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apresentação

Formação em saúde: investigando práticas no âmbito de cursos de graduação No momento em que enfrentamos desafios e abrimos perspectivas de transformação do ensino superior em saúde, (re) construindo processos formativos significativos para alunos, professores e comunidade, o conjunto de artigos que compõem a seção Dossiê deste fascículo de Interface representa uma fecunda incursão em experiências, saberes e pressupostos que têm constituído cenários de aprendizagem e ensino, com seus ritmos, especificidades e significados. O primeiro artigo, Mudança curricular: construção de um novo projeto pedagógico de formação na área da Fonoaudiologia, apresenta uma cuidadosa pesquisa descritivo-analítica com foco nas transformações educacionais em uma experiência formativa. As autoras identificaram como pontos de avanço no processo de mudança no curso analisado, dentre outros, a maior integração das disciplinas básicas com as atividades de caráter profissionalizante; uma maior articulação entre atividades de ensino, pesquisa e extensão e a interação entre estudantes dos vários níveis de formação nas ações de promoção da saúde e prevenção de agravos. Analisando os desafios de reformulação do já estabelecido, enfatizam os desarranjos e rearranjos próprios deste processo e as dificuldades de enfrentamento dos atores envolvidos. Como possibilidade de inserção dos alunos em espaços de aprendizagem potencialmente diferenciados em relação aos cenários mais tradicionais, o segundo artigo, Ligas Acadêmicas e Formação Médica: contribuições e desafios, investiga o lugar das ligas acadêmicas no currículo informal e na aprendizagem do futuro médico. As possibilidades dos graduandos elaborarem itinerários formativos significativos e mobilizadores da construção de conhecimentos práticos, articulando o aprender nas dimensões intelectuais, afetivas e relacionais, bem como o desenvolvimento de capacidade crítica e reflexiva, são destacadas pelos autores como aspectos importantes no desenvolvimento destas atividades acadêmicas no interior dos cursos médicos. A terceira pesquisa, Formação reflexiva: representações dos professores acerca do uso de portfólio reflexivo na formação de médicos e enfermeiros, contribui, também, com o atual debate sobre o ensino em saúde ao trazer para discussão uma pesquisa sobre o uso do portfólio na formação de graduandos de Enfermagem e Medicina. As autoras realçam que a construção deste instrumento foi reconhecida pelos professores entrevistados como uma estratégia capaz de estimular a capacidade reflexiva dos estudantes e o acompanhamento contínuo dos processos relativos ao seu desenvolvimento pessoal e profissional. Isto implica uma potencialização do conhecimento reflexivo, tendo como direção ético-acadêmica a emancipação dos sujeitos em formação. Além do fio temático condutor – transformando o ensino em saúde - identifica-se que os três estudos aqui apresentados também partilham da pesquisa qualitativa como caminho metodológico privilegiado para responder a questões que perpassam o cotidiano da formação de profissionais da saúde. Enuncia-se uma complexa e relevante tríade entre saúde, educação e pesquisa qualitativa. Ainda nesta direção, o texto Lista de discussão como estratégia de ensino-aprendizagem na pósgraduação em Saúde, publicado na seção Espaço Aberto deste número, situa uma análise teórico e metodológica próxima e convergente com a discussão sobre a formação em saúde e sua investigação a partir do olhar investigativo. Educação, essa palavra imensa! Esta expressão de Cecília Meireles situa o sentido de investigar sobre processos de formação em saúde: abrir interlocuções, expor idéias, alimentar o debate, inspirar estudos. Que as idéias, os projetos e as perspectivas presentes neste número sejam também disparadoras de diálogo, aprendizagem e projeção de novas investigações sobre as relações entre educação, saúde, formação e pesquisa. Nildo Alves Batista e Sylvia Helena Batista Universidade Federal de São Paulo

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Health-related training: investigating practices within undergraduate courses At a time of facing challenges, and with the prospect of transformations in health-related higher education, thereby significantly (re) constructing the training processes for students, teachers and the community, the set of articles that make up the Dossier section of this issue of Interface provide a rich depiction of the experiences, knowledge and suppositions that form scenarios of teaching and learning, each with its own pace, specific features and meanings. The first article, Curricular change: construction of a new pedagogical training project in the field of Speech Therapy, presents a careful descriptive-analytical survey focusing on the educational transformations within a training experience. The authors have identified the following points as advances within the process of changes in the course they have analyzed, among others: greater integration between the basic disciplines and the professional training activities; greater linkage among the teaching, research and extension activities; and greater interaction among students at different training levels, as to health promotion and disease prevention. Through analyzing the challenges, they emphasize the disordering and reordering intrinsic to this process. With the possibility of putting students into learning spaces that are potentially different from the more traditional scenarios, the second article, Academic Leagues and medical education: contributions and challenges, investigates the role of academic leagues within the informal curriculum and within future physicians’ learning process. The authors highlight the possibilities for undergraduates to build up significant formative routes that stimulate the construction of practical knowledge, thereby linking the intellectual, affective and relational dimensions of learning and developing their critical and reflective capacity. Moreover, the authors consider such possibilities to be important for developing these academic activities within medical courses. The third study, Reflective training: teachers’ representations of the use of reflective portfolios in physicians’ and nurses’ training, also contributes towards the current debate on health education, through bringing into the discussion an investigation on the use of portfolios during undergraduate training for nurses and physicians. The authors emphasize that the teachers they interviewed recognized that the strategy in constructing this instrument was to make it possible to stimulate students’ reflective capacity and to continuously follow up the processes relating to their personal and professional development. This implies boosting their reflective knowledge, with the ethical-academic purpose of emancipating the students undergoing the training. Along with the common thematic thread of transforming health-related education, it can be seen that the three studies presented here also share the trait of showing that qualitative research was the appropriate methodological route for answering the questions that run through the day-to-day process of training health professionals. They portray health, education and qualitative research as a complex and important trio. Also along these lines, the text Discussion lists as a teaching and learning strategy for postgraduate health studies, published in the Open Space section of this issue, sets up a theoretical and methodological analysis that is closely related to and convergent with the discussion on health-related training and its investigation. Education, this immense word! This expression from Cecília Meireles establishes the meaning of investigating the processes of health-related training: opening interlocutions, presenting ideas, feeding the debate and inspiring studies. It is our wish that the ideas, projects and prospects presented in this issue will also start up dialogue, learning and designing of new investigations on the relationships among education, health, training and research. Nildo Alves Batista e Sylvia Helena Batista Universidade Federal de São Paulo

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Mudança curricular: construção de um novo projeto pedagógico de formação na área da Fonoaudiologia

Maria Cecília Bonini Trenche1 Luisa Barzaghi2 Altair Cadrobbi Pupo3

TRENCHE, M.C.B.; BARZAGHI, L.; PUPO, A.C. Curricular change: construction of a new pedagogical training project in the field of Speech Therapy. Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.12, n.27, p.697-711, out./dez. 2008. The first year of implementation of the new pedagogical project for the Speech Therapy course at the Catholic University of São Paulo (PUC-SP) is analyzed. The aim was not only to analyze the changes in pedagogical concepts and practices, but also to construct collective work by the social body of the course. The results indicated that the new pedagogical activities (seminars, tutorials, workshops and instructive experiences) were important tools for achieving the proposed changes in the new curricular model. Highlighted among other advances were: greater integration between basic disciplines and professionalizing activities; better comprehension by students of the importance of training based on the population’s needs; greater linkage between teaching, research and extension activities; interaction among students at various levels of training, regarding health promotion and disease prevention actions; planning of supplementary pedagogical activities according to students’ needs detected in educational assessments.

Analisa-se o primeiro ano de implantação do novo Projeto Pedagógico do curso de Fonoaudiologia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). O objetivo foi analisar não só as mudanças de concepção e práticas pedagógicas, mas a construção de um trabalho coletivo do corpo social do curso. Os resultados apontaram que as novas modalidades pedagógicas (seminários, tutoria, oficinas, vivências formadoras) foram dispositivos importantes para se alcançar as mudanças propostas no novo modelo curricular. Entre outros avanços, destacaram-se: maior integração das disciplinas básicas com as atividades de caráter profissionalizante; melhor compreensão do estudante sobre a importância de uma formação pautada nas necessidades da população; maior articulação entre atividades de ensino, pesquisa e extensão; interação entre estudantes dos vários níveis de formação nas ações de promoção da saúde e prevenção de agravos; planejamento de atividades pedagógicas complementares em função das necessidades dos estudantes detectadas nas avaliações formativas.

Key words: Pedagogical project. Curricular change. Speech therapy. Curriculum.

Palavras-chave: Projeto pedagógico. Mudança curricular. Fonoterapia. Currículo.

1 Fonoaudióloga. Departamento de Clínica Fonoaudiológica, Faculdade de Fonoaudiologia, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Rua Monte Alegre, 984, São Paulo, SP, Brasil. cecilia@trenche.com.br 2,3 Fonoaudiólogas. Departamento de Clínica Fonoaudiológica, Faculdade de Fonoaudiologia, PUC-SP.

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Introdução Nos últimos anos, leis, normas, resoluções (Diretrizes Curriculares) e portarias têm sido promulgadas pelos Ministérios da Educação (MEC) e da Saúde (MS), destinadas a acelerar mudanças na Educação Superior. O MS, em consonância com as diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS), sinalizou um estatuto diferenciado das profissões no campo da saúde, ao definir o perfil (competências e habilidades) comum dos profissionais da área. Indicou e incentivou as mudanças curriculares, por meio de financiamentos de projetos (Promed, Pró-saúde) considerados prioritários e essenciais à implantação de programas estratégicos, como o Saúde da Família (PSF). A articulação entre as políticas do MS e do MEC tem contribuído para diminuir o distanciamento entre a formação profissional e as necessidades do SUS. Esse movimento de mudança na formação de profissionais de saúde gerou vários espaços de diálogo e construção coletiva, entre eles, destaca-se o Fórum Nacional de Educação das Profissões na Área de Saúde (FNEPAS). Criado em julho de 2004, é constituído por associações de ensino de vários cursos da área da saúde4 e vem se configurando como um ator social comprometido com as transformações da educação em saúde no Brasil, partilhando da concepção de integralidade na atenção e na formação em saúde. Na área da fonoaudiologia, a partir da promulgação das Diretrizes Curriculares Nacionais em 2002, muitos cursos de graduação vêm realizando mudanças curriculares na busca de se alinharem ao perfil profissional definido pela área. As Diretrizes têm sido também objeto de análise do Sistema Nacional de Avaliação do Ensino Superior (SINAES/INEP) e tema relevante de Fóruns de Ensino, organizados pela Sociedade Brasileira de Fonoaudiologia (SBFa), Academia Brasileira de Audiologia (ABA) e Conselhos Regionais e Federal. Com base no perfil de formação de profissionais da área da saúde, a literatura que trata de mudanças curriculares, propostas a partir das diretrizes do SUS, focaliza a necessidade de construção de modelos pedagógicos que equilibrem excelência técnica e relevância social, pautando-se na atenção integral aos usuários dos serviços de saúde, sejam eles desenvolvidos em serviços públicos ou privados (Marins et al., 2004; Feuerwerker, 2002). A noção de integralidade supõe, entre outros aspectos, a ampliação e o desenvolvimento da dimensão cuidadora no trabalho dos profissionais da área da saúde. Essa nova postura leva os agentes a se tornarem mais responsáveis pelos resultados das práticas de atenção à saúde, mais capazes de acolhimento, de construir vínculo com a população-alvo de ações e serviços de saúde. O processo formativo preconizado desloca o eixo da formação centrada na assistência individual prestada em serviços especializados para uma formação mais contextualizada, que leve em conta as dimensões sociais, econômicas e culturais da população. Destina-se a formar profissionais capacitados para responderem aos problemas de saúde da população e estimular uma atuação interdisciplinar e multiprofissional nos serviços de saúde. Recomenda, ainda, o uso de métodos ativos de ensino-aprendizagem, desenvolvidos em parceria com os serviços de saúde. Feuerwerker e Sena (1999) destacam alguns princípios norteadores dos processos de mudança na formação profissional em saúde, ressaltando que a reforma dos cursos deve estar sustentada na integração curricular, em modelos pedagógicos mais interativos, na adoção de metodologias de ensinoaprendizagem, centradas no aluno como sujeito da aprendizagem e no professor como facilitador do processo de construção de conhecimento. 698

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4 Fazem parte do FNEPAS as associações de ensino dos cursos de Medicina, Enfermagem, Odontologia, Fisioterapia, Psicologia, Serviço Social, Fonoaudiologia, Terapia Ocupacional, Farmácia e Nutrição, além da Rede Unida, da Associação Brasileira de Hospitais Universitários e de Ensino e da Associação Brasileira de PósGraduação em Saúde Coletiva (Abrasco). Acesse: <http:// www.fnepas.org.br>


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Não se trata, pois, de rever disciplinas e conteúdos, mas de instaurar um modo de organização do trabalho pedagógico no qual o estudante possa se preparar para buscar ativamente os conhecimentos necessários para resolver os problemas encontrados no exercício da profissão. As mudanças curriculares, no entanto, implicam transformações que não ocorrem de forma linear e imediata, porque, sendo estruturais, demandam um longo processo de planejamento, ação e reflexão. Nem sempre o que foi decidido será realizado, nem tampouco tudo o que é realizado resulta da concretização do que foi pensado. Nesse sentido, é imprescindível que seja parte integrante do novo projeto pedagógico o estabelecimento de procedimentos de acompanhamento e avaliação do processo de implantação curricular que possibilitem analisar se: os princípios definidos no projeto aprovado estão sendo seguidos; o que tinha sido planejado no projeto, nas ementas e programas de disciplina está de fato se realizando; os recursos didáticos administrativos estão sendo suficientes e ou adequados ao seu desenvolvimento; o aproveitamento dos alunos é coerente com os métodos de ensino-aprendizagem usados. Sacristán (1998) entende o currículo como construído no cruzamento de influências e campos de atividades diferenciados e inter-relacionados. Destaca seis fases ou níveis na construção de um modelo de currículo: o currículo prescrito; o currículo apresentado aos professores; o currículo moldado pelos professores; o currículo em ação; o currículo realizado, e o currículo avaliado. O processo de reforma curricular do curso de fonoaudiologia da PUC-SP se deu em 2004/2005, no contexto dos fatos e discussões apontados acima. O desenho do novo currículo não rompe radicalmente com a estrutura tradicional de ensino, como fizeram, por exemplo, alguns cursos de enfermagem e medicina que optaram por organizar as atividades de aprendizagem em torno de problemas de saúde. Tem-se nele, implícita, a proposta de se transformar um currículo (antigo) estruturado por disciplinas e conteúdos, para uma proposta curricular na qual as atividades de ensino, pesquisa e vivências em ambiente de trabalho se articulam de maneira a se integrarem num plano geral de curso. Assim, tanto a abordagem interdisciplinar quanto a busca de integrar a fundamentação teórica com as práticas clínicas e introduzir novas modalidades de ensino-aprendizagem levaram professores e alunos do curso a definir ações e estratégias a serem construídas em trabalho coletivo e gerenciadas por um núcleo estruturante do projeto pedagógico, formado por professores e estudantes. Durante a implantação da reforma curricular, este núcleo teve um papel importante na implantação das novas modalidades pedagógicas introduzidas no currículo, tendo contribuído para a reflexão sobre a concepção e as atividades que resultaram na mudança de atitude dos professores em relação ao projeto.

A pesquisa e as ações

5 Os professores responsáveis receberam horas-pesquisa do fundo FAP/CEPE da PUC-SP para realizar o trabalho, e parte do registro do material foi feita por bolsistas do PIBIC/CNPq.

Durante o primeiro ano de implantação da reforma curricular, momento em que foram planejadas e implementadas as novas modalidades pedagógicas do curso (seminários, tutorias, oficinas técnicas, culturais e de escrita, e vivências formadoras), procurou-se sistematizar informações sobre esse processo, colocando-o como objeto de estudo e pesquisa5. Sendo o objeto do estudo o processo de implantação da reforma curricular, optou-se pelo método qualitativo. Procurou-se concentrar nas atividades, situações, procedimentos e interações que pudessem auxiliar a compreender o processo de mudança do corpo docente. Caracterizada inicialmente como uma COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.12, n.27, p.697-711, out./dez. 2008

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pesquisa-ação, a investigação foi concebida e realizada em estreita relação com as questões trabalhadas com a implantação curricular, na qual as pesquisadoras estavam envolvidas de modo cooperativo e participativo (Thiollent, 1987). As pesquisadoras procuraram estabelecer uma rotina dos processos avaliativos da proposta, incluindo: análise das oficinas de planejamento; questionários para avaliar a adequabilidade das ações e de seus resultados; entrevistas; relatórios de análise do desenvolvimento da atividade acadêmica; registros de grupos focais realizados com professores e alunos; registros das reuniões do núcleo estruturante do projeto pedagógico e de programas de disciplina. Foram utilizados, também, os parâmetros propostos por Campos et al. (2001), possibilitando a exploração inicial do material usado para análise e discussão do processo de implantação do novo currículo. Desse modo, a descrição dos resultados focaliza o processo histórico de implantação curricular. Entendeu-se que o registro desse processo e seu acompanhamento produziram saberes e transformaram e aperfeiçoaram o trabalho de formação desenvolvido. Este artigo relata o processo de construção de um novo projeto pedagógico do curso de fonoaudiologia da PUC-SP em uma perspectiva investigativa, apontando avanços e desafios do novo currículo.

A concepção do novo currículo Sobre a concepção O curso de fonoaudiologia da PUC-SP promoveu em 2004/2005 um processo de reforma curricular. O antigo currículo, implantado em 1997, foi gestado na perspectiva de uma orientação profissional fortemente centrada na vocação clínico-terapêutica, mais tarde reafirmada pelas Diretrizes Nacionais e considerada basilar para outras possibilidades de atuação, tais como a pesquisa e assessoria. Com base na orientação dada pelo currículo mínimo proposta pelo MEC/SESu, o currículo de 1997 foi constituído por um corpo de disciplinas organizado em três núcleos de formação: núcleo de formação fundamental, núcleo de formação clínico-terapêutica, núcleo de formação em assessoria. Nos anos que sucederam a sua implantação, uma série de mudanças foi proposta aos cursos de ensino superior em função da promulgação das leis de Diretrizes e Bases (LDB/1996) e da resolução das diretrizes curriculares dos cursos de fonoaudiologia (Brasil, 2002). Com elas ficava extinto o currículo mínimo e definidos o perfil, as competências e habilidades do profissional e os campos de saber sobre os quais a formação deveria ocorrer. Por sua vez, a universidade, na elaboração de seu Projeto Pedagógico Institucional (PPI), destacou os seguintes tópicos: formação generalista, visão humanista, pensar crítico, pluralismo, interdisciplinaridade, integração entre teoria e prática, além da indissociabilidade entre pesquisa, ensino e extensão, e flexibilidade na organização dos componentes curriculares. Nesse cenário, as reflexões, proposições e decisões apontavam pontos frágeis do currículo: a lógica da formação acompanhava a seqüência clássica teoria e prática na produção do conhecimento, sendo os dois primeiros anos basicamente teóricos e com poucas atividades diretamente relacionadas com a atuação profissional. O contato com ambientes de trabalho ocorria apenas nos últimos anos da formação e, até o 3º ano, as atividades práticas eram realizadas na clínica-escola6 que, na época, embora fosse referência no atendimento de pessoas com distúrbios da comunicação, não articulava mecanismos de referência e contra-referência com 700

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6 Divisão de Ensino e Reabilitação dos Distúrbios da Comunicação (DERDIC).


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As competências do projeto pedagógico do curso estão descritas em Pupo et al. (2006).

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o SUS. O desenvolvimento de algumas competências e habilidades essenciais ao trabalho em serviços de saúde não se dava de forma gradativa desde o início do curso, e o processo avaliativo centrava-se na aquisição cumulativa de conteúdos. As disciplinas abordavam aspectos da interdisciplinaridade, mas as discussões de casos de caráter multiprofissional só aconteciam em disciplinas específicas. O contato entre as turmas se dava apenas em atividades extracurriculares. As atividades pedagógicas se centravam na modalidade disciplina. O currículo também estabelecia uma rede de pré-requisitos que limitava ainda mais as possibilidades de superação das dificuldades de alguns estudantes. Com base nessas reflexões, um grupo de trabalho com representantes das diversas áreas e disciplinas foi formado para a construção do perfil profissional e das competências e habilidades a serem desenvolvidas. O resultado foi norteador do planejamento acadêmico anual. As propostas foram pautadas nos conceitos de interdisciplinaridade e integralidade. Os debates focalizaram não só as competências técnico-científicas, mas também as socioculturais7. Além da especialidade, identificouse a necessidade de se desenvolverem o compromisso e a responsabilidade pela melhoria da qualidade da assistência à saúde e das condições de vida da população. No currículo anterior, o primeiro ano do curso era basicamente dedicado aos conteúdos vistos como fundamentos da clínica fonoaudiológica, cuja finalidade era promover a compreensão dos aspectos biopsíquico-socioculturais no processo de saúde-doença. Embora esses conhecimentos fossem resgatados nos anos posteriores em situações clínicas ou de assessoria, a dicotomia entre os conhecimentos ministrados no ciclo inicial básico e no ciclo profissionalizante (quando os estudantes realizam estágios) era presente. Com essa forte separação entre teoria e prática no ciclo inicial, e nítido predomínio da teoria, havia, por conseqüência, uma supervalorização da memória, como principal atributo a ser estimulado nas avaliações aplicadas aos alunos nesse ciclo de aprendizado. A motivação do estudante para o estudo das disciplinas teóricas, a despeito dos esforços dos professores de acenar para a importância de tais conhecimentos no cotidiano das práticas fonoaudiológicas, parecia incidir freqüentemente na necessidade de ser aprovado na disciplina. Outra mudança referiu-se à concepção da aprendizagem discente, concebida como um processo dinâmico de criação e relação, de elaboração de sentidos, de significados, que direciona sua lógica no sentido de levar o aluno a construir e participar de experiências de sentido (Morosini, Rossato, Maciel, 2006). Em conseqüência, entre outros requisitos, tal concepção implicou o redesenho da grade curricular, de modo que as disciplinas não operassem de forma individualizada e centradas em seus conteúdos. Os estudantes deveriam participar de atividades que qualificassem sua inserção no mundo do trabalho, quer por meio de estudos de casos, quer por meio de atividades que os levassem a agir de modo responsável analisando sua formação. Para atender às Diretrizes Curriculares Nacionais, o processo da nova reforma do curso implicou, também, mudanças, na direção de maior flexibilidade do currículo, orientadas para abordagens interdisciplinares e concentradas no processo de formação do profissional generalista. Destacaram-se nesse processo: reestruturação da grade de atividades acadêmicas; redução de carga horária de disciplinas teóricas; redimensionamento dos conteúdos trabalhados; introdução de novas modalidades pedagógicas; inserção do estudante no campo de trabalho desde as séries iniciais; promoção de visão ampliada de clínica e, por conseguinte, do pensamento e ação interdisciplinar e em equipe multiprofissional ou participação em projetos coletivos; trânsito entre teoria e prática, estimulado pela busca de informação, leitura, reflexões sobre situações problemas; reorientação dos programas de disciplina em função do projeto. 701


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A criação do núcleo estruturante do Projeto Pedagógico do Curso (PPC) No início do processo de implantação da reforma curricular foi constituído um núcleo formado por: coordenadores de curso e de estágios, um representante de disciplinas teóricas e outro das práticas, um membro da direção da faculdade, um representante discente e um representante administrativo. Esse núcleo, responsável pelo planejamento, execução e avaliação das atividades realizadas semestralmente, desenvolveu as seguintes atividades: organização das oficinas de planejamento das atividades acadêmicas realizadas semestralmente; organização e realização de Seminários interdisciplinares mensais; definição e orientação das atividades de tutoria; definição e orientação para a realização das oficinas do curso; estruturação das atividades de vivências formadoras.8

Implantação das novas modalidades de ensino/aprendizagem Um dos desafios do projeto foi a implantação das novas modalidades de ensino/aprendizagem. Como mencionado, a reforma curricular foi desencadeada em função de um conjunto de fatores, entre o quais a necessidade de incorporar avanços já alcançados e não contemplados na matriz do currículo antigo. Havia atividades extracurriculares, organizadas em torno dos núcleos de estudos e pesquisa, cujo objetivo era verticalizar temas e assuntos tratados pela graduação e/ou pós-graduação. Tais atividades constituíam um conjunto de realizações bemsucedidas, caracterizadas pela problematização de questões interdisciplinares da clínica fonoaudiológica. Na avaliação do curso ficou claro que tal dinâmica propiciava a articulação entre ensino, pesquisa e extensão, o que ia ao encontro da concepção de formação pensada com base nas diretrizes curriculares. Tratava-se, portanto, de incorporar essas metodologias ativas de aprendizagem ao novo currículo, inserindo-as como modalidades pedagógicas diferenciadas, que abordam questões transversais da formação, estimulando uma visão ampliada da clínica e do fazer fonoaudiológico. As seguintes modalidades pedagógicas foram planejadas: seminários, tutoria, oficinas9 e vivências formadoras. Na organização do cotidiano do curso, as atividades de tutoria e oficinas foram alocadas no mesmo dia de aula para todos os períodos do curso10. Essas atividades, semanais, uma vez por mês dão lugar à realização de seminários, possibilitando a participação de todos os estudantes e professores do curso. Os seminários Nos seminários, os estudantes são introduzidos ao campo profissional por meio de um conjunto de atividades, para conhecimento e reflexão de práticas interdisciplinares, multiprofissionais, focalizando discussões sobre modos de se compreender um problema ou situação, questioná-los, concebê-los e intervir sobre a realidade. Devem tomar como base situações concretas, evitar temáticas muito gerais, enfatizar uma visão ampliada da atuação do fonoaudiólogo, trabalhar com metodologias ativas e estratégias variadas, como a discussão de casos e situações institucionais. Com duração de seis horas/aulas, os seminários foram planejados de forma a iniciar com uma atividade de aquecimento, para a discussão sobre um determinado tema (palestras, vídeos, apresentações), seguida de trabalho, em pequenos grupos, com situações problemas (necessariamente compostos por discentes de diferentes níveis de formação na graduação e pós-graduação) e 702

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8 Definidas no projeto como atividades de inserção dos estudantes no campo e nos ambientes de trabalho.

9 Conforme a grade curricular, as oficinas de escrita e cultural são ministradas no 1º e 4º semestres letivos, e as oficinas técnicas no 2º e 3º semestres.

Em 2007 foi implantada a 2ª turma do currículo em questão.

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Foi realizado um termo de referência dessa oficina para os docentes constando objetivos, metodologia e resultados esperados. A opção por trabalhar com oficinas foi a estratégia usada para engajar o corpo docente e discente na construção/ implantação do novo projeto pedagógico. As oficinas diferenciam-se das metodologias tradicionais por serem processos mais horizontais e democráticos, cujos produtos dependem da participação direta de todos os envolvidos. 11

12 Paralelamente a esse seminário, os estudantes realizaram visitas monitoradas (atividade classificada como vivência formadora) em serviços de fonoaudiologia implantados em dois hospitais, duas UBSs e duas clínicas privadas. 13 O filme aborda processos de interação de um personagem com problemas orgânicos e sociais decorrentes de estigmas. Na tutoria, foram trabalhados aspectos da comunicação do personagem principal, considerados impeditivos ou não dos processos de interação com os outros personagens da história.

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finalizar com uma plenária, durante a qual são sintetizados os conceitos trabalhados. Como estratégia política de agregação à proposta, os temas foram escolhidos com base em uma oficina11 de planejamento do curso, com a presença de grande parte do corpo docente e representantes discentes de todas as turmas do curso. No primeiro ano de implantação do projeto (2006) foram realizados sete seminários: 1 “As interfaces do campo fonoaudiológico” - objetivou levar estudantes a refletirem e debaterem sobre as áreas de conhecimento que fazem interface com a fonoaudiologia, na busca da compreensão da articulação de saberes considerados fundamentos da área com os campos específicos da atuação profissional. 2 “Diálogos sobre práticas interdisciplinares em fonoaudiologia” - objetivou introduzir a discussão sobre essa prática interdisciplinar. Os estudantes foram orientados a definir, em linhas gerais, um projeto para a criação de um serviço de fonoaudiologia. Após apresentação em plenária, alguns fonoaudiólogos convidados falaram sobre os investimentos científico e pessoal realizados para a construção de sua experiência profissional.12 3 “Sob o signo da diferença” - o tema, abordado por um filósofo e por uma médica do trabalho, objetivou levar os estudantes a debaterem questões relacionadas à formação social do preconceito e dos processos de discriminação. Na seqüência, assistiram ao filme “Meu pé esquerdo”,13 e puderam refletir sobre efeitos de atitudes e idéias preconcebidas sobre a capacidade de pessoas diferentes. 4 “As diferentes linguagens sobre a linguagem” - abordou a questão dos diferentes olhares sobre um determinado problema. Nesse seminário, os estudantes discutiram a questão - linguagem é uma habilidade inata ou adquirida? - com base em um filme (Nell). Foram convidadas para a discussão: uma lingüista, uma neurologista, uma psicanalista e uma fonoaudióloga. 5 “Integralidade como processualidade” - desenvolvido dentro da Semana de Fonoaudiologia, cujo tema foi “Integralidade como princípio da atuação fonoaudiológica no tratamento de transtornos orgânicos e psíquicos”. Contou com a participação de uma fonoaudióloga e dois médicos, um com experiência na área ocupacional e outro com experiência na implantação do PSF. 6 “Políticas públicas da reabilitação de pessoas deficientes: o desafio da inclusão social” - também foi desenvolvido dentro da Semana de Fonoaudiologia, envolvendo palestras e mesas-redondas. 7 “Por uma nova estética de atuação da fonoaudiologia: o corpo da/na linguagem” - teve como objetivo ampliar os referenciais de mundo e de trabalho, por meio do uso de diferentes linguagens: oral, escrita, dramática e corporal. Procurou-se dimensionar o trabalho no campo da linguagem como algo que implica estar em contato com: afetividade, percepção, expressão, sentidos, crítica e criatividade de si e do outro. Esses seminários desempenharam papel importante na articulação, não apenas dos temas transversais, mas na orientação das discussões temáticas e atividades desenvolvidas na tutoria, nas vivências formadoras e oficinas, uma vez que essas atividades tiveram, como eixo central, as questões abordadas nos seminários. Os professores que participaram mais ativamente dessas atividades as consideraram espaço importante de discussão interdisciplinar, reflexão e compreensão para a articulação das atividades do projeto pedagógico. Na avaliação dos estudantes, os seminários foram percebidos como um ponto de convergência no curso, conforme ilustra o depoimento de um dos alunos: “[...] uma interação brilhante entre professores e alunos dos diversos anos [...] colaborou para a visão da 703


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fonoaudiologia [...] mostrou a realidade da profissão [...] os temas abordados me levaram a decidir continuar na profissão [...]”. Destacam-se, entre outros, dois aspectos em relação ao processo de implantação dos seminários que colaboraram para a integração do currículo. O primeiro diz respeito à abordagem interdisciplinar que, segundo Demo (1998), implica a demolição de fronteiras entre pesquisa e ensino-aprendizagem. Na reforma curricular, os Seminários foram planejados na perspectiva de enxugamento de conteúdos - a integração entre o ensino dos fundamentos e a aprendizagem da prática profissional. Evidências de avanço puderam ser observadas no depoimento de professores sobre a postura e o aproveitamento dos alunos, quer por questionamentos, quer por relações estabelecidas nas discussões em sala de aula. Em segundo lugar, o processo coletivo de definição dos temas e da metodologia utilizada nessa atividade mostrou-se estratégia aglutinadora de idéias, integradora da relação dos docentes com o projeto. Nesse processo, acompanha-se Feuerwerker (2002) quando afirma que o planejamento estratégico e o esforço organizado de construir canais de comunicação e discussão coletiva são partes essenciais para a condução dos processos de mudança. Os resultados alcançados levaram o núcleo estruturante a compreender, inclusive, que, para otimizar a participação dos docentes e discentes, era necessário delegar a organização e execução dos seminários aos mesmos. Tarefa inicialmente assumida pela comissão didática, que, no decorrer do tempo, passou apenas a gerenciar o processo, procurando antecipar-se aos problemas ou dificuldades e, ainda, oferecendo suporte aos grupos.

Tutoria Embora tenha se inspirado na caracterização proposta por cursos que se baseiam em metodologias de resolução de problemas, a tutoria, no projeto pedagógico do curso de Fonoaudiologia, foi concebida de modo diverso, com os seguintes objetivos: lançar desafios para desenvolver a capacidade do aluno de articular estudos desenvolvidos nas várias disciplinas com as questões trabalhadas pelos seminários; facilitar o processo educacional; promover ações que resultassem em atitudes crítico-reflexivas; desenvolver atividades focalizadas no aprender, e não no ensinar; assegurar a participação de todos os estudantes, incentivando a iniciativa de contribuição à discussão grupal; auxiliar a auto-avaliação discente e identificação de necessidades para melhor aproveitamento acadêmico; estimular processos de integração e cooperação grupal; iniciar os estudantes em métodos de pesquisa científica. Inicialmente, a tutoria teve como eixo básico de trabalho a construção do conhecimento científico para a formação do profissional. Tomou como base o conhecimento dos próprios alunos, advindo das experiências pessoais, do senso comum, dos temas veiculados pelas diversas mídias referentes à profissão do fonoaudiólogo. Suas atividades foram organizadas de forma a dar subsídios para a participação nos seminários. Conforme depoimento de uma das tutoras: A discussão sobre a área de conhecimento da fonoaudiologia e seu campo de atuação preparou os alunos para o primeiro seminário interdisciplinar “As interfaces da fonoaudiologia”. Embora estreantes nesse tipo de atividade, os alunos do primeiro ano participaram ativamente dos subgrupos de trabalho e também da composição da mesa final de discussão em plenária. Puderam compreender a fonoaudiologia como área interdisciplinar, com interface não apenas no âmbito das ciências biológicas e da saúde, mas também no das ciências humanas e sociais. E isso abriu espaço para que o grupo colocasse suas dúvidas em relação a certas disciplinas do primeiro ano, como antropologia. Inicialmente, eles não estavam vendo sentido nessas disciplinas, pois tinham expectativa de um curso na área das ciências biológicas. A percepção de que linguagem não é unicamente um fator biológico fez com que entendessem a necessidade do estudo de temas abordados em ambas as disciplinas [...]. (Relatório de avaliação final da tutoria)

Para preparação do segundo seminário, fizeram uma visita monitorada, como atividade de vivência formadora, a três locais de atuação do fonoaudiólogo, além de entrevistas a fonoaudiólogos, outros profissionais e usuários. 704

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Durante as atividades de tutoria do primeiro semestre, os estudantes também fizeram um levantamento bibliográfico dos temas desenvolvidos em Trabalhos de Conclusão de Curso (TCCs), dissertações, teses e periódicos na área de fonoaudiologia. Segundo uma das tutoras: esta atividade serviu como uma primeira aproximação ao campo da metodologia científica, pois os alunos puderam perceber, na prática, por exemplo, a importância em se construir um texto conciso e claro, no resumo do trabalho científico, para facilitar as buscas do pesquisador, assim como a adequação do título e a escolha das palavras-chave. (Grupo focal de avaliação/docentes)

Os estudantes avaliaram a tutoria como uma das modalidades pedagógicas “mais significativas do curso” que: possibilitou a oportunidade de trabalho em grupo [...] favoreceu aproximação com o curso, professores, profissão [...] ampliou a compreensão do curso e da profissão [...] favoreceu a integração dos alunos [...] apontou a importância da educação continuada [...]. (Grupo focal de avaliação/estudantes)

14 A modalidade tutoria, aqui apresentada, difere daquela praticada nos cursos que adotaram currículos integrados e metodologias de aprendizagem baseadas em problemas. No currículo de Fonoaudiologia da PUCSP, ela assume não só a problematização da prática clínica, mas também organiza ações e estratégias de estudo, pesquisa e discussão sobre práticas profissionais da área.

A implementação de metodologias ativas tem sido um grande desafio para professores que realizam a formação na área da saúde, que, em sua maioria, se formaram por metodologias tradicionais e inseriram-se nos currículos de acordo com a área de sua especialização (Marins, 2004; Feuerwerkwer, 2002). A modalidade de tutoria14 foi considerada uma atividade importante para a aproximação do estudante com o campo de trabalho do fonoaudiólogo e para o desenvolvimento de habilidades e atitudes para aprender a aprender. Ao planejar recursos, fazer orientações e acompanhar as vivências formadoras (descritas a seguir), os tutores propiciaram melhores condições para uma aprendizagem significativa. Segundo Zanolli (2004), o mais importante na educação de adultos é ajudá-los a identificar o que não sabem, e a melhor maneira de fazer isto é expô-los a situações onde possam ativar e testar suas experiências prévias. Além disso, diz o autor que a aprendizagem deve ocorrer de maneira contextualizada em situações reais que os estudantes irão enfrentar em suas vidas. Um elemento a se considerar na implantação do currículo diz respeito aos cenários das práticas para o avanço da proposta de tutoria no segundo ano de implantação curricular. Basear a aprendizagem clínica na prática real desde o início do curso impõe o desafio de aproximar o curso dos serviços de saúde. A reflexão que se faz com base nos resultados alcançados com a implantação (depoimento de alunos e professores) da tutoria e, recorrendo à literatura, é a de que as atividades por elas propostas propiciam não só a aproximação dos alunos com o campo fonoaudiológico, mas também o desenvolvimento de um olhar mais atento para as necessidades (de saúde, educação entre outras) da população atendida (condição de vida, de acesso às tecnologias que melhoram a qualidade de vida, de vínculo com os serviços e de autonomia). Estendendo a reflexão de Zanolli (2004), sobre a formação médica, para a área da Fonoaudiologia, todos esses aspectos devem ser considerados no desenvolvimento de metodologias ativas de ensino-aprendizagem clínica.

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Vivências formadoras As vivências formadoras introduzem o estudante nos ambientes de trabalho e em instituições que podem qualificar o seu olhar para o fazer profissional. Foram centralizadas pelas tutorias e articuladas com disciplinas, oficinas, seminários, entre outros. As atividades desenvolvidas no primeiro ano do curso foram: . Ida a um espetáculo de ópera, como forma de ampliação do repertório cultural, e discussões específicas na disciplina Trabalho Corporal e na oficina cultural. . Idas às Bibliotecas dos campi da PUC-SP para a realização da pesquisa bibliográfica, cujo material resultante foi apresentado na tutoria. . Participação no evento promovido pela PUC-SP, no Dia Mundial da Voz, em atividades de promoção da saúde. . Visitas monitoradas a locais de atuação do fonoaudiólogo - clínicas particulares, Unidades Básicas de Saúde, hospitais - e realização de entrevistas com profissionais e usuários dos serviços. . Observação de casos clínicos vinculados às disciplinas aquisição de linguagem escrita, aquisição de linguagem oral e neurologia. . Visitas ao museu da Língua Portuguesa e Museu da Pessoa. . Filmagem de uma relação dialógica criança /adulto - disciplina Aquisição de Linguagem e Oficina Técnica. . Visita a templos religiosos - atividade da disciplina Introdução ao Pensamento Teológico. . Visita à Derdic, instituição onde se realizam os estágios do 3º ano. . Participação em ações de promoção de saúde e prevenção de doenças promovidas pelos estudantes do 4º ano (triagem auditiva de crianças de seis meses a dois anos, realizadas em Unidades Básicas de Saúde). . Participação dos estudantes no XV Encontro de Iniciação Científica da PUC-SP. . Organização e participação na XIII Semana de Fonoaudiologia e II Jornada Mauro Spinelli. Em relação às vivências formadoras trabalhadas em visitas monitoradas, os estudantes avaliaram que “enriqueceram muito a formação [...] muito boa essa idéia [...] ajudaram-me a confirmar minha escolha profissional [...] deveriam acontecer mais [...]” (Grupo focal de avaliação/estudantes). A repercussão dessas experiências na formação dos estudantes foi percebida e avaliada positivamente, não só pelos professores que planejaram e monitoraram tais vivências, mas também pelos professores de disciplinas teóricas, que observam mudanças no perfil acadêmico da turma: “mais comprometida, interessada, com mais iniciativa para participar de atividades que contribuem para a formação profissional [...] os alunos estão discutindo com mais propriedade questões sociais gerais e as que envolvem as práticas fonoaudiológicas [...]” (Grupo focal de avaliação/docentes). Os depoimentos são indicativos de que as vivências formadoras mostraram-se pertinentes ao trabalho de sensibilização dos estudantes nos aspectos psicológicos de motivação para a profissão e idealização do papel profissional. Segundo Nogueira-Martins (2006), experiências realizadas em grupo são fundamentais para a preparação profissional. A criação de atividades e espaço para discussão parece confirmar o pressuposto da autora de que tais espaços acolhem os estudantes e contribuem para sua formação integral. Oficinas de escrita e oficinas culturais As oficinas culturais e de escrita estavam articuladas com as demais atividades, propondo trabalhos como: redação de diários, relatórios das visitas, entre outros. O objetivo dessas oficinas foi o de disparar a discussão sobre o modo de relação dos alunos com sua escrita, buscando a construção de um modo mais significativo e prazeroso de se relacionar com a linguagem escrita. Os alunos participaram e relataram suas histórias de letramento. Nessas oficinas discutiu-se a relação entre a Fonoaudiologia e a Arte (em geral, e a literatura em particular) e sua importância para o trabalho terapêutico. Tornou-se prática comum a narração de livros lidos e a troca, entre os alunos, de livros para ler. Segundo a professora das oficinas:

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a idéia de fomentar o prazer pela leitura e fornecer elementos que permitam uma escolha mais criteriosa e orientada do que ler foi alcançada. Isto permitiu ampliar o universo de leitura dos alunos, a capacidade de escrita de gêneros não acadêmicos. Essa oficina permitiu que os estudantes identificassem a necessidade de ampliação do universo cultural como um aspecto fundamental para a formação do terapeuta. (Relatório de avaliação final da oficina de escrita)

As oficinas buscaram, também, criar a prática de ler e escrever fora dos muros universitários. Nesta direção, a opção foi trabalhar a produção de um gênero não-acadêmico, mas jornalístico, o artigo de opinião, pois este gênero: (1) permite ao seu leitor o acompanhamento e a tomada de posição frente a questões polêmicas e controversas; (2) mobiliza fortemente a estrutura argumentativa e outros mecanismos lingüísticos e discursivos (polifonia, intertextualidade etc) que são compartilhados por gêneros acadêmicos, como é o caso do artigo de divulgação científica e do ensaio acadêmico; (3) circula em jornais e revistas. Do ponto de vista argumentativo, a discussão sobre os diferentes tipos de argumento (causa, princípio, autoridade e exemplificação) e sobre os movimentos argumentativos (sustentação, refutação e negociação) auxiliou os estudantes a compreenderem a estrutura argumentativa que integra o artigo de opinião. Sobre a articulação entre os seminários e as oficinas de escrita, a professora refere: foi possível focalizar as características sobre a fala letrada apresentada por palestrantes que puderam ser relacionadas às dificuldades de compreensão que este tipo de fala pode apresentar [...] a relação entre leitura, fala letrada e tomada de notas [...] a importância de saber definir para tomar notas de exposições orais (aulas, palestras etc...). (Relatório de avaliação final da oficina de escrita)

Na avaliação dessa modalidade pedagógica, os estudantes demonstraram o alcance que esta teve: mostrou a importância de ler e escrever claramente e corretamente [...] lidar de forma mais crítica com o texto [...] ajudou a escrever melhor [...] abriu minha visão sobre sociedade e cultura [...] comecei a gostar mais de ler e escrever [...] ajudou a entender as matérias [...] ajudou à escrita, mas foram poucas atividades [...] acrescenta a todas as matérias, mas foi pouco. (Questionário de avaliação do curso pelo discente)

A escrita é um dos caminhos que levam o estudante ao acesso e à produção do conhecimento. Um dos desafios da reforma curricular foi oferecer condições para que os estudantes pudessem desenvolver suas potencialidades e sanar suas deficiências, as quais limitam sua formação e seu futuro desempenho profissional. Os atos de ler, escrever e aprender correspondem a realidades muito próximas e, portanto, indissociáveis. Os estudantes demonstraram essa percepção ressaltando os benefícios trazidos pela participação nas oficinas de escrita, relacionando a construção do conhecimento científico à capacidade crítico-reflexiva. Oficina técnica para atuação na atenção à saúde infantil No segundo semestre, conforme matriz curricular, as oficinas teriam objetivo de capacitação técnica para atuação profissional. Em consonância com o trabalho de disciplinas teóricas, seu objetivo foi trabalhar, sobre a perspectiva interdisciplinar e multiprofissional, aspectos relacionados à Atenção à Saúde da Criança, na esfera do Sistema Único de Saúde, com destaque para a questão da assistência à criança de risco. Na avaliação dessa modalidade, constatou-se seu papel articulador nas temáticas trabalhadas por algumas disciplinas teóricas, possibilitando a integração das visões de várias áreas que atuam com esse ciclo de vida e as grandes preocupações gerais das políticas de saúde.

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Análise do processo de implantação Ao analisar o processo de implantação curricular do curso, é preciso destacar os referenciais que permitiram o caminhar para a concretização do projeto pedagógico do curso. Interagiram, nesse processo, o PPC idealizado pelos professores (que participaram da construção da proposta, considerando negociações e ajustes realizados antes, durante e após sua aprovação), o prescrito pela instituição, aprovado pelos conselhos superiores da universidade, com o que está sendo efetivamente implantado. A metodologia de trabalho usada nas disciplinas implantadas mostrou-se coerente com o princípio de fomentar a autonomia no processo de ensino-aprendizagem, quer pela valorização do conhecimento prévio dos estudantes, acionado em todas as situações de formação, quer no trabalho de levá-los a compreender que a formação profissional implica processos de aprender a aprender, aprender a fazer, e aprender a se relacionar. Diferentemente das áreas que tiveram um maior incentivo para realizarem os processos de mudança curricular, na área da fonoaudiologia, ainda não foram desenvolvidos instrumentos formais para esse tipo de avaliação. Neste estudo, para apreciar os resultados das mudanças alcançadas, foram utilizados, como referência, os eixos propostos por Campos et al. (2001) em uma avaliação de projetos pedagógicos, pensada no contexto da aproximação da formação em saúde com as necessidades da atenção básica. Tendo em vista o estágio da implantação do novo currículo (primeiro ano), não foi possível trabalhar com todos os eixos e vetores, como os referidos autores o fizeram. Mas é importante ressaltar que forneceram parâmetros importantes para a análise da avaliação da implantação curricular neste estudo. Assim, na análise, foram considerados os seguintes eixos: teórico, abordagem pedagógica, cenários de aprendizagem e preparação para o desenvolvimento do projeto pedagógico.

Eixo - Orientação teórica O curso possuía um enfoque teórico que permitia uma visão ampliada da clínica fonoaudiológica, uma vez que já trabalhava sobre a perspectiva dos vários determinantes do processo saúde-doença, não restringindo o olhar apenas sobre os aspectos orgânicos. No entanto, segundo relatos e análises dos docentes e discentes, as novas modalidades têm lhes possibilitado a prática efetiva desse olhar, desde os primeiros anos da formação. Segundo Campos et al. (2001), a análise desse eixo aponta a necessidade de o curso aproximar os docentes e os estudantes dos primeiros anos dos serviços de saúde. Considera-se que a problematização de situações e a sistemática de análise do processo da saúde-doença se efetivam nas experiências dos estudantes em equipamentos de saúde.

Eixo - Abordagem pedagógica Embora o currículo não adote integralmente a metodologia baseada na resolução de problemas, introduz modalidades de aprendizagem ativa. Isto possibilita ao estudante uma maior integração entre as disciplinas consideradas básicas e as atividades de caráter profissionalizante, fazendo com que estas sejam incorporadas de modo significativo. As atividades de seminários, visitas monitoradas, observações de casos clínicos e organização da Semana de Fonoaudiologia têm promovido a troca de experiências e a interação entre estudantes de diferentes níveis de formação. A mudança didático-pedagógica vem imprimindo processos de aprendizagem ativa, com orientação feita por tutores, desenvolvendo-se em diferentes cenários de aprendizagem e utilizando diferentes fontes de conhecimento (bibliotecas, visitas monitoradas a serviços, entrevistas a profissionais etc.) A implementação das modalidades pedagógicas (seminários, tutoria e oficinas) tem possibilitado a inter-relação entre teoria e prática. Ao planejar atividades que trabalham os fundamentos da prática profissional, o currículo tem atendido às necessidades de formação dos estudantes, aperfeiçoando as condições de estudo e investigação.

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Foi iniciado o trabalho com os professores para aperfeiçoar os instrumentos de avaliação discente. Embora esse seja um grande desafio, a avaliação formativa tem sido tema de muitas discussões nas reuniões docentes e já está sendo implementada como forma de conhecer o resultado da proposta de cada modalidade pedagógica do curso. Em decorrência, os planos de ensino estão sendo trabalhados em função das necessidades dos estudantes e de cada turma. Esse trabalho tem possibilitado o planejamento de atividades pedagógicas (monitorias, plano de estudos) em função das necessidades de aprendizagem dos estudantes detectadas nessas avaliações.

Eixo - Cenários de aprendizagem Diferentemente do currículo anterior, no qual os estudantes tinham interação ativa com a população e profissionais de saúde somente no início do terceiro ano, o novo currículo tem propiciado aos estudantes, já no primeiro ano, participarem de ações de promoção da saúde e prevenção de doenças. Este fato possibilita que os estudantes assumam responsabilidades crescentes como agentes prestadores de cuidados, compatíveis com seu grau de autonomia. As atividades desenvolvidas nos seminários, que problematizam questões diretamente relacionadas com o fazer clínico fonoaudiológico, por seu caráter interdisciplinar têm promovido a integração de docentes de áreas básicas e profissionalizantes, permitindo a abordagem de questões da clínica fonoaudiológica. Uma aproximação maior do curso com uma comunidade e serviços de saúde do território é desejável para criar melhores condições para que a formação dos estudantes fique mais centrada nas necessidades da população.

Eixo - Preparação para o desenvolvimento do projeto pedagógico Em relação à experiência vivenciada pelo núcleo de implantação curricular, observou-se que seus participantes puderam vivenciar o processo de produção coletiva e planejamento participativo. Embora os temas dos seminários tivessem sido escolhidos previamente na oficina de planejamento, este grupo ficou responsável pela elaboração da proposta e da articulação entre as atividades de tutoria e a preparação dos alunos para sua participação nos seminários. No planejamento desta atividade do segundo ano do curso, cada membro do núcleo está coordenando a organização dos novos seminários, tarefa delegada aos professores e estudantes do curso. É importante dizer que, nesse processo, houve também resistências para a mudança por parte de alguns professores de disciplinas teóricas, pois, mesmo reconhecendo as dificuldades e limitações de um ensino mais tradicional, a experimentação de inovações produz desarranjos e rearranjos, para os quais nem todos estiveram muito disponíveis. Em relação a esses professores, pode-se dizer que as modificações na formação dos estudantes repercutiram de modo positivo, produzindo mudanças que puderam ser observadas no interesse em participar dos seminários, na elaboração de planos de disciplina, adotando metodologias mais ativas. A análise deste eixo aponta para a necessidade de sensibilização e preparação de professores que utilizam apenas métodos tradicionais na abordagem de suas disciplinas, para que estes possam ampliar a implementação da problematização como metodologia de ensino-aprendizagem. No processo de análise do percurso realizado, concordamos com Veiga Neto (2003), ao afirmar que projeto político-pedagógico de um curso deve ser considerado como um processo permanente de reflexão e discussão dos problemas da instituição, na busca de alternativas viáveis à efetivação de sua intencionalidade, que não é descritiva ou constatativa, mas é constitutiva. Neste sentido, a descrição e análise do processo trouxeram subsídios importantes para a tomada de decisão na continuidade do trabalho de implantação do novo currículo.

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Considerações finais Neste artigo registrou-se o início do processo de implantação do novo currículo do curso de fonoaudiologia da PUC-SP, descrevendo e analisando a implementação de novas modalidades pedagógicas (seminários interdisciplinares, oficinas técnicas, de escrita e cultural, e tutorias). Na elaboração do projeto, essas atividades foram consideradas como dispositivo para a passagem de um modelo curricular estruturado por disciplinas para um modelo de atividades acadêmicas estruturadas por um projeto pedagógico com ações programáticas. Entre outros avanços, destacam-se: maior integração das disciplinas básicas com as atividades de caráter profissionalizante; melhor compreensão do estudante sobre a importância de uma formação pautada nas necessidades da população; maior articulação entre atividades de ensino, pesquisa e extensão; interação entre estudantes dos vários níveis de formação nas ações de promoção da saúde e prevenção de agravos; planejamento de atividades pedagógicas complementares em função das necessidades dos estudantes, detectadas nas avaliações formativas. Ao final deste estudo, ressalta-se a importância da construção de indicadores nacionais para o acompanhamento e avaliação das mudanças curriculares. No interior das instituições, eles podem orientar a reflexão crítica e induzir mudanças.

Colaboradores As autoras Maria Cecília Bonini Trenche, Luisa Barzaghi e Altair Cadrobbi Pupo participaram, igualmente, de todas as etapas de elaboração do artigo.

Referências BRASIL. Conselho Nacional de Educação. Diretrizes Curriculares Nacionais do curso de graduação em Fonoaudiologia, Resolução CNE/CES 5/2002. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 4 mar. 2002. Seção 1, p.12. CAMPOS, F.E. et al. Caminhos para aproximar a formação de profissionais de saúde das necessidades da atenção básica. Rev. Bras. Educ. Méd., v.25, n.2, p.53-9, 2001. DEMO, P. Desafios modernos da educação. Petrópolis: Vozes, 1998. FEUERWERKER, L.C.M. Além do discurso de mudança na educação médica: processos e resultados. São Paulo/Londrina/Rio de Janeiro: Hucitec/Rede Unida/Associação Brasileira de Educação Médica, 2002. FEUERWERKER, L.C.M.; SENA, R.A. Construção de novos modelos acadêmicos de atenção à saúde e de participação social. In: ALMEIDA, M.J. (Org.). Educação médica e saúde: possibilidades de mudança. Rio de Janeiro: ABEM, 1999. p.47-83. MARINS, J.J. Os cenários de aprendizagem e o processo do cuidado em saúde. In: MARINS, J.J. et al. (Orgs.). Educação médica em transformação: instrumentos para a construção de novas realidades. São Paulo: Hucitec, 2004. p.97. MOROSINI, M.; ROSSATO, R.; MACIEM, A.M.R. (eds.). Enciclopédia de pedagogia universitária: glossário. Brasília: INEP/RIES, 2006. v.2. p.423. NOGUEIRA-MARTINS, M.C.F. Formação: saberes e fazeres humanizados. Bol. Saúde, v.20, n.2, p.110-8, 2006.

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PUPO, A.C et al. Novo Projeto Pedagógico do Curso de Fonoaudiologia da PUC-SP. Distúrbios Comunic., n.18, p.1-32, 2006. SACRISTÁN, J.C. O currículo: uma reflexão sobre a prática. Porto Alegre: Artmed, 1998. p.352. THIOLHENT, M. Crítica metodológica, investigação social e enquete operária. 3.ed. São Paulo: Polis, 1987. VEIGA NETO, A. Currículo e interdisciplinaridade. In: MOREIRA, A.F. (Org.). Currículo: questões atuais. Campinas: Papirus, 2003. p.59-102. ZANOLLI, M.S. Metodologias ativas de ensino-aprendizagem na área clínica. In: MARINS, J.J.N. et al. (Orgs.). Educação médica em transformação: instrumentos para a construção de novas realidades. São Paulo: Hucitec, 2004. p.40.

TRENCHE, M.C.B.; BARZAGHI, L.; PUPO, A.C. Cambio curricular: construcción de un nuevo proyecto pedagógico de formación en el área de Fonoaudiología. Interface Comunic., Saúde, Educ., v.12, n.27, p.697-711, out./dez. 2008. Este artículo contempla la análisis del primer año de implantación del nuevo Proyecto Pedagógico del Curso de Fonoaudiología de la Pontificia Universidad Católica de São Paulo, Brasil (PUC-SP). El objetivo ha sido el de analizar no sólo los cambios de concepción y prácticas pedagógicas sino también la construcción de un trabajo colectivo del cuerpo social del curso. Los resultados mostraron que las nuevas modalidades pedagógicas han sido dispositivos importantes para alcanzar los cambios propuestos en el nuevo modelo curricular. Entre otros avances se destacan una mayor integración de las disciplinas básicas con las actividades de caracter profesionalizante, mejor comprensión del estudiante sobre la importancia de una formación pautada en las necesidades de la población y mayor articulación entre actividades de enseñanza, investigación y extensión.

Palabras clave: Proyecto pedagógico. Cambio curricular. Fonoaudiología. Currículo. Recebido em 16/08/07. Aprovado em 04/07/08.

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Ligas Acadêmicas e formação médica: contribuições e desafios

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Albina Rodrigues Torres1 Gabriel Martins de Oliveira2 Fábio Massahito Yamamoto3 Maria Cristina Pereira Lima4

TORRES, A.R. et al. Academic Leagues and medical education: contributions and challenges. Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.12, n.27, p.713-20, out./dez. 2008.

There has been a considerable increase in the number of academic leagues active within undergraduate medical courses in Brazil over the last few years. However, this phenomenon has not been accompanied by adequate reflection on its determinants, on the role of the leagues within the institutions or even on their pedagogical function. From these observations, the authors analyze the scant literature on this topic, describe the experience of the academic leagues of Botucatu Medical School, Unesp, and reflect on the role of these leagues in medical training, in an attempt to partially fill this gap and contribute towards this important discussion.

Key words: Academic leagues. Medical education. Extracurricular activities.

Nos últimos anos tem havido um considerável aumento do número de ligas acadêmicas atuantes nos cursos de graduação em medicina no Brasil. Esse fenômeno, no entanto, não vem sendo acompanhado de adequada reflexão sobre seus determinantes, o papel das ligas dentro das instituições, ou mesmo sua função pedagógica. A partir destas constatações, os autores analisam a precária literatura sobre o tema, descrevem a experiência das ligas acadêmicas da Faculdade de Medicina de Botucatu - Unesp e refletem a respeito do papel destas na formação médica, na tentativa de suprir um pouco dessa lacuna e contribuir para esta importante discussão.

Palavras-chave: Ligas acadêmicas. Educação médica. Atividades extracurriculares.

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* Trabalho realizado na Faculdade de Medicina de Botucatu,Unesp. 1 Médica. Docente do Departamento de Neurologia, Psicologia e Psiquiatria, Faculdade de Medicina de Botucatu, Universidade Estadual Júlio de Mesquita Filho (FMB/Unesp). Distrito de Rubião Jr. Botucatu, SP, Brasil. 18.618-970 torresar@fmb.unesp.br 2,3 Aluno de graduação, FMB/Unesp. 4 Médica. Docente do Departamento de Neurologia, Psicologia e Psiquiatria, FMB/Unesp.

v.12, n.27, p.713-20, out./dez. 2008

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Introdução O curso médico é desenvolvido em tempo integral, com enorme quantidade de conteúdos teóricopráticos e, na maior parte das escolas médicas do Brasil, com poucas disciplinas optativas e exígua disponibilidade de tempo para atividades extracurriculares. Além disso, em regra, os conteúdos são ministrados de modo pouco integrado entre as disciplinas e com insuficiente integração também entre teoria e prática, o que tende a tornar o processo ensino-aprendizagem pouco significativo e, conseqüentemente, menos produtivo (Feuerwerker, 2005). É também, em geral, um curso que envolve um alto grau de competitividade entre os alunos, uma vez que o vestibular é extremamente concorrido e o exame de seleção para os programas de residência representa um funil estreito ao final dos seis anos da graduação, com o qual os alunos se preocupam cada vez mais cedo. Este clima de competitividade não se restringe ao início e final do curso, mas se irradia ao longo dele, dando mostras de sua existência a cada divulgação de nota ou outras situações nas quais os alunos sintam-se avaliados/ classificados ou, de fato, o sejam. Logo nos primeiros anos do curso, o aluno é colocado em contato com a grande carga emocional do sofrimento alheio, havendo um grau crescente de responsabilização sobre os pacientes atendidos e pouco ou nenhum “espaço” previsto dentro do currículo para que tais experiências afetivas sejam minimamente partilhadas entre os pares ou “metabolizadas” com a ajuda de professores ou tutores adequadamente preparados para essa função (Ramos-Cerqueira, Lima, 2002). Conforme destacaram Peres e Andrade (2005), o estudante de medicina, além de submetido a uma carga horária extenuante, é muito exigido do ponto de vista do seu amadurecimento emocional, e está sujeito a fontes de tensão que geralmente não são contempladas pelo currículo instituído. De fato, alguns estudos realizados em nosso meio vêm apontando altas taxas de sofrimento mental entre estudantes de medicina (Lima, Domingues, Ramos-Cerqueira, 2006; Moro, Valle, Lima, 2005; Souza, Menezes, 2005). Por outro lado, o contexto profissional dos docentes universitários nas escolas médicas públicas brasileiras não difere muito daquele vivido pelo aluno, em termos de exigências. Em geral, ao lado das atividades de ensino, há grande sobrecarga de atividades assistenciais e administrativas, além da enorme pressão por produtividade científica. O tempo dedicado às atividades de ensino na graduação normalmente necessita ser dividido com o ensino de pós-graduação senso latu (programas de residência médica) e senso estrito. O docente tem pouco ou nenhum preparo específico para as atividades pedagógicas (Fernandes, 2001), exercendo essa função, em geral, de modo intuitivo, reproduzindo modelos - igualmente despreparados - com os quais teve contato durante seu próprio curso de graduação. Há maior valorização das atividades de ensino ligadas à pós-graduação, do número de alunos orientados ou de trabalhos publicados em revistas científicas de alto impacto, e de verbas conseguidas junto a agências de fomento à pesquisa, em comparação com as atividades desenvolvidas com os alunos de graduação. Deste modo, sobrecarregados de compromissos obrigatórios e eternamente correndo contra o tempo, tanto discentes quanto docentes se vêem numa roda-viva de atividades que executam sem muita liberdade, reflexão ou prazer. Nesse contexto, vêm ganhando força, progressivamente, as ligas acadêmicas (LA), desenvolvidas como atividades extracurriculares. Segundo Azevedo e Dini (2006), não há um conceito claro do que sejam LA, embora algumas considerações gerais possam ser delineadas: são organizações estudantis nas quais um grupo de alunos “decide se aprofundar em determinado tema e sanar demandas da população”. Caberia aos estudantes a definição dos rumos da Liga, sob orientação de um ou mais professores. Desta forma, além de aulas, cursos, atividades de pesquisa e assistência em diferentes cenários da prática médica, seria importante a inserção dos alunos na comunidade, por meio de atividades educativas, preventivas ou de promoção à saúde, como feiras de saúde e campanhas, objetivando melhorar a qualidade de vida da população e adquirir mais experiência e conhecimento (Azevedo, Dini, 2006). As LA foram inicialmente idealizadas no Brasil num momento de grande tensão político-social, correspondente aos anos da ditadura militar. Nesse contexto, associações estudantis passaram a questionar a essência do ensino universitário e o direcionamento e a aplicabilidade dos avanços técnicocientíficos. Nesses 21 anos de redemocratização e de mudanças profundas na sociedade, nas abordagens de atenção à saúde e de reformas curriculares, formalizaram-se as primeiras LA (Liga de Emergência e Trauma da Universidade Federal de Pernambuco - LETUFPE, 2007). 714

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A partir da constituição de 1988, em que se elaborou o princípio da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão, o papel das LA se fortaleceu. Criada em 1996, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) definiu o papel da educação superior na prática e na formação acadêmicas, destacando o estímulo ao conhecimento dos problemas do mundo presente, assim como os nacionais e regionais. O resultado prático seria evidenciado na prestação de serviços à comunidade e no estabelecimento de uma relação de reciprocidade com a mesma. Dessa forma, atividades de extensão universitária procuram fazer com que pesquisas e estudos acadêmicos cheguem mais rapidamente à comunidade por meio da prática profissional (Salgado Filho, 2007). Idealmente, portanto, espera-se que as LA constituam-se “espaços” onde o aluno possa atuar junto à comunidade como agente de promoção de saúde e transformação social, ampliando o objeto da prática médica, reconhecendo as pessoas como atores do processo saúde-doença, o qual envolve aspectos psicossociais, culturais e ambientais, e não apenas biológicos. Assim, propiciariam, além do desenvolvimento de senso crítico e raciocínio científico, uma prática mais ampla do exercício da cidadania, com o olhar voltado para as necessidades sociais e a integralidade da assistência à saúde (Salgado Filho, 2007; Azevedo, Dini, 2006; Mafra, 2006). A participação dos alunos em LA ocorre em âmbitos de ações em saúde, ensino, pesquisa e extensão; aspectos que, a despeito das divergências estruturais nos diferentes cenários do ensino médico, são relativamente homogêneos em todas as regiões brasileiras. Tal fato se refletiu na criação, em setembro de 2006, da Associação Brasileira de Ligas Acadêmicas de Medicina - ABLAM (Associação Brasileira de Educação Médica, 2007) durante o 8º Congresso Brasileiro de Clínica Médica, sediado em Gramado/RS, o que representou um marco na história da medicina brasileira, contando com o apoio de várias entidades médicas regionais e nacionais.

As Ligas Acadêmicas na Faculdade de Medicina de Botucatu Na Faculdade de Medicina de Botucatu (FMB) – Unesp existem atualmente (novembro de 2008) 16 LA oficializadas: Liga do Trauma, Liga do Câncer, Liga de Cirurgia, Liga de Geriatria e Gerontologia, Liga do Coração, Liga da Dor e Cuidados Paliativos, Liga da Saúde Sexual e Reprodutiva, Liga de Saúde Mental, Liga de Medicina Intensiva, Liga de Pediatria, Liga de Pneumologia, Liga de Coloproctologia Liga de Neurociências, Liga de Dermatologia, Liga do Diabetes Melitus e Liga do Transplante. Há, ainda, uma liga em processo de credenciamento: Liga da Saúde da Mulher. As LA são conduzidas, em geral, por uma diretoria executiva composta por presidente, vicepresidente, tesoureiro e secretário, normalmente com gestão anual, e são estruturadas em diferentes frentes de atuação. As principais frentes e suas respectivas funções são: Frente Clínica, que organiza as atividades práticas dos alunos, como plantões e atendimentos ambulatoriais ou de enfermaria; Frente de Capacitação de seus membros, que organiza seminários, discussões de casos clínicos e aulas de revisão e/ou atualização; Frente Científica ou de Eventos, que organiza os Encontros, Jornadas ou Congressos; Frente de Pesquisa, que organiza as atividades de produção de conhecimento; Frente Preventiva e Educativa, que prepara material e organiza as atividades de educação em saúde, como participação em Campanhas e Feiras de Saúde, e Frente de Apoio Terapêutico, que organiza e desenvolve atividades complementares para pacientes que já estão sendo atendidos no sistema de saúde. No caso específico da Liga de Saúde Mental (LISM), criada em 2004, há ainda a Frente de Saúde Mental dos Estudantes, que organiza atividades de integração entre os membros mais antigos e os novos, ou de recepção dos calouros, ou, ainda, atividades culturais e de lazer, como cineclubes e saraus literários, filosóficos ou musicais, entre outras. Reuniões periódicas formalizam e gerenciam o funcionamento de cada LA, o planejamento das atividades a serem desenvolvidas, a organização interna e o processo de seleção de novos membros colaboradores entre os alunos. Em 2005 foi criado o Conselho das Ligas Acadêmicas da FMB (CONLIGAC), vinculado ao Centro Acadêmico Pirajá da Silva, órgão de representatividade dos alunos. Este conselho tem um papel fundamental na organização e articulação das atividades desenvolvidas pelas diferentes LA, por meio de reuniões periódicas com seus representantes, bem como na avaliação do mérito das propostas de COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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criação de novas Ligas. Posteriormente, o processo de formalização das mesmas é julgado também pela Comissão Permanente de Extensão Universitária - CPEU e pela Congregação da FMB. Como exemplos da atuação do CONLIGAC, podem-se citar: a organização do calendário de eventos científicos, de tal modo que não ocorram sobreposições, e do Congresso das LA da FMB, que vem sendo realizado anualmente desde 2006, com um tema central (ex. urgências e emergências, infecções, saúde da mulher) que seja transversal e escolhido de comum acordo.

As Ligas e a Formação Médica: contribuições e preocupações Estudo de Peres, Andrade e Garcia (2007), realizado com estudantes de medicina por meio de questionários, entrevistas individuais e dois grupos focais, identificou como principais motivações para participar de atividades extracurriculares: “tentativa de preencher lacunas curriculares, integrar-se com colegas, suplementar o curso, obter bem-estar e atender indagações profissionais” (Peres, Andrade, Garcia, 2007, p.203). A literatura sobre o papel das LA e seu impacto na formação médica é bastante escassa. Contudo, alguns autores têm analisado o papel das atividades extracurriculares e algumas de suas observações podem se aplicar às LA. Tavares et al. (2004) afirmam que estas atividades são extremamente comuns e constituem “parte importante do treinamento da maioria dos estudantes de medicina brasileiros, servindo claramente como complementação de seu treinamento sabidamente deficiente na maioria de nossas escolas” (Tavares et al., 2004, p.6). Peres e Andrade (2005) realizaram um amplo estudo sobre atividades extracurriculares, por intermédio de inquérito realizado junto a estudantes de medicina, seguido de entrevistas individuais e grupos focais. Os autores afirmam que, apesar de haver uma cultura institucional que estimula a formação de um currículo “paralelo”, pouco se sabe a respeito do impacto dessas atividades não obrigatórias sobre o desenvolvimento psicossocial e cognitivo, o rendimento acadêmico e o ajustamento do estudante à Universidade. Tal currículo “informal” ou “oculto”, que subverte a estrutura curricular formal, pode ser um desdobramento de expectativas não contempladas pelo currículo instituído, contribuindo de forma diferenciada para mudanças pessoais no universitário em cinco domínios principais: conhecimentos e habilidades acadêmicas, complexidade cognitiva, competência prática, competência interpessoal e humanitarismo. Com base nas respostas de 423 alunos de medicina aos questionários, o que equivale a uma taxa de resposta de 70,3%, e nas demais estratégias metodológicas, os autores observaram que os estudantes que participavam de atividades extracurriculares desenvolviam várias delas simultaneamente, despendendo até mais de oito horas semanais do primeiro ao quarto ano. A participação em LA foi a atividade mais freqüentemente relatada por alunos do primeiro ao terceiro ano, e “aproximar da prática médica” foi o principal motivo apontado por estes. Outros motivos relatados para a participação em atividades extracurriculares foram: compensar frustrações relativas ao curso e lacunas do currículo, integrar-se com colegas de diferentes anos e sentir-se membro da instituição, além de atender indagações profissionais futuras. Porém, dificuldades em administrar o tempo, que deve ser dividido com obrigações acadêmicas e atividades de lazer, também foram apontadas como fontes geradoras de conflito (Peres, Andrade, 2005). Igualmente avaliando atividades extracurriculares, Vieira et al. (2004) aplicaram um questionário aos alunos do 1º ao 4º ano do curso médico da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP. Do total de 396 alunos matriculados em 2002, 362 estavam presentes na ocasião em que foi realizado o inquérito, tendo havido apenas duas recusas. Os autores observaram que 92% deles estavam envolvidos em algum tipo de atividade extracurricular. Entre elas, a atuação em LA apareceu em primeiro lugar, com 73% dos alunos afirmando participar destas. Foi observado ainda, paradoxalmente, um aumento significativo da carga horária dedicada a essas atividades extracurriculares nos últimos anos, se comparados aos primeiros, sem que na grade curricular exista maior disponibilidade de tempo. Segundo Peres, Andrade e Garcia (2007), nos dois últimos anos do curso médico, as atividades extracurriculares mais desenvolvidas são as de iniciação científica e monitorias, voltadas para aprimoramento do curriculum vitae, mais do que a participação em LA, mais comum nos três primeiros anos do curso (Peres, Andrade, Garcia, 2007).

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Uma possível contribuição das LA para a formação profissional seria a inclusão de alunos oriundos de diferentes cursos da área da saúde. Capovilla e Santos (2001) realizaram um estudo com 87 estudantes de odontologia que cursavam o quarto ano, turno diurno, de uma universidade particular. Com base na aplicação de questionários com escala Likert de cinco pontos, as autoras observaram que o impacto das atividades extracurriculares foi bastante positivo no desenvolvimento profissional. Na verdade, provavelmente as contribuições se estendem para além da área da saúde. Fior (2003) realizou um estudo qualitativo com universitários de diversos cursos nas áreas de exatas, humanas e biológicas. A autora buscou “investigar as atividades não obrigatórias realizadas por estudantes de graduação, analisando as relações estabelecidas pelos mesmos entre a participação nestas atividades e as mudanças pessoais percebidas durante a graduação” (Fior, 2003, p.40). Para isto, a autora entrevistou 16 universitários de uma universidade pública do interior de São Paulo, das áreas citadas. Com base nas entrevistas, a autora afirma que a diversidade de atividades desenvolvidas pelos estudantes confirma que o processo educacional, sob responsabilidade da instituição, envolve experiências que ultrapassam os limites da sala de aula e das exigências das atividades curriculares obrigatórias e que, ambas, em interação, contribuem com mudanças significativas para a aprendizagem e o desenvolvimento dos estudantes. (Fior, 2003, p.111)

A despeito dos aspectos potencialmente positivos das LA, é oportuno discutir distorções que podem ocorrer durante o curso de graduação em relação à criação e ao desenvolvimento desse tipo de atividade extracurricular. Deste modo, é fundamental que as LA não se afastem muito da sua função primária de extensão universitária, deixando em segundo plano ou ignorando totalmente as atividades de prevenção de doenças e promoção da saúde, constituindo-se, por exemplo, em mera atividade de iniciação científica ou assistência. Também não é desejável que se tornem simplesmente estágios extracurriculares, com algumas aulas, atividades de ambulatório ou plantões de enfermaria em determinada especialidade. Isto representaria tão-somente carga horária adicional, nos mesmos moldes das atividades acadêmicas de rotina, com alunos passivos, pouco criativos e pouco críticos. Conforme destacaram Peres e Andrade (2005), as LA podem reproduzir a mesma lógica meritocrática e as relações burocratizadas e hierárquicas da instituição. Sabe-se ainda que, infelizmente, a maior parte das escolas médicas brasileiras tem, como características: a restrição do objeto de prática (centrado apenas no indivíduo biológico), pouca inserção em espaços de formação adequados (muito voltados para espaços intramuros), e poucas oportunidades de reflexão e produção de conhecimento, gerando profissionais pouco questionadores e inadequados para o sistema de saúde e o mercado de trabalho (Azevedo, Dini, 2006). Outra distorção possível é que a participação nas LA apenas venha a alimentar o ambiente já suficientemente competitivo das escolas médicas, fazendo com que a atuação nestas seja apenas mais uma forma de aumentar os curriculum vitae dos alunos com certificados de participação, ou ainda uma forma de se destacar diante de alguns professores, buscando a futura seleção para os programas de residência. As LA também não deveriam se prestar ao papel de simplesmente antecipar conteúdos curriculares que serão oferecidos posteriormente ao aluno, ao longo do curso. Preocupa, também, a multiplicação acrítica das LA, sem que se levem em consideração: sua relevância acadêmica e social, a clareza e coerência pedagógica de seus objetivos, seu modelo de gestão (sustentabilidade, critérios para entrada de membros, interação com outras LA), e sua ideologia (democratização, articulação com o Sistema Único de Saúde - SUS, amplo entendimento dos processos de adoecimento e respeito a princípios éticos e humanísticos). Segundo Mafra (2006), a idéia de LA vem sendo deturpada e desviada de seu caminho real, muitas vezes entendendo extensão como assistencialismo, e não como troca de saberes entre a comunidade e os estudantes inseridos nessa realidade, buscando juntos resolver as dificuldades encontradas. Do ponto de vista da participação dos alunos nos rumos das instituições, é fundamental que as LA não sirvam simplesmente para preencher lacunas curriculares, diminuindo o envolvimento e o interesse - tanto de discentes quanto de docentes - na discussão sobre mudanças curriculares necessárias. Corre-

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se o risco de as LA se tornarem apenas apêndices das disciplinas curriculares, num mecanismo contraproducente de “tapar-buracos” (Mafra, 2006). Assim, podem acabar funcionando como “anestésicos” ou “ansiolíticos” para aplacar a angústia e desmobilizar a discussão e a luta por um currículo que, de fato, priorize conteúdos mais relevantes para a formação do médico generalista. Ainda é importante que as LA não representem uma superespecialização precoce, indo totalmente na contramão das Diretrizes Nacionais do Ensino Médico (Almeida, 2003) e de toda a discussão atual sobre a necessidade de se formarem médicos generalistas para atuar no SUS, que tenham uma visão ampliada do processo saúde-doença e que considerem sempre os pacientes de modo não compartimentalizado, e repleto de signos, significados, sentimentos, cultura e saberes (Azevedo, Dini, 2006). Por fim, em que pesem as “boas intenções” manifestadas pelos organizadores das LA e a orientação da Direção Executiva Nacional dos Estudantes de Medicina - DENEM, as LA são espaços de poder, sujeitas às complexas correlações de forças existentes em cada instituição e fortemente influenciadas pela ideologia vigente.

Considerações finais As LA podem desempenhar um papel interessante na formação médica, devendo-se permanecer atento para que não caiam na armadilha de se configurarem como meras reproduções das distorções existentes na formação médica, mas na verdade se contraponham a estes problemas. Nelas, idealmente, os estudantes devem ter oportunidade de fazer escolhas de modo ativo e livre, ter iniciativas inovadoras, trocar experiências e interagir com colegas interessados nos mesmos assuntos e escolhidos por afinidade. Espera-se que, nesse contexto, possam adquirir conhecimentos práticos sem pressão, com mais satisfação e de modo mais significativo; desenvolver potenciais intelectuais, afetivos e relacionais, assim como a capacidade crítica e reflexiva; exercer a criatividade, a espontaneidade e a liderança, sendo mais atores e menos expectadores do processo ensino-aprendizagem. Deste modo, as LA poderiam contribuir de fato para a adequada formação de um médico generalista humano e ético, reflexivo e crítico, com senso de responsabilidade social e compromisso com a cidadania; um profissional capaz de perceber e acolher o paciente em sua complexa integralidade biopsicocultural, capaz de trabalhar, respeitosa e construtivamente, em equipe multidisciplinar, e disposto a procurar ativa e permanentemente o conhecimento. Por fim, um profissional que não perca nunca de vista a necessidade de cuidar de sua própria saúde física e mental para poder ser um “cuidador” mais competente e satisfeito com seu papel profissional. Frente à escassa literatura disponível sobre as LA e a magnitude destas nos cursos médicos, seriam interessantes estudos empíricos, preferencialmente de natureza qualitativa, para se apreender o papel do fenômeno “liga acadêmica” na formação dos alunos. Esperamos que o presente artigo estimule pesquisadores da área de ensino médico a desenvolverem pesquisas sobre esse tema em nosso meio.

