interdisciplinares para o uso da AD, encontradas em percepções por vezes semióticas, ideológicas e, em outras situações, hermenêuticas. Podemos considerar a AD como prática e campo de várias disciplinas. Ao considerar a AD como perspectiva para a área da saúde, a reafirmamos como meio de aproximação e inclusão da linguagem em um sistema abstrato no qual os indivíduos se expressam oralmente e por escrito e, assim, produzem sentidos para evidenciar suas compreensões sobre a determinação do processo saúde-doença. Para aproximações à compreensão da determinação do processo saúde-doença, devem ser explicitadas as subjetividades e as singularidades dos indivíduos, porém somadas às particularidades e questões estruturais. Discurso, desta forma, transcende a linguagem, e sua análise é um processo de identificação de sujeitos, de argumentação, de subjetivação e de construção da realidade, onde sentidos são revelados e determinados ideologicamente (Piovesan, 2006). Desse modo, analisar discursos não é mais um patrimônio da lingüística, já que recebeu contribuições de outras disciplinas acadêmicas, o que gerou atribuições e filiações disciplinares heterogêneas, que se traduziram em práticas muito variadas, baseadas em concepções distintas, porém que têm em comum a consideração da análise do idioma em seu uso falado ou escrito (Iñiguez, 2005). Destacamos duas razões pelas quais o discurso se converteu em objeto de análise (Iñiguez, 2005): · Razões teóricas e epistemológicas 650

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No decorrer do século XX, houve um progressivo aumento da atenção dada à linguagem, com implicações que permitiram a elaboração de novos conceitos sobre a natureza do conhecimento (comum ou científico) e novos significados para termos como natural, social, cultural. · Ampliação do estudo da linguagem A transformação da linguagem humana causou uma orientação do seu estudo em contextos relacionais e de comunicação e evidenciou a centralidade do processo de comunicação na constituição, manutenção e desenvolvimento de nossas sociedades. Discurso é um conceito extraordinariamente polissêmico (Iñiguez, 2005). Existem tantas definições de discurso quantos são seus autores, autoras e tradições de análise. Dependendo da noção de discurso que se utiliza, a concepção de AD adquirirá significados bastante diferentes. É necessário rever a polissemia da palavra discurso, termo utilizado com acepções distintas pelas teorias da enunciação e da AD. Alguns estudiosos recorrerem ao termo “formação discursiva” (Foucault, 1997). O termo expressa diferentes visões de mundo, presentes em dada construção histórico-social, da qual os enunciadores fazem parte. Portanto se, do ponto de vista genérico, as formações ideológicas, materializadas nas formações discursivas, determinam os discursos, sua análise apresenta a formação discursiva, em que os textos trazem temas e conceitos que representam a visão de mundo de determinados sujeitos (Fiorin, 2005). Assim, os discursos refletem a visão de mundo de seu autor e da sociedade em que vivem, ampliando significativamente o entendimento anterior de discurso na forma de enunciação e sucessão de frases (Iñiguez, 2005). Os discursos são considerados no contexto das rupturas que delimitam práticas discursivas determinantes de um fragmento. Assim, os enunciados constituem a instância primordial do discurso, não em seu sentido lógico ou gramatical, mas na regularidade e na especificidade de seu emprego, desempenhando função enunciativa que se transforma em formação discursiva. O discurso passa a ser delimitado não pelo seu sentido imediato, mas pela prática discursiva que, no seu interior, constrói o sentido. A linguagem torna-se instrumento de poder que reflete uma prática lingüística traduzida no discurso político (Foucault,1997). Portanto faz-se necessário resgatar a polissemia da palavra discurso. Com base em Iñiguez (2005), relacionamos abaixo uma síntese que não pretende ser classificatória, senão uma tipologia sintética dos conceitos de discurso. Discurso Enunciado ou conjunto de enunciados efetivamente falados por um falante Conjunto de enunciados que constroem um objeto Conjuntos de enunciados falados em contexto de interação com poder de ação Conjunto de enunciados em contexto conversacional/normativo Conjunto de restrições que explicam a produção de um conjunto de enunciados a partir de uma posição social ou ideológica específica Conjunto de enunciados em que é possível definir as condições de sua produção. (Iñiguez, 2005, p.123)

Esclarecemos que é necessário perceber que a AD não diz respeito unicamente à tomada dos textos produzidos em sua singularidade, mas à compreensão de seu contexto. Esta ambigüidade (singularidade x corpus social) é reconhecida como uma das restrições do campo da AD, limitação que pode ser superada com o auxílio da aplicação de metodologia e crítica apropriada. Alguns críticos da AD expõem a ambigüidade; esta limita-se ao corpus impresso, eliminando das pesquisas a “heterogeneidade dos mecanismos que atuam nas produções da linguagem”, em que mecanismos formais (lingüísticos) e os dados institucionais (condições de produção) poderiam se articular em um todo homogêneo, controlável e teorizável (Maingueneau, 1989). Para Maingueneau (1989), as terminologias “Discurso” e “Análise do Discurso” têm sido empregadas de diferentes formas. Ressalta a diferença entre as análises que podem ser rígidas, dando ênfase ao núcleo, desconsiderando a periferia e, assim, não apresentando os contornos do discurso propriamente dito, os quais se relacionam com as disciplinas que se aproximam e percorrem o núcleo: COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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psicologia, sociologia, história, filosofia e, em particular, neste estudo, a grande área da saúde, com a sua inegável interdisciplinaridade. Richardson (1999) afirma que, na AD, falado ou escrito, se encontram aspectos mais amplos sobre o sujeito, pois ali se verificam aspectos relacionados a sua história, às relações que esse tem com as instituições. Logo, o discurso expressa o sujeito com suas estratégias de interlocução nas diferentes posições e conjunturas que o constituem para produzir a fala ou o texto. Em estudos atuais, observamos diferentes instrumentos aplicados para se proceder à AD produzido pelo sujeito. Entre estes se destacam: as observações estruturadas, as entrevistas por meio de instrumentos previamente estabelecidos, grupo focal e análise documental em registros. A análise propriamente é realizada pela leitura exaustiva do material, para explorá-lo e construir o tratamento e a interpretação dos dados. Neste momento, o pesquisador identifica o contexto da produção do discurso para codificá-lo, identificar suas unidades de registros, bem como as categorias que dele emergem. O processo é exaustivo e, muitas vezes, pode ser realizado de formas diferentes; mas, em todas as maneiras, a aproximação do pesquisador com o material são encontros entre sujeitos contextualizados historicamente e socialmente determinados, e com diversidades culturais e de subjetividades. Proceder à análise significa necessariamente considerar aspectos que mostram a heterogeneidade dos discursos, reconhecido nas falas interrompidas, na gramática irregular e na mudança do sentido das palavras. Outros elementos poderão ser identificados, de acordo com a diversidade dos discursos. Neste sentido é necessário estar atento ao silêncio, ao não verbalizado, ao que foi explicitamente incluído, ao tom da voz e, mesmo, às falas que se esvaziam de sentido para aquilo que está sendo discutido (Maingueneau, 1989). É possível ler e interpretar os discursos por vieses ou fontes de várias ordens: objetos da cultura material, imagens iconográficas, ambientes urbanos e a própria materialidade de uma cidade, além de toda uma gama de textos produzidos. Analisar as fontes discursivas é tema clássico e permanente nas ciências sociais e humanas, e se faz necessário como metodologia para a pesquisa em saúde. Identificar, verificar o uso e interpretar as fontes são elementos constituintes do caráter de uma pesquisa, podendo até mesmo definir sua qualidade, sua própria identidade e a compreensão da pesquisa em saúde que se propõe interdisciplinar, onde fonte é uma construção do pesquisador, isto é, um reconhecimento que constitui uma denominação e atribuição de sentido; é parte da produção do conhecimento (Ragazzini, 2001). Com relação às diversas abordagens interpretativas na pesquisa interdisciplinar em saúde, podemos listar alguns campos com que trabalham os pesquisadores: história das doenças, percepções e determinações sobre o adoecer e o morrer, bioética, representações sociais, políticas públicas, entre outros; há situações em que freqüentemente o pesquisador se depara com enunciados orais ou textuais. Ao produzirem pesquisas com o intuito de explicar os fenômenos relacionados à saúde dos indivíduos, para além da clínica e do biologicismo, os pesquisadores em saúde passaram a utilizar métodos das ciências sociais e humanas. Nesta proposta, um pesquisador da área de saúde, para compreender o evento saúde-doença, deve procurar concepções subjetivas e coletivas do campo de conhecimento, reconhecendo que um fenômeno pode e deve ter múltiplas aproximações, que se não totalizantes, pelo menos, são um caminho para se perceber como os indivíduos, ao se expressarem oralmente ou por escrito, produzem sentidos, enquanto sujeitos e membros de uma sociedade, situação que permite aproximações dos discursos produzidos, gerando localização de sentidos e de intencionalidades. Um discurso pode ser analisado por diferentes abordagens: quantitativa, serial ou sobre as possibilidades qualitativas do texto. Um texto pode ser abordado qualitativamente de muitas maneiras. Historiadores, críticos literários, lingüistas, psicanalistas e quaisquer outros profissionais que dependem da interpretação de textos para o seu ofício não cessam de investigar novos modos de trabalhar, avançando para muito além daquilo que se encontra aparentemente exposto na superfície (Barros, 2004). As abordagens semióticas, hoje utilizadas por alguns pesquisadores das ciências sociais e humanas em saúde, enriquecem muito as possibilidades de fazer um texto falar sobre coisas que o próprio autor do texto não pretendia dizer. Quando alguém utiliza determinadas expressões e palavras, já está dizendo algo ao bom analista de textos, independentemente dos sentidos que ele pretende atribuir às palavras. A presença de certas imagens em um discurso, a recorrência de determinadas palavras, a 652

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maneira de organizar uma narrativa, as referências intertextuais a outros textos – sejam estas voluntárias, explícitas, implícitas ou involuntárias – tudo isto fala por si mesmo, independentemente de quem pronuncia o discurso (Barros, 2004). Isto sem levar em conta a possibilidade de se contraporem textos diferenciados, de se colocarem várias versões a respeito de um acontecimento, a se iluminarem ou a se contradizerem reciprocamente. Estas contradições são de grande valia, sem contar as contradições internas do próprio texto e o caráter polifônico de certos discursos. A riqueza de qualquer texto está no fato de que ele pode ser simultaneamente um “objeto de significação” e um “objeto de comunicação cultural entre sujeitos”. Estes dois aspectos na verdade se complementam. Se, por um lado, o discurso pode ser definido pela organização ou estruturação que faz dele uma “totalidade de sentido”, por outro lado, ele pode ser definido como “objeto de comunicação” que se estabelece entre destinador e destinatário, ou entre um destinador e muitos destinatários (Barros, 2004). A tentativa de avaliação do texto na sua primeira dimensão (objeto de significação) gera uma análise interna ou estrutural do texto, na qual utilizamos aportes teóricos e metodológicos. Quando avaliamos um texto como objeto de comunicação, necessariamente há uma implicação analítica do contexto histórico-social que o envolve e que, de alguma maneira, lhe atribui um sentido. Empreende-se, assim, uma análise externa do texto, podendo analisar intenções, motivações pessoais do autor que o produziu, ou daqueles que dele se apropriam (Barros, 2004). Concordamos com o autor no sentido de que a perspectiva mais útil para o pesquisador em saúde é considerar a dualidade de um texto (significação e comunicação), o que implica uma visão multidimensional que deve contemplar simultaneamente três dimensões: o intratexto, o intertexto e o contexto. O intratexto é o correspondente aos aspectos internos, implicando a avaliação do texto como objeto de significação; o intertexto refere-se ao relacionamento de um texto com outros textos, e o contexto corresponde à relação do texto com a realidade que o produziu e que o envolve, equivalendo aos aspectos externos do texto (Barros, 2004). É de extrema importância, para os estudos produzidos na área da saúde, a não limitação em análises estruturalistas, pois todo o texto é produzido em um lugar que é definido não apenas por um autor, pelo seu estilo e pela sua história de vida, mas também por uma sociedade que o envolve e pelas dimensões desta sociedade (Barros, 2004). O ser humano é mais que as suas circunstâncias, como sociedade, ambiente social urbano e rural, instituição a que pertence. Desse modo, o escritor ou falante se conformam às regras de determinada prática do discurso, plebeu ou aristocrático, literário ou científico, festivo ou de exéquias. Os autores escrevem textos deixando neles suas marcas, mas elas não são, de todo, suas. De modo geral, a correta interpretação do leitor criterioso deve diferençar o fato e a realidade da versão escrita ou apresentada por outro meio, sob pena de estar longe da verdade. Tão importante quanto o lugar de produção, é o seu destino, seja este uma finalidade, um receptor, ou grupo de receptores - o que insere um texto num esquema triangular composto por: lugar de produção, um conteúdo (intenção, mensagem), um lugar de recepção (ou destino), vértices permeados por uma intertextualidade, rede de onde se extraiu seu sentido. Este fator pode ser perceptível no texto analisado ou, mesmo, nas ferramentas utilizadas para analisá-lo (Barros, 2004). Para Gil (1994), o pesquisador deve sistematizar a AD, para que possa identificar desde o material a ser analisado até as categorias presentes no discurso. Para tanto, são imprescindíveis a clareza do problema e o objetivo da pesquisa. Assim, percebemos amplo espectro de possibilidades a serem aplicadas em um texto para aproximação de uma compreensão dele. Do contato com a fonte textual para a sua análise, existe um percurso onde podemos incluir: procedência da fonte, indagações efetuadas, inserção na sociedade, condições de produção, verificação dos destinatários, o não-dito, a veracidade do texto e as contradições percebidas. Também podem ser distintas as abordagens culturais e políticas que ampliam possibilidades de aproximação com um discurso produzido. Alguns autores, como Barros (2004), colocam em jogo uma discussão em torno da problemática do 653


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discurso como forma de apropriação da linguagem, diferenciação entre enunciação e enunciado: a primeira constrói um uso da língua, organizando uma temporalidade que opera no presente (diferentemente do enunciado). Outros, como De Certeau (2005), analisam a diferenciação entre o discurso do saber do mundo social e o discurso de autoridade das vontades rebeldes como linha de operação historiográfica, diferenciando estratégias e táticas. Estas diferentes perspectivas permitem perceber a transparência entre o saber e a verdade; mas a produção de um conhecimento, que se legitima pela observância dos determinantes de uma disciplina (no caso deste estudo, a saúde), assegura ao relato sua cientificidade. Assim, o que emerge do discurso é menos o fato, e mais as margens, os contornos do seu sentido de produção e a sua própria versão. É no entrecruzamento de um lugar social de produção discursiva, de uma prática e de uma escrita que se configuram os sentidos e as narrativas. Portanto reforçamos a importância da perspectiva interdisciplinar para o campo da saúde, porque necessária como forma de associação entre Saúde, História e Lingüística, verificando, por meio da AD, como a linguagem também repercute nos fatos que ocorrem em determinado contexto político-social. Considerando essa perspectiva teórica, podemos visualizar o discurso, segundo Focas (2003), por dois ângulos distintos (o do acontecimento e o da constituição da simbologia) em que, ao nos aproximarmos de um conjunto de manifestações discursivas, percebemos três grandes unidades nas características lingüísticas: o discurso evasivo, como “forma de dizer dupla”; a paráfrase, que institui o sentido literal e reformula sentidos; e a polissemia, que produz deslocamentos e constrói ambigüidades, já que a língua, em certas instâncias, se utiliza da fala ou da escrita para esconder os próprios pensamentos ou sentimentos. O discurso deve ser analisado no contexto de suas continuidades e rupturas, que delimitam práticas discursivas determinadas em seus fragmentos. Assim, os enunciados constituem a instância primordial do discurso, não em seu sentido lógico ou gramatical, mas na regularidade e na especificidade de seu emprego, desempenhando função enunciativa que se transforma em uma formação discursiva. O discurso é, então, delimitado não pelo seu sentido imediato, mas pela prática discursiva que, no interior das formações discursivas, constrói o sentido (Focas, 2003). A dicotomia entre a instância do tempo da enunciação e a do tempo da matéria narrada reflete o estatuto do discurso, resumido na contraposição do discurso do real e discurso do imaginário. A entrada da enunciação no enunciado origina o processo narrativo, processo que produz unidades de conteúdo que representam aquilo de que falam as disciplinas (Focas, 2003). Distinta da unidade de conteúdo é a unidade do discurso, entendida como unidade temática que constitui o processo da narração em suas significações ideológicas. Desse modo, o discurso apresenta conotação simbólica que, partindo do acontecimento, promove uma separação entre o ideológico e o simbólico, constituindo, por meio das representações de sentidos revelados, as diferentes formações discursivas que encerra (Focas, 2003). É nesta perspectiva que nos propusemos pequenas aproximações do campo da AD, por considerarmos que, na área da saúde, cada vez mais são necessárias estratégias e ferramentas que evidenciem as rupturas, as continuidades, as ambigüidades dos sentidos produzidos pelos indivíduos que produzem os conhecimentos. A literatura existente na área da saúde, que aborda a AD como estratégia investigativa, não é vasta, concentrando-se freqüentemente em estudos da Área de Saúde Mental. Porém, cada vez mais, percebemos que, ao interrogarem os indivíduos sobre sua percepção em relação a agravos e eventos relacionados à saúde e à doença, ou mesmo às práticas desenvolvidas e às políticas públicas existentes, os pesquisadores da área se deparam com a necessidade de instrumental que permita reconhecer o que há de significado individual, coletivo, e de contexto sociohistórico nas falas, nos escritos - nos discursos. Assim, a AD permite aos profissionais da área de saúde compreenderem e desenvolverem uma relação menos ingênua com a produção da linguagem (oral ou escrita) dos sujeitos. Para Orlandi (2003), é perceber o “dizer” como propriedade particular, aproximando os sujeitos dos discursos como prática social e, na análise dessa produção, mostrar a mediação entre indivíduos e realidade social.

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Considerações finais A AD tem sido, historicamente, utilizada por diferentes setores para a produção de conhecimentos, sendo a sistematização do método para se proceder à análise tão importante quanto o referencial teórico selecionado para a construção do conhecimento em determinada área. A pesquisa em saúde aproximou-se de diferentes áreas, tais como as ciências sociais e humanas, para produzir conhecimento sobre os fenômenos de saúde, percebidos ou vivenciados por meio da análise do discurso dos sujeitos. A importância desta produção para os estudiosos da área é a possibilidade de se compreender o discurso individual e coletivo, histórico e socialmente determinado, evidenciando elementos que permitam redirecionar as práticas sanitárias. Outra questão importante é quando os sujeitos participantes da construção do conhecimento se tornam mais comprometidos com a realidade evidenciada nas pesquisas, passando a ser elementos constituintes de um novo discurso na área da saúde. O discurso passa, então, a ser menos tecnicista e contempla a realidade de seus sujeitos - é, portanto, a expressão das compreensões construídas sobre determinadas questões de saúde que permitirá ao sujeito investigado e ao pesquisador refletirem sobre a determinação, para lograr modificá-la. É necessário observar que, independentemente da ferramenta utilizada para a AD, ela deve dar conta de fazer a análise na totalidade, para evidenciar, na fala ou na escrita, o que alguns autores reconhecem como corpus de um texto. Todo enunciado colocado em um discurso por parte de um sujeito é histórico e está historicamente condicionado, o que faz com que seja necessário especificar não somente a noção de discurso, mas também a noção de estrutura que estamos utilizando (Iñiguez, 2005). Na AD é importante observar que algumas situações pressupõem compartilhar a discursividade como ordem própria, diversa da materialidade da língua, mas, ao mesmo tempo, por ela realizada, ou seja, um desequilíbrio perpétuo; assim, não existe harmonia preestabelecida entre os objetos que podem ser investigados pela AD, mas hipóteses passíveis de análise, que repousam temporalmente sobre o conhecimento do corpus textual e o conhecimento das possibilidades oferecidas ao analista do discurso pelo estudo de fatos da linguagem. Neste trabalho procuramos expor a polissemia do discurso, resgatando um pequeno universo de autores e demonstrando de que modo nos ensinam como investigar não somente um texto, mas também descrever quais são as condições de existência do discurso, enunciado ou conjunto de enunciados.

Colaboradores As autoras Laura Christina Macedo, Liliana Müller Larocca, Maria Marta Nolasco Chaves e Verônica de Azevedo Mazza participaram, igualmente, de todas as etapas de elaboração do artigo. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Neste trabalho, tomamos a fala e a escrita como formação discursiva, destacando as razões para convertê-la em objeto de análise, e apresentando diferentes instrumentos para tanto. Ressaltamos a importância da análise do discurso para o desenvolvimento das pesquisas em saúde, por permitir a interpretação da realidade a partir do texto, ou dos textos, evidenciando os sujeitos da produção e interpretação deles, assim como o contexto de sua produção. São explicitadas as contradições, as continuidades e rupturas construídas historicamente, que fazem do discurso uma prática social. Consideramos a análise do discurso como possibilidade de captar o sentido não explícito na fala e escrita, portanto como mais uma forma de aproximação do processo saúde–doença. O objetivo desta reflexão é incorporar a análise do discurso à área da saúde, enfatizando este método como rica contribuição das Ciências Sociais.

Palavras-chave: Análise do discurso. Processo saúde-doença. Pesquisa em saúde. Discourse analysis: a reflection for health research In this study, we take speech and writing as means for discourse construction, highlighting the reasons for converting them into objects for analysis, and we present different instruments for doing this. We emphasize the importance of discourse analysis for the development of health studies, since it allows interpretation of the reality from a text or texts and shows the subjects of the production and the interpretation of these subjects, along with the context of their production. Historically constructed contradictions, continuities and disruptions that make discourse a social practice are described. We consider discourse analysis to be a way of picking up the implied meaning in speech and writing, and thus a further way to approach the healthillness process. The aim of this reflection was to incorporate discourse analysis into the health field, thereby emphasizing this method as a rich contribution from Social Sciences.

Key words: Discourse analysis. Health-illness process. Health research. Análisis del discurso: una reflexión para la investigación en salud En este trabajo presentamos la expresión oral y la expresión escrita como formación discursiva, enfatizando las razones que la convierten en objeto de análisis, para ello presentamos diferentes instrumentos. Resaltamos la importancia del análisis del discurso para el desarrollo de las investigaciones en el área de la salud, pues tal método permite interpretar la realidad a partir del texto, o de los textos, poniendo en evidencia a los sujetos de la producción y de su interpretación. E así como el contexto en el que se producen. Explicamos las contradicciones, continuidades y rupturas construidas históricamente, que hacen del discurso una práctica social. Consideramos el análisis del discurso como posibilidad de captar el sentido no explícito en el lenguaje oral y escrito, por lo tanto como una forma más de aproximación del proceso salud-enfermedad. El objetivo es incorporar el análisis del discurso en el área e la salud, haciendo énfasis en este método como una rica contribución de las Ciencias Sociales.

Palabras clave: Análisis del discurso. Proceso salud-enfermedad. Investigación en salud

Recebido em 22/05/07. Aprovado em 22/04/08.

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Educação em serviço para profissionais de saúde do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU): relato da experiência de Porto Alegre-RS Rosane Mortari Ciconet1 Giselda Quintana Marques2 Maria Alice Dias da Silva Lima3

Introdução Os serviços de atendimento pré-hospitalar móvel, denominados Serviços de Atendimento Móvel de Urgência (Samu), e acionados por telefonia de discagem rápida (número 192), conhecidos como Samu 192, foram normatizados no Brasil a partir de 2003. Caracterizam-se por prestar socorro às pessoas em situações de agravos urgentes, nas cenas em que esses agravos ocorrem, garantindo atendimento precoce, adequado ao ambiente pré-hospitalar e ao acesso ao Sistema de Saúde. Esses serviços formam um dos componentes da Política Nacional de Atenção às Urgências, cuja publicação constitui um importante avanço na organização do Sistema de Saúde do País, pois estabelece a estruturação de uma rede de serviços regionalizada e hierarquizada para a atenção às urgências, bem como a implantação de um processo de regulação que dê eficiência cotidiana ao sistema. A regulação ocorre por meio de Centrais de Regulação de Urgência, reiterando as definições do Regulamento Técnico dos Sistemas Estaduais de Urgência e Emergência (Brasil, 2006). A decisão do Ministério da Saúde de iniciar a implementação da política pelo componente pré-hospitalar móvel parte do pressuposto de que as Centrais de Regulação de Urgência, por constituírem observatórios privilegiados do Sistema de Saúde, são elementos potenciais de organização dos fluxos da atenção às urgências, e ferramentas importantes de inclusão e garantia de acesso universal e equânime aos acometidos por agravos urgentes, de qualquer natureza (Brasil, 2006). Além de sua função primeira, que é a de receber as demandas de agravos urgentes à saúde, oriundas da população e de outros segmentos, as Centrais de Regulação servem como relevante ferramenta para o planejamento e gestão dos serviços. Em Porto Alegre, estado do Rio Grande do Sul, o Samu foi inaugurado em novembro de 1995, como resultado de um tratado de cooperação técnica firmado entre os governos francês e brasileiro, em meados de 1994, anterior à existência de normativas nacionais relativas à regulação médica das urgências. Essas normativas passam a ser adotadas, inicialmente, de acordo com a Resolução n° 1.529/1998, do Conselho Federal de Medicina, e, a seguir, conforme portarias emanadas do Ministério da Saúde (Oliveira, Ciconet, 2003).

Enfermeira. Mestranda, Programa de PósGraduação em Enfermagem, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Rua Alberto Silva, 1724 Vila Ipiranga - Porto Alegre, RS - 91.370-001 rociconet@terra.com.br 2 Enfermeira. Doutoranda, Programa de Pós-Graduação em Enfermagem, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 3 Enfermeira. Escola de Enfermagem, Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

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A implantação do Samu em Porto Alegre, bem como a estruturação de outros Samu no Brasil, como o do Vale do Ribeira e de Campinas, estimulou a formação de um grupo de profissionais e gestores de saúde, denominado de Rede Brasileira de Cooperação em Emergência (RBCE), que, a partir de 1995, vem se organizando para promover ampla discussão, em todo o Brasil, sobre a atenção às urgências no processo de construção do Sistema Único de Saúde. Os trabalhos dessa Rede contribuíram para a discussão de bases técnicas e políticas e subsidiaram a elaboração de portarias, corroborando a implantação da atualmente existente Política Nacional de Atenção às Urgências (Brasil, 2006). Um dos pontos significativos das diretrizes de atenção às urgências diz respeito à criação dos Núcleos de Educação em Urgências (NEU), definição de seus princípios norteadores, objetivos, grades de temas com conteúdos programáticos, e suas respectivas cargas horárias e habilidades a serem alcançadas. Esses Núcleos foram concebidos como espaços de saber interinstitucionais de formação, qualificação e educação permanente de pessoal para o atendimento em urgências (Brasil, 2006). As recomendações chamam a atenção para a insuficiência da formação dos profissionais que atuam na área de urgências, uma vez que este tema ainda é insuficiente nos cursos de graduação, não se constitui como especialidade médica ou de enfermagem e existe um grau importante de desprofissionalização. A falta de educação contínua compromete a qualidade da assistência e do gerenciamento (Brasil, 2006). Ainda que a implantação e o desenvolvimento desses Núcleos estejam aquém do esperado, nas diferentes regiões do País, os NEU ocupam um papel fundamental na qualificação dos trabalhadores. Com intuito de potencializar a qualificação dos trabalhadores das urgências, em março de 2006, por ocasião do Congresso Nacional da Rede SAMU 192, promovido pela Coordenação Geral de Urgência e Emergência do Ministério da Saúde, foi proposto que cada Samu implantasse seu núcleo específico, denominado de NEP (Núcleo de Educação Permanente). E que, ligados ao NEU, tivessem como principal objetivo a educação dos profissionais do componente pré-hospitalar móvel, os quais, com a expressiva implantação de Samu no País, iniciaram suas atividades numa área que carece de formação específica e que necessita de permanente atualização. No Samu 192 de Porto Alegre, ainda que o NEP não exista oficialmente no organograma institucional, foi organizado como espaço de formulação e de desenvolvimento e tem procurado implementar suas atividades à luz das recomendações emanadas do Ministério da Saúde. A implantação dos Samu no Brasil impôs a organização de grupos de trabalho para operação do serviço. A maioria dos serviços procurou compor seu quadro de pessoal com profissionais que já tinham alguma experiência na área de urgências, sem, entretanto, possuir vivência específica no atendimento pré-hospitalar móvel. O desafio de formar e/ou qualificar esses profissionais foi-se impondo em face das necessidades da área, com suas especificidades importantes. A formação de profissionais que atuam no Samu carece de preparação específica, pois este é um tema relativamente novo nesse meio e pouco enfatizado nos cursos de graduação (medicina e enfermagem) e de nível médio (auxiliares e técnicos de enfermagem). Além da educação para esses profissionais, as atenções devem voltar-se também para aqueles não oriundos da área da saúde, conforme a constituição das equipes preconizadas na legislação. Esta é uma das peculiaridades do atendimento pré-hospitalar móvel, pois congrega profissionais de diferentes saberes e formações, que exigem atuação qualificada para o atendimento. O objetivo deste artigo é relatar a experiência da Educação Permanente com trabalhadores de um serviço de atendimento pré-hospitalar móvel de urgência de Porto Alegre.