Epílogo Os sentidos do verbo “ligar”: UNIÃO e AÇÃO (Ferreira, 2000, p.426): Atar com laço ou ligadura, prender Unir, juntar novamente o que está separado, fazer aderir ou pegar Pôr em comunicação, em contato Vincular, unir por vínculos morais ou afetivos Formar aliança, relacionar-se, estabelecer relações entre, aproximar Combinar, misturar, associar Tornar conexo ou coerente Prestar atenção Pôr em funcionamento... 718

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Colaboradores Os autores Albina Rodrigues Torres e Maria Cristina Pereira Lima participaram, igualmente, da elaboração do artigo, de sua discussão, redação e revisão do texto. Gabriel Martins de Oliveira e Fábio Massahito Yamamoto participaram da revisão bibliográfica, de discussões e da redação de parte do manuscrito. Referências ALMEIDA, M.J. Diretrizes Curriculares Nacionais para os cursos universitários da área da saúde. Londrina: Rede Unida, 2003. ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE EDUCAÇÃO MÉDICA. ABEM. 12º Boletim Virtual, ano 2006. Disponível em: <http://www.abem-educmed.org.br/publicacoes/ boletim_virtual/boletim_virtual_12.htm> Acesso em: 7 out. 2008. AZEVEDO, R.P.; DINI, P.S. Guia para construção de Ligas Acadêmicas. Ribeirão Preto: Assessoria Científica da Direção Executiva Nacional dos Estudantes de Medicina, 2006. Disponível em: <http://www.daab.org.br/texto.asp?registro=157>. Acesso em: 7 out. 2008. CAPOVILLA, S.L.; SANTOS, A.A.A. Avaliação da influência de atividades extramuros no desenvolvimento pessoal de universitários. Psico U.S.F., v.6, n.2, p.49-57, 2001. FERNANDES, C.M.B. Docência universitária e os desafios da formação pedagógica. Interface – Comunic. Saúde, Educ., v.9, n.2, p.177-82, 2001. FERREIRA, A.B.H. Mini Aurélio século XXI: o minidicionário da língua portuguesa. 4.ed. rev. ampl. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000. FEUERWERKER, L. Modelos tecno-assistenciais, gestão e organização do trabalho em saúde: nada é indiferente no processo de luta para a consolidação do SUS. Interface Comunic., Saúde, Educ., v.9, n.18, p.489-506, 2005. FIOR, C.A. Contribuições das atividades não obrigatórias na formação universitária. 2003. Dissertação (Mestrado) - Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas, Campinas. 2003. LIGA DE EMERGÊNCIA E TRAUMA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO. LETUFPE. Ligas Acadêmicas no Brasil. Disponível em: <http://www.grupos.com.br/ blog/letufpe>. Acesso em: 7 out. 2008. LIMA, M.C.P.; DOMINGUES, M.S.; RAMOS-CERQUEIRA, A.T.A. Prevalência e fatores de risco para transtornos mentais comuns entre estudantes de medicina. Rev. Saúde Pública, v.40, n.6, p.1035-41, 2006. MAFRA, S. Ligas acadêmicas. Diretórios Acadêmicos, v.2, n.7, 2006. Disponível em: <http://revista.cremepe.org.br/07/diretorios_academicos.php>. Acesso em: 7 out. 2008 MORO, A.; VALLE, J.B.; LIMA, L.P. Sintomas depressivos nos estudantes de Medicina da Universidade da região de Joinville (SC). Rev. Bras. Educ. Méd., v.29, n.2, p.97-102, 2005. PERES, C.M.; ANDRADE, A.S. Atividades extracurriculares: representações e vivências durante a formação médica. 2005. Dissertação (Mestrado) - Programa de PósGraduação em Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto. 2005 Disponível em: <http://stoa.usp.br/ antandras/files/318/1474/Repres_alun_univ_ativ_extracurr.pdf>. Acesso em: 7 out. 2008.

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TORRES, A.R. et al. Ligas Académicas y formaciones médicas: contribuciones y desafíos. Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.12, n.27, p.713-20, out./dez. 2008. En los últimos años ha habido un considerable aumento del número de ligas académicas actuantes en los cursos de graduación en medicina en Brasil. Este fenómeno, no obstante, no está siendo acompañado de adecuada reflexión sobre sus determinantes, el papel de las ligas dentro de las instituciones o incluso su función pedagógica. A partir de tales constataciones, los autores analizan la precaria literatura sobre el tema, describen la experiencia de las ligas académicas de la Facultad de Medicina de Botucatu, de la Universidad del estado de São Paulo, Brasil y reflexionan sobre el papel de las ligas en la formación médica: en la tentativa de suplir un poco este vacío y contribuir para tan importante discusión.

Palabras clave: Ligas acadêmicas. Educación médica. Actividades extracurriculares. Recebido em 24/08/07. Aprovado em 30/09/08.

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Formação reflexiva: representações dos professores acerca do uso de portfólio reflexivo na formação de médicos e enfermeiros

Roseli Ferreira da Silva1 Idália Sá-Chaves2

SILVA, R.F.; SÁ-CHAVES, I. Reflexive formation: teachers’ representations about the use of reflexive portfolio in the forming of medical doctors and nurses. Interface Comunic., Saúde, Educ., v.12, n.27, p.721-34, out./dez. 2008. This research looks at the use of Reflexive Portfolio (RP) in the education of Health professionals at the Professional Practice Unit of Marília Medical School, Brazil. The aim was to analyze how teachers perceive the use of RP in Nursing and Medicine Courses. The qualitative approach was chosen as the research methodology. Data were collected through individual interviews with the teachers. The obtained data were analyzed through content analysis. This analysis enabled the authors to elaborate a synthesis of considerations about the use of the portfolio as a strategy for professional education. According to the interviewed teachers, the RP allowed them to stimulate the students’ reflexive capacity and continuously follow up the processes related to their personal and professional development. It was considered a highly innovative and arduous strategy, whose practice required time and dedication from teachers.

Key words: Education. Reflexive portfolio. Formative evaluation. Teaching-learning methodology. Problem based learning.

Esta investigação discute a utilização de Portfólio Reflexivo (PR) na formação de profissionais de Saúde na Unidade de Prática Profissional, da Faculdade de Medicina de Marília, São Paulo, Brasil. O objetivo foi analisar as percepções dos professores quanto ao uso do PR nos cursos de Enfermagem e de Medicina. A abordagem qualitativa foi a opção metodológica, tendo a coleta de dados sido feita mediante entrevista individual com os professores. A análise dos dados foi realizada por meio da técnica de análise de conteúdo. Esta análise permitiu elaborar uma síntese de considerações sobre a utilização do portfólio enquanto estratégia para formação profissional. O PR, na perspectiva dos professores entrevistados, possibilitou a estimulação da capacidade reflexiva dos estudantes e um acompanhamento contínuo dos processos relativos ao seu desenvolvimento pessoal e profissional. Foi considerado como uma estratégia inovadora e, também, muito trabalhosa, requerendo tempo e dedicação dos professores para implementá-lo.

Palavras-chave: Formação. Portfólio reflexivo. Avaliação formativa. Metodologias de ensino-aprendizagem. Aprendizagem baseada em problemas.

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1 Enfermeira. Departamento de Medicina, Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, SP. Rua Vitor Manoel de Souza Lima, 410, apto. 31, São Carlos, SP, Brasil. 13.561-020 roselifs@ufscar.br 2 Licenciada em Educação. Departamento de Didáctica e Tecnologia Educativa, Universidade de Aveiro, Aveiro, Portugal.

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Formação reflexiva: paradigmas em mudança Nas sociedades contemporâneas a formação dos profissionais em saúde está sendo desafiada por uma nova perspectiva que exige a procura de novos referenciais, inscritos em novos paradigmas que interligam educação, saúde e desenvolvimento e sustentam a importância da formação numa perspectiva de profissionalidade reflexiva. O paradigma de racionalidade técnica, caracterizado por modelos tendencialmente uniformizadores e de matriz reprodutora não é mais suficiente, nas suas lógicas e pressupostos, para enfrentar o desafio da formação de enfermeiros e médicos, numa perspectiva humanista e, como tal, integradora das dimensões pessoal e profissional da formação e do desenvolvimento humano. Como é reconhecido, gerações de profissionais tiveram sua formação com base nos processos de transmissão de informação, na prática repetitiva e na perspectiva dicotômica, que separava as instâncias teoria e prática. Os resultados são hoje, ainda, evidentes nos traços de uma profissionalização mecanicista, individualista, acrítica e reprodutiva do trabalho em Saúde. É, contudo, evidente que tais práticas não conseguem responder às características dinâmicas e incertas dos contextos. A grande imprevisibilidade emergente das dinâmicas que organizam as práticas sugere que a formação deva integrar as dimensões pessoal e profissional3, numa perspectiva de reflexividade que proporcione a emergência de profissionais críticos, compromissados com as transformações sociais, e científica e tecnicamente competentes para assumir a complexidade do cuidar em Saúde. Com base neste novo paradigma crítico-reflexivo a escola, enquanto instituição formativa, deve contribuir para a formação de profissionais cujo perfil de competência lhes permita intervir no seu contexto de trabalho de forma crítica, coletiva e integradora. Ou seja, deve contribuir para desenvolver nos futuros profissionais uma cultura de cidadania, tornando-os cada vez mais responsáveis, participativos e ativos na transformação dos contextos de trabalho e de vida. Para tanto, é fundamental estimular, no estudante em formação, o desenvolvimento da sua capacidade para compreender, global e sistemicamente, os problemas que a especificidade dos contextos e das respectivas circunstâncias lhes colocam. Trata-se de estimular a capacidade de perceber, de forma integrada, os objetivos, as finalidades, as pessoas e as suas motivações, os acontecimentos e as relações que entre todos se estabelecem. Conforme Alarcão (2003, p.23), tratase da compreensão que “assenta na capacidade de escutar, de observar e de pensar, mas também, na capacidade de utilizar as várias linguagens que permitem ao ser humano estabelecer com os outros e com o mundo mecanismos de interação e de intercompreensão”. São capacidades necessárias à formação dos futuros enfermeiros e médicos, numa perspectiva muito mais abrangente, que vai muito além da indispensável capacitação técnica, constituindo uma verdadeira educação para a cidadania, que permitirá aos profissionais intervir em situações complexas e desafiantes. Segundo Freire (1999), nesta perspectiva, aprender se torna para o futuro profissional uma aventura criadora, algo que por isso mesmo se torna muito mais rico do que a mera repetição da lição dada. Neste sentido, aprender é construir, (re)construir, constatar, para poder intervir e mudar. Nesse passeio pela aprendizagem o formando vai-se tornando sujeito crítico, epistemologicamente curioso, que constrói o conhecimento partindo da problematização do objeto de estudo e participando ativamente de sua construção. Conforme o mesmo autor, 722

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3 Essas orientações (pessoal e profissional) são entendidas aqui numa dimensão conjunta, de natureza copulativa, ou seja, como um processo intrínseco e funcional, uno e indissociável.


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trata-se da “capacidade de aprender, não apenas para nos adaptarmos à realidade, mas, sobretudo, para transformar, para nela intervir, recriando-a” (Freire, 1999, p.77). Neste contexto o professor/formador tem a responsabilidade de ajudar o formando a desenvolver, de maneira gradativa, a capacidade de transformar a informação em conhecimento que, quando refletido à luz dos valores universais, pode revestir a forma do agir sábio. Ainda de acordo com Alarcão (2003, p.30), “formar profissionais capazes de interagir com o conhecimento de forma autônoma, flexível e criativa é a melhor preparação para a vivência no nosso mundo super complexo, incerto, sempre pronto a exigir novos saberes, inspiradores de novas ações”. Também para Schön (1983), as ações desenvolvidas pelos formandos devem ser sempre refletidas, pois é na reflexão sobre as práticas desenvolvidas, avaliadas e continuamente re-aferidas, que se reconstrói o conhecimento prévio, tornando emergente da própria prática uma nova compreensão dos fenômenos em análise, numa perspectiva integradora dos referenciais teóricos e da informação que apenas na prática reside. Conforme Sá-Chaves (2000a), conhecimento profissional é entendido não apenas na sua estrutura multidimensional dos conteúdos de diversos saberes disciplinares, mas, sobretudo na sua natureza epistemológica, ou seja, como um conhecimento em ação, aberto, dinâmico e flexível capaz de se tornar responsivo à especificidade de cada situação e momento. É nesta perspectiva que uma nova conformação curricular se torna indispensável para possibilitar a construção progressiva de uma profissionalidade reflexiva. Para tanto, o currículo deve ser entendido como uma práxis, e não como um objeto estático, ou melhor, como uma metapráxis, que permite transpor os saberes de natureza cognitiva, para o domínio da ação, ou seja, como competência entendida como saber em uso (Perrenoud, 2000). Este enfoque é considerado integrador de conteúdos e ações pedagógicas, uma vez que o plano de estudos e as diferentes modalidades de ensino constituem um todo, sendo o processo de ensinoaprendizagem percebido como o conjunto de atividades que transforma o programa em prática para produzir aprendizagem, ou seja, para produzir compreensão e conhecimento (Silva, 2000). De acordo com Libâneo (1998), este conceito de currículo que se realiza e ganha sentido na prática, supera a dicotomia entre teoria e prática sustentada pela corrente tecnicista. Retomando Sá-Chaves (2005), a utilização da estratégia portfólio reflexivo responde, em grande medida, a esta “nova” filosofia de formação. Corroborando esta idéia, Nunes e Moreira (2005, p.53) referem que a utilização do portfólio no processo de ensino-aprendizagem está em harmonia com o pensamento pedagógico reflexivo “pois faculta ao estudante oportunidades para refletir, diagnosticar as suas dificuldades, auto-avaliar o seu desempenho e auto-regular a sua própria aprendizagem”, assumindo uma dimensão metacognitiva no seu desenvolvimento. Sá-Chaves (2000b, p.15), salienta que esta estratégia permite ao (profissional em formação), Uma ampliação e diversificação do seu olhar, estimulando a tomada de decisões, a necessidade de fazer opções, de julgar, de definir critérios, de se deixar invadir por dúvidas e por conflitos, para deles poder emergir mais consciente, mais informado, mais seguro de si e mais tolerante quanto às hipóteses dos outros.

De acordo com a autora, o portfólio tem sido utilizado em várias áreas de formação profissional, cumprindo um papel importante em vários contextos educativos, como estratégia que potencializa a construção do conhecimento de forma reflexiva, com vista a uma progressiva emancipação dos sujeitos em formação. E vem ganhando novos significados ao longo dos últimos anos. Investigações realizadas em diferentes campos do conhecimento acerca desta mesma estratégia têm reconhecido as suas vantagens. Nesta linha, Grilo e Machado (2005) referem como benefícios do seu uso: a oportunidade para um processo reflexivo mais sistematizado e continuado, centrado sobre as múltiplas dimensões da prática; um espaço de questionamento sistemático sobre a prática em situações de trabalho; a promoção do desenvolvimento do formando a partir das suas próprias experiências, motivações e necessidades; a oportunidade para desenvolver processos de auto-avaliação e de autoconhecimento do formando, por meio da conscientização dos seus pontos fortes e as suas COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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fragilidades; e a oportunidade de uma avaliação mais autêntica, mais dinâmica, mais fundamentada e mais participada. Apóstolo (2005) também refere, em seu estudo, o impacto que a construção do portfólio reflexivo teve na aprendizagem e no desenvolvimento de futuros enfermeiros, e aponta como vantagens: o desenvolvimento pessoal e grupal; a aprendizagem reflexiva e crítica e não rotineira; o desenvolvimento de competência de planejamento e da capacidade de pesquisa; a valorização do trabalho do outro; a objetivação da avaliação; a aprendizagem na competição gerida, explicada pelo autor como sendo a capacidade de, no processo grupal, estudantes e professor lidarem com a competição dentro de fronteiras que permitam que o grupo funcione. Quando o formando não está familiarizado com a estratégia portfólio e/ou com mecanismos que permitam refletir sobre a própria aprendizagem, podem ocorrer alguns impactos negativos iniciais com a sua utilização. A este propósito, Nunes e Moreira (2005) relatam que as análises realizadas na fase inicial de construção de portfólio revelaram alguns constrangimentos, tais como: a invisibilidade do sujeito nas narrativas; ausência de narrativas de pendor reflexivo; e desintegração entre forma e conteúdo nas narrativas. Na perspectiva da formação de sujeitos ativos e reflexivos, alguns princípios de formação relativos ao processo de construção do conhecimento e, como tal, presentes na elaboração de portfólio, devem ser cuidadosamente tidos em conta. Sá-Chaves (2005) salienta os princípios de pessoalidade, auto-implicação, conscientização, inacabamento e continuidade da formação. Para a autora o princípio de pessoalidade é aquele que reconhece, como fundamento básico, a pessoa. É na relação de aprendizagem que, por meio do portfólio, se estabelecem entre formador e formando os modos singulares como este aprende, como faz e como pode vir a fazê-lo, no contexto específico do seu trabalho. Desta forma, ocorre a auto-implicação, o envolvimento e o comprometimento dos sujeitos consigo mesmos e com o outro, constituindo um elemento enriquecedor das visões pessoais. Esta ampliação das perspectivas constitui aquilo que Sá-Chaves (2002) designa como princípio do efeito multiplicador da diversidade, na medida em que os coletivos interagem na construção de um conhecimento partilhado. É neste processo que ocorre a conscientização, quando o formando revitaliza suas convicções e conhecimentos próprios, ampliando os respectivos quadros de referência e abrindo novos espaços de compreensão contextualizada e de ação futura. Por fim, o princípio de continuidade do processo de formação é dado pela natureza do próprio inacabamento de toda a aprendizagem, percebida, nesta perspectiva, como um continuum ao longo da vida.

Um programa de inovação curricular Este programa refere-se a um currículo inovador desenvolvido na Faculdade de Medicina de Marília – Famema, no âmbito dos cursos de Medicina e Enfermagem, inscrito num movimento de mudança curricular permanente, que teve seu início em 1997 (Zanolli, 2004; Komatsu, 2003; Lima, 2000; Silva, 2000). Esta investigação se inscreve neste processo de mudança na formação de médicos e enfermeiros na Famema, e refere-se aos anos de 2003 e 2004. Neste contexto, os planos curriculares são integrados e interdisciplinares, incluem processos metodológicos e pedagógicos inovadores, desenvolvidos em pequenos grupos e orientados para o desenvolvimento da competência profissional esperada para esses profissionais de Saúde no contexto brasileiro. Outra característica fundamental nos planos curriculares de ambos os cursos é a diversificação de cenários de ensino-aprendizagem, o que inclui uma ampla participação dos estudantes e professores na rede de serviços de saúde pública do município, cumprindo, assim, uma missão fundamental na formação de profissionais de Saúde, ou seja, a contribuição para a construção de novas práticas neste domínio científico, com forte impacto social. Vale ressalvar que toda essa transformação dos planos curriculares está em consonância com as Diretrizes Curriculares em nível nacional, obtendo, com isso, uma grande legitimação curricular no desenvolvimento da formação em geral. 724

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5 No contexto deste projeto consideramos o conceito de competência como a capacidade de mobilizar diferentes recursos para solucionar com pertinência e sucesso os problemas da prática profissional, em diferentes contextos. Os recursos são as capacidades pessoais (cognitivas, psicomotoras e afetivas) que, combinadas, e interagindo com as potencialidades dos contextos nesta perspectiva conformam o modo singular pelo qual cada profissional realiza suas atividades cotidianas (Famema, 2004).

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O desempenho traduz a dimensão visível da competência. Neste programa constitui-se elemento de avaliação para cada série.

Tal como concebe Bronfenbrenner4, (1979 apud Portugal, 1992), nesta proposta: o formando é visto como um sujeito dinâmico, em desenvolvimento, que se move, reestruturando e recriando progressivamente o meio em que se encontra; o ambiente exerce sua influência no desenvolvimento do formando, num processo de mútua interação; no processo de desenvolvimento nem só o contexto imediato no qual o formando está envolvido exerce influência, mas também a inter-relação entre os diferentes níveis contextuais. Nesta perspectiva de formação, o desenvolvimento do futuro profissional adquire uma concepção mais ampla, diferenciada e válida do ambiente ecológico, ele se torna motivado e apto a desenvolver atividades que permitem descobrir, manter ou alterar as propriedades do ambiente ecológico. O que se propõe neste movimento de mudança é a adoção de uma abordagem sócioconstrutivista da educação, na qual a escola proporciona condições para o aprender a fazer, agir, operar, criar, construir a partir da realidade vivida por professores e estudantes, ou seja, proporciona ao sujeito da aprendizagem a construção ativa do seu conhecimento, que se dá na interação com o meio, quer na sua dimensão física, quer social, com o simbolismo humano e com o mundo das relações sociais (Becker, 2005). Esta proposta de formação é de natureza crítico-reflexiva, sendo sustentada numa perspectiva de construção do conhecimento com base na problematização da realidade, ou seja, na articulação da teoria com a prática e na participação ativa do futuro profissional. Assim, em 2003 e 2004, para as duas primeiras séries dos dois cursos, os planos curriculares passaram a ser orientados para o desenvolvimento da competência profissional5, e não mais por objetivos educacionais, perspectiva mais comum nos planos curriculares tradicionais. Para tanto, foram desenhadas as seguintes áreas de competência, para a formação de enfermeiros e médicos: cuidado às necessidades de saúde individuais; cuidado às necessidades coletivas em saúde; organização e gestão do trabalho em saúde. Os planos de estudo são organizados, em cada série, por unidades educacionais interdisciplinares, para o exercício da respectiva profissão numa perspectiva de intervenção social. Ou seja, cada uma das séries integra duas unidades, que são estruturadas a partir dos desempenhos6, desenhados para cada uma das áreas de competência, esperados para os estudantes em cada série, a unidade Sistematizada e a unidade de prática profissional. A Unidade Sistematizada é organizada com base em situações reais da prática profissional, as quais são estruturadas sob forma de problemas de “papel”. Assim, o estímulo para a aprendizagem se constitui numa representação da realidade. As situações-problema são previamente construídas pelos docentes e o foco da atividade é predominantemente educacional. A metodologia utilizada é a Aprendizagem Baseada em Problemas – ABP, conhecida internacionalmente como Problem Based Learning – PBL (Venturelli, 1997). Nesta metodologia, uma das estratégias de aprendizagem é o trabalho em pequenos grupos, com sessões de tutoria. O trabalho em pequenos grupos se constitui num dos pilares fundamentais da ABP, pois esta estratégia promove a participação ativa dos estudantes no processo de construção do seu próprio conhecimento, na medida em que, a partir do estímulo apresentado – problema de papel – os estudantes mobilizam suas capacidades, conhecimentos e experiências prévias para a discussão, compreensão e reflexão acerca da situação apresentada. Além de promover e desenvolver as capacidades de cooperação e colaboração no trabalho coletivo, promove, sem dúvida, a capacidade de aprender a aprender. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Numa perspectiva teórica do desenvolvimento humano este autor interpreta uma nova concepção do desenvolvimento da pessoa, do meio ambiente e a interação entre estes, ou seja a interação sujeito-mundo e conseqüente desenvolvimento – Ecologia do desenvolvimento humano (Bronfenbrenner, 1979). 4

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A outra unidade, denominada Unidade de Prática Profissional – UPP é construída com base na vivência dos estudantes em contextos reais, tal como acontece na prática profissional (Famema, 2004). Assim, o eixo de construção do conhecimento passa a ser a própria prática, ou seja, o conhecimento é construído a partir dos conteúdos (cognitivo, afetivo, psicomotor) emergentes das questões da prática (pré)profissional, e não mais por temas predeterminados, tal como se verifica na formação tradicional. Esta construção ocorre num processo de reflexão na, sobre e para a prática, de acordo com as perspectivas reflexivas sublinhadas por Alarcão (2003), num processo pedagógico que também se fundamenta nos pressupostos subjacentes à aprendizagem significativa. Tal como interpreta Coll7 (2005, 1987), este tipo de aprendizagem ocorre quando o sujeito aprende um conteúdo mediante a atribuição de um significado, construído cada vez que a pessoa for capaz de estabelecer relações substantivas e não arbitrárias entre o que se aprende e o que já se conhece. Desta forma, várias estratégias pedagógicas foram necessárias para o desenvolvimento desta unidade educacional. A primeira é a inserção dos estudantes em cenários reais de prática profissional, o que lhes permite, a partir das suas capacidades e conhecimentos prévios e o confronto com as novas experiências proporcionadas por esses cenários, despertar uma curiosidade epistêmica, dando motivação para explorar, descobrir, aprender e compreender as situações vividas. Esta atividade de tipo exploratório converte-se, assim, num poderoso instrumento de aquisição de novos referenciais facilitadores de aprendizagem significativa. Trata-se, ainda, de uma aprendizagem que, partindo das experiências pessoais, permite aprender mais sobre si próprio, levando a um processo de progressiva descoberta e ressignificação da própria identidade. Nos dois primeiros anos dos cursos – Medicina e Enfermagem – o cenário real da prática é o contexto da Unidade de Saúde da Família – USF. Neste âmbito, os estudantes, quatro de enfermagem e oito de medicina, permanecem juntos durante os dois anos num mesmo grupo, constituindo-se num verdadeiro grupo de trabalho que integra dois professores, sendo um médico e um enfermeiro. A partir do trabalho real, do cuidado em saúde - com os indivíduos, as famílias e a comunidade da área de abrangência da USF - os estudantes e professores vãose responsabilizando pelo cuidado desses, de acordo com o grau de autonomia que o estudante apresenta e desenvolve na e para a prática, em cada série. Esta estratégia proporciona ao estudante a criação de vínculos e a responsabilização partilhada com todos os envolvidos no processo do cuidado – pacientes, familiares, profissionais da equipe de saúde, colegas e professores. As atividades desenvolvidas pelos estudantes, do cuidado em saúde, devem ser ao mesmo tempo relevantes para a aprendizagem, o serviço de saúde e a comunidade. Outra estratégia para a construção do conhecimento – de forma autônoma, responsável e significativa – que potencializa as experiências pessoais vividas na prática alinhada ao desenvolvimento pessoal e profissional, foi a constituição de momentos pré-programados de aprendizagem, em pequenos grupos, para a realização das reflexões na, sobre e para a prática. Assim, os momentos de vivência, o confronto experiencial, e a reflexão em pequenos grupos constituem o que chamamos de ciclo de aprendizagem. Desta forma, nesta unidade curricular, os atributos pessoais (cognitivos, afetivos, psicomotores) são desenvolvidos a partir da realização de tarefas inerentes à prática profissional – confronto experiencial – o que sustenta uma reflexão integrada acerca dos valores, conhecimentos e das destrezas que cada estudante já possui, enquanto capacidades prévias, e a construção emergente de 726

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7 César Coll reúne, de forma harmoniosa, algumas idéias de grandes teóricos que subjazem ao uso atual do conceito de aprendizagem significativa.


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8 São atividades “programadas”, ou seja, esperadas para o nível/ série no qual o estudante se encontra.

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novas perspectivas e capacidades que favorecem a compreensão dos significados, das aprendizagens em função da sua experimentação em contexto real. Em síntese, os momentos principais do processo de ensino-aprendizagem enquanto estratégia de formação da UPP, que constituem um ciclo de aprendizagem, são: . Realização de tarefas/atividades8 em situações reais da prática profissional, (confronto experiencial). Este confronto com cada situação exige um diálogo, uma interação com ela e, desta forma, os estudantes vão se apropriando dos contextos, propiciando a intervenção nos mesmos. Essas atividades permitem que os sujeitos (estudantes/professores) e o objeto (cuidado) se construam e reconstruam em processo - os sujeitos vão tomando consciência do seu papel profissional e de cidadão no mundo. . Elaboração de uma primeira síntese (provisória) da discussão realizada mediante a reflexão sobre as situações vividas na e para a prática – considerando tanto as capacidades prévias dos estudantes, do ponto de vista psicológico, cognitivo, afetivo, quanto as dinâmicas de natureza sócio-cultural – as quais permitem a identificação de lacunas no conhecimento e o levantamento, a partir delas, de novas questões de aprendizagem. Este momento de reflexão acontece em pequeno grupo, no qual o professor assume o papel de mediador na construção do conhecimento, tornando-se um verdadeiro exercício de reflexão compartilhada. Encontra-se, aqui, o princípio da auto-implicação dos sujeitos consigo próprios e com o outro, conhecendo e desvendando o eu, a tomada de consciência de suas capacidades, o conhecimento do seu próprio processo de aprendizagem. . Identificação de fontes e pesquisa para análise e recolhimento de informações coerentes com as questões emergentes; este é um momento individual de construção do conhecimento. Neste processo individualizado de aprendizagem, observa-se o respeito com cada um dos sujeitos, com seu modo singular de aprender, segundo seu tempo e estilo de aprendizagem, ou seja, está presente e tido em conta o princípio da pessoalidade. . Elaboração de nova síntese com aprofundamentos conceituais, científicos e metodológicos com base na pesquisa individual e estruturação das questões de aprendizagem. Tal como na síntese provisória, este momento acontece em pequeno grupo e o conhecimento é construído coletivamente, na medida em que os sujeitos – professores e estudantes – interagem e buscam sustentação, no sentido de aprofundar uma questão ou uma inquietação para a construção do conhecimento, ocorrendo, desta forma, o efeito multiplicador da diversidade de perspectivas e de contributos. No final de cada encontro dos pequenos grupos, é dedicado um tempo para a avaliação formativa, de forma sistematizada. É um momento de avaliação do processo de aprendizagem, no qual o estudante realiza a auto-avaliação, a avaliação dos pares e do professor. Neste momento, e da mesma forma, o professor realiza a auto-avaliação e avaliação dos estudantes. Esta avaliação formativa, de caráter qualitativo, realizada no processo de forma contínua e interativa, permite a ambos a tomada de consciência e o diagnóstico da situação de aprendizagem, levando à re-orientação do processo de construção do conhecimento de cada um dos envolvidos. A terceira estratégia é a adoção do portfólio reflexivo, no qual, por meio de um discurso narrativo, os estudantes registram as suas reflexões referentes aos momentos principais do ciclo de aprendizagem. O portfólio é compartilhado com o professor, que, num processo de retroação, dá feedback e enriquece com novas informações e novas perspectivas, numa dimensão formativa. 727


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De acordo com Sá-Chaves (2000a), esta comunicação, que constitui a essência da relação formativa entre o professor e cada aluno, propicia um continuado suporte de natureza cognitiva, afetiva e pessoal nos processos de formação e desenvolvimento profissional. Na sua narrativa pessoal, o estudante também é estimulado a um processo reflexivo sobre seu próprio processo de construção de conhecimento, mediante o questionamento que mantém em aberto com o professor, sustentando, nesta estratégia, os princípios de construção de uma profissionalidade reflexiva, participante e contextualizada. Todo o processo de construção de conhecimento é, de forma sistemática, mediado e enriquecido pelos professores, seja no contato individual entre estudante e professor, quando este o acompanha em suas práticas; nas sessões em pequeno grupo de aprendizagem e na progressiva construção do portfólio reflexivo. Exige-se, assim, um papel distinto e complexo do professor nessa formação, na medida em que este estimula continuadamente a reflexão por meio dos questionamentos que introduz no processo reflexivo, ou seja, pela proposição de questões que despertem no estudante o aprofundamento do seu pensar reflexivo e a implicação na procura de informação específica que corresponda ao seu processo de construção de conhecimento.

A estratégia portfólio reflexivo na formação No caso da formação nos cursos de Medicina e Enfermagem, especificamente na UPP, o portfólio, conforme referido anteriormente, é utilizado como estratégia que potencializa a reflexão sistematizada e sistemática sobre as práticas desenvolvidas. Com ela, procura-se assegurar o processo de construção de conhecimento contextualizado e de desenvolvimento pessoal e profissional dos envolvidos (docentes e discentes), favorecendo a compreensão dos significados possíveis e a atribuição de sentido(s) às situações e aos conceitos que constituem o cerne da aprendizagem, estimulando o desenvolvimento crítico e reflexivo do formando. Como estratégia intencional, o portfólio constitui um suporte para os processos avaliativos – avaliação somativa e formativa, especialmente a avaliação formativa realizada pelo professor ao longo do processo de formação, pois é aquela que permite, em tempo útil, equacionar conflitos cognitivos, afetivos e psicomotores dos estudantes, lacunas científicas, ou omissões, garantindo por isso condições de desenvolvimento progressivo dos níveis de consciência e, por conseguinte, da emancipação e identidade do estudante. Mas também de avaliação somativa, na medida em que o portfólio, quando terminado o período de formação ao qual se refere, constitui uma ampla evidência quer dos resultados, quer dos processos que os determinaram. No presente trabalho a construção do portfólio pelos formandos compreende essa dupla dimensão (reflexiva e avaliativa) da formação. Para tanto, os estudantes organizam seus portfólios por ciclo de aprendizagem, registrando suas produções reflexivas sob a forma de narrativas que cobrem o processo de ensino-aprendizagem. Para esta situação de construção do conhecimento, o portfólio é organizado em três partes, acompanhando os momentos principais do ciclo de aprendizagem. A primeira parte integra as narrativas relativas às situações da prática profissional. Neste processo o professor acompanha a evolução do estudante no que se refere ao enfoque reflexivo que, segundo SáChaves (2000b), pode apresentar diferentes níveis: técnico, prático, crítico e metacrítico. O nível técnico corresponde à descrição correta e detalhada de episódios de prática vivenciados pelo formando. O formando pode, no entanto, ser estimulado no seu questionamento, permitindo fazer uma análise de tipo crítico, ou seja, introduzir na narrativa outros elementos para além da mera descrição dos fatos. Neste nível o estudante identifica as múltiplas e possíveis causas, conseqüências e os significados dos fenômenos em estudo, reflete sobre o papel dos contextos na determinação dos fatos, sobre as funções e papéis desempenhados, sobre as concepções que sustentam as decisões e, ainda, sobre novas possibilidades e funções que poderão vir a ser desempenhadas à luz de novas percepções dos problemas. É neste quadro que o estudante pode vir a desenvolver a reflexão sobre si próprio, de nível metacrítico, questionando-se quanto aos seus desempenhos, às funções e concepções subjacentes, 728

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tornando-se, concomitantemente, o sujeito da sua própria reflexão. Desta forma, a relação formativa que se estabelece no coletivo permite ao estudante a (re)estruturação e fundamentação da construção do próprio conhecimento, na medida em que, ao agir, refletir e narrar os fatos e o seu papel no decurso dos mesmos, elabora e (re)elabora o seu conhecimento prévio. A segunda parte agrega o registro individual que cada estudante elabora das reflexões produzidas em grupo, sobre as situações vividas e as questões de aprendizagem elaboradas. Na orientação da aprendizagem significativa, cada estudante, de um modo sempre único e singular, constrói o conteúdo apreendido na medida em que o “velho” e o “novo” conhecimento vão produzindo novas e enriquecidas significações. São acrescidas, nesta parte, as construções coletivas do conhecimento em torno das questões de aprendizagem produzidas em grupo. A terceira parte corresponde aos procedimentos relativos ao processo avaliativo, nos quais estudante e professor registram de forma avaliativa o desenvolvimento do estudante ao longo da UPP. Neste processo a aprendizagem vai ocorrendo por descoberta, na qual o estudante adquire o conhecimento com seus meios, mediante o uso de sua própria capacidade de pensar, adaptada às suas necessidades, processo esse sempre mediado pelas intervenções dos professores, e no qual o estudante participa de forma integral e efetiva (Coll, 2005).

O processo investigativo Na convicção de que o portfólio reflexivo pode contribuir para o desenvolvimento quer dos formandos, quer dos formadores, realizamos neste programa de formação uma investigação com o propósito de tornar evidentes as contribuições desta estratégia para o desenvolvimento de uma profissionalização reflexiva. Admitimos, também, a possibilidade segundo a qual este caso possa vir a constituir um instrumento de sensibilização e divulgação das potencialidades do portfólio na formação de profissionais de saúde e, ainda, que possa contribuir para o processo de reconceitualização e desenvolvimento curricular permanentes na Famema. Pela natureza do seu objeto de estudo, a investigação utilizou uma metodologia que se caracteriza como estudo de caso, no âmbito das abordagens de natureza qualitativa. O objetivo foi identificar e refletir acerca das percepções dos professores quanto ao uso do portfólio reflexivo na UPP, nas 1ª e 2ª séries dos cursos de Enfermagem e Medicina. Os sujeitos do estudo foram todos os docentes, médicos e enfermeiros (num total de 13) que, durante dois anos consecutivos, participaram da UPP, seja nas 1ªs séries de 2003 e 2004 ou na 2ª série de 2004, nas quais utilizaram a elaboração de portfólio reflexivo como estratégia de formação. A coleta de dados foi realizada mediante entrevista individual com cada um dos 13 sujeitos da pesquisa, na modalidade habitualmente designada como entrevista centrada no sujeito. O uso desta técnica foi fundamentado na possibilidade de exploração de questões definidas previamente pelo pesquisador, mediante o enquadramento teórico que fundamenta o estudo nas suas múltiplas dimensões, combinadas com questões novas, emergentes no processo de investigação, particularmente durante a própria realização das entrevistas. No desenvolvimento da pesquisa foram salvaguardados os preceitos éticos relativos aos procedimentos de autorização institucional e parecer do Comitê de Ética e Pesquisa em Seres Humanos da Famema. Foi também observada a resolução número 196/1996 do Conselho Nacional de Saúde sobre pesquisa envolvendo seres humanos, no que se refere ao termo de responsabilidade do pesquisador e de consentimento livre e esclarecido dos sujeitos que manifestaram a sua anuência de participação na pesquisa. No processo de análise dos dados foi utilizada a técnica de análise de conteúdo proposto por Bardin (1977), que consiste, em primeiro lugar, de uma leitura flutuante de cada um dos protocolos resultantes da transcrição das gravações efetuadas, com o objetivo de reconhecer o texto e aquecer a pesquisadora com impressões e orientação para, em seguida, iniciar a análise dos dados propriamente dita. Em seguida, foi realizada uma segunda leitura para identificar as unidades de registro, sem quebra COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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de coerência conceitual e investigativa, passando-se, então, ao processo de codificação, que corresponde a uma transformação dos dados brutos constantes no texto. Transformação esta que, por recorte do texto e pelo processo de classificação e agregação, permite atingir uma representação do conteúdo, visando a sua categorização. A codificação foi feita por frases, em que cada frase representa uma unidade de registro, ou seja, uma unidade de sentido, que exprime um pensamento próprio acerca dos conceitos subjacentes às categorias. Esta codificação deve revelar as unidades de registro que versavam sobre o mesmo tema, ou seja, as diferentes formas de abordar os temas e que revelavam idéias semelhantes. O terceiro passo correspondeu à categorização por grupos de unidades de registro que, no seu significado, comportam elementos comuns, ou seja, têm a mesma mensagem. Este passo tem como primeiro objetivo fornecer uma representação simplificada dos dados brutos, os quais serão analisados à luz do quadro teórico/referencial teórico que fundamenta o estudo. É neste contexto que, em seguida, se apresenta a respectiva análise dos dados.

Os portfólios reflexivos: análise da percepção dos professores Procurando conhecer quais as percepções dos professores acerca do uso do PR na UPP foi possível construir, mediante as diferentes falas dos sujeitos entrevistados, duas grandes categorias: O portfólio como estratégia de desenvolvimento pessoal e profissional dos estudantes de Medicina e Enfermagem na Famema; e o significado do portfólio para o trabalho docente na UPP.

O portfólio como estratégia de desenvolvimento pessoal e profissional Uma perspectiva mais global dos resultados permite afirmar que, nesta categoria, foram observados os princípios anteriormente enunciados relativos ao processo de construção do conhecimento na perspectiva da formação reflexiva. Desta forma, o PR foi visto pelos professores como uma estratégia potente para o aprendizado do estudante, porque estimula a auto-reflexão ajudando, assim, a desenvolver o autoconhecimento. Ou seja, permite o desenvolvimento de habilidades para conhecer e desvendar o eu, num processo de tomada de consciência sobre o seu próprio processo de construção do conhecimento, o que subentende quer o princípio da pessoalidade, quer da consciencialização dos sujeitos que aprendem. Neste sentido, o PR foi apontado como uma estratégia de ativação da aprendizagem e de construção de conhecimento quer na dimensão pessoal, quer interpessoal. Selecionamos alguns excertos relatados pelos sujeitos da pesquisa que ilustram a idéia do PR como estratégia de construção do conhecimento de forma reflexiva e de incorporação dos princípios da pessoalidade e da profissionalidade. Os sujeitos explicitaram que a capacidade reflexiva está expressa no PR na medida em que o estudante realiza a reflexão sobre a própria prática, capacidade que vai se construindo em processo progressivo a partir da descrição das tarefas realizadas, tal como as seguintes falas evidenciam: “Você percebe que o aluno se torna mais reflexivo com o tempo, ele consegue trazer a reflexão sobre sua prática, sobre ele mesmo e isso é bem nítido ao longo do tempo” (E2); “Ao longo do tempo ele (portfólio) foi fazendo com que o aluno refletisse mais, que auto-avaliasse melhor” (E3); “O portfólio é um momento de reflexão então é uma possibilidade de ver como ele está fazendo isso se ele está conseguindo refletir, se ele está só observando” (E8). Quanto ao princípio da pessoalidade, foi relatado que o PR permitiu a individualização de cada estudante, particularizando o seu processo de aprendizagem, identificando as lacunas no seu conhecimento e as respectivas dúvidas, enfim, cada estudante foi reconhecido pelo professor como formando e como “ser” único. Assim, o professor acompanha o processo de desenvolvimento pessoal do estudante e, nesse acompanhamento, a elaboração progressiva do PR proporciona ao professor a possibilidade de tratar cada estudante na sua singularidade, tal como podemos observar nos exemplos a seguir: “Cada aluno é único, dá para a gente acompanhar aluno por aluno e perceber [...] quais são os conflitos que tem e perceber de que jeito a gente pode estar ajudando, a gente pode estar apoiando, esse é o nosso papel de professor” (E3; “O portfólio permite que a gente esteja mais 730

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próxima do estudante, acompanha a evolução e ajuda-o a construir o conhecimento [...] portfólio permite que a gente conheça o estudante não só se ele estuda ou não, mas os valores que ele constrói, as atitudes” (E5); “O portfólio me ajudou a identificar as lacunas de conhecimento, as necessidades individuais dos estudantes [...] com uma maior especificidade” (E13). O PR também foi visto pelos professores como espaço de construção da profissionalidade - crítica e reflexiva – por meio da interação professor e aluno, ou seja, a construção de uma profissionalidade como processo afetivo, cultural, social e comunicacional. Seguem algumas falas que corroboram esta idéia: “É interessante você ver, quando você olha para um portfólio dá para saber todo o caminhar que o aluno teve naquele ano, não só o que ele fez, mas o que ele aprendeu, as experiências que ele teve, o que ele passou” (E7); “Para mim a coisa mais importante é a possibilidade de estar acompanhando como que o estudante está lidando com a evolução dele com a aprendizagem, como ele está percebendo os problemas, os obstáculos que aparecem” (E11); “No portfólio você percebia uma mudança, num sentido de uma progressão em relação à qualidade das histórias (clínicas) a questão dos dados que estavam sendo levantados, a própria elaboração das questões de aprendizagem” (E12).

O significado do portfólio para o trabalho docente Os professores atribuíram um significado muito positivo ao uso do PR como estratégia para acompanhar e avaliar, de forma continuada, o desenvolvimento de cada um dos estudantes, bem como um instrumento de auto-avaliação para o professor. Mesmo reconhecendo que esta forma de acompanhar a evolução dos estudantes tivesse sido trabalhosa, foi considerada gratificante e trouxe um sentimento de alegria e satisfação para os professores: “É um dialogo ao mesmo tempo em que eu falo para ele o que tem que melhorar, o portfólio também diz para mim onde eu posso melhorar, então é uma via de dupla mão” (E8); “Desde o início achei interessante, que ele era valioso sem até ter clareza da potência dele, [...] no decorrer, mesmo com todas as dificuldades que eu tive no uso, eu nunca achei que não deveria ser utilizado” (E9); “O portfólio me auxilia para que eu possa auxiliá-lo, então essa questão eu acho fantástica, tanto o estudante aprende mais facilmente, como eu aprendo com as dificuldades dele, nele também eu vejo as minhas dificuldades é uma coisa muito interessante” (E11). O PR foi altamente valorizado como um instrumento de avaliação formativa que permite, em tempo útil, equacionar conflitos cognitivos, afetivos e psicomotores dos estudantes, lacunas científicas ou omissões garantindo, por isso, condições de desenvolvimento progressivo dos níveis de consciência e, por conseguinte, da autonomia e identidade do estudante. As falas que confirmam esta visão do PR como instrumento de avaliação formativa foram as seguintes: “O portfólio é individual, uma narrativa, que você consegue avaliar os diferentes momentos do estudante e possibilita que o professor dê retorno nos vários momentos” (E2); “O portfólio foi de grande utilidade no acompanhamento da evolução do aprendizado, do ponto de vista de perceber as modificações, as percepções dos alunos” (E13); “Eu acho que é uma estratégia que tem que ser usada cada vez mais, pela importância que ela tem, pela possibilidade de acompanhamento do aluno” (E7).

Algumas considerações finais Analisando os achados deste estudo à luz do quadro teórico que o fundamentou, tendo como referente o paradigma crítico-reflexivo e uma abordagem contextualizada/ecológica da formação, parece possível depreender que o portfólio reflexivo utilizado na UPP mostrou-se coerente com a proposta pedagógica e curricular da Famema na formação de médicos e enfermeiros; e, mais, harmonizaram-se, de forma articulada, complementar e integrada, as metodologias de ensino e de aprendizagem utilizadas naquela unidade. Em suma, na perspectiva dos professores, o portfólio reflexivo possibilitou a estimulação da capacidade reflexiva dos estudantes e um acompanhamento supervisionado e contínuo nos processos de desenvolvimento pessoal e profissional. Foi considerado, pelos professores, uma estratégia muito nova COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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relativamente ao percurso curricular da Famema e, ainda, percebida como trabalhosa, requerendo tempo e dedicação dos estudantes e dos professores para implementá-la. O fator extremamente positivo foi o clima favorável dos professores quanto ao uso da estratégia nos processos de formação. Em síntese, julgamos necessário o apoio institucional para a manutenção e aprofundamento deste tipo de estratégia, sendo especialmente importante promover e estimular a capacitação de professores e estudantes para o seu desenvolvimento. Ou seja, desenvolver programas integrados de formação centrados na estratégia, nos quais o desenvolvimento de capacidades metarreflexivas e metacognitivas dos coletivos de formação possam permitir uma melhor adequação do tempo de dedicação de estudantes e docentes à realização das atividades de elaboração e uso que o portfólio pressupõe.

Colaboradores A autora Roseli Ferreira da Silva participou integralmente de todas as etapas de elaboração do artigo. Idália Sá-Chaves participou da discussão, redação e da revisão do texto.

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SILVA, R.F.; SÁ-CHAVES, I. Formación reflexiva: representaciones de los profesores sobre el uso de portfolio reflexivo en la formación de médicos y enfermeros. Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.12, n.27, p.721-34, out./dez. 2008. Esta investigación discute la utilización del Portfólio Reflexivo (PR) en la formación de profesionales de Salud en la Unidad de Práctica Profesional, de la Facultad de Medicina de Marília, Brasil. El objetivo fue analizar las percepciones de los profesores acerca del uso de PR en los cursos de Medicina y Enfermería. La aproximación cualitativa fue la opción metodológica. La recolecta de datos fue llevada a cabo mediante entrevista individual. El análisis de los datos fue realizado usando la técnica de análisis de contenido. Este análisis permitió elaborar consideraciones sobre la utilización del portfólio como estrategia para la formación profesional. El RP, según la perspectiva de los entrevistados, posibilitó el estímulo de la capacidad reflexiva de los estudiantes y el acompañamiento continuo de los procesos relativos a su desarrollo personal y profesional. Fue considerada una estrategia innovadora, y también muy trabajosa, exigiendo tiempo y dedicación de los profesores para implementarla.

Palabras clave: Formación. Portfolio reflexivo. Evaluación formativa. Metodologías de enseñanza-aprendizaje. Aprendizaje basado en problemas. Recebido em 31/08/07. Aprovado em 04/07/08.

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artigos

Residentes de pediatria diante da violência doméstica contra crianças e adolescentes* Maria Lúcia de Moraes Bourroul1 Marina Ferreira Rea2 Carlos Botazzo3

BOURROUL, M.L.M.; REA, M.F.; BOTAZZO, C. Pediatric residents confronted with domestic violence against children and adolescents. Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.12, n.27, p.737-48, out./dez. 2008. This paper sought to understand the perceptions of pediatric residents confronted with domestic violence against children and adolescents (DVCA). A qualitative study was conducted among 67 residents within nine of the 15 programs in the municipality of São Paulo, using semi-structured questionnaires and in-depth interviews with nine subjects. Almost all of the subjects expressed fear and characterized their training as insufficient. The individuals’ words suggested discrimination and unfamiliarity towards other people, thus characterizing a situation in which different societies appear threatening. Diagnosing DVCA was the pediatric role most recognized by the interviewees. Although half of them cited notifications, few were doing so through medical reports. There are many points about care for children at risk of violence requiring better understanding. Questions from residents, such as fear, need to be considered so that they are able to recognize such children’s characteristics and perform their role better.

Key words: Badly treated children. Medical ethics. Medical education. Medical Residence. Domestic violence.

Buscou-se compreender as percepções de residentes de pediatria diante da violência doméstica contra crianças e adolescentes (VDCA). Realizou-se estudo qualitativo, com 67 residentes, inseridos em nove dos 15 programas existentes no município de São Paulo, com questionários semiestruturados e entrevistas em profundidade com nove sujeitos. A quase totalidade expressou medo e caracterizou a formação como insuficiente. As falas dos sujeitos sugerem discriminação e estranhamento diante do outro, caracterizando situação onde sociedades diferentes aparecem como ameaçadoras. Diagnosticar VDCA foi a atribuição do pediatra mais reconhecida pelos entrevistados; embora metade deles tenha citado a notificação, poucos notificariam com relatório médico. Há etapas do atendimento da criança sob risco de violência a ser mais bem entendidas. Questões do residente, como o medo, devem ser consideradas para que ele possa reconhecer a criança na sua alteridade e desempenhar melhor seu papel.

Palavras-chave: Maus-tratos infantis. Ética médica. Educação médica. Residência médica. Violência doméstica.

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Elaborado a partir de

Bourroul (2005). Médica. Instituto da Criança, Hospital das Clínicas, Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo. R. Cardeal Arcoverde, 362, casa 3, São Paulo, SP . 05.408-000. malubourroul@terra.com.br 2 Médica. Instituto de Saúde, Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo (IS/SES). 3 Graduado em Odontologia. IS/SES. 1

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Introdução Violência doméstica contra crianças e adolescentes (VDCA) não é algo novo na experiência humana. Ainda que presente na história de povos e sociedades as mais distintas, na contemporaneidade gera tanto desconforto quanto conformismo. Esta relação ambígua é amplificada pelos meios de comunicação, que veiculam continuamente as suas mais diversas imagens. Nem por isso o entendimento da questão aprofundou-se. Ao contrário, a exposição excessiva termina por naturalizar o fenômeno, visto em geral apenas na perspectiva do indivíduo. No mais, torna a violência cotidiana um fato midiático, o que, sem dúvida, é um poderoso indutor de pânico e desconfiança na sociedade. Apesar de tais sentimentos serem reais, as suas explicações e as conseqüências que acarretam freqüentemente mantêm-se à tona. Por isso, hoje, mais do que nunca, faz-se necessário sair da superfície e buscar maior compreensão das questões que cercam práticas violentas. Reconhecê-las em sua complexidade, enquanto condição fundadora das relações humanas, histórica e politicamente construída, implica sua desnaturalização, e nesta condição é que podem ser pensadas (Villela, Botazzo, 2004). Resgatar tais explicações, como algo oculto por debaixo das imagens e impressões imediatas, justo porque aparecem desfocadas nas relações interpessoais ou ocultadas na invisibilidade de instituições e lares, pode, no entanto, gerar sofrimento. Por isso mesmo, dimensionar a questão da violência não é simples. Identificá-la não é sempre possível, pois nem sempre deixa marcas, pode não ser reconhecida, denunciada ou registrada. Os registros mundiais variam muito de acordo com as fontes, a disponibilidade e a qualidade dos dados (Gawryszewski, Hidalgo, 2004; Villela, 2004; Krug, Dahlberg, Mercy, 2002). A quantificação das mortes por causas violentas (denominadas na Saúde como causas externas), a despeito de revelar apenas uma parte do problema como formas da violência levadas ao seu grau extremo, permite uma aproximação da questão pela constatação da sua importância entre as diversas causas de óbito. Atualmente, no município de São Paulo, as causas externas, mais especificamente os acidentes, representam a segunda causa de óbito entre crianças de um a quatro anos e passam a ser a primeira na faixa dos cinco aos nove anos. Na adolescência, a partir dos dez anos, os acidentes são precedidos pelos homicídios, que se tornam a primeira causa de óbito (PRO-AIM, 2005). Apesar destas evidências na mortalidade, o conhecimento da morbidade causada pela violência contra crianças e adolescentes é ainda muito limitado no nosso meio. Na literatura encontram-se dados dispersos em serviços de referência ou em projetos regionais. Segundo Azevedo e Guerra (2000), considerando-se os casos em que indivíduos adultos reconheceram ter sofrido abuso sexual na infância ou na adolescência, ou em ambas, estima-se que, na população brasileira, 20% das mulheres e 10% dos homens tenham sido vítimas de violência sexual antes dos 18 anos. Haveria de se considerar também as outras formas de violência intradomiciliar, onde os cuidados são distorcidos por outros abusos dos responsáveis (agressões físicas ou psíquicas), assim como as situações em que as necessidades essenciais são negadas ou negligenciadas, e, ainda, as relações onde quadros de morbidade são inventados ou mesmo induzidos pelo responsável, justificando investigações e, até mesmo, procedimentos (“Síndrome de maus-tratos por procuração” - “Munchausen”). A abordagem da violência não é simples; as dificuldades vão muito além da imprecisão do seu dimensionamento. Minayo (2000) recomenda que qualquer violência seja vista em rede: relações entre sujeitos que desempenham papéis dentro e fora do domicílio, inseridas em estruturas maiores e, não raro, também violentas. Nos serviços de saúde, o reconhecimento do risco de violência é fundamental para abrir a possibilidade de mudança. Uma das redes importantes a ser mais bem desvelada é a que envolve a criança ou o adolescente, a família e o pediatra. Espera-se, entre várias outras coisas, que o pediatra ocupe a seguinte posição inicial na rede de atendimento: alguém que está colocado em meio às inúmeras expressões de violência que a criança ou o adolescente podem portar durante a consulta. Para tanto, a formação do residente de Pediatria deve prepará-lo para essa abordagem. O papel que a sociedade brasileira atualmente espera que o pediatra desempenhe na rede de apoio a crianças e adolescentes sob suspeita de violência doméstica está genericamente previsto na Constituição 738

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artigos

Brasileira (Assembléia Nacional Constituinte, 1988), no Estatuto da Criança e do Adolescente (Brasil, 1990), no Código de Ética Médica (Brasil, 1988) e em pareceres dos Conselhos Federal (Brasil, 1999) e Regionais de Medicina (Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro, 1999). O atendimento específico às vítimas de acidentes e de violência está priorizado pela “Política Nacional de Redução de Morbimortalidade por Acidentes e Violência” (Brasil, 2001). A padronização deste atendimento foi elaborada e divulgada pela Sociedade Brasileira de Pediatria (Sociedade Brasileira de Pediatria, 2001) com o objetivo de auxiliar no reconhecimento, notificação, tratamento, seguimento, adequada referência dos casos e prevenção de reincidência ou novos episódios. A notificação compulsória, pelo pediatra, da suspeita de maus-tratos contra crianças e adolescentes é considerada o passo inicial para a posterior intervenção de outros profissionais, para o acompanhamento da evolução dos casos e para quantificação e qualificação das expressões da violência, subsidiando ações de prevenção e de promoção próprias da Saúde Coletiva (Brasil, 2002). Decorrentemente, este artigo tem como objetivo descrever e analisar como a VDCA está sendo apreendida e encaminhada por residentes de 2º ano dos programas de residência básica de Pediatria do Município de São Paulo, Brasil.

Metodologia Realizou-se uma pesquisa médico-social, de tipo qualitativo, que visou apreender as percepções de residentes de pediatria sobre o tema “violência doméstica contra crianças e adolescentes”. Para tanto, adotou-se a perspectiva de Zizek, para quem “os fatos nunca falam por si, mas são sempre levados a falar por uma rede de mecanismos discursivos” (Zizek, 1999, p.17). A pesquisa foi desenvolvida em duas etapas interligadas e dependentes entre si. Na primeira, foram incluídos 67 residentes do segundo ano de pediatria de nove programas de residência oferecidos no Município de São Paulo, cujos responsáveis concordaram com a realização da pesquisa. Nesta fase, os residentes foram apresentados a um “caso clínico” e depois responderam um questionário, por meio do qual deveriam ser levantadas hipóteses diagnósticas e descritos encaminhamentos, além de maiores explicações sobre o próprio caso e sobre as dificuldades do atendimento, as oportunidades de aprendizado e o papel do pediatra frente à VDCA. Os questionários foram aplicados por uma das autoras (MLMB), e todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Com vistas a preservar a confidencialidade e o anonimato dos sujeitos da pesquisa, os nomes adotados são todos fictícios. As respostas dos questionários foram classificadas visando tão-somente uma análise descritiva. Tal classificação permitiu a caracterização dos entrevistados e revelou tendências, em termos proporcionais, nas respostas obtidas, surgindo como pano de fundo e indicando novas questões relacionadas com a temática. Com o objetivo de aprofundar tais questões apontadas nos questionários, na segunda etapa, foram realizadas entrevistas, como forma de transitar pelos discursos, buscando construir a compreensão das representações que tais sujeitos tinham sobre a violência. Foram realizadas nove entrevistas em profundidade. As entrevistas foram marcadas por meio de novos contatos com os coordenadores de cada programa. O critério de seleção para as entrevistas limitou-se à disponibilidade do residente e sua anuência em se expor a esta modalidade de abordagem. O questionário anteriormente respondido serviu de roteiro para a entrevista. Foi proposto, ao residente entrevistado, que comentasse suas respostas previamente registradas. Os entrevistados usavam esse momento para repensar o que haviam escrito, explicando, ratificando, justificando, relativizando e, assim, propondo outras associações. Ao se pensar o plano de análise, partiu-se do princípio de que os relatos obtidos dos residentes, por intermédio dos questionários e das entrevistas, expressavam conteúdos culturais, ressignificações de conteúdos históricos e sociais nos processos de subjetivação e socialização de cada um, e a possibilidade de troca no momento do preenchimento dos questionários e de interação nas entrevistas (Spink, 2000). COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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RESIDENTES DE PEDIATRIA DIANTE DA VIOLÊNCIA...

As entrevistas abertas foram gravadas e, depois, transcritas. As várias leituras deste material permitiram familiaridade com o universo de respostas para cada questão e a identificação dos temas emergentes. A seguir, foram feitos recortes de cada entrevista para que as falas e os significados de cada tema pudessem ser agrupados e comparados. Resultaram estruturas discursivas que foram reagrupadas da seguinte maneira: . como os residentes se percebem diante da violência; . como os residentes vêm os outros: estranhos e a criança; . o caso clínico; . o fazer: sobre os atendimentos e a rede; . a formação profissional. O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto de Saúde da Secretaria de Estado de Saúde de São Paulo.

Resultados Os resultados se referem a 67 residentes de pediatria (formados em 31 faculdades de Medicina), inseridos em nove dos 15 programas existentes no município. Entre os entrevistados, destaca-se o predomínio de mulheres (85%), brancas (79%), solteiras (64%), paulistas (76%), católicas (64%), com idade média de 26,6 anos.

Como os residentes se percebem diante da VDCA Em relação às dificuldades, os residentes expressaram sentimentos e atitudes que se distribuíram em polaridades, como medo e onipotência, assim explicitados em algumas entrevistas: “E a gente já viu um caso bem evidente de maus-tratos e deixou passar por medo de intervenção dos familiares, dos amigos” (Marcelo); “Tem o medo do médico que é assim: tem muito medo do processo, de estar envolvido em questões legais ou judiciais” (Bernardo); “Olha, eu sou diferente, eu falo para os pais o seguinte: Vocês podem levar seu filho embora, mas voltam de camburão, porque a gente comunica quando tem risco pra criança. Eu falo nesse tom mesmo, que é pra eles entenderem que a gente não está de brincadeira” (Sandra). Foi feito um paralelo entre morte e violência; os residentes as compararam, referindo que ambas são situações de extrema dificuldade na prática, e que as orientações repassadas em manuais, protocolos e aulas não bastam. Os recortes a seguir exemplificam estas associações: Olha, é assim: no PALS (pediatrics attention life support), curso que eu fiz, eles falam como a gente deve conversar sobre algumas coisas. Recomendam que sejamos objetivos e diretos, que sejam usadas palavras comuns como morte e não óbito. E eu tive que lidar com a morte na 1ª semana, eu queria sair correndo... Só que não tem discussão sobre esse tipo de coisa: por que se faz isso com uma criança? E a gente tem que ter estrutura, só que causa muita revolta dentro da gente! É feio, muito feio! E aquilo vai acumulando dentro da gente, é muito para a minha cabeça [...] (Cecília) Eu tenho pouca experiência. Eu acho que não sei mesmo abordar os pais. É, eu nem sei se a técnica ajudaria. De repente é mais a experiência também. É eu acho que é como lidar com a morte [...] Deveria ter apoio pra gente. É fundamental, e a gente tem que dar aporte pra eles [...] A gente é suficiente? A gente sente falta. Não é certo, pra gente ninguém dá. (Clara)

No preenchimento dos questionários, após resolverem o caso clínico, apareceram termos como “estranhamento”, “negação”, “rejeição”, “despreparo psicológico”, “angústia” e “constrangimento” como dificuldades apontadas pelos residentes diante das suspeitas de VDCA; e depois, nas entrevistas, estas dificuldades foram retomadas, evidenciando outras manifestações do medo, como pode ser visto a 740

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seguir: “Essas são coisas que mexem muito com a gente. Tem dias que a gente fica tão revoltada de ver bebês com fraturas e tudo mais! É difícil a gente enxergar essa mãe [...] A gente começa a ter uma repugnância da pessoa [...] é involuntário” (Cecília). Uma vez chegou no pronto socorro uma criança chocada por diarréia, trazida pela vizinha. Estabilizamos o quadro hemodinâmico e indicamos a internação. A vizinha foi falar com a assistente social e começou a ameaçar: - Olha, a mãe dessa criança é marginal, ela é traficante. Ela vai vir aqui com o pessoal dela, vai invadir esse pronto socorro e vamos levar essa criança embora [...] Não tinha condições de alta; a gente manteve ela lá, com medo. Com receio de entrar alguém lá à noite e metralhar a gente...mas tudo bem. (Marcelo) Você denuncia e fica aquele drama: polícia na casa dele; polícia, não, o Conselho Tutelar. E aqui, nós temos um bairro que é uma favela e lá fica o pai que é traficante de droga, e você manda a polícia na casa dele. Ele não tem nada pra fazer. Ele pode ficar ali o dia inteiro, esperando você sair do hospital, vendo a sua rotina, onde você mora, o carro que você tem [...] Ou seja tem um medo muito grande dos profissionais do pronto socorro que a gente também sente. (Marcelo)

Deve ser destacado que foi elevado o número de residentes que, no questionário, expressaram medo e sentimentos correlacionados, tanto do sexo feminino quanto do masculino. Entre os residentes com medo (ou sentimentos correlacionados) diante da suspeita de VDCA, a maioria reconheceu dificuldades pessoais (pré-julgamentos, angústia, constrangimento, desinteresse, negação, rejeição, estranhamento, medo do perpetrador), mais da metade citou dificuldades técnicas (como tirar a história, como diagnosticar, como romper o pacto do silêncio e as omissões), e uma minoria descreveu as famílias envolvidas nesta situação como “hostis”. Chamou a atenção o fato de que os residentes que relataram alguma forma de medo também consideraram a própria formação insuficiente, assim como a constatação de que o medo também foi citado por mais da metade daqueles que consideraram a formação suficiente.

Como os residentes vêem o outro e a criança O reconhecimento de “famílias hostis” como uma das dificuldades de enfrentamento da violência apareceu nas respostas dos questionários, e muitos destes também alegaram medo. Esse estranhamento do outro pôde ser mais bem detalhado nas entrevistas. Como pode ser visto nos trechos destacados a seguir, alguns residentes descreveram os responsáveis e as famílias identificando-os como incultos, ignorantes, pobres e “barraqueiros”, condições que, segundo eles, limitam o entendimento e o seguimento: “Eu acho que a mãe que não trata da higiene do próprio filho, tem que ser orientada. Porque, algumas vezes, é por ignorância e, às vezes, por falta de cultura” (Cecília); “É que tem muitos pais que cometem violência até por ignorância. Foram criados assim e acham que tem que ser assim: na borracha; é como eles falam” (Marcelo); “Chegam negando o ocorrido, sempre acabam ficando exaltados, brigando [...] fazendo barulheira, gritando pelo corredor... sempre vira uma desordem total, um barraco!” (César). Os acompanhantes, como apresentados nos recortes anteriores, aparecem distorcidos por imagens padronizadas da violência e figuram no discurso dos residentes como “manos”, “tatuados”, “traficantes ou “drogados”, “criminosos” ou “anormais”. A criança chegou no pronto socorro, você viu: maus-tratos. Você olha o pai: aquele monte de tatuagens de presídio. Que é aquele, como se diz, mano, mano bem formado! Tem tatuagem que é aquela aranha de baixo da mão ou de Nossa Senhora Aparecida; essas são feitas em presídio. É o próprio biótipo deles, o linguajar [...] Você viu um mano, mano você sabe o que é! Mano é também como eles se comunicam. (Marcelo)

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É que aqui a barra é pesada! A gente sabe que lida com pessoas que às vezes são do crime [...] É complicado! (Cecília) Eu acho que no hospital regional é diferente do hospital central. Aqui no hospital central é uma clientela mista [...] Eles se sentem mais seguros e protegidos porque a maioria é de lá, é da região, e então eles são muito mais unidos. Eles têm uma esquema de segurança pessoal e pensam assim: se eu bati no meu filho, você não tem nada a ver com isso e a gente vai te matar se você duvidar ou se quiser, de alguma forma, acionar o Conselho Tutelar! (Isabel) Por exemplo, se eu for conversar com algum pai ou mãe sob suspeita de maus-tratos, eu já vou totalmente imparcial: eu falo o mínimo possível e deixo isso a cargo do serviço social! Porque, geralmente, quem faz isso não é uma pessoa normal. Não é normal que bata no filho a esse ponto, igual a esse caso, chegando a fazer um hematoma! Aliás, em filho nenhum se bate! Nem em adulto, né? (César)

Na releitura dos questionários, a criança apareceu de forma tímida e dispersa, e apenas alguns poucos residentes embasaram os argumentos com que cercam sua prática, reconhecendo a criança enquanto sujeito de direitos.

O caso clínico Em relação ao caso apresentado no questionário, a maioria dos residentes suspeitou de síndrome de maus-tratos e metade reconheceu devidamente a hipótese de bebê sacudido. Considerando que os encaminhamentos para o Serviço Social e para o Conselho Tutelar e Justiça se complementam, pode-se estimar que a quase totalidade dos residentes conduziria a criança presumida no caso para ser abordada além dos limites de atuação do pronto socorro. Na discussão do caso, proposta no questionário da primeira fase, o seguimento para a criança foi lembrado por pouco mais que a metade dos residentes, mas, para a família, o seguimento foi lembrado por poucos deles. Apesar de a história ter sido exposta de forma sucinta, a preocupação com a sua melhoria quase não foi citada, e o risco à vida, inerente ao quadro de bebê sacudido, foi pouco reconhecido.

O fazer, sobre os atendimentos e a rede Em relação à notificação da suspeita de VDCA, poucos residentes referiram dúvidas no questionário. As entrevistas mostraram que muitos programas poupam o residente desta conduta: “É sempre assim: se a gente identifica alguma coisa esquisita na anamnese ou algum dado que não bate [...] A gente não entra junto. Fica a cargo da assistente social decidir o que vai ser feito com a criança” (César); “Às vezes, a gente nem acha que tem violência. Tudo passa por eles: conversam com os pais, têm controle desses casos e vão atrás” (Cecília). Isso pode ter influenciado o fato de apenas a metade reconhecer a notificação como atribuição do pediatra e poucos apontarem o relatório médico como uma das formas de efetivá-la. Nas entrevistas, houve as seguintes colocações: “Não, eu não ouvi falar da notificação” (César); “Eu nunca fiz uma notificação. Eu sempre pedi pro Serviço Social” (Cecília); “Na prática, não. Provavelmente deve existir um protocolo pra notificar, né?” (Clara). As entrevistas também apontaram falta de compromisso e resistência à notificação, que é justificada por negligência ou por dificuldade de envolvimento com a Justiça e, até, por um certa “brasilidade”: “Eu já vi muitos casos em que o médico assistente diz: - Ah, deixa quieto [...] ou faz um relatório meia boca. Me desculpe, o termo é este mesmo, pois não dá subsídio nenhum pra Vara da Infância tomar atitude!” (Sandra).

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É muito moroso e a maioria dos médicos não quer se envolver. O oftalmo não quer dizer que tal lesão pode ser por maus-tratos, ele não quer se comprometer [...] O ortopedista diz: Não, mas é maus-tratos? É meio que um jogo de empurra, pra alguém assumir. Talvez muita coisa se deixe passar por negligência do próprio médico, por não querer se envolver. (Bernardo) Por uma questão cultural, as questões legais ou as que envolvem alguma burocracia, o brasileiro não encara! Não é só por conta da violência; é em geral. Até pra fazer um atestado de óbito as pessoas têm medo! (Paula)

Entre os residentes que tinham ciência da responsabilidade da notificação, as entrevistas mostraram que restam dúvidas quanto à pertinência e a validade deste procedimento. A complexidade da violência gera dificuldade de entendimento e confusão, e o atendimento pode ser permeado por culpa, como se constatou na fala que se segue: “A gente fica pensando no que fez [...] Às vezes fica até meio culpada de ter feito! Fez o que deveria ter feito, mas mesmo assim parece estranho” (Tereza). O desconhecimento de propostas de atendimento e a vivência parcial de algumas delas geram dúvidas, que puderam ser confirmadas nos depoimentos expostos na seqüência: Eu sinto, eu tenho a sensação de que eu denunciando ou não denunciando, dá na mesma [...] e eu crio mais problema [...] Eu não acredito que se consiga uma reformulação de caráter familiar. Por exemplo, se é um pai que espanca a filha e a mãe denuncia [...] Eu não sei se o fato de você denunciar pro Conselho Tutelar vai mudar alguma coisa. Eu não vejo esta mãe se divorciando, eu vejo o Conselho Tutelar indo lá e, mesmo assim, o pai batendo na mãe porque ela o denunciou. (Isabel) Existe também a preocupação com a grande chance da mãe perder a guarda! E se ela perder a guarda, esta criança vai pra um lugar melhor, a vida dela vai melhorar? (Paula) É a nossa parte a gente faz. E depois? Como lidam com essas crianças? O que podem fazer de verdade? Será que valeu a pena notificar o caso? Será que valeu a pena tirar essa criança da mãe e mandar pra uma instituição onde ela corre o risco de ser agredida por outras pessoas? Será que ela não preferiria apanhar da própria mãe do que apanhar de um desconhecido, ou passar fome na casa dela do que passar fome numa instituição? (Marcelo)

Na etapa do questionário, foram escassas as referências à notificação como uma questão de direito da criança e do adolescente, enquanto a “parceria” com o serviço social na abordagem da violência foi muito citada nas entrevistas. A qualidade dessa relação é que variou. Há serviços em que ela é considerada fundamental: “O papel do assistente social é fundamental! A gente funciona como um enviador ao serviço social” (Isabel). Em outros, é tida como rotina e, às vezes, com certo exagero, mas com a possibilidade de complementaridade: “É praxe o serviço social entrar nos casos de VDCA. Até em caso de queimadura e de intoxicação exógena o serviço social entra! Eles conversam separado e depois comentam com a gente” (Cecília); “Às vezes a gente nem acha! Tudo passa por eles e depois eles voltam, comentam e trocam idéias com a gente” (Clara). Em outra fala, é atribuída ao serviço social uma capacidade de escuta diferenciada, assim como a responsabilidade pelo encaminhamento dos casos, do qual o residente se ausenta: “A assistente social entra pra comprovar se o ocorrido foi mesmo maus tratos. É sempre assim: a gente não entra junto, fica a cargo da assistente social decidir o que vai ser feito com a criança” (César). Em relação à atuação do Conselho Tutelar, nas entrevistas apareceram tanto a revolta diante da condução inadequada de determinados casos quanto a discordância da proposta básica de reinclusão da criança na família: COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Uma coisa é ler no Guia da Sociedade de Pediatria que as crianças sob suspeita de maustratos devem ser encaminhadas para o Conselho Tutelar ou pra Vara da Infância; outra coisa é ver que, na prática, as coisas não são simples assim. Foi desestimulante: tanto empenho da gente naquele caso pra, no final, o Conselho Tutelar mandar a criança de volta pra casa, dizendo que fariam visitas mensais! Deixar uma criança de oito meses, que chegou no estado que aquela menina chegou, voltar pra casa não dá pra entender. (Bernardo) Eu fiquei bastante surpresa quando soube numa aula que o Conselho Tutelar prioriza a reinclusão da criança no próprio lar! Eu não sei se o Conselho Tutelar fica vigiando um tempo suficiente pra ter certeza de que a violência não acontecer de novo. (Isabel)

A Justiça foi reconhecida como morosa. As entrevistas também evidenciaram imagens muito negativas dos abrigos, embora somente alguns residentes tenham referido descrédito nos abrigos como dificuldade importante na tomada de decisão de notificar.

A formação profissional As respostas obtidas dos questionários evidenciaram diversas oportunidades de aprendizado das questões da violência contra a criança e o adolescente reconhecidas pela maioria dos residentes durante a graduação e a residência de pediatria. Entre as oportunidades deste aprendizado, destacaram-se: a pediatria e a medicina legal como disciplinas da graduação reconhecidas, ambas, pela maioria dos residentes, seguidas pela ética e a ginecologia. Nota-se também que a residência de pediatria aumenta a oportunidade de contato com casos de violência nos diversos estágios em relação à graduação, chegando a ser apontada por quase todos os residentes no pronto socorro. Apesar de os residentes enumerarem diversas oportunidades de contato com o tema durante a graduação e a residência, a grande maioria caracterizou a formação como insuficiente. Alguns afirmaram ter tido acesso à teoria, mas que isso não foi retido. Nas entrevistas, os residentes descreveram uma inadequação entre a teoria apresentada e as necessidades da prática. A formação, não tanto pela violência, não entra na relação médico paciente e isto faz falta, até pra abordagem da violência, pra todos os aspectos. Você sabendo o que é uma boa relação médico paciente, tendo mais segurança pra entrar em detalhes mais complicados, você consegue lidar com a violência, com qualquer assunto, até com a morte. Até tem aula de psicologia médica, mas não se dá muito valor. Dá-se muito valor para as bulhas rítmicas, para a tomografia, para tudo o que possa ser mostrado para os outros colegas. E da relação, o que é que o outro vai saber? O instrumental que a gente traz não é satisfatório; há necessidade de mais! (Paula) Na faculdade falam muita coisa, conceitos [...] Mas não adianta, não fica. Tem que ter mais, mas não assim por aula, assim é muito chato! A gente já tem que estudar tanta coisa! Não sei bem como [...] (Bernardo)

O diagnóstico da VDCA foi a atribuição do pediatra mais reconhecida pelos residentes. Poucos, todavia, referiram como atribuição também o tratamento. Com relação à prevenção da VDCA, igualmente poucos se posicionaram, e os que o fizeram disseram não estar preparados.

Discussão Este estudo, apesar de não ter se prendido a critérios estatísticos quanto ao tamanho e à seleção da amostra, apresenta de forma inédita o residente de pediatria diante da VDCA. Não houve nenhum direcionamento para questões de gênero na inclusão dos sujeitos da pesquisa. O predomínio de 744

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mulheres entre os sujeitos da pesquisa confirma o predomínio de mulheres na Pediatria, relatado por Machado e Vaz (2001) na descrição do perfil dos pediatras no Brasil. A primeira aproximação do objeto do estudo, feita por meio dos questionários, mostrou um campo carregado de ruídos e evidenciou que era necessário ampliar a escuta, dar espaço para que os residentes pudessem expressar como se sentiam, como se posicionavam diante de uma questão tão complexa. A freqüência e a intensidade dos relatos de medo motivaram a busca de um maior entendimento, justificando uma mudança no projeto inicial da pesquisa: abdicou-se da intenção de se acessar o maior número de residentes, para se aprofundar na abordagem desta questão por intermédio de entrevistas. O medo e os sentimentos a ele relacionados na abordagem das situações de risco de violência vêm sendo reconhecidos, por vários autores, como uma condição que permeia a atuação dos profissionais da saúde (Kiss, 2004; Bannon, Carter, 2003; Gomes et al., 2002; Gonçalves, Ferreira, 2002). Coerentemente, este estudo confirma o medo de mais uma categoria, a dos residentes de pediatria diante da suspeita de violência. Evidenciou-se, por meio das falas, que a suspeita ou a condição de violência complicam a relação médico-paciente, distorcendo papéis e fazendo prevalecer uma necessidade maior de defesa de ambos os lados. Segundo Ferenczi (1992), isto ocorre quando a possibilidade de entender o outro é substituída pela sua introjeção, fazendo com que este Outro desapareça enquanto realidade exterior, tornando-se intrapsíquico, gerando confusão de sentimentos e medo, que se expressam em atitudes como pactuações com o silêncio em nome de “uma estabilidade possível”. O residente distorce o momento do atendimento, colocando a imagem estigmatizada do agressor em cena, predestinando esse papel ao responsável que acompanha a criança, o que determina a necessidade de se distanciar e se proteger. É preciso resgatar o foco: o residente não é a vítima; os acompanhantes, estando ou não envolvidos com a situação de violência, não atuam o tempo todo como agressores; a criança ou o adolescente precisam de ajuda, e essa ajuda não deve ser adiada e, muito menos, se esgota numa consulta. Neste estudo, o Outro mais reconhecido pelos residentes nas situações de suspeita de violência não é o igual em direitos, nem é a criança ou a família. É o Estranho e, como tal, ambíguo, pois, apesar de novo (desconhecido), já se apresenta preconcebido como assustador. Parece que é aí que o Outro perde a condição de Outro, e assim a condição de contraste e de distinção se mistura com algo que já tem um sentido negativo, carregado de repulsa e aflição (Freud, 1979). As entrevistas mostraram que este Outro é o que ameaça o residente. É o diferente, mas, a um só tempo, é o igual por referência a um padrão de qualidade dos moradores da periferia, que os próprios residentes, nas entrevistas, denominaram como: incultos, pobres, anormais, traficantes, criminosos (tão explorados e indiciados na mídia da violência). Embora não houvesse, no questionário, perguntas específicas sobre a criança, é dela que se trata: residentes estão sendo treinados para entendê-la e atendê-la. Ela deveria ser o “outro principal”. A criança e o adolescente pouco se destacaram e, nos discursos, aparecem como indefesos ou ocultados pelas lesões que os maus-tratos podem causar. A sua identificação enquanto sujeitos em desenvolvimento e implicados no ciclo da violência foi rara. Há que se pensar também na posição que crianças e adolescentes ocupam na sociedade brasileira. Neste sentido, Del Priore (2004) reuniu historiadores, sociólogos e outros especialistas para abordar a condição da infância no Brasil, pensando a situação atual como um legado da história que vem sendo construído e incorporado à condição de ser criança numa sociedade injusta na distribuição de suas riquezas, avara quanto ao acesso à educação e marcada pelo escravismo. A apresentação de um caso clínico foi válida, pois permitiu uma introdução ao tema por meio de situações já experimentadas, condição muito presente na argumentação dos residentes incluídos neste estudo. O aparente êxito, diante das hipóteses e encaminhamentos apontados para o caso apresentado, deve ser relativizado pois, na realidade, não traduz suficiência dos residentes diante da VDCA. Este estudo não se estendeu na análise das formas como a VDCA é abordada na graduação nem nos programas de residência de pediatria; apenas se aproximou do que resulta desta abordagem, por intermédio dos discursos (relatos) dos residentes. A princípio parece haver, por parte dos aparelhos formadores, preocupação com o tema e, a um só tempo, necessidade de conhecimento, uma vez que a maioria dos sujeitos da pesquisa reconheceu várias oportunidades de aprendizado em disciplinas da 745


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graduação e quase a totalidade citou contato com casos sob suspeita de violência nos estágios de Pronto Socorro da residência. Todavia, tanto o descontentamento em relação à suficiência deste aprendizado, assumido pela maioria dos residentes, quanto a escassez das atribuições do pediatra diante da VDCA, reconhecidas por eles, apontam para algo não esgotado. O medo não reconhecido (ou desconhecido) por parte dos formadores, e tão prevalente entre os sujeitos desta pesquisa, evidenciou-se como um possível bloqueador do aprendizado e, conseqüentemente, do desempenho que deve ser trabalhado para que se experimentem novos resultados.