Bases teóricas para o processo de educação permanente O processo ensino-aprendizagem se desenvolve com base em trocas entre os sujeitos envolvidos: quem aprende e quem ensina estão intimamente integrados num processo de partilha de conhecimentos, vivências e sentimentos, pautados pela comunicação entre estes pares. O processo não se faz somente pela transferência de conteúdos técnicos, normas e protocolos. Ele deve levar em conta as experiências vivenciadas pelos indivíduos e sua bagagem profissional e pessoal (Zani, Nogueira, 2006). Essas afirmações são fundamentais, considerando-se tratar-se de qualificar pessoas que já trazem consigo uma bagagem composta pelo conhecimento técnico e fortemente influenciada por experiências 660

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vivenciadas em seu cotidiano, permeadas de valores, atitudes e significações pessoais, que podem ou não estar consoantes com aquilo que se propõe como ideal em atitudes a serem tomadas no trabalho e no desempenho da assistência prestada. Por isso, a atualização técnico-científica dos trabalhadores é uma das estratégias de qualificação das práticas profissionais. Qualificá-las passa pela reflexão crítica sobre o trabalho, permitindo a sua transformação e a reorganização dos processos de trabalho, por meio da problematização das experiências, permeadas por aspectos que vão além de habilidades técnicas e conhecimento, passando pela subjetividade e por relações estruturadas entre as pessoas envolvidas nos processos de atenção à saúde (Ceccim, Feuerwerker, 2004). No cenário do atendimento pré-hospitalar móvel, é imperativo que os profissionais tenham formação polivalente e orientada para a visão da realidade. Daí a importância de se trabalhar a partir da definição de áreas de competência, possibilitando a integração de diferentes saberes e conhecimentos e a interação multiprofissional, contribuindo para a formação de um profissional que agregue aptidões para a tomada de decisões, comunicação, liderança e gerenciamento (Silva, Sena, 2006). Essas devem ser as características do profissional que atua no ambiente pré-hospitalar, pois permanentemente se depara com situações que exigem aptidões, além do conhecimento técnico. É necessário saber lidar com situações nas quais devem estar sempre presentes a criatividade, o espírito de observação e a tomada de atitude. Para isso, o processo ensino-aprendizagem deve responder a essas necessidades, adequando-se à complexidade e à imprevisibilidade, características do processo de trabalho em saúde (Silva, Sena, 2006). No processo de trabalho do atendimento em urgências, essas características se expressam das mais variadas formas: pela necessidade de responder aos agravos de qualquer natureza, seja ela clínica, traumática, obstétrica ou psiquiátrica, nem sempre coincidentes com as áreas de profissionalização do trabalhador ou de sua formação específica; pela necessidade de estar preparado para atender pacientes de quaisquer faixas etárias, de interagir com profissionais que não são da área da saúde, mas que participam da atenção às urgências, de assumir o cuidado em situações completamente adversas, de complementar a assistência, adentrando em serviços que não são pertinentes à sua atuação. Há diversas outras situações que, no atendimento pré-hospitalar, percorrem um caminho inverso: não é a equipe que espera pelo paciente no interior de um serviço; é ela que vai ao encontro dele, para assisti-lo em situações das mais variadas. Explicitação da experiência O NEP do Samu 192 Porto Alegre tem como principais objetivos: contribuir para a qualidade assistencial; padronizar a assistência; fomentar a construção de protocolos e rotinas assistenciais e condutas técnicas; proporcionar espaço de discussão sobre questões relativas à assistência; servir como meio de revisão e promoção de conhecimento; servir como meio facilitador na promoção e integração do trabalho em equipe; incorporar atividades de pesquisa destinadas ao diagnóstico/avaliação do serviço; e subsidiar ações de planejamento e gestão do serviço. As atividades desenvolvidas no ano de 2006, embasadas nesses objetivos, foram organizadas procurando respeitar as recomendações da grade curricular proposta na Portaria MS nº 2.048/2002, associadas às demandas sugeridas pelo próprio grupo de profissionais de todas as categorias funcionais do Samu. As demandas foram coletadas pela aplicação individual de um instrumento que levantou, entre outros pontos, quais eram os temas a serem desenvolvidos no programa de Educação Permanente. Foram identificados, sobretudo, temas relacionados ao manejo de pacientes, especialmente em relação às seguintes situações: imobilização e transporte de vítimas graves, reanimação cardiorrespiratória, urgências clínicas, especialmente cardiológicas e neurológicas, urgências pediátricas, neonatais e obstétricas, entre outros, em menor número de citações. Segundo Ceccim (2004), as demandas para a educação em serviço não se definem somente valendo-se de uma lista de necessidades individuais de atualização, mas prioritariamente com base nos problemas da organização do trabalho, e é a partir dessa problematização que se identificam as COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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necessidades de qualificação, garantindo a aplicabilidade e a relevância dos conteúdos e tecnologias estabelecidas. Esta premissa sustenta objetivos do NEP, uma vez que pretende que a reunião das pessoas em torno de um tema selecionado deve gerar, não só a revisão do conteúdo técnico, mas também servir como espaço de reflexão de condutas e discussão das práticas do serviço, apontando para a construção de novos protocolos e rotinas ou revisão daqueles já existentes. As atividades foram planejadas, iniciando-se pela revisão dos temas específicos de atendimento. Alguns assuntos foram organizados por categoria profissional e outros em atividades conjuntas de toda a equipe do Samu, considerando as competências dos membros do grupo. Desenvolver os temas com base nas competências traz vantagens porque competência é um conceito mais amplo que conhecimento, pois mobiliza habilidades, técnicas e experiências prévias para solucionar situações problemáticas, em contextos sociais práticos e definidos. Competências têm, por sua definição, um caráter prático e social, que ajuda o sujeito que aprende a utilizar os conhecimentos em situações operativas e existenciais, permitindo trabalhar com situações e desafios complexos, mais próximos de situações reais e desenvolver continuamente a reflexão crítica (Mogilka, 2003). A organização das atividades baseou-se nas experiências do cotidiano das equipes, levando-se em conta as situações vivenciadas, especialmente aquelas que poderiam apontar as maiores dificuldades de manejo. Conforme Lima (2005), a utilização de situações reais ou simuladas da prática profissional garante uma aproximação da aprendizagem ao mundo do trabalho e oportuniza a construção de novos saberes, assim como provoca a reflexão sobre as ações adotadas, procurando melhor qualificar essas ações. O trabalho do NEP previu que a Educação Permanente, além de promover a atualização técnicocientífica dos profissionais do Samu, considerando o tempo de serviço díspare entre os membros da equipe e a necessidade de revisão de algumas práticas, tivesse como objetivo a formulação de protocolos de serviço, como resultado das atividades. Além disto, revisando conteúdos técnicos e rediscutindo condutas no manejo dos pacientes atendidos pelas equipes, seria oportunizado espaço para a reflexão sobre as condutas e discussão dos processos de trabalho no Samu. A programação formatada com base nessas premissas foi planejada para acontecer em dois momentos: inicialmente, voltada para os conteúdos de suporte avançado de vida (dirigida, portanto, para médicos e enfermeiros do Samu), seriam trabalhados os conteúdos teóricos que resultariam na elaboração dos protocolos. Num segundo momento, mediante a formulação e validação do protocolo junto à coordenação do serviço, seria realizada a parte prática dos mesmos, envolvendo todos os membros da equipe do Samu. Essa prática serviria como estratégia de validação final e de divulgação e implantação definitiva dos protocolos. Para isto, foram convidados instrutores experientes na área, membros do próprio Samu e, para aquelas áreas de domínio relativo do Samu (pediatria, por exemplo), estendeu-se o convite aos técnicos de outros serviços, para que pudessem agregar novos saberes, adaptados à realidade do atendimento pré-hospitalar. Trabalhou-se, portanto, na perspectiva da geração de produtos, tomando a educação como estratégia fundamental para a construção de ferramentas importantes, não só voltadas para a assistência propriamente dita, mas também como elemento para apoio ao planejamento e à gestão do serviço. Entretanto, a execução do trabalho não aconteceu exatamente conforme planejado, em razão das dificuldades descritas a seguir. Ainda que se tenha tentado organizar alternativas diferentes de horário para as aulas (a imensa maioria dos trabalhadores cumpre escalas verticais de trabalho), que permitissem escolha por preferência e disponibilidade fora dos horários habituais de trabalho, houve baixa adesão dos profissionais às atividades. Com exceção de um dos temas em que eles foram convocados por necessidade jurídica do serviço, todas as demais atividades foram oferecidas na forma de convite, ou seja, não se determinou a obrigatoriedade de presença. Com exceção do grupo de enfermeiros, nos demais, a participação foi inferior a 50% do grupo, por categoria funcional: os condutores estiveram presentes em 38% das atividades, com maior presença nas aulas de reanimação e imobilização, seguida da revisão das síndromes. Quanto aos auxiliares e técnicos 662

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de enfermagem, as participações foram de 26,5%, com maior presença nas aulas de reanimação e imobilização, seguida da aula prática em urgências pediátricas. Em relação aos enfermeiros, a participação foi de 54,1%, com maior presença na aula específica para este grupo (manejo dos equipamentos de suporte avançado), seguida de participação similar nas aulas de reanimação e imobilização e urgências neonatais. Por fim, a participação dos médicos foi de 20,5%, com maior participação nas aulas de Reanimação e Imobilização, seguida da aula específica para médicos e enfermeiros, com o tema de urgências cardiológicas. Constatou-se maior participação nas atividades teóricas, em detrimento das práticas. Não foi possível precisar os motivos, no entanto, causou preocupação que o interesse por atividades práticas fosse tão pouco relevante. Práticas como estas necessitam de revisão sistemática para se atualizarem conceitos, corrigirem falhas, prevenirem vícios de execução e suprir-se a insuficiência de treinamento para novatos no serviço. Apesar da oferta de mais de uma possibilidade de horário para as aulas, esbarrou-se na dificuldade de não se contar com instrutores suficientes para abordar o mesmo conteúdo em várias turmas. Os instrutores do quadro próprio do Samu realizaram atividades fora de sua jornada - e, em que pese a proposição sugerida aos coordenadores quanto a subtraírem essas horas da escala, como alternativa de compensação, isto não pôde ser administrado, em função da precariedade do quadro de pessoal para o cumprimento das escalas assistenciais, tornando inviável dispensar qualquer servidor, em detrimento da escala normal. A dificuldade nas condições de infra-estrutura física e material foi marcante. De um lado, a falta de espaço físico, devido à concorrência de agendas de outros serviços e indisponibilidade de salas de aula e recursos audiovisuais. De outro, a insuficiência de materiais para atividades práticas: bonecos de treinamento, insumos e equipamentos, que, por não existirem em quantidade exclusiva para capacitação, necessitam ser retirados do atendimento, o que se torna inviável. Esta limitação empobrece as atividades práticas, pois dificulta que todos os participantes possam exercitá-las num tempo adequado. Houve dificuldade de sistematizar o conteúdo teórico sob a forma de protocolo. Conforme já descrito anteriormente, após a realização das aulas, contou-se com a participação dos instrutores para a elaboração e revisão dos protocolos sugeridos. Mais uma vez, as pessoas trabalharam dentro de suas possibilidades como colaboradores, pois não houve condições de reunir o grupo, discutir e preparar, de forma mais ágil, as produções. O trabalho circulou por meio eletrônico para que os instrutores envolvidos pudessem dar suas contribuições - evidentemente, os tempos são heterogêneos para a execução de tarefas com esta metodologia. Esta dificuldade resultou no não cumprimento da programação estabelecida, que era a de realizar as atividades de suporte básico após a conclusão dos protocolos. Foi necessário reformular a dinâmica, sob pena de prejudicar o andamento das atividades para as equipes de nível médio, cuja educação trabalhou com conteúdo, e não com base nos protocolos. Entretanto, a experiência foi interessante, na medida em que contou com a capacidade técnica de vários saberes que, juntos, construíram e se responsabilizaram por uma normativa de serviço. Considerou-se que as recomendações e sugestões resultantes dos encontros educativos não obtiveram, em sua totalidade, o necessário reconhecimento. Reunir as pessoas em torno de um tema gera debate não só relacionado ao conteúdo teórico, mas também em relação a aspectos funcionais e à aplicabilidade do conteúdo na prática cotidiana do serviço. Instiga a reflexão sobre os processos de trabalho que envolvem uma equipe e um processo de auto-avaliação, individual e coletivo, em relação às práticas usuais. Várias sugestões foram feitas pelos participantes que atuam diretamente na assistência, como, por exemplo: quanto ao uso de materiais (quantidade e qualidade dos mesmos), padronização de condutas, uso e/ou adaptação de novas tecnologias, sobre necessidades estruturais e organizacionais do serviço, e outra série de apontamentos que influenciam diretamente a qualidade da assistência, sob a ótica dos profissionais da “linha de frente”, ou seja, aqueles que atuam diretamente no atendimento pré-hospitalar propriamente dito. As atividades geraram relatórios, onde foram descritas todas as discussões feitas nas aulas, com as recomendações e questionamentos apontados pelos participantes. Esses relatórios foram encaminhados aos coordenadores do serviço, cumprindo o estabelecido como objetivo, que seria o de oferecer subsídios à gestão e ao planejamento do serviço, e que terminaram por gerar expectativas para que as sugestões pudessem tornar-se efetivas. 663


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Somente parte da grade curricular recomendada na Portaria MS nº 2048/2002 pôde ser realizada. Os motivos passam pelos apontados anteriormente, denotando obstáculos em se estabelecer a educação como um processo permanente e continuado. Pode-se inferir que, como a Educação Permanente não está inteiramente conectada com a gestão do trabalho, as iniciativas para dar concretude a este processo continuado perdem força na rotina do serviço, pois não existe uma priorização em relação a dispor de carga horária para que os profissionais se dediquem às atividades, participando, tanto como alunos, quanto como instrutores. Geralmente, os gestores concentram esforços na organização da cobertura das escalas assistenciais e negligenciam a disponibilidade de carga horária dos trabalhadores para os programas de Educação Permanente.