Considerações finais Os resultados desta pesquisa confirmaram dificuldades inerentes ao tema violência e a importância de repensá-la na formação dos residentes. O estudo permitiu uma aproximação da realidade, partindo do princípio de que “a realidade nunca é diretamente ela mesma, pois só se apresenta através de sua simbolização” (Zizek, 1999, p.26), e de que a prática resulta de uma ideologia que é concreta, justifica e gera ações (Althusser, 1999). Essencialmente, o que se pode concluir é que o “bebê sacudido”, imagem clássica de VDCA, tem sido freqüentemente exposto aos residentes. A proposta de seguimento ambulatorial parece remota, uma vez que não foi referida espontaneamente entre as condutas listadas, só sendo lembrada por, aproximadamente, metade dos residentes quando estimulados a pensar nesta possibilidade. Nenhum residente levantou a possibilidade de seguimento ou tratamento para o perpetrador. Os resultados das entrevistas também evidenciaram que as estruturas dos programas não comportam ou não priorizam o atendimento ambulatorial e, menos ainda, o seguimento dos casos sob suspeita de violência, o que implica uma abordagem incompleta e resulta como um limite da formação. Chamou a atenção o fato de os residentes enumerarem diversas oportunidades de contato com o tema durante a graduação e a residência, e a grande maioria ter caracterizado a formação como insuficiente. Vários autores, como Middleman, Binns e Durant (1995), Borowsky e Ireland (1999), Jonhson et al. (1999), Bair-Merritt et al. (2004), vêm se ocupando do papel do pediatra como triador de comportamentos de risco para a violência. Estes estudos mostram que a dificuldade do ensino das questões da VDCA é comum, e que o fato de haver protocolos e novas propostas não tem garantido um maior compromisso do pediatra. Há mais conhecimento para ser reconhecido e desvendado. Muitas questões precisam ser retomadas e melhoradas na formação dos residentes e, dentre elas, destaca-se a busca dos motivos do medo, que foi evidenciado como impedimento, limitando a possibilidade de se reconhecer a criança ou o adolescente em sua alteridade. Esboçaram-se explicações que ainda devem ser melhor aferidas. A rotina e a demanda se entrelaçam, borram os contornos do fazer, que é, sem dúvida, efetivado por sujeitos, em parte, conscientes e carregados de ideologias. Redefinir o fazer, escutando os que fazem, aceitando que tudo com o que lidamos são também produtos simbólicos, foi um exercício que resultou numa aproximação maior com as idéias que orientam a prática pediátrica, restando o desafio de rever ideologias e sistemas de crenças de quem está se propondo a formar e as dos que estão se sujeitando (ou não) ao que vem sendo proposto.

Colaboradores Maria Lúcia de Moraes Bourroul foi responsável pela redação e revisão do artigo. As discussões e revisões foram feitas por todos os autores. 746

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BOURROUL, M.L.M.; REA, M.F.; BOTAZZO, C. Residentes de pediatría ante la violencia doméstica contra niños y adolescentes. Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.12, n.27, p.737-48, out./dez. 2008. Este artículo trata de las percepciones de residentes de pediatría ante la violencia doméstica contra niños y adolescentes. Se ha realizado un estudio cualitativo con 67 residentes ubicados en nueve de los 15 programas existentes en el municipio de São Paulo, Brasil, con cuestionarios semi-estructurados y entrevistas en profundidad con nueve sujetos. Casi todos expresaron miedo y caracterizaron la formación como insuficiente. Las declaraciones sugieren disciriminación y extrañamiento delate del otro, caracterizando una situación en que sociedades diferentes aparecen como amenazadoras. Diagnosticar violencia es la atribución del pediatria más reconocida. Hay etapas del atendimiento de los niños con riesgo de violencia a ser mejor entendidas. Aspectos del residente, como el miedo, han de ser considerados para que pueda reconocer al niño en su alteridad y ejecutar mejor su papel.

Palabras clave: Malos tratos infantiles. Etica médica. Educación médica. Residencia médica. Violencia doméstica. Recebido em 26/11/07. Aprovado em 02/08/08.

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A comunicação no contexto do acolhimento em uma unidade de saúde da família de São Carlos, SP Adriano de Oliveira1 João Carneiro da Silva Neto2 Maria Lúcia Teixeira Machado3 Mariza Borges Brito de Souza4 Adriana Barbieri Feliciano5 Márcia Niituma Ogata6

OLIVEIRA, A. et al. Communication within the context of user welcoming into a family health unit in São Carlos, São Paulo. Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.12, n.27, p.749-62, out./dez. 2008. One of the sustaining pillars of user welcoming strategies is the relationship between the players involved. This paper aimed to understand the perceptions of workers and users of a family health unit regarding the role of communication within the context of user welcoming and to develop educational actions to enable reflection and discussion on the topic. A qualitative approach was used, with an action-research design. Data were gathered through participant observation and semi-structured interviews. Five categories emerged from the analysis, relating to: communication concepts, bonding, qualified listening, commitment and collective spaces. During the educational activities, the users expressed their expectations of having qualified professionals available for welcoming and problem-solving listening, and the workers indicated that the team’s professional commitment level was fundamental. The path proposed is to optimize the existing spaces through giving value to discussions on relational matters like communication.

Key words: User welcoming. Communication. Family health.

Um dos pilares que sustenta a estratégia do acolhimento é a relação entre os atores envolvidos. Este trabalho teve como objetivos compreender as percepções de trabalhadores e usuários de uma unidade de saúde da família sobre o papel da comunicação no contexto do acolhimento, e desenvolver ações educativas que permitissem reflexão e discussão sobre o tema. Utilizamos uma abordagem qualitativa, na modalidade pesquisa-ação. Realizamos a coleta de dados mediante observação participante e entrevista semiestruturada. Da análise emergiram cinco categorias: concepções de comunicação, criação do vínculo, escuta qualificada, comprometimento e espaços coletivos. Nas ações educativas realizadas, os usuários explicitaram sua expectativa de contar com profissionais qualificados para uma escuta acolhedora e resolutiva, e os trabalhadores apontaram como fundamental o nível de comprometimento profissional da equipe. Propomos como um caminho a otimização dos espaços existentes por meio da valorização de discussões sobre aspectos relacionais, tal como a comunicação.

Palavras-chave: Acolhimento. Comunicação. Saúde da Família.

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Enfermeiro. Residência Multiprofissional em Saúde da Família e Comunidade, Departamento de Medicina, Centro de Ciências Biológicas e da Saúde, Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Av. das Gardênias, 200 - Cidade Jardim, São Carlos, SP 13.566-540 adrianokiko@yahoo.com.br 2 Enfermeiro. Secretaria Municipal de Saúde de Vargem Grande do Sul. 3 Nutricionista. Departamento de Enfermagem, Centro de Ciências Biológicas e da Saúde, UFSCar. 4, 5, 6 Enfermeiras. Departamento de Enfermagem, Centro de Ciências Biológicas e da Saúde, UFSCar. 1

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Ainda que eu falasse a língua dos homens e dos anjos, se não tivesse amor, seria como o metal que soa ou como o sino que tine. (I Coríntios 13:1)

Entendendo as ferramentas O Programa de Saúde da Família (PSF) foi lançado pelo Ministério da Saúde em 1994, que desde a década anterior já experimentava, em algumas regiões, empreitadas menos abrangentes, porém bemsucedidas, tendo como principal exemplo o programa de agentes comunitários de saúde (PACS). Atualmente, preconiza-se o uso do termo Estratégia de Saúde da Família (ESF), um símbolo que circunscreve a maior parte dos princípios que constituem o Sistema Único de Saúde (SUS). Dentre tais princípios, talvez um dos mais significantes seja a integralidade, que desloca o eixo da atenção às doenças ou partes do indivíduo, tratando-o por especialidades restritivas, para o desafio de entender o indivíduo em sua totalidade, englobando todas as suas necessidades. Ainda persiste, em nossas práticas, o modelo hegemônico de atenção à saúde médico-centrado, o que se configura como grande entrave da humanização em saúde. Assim, a questão da vida vai sendo progressivamente reduzida à análise do funcionamento das várias partes de órgãos do corpo. [...] Cada vez mais a medicina torna-se a ciência das doenças. A vida globalmente entendida deixa de ser sua preocupação [...] A prioridade é buscar instrumentos para atacar cada uma das doenças e não estratégias de fortalecimento do organismo como um todo ou do grupo social em que essas doenças ocorrem [...]. (Vasconcelos, 2006, p.279)

O sobrepujar desse modelo demanda esforços em dois sentidos. Tanto ao colocar em pauta a importância do trabalho integrado de todos os membros da equipe de saúde, quanto ao formatar um desenho organizativo centrado nas relações (Teixeira, 2003). O acolhimento chega nesse contexto como uma estratégia para redefinir a lógica do processo de trabalho em saúde, criando um campo fértil para mudanças. Faz parte de uma ampla proposta de humanização da atenção à saúde consolidada pela política HumanizaSUS. Entendemos acolhimento como um modo de operar os processos de trabalho em saúde de forma a atender a todos que procuram os serviços de saúde, ouvindo suas solicitações e assumindo no serviço uma postura capaz de acolher, escutar e pactuar respostas mais adequadas aos usuários. Implica prestar um atendimento com resolutividade e responsabilização. (Brasil, 2006, p.21)

Um dos pilares que sustenta ou concede viabilidade à proposta do acolhimento é a maneira como se dão as relações entre os diversos atores envolvidos. “Essa proposta de acolhimento se apóia no reconhecimento das relações entre as pessoas no momento do atendimento como uma das questõeschave, e em especial a relação trabalhador-usuário” (Matumoto, 2002, p.2). O autor também aponta que “na construção das relações entre o serviço e usuários, entre trabalhadores e usuários a comunicação é um dos aspectos fundamentais para este entendimento de acolhimento” (Matumoto, 2002, p.1). E de que tipo de comunicação estamos falando quando nos voltamos ao nosso interesse no contexto do acolhimento? Referimo-nos à capacidade de diálogo entre trabalhadores da saúde e destes com os usuários, na intenção de construir, de maneira co-responsável, um serviço resolutivo que atenda as necessidades de todos esses atores, bem como relações que produzam ou fortaleçam a autonomia dos usuários. Todavia, não é comum encontrarmos um campo fértil para o desenvolvimento de habilidades de comunicação, devido à própria lógica dos serviços, ou seja, a configuração do processo de trabalho. “A 750

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organização do trabalho não favorece o estabelecimento de relações saudáveis, não promove diálogos francos para que se possa esclarecer quaisquer desentendimentos, que ocorram durante o processo de produção do trabalho em saúde” (Matumoto, 2002, p.3). Não obstante, não se pode negar a responsabilidade que cada trabalhador possui na superação dos fatores limitantes que se apresentam, empreendendo esforços para construir alternativas dentro do contexto de sua realidade. Referindo-se novamente às dificuldades e procurando vislumbrar o que é possível, mesmo em situações desfavoráveis, Matumoto (2002, p.2) afirma: “A escuta, entretanto, pode ser acolhedora, com valorização das queixas, dispensando atenção e respeito pelo usuário, ajudando-o a percorrer o caminho da resolução de seu problema”. Para apoderar-se da comunicação como ferramenta eficiente, é preciso compreendê-la dentro de um universo determinado de interesses, uma prática que considere os diversos contextos dos sujeitos que a compõem, e seja concebida com base na perspectiva de todos estes. Nesse sentido, consideramos que a Educação possui um papel fundamental. Não estamos nos referindo a uma noção de Educação, que ainda permanece predominante, onde apenas alguns possuem o poder por portar o conhecimento a ser transmitido àqueles que nada sabem, e estes, por sua vez, entendidos como pessoas que contavam apenas com um conhecimento não formal gerado por experiências de pouca valia (Franco, 2007). Não pensamos em ações educativas que permitam a mera transmissão de informações com baixa chance de serem acessadas pela memória num momento em que se faça necessário. Defendemos processos de construção real de conhecimento, fundamentado em práticas do cotidiano carregadas pela subjetivação de cada indivíduo. Cotidiano que é fonte inesgotável de situações que podem se tornar disparadores de reflexão. Entendemos que os processos educacionais só terão eficácia, se conseguirem, junto com os processos de cognição, operar mudanças também nas subjetividades dos trabalhadores. A identificação Educação Permanente em Saúde está carregando, então, a definição pedagógica para o processo educativo que coloca o cotidiano do trabalho - ou da formação - em saúde em análise, que se permeabiliza pelas relações concretas que operam realidades e que possibilita construir espaços coletivos para a reflexão e avaliação de sentido dos atos produzidos no cotidiano. (Franco, 2007, p.6)

Com base nessas reflexões, propusemos, como objetivos deste estudo, a compreensão e análise das percepções de trabalhadores e usuários de uma unidade de saúde da família concernentes à comunicação no contexto do acolhimento. Além de contribuir, também, para o aprofundamento da discussão, iniciando a prática de ações educativas e a construção de propostas sobre o tema.

Cenário Localizada no centro geográfico do estado de São Paulo, São Carlos possui 216.840 habitantes e, destes, 96,05% residem na área urbana (Fundação Seade, 2006). Destaca-se pelo seu vigor acadêmico e tecnológico, e, embora questões pertinentes à saúde não sejam seu maior foco produtivo, desde 2001 vem desenvolvendo uma série de ações integradas relevantes, marcando um período de avanços significativos. Na atualidade, a ESF merece destaque na estruturação da saúde do município. A rede possui hoje 11 equipes em funcionamento, proporcionando uma cobertura que corresponde a aproximadamente 23% da população do município (São Carlos, 2007). Em janeiro de 2007, o acolhimento foi instituído na rede básica do município no intuito de fortalecer a humanização dos serviços. Todavia, constata-se que tanto as equipes profissionais quanto a população têm tido dificuldade para se adaptarem às mudanças pertinentes a esse processo.

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Preparando o solo Neste estudo, utilizamos a abordagem qualitativa na modalidade pesquisa-ação (Thiollent, 1987). Caracterização do local de estudo O trabalho foi realizado em uma unidade de saúde da família que tinha cadastradas 1.723 famílias, totalizando 6.686 pessoas (São Carlos, 2007). Recentemente, foi aprovado um projeto de reformulação da distribuição geográfica da área mediante a proposta, da secretaria de saúde, de criar uma nova unidade circunvizinha a esta. O compromisso oficial de cobertura desta equipe passou a ser de, aproximadamente, seiscentas famílias. Porém, por dificuldades operacionais, o projeto ainda não foi efetivado, permanecendo o atendimento à população não cadastrada, que na verdade constitui a maior parte do volume final de trabalho da equipe e compromete a qualidade da assistência e as relações que se travam entre trabalhadores e, destes, com os usuários. Sujeitos da pesquisa Buscando a sensibilização e a mobilização de toda a equipe da unidade, convidamos todos os seus integrantes a participar do processo, a saber: uma médica, uma enfermeira, duas auxiliares de enfermagem e seis agentes comunitários de saúde. Uma das auxiliares optou por não participar da pesquisa. Além dos membros da equipe, incluímos a participação de dois usuários que integram o conselho gestor local atualmente e dois outros que, embora já não sejam conselheiros, ainda são atuantes no controle social.

Etapas do trabalho Inserção no campo A primeira etapa teve como objetivo a construção do vínculo entre os pesquisadores/interventores, a equipe e os usuários. Realizamos a aproximação conciliando as atividades deste trabalho com o cumprimento de estágio curricular da graduação, que ocorreu entre 13/08/2007 e 05/11/2007, totalizando 125 horas presentes na unidade. Isso incluiu participação em reuniões de equipe e do conselho gestor local. Coleta e análise dos dados Utilizamos a entrevista semi-estruturada com profissionais e usuários, realizadas entre os meses de outubro e novembro de 2007. Todas foram gravadas e transcritas na íntegra. A observação-participante permeou todo o processo. Observamos situações como: a recepção do usuário, seu atendimento e de sua família, a resolutividade, o encaminhamento do usuário a outro profissional, e como se dá o sistema de referência e contra-referência. Tratou-se de um processo ativo, no qual não apenas observamos a atuação dos profissionais, mas participamos dos atendimentos da demanda espontânea pela lógica do acolhimento, reuniões de equipe, e demais atividades oferecidas no serviço. Para a análise dos dados, utilizamos a técnica de Análise Categorial Temática descrita por Bardin (1977). Intervenção com a equipe e usuários Após a análise dos dados, havíamos planejado uma atividade com os trabalhadores e, na seqüência, com os usuários, com a pretensão de que os trabalhadores assumissem o papel de facilitadores na atividade posterior com os usuários. Em decorrência de problemas institucionais, houve um atraso na liberação do projeto por parte do Comitê de Ética em Pesquisa em Seres Humanos (CEP), o que dificultou a negociação de datas para a realização das atividades. Mediante este fato, a ordem precisou ser invertida. Realizamos a atividade na reunião do conselho gestor local e, depois, na reunião de equipe. As ações educativas foram pautadas nos preceitos da Educação Permanente em Saúde, marcadas por um modelo participativo de construção do conhecimento.

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O projeto foi aprovado pelo CEP da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) - Parecer 239/2007 - e pela Secretaria Municipal de Saúde de São Carlos. Todos os participantes - profissionais de saúde e usuários - receberam as informações em relação ao projeto por meio de um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Assim, incluímos as participações apenas mediante autorização. Não houve conflito de interesses.

Os frutos da seara Os resultados foram divididos em duas partes principais. Apresentamos o produto da pesquisa e, logo após, o que foi obtido nas atividades de intervenção realizadas. Pesquisa Identificamos os entrevistados pelas letras U (usuários) e T (trabalhadores), seguidos de numeração para diferenciá-los. Com base na análise das entrevistas, emergiram cinco categorias temáticas: . O momento do encontro: a criação do vínculo. . Como me comunicar? . Atenção à diversidade: a escuta qualificada. . Co-responsabilidade. . Espaço de trocas e construções coletivas. O momento do encontro: a criação do vínculo Entende-se, como encontro, o momento em que o usuário, movido por qualquer que seja sua necessidade (biológica, emocional ou espiritual), se encontra com o profissional ao procurar o serviço buscando a solução para o seu problema. Com base nessa definição, anuímos com Onocko Campos (2005, p.575) quando ela lembra “que o usuário sempre comparece a esse encontro movido por demandas mais ou menos explícitas, munido de seu corpo e sua singular subjetividade”. As conseqüências desse primeiro encontro alteram de forma decisiva a passagem do usuário pela unidade e a resolução do seu problema. Nesse sentido, segundo Campos (1997), o vínculo com os usuários do serviço de saúde amplia a eficácia das ações de saúde e favorece a participação do usuário na produção do seu cuidado. No fim, essa observação entra em consonância com a fala de um dos usuários ao apontar que: “se o usuário, ele é bem atendido, bem acolhido, consegue se expressar e ser atendido, facilita o diálogo” (U1). Outro usuário cita a necessidade do resgate da auto-estima da pessoa que procura a unidade: “não precisa melá muito, mas um bom dia, boa tarde, acho que vai levantá mais o astral [...] Quando a pessoa te pergunta o que tá acontecendo, aí já vai, cria um elo de comunicação melhor pra pessoa, já levanta” (U2). Vemos, assim, a importância do primeiro encontro entre usuário e profissional, e, nesse sentido, o valor que atribuímos ao acolhimento e à geração de vínculo. Contudo, a consolidação da estratégia do acolhimento e a valorização do vínculo se fazem necessárias tanto entre profissionais quanto entre os usuários, pois eles ainda o concebem como um “procedimento” que deve ser realizado por um profissional ou categoria específica: “infelizmente o acolhimento ali não é aquela pessoa que fique constante [...] tem essa variação, essa troca, cada dia é um agente que fica (responsável pelo acolhimento)” (U1); “eu acho que a enfermagem. Acho que diretamente a enfermagem [deve realizar o acolhimento]” (T7). Como me comunicar? A comunicação é um processo que acontece entre as pessoas, no qual se devem considerar todas as experiências, culturas, valores, interesses e expectativas, pois ela nos capacita para entendermos o mundo, transformando-o e, ao mesmo tempo, sendo transformados por ele (Silva, 2005). Teixeira (1997) nos lembra que o “modelo unilateral” que desconsidera o usuário enquanto sujeito ainda está presente nas práticas em saúde, comprovado pela manutenção das relações de poder e distanciamento. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Para alguns profissionais e usuários, a comunicação deve ser trabalhada entre todos os atores envolvidos nas práticas de saúde, de forma franca e objetiva, visando a criação de vínculo por meio de uma escuta empática, tendo como objeto final um atendimento resolutivo para o usuário: A comunicação deve ser “franca, direta, objetiva, muito singular, muita humildade, muito respeito” (U1); “o papel da comunicação é dar resolutividade ao problema! Então, através dessa comunicação, através de coleta de dados que resulte em resolutividade“ (T5). Além disso, afirmam que a comunicação não deve se restringir a momentos formais, como as reuniões de equipe ou as consultas: “Não que eu ache que a comunicação é uma coisa que tá assim, ligada a um tempo pré-fixado dentro de uma reunião, não é isso. Acho que isso é uma coisa que acontece o dia todo, toda hora, a hora que você encontra com o usuário, com o funcionário” (T9). Ao mesmo tempo, atribuem à comunicação a possibilidade de fornecer à equipe informações sobre os problemas mais freqüentes da comunidade, e, a partir daí, elaborarem os diagnósticos, as intervenções, e demais estratégias necessárias para a solução dos problemas: Conhecer melhor os problemas, o que surge, os que estão mais visíveis, os que estão mais latentes na população. Acho que essa comunicação ajudaria assim, não só uma pessoa, mas ajudaria toda a equipe a ter uma visão do que acontece de verdade, o quê que está acontecendo de verdade na nossa comunidade [...] não só conhecer o diagnóstico, mas também você atuar em cima daquilo que você diagnosticou. (T3)

Um dos trabalhadores também aponta a necessidade de capacitação da equipe, pois, embora reconheça o papel da comunicação nas relações de trabalho, não consegue utilizar-se dela como considera necessário, o que acaba comprometendo a confiança das orientações dos profissionais frente aos usuários: “a comunicação fica meio distorcida, até mesmo por essa falta de cursos, falta de maior esclarecimento para o funcionário. O quê que é? Do papel da comunicação [...] Eu creio que a equipe não tá muito esclarecida do papel da comunicação” (T3). Outro trabalhador acrescenta: “se a comunicação entre a equipe não tá coesa, tá fragmentada, tem ruído, tem percepções diferentes, a hora que você vai trabalhar com a comunidade acaba transparecendo prá comunidade [...] E aí a comunidade também fica confusa, com medo” (T9). Notamos que a diferença entre as posturas adotadas pelos profissionais contribui para a geração de ruídos. O que pretendemos aqui não é defender a idéia de homogeneizar as formas de pensar e expressar-se, perdendo, com isso, a riqueza da diversidade, mas que as diferentes características converjam para a construção de relações melhores. “Todo mundo sabe alguma coisa e ninguém sabe tudo, e a arte da conversa não é homogeneizar os sentidos fazendo desaparecer as divergências, mas fazer emergir o sentido no ponto de convergência das diversidades” (Teixeira, 2003, p.105). Os discursos revelam que a equipe como um todo tem enfrentado muitas dificuldades em utilizar a comunicação. Um trabalhador nos lembra que o enfrentamento é uma situação que a maioria das pessoas evita: “Então, uma coisinha que podia ser resolvida tão facilmente com uma conversa ‘olha, você fez isso errado, tal’, mas acaba virando uma bola de neve. Por quê? Porque ninguém chega e fala: ‘vamos conversar’” (T5). Na mesma direção, concordamos com Fillipini et al., quando se referem à habilidade dos profissionais, afirmando que ela não deve se restringir apenas à comunicação verbal: “necessidade de sensibilidade dos profissionais para executarem os cuidados, observando as manifestações verbais e não-verbais do cliente“ (Fillipini, 2006, p.73). Pois, como lembra Silva apud Edwards (2005, p.28) “apenas 7% dos pensamentos (e intenções) são transmitidos por palavras e [...] 55% são transmitidos pelos sinais do corpo”. Silva (2005) também traz um entendimento com o qual concordamos, ao afirmar que a relação entre trabalhador e usuário deve ser planejada na comunicação empática, no sentido de compreender e respeitar as percepções do outro em relação à vida.

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Atenção à diversidade: a escuta qualificada Discutindo sobre eqüidade e associando a integralidade, encontramos publicação do Ministério da Saúde, que refere ser importante no momento do encontro entre profissional e usuário: o resgate da integralidade do cliente, percebido como sujeito participante nas ações de saúde, implicando no reconhecimento de sua subjetividade em interação com o profissional que o atende. Acolher o saber e o sentir do cliente, por meio de uma ‘escuta ativa’, é condição básica para um atendimento de qualidade. (Brasil, 1997, p.4)

Para alguns profissionais entrevistados, a resolutividade dos problemas assinalados pelos usuários pode vir a ser comprometida por conta da subjetividade presente em cada caso: “A população é assim [...] uma mistura de cultura, socioeconômica [...] eu acho que é um pouco complicado. Eles não entendem muito, entendeu? Não é muito esclarecido. As vezes você fala uma coisa, duas, três, quatro, cinco vezes” (T7). A gente percebe que há muita procura do paciente [...] é porque ou ele não explicou muito bem o que ele realmente queria de uma vez só, porque ele volta várias vezes [...] ou a gente não fez as perguntas certas pra tirar dele a resposta [...] eu acho que em relação a nossa comunicação com eles não tem sido suficiente. (T6)

Nesse sentido, buscando deixar mais claro o que seria ‘escuta ativa’ - uma vez que ela foi interpretada por nós como uma das alternativas para os problemas levantados tanto pelos profissionais, quanto pelos usuários - trazemos a idéia de Durães-Pereira et al. apud Mariotti (2007, p.466) de que a escuta “pode ser construída como um processo transparente, através de uma rede de conversação em que abrimos questões, compartilhamos aspirações, questionamos e aprendemos, interagimos com o todo e buscamos a pluralidade de idéias”; e de Filgueira e Deslandes (1999, p.124) endossando que a “atitude de escuta pressupõe a capacidade do profissional de propiciar um espaço para que o usuário possa expressar aquilo que sabe, pensa e sente em relação a sua situação de saúde e responder às reais expectativas, dúvidas e necessidades deste”. Essas observações convergem com as falas apresentadas por alguns dos usuários: “se [...] não houver aquele contato com respeito, com educação, com simplicidade pra tratar do mais humilde até o mais bem informado, isso deixa o próprio usuário meio constrangido” (U1); “No meu caso, eu sou mais fechado, mas quando as pessoas chegam ‘um bom dia, um boa tarde, um aperto de mão’ já me abre. Eu já nasci assim, com esse tipo fechado, mas eu me abro também” (U2). A não criação de um espaço onde aconteça esta escuta qualificada faz com que um mesmo usuário retorne mais vezes à unidade, ao mesmo tempo em que esses retornos os deixam mais ‘nervosos’, conforme apresentado na fala de um usuário: Porque às vezes o usuário chega nervoso e saí nervoso e entra mais estressado ainda pra falar com médico. Então acho que o papel do acolhimento é aquele de preparar a pessoa, ver o que ele tem, o que ele precisa, qual o problema dele, quem pode ajudar ele [...] pra você montar as informações que possam ajudar, tanto nos cuidados no caso da enfermagem, como o médico também. (U1)

A escuta precisa ocorrer de forma que propicie resolutividade no atendimento. Partilhamos das idéias de Schimith e Lima apud Carvalho e Campos (2004, p.1487) quando afirmam que o “acolhimento é um arranjo tecnológico que busca garantir acesso aos usuários com o objetivo de escutar todos os pacientes, resolver os problemas mais simples e/ou referenciá-los se necessário”. Sendo assim, é preciso mudar a forma com que os trabalhadores da saúde têm sido formados, como se fossem componentes que já devam possuir um leque de habilidades inatas e, portanto, não demandam capacitação (Ceccim, 2004).

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Como vimos anteriormente, é necessário difundir, entre os profissionais, um “olhar” mais apurado para os valores e crenças de cada usuário (subjetividade). Então, a educação permanente torna-se ferramenta importante, pois, por meio da valorização de seus próprios saberes, crenças e habilidades, o profissional transforma-se em agente ativo no processo de trabalho. Sua aprendizagem torna-se significativa, pois reconhece que suas demandas são realmente pertinentes (Filgueiras, Deslandes, 1999). Co-responsabilidade Aqui discutimos o que poderíamos chamar de responsabilidade coletiva. Essa pode ser promovida por meio de processos comunicacionais eficientes, construindo uma rede de influência que provoque um movimento de formação de determinada harmonia nos níveis de envolvimento e comprometimento de todos os interessados em promover saúde. Esse é um traço que foi apontado tanto por trabalhadores como por usuários. Houve consenso de que a disposição e comprometimento de apenas um dos segmentos não são suficientes para construir o tipo de relação que se quer. “O compromisso profissional e os direitos dos usuários são faces complementares e interdependentes deste mesmo processo de melhoria da qualidade do atendimento” (Camelo et al., 2000, p.36). “Se a gente quiser exigir das duas partes, não adianta chegar um usuário lá todo dedicado, todo respeitoso e o atendente mal fala com ele, mal tentar entender o que ele quer” (U1). Camelo et al. (2000, p.36) nos trazem também uma proposta de qual seria o papel de cada um nessa relação: A construção de uma relação de ajuda entre o profissional e o cliente depende de ambos. O profissional deve saber administrar a situação, apresentando comportamentos de acolhida, verbais e não-verbais. O usuário deve demonstrar disponibilidade interna e envolvimento durante o relacionamento, participando da busca de ações possíveis para a resolução de seus problemas ou satisfação de seus desejos e necessidades.

Ao pautarmos esses aspectos, estamos, sobretudo, nos remetendo à promoção da autonomia, um elemento essencial sem o qual não é possível gerar co-responsabilidade. Normalmente, os indivíduos só assumem uma postura ativa a partir do momento em que se entendem como sujeitos no processo, portadores de direitos e potencial para contribuir. É muito comum observar usuários apontando as falhas dos profissionais e vice-versa, estabelecendose o hábito de culpabilização do outro, o que pode gerar uma enganosa sensação de nunca ser participante na causa dos problemas e, portanto, não se sentir responsável em promover as mudanças necessárias. Referindo-se à realidade vivenciada naquela unidade, outro usuário curiosamente expressou o seguinte: “os profissionais estão se comunicando bem com a gente, tão procurando. A gente vê interesse de se comunicar bem, de se integrar a todo mundo. O mais difícil mesmo são os usuários. Eles só querem vir na hora da precisão” (U4). Os profissionais não foram capazes de apresentar uma autocrítica semelhante. As falas ressaltam o entendimento de que, por vezes, a falta de envolvimento por parte dos usuários é que reflete um estado de desinteresse dos profissionais. Complementamos afirmando que o contrário também é válido, estabelecendo-se um ciclo danoso ao processo de produção do cuidado. Franco e Merhy (2005) apresentam os benefícios que podem ser produzidos quando se consegue romper com esse ciclo e desenvolver um comprometimento mútuo: O vínculo dos usuários com a equipe, tendo a responsabilização desta para com o cuidado àqueles, cria referências seguras e, sobretudo, a forte idéia de ‘empoderamento’ dos usuários, que se dá por processos de aprendizagem de como se cuidar e também processos de subjetivação que fazem com que eles se sintam com condições, competentes e aptos a se cuidar. (Franco, Merhy, 2005, p.187)

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Espaços de trocas e construções coletivas Muito se discute sobre a promoção de educação em saúde como prática que pode ocorrer em todo momento e lugar. Concordamos com essa idéia, mas reforçamos que os encontros, mesmo que sem horário e local estabelecidos, devem ser munidos de reflexão e busca de conhecimento. Podendo, inclusive, esta prática ser considerada essencial para o entendimento das necessidades da clientela. Esse diálogo se orienta pela busca de maior conhecimento das necessidades de que o usuário se faz portador e dos modos de satisfazê-las [...] a pautar todas as práticas de conhecimento que são dão em serviço ‘todas as formas de conversa, individuais ou em grupo, em que, de alguma forma, se pesquisa alguma coisa’. (Teixeira, 2003, p.103)

A troca de idéias em espaços informais foi apontada, pela maior parte dos entrevistados, como um fator bem-sucedido neste serviço, mas destacamos que o campo da informalidade não consegue dar conta de todas as necessidades de trocas de uma equipe de saúde. Ao pensarmos em como se encontra o estabelecimento de espaços de troca organizados entre os próprios trabalhadores, percebemos algumas preocupações. A maneira de organizar o atendimento da demanda espontânea é um fator que tem sido desafiador para os membros da equipe. A maioria demonstra despreparo e referem a necessidade de se estabelecerem momentos de trocas para discutirem a questão de maneira específica. a própria equipe, cada um tem seu conceito de acolhimento, mas a gente não troca esse conceitos, essas percepções, sentimentos [...] falta um espaço onde a gente discuta isso formalmente, onde a gente diga assim: ‘Vamos discutir agora o acolhimento’. (T9) A dificuldade não se faz presente apenas ao se discutir a formatação do processo de trabalho em geral, mas, também, envolve alguns detalhes sobre sua operacionalidade. Novamente, evidencia-se a importância da qualidade da comunicação entre os membros da equipe. por exemplo, passa um recado prá uma ou às vezes não dá tempo de reunir todo mundo, entendeu? Aí não passa prá outra [...] a outra não tá sabendo [...] Não sei se às vezes pelo tempo ou porque você não tá na unidade ou não dá pra reunir, entendeu? (T7) O profissional enfermeiro ainda possui o simbolismo daquele a quem se atribui o dever de capacitar os demais elementos da equipe. E isso tem sido muito cobrado deste profissional neste momento de transição do tipo de processo de trabalho que agora é pautado pelo acolhimento: “os agentes se sentem despreparados, a enfermeira, ela nem sempre tem esse tempo de tá conversando com a gente o papel do acolhimento” (T3). Nos diálogos estabelecidos com a enfermeira, e ao observar suas ações no cotidiano, podemos retratar a causa da dificuldade em cumprir esse papel educativo esperado: o enfermeiro está preso às ações instituídas da gestão, capturado por normas, com ações centradas nas ações programáticas, com pouca flexibilidade na geração de propostas instituintes na construção do processo do cuidado integral, na criação de espaços de poder compartilhado, que dificulta a aprendizagem significativa no trabalho, para o compromisso, a responsabilização e autonomia no processo de cuidar. (Andrade et al., 2007, p.1) As mesmas autoras sugerem formas de enfrentamento do problema: É necessário rever concepções de liderança e gestão na formação de enfermeiros, permear a integralidade no redirecionamento do cuidado de enfermagem e utilizar da educação

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permanente como potente ferramenta na mudança de processos de trabalho. (Andrade et al., 2007, p.1)

Vale ressaltar que tal responsabilidade não deve recair sobre os ombros de um único profissional, pois cada um possui um papel em relação ao próprio desenvolvimento e da equipe como um todo, tal como discutimos na categoria “co-responsabilidade”. No mérito do que está em pauta, um dos avanços mais significativos que a equipe alcançou recentemente foi o estabelecimento da ‘reunião de estudo de caso’, projetada para ser realizada todas as semanas. Ah, eu acho que é mais aquela reunião, de casos lá, que a gente discute o quê que aconteceu [...] que o pessoal fez no acolhimento, em algum caso que não passou pela Drª e ficou pra resolver depois. Acho que é o momento que mais acontece as discussões. (T4) Todavia, constatamos que, após algum tempo, a atividade foi suspensa por dificuldade de conciliação de horários entre todos os profissionais, e as discussões para retomar essa iniciativa permanecem. Talvez o espaço de maior relevância atualmente seja mesmo a típica reunião de equipe. Porém esta também tem apresentado muitas limitações de diversas naturezas: “A gente não consegue reunir toda a equipe de uma vez só. Nas nossas reuniões sempre tem alguém faltando (T6); No meu caso se eu falo alguma coisa eu sou sempre apedrejada [...] sempre aponto as coisas e já fui até crucificada por agir assim, então eu não falo mais nada hoje em dia”. (T8). Alguns identificam a necessidade de fazer da reunião um espaço para a construção de propostas sólidas de resolução de problemas e planejamento de ações coletivas. Essa é uma preocupação importante, uma vez que há o risco de que esses espaços tornem-se apenas verdadeiros ‘muros de lamentação’: “A gente realmente tem que discutir e traçar metas que a gente queira alcançar dentro desse contexto” (T9). Outro tema muito discutido por diversos autores e que surgiu nas entrevistas é a constituição de espaços que promovam a integração entre equipe e usuários na construção do modelo de atenção. Pudemos perceber que os profissionais entendem essa importância, mas ainda não conseguem articularse de forma a efetivá-lo: “Então a gente não tem essa rede de comunicação dentro da equipe e da equipe com a comunidade de uma maneira efetiva, que faça com que a gente entenda realmente o quê que tá acontecendo e monte um processo que seja eficaz [...] Falta criar espaços pra que essa comunicação aconteça” (T9). Algumas iniciativas da equipe têm buscado a criação de espaços de discussão e troca de idéias com usuários. Isso tem contribuído para melhorar as relações da equipe com a população, mas ainda está longe de ser o suficiente para o estabelecimento de uma gestão participativa e controle social efetivo.

Intervenção Desde a concepção deste trabalho, entendíamos que seria importante executar alguma ação que pudesse contribuir para o aprimoramento do tema pesquisado junto à equipe. De forma planejada, pautando-nos na perspectiva da educação permanente, desenvolvemos a pesquisa referente a um aspecto crítico do processo de trabalho da equipe, de forma que pudesse se tornar um disparador de reflexão da prática. Portanto, essa atividade educativa segue tal lógica, propondo um espaço de expressão das idéias referidas individualmente nas entrevistas e objetivando proporcionar trocas e discussões propositivas. O modelo operacional da atividade garantiu os princípios da roda, co-gestão e interventores no papel de facilitadores. Assim, com base na análise do produto das entrevistas na atividade com os usuários, criamos tarjetas não nomeadas, com resumos das principais idéias passíveis de discussão e relacionadas ao tema

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proposto. Os quatro usuários entrevistados estavam presentes, cada um dirigia-se ao quadro fixado na parede, sorteava aleatoriamente uma tarjeta, e tecia comentários a respeito. A atividade inteira foi permeada por estratégias lúdicas, aguçando os sentidos e incentivando a ação reflexiva. Ao final, propusemos a criação de novas tarjetas contendo sugestões para resolução dos problemas discutidos. Nelas encontramos: . Intensificar de forma globalizada o acolhimento: usuário x unidade de saúde – “Comunicação, atendimento, retorno e satisfação no que faz”; . Atender todas as pessoas com o mesmo respeito e atenção que você gostaria de ter recebido; . Gente que entenda da profissão para que tenha sucesso, ou seja, que seja melhor para o povo; . Realizando as reuniões e conversando para trazer outros usuários; . Queremos espaço para reuniões, de preferência, em lugar que todos escutem com atenção. Os usuários explicitam sua expectativa de contar com profissionais qualificados para uma escuta atenciosa e resolutiva, além do fortalecimento dos espaços de encontro. O fato de haver apenas um profissional presente na atividade com os usuários causou a sensação de que não haveria continuidade das discussões relacionadas ao tema devido ao término de nossa atuação na unidade. Realçamos essa preocupação durante a intervenção realizada com os profissionais. Na atividade desenvolvida no espaço de uma reunião de equipe, oito profissionais estavam presentes, e se deu numa dinâmica muito semelhante à que realizamos no conselho gestor. Destacamos apenas que, antes de propormos a criação das novas tarjetas, apresentamos algumas diretrizes do Ministério da Saúde segundo a cartilha: “O acolhimento como rede de conversações diretriz e dispositivo da Política Nacional de Humanização da Atenção e Gestão do SUS” (Abbes, 2006). As propostas que surgiram nas novas tarjetas trouxeram o seguinte: . Trabalho em equipe; . Comprometimento e atitude; . Maior comprometimento de toda a equipe, e melhor reconhecimento da área. Falar a mesma língua; . Comprometimento com os planos de serviços propostos e com as pessoas que são atendidas; . Partilhando experiências. Comprometimento dos membros com a equipe e usuários; . Empatia; . Comprometimento. Responsabilidade e relacionamento entre a equipe; . Ser capacitado e trabalhar em equipe. Uma vez que o comprometimento e trabalho em equipe foram elementos recorrentes nas propostas, mas abordados de maneira superficial e inespecífica, propusemos o preenchimento de um instrumento, para que os profissionais pudessem expressar, de forma mais concreta, o que entendem sobre os termos e a que se dispõem nesse sentido. Seis deles se propuseram a responder, e abaixo segue a síntese do que foi apresentado: . Os conceitos são complementares. . Ter responsabilidade. . Respeitar os usuários e colegas de profissão. . Não só dividir o trabalho, mas somar experiências. . O trabalho precisa ter significação para os profissionais. É possível notar que os trabalhadores restringiram-se em expressar somente seu entendimento sobre os termos. Apenas um trabalhador lançou uma proposta: a possibilidade de momentos de reflexão sobre os objetivos individuais e coletivos do trabalho como forma de construir a significação do mesmo para todos os trabalhadores. Por solicitação da equipe, ao final da intervenção, montamos um mural com todas as tarjetas produzidas por eles nas atividades citadas acima e fixamos na sala de reuniões.Buscando proporcionar um momento avaliativo, nos propusemos levar-lhes uma apresentação da análise dos resultados da pesquisa, e aguardamos, deles, um agendamento.

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A colheita com olhos para o futuro Para concluir, trazemos uma síntese referente à aprendizagem alcançada, por meio da análise dos resultados obtidos na pesquisa e com o que foi construído nas atividades educativas desenvolvidas. A criação de vínculo é fundamental para se desenvolver uma relação de confiança que leve o usuário a aderir às ações de saúde propostas, e, mais que isso, para envolvê-lo de maneira ativa em seu próprio cuidado. E isso começa a se constituir a partir do primeiro momento de encontro. Para que a comunicação favoreça esse processo, é preciso zelar por alguns princípios, tais como: respeito, sinceridade e empatia. A competência comunicacional, que não é inata, demanda aprendizagem permanente e precisa ser afinada entre todos os membros da equipe, como uma orquestra. E se efetivada com qualidade, pode potencializar o planejamento e ações do serviço. A comunicação envolve não só a capacidade de se fazer claro, mas, sobretudo, de escutar o outro de forma acolhedora. Para sensibilizar e mobilizar os indivíduos é preciso atingir sua subjetividade, não apenas conceder-lhes informação proporcionando um entendimento conceitual. Para avançar na busca por esse ideal de relacionamento, é necessário romper com a prática de culpabilização do outro e repensar a conduta no sentido de todos assumirem a responsabilidade de promover transformações. A consolidação destas propostas acontece a cada momento de troca travado no cotidiano, mas os avanços mais significativos têm sido percebidos com o fortalecimento de espaços coletivos organizados, onde se preconiza mais horizontalidade nos processos de aprendizagem - considerando tanto os espaços destinados aos profissionais da equipe, quanto os de interlocução com os usuários. A complexidade das dificuldades impostas pelo trabalho cotidiano precisa ser considerada ao discutirmos os entraves e limitações da comunicação. Despidos desta compreensão estaríamos fadados a um mero julgamento improdutivo. O que pretendemos é ressaltar que acreditamos ser possível a criação de estratégias alternativas no enfrentamento de problemas que se colocam como obstáculos para uma qualificada produção do cuidado. Isso pressupõe a utilização do potencial criativo de cada trabalhador e o envolvimento de cada usuário. Ao final de todas as reflexões sobre a experiência vivenciada, afirmamos que os objetivos foram atingidos de forma satisfatória, por termos conseguido mais do que captar as percepções dos envolvidos sobre o tema. Como resultado, disparamos um processo de reflexão da prática dos profissionais, além de promovermos a aproximação entre os segmentos. Tanto trabalhadores quanto usuários demonstraram interesse na continuidade do processo, o que esperamos que, de fato, ocorra. Iniciativas isoladas de apenas alguns dos atores não constituem uma força suficiente para promover as mudanças necessárias. Todavia podem se tornar exemplos disparadores do processo de melhoria das relações interpessoais, que colaborem para um serviço mais resolutivo. Apontamos, como um caminho, a otimização dos espaços já existentes por meio da valorização de discussões sobre aspectos relacionais, tal como a comunicação, preconizando o encaminhamento de propostas concretas a cada encontro.

Colaboradores Adriano de Oliveira e João Carneiro da Silva Neto participaram de todas as etapas de planejamento, desenvolvimento e execução do trabalho e da elaboração e revisão do artigo. Maria Lúcia Teixeira Machado orientou todas as etapas de realização e avaliação do trabalho e participou da elaboração e revisão do artigo. Mariza Borges Brito de Souza co-orientou e avaliou o trabalho e participou da elaboração do artigo. Adriana Barbieri Feliciano e Márcia Niituma Ogata colaboraram na realização e avaliação do trabalho e na elaboração do artigo. 760

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artigos

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OLIVEIRA, A. et al. La comunicación en el contexto del acogimiento en una unidad de salud de la familia de São Carlos, estado de São Paulo, Brasil. Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.12, n.27, p.749-62, out./dez. 2008. Uno de los pilares que sustenta la estrategia del acogimiento es la relación entre los actores envueltos. Este trabajo ha tenido como objetivos observar las percepciones de trabajadores y usuarios de una unidad de salud de la familia sobre el papel de la comunicación en el contexto del acogimiento y desarrollar acciones educativas que permitan reflexión y discusión. Utilizamos una aproximación cualitativa en la modalidad investigación-acción. Realizamos la colecta de datos a través de la observación participante y de la entrevista semi-estructurada. Del análisis emergen cinco categorías: concepciones de comunicación, creación del vínculo, escucha cualificada, comprometimiento y espacios colectivos. En las acciones educativas realizadas, los usuarios explicitaron su expectativa de contar con profesionales cualificados para una escucha acogedora. Proponemos como un camino la optimación de los espacios existentes a través de la evaluación de discusiones sobre aspectos realiconales como la comunicación.

Palabras clave: Acogimiento. Comunicación. Salud de la familia.

Recebido em 10/12/07. Aprovado em 04/07/08.

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artigos

O acompanhamento terapêutico na internação hospitalar: inclusão social, resgate de cidadania e respeito à singularidade

Regina Célia Fiorati1 Toyoko Saeki2

FIORATI, R.C.; SAEKI, T. Therapeutic follow-up during hospitalization: social inclusion, redemption of active citizenship and respect for singularity. Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.12, n.27, p.763-72, out./dez. 2008. This study was carried out in a psychiatric crisis hospitalization unit, with the aim of drawing up a proposal for implementing therapeutic follow-up, as part of the therapeutic program at this unit. The concept of therapeutic follow-up was envisaged as an important resource to be included in psychosocial rehabilitation projects, with the following goals: linking users with extra-hospital services, avoiding rehospitalization and achieving inclusion in social networks. The study consisted of an exploratory-descriptive case study with a qualitative approach to the data. Participant observation and a field diary were the techniques used for data gathering and recording. The difficulties experienced were correlated with the spheres of social networks, family, institutional relationships and society. The results included heeding the patient’s and the family’s suffering and including users in social networks, extrahospital services and community organizations.

Key words: Mental health. Mental health services. Therapeutic follow-up. Rehabilitation. Social inclusion.

Esta pesquisa foi realizada em unidade de internação psiquiátrica de crise, com objetivo de elaborar proposta de implementação do acompanhamento terapêutico (AT), para compor o programa terapêutico dessa unidade. Trabalhou-se com a concepção de acompanhamento terapêutico como recurso importante para integrar projetos de reabilitação psicossocial, tendo as seguintes finalidades: vincular o usuário em serviço extra-hospitalar, evitar as reinternações hospitalares e inclusão na rede social. A pesquisa constituiu um estudo de caso exploratório-descritivo, com abordagem qualitativa dos dados. Como técnica de coleta e registro dos dados, utilizou-se a observação participante e o diário de campo. As dificuldades vivenciadas relacionaram-se com esfera das redes sociais, família, relações institucionais e sociedade. Os resultados incluíram: acolhimento do sofrimento do portador e da família; inclusão dos usuários em redes sociais; serviços extra-hospitalares; e organizações comunitárias.

Palavras-chave: Saúde mental. Serviços de saúde mental. Acompanhamento terapêutico. Reabilitação. Inclusão social.

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Terapeuta ocupacional. Doutoranda, Programa de Pós-graduação em Enfermagem Psiquiátrica e Ciências Humanas, Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo (USP). Rua Graciliano Ramos, 100, ap. 21. Ribeirão Preto, SP 14.051-039 reginafiorati@yahoo.com.br 2 Enfermeira. Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, USP. 1

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Introdução Os movimentos pela reforma psiquiátrica, oriundos da Europa Ocidental e Estados Unidos, há meio século, chegaram ao Brasil há, aproximadamente, trinta anos. Apesar dos incontestáveis avanços conquistados, nos deparamos com um cenário no qual os objetivos eticamente orientados para a abolição dos tratamentos de cunho manicomial estão longe de serem alcançados em sua plenitude, no Brasil (Amarante, 1995). Trabalhando e pesquisando na área de saúde mental, observamos problemas na implementação das diretrizes da reforma psiquiátrica, a partir da qual o objetivo central das ações e dos serviços de saúde mental passa a ser a substituição do modelo hospitalocêntrico e a construção de espaços de tratamentos inseridos na comunidade. Entretanto, o que presenciamos é um processo de novo tipo de cronificação da doença mental, que se apresenta nos serviços que nasceram com a missão de substituir o manicômio e que não prescindem, na realidade, da internação hospitalar; e, sendo assim, observamos alguns problemas com parcela de usuários que vivenciam aumento importante do número de suas internações hospitalares. Dessa forma, com base no trabalho desenvolvido nessa unidade, evidenciamos alguns problemas apresentados por alguns usuários, que dificultavam seu processo de tratamento, os quais se relacionavam com o impacto da doença e a fragilidade do portador de transtorno mental e de sua família frente ao processo de adoecimento. Além disso, o portador apresentava uma série de dificuldades diante de aspectos sociais que, geralmente, o colocava na condição de excluído das esferas de inter-relacionamento sociais. Outros problemas somavam-se a esses, os quais constituíam obstáculos importantes à manutenção de qualidade mínima de vida dos sujeitos com transtornos mentais: ruptura com redes sociais, não aderência aos tratamentos ambulatoriais, e carência de tratamentos, além do medicamentoso, nos serviços extra-hospitalares de saúde mental. Com base no consenso pactuado entre os serviços de saúde mental do município no qual se dá a pesquisa e sob orientação do gestor local, após a alta hospitalar, o usuário é encaminhado a um serviço ambulatorial ou de semi-internação de saúde mental para seguimento do tratamento psiquiátrico. No entanto, nesses serviços extra-hospitalares do município em questão não havia (ou havia de forma limitada) outros recursos terapêuticos, além do médico-medicamentoso, e o usuário permanecia, entre um retorno médico e outro, desassistido de qualquer alternativa terapêutica, além desse atendimento. Nesse processo, o usuário, freqüentemente, abandonava o tratamento, o que tinha como conseqüência recidiva na crise psicótica e nova internação hospitalar. Diante desses problemas, percebemos a importância de cuidado mais individualizado a esses usuários, que apontasse, minimamente, para a possibilidade de recuperação de aspectos importantes de produção material de sua vida, indicando outras formas de assistência e inserção social, e evitasse o circuito vicioso das reinternações hospitalares e o processo de cronificação da doença. Perante o quadro do aumento das internações hospitalares, evidenciadas na unidade de internação, da falência de alguns tratamentos em nível ambulatorial e da realidade de desvinculação de redes sociais desses usuários, pensamos que o acompanhamento terapêutico (AT)3 poderia representar ferramenta privilegiada para trabalhar no cuidado aos portadores de transtornos mentais que se apresentavam inseridos nessa problemática. Por ser uma prática clínica que se caracteriza por se desenvolver fora dos espaços institucionais e tradicionais de tratamento, e ser realizada, sobretudo, nos espaços públicos, no ambiente 764

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3 Na literatura referente ao assunto, usa-se a abreviatura AT para acompanhamento terapêutico, e at para acompanhante terapêutico.


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domiciliar e social do paciente, o AT poderia apresentar estratégia importante para proporcionar maior vivência com a problemática familiar e as dificuldades instauradas. Da mesma forma, por se constituir uma forma individualizada de atendimento, propiciaria, por meio do vínculo terapêutico, a criação de formas mais eficazes de elaboração do sofrimento e a produção de relacionamentos afetivos mais significativos para o portador. Além disso, pensamos que o AT representaria um caminho potencial de inserção em redes sociais e movimento de inclusão social. A pesquisa, portanto, teve, como objetivo central, elaborar proposta de implementação do acompanhamento terapêutico para integrar o programa terapêutico da unidade de internação hospitalar. A opção metodológica que utilizamos, no caminho percorrido nesta pesquisa, constituiu-se de estudo de caso, exploratório-descritivo, com abordagem qualitativa dos dados. Para a coleta dos dados, utilizamos a observação participante e, para o registro dos dados, o diário de campo. Realizamos a observação participante por meio de dez atendimentos em AT com usuários da unidade de internação, encaminhados pela equipe técnica da unidade e a partir das reuniões clínicas da equipe. Os atendimentos em AT foram realizados por nós, no interior e fora da unidade hospitalar, em acompanhamentos nas ruas da cidade, na casa do usuário, em serviços extra-hospitalares (Centro de Atenção Psicossocial II-CAPS II, hospital-dia e ambulatórios de saúde mental da cidade e região), e em organizações sociais da cidade, tais como: Casa da Cultura da Prefeitura Municipal de Ribeirão Preto, Serviço Social do Comércio (SESC), Serviço Social da Indústria (SESI), Centro de Formação Profissional da Prefeitura Municipal de Ribeirão Preto, e uma escola da rede pública de ensino. Os acompanhamentos foram registrados por nós, no diário de campo, e os registros continham tanto a descrição dos acontecimentos durante os atendimentos, como as nossas impressões, decorrentes do vínculo interrelacional estabelecido e vivenciado por meio do encontro intersubjetivo dos parceiros envolvidos, usuário e terapeuta. A unidade de internação psiquiátrica na qual realizamos a pesquisa integra um hospital psiquiátrico da rede pública de saúde, da esfera estadual, no município de Ribeirão Preto, SP, e é referência para 25 municípios que compõem a região administrativa que tem esse município como centro. O hospital possui área de moradores que integram o projeto de residências terapêuticas em parceria com o município e uma unidade de internação de crise, cuja unidade masculina sediou a pesquisa. A internação hospitalar nessa unidade é indicada para os casos nos quais se apresenta, em algum nível, certo grau de risco à integridade física do paciente ou de pessoas próximas a ele, e se dá por meio de encaminhamento da rede pública de saúde e saúde mental da região e município, passando por central de regulação de vagas. Nos últimos anos, no entanto, verificamos aumento de reinternações hospitalares, apontando para novo processo de cronificação, após a construção de serviços substitutivos ao modelo hospitalocêntrico. Nesse sentido, o AT nos pareceu instrumento importante para identificarmos as dificuldades do portador e sua família, e responder aos problemas vivenciados no processo de adoecimento ao criar, em sua prática, novas possibilidades para o usuário, de forma a facilitar para esse a produção da sua própria vida. De acordo com Porto e Sereno (1991) e Barretto (1998), essa clínica constitui processo de intervenção na vida e cotidiano do paciente, com produções e construções de acontecimentos, de novas formas de subjetivação e reconstrução de uma história pessoal. Porém, no nosso caso, não dispúnhamos de tempo prolongado de intervenção, pois o período de internação na unidade era relativamente breve. Assim, o AT que realizamos teve as seguintes finalidades: acolher o sofrimento, por meio da escuta e sustentação, facilitar a readaptação sociofamiliar, estabelecer vínculos mais eficazes com a sociedade, vincular em serviços extra-hospitalares, inserir em redes sociais, e evitar o processo de cronificação. Além da proposta de implementação do acompanhamento terapêutico nessa unidade de internação, que constituiu nosso objetivo central, a pesquisa teve como objetivos específicos: caracterizar os pacientes atendidos em acompanhamento terapêutico, conhecer os fatores que motivaram a indicação do AT e identificar as dificuldades encontradas na realização dessa atividade.

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O ACOMPANHAMENTO TERAPÈUTICO NA INTERNAÇÃO...

Acompanhamento terapêutico: estratégia inclusiva da pessoa em sofrimento psíquico O acompanhamento terapêutico, por ser uma prática que resgata o direito de usufruir da vida pública para a pessoa que foi sistematicamente excluída desses espaços, constitui forma de atenção ao sujeito que recupera a ação de circulação mundana e social, interrompida a partir do adoecimento, potencializadora de trocas e intercâmbios sociais, no sentido de articulação com as esferas de produção material e simbólica da vida e na busca de espaços na cultura, nos quais as formas particulares de existência psicótica encontrem expressão, valor e legitimação (Carvalho, 2004). Dessa forma, vimos uma conexão importante entre o AT e as reflexões que alguns autores (CostaRosa, 2000; Saraceno, 1999) fazem sobre a reabilitação e o modo de atenção psicossocial. A reabilitação psicossocial é entendida como um conjunto de estratégias que, ao invés de capacitar o sujeito por meio de ações normalizadoras e normatizadoras, propõe, ao indivíduo em sofrimento, caminhos no sentido de que ele possa produzir valor e sentido social, com base no resgate da capacidade de produzir sua própria vida, ao recuperar a contratualidade como cidadão. Assim, preconiza formas de atuação as quais centram seu foco na recuperação da capacidade de o sujeito recriar sua vida na cultura, por meio de ações no mundo reconhecidas e legitimadas, e inserir-se nos sistemas de trocas sociais (Saraceno, 1999). Costa-Rosa (2000), por meio do conceito de alternatividade, como modo de ser de uma dada realidade que se contrapõe a outra, na forma de uma contradição, analisa dois modos de atenção em saúde mental: o asilar e o psicossocial. Esses dois modos de atenção, contraditórios entre si, também são alternativos, pois suas constituições essenciais são opostas entre si. O autor compara esses modelos e sublinha algumas características do modo psicossocial como alternativo na atenção em saúde, porque olha o homem em sua diversidade biopsicossocial, reposiciona o sujeito como agente produtor e transformador, incluindo-o socialmente, organiza instituições horizontalizadas, apóia-se na interdisciplinaridade, permite a participação popular e a singularização do sujeito. Segundo o autor, o modelo psicossocial atribui toda a importância ao sujeito, mobilizando-o como agente principal do próprio tratamento, buscando a auto-administração. Quanto à forma de trabalho, o modelo psicossocial substitui a dimensão técnico-científica, típica do modelo asilar, e apóia-se em dimensão que privilegia o olhar ético-estético, no qual os projetos são constituídos com base na interdisciplinaridade, enfocando a dimensão do simbólico (psíquico e sociocultural) em oposição ao modelo orgânico, no modo asilar. Ainda, de acordo com Costa-Rosa (2000), o modo psicossocial é apontado como aquele que permite novas formas de sociabilidade, apoiadas na interação dialógica. Os clientes saem da posição de interdição, mutismo e imobilidade, na qual são tutorados e agenciados pelos técnicos, para assumirem a interlocução, o livre trânsito e reposicionarem-se como sujeitos dentro da dimensão subjetiva, sociocultural e histórica Se nos reportamos aos acontecimentos priorizados e mobilizados no AT, percebemos que os objetivos, princípios e finalidades são muito semelhantes àqueles descritos dentro de um campo de estratégias da reabilitação psicossocial. Porto e Sereno (1991) destacam o AT como sendo intervenção que reconecta o sujeito com o circuito social, alinha o mundo psicótico à cultura e propicia a descoberta de espaços, nos quais as manifestações idiossincráticas do sujeito em sofrimento psíquico possam encontrar expressão. Além disso, o AT possibilita a reconstrução de uma história pessoal, na qual o sujeito seja o agente e volte a exercer sua potencialidade vital. Barretto (1998) salienta que o acompanhamento terapêutico desencadeia um processo pelo qual o sujeito em sofrimento possa inscrever sua subjetividade no mundo e, dessa forma, repersonalizar-se por meio do desenvolvimento de uma existência criativa e, não, adaptativa, em relação à cultura. O AT é prática de trocas em que os intercâmbios sociais estão na base dos acontecimentos construídos nos atendimentos. Da mesma forma, é prática interdisciplinar sem demarcações territoriais de saberes ou excesso de identidades, como lembra Saraceno (1999). O AT promove a saúde no mais aberto dos espaços, transita pela cidade e apropria-se dela como lugar de habitação e convivência coletiva, campo de negociações e de exercício de contratualidade social e cidadania (Marinho, 2006). 766

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Sob nosso ponto de vista, portanto, o AT constitui instrumento importante para integrar projetos centrados em um modo de atenção psicossocial, pois ambos: estabelecem práticas que se opõem às formas manicomiais de tratamento e alinham-se às propostas da reforma psiquiátrica; compõem ações de resgate da contratualidade como cidadão; representam formas de cuidado que se apóiam na singularização do sujeito, na medida em que implica o indivíduo em sua dimensão subjetiva, sociocultural e histórica; são práticas de trocas, pois os intercâmbios sociais estão na base das construções e acontecimentos possíveis, e constituem práticas interdisciplinares, sem demarcações de territórios e fragmentação dos saberes e práticas (Fiorati, 2006).

Percurso metodológico Os estudos que têm seres humanos como foco principal e, portanto, envolvem procedimentos, processos e relações que dizem respeito ao universo subjetivo das existências humanas, produções e acontecimentos que ocorrem dentro de determinadas realidades e redes sociais, e se encontram inseridos em determinados contextos históricos, constroem-se dentro de um campo de intersubjetividades, caracterizado por relação de comunicação entre universos culturais, compartilhados entre pesquisador e pesquisado. Esse campo intersubjetivo de troca e intercâmbio constante condiciona o processo do conhecimento e, assim sendo, não pode ser medido por meio de técnicas operacionalizáveis quantitativamente (Costa, 2002). O tipo de estudo que empreendemos encaixa-se nesse caso, portanto, a nossa opção metodológica foi o estudo de caso exploratório-descritivo com abordagem qualitativa dos dados. Utilizamos a observação participante como técnica de coleta de dados e, para o registro dos dados, usamos o diário de campo. A opção por abordagem qualitativa na pesquisa respondeu à necessidade de se explicar a realidade humana, dentro de um universo que não pode ser apreendido por meio de dados operacionalizáveis, numa realidade quantificada e objetivada sem se levar em consideração os valores, significados, crenças, idealizações e outros que intermedeiam todo processo de construção do conhecimento (Minayo, 1992). Outro aspecto primordial, contemplado por nós e por envolver seres humanos, foi a postura ética com a qual pautamos todo o processo e, sobretudo, os atendimentos que constituíram o foco central do estudo. O projeto de pesquisa foi submetido e aprovado pela Comissão de Ética da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo, e aprovado pela Diretoria Clínica do Hospital Psiquiátrico que sediou a pesquisa, sendo submetido à equipe técnica da unidade de internação. Os usuários foram convidados a participar dos atendimentos e da pesquisa, e a apresentação da proposta era feita ao portador de transtornos mentais e família, em reunião da própria equipe, na qual eram informados sobre o objetivo dos atendimentos, sobre a total liberdade para participar ou não da pesquisa, sem nenhum prejuízo, e sobre a garantia de sigilo absoluto da identidade. A observação participante foi a técnica de coleta de dados que utilizamos, e foi desenvolvida durante os próprios atendimentos. A observação nos propiciou, por um lado, imergir no universo cultural e cotidiano do pesquisado e, por outro, apreender elementos da relação intersubjetiva estabelecida por meio dos atendimentos. Os dados coletados eram registrados em diário de campo, no qual eram historiados os acontecimentos, assim como as impressões subjetivas decorrentes do processo terapêutico. O encaminhamento desses pacientes para o acompanhamento terapêutico veio da equipe técnica da unidade e foram atendidos por nós no próprio hospital, durante o período de internação hospitalar, e nas altas licenças (internação domiciliar). Os atendimentos se deram: dentro dos espaços hospitalares, na residência do usuário, nas ruas e em espaços abertos ao público. A análise dos dados foi realizada com base no conteúdo registrado no diário de campo. Por meio de leituras atentas e sucessivas, delineamos alguns elementos que integraram o conjunto de informações que foram tratadas à luz dos objetivos específicos: a caracterização dos usuários atendidos, o conhecimento dos fatores de encaminhamento desses usuários para o AT, e identificação das dificuldades vivenciadas no processo. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Discussão dos dados e resultados Atendemos dez usuários no período de dezembro de 2004 a julho de 2005. Eram homens, por se tratar de unidade masculina, entre trinta e cinqüenta anos, portadores de transtornos mentais graves, e que vinham de processo longo de tratamentos na rede pública de saúde mental, marcados por biografia repleta de rupturas sociais e repetidas internações hospitalares, com breves estadias em serviços extrahospitalares e histórias de tratamentos fracassados. Seus relacionamentos interpessoais estavam fragmentados, casamentos interrompidos ou nunca iniciados. Essas pessoas mantinham-se desvinculadas de redes de relacionamento social, não namoravam, não tinham amizades ou qualquer ligação interpessoal espontânea. A mãe era a figura que se mantinha como elemento de sustentação, mas extenuada, em alguns casos. Os usuários atendidos por nós interromperam seus processos de escolaridade ou atividade profissional devido ao adoecimento mental e encontravam-se apartados de qualquer atividade produtiva. Embora, nas fichas de internação dos usuários atendidos, constassem os diagnósticos de esquizofrenia paranóide e transtorno afetivo bipolar (episódio depressivo), para o AT que realizamos, o que importava era o processo existencial marcado pelas experiências de sofrimento vivenciadas por essas pessoas. Os fatores que levaram essa equipe a encaminhar tais usuários para o AT foram: carência de vínculos sociais e exclusão dos espaços de trocas e intercâmbios; falta de apoio e não aderência ao tratamento extra-hospitalar; conflitos e rejeição familiar ao doente, e falta de orientação no manejo do paciente; alto índice de reinternações hospitalares; gravidade do quadro psicopatológico, e prevenção a processo de cronificação. As principais dificuldades percebidas durante o processo de pesquisa estão relacionadas às próprias dificuldades vividas pelo portador de transtornos mentais e que nos remetem às esferas das redes sociais, à família, às relações institucionais e à sociedade. No que diz respeito às redes sociais, evidenciamos, em todos os casos atendidos, desconexão com qualquer dimensão organizada de rede social, a começar na família, na qual o portador permanecia com papel marginal aos papéis cotidianos e ordinários da convivência familiar; e na comunidade, igualmente, esse paciente mantinha desconexão generalizada com qualquer grupo social organizado. Assim como o portador se apresentava excluído das esferas de intercâmbio social, tanto em relação aos sistemas de trocas sociais quanto das esferas de produção da vida. A nosso ver, isso se deve ao processo no qual fica submetido o portador, que é a cronificação do processo psicótico, ou seja, uma vida marcada pelo diagnóstico da incurabilidade, diagnóstico que, muitas vezes, adquire o valor de veredicto, ao levar para o distanciamento progressivo entre os atores sociais e o portador (Fiorati, 2006). Assim, observamos que, ao mesmo tempo em que ocorria processo de desistência da família em relação ao paciente, também se operava distanciamento dos técnicos de saúde frente às dificuldades inerentes a esses casos mais complexos - quadro que se insere no processo de cronicização dos serviços extra-hospitalares que, ao invés de se constituírem substitutivos ao modelo hospitalocêntrico, trazem, para seu modo de tratamento, aspectos e características de ações típicas do modelo manicomial, reproduzindo, dessa forma, o processo de exclusão do portador de transtornos mentais (Desviat, 1999). Para tanto, diante das dificuldades encontradas em relação aos projetos de reabilitação, fomos procurar alternativas de inclusão para esses usuários, além dos serviços de saúde, em organizações sociais na comunidade. O que, de um lado, se mostrou vantajoso no sentido de apontar alternativas sociais para essas pessoas, mas, por outro, flagra a omissão desses serviços no que diz respeito à integralidade das ações, princípio do Sistema Único de Saúde (SUS), não cumprido em tais instâncias (Campos, 1992). Caminhamos, nesse movimento, por organizações não-governamentais, associações culturais, órgãos governamentais de cultura e de treinamento profissional, e escola de segundo grau da rede pública de ensino. Nessas organizações, inserimos os usuários em curso de computação, jardinagem, desenho artístico, cabeleireiro, centro de convivência e escola. Entretanto, em alguns momentos, as impossibilidades sociais barravam desejos que se mostravam incompatíveis com a racionalidade de uma sociedade tecnificada. Como mostra o caso de um acompanhado que sonhava ser arquiteto, mas que, aos poucos, foi elaborando a idéia de se inscrever em curso de desenho artístico. 768

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Em relação à esfera familiar, propriamente dita, observamos a desistência da família frente ao seu membro que adoeceu mentalmente e, assim, se instaurava certa deterioração nas relações familiares. As famílias relatavam que acontecia sobrecarga nos cuidados e desalento em face das dificuldades, e que isso se devia ao processo de desassistência a que se viam submetidos, quando os serviços só apresentavam o recurso dos retornos médicos, mas não auxiliavam no manejo do paciente para aderir adequadamente ao tratamento. Da mesma forma, observamos processo de culpabilização das famílias, imputado pelos técnicos de saúde, como responsáveis pelo adoecimento e pelos insucessos no tratamento (Melman, 2001). Este, por sua vez, tem como raiz o próprio processo de formação da família moderna brasileira, dentro da constituição do Estado capitalista no Brasil. Isto é, um certo poder médico, em conexão com os objetivos políticos desse Estado, impõe às famílias norma familiar para a construção de condutas dóceis necessárias à constituição de um modo de sociabilidade exigido pela nova ordem política (Costa, 1983). E isso se observa até hoje, na medida em que vemos orientações técnico-científicas sendo impostas às famílias sem, contudo, se levar em consideração qualquer dimensão política e antropológica, nas quais essas famílias se inserem. Para nossa prática, o acompanhamento terapêutico mostrou ser recurso valioso, pois, além de nos proporcionar entrar em contato diretamente com essas famílias, por meio dos atendimentos domiciliares, possibilitou acolher o sofrimento desses familiares e, igualmente, a elaboração de novos arranjos no cuidado ao portador, e, assim, minimizar as atitudes de desistência. No que diz respeito às relações institucionais, em todos os serviços de saúde mental, deparamo-nos com muitos aspectos manicomiais incrustados nas formas de tratamento e atenção ao portador. Na unidade de internação hospitalar, embora saibamos que o projeto terapêutico dessa unidade alinha-se com os objetivos da reforma psiquiátrica e com um modo de atenção psicossocial, vimos que essas prerrogativas não eram aplicadas de forma consensual e uniforme pelo conjunto dos trabalhadores. De acordo com nossa observação, evidenciamos ações de alguns trabalhadores no sentido de preterir os cuidados individuais ao paciente em face de algumas normas de funcionamento da unidade, ou seja, vimos as regras burocráticas de funcionamento da instituição se sobreporem às necessidades individuais do portador. Nesse mesmo sentido, deparamo-nos com práticas autoritárias e/ou infantilizadoras do paciente, ações que ameaçavam e acusavam em detrimento de manejo terapêutico, contenções físicas e químicas recorrentes e o não uso das próprias vestimentas, com apenas uma troca diária. Diante desses entraves institucionais observados, a prática do AT mostrou-se igualmente relevante, pois, ao apresentarmos projetos terapêuticos individuais, contribuímos com discussões em várias instâncias, por meio da nossa participação nas reuniões de equipe, com base nas quais revimos muitos desses aspectos manicomiais, e a equipe pôde reformular essas ações em várias oportunidades. Além disso, a própria intervenção inerente ao AT, ao individualizar o cuidado, levou em conta a decisão do paciente sobre o tratamento proposto e a inclusão da dimensão do desejo do usuário em todo o processo. Deparamo-nos, entretanto, com esses mesmos aspectos manicomiais nos serviços extra-hospitalares de saúde mental. Nesses locais, evidenciamos a culpabilização das famílias e portadores frente às dificuldades instauradas, a desistência e a desresponsabilização dos técnicos de saúde em face das complexidades apresentadas pelos casos mais difíceis. Além disso, observamos: vínculos codificados; procedimentos cristalizados e ritualizados em relação aos cuidados aos pacientes; as certezas técnicocientíficas inabaláveis em territorialização de saberes e excesso de identidades profissionais; concentração de poder na ação médica em um serviço ainda organizado sob modelo, prioritariamente, médico-psiquiátrico, e a ausência de projetos terapêuticos individuais. O processo de desistência dos técnicos de saúde frente às dificuldades, a nosso ver, tem duas funções: o encobrimento da desresponsabilização dos técnicos frente à construção de novas formas de atenção e à impotência terapêutica diante da falência do ideal curativista de um modelo centrado na enfermidade, e não no sujeito e seu sofrimento. Essas crenças, no entanto, valores que estão na base desses entraves burocrático-institucionais, não acontecem no vazio, mas encontram terreno fértil, no qual se reproduzem na própria sociedade, uma sociedade capitalista e globalizada, criadora de valores sobre a posse e compra de bens, e em que tudo 769


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pode se tornar mercadoria, até mesmo os valores (Costa, 2004). Dessa forma, o portador de transtornos mentais é excluído das várias esferas do social, pois não produz, nem movimenta bens e mercadorias (a não ser medicamentos e tratamentos), portanto, esse sujeito se vê geralmente destituído de valor e de contratualidade social como cidadão. Ao mesmo tempo, vemos esse portador destituído de um cotidiano devido aos aspectos insólitos de suas condutas, pois suas mensagens e afetos são incompreensíveis perante os códigos culturais dessa sociedade e relegados ao mundo da desrazão. Contudo, o acompanhamento terapêutico mostrou ser estratégia muito importante para o programa dessa unidade de internação hospitalar, pois, além de implementar prática mais humanizada e singularizada, a todo momento direcionou as ações no sentido da inclusão social do portador de transtornos mentais, assim como propiciou, efetivamente, maior comunicação com a rede de saúde mental do município e da região, pois, em alguns serviços extra-hospitalares, conseguimos a adesão de alguns usuários atendidos, facilitando sua permanência na comunidade e evitando reinternações hospitalares. Além disso, por ser atendimento que muitas vezes explorou o ambiente domiciliar do paciente, o AT possibilitou o acolhimento do sofrimento dos familiares e, conjuntamente com as famílias, apontou para novos arranjos no cuidado ao portador, minimizando as atitudes de desistência. Diretamente com o portador, o AT abriu potenciais de construção de novas formas de subjetivação e elaboração do sofrimento, assim como provocou sua inserção em redes sociais e em atividades culturais ou profissionalizantes em organizações sociais da comunidade. Da mesma forma, essa prática propiciou terreno fértil para maior democratização nas relações institucionais e dispositivo importante na prevenção ao processo de cronificação. A realização do AT com esses usuários, apesar das dificuldades apontadas, possibilitou elaborar proposta de implementação do AT para integrar o programa terapêutico da unidade de internação para crise aguda dos transtornos mentais, que sediou a pesquisa, cujas finalidades foram: auxiliar os usuários que apresentem alguma dificuldade na obtenção da alta hospitalar; oferecer dispositivo de prevenção aos processos de cronificação; mobilizar a ação para evitar outras internações hospitalares; facilitar a permanência do portador na comunidade, e favorecer o tratamento extra-hospitalar. Os usuários que apresentam a demanda do AT são encaminhados pela equipe técnica da unidade de internação, nas seguintes situações: usuários que apresentem problemas no relacionamento familiar e obstáculos em seu retorno sociofamiliar; que estejam em estado de abandono social e/ou isolamento social importante e necessitem de apoio para se integrarem em rede social; que apresentem quadro psicopatológico grave e persistente; que apresentem alto número de reinternações hospitalares, e aqueles que apresentem necessidade de se vincular em serviço extra-hospitalar de saúde mental, ou organização social na comunidade. Além disso, o enquadre no qual se dá essa atividade terapêutica fica submetido ao projeto terapêutico individual, discutido e elaborado caso a caso, conjuntamente com a equipe terapêutica da unidade e os usuários encaminhados. E, ainda, essa atividade deverá ser aberta para campo de estágio para profissionais e estudantes de cursos superiores da área de saúde, ressaltando a interdisciplinaridade que marca o AT em suas especificidades e propriedades teóricas e práticas. Assim sendo, em nossa opinião, toda ação de saúde e de saúde mental, ou todo projeto de reabilitação, tem de incluir, sobretudo, a construção de um cotidiano, com o indivíduo em sofrimento, no qual o insólito das existências singulares e das expressões idiossincráticas dos indivíduos psicóticos possa encontrar valor, inserção e legitimidade.