Discussão da experiência As atividades desenvolvidas contribuíram para despertar o interesse das equipes e comprometê-las a pensarem na sua qualificação e na do serviço. Entretanto, uma preocupante constatação se fez presente. Ainda que se justifique a necessidade de zelar por sua qualidade e por sua eficiência, e que uma das grandes estratégias para isto seja investir nos profissionais que prestam a assistência à população, ficam evidentes as dificuldades e a falta de iniciativas para que se busque a tão esperada qualidade na preparação de seu quadro de profissionais. Essas dificuldades precisam ser equacionadas, sobretudo por aqueles que se ocupam da gestão, voltando seu olhar para a amplitude das ações necessárias, que vão além da prestação da assistência. O envolvimento dos trabalhadores com a Educação Permanente não é responsabilidade exclusiva deles próprios. Ao administrar o serviço, o gestor precisa priorizar e incorporar a qualificação de seus trabalhadores. Do contrário, o que se realiza não pode sequer ser conceituado como processo de Educação Permanente, pois as ações não estão inseridas na rotina do serviço e tornam-se dispersas, resultando em atividades pontuais e desconectadas do contexto de organização do trabalho. Pensando-se em medidas de avaliação de desempenho da equipe e na necessidade de “garantir aos trabalhadores a habilitação formal, obrigatória e com renovação periódica para o exercício profissional e a intervenção nas urgências”, conforme estabelecido normativamente na Política Nacional de Atenção às Urgências, é imperativo que a Educação Permanente faça parte da rotina do serviço. Ao assumir caráter obrigatório, evidentemente, precisa ser considerada como carga horária trabalhada. Considerar como hora trabalhada significa avançar na gestão de pessoal profissional de elevada formação, extrapolando a necessidade de prover somente o contingente necessário para o cumprimento de escalas assistenciais. Significa, também, planejar o trabalho apostando nas estratégias de qualificação de suas equipes como processo permanente, inserido no cotidiano das ações do serviço, pois, em geral, este espaço para a educação é tratado externamente à rotina do trabalho. Cumprindo as cargas horárias recomendadas, conforme a normativa nacional, é possível projetar que, ao longo de um período de nove meses (o período compreendido entre os meses de março a novembro, uma vez que os meses de dezembro, janeiro e fevereiro costumam ser priorizados ao gozo de férias), haveria a necessidade de dispor, em média, de 14 horas de trabalho ao mês, destinadas à educação em serviço, o que parece ser um volume de carga horária de inserção factível na dinâmica administrativa do serviço.

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CICONET, R.M.; MARQUES, G.Q.; LIMA, M.A.D.S.

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Considerações finais O processo de Educação Permanente impõe uma série de desafios que precisam ser transpostos para tornar-se efetivo. Para garantir a efetividade deste processo e imprimir caráter permanente e continuado, é fundamental inseri-lo na rotina de trabalho e considerar, portanto, as atividades dentro da carga horária contratual do trabalhador. Desta forma aumentam as possibilidades de as pessoas participarem e de se garantir que os que mais necessitam qualificar-se estejam efetivamente presentes. Não é raro que a presença seja mais maciça por parte daqueles profissionais que nutrem maior interesse pelo serviço, são mais comprometidos com o trabalho e, portanto, preocupam-se com os processos de aprimoramento em serviço. A Educação Permanente cria espaços de reflexão para que os profissionais repensem sua prática, entendam os processos de trabalho no qual estão inseridos, e tenham a possibilidade de repensar condutas, de buscar novas estratégias de intervenção e perseguir, também, a superação de dificuldades individuais e coletivas no trabalho. A atuação dos profissionais do Samu está permanentemente cercada de desafios. Desafios que exigem prontidão, pois quanto maiores os desafios, maiores são as exigências para superá-los. Não basta motivar os trabalhadores, é necessário envolver os gestores para que assumam compromissos, criando alternativas para que a Educação Permanente componha os contratos de trabalho. O desafio está aquilatado: inserir a Educação Permanente como prioridade nas agendas dos gestores, criando condições para que os trabalhadores usufruam e se envolvam. Essa medida é um passo muito importante no preenchimento das lacunas da formação dos profissionais e para prepará-los às especificidades que o atendimento pré-hospitalar exige.

Colaboradores Rosane Mortari Ciconet participou da concepção, elaboração e redação do artigo. Maria Alice Dias da Silva Lima participou da concepção, elaboração e revisão crítica do artigo. Giselda Quintana Marques revisou a redação final e propôs sugestões. Referências BRASIL. Ministério da Saúde. Política Nacional de Atenção às Urgências. 3.ed. Brasília: Ministério da Saúde, 2006. CECCIM, R.B.; FEUERWERKER, L.C.M. O quadrilátero da formação para a área da saúde: ensino, gestão, atenção e controle social. Physis, v.14, n.1, p.41-65, 2004. LIMA, V.V. Competência: distintas abordagens e implicações na formação dos profissionais de saúde. Interface - Comunic.,Saúde, Educ., v.9, n.17, p.369-79, 2005. MOGILKA, M. Educar para a democracia. Cad. Pesqu., n.119, p.129-46, 2003. OLIVEIRA, L.C.; CICONET, R.M. Atendimento pré-hospitalar. In: ESTRAN, N.V.B. (Coord.). Sala de emergência: emergências clínicas e traumáticas. Porto Alegre: Editora da Universidade/Ufrgs, 2003. p.25-36. SILVA, K.L.S; SENA, R.R. A educação de enfermagem: buscando a formação crítico-reflexiva e as competências profissionais. Rev. Latinoam. Enferm., v.14, n.5, p.755-61, 2006. ZANI, A.V.; NOGUEIRA, M.S. Incidentes críticos do processo ensino-aprendizagem do curso de graduação em enfermagem, segundo a percepção de alunos e docentes. Rev. Latinoam. Enferm., v.14, n.5, p.742-8, 2006.

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Relata-se a experiência realizada no Serviço de Atendimento Móvel de Urgência – Samu 192, da Secretaria Municipal de Saúde de Porto Alegre - RS, quanto ao trabalho desenvolvido pelo Núcleo de Educação Permanente em Urgências. Consta das principais necessidades e dos principais avanços encontrados no desenvolvimento das atividades, apresentando uma reflexão crítica do processo desenvolvido. Reconhece-se que implantar e manter processos de Educação Permanente em Urgências junto aos Samu é de fundamental relevância para a qualificação dos serviços, entretanto, registram-se as dificuldades na sua execução, especialmente devidas à forma da organização do trabalho no componente pré-hospitalar móvel. Conclui-se que investir na educação incorporada à rotina de trabalho como um processo efetivo, contínuo e ajustado às necessidades do cotidiano e da evolução da estratégia constitui prioridade de gestão e de avaliação de sua qualidade.

Palavras-chave: Educação Permanente em Saúde. Educação em serviço. Medicina de emergência. In-service training for health professionals of the Mobile Emergency Care Service: report on the experience of Porto Alegre, RS, Brazil This article reports on experience at the Mobile Emergency Care Service (Serviço de Atendimento Móvel de Urgência – SAMU 192) of the Municipal Health Department of Porto Alegre, RS, relating to work developed by the Center for Continuing Emergency Care Education. The core needs and important advances in developing the activities are reported and a critical reflection on the process is presented. The article acknowledges the crucial relevance of establishing and maintaining processes of continuing education at SAMU units to improve services. However, it points out difficulties in accomplishing such processes, especially because of the way in which the mobile pre-hospital component of the work is organized. It concludes that investing in education incorporated within the work routine, as an effective continuous process adapted to everyday needs and strategy development needs, is a priority for management and for quality evaluation.

Key words: Permanent health education. In-service education. Emergency medicine. Educación en servicio para profesionales de salud del Servicio de Cuidado Móvil de Urgencia: un relato de experiencia de Porto Alegre, capital del estado brasileño de Rio Grande do Sul. El articulo relata la experiencia realizada en el Servicio de Atención Móvil de Urgencia – SAMU 192 de la Secretaría Municipal de Salud de Porto Alegre cuanto al trabajo desarrollado por el Núcleo de Educación Permanente en Urgencias. Se refiere a las principales necesidades y relevantes avances encontrados en le desarrollo de las actividades, presentando una reflexión crítica del proceso desarrollado. Reconoce que implantar y mantener procesos de calificación de los servicios; sin embargo, registra las dificultades en su ejecución, especialmente debidas a la forma de la organización del trabajo en el componente pre-hospitalario móvil. Concluye que invertir en la educación incorporada en la rutina de trabajo, como um proceso efectivo, continuado y ajustado a las necesidades del cotidiano y de la evolución de la estrategia constituye prioridad de la gestión y de la evaluación de su calidad.

Palabras clave: Educación permanente en salud. Educación en servicio. Medicina de emergencia. Recebido em 05/10/07. Aprovado em 28/02/08.

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Da tristeza à depressão: a transformação de um mal-estar em adoecimento no trabalho

Luiz Carlos Brant1 Carlos Minayo-Gomez2

Introdução Ao escrever sobre a tristeza, percebemos a sua presença impregnando nossa escrita, perturbando-nos com pensamentos que gostaríamos de não ter. Um fracasso profissional ou amoroso; uma traição ou doença crônica inesperada; um reconhecimento não obtido ou desejo não correspondido formam, quase sempre, o fio do pavio “detona-dor” da tristeza humana. Isolamento, mutismo, lágrimas contidas ou derramadas - dimensões reconhecidas culturalmente como pertencentes à tristeza - são manifestações comuns. Sob o silêncio inscrito no corpo, parece haver uma contenda entre pensamentos, dúvidas e delírios para driblar a proximidade da morte, uma imagem comum nas situações de tristeza. Sob o imperativo da alegria, a qualquer preço, a nossa sociedade - avessa ao malestar - fez da tristeza algo fora de moda. No âmbito do trabalho pós-industrial, a manifestação da tristeza tornou-se um tabu, e raros são os indivíduos dispostos a escutar a pessoa triste. A falta de tempo é a resposta comum para a ausência de laços e de redes capazes de proporcionar acolhimento ao sujeito e sua tristeza. Os voláteis gestos de solidariedade para desempregados ou para os alvos de assédio moral e sexual nas empresas têm a exata duração das manchetes da mídia, caindo no esquecimento quando novos interesses ocupam a pauta da agenda política. As buscas por soluções imediatas acabam por cercear a expressão do sofrimento, comprometendo a saúde e as estratégias de resistências dos trabalhadores. A tristeza cravada nos corpos dos indivíduos do século 21 são insígnias da vida nua (Agamben, 2002). Com os contratos temporários e deslocamentos constantes, os trabalhadores transformaram-se em nômades. Logo, ter uma trajetória ocupacional estável e modos particulares de ser são raridades. Em contextos competitivos, trabalhar e viver têm deixado as pessoas mais tristes. Muitas empresas e organizações governamentais estão atravessadas por redes de intrigas e competições. Seus componentes, quase sempre, pertencem às reservas de mercado asseguradas pelo capital social das famílias. Nesses casos, a experiência de trabalho do colega é banalizada. O trabalhador, ainda que seja reconhecido institucionalmente, pode sofrer desbancamento de seu posto para destiná-lo aos “herdeiros”. Desta forma, privilegiam-se os mais privilegiados e se desfavorecem COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

1 Graduado em Ciências Humanas. Centro de Estudos do Trabalho e Ecologia Humana, Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz. Av. Francisco Sales, 1614/502 – Belo Horizonte, MG 30.150-221 interfaz@interfaz.com.br 2 Graduado em Ciências Humanas. Centro de Estudos do Trabalho e Ecologia Humana, Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz.

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os menos favorecidos (Bourdieu, 1989). É visível o esforço de alguns tentando fazer com que a expressão de tristeza adquira a fachada de bem-estar, evidenciando a fragilidade das estratégias para enfrentar as pressões. Outros tentam impedir que a manifestação da tristeza seja diagnosticada como doença – forma de evitar uma exclusão cercada de cuidados. Trabalhadores, gestores e profissionais da saúde constroem estratégias de resistência contra o adoecimento e instituem espaços de escuta para a manifestação do sofrimento. Profissionais da saúde e gestores não sabem lidar com a expressão do sofrimento, tampouco que destino lhe dar. Apesar das condições adversas, alguns revelam sofrimentos e constroem resistências à lógica do adoecimento, conforme nossa experiência empírica. Constitui nosso objetivo, no presente artigo, focalizar as estratégias institucionais para lidar com a tristeza. Buscamos reconstruir e compreender a trajetória dos discursos, partindo da manifestação da tristeza até chegar à homilia da depressão, passando pelas expressões de melancolia. Entendendo por trajetória o caminho percorrido entre as primeiras expressões de tristeza e o diagnóstico de doença. Procuramos identificar os dispositivos sociofuncionais capazes de transformá-la em distúrbio mental. Empreendemos, ainda, uma leitura acerca da psiquiatrização, enfatizando não apenas a sua lógica conceitual, mas as estratégias organizacionais capazes de levar o trabalhador triste ao adoecimento.

Abordagem teórico-metodológica Metodologicamente, trata-se de um estudo qualitativo, tendo como método de análise a hermenêutica-dialética, que busca as bases da compreensão da realidade por meio da linguagem, introduzindo o princípio do conflito e da contradição (Minayo, Deslandes, 2002). Entrevistamos 13 trabalhadores, 13 gestores e oito profissionais da saúde, selecionados por busca ativa, em uma empresa do setor de serviços, situada numa capital da Região Sudeste, do Brasil. Para compreender a tristeza e a depressão, foi necessário contextualizá-las, no âmbito das transformações da empresa investigada. Para tal, solicitamos à empresa house organs, publicados entre 1995 (início da reestruturação produtiva) e 2001 (ano das primeiras entrevistas). Para compreender as manifestações da tristeza, os dispositivos e as vicissitudes da transformação desse mal-estar em depressão, interpretamos os depoimentos como enunciados. A relação instaurada entre pesquisador e entrevistados configurou uma situação que implicou entender a realidade com base em vários pontos de vista. Buscou-se penetrar em suas explicações, sobretudo, dialogar com as circunstâncias, considerando que a história está presente na situação. Na entrevista, procurou-se alcançar o domínio do que ainda não tinha sido colocado em palavras, ainda sem nomeação. Portanto, o trabalho de campo iniciou-se a partir do manifestado, seguido de um movimento de construção, desconstrução e reconstrução. O presente artigo obteve aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da Fundação Oswaldo Cruz, sob o parecer Nº 06/03, aprovado em 02 de fevereiro de 2003.

A tristeza no Brasil: antigas heranças A alegria pela constatação de que, nessas terras, em se plantando, tudo dá, logo se perdeu. Foi-se embora o embevecido dizer-sim ao aspecto global da vida tupiniquim, em sua eterna vontade de geração, fecundidade e necessidade de criação. Posteriormente, ao descobrimento do Brasil, “passou-se a viver nessa terra radiosa um povo triste. Legaram-lhe essa melancolia os descobridores que a revelaram ao mundo e a povoaram” (Prado, 1929, p.9). Os brasileiros parecem ter ficado ainda mais tristes por saberem-se tristes, com o sombrio diagnóstico da situação do País. O sucesso editorial da obra desse autor foi tão grande que, em 1931, chegava ao público a sua quarta edição. Assim, Retrato do Brasil abriu, a partir de 1930, caminho para grandes ensaios sobre o Brasil, como Casa Grande e Senzala, e Macunaíma. O herói sem nenhum caráter, na ficção, encarna a concepção de povo triste (Scliar, 2003).

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Com efeito, apenas os “brasileiros aristotélicos” e Macunaíma ficariam felizes com a “tristeza nacional” - herança d’além mar. Para Aristóteles, a bílis negra (melaina Kole) determina os grandes homens. Na Grécia clássica, a tristeza equilibrada pelo gênio é coextensiva à inquietação do homem no Ser, havendo uma superabundância de humanidade. Mas, essa positividade não atingiu, nem mesmo, a obscura Era Medieval. A tristeza nunca mais seria vista com bons olhos no mundo ocidental. Na Idade Média, os adeptos da Tristitia eram enviados ao inferno, repositório das amarguras, dos reclamos e das decepções. “Ao meio da jornada da vida, tendo perdido o caminho verdadeiro, acheime embrenhado em selva tenebrosa. Tão triste que na própria morte não haverá maior tristeza” (Alighieri, 1981, p.25). Na teologia cristã, os tristes eram considerados solitários pecadores, pois, nessa perspectiva, a tristeza é um pecado. Ter um coração taciturno significa ter perdido Deus. Tomando por base a doutrina de Tomás de Aquino, as pessoas tristes eram misericordiosas - tinham paixão pela miséria - uma vez que o sofrimento de outro seria vivido como um mal pessoal. Os monges da Idade Média celebravam “a tristeza como ascese mística, um meio para atingir a verdade divina, dando provas de fé” (Kristeva, 1989, p.15). Na Era Moderna, o sujeito triste era um arauto da fraqueza reprovado por Espinosa (1978), que situava a tristeza no âmbito da ética. Constituída por idéias inadequadas que instauram sofrimentos, a tristeza era concebida como uma dimensão humana que diminui ou entrava o pensamento e a capacidade de conhecer e de agir. A sua força afeta a natureza do corpo, tornando-o passivo. Com efeito, essa afecção é um ato que leva o sujeito a praticar poucas ações na vida. Para Nietzsche (1978), manifestação do sofrimento e tristeza são dimensões diferenciadas. Enquanto a primeira pode gerar ações transformadoras da vida, a segunda é sempre uma debilidade. Paralisa o sujeito em momentos decisivos. Segundo sua argumentação, aquele que manifesta tristeza é desprezível, pois se trata de um verdadeiro pregador da morte. Abstenhamo-nos de despertar esses mortos ou de ferir esses vivos caixões, proclamava o filósofo de Leipzig.

Tristeza, modos de vida, trabalho e adoecimento Na empresa pesquisada, o aumento de controle das atividades e a ampliação das estruturas de poder provocadas pela flexibilização – da produção, contratos e benefícios adquiridos – transformaram a vida pessoal e laborativa, exigindo adaptações. A dimensão temporal foi a que afetou com maior intensidade o modo de ser dos trabalhadores. As exigências de rapidez, agilidade e aceleração alteraram não apenas os processos, mas também o ritmo e os relacionamentos. “Na equipe a competição é grande. Cada um corre mais para ficar com o melhor lugar. Estamos adoecendo. Reivindicações, jamais. Muita gente tem medo de perder o emprego. Estou ficando triste e sem forças” (FG, Trabalhador operacional). Se existia maior participação no processo de trabalho, havia também aumento dos agravos à saúde, medo e desmobilização coletiva. Enquanto a implementação de crescimento acelerado alinhava-se com sucesso ao projeto neoliberal da empresa, a constatação dos níveis de desgaste, tristeza, afastamentos por causas médicas e demissões enfraqueciam as estratégias de resistência. Com as transformações tecnológicas e gerenciais, as perspectivas se abriram, mas essa não era uma regra igualitária para todos os setores. A vida pessoal, as relações familiares e os contatos sociais sofreram mudanças afetando, sobretudo, “os velhos de casa”. Para a gestora da área da saúde, FR, “com o horário flexível, minha vida tornou-se maluca. O discurso da empresa é ‘o possível eu faço agora, o impossível vai demorar um pouco’. Estou sendo consumida pelo tempo com a sensação de estar atrasada”. A flexibilização passou a significar estar à disposição para atender chamados, a qualquer hora. Nesse depoimento, percebe-se uma nostalgia com relação à época da rotina para entrar e sair da empresa. Ela expressa ressentimentos por não conseguir acompanhar a vida escolar do filho e a mãe idosa. “Como posso preservar minha vida conjugal, se a cada momento, eu estou viajando. Não há continuidade. Sinto cada vez mais triste.” A tristeza surge assinalando uma paralisia diante da possibilidade de perda de controle. O processo de psiquiatrização provocava inquietação não apenas devido à medicalização da tristeza, diagnosticada como depressão, mas pela desqualificação produzida na concepção que os trabalhadores COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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tinham de si mesmos. Como afirmava, ainda, a entrevistada: “vou acabar deprimida. Vão prescrever antidepressivo para a minha dor de cabeça; é a prova do meu fracasso”. Nessa perspectiva, eram comuns as queixas de dor difusa que, em outras situações, vinham se configurando como causas de afastamentos por razões psiquiátricas. Já a tristeza era interpretada como sinônimo de fracasso, incompetência e desadaptação - tudo isso era próprio de um processo de transformação do sofrimento em adoecimento (Brant, Minayo, 2004) A tristeza surgia como maldita, sobretudo, no meio gerencial, levando o indivíduo a sentir-se envergonhado e ao isolamento. Essa silenciosa consternação era diagnosticada como depressão. No entanto, parecia ser bem recebida pelo “paciente”, pois o peso moral da “doença” parece ser menor que o do sofrimento. A tristeza foi a segunda maior manifestação de sofrimento entre os gestores (43,7%). Esse sofrimento foi relacionado à pressão no trabalho, falta de reconhecimento e desconhecimento acerca da importância daquilo que se faz. A ausência de prazer - no sentido de gratificação - a falta de perspectiva de crescimento profissional e o desrespeito, também, foram mencionados (Brant, Dias, 2004). A análise de outros depoimentos, notadamente dos profissionais da saúde, reforçou a tese da psiquiatrização. Evidências de uma prática profissional que interpretava queixas do tipo “estou triste ou deprimida” como enunciado de uma doença (Coser, 2003). A representação da tristeza como “transtorno emocional” aparece por meio de expressões como “coisa de doido” e “vivi no mundo da lua”. Para GS, “a tristeza tem a pior repercussão na carreira. O trabalhador triste é como lunático. Nos prontuários aparecem apenas queixas de dor, insônia e estresse. Alguns chegam, dizendo-se deprimidos. E, colegas médicos confirmam para ficar livre do paciente”. Além de chamar atenção para um cenário sombrio – demissões e perdas de cargos - esse profissional revelava um imaginário tecido em torno da pessoa triste e uma abordagem patologizante.

Crescimento organizacional e psiquiatrização da tristeza Na empresa, observamos dezenas de homens trabalhando em pé, diante de grandes armários. A maioria, em silêncio, olhava fixamente para vários objetos contidos em uma das mãos, enquanto o braço levantava e abaixava, sincronizadamente, colocando-os em pequenos escaninhos. Enquanto isso, um supervisor, com relógio em punho, prancheta nas mãos e um olhar fixo, cronometrava. Para efeitos de avaliação, a margem de erro tolerada era de 3%. Rapidez e agilidade eram os quesitos mais valorizados, pois todas as encomendas recebidas deveriam ser enviadas aos seus destinos no mesmo dia, independentemente do número de homens e de objetos. Novamente, o tempo surgia como uma forte influência. “Aqui existe a psiquiatrização da queixa. É impressionante a incidência de afastamentos por neurose, estresse, depressão [...]. A segunda maior queixa é da psiquiatria, a primeira é ortopedia” (CO, médico). A empresa atingiu uma marca histórica: “cumpriu a meta de estar presente em todos os municípios” (House Organ, 2000, p.2). Todos os trabalhadores dos setores operacionais foram homenageados. Quando os trabalhadores passavam dos galpões fechados do setor operacional ao universo das ruas, havia transcorrido cerca de quatro horas. Iniciava-se a ilusória liberdade, princípio de um imenso labirinto a ser trilhado, cujo fio-guia era o destino de cada, para entrega domicíliar. A sacola sobre os ombros deveria ter 12 kg. No entanto, carregar até 18 kg era uma prática comum para não ter de retornar à empresa para o recarregamento; economizava-se, com isso, “uma segunda viagem”. A distribuição iniciava-se por volta das 12 horas. Almoçar no final da tarde, após a entrega, também era uma estratégia. A alimentação deixava o corpo pesado, sonolento e diminuía a marcha. Em contrapartida, a ingestão de água, durante a caminhada, proporcionava sensação de leveza e disposição, mas os obrigava a procurar banheiros públicos ou solicitá-los em bares. Enquanto isso, a ingestão de cafezinhos apaziguava a sensação de fome e alimentava não só a esperança de chegar em casa mais cedo, com a certeza da missão cumprida, como também “uma tristeza pois, com a privatização e as máquinas, não sei se eles vão manter um velho, que vive reclamando de dor. Cada dia eles aumentam as metas e com isso minhas dores vão piorando” (HD, trabalhador operacional). 670

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A empresa comemorava os prêmios pelo recorde no tráfego de encomenda e planejava o ano de 2001. “Estabelecem como diretrizes: fortalecer os valores organizacionais, aumentar a receita, diminuir a despesa, obter a satisfação do cliente, universalizar a prestação dos serviços” (House Organ, 2000, p.3). Enquanto os meios de comunicação davam visibilidade à alegria dos gestores, nos bastidores encontravam-se alguns trabalhadores tristes e preocupados com a privatização. No setor médico, processava-se a psiquiatrização da tristeza. Algumas manifestações do sofrimento emergiam sob a forma de dor - ardência, rigidez muscular e câimbras. As queixas iam desde um leve incômodo até uma dor aguda. Variavam de acordo com o horário do dia, intensidade dos esforços físicos, condições climáticas e presença de tristeza. Essas eram também alvos do processo de psiquiatrização. Onde se esperava acolhimento – lugar da palavra, da escuta e da construção de novos laços – operavam-se prescrições de psicofármacos, silenciando o sofrimento. O resultado final era a quebra das estratégias de resistência dos trabalhadores.