Considerações finais O processo de pesquisa abriu-nos um campo de possibilidades no que diz respeito aos benefícios propiciados pela aplicação do acompanhamento terapêutico com os usuários atendidos nesse estudo. Isto é, essa prática mostrou-se rica em recursos que podem ser desenvolvidos pelos projetos de reabilitação, mas também em ações pontuais, para as quais está colocada uma série de dificuldades que marcam os casos mais complexos. Na década de 1990, nos primeiros encontros e reuniões de acompanhantes terapêuticos, muito se discutiu sobre a possibilidade da implementação do AT na rede pública de saúde. Alguns profissionais 770

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Informação verbal na mesa-redonda “AT, reabilitação psicossocial, interdisciplinaridade”, durante o I Congresso Internacional de acompanhamento terapêutico: singularidade, multiplicidade e ações cidadãs (Pitiá, 2006). 4

artigos

que exerciam essa função terapêutica argumentavam que a clientela atendida nos serviços públicos de saúde mental, com outros referenciais de compreensão das esferas de público e privado, não pertencia ao mesmo universo simbólico das produções técnico-científicas dos terapeutas e suas alternativas. Atualmente, temos exemplos de serviços públicos de saúde que já incluem a prática do AT em seus projetos terapêuticos, tais como: o AT desenvolvido com crianças com problemas com a lei, dentro de um programa da prefeitura de São Paulo4; no Rio Grande do Sul, um projeto elaborado por equipe do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em parceria com a Prefeitura de Porto Alegre, ofereceu o acompanhamento terapêutico em serviços extra-hospitalares da rede pública de saúde mental, entre outros (Palombini, 1998). No nosso caso, o AT comprovou ser recurso útil e valioso desenvolvido junto ao programa terapêutico dessa unidade de internação para crise aguda do transtorno mental, que integra a rede pública de atendimento à saúde mental. Mas, sobretudo, no que diz respeito às ações norteadoras de nossas intervenções, essas sempre se pautaram pela preocupação e pelo foco no trabalho de resgate e recuperação, no sujeito, da capacidade de produção material e simbólica da vida, de um viver criativo, por meio do qual esses usuários pudessem inscrever sua marca pessoal na cultura, por intermédio de ação constante de recriação da vida no mundo e na realidade compartilhada. Colaboradores A autora Regina Célia Fiorati participou de todas as etapas de elaboração do artigo. O autor Toyoko Saeki participou da elaboração do artigo, de sua discussão e da revisão do texto. Toyoko Saeki participou da revisão bibliográfica, de discussões e revisão do texto. Referências AMARANTE, P. (Org.). Loucos pela vida: a trajetória da reforma psiquiátrica no Brasil. Rio de Janeiro: SDE/ENSP, 1995. BARRETTO, K.D. Ética e técnica no acompanhamento terapêutico: andanças com D. Quixote e Sancho Pança. 1.ed. São Paulo: Unimarco, 1998. CAMPOS, G.W.S. Reforma da reforma: repensando a saúde. São Paulo: Hucitec, 1992. CARVALHO, S.S. Acompanhamento terapêutico: que clínica é essa? São Paulo: Annablume, 2004. COSTA, J.F. O vestígio e a aura: corpo e consumismo na moral do espetáculo. Rio de Janeiro: Garamond, 2004. ______. Ordem médica e norma familiar. 3.ed. Rio de Janeiro: Graal, 1983. COSTA, M.C.S. Intersubjetividade e historicidade: contribuições da moderna hermenêutica à pesquisa etnográfica. Rev. Latino-Am. Enferm., v.10, n.3, p.372-82, 2002. COSTA-ROSA, A.O. Modo psicossocial: um paradigma das práticas substitutivas ao modo asilar. In: AMARANTE, P. (Org.). Ensaios, subjetividade, saúde mental, sociedade. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2000. cap. 8. p.141-68. DESVIAT, M. A reforma psiquiátrica. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1999.

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FIORATI, R.C. Acompanhamento terapêutico: uma estratégia terapêutica em uma unidade de internação psiquiátrica. 2006. Dissertação (Mestrado) - Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto. 2006. MARINHO, D. Das teias familiares à encarnação da águia. In: SANTOS, R.G. (Org.). Textos, texturas e tessituras no acompanhamento terapêutico. São Paulo: Hucitec, 2006. p.133-41. MELMAN, J. Família e doença mental: repensando a relação entre profissionais de saúde e familiares. São Paulo: Escrituras, 2001. MINAYO, M.C.S. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo: Hucitec, 1992. PALOMBINI, A. Psicopatologia na vida cotidiana. In: GRUPO DE ACOMPANHAMENTO TERAPÊUTICO CIRCULAÇÃO (Org.). Cadernos de AT: uma clínica itinerante. Porto Alegre: Instituto de Psicologia, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1998. p.45-52. PITIÁ, A.C.A. AT, reabilitação psicossocial, interdisciplinaridade. In: CONGRESSO INTERNACIONAL DE ACOMPANHAMENTO TERAPÊUTICO: SINGULARIDADE, MULTIPLICIDADE E AÇÕES CIDADÃS, 1., 2006, São Paulo. Mesa-redonda... São Paulo: Associação de Acompanhamento Terapêutico, Brasil (AAT)/Asociación de Acompañantes Terapêuticos de la Republica Argentina (AATRA)/Sociedad Peruana de Acompañamiento Terapéutico (SPAT)/Asociación Española de AT (CALLE), 2006. PORTO, M.; SERENO, D. Sobre o acompanhamento terapêutico. In: EQUIPE DE ACOMPANHANTES TERAPÊUTICOS DO HOSPITAL-DIA A CASA (Org.). A rua como espaço clínico: acompanhamento terapêutico. São Paulo: Escuta, 1991. p.23-30. SARACENO, B. Libertando identidades. Belo Horizonte/Rio de Janeiro: Te Corá/ Instituto Baságlia, 1999.

FIORATI, R.C.; SAEKI, T. Acompañamiento terapéutico en la internación hospitalaria: inclusión social, rescate de ciudadanía y respeto a la singularidad. Interface Comunic., Saúde, Educ., v.12, n.27, p.763-72, out./dez. 2008. Esta investigación se realizó en una unidad psiquiátrica de crisis, con objeto de elaborar propuesta de implemento de acompañamiento terapéutico (AT), para componer el programa terapéutico de esta unidad. Se ha trabajado con la concepción de acompañamiento terapéutico como recurso importante para integrar proyectos de rehabilitación psicosocial con las siguientes finalidades: vincular al usuario en servicio extra-hospitalario, evitar las internaciones repetidas en el hospital y en la red social. La investigación constituye un estudio de caso exploratorio-descriptivo con datos aproximados de calidad. Como técnica de colecta y registro de los datos se ha utilizado la observación participante y el diario de campo. Las dificultades afrontadas se relacionan con la familia, redes sociales e institucionales. Los resultados incluyen: acogida del sufrimiento del portador y de la familia, inclusión de los usuarios en redes sociales, servicios extra-hospitalarios y organizaciones comunitarias.

Palabras clave: Salud mental. Servicios de salud mental. Acompañamiento terapéutico. Rehabilitación. Inclusión social. Recebido em 30/08/07. Aprovado em 21/07/08.

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artigos

Código dos direitos e deveres da pessoa hospitalizada no SUS: o cotidiano hospitalar na roda de conversa

Annatália Meneses de Amorim Gomes1 José Jackson Coelho Sampaio2 Maria das Graças Barreto de Carvalho3 Marilyn Kay Nations4 Maria Socorro Costa Feitosa Alves5

GOMES, A.M.A. et al. Code of rights and obligations of hospitalized patients within the Brazilian National Health System (SUS): the daily hospital routine under discussion. Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.12, n.27, p.773-82, out./dez. 2008. Patients’ rights constitute a mechanism for changing the care and management within the Brazilian National Health System (SUS). The aim of this study was to present round-table discussions about the rights and obligations of SUS patients within the hospital environment. This was a descriptive, exploratory study, conducted at two hospitals in Fortaleza, Ceará. Three round-table discussions were held at each institution, involving 40 staff members from various professions and sectors. The debate was on the text of the Code of Rights and Obligations of SUS Patients in Ceará. The discourse was analyzed in accordance with the content analysis method of Lawrence Bardin. It was perceived that the consolidated rules made it difficult to put the rights into practice, and the roundtable discussion broadened this critical view through its insight. This was shown to be an important educational instrument for citizens’ rights and for humanization of the healthcare process.

Key words: Patients’ rights. Humanization of assistance. Health education.

Os direitos dos pacientes consistem em dispositivo para mudar a atenção e a gestão no Sistema Único de Saúde - SUS. O objetivo deste trabalho é apresentar as rodas de conversa sobre os direitos e deveres dos usuários do SUS no âmbito das unidades hospitalares. Trata-se de um estudo descritivo e exploratório, realizado em dois hospitais de Fortaleza, Ceará. Foram promovidas, em cada serviço, três rodas de conversa com 40 trabalhadores de várias profissões e setores. Utilizou-se para o debate o texto do Código de Direitos e Deveres do Paciente no SUS/ CE. Os discursos foram analisados segundo a Análise de Conteúdo, consoante Lawrence Bardin. Percebeu-se que normas consolidadas dificultam a efetivação dos direitos, e a roda de conversa ampliou a visão crítica, promovendo discernimento. Esta se revelou importante instrumento de educação para a cidadania e humanização do processo de cuidado.

Palavras-chave: Direitos do paciente. Humanização da assistência. Educação em saúde.

COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

Psicóloga. Doutoranda, Programa de PósGraduação em Ciências da Saúde, Centro de Ciências da Saúde, Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Rua Barbosa de Freitas, 1505, apto. 801, Meireles, Fortaleza, CE 60.170.020 annataliagomes@ secrel.com.br 2 Médico. Professor, Mestrado Acadêmico em Saúde Pública, Universidade Estadual do Ceará. 3 Assistente social. Coordenadoria de Gestão do Trabalho e Educação na Saúde, Secretaria de Saúde do Estado do Ceará. 4 Antropóloga. Professora, Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, Universidade de Fortaleza (UNIFOR). 5 Cirurgiã-dentista. Professora, Programa de Pós-Graduação em Ciências da Saúde, UFRN. 1

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CÓDIGO DOS DIREITOS E DEVERES DA PESSOA...

Introdução A consolidação dos princípios doutrinários do Sistema Único de Saúde (SUS), definidos na Constituição Federativa de 1988 - universalidade, integralidade, eqüidade e participação social enfrenta desafios na prática de saúde. As características de iniqüidade e desigualdades sociais profundamente enraizadas na cultura brasileira (Brasil, 2006a), o paradigma do cuidado focado no corpo biológico (Luz, 2004; Capra, 1996) e as características do modelo da gestão do trabalho e dos serviços burocrático, autoritário, tecnoassistencial e desorganizado como rede de atendimento (Brasil, 2007) provocam crônica insatisfação em trabalhadores e usuários, freqüentemente exacerbada, e submete a risco sua legitimidade política e social (Feuerwerker, 2005). Sabe-se que, embora tenhamos as garantias constitucionais e a consagração dos direitos humanos e universais, há grande distância entre a lei escrita e o cotidiano dos serviços de saúde (Gomes, Fraga, 2001). Em estudo realizado sobre a percepção do cliente hospitalizado acerca de seus direitos e deveres, foi observado o seu desconhecimento, trazendo o medo de exteriorizar sentimentos por temor de represália do profissional. Ressalta, ainda, a importância de estratégias junto aos profissionais que recobrem a cidadania e o respeito aos direitos (Veloso, Spindola, 2005). Os direitos dos pacientes não são encontrados em código legal único (Timi, 2005), mas diversos documentos asseguram a dignidade ao ser humano no atendimento em saúde: Constituição Federal do Brasil, Código Civil Brasileiro, Código Penal Brasileiro, Código de Defesa do Consumidor, Estatuto da Criança e do Adolescente, Estatuto do Idoso, Lei dos Planos de Saúde e normas da Agência Nacional de Saúde Suplementar, códigos de ética das profissões, resoluções do Conselho Federal de Medicina, declarações internacionais de princípios, normas de pesquisa com seres humanos, normas do Ministério da Saúde, legislação esparsa e jurisprudência. O Ministério da Saúde publicou, em 1999, uma carta de direitos dos usuários, e, após sete anos, a Carta dos Direitos dos Usuários da Saúde (Brasil, 2006b). É condição importante para o pleno exercício da cidadania que os pacientes tomem consciência de seus direitos e deveres, atuando de maneira a questionar a sua exeqüibilidade (Gauderer, 1998). À medida que há apropriação destes direitos, equilibrados com a apropriação de deveres, pelo paciente e família, torna-se possível maior controle social e a participação coletiva nas ações de atenção e nos processos da gestão. Esses valores de autonomia e co-responsabilidade integram a proposta de humanização na saúde, do Ministério da Saúde, entendida como a valorização dos diferentes sujeitos implicados na produção da saúde: usuários, trabalhadores e gestores (Brasil, 2006c) e o protagonismo nas decisões (Campos, 2005). No intuito de fazer avançar a participação política e a visão crítica dos pacientes, visando à autonomia e ao direito do cidadão, a Carta dos Direitos dos Usuários da Saúde é um dos dispositivos da Política Nacional de Humanização da Atenção e da Gestão em Saúde (PNH) do Ministério da Saúde. Entende-se ser necessário garantir um atendimento humanizado, acolhedor e resolutivo para todos os usuários do SUS (Barros, Passos, 2005). Apesar dos avanços, como os direitos reconhecidos na Constituição Federal e a regulação do SUS, o fortalecimento das instâncias de defesa dos direitos do consumidor, estes não foram suficientes para assegurar a legitimação do direito à saúde de todos os cidadãos usuários. À medida que dependem, em parte, da ação administrativa e política do Estado, que nem sempre afiança medidas de proteção a esses direitos, a sociedade é conduzida a criar espaços democráticos para a conquista do direito à saúde, sobretudo em sociedades autoritárias e desiguais como a brasileira (Chauí, 2006). A educação mostra-se como uma possibilidade de acesso à informação e consciência política em direção a uma mudança nas práticas de saúde que ferem a dignidade humana. O Estado do Ceará, integrando o movimento nacional pela humanização, lançou, em 2003, a Política Estadual de Humanização da Atenção e da Gestão em Saúde do Ceará (PEH/CE) (Ceará, 2005a) e o Código dos Direitos do Paciente: carta dos direitos e deveres da pessoa hospitalizada no SUS/CE (Ceará, 2005b), inspirada nas concepções de Jaime e Carla Pinsky, na Introdução à magnífica História da Cidadania, por eles organizada:

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GOMES, A.M.A. et al.

artigos

Ser cidadão é ter direito à vida, à liberdade, à propriedade, à igualdade perante a lei: é, em resumo, ter direitos civis. É também participar no destino da sociedade, votar, ser votado, ter direitos políticos. Os direitos civis e políticos não asseguram a democracia sem os direitos sociais, aqueles que garantem a participação do indivíduo na riqueza coletiva: à educação, ao trabalho, ao salário justo, à saúde, a uma velhice tranqüila. Exercer a cidadania é ter direitos civis, políticos e sociais. (Pinsky, Pinsky, 2003, p.8)

O texto do Código destaca o termo “pessoa”, assim evitando o contencioso teórico entre paciente, cliente e usuário, bem como a inserção de ideologia de gênero. O presente escrito opta pelo vocábulo “paciente”, pela sua emergência nas rotinas dos serviços e na naturalização das falas. Deste modo, é relevante a criação de formas de propagação das políticas de humanização e, sobretudo, o fortalecimento dos coletivos na discussão dos direitos de cidadania aplicados às realidades cotidianas. A Carta dos Direitos e Deveres encerra uma história a ser contada. O governador Lúcio Alcântara, quando Secretário de Saúde, em 1992, teve uma idéia parecida. Chegou a publicar, no Diário Oficial (Ceará, 1992), uma resolução estabelecendo critérios e definindo direitos e deveres. Quando assumiu o Governo, em 2003, ele pediu ao Secretário, motivado pela política de humanização em saúde, para retomar o escrito. A análise do texto permitiu entender que ele apresentava um conteúdo muito bom, mas misturava direitos, deveres, princípios, justificativas, diretrizes, de modo tecnicamente inadequado. Os princípios, as diretrizes e a justificativa integraram o texto da Política Estadual de Humanização da Atenção e da Gestão em Saúde do Ceará, e a redação da Carta concentrou, de modo objetivo, os direitos e os deveres. Em seguida, foi agregada a consulta a outros documentos: a Declaração de Lisboa (Assembléia Geral da Associação Médica Mundial, 1981), revista em Bali, em 1995 o capítulo sobre saúde da Constituição Brasileira (Brasil, 1988); o Documento-Base do Programa Nacional de Humanização da Assistência Hospitalar (PNHAH) (Brasil, 2002); um Manual da Ordem dos Advogados do Brasil, Secção Ceará (Ordem dos Advogados do Brasil, 2000); alguns livros e outros textos para fundamentação (Gomes et al., 2000; Sampaio, 2000). Sabe-se, porém, que a iniciativa e a aprovação dos governantes oferecem um salvo-conduto, um facilitador das ações, mas não adianta esta vontade, se a base que executa o trabalho - que está no front das guerrilhas do cotidiano, que se encontram na relação direta com os clientes - não se envolver com o projeto, não mudar de atitudes, não acreditar (Ceará, 2006). Uma vanguarda, em certo momento histórico, pode conseguir a aprovação de uma lei, mas também cair no vazio, porque a maioria dos trabalhadores, exatamente os operadores dos cuidados, não se sente motivada ou sequer compreende a lei. Então, além do ineditismo, no Estado do Ceará, do lançamento do documento Direitos do Paciente: Carta dos Direitos e Deveres da Pessoa Hospitalizada no SUS (Ceará, 2005b), é necessário destacar o ineditismo da aplicação do método da roda de conversa à discussão desses direitos e deveres, com a finalidade de incluí-los na consciência e no quotidiano dos trabalhadores. Nesta perspectiva, o objetivo deste trabalho é apresentar as rodas de conversa sobre os direitos e deveres dos usuários do SUS no âmbito das unidades hospitalares.

Metodologia Esta pesquisa, descritiva e exploratória, baseou-se nos princípios do Programa de Formação em Saúde e Trabalho (PFST) da PNH, que articula formação e pesquisa-intervenção em rede, visando ao diálogo-confrontação entre conhecimento científico e experiências dos trabalhadores: nucleação de trabalhadores, fazendo circular conceitos que permitem apreender a complexidade dos direitos; produção de saberes e problematização dos modos da gestão em curso para alterar as práticas de desrespeito dos direitos; estímulo aos projetos e planos coletivos em defesa da dignidade humana; fortalecimento dos trabalhos intersetoriais e multiprofissionais que possam compreender/transformar a realidade das práticas cotidianas, ampliando a capacidade normativa dos trabalhadores (Barros, Mori, Bastos, 2006).

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Levando-se em conta suas características de fomentar a inclusão, a participação, o espaço democrático de aprendizagem e a informalidade, escolhemos a roda de conversa como estratégia pedagógica para trilhar o caminho metodológico, com vistas a disseminar o Código com trabalhadores, que se tornariam, posteriormente, multiplicadores de outras rodas, em se sentindo totalmente à vontade, no ambiente hospitalar. Isto porque a discussão exige cada um vendo o outro, para congregar e incorporar modos dinâmicos e críticos de reflexão sobre as próprias práticas. A implementação das rodas foi realizada no período de abril a junho de 2005, em dois hospitais, um público e outro contratado, localizados em Fortaleza, Ceará. Foram promovidas, portanto, três rodas de conversa, nos dois hospitais, interdisciplinar e intersetorial, compreendendo 40 trabalhadores, com a seguinte composição: médicos, assistentes sociais, enfermeiros, auxiliares administrativos, técnicos de Enfermagem, farmacêuticos, engenheiros, operadores de serviços gerais, fisioterapeutas, psicólogos, nutricionistas e administradores. Alguns destes profissionais exerciam funções de chefia, diretoria, ouvidoria ou eram membros de Grupo de Trabalho de Humanização (GTH). A roda de um dos hospitais contou, ainda, com a presença de representante do movimento social dos portadores de síndrome de imunodeficiência adquirida. Priorizou-se a participação dos profissionais pela necessidade de refletir com eles novas atitudes e possibilidades para disseminação dos direitos do paciente nos hospitais. Os usuários dos serviços seriam incluídos nas rodas subseqüentes, facilitadas pelos multiplicadores formados. Assim, procurou-se praticar a Carta dos Direitos no dia-a-dia dos hospitais. Qual é a consciência que os trabalhadores de saúde têm sobre os direitos dos hospitalizados? Quais as atitudes que os trabalhadores precisam mudar, neles próprios, para a garantia prática destes direitos? Quais as condições que os gestores de saúde necessitam programar para a garantia prática destes direitos? Estas foram as perguntas lançadas à roda dos trabalhadores, em todo o círculo da discussão. Quem conduz o processo é visto como facilitador, participante de um diálogo, que parte da vivência e dos saberes de cada um, promovendo a problematização, em busca de informação para a reflexão e o discernimento informado para a ação. Os atos de ensinar e aprender são uma unidade inseparável (Freire, 2004), possibilitando mão dupla e o compartilhamento de saberes e práticas. Dos três círculos realizados, registrou-se uma duração de 150 minutos. As participações foram gravadas, com o consentimento dos grupos, para transcrição. O material dessas transcrições foi sistematizado em documento da Secretaria da Saúde do Estado do Ceará (SESA/CE) (Ceará, 2006) e fundamenta o presente artigo. As transcrições organizadas tiveram seus resultados ordenados segundo a técnica de Análise de Conteúdo (Bardin, 2002). Foram seguidos os princípios da Resolução 196/96, do Conselho Nacional de Saúde, que dispõe sobre pesquisas com seres humanos (Brasil, 2001). O projeto foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Estadual do Ceará, sob o protocolo nº 04185929-4.

Desenvolvimento da experiência A política estadual de humanização e os direitos do paciente Em 2000, foi instituído o PNHAH, focado nos hospitais e na criação dos GTH. Esse processo durou três anos e evoluiu por etapas, com o Ceará realizando um estudo-piloto no Hospital Geral Dr. César Cals (HGCC) e, em seguida, a primeira fase, envolvendo seis hospitais. A segunda etapa, prevista para o final de 2002, com trinta hospitais, foi truncada pelo processo político-eleitoral, para a Presidência da República e para o Governo do Estado. No início do primeiro governo Lula, o Ministério da Saúde submeteu o PNHAH a uma grande revisão e criou a Política Nacional de Humanização na Atenção e Gestão em Saúde (PNH). O foco em hospital evoluiu para a rede de cuidados; o fulcro na assistência derivou para a atenção integrada com a gestão, e a lógica vertical de programa cresceu para a lógica transversal de política. O desafio ampliou-se: emergência, Unidade de Tratamento Intensivo (UTI), saúde da família, saúde indígena, saúde do trabalhador, saúde mental. Não era possível abandonar o hospital, e muitas técnicas do PNHAH, como o GTH e as cartas de direito, tiveram seguimento. Grande tarefa foi envolver os municípios das capitais e das macrorregiões de saúde, no esforço geral de humanização em saúde, sobretudo na atenção

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primária. A Secretaria de Saúde do Estado do Ceará decidiu que o debate da Carta de Direitos e a implantação dos GTH fariam avançar o trabalho da humanização em saúde nos hospitais. Os GTH do Hospital Geral Waldemar de Alcântara (HGWA) e do Hospital São José (HSJ) candidataram-se a avançar na discussão da Carta de Direitos. O consultor da PNH para os Estados do Ceará, Piauí e Maranhão e a coordenadora da Comissão Estadual de Humanização da Atenção e da Gestão em Saúde do Ceará responsabilizaram-se pela mediação das rodas, de forma que a experiência e os conhecimentos ficassem com os trabalhadores, para fins de multiplicação. A roda de conversa como estratégia pedagógica A roda de conversa é uma estratégia educativa e comunicativa cuja finalidade é a satisfação das necessidades básicas de aprendizagem, compreensão e empowerment. Esta técnica, no presente ensaio, baseou-se na proposição desenvolvida nos trabalhos de Simonetti, Adrião e Cavasin (2007, p.247), para quem “é um espaço destinado ao diálogo, comunicação e troca de informações [...] as pessoas têm a oportunidade de adquirir capacidade de discernimento, de modo que provoque a mudança de comportamento e uma maior autonomia”. A meta principal é permitir a livre expressão de dúvidas, vivências e acontecimentos de vida. A proposta fundamentou-se ainda no Método da Roda, desenvolvido por Campos (2000, p.68), em cuja idéia se “pensa a constituição do Sujeito e dos Coletivos em função de Planos situados entre o seu mundo interno e as suas circunstâncias – mundo externo”, e no pensamento de Freire (2004, p.23), ao incutir a noção de que “quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender”. No contexto do estudo, aplicou-se a formulação intelectiva e afetiva dos direitos e deveres do paciente hospitalar, pelos membros da comunidade de trabalhadores do hospital, mediante uma participação ativa e efetiva. Na qualidade de estratégia pedagógica, foi capaz de promover a reflexão, o compartilhar de experiências vividas e questões práticas (Simonetti, Adrião, Cavasin, 2007). A lógica baseada no respeito aos conhecimentos e experiências dos participantes centrou-se na valorização do sujeito e da conversação, proporcionando troca de idéias entre os trabalhadores, para que todos se apoderassem das razões e das teorias por trás de cada direito ou dever. A estratégia tinha suporte no reconhecimento de valores e aprendizagens anteriores, que serviram de base para a constituição de novas aprendizagens e para a tomada de decisões no sentido de adequar a realidade existente aos direitos da pessoa hospitalizada. A discussão do Código baseou-se na noção de que cada artigo remete a uma teoria. Refletiu-se sobre o que é Direito, qual é a natureza deste Direito e os diferentes ramos do Direito. Depois disso, buscava-se a compreensão do que existe em torno do Direito, como é que ele causa impacto no serviço e, por último, problematizavam-se a atitude do trabalhador e a condição que o hospital deveria oferecer para torná-lo realidade. Cada artigo do Código remetia para seis ordens temáticas: uma técnica, jurídica, psicológica e antropológica; outra relacional, sobre as interfaces dos artigos e de um direito com outro; e, por último, uma política, destacando os efeitos na prática do trabalhador. Algumas dessas problemáticas têm raízes nas condições de trabalho e de vida, outras nas atitudes, que são responsabilidades que o trabalhador precisa desenvolver. Não basta a informação para mudar o modo de agir. Atitude é algo mais delicado de se transformar. O código é composto de 35 direitos e dez deveres, sendo destacadas as discussões dos artigos cinco e 13 como exemplos neste ensaio.

Resultados analíticos: a voz dos trabalhadores As normas do serviço de saúde e protocolos repetitivos ao longo dos anos, sem função justificável no presente, foram questionadas pelos trabalhadores. A possibilidade de reinvenção dessas normas, tornando o trabalho inventivo, foi discutida. Foucault (1999) assinala que só há poder com resistência, pois, ela, em primeiro lugar, subverte, faz reviravolta e escapa aos controles, possibilitando novas formas de vida e trabalho. Essa perspectiva dos trabalhadores de trazer à baila o que se torna rotina, permitiu repensar possibilidades de mudanças concretas, destinadas à garantia dos direitos do paciente com suporte nos principais aspectos trazidos ao debate interdisciplinar.

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Segundo Campos (2000), é necessário considerar a tensão dialética entre controle externo e autonomia dos sujeitos, pois o ser humano é imerso na história e na sociedade, mas nem por isso desprovido de uma subjetividade e de capacidades para se posicionar ante os desafios de sua conjuntura. Um exemplo de texto formulado coletivamente é destacado no artigo cinco, que trata do direito do paciente ser identificado pelo nome e sobrenome. Uma trabalhadora abre o debate: Essa é uma questão clara para mim, mas não sei explicar. Eu vejo, na Pediatria, as pessoas chamarem todas as mães mãezinha pra lá, mãezinha pra cá. Isso pra mim torna-se tão pejorativo, não soa bem. Não sei o porquê, mas me incomoda profundamente. O diminutivo é até afetuoso, em muitas ocasiões, mas aqui parece infantilizador. (Trabalhadora do hospital)

Em seguida, os facilitadores comentaram: “mãezinha” é uma forma genérica, refere-se a uma categoria abstrata. Tem a maternidade precoce de quem pariu aos 12 anos; a maternidade tardia de quem pariu aos 45 anos; quem engravidou dentro de uma relação estável, amorosa; e quem está sozinha, por escolha ou por abandono; quem está saudável e quem tem doença associada, quem é pobre e quem é rica. Além do mais, tem a singularidade de cada sujeito. Parece, no entanto, ser mais fácil chamar “mãezinha” do que perguntar e aprender o nome, criar um vínculo. Também é preciso incluir o pai acompanhante. Outros dois profissionais expõem seu dilema e a necessidade de modificar a atitude: É verdade. Tem homem ficando na enfermaria. Vai fazer o que? Vai chamar o pai de “mãezinha”? Não é mãe, nem pai, nem irmão, nem irmã, nem tia. São pessoas que têm nomes. A presença do acompanhante e do homem nos obriga a mudar muita coisa dos nossos comportamentos. (Trabalhador do hospital) O paciente também é chamado de “bebê”: “Vem cá, meu bebê!”. Ou então, grosseiramente, “Ei, você aí”. Às vezes tem apelido que a pessoa gosta, olha o Pelé, olha o Lula, mas outros a pessoa detesta. Não pode ficar chamando aquele “viadinho” ou “neguinho” ou “lôra”. Nada disso deve ser usado. Estes tratamentos podem até criar vínculo, mas negativo, preconceituoso, desrespeitoso. Tem gente que acha que a maneira de ser gentil é incluir na própria família e passa a chamar todo mundo de “tio”, de “tia”. (Trabalhador do hospital)

Centrados nas discussões, os facilitadores retomaram o diálogo com uma nova explanação: o que precisamos fazer é perguntar para a pessoa o nome dela e como é que ela gosta de ser chamada. O relacionamento deve obedecer, então, à referência que é dada pela própria pessoa. Em muitas situações cotidianas, de acordo com Fortes (2004), os profissionais assumem, em nome de “fazer o bem”, atitudes paternalistas e autoritárias que já não percebem, contrárias à vontade autônoma dos cidadãos e violando seus direitos. O compartilhamento na roda também pode ser verificado na conversa sobre o artigo 13, que aborda o direito à proteção da exposição corporal e da vergonha, garantida a realização de exames em ambientes que preservem seu pudor. Um trabalhador da área administrativa e uma enfermeira destacam a importância, para o paciente, sobre o cuidado com sua intimidade: Nós fazemos pesquisa de satisfação do usuário e nós tínhamos um percentual significativo de insatisfação. Fomos abrir a questão e descobrimos: “preservar a intimidade”. Era o problema da vestimenta do hospital, sem uso de roupa de baixo e aberta nas costas, mostrando as nádegas, quando o paciente caminha. (Trabalhador do hospital) Tivemos uma paciente que vivia com um seio de fora, porque a roupa era número bem menor que o dela. Ela reclamava e ninguém atendia..., diziam que faltava roupa. Uma vez encontrei uma senhora jovem fazendo uso da aparadeira e sem o biombo de proteção.

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Estava faltando biombo. É muito comum a gente vê na UTI as pessoas com o corpo à mostra, seminus, usando aqueles eletrodos, aqueles fios, e sem cortina, pelo motivo do calor. Eu chamo os auxiliares de enfermagem e reclamo: “olha aí...vamos cuidar... vamos proteger”. (Trabalhadora do hospital)

Os facilitadores explicam, com respaldo na temática exposta pelos trabalhadores: há sempre um jeito de fazer isso, sem grandes tecnologias ou altos custos. É preciso mobilizar a sensibilidade para perceber e a criatividade a fim de resolver. É muito interessante refletir como nos sentiríamos em situação semelhante, fazendo o jogo da troca de papel, ou do espelho, técnicas que o psicodrama, por exemplo, nos oferece para vivermos a alteridade. As questões referentes a vestimentas trazem à tona o compromisso da gestão em criar condições para o respeito à intimidade do paciente. Além das questões da gestão e relacionamento, entretanto, o incremento de ações humanizadoras, para melhor atingir seus objetivos, deve considerar o princípio da humanidade, segundo o qual o homem se torna o centro da ação ética, e não somente meio de satisfação dos interesses das forças sociais atuantes na atenção em saúde (Fortes, 2004). Neste arcabouço, devem estar humanização e direitos do paciente no seio das políticas e programas de saúde (Vaitsman, Andrade, 2005). Outra temática comentada pelos profissionais foi a de como educar o paciente e a família nos direitos e deveres, numa clara noção de que essa função social também envolve a participação popular: “Como que a gente vai educar também o nosso paciente dos direitos dele? Eu acho que é mais delicado do que esclarecer o profissional. É um grande desafio que a gente vai enfrentar ao longo do processo” (Trabalhador do hospital). Demonstra, ainda, a conscientização do profissional acerca da importância dos direitos do paciente. A resposta a essa questão é encetada por outro profissional, que diz: A questão básica é a da pedagogia do encontro. Cada vez que o profissional explica algo, está educando nos direitos. É no dia a dia que os profissionais podem estar fazendo isso, se tiverem incorporado a atitude. Por que todo ato sanitário, implica numa dimensão de educação. Precisa divulgar pela mídia, informar coletivamente, pedir para o PSF fazer grupo nas comunidades dizendo da existência da Carta de Direitos e Deveres, mas é preciso o exemplo quotidiano, a prática do exemplo. (Trabalhador do hospital)

Os facilitadores discutiram a importância do papel do profissional como educador na prática sanitária: a todo momento em que o profissional da saúde se relaciona com o paciente, ele está ensinando e aprendendo. E, na maioria das vezes, está ensinando errado, ao permitir que o paciente invente um conhecimento em cima de seus silêncios. É fundamental, portanto, que este trabalho educativo se estenda aos pacientes, visando a sua conscientização sobre a desigualdade e violações de seus direitos, fortalecendo o controle social e a luta contra as iniqüidades sociais e o desrespeito aos direitos humanos. Para os participantes, no tocante à vivência do encontro coletivo, o principal aspecto ressaltado foi que a roda possibilitou “ficar atento à vivência do profissional de saúde”. Em um contexto marcado pela urgência e necessidade de decisões racionais e instrumentais, o profissional, em raros momentos, é conduzido a refletir o seu fazer cotidiano, o que permite ampliar a capacidade de partilhar dilemas comuns, reavendo o senso de grupo. As rodas foram consideradas um “despertar”, “uma discussão que amplia a visão da gente”, pois promoveram uma “reflexão profunda”, permitindo “resgatar a pessoa escondida dentro da patologia”. Como conseqüência da participação nas rodas, um participante referiu que “as pessoas que tiveram a honra de participar, cresceram e muito, pois a roda trouxe um embasamento muito grande para todos”.

Considerações finais Ampliar a consciência dos direitos dos usuários na prática dos serviços requer um trabalho educativo que envolva gestores, trabalhadores e usuários. Isso porque a garantia constitucional e os códigos legitimados não são suficientes para efetivar esses direitos na prática. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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A proposta da discussão da Carta de Direitos do Paciente em rodas de conversa - objetivando entender a história, os motivos da elaboração textual, e avaliar o impacto do dispositivo, ou seja, o que cada hospital precisa fazer para cumprir essas garantias, em termos de condições de funcionamento e atitude dos profissionais - mostrou-se um caminho promissor para provocar mudanças nos ambientes de saúde. O compartilhar de experiências possibilitou maior internalização pela ponte criada entre o discurso e a realidade. O desafio de formar multiplicadores nos direitos do paciente é um imperativo no cotidiano, visto que a atenção e a gestão humanizadas em saúde somente serão efetivadas pela dignidade conquistada e pelo acolhimento promovido nas relações entre todos os agentes desta cena pública. O Código, na roda de conversa, revelou-se importante instrumento de avaliação do estado de humanização do cuidado hospitalar e da educação para a cidadania dos trabalhadores. Fez refletir as relações e as condições de funcionamento dos serviços, fornecendo meios para instigar mudanças. A roda de conversa promoveu a “grupalidade” estimulada pela força do coletivo, que potencializa um pensamento não solitário, mas solidário, de um novo modo de promover saúde, pela instância da ética cidadã e humanitária.

Colaboradores Annatália Meneses de Amorim Gomes elaborou a pesquisa, conduziu as rodas de conversa, construiu o artigo, efetuou as revisões e preparou o envio para a revista. José Jackson Coelho Sampaio elaborou a pesquisa, conduziu as rodas de conversa, construiu o artigo e efetuou as revisões. Maria das Graças Barreto de Carvalho participou nas rodas de conversa, discutiu aspectos do texto e contribuiu na análise dos dados. Marilyn Kay Nations participou nas rodas de conversa, contribuiu na organização, análise e discussão dos resultados. Maria Socorro Costa Feitosa Alves construiu o artigo, colaborou na análise e discussão dos dados e participou nas revisões. Referências ASSEMBLÉIA GERAL DA ASSOCIAÇÃO MÉDICA MUNDIAL. Declaração de Lisboa: sobre os direitos do paciente. 1981. Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/ direitos/codetica/medica/14lisboa.html>. Acesso em: 12 jul. 2003. BARDIN, L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 2002. BARROS, M.E.B.; MORI, M.E.; BASTOS, S.S. O desafio da Política Nacional de Humanização nos processos de trabalho: o instrumento “Programa de Formação em Saúde e Trabalho”. Cad. Saúde Coletiva, v.14, n.1, p.31-48, 2006. BARROS, R.B.; PASSOS, E. Humanização na saúde: um novo modismo? Interface Comunic., Saúde, Educ., v.9, n.17, p.389-94, 2005. BRASIL. Conselho Nacional de Secretários de Saúde. SUS: avanços e desafios. 2.ed. Brasília: CONASS, 2007. ______. Comissão Nacional sobre Determinantes Sociais da Saúde. Iniqüidades em saúde no Brasil: nossa mais grave doença. Documento apresentado por ocasião do lançamento da Comissão Nacional sobre Determinantes Sociais da Saúde - CNDSS. Rio de Janeiro: CNDSS, 2006a.

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Palabras clave: Derechos del paciente. Humanización de atención. Educación en salud. Recebido em 22/06/07. Aprovado em 26/06/08.

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A família também adoece!: mudanças secundárias à ocorrência de um acidente vascular encefálico na família

Eliana Sales Brito1 Elaine Pedreira Rabinovich2

BRITO, E.S.; RABINOVICH, E.P. The family also becomes sick! Changes secondary to stroke occurring within families. Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.12, n.27, p.783-94, out./dez. 2008. This study sought to understand the impact of incapacitating illness on the families of stroke victims, investigating the changes of a structural, social and emotional nature. Nine families of patients with a first episode of stroke, identified from the general disease records of Hospital São Rafael, Salvador, Bahia, were analyzed. Data gathering was by means of applying a questionnaire, guided interview and functional evaluation scale and through field diary observations. The data analysis method was collective subject discourse, thus producing social representations and transforming the words of the study subjects into a single line of discourse. It was observed that occurrences of stroke are experiences marked by brusque transformations in the day-to-day life of families and in the lives of each of their members. The results indicate the need to capacitate families to care for the patient and for their own self-care.

Key words: Family relationships. Stroke. Disease impact profile.

Este estudo buscou compreender o impacto da doença incapacitante na família de pacientes vítimas de acidente vascular encefálico (AVE), investigando as mudanças de ordem estrutural, social e emocional. Foram analisadas nove famílias de pacientes com primeiro episódio de AVE identificados pelo registro geral de doenças do Hospital São Rafael, Salvador, Bahia. A coleta dos dados foi realizada mediante aplicação de questionário, roteiro de entrevista, escala de avaliação funcional e observações registradas em diário de campo. O método empregado para análise dos dados foi o discurso do sujeito coletivo, produzindo representações sociais e transformando em um só discurso a fala dos sujeitos pesquisados. Constatou-se que a ocorrência de um AVE é uma experiência marcada por bruscas transformações no cotidiano familiar e na vida de cada um de seus membros. Os resultados indicam a necessidade de se habilitar a família para o cuidado ao paciente e para o autocuidado.

Palavras-chave: Relações familiares. Acidente cerebrovascular. Perfil do impacto da doença.

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1 Fisioterapeuta. Curso de Fisioterapia, Faculdade de Enfermagem, Universidade Católica do Salvador. Rua Monsenhor. Gaspar Sadock, 431, Ed. Ilha das Flores, ap. 202. Costa Azul, Salvador, BA. 41.760-200 elianasbrito@atarde.com.br; elianasb@ucsal.br 2 Psicóloga. Mestrado em Família na Sociedade Contemporânea, Universidade Católica do Salvador.

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Introdução O acidente vascular encefálico (AVE) é um evento de ocorrência súbita que cursa com déficits neurológicos temporários ou permanentes de variadas intensidades (Durward, Wade, 2000). O sinal mais comum da doença é a hemiplegia, que se caracteriza pela perda do movimento em um lado do corpo e pode ser acompanhada por outras desordens, tais como: distúrbios de comportamento, de linguagem, de sensibilidade, de visão, de deglutição (Adams, Victor, Rooper, 1998), dentre outros. Muitos pacientes vítimas desta doença passam a depender de outras pessoas em suas atividades de vida diária (AVD´s) básicas, tais como: higiene, locomoção e alimentação. A suspeita de um AVE requer o imediato encaminhamento do paciente para uma unidade hospitalar. Estatísticas alertam para uma elevada taxa de morbimortalidade do AVE. Dados da Organização Mundial da Saúde apontam as doenças cardiovasculares como responsáveis pelo óbito de 16,6 milhões de pessoas, correspondendo a um terço dos óbitos no mundo em 2001, sendo que 5,5 milhões tiveram como causa os acidentes vasculares encefálicos (Organização Panamericana da Saúde, 2003). A estes têm sido também atribuído o principal motivo de internações hospitalares, mortalidade e incapacidades (Falcão et al., 2004). Na atualidade, os avanços tecnológicos na saúde permitem a sobrevida de pacientes, antes inviável, o que resulta em um aumento da população com idades mais avançadas, portanto, susceptível a maior freqüência das doenças crônicas incapacitantes (Silva Júnior et al., 2003; Opas, 2001; Zétola et al., 2001). O surgimento de uma doença incapacitante é um momento especialmente crítico de enfrentamento para a família, pois atinge todos os seus membros. Embora o impacto de eventos tais como morte e doença na família seja muito discutido, as formas com as quais esta lida com a incapacidade ainda é pouco explorada e tem sido mantida no âmbito domiciliar. Este estudo objetivou compreender o impacto de uma doença incapacitante e as estratégias utilizadas pela família para desempenhar as funções de proteção e cuidados a pacientes portadores de deficiência física secundária a um AVE, tendo o seu desdobramento nos seguintes objetivos específicos: identificar as mudanças de ordem estrutural, socioeconômica e emocional vivenciadas pelas famílias, relacionando o grau de severidade do agravo, o tempo de ocorrência da doença e a facilidade no desenvolvimento de estratégias de proteção e cuidado ao indivíduo.

Material e método O projeto desta pesquisa foi submetido à aprovação do comitê de ética em pesquisa do Hospital São Rafael, o qual, por ser referência para a assistência à especialidade de neurologia em Salvador, Bahia, foi escolhido como lócus para a identificação dos pacientes. Por meio do registro geral de doenças, foram identificados prontuários dos pacientes internados pela unidade de emergência por doença neurológica no período de janeiro de 2001 a março de 2005, e obtida uma amostra de 132 pacientes. Na primeira etapa de análise, 100 foram excluídos em razão de: evolução por óbito (um); ausência de déficit motor (48); diagnóstico de outra doença neurológica (17); história de AVE prévio (15), e por constarem endereços do interior do estado (sete). A seguir, foram selecionados os pacientes que atendiam aos critérios de inclusão: ser adulto, de ambos os sexos, com diagnóstico clínico de AVE agudo, sendo o primeiro evento, e ser participante da renda familiar. O passo seguinte foi contatar os familiares desses pacientes, convidando-os a participarem da pesquisa. Sete famílias aceitaram, sendo, na sua maioria, filhos que prestavam cuidados aos seus familiares. A estas foram incluídas, por indicação dos sujeitos entrevistados, duas famílias de pacientes com AVE, pela singularidade de suas experiências: uma por ter um membro com deficiência mental e a outra pelo enfrentamento de dois casos concomitantes de pacientes com AVE. Foram usados como recursos de coleta de dados: um questionário para o registro dos dados clínicos e sociodemográficos, o que favoreceu conhecer a dimensão das demandas do cuidado requeridas à família; um roteiro de entrevista aberta semi-estruturada, objetivando o livre depoimento dos informantes sobre o paciente, a família e o impacto do evento desde a sua ocorrência até os dias atuais; um diário de 784

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pesquisa; e a aplicação do índice de Barthel, escala de avaliação funcional internacionalmente validada, que avalia a dependência nas atividades da vida diária em adultos e adolescentes. Por conveniência, foram escolhidos pacientes com diferentes tempos de ocorrência do evento, de modo que se pudessem observar famílias em fases diversificadas de enfrentamento da doença. A entrevista foi realizada com os familiares em sua residência, em dia e horário disponibilizados pelos mesmos, após explicações detalhadas sobre a pesquisa e a sua permissão por meio da assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido. Os depoimentos foram registrados com a utilização de um gravador panasonic mini cassette recorder RQ-L11, em oito fitas magnéticas, e um diário de campo. As entrevistas foram transcritas ipsis literis pela pesquisadora, e cada família identificada por um número e por nomes fictícios iniciados por letra similar. Os dados foram analisados com base no emprego da técnica de análise do discurso do sujeito coletivo (DSC), desenvolvida por Lefèvre e Lefèvre (2003), que captura a variedade das experiências vivenciadas, transformando em um só discurso a fala dos sujeitos pesquisados. O DSC é uma proposta de organização e tabulação de dados qualitativos de natureza verbal, que consiste em analisar o material verbal e extrair as idéias centrais/ancoragens e suas correspondentes expressões-chave, com as quais se compõe um discurso síntese. As questões foram, a princípio, analisadas isoladamente, uma a uma, sendo possível perceber dois momentos singulares geradores de estresse: quando da ocorrência do evento/hospitalização e quando da chegada do paciente em casa. Várias leituras das entrevistas permitiram identificar os trechos relevantes dos discursos (expressões-chave) que, agrupados, possibilitaram idéias centrais. Os relatos foram organizados em torno de dois grandes eixos temáticos: as mudanças provocadas pelo impacto e as estratégias de acolhimento e cuidados, sendo objeto do presente trabalho o primeiro desses eixos.

Apresentando os pacientes Dez casos de primeiro episódio de AVE fizeram parte deste estudo, sendo cinco mulheres, viúvas, e cinco homens, casados, com idade variando entre 63 e 89 anos (média de 78,3 anos), aposentados ou recebendo pensão, com tempo de ocorrência do evento entre um mês e sete anos. Duas das mulheres pertencem a uma mesma família. O AVE isquêmico foi o diagnóstico principal em todos os pacientes, e um deles, após a isquemia, cursou com AVE hemorrágico. Como diagnóstico secundário, oito eram portadores de hipertensão; sete, de cardiopatias e, quatro, de diabetes. Um paciente apresentava também depressão e quatro tinham fatores de risco associados. O tempo médio de internação foi de 14,2 dias (três a trinta dias), e o período predominante está entre 11 e vinte dias. Dois pacientes necessitaram de internamento em unidade de terapia intensiva e quatro, na unidade semi-intensiva. Dois pacientes com um mês de ocorrência do evento permaneciam internados no momento da entrevista. A hemiplegia/hemiparesia esquerda foi o diagnóstico funcional mais encontrado. O resultado do índice de Barthel, aplicado no momento da entrevista, revelou uma predominância de dependência grave, com maior prevalência nos pacientes octogenários, e com comprometimento do hemisfério direito, responsável pelas funções de percepção. Na faixa de dependência moderada, foram encontrados dois pacientes com hemiparesia e uma com hemiplegia, a qual, embora com o quadro motor mais comprometido, apresenta uma maior habilidade funcional, conseguindo realizar tarefas domésticas, tais como: temperar carne, cortar legumes com o uso de dispositivo de apoio, recebendo encorajamento da família para a realização destas atividades.

Mudanças na vida da família Os resultados foram agrupados em sete idéias centrais, expostas a seguir. Mudança no indivíduo: ele/ela não é mais a mesma pessoa É uma doença que torna o indivíduo diferente e dependente. Esta idéia foi apreendida na fala de COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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todos os entrevistados. As diferenças são creditadas às alterações da capacidade motora, cognitiva, emocional e comportamental do indivíduo acometido, as quais são responsáveis por toda a cadeia de mudanças que serão desencadeadas a posteriori. O prejuízo funcional é caracterizado pelo grau de incapacidade de realizar determinadas atividades. As seqüelas decorrentes do AVE são variadas e implicam algum grau de dependência, que é freqüentemente maior na fase inicial. Cerca de trinta a quarenta por cento dos sobreviventes perdem a autonomia, necessitando de algum auxílio na realização de AVD´s (Falcão et al., 2004). Segundo Silliman, Wagner e Fletcher (1987), entre um quarto e um terço de pacientes com AVE experimentam dependência persistente, nos seis primeiros meses, em uma ou mais AVD´s. A limitação no desempenho funcional pode trazer muitas conseqüências negativas nas relações pessoais, familiares e sociais, comprometendo a qualidade de vida do paciente e seus familiares (Falcão et al., 2004). A seqüela mais visível do AVE é o déficit motor. Embora a hemiplegia seja o sinal mais comum, o paciente poderá também apresentar outras desordens associadas, tais como: distúrbios de comportamento, linguagem, sensibilidade, visual, e de deglutição (Adams, Victor, Rooper, 1998). Na população idosa, estes efeitos são maximizados em razão da fisiologia do envelhecimento, na qual mesmo pequenos déficits podem trazer grandes limitações funcionais (Silliman, Wagner, Fletcher, 1987). O surgimento da incapacidade na fase inicial da doença, com conseqüente perda da autonomia, foi relatado por todos os pesquisados, em conformidade com o registro hospitalar do paciente. Neste estudo, a dependência grave foi a mais predominante, sendo observada em cinco casos. O paciente avaliado como totalmente dependente apresentava um quadro de tetraparesia, que é o comprometimento motor bilateral, tendo associados três fatores de risco e depressão prévia ao AVE, agravada após a ocorrência do mesmo, segundo relatos da filha. Apesar de ter um pouco mais de um ano do evento e realizar tratamento reabilitador, mantinha uma grave incapacidade motora. A atitude de total desistência, constatada na fala da sua filha Bartira, quando diz “é como se tivesse esperando a morte chegar”, sugere associação deste distúrbio com a pouca aquisição funcional. Os três pacientes moderadamente dependentes apresentavam uma razoável independência nas AVD´s, especialmente na marcha. As limitações se devem ao déficit neurológico, porém podem ser ampliadas pelo impacto psicológico gerado pelos prejuízos funcionais e cognitivos impostos pelo AVE, que pode desencadear, por si só, um quadro depressivo com um matiz de ajustamento/reativo (Terrone et al., 2003). Quarenta a cinqüenta por cento dos pacientes irão apresentar depressão no primeiro mês após um AVE agudo (Robinson, Carvalho, Paradiso, 1997). Aí, depois, quando ele se viu incapacitado, precisando a gente pra tudo, mudou tudo! A depressão se expressou de várias formas. Ele ficou muito dependente, desorientado, nervoso(a), sensível, impaciente, sem tolerância, com um medo exagerado de morrer, sem aceitar a nova realidade, o fato de ter limitações. (DSC)

Transtornos psiquiátricos têm sido apontados como fatores determinantes da incapacitação do paciente após o AVE, sendo a depressão a mais prevalente e a que mais tem sido associada a um pior prognóstico, uma vez que pode comprometer de forma significativa a reabilitação motora e o funcionamento cognitivo nos pacientes (Terrone et al., 2003; Robinson, Carvalho, Paradiso, 1997). Os autores consultados apontam como conseqüência da depressão pós-AVE: maior tempo de permanência hospitalar, maior comprometimento funcional e cognitivo, limitação em AVD´s, redução da sobrevida, queda do nível funcional na ausência de uma assistência intensiva após alta hospitalar, quando comparados com os não deprimidos. Distúrbios funcionais e cognitivos, história anterior de depressão, AVE prévio, precária rede de suporte social e características neuroanatômicas do AVE têm sido detectados como fatores de risco associados à ocorrência da depressão pós-AVE. Quadros graves de incapacidade também estão relacionados a uma maior probabilidade de estados de depressão (Terrone et al., 2003). As atitudes desencadeadas nos pacientes são ricas em conteúdos emocionais, estando relacionadas à não aceitação da incapacidade e da perda da sua autonomia. A consciência das mudanças provocadas 786

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em si e na família os leva às reações de intolerância, impaciência, nervosismo e freqüente labilidade emocional. Mudança nos papéis: então se inverteram os papéis... A inversão dos papéis é apontada como uma ordem natural do ciclo da vida. A perda da capacidade motora e cognitiva e da autonomia do paciente provocam mudanças nos papéis dos atores, e os filhos passam a ter responsabilidades antes assumidas pela figura materna ou paterna. Sou ‘mãe’ dela! Até o bisneto de quatro anos outro dia falou isso. Acho que ele vê a gente botar a comida na boca, dar banho, botar fralda, então ele acha que eu sou mãe de minha mãe. Então inverteu os papéis... Ela agora é minha filha. Brigo com ela pra fazer as coisas certas, fazer a fisioterapia certo, andar certo... Ela cuidou de cinco filhos, agora tá na hora dos filhos cuidar dela. (DSC)

A limitação imposta pela doença obriga o indivíduo acometido a adequar-se a sua nova condição física e emocional, sendo, muitas vezes, movido por sentimentos de frustração, seja pela perda do status ou inadequação ao papel que lhe foi atribuído. A crise pode ser minimizada se a família for capaz de flexibilizar os papéis. De acordo com Mendes (1995), a decisão em assumir os cuidados é consciente e a identidade do cuidador vai sendo construída no processo do cuidar, dentro do ambiente familiar. Embora a designação do cuidador seja informal e decorrente de uma dinâmica, ela está diretamente relacionada a parentesco, gênero, proximidade física e proximidade afetiva. A maior freqüência de cuidadores descrita na literatura (Cazenave et al., 2005; Giacomin et al., 2005; Silva, 2004; Mendes, 1998; Mendes, 1995) é de cônjuge, seguida de filhos e outro familiar. Segundo Caldas (2003), quando um membro da família desencadeia um processo de dependência, altera toda a dinâmica familiar, resultando em mudanças de papéis e das relações de poder, reinstituindo novas relações de intimidade e reprodução do grupo familiar. O exercício do cuidar e a aquisição de novas competências e habilidades foram mais fortemente sinalizados pelas famílias dos pacientes mais comprometidos. Mudança na moradia: a casa de uma pessoa doente tem de ter alguns cuidados! Segundo Trentini, Silva e Leimann (1990), a condição crônica de saúde traz experiências de perdas para o paciente, tais como: perdas nas relações sociais, financeiras e na capacidade física. Na maioria dos pacientes acometidos por um AVE, a locomoção é uma das funções mais comprometidas, e a impossibilidade de andar e de subir escadas impede o acesso aos ambientes. Pacientes com esta dificuldade necessitam de cadeira de rodas para facilitar o seu manuseio dentro de casa. Isto é um transtorno para a família porque exige estratégias de acomodação a essa nova situação. O conteúdo dos discursos desta categoria indicou que mudanças estruturais e na organização espacial da casa tiveram de ser implementadas para promover segurança e uma melhor funcionalidade no cuidado ao paciente, similarmente ao que foi discutido por Trentini, Silva e Leimann (1990). Foram identificadas situações em que as famílias tiveram de promover reformas na casa e, até mesmo, mudar de casa. As mudanças estruturais foram especialmente necessárias nas casas dos pacientes que usaram cadeiras de rodas. Essa casa aqui já é conseqüência do problema. A outra tinha um acesso ruim porque era escadaria. Essa casa tava em ruína e teve que ser reformada em um mês. A gente teve que alargar as portas, banheiro, bater laje, botar tudo amplo, né? teve que tirar o rodapé porque a cadeira de rodas não passava no corredor. Ele teve que vir usar o banheiro da sala porque é maior, aí a gente teve que colocar um apoio pra braço na parede do vaso e colocar um ralo no banheiro porque ele não conseguia entrar no box. Ele passou a tomar banho do lado de fora do box. (DSC)

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Houve registros de quedas de quatro pacientes, uma ocorrência temida pelas complicações que podem advir em decorrência de fraturas. “Ele já andou assustando a gente muitas vezes por causa de queda. Outro dia ele passou a noite no chão... teve que esperar o dia amanhecer pra chamar alguém pra levantar ele” (Miguel). Em algumas famílias, a necessidade de mudança atingiu, particularmente, outros membros, que tiveram que ceder espaço físico para acolher o indivíduo doente. “Quando ela saiu do hospital não pôde voltar pra casa dela. Fomos pra casa de uma irmã. Tive que tirar as meninas do quarto pra fazer um quarto pra ela” (Lúcia). Mudanças econômicas: o dinheiro não dá pras despesas. É muito gasto! Toda situação crônica de saúde diminui os recursos do indivíduo pra atender às demandas que passam a integrar a sua vida. Nos depoimentos de todos os entrevistados, dificuldades de ordem econômica foram apontadas como um dos principais estressores. Prado (2004, p.86) destaca os efeitos recíprocos entre família e sociedade, afirmando que “famílias com um integrante deficiente têm os seus problemas intensificados por pré-requisitos, necessidades e atitudes que lhe são impostas devido à deficiência.” A renda familiar sofre uma redução devido à perda da contribuição financeira do paciente, que, associada ao aumento dos gastos resultantes das demandas atuais com medicação, compra de fraldas, aluguel ou compra de cama hospitalar, cadeira de rodas, entre outros, amplia os efeitos negativos no orçamento familiar, conforme visto por Caldas (2003). Perda financeira também foi identificada em 62,2% dos pacientes estudados por Trentini, Silva e Leimann (1990), que a relacionam ao alto custo de medicações. Hymocich e Hagopian (1992) acrescentam os gastos com cuidados médicos especializados e outros profissionais, tais como: psicólogo, fisioterapeuta, terapeuta ocupacional e fonoaudiólogo. “Hoje a gente gasta muito com remédio, fraldão... suja muito lençol, cadeira de hospital, luva, máscara... O que ele ganha mal dá pra pagar os remédios!” (DSC). O status profissional também é modificado pelo AVE, deslocando-se da condição de trabalhador para a de aposentado, benefício previdenciário - ou passaram a ter, como fonte de renda, doações e/ou recursos de familiares. Neste estudo foram encontrados resultados semelhantes aos de Falcão et al. (2004), que sinalizam a situação mais crítica quando se trata de mulheres, cujo trabalho anterior era informal e sem cobertura previdenciária. A contribuição dos filhos, antes voluntária, passa a ser obrigatória. Com o orçamento familiar reduzido, a família tende a estabelecer prioridades para cumprir os compromissos financeiros. As necessidades do paciente assumem um lugar de destaque em detrimento das dos demais membros da família. “Os rendimentos dela(e) vem da aposentadoria. A gente complementa! Depois do derrame, eu tive que aumentar minha colaboração de uma forma até obrigatória. Eu pago a empregada, a auxiliar de enfermagem, ajudo a fazer o mercado, o plano de saúde” (Miguel); “Aqui em casa ela não fez fisioterapia porque eu não tinha condições de pagar. A gente viu que teve de apertar o lado da família pra poder cumprir os compromissos. Meus cartões tão aí, até hoje! Eu tô empurrando” (Lúcia). Observou-se, neste estudo, que o estresse decorrente do enfrentamento de dificuldades financeiras foi minimizado com divisão de responsabilidades e participação financeira entre os membros da família. “Repartimos tudo, trabalho, despesa... dividimos tudo em cinco! Aí foi a união também em questão de dinheiro, entendeu? Todo mundo entrou com dinheiro pra reformar a casa” (Telma). Mudanças no autocuidado: eu esqueci de mim! Com a ocorrência do AVE, as atenções da família são monopolizadas pelo indivíduo acometido. A tarefa de cuidar de um adulto dependente requer do cuidador uma grande disponibilidade física, emocional e socioeconômica, podendo ser extremamente desgastante. Na escala de prioridades, a saúde do cuidador fica em segundo plano e, desta forma, a sobrecarga física de cuidados, aliada ao estresse emocional repetido, pode torná-lo tão doente e dependente como aquele de quem cuida. Evans, Bishop e Hanselkorn (1991), discutindo os efeitos do AVE na família, relatam que múltiplos estressores trazem resultados negativos para o cuidador. Eles detectaram que um terço das famílias ainda estão desajustadas após dois a cinco anos do evento; há um decréscimo na qualidade de vida de 788

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cônjuges de pacientes com AVE; há uma elevada freqüência de problemas domiciliares, entre os cônjuges, relacionados à redução do lazer; ocorre um comprometimento nas relações maritais; declínio de saúde dos cuidadores e depressão. Isolamento social, distúrbios comportamentais, acúmulo de atividades, insatisfações conjugais, mudanças nos relacionamentos familiares e sociais, e dificuldades financeiras também foram sinalizados, por Bocchi (2004), como fatores que geram sobrecarga para os cuidadores de pacientes vítimas de AVE. A sobrecarga física está freqüentemente associada aos cuidados prestados aos pacientes mais dependentes, em especial, ao transporte e deambulação. Porém, em uma pesquisa realizada por Hora e Souza (2005), cuidadores afirmaram que as mudanças geradas por alterações comportamentais, emocionais, sociais e cognitivas foram tidas como experiências mais negativas do que as decorrentes de incapacidade física, sendo que o esquecimento, o temperamento explosivo, a agressividade, a depressão, a irritabilidade, a ansiedade e a dependência foram alterações que mais lhes afetaram. Segundo Garrido e Almeida (1999), distúrbios comportamentais no paciente têm impacto negativo na vida do cuidador e os torna mais vulneráveis a quadros de depressão e ansiedade. A sobrecarga do cuidar não está associada apenas às alterações de comportamento, mas sofre influências: de um suporte social insuficiente, da dificuldade do paciente na realização de tarefas rotineiras, da insatisfação do cuidador com o apoio recebido de parentes ou amigos, da incontinência, do excesso de trabalho, da relação pré-mórbida conflituosa. Os depoimentos dos familiares desta categoria são pontuados por histórias de agravos musculoesqueléticos por sobrecarga de peso e acúmulo de atividades, sendo possível observar que a sobrecarga atinge a todos, em razão da intensidade do acúmulo de atividades, mesmo a famílias cuja rede de suporte é bem estruturada. “Aqui estourou tudo! tá todo mundo acabado! coluna, estresse... dor de coluna! Eu fiquei, minha filha, que não andava. Fiquei que não dava um passo. Minha mãe fica sobrecarregada, tá com muitas dores na coluna, tem dia que ela não se agüenta em pé com dores na perna” (DSC). A sobrecarga de trabalho, gerando dificuldades no autocuidado, está mais presente no discurso das famílias que têm em comum uma pobre rede de suporte, como, por exemplo, na família em que a filha acolheu a sua mãe na fase aguda da doença, quando o grau de incapacidade era ainda expressivo e as demandas de cuidados eram maiores. Aos cuidados da mãe, somavam-se os dispensados a um neto recém-nascido, além de todos os serviços domésticos. Eu parei de me cuidar. Não cuidava de mim, não, menina! Uma doente e um recém-nascido, quem é que pode cuidar de si? Às vezes eu acordo e não tenho tempo de ir no banheiro, de escovar os dentes, de arrumar o cabelo.... Até tomar um banho eu dependo de alguém vim pra ficar com ela pra eu poder tomar banho. Tinha dias que eu não dormia. Eu ligava direto pra poder dá conta das coisas. Eu não tenho vida própria... é tudo em função dela!. (DSC)

O seguinte discurso refere-se à sobrecarga emocional e conflitos relacionais. “Ela achava que era prioridade. Ela se queixou que esperava mais atenção da minha parte. Isso mexeu muito com a minha cabeça. Pra você ter uma idéia eu fiz terapia por conta disso. Eu fiquei assim com uma culpa muito grande” (Lúcia). Os sintomas mais freqüentemente observados em cuidadores, segundo autores consultados por Bocchi (2004), são: cansaço, distúrbio do sono, cefaléias, perda de peso e hipertensão. No presente trabalho, predominaram os agravos musculoesqueléticos, especialmente em coluna vertebral, e agravos emocionais, tais como: estresse, depressão e cansaço. A doença do paciente é visível, a do cuidador, invisível na esfera de prioridades que se estabelecem no enfrentamento a uma doença crônica e incapacitante. É importante que a família lide com as demandas desenvolvimentais da enfermidade sem que seus membros sacrifiquem seu próprio desenvolvimento ou o desenvolvimento da família como um sistema. Rolland (1995, p.378) chama a atenção para uma tarefa necessária nesta fase, que é a “manutenção de máxima autonomia para todos os membros da família perante o impulso para a mútua dependência e cuidados”. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Mudanças na vida social: a vida social fica muito limitada! Só sabe o que você tá passando quem vive a mesma situação A existência de uma rede social de apoio capacita a família para cumprir o seu papel de provedora de cuidados ao indivíduo doente, na medida em que minimiza o estresse e fortalece sua auto-estima. Em seus estudos, Sá (2005) e Castro e Piccinini (2002) confirmam a importância de uma rede de apoio relacional de parentes, amigos e vizinhos no enfrentamento de uma adversidade. Familiares e amigos costumam estar mais presentes na fase inicial. Passado o impacto inicial, entretanto, as demandas de cuidado ao indivíduo acometido mantêm o cuidador na esfera doméstica, afastado das suas atividades sociais. As novas exigências provocam rupturas nas relações sociais, geram cobranças e incompreensão do problema vivido, com conseqüente distanciamento dos círculos de amizade, além de interromperem bruscamente projetos de vida de seus membros. O isolamento social, segundo Trentini, Silva e Leimann (1990), atinge pacientes e familiares, e tem uma influência negativa sobre a sua qualidade de vida. Nos casos por eles estudados, 11,1% manifestaram mudanças nas relações familiares, enquanto 31,1% revelaram alterações nas de amizade. Este foi um dos problemas mais enfrentados pelas famílias entrevistadas. “Os amigos se afastaram. Muitas vezes a pessoa não entende o que você está passando. Acha que você não quer sair, se ressentem, cobram muito da gente a questão da atenção da gente com eles. Eles não entendem que o problema da gente é sério” (DSC). Segundo Bocchi (2004), as limitações na vida social devem-se: à sobrecarga de atividades, à perda do familiar, aos distúrbios comportamentais do portador de AVE, às mudanças nos relacionamentos familiares e do círculo de amigos e à inexistência de uma rede suficiente de suporte. Euzébio (2005) menciona como motivos de descontentamento dos cuidadores: o isolamento dos amigos, falta de lazer e de atividades prazerosas. Problemas financeiros, mudança na rotina familiar, rompimento de relações interpessoais e desequilíbrio emocional também são fatores que irão comprometer a qualidade de vida da família, mediante observações de Canhestro (1996). A família passa a orbitar em torno das necessidades financeiras, físicas e emocionais advindas da ocorrência da enfermidade. A convivência com a incerteza interfere nos planos individuais. Este problema pode ser minimizado em famílias que contam com uma extensa rede de apoio. É difícil sair como antes. Minha vida social ficou muito limitada. Só saio depois que colocar ele na cama. Eu não costumo mais perder noite. Hoje eu passo muito mais tempo em casa. Não tenho uma vida assim como as amigas da minha idade, que curtem farra, viajam, vão mais a festa... isso me faz me sentir um pouco deslocada da minha geração. Muitas coisas que eu quero fazer, eu tenho que abrir mão! (DSC)

Concluindo, em diferentes graus, foi observado, nas famílias pesquisadas, que a adaptação a esta nova fase da vida implicou modificações de hábitos dos membros da família, dos valores pessoais, e numa maior reclusão social. Mudanças nas relações familiares: isso teve a força de aproximar a gente, mas também foi motivo de conflito: existe uma cobrança! Nos depoimentos, o sentimento iminente da perda e a necessidade de cuidados despertados pela doença tendem a estreitar laços e a reaproximar indivíduos distanciados do núcleo familiar. O sentimento de solidariedade com o outro é fortemente instigado e demonstrado pela disponibilidade da família extensa e amigos em prestar auxílio em um momento delicado. Isto é explicado por Rolland (1995, p.387), quando diz que “a tendência de uma doença a interagir centripetamente com a família aumenta na medida em que o nível de incapacitação ou risco de morte também aumenta.” Segundo esse autor, os sintomas, a perda de função, as exigências de mudança relacionada à nova doença, nos papéis práticos e afetivos, e o medo da perda por meio da morte, servem para que a família crie um novo foco interno. Em alguns depoimentos, observa-se o envolvimento afetivo dos membros da família, ajudando-se mutuamente na resolução dos problemas. 790

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Acho que isso uniu muito a família porque faz com que você pense que tem que dividir as coisas, os trabalhos, em ajudar... porque você tá vendo uma pessoa que é importante sofrer, a gente vai sentindo que vai perder ela. Minha tia, hoje, é o braço direito de minha mãe. Ela renunciou até algumas coisas da vida dela, pessoal, pra ficar com minha mãe. (DSC)

Em outros discursos, a doença teve a ação aglutinadora, resgatando relações anteriormente estremecidas. “Com o agravamento da situação, eu passei a ir lá com mais freqüência... também teve a reaproximação de Jorge. Depois ele recebeu muitas visitas de parentes, inclusive que moravam em outras cidades. Esse foi o lado positivo” (Manoel). A despeito da união inicial provocada pela doença, sentimentos contraditórios são experimentados pela família. A necessidade da redistribuição dos papéis e responsabilidades entre os demais membros, assim como as modificações das rotinas de vida diária são situações inevitáveis que vão desgastando a vida familiar (Silva, 2000). Segundo Rolland (1995, p.376), as famílias, muitas vezes, ficam presas entre um desejo de intimidade e um impulso para afastar-se, emocionalmente, do membro doente. A futura expectativa de perda pode dificultar muito a manutenção de uma perspectiva familiar equilibrada. Minuchin (1993) afirma que “a presença de um doente crônico tem como fruto a cronicidade disfuncional da família”, contudo, essa disfuncionalidade irá depender de alguns fatores, tal como a forma como o grupo lida e aceita as limitações conhecidas e desconhecidas. Os conflitos emergentes nos depoimentos dizem respeito ao não reconhecimento, ao pouco compromisso e à desigualdade na disponibilidade de recursos emocionais, físicos e materiais, e à divisão de responsabilidades demonstrada por alguns membros da família. Estes conteúdos suscitam sentimentos de insatisfação nos indivíduos mais sobrecarregados nos cuidados ao paciente. “A divisão (de tarefas) não era e não é até hoje muito acertada, tem suas desavenças porque a partir do compromisso, surge a cobrança. Os outros sempre acham que você poderia fazer mais. Por mais que você faça, eles não reconhecem!” (DSC). Cazenave et al. (2005), estudando o cuidador de pacientes portadores do vírus HIV e a tomada de decisões, revelam que 44,7% dos cuidadores permanecem neste papel por mais de dois anos, o que pode influenciar no aparecimento de conflitos no interior da família em razão da sobrecarga imposta por este trabalho e da tomada de decisões. Ele ainda sinaliza que as causas mais freqüentes de manifestação do conflito eram: a indecisão ante a escolha; a responsabilidade da decisão, e a possibilidade de obter resultados negativos diante da sua escolha. Nos depoimentos colhidos, não emergiram conflitos decorrentes da tomada de decisões individualizadas, contudo, estratégias de divisão de responsabilidades foram utilizadas com resultados positivos numa família em que havia duas pacientes portadoras de AVE, cujo nível de dependência era bastante comprometido. “Repartimos tudo, trabalho, despesa... dividimos tudo em cinco! Aí foi a união também em questão de dinheiro, entendeu? Todo mundo entrou com dinheiro pra reformar a casa” (Telma). As famílias mais vulneráveis ao desenvolvimento de crises são aquelas cujos membros vivem consideravelmente distantes uns dos outros, as que têm recursos financeiros mínimos e com histórias de relações turbulentas. Estas características foram identificadas em três famílias. A ausência de uma rede de suporte familiar e emocional adequada, aliada a dificuldades de recursos materiais, resultou em uma grande sobrecarga de trabalho sobre poucos cuidadores.

Considerações finais A ocorrência de um acidente vascular encefálico em um membro da família é uma experiência marcada por bruscas transformações no cotidiano familiar e, particularmente, na vida de cada um de seus membros, sendo ampliada pelo sentimento iminente da perda do ente querido e da incerteza do futuro. A doença foi percebida pelos informantes como um caos que fez desmoronar a estrutura anteriormente existente. A reação à nova situação foi vivenciada distintamente por cada membro da COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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família, sofrendo influências de conteúdos pessoais e relacionais que tinham com o paciente anteriores ao evento. O estresse foi minimizado por meio do apoio mútuo prestado por uma rede efetiva de suporte de familiares e amigos. Passado o impacto inicial, a família enfrentou um novo desafio: reorganizar sua estrutura e mobilizar recursos para atender à demanda de acompanhamento do paciente durante a hospitalização. Como os compromissos individuais não podiam ser indefinidamente interrompidos, mais uma vez, a rede de suporte foi de vital importância no enfrentamento da atual situação. Uma vez que a permanência do paciente numa unidade hospitalar é determinada por fatores clínicos e poderia estender-se por um longo período, as famílias deste estudo adotaram estratégias de revezamento para suprir esta necessidade, nas quais familiares e amigos se alternavam para estar com o paciente no hospital. Em algumas experiências, em especial, das famílias com uma pequena rede de suporte, a solidariedade dos amigos e de parentes residentes em outras cidades, mais disponíveis para o cuidado, se fez presente. Famílias com extensa rede de suporte foram mais bem-sucedidas neste enfrentamento quando comparadas às que possuíam uma rede de suporte insuficiente. A chegada do paciente em casa se traduziu em novo desafio. A ausência de um profissional habilitado para o cuidado mobilizou conteúdos emocionais, como a insegurança e o medo de não dar ao indivíduo doente os cuidados necessários à sua sobrevivência. Alterações nos papéis anteriormente desempenhados, nos hábitos alimentares, na estrutura física, e contratação de pessoal de apoio foram algumas das mudanças processadas nessa fase, de forma a adaptar a família a uma nova situação. Mais uma vez, a existência de uma rede de apoio efetiva no enfrentamento desta mostrou-se necessária. Conclui-se que o foco de atenção está voltado para o doente e as demandas dos demais membros da família são relegadas ao segundo plano. As conseqüências invisíveis e pouco valorizadas da doença na família são processadas lentamente: o isolamento social, a interrupção dos planos de vida dos demais membros da família e, em especial, a doença do cuidador. Nessa seqüência, a família adoece. Desta forma, é necessária a implementação de programas de apoio à família de pacientes com doenças crônicas incapacitantes, instrumentalizando-a tanto para o cuidado ao familiar doente como para o autocuidado.

Colaboradores As autoras Eliana Sales Brito e Elaine Pedreira Rabinovich participaram, igualmente, de todas as etapas de elaboração do artigo.

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BRITO, E.S.; RABINOVICH, E.P. ¡La familia también se enferma! Cambios secundarios en la ocurrencia de un accidente vascular encefálico en la familia. Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.12, n.27, p.783-94, out./dez. 2008. Este estudio trata de comprender el impacto de la enfermedad que causa incapacitación en la familia de pacientes víctimas de accidente vascular encefálico (AVE), investigando los cambios de orden estructural, social y emocional. Se analizan nueve familias de pacientes con primer episodio de AVE identificados por el registro general de enfermedades del Hospital São Rafael de la ciudad de Salvador, estado de Bahia, Brasil. La colecta de datos se realizó mediante cuestionario, escala de evaluación y observaciones registradas en diario de campo. El método empleado ha sido el discurso del sujeto colectivo, produciendo representaciones sociales y transformando en un solo discurso la manifestación de los sujetos investigados. Se constata que la ocurrencia de un AVE es experiencia marcada por bruscas transformaciones en el cotidiano familiar y en la vida de cada uno de sus miembros indicando la necesidad de habilitar a la familia para el cuidado del paciente y para el auto-cuidado.

Palabras clave: Relaciones familiares. Accidente cerebro-vascular. Perfil del impacto de la enfermedad. Recebido em 09/11/07. Aprovado em 03/06/08.

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artigos

Envelhecimento bem-sucedido: trajetórias de um constructo e novas fronteiras

Ângela Maria Machado de Lima1 Henrique Salmazo da Silva2 Ricardo Galhardoni3

LIMA, A.M.M.; SILVA, H.S.; GALHARDONI, R. Successful aging: paths for a construct and new frontiers. Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.12, n.27, p.795-807, out./dez. 2008. This article focuses on different conceptions of successful aging, emphasizing the process of aging as a heterogeneous experience that implies different strategies for achieving wellbeing and quality of life. Studies valuing the aging process as part of the course of human life and the role of subjectivity and health self-perception, as key concepts for understanding wellbeing and health in old age, were selected. Data in the literature suggest that the experience of successful aging values elderly people’s own perceptions: they are the protagonists of interventions and possess judgment about wellbeing and quality of life. Even in the presence of comorbidities and diminished functional ability, it is possible to identify elderly people who report high levels of satisfaction and good quality of life. We propose questions that seek to improve investigations and elaborate this construct within gerontology, bearing in mind the size and complexity of this topic.

Key words: Aging. Old age. Aged. Quality of life. Health.

Este artigo enfoca diferentes concepções de envelhecimento bem-sucedido, enfatizando o processo de envelhecimento como uma experiência heterogênea, que implica diferentes estratégias para a obtenção de bem-estar e qualidade de vida. Foram selecionados estudos que valorizam o processo de envelhecimento como parte do curso de vida humano, o papel da subjetividade e a auto-avaliação em saúde, como conceitos-chave para compreender o bem-estar e saúde na velhice. Os dados da literatura sugerem que a experiência do envelhecimento bem-sucedido valoriza a percepção dos próprios idosos, protagonistas de intervenções e dotados de julgamentos sobre bem-estar e qualidade de vida. Mesmo na presença de co-morbidades e diminuição da funcionalidade é possível identificar idosos que referem altos níveis de satisfação e boa qualidade de vida. Propomos questões que buscam aprimorar investigações e a elaboração deste constructo em gerontologia, tendo em vista a amplitude e complexidade do tema.

Palavras-chave: Envelhecimento. Velhice. Idoso. Qualidade de vida. Saúde.

Médica sanitarista. Curso de Gerontologia, Escola de Artes, Ciências e Humanidades, Universidade de São Paulo (EACH/USP). Avenida Arlindo Bettio, 1000. Ermelindo Matarazzo, São Paulo, SP 03.828-000 sertao@usp.br 2-3 Alunos de graduação do curso de Gerontologia, EACH/USP.