Diagnóstico de depressão e quebra de resistência O percurso da manifestação da tristeza em direção ao diagnóstico de depressão se iniciava com o encaminhamento pelo supervisor e continuava na consulta médica. Quando o paciente começava a relatar a história de trabalho, instaurava-se um clima para fazer calar aquilo que não se julgava significativo. Segundo JF, do setor administrativo: “Eu estava aéreo. Logo meu supervisor me encaminhou. Eu mal comecei a falar, o doutor disse: você precisa de psiquiatra, é depressão. Foram as únicas palavras”. Nesse curto e rápido trajeto entre a expressão do sofrimento e o diagnóstico, a participação do gestor era central como dispositivo de adoecimento. A percepção do gestor constituía elemento para caracterizar a expressão do sofrimento como problema de ordem médica. Na maioria dos casos, o trabalhador triste permanecia longos períodos absorvido pelos próprios pensamentos. Tal concentração deixava o indivíduo, visivelmente, desvitalizado, situação interpretada como preguiça ou desânimo. Não se levavam em consideração as condições de trabalho na conformação da “depressão”. Era comum se recorrer à chamada “culpabilização da vítima”, em que a responsabilização recaía, unicamente, sobre a subjetividade, entendida como algo próprio da relação do homem com o seu desejo (Brant, 2001). “Se o cara tá estranho ou é questionador, a gente manda pro setor ocupacional. Passa primeiro pelos médicos do trabalho. Se ele achar que é pra médico de doido, ele dá a guia. As doenças comuns são encaminhadas para o convênio” (ML, supervisor operacional). O encaminhamento dos insubordinados aos determinantes organizacionais estabelecia uma dicotomia entre transgressão às normas estabelecidas e o processo saúde-doença-cuidado. O que transformava o setor de medicina ocupacional num dispositivo disciplinar cuja configuração se aproximava do modelo panóptico (Foucault, 1987). O supervisor fazia um breve relato acerca das suas percepções, na maioria das vezes, atravessado pelo tipo de relação com o subordinado. “Não é só preocupação com a saúde. Uma vez, eu estava triste, sentindo fracassado com as novas máquinas. Fiquei sabendo que o supervisor escreveu que eu era preguiçoso. A tristeza ficou mais forte; tive medo dela virar depressão” (PK, Trabalhador operacional). Para alguns, a tristeza forte transformava-se em depressão e era capaz de levar ao auto-extermínio. As dificuldades para apropriação de novas tecnologias, em geral, geravam tristeza, experienciada como fracasso pessoal. Poucos faziam referências aos precários treinamentos. Além do choro de ressentimento e raiva era comum aparecer culpa - um sentimento de estar perdido e paralisado. “Fiquei tão triste que não quero trabalhar. Estou perdido, penso que tudo dará errado”, conclui o entrevistado. A tristeza sugeria uma relação frouxa com a vida e a existência de um sujeito não comprometido. Sentir-se sem ânimo é sinal de impotência para o exercício de si (Espinosa, 1978). Entretanto, a manifestação da tristeza constituía-se, também, como positividade - estratégia de sobrevivência - uma forma de solicitar a presença do outro.

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Da tristeza à alegria: a busca do acolhimento O gerente administrativo NM, “colocado na geladeira” como punição pelas críticas à empresa, revelou que “medo e tristeza me atingem que chego a pensar em desistir”. Para ampliar nossa compreensão acerca da tristeza, buscamos os estudos transculturais de Uchoa (1997). A tradução do termo bambarra dussukassi é amargura. Depurando-o, dussu evocaria “coração que chora”. A coragem, a paixão e a energia – alojadas onde se encontram o coração e o fígado – expressam o verdadeiro significado da palavra dussu. Mesmo longe da intenção de estabelecer uma continuidade e homologia entre as diversas concepções de tristeza no tempo e no âmbito da cultura, poderia se afirmar que, tanto no “Inferno de Dante” como entre os bambarras e no depoimento do nosso gerente acima, o “coração que chora” suscita falta de desejo, energia, coragem e paixão. Somente após “o mergulho na tristeza, mas de mãos dadas com um amigo” – nas palavras de um entrevistado – era possível vencer a tristeza na empresa. A crença na esperança do sopro acolhedor para curar a ferida existencial parecia favorecer a elaboração e superação desse mal-estar. O enfrentamento de uma perda, cuja tristeza é o seu dado de visibilidade, parecia capaz de restabelecer o desejo de viver e a alegria que “foram arrancados junto com o coração e jogados nos quintos dos infernos”, ainda segundo a expressão desse entrevistado. Quando se toma partido pela vida, pode-se viver corajosamente e com alegria. A força de existir varia de intensidade. Enquanto alegria é o aumento da força para existir e agir, tristeza é a diminuição. O desejo é a gênese de existir e de agir de forma determinada (Espinosa, 1978). Portanto, o desejo constitui ação transformadora - materializada no trabalho, por exemplo. E pode deixar o indivíduo dividido entre os planos apolíneo - desejos de manutenção - e dionisíaco, que marca os processos criativos, pois toda criação implica rupturas com o estabelecido. Caso contrário, é repetição. Na empresa, a liberdade – autonomia decorrente do ato voluntário de escolha e não pertencente ao campo dos afetos, mas sim ao desdobramento interno daquilo que se é e naquilo que se faz – era cerceada por práticas de coibição que dificultavam a reconversão da tristeza em alegria. Em seguida, diagnosticava-se essa tristeza como depressão. Qual a utilidade do diagnóstico de depressão, se não o de autorizar a prescrição de psicofármacos e de invalidar o trabalhador por meio da atribuição da identidade de doente? “Falaram que eu não estava triste, estava doente, com depressão. Minha produtividade caiu. Então, me encaminharam pro médico. Ele passou medicamentos. Falei que não ia comprar, eu ia tomar chá” (RM, trabalhadora operacional). A tentativa de desapropriação da percepção acerca de si mesmo, do autocuidado e das estratégias de resistência ao adoecimento criavam dificuldades para o trabalhador pensar a respeito do próprio sofrimento. Desta forma, impedia-se a utilização de recursos próprios, como o do chá caseiro. “A própria depressão aponta muito mais na direção de ampliar a escravidão e a miséria existencial dos sujeitos do que a sua liberdade”, Coser (2003, p.36). A clínica contemporânea, ao esquecer a paixão triste, substituindo-a pela depressão, abandonou uma tradição que – de Aristóteles a Dante Alighieri, passando por Tomás de Aquino – lidava com a tristeza não como um estado anímico ou humor, mas como estado da alma. A manifestação da tristeza e sua articulação com o saber acerca de si chegavam ao fim no século 19. Enquanto isso nascia o discurso da depressão, trazendo à luz uma detalhada descrição sobre uma nova morbidade.

Depressão e medicalização: um futuro sem vida Alguns entrevistados não diziam estou triste, mas, deprimido. Em seu depoimento, OJ, trabalhadora do setor administrativo, revelou “eu sou deprimida. Sinto culpa e desânimo. Digo para o doutor que é preciso aumentar a dose ou trocar de antidepressivo, pois o atual não está fazendo efeito”. O que faz uma pessoa, ao perceber-se triste, culpada, desanimada, apresentar-se como deprimida? Esse conjunto de manifestações sinaliza a socialização de um vocabulário médico, introjetado e usado de forma confusa. Na literatura especializada, os termos tristeza, melancolia e depressão são descritos com pouca precisão na delimitação de seus campos, produzindo quebra de parâmetros clínicos e semiológicos. Essa imprecisão conceitual desqualifica o saber clínico e nosológico, provocando confusões terminológicas e 672

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éticas (Coser, 2003; Kristeva, 1989). Na tentativa de caracterizá-los, Mariuzzo (2004) afirma que a tristeza é sempre um estado da alma. Enquanto a melancolia é tanto uma doença como um estado de espírito. E conclui que depressão não é melancolia, mas uma patológica tristeza. Poderia um estado da alma transformar-se em morbidade? O depoimento de PA, profissional da saúde, contribui para um melhor entendimento da questão. Durante a entrevista, ele mostrou um periódico psiquiátrico. Das quarenta páginas que compunham esse suplemento especial - tendo a depressão como temática - 17 eram de comerciais. Entre os psicofármacos veiculados, 12 eram antidepressivos, dois antipsicóticos, dois ansiolíticos e um para tratamento da esquizofrenia. Trata-se de um exemplo da “invasão da indústria farmacêutica” que a sociedade atual sofre. Ocorrem, também, tentativas de dominação da clínica clássica pela colonização farmacológica. Entre os transtornos apresentados, no periódico, destacam-se: depressão, depressão com ansiedade, transtornos obsessivos compulsivos (TOC), transtorno do pânico, TOC pediátrico, ansiedade, agitação, inquietação, insônia e melancolia. Esse profissional revelou que é comum encontrar, nos consultórios de colegas, revistas médicas, patrocinadas por laboratórios de porte, onde figuram embalagens de antidepressivos, prometendo acabar com a tristeza. “Periódicos médicos na sala de espera, logomarcas gravadas em canetas e nas agendas, constituem amostras-grátis que podem levar os pacientes a identificarem o próprio sofrimento com os sintomas veiculados”. Uma das estratégias do marketing de psicofármacos consiste em ter, como ponto central da campanha publicitária, a veiculação de doenças na mídia. Por exemplo, uma revista de circulação nacional (optamos por não citar a fonte), calcula, para os próximos anos, um “baixo astral global”. Em 2020, a depressão ocupará o 2° lugar, depois das doenças cardíacas. A estimativa é de que 15% das pessoas terão, no mínimo, um episódio de depressão ao longo da vida. Outro veículo de comunicação declara: “pesquisa mostra que 26% dos entrevistados afirmaram já ter sentido, em grau leve ou muito grave, tristeza, depressão, preocupação ou ansiedade”. O depoimento de OJ, trabalhadora do setor administrativo, assemelha-se aos resultados de algumas pesquisas internacionais acerca da efetividade do uso de antidepressivos: “Tomo antidepressivos há mais de dez anos. Com o tempo, foram as doses aumentando e minha alegria com a vida diminuindo. Mudei de médicos, de remédios e continuo deprimida”. O uso prolongado de antidepressivos demonstra baixa efetividade. Segundo a literatura especializada, 40% dos pacientes e 34% dos médicos não estão satisfeitos com a efetividade dos tratamentos com antidepressivos. Os pacientes diagnosticados como deprimidos julgam que seus sofrimentos estão relacionados, sobretudo, com aspectos emocionais, e a maioria gostaria de trocar de tratamento. Para Assis (1964), não existe remédio certo para os males da alma. Entretanto, cabe indagar pela conjunção de forças e pelo contexto sombrio que encobrem os tratamentos da depressão, na atualidade. Para isso, precisaríamos de delineamentos mais precisos de alguns aspectos da medicina nos século 19 e 20. Na medicina da Era vitoriana, ocorreu um deslocamento do eixo da visão moral da doença para a interpretação científica. A nascente psiquiatria, ao decretar o fim das crenças da cultura sobre a loucura, criou o conceito de doença mental, fazendo desaparecer o sujeito, sua explicação de mundo e sua possibilidade de repensar a vida e transformá-la (Brant, 2004). O termo depressão começa a aparecer nos dicionários médicos em 1860, sendo amplamente aceito, reduzindo, cada vez mais, o termo melancolia. Chegou-se a aconselhar deixá-lo para uso exclusivo dos poetas (Docherty, 1997). Logo, o termo depressão suplantou o da melancolia em função da aparente impressão fisiológica e metafórica de queda das funções que sugeria. Rapidamente, depressão tornou-se um quadro clínico comum, freqüentemente associado à perda da vontade de viver.

Considerações finais O conjunto dos depoimentos revela a existência de trabalhadores, gestores e profissionais da saúde apresentando-se como vítimas de injustiças, especialmente, por não se verem reconhecidos naquilo que fazem, dizem e sofrem. Independentemente das múltiplas explicações que cada um pode oferecer, fica explícito o desamparo e o abandono. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Há ainda faltas éticas materializadas na produção e reprodução da psiquiatrização da tristeza, fato que inclui uma medicalização abusiva e indevida. Esse processo psicopatologizante, no contexto organizacional, destina-se a silenciar o sofrimento e quebrar as resistências dos trabalhadores. Tudo isso começa com a suposta atenção dos gestores quando encaminham, para o setor de saúde da empresa, trabalhadores tristes, vistos como inadequados aos padrões tecnológicos e gerenciais. A tentativa de silenciar a tristeza continua durante o atendimento profissional, no momento em que o “paciente” inicia as narrativas de vida e trabalho. Caracterizar a manifestação da tristeza como problema de ordem médica e encaminhar o trabalhador para um médico, transforma a gestão num dispositivo de adoecimento. A troca de informações entre gerentes e profissionais da saúde sela pactos entre cuidados médicos e gestão, e destina-se ao fortalecimento do controle disciplinar, no âmbito da empresa. Ainda que a intenção seja a de “avançar na compreensão da problemática da tristeza”, esta prática revela uma perigosa e temível tecnologia de poder. Os problemas ortopédicos e de depressão – as maiores causas de afastamento no setor operacional – não causam estranhamento. Ali, estão lotados trabalhadores originários das camadas populares cuja atividade não tem prestígio institucional, realizando tarefas essencialmente braçais e repetitivas. Concebê-los como os mais propensos à depressão é, certamente, uma estratégia de controle. Pois, a tristeza transformada em depressão é medicalizada e qualificada como morbidade. Assim, anestesiam-se perdas relacionadas à sobrevivência e a reivindicações. Como distúrbio neuroquímico, a depressão exime a empresa da responsabilidade de rever o conjunto de suas práticas, nos períodos de transformações, e suas conseqüências nos processos de subjetivação dos trabalhadores.