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Introdução “Um velho saudável não é apenas uma ficção de poeta” Canguilhem

Envelhecimento bem-sucedido é um dos temas amplamente difundidos entre os meios de comunicação, serviços, pesquisas e textos que instruem leis e políticas públicas no campo da gerontologia. Nessa área, admite-se que o tempo cronológico deve ser acrescido de vida ativa, necessidade identificada como produto de esforços agenciados nos últimos anos, em grande medida, relacionados ao incremento da produção em ciência, tecnologia e práticas de atenção à saúde dos idosos. É desejável que o envelhecimento ocorra com qualidade e manutenção da autonomia dos indivíduos, buscando preservar a oportunidade de os mais velhos continuarem a participar da sociedade, e minimizar as possibilidades de exclusão social (Teixeira, Neri, 2008; Lima, 2005, 2003; Holstein, Minkler, 2003; Kahn, 2003; Paschoal, 2002). Na presente discussão, tomamos o processo de envelhecimento e a velhice como duas esferas complementares e indissociáveis. Vale dizer, consideramos o envelhecimento como um processo que, no plano individual, implica múltiplas trajetórias de vida e, no plano coletivo, se constrói sob diferentes influências de ordem sociocultural, tais como: acesso a oportunidades educacionais, adoção de cuidados em saúde, e realização de ações que acompanham o curso da vida e se estendem às fases tardias da vida, como a velhice. Nesse sentido, enquanto o envelhecimento se define como processo sociovital multifacetado ao longo de todo o curso da vida, a velhice denota o estado de “ser velho”, condição que resulta do processo de envelhecimento que gerações vivenciaram e vivenciam dentro de contextos sociais, políticos e individuais diversos. Em outras palavras, esses termos se referem a aspectos específicos do ciclo vital humano, de tal modo que, transitar entre as noções de velhice e processo de envelhecimento, torna-se fundamental para se desenvolver a reflexão teórico-conceitual que apresentamos, a seguir, a respeito de envelhecimento, velhice bem-sucedida e bem-estar de idosos. Em países europeus, os dados apresentados por Baltes, Smith (2006) constatam que os idosos mais longevos, com idade superior aos 85 anos, apresentam maior risco de envelhecer acompanhados por múltiplas doenças crônico-degenerativas e outras patologias. Por exemplo, os resultados apresentados por esses autores indicam que 50% da parcela de indivíduos com noventa anos ou mais são acometidos pela doença de Alzheimer; doença neurodegenerativa que se associa à demência e elevados gastos em saúde com progressiva perda de habilidades cognitivas e funcionais. Além disso, Baltes, Smith (2006) apresentam evidências de que idosos muito longevos passam o final de seus dias com elevado índice de comprometimento funcional, dependência e solidão. Os autores acreditam que investir nos múltiplos fatores envolvidos no processo de envelhecimento e em mais ações que se destinem à inclusão social possa ter influências positivas sobre sucessivas coortes de idosos. No âmbito da velhice, os recursos e as intervenções dificilmente se justificam se não se dirigirem ao bem-estar e qualidade de vida dos indivíduos que envelhecem. Esses princípios se tornam cada vez mais relevantes no contexto do já bem conhecido acelerado crescimento populacional brasileiro (Camarano, 2006; Kalache et al., 1987). Já estão bem estabelecidas estimativas que apontam que, até o ano de 2025, teremos um número de idosos que ultrapassará os trinta milhões, e com diferentes tipos de velhice, isto é, construídas por meio de trajetórias diversas, ora acompanhadas por altos níveis de co-morbidades e doenças crônicas, ora por saúde e bem-estar (Lima, 2003; Debert, 1999; Berquó, 1996). Por outro lado, a discussão sobre envelhecimento bem-sucedido é relativamente nova. Os primeiros estudos gerontológicos foram elaborados nas décadas de 1950 e 1960, por pesquisadores de países europeus, pois, naquela ocasião, já era possível se encontrar grande proporção de idosos saudáveis nessas comunidades (Teixeira, Neri, 2008; Glass, 2003; Neri, 2001). As crenças mais positivas sobre o processo de envelhecimento permitiram que várias correntes teóricas se apropriassem desta discussão; desmistificando o paradigma vigente e inevitável de crescimento, estabilidade e contração sobre o ciclo vital humano (Neri, 2001). Em outros termos, investigações gerontológicas possibilitaram modificar a noção de que o envelhecimento está diretamente associado com a deterioração do organismo, e que 796

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passasse a ser visto como um estágio do ciclo vital, tão importante quanto qualquer outro, com suas virtudes e desafios (Masoro apud Groisman, 2002; Uchoa, Firmo, Lima-Costa, 2002; Debert, 1999; Erikson, 1998). Resumidamente, o conhecimento científico e empírico acumulado até o momento, nos permite afirmar que envelhecer não é sinônimo de doença, inatividade e contração geral no desenvolvimento apesar de as crenças e atitudes negativas sobre a velhice ainda serem hegemônicas em alguns contextos culturais, sobretudo entre as sociedades ocidentais, e, possivelmente, entre algumas sociedades orientais contemporâneas. Desse modo, há novos valores e conceitos em construção e que são difundidos em diferentes contextos do mundo, com economia cada vez mais globalizada (Neri, 2006; Bosi, 2005; Beauvoir, 1990). No âmbito das atitudes e estereótipos, considerar que todos os idosos são sábios ou que todos são incapazes é igualmente negativo (Neri, 2006; Debert, 1999). Na literatura gerontológica, envelhecer é considerado um evento progressivo e multifatorial, e a velhice como experiência potencialmente bem-sucedida, porém heterogênea e vivenciada com menos ou mais qualidade de vida. Para Rowe e Kahn (1998), o envelhecimento bem-sucedido seria composto por três fatores: engajamento com a vida; manutenção de altos níveis de habilidades funcionais e cognitivas e baixa probabilidade de doença, e incapacidade relacionada à prática de hábitos saudáveis para redução de riscos. De fato, esses fatores são essenciais, mas essa visão corre o risco de secundarizar as dimensões socioculturais e coletivas, atribuindo a responsabilidade do envelhecimento bem-sucedido ao âmbito particular e individual, baseada apenas no autocontrole (Kahn, 2003). Em estudo no município de São Paulo, Ramos et al. (1993) e Ramos (2003) encontraram maiores índices de doenças crônicas, dependência nas atividades de vida diária e declínio cognitivo entre os idosos residentes em regiões periféricas e empobrecidas, se comparados com os idosos residentes em regiões centrais, localidades com população de nível socioeconômico mais favorecido. Esses dados sugerem que as próprias condições sociais são intrínsecas ou diretamente relacionadas ao status de saúde dos indivíduos. Para falarmos de envelhecimento saudável, é necessário pensar na interação de múltiplos fatores, dentre eles: saúde física e mental, independência de vida diária, integração social, suporte familiar e independência econômica, entre outros. Desde a década de 1980, há diversas iniciativas internacionais que valorizam a possibilidade de se tomar o envelhecimento como processo positivo, pensado como um momento da vida para se exercer bem-estar, prazer e qualidade de vida. A política de envelhecimento ativo, proposta pela Organização Mundial de Saúde (OMS, 2005), é um exemplo concreto dessas recomendações, enfatizando que envelhecer bem não é apenas uma questão individual, e sim um processo que deve ser facilitado pelas políticas públicas e pelo aumento das iniciativas sociais e de saúde ao longo do curso de vida. A priori, a criação da política parte do pressuposto de que, para se envelhecer de forma saudável e bem-sucedida, é preciso aumentar as oportunidades para que os indivíduos possam optar por estilos de vida mais saudáveis e, ainda, fazer controle do próprio status de saúde. Desse modo, a definição de envelhecimento ativo é apresentada como a “otimização das oportunidades de saúde, participação, segurança, com o objetivo de melhorar a qualidade de vida à medida que as pessoas ficam mais velhas” (OMS, 2005, p.13). São termos importantes para essa política: autonomia, independência, qualidade de vida e expectativa de vida saudável, mesmo nos casos em que já esteja instalado algum grau de comprometimento da capacidade funcional. As questões que encaminhamos diante do exposto são: (a) qual a percepção dos idosos sobre o próprio processo de envelhecimento e quais as estratégias que utilizam para manter o bem-estar e a qualidade de vida? (b) a noção de envelhecimento bem-sucedido só se aplica a idosos saudáveis e socialmente engajados? (c) quais as evidências presentes na literatura? Tomando essas questões como pontos de partida, incitamos uma discussão conceitual sobre as possibilidades de construção do envelhecimento bem-sucedido, e apresentamos algumas correntes de pensamento da literatura gerontológica que abordam diferentes categorias de sujeitos idosos e de que modo esses idosos referenciam e estabelecem os significados sobre o próprio processo de envelhecimento. 797


ENVELHECIMENTO BEM-SUCEDIDO: ...

Para tanto, selecionamos estudos que valorizam o papel da subjetividade e auto-avaliação em saúde como conceitos-chave para se compreender o bem-estar e saúde na velhice. Identificamos esses estudos de modo aleatório, priorizando as recentes contribuições sobre o tema do envelhecimento humano como fenômeno sociovital complexo. Nessa direção, utilizamos tais ferramentas como subsídio para contribuir com a construção da noção de velhice bem-sucedida.

O processo de envelhecimento, percepções e estratégias para o bem-estar e qualidade de vida Assim como a discussão sobre envelhecimento bem-sucedido é relativamente nova, a questão da subjetividade assume papel importante na área da saúde após estudos realizados em 1970 (Paschoal, 2002). Para esse autor, a subjetividade representa uma medida imprescindível, correlacionando-se com o status geral de bem-estar e com os indicadores objetivos de saúde. Tal importância convida-nos a refletir sobre a dimensão subjetiva presente no processo de envelhecimento. Na literatura gerontológica são fortes as evidências que sugerem que a percepção de satisfação com a vida tende a ser vista como positiva entre os idosos (Queiroz, Neri, 2007). Na maioria das vezes em que se confronta a avaliação objetiva (realizada por exames e/ou por profissionais) com a realizada pelo próprio idoso (o modo como ele se percebe), potencialmente essas dimensões se complementam e enriquecem a avaliação objetivamente realizada, pois os idosos dispõem de informações únicas que não seriam relatadas por familiares ou, muito menos, observadas com a avaliação padronizada aplicada por profissional treinado (Neri, 2007; Kikuchi, 2005). Uchôa, Firmo e Lima-Costa (2002), ao investigarem idosos da comunidade, descobriram que os pesquisados não se autodeclararam ou autoperceberam como “velhos”; pois o próprio conceito de velhice remete ao declínio, estagnação e doença. Os informantes-chave do estudo, geralmente cuidadores e familiares, possuíam crenças mais negativas sobre o processo de envelhecimento do que os próprios idosos. Groisman (2002) aponta a dificuldade de vários pesquisadores em definir o que faz parte do processo natural do envelhecimento e o que faz parte do processo de adoecimento. Nesse contexto, surgem termos que hoje se tornaram corriqueiros no meio gerontológico, tais como senescência e senilidade, relacionados, respectivamente, ao que é concebido como “envelhecimento saudável” e “envelhecimento patológico”. Os achados de Uchôa, Firmo e Lima-Costa (2002) sobre a percepção subjetiva do envelhecimento, também são apontados por Debert (1999). Para essa discussão, o termo qualidade de vida tornou-se um construto importante para se compreender a subjetividade, porém, até meados da década de 1990, pouco se falava a respeito de qualidade de vida sob o aspecto do “eu subjetivo”; a subjetividade é incorporada definitivamente à definição de qualidade de vida após 1995, quando esse conceito é revisto pelos especialistas da OMS, que, em linhas gerais, o definem como a percepção subjetiva do indivíduo sobre sua posição na vida dentro do contexto da cultura e dos sistemas de valores em que vive e com relação aos seus objetivos, expectativas, padrões e preocupações (Alleyne, 2001; WHOQOL, 1995). Esse conceito foi ampliado após a Segunda Grande Guerra e paulatinamente foi englobado às noções de desenvolvimento socioeconômico e humano e à percepção das pessoas a respeito de suas vidas (Paschoal, 2002). Esse autor diz que às medidas de caráter objetivo, realizadas por aparelhos e ou observador treinado, somaram-se outras, de caráter subjetivo, em que o indivíduo é chamado a opinar sobre a qualidade de sua vida, ou sobre aspectos particulares, tais como: saúde, capacidades funcionais e relações sociais, dentre outras. Para Neri (2007), a boa qualidade de vida na idade madura excede os limites da responsabilidade individual e deve ser vista por múltiplos aspectos, ou seja, uma velhice satisfatória não será atributo do indivíduo biológico, psicológico ou social, mas resulta da interação entre pessoas em mudança vivendo em sociedade e de suas relações intra, extra-individuais e comunitárias. Em texto anterior, esse autor sustenta que os seguintes fatores estariam envolvidos no bem-estar na velhice: ter maior perspectiva de longevidade; possuir bons níveis de saúde física e mental; altos níveis de satisfação com a vida; controle nas dimensões sociais; senso de produtividade, participação e realização de atividades; auto-eficácia 798

COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.12, n.27, p.795-807, out./dez. 2008


LIMA, A.M.M.; SILVA, H.S.; GALHARDONI, R.

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cognitiva; status social; possuir bons recursos econômicos; continuidade dos papéis familiares e ocupacionais; manutenção das relações sociais informais e das redes de relações (Neri, 1993). Com base em estudos gerontológicos como os citados acima defendemos, neste texto, que o bem-estar e a qualidade de vida na velhice são constructos complexos, multifatorais, vale dizer: envolvem múltiplas variáveis, associadas tanto às dimensões individuais quanto coletivas do envelhecimento. Alguns estudos, além de investigarem indicadores de bem-estar e qualidade de vida na velhice, apresentam-nos dados que esclarecem os contextos em que os idosos podem utilizar estratégias para a manutenção desses atributos. Tais estratégias são mecanismos utilizados pelos idosos para compensar as possíveis perdas e manter a independência funcional, social e psicológica (Baltes, Smith, 2006; Diogo, Neri, Cachioni, 2004; Baltes, Smith, 1995; Baltes, Baltes, 1990). Para exemplificar como o estudo sobre as estratégias pode ser fecundo, Baltes e Smith (2006) relatam que, certa vez, um pianista de cerca de oitenta anos foi perguntado sobre como poderia continuar tocando com tamanha proeza. Algumas das respostas fornecidas foram: a seleção de um menor número de teclas e o manejo eficaz dos dedos e das mãos, de modo que poderia continuar tocando piano com desempenho semelhante ao que tinha quando era jovem. Esta ilustração se encontra aplicada ao modelo teórico construído por Baltes e Baltes (1990) definido pelas atividades de seleção, otimização e compensação, representando possibilidades de plasticidade sobre as reservas funcionais do idoso, sendo amplamente difundido entre teóricos e investigadores que estudam o envelhecimento em sua dimensão psicológica. Com o declínio das capacidades funcionais, os idosos se utilizariam de estratégias para a manutenção do desempenho pessoal nas tarefas que já eram desempenhadas, isto é, fariam uso de comportamentos que objetivam: 1) compensar as perdas normativas do processo de envelhecimento e 2) aprimorar os métodos e a forma de como realizam as mesmas tarefas. Para os autores, a seleção pressupõe que os idosos tendem a realizar as tarefas para as quais acreditam possuir melhor ou ótimo desempenho, excluindo ou evitando aquelas para as quais possuem dificuldades. A otimização indica a manutenção das habilidades que ainda estão preservadas, na qual adotar-se-iam métodos para mantê-las ou aprimorá-las. A compensação sugere a utilização de comportamentos que se destinam a compensar as habilidades comprometidas, como é o caso das estratégias menmônicas para manter a eficiência da aquisição e resgate de novas informações. Dados apresentados por Rothermund e Brandstädter (2003), em estudo longitudinal de quatro anos com indivíduos de 58 a 81 anos, sugerem que a utilização de esforços compensatórios ocorrem com maior freqüência entre os grupos de idosos mais jovens do estudo, isto é, entre as sextas e sétimas décadas de vida. Os idosos mais velhos relataram fazer menor uso deste tipo de estratégia, talvez pelo fato de apresentarem menor reserva funcional para manter o mesmo nível de desempenho, e, conseqüentemente, menor controle pessoal sobre as habilidades. Todavia, a sensação de controle sobre o desempenho das habilidades funcionais (física, eficiência mental, aparência física e competência diária) não se correlacionou positivamente com a percepção subjetiva e satisfação com o desempenho pessoal, que se mantiveram estáveis para todos os grupos de idosos pesquisados. Para Rothermund e Brandstädter (2003), isto sugere que, com as perdas normativas pelo envelhecimento, os idosos se acomodariam com o nível de desempenho, adaptando-se e atribuindo menor importância e menor padrão para os domínios funcionais. Estes recursos, mesmo que usados de forma heterogênea, revelam que é possível atenuar os déficits e as perdas próprias do processo de envelhecimento. Para Baltes e Smith (2006), os indivíduos que fazem uso da seleção, otimização e compensação estão entre os idosos que se sentem melhor e são mais atuantes. Além dos dados citados, são necessários mais estudos para se identificar como os idosos, em seus múltiplos contextos socioculturais e individuais, usam e se beneficiam dos fatores já observados na literatura. Segundo Antonucci (2001), o suporte social é um dos recursos mais significativos usados pelos idosos. Envolve a percepção do suporte recebido, o senso de controle sobre as relações sociais, e a perspectiva de trocas que incluem fatores afetivos, emocionais e materiais. Em pesquisas na comunidade francesa, Antonucci, Fuhrer, Dartigues (1997) assinalam que a percepção e a satisfação com o suporte social recebido foi correlacionada positivamente com menores índices de sintomas depressivos. A manutenção de contatos sociais com amigos de longa data, e preservação de emoções positivas com os relacionamentos, mesmo na presença de diminuição da rede de relações, são achados positivos 799


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no contexto das relações ou interações na velhice, assim como a possibilidade de suporte e contatos à distância com filhos, amigos e familiares (Erbolato, 2002). Para Uchôa, Firmo e Lima-Costa (2002), os filhos formam a rede de suporte primário, mas quando esses não o fazem por “n” motivos, os idosos acabam buscando-a em amigos e vizinhos. Para as pesquisadoras, ficou claro que a questão financeira está ligada à saúde e à aposentadoria, que, mesmo modesta, permite o mínimo de autonomia. Mais que receber os benefícios das redes de contatos e suporte social, os idosos, de acordo com projeções sobre a população brasileira, passam cada vez mais a ser provedores de domicílios em que co-habitam três ou mais gerações, possibilitando a manutenção das despesas e suporte instrumental para gerações mais jovens (Sommerhalder, 2007; Debert, Simões, 2006). Outras linhas de investigação, compostas por estudos psicológicos, se ocupam em descrever, dentre outros temas, modelos de enfrentamento aos eventos de vida não normativos do curso de vida. Esses modelos podem ser úteis para explorar comportamentos de idosos que vivem em sociedades ocidentais contemporâneas (Batistone, Fortes, Yassuda, 2007; Neri, 2007; Neri, Fortes, 2006; Poon, 2003). Esses autores caracterizam os eventos como inesperados ou imprevisíveis, e os avaliam com a presença de danos, prejuízo, ônus ou com grandes mudanças que assumem papel crítico ao desenvolvimento, sendo vivenciados pelo indivíduo com forte intensidade, como, por exemplo: ficar doente, ganhar na loteria, sofrer um acidente de carro, entre outros. Os eventos de vida normativos nesse modelo, ao contrário, são considerados como mudanças esperadas considerando o contexto de sociedades ocidentais, com oportunidades de adaptação prévia e passíveis de maior controle, como a aposentadoria, a viuvez e a emancipação dos filhos na idade adulta etc. Para Batistone, Fortes e Yassuda (2007), os eventos de vida que representam experiências estressantes, exigindo a adaptação dos indivíduos em relação ao meio, são relativamente semelhantes para adultos e idosos, o que se modifica são os tipos de eventos presentes na velhice. Ao longo do ciclo de vida, os eventos de vida não-normativos tendem a crescer, assim como, na velhice, a incidência de estressores crônicos associados à saúde física são mais intensos e exigem maior adaptação do que se comparados com a perda de familiares, apresentando implicações negativas para a realização de atividades de vida diária e de autocuidado. Os idosos utilizam estratégias de enfrentamento modificando o significado dos eventos ou manejando os efeitos da situação. A percepção de controle sobre os eventos estressantes aumenta o sentido de competência pessoal, e é um dos grandes fatores associados à qualidade de vida (Neri, Fortes, 2006). Na linha de bem-estar psicológico do envelhecimento, Goldstein (1993) sugere que a espiritualidade e a religiosidade são uma das estratégias mais ricas e utilizadas pelos idosos frente ao aumento do senso de finitude ou proximidade da morte. A crença de transcendência permitiria conforto, sensação de geratividade e bem-estar psicológico, dimensões que aparecem como positivas na vida adulta madura e na velhice. Ryff e Keies (1995) pontuam que o bem-estar psicológico no envelhecimento é construído por seis dimensões-chave: a auto-aceitação, relações positivas com os outros, autonomia, controle sobre o ambiente, propósito na vida e crescimento pessoal. Este modelo baseia-se em seis preposições psicológicas positivas, entre as quais a felicidade e a velhice bem-sucedida são variáveis imprescindíveis. Os resultados descritos pelas autoras, em estudo comparativo de idosos e adultos jovens na comunidade americana, são de que os indivíduos mais velhos apresentariam valores elevados em quase todas as dimensões, com exceção das dimensões propósito na vida e crescimento pessoal. A priori, estes resultados reforçam objetivamente a sensação de crença na finitude, apresentando implicações diretas sobre o bem-estar psicológico. Outra proposição teórica, como é o caso da teoria da seletividade socioemocional de Carstensen (1995), se ocupa em explorar como os idosos reconhecem a própria finitude e modificam os significados das relações, orientadas para as emoções positivas (Erbolato, 2006; Cartensen, 1995). Segundo Goldfarb (1998), com o aumento da sensação de finitude, os idosos se utilizariam das reminiscências, lembranças e resgate de fatos do passado, que são utilizados para o contexto presente, permitindo, em especial, reavaliação de quem são, reinvenção do histórico de vida e conforto socioemocional. Dados apresentados por Pasuphathi e Mansour (2006) sobre a exposição de jovens e 800

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adultos maduros em programas que objetivavam estimular o auto-relato sobre crises pessoais e experiências heterogêneas de vida, revelam que a idade foi associada linearmente com maior possibilidade de integração dos conteúdos relatados na história autobiográfica dos participantes. Este achado revela que, com o envelhecimento, as narrativas tendem a ser mais integrativas, apresentando associação positiva para a conexão dos relatos e constituição do histórico de vida. Vale salientar que a investigação sobre o envelhecimento como fase do ciclo vital é relativamente bem-desenvolvida na psicologia do envelhecimento, que influenciou diversos estudos gerontológicos, fato que nos permitiu apontar acima os resultados desses estudos em maior detalhamento. Entretanto, como é citado por vários autores, muitas vezes, os termos envelhecimento bemsucedido, qualidade de vida, satisfação com a vida, bem-estar subjetivo, acabam por serem usados de forma indiscriminada ou como sinônimos (Paschoal, 2006; Revicki, 2004; Neri, 1993). Exemplo disso é que, em sua tese de doutorado, Paschoal (2002) fez um levantamento sistemático dos trabalhos que tinham, no título, o termo qualidade de vida e idosos, e encontrou, no Brasil, 289 publicações; ao olhar com profundidade tais publicações, apenas dez estudavam, de fato, qualidade de vida, as outras ou apresentavam o tema de forma superficial, ou apenas citavam, em seus títulos, o tema qualidade de vida. O mesmo acontece com a questão do envelhecimento bem-sucedido no momento. A seguir, enfocaremos a questão sob a óptica pela qual ele originalmente foi cunhado na literatura internacional, ou seja, no original inglês “successful aging” (Kahn, 2003; Baltes, Baltes, 1990).

Envelhecimento bem-sucedido: idosos saudáveis ou socialmente engajados? O envelhecimento saudável e socialmente engajado, assim como referenciam Rowe e Kahn (1998), possivelmente é um dos maiores preditivos da velhice bem-sucedida. Indivíduos com altos níveis de comorbidades e acometidos por enfermidades que limitem drasticamente a interação com o ambiente apresentariam maior dificuldade para adaptações e manutenção do bem-estar e da qualidade de vida. Teorias formuladas por estudiosos de gerontologia social se debruçaram em investigar o engajamento social dos idosos e os modelos conceituais sobre as alternativas sugeridas de relacionamentos entre idosos e sociedade. As teorias mais difundidas na literatura gerontológica nessa dimensão e que, até hoje, apresentam implicações sobre estudos e intervenções são: a teoria da atividade e a teoria do desengajamento. Em pólos opostos, a primeira teoria postula que envelhecer de forma adequada caracteriza-se pelo engajamento em atividades sociais, evitando que a inatividade relacionada aos estereótipos do envelhecimento, da aposentadoria, da perda de contatos sociais se instale na vida dos idosos. A teoria do desengajamento sugere que, com o progressivo aumento da idade, as pessoas tendem a se desvincular da sociedade, dos contatos sociais, dos contextos de decisão e de algumas tarefas sociais que antes eram exigidas (Siqueira, 2002). Tendo em vista as teorias sociais e que tentam abrir caminhos para compreender as relações sociais e o engajamento social na velhice, sabemos que a subjetividade tende a ser um bom indicador de qualidade de vida, que, por conseqüência, permite avaliar em que medida a velhice pode ser percebida como uma etapa bem-sucedida da vida. Nesse sentido, atualmente, muito se postula sobre a utilização da subjetividade como parte integrante de instrumentos de avaliação da qualidade de vida, senão como “aliada” para avaliá-la. Conforme apontamos anteriormente, recentemente muitos instrumentos têm sido desenvolvidos, e esses privilegiam a opinião do sujeito. Esses instrumentos podem ser classificados em dois tipos: os gerais, que se destinam a mensurar de forma globalizada a qualidade de vida, como o WHOQOL, e alguns instrumentos específicos, como o Mini Exame do Estado Mental (MEEM), avaliando aspectos do status cognitivo global. Exemplo do que citamos pode ser encontrado na literatura, em um depoimento que corrobora nossa idéia: “D. Joaquina é uma senhora de 94 anos que vive acamada há alguns meses. Ela nos conta que quebrou uma perna e dois meses depois quebrou a outra, mas, surpreendentemente, define sua saúde como ‘muito boa’” (Uchôa, Firmo, Lima-Costa, 2002, p.29). Evidências apresentadas por Diogo et al. (2004) indicam que a situação de dependência é multifacetada e apresenta múltiplas dimensões, sejam elas sociais, psicológicas, ecológicas, econômicas, políticas e outras. Para as autoras, o desafio para o bem-estar dos idosos acamados e dos cuidadores COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.12, n.27, p.795-807, out./dez. 2008

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centra-se no fato de que os profissionais deveriam, também, promover iniciativas que estimulassem o autocuidado dos cuidadores de idosos, freqüentemente sobrecarregados com a tarefa de prestar os cuidados. Karsh (2003), ao apresentar dados de estudos brasileiros, verifica que grande parcela dos cuidadores possui cinqüenta anos ou mais, são majoritariamente do sexo feminino e familiares próximos (filhas e esposas). A própria capacidade funcional das pessoas que oferecem os cuidados pode estar parcialmente comprometida, o que leva a constatar que apresentam risco aumentado para o desenvolvimento de doenças como: depressão, cardiopatias, hipertensão, entre outras. Para a autora, a velhice com dependência é freqüentemente escondida e não é alvo de políticas públicas específicas, delegando-se o papel de cuidar exclusivamente à família (Karsh, 2003). Dispositivos legais, tais como o Estatuto do Idoso, que foi consolidado em 2004, apresentam normatizações que acabam sugerindo amparo tutelar para os idosos, pois nesse documento os idosos são definidos como doentes e dependentes, panorama que nem sempre é verdadeiro. Além disso, responsabilizar a família pelos cuidados poderia ser uma iniciativa acompanhada por ações que permitissem o cuidado global do idoso, assim como a oferta de serviços formais de assistência e suporte ao idoso e sua família (Neri, 2005). Concordando com o que discutimos acima, defendemos a constatação de que os idosos podem usufruir, em diferentes graus, de suas capacidades e habilidades. Não é raro encontrar, na prática profissional gerontológica, idosos com níveis intermediários de dependência e que referem altos níveis de satisfação com a vida e bem-estar subjetivo, como citado anteriormente. A velhice bem-sucedida, neste ponto, não seria um estado de “nirvana” e/ou equilíbrio completo das habilidades pessoais. A própria experiência do envelhecimento é adaptativa, e este fato pode indicar que os indivíduos com algum grau de limitação podem se adaptar e apresentar outros padrões de avaliação sobre envelhecimento bem-sucedido (Rothermund, Brandstädter, 2003; Neri, 2001). Duarte (2007) sugere que há grupos de idosos com predisposição para atingir elevados níveis de comprometimento da funcionalidade ou redução das habilidades funcionais, os quais deveriam ser classificados como idosos fragilizados. Essa concepção parece proveitosa, sobretudo se considerarmos a necessidade de planejamento de cuidados e gestão de risco no envelhecimento; porém, outras abordagens poderiam ampliar essa mesma concepção ao considerarem, também, níveis de plasticidade e variabilidade de fatores subjetivos que compõem o processo de envelhecimento e que, possivelmente, apresentariam implicações mais significativas sobre a velocidade e o tempo em que as habilidades são reduzidas. Considerar o processo de comprometimento da funcionalidade como uma espécie de sentença aos grupos de risco minimiza o espaço para a criação de alternativas que valorizam novas modalidades de avaliação e adaptação das habilidades. Além da susceptibilidade para o comprometimento funcional, é necessário investigar como as pessoas conseguem vivenciar seus dias com altos padrões de bem-estar e baixos níveis de habilidades funcionais objetivas, considerando: o nível de locomoção, presença de co-morbidades e doenças crônico-degenerativas, reserva cognitiva, desempenho sobre as atividades de vida diária, padrões de sociabilidade e outros. Outra reflexão que sugerimos com o presente texto é que os programas e intervenções dirigidas ao envelhecimento deveriam ser compatíveis com o perfil do idoso atendido. Os profissionais, neste ponto, devem se valer de diferentes estratégias para acompanhar as necessidades dos idosos, inclusive, quando for o caso, usar de questionários e escalas validadas para auxiliar a entender a demanda de cada indivíduo e aferir sua subjetividade. O planejamento, a avaliação das necessidades, o monitoramento e os resultados obtidos são imprescindíveis nas práticas assistenciais (Alkema, Reyes, Wilber, 2006). Salmazo-Silva (2006), ao analisar as implicações da participação de idosos recém participantes em centros de convivência, em aspectos cognitivos e psicossociais, apontou que a própria motivação para participar desses programas sinaliza bom status cognitivo, altos níveis de satisfação com a vida e baixos índices de sintomas depressivos. Este resultado confirma-se também nas reflexões de Mercadante (2002), que sugere a comunidade como possibilidade para o exercício de novos papéis sociais, novos contextos de decisão e valorização individual. Apesar de o estudo de Salmazo-Silva (2006) não mensurar a amplitude dos programas para idosos que possuem limitações de saúde e que se encontram em condições de vulnerabilidade, acredita-se que, assim como sugerem Bowling et al. (2007), existe uma parcela considerável de idosos que informa altos níveis de qualidade de vida mesmo com a presença de comprometimento funcional e de saúde física. Os 802

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autores encontraram, em uma amostra de 999 idosos ingleses, cerca de 31% que apresentavam declínio significativo nas habilidades funcionais. Destes, 62% referiam a saúde como boa. Dentre outros fatores, foram preditivos para a auto-avaliação positiva de saúde: possuir maior percepção de controle sobre a vida, e, ainda, maiores níveis de envolvimento social. Estes dados reforçam a idéia de que, mesmo em condições vulneráveis, existem fatores protetores, sejam eles intrínsecos ou extrínsecos. No estudo de Bowling et al. (2007), o envolvimento social também apareceu como uma dimensão importante no contexto dos idosos com limitações funcionais. Podemos admitir que esses dados valorizam o alcance desta variável tanto para idosos independentes quanto para idosos com dependência.

Considerações finais É fato que o envelhecimento pode ser uma experiência prazerosa e com qualidade de vida. Entretanto, acreditamos que não exista um padrão único de velhice, e que essa experiência deva ser considerada genericamente como bem ou malsucedida, menos ou mais guiada por comportamentos fixos e por estilos de vida engajados, como participar de programas da terceira idade ou iniciar determinados tipos de atividades. O envelhecimento, como citado em outros momentos, é um fenômeno complexo e heterogêneo, que envolve questões de responsabilidade individual e social. Neste texto propomos que a experiência da velhice se constrói com a percepção dos próprios idosos, protagonistas de intervenções e dotados de julgamentos, crenças e diferentes visões do que sejam bem-estar e qualidade de vida em interação com outros idosos ao longo de todo o curso da vida (Teixeira, Neri, 2008; Neri, 2006; George, 2001). Destacamos, ainda, que esta discussão constitui tema fértil de investigação e ainda pouco explorado. Vale dizer, entre profissionais e pesquisadores em gerontologia, há o desafio de mapear as trajetórias dos conceitos de envelhecimento e de velhice, assim como dos fatores envolvidos no bem-estar, em especial, na velhice tardia (pessoas com oitenta anos ou mais). Resta saber também como seriam redirecionadas as visões de envelhecimento e velhice bemsucedida pressupostas em linhas de pesquisas gerontológicas, assim como a delimitação conceitual de envelhecimento bem-sucedido em contraposição ou consonância às noções de envelhecimento produtivo, envelhecimento ativo, velhice positiva e/ou envelhecimento ótimo (Glass, 2003). A interlocução interdisciplinar entre estudos de linhas psicológicas, sociais e biomédicas destinadas a compreender o processo de envelhecimento torna-se cada vez mais necessária. Esse exercício teórico e por meio de pesquisas empíricas poderá contribuir para a compreensão da resiliência, dos recursos mobilizados nos enfrentamentos de estresses e dos níveis de plasticidade dos sistemas orgânicos, nas diferentes possibilidades de ‘velhices bem-sucedidas’. Dados de estudos etnográficos, transculturais, longitudinais e de coortes geracionais serão interessantes recursos para apoiar a compreensão de alguns dos questionamentos já levantados. Conforme versa Chammé (1996), a dicotomia existente entre os processos saúde/doença foi historicamente construída, em específicos contextos socioculturais. Este autor nos chama a atenção para o fato de que concepções do que é ser saudável no envelhecimento ainda experimentam limitações, em parte, relacionadas, que se podem apreender com o contexto teórico disponível em gerontologia. Este é um limite que precisa ser enfrentado pelos estudos gerontológicos mais recentes. Finalmente, propomos que se desenvolvam reflexões acerca da atenção dirigida a idosos, dos cuidados oferecidos aos que envelhecem ou das intervenções dirigidas para idosos saudáveis ou vulneráveis. Ações e programas que se organizem, por exemplo, pelo princípio do compartilhamento de decisões (Diogo et al., 2004). Sugerimos que se estudem intervenções ampliadas para que se compreendam representações implicadas no que é concebido como envelhecimento bem-sucedido, que, podemos supor, assume diversos sentidos em constante reelaboração - o que de resto desloca o constructo de envelhecimento bem-sucedido para a proposição de velhice emancipada, porque resignificada ou reconstruída ao longo de dinâmicos e intersubjetivos processos de envelhecimento.

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Colaboradores Os autores Ângela Maria Machado de Lima, Henrique Salmazo Silva e Ricardo Galhardoni participaram, igualmente, de todas as etapas de elaboração do artigo.

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Palabras clave: Envejecimiento. Vejez. Anciano. Calidad de vida. Salud.

Recebido em 01/08/07. Aprovado em 18/07/08.

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artigos

A diversidade cultural presente nos vídeos em saúde

Alice Ferry de Moraes1

MORAES, A.F. Cultural diversity in health-related videos. Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.12, n.27, p.811-22, out./dez. 2008.

Videos are increasingly used as informational support in health-related social intervention actions. The objective of this paper was to become acquainted with the cultural elements in healthrelated videos, since they are information transfer facilitators. Studies on the use of health-related information in Brazil, the strength of images in individuals’ cognition process and the need to put conveyed information into context served as the basis for analyzing the finalists among videos at the Third HealthRelated Video Show, promoted by the Oswaldo Cruz Foundation (Fiocruz) and held in Rio de Janeiro in 1998. By observing some of the technical data on these videos, it was possible to identify the cultural setting within which they were produced. The cultural diversity present in communication actions within all spheres, including health promotion and disease prevention, is an essential element for social progress.

Key words: Communication. Videos. Health. Culture.

Os vídeos, cada vez mais, são utilizados como suportes informacionais nas ações de intervenção social na área da saúde. Conhecer os elementos culturais existentes nos vídeos em saúde foi o objetivo deste trabalho, pois eles são facilitadores da transferência da informação. Estudos sobre o uso da informação em saúde no país, a força das imagens no processo cognitivo dos indivíduos e a necessidade de contextualização das informações repassadas serviram de base para a análise dos vídeos finalistas da III Mostra de Vídeos em Saúde, promovida pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e realizada no Rio de Janeiro, em 1998. Com base na observação de alguns dados das fichas técnicas desses vídeos, foi possível identificar o meio cultural no qual eles foram produzidos. A diversidade cultural presente nas ações comunicacionais em todos os âmbitos, inclusive na promoção da saúde e na prevenção de doenças, é um elemento essencial para o progresso social.

Palavras-chave: Comunicação. Vídeos. Saúde. Cultura.

COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

1 Bibliotecária e jornalista. Laboratório de Pesquisa em Comunicação e Saúde, Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde, Fundação Oswaldo Cruz. Av. Brasil, 4036, sala 709. Rio de Janeiro, RJ ferry@cict.fiocruz.br

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Introdução A multiplicidade de abordagens e a pluralidade de linguagens e gêneros, frutos da diversidade cultural, despertaram interesses e estimularam um estudo do uso de imagem em movimento na área da saúde no Brasil a partir de nossa participação no júri da III Mostra Nacional de Vídeos em Saúde, promovida pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), e realizada, em 1998, no Rio de Janeiro. A escolha dos vídeos de intervenção social a serem aqui abordados teve uma relação direta com sua atuação mais próxima à população mais carente de nosso país. Os vídeos analisados foram os produzidos de maneira a intervir socialmente, ao integrar ações de prevenção de doenças e promoção da saúde, por meio da mudança de comportamento dos indivíduos com base nas informações transferidas. A hipótese apontada por este trabalho é a de que as informações, quando contextualizadas, trazem sucesso à ação de informar. Sendo assim, o objetivo desta pesquisa foi identificar os elementos culturais existentes nos vídeos finalistas da III Mostra Nacional de Vídeos em Saúde e estimular, por meio de argumentações teóricas, a contextualização das informações veiculadas nesses suportes informacionais. O primeiro passo foi procurar conhecer como a informação em saúde expandiu-se e repercutiu no Brasil. Saber como a imagem atua no processo cognitivo das pessoas foi a segunda preocupação deste trabalho. O vídeo, objeto deste estudo, é constituído por imagens em movimento (forma) e informações em saúde (conteúdo). A transferência da informação, tal como foi conceituada neste texto, se relaciona com a visão cognitivista da Ciência da Informação, na medida em que estuda o processo informacional que tem por objetivo mudar o comportamento dos seus usuários, aqui representados pelos espectadores dos vídeos. A necessidade de observância dos aspectos culturais dos grupos, para os quais são repassadas as informações em saúde, cresce com a constatação da inoperância de alguns vídeos que, apesar da sedução exercida por suas imagens, oferecem pouca informação ou informação sem adequação aos seus potenciais espectadores. Qualquer que tenha sido o aspecto das imagens em movimento aqui abordadas, pode ser verificada a sua importância no uso de transferência da informação, seja pelo modo de representar a realidade, pela facilidade de compreensão dos conteúdos nelas contidos, ou, ainda, pela sua aceitação da estrutura cognitiva do indivíduo e sua difusão no ambiente social. Enfim, as imagens em movimento, com sua complexidade, despertam interesses de diversas áreas do conhecimento e da sociedade.

Informação em saúde A informação em saúde foi instituída como instrumento de saúde pública desde o início do século XX. No Brasil, a adoção de técnicas de propaganda em saúde intensificou-se em 1920, com a criação do Departamento Nacional de Saúde Pública que tinha, entre outras atribuições, a de incentivar a educação sanitária. Na década seguinte, o rádio e o cinema tornaram-se instrumentos de campanhas de saúde, assim como da política. Inicia-se, dessa forma, a utilização das imagens em movimento na difusão de informações em saúde. Por volta dos anos 1960, com o sanitarismo, foram feitas pesquisas, segundo Rodrigues (1967 apud Pitta, 1995), para identificar crendices e superstições, assim como saberes sobre: meios de transmissão de doenças, costumes, líderes locais, meios de comunicação disponíveis, e o papel das escolas e das igrejas na questão da saúde. A partir daí, estratégias de persuasão passaram a ser utilizadas com o objetivo de “substituir o espírito de relutância” dos indivíduos em “aceitar cumprir as providências recomendadas pelas autoridades sanitárias, conforme o ideário da tradicional educação sanitária” (Rodrigues, 1967 apud Pitta, 1995, p.241). Na década de 1970, ainda de acordo com Rodrigues, na segunda edição de seu livro (1979 apud Pitta, 1995, p.241), “a administração sanitária passa a incorporar inovações como ‘ajuste da linguagem’ à ‘população-alvo’ uma forma de conferir mais eficácia aos procedimentos de transferência de informações a indivíduos ou grupos sociais”. 812

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Apesar de todos os esforços empregados pelas instituições e profissionais da saúde na comunicação de informações sobre a área, estudos desenvolvidos por instituições governamentais e não governamentais do campo da saúde e da agricultura mostraram que parte dos indivíduos ainda não percebia o conteúdo das mensagens recebidas. Uma das causas identificadas foi a tensão criada entre as “noções” de saúde, recebidas por esses indivíduos, e a vida cotidiana (Pitta, 1995). No final da década de 1980 houve uma politização do acesso à saúde, visto como um direito civil. Foram realizadas, na VIII Conferência Nacional de Saúde, diversas discussões sobre práticas comunicacionais como um pressuposto do direito à saúde por parte da população brasileira, incluindo “educação e informação plenas, participação na organização, gestão e controle dos serviços e ações de saúde; direito à liberdade, à livre organização e expressão” (Conferência Nacional de Saúde, 1986, p.386). Ainda hoje, levar informação sobre saúde para comunidades carentes de tudo é uma tarefa nobre. Utilizar o vídeo, uma tecnologia bem atual, por suas transformações possíveis (CD-ROM e DVD) é fascinante. Ele torna a informação onipresente (TV, computador, telão, telinha) e universal. As imagens chegam, sem discriminações, a todos, letrados e não letrados. As informações nele contidas são polivalentes. Ensinam, discutem, divulgam informações, influenciam, dão voz e vez a pessoas, e salvam vidas. Trabalhar com informação em saúde é trabalhar para a promoção da inclusão social. O interesse cada vez maior pelo tema saúde em nossa sociedade traz consigo a produção de estudos e pesquisas, nas áreas das ciências sociais, sobre ele, assim como a produção de vídeos. O sujeito contemporâneo é constantemente informado sobre as causas possíveis das doenças que pode contrair, sobre os alimentos que podem evitar enfermidades futuras, sobre exercícios e hábitos que garantem um corpo belo e saudável [...] Os homens se percebem capacitados de programarem suas vidas com o fim de evitarem virtuais possibilidades de adoecer. (Bruno, 1994, p.77)

Os vídeos de intervenção social, objeto deste trabalho, procuram usar uma linguagem adequada a seu público para, subseqüentemente, desencadear ações ou mudanças de comportamento de seu público. A contextualização informacional servirá de instrumentos de adaptação, cada vez maior, dos discursos desses vídeos que, muitas vezes, englobam mais de uma fala no seu interior. Foi o que verificou Rondelli (1995), com base na análise de vídeos de programas de entrevista sobre saúde. Esses vídeos apresentam três tipos de discursos: o leigo (por meio de depoimentos de pessoas comuns, facilitando a identificação do espectador com esse relato subjetivado); o especialista (por meio de depoimentos de médicos que, com base no campo científico, tentam levar, ao espectador, informações sobre essa área, utilizando uma fala nem sempre simples, mas que, comumente, emprega metáforas para se fazer entender); o midiático (por intermédio da fala de um profissional – jornalista, educador etc. – que faz a mediação entre os depoimentos leigo e especialista, podendo ser o fio condutor para a compreensão do tema). De acordo com o Boletin sobre Reducción Desigualdades en Salud, um estudo publicado pela Organização Pan-Americana de Saúde - OPAS (2001) demonstrou que os integrantes das populações de baixa renda não identificavam sua má saúde ou enfermidades e, conseqüentemente, não recorriam aos centros de saúde, mesmo com assistência médica gratuita. Sendo assim, consideram-se necessários programas de educação em saúde pública para levar, até essas pessoas, informações úteis sobre diversos males que poderiam acometê-las. Para esses casos, o vídeo é um veículo adequado. Outro exemplo a ser observado é também recente. Por ocasião da primeira epidemia de dengue, no Rio de Janeiro, em entrevista a Magalhães, a bióloga cubana Montero Lago (2002) afirmou que, nos países mais carentes, muitos habitantes não têm formação educacional suficiente para entender as informações disseminadas nas campanhas de saúde, por mais que elas sejam repassadas de maneira maciça. Seriam necessários, segundo ela, meios facilitadores para a compreensão das informações disseminadas. Mais uma vez, a imagem em movimento foi considerada um instrumento apropriado, como foi possível observar nas campanhas sobre a dengue no Brasil, suplantando os resultados obtidos pela divulgação via panfletos e cartilhas. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Este trabalho, no entanto, ressalta que, por vezes, alguns problemas ocorrem pela não observância de certas ações por parte de alguns promotores das campanhas de saúde, ou seja, ocorrem porque, ao se transferirem informações, eles não levam em consideração o contexto dos indivíduos que as receberão, não importando o veículo utilizado. Sendo assim, fica difícil a obtenção de mudanças na maneira de agir, por parte dos usuários da informação, para melhorar a saúde. A mudança no comportamento das pessoas tem diversas origens. As ciências sociais afirmam que o que gera um tipo de comportamento, na maior parte das vezes, é produzido por elementos fora do indivíduo. Por exemplo: a antropologia vê a cultura como responsável pelo comportamento humano; a ciência política considera a estrutura de governo e a forma de exercício do poder como formadoras do comportamento humano; a sociologia observa a organização social e sua influência no comportamento dos elementos de uma sociedade. Essas ciências contribuem para o entendimento da ação humana. O comportamento das pessoas pode ser alterado pelo discurso, cuja construção de significados está na formação, na narração que, em tempos idos, tiveram expressão pictográfica e oral, depois manuscrita e impressa, e, hoje, junto às diversas expressões, utilizam a imagem transmitida, entre outras formas, pelo vídeo. As teorias de persuasão reexaminam o papel da cultura e da organização social que, por vezes, são obstáculos para mudanças de comportamento. Campanhas informativas obtiveram resistência comportamental devido a práticas culturais institucionalizadas. Rogers (1995) relata o caso de uma agente de saúde tentando persuadir os membros de uma tribo de índios no Peru, vítimas do cólera, a ferverem a água para não ficarem doentes. Na tribo, por tradição cultural, somente as pessoas doentes bebiam água fervida, e não as que estavam com saúde. Quando a agente fez uma explanação sobre os micróbios na água não fervida, os índios consideraram que o tamanho dos micróbios impossibilitaria um ataque a eles, que eram infinitamente maiores, e resolveram não acatar as sugestões da agente de saúde.

Imagens A força comunicacional das imagens é reconhecida por todos. Elas foram utilizadas nos primeiros registros informacionais produzidos pelo homem quando, ainda nas cavernas, desenhos tentavam reproduzir ações do dia-a-dia como, por exemplo, caçadas, perseguições a animais. Manguel (2001) declara que as palavras de um livro só permanecem, de forma parcial, em nossa memória, enquanto uma imagem pode ficar, de forma integral, para sempre. Bosi (1993) relata que os psicólogos da percepção são unânimes em afirmar que a maioria absoluta das informações, obtida pelo homem, vem por imagens. O homem de hoje é um ser predominantemente visual. Alguns chegam à exatidão do número: 80% dos estímulos seriam visuais. Para conhecer, diz Bosi (1993, p.67) “basta abrir bem os olhos em um espaço iluminado e acolher os levíssimos e agílimos ícones do mundo”. A força da imagem para transferir informação não está relacionada apenas à sua ação visual e textual, mas, também, à memória e ao imaginário social. Nossos sonhos são imagens, nossos pensamentos também. Ambos são frutos de nossa imaginação, ou seja, a ação de colocar em imagens desejos, medos, expectativas, conhecimento. No entanto, a imagem é identificada, por muitos, como o contrário da escrita. Por analogia, muitos atribuem a crise da leitura dos livros à sedução das tecnologias da imagem e, entre elas, a do vídeo. A imagem oferece um tipo de “leitura”. Essa “leitura” envolve três níveis, segundo Barthes (1990): o nível informativo, que corresponde ao nível da comunicação (reconheço a imagem, o que vejo); o nível simbólico, que corresponde ao nível da significação (a imagem evoca um simbolismo de fácil acepção), e o nível da significância, que corresponde à observação da razão analítica (apresenta algo que exige uma reflexão para seu entendimento). Existem as imagens paradas (fotografias, ilustrações etc.) e as imagens em movimento (vídeos), sobre as quais nos detemos. Elas são assim chamadas porque registram cenas onde há movimentos tanto das personagens quanto dos demais elementos integrantes da cena visualizada. Além disso, o equipamento de registro de imagem e de som é utilizado com movimento próprio, aumentando ainda mais a percepção daquilo que é intenção do diretor mostrar. 814

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Elas se dirigem tanto ao espectador individual quanto ao coletivo, podendo, assim, ser utilizadas em espaço doméstico ou social. Há sempre uma intenção na realização de um vídeo, e seu valor vai depender do seu uso e de sua interpretação. No Brasil, desde o final da década de 1930, o uso das imagens em movimento, tendo como suporte o filme, foi intensificado na disseminação de informações em saúde. Destacaram-se os filmes produzidos pelo Instituto Nacional do Cinema Educativo (Ince), criado, em 1936, pelo então Ministro da Educação e Saúde, Gustavo Capanema, e dirigido por Edgard Roquette Pinto. Hoje, o cinema foi substituído, em grande parte, pela televisão e pelos vídeos na ação de divulgar ciência e saúde, sendo seus produtos reproduzidos pelos aparelhos de videocassete e pelos computadores, via internet. A televisão, como o vídeo, pode oferecer suas imagens nos lares de cada espectador. A singularidade do vídeo está no fato de as imagens poderem ser interrompidas, repetidas, regravadas para serem vistas quando o espectador deseja ou precisa. Além disso, o vídeo pode ser transportado para qualquer lugar onde haja um aparelho reprodutor. As representações empregadas na produção do vídeo em saúde são de diversos tipos e, entre elas, algumas são semelhantes às utilizadas pela programação da popular televisão, aproximando-o, ainda mais, de seu espectador; e não há distinção quanto à sua utilização, uma vez que o vídeo em saúde desperta interesse em pessoas de diferentes classes sociais ou níveis educacionais. A imagem seduz a todos e, sendo uma representação da realidade, ela traz consigo o encantamento dos registros em movimento e cores, envoltos em emoção. Na área da saúde, existem diversos tipos de vídeo, destacando-se dois: os de campanha e os de intervenção social. Os vídeos de campanhas de saúde, com duração de até um minuto e com elemento persuasivo destacado, assim como os vídeos de divulgação, com duração de 15 minutos em média, são, na maioria dos casos, produzidos pelo Ministério da Saúde (MS). Os vídeos de intervenção social também são realizados pelo MS e/ou instituições de saúde, para grupos sociais específicos, com duração de 15 minutos em média e com elemento persuasivo. São os vídeos produzidos, por exemplo, com base em programas de saúde, para comunidades onde se desenvolvem ações de saúde para prevenção de doenças e promoção da saúde. Eles são considerados um instrumento de intervenção por sua utilização para conscientizar um grupo social a mudar o comportamento frente a um problema de saúde. A diferença entre esses vídeos e os de campanhas de saúde está na duração e na veiculação. Os vídeos de campanha têm apresentações repetidas na mídia, sobretudo, na televisão, enquanto os de intervenção têm grupo e local próprio para exibição. Foi possível concluir que o uso da imagem para informar é, em si, um processo estratégico para transferir informações, devido ao fascínio exercido por ela sobre os indivíduos. Estratégia foi compreendida como a aplicação dos meios disponíveis ou exploração das condições favoráveis para se alcançarem objetivos específicos. O objetivo a ser alcançado era a transferência da informação.

Transferência da informação Os vídeos foram analisados na sua função primordial, que era a de transferir informações, tema importante para a Ciência da Informação. Quando essa transferência se realiza, ela faz com que o usuário/espectador assimile a informação, que, por sua vez, trará mudanças a sua estrutura cognitiva e poderá desencadear ações, dentre as quais, a mudança de comportamento. Confirmar a transferência da informação implica desenvolver pesquisa sobre recepção, o que não foi o objetivo deste trabalho. Sousa (2001) destacou que ainda não existem estudos suficientes sobre a recepção das informações veiculadas aos efeitos dos vídeos no comportamento de seu público, no que se refere a intervenções no campo da saúde. É necessário explorar o papel desse tipo de mídia, de maneira a torná-la um veículo fértil de informações, sem esquecer as críticas sobre seu papel na formação de opinião. Para teóricos da visão cognitivista da Ciência da Informação, como Barreto (1996, p.6) “é [...] na transferência da informação que se revela a essência do fenômeno da informação”. Quanto mais COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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familiar nos parecer a informação, mais rapidamente acreditamos nela ou a aceitamos. Norton (2001), no entanto, considera que a informação pode: não afetar, alterar alguma coisa ou alterar significativamente o conhecimento de alguém. Roberts (1976), por sua vez, afirma que a informação é adquirida no meio ambiente, nem sempre em formas estruturadas, ressaltando que os indivíduos já possuem seus próprios estoques de informações e uma série de atitudes associadas a eles. As informações são avaliadas, aceitas ou rejeitadas, relacionadas, manipuladas e, possivelmente, sofrem influência das variadas maneiras pelas quais são adquiridas. Por vezes, a transferência da informação não ocorre por conta de barreiras. Wersig (1977), ao falar sobre o treinamento de usuários, aponta algumas dessas barreiras informacionais que são, na verdade, antíteses das estratégias. Dentre elas, citamos, por exemplo: a) barreira terminológica – produzida pelo emprego de terminologia fora do alcance daqueles que utilizarão a informação, e b) barreira de capacidade de leitura ou nível de entendimento – produzida pela inadequação da informação ao nível de entendimento de seu usuário em potencial. Algumas dessas barreiras estão diretamente relacionadas à produção de informação por meio dos vídeos. Capurro (1992, p.88) surpreende ao trabalhar sob a influência da retórica em suas pesquisas em Ciência da Informação. Para ele, “a informação é uma compreensão pragmática de um mundo comum, compartilhado”. Assim sendo, mais importante do que querer saber “o que é informação”, diz ele, é saber “para que é a informação”. É preciso ressaltar a condição contextual da informação, isto é, sua dimensão histórica, cultural, econômica, política, que são essenciais para sua compreensão. Complementando o que foi dito por Capurro, para Barreto (2000), o problema maior do produtor de informação está na heterogeneidade dos indivíduos e seus saberes. A transferência da informação deve levar em consideração as dimensões acima citadas, pois elas integram a cognição individual e coletiva. Observa-se, também, a forte influência dos códigos de moral e ética, das religiões na credibilidade das fontes informacionais, e da utilização de uma linguagem clara para a conclusão do processo informacional com êxito. A teoria sobre cognição coletiva de Pierre Lévy (1993) enfatiza as mudanças na estrutura do conhecimento no sujeito coletivo e dá destaque à relação homem-tecnologia. Para ele, os instrumentos da inteligência são: a linguagem, as ferramentas, as instituições e as regras sociais que, ao agirem, fornecem uma dimensão coletiva para a inteligência, concluindo, assim, que os seres humanos jamais pensaram sozinhos. Isso, até certo ponto, ressalta o uso dos vídeos como instrumento de transferência da informação em saúde. Ainda com um sentido coletivo, mas numa abordagem diferenciada da de Lévy, Demo considera que a comunicação humana é mediada, sobretudo, pelos atos de fala, não apenas porque dela participam seres racionais e conscientes, mas também por outros motivos, tais como: só se realiza o fenômeno da compreensão de significados, quando existe, entre quem fala e quem ouve, o background da tradição e do mundo comum da vida, cuja base de funcionamento não é a reflexão racional consciente; a comunicação não se restringe à mera transmissão de informação, mas inclui a capacidade de interpretação mútua, que supõe a possibilidade de, pelo menos, algum consenso social; a comunicação provoca no ouvinte o compromisso de compreender, que desde logo não pode ser apenas objeto de manipulação; os atos da fala, como ação social típica, implicam alguma forma de participação do ouvinte, pelo menos ao nível de estar engajado num mundo comum de significações e atuações. (Demo, 2001, p.186)

De um modo geral, foi possível constatar que o valor da informação está localizado em uma realidade específica e potencializado por sua transferência. O conceito desse valor é relativo e próprio de cada indivíduo e depende de: a) preferência por uma informação em detrimento de outra; b) competência cognitiva para compreender as informações e estabelecer possível comparação.

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Ao abordar a questão sobre o valor da informação, González de Gómez (1999, p.9) o considera fruto de uma seleção individual e social, que pode incluir fatores de caráter emocional, cultural, prático e gnosiológico.

Contextualização A comunicação simbólica entre os indivíduos e o relacionamento deles com a natureza formam, no tempo (história) e no espaço (territórios específicos), identidades culturais. A tecnologia, hoje, desempenha um papel de interação entre identidades biológicas e culturais dos indivíduos em seu ambiente social e natural. Essa interação, por ser um processo social, é estruturada historicamente. As tecnologias acabam por influir na formação da personalidade dos indivíduos e integram, simbolicamente, uma busca da satisfação de necessidades e desejos humanos. A sociologia esclarece os fundamentos do conhecimento na vida cotidiana, ou seja, as significações que constroem o mundo intersubjetivo do senso comum e a consciência dos indivíduos. A consciência é capaz de mover-se por meio de diferentes esferas da realidade. Ela é capaz de identificar a diferença entre as pessoas do cotidiano, no trabalho, e as pessoas presentes nos sonhos. Segundo Berger e Luckmann (1993), entre as múltiplas realidades, há uma que se apresenta como a principal: a da vida cotidiana. Ela é ordenada por fenômenos previamente dispostos em padrões aparentemente independentes da forma de apreensão. É como se os objetos que a integram existissem previamente antes da entrada do indivíduo em cena. O tempo da realidade diária é contínuo e finito. Toda a existência do indivíduo no mundo é ordenada pelo tempo. O tempo já existia antes de ele nascer e continuará a existir depois que ele morrer. A estrutura temporal fornece historicidade, determinando a situação do indivíduo no mundo da vida cotidiana e impondo-se na sua biografia. Outras realidades, como as brincadeiras de criança, o teatro, a religião, o vídeo, aparecem como campos com limites de significação, exceções dentro da realidade dominante (vida cotidiana) que têm diversos significados e experiências ilimitadas. A realidade dominante envolve as outras realidades, fazendo com que o indivíduo retorne a ela. Um processo comunicacional diferenciado, segundo Martino (2001), pressupõe o convívio de diversos grupos, com diferentes tipos de ação, aos quais o indivíduo se associa, circunstancialmente, ao longo de sua vida. Tal como a consciência, envolve múltiplas relações, ou seja: de trabalho, de escola, de vizinhança, de amizade, de família. Sendo assim, os vínculos que o indivíduo constrói são variados, espontâneos e adaptados aos diversos grupos. Em cada um deles, haverá um processo comunicacional diferenciado, proporcionando vínculos sociais, com linguagens, ritos e regras próprios. Esses processos podem ser iguais, semelhantes ou bem diferentes entre si. As informações, veiculadas pelas mídias, não são indiferentes ao atendimento das crenças e desejos da sua audiência. Se assim não for, não há possibilidade de sucesso e de continuação do ato de informar. É real que as mídias possam também, com certos limites, reconstruir ou influenciar essas mesmas crenças e desejos do seu público. Portanto, o entendimento dessa situação é fundamental. Trata-se de um sistema integrado de mão dupla, onde cada parte desenvolve seu papel, interagindo de modo dialético, segundo Lopes (2001). A vida cotidiana pode ter diferentes graus de aproximação e distância, de espaço e tempo. Em termos de espaço, a zona da vida cotidiana mais próxima é a acessível à manipulação corporal. A atenção a este mundo é, sobretudo, determinada pelas ações passadas, presentes ou futuras. O interesse por zonas distantes é menos intenso e menos urgente. Nos dias de hoje, a realidade referencial, para muitos, é virtual, uma espécie de telerrealidade. Existe uma variedade de técnicas e tecnologias que simulam a realidade física ou histórica. A sensação do virtual é igual à tomada de consciência do indivíduo no mundo real. O vídeo é uma vida paralela, construída por meio de uma relação afetiva, com base em uma identificação do espectador com o conteúdo do vídeo. O virtual é diferente do real. O real tecnologicamente é igual ao virtual e, de algum modo, é inacabado. Mas o real, em si, não existe porque ele é fruto da objetividade, de um grau de realidade

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determinada pela consciência. A consciência é uma operação informacional, um mundo análogo, uma metáfora da interiorização. Na nossa sociedade, o conceito de cidadania é ampliado, proporcionando, por meio do direito à informação, a criação de novos discursos com significância mais dirigida para as causas sociais. O indivíduo está ligado às suas necessidades biológicas, mas também às suas necessidades sociais, frutos da estrutura de um ambiente social. Como exemplos desse tipo de necessidades, podem ser citados: as de realização, de aprovação social, de nutrição, de divertimento, de ordem, de cobiça, de respeito. Tanto a intervenção social quanto a intervenção informacional e comunicacional lidam com três questões da vida social: saber, poder e ética. Elas nos fazem pensar em diversos discursos (incluindo o imagético, objeto deste trabalho), nas relações de poder que eles trazem consigo e nos seus efeitos na vida social. O discurso científico, presente nos vídeos em saúde, é um discurso do saber, tido como competente (Chauí, 1982) e como uma forma de poder. O vídeo como elemento de comunicação e informação ganha respeitabilidade no espaço da opinião pública por meio da noção de competência, diretamente relacionada a quem comunica e informa. Ressaltamos, no entanto, que a percepção do espectador do vídeo, baseada no seu saber, nos seus sentimentos e nas suas crenças, vai estar ligada à sua vida cotidiana, que, por sua vez, relaciona-se com sua classe social, época e cultura. Reconhecer o mundo visual em uma imagem pode ser útil, além de proporcionar, também, um prazer específico (Aumont, 1999). O poder é exercido por meio das relações sociais mediadas por comunicação de informações. Segundo Frohmann (1995), o domínio sobre a informação, quando alcançado, é mantido por grupos específicos, que o utilizam para a dominação. Mas ainda assim, algumas informações sofrem resistência ao serem comunicadas a determinados grupos e em determinadas ocasiões. Uma atitude informacional ética da informação está diretamente relacionada à observação do estilo de vida dos usuários/espectadores. A transferência de informações em saúde deve ocorrer por meio de uma linguagem simples e acessível.

Coleta e análise dos dados Com base em dados das fichas técnicas das produções selecionadas como finalistas, na III Mostra Nacional de Vídeos em Saúde, e nas teorias apresentadas neste trabalho, foram realizadas análises de cada tipo de dado dos vídeos que servia como identificador da diversidade cultural. Foram vistos os títulos dos vídeos, os seus produtores, as regiões onde foram produzidos os vídeos, os assuntos abordados e outros detalhes técnicos. Entre os cento e vinte vídeos enviados de todas as partes do Brasil, foram selecionados, como finalistas, sessenta e um com temas sobre saúde, e outros relativos a problemas sociais, de destaque na nossa sociedade, que acabam por tornarem-se questões de saúde, como, por exemplo: mendicância, lixo, saneamento básico, direitos humanos etc. Os títulos eram, em sua maioria, claros e diretos, ou seja, eles guardavam sua característica informativa ao exporem o conteúdo dos vídeos. A persuasão pôde ser encontrada no título, fazendo menção ao “cuide-se”, por exemplo, no título do vídeo Antes que seja tarde. O humor também foi um ingrediente na construção dos títulos como, por exemplo, O peso de estar acima do peso e Tabagismo, tô fora. Houve também os títulos que não ofereceram, de imediato, o seu conteúdo, como, por exemplo, Prevenção e Um bom conselho. Coube às organizações não governamentais a responsabilidade pela produção de 16 vídeos finalistas, seguidas pelas universidades públicas, com 13 vídeos. Instituições diversas dos governos federal, estadual e municipal produziram os demais vídeos finalistas, com exceção de seis deles que tiveram produtores independentes. A questão da saúde, embora importante, não seduz ainda esses produtores, talvez por não auferir lucros. Coube, portanto, ao Estado, a incumbência maior de fornecer informações sobre saúde.

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Doze estados brasileiros e o Distrito Federal tiveram vídeos entre os finalistas da III Mostra. O estado com mais vídeos finalistas foi Pernambuco, com 13 vídeos. Em seguida, veio São Paulo, com 11. Rio de Janeiro e o Distrito Federal apresentaram nove vídeos cada um na final. Minas Gerais, Bahia, Paraná, Rio Grande do Sul e Santa Catarina foram para a final com três vídeos cada. Alagoas, Espírito Santo, Goiás e Paraíba tiveram um vídeo cada como seus representantes entre os finalistas. O desenvolvimento econômico e tecnológico, mas também uma situação oposta foram elementos motivadores para a produção de vídeos em saúde. Explicando melhor: por um lado, regiões que possuem todos os tipos de recursos para a produção desses vídeos, possuem também problemas de saúde oriundos da superpopulação, da vida estressante das grandes cidades etc. Esses temas estiveram presentes na Mostra analisada. Por outro lado, regiões onde existe carência de recursos técnicos e econômicos, a produção de vídeos foi estimulada pela premência de informação transferida pelos vídeos, sobretudo nas áreas de baixa escolaridade e problemas de saúde provocados pela fome, pela seca, pela falta de saneamento básico, etc. Uma análise por regiões geográficas do Brasil mostrou que a região Norte não teve nenhum vídeo na Mostra. A região Sudeste (RJ, SP, ES, MG) teve 24 vídeos, possivelmente por ser uma região com muitos recursos econômicos e técnicos. A região Nordeste (PE, BA, AL, PB) surpreendeu com 18 produções, fato muito auspicioso uma vez que essa região, devido a carências financeiras e educacionais, necessita de vídeos em saúde para a prevenção de doenças e promoção da saúde. A região Centro-Oeste (GO e DF) apresentou dez vídeos, com peso forte na produção advinda do Distrito Federal, onde se localiza o MS. A região Sul (PR, SC, RS) foi representada por nove vídeos. Os 61vídeos finalistas abordaram 48 diferentes assuntos, sendo as doenças, propriamente ditas, os temas mais recorrentes, seguidas pelas questões de saúde pública em geral. Os problemas de saúde da mulher, também, foram abordados com alguma freqüência. Por meio de uma análise sobre os temas, vistos de forma individual, observou-se que o tema AIDS foi o privilegiado, com seis vídeos, além de um vídeo sobre doenças sexualmente transmissíveis (DST), que incluía a AIDS, mal de abrangência universal que, por esse motivo, sempre teve financiamento farto para campanhas de prevenção. Em seguida, o tema saúde pública apresentou três vídeos. Outros temas tiveram destaque, como: aborto, saúde mental, gravidez na adolescência, práticas populares de saúde, alcoolismo e saúde em geral, que apresentaram, cada um, dois vídeos entre os selecionados. Os vídeos selecionados na III Mostra, de um modo geral, tiveram, como característica, a apresentação de temas de forma educativa e sem reprimendas. Os depoimentos de vítimas de doenças eram contundentes e até emocionantes, mas sem “apelações” de comunicação. A música, em muitos vídeos, foi um elemento com forte presença para a contextualização (músicas regionais) e o despertar de emoções, podendo ser considerada, em determinados casos, uma estratégia informacional. As informações, na maioria dos casos, foram repassadas de maneira objetiva, em função do curto tempo de duração que os vídeos têm. O humor foi um elemento muito presente, por ser uma característica do povo brasileiro, mesmo quando diante de adversidades. O trabalho com atores funcionou muito bem para alguns casos. Em outros, o melhor mesmo foi a utilização de entrevistas, depoimentos ou declarações espontâneas ou estruturadas. Assistir a esses vídeos foi uma experiência única porque eles englobavam informações sobre doenças e saúde, sobre grupos sociais, sobre experiências de vida, apresentando-as, quase sempre, de maneira clara e com arte; porque a utilização da imagem tem muita proximidade com o encantamento e a sedução, mesmo quando o exposto não tenha um aspecto positivo, como é o caso das doenças.

Considerações finais Ficou evidente que a construção de significados, relacionada à cultura e ao contexto social, foi utilizada na formação dos discursos e narrativas dos vídeos como instrumento de grande uso e penetração na COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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nossa sociedade. Ficou claro que falar em linguagem, seja ela imagética ou não, é falar de estruturas sociais e, conseqüentemente, comunicacionais, de transmissão de informação. Elas foram vistas sob a forma de elementos políticos, históricos, culturais produzidos pelo desenvolvimento da sociedade. A questão informacional, que envolve a saúde dos indivíduos, tem um forte caráter democrático, na medida em que esses indivíduos - que não tinham as informações sobre o que acontece em seus organismos, seus corpos - possam compreender, refletir e tomar decisões sobre sua saúde. Em qualquer circunstância, sempre deverá existir uma escolha ética sobre que informação precisará ser transferida e para quem. O interesse e a necessidade foram vistos como elementos balizadores desse processo informacional. Uma informação, se não for desejada ou não se mostrar adequada, dificilmente conseguirá chamar a atenção de alguém. As preocupações informacionais apresentadas por este trabalho existem porque, infelizmente, no Brasil, há um percentual significativo da população que vive abaixo da linha da pobreza. Dela fazem parte indivíduos que não têm acesso a quase nada. Essa parte da população está exposta a diversos problemas de saúde decorrentes da fome e das condições de vida. A fome traz consigo, entre outros problemas, o atraso no desenvolvimento físico e cognitivo. Em se tratando do planejamento de campanhas de prevenção de doenças ou de promoção da saúde, qualquer coisa que facilite o alcance de seus objetivos deve ser vista com bons olhos, pois em foco estão a saúde e o bem-estar da população.

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MORAES, A.F. La diversidad cultural presente en los vídeos sobre salud. Interface Comunic., Saúde, Educ., v.12, n.27, p.811-22, out./dez. 2008. Los vídeos, cada vez más, se utilizan como soportes informacionales en las acciones de intervención social en el área de la salud. Conocer los elementos culturales existentes en los vídeos sobre salud ha sido el objeto de este trabajo, ya que son facilitadores de la transferencia de la información. Estudios sobre le uso de la información, a fuerza de imágenes en el proceso cognitivo de los individuos y la necesidad de contextualización de las informaciones transmitidas han servido de base para el análisis de los vídeos finalistas de la III Muestra de Vídeos en Salud organizada por la Fundación Oswaldo Cruz (Fiocruz) y realizada en Rio de Janeiro, Brasil, en 1998. A partir de la observación de algunos datos de las correspondientes fichas técnicas, ha sido posible identificar el medio cultural en el que se produjeron. La diversidad cultural presente en las acciones de comunicación constituyen elemento esencial para el progreso social.

Palabras clave: Comunicación. Vídeos. Salud. Cultura.

Recebido em 05/04/07. Aprovado em 25/04/08.

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Programa de alimentação escolar no município de João Pessoa – PB, Brasil: as merendeiras em foco *

Alice Teles de Carvalho1 Vanessa Messias Muniz 2 Josiane Fernandes Gomes3 Isabella Samico4

CARVALHO, A.T. et al. School meals program in the municipality of João Pessoa, Paraíba, Brazil: school meal cooks in focus. Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.12, n.27, p.823-34, out./dez. 2008. School is a privileged place for developing educational activities and a school meals program is an excellent means for promoting healthy eating habits. This study aimed to evaluate the perceptions of school meal cooks regarding the production and distribution of school meals and their role in this. Focus group methodology was adopted among school meal cooks from 41 public schools in João Pessoa, Paraíba, Brazil. The categories developed were: training; decision-making for menu preparation; work-related strain; school meals and incorporation of healthy eating habits. The close affective relationship between the cooks and schoolchildren, and the value of offering quality, well-accepted food were shown. Lack of systematic training and fragility in using school meals to incorporate healthy eating habits were observed. The importance of the cooks with regard to using school meals as a permanent learning space was reaffirmed.

Key words: School feeding. School meal cooks. Healthy habits. Health promotion.

A escola é local privilegiado para desenvolver ações educativas e o programa de alimentação escolar excelente ferramenta para promoção de hábitos alimentares saudáveis. Objetivouse avaliar a percepção das merendeiras acerca da produção e distribuição da alimentação escolar e seu papel neste contexto. Utilizou-se metodologia de grupo focal com merendeiras de 41 escolas públicas municipais de João Pessoa - Paraíba, Brasil. Desenvolveram-se as categorias: capacitação e treinamento; processo de decisão na elaboração dos cardápios; desgaste no processo de trabalho; alimentação escolar e incorporação de hábitos alimentares saudáveis. Evidenciou-se estreita relação de afeto entre merendeiras e escolares e valorização na oferta de alimentação de qualidade com boa aceitação. Foram observadas ausência de treinamentos sistemáticos e fragilidade no uso da alimentação escolar na incorporação de hábitos alimentares saudáveis. Reafirmouse a importância das merendeiras na utilização da alimentação escolar como espaço permanente de aprendizado.

Palavras-chave: Alimentação escolar. Merendeiras. Hábitos saudáveis. Promoção da Saúde.

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Elaborado a partir de Carvalho (2006). 1 Nutricionista. Departamento de Nutrição, Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Campus Universitário I João Pessoa, PB 58.059-900 alicetel@terra.com.br 2 Nutricionista. Departamento de Nutrição, Centro de Ciências da Saúde, UFPB. 3 Enfermeira. Departamento de Nutrição, Centro de Ciências da Saúde, UFPB. 4 Médica. Instituto Materno Infantil Prof. Fernando Figueira (IMIP). *

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Introdução O Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) tem como principais objetivos: suprir parcialmente as necessidades nutricionais das crianças de nossas escolas (Brasil, 2006) e contribuir para a redução dos índices de evasão; formação de bons hábitos alimentares e desenvolvimento da economia local (Weis, Chaim, Belik, 2004). No contexto da promoção da alimentação saudável, a Portaria Interministerial nº. 1010/2006 destaca os seguintes eixos prioritários vinculados ao PNAE: ações de educação alimentar e nutricional; estímulo à produção de hortas escolares; estímulo à implantação de boas práticas de manipulação de alimentos; restrição ao comércio e à promoção comercial de alimentos e preparações com altos teores de gordura saturada, gordura trans, açúcar livre e sal; e incentivo ao consumo de frutas, legumes e verduras e monitoramento da situação nutricional dos escolares (Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação - FNDE, 2007). Quanto à promoção de hábitos alimentares saudáveis, destaca-se o trabalho das merendeiras, profissionais envolvidas diretamente no preparo e distribuição da alimentação escolar. No entanto, o papel que desempenham na educação não se limita à preparação de alimentos e a higienização de áreas físicas. Elas têm sensibilidade para outras questões, outras dimensões da vida, possuem um conhecimento de ordem prática e que deveria ser reconhecido no processo de formação de comportamentos e atitudes relativos à ética e à convivência social (Nunes, 2000). O trabalho dessas profissionais é socialmente desvalorizado, por não exigir alto nível de escolaridade e qualificação. Em sua maioria, elas são formadas por mulheres mestiças e negras com baixo nível de escolaridade, em precária situação social e exercendo, em muitos casos, o papel de chefe de família (Costa, Lima, Ribeiro, 2002). Autores como Monlevade (1995) caracterizam o grupo de merendeiras como trabalhadoras semidomésticas e desprovidas de uma profissão, exercendo o papel principal de preparação dos alimentos destinados a crianças. De acordo com Costa, Lima e Ribeiro (2002), essas profissionais, juntamente com o nutricionista, têm, sob sua responsabilidade, a tarefa de compreender todo o processo de produção da refeição e o caráter social do Programa de Alimentação Escolar, o que vai conferir sentido aos seus trabalhos. No entanto, na confecção diária das refeições, a falta de um nutricionista faz com que as merendeiras decidam, muitas vezes, os tipos de alimentos e a sua forma de preparo. O trabalho das merendeiras, ao longo da história do PNAE, vem sofrendo transformações, tornandose cada vez mais complexo, passando da confecção de uma refeição com produtos industrializados e biscoitos para a oferta de uma refeição completa composta por produtos in natura. Com isso, a pressão e o desgaste físico decorrentes do desenvolvimento de atividades demarcadas pelo tempo fazem com que as merendeiras desempenhem várias tarefas ao mesmo tempo, gerando, muitas vezes, ansiedade, insatisfação, desgaste e doenças (Nunes, 2000). Tendo em vista o reconhecimento do papel-chave desempenhado pelas merendeiras para o oferecimento de uma alimentação escolar de qualidade, com vistas à promoção da educação nutricional, uma equipe de pesquisadores do Departamento de Nutrição da Universidade Federal da Paraíba - ao desenvolver um amplo estudo de avaliação do Programa de Alimentação Escolar intitulado “Programa de Alimentação Escolar (PAE) no Município de João Pessoa: avaliação do funcionamento e proposta de intervenção” - inseriu estes profissionais como atores estratégicos entrevistados. A referida pesquisa, que combinou diferentes métodos e técnicas, partiu da idéia de que a alimentação escolar não pode ser utilizada simplesmente como estratégia emergencial de combate à fome, mas sim como espaço privilegiado para a formação de hábitos alimentares saudáveis e de cidadãos comprometidos com uma sociedade mais justa e equânime. A inserção dos escolares na seleção e preparação das refeições oferecidas, assim como na produção de hortas comunitárias que subsidiem o abastecimento de frutas e hortaliças utilizadas na alimentação escolar, pode contribuir neste processo. Além disso, a alimentação escolar deve ser utilizada como estratégia para que os escolares percebam que “Alimentação adequada é direito fundamental do ser humano, inerente à dignidade da pessoa humana e indispensável à realização dos direitos consagrados na Constituição Federal, devendo o poder público adotar as políticas e ações que se façam necessárias para promover e garantir a 824

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segurança alimentar e nutricional da população” (Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional LOSAN, 2006). É importante destacar ainda que, no processo avaliativo de uma política ou programa, além dos beneficiários, é fundamental a participação dos diferentes atores envolvidos na sua gestão e operacionalização. Neste artigo, estão apresentados os resultados da análise com as merendeiras, a qual teve como objetivo avaliar a percepção destas acerca da dinâmica de produção e distribuição da alimentação escolar e seu papel neste processo.

Métodos Trata-se de uma pesquisa com abordagem qualitativa, a qual utilizou a técnica de grupo focal, que, segundo Minayo (2000), caracteriza-se por uma técnica capaz de verificar as opiniões, relevâncias e valores dos entrevistados, estratégia utilizada para complementar informações sobre conhecimentos peculiares a um grupo em relação às suas crenças, atitudes e percepções. O estudo foi realizado no município de João Pessoa, estado da Paraíba, que, no período da coleta de dados, contava com 89 escolas da rede pública municipal, distribuídas em quarenta e um bairros. Para a seleção das merendeiras que participaram do grupo focal, foi realizado sorteio aleatório de uma escola em cada bairro. As escolas envolvidas no estudo localizavam-se na zona urbana do município e atendiam, no mínimo, a crianças da 1ª a 4ª série do Ensino Fundamental. Em cada escola sorteada, foi convidada uma merendeira para participar da pesquisa, perfazendo um total de quarenta e uma participantes. As pesquisadas foram distribuídas em cinco subgrupos, sendo quatro deles com oito merendeiras, e um com nove, tendo cada uma destas participado de apenas um encontro. Realizou-se contato com a Secretaria de Educação, a qual contatou previamente as escolas, solicitando a liberação das merendeiras e informando o horário e o local da sessão. Durante os encontros, foram distribuídos, às merendeiras, os termos de consentimento livre e esclarecido, com o intuito de informar sobre os objetivos da pesquisa, bem como solicitar a autorização para a gravação das falas e registro de imagens por meio de máquina fotográfica. Os dados foram coletados no período de setembro a novembro de 2005, tendo sido realizados cinco encontros de sessão de discussão em grupo sobre o tema “Programa Nacional de Alimentação Escolar no Município de João Pessoa e o papel da merendeira nesse contexto”. Foi utilizado um roteiro semiestruturado, com questões que abordaram as seguintes categorias: capacitação e treinamento; processo de decisão na elaboração dos cardápios; desgaste no processo de trabalho das merendeiras, e alimentação escolar como espaço para incorporação de hábitos alimentares saudáveis. Cada sessão teve duração média de uma hora e trinta minutos e foi composta, em média, por oito merendeiras, com idade variando entre 34 e 66 anos. O número de sessões foi definido considerando o número total de merendeiras que participariam do estudo com base no critério de seleção já referido. Todos os encontros foram realizados na Secretaria de Educação do Município. A sala disponibilizada para a realização das sessões era ampla, de fácil acesso, silenciosa, privativa, apresentava boa iluminação, ventilação, poltronas confortáveis e mesa redonda. As sessões foram mediadas por um facilitador, o qual conduziu os encontros, e um relator que anotava toda a discussão e descrevia as diferentes expressões gestuais das participantes. Foram, ainda, gravadas em áudio e registradas por meio do uso de máquina fotográfica. Antes do início da sessão, os nomes das participantes foram escritos em crachás para facilitar a identificação e interação do grupo. Em seguida, foi realizada dinâmica com bolas e papéis, na qual elas se auto-apresentaram e ficaram à vontade para falar sobre seus desejos. Essa dinâmica permitiu aos mediadores conhecer um pouco de cada colaboradora e tornou o momento mais descontraído. A análise dos dados foi realizada por dois pesquisadores, inicialmente de forma independente. Após a leitura de todo o material (anotações do relator e transcrição das fitas gravadas), os achados foram sistematizados nas categorias predefinidas, citadas acima. Em seguida, as categorizações foram confrontadas e procedeu-se à análise temática considerando as palavras, o contexto, a freqüência, a intensidade dos comentários, a especificidade das respostas e a consistência interna (Minayo, 2000; COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Krueger, 1994). O presente estudo foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (protocolo 202/05) do Centro de Ciências da Saúde da Universidade Federal da Paraíba.

Resultados e discussão Merendeira: uma relação de afeto As merendeiras desenvolvem uma forte relação de afeto com as crianças, desempenhando um papel de cuidadora que extrapola uma função específica de preparo e distribuição de alimentos: “A gente trabalha com amor. Se disser assim: tá faltando isso na merenda, o que tiver a gente inventa para que aquilo ali saia bom, para que eles merendem.” ou “É como se fossem os filhos da gente, entendeu? É uma segunda casa, só que a família é maior.” Essa relação de afeto foi também referida no trabalho de Nunes (2000), a qual relata que foram constantes as falas nas quais as merendeiras afirmavam sentirem-se um pouco mãe de cada uma das crianças da escola. Vários autores explicam esta relação afetiva com o alimento e com quem o prepara com base no caráter social da alimentação e sua presença desde o nascimento (Romanelli, 2006; Garcia, 1997; Grácia-Arnaiz, 1996). Apesar de a relação de afeto ser inerente às atividades desenvolvidas pelas merendeiras, considerando estar a alimentação, enquanto prática, envolta no convívio familiar e social e vinculada à figura de mãe e mulher (Garcia, 1997; Grácia-Arnaiz, 1996), este afeto não deve nortear exclusivamente as atividades das merendeiras, pois existem normas e critérios estabelecidos pelo PNAE que devem ser levados em consideração na preparação da alimentação escolar (Brasil, 2006). Essa relação de afeto é potencializada pelo fato de os beneficiários da alimentação escolar serem crianças que têm, nessa alimentação, um suporte para satisfação das suas necessidades alimentares. A importância do cuidado e afeto na relação das merendeiras com os escolares deve ser reconhecida. No entanto, se estas não receberem treinamento adequado para produzir refeições dentro dos padrões nutricionais estabelecidos (higiene e componentes da preparação) seu desempenho como merendeira estará prejudicado.

Merendeira: aprendendo e repassando Considerando que a função de merendeira requer treinamento específico e continuado em virtude da responsabilidade de lidar com a alimentação de crianças no âmbito escolar, que é um espaço privilegiado de atividades pedagógicas, procurou-se entender o processo de capacitação das merendeiras e de que forma este era percebido por estas profissionais. As discussões revelaram ausência de capacitação e treinamentos sistemáticos, e apontaram desigualdades na freqüência com que esses acontecem entre as escolas. Enquanto uma merendeira referiu: “Eu tenho 21 anos de merenda, participei de um treinamento!”; outra colocou: “só não tive esse ano...”. O grupo mostrou, ainda, valorização do processo de treinamento: “Treinamento para mim é aprender mais”. Ao referirem a existência de algum tipo de treinamento, as merendeiras destacaram a realização de cursos ou palestras, nos quais as abordagens estavam direcionadas à higiene pessoal e noções de prépreparo de alimentos: “Ela diz que a gente não ande com a unha grande e com o esmalte sujo” ou “porque eu participei de um curso e não aconselha que tire a casca, né? Porque na casca é que está a vitamina, né ?”. A realização de treinamentos voltados à preocupação com o produto e tendo a higiene como temática central é, para Costa, Lima e Ribeiro (2002), uma abordagem que está freqüentemente vinculada à prática educativa oferecida aos profissionais que atuam na área da alimentação coletiva, o que inclui a merendeira. No entanto, para este autor, a discussão sobre a formação das merendeiras deve passar pela definição de qual trabalhadora se quer constituir ou formar - o que antecede a preocupação com os saberes e habilidades que elas devem dominar. Embora o trabalho a ser produzido por elas detenha grandes parcelas de ações mecânicas e rotineiras, ele requer adaptações criativas e reflexão permanente. 826

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Chama atenção, ainda, o fato de as merendeiras terem autonomia para treinar um novo recurso humano, repassando seus conhecimentos, muitas vezes adquiridos pela prática cotidiana, sem uma interação com outros profissionais do espaço escolar e sem suporte pedagógico. O remanejamento da função de auxiliar de serviços gerais e de faxineira para a execução das ações de preparo e distribuição da alimentação fica evidente nas falas. O processo de treinamento desses profissionais fica, muitas vezes, sob a responsabilidade exclusiva das merendeiras. Este fato caracteriza uma fragilidade no processo de capacitação e treinamento: “Olha ela é faxineira [...] Ela disse: eu não sei de nada! Aí eu [a merendeira] disse: Mas eu tô aqui para lhe ensinar [...] Ensinei a duas, só nesse ano.” E, ainda, parece que o excesso de responsabilidade inerente à função de merendeira desencadeia uma insegurança por parte daquelas que poderão assumir esta função: “Eu era da limpeza também, né? Aí faltou merendeira na cozinha, aí o povo tudo querendo que eu ficasse, e eu com medo porque merendeira é uma responsabilidade danada”. Este contexto aponta para a necessidade de se redimensionar o papel das merendeiras no coletivo escolar, de modo a possibilitar a sua integração à equipe educativa nas atividades promotoras de saúde o que, além de rever os conteúdos dos cursos de treinamento a que freqüentemente elas são submetidas, implica a necessidade de discutir estratégias diversas e complementares de treinamento, com a participação de diversos atores dentro da proposta de educação permanente, tomando como referência as relações entre educação e trabalho (Costa, Lima, Ribeiro, 2002; Schraiber, 1999). Nesse sentido, a formação de uma trabalhadora crítica não se daria por meio de simples mudanças no conteúdo dos cursos de treinamento, mas pela possibilidade de desenvolver sua autonomia como sujeito consciente e competente para desempenhar o seu papel como cidadã no ambiente da escola (Costa, Lima, Ribeiro, 2002).

Merendeira: percebendo a elaboração do cardápio O processo de decisão na escolha dos cardápios é realizado por diferentes profissionais do cenário escolar. Observa-se que essa decisão é tomada por diretores, vice-diretores, supervisores de merenda, incluindo a participação das merendeiras neste processo: “Na minha escola são as merendeiras, a gente com as supervisoras [...] Porque eu acho que é a gente que está no dia-a-dia com a merenda, né?” ou “A vice-diretora chama nós merendeiras e vamos combinar o cardápio” No entanto, o processo de decisão, sobre o que realmente será oferecido aos alunos, parece estar centralizado na figura do diretor “O dinheiro da merenda é com a diretora. A partir do momento que eles vão à direção e dizem que não estão gostando da merenda, ela pergunta o que eles desejam comer [...] Aí, é ela quem prepara o cardápio, é só ela que tem acesso”. Essa fala reflete, também, que o processo decisório é realizado algumas vezes mediante um diálogo entre os profissionais e alunos. A participação das merendeiras na escolha dos alimentos oferecidos se dá sob a forma de uma consulta, seja em função da sua percepção acerca das preferências dos alunos: “a supervisora diz: você sabe o que os meninos gostam então você tem que fazer o cardápio conforme o que os meninos preferem”, seja pelo seu conhecimento sobre os estoques de alimentos disponíveis: “E a gente tem que dizer o que é que tem na despensa...” A participação das merendeiras e demais profissionais que trabalham diariamente na escola é importante na escolha de preparações que compõem o cardápio, considerando a convivência diária com os alunos e conseqüente conhecimento dos seus hábitos alimentares. No entanto, o planejamento do cardápio é uma atividade inerente ao profissional de nutrição habilitado, o qual, segundo o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (Brasil, 2006), deve assumir responsabilidade técnica da alimentação escolar, a fim de garantir a adequação às necessidades nutricionais, às faixas etárias e ao perfil epidemiológico dos escolares. No município em estudo, o envolvimento do nutricionista no processo de elaboração de cardápios está limitado a observar a variedade das preparações. No entanto, em entrevista com esse profissional, ficou claro o seu reconhecimento acerca da limitação da sua participação nesse processo, que foi justificada pelo grande número de escolas sob sua responsabilidade. E, ainda, que medidas estão sendo tomadas para reverter este quadro. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Com relação à quantidade diária de gêneros necessária ao preparo da alimentação escolar, identificou-se que esta responsabilidade é da merendeira. A determinação desta quantidade está baseada na sua experiência, parecendo não haver um per capita estabelecido: “Sei pela experiência (referindo-se à quantidade de alimento a ser preparada)! [...] Quando eu faço, bate e dá certo, né?”, “Então quando toca, que o aluno entra, eu to ali observando [...] Porque a gente quer se basear no tanto, que é pra não perder os alimentos”. Essa responsabilidade transferida para as merendeiras também foi referida por Costa, Lima e Ribeiro (2002), os quais afirmam que, na confecção diária das refeições, muitas vezes, a falta de um nutricionista faz com que as merendeiras sejam responsáveis pelas decisões sobre o que preparar, para quantas pessoas preparar e como servir a alimentação. Quanto aos determinantes da composição do cardápio e seleção das preparações a serem oferecidas, as merendeiras mencionaram: os aspectos nutricionais; a condição social dos escolares, a aceitação das preparações, a variedade do cardápio e o custo dos alimentos. Percebeu-se uma preocupação com o valor nutricional dos alimentos oferecidos e o atendimento às necessidades nutricionais das crianças. Observou-se, ainda, o conhecimento, por parte de algumas merendeiras, acerca dos nutrientes presentes em alguns alimentos: “o feijão é muito importante na alimentação, porque ele contém o ferro [...] vamos dizer que o rubacão [termo utilizado na região Nordeste do Brasil, que significa iguaria composta basicamente por arroz, feijão e queijo coalho] tem um conjunto que vai suprir as necessidades do aluno porque tem o ferro e tem as verduras (tomate, pimentão, cebola e coentro) que servem para temperar o feijão e que já tem também lá suas qualidades de vitaminas.” Essa preocupação apresentada pelas merendeiras se mostra coerente com critérios a serem considerados no planejamento de um cardápio. É reconhecido que a composição adequada de um cardápio está vinculada às interações desejáveis entre os nutrientes das preparações que os compõem, ou seja, a interação entre os nutrientes determina a qualidade, que, por sua vez, condiciona a suficiência ou quantidade de alimentos a serem oferecidos (Ornellas, 2001; Martins, 1982). Para as merendeiras, a escolha das preparações oferecidas no cardápio, além de levar em consideração os valores nutricionais, baseia-se também na observância4 da classe socioeconômica das crianças que freqüentam as escolas: “Porque as crianças são muito carentes, são mais crianças da favela...” ou “Lá as crianças gostam muito de comida pesada, porque tem muita criança ali do bairro X, que passa muita fome...”. Fica claro, na fala das merendeiras, que estas consideram comida forte: “aquelas que sustentam por muito tempo, como o feijão, o arroz e a carne”. Desta forma, o conceito de “comida forte” está relacionado à saciedade da fome das crianças. As merendeiras consideram que quanto mais “pesado” o alimento, maior é a sua contribuição na satisfação das necessidades destas: “então é comida forte. É sopa, é carne, tem um mugunzá que eles gostam que a gente bota bastante leite mesmo”. Essa análise vai ao encontro de uma colocação de Woortmann (2004), na qual este autor refere que a fortidão de um alimento pode ser indicada, sobretudo, por meio da sensação de satisfação que ele propicia e da maior quantidade de tempo em que mantém a pessoa saciada. Em contraponto, as merendeiras consideram fracos, por exemplo, alimentos como o iogurte. Este alimento, por possuir alta digestibilidade, ocasiona sensação passageira de saciedade, sendo, desta forma, considerado, pelas merendeiras, inadequado para a clientela atendida nessas escolas: “Porque eu sei que toda 828

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Observância: 1. Execução fiel; prática; uso. 2. Cumprimento rigoroso da vida claustral, da disciplina da penitência, ou das regras peculiares a cada ordem religiosa (Ferreira,1999, p.1429).

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criança gosta de iogurte, quem não gosta? É uma merenda cara e é uma merenda que realmente não é pra eles porque é uma merenda que eles tomam um copo e daqui a pouco estão fracos”. Essa lógica de classificação dos alimentos em fortes e fracos não está baseada no valor nutritivo dos alimentos, mas no fato de proporcionarem, ou não, sensação de repleção (Romanelli, 2006; Zaluar, 1979). Neste sentido, não se trata de desconhecimento da importância da contribuição nutricional do iogurte, por exemplo, na alimentação das crianças. Mas, como refere Zaluar (1979), para a população de baixa renda, os alimentos são classificados em comida (arroz, feijão e carne) e em outras “coisinhas” que apenas “enganam” a fome e não “enchem a barriga”. Essa relação entre alimento forte e fraco com a sensação de saciedade, identificada na fala das merendeiras, pode ser associada também a uma forma de pensar a alimentação vinculada às condições de vida e trabalho. Neste sentido, como explica Canesqui (1988), a comida valorizada é aquela capaz de sustentar o corpo, dar força e energia, a que enche a barriga, deixando a sensação de estar alimentado. Para ela, trata-se, enfim, de “comida de pobre”, cuja lógica da “barriga cheia” preside as práticas de consumo alimentar. Ainda na análise de Canesqui (2007), os estudos sobre representações de saúde e doença enfatizam a centralidade da alimentação nos setores populares, como garantia da aptidão para o trabalho e do uso intenso do corpo nessa atividade tão indispensável à sua sobrevivência - fato esse que se liga à posição de classe, sem deixar de ter relevância a importância atribuída ao gosto e ao prazer de comer, que a comida encerra para aqueles grupos sociais. A alimentação, para as camadas populares, é uma atividade reparadora. Portanto, “estar alimentado” implica saciedade física e “ser ou estar sadio”, que coincide com a idéia de “ser forte” (resistente), sendo a alimentação uma fonte primordial de “sustança” para o corpo, de sobrevivência e de preservação da identidade social. A lógica da alimentação escolar como forma de minimizar a fome e falta de acesso dos escolares a uma alimentação adequada é abordada por Ceccim (1995). Ele afirma que a escolha do ambiente escolar para atacar o problema da fome só pode ser colocada se não prejudicar a função pedagógica, uma vez que, se a criança for à escola para alimentar-se sem que haja uma preocupação com a qualidade do ensino prestado, estará substituindo a deficiência alimentar pela deficiência de ensinoaprendizagem, preservando, assim, a exclusão social. A aceitação da alimentação escolar pelos alunos foi referida, também, como fator que contribui para a escolha do tipo de preparação ofertada. Observou-se que a preocupação em incluir uma preparação mais aceita tem relação, também, com o cuidado em não desperdiçar alimentos: “Se a gente fizer uma merenda que eles não gostam, então aquela merenda vai ser toda estragada [...] Então a gente procura é [...] fazer mais a merenda que eles gostam, entendeu?”, “Tem merenda que tem muitos que não aceitam, aí a gente fala: Faz uma sopa que é mais aceito, que não sobra”. Ao confeccionar preparações saborosas, a merendeira contribui significativamente na aceitação do alimento pelo aluno. Além disso, o modo como a refeição é apresentada à criança por meio de atitudes de atenção e carinho torna esse momento mais agradável, favorecendo a boa aceitação do alimento (Costa, Lima, Ribeiro, 2002; Instituto de Nutrição Annes Dias - INAD, 1978). Para avaliar a aceitação das preparações, as merendeiras utilizam estratégias, dentre as quais estão incluídas: a observação dos rejeitos nos pratos dos escolares, que é a parcela da alimentação servida e não consumida por eles, e as sobras limpas nas panelas, ou seja, a parte da preparação que não foi servida aos escolares. No entanto, técnicas de avaliação, como Índice de Avaliação de Rejeito e Índice de Sobras (Teixeira et al., 1990), não estão inseridas na rotina das escolas, o que foi observado também na análise in loco. Dessa forma, não há uma institucionalização do processo de avaliação da aceitação das preparações: “Se a gente for limpar os pratos, se não sobrou resto, nem sobra, eu fico feliz da vida, porque aceitou bem. Nem tá na panela, nem tá desperdiçado” ou “O prato quando chega para eu lavar, eu sei [...] se tem muita comida, com certeza eles não gostaram. Se o prato tá bem seco, eles comeram e gostaram!”. Assim, a visão das merendeiras acerca da aceitação da alimentação escolar pelos alunos é resultante da prática cotidiana das mesmas e da estreita relação que elas mantêm com as crianças. Termos como “sentir e ver” traduzem esta idéia: “Então a gente que trabalha com os alunos, a gente vê, sente aquilo que eles mais gostam e sente também o que eles não gostam”. Apesar da inexistência de testes de aceitabilidade que observem parâmetros técnicos e científicos, 829


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evidenciou-se que o olhar das merendeiras sobre a maior ou menor aceitação de uma preparação por parte dos escolares influencia a composição do cardápio. No entanto, é importante ressaltar que o PNAE (Brasil, 2006) preconiza que o teste de aceitabilidade deve ser realizado quando há introdução de um novo alimento no cardápio, ou, mesmo, quando se deseja testar a aceitação de preparações freqüentemente incorporadas na alimentação escolar. Apesar de terem referido a importância de vários determinantes na composição dos cardápios, percebeu-se que o tipo de alimento disponível na despensa é fundamental na definição do tipo de preparação a ser ofertado no dia-a-dia das escolas: “E a gente tem que dizer o que é que tem para a merenda, porque lá na minha escola a gente só faz o cardápio conforme o que tiver ali.”. Entre os aspectos que devem ser considerados no planejamento dos cardápios, destacam-se: a vocação agrícola do município, o valor nutricional dos alimentos, a faixa etária dos escolares, o horário de distribuição das refeições, o clima da região, a época do ano, a variedade da alimentação, a aceitação, o custo acessível, facilidades e dificuldades no fornecimento de genêros, e a distribuição harmônica de cada grupo da pirâmide alimentar (Brasil, 2006; Weis, Chaim, Belik, 2004; Belaciano, Moura, Silva, 1995).

Merendeira: satisfação no preparo da alimentação escolar versus sobrecarga de trabalho O cansaço ocasionado pela sobrecarga de trabalho, relacionado à inclusão de duas refeições na alimentação escolar, assim como ao preparo de refeições mais completas, esteve presente na fala das merendeiras. No entanto, observa-se que, apesar da sobrecarga, as merendeiras revelam satisfação na oferta de preparações que agradem aos escolares: “eu já cheguei até conversar com ela [diretora] sobre essas duas merendas, porque é muito trabalho pra duas pessoas, entendeu? [...] Eles [escolares] se satisfazem, saem feliz da vida porque a gente dá aquela papa feita com chocolate, mas é muito trabalho! Tem pessoas que ajudam a entregar, mas depois a gente tem que fazer o café com leite, aí já tem o biscoito, aí já atrasa a outra merenda [...] e vai correndo com a merenda [...] entendeu?” . As merendeiras, ao descreverem o tipo de preparação servida nas escolas, revelam, ainda, que a oferta de refeições mais completas não deveria fazer parte do cardápio, caso fosse mantido o conceito clássico de merenda. Além disso, estas demonstram sensação de exploração na elaboração destas preparações: “Eu acho isso uma exploração muito grande, porque merenda é uma coisa e almoço é outra” ou “Tem que fazer o arroz com cenoura, refogado. Aí depois vem o pirão, aquele pirão muito bem feito, que nem todo restaurante [...] Quando termina de fazer aquilo ali você já ta de cair para um lado e cair para o outro!” A sobrecarga referida pelas merendeiras vai além da preparação de refeições. Estas se consideram referência para os alunos em outras situações, como, por exemplo, um machucado ou mal-estar. Além disso, consideram-se excluídas do processo organizacional da escola: “Olha, lá a gente faz de tudo. Se cair uma criança, a gente tá ali, com um gelinho [...] Se uma criança tá com dor de barriga: Tia, eu tô com dor de barriga [...] eu deixo minha merendinha lá, e vou fazer um chazinho pra dar à criança. Eu já lavei roupa de sangue de criança [...] a gente é pra tudo que existe, mas acontece meio mundo de coisa lá pra dentro e a gente da merenda não é nada. A gente da merenda só existe ali é pra fazer a merenda. Nós somos desconhecidas (risos)”. Essa sobrecarga de trabalho também foi referida no estudo de Souza et al. (2003), no qual as merendeiras, ao serem solicitadas a criar imagens relacionadas com a sobrecarga de trabalho, apresentaram ilustrações de robôs, mulheres carregando a escola nas costas e mulheres com vários braços fazendo “mil coisas”, em virtude das suas atribuições estarem relacionadas não só com o preparo de refeições, mas também com a limpeza do refeitório.

A merendeira: um agente para a incorporação de hábitos alimentares saudáveis no espaço escolar A escola é um espaço privilegiado para o desenvolvimento de ações educativas e os programas de alimentação escolar são excelentes ferramentas para a promoção de hábitos alimentares saudáveis, não 830

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apenas por fornecerem uma parcela dos nutrientes que os alunos necessitam diariamente, mas também pela possibilidade de se constituírem em espaço educativo, ao estimularem a integração de temas relativos à nutrição ao currículo escolar (Fernandez, 2005; Costa, Ribeiro, Ribeiro, 2001). O planejamento de cardápios variados, nutricionalmente equilibrados, proporciona a oferta dos macronutrientes necessários à saúde das crianças, bem como a oferta de fibras, vitaminas e minerais presentes especialmente nas frutas e hortaliças, sendo fundamental o estímulo ao consumo desses alimentos pelos escolares. Aliado a isso, a merendeira, que prepara e distribui a alimentação escolar, é um ator-chave nesse processo, podendo contribuir para estimular esse consumo. No entanto, para isso, é importante que recebam treinamento adequado, com a participação ativa de um profissional de nutrição no planejamento e monitoramento dessas ações. Neste trabalho percebeu-se, por parte das merendeiras, a utilização de estratégias para que os escolares consumam alimentos nutritivos sem o conhecimento da existência destes nas preparações: “É sopa de verdura totalmente passada no liquidificador, né? [...] A gente não deixa verdura, porque se tiver eles tiram [...] O que chegou de verdura a gente passa [...] Eles nem vêem, entendeu? Aí dizem: Tia, que sopa mais gostosa! Então eu não digo o quê, porque se eu disser que é verdura, eles não tomam! Hoje mesmo eles perguntaram: Tia, o que é isso? É verdura? Aí eu disse: É não meu filho, vá pra lá que não pode ficar aqui não, é um negócio aí que a tia faz! Aí eu acho que tomou né?”. Este relato reflete a preocupação com a aceitação das preparações e com o teor nutricional destas. Ficou claro ainda, nas falas em geral, que alimentos ricos em vitaminas e minerais, como verduras, legumes e frutas, aparecem sob a forma de ingredientes, compondo as preparações, e não como uma preparação em si. Assim, estas alternativas de “camuflar” os legumes e verduras utilizados nas preparações refletem, por um lado, uma valorização do consumo destes alimentos e uma preocupação com a saúde das crianças, e, por outro, demonstram uma fragilidade do uso da alimentação escolar como espaço de aquisição de hábitos alimentares saudáveis. As estratégias para uma maior aceitação da alimentação escolar devem estar norteadas pelo princípio da aquisição de hábitos alimentares saudáveis e do prazer em consumir uma alimentação diversificada. Essa preocupação em adequar as refeições, camuflando o que desagrada às crianças, também foi referida no estudo de Nunes (2000), a qual revelou a preocupação das merendeiras em oferecer alimentos que não são considerados saborosos pela cultura alimentar predominante. A dificuldade maior na inclusão de verduras na alimentação escolar parece estar associada ao fato de os escolares não terem incorporado, na primeira infância, o hábito de uma alimentação diversificada e composta por produtos naturais ricos em fibras e vitaminas, incluindo o aumento do consumo de leguminosas, cereais integrais, legumes, verduras e frutas. Esta questão traz à tona a importância de uma parceria escola-família para a educação alimentar e nutricional: a escola, representada neste processo pelos nutricionistas, merendeiras e diretores; e a família, por meio da representação destas no Conselho de Alimentação Escolar - CAE. O CAE é importante porque, além de se responsabilizar pelo acompanhamento dos recursos financeiros aplicados na alimentação escolar, deve monitorar o cardápio oferecido aos escolares. A diversificada e ampla composição do CAE (representantes de pais de alunos, professores, sociedade civil, poder legislativo e poder executivo) deve facilitar a integração família-escola e viabilizar as ações de educação nutricional voltadas para a realidade local (Brasil, 2006). Outros trabalhos (Fernandez, 2005; American Dietetic Association - ADA, 2000) têm destacado a importância de as escolas e a comunidade dividirem responsabilidades para prover, aos alunos, o acesso a uma alimentação de qualidade e experiências positivas em nutrição que irão trazer, como impacto, o ganho na sua saúde e educação. Deve-se considerar, ainda, que as preferências alimentares infantis são grandemente influenciadas pelos hábitos e preferências alimentares dos pais. O caráter pedagógico do PNAE sofre, portanto, a influência desse processo; daí a necessidade do envolvimento dos pais, ou responsáveis pelas crianças, no planejamento dos cardápios da alimentação escolar, bem como no processo de regulamentação e controle dos alimentos provenientes de fiteiros (termo utilizado na região Nordeste do Brasil para designar quiosques que comercializam guloseimas) ou de casa (Conferência Nacional de Segurança Alimentar - CNSA, 2000). 831


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Conclusões A metodologia de grupo focal mostrou-se adequada para apreender as percepções, valores e conhecimentos das merendeiras acerca das etapas que envolvem o planejamento, produção e distribuição da alimentação escolar. Estas desenvolvem uma forte relação de afeto pelas crianças, desempenhando um papel de cuidadoras. O resultado das discussões revelou ausência de treinamentos sistemáticos e capacitação destas profissionais, sendo citados cursos ou palestras esporádicas, sem a inclusão de todo o grupo. Observou-se que as merendeiras consideram seu trabalho desvalorizado e parecem ter suas atividades norteadas por um conhecimento empírico adquirido por anos de prática. Entre as responsabilidades assumidas por estas profissionais, chama a atenção a sua participação no processo de elaboração do cardápio, o qual deveria ser planejado pelo nutricionista para atender as necessidades nutricionais e hábitos alimentares dos escolares. Evidenciou-se, por parte das merendeiras, a preocupação com o tipo de alimento a ser oferecido para uma maior aceitação pelos alunos, e com a oferta de alimentos saudáveis. No entanto, o uso de estratégias para que os escolares consumam alimentos nutritivos sem saber da existência destes, demonstra fragilidade na utilização do espaço escolar dentro da proposta de “Escolas Promotoras da Saúde”. Reafirmou-se a importância das merendeiras no contexto da alimentação escolar. Estas, pela proximidade e conhecimento acerca das preferências dos alunos, são atores fundamentais para o trabalho de utilização da alimentação escolar como espaço permanente de aprendizado. Neste sentido, os resultados apontam para a necessidade de um olhar mais atento para as potencialidades deste profissional e revelam a necessidade de maior suporte técnico e psicológico no seu processo de trabalho.

Colaboradores Alice Teles de Carvalho participou da concepção do tema, planejamento da pesquisa, coleta e análise dos dados. Josiane Fernandes Gomes e Vanessa Messias Muniz contribuíram no planejamento da pesquisa, coleta e análise dos dados. Isabella Samico contribuiu na análise dos dados. O trabalho de revisão e redação do artigo foi desenvolvido de forma conjunta, com um freqüente debate entre as autoras. Referências AMERICAN DIETETIC ASSOCIATION - ADA. Position of the American Dietetic Association: local support for nutrition integrity in schools. J. Am. Diet. Assoc., v.100, n.1, p.108-11, 2000. BELACIANO, M.I.; MOURA, D.O.; SILVA, A.C.P. Direito e garantia à merenda escolar. In: BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto. Merenda Escolar. Em Aberto, v.15, n.67, p.1-158, 1995. BRASIL. Programa Nacional de Alimentação Escolar. Manual de orientação para os conselheiros e agentes envolvidos na execução do programa nacional de alimentação escolar. Brasília: Ministério da Educação, Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação, 2006.

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PROGRAMA DE ALIMENTAÇÃO ESCOLAR ...

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CARVALHO, A.T. et al. Programa de alimentación escolar en el municipio de la ciudad de João Pessoa – del estado de Paraíba,Brasil: las cocineras en foco. Interface Comunic., Saúde, Educ., v.12, n.27, p.823-34, out./dez. 2008. La escuela es local privilegiado para desarrollar acciones educativas y el programa de alimentación escolar excelente recurso para la promoción de hábitos alimenticios saludables. Se objetivó evaluar la percepción de las cocineras encargadas de la merienda respecto a la producción y distribución de la alimentación escolar. La metodología de grupo focal se realizó con cocineras de 41 escuelas públicas municipales de João Pessoa, Paraíba (Brasil). Categorías desarrolladas: capacitación y entrenamiento; proceso de decisión al elaborar menúes; desgaste en el proceso de trabajo; alimentación escolar e incorporación de hábitos alimenticios saludables. Se evidenció estrecha relación afectiva entre cocineras y escolares y valorización en la oferta alimenticia de calidad con buena aceptación. Se observó ausencia de entrenamientos sistemáticos y fragilidad en el uso de la alimentación escolar para incorporar hábitos saludables. Se reafirmó la importancia de las cocineras al usar la alimentación escolar como espacio permanente de aprendizaje.

Palabras clave: Alimentación escolar. Cocineras. Hábitos saludables. Promoción de la salud. Recebido em 16/08/07. Aprovado em 15/05/08.

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artigos

Análise das interfaces entre modelos causais de acidentes: um estudo de caso em atividades de manutenção de um complexo hospitalar

Lucimara Ballardin1 Luis Antonio Franz2 Tarcísio Abreu Saurin3 Adriana Maschio4

BALLARDIN, L. et al. Analysis on the interfaces between causal models for accidents: a case study on maintenance activities in a hospital complex. Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.12, n.27, p.835-52, out./dez. 2008. The underlying assumptions in causal models for accidents have an impact on the nature of the conclusions from accident investigations. However, since each model has strengths and weaknesses, it is important to understand how they fit with each other. This study analyzes the relationships between sequential, epidemiological and systemic models. The analysis was based on a hospital maintenance accident. The results indicate that the models are complementary rather than excluding. In particular, the sequential model was shown to be useful for identifying and organizing information of importance for analysis from the perspective of the other models. It was also concluded that the nature of the preventive measures differed substantially between the models. While the sequential and epidemiological models indicated measures relating to the event under investigation, the systemic model indicated changes with a broader impact on the organization.

Key words: Salud laboral. Accident analysis. Maintenance.

As suposições subjacentes aos modelos causais de acidentes têm impacto na natureza das conclusões obtidas com as investigações dos mesmos. Todavia, considerando que cada modelo possui pontos fracos e fortes, torna-se relevante compreender a complementaridade e interfaces entre os mesmos. Este estudo analisou relações entre os modelos seqüencial, epidemiológico e sistêmico. A análise foi realizada a partir de um acidente ocorrido na manutenção de um hospital. Os resultados apontaram que os modelos são complementares ao invés de excludentes. Em particular, o modelo seqüencial mostrou-se útil para identificar e organizar informações, as quais foram relevantes à análise sob a perspectiva dos demais modelos. Concluiu-se ainda que a natureza das medidas preventivas diferem substancialmente entre si, ou seja, enquanto os modelos seqüencial e epidemiológico indicaram medidas relacionadas especificamente ao evento investigado, o modelo sistêmico indicou alterações de impacto mais amplo na organização.

Palavras-chave: Saúde do trabalhador. Análise de acidentes. Manutenção.

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1 Fisioterapeuta. Departamento de Engenharia de Produção e Transportes, Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Rua Lopo Gonçalves, 680/302 Porto Alegre, RS 90.050-350 luciballardin@yahoo.com.br 2-3 Engenheiros Civis. Departamento de Engenharia de Produção e Transportes, UFRGS. 4 Engenheira de Alimentos. Departamento de Engenharia de Produção e Transportes, UFRGS.

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ANÁLISE DAS INTERFACES ENTRE MODELOS...

Introdução Embora impactem negativamente no desempenho de qualquer organização, os acidentes podem ser vistos como informação ao aprimoramento dos processos e da própria segurança do sistema, constituindo uma oportunidade coletiva de aprendizagem (Dekker, 2002; Zocchio, 2002; Binder, Monteau, Almeida, 1996; Woods et al., 1994). Durante a investigação e análise de acidentes, teorias e modelos de referência podem ser adotados pelos analistas, tendo papel importante na natureza das conclusões obtidas. Com base em um levantamento bibliográfico, Gano (2001) verificou a existência de, pelo menos, 14 diferentes modelos causais e 17 métodos de investigação de acidentes. Em um estudo similar, Lehto e Salvendy (1991) referem ter encontrado 54 modelos causais e 16 diferentes métodos de investigação. Embora existam peculiaridades inerentes aos diversos modelos causais de acidentes existentes, de acordo com Hollnagel (2003), é possível classificá-los em três amplos grupos: seqüencial, epidemiológico e sistêmico. No modelo seqüencial, o acidente é percebido como uma seqüência de eventos paralelos ou em série que ocorrem em virtude de algumas causas-raízes, pressupondo a existência de relações de causa e efeito bem definidas. Já no modelo epidemiológico, embora os acidentes também sejam entendidos como resultantes de uma seqüência de eventos, é acrescentada a idéia de que esses eventos se propagam por meio de falhas latentes e ativas nas barreiras do sistema. Tais barreiras, conforme o seu posicionamento ao longo da cadeia de eventos, delimitam a existência de zonas de trabalho seguras, inseguras e de perda de controle. Por sua vez, o modelo sistêmico caracteriza o acidente como o resultado da variabilidade de múltiplos fatores que fazem parte do sistema produtivo, havendo interações muito mais complexas do que aquelas normalmente assumidas no modelo seqüencial. Embora a variabilidade seja considerada normal, os acidentes acontecem quando há coincidência de que as variações indesejadas ocorram em uma mesma situação de trabalho, havendo encadeamento lógico ou temporal entre elas (Hollnagel, 2003). Existem métodos de investigação de acidentes que adotam pressupostos claramente vinculados aos modelos seqüencial e epidemiológico. Por exemplo, o método da árvore de causas (ADC) possui embasamento no modelo seqüencial, uma vez que apresenta uma visão linear dos eventos, explicitando relações de causa e efeito. A facilidade de representação gráfica é apontada como a principal vantagem desta ferramenta, a qual também indica fatores causais do acidente (Binder, Almeida, 1997; Binder, Monteau, Almeida, 1996). De outro lado, o modelo sistêmico, de natureza mais qualitativa e recente, não possui um método de investigação amplamente disseminado nos meios acadêmico e industrial (Hollnagel, 2003). Uma vez que todos os modelos causais apresentam suas limitações – e, por conseqüência, as respectivas ferramentas de investigação associadas a cada modelo – a compreensão das interfaces e da complementariedade entre eles pode levar ao desenvolvimento de métodos inovadores e robustos de investigação de acidentes. Em particular, essa é uma necessidade para se estudarem acidentes de grandes proporções em sistemas complexos. Os sistemas complexos são caracterizados pelo alto grau de interconexão e interdependência entre seus componentes (Perrow, 1984). Chistoffersen e Woods (1999) acrescentam ainda outras características, tais como: o grau de risco, o caráter incerto das informações, as grandes exigências das tarefas e a dinamicidade no sistema. Com base nisso, percebe-se que o ambiente hospitalar apresenta características de sistemas complexos. Por isso, em um hospital, as atividades de manutenção desempenham um papel fundamental, visto que falhas em equipamentos podem colocar em risco a vida de pacientes. De fato, além dos hospitais, em outros sistemas complexos, erros em atividades de manutenção têm sido fatores contribuintes importantes em muitos acidentes graves (Reason, 1997). De acordo com Reason e Hobbs (2003), as atividades de manutenção não têm aumentado a segurança e a confiabilidade na mesma medida que outros elementos dos sistemas produtivos, os quais freqüentemente têm se aperfeiçoado mediante a automação de tarefas anteriormente executadas por pessoas. Vale salientar que o impacto da automação é paradoxal, uma vez que o aumento da confiabilidade costuma vir acompanhado pela criação de novas possibilidades de erro, não raro com conseqüências mais graves que as anteriores (Woods et al., 1994).

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artigos

As pressões de tempo, a falta de conhecimento, a fadiga proporcionada pelas atividades, a utilização de ferramentas inadequadas, os problemas técnicos e os procedimentos inadequados também têm sido identificados como fatores causais relevantes nos acidentes relacionados à manutenção na aviação e nas plantas nucleares (Reason, Hobbs, 2003; Reason, 1997). Reason e Hobbs (2003) relatam um estudo, na aviação, em que se percebe a pressão de tempo como fator que conduz aos incidentes em atividades de manutenção. O levantamento do estado da arte mostra que, em geral, a análise de acidentes é feita com base no uso de apenas um modelo de análise (Li, Harris, Yu, 2008; Almeida, 2006; Souza, Freitas, 2003; Freitas et al., 2001; Almeida, 1997), o que limita tanto a compreensão do evento em si quanto a compreensão das interfaces entre os modelos. Lehto e Salvendy (1991) afirmam ainda que, embora diversos modelos de análise tenham sido desenvolvidos, poucos são os estudos que se propõem a validar empiricamente os mesmos, segundo critérios claros de avaliação. Em virtude da carência de estudos que se proponham a analisar os acidentes sob diferentes pontos de vista, este estudo tem como objetivo analisar a complementaridade e as relações entre os modelos de análise de acidentes seqüencial, epidemiológico e sistêmico propostos por Hollnagel (2003). Essa análise é realizada por meio do estudo de caso de um acidente em atividades de manutenção de um complexo hospitalar. É importante ressaltar ainda que, quando influenciados por ideologias e interesses, os métodos de análise em questão podem ser parciais, ou seja, os resultados encontrados podem ser influenciados até mesmo porque os acidentes são eventos que, muitas vezes, materializam conflitos de interesses entre os atores diretamente envolvidos. Embora a discussão dos modelos sob o ponto de vista políticoideológico não faça parte do escopo do artigo, foi privilegiada neste estudo uma abordagem organizacional, buscando a imparcialidade na análise dos eventos, independente do modelo de análise utilizado.

Modelos causais de acidentes Modelo seqüencial Os modelos seqüenciais são usuais na análise de acidentes no ambiente industrial. A sua difusão é relacionada à fácil compreensão proporcionada pela visão gráfica das relações causa-efeito, explicando os acidentes como decorrência de uma seqüência de eventos. A teoria mais tradicional que se encaixa neste modelo é a Teoria do Dominó, proposta por Heinrich (1959) na década de 1930, na qual o acidente ocorre devido às relações de causa e efeito entre cinco elementos (ambiente social e hereditariedade, falha individual, atos e condições inseguras, acidente e a lesão propriamente dita), sendo que a manifestação de um deles necessariamente implica a manifestação em cadeia dos elementos seguintes. Conforme Hollnagel (2004), a análise de acidentes pelo método da árvore de causas (ADC) pode ser associada a esse modelo. Vale salientar que a ADC adota pressupostos vinculados à teoria dos sistemas (Binder, Almeida, Monteau, 1996), tais como: reconhecer que fatores distantes temporal e fisicamente do acidente foram causas fundamentais, bem como reconhecer que fatores interagem para provocar o acidente. Entretanto, a categoria de modelos sistêmicos, conforme a definição específica proposta por Hollnagel (2004), não tem como base apenas a teoria dos sistemas, motivo pelo qual a ADC não pode ser enquadrada na mesma. Também são associadas ao modelo seqüencial algumas ferramentas de qualidade, tais como o FMEA - Failure Mode and Effect Analysis (Instituto de Qualidade Automotiva, 1995) e o FTA - Fault Tree Analysis (Helman, Andery, 1995). A ADC e o FTA percebem o acidente como a última de uma série de variações dos componentes de trabalho. Por sua vez, estes componentes são classificados como segue (Binder, Almeida, Monteau, 1996): i) indivíduo (I): fatores individuais; ii) material (M): meios técnicos disponíveis à realização da tarefa; iii) meio ambiente de trabalho (MT): fatores do ambiente físico e social do indivíduo; iv) tarefa (T): designa as ações fundamentais do indivíduo para atingir o objetivo final da tarefa, como seguir os procedimentos. Outra classificação proposta por esta ferramenta se refere à avaliação dos eventos que conduziram ao acidente em habituais ou variações.

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ANÁLISE DAS INTERFACES ENTRE MODELOS...

Modelo epidemiológico O modelo epidemiológico descreve o acidente por meio de uma analogia à saúde do sistema (acidentes são gerados da mesma forma que a doença) e a um “queijo suíço” (Figura 1). Por estas analogias, entende-se que há barreiras ao longo das “camadas” do sistema. Estas barreiras são continuamente rompidas por falhas ativas e latentes do sistema. As falhas ativas são aquelas cometidas pelos operadores, geralmente situados no final da cadeia dos eventos. As repercussões e conseqüências deste tipo de falhas são imediatas. Por sua vez, as falhas latentes são condições estruturais que, embora não tenham conseqüências imediatas, estão sempre presentes no sistema, aguardando um fator desencadeador para serem percebidas. Em geral, elas são conseqüências do projeto e da tecnologia do sistema, das decisões de alto nível gerencial da organização, das pressões internas e externas à organização e, até mesmo, das pré-condições que podem desencadear as ditas “ações inseguras”, tais como a fadiga (Reason, 1990). Por isso, é possível afirmar que o maior diferencial do modelo epidemiológico em relação ao modelo seqüencial consiste na ênfase dada aos fatores organizacionais na análise das causas do acidente (Reason, 2000).

Perigos

Danos

Figura 1. Modelo epidemiológico, mostrando as barreiras em analogia à teoria do “queijo suíço” (adaptado de Reason, 2000).

Conforme este modelo, as barreiras sujeitas às falhas ativas e condições latentes são classificadas, por Hollnagel (2004), em quatro modalidades: físicas, funcionais, simbólicas e imateriais (Tabela 1). De acordo com o mesmo autor, o conceito de barreiras pode ser utilizado tanto de maneira proativa, como no projeto de novos sistemas, quanto reativamente, na análise de sistemas já existentes. O mesmo autor ainda acrescenta perguntas que conduzem a análise das barreiras, entre elas: “uma barreira que não estava presente poderia ter evitado o acidente ou ter minimizado as suas conseqüências? Em caso afirmativo, como se explica sua ausência? Alguma barreira existente falhou? Por quê?”.

Tabela 1. Definição e exemplos de barreiras propostas por Hollnagel (2004). Barreiras Física Funcional Simbólica Imaterial

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Definição A ação humana e a transferência de energia ou de massa é impedida por uma limitação de características físicas. Barreira dinâmica que atua impedindo que a ação seja completada, seja por um dispositivo lógico ou temporal. Barreira conceitual que exige a interpretação de uma informação. O conhecimento prévio do indivíduo atua como uma barreira para que o objetivo final da tarefa seja atingido.

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Exemplo Construções, muros ou gaiolas. Chave, senhas ou dispositivos eletrônicos com códigos. Avisos, layouts ou demarcações visuais presentes no ambiente. Regras, guias, procedimentos de segurança e demais questões organizacionais.


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artigos

A transição entre o modelo epidemiológico e o sistêmico ocorre pela proposta de Rasmussen (1997), baseada na dinamicidade dos sistemas e no mapeamento do ambiente em zonas de trabalho (Figura 2). Na primeira delas, a zona segura, as atividades são exercidas sob as condições previstas nos procedimentos de segurança. A migração de desempenho ao longo das zonas ocorre em razão das pressões de carga de trabalho e custo. Por isso, a zona segura é circundada por outra de perigo, na qual ocorreram desvios previstos ou não previstos em relação aos procedimentos. Se as decisões adotadas na zona de perigo não forem corretas, o trabalhador entrará na zona de perda de controle, na qual os acidentes realmente ocorrem (Abdelhamid et al., 2003).

Limite de desempenho Funcionamento aceitável

Margem de erro Contra-gradiente de reclamações para a cultura de segurança

Limite percebido do desempanho do resultado

Gradiente em direção ao menor esforço

Limite para falha econômica

Tentativas para melhorar performance criam “movimentos brownianos”

Pressão da administração para a eficiência

Limite para carga de trabalho inaceitável

Espaço de possibilidades: graus de liberdade a serem solucionados de acordo com preferências subjetivas

Figura 2. Zonas de trabalho propostas pela teoria de Rasmussen (1997).

Modelo sistêmico A adaptação do modelo de Rasmussen (1997) dá origem ao modelo sistêmico (Hollnagel, 2004). Este modelo não enfatiza a identificação de relações bem definidas de causa-efeito, adotando o pressuposto de que uma determinada seqüência de eventos que gerou um acidente é bastante improvável de ser repetida exatamente da mesma forma. De outro lado, a ênfase está na gestão da variabilidade, incluindo a identificação de sua origem e o seu monitoramento. Hollnagel (2004) salienta ainda a importância de se conhecer o desempenho normal do sistema e fatores que geram tanto o sucesso como falhas do sistema. No modelo sistêmico, é utilizada uma analogia com base nos termos “estocástico” e “ressonância” para explicar os acidentes. Hollnagel (2004) explica que a variabilidade de um sistema comporta-se de acordo com um modelo estocástico, ou seja, a probabilidade de que estas variações se manifestem são aleatórias e imprecisas. Estas variações não são, por si só, capazes de provocar um acidente. No entanto, pelo fenômeno da ressonância, quando estas variações agem simultaneamente e em uma mesma freqüência, elas podem amplificar o risco dos acidentes. Com estas analogias, compreende-se que os fatores causais que perturbam um sistema sempre são múltiplos, não-lineares e de atuação simultânea e desordenada (chamadas de movimentos brownianos). Enquanto no modelo seqüencial é recomendada a eliminação da variabilidade e de suas fontes (Binder, Almeida, Monteau, 1996), o modelo sistêmico assume que a variabilidade é normal e que sua eliminação é, em geral, impossível, sobretudo no

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contexto de sistemas dinâmicos e complexos. Neste contexto, o modelo sistêmico propõe que a ênfase das ações preventivas deve ser no monitoramento da variabilidade e no desenvolvimento da capacidade de adaptação às pressões organizacionais. Na Figura 3, é possível observar os quatro principais fatores que podem atuar no sistema de modo “estocástico” e “ressonante”: i) a variabilidade do desempenho humano; ii) a falta de visibilidade das barreiras; iii) as condições latentes do sistema e iv) as falhas tecnológicas.

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FALHAS TECNOLÓGICAS

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VARIABILIDADE DA PERFORMANCE HUMANA

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Falha de projeto e omissão

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Otimização local

Figura 3. Modelo sistêmico (adaptado de Hollnagel, 2004).

Segundo Hollnagel (2004), é de validade limitada deter-se na busca de causas específicas de um acidente, uma vez que cada acidente apresenta uma combinação própria de fatores que podem causálo. No entanto, quando há repetição do mesmo contexto e quando a tarefa ocorre com freqüência, torna-se imprescindível investigar as causas para a prevenção (Dekker, 2002). Portanto, a proposta de Hollangel (2004) está focada não apenas na busca por razões diretas que influenciaram na ocorrência do acidente, mas também em compreender o contexto relacionado ao cenário do acidente, tanto sob a ótica ambiental, política, organizacional, individual, entre outras. Método de pesquisa Este estudo do tipo observacional descritivo adotou uma abordagem qualitativa (Minayo, 1997). Como estratégia de pesquisa, optou-se pelo estudo de caso, precedido por um levantamento bibliográfico sobre os modelos causais de acidentes de trabalho (Hollnagel, 2003; Almeida, 1997; Rasmussen, 1997; Reason, 1997; Lehto, Salvendy, 1991). A classificação de modelos causais proposta por Hollnagel (2003) foi adotada para estruturar a análise, uma vez que a mesma diferencia três diferentes visões, de acordo com a amplitude e complexidade de análise propiciada pelos modelos, os quais podem enquadrar as teorias causais existentes. A análise das interfaces entre os modelos causais foi realizada por meio da análise de um acidente em atividades de manutenção de hospital. Como requisito de escolha do acidente a ser analisado, a equipe de pesquisa assumiu que o mesmo deveria ter envolvido lesão com afastamento do trabalho. As investigações da equipe de pesquisa foram iniciadas em janeiro de 2006, embora o acidente tenha ocorrido em setembro de 2005. Este intervalo entre a ocorrência do acidente e o início da pesquisa pode ser considerado como uma das limitações do estudo, uma vez que dificultou o resgate detalhado das condições reais do evento, bem como pode ter modificado a percepção dos envolvidos. É importante salientar que, na época em que o acidente ocorreu, não houve investigação aprofundada, 840

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artigos

mas apenas o seu registro pela equipe responsável pela segurança do trabalho no hospital. Deste modo, não houve contribuição de fontes documentais relevantes relacionadas ao evento escolhido. A investigação foi realizada pela equipe de pesquisa por meio de visitas ao local do acidente e de três entrevistas: uma com o trabalhador que sofreu o acidente, uma com a coordenadora do setor e outra com o auxiliar do acidentado. Para esclarecimentos de dúvidas, foi realizada uma segunda entrevista com o acidentado. As entrevistas foram orientadas por um roteiro para investigação de acidentes, baseado em recomendações de Dekker (2002). As entrevistas foram transcritas e enviadas aos respectivos entrevistados com o objetivo de que os mesmos pudessem revisar o conteúdo de suas falas e, então, autorizar a continuidade do estudo. O roteiro de entrevistas proposto por Dekker (2002) foi escolhido em virtude da visão ergonômica e sistêmica das informações solicitadas, o que favoreceu a análise sob as perspectivas dos diferentes modelos com a utilização do mesmo instrumento de coleta de dados. Na primeira etapa deste roteiro, foram abordadas questões referentes à rotina normal de trabalho da manutenção. Após, foi solicitado aos envolvidos que descrevessem o acidente sob seu ponto de vista, na ordem cronológica dos fatos e na percepção acerca das relações de causa-efeito. Apenas o acidentado e seu auxiliar responderam à terceira etapa da entrevista, na qual foram feitos questionamentos quanto ao momento do acidente. Por sua vez, a entrevista com a coordenadora teve, como objetivo principal, conhecer seu ponto de vista sobre o acidente, bem como compreender o contexto do trabalho e a cultura de segurança do setor. A análise do acidente propriamente dita foi realizada de acordo com os modelos seqüencial, epidemiológico e sistêmico. A análise seqüencial foi realizada por meio da ferramenta ADC e seguiu quatro etapas: i) transcrição das entrevistas gravadas; ii) levantamento dos componentes da atividade; iii) classificação dos componentes em (T) Tarefa, (I) Indivíduo, (M) Material e (MT) Meio de Trabalho; iv) classificação dos componentes em variações (Ë%) e fatos habituais (¡%). Após a organização de tais informações, a ADC foi graficamente representada para demonstrar o encadeamento dos eventos. Para classificar o acidente sob a perspectiva epidemiológica, foram utilizados os fatores classificados pela ADC, uma vez que não há um método específico para análise de acordo com este modelo. De acordo com os parâmetros de análise existentes, a análise epidemiológica foi realizada classificando os fatores em falhas ativas e latentes, bem como nos tipos de barreiras e seu status no momento do acidente (barreira ausente ou barreira transposta), conforme sugerido por Hollnagel (2004). Como as falhas latentes e as falhas ativas estão presentes nas tarefas, nos indivíduos, nos materiais e no ambiente de trabalho, optou-se por classificar as falhas utilizando a ferramenta ADC. A classificação em barreiras também foi realizada de acordo com a mesma premissa. Por sua vez, a análise sob o modelo sistêmico foi realizada de acordo com os quatro fatores que atuam nos sistemas de modo estocástico e ressonante, conforme proposta de Hollnagel (2004). A análise sob a perspectiva deste modelo implicou considerar a percepção do envolvidos diretamente na cena do acidente e, também, das pessoas que atuavam nos diversos níveis hierárquicos da organização (e mesmo fora dela), as quais poderiam contribuir para a caracterização da cultura organizacional e do ambiente externo que influenciou no acidente. No entanto, todos esses envolvidos (por exemplo, o médico que atendeu o acidentado e o projetista da edificação onde ocorreu o acidente) não puderam ser localizados pelos pesquisadores, o que também caracterizou uma das limitações do estudo.

Resultados O acidente investigado e seu contexto O complexo hospitalar estudado é composto por sete unidades, das quais duas são hospitais gerais e cinco são hospitais especializados. Atualmente, o local é um dos maiores complexos hospitalares da região sul do Brasil. Aproximadamente cinco mil funcionários e dois mil médicos atuam neste complexo. Os indicadores de desempenho também mostram que, no ano de 2006, o hospital recebeu uma média mensal de 3.840 internações e realizou 5.323 procedimentos cirúrgicos, 68.316 consultas e 319 partos, obtendo um faturamento mensal de cerca de 25 milhões de reais. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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ANÁLISE DAS INTERFACES ENTRE MODELOS...

A equipe do setor de manutenção do complexo hospitalar era formada, na época do acidente estudado, por 29 funcionários, dos quais 22 eram técnicos em manutenção, três eram engenheiros e quatro eram auxiliares de manutenção. Esta equipe está subdividida em equipes menores, de acordo com suas especialidades. Em geral, todas as equipes possuem, como função, a assistência técnica e a manutenção, tanto preventiva como corretiva, dos equipamentos hospitalares. As tarefas dos técnicos são desenvolvidas durante as 24 horas do dia e, quando necessário, também em finais de semana. Dentre estas tarefas, está a manutenção do sistema pneumático do hospital. O sistema pneumático, equipamento relacionado com o acidente de trabalho analisado, consiste em uma rede de tubulações, interligando todo o complexo hospitalar, comandada por um software e utilizada para o transporte de cápsulas que contêm ampolas com amostras de exames. Existem duas turbinas que são responsáveis pela geração de vácuo e pressão no interior das tubulações, as quais possuem sensores que informam a localização das cápsulas. No total, quarenta laboratórios do complexo hospitalar utilizam este serviço. Por isso, quando algum defeito ocorre no sistema pneumático, vários setores podem interromper imediatamente suas operações. Essa rápida propagação dos efeitos de falhas é uma típica característica de sistemas complexos, assim como o alto risco associado a atrasos em procedimentos médicos causados por falhas no sistema pneumático. Na época do acidente, o sistema pneumático apresentava baixo desempenho de suas turbinas. Com o intuito de melhorar o rendimento do sistema até a chegada das novas turbinas, um técnico de manutenção e seu auxiliar decidiram intercambiar as turbinas, pois a de pior desempenho era a mais solicitada pelo sistema. Segundo os responsáveis, não havia outro equipamento sobressalente em condições satisfatórias de funcionamento (o hospital tem como política não manter equipamentos sobressalentes de manutenção em estoque, programando a compra de novos equipamentos apenas quando aqueles que estão em uso se aproximam do limite da vida útil), o que reforçou a alternativa da troca de posicionamento entre as peças. Uma vez que foi retirada a primeira turbina, o técnico e seu auxiliar transportaram a mesma até o cubículo onde ocorreria a troca, por meio de um carrinho de mão, já que a turbina pesava aproximadamente sessenta quilos. No entanto, durante o trajeto, havia uma escada que impedia o transporte com o carrinho, o que levou o técnico e seu auxiliar a solicitaram ajuda aos trabalhadores que atuavam na obras de reforma do hospital, realizada nas proximidades, para carregar o equipamento pela descida da escada. Quando chegaram ao local da troca, o técnico e seu auxiliar suspenderam manualmente (com as duas mãos, sem utilização de luvas) a turbina até a plataforma metálica, pois não havia dispositivo mecânico para elevação por dispositivos. Além disso, havia um espaço vazio impedindo o acesso direto ao local de posicionamento da turbina (Figura 4), o que causava ainda mais dificuldade na realização da tarefa.

Turbina Bombas de água

Local onde o dedo do funcionário foi prensado

Trajeto da turbina até a base

Tela metálica na face lateral

Figura 4. Características físicas do local do acidente.

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Espaço vazio


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artigos

Em seguida, o técnico e o auxiliar posicionaram-se para colocar a nova turbina em sua base, já que a turbina antiga havia sido previamente retirada por eles. O auxiliar estava no espaço vazio, situado lateralmente à turbina e com os pés apoiados nas extremidades da plataforma metálica. O técnico permaneceu do lado oposto ao auxiliar, em postura agachada sobre a plataforma, ajudando na sustentação da mesma pelo auxiliar. Para colocar a turbina sobre sua base, ela foi movida pelo espaço lateral, passando acima do espaço vazio. No momento em que a turbina foi transportada pelos funcionários até sua base, em suspensão, o auxiliar se desequilibrou, mas conseguiu, ainda assim, segurá-la. Em uma segunda tentativa, o técnico e seu auxiliar tentaram posicionar novamente a turbina sobre sua base. Neste instante, o auxiliar desequilibrou-se novamente. Com medo de que o auxiliar caísse no espaço vazio e que, conseqüentemente, a turbina caísse sobre ele, o técnico puxou-a em direção ao seu corpo. Com este movimento, a turbina caiu e prensou a mão do técnico contra um perfil metálico existente no local, ocasionando, no técnico, a fratura de um dedo e a lesão de outro. Imediatamente após o acidente, o técnico foi socorrido pelo seu auxiliar e levado à emergência do complexo hospitalar. Logo em seguida, o auxiliar terminou a instalação da turbina. Uma vez que se confirmou o acidente de trabalho com lesão, o técnico ficou afastado de suas atividades por dois meses. A percepção dos envolvidos sobre as causas do acidente De acordo com o técnico, as principais causas do acidente foram: i) a falta de planejamento na obra de ampliação do hospital, o que resultou em um local inadequado para instalação da turbina e; ii) o fato de que as atividades de carregamento e de troca da turbina eram raramente realizadas por ele e seu auxiliar. Vale salientar que a pouca repetitividade de atividades é uma característica de algumas atividades de manutenção (Reason, Hobbs, 2003). Entretanto, ambos afirmaram que haviam realizado uma troca de turbina há pouco tempo, embora, neste caso, a turbina estivesse situada em local com melhores condições de acesso. O auxiliar admitiu que eles deveriam ter utilizado luvas para o carregamento da turbina, de modo a evitar o deslizamento da mesma, bem como ter solicitado ajuda a alguma outra equipe de manutenção, uma vez que não havia pessoas da sua equipe disponíveis para auxiliar no carregamento da turbina. Embora o acidente tenha ocorrido no término do expediente de trabalho (aproximadamente às 17 horas), o auxiliar informou que eles não se sentiam pressionados em função do tempo, mas admitiu que eles resolveram agilizar a troca das turbinas para não correrem o risco de retornar para corrigir falhas nas mesmas durante o final de semana. O técnico acrescentou ainda que, no seu ramo de atuação, sempre existe uma “pressão intrínseca do usuário pela eficiência do sistema”. Quanto aos aspectos individuais, o técnico ressaltou que, em virtude de uma prova na faculdade, havia tido poucas horas de sono na noite anterior ao acidente e, portanto, sentia-se cansado no dia do acidente. A coordenadora do setor acrescentou ainda que o técnico havia comentado estar com problemas pessoais na época em que ocorreu o acidente, aparentando ansiedade e irritação perante os colegas de trabalho. Sob o ponto de vista da coordenadora, a causa-raiz do acidente foi a atitude precipitada do técnico e de seu auxiliar, uma vez que, percebendo as condições desfavoráveis à troca das turbinas, os funcionários não deveriam ter realizado ou deveriam ter solicitado auxílio à outra equipe do setor. No entanto, de acordo com as informações, não existiam, naquele momento, pessoas disponíveis para auxiliá-los. Deste modo, a visão dos envolvidos no acidente difere da percepção da coordenadora do setor. Para os primeiros, embora houvesse fatores individuais envolvidos no acidente, o mesmo ocorreu em virtude da falta de condições técnicas do local. Já para a coordenadora, uma tomada de decisão precipitada dos envolvidos foi o fator preponderante. A análise do acidente sob a ótica do modelo seqüencial Na análise sob o ponto de vista do modelo seqüencial, os fatores individuais “cansaço” e “comportamento alterado” foram evidenciados (Tabela 2). Estes fatores também são mencionados nos acidentes estudados por Reason e Hobbs (2003), nos quais observou-se que a privação moderada de sono gera conseqüências similares às produzidas pelo álcool, como a dificuldade em manter a atenção, lapsos e perdas de memória.

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ANÁLISE DAS INTERFACES ENTRE MODELOS...

Tabela 2. Classificação dos desvios propostos para a elaboração da ADC. Componentes da atividade 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 21 22 23 24 25 26 27 28 29 30 31 32 33 34 35 36

Técnico sofre lesão de dedos Mão do técnico é prensada pela turbina Turbina pesa 60Kg Técnico e auxiliar estão segurando turbina com as duas mãos Técnico puxa turbina em sua direção Pé direito acima da plataforma possui 150cm Abaixo do quadro elétrico há um vazio Há um perfil metálico impedindo o acesso direto da turbina A turbina cai das mãos do auxiliar Auxiliar desequilibra-se pela segunda vez Tarefa de erguer turbina é reiniciada Mesmo sem existirem condições seguras, é dado seguimento à tarefa Auxiliar posiciona-se com pés afastados sobre vão livre É solicitado auxílio a trabalhadores não habilitados Técnico e auxiliar não usam EPI Técnico e auxiliar não foram treinados para realizar a troca Inexistência de dispositivo mecânico para elevação do motor Técnico e auxiliar decidem realizar a troca A troca é planejada superficialmente Técnico e auxiliar não estão exercendo sua função-fim Técnio e auxiliar não solicitam auxilio ao pessoal de apoio Técnico e auxiliar realizam troca de turbina no final do expediente para que não ocorra chamada de emergência durante final de semana A tarefa trocar turbina não é habitual na rotina do setor manutenção O setor não possui pessoal especializado na troca de turbina Não há motor sobressalente para a troca Programação de compra da turbina não foi realizada em tempo hábil Hospital não mantém equipamentos sobressalentes em estoque Turbina apresenta baixo desempenho A substituição da turbina é urgente Técnico apresentava comportamento alterado nas últimas semanas Técnico dormiu pouco na noite anterior Técnico está cansado Turbina está no limite de sua vida útil Projeto de ampliação do hospital não levou em conta necessidades de manutenção Atividades hospitalares dependem do funcionamento do sistema pneumático Manutenção preventiva do sistema pneumático é prejudicada pela pressão dos usuários

Classificação Fator habitual ( ) Fator Latente (L) ou variação ( ) ou Ativo (A) A A A A A L L L A A A A

I4 T16 M5 T15 T14 MT11 MT10 MT9 T13 T12 T11 T10

T9 T8 T7 MT8 M4 T6 T5 MT7 T4 T3

A L A L L A A L L L

T2

L

MT6 M3 T1

L L L

MT5

L

M2 MT4 I3

L L L

I2 I1 M1 MT3

L L L L

MT2

L

MT1

L

A análise seqüencial também mostrou a influência da falta de planejamento da ampliação do complexo hospitalar, o que acarretou na alocação das turbinas em locais que prejudicam a sua manutenção. Para confirmar esta afirmação, o técnico e o seu auxiliar conduziram os pesquisadores a outros locais em que as turbinas também foram instaladas em lugares de difícil acesso. Desta forma, observou-se que, independente dos indivíduos envolvidos no caso, o acidente pode repetir-se, pois as condições do ambiente de trabalho eram inapropriadas. 844

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I Técnico apresentava comportamento alterado nas últimas semanas

Técnico e auxiliar realizam troca de turbina ao final do expediente para que não ocorra chamada de emergência durante final de semana

I

X

T

X

Técnico dormiu pouco na noite anterior

I M T

Técnico está cansado

T

Projeto de ampliação Programação da compra da do hospital não levou turbina não foi em conta realizada em necessidades de tempo hábil manutenção

M Turbina está no limite de vida útil do equipamento

M T Atividades hospitalares dependem do funcionamento do sistema pneumático

M T

X

M T

T

Técnico e auxiliar não solicitam auxílio ao pessoal de apoio

A tarefa trocar turbina não T é habitual na rotina do Técnico e auxiliar setor de manutenção não estão exercendo sua função-fim

T

X

T A troca é planejada superficialmente

M T

X

T

O setor não Hospital não possui pessoal Técnico e auxiliar mantém equipamentos especializado decidem realizar sobressalentes na troca de troca turbina em estoque

M Turbina apresenta baixo desempenho

M T

M Não há motor sobressalente para troca

Inexistência de dispositivo mecânico para elevação do motor

T

Substituição Manutenção da turbina é preventiva do sistema pneumático urgente é prejudicada pela pressão dos usuários

Auxiliar desequilibra-se ao levantar turbina

M T

Técnico e auxiliar não foram treinados para realizar a tarefa

Tarefa erguer turbina é reiniciada

T

T

Auxiliar desequilibra-se pela segunda vez X

X

T

X

É solicitado auxílio a trabalhadores não habilitados

I Técnico e auxiliar não usam EPI

X

Técnico puxa turbina em sua direção

T

X

Turbina cai das mãos do auxiliar

T

Mesmo sem Auxiliar existirem posiciona-se condições com pés afastados sobre seguras, é dado seguimento à o vão livre tarefa

T

T

artigos

Os resultados obtidos pela ferramenta ADC mostram que foram identificados, no total, 36 fatores, dos quais 16 (44,4%) foram caracterizados como do tipo tarefa, 11 (30,65%), do tipo meio de trabalho, cinco (13,9%) do tipo material e quatro (11,1%) do tipo individual. Entre estes fatores, 14 (38,9%) foram considerados fatores habituais e 22 (60,1%) como variações do trabalho. Como todos os fatores da ADC podem ser interpretados como fatores contribuintes ao acidente, percebe-se que, por meio da análise do modelo seqüencial, as causas do acidente parecem estar relacionadas, em sua maior parte, aos fatores da tarefa e aos fatos caracterizados como variações. Por isso, as medidas que poderiam ser utilizadas para prevenir este acidente, de acordo com este modelo de análise, estão diretamente relacionadas ao evento, à eliminação ou neutralização dos fatos caracterizados como variações (Binder, Almeida, Monteau, 1996). Por meio do estudo deste modelo, verificou-se que o uso da ADC requer experiência e substancial dispêndio de tempo, sendo que diversas revisões da árvore foram realizadas até a obtenção daquela apresentada na Figura 5. Tais peculiaridades também foram reconhecidas por Binder, Almeida e Monteau (1996), com base em várias experiências de aplicação da ADC em acidentes no Brasil.

T M T

X

Há um perfil metálico impedindo o acesso direto da turbina

T

Mão do técnico é prensada pela turbina

M T

I16

Técnico sofre lesão de dedos

Abaixo do quadro elétrico há um vazio

M T

X

M

Pé direito acima da plataforma possui 150cm

Turbina pesa 60 kg

T Técnico e auxiliar estão segurando turbina com as duas mãos

Figura 5. Representação gráfica da ADC.

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A análise do acidente sob a ótica do modelo epidemiológico De acordo com a proposta, os fatores envolvidos no acidente foram classificados em falhas latentes e ativas. Com base nos fatores identificados por meio da ADC, foram identificados 13 (36,1%) fatores ativos e 23 (63,9%) fatores latentes. Além disso, observou-se que, enquanto o fator tarefa apresentado pela ferramenta ADC corresponde, em sua maior parte, às falhas ativas, as latentes estão, em geral, associadas aos fatores meio de trabalho, material e indivíduo. Esse resultado é coerente com a proposta de Reason (1997), segundo o qual as atividades e ações exercidas pelos indivíduos estão associadas às falhas ativas no sistema, enquanto as falhas latentes estão geralmente associadas à organização e ao projeto do trabalho. Como mencionado anteriormente, as visitas ao local identificaram falhas no projeto, como, por exemplo, a falta de um espaço adequado para a manutenção, o que resultou em adaptações e improvisações nesta atividade. De acordo com Bea (1998), são freqüentes as situações em que a concepção do projeto não contempla as atividades como realmente são desempenhadas, adotando modelos prescritos acerca de como o trabalho é imaginado pela gerência. No caso da manutenção, o autor cita que este problema é bastante freqüente, caracterizando uma falha latente. O modelo epidemiológico também sugere a análise de acordo com a classificação das barreiras. Para esta análise, os fatores listados na Figura 4 foram analisados de forma a verificar exemplos de barreiras, classificadas de acordo com seu status (transposta ou inexistente) na situação do acidente. As barreiras classificadas (Tabela 3) foram, em algum momento da investigação, mencionadas pelos entrevistados. Embora o método ADC não tenha como objetivo primordial classificar barreiras, as informações geradas pela árvore foram utilizadas como fonte de informações para essa análise, uma vez que a literatura não apresenta métodos especificamente direcionados à análise de barreiras.

Técnico sofre lesão de dedos Mão do técnico é prensada pela turbina Turbina pesa 60Kg Técnico e auxiliar estão segurando turbina com as duas mãos Técnico puxa turbina em sua direção

T T A A

Pé direito acima da plataforma possui 150cm Abaixo do quadro elétrico há um vazio Há um perfil metálico impedindo o acesso direto da turbina A turbina cai das mãos do auxiliar

A A A

imaterial

simbólica

funcional

Componentes da atividade

física

Tabela 3. Classificação em barreiras transpostas (T) e ausentes (A). Identificação das barreiras transpostas

Não foram utilizados EPIs

A A A

A

Tarefa de erguer turbina é reiniciada Mesmo sem existirem condições seguras, é dado seguimento à tarefa Auxiliar posiciona-se com pés afastados sobre A vão livre

A

Dispositivo de elevação e suporte da turbina

Proteção que impeça aproximação da turbina Estrutura substituindo espaço vazio; Alertas para avisar sobre o risco;

A

Auxiliar desequilibra-se pela segunda vez

Identificação das possíveis barreiras ausentes

T

A tarefa foi reiniciada

T T

A cultura organizacional recomenda parar a tarefa em condições inadequadas

A

Dispositivo de elevação e suporte da turbina Cultura de interromper a tarefa ao identificar um risco

Estrutura substituindo espaço vazio; Alertas para avisar sobre o risco; continua

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BALLARDIN, L. et al.

T

É solicitado auxílio a trabalhadores não habilitados Técnico e auxiliar não usam EPI Técnico e auxiliar não foram treinados para realizar a troca Inexistência de dispositivo mecânico para elevação do motor Técnico e auxiliar decidem realizar a troca

T A

T

A cultura organizacional recomenda não solicitar auxílio a trabalhadores não habilitados Não foram utilizados EPIs

T T A

Técnico e auxiliar não estão exercendo sua função-fim Técnico e auxiliar não solicitam auxílio ao pessoal de apoio Técnico e auxiliar realizam troca de turbina no final do expediente para que não ocorra chamada de emergência durante final de semana A tarefa trocar turbina não é habitual na rotina do setor manutenção

T

A A

T

A cultura organizacional recomenda parar a tarefa em condições inadequadas Não houve planejamento completo da tarefa A cultura organizacional recomenda parar a tarefa quando houver condições inadequadas

A A A A T T

Manutenção preventiva adequada

A A A T

Turbina está no limite de sua vida útil T

Identificação das possíveis barreiras ausentes

Treinamento específico para a atividade Dispositivo de elevação e suporte da turbina

Treinamento específico para a atividade Barreira burocrática que impeça a realização de tarefas em condições adversas Orientação para planejamento adequado em tarefas não habituais Possuir solução de contingência para situações imprevistas Adoção de um sistema de compra de equipamentos mais preciso

A

O setor não possui pessoal especializado na troca de turbina Não há motor sobressalente para a troca Programação de compra da turbina não foi realizada em tempo hábil Hospital não mantém equipamentos sobressalentes em estoque Turbina apresenta baixo desempenho A substituição da turbina é urgente Técnico apresentava comportamento alterado nas últimas semanas Técnico dormiu pouco na noite anterior Técnico está cansado

artigos

Identificação das barreiras transpostas

A

A troca é planejada superficialmente

Projeto de ampliação do hospital não levou em conta necessidades de manutenção Atividades hospitalares dependem do funcionamento do sistema pneumático Manutenção preventiva do sistema pneumático é prejudicada pela pressão dos usuários

imaterial

simbólica

funcional

Componentes da atividade

física

Tabela 3. continuação.

Manutenção preventiva adequada Previsão de espaços para manutenção

A A

Não permirtir que atividades fora da rotina sejam realizadas por trabalhadores com comportamento alterado

Manutenção preventiva adequada Conscientização dos usuários sobre manutenção preventiva

(T)=barreira transposta; (A)=barreira ausente

Esta etapa da análise epidemiológica demonstrou que a identificação das barreiras, por vezes, foi difícil, uma vez que os fatores listados na ADC nem sempre deixavam explícita a barreira que foi transposta ou que estava ausente. Um exemplo é o fator “a manutenção preventiva é prejudicada em COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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ANÁLISE DAS INTERFACES ENTRE MODELOS...

Pri dese meiro quil íbrio

razão da pressão dos usuários”. Nesse exemplo, os pesquisadores consideraram que, para resistir à pressão dos usuários, deveria existir uma barreira imaterial, ou seja, regras da organização que explicitassem como lidar com aquelas pressões sem comprometer a segurança. Outra limitação percebida nesta abordagem é a tendência das barreiras em agir sobre as falhas ativas, geralmente relacionadas às ações da tarefa dos indivíduos. A análise das barreiras mostrou que, no momento do acidente, foram transpostas quatro barreiras físicas, três barreiras simbólicas e nove barreiras imateriais. Por sua vez, estavam ausentes dez barreiras físicas, três funcionais, onze simbólicas e três imateriais. Assim, verificou-se que existiam poucas barreiras físicas e nenhuma barreira funcional presente no momento do evento, indicando que havia muita confiança naquelas do tipo imateriais, as quais somente são eficazes em organizações com forte cultura de segurança (Hollnagel, 2004). De acordo com a proposta de Rasmussen (1997), é possível identificar as pressões que levaram à migração de desempenho ao longo das falhas nas diversas barreiras. Neste artigo, as pressões são definidas como perigos de natureza imaterial que empurram os trabalhadores a atuar na zona de perigo. Estão incluídos, nesta definição, todos os fatores organizacionais que fazem com que os perigos físicos aumentem seu grau de risco em relação ao que é intrínseco aos mesmos (Saurin et al., 2008). Nesta análise, observou-se que o acidente foi influenciado por pressões, tais como dos seus usuários e do ambiente externo - neste caso representado pelas famílias dos funcionários (e eles mesmos) que não desejariam que eles retornassem ao trabalho para conserto de falhas no final de semana. Como a tomada de decisão para executar a tarefa foi realizada pelos funcionários, é possível considerar que os parâmetros de segurança podem ter sido desconsiderados em razão de tais pressões. Neste caso, as pressões fizeram com que o técnico e o auxiliar deixassem de executar seu trabalho na zona segura para arriscar-se na zona de perigo (por exemplo, atuando em condições precárias em um local inadequado para a colocação da turbina). A Figura 6 ilustra a representação gráfica deste acidente, de acordo com Rasmussen (1997). É importante salientar que, pela primeira vez neste estudo, é apresentada uma representação não-linear dos eventos. Nesta figura, são ilustradas as pressões que atuaram no cenário do acidente. Embora não ilustrados, neste cenário também estavam presentes contra-gradientes de segurança, tais como a cultura organizacional de segurança da empresa, a qual não foi suficiente para impedir a ruptura da margem do trabalho seguro.

Zona de perda de controle 1) O técnico puxou o motor da turbina para si 2) O técnico quebrou o dedo

Segundo desequilíbrio

Zona de perda de controle

1) Supervisão do motor 2) Posicionamento sobre o vão livre 3) Não há pessoal de sua equipe disponível para ajudar 4) Planejamento superficial 5) Não uso de EPIs Limite de rompimento Decidem continuar a tarefa, mesmo sem condições adequadas

Tomada de decisão

Não havia motor sobressalente

Funcionários decidem intercambiar turbinas

Pressão de tempo 1) Comportamento inalterado 2) Cansaço

Figura 6. Classificação das zonas de trabalho de acordo com a proposta de Rasmussen (1997).

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BALLARDIN, L. et al.

artigos

As medidas sugeridas para prevenir este acidente, de acordo com as premissas apresentadas neste modelo, passam pelo controle dos fatores ativos e latentes do sistema, introdução do maior número possível de barreiras no sistema - preferencialmente do tipo físicas e funcionais - e monitoramento das pressões.