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No trabalho pós-industrial, a tristeza tornou-se um tabu. Em contextos de competitividade, trabalhar e viver têm deixado as pessoas tristes. Buscamos reconstruir e compreender a trajetória que vai da expressão da tristeza ao diagnóstico de depressão em um estudo qualitativo, tendo como método de análise a hermenêuticadialética. Entrevistamos 13 trabalhadores, 13 gestores e oito técnicos da saúde de uma empresa. Realizamos, também, análise documental de house organs. Constatamos que o adoecimento se iniciava quando gestores encaminhavam pessoas tristes para o setor médico, onde eram tratadas e medicalizadas como depressivas. Algumas informações entre gestores e técnicos da saúde revelavam deslizes éticos. O diagnóstico de depressão eximia a empresa da responsabilidade na configuração daquela vida triste. Concluímos que esse diagnóstico constitui uma forma de não ressignificar a tristeza e sua relação com o trabalho. É uma ferida ética que implica excluir aquele que não apresenta semblante de bem-estar.

Palavras-chave: Sofrimento. Depressão. Saúde do trabalhador. Trabalho. From sadness to depression: the transformation of one malaise into illness in work In postindustrial work, sadness has become taboo. In contexts of competitiveness, working and living make people sad. We sought to reconstruct and understand this path, going from expression of sadness to diagnosis of depression, in a qualitative study using the hermeneutic-dialectic analysis method. We interviewed 13 workers, 13 managers and 8 health technicians from one company. We also conducted document analysis on house organs. We observed that the process of becoming ill began when managers sent sad people to the medical sector, where they were treated medically as cases of depression. Some information from managers and health technicians revealed ethical lapses. The diagnosis of depression exempts the company from responsibility for making that life sad. We concluded that this diagnosis constitutes a way of not giving other meaning to sadness and its relationship with work. This is an ethical injury that implies exclusion of individuals without an appearance of well-being.

Key words: Suffering. Depression. Occupational Health. Psychology of work. De la tristeza a la depresión: la transformación de un malestar en enfermización en el trabajo En el trabajo post industrial, la tristeza se ha convertido en un tabú. En contextos competitivos, trabajar y vivir tristes a las personas. Procuramos reconstruir y comprender la trayectoria seguida desde la expresión de la tristeza al diagnóstico de depresión. En estudio cualitativo, teniendo como método la hermenéutica dialéctica, entrevistamos a 13 trabajadores, 13 gestores y 8 técnicos de la salud de una empresa. Fue realizada también análisis documental de House organs. Constatamos que la enfermización comienza cuando gestores encaminan trabajadores tristes al sector médico, donde son tratados y medicados como depresivos. Algunas informaciones entre gestores y técnicos de la salud revelan deslices éticos. El diagnóstico de depresión exime a la empresa de responsabilizarse por la configuración de la tristeza. Concluimos: la aceptación de este diagnóstico constituye una forma de no vincular la tristeza E con el trabajo. Es una herida ética que implica excluir quien no muestra semblante de bienestar.

Palabras clave: Sufrimiento. Depresión. Salud laboral. Trabajo. Recebido em 18/05/07. Aprovado em 02/05/08.

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livros

AGAMBEN, G. The open: man and animal. Chicago: Stanford University Press, 2004.

Messias Basques1

Hoje, são as ciências da vida que desestabilizam todos os cenários do futuro. Em certos aspectos, são mais preocupantes ainda, pois seus resultados e suas aplicações podem pôr em questão os fundamentos mesmos da individualidade, do contrato social e da interação entre homem e o seu meio ambiente. (Edelman, Hermitte, 1993, p.11)

No final do século XX, os avanços tecnocientíficos que tornaram possível a reprodução artificial de organismos vivos e a onda de pedidos de patentes que os procederam impuseram um questionamento profundo às ciências humanas. Dentre os dilemas daí originados, um causou grande polêmica: um microorganismo vivo, criado pelo homem, poderia ser patenteado? Estabelecida a controvérsia, os juristas foram chamados a refletir sobre a nova criatura. E o processo de criação passava a ser questionado em seu sentido demiúrgico de conferir ou atribuir existência. Em suma, a aporia que nos foi legada pelos desdobramentos tecnocientíficos das últimas décadas do século XX concerne à definição jurídica do conceito de vida. Segundo Bernard Edelman (1999), na verdade, pelas vias do patenteamento,

os tribunais pouco a pouco elaboraram um modelo jurídico do ser vivo, onde se representa a idéia que nossa sociedade ocidental faz dela mesma e de sua relação com a natureza. O patenteamento dos organismos vivos colocou o homem indiferenciadamente na natureza, sob a égide de um mecanismo jurídico comum: a passagem de uma concepção filosófica do homem para uma concepção naturalista da espécie humana. O que está em jogo: o patenteamento de algo que se transforma em propriedade industrial, submetido às leis do mercado, da competição e do lucro. Passagem de uma visão sagrada a uma visão industrial da natureza e do vivente. Donde o embaralhamento das distinções tradicionais entre animado e inanimado, humano e não-humano, animal e humano. O ponto culminante dessa controvérsia é o dualismo jurídico do humano, entre sujeitos de direitos (direitos estes cada vez mais inflacionados) e matéria biológica. Mas se é esse o caso, outra questão crucial deve ser colocada: o que é o homem? Aquele foi um período de consolidação paulatina do desmembramento da pessoa humana, da dissociação da idéia de pessoa COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

1 Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo (USP). Mestrando, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Universidade Federal de São Carlos. Av. Dona Alexandrina, 2057, bloco A apartamento 13 Vila Monteiro, São Carlos, SP . 13.560-290 messias.basques@gmail.com

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humana de suas partes, agora desmembradas, dissociadas e transformadas em matéria humana, suscetíveis de serem tornadas bens apropriáveis e comercializáveis no mercado. Eis, portanto, uma cisão da pessoa humana em sujeito e seus atributos, fixados, estes, como material biológico. E, em curso, a gestação da idéia do homem como um modelo, um artefato. A extirpação de toda metafísica termina em uma dessacralização do próprio homem, agora assimilável a um artefato biológico. E é nessa fissura entre a pessoa humana (com seus direitos inalienáveis) e a matéria humana, biológica, que a ciência e a medicina estão reivindicando suas prerrogativas. O que está em pauta: as noções de homem e de humanidade, como aquilo que estabelece o sentido e finalidade de todo direito. Assistimos ao crescimento vertiginoso de um mercado da natureza (biotecnologias, indústria da transgenia etc.), bem como de um mercado dos homens (banco de esperma, úteros de aluguel); e a conjunção da ciência e do mercado, da técnica e da indústria estão provocando uma mutação cultural sem precedentes. E poderíamos inferir que é este o contexto que abre, ao mesmo tempo, a possibilidade de utilização dos embriões humanos, considerados não mais como pessoas, mas simplesmente materiais humanos, biológicos, objetos passíveis de quaisquer intervenções, inclusive pelas leis do mercado. Trata-se aqui da inversão da noção de humanidade: não mais a técnica a serviço do homem, mas seu oposto, um humano inteiramente finalizado, e submetido, pela técnica. Pois a quem serão atribuídos direitos sobre fetos e nascituros? Donde podemos vislumbrar, ao menos, um desdobramento: sem outros jogos de referências, as verdades da ciência se tornam, cada vez mais, as instâncias normativas e de legitimidade. Das controvérsias aos fatos, nossa cultura ocidental, sua filosofia e seu Direito deparam-se com um cenário de ausência de parâmetros, ao cabo do qual passamos a conferir estatuto de verdade aos postulados científicos de nossa época. E isso começa no momento em que se tem de julgar e definir o estatuto mesmo da pessoa, delegando à ciência a responsabilidade por esse veredicto. Diante desses processos de reconfiguração epistemológica que estão na pauta de nossos dias, este livro de Giorgio Agamben percorrerá justamente alguns momentos-chave da construção dos conceitos de vida, humanidade e animalidade 678

na tradição científica e filosófica ocidental. Diferentemente dos seus outros trabalhos, aqui o autor examina e problematiza a origem desses conceitos tendo em vista a crítica dos seus fundamentos e pressupostos, numa exposição que se afasta, ao menos aparentemente, de sua trajetória como pensador dedicado ao estudo das aporias que julga serem constitutivas da modernidade, a saber: o campo de concentração (2001), o estado de exceção (2003) e a enigmática figura do direito romano arcaico, o homo sacer (2004b). Agamben argumentará que, ainda que o humano sempre tenha sido pensado como uma misteriosa conjunção de um corpo natural vivente e uma dimensão sobrenatural, social, ou divina, nós deveríamos começar a (re)problematizar o humano como resultado da separação prática e política de humanidade e animalidade. Seja em suas variantes antigas ou modernas, a máquina antropológica operaria pela criação de uma diferença absoluta, uma distinção entre homem e animal que, de um lado, eleva o humano em detrimento do animal e do ambiente e, de outro, desloca a animalidade essencialmente para fora daquilo que Martin Heidegger descreveu como as características humanas abertas ao mundo. Em seu inquérito, Agamben busca problematizar essa cisão, o intervalo vazio entre homem e animal que não revela algo como uma vida humana ou uma vida animal. É a partir deste estado de vida nua, dirá Agamben, que nós precisamos começar a vislumbrar meios de paralisar a máquina antropológica e abrir caminhos para que se instaure uma reflexão filosófica e política acerca do que concebemos como vida humana. Sendo assim, para qualquer um que procure estudar o conceito de vida em nossa cultura, uma das primeiras e mais instrutivas observações a serem feitas é que o conceito nunca é definido dessa maneira. E a pesquisa genealógica sobre o conceito de vida nos mostra que este é um conceito nunca definido como tal: a cada vez articulado e dividido em uma série de oposições e cesuras que o investem de uma função estratégica decisiva em domínios aparentemente distantes entre si, como a filosofia, a teologia, a política e, mais recentemente, a medicina e a biologia. Nas suas palavras: “isto quer dizer que tudo se passa, em nossa cultura, como se vida fosse algo que não pode ser definido, ainda que, precisamente por esta razão, tenha que ser incessantemente

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sobre essas divisões implica indagar de qual maneira – no homem – o homem foi separado do não-homem e, o animal, do humano. Deparamonos, pois, com a exigência de uma experiência cognitiva renovada. A exposição de Giorgio Agamben também incidirá no campo da biologia. Examinando os escritos de Carl Von Lineu, o autor demonstrará como foi (e continua a ser) difícil a tarefa de identificar diferenças específicas entre macacos antropóides e homens, do ponto de vista das ciências naturais. Lineu chegou a promover provocações ao pensamento cartesiano, dizendo que: “eu preciso me deter no meu ofício e considerar o homem e seu corpo como um naturalista, que quase desconhece uma única marca distintiva sequer que separe o homem dos macacos, exceto pelo fato de que estes têm um espaço vazio entre os caninos e os seus outros dentes” (Lineu apud Agamben 2004a, p.24). Para Lineu, o homem não teria nenhuma outra identidade específica que a de reconhecer a si mesmo. Tal como o historiador Felipe FernándezArmesto mostrou brilhantemente em seu livro Então você pensa que é humano? Uma breve história da humanidade (2004), Agamben recolhe uma série de documentos e relatos que apontam para o fato de que, no Antigo Regime, as fronteiras da humanidade já eram tão incertas e fluidas quanto aquelas que foram (re)estabelecidas no momento em que alvoreciam (justamente) as ciências humanas. O homo sapiens não é, portanto, nem uma substância nem uma espécie claramente definida: é, sobretudo, uma máquina ou um artifício para produzir o reconhecimento do humano. Daí também a fragilidade interna da máquina antropológica do humanismo em seu (sempre) latente empreendimento para definir a natureza do humano. Eis então o sentido da máquina antropológica (antiga e moderna): produção do humano pela oposição homem/animal, humano e inumano, operando por uma exclusão (que é uma captura) e uma inclusão (que é uma exclusão): um humano já pressuposto de tal forma que o fora é a exclusão de um interior e o interior, por sua vez, é a exclusão de um fora. Ou seja: a definição do humano é produzida nessa zona de indeterminação e é isso, justamente, que é inscrito na máquina antropológica, que permite não apenas, na nossa atualidade, definir o neomorto e o coma dépassé, como também COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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articulada e dividida” (Agamben, 2004a, p.13). Na história da filosofia ocidental, a articulação estratégica do conceito de vida teria um momento fundador. E este momento poderia ser encontrado em “De Anima” quando, dentre vários sentidos do termo viver, Aristóteles isolou o mais genérico e passível de separação ante os demais: “é pela vida que aquele que possui alma {l’animale} se difere daquele que não a tem {l’inanimato}.” (Aristóteles apud Agamben, 2004a, p.13). Segundo Agamben, ainda hoje, nas discussões sobre a definição ex lege dos critérios da morte clínica, trata-se antes da identificação dessa condição de vida nua – destacada de qualquer atividade cerebral e, digamos, de qualquer sujeito – que decide quando certo corpo pode ser considerado vivo ou abandonado às vicissitudes extremas dos transplantes de órgãos. É apenas porque algo com uma vida animal é separada no interior do homem, que essa operação é possível, o que sempre supõe uma medida da distância e da proximidade com o animal. Mas isso também significa que a divisão da vida entre vida vegetal e vida de relações, orgânica e animal, animal e humana, passa então, antes de tudo, pelo interior mesmo do homem vivo, como uma fronteira móbil: sem esta cesura íntima, o simples fato de decidir o que é humano e não humano seria impossível. Agamben defenderá que, diante disto: “nós temos que aprender a pensar o homem como aquilo que resulta da incongruência destes dois elementos, e investigar não o mistério metafísico da conjunção, mas antes o mistério prático e político de separação” (Agamben 2004a, p.16). Ademais, se a vida animal e a vida humana passam a ser perfeitamente sobrepostas, então nem homem nem animal – e, talvez, nem mesmo uma dimensão divina – poderia ser pensado nesses termos. Por esta razão, o surgimento de uma póshistória necessariamente implicaria reatualização desse patamar pré-histórico no qual nossas fronteiras foram definidas. Mas então é a própria questão do humanismo que terá de ser repensada: em nossa cultura, o homem sempre foi pensado como articulação e conjunção de um corpo e uma alma, de um vivo e de um logos, um elemento natural e um elemento sobrenatural, social ou divino. Agora, ao contrário disso, teríamos de aprender a pensar o homem como o que resulta da desconexão desses dois elementos, e examinar não o mistério metafísico da conjunção, mas o mistério prático e político da separação. Trabalhar