A análise do acidente sob a ótica do modelo sistêmico Sob a ótica do modelo sistêmico, o acidente estudado foi analisado de acordo com os seguintes parâmetros (Hollnagel, 2003): i) Variabilidade do desempenho: não foi prevista a variabilidade do desempenho humano na atividade. De fato, as atividades de troca de turbinas não possuíam planejamento formal (por exemplo, por meio de análises preliminares de perigo) e, por conseqüência, nem mesmo as variações mais previsíveis nessa atividade foram antecipadas. No cenário do acidente, a variabilidade provavelmente foi significativa, uma vez que a equipe nunca havia realizado uma troca em uma dependência com tantas restrições de acesso. Reason e Hobbs (2003) afirmam que a realização de tarefas com que o trabalhador não está familiarizado é um dos mais potentes fatores que culminam em erro nos trabalhos de manutenção. Com base na avaliação por meio da ferramenta ADC, 18 fatores foram caracterizados como variações, sendo 12 destas relacionadas ao desempenho humano. ii) Ausência de visibilidade das barreiras: a decisão de trocar a turbina sem analisar o seu contexto pode ter sido influenciada pela pressão dos usuários e dos próprios funcionários. Tais pressões podem ter levado à negligência dos valores da organização, tal como a priorização da segurança. Esta falta de observância dos valores demonstra que as barreiras imateriais associadas aos mesmos não eram suficientemente fortes e visíveis na organização. Este valor organizacional pareceu claramente incorporado aos discursos da coordenadora, mas provavelmente ainda não esteja disseminado nos funcionários. iii) Condições latentes do sistema: os fatores latentes foram evidenciados no modelo epidemiológico, previamente analisado. Portanto, o modelo sistêmico não apresenta novidades à análise quanto a este aspecto. iv) Falhas tecnológicas: os fatores tecnológicos foram considerados intervenientes no acidente em razão do espaço inadequado disponibilizado para as turbinas no projeto da edificação, bem como da falta de dispositivos mecanizados para levantamento e posicionamento da turbina. Esses problemas revelaram um exemplo de incompatibilidade entre os subsistemas técnico e humano em projetos, corroborando os estudos de Bea (1998). Embora a estrutura desta análise não seja linear, a árvore de causas, apresentada no modelo seqüencial, auxiliou na organização dos dados para a análise sistêmica, assim como já havia sido evidenciado na análise epidemiológica. Portanto, essa análise reforça a complementaridade e inter-relações entre os modelos. Ao contrário dos modelos anteriores, a análise sistêmica não propiciou a representação gráfica do acidente. De forma geral, as principais contribuições da análise sob o ponto de vista do modelo sistêmico se referem à identificação da falta de previsão da variabilidade humana e organizacional no projeto do sistema pneumático, bem como na explicitação das barreiras que não foram suficientemente visíveis. As falhas latentes e tecnológicas já haviam sido explicitadas de modo satisfatório com base na análise pelos modelos seqüencial e epidemiológico. As medidas preventivas decorrentes desta análise têm características mais abrangentes do que as identificadas nas análises orientadas pelos modelos anteriores. Enquanto que no modelo seqüencial a prevenção ocorre pela eliminação das pressões, o modelo sistêmico reconhece que não há como eliminar totalmente as pressões, embora esta fosse uma condição ideal. De acordo com o modelo sistêmico, são enfatizados: o monitoramento das pressões, a antecipação de seus efeitos e a capacidade de adaptação aos mesmos. Especificamente, a análise realizada enfatiza o planejamento, considerando ao menos as variações mais freqüentes, bem como enfatiza a necessidade de fortalecimento da cultura de segurança na organização. Em conformidade com a proposta do modelo sistêmico, tais medidas preventivas tendem a contribuir não apenas para evitar a repetição do mesmo tipo de acidente, mas também para prevenir diversos outros tipos de eventos, em qualquer setor da organização. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Conclusões Este estudo teve como objetivo analisar a complementaridade e as inter-relações entre os modelos causais de acidentes propostos por Hollnagel (2004), com base em um acidente ocorrido em atividades de manutenção de hospital. A análise, sob a perspectiva dos diferentes modelos, indicou fatores causais em comum, notadamente a inadequação do local onde a turbina está instalada. Além disso, outra característica comum aos modelos é o seu foco na busca de causas organizacionais, indo bastante além das causas imediatas do evento. Ao mesmo tempo, observou-se que, apesar do método ADC ser originalmente relacionado ao modelo seqüencial, este se revelou bastante importante como ferramenta de apoio para a análise, pela ótica dos demais modelos, pois conduziu ao levantamento criterioso de informações. Por sua vez, o modelo sistêmico contribui para superar limitações da ferramenta. A principal contribuição do modelo epidemiológico em relação ao seqüencial consistiu na diferenciação entre os fatores ativos e latentes. Isso é importante uma vez que indica quanto os esforços de prevenção devem ser direcionados aos fatores individuais ou ao projeto do trabalho. De outro lado, a análise de barreiras, segundo o ponto de vista do modelo epidemiológico, não trouxe novos fatores causais, mas possibilitou a análise do tipo de barreira e seu status no momento do acidente. Por meio desta análise, foi possível detectar que a empresa utilizava, no caso investigado, muitas barreiras imateriais, as quais são facilmente transpostas. Deste modo, concluiu-se que os modelos analisados são complementares ao invés de excludentes. Verificou-se ainda que os méritos e falhas de cada modelo são tão relacionados aos modelos em si quanto a capacitação e imparcialidade dos investigadores, os quais não devem se ater rigidamente a um modelo específico, mas sim compor suas conclusões com base em uma perspectiva abrangente das contribuições dos diferentes modelos causais. Portanto, independente do modelo causal escolhido, é imprescindível que o pesquisador tenha visão abrangente, imparcial e que contemple as opiniões de todos os envolvidos direta e indiretamente no acidente. Sugere-se ainda que novos estudos busquem aprofundar a análise destes modelos, sobretudo o sistêmico, buscando a identificação de outras interrelações e o desenvolvimento de ferramentas inovadoras de análise e investigação de acidentes, que contemplem simultaneamente as visões dos diferentes modelos causais.

Colaboradores Lucimara Ballardin, Luiz Antonio Franz e Adriana Maschio participaram na pesquisa de campo, levantamento de referencial bibliográfico, redação e discussão. Tarcísio Abreu Saurin colaborou na orientação, redação, discussão e revisão do texto.

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BALLARDIN, L. et al.

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Palabras clave: Occupational health. Análisis de accidentes. Mantenimiento.

Recebido em 05/10/07. Aprovado em 03/08/08.

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artigos

A batuta da morte a orquestrar a vida

Altair Macedo Lahud Loureiro1

LOUREIRO, A.M.L. The baton of death orchestrating life. Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.12, n.27, p.853-62, out./dez. 2008.

With quotations from other scholars of death, I have composed and I present some quick notes on death as the organizer of life. I hold the idea that death is needed for life to have meaning within this human search for completeness. I turn my eye towards a special situation relating to death: the reaction of individuals who witness and feel the death of one of their elders; people within the family or not who had taken on the task of caring for and being with the elderly person at the imminent end, and who humanely but powerlessly witness the time of solitary departure. A solitary death, but solely and particularly of that elderly person who was being cared for and of that person’s natural end, as a human being.

Key words: Death. Life. Caregivers. Elderly person.

Com colocações de outros estudiosos da morte, teço e apresento apontamentos rápidos sobre a morte a organizar a vida. Esposo a idéia da necessidade da morte para que a vida tenha sentido nesta busca humana da completude. Endereço o olhar para uma situação especial de relação com a morte: a reação dos que ficam ao presenciar e sentir a morte de um dos seus idosos; daquele familiar, ou não, que assume o seu cuidado e acompanha o seu fim iminente; que presencia, humanamente impotente, a hora da solitária partida. Solitária morte, pois que exclusiva, própria daquele idoso do qual cuidava, do seu fim natural, por ser humano.

Palavras-chave: Morte. Vida. Cuidadores. Idoso. 1 Licenciada em Pedagogia. Programa de Pós-Graduação stricto sensu em Gerontologia, Universidade Católica de Brasília. SHIN QI 08, conjunto 08, casa 13 Brasília, DF. 71.520-280 altaira@uol.com.br

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A BATUTA DA MORTE A ORQUESTRAR A VIDA

Introdução “Se queres suportar a vida, prepara-te para a morte” Freud “Deves uma morte à natureza” Shakespeare “Enquanto nós estamos, a morte não está; mas quando a morte chega, nós não estamos mais” Epicuro

Nas colocações aqui expostas, pretendo não fazer apologia da morte, ou homenageá-la, e sim exaltar a vida nesta vida sobrada aos muitos que ficam a prantear os que ela já levou consigo. Mas é possível eufemizar o medo, ou lutar contra o medo da morte, pelo menos na medida em que este horror cultural, com relação à morte, nos deixe viver, não à espera dela, mas apesar dela e no convívio com ela, que surge de formas variadas, mas que nunca ou quase nunca é bemvinda. A saudade e as lembranças dos nossos amores que se foram preenchem nossa alma, mais completamente, no dia dos mortos. Considero, portanto, oportuno falar um pouco sobre este fenômeno natural inexorável a todos nós. Falar sobre a morte é o que nos resta, pois impossível descrever, na primeira pessoa, o que seja a morte vivenciada, impossível de ser contada pelo seu ator. A intenção é dividir fragmentos dos achados em meus estudos e pesquisa sobre o tema. Para embasar esta fala, faço minhas as colocações e as posições de outros estudiosos da morte, tecendo com eles a trama destes apontamentos rápidos sobre a morte a organizar a vida. Preocupa-me o idoso ante a morte, não por associar a velhice com a morte, mas por coerência com minhas pesquisas e ações acadêmicas sediadas na Gerontologia - ciência dedicada ao estudo e entendimento do fenômeno da velhice, do processo de envelhecimento e das situações e realidades do ser humano velho no mundo -, quando busco identificar as idéias de vida e da morte no imaginário de idosos, assim como de seus cuidadores. Daí estudar e pesquisar o imaginário de grupos de idosos e daqueles que os cercam; neste momento, daqueles que lhes assistem nos períodos finais da vida, sempre na busca da qualidade de vida positiva na velhice. Dedico-me a pesquisar como as pessoas em volta do idoso e as pessoas com mais idade carregam o mundo; quais as suas visões de mundo ante a idéia da própria morte e a realidade da morte presenciada ou sabida dos outros; como representam em imagens e símbolos este conjunto relacional de imagens emergidas em: seus devaneios, sonhos, postura ante a vida, desabafos, fala, histórias de vida e, mesmo, em desenhos, escritos ou teste2 .

A morte não escolhe idade Todos morreremos, bem o sabemos. Trata-se de uma situação democrática da natureza humana, onde classe social, importância adquirida, beleza e idade não contam. Neste mundo racional, que esmaga as emoções e nega a alteridade, a velhice vem sendo confundida com doença e relacionada com a morte, quando se sabe que a morte não escolhe idade sempre que resolve satisfazer - como metaforicamente colocada - sua gula insaciável com mais uma presa humana. Ela 854

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2 Trata-se do Arquétipo Teste de Nove Elementos - AT-9 -, criado por Yves Durand, apresentado em O velho e o aprendiz (Loureiro, 2004).


LOUREIRO, A.M.L.

artigos

não pára e, com apetite voraz, engole mesmo quem se considerava imortal. Esta é a marca do horror da morte que se imprime no imaginário pela cultura ocidental. Da mesma forma, os males da saúde atingem indiscriminadamente velhos, jovens e crianças. A morte, evento universal para os seres vivos, não se refere apenas aos idosos. Em qualquer idade, ela, a inominável, a famigerada, a horrenda - qualificativa bem ocidental - pode se apresentar sem pedir licença e sem se incomodar com o muito ou pouco tempo vivido por sua vítima. Messy (1993, p.3) conta que, exercendo a psicologia gerontológica, se perguntava: “quanto anos restavam ainda a estes velhos?”, com quem trabalhava. Perguntava-se: “quem seria a próxima vítima? Tamanha é a fragilidade do ser humano que foi a mais jovem [...] quem morreu primeiro, vítima de um acidente estúpido”. O homem sabe-se mortal, mas se considera imortal. Quem morre é outro, não eu! Postura despropositada, pois, nesta era de incertezas profundas, nossa única certeza é a da morte. “A morte é um acontecimento universal por excelência: a única coisa da qual nós estamos verdadeiramente certos, ainda que ignoremos o dia e a hora, o porquê e o como se deve morrer [...]” (Thomas, 1980, p.7). “Sei que vou morrer não sei a hora [...]”, diz a música, mas bendito seja este desconhecimento. Saber-se mortal já traz o homem perturbado, imagina se soubéssemos o dia e a hora da nossa morte? Transcrevendo Freud, Mannoni (1995, p.8) registra que “no inconsciente não há representação da morte, ou seja, [...] lá onde habita o desejo, o sujeito se crê imortal [...] a condição de mortal leva o sujeito a buscar no desejo sua imortalidade”. Portanto, “o homem não acredita na própria morte” (p.7) e teima em entender, acreditar que só os velhos morrem.

O imaginário e os vivos mortais O ser humano teme a sua finitude, a sua morte, e a afasta do campo consciente eufemizando-a na tentativa de postergá-la ou nem pensando nela, mas há os que lutam na ilusão de vencê-la. As reações são variadas ante a morte, dependendo do imaginário de cada um. Estas são atitudes estruturadas de forma diferente, que se representam com imagens diferentes, o que se percebe nos modos de carregar a vida e se posicionar no mundo, na sociedade e diante de si mesmos. Daí a possibilidade de as imagens representacionais da morte se aglutinarem em diferentes durandianos “Regimes - diurno ou noturno” (Durand, 1989, p.44), apresentando-se de forma positiva ou negativa. Idéias de vida ou de morte formam constelações de imagens diferentes que emergem nas representações simbólicas dos cuidadores e dos próprios idosos, deixando ver ou se ler miticamente, identificando a estrutura antropológica do imaginário dos indivíduos e/ou dos grupos. Segundo Durand (1989), o imaginário é a arma concedida ao homem para vencer o medo da morte e o passar do tempo. Este imaginário pode se apresentar, arquetipicamente, de forma heróica - com a presença da luta, tentando vencer o monstro do medo, o perigo; pode emergir de forma mística - eufemizando o perigo, não lutando, desconsiderando o monstro da morte, do perigo; ou deixando-se ver miticamente de forma disseminatória, representado, por vezes, de forma heróica, em outras, de forma mística, simultânea ou diacronicamente; pode ainda vir à luz de maneira “defeituosa”, ao que Yves Durand (1988, p.129) denomina de “universo da não estruturação”. Assim entendendo, procurei saber a que tempo o autor estava se referindo e, após estudos prolongados, e sempre complementados, escrevi “A velhice, o tempo e a morte” (Loureiro, 1998), onde me detenho em compreender o tempo e identificar que Durand se referia ao nosso tempo judaico-cristão. Em pesquisa de campo, levantei, em Brasília, com o Arquétipo Teste de Nove Elementos - o teste AT-9 criado por Yves Durand (1988) - o imaginário, as imagens de vida e de morte, de um grupo de idosos (Lahud, 1993); analisando, miticamente, as imagens emergidas, representadas nos protocolos do teste, busquei entender o fenômeno da morte, a relação dos sujeitos idosos com a morte, para melhor compreender a vida e o ser humano. Considerei a importância de penetrar nesse fenômeno tido como proibido, até por meio do falar. Identifiquei, então, o universo mítico do grupo de professores aposentados, com mais de sessenta anos, vivendo em Brasília. O fenômeno da morte passou a ser objeto dos meus estudos. Procuro adentrar sua natureza, reconhecer suas características e analisar os seus rituais nos tempos e nos espaços, bem como entender COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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A BATUTA DA MORTE A ORQUESTRAR A VIDA

a postura dos tanatocratas, donos da morte nos hospitais, e ampliar e aprofundar a leitura do tema, visitando tanatólogos em seus escritos e resultados de pesquisas. Aos poucos, fui compreendendo que temer o desconhecido faz parte da natureza humana. Entretanto, esconder a cabeça como a avestruz impede a oportunidade de se avançar no conhecimento do fenômeno. São naturais o medo e o malestar que sentimos ao tentarmos tocar os interditos; e a morte continua a ser um interdito, um proibido: “Já não são as crianças que nascem dentro dos repolhos, mas os mortos que desaparecem entre as flores” (Thomas, 1980, p.7).

Múltiplas e diversas dimensões da morte Não é fácil encontrar o passo, o compasso e o ritmo certo para transitar na cadência do indescritível, do que não pode ser narrado pelo protagonista do fato: falar da morte na primeira pessoa. Falar da morte é sempre algo estranho a nós mesmos, porque só a conhecemos nos outros, fora de nós. Para Morin (1970, p.25), “a morte não é uma idéia, mas sim uma ‘imagem’, como diria Bachelard, uma metáfora da vida, um mito, se quisermos”, mas ela está aí, por aí, bem longe ou bem perto de nós. Ela é parte da vida, ela orquestra a nossa existência de forma harmônica ou sem harmonia, colocando-nos no compasso ou descompasso da vida. Considero bonita e interessante a maneira como Paula Carvalho (1999), naturalmente, compara a vida ao sol, a velhice ao crepúsculo, com o anoitecer, com o pôr-do-sol, que, na verdade, imita, ou é imitado, pela vida no seu processo urobórico de, constantemente, nascer, subir, ficar a pino e descender no poente do horizonte visível, indo renascer em outras paragens, com outras cores e calor: “ascensão– declínio–renascimento do outro lado” (Paula Carvalho, 1999, p.38). É o movimento, o inacabamento, a incompletude presente na natureza, entendida também como natureza humana, que se transforma sempre... mas continua. Koury (2001, p.41) cita Fernando Pessoa, que poetisa dizendo que “tudo quanto vive, vive porque muda, muda porque passa, e porque passa... MORRE. O perene é um desejo e a eterna ilusão”. Tratar de entender o fenômeno da morte exige postura multidisciplinar, que, na interdimensionalidade, respeite a sua múltipla e diversa realidade - biopsíquica-antropossocial - sem esquecer a individualidade própria presente em cada caso: o uno no múltiplo, como em todos os casos que envolvem a pessoa humana. A matriz de tempo e espaço é importante na consideração da morte, visto que as atitudes e os rituais diante dela vêm se revezando nos tempos e nas culturas, conforme as interações que os homens mantenham uns com os outros e a relação de pertencimento ou separação com a natureza; seu apego a bens, crenças inquebrantáveis, valores cristalizados, dogmas indiscutíveis e de sua religião. Há os que a vêem tradicionalmente como inimiga; vêem a morte como o castigo, a purgação pelo pecado original. Talvez por entendê-la assim, como uma inimiga, é que o homem ocidental a enfrenta lutando com todas as forças, o que torna, muitas vezes, o que deveria ser um tranqüilo ritual de passagem, em uma batalha santificada. Mas, “o cristão crê na ressurreição da carne, crê na ressurreição do corpo” (Oliveira, 1999, p.50) e vê na eucaristia “[...] prenúncio de um fim, anúncio e proclamação de uma nova plenitude... já acontecendo”. Por outro lado, em alguns países, existe a realidade aceita da eutanásia, quando os médicos chamam para si o direito de abreviar a vida, em nome do não prolongamento do sofrimento, o que é discutível, pois vários são os fatores intervenientes neste processo delicado e complexo. Não só o espaço/cultura altera a idéia de morte, mas o tempo também trabalha a mudança das mentalidades em relação à morte. Antigamente, conforme nos conta Áries (1977), a morte era grande cerimônia, quase pública, presidida pelo morto que estava prevenido, que sabia que sua morte estava próxima; o moribundo presidia e comandava sua morte. Depois, o homem, à beira da morte, é privado de seus direitos, passa a ser tutelado como uma criança, como se já houvesse perdido a razão, a responsabilidade. O comando da morte deixa de ser do moribundo e é assumido pela família; o doente é privado de preparar a sua morte; o que devia ser solene é escamoteado; o doente morre na ignorância e há o não sentir que se está morrendo. Hoje, a morte é uma comédia dramática, onde se representa o papel daquele que não sabe que vai morrer. O humano moribundo, perto da morte ou 856

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LOUREIRO, A.M.L.

artigos

morrendo, é desconsiderado nos seus desejos finais, estigmatizada a sua presença em um bachelardiano “complexo de cultura” (Roy, 1977, p.97) evidente, massacrante. Morre-se às escondidas na clandestinidade. Lembro aqui A morte de Ivan Illitch, célebre romance de Tolstoi (1963). No século passado, os hospitais passam a ter um papel de importância em relação à morte, que deixa de ser um acontecimento natural no cotidiano familiar. A responsabilidade com a morte, que do moribundo passa para a família, é agora entregue ou tomada pelos hospitais. Mas já existem pacientes terminais recebendo, na própria casa, tratamentos paliativos, que tornam a fase final da vida menos traumática do que nas Unidades de Tratamento Intensivo, as UTIs hospitalares. Atualmente, já se encontram profissionais da saúde refletindo e agindo de forma diferente frente ao moribundo. Burlá (2006, p.1079) se refere a novas “formas de morrer” e registra que “o risco de complicações clínicas” em pacientes terminais: [...] e o conseqüente comprometimento da qualidade de vida obrigam os profissionais envolvidos a terem uma atuação mais particularizada e uma postura humanística diante da situação que se apresenta, e apontam para a necessidade de contínuo acompanhamento do paciente.

A autora defende ser necessário “reconhecer que o processo de morrer é tão importante como dar um diagnóstico” Gomes (2004, p.82), referindo-se ao papel do médico diante do paciente em processo terminal de vida, alude ao papel de “dar consolo, mesmo quando a medicina não mais consegue oferecer cura”. Estes assim denominados cuidados paliativos, em franca abertura, são posturas alvissareiras neste mister de acompanhar e dar voz até o fim a quem está prestes a se deparar com a morte. A morte é um fenômeno natural decorrente da natureza biológica do ser humano, mas morrer procede tanto da cultura como da natureza. Para Ziegler (1977, p.130), “a morte é uma mascarada que se aproxima de nós com a máscara construída pela sociedade [...]”, pois: [...] o ser humano, na diversidade cultural dos díspares povos, submerso no seu contexto, impregnado pelo seu entorno característico e cioso de suas matrizes profundas dentro de si mesmo - os arquétipos -, aceita, ou não, os fatos; luta, ou não reage, contra coisas estranhas a si ou aos outros povos. (Loureiro, 1998, p.56)

Jankélévitch (1977) escreve que falar da morte pode ser um problema filosófico, mas lembra que a morte é também um problema biológico “como o nascimento, a puberdade e o envelhecimento”; que “a mortalidade é um fenômeno social na mesma medida que a natalidade, o casamento ou a criminalidade” (p.5-6). Morin (1970, p.10) diz que “[...] a sociedade funciona não apenas apesar da morte e contra a morte [...], mas também que só existe como organização pela morte com a morte e na morte”. Jankelevitch (1977, p.5) continua dizendo que, “para o médico, o fenômeno letal é um fenômeno determinável e previsível [...] em função da duração média de vida e das condições gerais do meio”. Diz ainda o estudioso da morte que, do ponto de vista jurídico-legal, “a morte é um fenômeno simplesmente natural e um fenômeno empírico normal, ao qual a impessoalidade das estatísticas e dos meios envolve todo o caráter de tragédia”. Morin (1970, p.16-7) também anota que “não só a biologia se encarrega da morte, mas a antropologia, em igual medida, chama para si sua análise [...]. A morte é a característica mais humana, mais cultural do anthropos [...]”. Mas cada época apresenta uma postura diante da morte e, em cada lugar, a mentalidade forma-se e se expressa conforme a sociedade e a cultura. De uma aceitação resignada do destino mortal, vai-se ao desespero da finitude, chegando, hoje, no Ocidente, ao quase silêncio: ao proibido. Existe, é claro, uma relação estreita entre a individualidade do homem e o seu horror pela morte, relação também constatada, no espaço, entre o grau de individualidade conseguida pelo homem e o tipo de sociedade em que vive; na matriz de tempo e espaço, história e cultura. “Há uma sociedade que respeita o homem e aceita a morte: a africana; e outra mortífera, tanatocrática, onde a morte atormenta e terrifica: a ocidental” (Thomas, 1980, p.527). O homem, em uma sociedade ocidental, tendo esmagada a sua COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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individualidade, não pode perceber a morte em sua profundidade, sendo conduzido, pelo coletivo, a uma visão conveniente (para a sociedade), que reprime seus sentimentos e que o avilta, o que, segundo Durand (1989, p.29), representa “a pressão do meio cósmico e social”, no “trajeto antropológico”; trajeto antropológico este entendido como o caminho circular simbiótico entre o interior desejante do homem e as pressões externas impostas pelo cosmos e sociedade. O velho asilado, abandonado, como qualquer homem com sua identidade destruída, auto-estima em baixa, pode desejar a própria morte. A sociedade manipula a imagem da morte como quer que esta se apresente, de acordo com a força do cultural, que o homem experimenta, sendo por ela reduzido à sua simples funcionalidade. Hoje, “o homem é incapaz de integrar a sua morte numa globalidade diversa da funcionalidade mercantil” (Ziegler, 1977, p.307).

A morte a orquestrar a vida Da relação do ser humano com a idéia e a realidade inevitável da morte, decorre a sua postura ante a vida. “É nas atitudes e crenças perante a morte que o homem se distingue mais nitidamente dos outros seres vivos, é aí mesmo que ele exprime o que a vida tem de mais fundamental” (Morin, 1970, p.25). Esta é a postura não igual entre os homens - atitudes diferentes entre os povos que expressam as maneiras de pensar culturalmente determinadas de cada povo. Desvendando o seu imaginário, pode-se compreender melhor: suas atitudes, os rituais, e as diferentes posições, a convivência, as fugas, os medos ou a aceitação das situações da vida e da morte. Gomes (2004, p.71-2) afirma que “a morte não é um inimigo a ser vencido, mas parte integrante de nossas vidas que dá significado à existência humana” e lembra que “a morte estabelece um limite em nosso tempo de vida e impele-nos a fazer algo produtivo nesse espaço de tempo, enquanto dispusermos dele [...], mas a nossa sociedade tem medo da morte e luta contra ela o tempo todo”. A autora diz, ainda, que o ser humano nega a morte, mas esta negação “empobrece nossas vidas”. Thomas (1980, p.12-4) anota que “conhecendo melhor a morte, o homem não se orientará mais a dela fugir ou ocultar; ele apreciará, pode ser, melhor a vida, ele a respeitará mais”. Portanto, como, freudianamente, transcreve Mannoni (1995, p.10), “se queres suportar a vida, prepara-te para a morte”. A antropologia do imaginário considera o imaginário como resultante da postura do homem ante a morte, ao medo da morte, e à descoberta do imaginário como a maneira de o sujeito ou os grupos carregarem a vida, o mundo em suas costas, o que, para o autor das estruturas antropológicas do imaginário - Durand -, é mais importante que apenas identificar, nos grupos e indivíduos, a estrutura antropológica do seu imaginário subjacente aos universos míticos encontrados. Estes mitos a comparecer e formar tais universos são os responsáveis pela maneira de ser e estar no mundo de cada um ou de cada grupo. Enquanto alguns indivíduos e grupos se apavoram com a presença da morte, outros tentam desvendá-la ou eufemizá-la para sua superação, e outros, ainda, aceitam-na passivamente. As atitudes variadas - de horror, aceitação ou descaso - em relação à morte decorrem não somente da individualidade de cada homem ou mulher, mas também da consideração que cada sociedade tenha da morte. A mentalidade altera-se ou ajusta-se, dependendo de fatores, a princípio, externos ao homem, mas que, com o tempo, se sedimentam nele pela cultura envolvente: pelas situações ideológicas, filosóficas e econômicas. Segundo Morin (1970, p.16-7): [...] uma dialética biocultural constitui o ser humano e que, no decurso dessa dialética, a energia de características culturais [...] existe a condicionar a compleição biológica do homem [...], e que os princípios antropológicos agem através do espaço e do tempo, e as estruturas arcaicas, os arquétipos permanecem sob as estruturas atuais.

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Os autores estudados endereçaram meu olhar para as diferenças de mentalidades sobre o fenômeno; repito, portanto, que não só a natureza biológica está presente na morte, mas que a cultura a marca e a determina. Com Freud (1984, p.219), se anota expressão de Shakespeare, já registrada em epígrafe neste texto: “Deves uma morte à natureza”.

Os cuidadores de idosos, a afeição e a perda

3 Na Universidade Católica de Brasília orientei a dissertação de mestrado em gerontologia da fisioterapeuta Ana Paula Terra (2007), que tratou de conhecer o imaginário, as idéias de vida e de morte de um grupo de cuidadores de idosos, em Ipatinga - MG.

Os velhos saudáveis e cuidados na família parecem ter uma idéia mais distante de medo da morte, e sim se angustiar com a possibilidade ou iminência de perder este cuidado abnegado dispensado pelos que lhes são caros. “O que torna a velhice sinônimo de sofrimento é mais o abandono que a doença; a solidão que a dependência” (Minayo, 2002, p.14). Nesta sociedade modificada no tempo - em que família não é mais a mesma coisa que em tempos idos, em que os familiares estão ocupados com a sobrevivência e podem estar deixando de, pessoalmente, dispensar o cuidado, a companhia tão prezada pelo parente idoso -, entra o papel do cuidador profissional: pessoa que, não sendo parente, precisa encarnar este papel, somando, aos seus conhecimentos, treinamentos, leituras e muito amor. Ao se fragilizarem com a doença ou a dependência, os velhos precisam, como todos nós em qualquer idade, em idênticas circunstâncias, de cuidados especiais, do convívio dependente com quem os cuide - os cuidadores, que, na velhice, assumem a assistência, como os anjos da guarda, do alívio da dor, da compreensão e carinho, senão da simples presença que livra da solidão, ou interlocutores, profissionais ou não, que sabem ouvir com os ouvidos d’alma. É digno de admiração e respeito quem neste mister se inclui, abnegadamente, com decisão de alma; com vontade, solidariedade, além da sua sobrevivência. Tratase não só de um sacerdócio, mas de atividade profissional que, portanto, merece a justa recompensa na consideração de seus substantivos “cuidados” especializados adquiridos em formação esmerada e desempenhados com dedicação amorosa. A ação de cuidar de idosos - sejam estes doentes terminais ou não - não se pode dar no improviso apenas amoroso, por mais que o carinho, a emoção e a afeição dos que cuidam sejam devotados aos idosos, mas do preparo consciente e consistente nas atitudes, habilidades e destrezas na profissão/trabalho/tarefa escolhida. Mas, convém pensar a respeito dos sentimentos despertados nesse ser humano que, abnegada, profissional e conscientemente, cuida dos seus e de estranhos velhos, que passam a ser também seus, pessoas idosas que são cuidadas cotidianamente por eles, os cuidadores de idosos. Sentimentos contraditórios podem completar o quadro na evidência da perda, da morte dos seus velhos, como: dor, falta, saudades, alívio, culpa, solidão, medo, impotência, conflito, angústia e possíveis outros. Como esses cuidadores reagem interiormente? Como representam, no seu imaginário, o fato do fim desta vida tão próxima a eles? Como reagem diante da morte desses já seus idosos? Esta é uma curiosidade acadêmica que, satisfeita, enriquecerá o conhecimento sobre a situação tanática: conhecer as representações imagéticas e simbólicas perante a finitude do outro; neste caso, descobrir o imaginário do cuidador ante a morte de um de seus “pacientes” idosos.3 A perda é sempre uma morte, um fim; é um sentimento avassalador em todas as circunstâncias; e maior ela fica como sentimento negativo, quando não permite a recuperação, em igual medida, do perdido. Ao se presenciar o sofrimento e a agonia do outro, o medo nos toma conta, pois a morte do outro nos traz presente a nossa condição humana finita. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Mas se nada podemos contra o inexorável, convém que, com conhecimento de causa, lidemos com ele dentro de nós mesmos. É comum e humano que nos preocupemos com a própria morte; temos as nossas concepções individuais, mas contaminadas pela cultura, da nossa morte, da nossa condição finita, limitada, da incompletude; mas do que tratamos aqui é da idéia da perda pela morte de um de nossos velhos, daquele ser idoso do qual cuidamos por muito, ou, mesmo, por pouco tempo. É natural que a afeição ocorra após um tempo de convívio, convivência desigual entre uma pessoa saudável, o cuidador, e o moribundo, ou paciente terminal, que, às vezes, não tem nada de paciente, e sim de impaciente; mas coloquemo-nos no seu lugar, na empatia recomendada e humana da tarefa de cuidar. O outro se trata de um paciente terminal, ou talvez, por isso mesmo, adquirimos o vínculo e, ao perdermos o paciente, esta perda nos afeta. Kübler-Ross (1987) enumera estágios ante a morte, pelos quais o paciente passa, ao saber-se morrendo ou que vai morrer: “a negação, a raiva, a barganha, a depressão e a resignação”; por estes mesmos estágios passam os cuidadores de pessoas em fase terminal. Mesmo sabendo tratar-se de um paciente terminal, a expectativa da chegada deste término, deste fim da vida, mexe com as emoções, e a razão se embota na esperança iludida de que o seu paciente, já amado, que já faz parte do seu cotidiano e das suas afeições, não vai morrer. Insana ilusão, pois tudo quanto nasce, cresce e morre - e o homem, por mais amado que seja, nesta verdade se inclui. Por fim, a resignação ante a natureza que não deixa ninguém para trás. O luto acontece e pode surgir antecipado quando se instala a angustiante espera por algo que se sabe de antemão acontecerá (Py, 1999). A morte está sempre longe de nós nas nossas esperanças; quem morre são os outros, aqueles humanos que não nos pertencem, que não fazem parte de nós, como se isso fosse possível. Nós a empurramos com força - ou com cuidado para não despertá-la - para distante dos nossos olhos e coração. O sofrimento da perda talvez seja maior que o medo da própria morte. É comum se ouvir: não tenho medo de morrer, mas de sofrer ou ficar dependente. E a perda do outro me faz sofrer! Perder a mãe, o pai, o irmão, o filho, o amigo: nem pensar!

Para finalizar É preciso processar bem a idéia da não-culpa, o vazio que fica no rastro da morte de nossos próximos, parentes ou não, e nos socorrermos do equilíbrio sempre propugnado, cuidado, conservado e ampliado durante nossa formação de cuidador e no período da ação, do ato e do processo dinâmico de cuidar. Ter presente a consciência da inevitabilidade daquela morte, como, enfim, da morte de todos nós; adquirir a clarividência que permita auscultar os verdadeiros sofrimentos do nosso “paciente” com atenção aos possíveis disfarces encabulados do sofrimento. Vivemos em uma cultura em que ser forte e perfeito, com muita energia, é o modelo cobrado, e, neste contexto, a pessoa humana sente a fragilidade da sua condição de velho e de velho doente. É preciso saber dar vez à tênue voz do idoso acamado, facilitando, de toda forma, as suas queixas, ouvindo-o como ele merece. As alianças conseguidas com os familiares do doente e demais profissionais vão auxiliar na intervenção delicada, na ação de cuidar do idoso terminal. O tempo de espera dos familiares e dos profissionais precisa ser equacionado sem o desespero, a revolta e tudo o que, de negativo - apesar de natural e humano - possa ocorrer dada à proximidade, sem data, da chegada inexorável da morte. É estranha, complexa e sofrida a espera do inexorável, que queremos que não aconteça. É aquela vontade de encerrar a sete chaves, no nosso coração, a vida eterna daqueles que amamos. Como despertar todo dia com a certeza de que a morte está rondando e que, a qualquer momento, pode tomar conta da situação e levar, entre seus afiados dentes, aquele ser que aprendemos a querer na vida? Naquela vida já tênue e obscurecida pela doença, sofrimento e dor, na fase em que necessitam nosso cuidado, solidariedade, carinho e atenção redobrada. Dinâmica é a tarefa do cuidador, pois que lida com seres humanos, neotênicos, quer dizer, com criaturas que mudam e que, a cada dia, podem se apresentar de forma e humor diferentes. “Os vivos, com efeito, podem assistir aquele que vai morrer, mas é na solidão que este dá o último passo, ‘sutilizado’, com muita freqüência, diante dos que o cercam. É como um ‘ladrão de casaca’ que a morte se conduz nesses casos” (Mannoni, 1995, p.16). Escutá-los é fundamental, em sua fala, por vezes, já 860

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calada em casa ou na rua, ou pela fragilidade da sua potência que não mais tem condição de competir, de ser ouvida em uma sociedade competitiva, com vozes mais fortes, ou com um discurso competente. O importante é deixá-los falar, proferir a última palavra, permitir-lhes vida até o final; nada lhes esconder e ver neles, mesmo ao morrer, a dignidade de ser humano, “isto é, como falantes” (Fuks, 1995, p.10); considerá-los, ainda nessa hora, como cidadãos. O que vamos ouvir pode surgir desencontrado, mas é o último esforço para estar conectado ao mundo, à vida que em nós existe e que para ele está prestes a fugir, se esgotar. Como repetia Octave Mannoni “o diabo não me terá”, enquanto o páraco de aldeia, reportado por Georges Bernanos, lembrado por Oliveira (1999, p.52), dizia: “que importa? Tudo é graça!”. A perda então acontece e, como cuidadores zelosos, que até o fim ali estivemos a aparar o último suspiro, sofremos o desagradável contato com a morte, mas, “passado o primeiro horror de alguma perda grave, na treva da impotência e inconformismo, começam a abrirem-se frestas por onde a antiga claridade se derrama no agora” (Luft, 2004, p.105). E a vida continua até a ‘próxima vítima’ ser escolhida pela ‘gulosa insaciável’”. Como cantava Gonzaguinha e ainda hoje se ouve, “ninguém quer a morte, só saúde e sorte”.

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LOUREIRO, A.M.L. La batuta de la muerte orquestando la vida. Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.12, n.27, p.853-62, out./dez. 2008. Con base en otros estudiosos de la muerte, expongo rápidos apuntamientos sobre la muerte como organizadora de la vida. Adopto la idea de la necesidad de la muerte para que la vida tenga sentido en esta busca humana de la complementariedad. Direcciono el estudio hacia una situación especial de relación con la muerte: la reacción de quienes se quedan al presenciar y sentir la muerte de uno de sus ancianos; la reacción de quien, familiar o no, asume su cuidado y acompaña su fin inminente; que presencia, humanamente impotente, la hora de la solitaria partida. Solitaria muerte, puesto que exclusiva propia de aquel anciano del cual cuidaba, de su fin natural como ser humano.

Palabras clave: Muerte. Vida. Cuidadores. Anciano. Recebido em 21/11/07. Aprovado em 22/04/08.

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Sentidos do diagnóstico por câncer de mama feminino para casais que o vivenciaram* Cintia Bragheto Ferreira1 Ana Maria de Almeida2 Emerson Fernando Rasera3

Introdução O câncer de mama é uma doença que todos os anos acomete inúmeras mulheres. O Instituto Nacional do Câncer (INCA) aponta, para 2008, a ocorrência de 49.400 novos casos (Brasil, 2008), o que constitui um problema de saúde pública. A confirmação do diagnóstico por câncer de mama gera, na mulher doente, a reflexão e o questionamento sobre as relações interpessoais estabelecidas por ela (Vieira, Queiroz, 2006), bem como medo, incerteza, sintomas de ansiedade, depressão (Ryan et al., 2005) e sentimentos de horror, impacto e pânico (Cardozo, 2002). Além disso, a maior preocupação dessas mulheres se fixa em se manterem vivas fisicamente e, ao adquirirem consciência sobre o que têm, se apegam à religiosidade com o intuito de ter forças para realizar o tratamento (Nogueira, 2004). A relação com o mundo divino também foi encontrada num estudo de Teixeira e Lefèvre (2007), ao investigarem a religiosidade no trabalho de enfermeiras da área oncológica, no qual elas percebem a importância dessa crença nos pacientes que cuidam, ao relatarem que: o momento crítico representado pelo câncer aproxima os pacientes de Deus, os ajuda no processo de cura e de aceitação da doença. O anúncio da confirmação do câncer a uma mulher, geralmente, ocorre quando ela está sozinha, visto que, quando acompanhada de seu companheiro, este não é valorizado para entrar com ela na consulta, porque ele pode causar um gasto maior de tempo, ou por suas perguntas ou pela necessidade de ambos serem consolados, em conseqüência do impacto do diagnóstico de câncer. O momento do diagnóstico é relembrado, pelas mulheres acometidas, como uma experiência dramática (Saegrov, Halding, 2004), e considerado o mais estressante de todos (Epping-jordan et al., 1999), estando associado à insegurança e incerteza tanto em relação ao tratamento e sua eficácia quanto à convivência com a falta da mama e suas conseqüências para o relacionamento conjugal (Rossi, Santos, 2003). Os companheiros das mulheres com câncer tendem, muitas vezes, a vivenciar esse momento com surpresa, devido à realização dos exames periódicos delas, o que parece ser uma garantia de prevenção de qualquer doença, inclusive o câncer. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

A pesquisa que resultou neste artigo contou com financiamento CAPES. 1 Psicóloga. Curso de Psicologia do Centro Universitário do Cerrado, Patrocínio. Rua Artur Botelho, s/n. Patrocínio, MG. 38.740-000 cintiabragheto@ hotmail.com 2 Enfermeira. Departamento de Enfermagem MaternoInfantil e Saúde Pública, Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo. 3 Psicólogo. Instituto de Psicologia, Universidade Federal de Uberlândia. *

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Além disso, os mesmos podem sentir desesperança, impotência, intranqüilidade e medo de perderem suas esposas (Gradim, 2005; Picard et al., 2005), mas tendem a pensar positivamente (Cerqueira, 2004). Freqüentemente, percebe-se que a preocupação dos profissionais da área da saúde que lidam com mulheres com câncer de mama direciona-se preferencialmente a elas. Não se atenta, muitas vezes, para as relações dessas mulheres com os outros membros de suas famílias, ao assisti-las a partir do adoecimento por câncer de mama. A compreensão da experiência das mulheres e seus maridos, ao receberem a confirmação da doença, por exemplo, é um tipo de relação para a qual, no Brasil, ainda há poucos estudos capazes de auxiliar nesse entendimento. Estudos como o de Cerqueira (2004) apresentam as reações emocionais de casais, diante do diagnóstico do câncer de mama da parceira, e as formas de enfrentamento da doença, porém não é um estudo que revela os sentidos da doença para os casais entrevistados. O trabalho com a busca de sentidos pode ampliar o universo de entendimento dos fenômenos de pesquisa, na medida em que, além das emoções, a cultura e a história também são relevantes para a compreensão dos objetos de pesquisa. Além disso, o momento do diagnóstico por câncer de mama é estudado apenas com a mulher que o recebe, assim como é demonstrado nos estudos de Vieira e Queiroz, 2006, Ryan et al., 2005, Nogueira, 2004, Saegrov e Halding, 2004, e Epping-jordan et al., 1999. O estudo do casal diante da confirmação do câncer de mama da parceira apresenta-se relevante para se avançar na compreensão dos sentidos que esses casais constroem para lidar com a enfermidade e, assim, construir práticas para assisti-los nos serviços de saúde.

Câncer: sentidos associados O surgimento do cristianismo influenciou, de forma relevante, o significado do câncer, ao moralizálo, associando-o a um doente vitimizado por uma enfermidade que podia ser um castigo até justo e adequado (Sontag, 2007). No século XIX, a idéia da doença como punição foi substituída pela noção de que a enfermidade expressa o caráter do doente. Essa versão coloca o doente não mais na posição de vítima, mas de culpado pela sua doença. O doente passa a ser visto como um indivíduo que não conseguiu dar vazão às suas emoções, isto é, uma pessoa que fracassou em sua expressividade (Sontag, 2007). Dando continuidade à noção de que o doente é culpado pela sua enfermidade, há ainda a crença de que o câncer seria uma doença adquirida por meio da sujeira, assim como a sífilis, uma “sujeira” não só do corpo, mas da alma também. Dessa forma, o doente teria de suportar seu sofrimento de forma isolada até a morte, por sofrer de uma enfermidade inglória (Sant’anna, 1997). Em nossa sociedade, é muito freqüente, também, a associação do câncer a experiências muito desagradáveis como, por exemplo, a violência e a corrupção, que são acontecimentos que perturbam a ordem social e, por isso, recebem a denominação de câncer (Gomes, Skaba, Vieira, 2002) - e parecem, assim como a doença, não serem investidos de expectativas positivas de resolução. Apesar dos avanços para a detecção precoce e tratamento do câncer, persiste ainda o simbolismo de uma doença invasora, misteriosa e geradora de sofrimento e perdas (Aquino, Zago, 2007; Sontag, 2007). Concordando, assim, com os resultados de uma recente pesquisa realizada, que, ao investigar a concepção dos brasileiros sobre o câncer, mostra que, em termos emocionais, a doença é predominantemente associada à morte, à tristeza, à dor, ao medo e a uma maldição. Além disso, a maioria da população brasileira não considera que a falta de atividade física, a não-utilização de preservativos nas relações sexuais e a alimentação inadequada possam causar a doença (Brasil, 2007). Os dados encontrados nessa pesquisa são relevantes para a reflexão sobre quanto o câncer ainda é uma enfermidade cujas metáforas são dependentes da história da própria doença ao longo dos tempos, independentemente dos avanços da medicina, os quais parecem não ser capazes de possibilitar aos indivíduos a construção de sentidos positivos associados a essa enfermidade, e nem de conceberem que a adoção de hábitos saudáveis de vida pode ser um fator de prevenção da doença. Sendo assim, será que a negatividade que permeia o câncer também participou das construções discursivas dos casais entrevistados para o câncer de mama da parceira e os influenciou, ao se relacionarem com a doença? 864

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FERREIRA, C.B.; ALMEIDA, A.M.; RASERA, E.F.

espaço aberto

Objetivos Descrever e analisar os sentidos que casais constroem sobre o câncer de mama da parceira e sobre as formas de se relacionar com o adoecimento por essa patologia.

Referencial teórico e metodológico A busca pela compreensão dos sentidos construídos por casais para o câncer de mama da parceira se aproxima da investigação qualitativa, em virtude de sua função estar na descrição de um processo, e não de um produto que, de acordo com Mayan (2001), explora as experiências das pessoas em sua vida cotidiana, tal como esta se apresenta, sem sofrer interrupções. O referencial teórico do construcionismo social permeou esta investigação. Gergen (1997) apresenta que o construcionismo social possui, como foco de compreensão, as relações sociais, as quais são dependentes da história e do contexto de vida das pessoas (Rey, 2002), e não o psíquico desses indivíduos, assim, o essencial é o resultado das trocas sociais desses últimos. Outros autores, como Spink e Medrado (2000), ainda afirmam que o construcionismo social é um referencial que se interessa pela identificação dos processos por meio dos quais as pessoas “descrevem, explicam e/ou compreendem o mundo em que vivem, incluindo elas próprias”. Especificamente neste estudo, a compreensão dos sentidos construídos por casais para o câncer de mama da parceira pautou-se nas proposições do construcionismo social na perspectiva de que vivemos: num mundo social que tem uma história. Os repertórios interpretativos que nos servem de referência foram histórica e culturalmente constituídos. Trabalhar no nível da produção de sentidos implica retomar também a linha da história, de modo a entender a construção social dos conceitos que utilizamos no métier cotidiano de dar sentido ao mundo. (Spink, Medrado, 2000, p.49)

Dessa maneira, o construcionismo social é um referencial teórico que se articula com a abordagem qualitativa de pesquisa, ao utilizar conceitos como a história, o contexto e o processo no entendimento da constituição dos fenômenos, os quais, no nosso estudo, são os sentidos que casais constroem para o câncer de mama da parceira e como eles se relacionam com esse adoecimento. Nesta investigação, foram entrevistados sete casais, número definido pelo critério de saturação dos dados, o qual define que as entrevistas devem ser realizadas até que as falas dos participantes comecem a se repetir (Ferreira, 2003). As mulheres participantes freqüentam um serviço especializado para reabilitação de mastectomizadas, localizado num município do interior paulista. Os casais foram convidados, inicialmente, por meio das esposas que freqüentavam o referido serviço, durante a realização da dinâmica de grupo, que é uma das atividades assistenciais oferecidas. As mulheres que aceitaram participar foram solicitadas a estender o convite a seus parceiros para, então, ambos participarem do estudo. Aos casais que aceitaram participar, foi informado que seriam realizadas entrevistas agendadas, previamente, de acordo com a disponibilidade deles, em local adequado, e que essas entrevistas teriam duração média de 60 minutos, seriam gravadas em um microgravador e transcritas posteriormente. Registra-se que este estudo foi submetido a um Comitê de Ética em Pesquisa ao qual pertence o referido serviço e, ainda, que foi assinado, por cada entrevistado, o termo de consentimento pós-informado. Participaram mulheres que haviam finalizado o tratamento proposto para o câncer de mama, há pelo menos um ano do período em que foram convidadas para a pesquisa, e estivessem sem a manifestação de nenhuma metástase na época do convite; e participaram também os maridos dessas mesmas mulheres. Além disso, considerou-se casal quando os participantes assim se intitulavam sem, portanto, a necessidade do registro do casamento em cartório. As entrevistas realizadas com esses casais foram do tipo semi-estruturada e, para ambos, foram feitas as mesmas perguntas, as quais se referiram ao câncer e às formas de lidar com o diagnóstico da doença. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Ao término das entrevistas, iniciou-se a análise dos dados, a qual está inserida na proposta de prática de pesquisa proposta por Spink (2000), que utiliza a definição de sentido como uma construção dialógica, situada cultural e historicamente. Contudo, não foi utilizada a técnica que a mesma autora propõe para a análise de dados, como os mapas de associação de idéias e gráficos, em virtude de a preocupação dos pesquisadores estar centrada muito mais no aprofundamento de compreensão dos dados coletados do que em sua apresentação repetitiva. Todas as entrevistas foram transcritas (quando cada integrante da díade recebeu nomes fictícios), com base na adaptação do modelo proposto por Schiffrin (1994), e lidas de forma flutuante, para que os principais temas das entrevistas pudessem emergir (Spink, Lima, 2000). Essas leituras ocorreram de forma exaustiva, o que proporcionou que os sentidos do diagnóstico por câncer de mama feminino para os casais aflorassem e, assim, pudessem ser compreendidos.

Resultados e discussão No período de realização das entrevistas, os participantes deste estudo contavam com uma média de tempo de união de 34 anos. A maioria dos entrevistados, tanto homens (seis) quanto mulheres (seis), possuía até oito anos de estudo. Grande parte se intitulou como católica (seis mulheres e cinco homens) e uma minoria como espírita (uma mulher e dois homens). Juntos tiveram, em média, dois filhos. A média de idade dos casais, quando da realização das entrevistas, era de 62 anos, e a média de tempo de cirurgia das mulheres, no momento de realização das entrevistas, era de cinco anos (Quadro 1). Serão apresentadas as falas dos entrevistados relacionadas ao momento de confirmação do câncer, o qual afetou maridos e esposas que associaram o diagnóstico da doença aos sentidos de provação e de morte. Esses sentidos despertaram, nos participantes, sentimentos, como a revolta e a ansiedade, que puderam ser amenizados na relação dos casais com o mundo divino. A partir das questões norteadoras: O que você fez e/ou pensou para ultrapassar o momento de confirmação da doença? Como você lidou com esses momentos?

Quadro 1. Caracterização dos casais estudados. Variáveis

Casais entrevistados Casal 2

Casal 3

Casal 4

Casal 5

Casal 6

Casal 7

Joana e Raimundo

Lúcia e Paulo

Lourdes e Mauro

Nilde e Roberto

Marta e Valmir

Rute e Júlio

Guiomar e Pedro

16

38

43

37

37

27

43

ensino fund. incompleto ensino fund. incompleto

ensino fund. incompleto ensino fund. incompleto

superior completo superior completo

superior completo superior completo

católica espírita

católica católica

espírita espírita

católica católica

Casal 1 Identificação dos casais (nomes fictícios) Tempo união (anos) Escolaridade Mulher Homem Religião Mulher Homem

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ensino fund. ensino médio ensino fund. completo completo incompleto ensino fund. ensino médio ensino fund. completo completo incompleto católica católica

católica católica

católica católica

Número de filhos

0

4

2

3

3

3

2

Média idade casal (anos)

61

64

68

62

63

50

68

Tempo de cirurgia (anos)

3

4

11

9

3

3

4

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FERREIRA, C.B.; ALMEIDA, A.M.; RASERA, E.F.

espaço aberto

Percebe-se, nas falas de Guiomar (casal 7) e Roberto (casal 4), apresentadas a seguir, os sentidos do câncer como uma provação que os levou ao diálogo com Deus: Olha, no início foi barra pesada [...] porque eu achava até que era um castigo [...] depois que eu fui vê não Deus é, num castiga ninguém não, cada qual tem que passá por alguma coisa que, então, num fui tanto que, no início eu nem falava no assunto com as pessoas, agora não, agora eu converso, falo pra qualqué pessoa. (Guiomar, casal 7)

Visualiza-se que Guiomar (casal 7) só conseguiu falar sobre seu câncer ao ressignificar o sentido de provação emprestado a ele como um castigo, assim como apresenta Sontag (2007) para algo que pode ser comparado a qualquer outro problema, e, dessa forma, ela rompeu o silêncio e o isolamento como lugares historicamente reservados às pessoas com câncer (Sant’anna, 1997): “Eu falava pra ela que esse problema de doença isso aí qualqué um de nós tamo sujeito e que devíamos aceitá se era um desígnio de Deus! Nós tínhamos que passá por essa provação” (Roberto, casal 4). A confirmação do câncer de mama esteve associada ainda à possibilidade da morte, provocando, nos entrevistados, uma paralisia para a esperança de um resultado positivo, ou seja, de que poderia existir vida a partir do diagnóstico da doença. No caso de Nilde (casal 4), houve uma preparação concreta para esperar a chegada da morte, como se acompanha nos recortes a seguir: “Eu vô morrê!... Dexei tudo a casa em ordem, roupa, porque o dr. disse que eu ia entrá em cirurgia com dez por cento de sobrevida, eu pensei assim, eu morro, vão tê que fazê velório pra mim, essa casa toda bagunçada...” (Nilde, casal 4); “A gente acha que é um troço incurável, que a pessoa num vai resisti por muito tempo, num vai sobrevive.” (Roberto, casal 4); “Notícia do câncer é um ponto de morte.” (Marta, casal 5); “Eu vô morre, a sensação era essa.” (Rute, casal 6); “Eu sentia meio abatido também porque eu tinha muito medo de perdê ela.” (Pedro, casal 7). A presença do câncer de mama provocou um grande susto nos casais entrevistados, em função deles não esperarem sua chegada, gerando sentimentos de revolta e ansiedade: “Olha eu, como fui eu que achei, eu já queria resolvê logo mais como eu fui pelo hospital x, a gente sabe que lá tem muita gente, então eu fiquei assim ansiosa, e com pressa, preocupada!” (Lúcia, casal 2); “Foi um choque pra mim, fiquei totalmente revoltado.” (Mauro, casal 3); “A gente ficô meio apavorado.” (Lourdes, casal 3); “Levei um grande susto porque você imagina, aposentei-me [...] e mais me assustô porque eu não tive tempo entre a descoberta e a cirurgia.” (Nilde, casal 4); “Foi um golpe muito assim, a hora que o médico falô tal o tamanho da complicação que era né? Esse câncer.” (Júlio, casal 6). Os sentimentos expressados pelos participantes apresentados anteriormente condizem com os sentimentos de medo, incerteza, sintomas de ansiedade, depressão (Ryan et al., 2005), e sentimentos de horror, impacto e pânico (Cardozo, 2002) descritos na literatura, relacionados ao momento de diagnóstico por câncer. Esses sentimentos atualizam, mais uma vez, a associação do câncer a uma doença carregada de negatividade que, momentaneamente, parece afastar qualquer sentimento de esperança para a continuidade da vida. Parece haver uma ligação muito estreita entre câncer, sofrimento e morte neste estudo, assim como nos apontam Gomes, Skaba, Vieira (2002), ao afirmarem que a cura do câncer ainda não foi incorporada ao repertório cultural dos indivíduos. Além disso, os maridos podem sentir desesperança, impotência, intranqüilidade e medo de perderem suas esposas (Gradim, 2005; Picard et al., 2005; Cerqueira, 2004). Ao se retomar a fala de Mauro (casal 3), percebe-se sua revolta em relação ao câncer, que pode ser compreendida a partir da concepção de que ela é uma doença reservada às pessoas más, que não condiz com a forma como ele define sua esposa: “Ela nunca negô ajuda a quem necessitasse [...] eu nunca vi ela fazê uma maldade se quer, ela sempre procurô ajudá, procurô o bem, aconselhá pro bem do próximo [...] então eu me revoltava nesse sentido.” (Mauro, casal 3); “Fiquei uns seis meses revoltado, xingando todo mundo, xingando inclusive Deus.” (Mauro, casal 3). A associação entre câncer e maldade pode ser compreendida pela história do câncer. Inicialmente, acreditava-se ser uma doença adquirida por pessoas sujas física e moralmente (Sant’anna, 1997), ou seja, pessoas pecadoras estavam condenadas à doença. Sendo assim, seguindo a lógica da história, pessoas bondosas não podem desenvolver câncer. A partir disso, compreende-se o sofrimento de COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Mauro (casal 3), que, mais tarde, conformou-se com a doença da esposa e pediu a Deus que o perdoasse por ter se revoltado, o que aliviou sua culpa e possibilitou que Mauro (casal 3) ajudasse a esposa: “Aí foi passando, fui me conformando fui vendo a melhora, a situação não se agravô, ao contrário, vinha melhorando dia a dia, aí fui me conformando, depois pedi perdão a Deus, procurei me dedicá mais a ela.” (Mauro, casal 3). A associação entre câncer e maldade também parece ter deixado Valmir (casal 5) sem compreensão sobre a doença da esposa Marta (casal 5), sendo ela uma pessoa tão religiosa: É, foi muito dolorido, né? Ele ficô muito chateado, eu também e, eu sempre fui assim de... mais religiosa da família, eu que vô mais à missa, falo, leio né, gosto de falá e, então, ele chegô pra mim, aí, cê reza tanto aí, o que foi te acontecê isso daí, me dexô meia chocada, mais eu falei, eu vô dá a volta [...] e graças a Deus tô dano. (Marta, casal 5)

A relação entre a confirmação da doença e a morte, para os casais entrevistados, atualiza, mais uma vez, a própria história do câncer. Receber esse diagnóstico era como ser reconhecido publicamente e socialmente como alguém impuro. O percurso percorrido pelos casais entrevistados mostrou que o câncer de mama ainda é uma doença associada, sobretudo, ao sacrifício, experimentado por meio da provação, que é um significado historicamente utilizado desde o início da descoberta da doença (Sant’anna, 1997) até os dias atuais (Aquino, Zago, 2007). Deus foi citado como o responsável pelo envio da enfermidade e da sua cura, ocorrendo, inclusive, como no caso de Mauro (casal 3), uma barganha com o divino. A despeito de Aquino, Zago (2007) afirmarem que a busca religiosa em pacientes com câncer não deva ser entendida como uma forma de fuga da realidade, mas como uma possibilidade de vislumbrar um futuro apesar do sofrimento causado pela doença, ou ainda uma ajuda no processo de cura e de aceitação da doença (Teixeira, Lefèvre, 2007), entende-se que, junto da religião, a disponibilidade de outras formas de construção de sentidos para a doença possibilita ao doente, e até a seus familiares, um maior empoderamento para vivenciarem essa experiência. Os sentidos de provação e morte relatados em relação ao câncer apontam para a necessidade da assistência interdisciplinar aos casais cuja parceira recebeu esse diagnóstico. Uma assistência com o intuito de dispor a eles outras possibilidades de construção de sentidos para a enfermidade, capazes de ajudá-los a se perceberem, também, como participantes do processo de superação da doença, assim como nos aponta Cerqueira (2004). Além disso, a desconstrução da associação da imagem do câncer à dor e ao sofrimento pode proporcionar o aumento da busca das mulheres pelos serviços de saúde para a detecção precoce da doença e, conseqüentemente, seu melhor prognóstico (Gomes, Skaba, Vieira, 2002).

Considerações finais A aproximação aos sentidos construídos por casais para o câncer de mama da parceira mostra que eles se aproximam muito dos conceitos que a história do câncer apresenta para a doença, cujos significados mobilizam, nos indivíduos, surpresa e dor psíquica, em virtude de esperarem um desfecho de morte. Isso aponta para a necessidade de uma assistência interdisciplinar a esses casais que objetive construir, com eles, outros sentidos para o câncer e, até mesmo, possibilidades para que eles se sintam participantes do processo de superação da doença. Todos esses significados parecem ter colocado os participantes numa posição de fragilidade, o que os fez buscar em Deus, ou no mundo divino, as forças para enfrentarem esse momento. O discurso religioso percebido nos participantes deste estudo possibilita a reflexão sobre essa realidade no cotidiano dos profissionais de saúde que assistem essa população. A relação com o mundo divino, ao se apresentar como uma possibilidade de ajuda para os doentes e seus acompanhantes, apresenta-se, assim, como uma ferramenta de diálogo entre cuidadores e cuidados, não enquanto um discurso moralizador, mas como mais uma possibilidade de auxílio na aceitação e superação da doença. 868

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FERREIRA, C.B.; ALMEIDA, A.M.; RASERA, E.F.

espaço aberto

O estudo apresentado, ao buscar a compreensão dos sentidos que casais constroem para o câncer de mama da parceira e sobre as formas de se relacionarem com o adoecimento por essa enfermidade, amplia as possibilidades de construção de práticas assistenciais para acolher esses casais, já que os estudos realizados até então privilegiavam apenas as mulheres acometidas pelo câncer de mama.

Colaboradores Os autores Cintia Bragheto Ferreira, Ana Maria de Almeida e Emerson Fernando Rasera participaram, igualmente, de todas as etapas de elaboração do artigo.

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SENTIDOS DO DIAGNÓSTICO POR CÂNCER DE MAMA...

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espaço aberto

FERREIRA, C.B.; ALMEIDA, A.M.; RASERA, E.F.

A lacuna de compreensão dos sentidos construídos por casais que vivenciaram o câncer de mama da parceira motivou a realização deste estudo, que objetivou descrever e analisar os sentidos que casais constroem sobre o câncer de mama da parceira e sobre as formas de se relacionar com esse adoecimento. Sete casais foram entrevistados e os dados coletados foram analisados à luz do referencial teórico do construcionismo social. Os resultados mostraram que os sentidos de provação e morte construídos para o câncer da parceira, despertaram nos participantes sentimentos de revolta e ansiedade e a relação com Deus. A partir disso, propõe-se a relevância da assistência interdisciplinar para esses casais, bem como a integração do discurso religioso como ferramenta do cuidado assistencial a essa população.

Palavras-chave: Neoplasias da mama. Significados. Diagnóstico. Meanings of the diagnosis of female breast cancer for couples who have experienced it The comprehension gap regarding the meanings constructed by couples who have experienced breast cancer in the female partner motivated this study. Its aim was to describe and analyze the meanings that couples construct about the female partner’s breast cancer and the ways in which they relate to this illness. Seven couples were interviewed and the data gathered was analyzed in the light of the theoretical reference of social constructionism. The results showed that the meanings of probation and death constructed for the partner’s cancer aroused feelings of revolt and anxiety and a relationship with God among the participants. From this, it is proposed that interdisciplinary care is important for these couples, and that religious discourse should be integrated as a tool for caring for this population.

Key words: Breast neoplasm. Meanings. Diagnosis. Sentidos del diagnóstico por cáncer de mama femenino para parejas que lo vivieron El vacío de comprensión de los sentidos construidos por parejas que vivieron el cancer de mama motivó la realización de este estudio que describe y analiza tales sentidos así como las formas de relacionamiento ante esta situación. Se han entrevistado siete parejas y se han analizado los datos obtenidos a la luz del referencial teórico del construccionismo social. Los resultados muestran que los sentidos de provación y muerte construidos para el cáncer de la mujer despertaron sentimientos de revuelta en los participantes así como la relación con Dios. A partir de ello se propone la relevancia de la asistencia interdisciplinaria par estas parejas y también la integración del discurso religioso como recurso del cuidado asistencial a esta población.

Palabras clave: Neoplasia mamaria. Significados. Diagnóstico.

Recebido em 16/08/07. Aprovado em 27/05/08.

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A sociopoética como dispositivo para produção de conhecimento Lia Carneiro Silveira1 Arisa Nara Saldanha de Almeida2 Simara Moreira de Macedo3 Monyk Neves de Alencar4 Michell Ângelo Marques Araújo5

Introdução As práticas de saúde desenvolvidas na sociedade ocidental contemporânea tomam, como ponto de partida, o sujeito como entidade fixa, definido, sobretudo, nos moldes do pensamento racionalista do séc. XVII. Ao instaurar o cogito “penso, logo existo”, Descartes inaugura o sujeito do conhecimento e, com ele, a certeza de que a razão humana seria capaz de conhecer completamente as paixões e as emoções, governando-as e dominando-as (Chauí, 2000). Segundo Guattari e Rolnik (1999), o que Descartes efetua é uma colagem da idéia de subjetividade consciente à idéia de indivíduo, idéia esta que vem nos contaminando ao longo de toda a história da filosofia moderna. Entendemos que esta perspectiva perpassa a produção científica hegemônica na saúde por meio de uma visão naturalizada de que todo sofrimento humano pode (e deve) ser convertido em objeto de intervenção da ciência médica. Capturar o “indivíduo” como objeto da ciência é o que permite à Medicina constituir-se enquanto saber científico e delimitar seu espaço: a coincidência exata do corpo da doença com o corpo do homem (Foucault, 1994). Esta apreensão se dá às expensas da expulsão de tudo que faz parte da dimensão subjetiva do paciente: a doença é, então, identificada com um processo real de alteração dos tecidos, que o método anatomoclínico trata de desvendar com seu olhar. A fala do paciente, queixa subjetiva e desencaminhadora, é preterida em benefício do silêncio do cadáver (Simanke, 2002). Essa forma de apreensão do humano pelo saber científico se inscreve dentro da proposta da ciência moderna que, segundo Santos (2003), constituiu-se a partir da revolução científica do século XVI. Esse modelo, apesar de admitir uma variedade interna, apresenta alguns princípios que permitem o seu reconhecimento. Em primeiro lugar, conhecer significa quantificar. É preciso separar, cortar e contar para, depois, perceber as relações. Em segundo lugar, “o conhecimento causal aspira à formulação de leis, à luz de regularidades observadas com vistas a prever o comportamento posterior dos fenômenos” (Santos, 2003, p.29). Parte-se da concepção de um mundo organizado e previsível que pode ser observado em suas regularidades. Tudo que escapar a este domínio passa a ser causa de desconfiança.

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1 Enfermeira, Curso de Enfermagem e Mestrado Acadêmico em Cuidados Clínicos de Saúde, Universidade Estadual do Ceará (UECE). Av. Barão de Studart, 1891, apto. 304A. Aldeota, Fortaleza, CE 60.120-001 liasilveira@uece.br 2 Enfermeira. Mestranda, Mestrado Acadêmico em Cuidados Clínicos em Saúde,UECE, bolsista FUNCAP. 3-4 Enfermeiras. Departamento de Enfermagem, UECE. 5 Enfermeiro. Faculdade Católica Rainha do Sertão.

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A SOCIOPOÉTICA COMO DISPOSITIVO...

Não podemos, certamente, negar os inúmeros avanços alcançados por meio da ciência moderna, os quais podem ser percebidos em vários âmbitos de nossa vida. Entretanto, ao fixar regras e observar repetições, o método indutivo limita a realidade, exclui as contradições, homogeneíza as diferenças e reduz a complexidade da vida. Guattari (2001), em um texto intitulado “As Três Ecologias”, situa essa problemática num campo mais amplo. Afirma que as questões relacionadas à produção da existência humana em nosso contexto histórico estão, na verdade, articuladas a uma crise envolvendo os registros do meio ambiente, das relações sociais e da subjetividade humana. O autor denuncia o paradoxo por trás desta crise: por um lado, o crescente desenvolvimento de novos meios técnico-científicos, supostamente capazes de dar conta das grandes questões atuais, como a fome, a doença e a violência. Por outro, a incapacidade das formações subjetivas constituídas de se apropriarem desses meios para torná-los operativos. Concordamos com o autor quando ele afirma que a saída (ou as saídas) possível para este paradoxo não passa pela formulação de uma nova ideologia ou modelo unívoco; trata-se, antes, de montar algumas linhas capazes de reinventar os modos de ser: “o que quer que seja, parece-me urgente desfazer-se de todas as referências e metáforas cientistas para forjar novos paradigmas que serão, de preferência, de inspiração ético-estéticas” (Guattari, 2001, p.18). A mudança paradigmática aqui proposta anuncia sua dimensão estética ao afirmar que a maneira de operar nesse processo de re-singularização se aproxima mais do artista que do cientista, uma vez que se propõe a uma experimentação enquanto criação na diferença. Trata-se da reinvenção dos sentidos, “da relação do sujeito com seu corpo, com o fantasma, com o tempo que passa, com os ‘mistérios’ da vida e da morte” (Guattari, 2001, p.16). Entretanto, enquanto o artista lida com tintas, argila, palavras ou qualquer outra matéria plástica, estamos nos referindo a uma reinvenção cuja matéria é a própria subjetividade. Sendo assim, ela implica, necessariamente, a consideração de uma dimensão ética, pois tem, como preocupação central, a defesa da produção de vida. Finalmente, essa proposta envolve também uma dimensão política, pois considera que a constituição das relações sociais, dos modos de produção, está diretamente relacionada aos modos de produção de subjetividade. Encontramos, na sociopoética, uma abordagem que se propõe a considerar estas dimensões no âmbito da produção do conhecimento. É um método de pesquisa que tem, como pressuposto básico, a valorização de saberes diversos (científico, filosófico, artístico, intuitivo, entre outros), respeitando as suas diferenças. Além disso, como toda construção humana, toma a produção de conhecimento como interessada e politicamente objetivada. Nessa perspectiva, o objetivo do pesquisador não é resolver uma questão empírica, mas, sim, examinar as “verdades” normativas que permeiam o contexto histórico, desempenhando um papel de desconstrução do que está posto e a abertura para novas produções a partir da consciência crítica, tanto por parte dos/as participantes, como do/a pesquisador/a (Silva, Ramos, 2001). Outra singularidade do método da sociopoética é que ela compreende a produção de conhecimento como um ato coletivo. Considera que os sujeitos da pesquisa são co-pesquisadores, pois participam com seus saberes da produção acerca de um tema (escolhido pelo próprio grupo). Sendo assim, buscase o envolvimento dos sujeitos no processo de pesquisa, desde a negociação do tema da pesquisa até a interpretação/teorização dos dados. Percebemos que a sociopoética se apresenta como uma caixa de ferramentas que nos permite desenvolver a produção do conhecimento considerando os processos subjetivos e comprometendo-se com uma maior autonomia dos envolvidos. Sendo assim, este texto é uma reflexão teórica que tem como objetivo descrever o método da sociopoética delineando suas bases epistemológicas e seus princípios teóricos.

A pesquisa sociopoética e seus princípios O método sociopoético foi criado pelo filósofo e pedagogo Jacques Gauthier a partir de suas vivências compartilhadas no movimento de luta dos Kanak, povo indígena da Nova Caledônia, por sua independência contra o colonialismo francês (Petit et al., 2005).

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SILVEIRA, L.C. et al.

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Do ponto de vista epistemológico, a sociopoética foi gerada por meio de uma combinação de conhecimentos trazidos da pedagogia do oprimido, da análise institucional e da esquizoanálise. De Paulo Freire e da pedagogia do oprimido, foi herdado o método do grupo-pesquisador, o qual acredita que os grupos, objetos da pesquisa, podem e devem se tornar autores da pesquisa e da sua aprendizagem, participando também do processo de criação de conhecimento, tornando-se “co-pesquisadores”. Tratase de uma postura de respeito mútuo e de troca entre saberes intelectuais e populares (Petit et al., 2005). Da análise institucional - teorizada, entre outros, por René Lourau e George Lapassade -, a sociopoética toma a idéia de dispositivo, entendido como qualquer estrutura que permita tornar visível o que era escondido na vida ordinária, idéia que está no centro da própria possibilidade de analisar, criticar e autocriticar (Petit et al., 2005). Finalmente, podemos afirmar que outro referencial importante da sociopoética são as idéias de Gilles Deleuze e Felix Guattari voltadas para a proposta que ficou conhecida como “Esquizoanálise”, e que parte do princípio de que o processo de constituição de subjetividades envolve as relações entre desejo e produção. O desejo é conceituado com base no conceito freudiano de processo primário, onde não existem a negação nem a falta. O conceito de produção é retomado com base na proposta marxista que envolve a forma como se organiza a produção de bens, valores e serviços. Segundo estes autores, não existe um mundo social, externo, baseado na produção, e outro interno, individual, perpassado pelo desejo. Produção e desejo passam a formar uma máquina que vai gerar formas de existir no mundo (produção de subjetividades) (Deleuze, Guattari, 1968). Com relação ao seu corpo teórico, a sociopoética fundamenta-se nos seguintes princípios: o grupo pesquisador como dispositivo; a importância do corpo como fonte de conhecimento; o papel da criatividade de tipo artística no aprender, no conhecer e no pesquisar; a ênfase no sentido ético no processo de construção dos saberes. A seguir, abordaremos cada um desses princípios, considerando como cada um deles permeia o processo de produção do conhecimento.

O grupo-pesquisador como dispositivo na sociopoética O conceito de grupo é discutido por diversos autores, podendo apontar diferentes definições de acordo com o contexto a ser trabalhado. Na sua definição etimológica, o vocábulo “grupo” é uma reunião de coisas que forma um todo distinto, uma reunião de certo número de pessoas, ou, então, uma pequena associação ou reunião de pessoas ligadas por um mesmo objetivo. São inúmeras as modalidades de abordagem grupal, as quais divergem desde a conceituação até o desenvolvimento da prática em si. Entretanto, conforme afirma Barros (1996), constituiu-se, a partir do século XVIII, um modo de apreensão do conceito de grupo que, considerando-se algumas divergências, centra-se em torno de algumas constantes. Nesta concepção, o grupo é percebido como “um intermediário entre o indivíduo e a sociedade; o grupo é um todo; é uma estrutura, é uma unidade, é um objeto de investigação” (Barros, 1996, p.98). Outro ponto em comum, é que estas abordagens percebem o grupo como uma unidade abstrata pairando acima dos indivíduos que o compõem, ou seja, o grupo se configura como mais um indivíduo (Moreira et al., 2004). Entretanto, a proposta de Barros (1993, 1996) é a de que possamos considerar uma outra construção do conceito de grupo, percebendo-o como um dispositivo. Abordar o grupo nesta outra lógica “é pensar efeitos, é se aliar à ação/criação, é montar situações que articulem elementos heterogêneos acionando modos de funcionamento que produzirão certos efeitos” (Barros, 1996, p.105). Um dispositivo caracteriza-se então por “sua capacidade de irrupção naquilo que se encontra bloqueado de criar, é seu teor de liberdade em que se desfaz dos códigos que procuram explicar dando a tudo o mesmo sentido” (Barros, 1996, p.104). A sociopoética parte do princípio de que falar em produção de conhecimento remete-nos a uma economia dos processos de subjetivação resultantes do encontro de intensidades e de afetos. Quando nos dirigimos a um campo de pesquisa e interagimos com os sujeitos, certamente ocorrem encontros. Não apenas encontros de corpos físicos, mas também de linguagens, de saberes, de percepções, de valores, de crenças. A valorização desses encontros nos leva a um “processo de singularização”, pois leva à construção de novos modos de sensibilidade, modos de criatividade e de relação com o outro. É COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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aí, então, que entra em cena o dispositivo. Os dispositivos são montagens ou artifícios que propiciam o surgimento de inovações, de diferenças, de singularidades. Para Gauthier et al. (1998), são eles que proporcionam a expressão da transversalidade dos desejos e poderes que agem na vida social. Na sociopoética, a concepção do dispositivo irá permitir ao grupo-pesquisador tornar-se um agente ativo na produção do conhecimento (Silveira, 2005). A construção do conhecimento se faz coletiva e cooperativamente. O grupo é formado a partir de um convite para a discussão de um determinado tema gerador, que tanto pode ser oferecido pelo pesquisador-oficial, como por meio de uma demanda do próprio grupo, ou ainda a partir de uma negociação entre os interesses de ambos. Uma vez formado o grupo, o pesquisador-oficial elabora as oficinas nas quais será trabalhado o tema escolhido, participando da produção como mais um olhar (embora sem perder de vista a relação de poder que envolve a sua participação). A partir daí, o grupo pesquisador é parte ativa de todo o processo, participando da produção de dados, além da análise e da socialização dos mesmos. Este processo pode ser adequado a diversas demandas, como: uma pesquisa acadêmica, uma intervenção institucional ou, apenas, uma apropriação, por parte do grupo, de determinado tema que seja relevante para o mesmo. Considerar o material da pesquisa como uma produção de sentido efetuada entre o pesquisador e o pesquisado permite uma maior implicação dos sujeitos da pesquisa com o conhecimento construído e uma valorização deste conhecimento. Para o pesquisador, fica o desafio de pesquisar sem utilizar a interpretação como ferramenta de afirmar sempre uma verdade última que se sobrepõe ao saber dos sujeitos da pesquisa. Quando isso não for possível, pelo menos, ele estará consciente de suas interferências no saber produzido. Nesse contexto, a proposta do grupo-pesquisador valoriza o aspecto político da produção do conhecimento em saúde ao promover uma nova relação de forças e ao reverter o modelo baseado na verticalidade de um pesquisador que interpreta a fala dos sujeitos, impondo sua palavra como final. Nesse momento, aquele que antes era alienado como objeto do saber médico, passa a ser sujeito na produção de conhecimento acerca do processo saúde-doença, passa a ser valorizado em sua autonomia.

A valorização do corpo na produção do conhecimento A sociopoética afirma que o corpo também produz conhecimento. Para o pensamento racionalista da ciência moderna, essa afirmação é no mínimo estranha. A partir daquilo que Foucault define como “momento cartesiano”, a história da verdade entra em seu período moderno, à medida que admite que o acesso à verdade seja possível apenas por meio da razão (Foucault, 2006). Entretanto, esta concepção de “verdade”, como tantas outras que o homem já produziu, não é um dado natural, como pode parecer. Pelo contrário, é uma crença historicamente produzida e, como tal, merece, se não ser desacreditada, pelo menos ser analisada com mais cuidado. O corpo humano tem sido objeto de estudo das mais variadas áreas do conhecimento: o corpo biológico, objeto das ciências da saúde; o corpo história, dos antropólogos; o corpo vida, dos filósofos, etc. Cada um com suas crenças, seus conceitos e suas práticas em relação a ele. Mas, ao invés de tomar o corpo como um universal, a sociopoética vai recorrer ao conceito de “corpo-sem-órgãos” proposto pela esquizoanálise. Segundo essa abordagem, apesar do “indivíduo”, o corpo sem órgãos não pára de agir. Para entendermos melhor o que é um Corpo sem Órgãos (CsO), temos de nos deter um pouco na forma deleuze-guattariana de conceber o desejo. Em primeiro lugar, precisamos saber que, quando os autores falam em “desejo”, estão desvinculando-o de qualquer ligação com “falta”. Ao desejo não falta nada, ele é pura produção. Como se dá essa produção? Ela ocorre nos encontros (mesmo que seja um encontro solitário), nos contatos entre os corpos. Não apenas corpos humanos, mas de linguagens, saberes e percepções. Desses contatos, surgem os afetos, intensidades ou forças desejantes: “[...] os afetos são devires: ora eles nos enfraquecem, quando diminuem nossa potência de agir e decompõem nossas relações (tristeza), ora nos tornam mais fortes, quando aumentam nossa potência e nos fazem entrar em um indivíduo mais vasto e superior [alegria]” (Deleuze, 1998, p.73). Para que os afetos se expressem, criamos delimitações, territórios. Estes, por sua vez, são temporários, porque o contato com outros corpos gera novos afetos que não se encaixam nesses 876

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territórios, criando, então, linhas de fuga. Sendo assim, uma linha de fuga é uma desterritorialização e os Corpos sem Órgãos são a imantação destas linhas de fuga. São eles que compõem este espaço entre o desterritorializado e o território. Estão antes do organismo, antes da formação dos estratos, mas já trazem consigo a potência de criar. Outro ponto fundamental é que, como afirmamos, não basta saber o que é o Corpo sem Órgãos, é preciso saber também como criar um para si. Apesar de sabermos que ele vai se formar quer queiramos, ou não, a arte dessa prática está, exatamente, em saber criar aqueles que irão aumentar nossa potência e, não, apenas aqueles que nos estratificam: “[...] encontre seu corpo sem órgãos, saiba fazê-lo, é uma questão de vida ou de morte, de juventude e de velhice, de tristeza e de alegria. É aí que tudo se decide [...]” (Deleuze, Guattari, 1996, p.11). A tarefa do corpo sem órgãos será se opor às estratificações que, a todo momento, são modeladas no processo de docilização dos corpos. A sociopoética considera o corpo inteiro - emocional, intuitivo, sensível, sensual, gestual, racional, imaginativo - como fonte de conhecimento. Segundo Gauthier et al. (1998, p.173): “[...] é uma característica da sociopoética buscar além (ou dentro) do corpo, um outro corpo [...] um corpo recalcado [...] Este corpo sabe [...] muito mais do que a fala explícita e consciente, muito mais do que a razão”. Isso não significa abandonar a razão, mas trata-se de acrescentar elementos do corpo a essa razão que não consegue dar conta de tudo em todo o processo de produção do conhecimento. Com a sociopoética existe a possibilidade de se perceber o corpo como possível de desencadear potências criadoras. Na prática, isso acontece por meio da realização de oficinas. Após a composição do grupo-pesquisador e da escolha do tema gerador, inicia-se o processo de produção. Ele ocorre por intermédio da realização de oficinas onde utilizamos técnicas artísticas que vão desde a expressão corporal, a pintura, a argila, até a fotografia e o teatro. O envolvimento do corpo nestas atividades é uma forma de estimular a sensibilidade, permitindo uma forma de produção do conhecimento que não seja apenas racional. Entretanto, a forma de apreender essas técnicas artísticas na sociopoética também tem suas peculiaridades e serão discutidas no próximo tópico.