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definir um judeu (ou o muçulmano) como o nãohomem produzido no homem. A máquina antropológica só poderá funcionar, portanto, instituindo em seu centro uma zona de indiferença, onde produz a articulação entre o humano e o animal, o homem e o não-homem, o falante e o ser vivo. O verdadeiramente humano, portanto, é sempre o lugar de uma decisão sempre adiada, onde as cesuras e suas articulações são sempre novamente deslocadas. Mas isso significa, a rigor, não a definição da vida animal ou da vida humana: mas tão-somente uma vida separada e excluída dela mesma – nada mais do que uma vida nua. Ou seja: a definição do humano e não humano opera propriamente em um espaço de exceção. Ao tratar dos estudos de Jacob Von Uexküll, Giorgio Agamben defende a sua contemporaneidade, uma vez que foram distintamente recuperados por Martin Heidegger e Gilles Deleuze. O primeiro poderia ser definido como o filósofo que, como nenhum outro, tentou separar o homem dos seres vivos, enquanto este procurou pensar o animal numa direção absolutamente não antropomórfica. Além disso, as teses de Von Uexküll de que cada ser possui seu meio chegaram a influenciar autores como Friedrich Ratzel que, sabemos, as reinterpretou em prol da geopolítica nazista. Von Uexküll questionou a noção de um mundo natural único e seus livros contêm, por vezes, ilustrações que se destinam a sugerir como pareceria um fragmento do universo humano considerado do ponto de vista do ouriço, da mosca ou do cão. A experiência é útil pelo efeito de expatriação que produz no leitor, obrigado a olhar com olhos não humanos os lugares que lhes são os mais familiares. O capítulo “Animalization” começa com um pensamento de Heidegger sobre a pólis grega, que seria o lugar onde há conflito entre “o encoberto e o descoberto, entre a animalitas e a humanitas do homem” (Agamben 2004a, p.75). As questões seriam, também, diferentes e mais profundas neste plano, uma vez que entraria em cena a administração da existência de pessoas, ou seja, em última análise, de suas vidas nuas. Vistos por este ângulo, os totalitarismos do século XX constituiriam verdadeiramente a outra face da idéia ilustrada tanto por Hegel quanto por Alexandre Kojève acerca do fim da história: o homem alcançou seu telos histórico, para uma humanidade que ora se resume à animalidade, e não restaria 680

nada além de despolitização das sociedades humanas por meio do predomínio incondicional da economia, bem como da aparição da vida biológica como questão política (ou apolítica) suprema (Agamben 2004a). Em face deste eclipse, seriam estas as questões a inquirir: a administração da vida biológica e a animalidade dos homens. Genoma, economia global, e a ideologia humanitária seriam, pois, as três faces desse processo pós-histórico no qual a humanidade assumiria sua própria fisiologia como um mandamento (a)político. Noutros termos, equivaleria a dizer que a total humanização do animal coincide com a total animalização do homem (Agamben 2004a). Walter Benjamin surge como referência alternativa, já que procurou pensar uma imagem inteiramente diferente da relação entre homem e natureza, e entre natureza e história: uma imagem na qual a máquina antropológica parece ter sido completamente deslocada. Em carta de 9 de dezembro de 1923, Benjamim discutia a natureza, como o mundo do encerramento e da noite, em oposição à história, como a esfera da revelação. Mas mesmo ao tratar da esfera fechada da natureza, Benjamin (surpreendentemente) também a relacionou às idéias, como obras de arte. Assim, parecia querer sublinhar a relação do homem com a natureza tendo em vista as antigas relações do homem com o cosmos, que teria lugar no transe extático. Para o homem moderno, o lugar apropriado desta relação é a tecnologia. Porém, há que ressaltar uma tecnologia concebida como o domínio do homem sobre a natureza (Agamben 2004a). Isto posto, de acordo com o modelo da dialética na paralisação, o que é decisivo aqui é somente o entre, o intervalo, ou, deveríamos dizer, a relação entre dois termos, sua situação imediata de não-coincidência. A máquina antropológica não mais articularia homem e natureza para produzir um pensamento humano da suspensão e captura do inumano. A máquina estaria, por assim dizer, paralisada. Neste estado, e em face da recíproca suspensão dos dois termos, algo que talvez não tenhamos ainda condição de nominar e que não se resume nem ao animal nem ao humano ocuparia a posição entre humanidade e natureza, tornando-se o centro da relação. Nesse livro, Agamben procurou mostrar que a cultura ocidental fez do homem o resultado da simultânea divisão e articulação entre animal e humano, na qual um dos termos sempre esteve

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sem que a máquina antropológica seja novamente acionada; “novamente, a solução do mysterium coniunctionis [cf. texto de Carl G. Jung, Mysterium Coniunctionis: pesquisas sobre a separação e a composição dos opostos psíquicos na Alquimia (1985)] por meio do qual o humano é produzido remete a um inquérito sem precedentes no interior do mistério prático-político da separação” (Agamben 2004a, p.92). Como bem disse François Ost (2005), vive-se numa época na qual os dualismos foram levados ao seu paroxismo, ante a perda de ligações com a natureza e a ilimitação do homem. Reina a desmedida (que, para os gregos, é o reino da tragédia).

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em posição latente de risco. Para tornar inoperante a máquina que governa nossa concepção daquilo que entendemos por homem, deveríamos questionar suas articulações, para mostrar seu vazio constitutivo – no interior do homem – que separa humano e animal. E se, tal como nas palavras de Michel Foucault, a figura na areia que erigiu as ciências humanas finalmente se for com as ondas do mar, o que surgiria em seu lugar certamente não mais disporia da inspiração de um Santo Sudário, mas quiçá de um esboço daquilo que se forjaria nas tramas da humanidade e da animalidade. Talvez, diz Agamben, haja um modo no qual os seres viventes possam ser concebidos

Referências AGAMBEN, G. The open: man and animal. Chicago: Stanford University Press, 2004a. ______. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004b. ______. Stato di eccezione. Italia: Bollati Boringhieri, 2003. ______. Medios sin fin: notas sobre la política. Valencia: Pre-Textos, 2001. EDELMAN, B. La personne en danger. Paris: Puf, 1999. EDELMAN, B.; HERMITTE, M.A. L’Homme, la nature et le droit. Paris: Bourgois, 1993. FERNÁNDEZ-ARMESTO, F. Então você pensa que é humano? Uma breve história da humanidade. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. FOUCAULT, M. Naissance de la biopolitique: cours au Collège de France, 1978-1979. Paris: Gallimard, 2004. ______. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes, 1999. OST, F. La nature hors la loi. Paris: La Découverte, 2005.

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Mulheres e trajetórias na Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp: vozes singulares e imagens coletivas Women and trajectories in the College of Medical Sciences of the Unicamp: singular voices and collective images

A proposta desta pesquisa é realizar um resgate histórico e social da trajetória das mulheres pesquisadoras, com base em seus trabalhos como cientistas e professoras dentro da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp. Imbuída do referencial teórico dos estudos de gênero, dentro da sociologia da ciência e, mais especialmente, na área da saúde, buscarei entender a trajetória dessas mulheres, as escolhas pessoais e profissionais articuladas às suas estratégias sociais. Para tanto, assumo que o gênero se expressa em muitas áreas da vida social, como: a cultura, a ideologia, a ciência e as práticas em geral. No entanto, estou especificamente interessada em como essas mulheres conseguiram articular, concomitantemente, as práticas de pesquisa, as suas atividades de ensino, administração e extensão universitária, com suas vidas cotidianas e familiares. Esta pesquisa compôs-se de três momentos. Num primeiro, efetuou-se o levantamento da documentação das pesquisadoras (Plataforma Lattes), buscando suas trajetórias no meio acadêmico e suas estratégias dentro do campo científico. Em segundo lugar, houve a realização de uma entrevista focada, elaborada com base nas informações e pressupostos formulados por meio da análise dos documentos, que permitiram configurar o processo de construção social das trajetórias acadêmicas. Por fim, em um terceiro momento, com base na teoria de Pierre Bourdieu, buscamos esboçar o habitus dessas pesquisadoras.

Este estudo está sendo realizado dentro de uma perspectiva sociológica, e os estudos de gênero compuseram nossos trabalhos, auxiliando-nos como a base de nossas análises. Os estudos históricos são de grande importância e valia, quando procuramos desvelar esse tema, pois compreendemos que é necessário o entendimento do contexto histórico e cultural para podermos abordar a relação entre as falas e as teorias. Com este trabalho, esperamos contribuir para o entendimento do papel e da posição dessas mulheres no campo acadêmico, como se conformaram seus habitus e quais são as relações deles com a questão do gênero, especialmente pelo fato de estas atividades inscreverem-se em uma quádrupla dimensão: ensino, pesquisa, administração e extensão. Maria Inez Montagner Dissertação (Mestrado), 2007. Departamento de Medicina Preventiva e Social, Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas. inezmontagner@hotmail.com

Palavras-chave: Identidade de gênero. Mulheres. Ciência. Instituições acadêmicas. Habitus. Escolas médicas. Key words: Gender identity. Women. Science. Schools. Habitus. Medical schools. Palabras clave: Identidad de género. Mujeres. Ciência. Escuelas médicas. Habitus . Instituciones acadêmicas. Texto na íntegra disponível em: http://libdigi.unicamp.br/document/?code=vtls000431850

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A humanização no Pronto Socorro do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Botucatu sob a perspectiva dos profissionais de saúde The humanization process in the Emergency Department of the Botucatu Medical School Clinical Hospital according to the health professionals’ perspective

Os hospitais de ensino têm sido estimulados a se transformarem em um serviço que recupere a dimensão essencial do cuidado: a relação entre humanos exaltada na Política Nacional de Humanização (PNH). O estudo da humanização no processo de desenvolvimento do Sistema Único de Saúde (SUS) é relevante, e sua observação em um pronto socorro de hospital universitário pertinente, pois este funciona como um centro do sistema de saúde, atraindo para si uma enorme demanda, que muitas vezes sobrecarrega os seus serviços. O Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Botucatu (HC-FMB) recebe pacientes de todos os níveis de complexidade, sendo, o seu pronto socorro, uma das referências à DRS-VI para procedimentos de alta complexidade em urgência/emergência, e um local de tensão e sobrecarga de atendimento. Este trabalho tem como objetivo analisar a humanização no Pronto Socorro do HC-FMB sob a perspectiva dos profissionais de saúde. Trata-se de uma pesquisa qualitativa, em que foram entrevistados oito médicos, uma enfermeira e uma psicóloga, e que traz, como resultado: reflexões e posições frente à realidade, momentos do desenvolvimento e da dinâmica social, preocupações e interesses próprios, característicos de uma pesquisa social da qual emergem contradições e conflitos do cotidiano de trabalho. A análise das respostas permitiu a elaboração de núcleos temáticos sobre os quais são apresentados os resultados: a) Pronto Socorro e ambiência: espaço físico inadequado que compromete o atendimento e

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contrapõe-se ao conceito de ambiência proposto pelo Ministério de Saúde; b) Pronto Socorro e seus usuários: embora tenha havido uma reorganização da unidade, que deixou de ser uma porta de entrada de livre acesso, o PS ainda atende a casos de baixa complexidade e pacientes de todos os níveis sociais, devido à carência de outros serviços de urgência na região; c) Pronto Socorro, espaço de assistência: a superlotação da unidade é justificada pela baixa resolutividade dos serviços de atenção primária e pelas percepções distintas de usuários e profissionais sobre o que é urgência e emergência; quanto ao relacionamento médicopaciente, há uma preocupação em escutar o doente e estar atento à linguagem não-verbal, no entanto, a relação é ainda muito assimétrica, com concentração de poder e decisão nas mãos dos médicos; d) Pronto Socorro, espaço de trabalho e de ensino: a pressão e o estresse constantes, a sobrecarga de trabalho, a dificuldade em lidar com a morte, o sentimento de falta de reconhecimento por parte do HCFMB poderiam ser suficientes para afastar os profissionais do serviço; no entanto, apesar de todos os problemas, há uma grande identificação com o trabalho no PS e uma satisfação em ensinar e acompanhar os alunos de medicina e residentes. Assim, o PS do HC-FMB pode ser identificado como um local de atendimento à saúde que recebe todos os tipos de problema, sem aparente organização ou conformidade à regionalização e hierarquização proposta pelo SUS, e que acarreta também dificuldades de

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teses relacionamento com os pacientes. Foi possível constatar que, no cotidiano do trabalho, os entrevistados, embora reconheçam a necessidade e importância da humanização do atendimento, eles mesmos, muitas vezes, sentem-se “desumanizados”. Por fim, identificou-se, entre os profissionais, a percepção de uma desvalorização do trabalho no pronto socorro em relação à atividade em outras áreas do hospital. Patricia Shirakawa Nakamoto Dissertação (Mestrado), 2006 Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, Faculdade de Medicina de Botucatu, Universidade Estadual Paulista, Botucatu. paty.nakamoto@gmail.com

Palavras-chave: Humanização. Comunicação. Relações médico-paciente. Serviços médicos de emergência. Key words: Humanization. Communication. Physician-patient relations. Emergency medical services. Palabras clave: Humanización. Comunicación. Relaciones medico-paciente. Servicios medicos de urgencia.

Texto na íntegra disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=94496

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“Unidade de proporções longitudinais em mulheres e homens de diferentes tamanhos” Imagem extraída de GYÖRGY DOCZI. O poder dos limites, 1981.










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