A arte como ferramenta de produção na sociopoética A arte foi apreendida, pela lógica psiquiátrica, como atividade e trabalho. Sua indicação para os sofredores psíquicos surge no bojo das reformas humanitárias e na busca de novos paradigmas na atenção a esses pacientes. Atualmente, a arte vem sendo cada vez mais utilizada como recurso terapêutico, ainda muito voltado para “a cura” do paciente por meio de vertentes da arteterapia. Em muitos serviços de saúde, as atividades artísticas foram adotadas como exploração do trabalho dos pacientes em atividades de manutenção da própria instituição (Valladares, 2002). Entretanto, destacamos que nossa perspectiva não é a da incorporação da arte como uma atividade ocupacional, monótona e repetitiva a serviço do combate à ociosidade provocada pelas instituições. Entendemos que, se a arte deve ser valorizada nesses espaços, é graças ao seu potencial revolucionário de compromisso com a produção de vida. A arte aqui é entendida como qualquer produção, tangível ou não, proveniente do potencial criativo, passível de gerar o novo, o devir, a diferença. Consideramos a criatividade um potencial inerente ao homem, e a realização desse potencial, uma das suas necessidades. Para Ostrower (1999), criar é, basicamente, formar. É poder dar uma forma a algo novo. Em qualquer que seja o campo de atividade, trata-se de novas coerências que se estabelecem para a mente humana, fenômenos relacionados de modo novo e compreensivo em termos novos. O ato de criar abrange, portanto, a capacidade de compreender; esta, por sua vez, a de relacionar, ordenar, configurar, significar. Nesse contexto, encontramos na sociopoética essa oportunidade de criação, por ser ela um método inovador que nos dá a liberdade de vivenciar novas experiências por meio da constante produção de outros conhecimentos e verdades. Para isso, ela se apropria de diversos mecanismos, como a pintura, a escultura, o teatro, a fotografia e a literatura, trazendo-os como dispositivos de geração de conhecimento para as oficinas realizadas. Estas oficinas resultam em produções materiais, como um COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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texto ou uma pintura, mas abrem espaço, também, para a criação de novas possibilidades de saber e de ser. A arte, considerada no paradigma estético, traz uma dimensão da criação em seu estado nascente, potência que tem a capacidade de emergir a aleatoriedade das intenções, de materializar universos imateriais. Assim, trata-se de agenciar modos de virtualização, de dar espaços à diferença (Guattari, 1996).

A dimensão ética na pesquisa em saúde A dimensão ética da sociopoética afirma a responsabilidade constante que o pesquisador (ou quem esteja ocupando o lugar de conduzir um processo semelhante) precisa ter para com a produção de vida nos espaços onde atua. Entretanto, essa responsabilização não implica substituir a responsabilidade do outro. Exatamente ao contrário disso, diz respeito à constante posição do pesquisador no lugar daquele que instiga a co-responsabilização dos sujeitos por aquilo que é produzido. A ocupação desse lugar exige do pesquisador a descristalização de seus próprios papéis, para que, desta forma, possa abrir espaços para a produção de vida dos sujeitos com os quais compõe seus grupos. Aqui, o conceito de ética não se coaduna com valores morais preestabelecidos, mas trata-se de um compromisso irrestrito com o desejo do sujeito e com a produção de modos de subjetivação singulares. O acesso ao saber na sociopoética não se resume a conhecer, compreender ou propor formas de atuação. Sua finalidade vai além. A elaboração teórica é apenas uma parte de um processo onde saber e ser estão intimamente imbricados. Reconhecer este princípio é, para a sociopoética, a recuperação de uma dimensão ética na produção do conhecimento, à medida que envolve a relação do sujeito consigo. Segundo Michel Foucault, a ciência moderna valoriza uma forma de relação do sujeito com a produção do conhecimento que elimina de seu campo as questões relativas ao modo como o acesso à “verdade” modifica o sujeito. O que importa é a regularidade do método que, se for seguido, permite reproduzir o conhecimento. afirma: Creio que a idade moderna da história da verdade começa no momento em que o que permite aceder ao verdadeiro é o próprio conhecimento e somente ele. Isto é, no momento em que o filósofo (ou o sábio, ou simplesmente aquele que busca a verdade), sem que mais nada lhe seja solicitado, sem que seu ser de sujeito deva ser modificado ou alterado, é capaz, em si mesmo e unicamente por seus atos de conhecimento, de reconhecer a verdade e a ela ter acesso. O que não significa, é claro, que a verdade seja obtida sem condição. (Foucault 2006, p.22)

A sociopoética parte de uma concepção ética que vai na contra-corrente desse pensamento. Ao reconstruirmos sentidos por meio do dispositivo do grupo-pesquisador, ao promovermos uma modificação nesses modos de relação com a verdade, não podemos deixar de considerar o efeito de transformação, ou o efeito de retorno da verdade sobre o sujeito. Entendemos que nossas pesquisas têm produtos variados: relatórios, documentos, imagens. Mas não é apenas isso. Ocorre também um outro tipo de produção, talvez mais sutil que as outras, talvez menos esperada. Mas, com certeza, não menos importante. O ato de pensar uma determinada realidade não quer dizer contemplação ou reflexão “sobre” algo. Pensar nos envolve, nos implica, no sentido exato da palavra (in = dentro + plicare = dobrar), e é nessa dobra que nos constituímos como ser. Ou, como afirmam Deleuze e Guattari (1992), o pensamento é um movimento infinito de ida e volta porque ele não vai na direção de uma destinação sem já retornar sobre si, a agulha sendo também o pólo. É neste movimento que podemos falar de uma dobra entre pensamento e subjetividade. É neste sentido que se diz que pensar e ser são uma só e mesma coisa. Ou antes, o movimento não é imagem do pensamento sem ser também matéria do ser. É nesse sentido que a sociopoética envolve um compromisso ético com os sujeitos que envolve em suas realizações, pois não se trata apenas de produção de saber, mas também de produção de subjetividades. 878

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Considerações finais A sociopoética é um método de produção do conhecimento relativamente recente e ainda pouco divulgado na comunidade acadêmica (embora já existam registros de várias teses, dissertações e pesquisas desenvolvidas nessa perspectiva). Sendo assim, atuamos aqui na tentativa de divulgar suas principais fontes epistemológicas e seus princípios teóricos. Partimos do princípio de que pesquisar (ou outros mecanismos de geração de conhecimento) envolve trabalhar com sensibilidades, com modos de subjetivação. Fazer da produção conhecimento um acontecimento poiético (do grego poiesis = criação) é o grande desafio dessa abordagem. Esse acontecimento tem a marca da criação estética, pois trata da produção de vida fora dos modos serializados, fazendo de cada encontro uma possibilidade de invenção, assim como um artista mistura suas cores e dá forma a sua obra. Entretanto, como tratamos de vidas, e não de tintas, esse processo de criação precisa vir perpassado por uma responsabilidade ética voltada exclusivamente para um compromisso com a manutenção do desejo e da potencialização da vida. Finalmente, para não cairmos numa visão ingênua das possibilidades dessa produção, é preciso que consideremos o aspecto político, entendido como a necessidade de lidar com os estratos de poderes e saberes que perpassam os processos de subjetivação. Entendemos que a ampliação da discussão acerca da sociopoética pode contribuir para provocar efeitos de singularização na elaboração de pesquisas que requeiram a abordagem da dimensão subjetiva, ou em outras práticas de produção de conhecimento comprometidas com a valorização da diferença e o estímulo a novos processos de subjetivação.

Colaboradores Os autores Lia Carneiro Silveira, Arisa Nara Saldanha de Almeida, Simara Moreira de Macedo, Monyk Neves de Alencar e Michell Ângelo Marques Araújo participaram, igualmente, de todas as etapas de elaboração do artigo. Referências BARROS, R.D.B. Dispositivo em ação: o grupo. Cad. Subj., v.1, n.1. p.97-106, 1996. ______. Grupos e produção. In: ______. Saúde loucura: grupos e coletivos. São Paulo: Hucitec, 1993. n.4. p.145-54. CHAUÍ, M. Convite à Filosofia. São Paulo: Ática, 2000. DELEUZE, G. Foucault. São Paulo: Brasiliense, 1998. DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Editora 34, 1996. v.3. ______. O que é a Filosofia? Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992. ______. O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia. Lisboa: Assírio Alvim, 1968. FOUCAULT, M. A hermenêutica do sujeito. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006. ______. O nascimento da clínica. 4.ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1994. GAUTHIER, J.H.M. et al. Pesquisa em enfermagem: novas metodologias aplicadas. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1998.

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GUATTARI, F. As três ecologias. Trad. Maria Cristina Bittencourt. Campinas: Papirus, 2001. ______. O novo paradigma estético. In: SCHNITMAN, D.F. (Org.). Novos paradigmas, cultura e subjetividade. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996. p.121-37. GUATTARI, F.; ROLNIK, S. Micropolítica: cartografias do desejo. 5.ed. Petrópolis: Vozes, 1999. MOREIRA, R.V.O. et al. De coletivo a grupo: reflexões sobre a abordagem grupal. In: BARRETO, J.A.E.; MOREIRA, R.V.O. (Orgs.). Para além das colunas de Hércules: Filosofia e ações de enfermagem. Sobral: Edições UVA, 2004. p.61-76. OSTROWER, F. Criatividade e processos de criação. Petrópolis: Vozes, 1999. PETIT, S.H. et al. Introduzindo a sociopoética. In: SANTOS, I. et al. (Orgs.). Prática da pesquisa nas ciências humanas e sociais: abordagem sociopoética. São Paulo: Atheneu, 2005, página inicial e final do capítulo citado (Série Atualização em Enfermagem, v.3). SANTOS, B.S. Um discurso sobre as ciências. São Paulo: Cortez, 2003. SILVA, A.L.; RAMOS, T.R.O. As linhas epistemológicas do conhecimento científico. In: SEMINÁRIO NACIONAL DE PESQUISA EM ENFERMAGEM, 11., 2001, Belém. Anais... Belém, 2001. 1 CD-ROM. SILVEIRA, L.C. Abrindo coisas e rachando palavras: a utilização dos dispositivos na Sociopoética. In: SANTOS, I. et al. (Orgs.). Prática da pesquisa nas ciências humanas e sociais: abordagem sociopoética. São Paulo: Atheneu, 2005. p.224-41. (Série Atualização em Enfermagem, v.3). SIMANKE, R.T. Metapsicologia lacaniana: os anos de formação. São Paulo: Discurso Editorial, 2002. VALLADARES, A.C.A. Arteterapia no paradigma de atenção em saúde mental. São Paulo: Vetor, 2002.

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A pesquisa sociopoética é um novo método de construção coletiva do conhecimento que tem como princípios a valorização dos sujeitos da pesquisa como co-responsáveis pelos saberes produzidos, além do reconhecimento da importância do corpo, da criatividade do tipo artística, considerando a dimensão ético-estética e política da produção do conhecimento. A sociopoética se apresenta como uma caixa de ferramentas que permite desenvolver a produção do conhecimento levando em conta os processos subjetivos e comprometendo-se com uma maior autonomia dos envolvidos. Esta é uma reflexão teórica que tem como objetivo descrever o método da sociopoética delineando suas bases epistemológicas e seus princípios teóricos. Entendemos que a ampliação da discussão acerca da sociopoética pode contribuir para provocar efeitos de singularização na elaboração de pesquisas que requeiram a abordagem da dimensão subjetiva, ou em outras práticas de produção de conhecimento comprometidas com a valorização da diferença e o estímulo a novos processos de subjetivação.

Palavras-chave: Pesquisa. Metodologia. Sociopoética. Sociopoetics as a device for knowledge production Sociopoetic research is a new method for collective knowledge construction that has the basic principles of valuing research subjects as co-responsible for the knowledge produced and recognizing the importance of the body and artistic creativity, through taking the ethical-esthetic and political dimensions of knowledge production into consideration. Sociopoetics is perceived to be a toolbox that makes it possible to develop knowledge production while taking subjective processes into account and making a commitment towards greater autonomy for the subjects involved. Thus, this text is a theoretical reflection that aims to describe the sociopoetic method and delineate its epistemological basis and theoretical principles. We take the view that expansion of the discussion regarding sociopoetics may contribute towards provoking singularization effects in drawing up research with a requirement to deal with subjective dimensions or in other knowledge production practices with a commitment towards valuing differences and stimulating new subjectivation processes.

Key words: Research. Methodology. Sociopoetics. La socio-poética como dispositivo para producción de conocimiento La investigación socio-poética es un nuevo método de construcción colectiva del conocimiento que tiene como principio la valoración de los sujetos de pesquisa como co-responsabels por los saberes producidos, además del reconocimiento de la importancia del cuerpo, de la creatividad artística, considerando la dimensión ético-estética y política de la producción del conocimiento. Percibimos que la socio-poética se presenta como una caja de herramientas que nos permite desarrollar la producción del conocimiento llevando en cuenta los procesos subjetivos y comprometiéndose con una mayor autonomía de los participantes. Este texto es pues una reflexión teórica con el objeto de describir el método de la socio-poética, delineando sus bases epistemológicas y sus principios teóricos; contribuyendo para provocar efectos de singularización en investigaciones con dimensión subjetiva.

Palabras clave: Investigación. Metodología. Socio-poética.

Recebido em 09/08/07. Aprovado em 02/06/08.

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Lista de discussão como estratégia de ensino-aprendizagem na pós-graduação em Saúde Lidia Ruiz-Moreno1 Silvia Elsa Lizarralde Pittamiglio2 Meiry Akiko Furusato3

Sou um ser apaixonado pelo futuro, e proponho a vocês um exercício de reflexão sobre o que poderia ser a civilização da inteligência coletiva. Pierre Levy (2000, p.4)

O uso de novas tecnologias de mediação eletrônica entusiasma grande número de alunos, professores e gestores. Porém, seu desenvolvimento cria desafios aos atores do processo educativo. Souza (2003) questiona os seguintes aspectos sobre sua utilização: qual a pertinência e qualidade da aprendizagem nesses contextos? Como aperfeiçoar os espaços e as tecnologias para que a aprendizagem aconteça? Qual a concepção do processo ensino-aprendizagem utilizada? O uso desses recursos promove um processo efetivo de inclusão social? A utilização de novos meios eletrônicos de interação, incentivada pela necessidade de se aprimorar o processo de ensino-aprendizagem num mundo cada vez mais complexo, no qual as informações se disseminam velozmente, demanda uma ressignificação do papel de alunos e professores nos diferentes cenários educativos. No modelo pedagógico vigente na maioria das escolas, o aluno é visto como um receptor de conteúdos cuja tarefa é assimilar e reproduzir, ao invés de problematizar, analisar, refletir, discutir e conversar. Em processos de ensino controladores, com professores autoritários, pouco se avança na formação de profissionais capazes de atender às necessidades sociais atuais (Perrenoud, 2000). Souza (2006) nos alerta sobre a escassez de experiências bem-sucedidas de introdução de tecnologias da informação na rede pública de Ensino Fundamental e Médio na América Latina, e do grande atraso na implantação e apropriação destas ferramentas no Ensino Superior. Segundo o autor, existem também experiências de sucesso, mas freqüentemente se observa a incorporação de tecnologia informática em disciplinas de cunho conteudista, empregando métodos tradicionais de ensino e avaliação. Moreira, Costa e Oliveira (2001) situam três principais concepções do processo de ensino-aprendizagem que determinam a prática pedagógica com uso da tecnologia educacional. Na concepção empirista, o aluno é considerado um ser

Bióloga. Centro de Desenvolvimento do Ensino Superior em Saúde, Universidade Federal de São Paulo (Cedess/ Unifesp). Rua Borges Lagoa, 1341. São Paulo, SP 04.038-034 lidia.ruiz@unifesp.br 2 Licenciada em Letras.Cedess/Unifesp. 3 Bacharel em Ortóptica. Cedess/Unifesp.

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LISTA DE DISCUSSÃO COMO ESTRATÉGIA...

passivo onde são depositados os conhecimentos, configurando o que Freire (1975, p.70) chama de “educação bancária”. Neste modelo, o uso de tecnologias consiste em disponibilizar conteúdos no ambiente tecnológico por meio de recursos, como textos, sons, animações, softwares e vídeos e, ao finalizar o processo, realizar avaliações para testar os conteúdos adquiridos. Já, na concepção racionalista, a aprendizagem é um processo autônomo regulado pelo amadurecimento orgânico das estruturas racionais. As atividades são centradas no aluno, que depende exclusivamente do seu potencial cognitivo para realizar a aprendizagem, sendo secundarizada a mediação docente neste processo. As dicotomias das concepções empirista e racionalista são superadas no modelo construtivista, baseado na teoria sociointeracionista de Vigotsky (1995), que enfatiza a construção de conhecimentos mediante as trocas que o indivíduo realiza com seu ambiente. Na visão de Moreira, Costa e Oliveira (2001), é a abordagem construtivista a que contextualiza de forma mais adequada o aproveitamento dos recursos tecnológicos para o processo de ensino-aprendizagem. Uma das possibilidades de se estabelecerem transformações no sistema educacional consiste em desenvolver processos de comunicação, que envolvam as dimensões cognitivas, afetivas, sociais e éticas, entre alunos e professores abertos, democráticos e interativos (Moran, 2003). Valorizam-se, cada vez mais, a interação e a troca de informações entre os atores envolvidos no processo educativo e o estímulo à criatividade em substituição à reprodução passiva de conhecimentos já existentes. Na abordagem pedagógica interacionista, a aprendizagem é um processo social e o ato de ensinar consiste em estabelecer uma série de inter-relações que facilitem a elaboração de representações pessoais sobre o objeto da aprendizagem. Consideramos que uma educação que propicie a autonomia, liberdade, cooperação e solidariedade pode acontecer com ou sem o uso de novas tecnologias de mediação eletrônica. O que promove o processo educativo é a atitude e o compromisso dos sujeitos em estabelecer processos comunicativos autênticos, considerando os diferentes contextos institucionais, sociais e políticos (Freire, 2003). Mas, educar também é estar atento às diferentes possibilidades e recursos que nossa realidade nos apresenta; a diversificação de instrumentos, estratégias e ambientes de ensino-aprendizagem pode aumentar as possibilidades de interação, criar condições para a autonomia, respeitando os diferentes ritmos, momentos e estilos cognitivos. O uso de tecnologias que facilitam o acesso e troca de informações, ampliando a possibilidade de escolha de alunos e docentes, pode constituir um facilitador do processo educativo. Em relação ao acesso da população à informação, Vigotsky (1995) define a tecnologia como um dos mediadores culturais, criados pelo homem, que possibilitam sua relação com o mundo material. Os ambientes de comunicação mediados por computadores com acesso à internet propiciam o desenvolvimento de interações educativas mais amplas, impensáveis no passado recente, sendo possível combinar momentos presenciais e a distância, onde os participantes podem trocar idéias e experiências, vivenciar atividades individuais e grupais, e criar condições para a construção de conhecimentos de forma colaborativa (Kenski, 2001). O aprendizado acontece quando se estabelecem determinadas dinâmicas de troca e relacionamentos, intelectuais e afetivos, com vistas a alcançar objetivos específicos, constituindo-se, assim, as comunidades virtuais (Soares, 2003). Souza (2003) define estes agrupamentos como “[...] comunidades de pessoas compartilhando interesses comuns, idéias e relacionamentos, por meio da Internet ou outras redes colaborativas” (p.98). O autor observa também que as interações on-line promovem um maior grau de profundidade, permitem a discussão simultânea de diversos tópicos e ampliam as possibilidades espaço-temporais. Sem dúvida, a utilização desses recursos cria desafios tanto para docentes quanto para alunos, os quais devem saber: lidar com os equipamentos, navegar na internet, desenvolver a capacidade de leitura de hipertextos multimodais, operar softwares e assimilar conceitos e vocabulário próprios de uma nova área. As instituições também são mobilizadas a disponibilizar uma infra-estrutura física adequada, promover cursos de educação continuada em novas tecnologias e incentivar o uso dos ambientes virtuais (Pittamiglio, 2004). O docente, como mediador do processo, deve desenvolver flexibilidade e intuição para lidar com a incerteza, a provisoriedade e o volume crescente de informações na sua área de atuação. Segundo 884

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Blikstein e Zuffo (2003), é urgente a formação de educadores que lidem com as novas tecnologias de forma crítica e reflexiva para superar resistências e preconceitos, ou, ainda, evitar a ilusão de que esses novos instrumentos per se poderiam ser a solução para todos os problemas educacionais da atualidade. Os alunos, por sua vez, precisam desenvolver competências, como a busca ativa de informação e senso crítico, além de uma participação responsável no processo de aprendizagem e avaliação. Geralmente, eles apresentam maior familiaridade com essas ferramentas, mas é preciso que também desenvolvam habilidades como: intuição, bom senso, sentido estético, capacidade para selecionar e comparar diante de tantas possibilidades que lhe são oferecidas. Azevedo (2005, p.2) acredita que alunos e docentes precisam de uma espécie de “pré-escola virtual” que os aproxime do “letramento digital”, o que envolve não só o desenvolvimento de habilidades procedimentais, mas também uma mudança conceitual sobre as representações do tempo e do espaço no chamado “mundo virtual” ou “ciberespaço”. Dentre os diversos ambientes virtuais, possíveis de serem utilizados como estratégias de ensinoaprendizagem, a lista de discussão por meios informatizados representa uma oportunidade para que um grupo de pessoas “possa debater e aprofundar a distância um tema sobre o qual sejam especialistas ou tenham realizado estudo prévio” (Anastasiou, Alves, 2004, p.85). Foi refletindo sobre estas questões que incluímos, a partir de 2004, a lista de discussão como uma estratégia de ensino-aprendizagem, junto com dramatizações, mapa conceitual, técnicas de sensibilização, júri simulado, no módulo de Práticas Educativas, no curso de especialização em Ensino em Ciências da Saúde, do Centro de Desenvolvimento do Ensino Superior em Saúde (Cedess), da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Desta forma, o módulo passou a se estruturar numa modalidade semipresencial, alternando momentos presenciais e a distância. A escolha da lista de discussão, como estratégia de comunicação a distância, foi motivada por: permitir a participação de forma assíncrona, não requerer a instalação de softwares especiais, ser disponibilizada gratuitamente em diversos provedores comerciais de internet e apresentar uma interface amigável, praticamente intuitiva, que incentiva o seu uso. Ademais, essa ferramenta de fácil acesso permite o registro das interações, a geração de estatísticas e representa o principal suporte de diversas comunidades virtuais. Num momento em que as instituições de ensino superior ampliam propostas educativas de caráter semipresencial, com utilização de tecnologias de mediação eletrônica, amparadas em portaria do Ministério de Educação (Brasil, 2004) que permite que os cursos de ensino superior ofereçam até 20% da carga horária a distância, consideramos relevante compartilhar experiências que utilizem ambientes virtuais, como forma complementar aos encontros presenciais. É importante empreender investigações no contexto particular dos meios eletrônicos de interação como suporte à educação, com a finalidade de afinar uma metodologia coerente com o modelo pedagógico orientado ao desenvolvimento do pensamento crítico dos estudantes, e que valorize o papel motivador, condutor e mediador do docente numa comunidade virtual de aprendizagem (Fëderov, 2006). Avanços no conhecimento sobre o papel das tecnologias de mediação eletrônica no processo educativo devem incluir a perspectiva dos sujeitos participantes. Assim, o objetivo central do presente trabalho foi analisar a lista de discussão como estratégia de ensino-aprendizagem numa proposta educativa semipresencial, sendo que, especificamente, nos propusemos a identificar facilidades, dificuldades e expectativas dos participantes sobre a utilização dessa estratégia em espaços formais de ensino-aprendizagem. Para a consecução destes objetivos, analisamos dados quantitativos, aplicamos questionários e realizamos o registro dos debates sobre o papel da lista de discussão no processo de ensino-aprendizagem.

A experiência vivenciada No módulo de Práticas Educativas foi criada uma lista de discussão da qual participaram 24 alunos e três professores. A maioria dos alunos (quatro homens e vinte mulheres) - formados em Enfermagem (oito), Psicologia (um), Biomedicina (dois), Fisioterapia (quatro), Nutrição (quatro), Odontologia (dois), Ortóptica (um), Farmácia (dois), Serviço Social (um), Administração (um), Medicina (um) e Educação Física (um) - não tinha participado previamente de listas de discussão. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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No primeiro encontro presencial do módulo, foi realizada uma avaliação diagnóstica, por meio do mapeamento das experiências anteriores dos participantes na utilização dos meios eletrônicos e ambiente virtual. Além disso, foram apresentadas orientações sobre o uso da lista de discussão e acerca dos papéis de liderança a serem desenvolvidos pelos participantes (administrador técnico, moderador/ animador e tutor/professor). Uma vez distribuídos os papéis e definida a forma de participação, um aluno, no papel de administrador técnico, criou a lista de discussão, num provedor comercial gratuito de internet, cadastrou os participantes e configurou a página de forma que fosse restrita ao grupo. Foi combinado que o papel de líder seria temporário, dando oportunidade a vários alunos para vivenciá-lo de forma alternada. As atividades a distância, no primeiro intervalo de 15 dias, comportaram a veiculação de questões operacionais e de “etiqueta” referentes à utilização da lista. O aluno moderador/animador disponibilizou os tópicos a serem debatidos, que incluíam diferentes estratégias de ensinoaprendizagem, como aula expositiva dialogada, mapa conceitual, júri simulado. Os alunos foram orientados a relatar experiências, conhecimentos prévios, discutir sobre as vantagens e desvantagens da utilização das diferentes estratégias didáticas, e a consultar fontes bibliográficas. Para subsidiar a discussão, foram disponibilizados arquivos de texto e links para artigos, capítulos de livros e sites pertinentes. Além da comunicação muitos-para-muitos, possibilitada pela lista de discussão, foram utilizados outros recursos presentes na página do grupo, tais como: ativação de links, carregamento de arquivos, uso da agenda e aplicação de enquetes. No segundo encontro presencial, foram vivenciadas algumas das estratégias didáticas discutidas previamente na lista de discussão e apresentadas as expectativas e dificuldades iniciais de utilização do espaço virtual. O planejamento coletivo das próximas atividades a distância, que seriam realizadas nos 15 dias seguintes, previu o uso de enquetes, além da participação nas discussões em andamento. Foi promovido, no terceiro encontro presencial, um debate com análise reflexiva para avaliação da experiência semipresencial vivenciada, e solicitada, aos alunos, a entrega de um relatório com as sínteses das produções individuais e coletivas. As expectativas, possibilidades, dificuldades e o papel da lista de discussão no processo de ensino-aprendizagem foram os núcleos orientadores da elaboração do relatório.

Resultados e discussão Os dados mostraram que vinte alunos (83%) dos 24 alunos participantes trocaram 175 mensagens, durante o módulo Práticas Educativas, e a média de mensagens foi de seis por dia. Dois alunos (6%) emitiram 54 mensagens (31%), “é fato constatado que um número pequeno de membros é responsável por grande parte das mensagens” (Souza, 2003, p.102). Neste caso, esses dois participantes ocuparam a função de animadores da lista, o que pode justificar a sua maior participação. Foram disponibilizados 13 arquivos (um cronograma das atividades previstas, 11 textos sobre estratégias de ensino-aprendizagem e novas tecnologias, e um projeto de pesquisa), três enquetes sobre auto-avaliação, cinco fotos, e foram agendados dois seminários acadêmicos. Foram identificadas mensagens de cunho técnico, social e de conteúdo específico do módulo, conforme classificação de Mckenzie e Murphy (2000). As mensagens foram tabuladas, classificadas e quantificadas por: emissor, freqüência de participação e assuntos discutidos, os quais abrangeram, além daqueles focalizando as diferentes práticas educativas, experiências prévias sobre o objeto de estudo da disciplina. Também foram abordados temas como: a maturidade do aluno frente às novas práticas educativas a distância; sua resistência a mudanças, enraizada nas experiências formativas em modelos tradicionais de ensino; aspectos do contexto político-institucional; a importância da relação professor/ aluno; a necessidade de respeito aos limites de ambos; a valorização do conhecimento prévio, e a subjetividade implícita na construção do conhecimento. As expectativas mais citadas foram: estabelecer um canal de comunicação a distância assíncrono para favorecer as relações interpessoais, contar com apoio emocional, trocar informações atualizadas com 886

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colegas e professores, documentar o processo, e ampliar os momentos de comunicação fora da sala de aula - “Somos unidos, mas precisamos criar, ter e manter um canal ao qual poderemos manifestar nossas alegrias, construções deste aprendizado... nossas angústias... Isso nos aproxima, ou seja, poder acrescentar este espaço virtual para dentro de nossas casas e ambiente de trabalho” (Aluno 3). Entre as principais motivações, os alunos citaram: interesse em participar de uma comunidade de aprendizagem, percepção dos problemas comuns aos membros, e o compromisso com a formação ética e cidadã: Vejo que estamos com a mesma expectativa, ansiedade e frustração, pois queremos ser educadores diferentes, com metodologias diferentes, centrados no aluno, no processo ensino-aprendizagem adequado. Infelizmente encontramos barreiras como as já citadas: classes numerosas, alunos desmotivados e instituições (direção, coordenação) que não estão preocupadas com isto. Não podemos desanimar, e sim buscar forças para formarmos cidadãos éticos, competentes e críticos. (Aluno 10)

As principais dificuldades referiram-se à: disponibilidade de recursos de acesso à internet, inexperiência em atividades de ensino a distância, administração do tempo para ler e responder a grande quantidade de mensagens geradas, e ausência de contato pessoal. Azevedo (2008) relata que a falta de tempo foi o principal motivo de evasão alegado por alunos em diferentes experiências de educação a distância por ele desenvolvidas. Na opinião do autor, os alunos acostumados à exigência sincrônica dos ambientes presenciais devem aprender a administrar o tempo na perspectiva da temporalidade multissíncrona dos ambientes virtuais, que admitem diferentes possibilidades e ritmos de participação. Entre os desafios para a utilização da lista de discussão como ferramenta educativa, foram citados: (i) maturidade dos alunos, conhecimento dos fundamentos e objetivos da prática educativa, definição do papel de cada ator e necessidade de mediação docente. Quanto às vantagens, os especializandos destacaram: as facilidades de comunicação espaçotemporais, a superação da timidez evidenciada por alguns participantes na comunicação em sala de aula, a aproximação de pessoas que não demonstraram afinidades nos encontros presenciais, e a atitude solidária dos colegas: “Às vezes tínhamos algum problema e quando pedíamos ajuda a alguém em particular, sempre o grupo todo se manifestava. Isto é muito bom e ajudou no nosso entrosamento e maior conhecimento dos colegas propiciado pela lista de discussão” (Aluno 17). O grupo valorizou a afetividade presente no processo de ensino-aprendizagem, dimensão que Soares (2003) destaca como fundamental nos inter-relacionamentos a distância. O respeito pela opinião alheia, sem julgamento pessoal, onde todos puderam se expressar livremente entendendo que não existe verdade absoluta sobre determinado assunto, senão a interação de idéias, foram aspectos valorizados pelo grupo. Assim, a colaboração no ambiente virtual foi vivenciada como essencial para a aprendizagem, de modo que professores e alunos puderam trabalhar juntos na construção e socialização do conhecimento. Os pós-graduandos participantes da experiência expressaram sua satisfação na utilização desta ferramenta, mas ainda se mostraram inseguros para aplicá-la em outros cenários formativos: “Acho que ainda não sei elaborar uma lista de discussão com meus alunos, mas vou procurar saber como fazer, ainda não tentei” (Aluno 7). A expansão de cursos que utilizem educação a distância requer, dentre outros fatores, a implementação de processos de formação docente que desenvolvam um preparo técnico-pedagógico para se perceberem as possibilidades geradas pelos recursos presentes na educação on-line e nos ambientes virtuais de aprendizagem como um espaço de efetiva organização do trabalho pedagógico, mas também como um suporte para transcender o modelo tradicional unidirecional de ensino. Os professores podem ser atores importantes para orientar processos de inclusão digital. A apropriação da cultura digital de um número crescente de professores, que lhes permita ampliar seu próprio horizonte de formação e informação, é de fundamental importância para programar novas propostas educativas no âmbito do ensino, da pesquisa e da extensão (Giordan, Starobinas, Schwartz, 2005). COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Comentários finais As instituições educativas, preocupadas com a formação de cidadãos críticos, reflexivos e responsáveis pelo seu aprendizado, têm de se adequar aos novos ambientes, criando mecanismos didático-pedagógicos que favoreçam o uso de novas tecnologias de forma dinâmica e contínua. Pesquisas na área do ensino de ciências sinalizam que a informática aplicada à educação vem transformando as estratégias convencionais de ensino. As interações ocorridas no espaço social da sala de aula são ampliadas com a utilização de meios de comunicação como a internet. Numa experiência de desenvolvimento de projetos de defesa ambiental, relatada por Moreira Machado (2002), trabalhouse numa visão interacionista, buscando colocar professor e alunos sempre de forma ativa, construindo os seus conhecimentos em ambientes interativos virtuais. Na experiência vivenciada no módulo de Práticas Educativas, no curso de especialização em Ensino em Ciências da Saúde, o grupo mostrou grande motivação em participar da lista de discussão por meios informatizados num ambiente formal de ensino-aprendizagem na modalidade semipresencial. Acreditamos que um dos fatores que contribuiu foi a mobilização prévia, que compreendeu o planejamento coletivo e a escolha conjunta dos objetos de estudo, tarefas e cronograma de atividades, de forma que professores e alunos se co-responsabilizaram pelo processo. O clima de confiança e comunicação cordial, criado desde o início da proposta, também foi um fator determinante para a expressão de idéias e sentimentos que contribuiu na configuração de uma comunidade de aprendizagem caracterizada pela interação e colaboração. Um aspecto destacado pelos participantes foi o de que as pessoas mais retraídas para a intervenção presencial podem encontrar um espaço mais propício para expressar suas idéias e sentimentos no ambiente virtual. Além disso, a comunicação assíncrona proporciona maior tempo para se pensar sobre o assunto ou procurar informações sobre os temas em pauta, o que constituiu também um fator facilitador das contribuições. Houve articulação dos conteúdos específicos do módulo com as experiências prévias, possibilitando uma ressignificação das temáticas abordadas. Solicitações de ajuda provocaram trocas de informação para melhor compreensão de alguns conteúdos, configurando um processo de aprendizagem colaborativa, onde os estudantes puderam expor idéias, suposições e conhecimentos a um escrutínio crítico por parte do grupo (Cañas et al., 1997). Para Vygotsky (1998), a interação social exerce um papel fundamental no desenvolvimento cognitivo, sendo que a origem dos processos de aprendizagem está na relação com outras pessoas, com o uso da linguagem. Para ele, o homem é um ser eminentemente social, e o conhecimento, um produto social. A educação com o emprego de novas tecnologias de informação e comunicação (NTICs) pode oferecer as condições para uma aprendizagem eficaz, alicerçada nos fundamentos sociointeracionistas, sempre que a proposta educativa seja estruturada com processos interativos que favoreçam a construção de um ambiente de colaboração no qual o professor possa orientar e acompanhar o aprendizado do aluno. Para esse autor, cabe ao educador associar aquilo que o aprendiz sabe a uma linguagem culta ou científica, para ampliar os conhecimentos daquele que aprende, de forma a integrá-lo histórica e socialmente no mundo. No presente trabalho, a lista de discussão evidenciou ser uma estratégia facilitadora das interrelações e do processo de ensino-aprendizagem, já que permitiu o aprofundamento do objeto de estudo, a construção e elaboração de novos elementos conceituais e de sínteses contínuas, onde a emoção e os sentimentos estiveram presentes no estabelecimento da rede de relacionamentos sociais. A diversificação das estratégias de ensino e a complementação das atividades presenciais e a distância foram valorizadas pelos alunos. Ancoradas na vivência de interação em ambos os ambientes, a alternância na utilização dos espaços fortaleceu as experiências de troca, o que ampliou as possibilidades de compreensão e significação da experiência vivenciada. Um dos possíveis fatores dificultadores da participação dos alunos no ambiente virtual, além da (in) experiência prévia no uso das ferramentas operacionais, pode estar vinculado às vivências anteriores em situações de ensino transmissivas, que levam a uma postura passiva. Além disso, é importante ressaltar que uma parcela dos alunos participantes não possui acesso domiciliar à internet, aspecto que deve ser considerado pelo professor nas exigências de participação. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e 888

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Estatística (IBGE, 2006) o número de domicílios com acesso à internet, no país, é de 16,9%. Embora em expansão, o porcentual é ainda reduzido e mostra fortes desigualdades regionais. Num movimento de tornar este processo socialmente mais inclusivo, muitas instituições de Ensino Superior (IES) têm disponibilizado laboratórios de informática, que podem ser utilizados em diferentes dias e horários (Anastasiou, Alves, 2004). Um importante desafio apontado na presente pesquisa é a necessidade de qualificação docente para utilizar recursos tecnológicos de forma a aperfeiçoar o processo de ensino-aprendizagem e, conseqüentemente, a formação profissional nas diferentes áreas. Em particular, a área da saúde constitui um dos setores de maior impacto das NTICs nos campos da educação, assistência à saúde e pesquisa. A troca de informações para diagnósticos, tratamento, prevenção de doenças e processos de educação permanente são alguns dos aspectos que evidenciam a importância de ampliar o uso racional destes recursos (Gutierrez, 2002). A produção de conhecimento sobre as vantagens, limites e desafios de práticas educativas virtuais amplia cada vez mais as possibilidades de utilização reflexiva destes recursos. De acordo com Marcovitch (1999, p.1): A informação permeia as ações da universidade. É o objetivo final da pesquisa e o que efetivamente se transmite nas atividades de ensino e de extensão. Descendente direta de estudos exploratórios desenvolvidos há décadas nos laboratórios acadêmicos, a tecnologia da informação volta à universidade como uma espécie de criatura que desafia o criador a decifrá-la incessantemente [...] A universidade, como as pessoas, deve «desaprender» certos métodos, embora mantendo intacto o seu cabedal de conhecimentos. Não se trata de renunciar ao passado, mas de preparar-se para o futuro com sabedoria, lançando mão das armas disponíveis.

Colaboradores Os autores Lidia Ruiz-Moreno,Silvia Elsa Lizarralde Pittamiglio e Meiry Akiko Furusato participaram, igualmente, de todas as etapas de elaboração do artigo. Referências ANASTASIOU, L.G.C.; ALVES, L.P. Estratégias de Ensinagem. In: ______. (Orgs.). Processos de ensinagem na universidade: pressupostos para as estratégias de trabalho em aula. 3.ed. Joinville: Ed. Univille, 2004. p.68-100. AZEVEDO, W. Panorama atual da educação a distância no Brasil. In: ______. Muito além do jardim de infância: temas de educação on-line. Rio de Janeiro: Armazém Digital, 2005. p.13-8. ______. Muito além do jardim de infância: o desafio do preparo de alunos e professores on- line. Disponível em: <http:www2.abed.org.br/ visualizaDocumento.asp?Documento_ID=65>. Acesso em: 14 nov. 2008. BLIKSTEIN, P.; ZUFFO, M.K. As sereias do ensino eletrônico. In: SILVA, M. (Org.). Educação on-line: teorias, práticas, legislação e formação corporativa. São Paulo: Loyola, 2003. p.23-38.

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As novas tecnologias de mediação eletrônica desafiam os atores do processo educativo e requerem a definição do modelo pedagógico adotado. O objetivo deste trabalho foi analisar a lista de discussão como estratégia de ensino-aprendizagem numa proposta educativa semipresencial. A lista de discussão foi criada na disciplina Práticas Educativas do curso de especialização em Educação em Saúde. Os núcleos que orientaram a análise dos dados foram: expectativas, possibilidades, dificuldades e papel da lista de discussão no processo de ensino-aprendizagem, na ótica dos discentes. As dificuldades se centraram na disponibilidade de acesso a internet, inexperiência, administração do tempo e ausência de contato pessoal. Quanto às possibilidades, destacaram-se as facilidades espaço-temporais, a ampliação dos canais de comunicação assíncrona e a criação de uma comunidade colaborativa de aprendizagem.

Palavras-chave: Tecnologia educacional. Lista de discussão. Estratégias de ensino-aprendizagem. Construtivismo. Educação em saúde. Discussion lists as a teaching and learning strategy for postgraduate health studies New electronic mediation technologies challenge the players in the educational process and make it necessary to define the pedagogical model adopted. The aim of this study was to analyze discussion lists as a teaching and learning strategy for a semi-distant educational proposal. A discussion list was created within the discipline of Educational Practices of a health education specialization program. The core issues guiding the data analysis were the expectations, possibilities, difficulties and role of the discussion list within the teaching and learning process from the students’ point of view. The difficulties were centered on the availability of internet access, inexperience, time management and lack of personal contact. Space-time facility, expansion of asynchronous communication channels and creation of a collaborative learning community were among the possibilities highlighted.

Key words: Educational technology. Discussion list. Teaching and learning strategies. Constructivism. Health education. Lista de discusión como estrategia de enseñanza-aprendizaje en el postgrado en salud Las nuevas tecnologías de mediación electrónica desafían a los actores del proceso educativo y requieren la definición del modelo pedagógico adoptado. El objetivo de este trabajo es analizar la lista de discusión como estrategia de la enseñanzaaprendizaje en una propuesta educativa semi-presencial. La lista de discusión se creó en la disciplina Prácticas Educativas del curso de especialización en Educación en Salud. Los núcleos que orientan el análisis de los datos son: expectativas, posibilidades, dificultades y papel de la lista de discusión en el proceso de enseñanza-aprendizaje en la óptica de los discentes. Las dificultades se centraron en la disponibilidad de acceso a Internet, inexperiencia, administración del tiempo y ausencia de contacto personal. Respecto a las posibilidades, se destacan las facilidades espacio-temporales, la ampliación de los canales de comunicación asíncrona y la creación de una comunidad colaborativa de aprendizaje.

Palabras clave: Tecnología educacional. Lista de discusión. Estrategias de enseñanza-aprendizaje. Constructivismo. Educación en salud.

Recebido em 06/11/07. Aprovado em 22/04/08.

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debate

Promoção e propaganda de medicamentos em ambientes de ensino: elementos para o debate Marisa Palácios1 Sergio Rego2 Maria Helena Lino3

Introdução Este artigo identifica e discute algumas questões éticas e legais relacionadas à promoção e propaganda de medicamentos em ambientes de ensino de medicina. A argumentação está baseada no debate acadêmico internacional sobre a regulação da propaganda comercial de medicamentos e nos riscos das relações entre indústria e médicos e estudantes de medicina nos ambientes de ensino para a formação profissional, técnica e ética. Evidências apresentadas em diversas pesquisas realizadas no Brasil e no exterior conferem fundamento empírico às argumentações aqui desenvolvidas. Neste trabalho, utilizaremos as seguintes definições da Resolução de Diretoria Colegiada (RDC) 102, de 30/11/2000, da Anvisa: PROMOÇÃO - é um conjunto de atividades informativas e de persuasão, procedentes de empresas responsáveis pela produção e/ou manipulação, distribuição, comercialização, órgãos de comunicação e agências de publicidade com o objetivo de induzir a prescrição, dispensação, aquisição e utilização de medicamentos. PROPAGANDA/PUBLICIDADE - conjunto de técnicas utilizadas com o objetivo de divulgar conhecimentos e/ou promover adesão a princípios, idéias ou teorias, visando exercer influência sobre o público através de ações que objetivem promover determinado medicamento com fins comerciais. (Brasil, 2000)

Ao final deste artigo, em decorrência das argumentações apresentadas e em consonância com as diversas vozes que se levantam em defesa da ética na educação e na medicina, e pelo estrito cumprimento dos dispositivos regulamentares que disciplinam esta atividade, propõe-se a proibição da promoção e propaganda de medicamentos nos ambientes onde circulam estudantes ou dirigidas a estudantes de medicina, e, conseqüentemente, a proibição dessas práticas em congressos médicos. Embora este seja o foco, não será difícil para o leitor realizar as extrapolações que desejar para a relação entre a indústria, em particular a farmacêutica, e o ensino de outras profissões. Gostaríamos de assinalar, em princípio, que não

1 Médica. Área de Produção, Ambiente e Saúde, Instituto de Estudos em Saúde Coletiva, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Praça Jorge Machado Moreira, 100 sala 8. Ilha do Fundão Cidade Universitária Rio de Janeiro, RJ 21.944-970 marisa.palacios@globo.com 2 Médico. Departamento de Ciências Sociais, Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz (Ensp/Fiocruz). 3 Advogada. Comitê de Ética em Pesquisa, Ensp/Fiocruz.

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PROMOÇÃO E PROPAGANDA DE MEDICAMENTOS

estamos questionando a legitimidade da propaganda de medicamentos. Nosso foco está, em primeiro lugar, em examinar as razões das ações e situações relacionadas à propaganda de medicamentos nos ambientes de ensino e as possíveis conseqüências sobre o processo de formação do pessoal de saúde. São, portanto, questões relevantes, neste estudo, a qualidade (conteúdo e finalidade) da propaganda de medicamentos e o abuso do poder econômico das indústrias utilizado para convencer os profissionais a prescreverem seus produtos. Comecemos, portanto, a pensar na questão da propaganda.

Promoção e propaganda de medicamentos e auto-regulação Embora a propaganda de medicamentos e de outros produtos associados à saúde tenha especificidades, de maneira geral, ela tem um objetivo comum a toda e qualquer propaganda: tornar determinado produto conhecido pelas características favoráveis atribuídas por seus fabricantes e fortemente associadas ao atendimento de alguma necessidade. Como afirma Olivetto (2003), um dos mais destacados publicitários em atividade no país, “não é à toa que a maioria das marcas mais lembradas (que se destacam no prêmio top of mind) seja também aquelas que melhor anunciam”. As técnicas de propaganda e marketing influenciam as escolhas de indivíduos, e o uso dessas técnicas, associado ao poder econômico, pode gerar abusos e distorções das práticas comerciais. Por este motivo é que a sociedade, por intermédio das ações de governo e dos próprios publicitários, estabeleceu limites para as propagandas. Em nosso país, além de órgãos governamentais de fiscalização e controle das ações, serviços e produtos em saúde, contamos também com o Conselho Nacional de Auto-Regulamentação Publicitária, o Conar, órgão não governamental corporativo que busca se legitimar socialmente (por meio de intensas campanhas publicitárias) como o ator social mais confiável e eficaz para o controle da propaganda. Sua missão (Conar, 2004) é “impedir que a publicidade enganosa ou abusiva cause constrangimento ao consumidor ou a empresas”. Ou, como também podemos dizer, “impedir que a atuação dos publicitários afete as bases de convívio profissional e da concorrência, bem como assegurar um grau de proteção à sociedade” (Rego, 2004, p.3). Dessa forma, buscam assegurar a legitimidade social para garantir a auto-regulação da atividade. Diferentemente do modelo de auto-regulamentação profissional, que é uma delegação do Estado, o Conar conquistou sua autoridade com um competente trabalho de propaganda, amparado por um amplo apoio dos meios de comunicação social. Esta conquista foi feita de forma competente, embora, talvez, impertinente. Ela está relacionada à inserção no processo capitalista, já que é integrante estratégica das relações comerciais. Por outro lado, os tradicionais problemas relacionados à autoregulação não são também estranhos ao campo profissional da propaganda e marketing. Assim, embora desejável, não é razoável esperar que as corporações se posicionem acima de seus interesses corporativos. Ao considerarmos essa prática no âmbito do mercado da saúde, da assistência médico-farmacêutica, os problemas decorrentes da auto-regulação assumem uma dimensão ainda mais significativa, pois vidas podem estar sendo decididas por motivos que, muitas vezes, passam ao largo da consciência dos médicos em razão das técnicas sofisticadas de propaganda e marketing e das relações estabelecidas entre esses profissionais e os representantes farmacêuticos. Nesse sentido, as conseqüências da propaganda podem se traduzir em danos àqueles que deveriam ser os beneficiários.

Regulação de propagandas de medicamentos A auto-regulação do mercado publicitário relacionado a medicamentos e a outros produtos ligados à saúde é uma distorção de conseqüências previsíveis. No Canadá, toda propaganda ou mensagem promocional veiculada por áudio, vídeo, meios audiovisuais, eletrônicos e computacionais é objeto de avaliação prévia pelo Pharmaceutical Advertising Advisory Board (PAAB) antes de sua divulgação. Este órgão é independente da indústria e é coordenado por uma diretoria composta por representantes: da Associação de Produtores Farmacêuticos do Canadá (PMAC), dos produtores de medicamentos genéricos, do Conselho Médico, da Associação Canadense de Farmacêuticos, de Associações de 894

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Consumidores e associações de propaganda. Além disso, a PMAC dispõe de um código de autoregulamentação para as atividades dos representantes, distribuição de amostras e apoio a eventos, entre outras atividades relacionadas à promoção de novos medicamentos (PMAC Code of Marketing Practices). Como descreve Lexchin (1997), métodos como estes são insuficientes e ineficazes no controle das propagandas. Segundo ele, os conflitos entre os objetivos comerciais e as metas éticas e científicas da promoção levam a uma debilidade em seu cumprimento. Para ele, existem cinco aspectos críticos relacionados à aplicação dos códigos que precisam ser objeto de divulgação pública: mecanismos de identificação das violações dos códigos; composição dos comitês de acompanhamento; sanções para as violações dos códigos; quantidade e qualidade da informação em relatórios emitidos sobre reclamações e violações ao código; e a circulação que estes relatórios recebem. Em 2003, na Nova Zelândia - que, assim como os Estados Unidos, não tem restrição à propaganda direta de medicamentos aos consumidores -, as faculdades de medicina divulgaram um relatório que defende o fim da propaganda em seus ambientes, e alerta para a necessidade de se contrapor ao poder da indústria farmacêutica, pela defesa do interesse público, característica própria da ação do Estado (Toop et al., 2003). No Brasil, a propaganda de medicamentos é regida por uma vasta legislação, que inclui: a Lei n° 6.360/76 (Brasil, 1976), que dispõe sobre a vigilância sanitária a que ficam sujeitos os medicamentos, as drogas, os insumos farmacêuticos e correlatos, cosméticos, saneantes e outros produtos, e dá outras providências; o Decreto nº 79.094, de 5 de janeiro de 1977, que a regulamentou (Brasil, 1977); a Lei n° 6.437/77, que configura as infrações à legislação sanitária federal e estabelece as sanções respectivas (Brasil, 1977); a Lei n° 9.294/96, que dispõe sobre as restrições ao uso de propaganda de medicamentos (Brasil, 1996); o Decreto n° 2.018/96 (Brasil, 1996), que a regulamenta; e a Resolução de Diretoria Colegiada (RDC) 102, de 30/11/2000, da Anvisa (Brasil, 2000), que regulamenta as propagandas, mensagens publicitárias e promocionais de medicamentos com base nessas leis. Esta resolução, amparada nas leis e decretos pertinentes, regulamenta a propaganda, publicidade e promoção de medicamentos. Esta mesma resolução estabelece uma distinção: para medicamento de venda direta ao consumidor, sem necessidade de prescrição médica, a propaganda pode ser dirigida ao consumidor; se houver necessidade de prescrição do medicamento (com ou sem retenção de receita), a propaganda deste só poderá ser dirigida a profissionais habilitados a prescrevê-los, em veículos restritos a estes (Brasil, 2000, 1976). Esta RDC também dedicou atenção especificamente à ação dos propagandistas, determinando que representantes de laboratório “devem limitar-se às informações científicas e características do medicamento registradas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária”. Estudos científicos que apresentaremos adiante mostram que nem sempre as referências científicas apresentadas nas peças publicitárias são fidedignas. Assim, por exemplo, é permitida a propaganda, em televisão ou rádio, de analgésicos e antipiréticos, como o ácido acetilsalicílico e o acetaminofen, e não é a de antibióticos ou betabloqueadores. Mas as medidas restritivas não impedem as ações dos publicitários que buscam alternativas – testando os limites das regulamentações governamentais ou corporativas – em propagandas que direcionam o público em geral a sítios na internet ou que induzem o consumidor a pedir informações do tipo “pergunte ao seu médico”. Tais estratagemas ou artifícios, possivelmente reconhecidos como técnicas de propaganda, descumprem, sobretudo, a legislação sanitária em seu aspecto mais relevante: a proteção do bem-estar da população. Muito embora seja relevante e necessária a discussão acerca dos limites éticos e legais da propaganda de medicamentos dirigida diretamente ao consumidor, não é sobre este aspecto que nos deteremos neste artigo, mas sobre a propaganda que deve ser dirigida exclusivamente ao médico e atinge indevidamente o estudante de medicina. Barros e Joany (2002), ao avaliarem propagandas de medicamentos em três revistas médicas brasileiras de grande circulação, constataram uma acentuada carência de informações. Basta citar que encontraram informações sobre efeitos adversos em apenas 20% dos anúncios. Segundo pesquisa realizada por Nascimento (2005), que analisou cem peças publicitárias de 895


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medicamentos, a legislação brasileira não tem sido cumprida, já que 100% das amostras demonstraram que pelo menos um artigo da Resolução 102/00 da Anvisa foi descumprido.

Indústria e médicos: relações perigosas “As relações entre indústrias farmacêuticas e médicos são potencialmente perigosas e lesivas tanto para o exercício profissional quanto para os consumidores de serviços de saúde” (Rego, 2004, p.3). Pensando nessa relação, as organizações profissionais e sanitárias têm buscado, cada vez mais, estabelecer limites para essa convivência, como recentemente fez a Associação Médica Mundial (Abbasi, Smith, 2003). Já a Organização Mundial de Saúde (OMS, 1988) aprovou uma resolução para disciplinar a promoção de medicamentos. No Brasil, o Conselho Federal de Medicina, reconhecendo os potenciais riscos de patrocínios e propagandas, emitiu Resoluções que proíbem a vinculação da prescrição médica ao recebimento de vantagens materiais oferecidas por agentes econômicos interessados na produção ou comercialização de produtos farmacêuticos ou equipamentos de uso da área médica. Tais resoluções determinam que os médicos, ao proferirem palestras ou escreverem artigos que divulguem ou promovam produtos farmacêuticos ou equipamentos para uso na medicina, declarem os agentes financeiros patrocinadores, assim como a metodologia empregada nas pesquisas - quando for o caso - ou a bibliografia que serviu de base à apresentação quando esta transmitir conhecimento proveniente de fontes alheias (CFM, 2000). Foi também proibida “a inserção de matéria publicitária, vinculada à área médico-hospitalar e afim, em jornais e revistas editadas pelo Conselho Federal de Medicina e Conselhos Regionais de Medicina, como também em sítios na internet” (CFM, 2002). O que o CFM está buscando com essas proibições? Entendemos que, além de regulamentar, em seu âmbito de atuação, as práticas profissionais dos médicos relacionadas à propaganda de medicamentos, o Conselho pretende também estabelecer um marco divisório da sua independência em relação à poderosa indústria farmacêutica, que parece onipresente no universo profissional do médico. Assegura-se, também, que não seja interpretado como endosso a qualquer produto anunciado numa eventual propaganda, e destaca a preocupação com os potenciais conflitos de interesse associados às práticas clínicas e em pesquisa. A importância que a indústria atribui à propaganda de seus produtos está expressa na distribuição de seus gastos, sobre os quais oferecemos duas informações convergentes, embora de fontes diferentes. A organização nacional de consumidores Families USA Foundation (Lemmon, 2001), ao analisar os gastos das indústrias que produziram os cinqüenta medicamentos mais consumidos por idosos nos Estados Unidos, concluíram que os gastos dessas empresas com administração e propaganda chegaram a duas vezes e meia o investido em pesquisa e desenvolvimento. Seus lucros ultrapassaram em 60% o que foi investido em pesquisa e desenvolvimento. Já Barros (2004) informa que, em 2000, 30% dos gastos dessas indústrias se destinaram à propaganda e à administração, enquanto 12% foram para pesquisa e desenvolvimento. Se esses recursos também incluem a propaganda para o público em geral, é fato que parte deles é destinada ao público especializado. Entretanto, parece que a maioria dos médicos acredita que sua integridade profissional está imune às ações propagandísticas, e que a ação dos representantes farmacêuticos, os brindes, patrocínios ou financiamentos da indústria não influenciam sua prática ou, pelo menos, a qualidade dessa prática. Barros e Joany (2002, p.894), a esse respeito, afirmaram que “dispêndios tão significativos (da ordem de 2025% do faturamento global) realizados com a propaganda só podem explicar-se no fato de que há o esperado retorno em termos de vendas e lucros”. Jesus (2000) apresenta alguns depoimentos de profissionais brasileiros sobre o tema, mostrando, no entanto, que alguns reconhecem como inapropriado o contato com representantes da indústria farmacêutica, e não os recebem. Em artigo publicado em 2007, Fagundes et al. (2007) apresentam dados de pesquisa com cinqüenta médicos (25 clínicos e 25 cirurgiões) em que 98% deles informaram receber visitas de propagandistas da indústria farmacêutica, sendo que 12% dos entrevistados recebiam visitas diárias, e 86% receberam brindes durante as visitas. Outros dados importantes do estudo: 14% dos entrevistados informaram que prescrevem medicamentos em função dos prêmios; 68% informaram acreditar que haja uma influência direta da propaganda sobre 896

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as prescrições, e 68% acreditam haver incorreções ou inverdades nas peças publicitárias. Bermudez (2000) defende o fim do assédio abusivo dos representantes farmacêuticos aos profissionais. Haverá, de fato, uma razão para se defender o banimento dos propagandistas do convívio com os médicos, limitando a propaganda à mídia impressa ou às peças de propaganda estática, como faixas, cartazes e folhetos? Será que isso resolve o problema ou, ao menos, parte dele? Vejamos um pouco do que tem sido publicado sobre esse tema pelo mundo. Wazana (2000) assinala que o atual nível de relação entre os médicos e a indústria farmacêutica afeta o comportamento daqueles e deve ser objeto de ações políticas e educacionais. Ao analisar 16 estudos que descrevem e discutem as relações entre a indústria farmacêutica e os médicos, observa que esta relação começa na universidade e se mantém após a graduação, com a média de quatro encontros mensais com representantes farmacêuticos. Dependendo de seu status profissional, os médicos costumam participar de almoços financiados pela indústria, recebem presentes e brindes, têm custeadas viagens para congressos e cursos de reciclagem patrocinados. A opinião corrente, e errada, entre os médicos, é de que os representantes farmacêuticos oferecem informação acurada sobre suas drogas e seriam capazes de oferecer informação acurada sobre drogas já existentes ou alternativas. A maioria dos médicos nega que presentes e brindes possam influenciar seu comportamento, embora tenham dúvidas se esta prática é ética e admitam que seus contatos com os representantes farmacêuticos seriam reduzidos na ausência destes benefícios. Entretanto, Howard (2000) contesta firmemente as conclusões de Wazana (2000) de que os médicos podem ser comprados com brindes e presentes baratos, e que não teriam inteligência para distinguir entre o que é um fato e uma propaganda. Steinman (2000) e Pinto, Pinto e Barber (1998) apontam que a maioria dos médicos considera que a propaganda de medicamentos realizada diretamente para a população também é capaz de influenciar negativamente o ato da prescrição médica, mas não têm o mesmo sentimento em relação aos médicos e ao recebimento de presentes e brindes da indústria. Eles apontam que a maioria dos médicos acredita que os presentes não afetam a prescrição deles, mas crêem que os presentes influenciam a prescrição de seus colegas. Westfall, McCabe e Nicholas (1997), ao analisarem a questão da distribuição e uso de amostras grátis pelos médicos, concluíram que só existe uma razão para a distribuição de amostras grátis pela indústria: mudar o comportamento do médico na hora de prescrever um medicamento. Segundo eles, a questão fundamental não seria se o médico pode ou não ter relacionamento com a indústria, mas, sim, se a relação do médico com o paciente deve sempre ter precedência. Entendem que prescrever uma medicação pela conveniência de ter uma amostra não é a melhor maneira de exercer a medicina para o paciente. A pertinência dessas conclusões para o nosso contexto pode ser reforçada ao considerarmos que a amostra disponível pode não ser suficiente para todo o tratamento, além de ser, quase como uma regra, mais cara que o medicamento já disponível. De acordo com Molinari, Moreira e Conterno (2005), parte da classe médica reconhece que se sente pressionada a prescrever medicamentos de laboratórios farmacêuticos quando recebe brindes e amostras grátis, e que teme não prescrevê-los quando recebe benefícios maiores. Segundo eles, muitos médicos se acham imunes à influência comercial. No entanto, outros estudos revelam que aceitar presentes e hospitalidade da indústria farmacêutica pode comprometer o julgamento acerca da informação médica e a subseqüente decisão sobre o cuidado do paciente. Em vista disso, ressaltam a importância de os médicos (profissionais habilitados) explicitarem os potenciais conflitos de interesses no desenvolvimento e publicação de seus estudos clínicos. Alertam que a Associação Médica Mundial desencoraja a relação estreita entre médico e indústria farmacêutica, e tentam estabelecer regras mais claras para esta relação. Aqui cabe uma referência especial acerca dessa forma de propaganda - as amostras grátis. Não há dúvida de que é uma forma bastante eficaz de propaganda. Afinal, que outra razão a indústria poderia ter para distribuir amostras de medicamentos? Existem, sem dúvida, os que procuram justificativa social para o recebimento das amostras, alegando que esses medicamentos serão repassados a pessoas pobres, com dificuldade em adquiri-los. Ora, o tratamento de pessoas pobres precisa ser levado mais a sério. Esta alternativa não parece trazer benefícios ao paciente, posto que se está oferecendo um 897


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tratamento que não é, necessariamente, melhor que aquele que não dispõe de amostras grátis. E, mesmo que oferecesse volume de medicamento suficiente para o tratamento completo do paciente (o que não é habitual), o médico estaria divulgando, para a população, aquele medicamento como adequado apenas porque se dispõe de amostra grátis. Aliás, não há quem possa acreditar que exista alguma coisa gratuita numa relação comercial. Mas alguém poderia argumentar que aceitar ou não amostras grátis é algo sem significado efetivo para a mudança de prescrições, ou que é irrelevante que sejam distribuídos brindes, ou ainda que o assédio dos propagandistas tem uma razão de ser: divulgar os estudos realizados e atualizar os médicos quanto às inovações, já que quem investe em tecnologia é a indústria; ou que o mais relevante é a quantidade de evidências sistematizadas que a propaganda oferece, fornecendo, assim, base científica para a mudança de prescrição. Entretanto, a qualidade da informação presente nas propagandas farmacêuticas também vem sendo bastante criticada, como mostram os trabalhos apresentados a seguir.

A qualidade das informações da propaganda Villanueva et al. (2003), por exemplo, analisaram as propagandas de anti-hipertensivos e redutores de colesterol publicadas em seis revistas médicas espanholas de 1997 que tiveram, ao menos, uma referência bibliográfica. Identificaram 264 propagandas de antihipertensivos e 23 de redutores de lipídios, sendo que apenas 125 peças possuíam alguma referência. Não conseguiram verificar 18% delas por serem trabalhos monográficos e não publicados. Do total dos trabalhos, 63% estavam publicados em periódicos de fator de impacto alto; sendo que 84 referências obtidas eram de ensaios clínicos randomizados. Em 45 propagandas a afirmação promocional não era respaldada pela referência. Concluíram que os médicos devem ser cautelosos em aceitar as informações oferecidas pelas propagandas, ainda que estas possuam referências bibliográficas. (Rego, 2004, p.4)

Evidenciou-se que, com freqüência lamentável, a propaganda de medicamentos não se pauta pelo rigor ético e científico. Ainda sobre a informação disponível nas propagandas de medicamentos, Cooper et al. (2003), ao estudarem a qualidade e a quantidade dos diagramas presentes em propagandas publicadas em dez periódicos médicos norte-americanos em 1999, observaram que a quantidade de informação não qualificada para uma propaganda de medicamento (incluindo tipo de agregação de dados formalmente proibida pela FDA) está presente em mais de 50% das propagandas. Tanne (2004) divulgou os resultados de um estudo realizado por Kaiser et al. (2004), do Institute for Evidence-Based Medicine, um instituto de pesquisa privado e independente situado em Cologne, na Alemanha. Este estudo avaliou 175 revistas que continham informações sobre 520 drogas enviadas pelos Correios ou entregues diretamente a 43 médicos generalistas daquela cidade. Concluíram que apenas 6% do material de propaganda dos medicamentos analisados eram amparados em evidências. Pesquisadores financiados pela indústria farmacêutica podem introduzir, em suas análises, vieses de interpretação que, eventualmente, não são percebidos pelos revisores especialistas, e já dispomos de evidências disso. Kjaergard e Als-Nielsen (2002) buscaram identificar se havia algum tipo de associação entre conflitos de interesse declarados e os resultados dos ensaios clínicos. Assim, revisaram os resultados de pesquisas clínicas randomizadas publicadas no British Medical Journal (BMJ) de janeiro de 1997 a junho de 2001. Concluíram que os ensaios clínicos randomizados analisados favoreceram de forma significativa as intervenções experimentais quando o conflito de interesses declarado era de financiamento. Outros tipos de conflitos de interesse não estavam associados de forma significativa às conclusões dos autores. Als-Nielsen et al. (2003), em estudo publicado no Journal of American Medical Association (Jama), após analisarem ensaios clínicos incluídos em metanálises da Cockrane, observaram que as conclusões em pesquisas financiadas por organizações lucrativas podem ser mais positivas devido a uma interpretação enviesada dos resultados do ensaio. Segundo suas pesquisas, os dados contidos nas tabelas desses artigos são consistentes, mas as análises dessas mesmas tabelas são enviesadas. Suas conclusões 898

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os levaram a recomendar que os leitores e os profissionais encarregados do peer-review estejam atentos à confrontação dos dados apresentados pelas tabelas e às análises realizadas pelos autores. Ou seja, o sistema de revisão de artigos científicos tem sido pouco eficiente na identificação de artigos que não apresentem a correta interpretação de dados obtidos nas pesquisas científicas. Além da propaganda em veículos destinados a médicos, as informações sobre medicamentos são veiculadas por meio de guias terapêuticos. No Brasil, Barros (2000) comparou as informações contidas no guia terapêutico mais utilizado, o Dicionário de Especialidades Farmacêuticas (DEF), patrocinado pelos fabricantes, com outros dois americanos, para as 44 especialidades farmacêuticas mais utilizadas no Brasil. Seus resultados apontam que, no DEF, as informações indispensáveis à prescrição, segundo os critérios da OMS, estão ausentes na ordem de 65% para 8% e 10% nos dois guias americanos comparados. A corrida das indústrias farmacêuticas pelo sucesso financeiro e a contribuição dos profissionais da saúde para este fim nos fazem considerar a urgência de refletirmos e compartilharmos da esperança de Thawani expressa em editorial do Indian Journal of Pharmacology: [...] é esperado que no futuro possamos ter uma nova geração de médicos que exijam que toda promoção de medicamentos seja ética. A menos que essa exigência venha de estabelecimentos e médicos que se recusem a aceitar presentes generosos, a participar de almoços e jantares patrocinados por companhias farmacêuticas, e a participar de programas de educação continuada pagos pela indústria, não poderemos jamais ter a expectativa de que a indústria será auto-regulada. (Thawani, 2002, p.227-8)

A vigilância das propagandas e o olhar crítico sobre elas ainda não são traços da cultura médica profissional, seja nos Estados Unidos, na Índia ou no Brasil. Podemos identificar, em um tipo de jornalismo científico, um comportamento facilmente reconhecível como uma simples peça de propaganda. São artigos que, a pretexto de apresentarem alguma informação de utilidade pública relacionada ao lançamento de um novo medicamento no mercado, trazem, de forma acrítica, informações fornecidas pelo laboratório farmacêutico que o produz. Um exemplo deste tipo de reportagem é a manchete da seção de saúde da revista Veja: “Sempre alerta: há uma nova versão de um remédio contra a impotência que não requer sexo com hora marcada” (edição 2.018, de 25/07/2007, disponível em http://veja.abril.com.br/250707/p_103.shtml). Sabemos que muitas dessas reportagens são feitas a convite da indústria que produz o medicamento do qual a reportagem trata. O fato de, em algumas ocasiões, haver o alerta de que “o jornalista viajou a convite do laboratório x” não ameniza o problema, já que não é explicitado ao leitor o real significado deste informe, nem as possíveis conseqüências de uma situação de conflito de interesses. Como se pode perceber, a despeito da existência de uma regulamentação específica, é preciso que o poder do Estado se faça sentir na punição a todos os abusos, já que parece óbvio que uma organização como o Conar não atua neste tipo de caso.

Possíveis conseqüências sobre o processo de formação e a qualidade técnica do profissional formado O assédio da indústria sobre os profissionais da medicina pode comprometer também a formação profissional dos estudantes de medicina. Uma pesquisa de Palmisano e Edelstein (1980), citada por Wazana (2000), aponta que 85% dos estudantes de medicina acreditavam que era impróprio para políticos aceitarem presentes, enquanto apenas 46% consideravam inadequado que eles próprios recebessem presentes de mesmo valor da indústria farmacêutica. Ou seja, entendiam que políticos podem ser influenciados e têm sua integridade ameaçada por presentes, mas não eles, os estudantes. Os estudantes de medicina não percebem que os médicos, como os políticos, são atores sociais cuja credibilidade repousa na confiança que a sociedade tem de que tomarão suas decisões sempre com base nos melhores e maiores interesses da sociedade. Isso poderia expressar apenas imaturidade estudantil se também não fosse observado entre profissionais, como apresentado a seguir. Lurie et al. (1990), em estudo sobre o resultado da interação entre professores e médicos do corpo COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.12, n.27, p.893-905, out./dez. 2008

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clínico com representantes farmacêuticos, encontraram evidências de que tal contato está relacionado com mudanças na prescrição. Sugerem que se reconheça a influência dos propagandistas nos centros de ensino médico e se avaliem suas atividades de forma apropriada. Vainiomäki, Helve e Vuorenkoski (2004) realizaram um survey nacional na Finlândia sobre o efeito da propaganda farmacêutica em estudantes de medicina. Observaram que a maioria dos estudantes considera a propaganda farmacêutica uma fonte importante de informação sobre medicamentos. E que, embora não sejam favoráveis a algum controle sobre o contato entre representantes farmacêuticos e estudantes, acreditam que tais contatos afetarão suas ações como prescritores de medicamentos no futuro. Esses autores consideram importante que as escolas médicas regulem de alguma forma esses contatos. Tendo este quadro geral como pano de fundo, pensemos na situação enfrentada por nossos estudantes de graduação: de um lado, as aulas de bioquímica e farmacologia, procurando contribuir para a compreensão dos mecanismos de ação e interação das substâncias químicas no organismo humano e suas possíveis utilizações terapêuticas; de outro, o propagandista, com informações sintéticas, objetivas (nem sempre confiáveis, como estamos vendo), relacionando diretamente um produto a uma doença e prometendo curá-la ou controlá-la. A necessidade que os jovens estudantes têm de controlar suas incertezas e sua insegurança, e seu desconhecimento sobre as estratégias e práticas da indústria farmacêutica na promoção de seus produtos, os deixam extremamente vulneráveis a essa ação, possibilitando riscos potenciais inaceitáveis para os futuros clientes desses estudantes e prejudicando seriamente sua formação. E não há, atualmente, restrições para a ação dos propagandistas no ambiente universitário no Brasil e, praticamente, em todo o mundo, muito menos em relação ao contato com esses estudantes. Zipkin e Steinman (2005) realizaram uma revisão temática, por meio do Medline, em artigos publicados em língua inglesa, de 1966 a 2004, sobre treinamento médico e indústria farmacêutica. Constataram tanto a presença significativa, em todos os aspectos, da indústria farmacêutica em todos os momentos da formação médica, como diversas iniciativas tomadas por diferentes escolas médicas para tentar interferir nesta relação. Um modelo de ação que tenta interferir na resultante dessa interação é a proposta de introdução de pequenas ações educativas que preparem os estudantes para lidar com a pressão dos representantes farmacêuticos. Hopper, Speece e Musial (1997) observaram melhora na percepção de médicos residentes sobre aspectos éticos e propagandísticos relacionados à promoção de medicamentos após uma única sessão de exposição teórica seguida de debates. Já Wofford e Ohl (2005) relatam mudanças no conhecimento e atitudes de estudantes de medicina após a participação em um workshop obrigatório, durante o terceiro ano do curso médico, sobre problemas relacionados à propaganda de medicamentos e à prática clínica. Embora seja razoável considerar que intervenções educativas neste campo são bem-vindas, parece muito improvável que ações pontuais sejam suficientes para preparar estudantes para lidar de forma crítica e autônoma com a moderna propaganda. Assim, a alternativa proposta e aprovada pelo Conselho Deliberativo da Associação Brasileira de Educação Médica, durante o 43º Congresso Brasileiro de Educação Médica, realizado em Natal em 2005 (Abem, 2005), parece bem mais razoável: “recomendar às Escolas Médicas e aos Hospitais Universitários a proibição da atuação dos propagandistas da indústria farmacêutica nos hospitais universitários ou em qualquer espaço relacionado ao ensino da medicina”. A proibição da presença de representantes farmacêuticos no interior de unidades de saúde destinadas ao ensino é uma medida - drástica sem dúvida - que foi adotada na Universidade de McMaster em 1992. Como afirma Rego (2004, p.4): McCormick et al. (2001) estudaram o efeito em longo prazo desta política, que restringiu o contato entre internos de medicina e residentes com representantes farmacêuticos. Eles compararam atitudes e comportamentos de médicos que haviam sido submetidos e não submetidos a essa política em sua formação, procurando determinar se o comportamento de cada grupo seria ou não semelhante. Os resultados mostraram que médicos formados sob a orientação dessa política tinham uma tendência menor a considerarem as informações de representantes farmacêuticos benéficas para orientar sua prática do que os que não se

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formaram sob esta diretiva. Concluíram que restringir o acesso de representantes da indústria aos internos e residentes parece afetar as futuras atitudes e comportamentos dos médicos.

Destaque-se que, no Brasil, os representantes farmacêuticos fazem contato com estudantes desde o início do ensino profissional, e não apenas no final. A proteção dos consumidores finais implica não só proibir a propaganda de medicamentos direta ao consumidor, mas também assegurar aos médicos o acesso a informações confiáveis sobre os medicamentos, e o fim das pressões não convencionais para incorporar novos medicamentos em seu rol de prescrições. A experiência desenvolvida na Universidade de McMaster sugere fortemente que o controle desta influência dos recursos de propaganda e marketing deve ser iniciado durante o processo de formação profissional. Nesse sentido, é indispensável entender que é imperativo proibir, de fato e de direito, o contato e a ação propagandista sobre estudantes, especialmente pela maior suscetibilidade deles em decorrência de sua pouca informação sobre medicamentos e sobre a própria ação dos propagandistas. Os efeitos deletérios desta ação são sentidos durante toda a vida profissional, seja pela menor crítica com que encaram o material de propaganda distribuído, seja pelo conflito de interesses que pode se manifestar (Rogers, Mansfield, 2004). Sem dúvida, a função dos profissionais e educadores da área da saúde é proteger tanto os pacientes como seus alunos e, neste enfoque especial que aqui oferecemos, os estudantes de medicina. E protegê-los, neste caso, significa nos preocuparmos com sua formação moral e ética, fortemente influenciada pelos acontecimentos durante a graduação, contribuindo para o desenvolvimento de sua capacidade de pensar criticamente e de tomar decisões autônomas. Dentre tantas coisas a fazer - algumas viáveis de imediato, outras nem tanto -, a mais significativa e viável é trabalhar para a formação de médicos mais alertas sobre a influência das corporações farmacêuticas em suas vidas e atividades profissionais. Assim, com programas dirigidos fortemente ao desenvolvimento da consciência crítica, podemos contribuir para a melhoria da qualidade da prescrição e do cuidado com o paciente, enquanto também contribuímos para a melhoria da qualidade de vida de nossos estudantes e futuros colegas. Para isto, entendendo o óbvio, ou seja, que os estudantes de medicina ainda não são médicos, conclui-se que não apenas a propaganda para estudantes é eticamente inaceitável como legalmente proibida. Entretanto, esta necessária interdição não pode ser a única ação a ser tomada, devendo-se incluir nos cursos de graduação e pós-graduação a temática aqui abordada, de forma a reforçar o profissionalismo dos recém-formados. Da mesma forma, deve-se repensar e rediscutir a realização de eventos científicos com apoio da indústria farmacêutica, devido à enorme dependência financeira que temos e que transforma os espaços de circulação de nossos congressos em patéticos salões de distribuição de brindes, com médicos desempenhando o triste papel de índios atrás de espelhos brilhantes. Ou ainda pior, quando é a indústria financiadora quem estabelece as pautas dos eventos, as principais conferências e discussões das reuniões científicas. É preciso estabelecer critérios rigorosos para a propaganda ética desses produtos também entre profissionais. Mas essas não são as únicas ações desejáveis ou necessárias. A sociedade em geral e, em especial, os profissionais da área da saúde precisam se mobilizar para cobrar, de seus pesquisadores e autores, transparência em suas relações com a indústria farmacêutica (e demais fontes de financiamento) – ou seja, que eles declarem, de forma expressa e clara, no corpo dos artigos e sempre que divulguem estudos relacionados a produtos de empresas com as quais mantenham algum tipo de relação comercial, as características e os fundamentos destas relações.

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Colaboradores Marisa Palácios e Sergio Rego participaram da revisão bibliográfica, redação da primeira versão do artigo e revisão final. Maria Helena Lino participou da revisão bibliográfica dos aspectos jurídicos relacionados ao tema, de sua incorporação ao corpo do artigo e da revisão da primeira versão.

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debate

A indústria farmacêutica utiliza a propaganda para a promoção de seus produtos. Os de uso controlado só podem ter a propaganda dirigida a profissionais habilitados a prescrevê-los ou dispensá-los. Este artigo faz uma ampla revisão de artigos científicos que discutem questões éticas e legais acerca da promoção e propaganda de medicamentos em ambientes de ensino médico. Conclui-se que não se justifica a autoregulamentação da propaganda de medicamentos e que existem evidências suficientes de como o poder da indústria farmacêutica é capaz de influenciar as decisões no âmbito da relação médico-paciente, sendo a promoção e a propaganda um de seus instrumentos. Defende-se sua total proibição em ambientes de ensino, bem como a incorporação da temática na formação dos estudantes. Como a legislação vigente permite a propaganda de medicamentos vendidos sob prescrição apenas a médicos e farmacêuticos, destaca-se que tal propaganda é ilegal quando atinge estudantes de medicina e de farmácia.

Palavras-chave: Ética. Propaganda. Marketing. Conflito de interesses. Estudantes de medicina. Educação médica. Drug promotion and advertising in teaching environments: elements for debate The pharmaceutical industry uses advertising to promote its products. Controlled drugs can only be advertised to professionals who are licensed to prescribe or dispense them. This paper makes an extensive review of scientific articles that discuss the ethical and legal implications of drug promotion and advertising in medical teaching environments. It concludes that self-regulation of drug advertising is not justified and that there is sufficient evidence showing how the power of the pharmaceutical industry is capable of influencing decisions made within the physician-patient relationship, in which promotion and advertising are among the tools used. This paper advocates complete prohibition of drug promotion and advertising in teaching environments, and the incorporation of this issue in students’ education. Given that the current legislation permits advertising of prescription drugs only to physicians and pharmacists, it is emphasized that such advertising is illegal when it reaches medical and pharmacy students.

Key words: Ethics. Advertising. Marketing. Conflict of interests. Medical students. Medical education. Promoción y propaganda de medicamentos en ambientes de enseñanza: elementos para el debate La industria farmacêutica utilizada la propaganda para la promoción de sus productos. Los de uso controlado sólo pueden tener la propaganda dirigida a profesionales habilitados a prescribirlos o despacharlos. Este artículo hace una amplia revisión de artículos científicos que discuten cuestiones éticas y legales acerca de la promoción y propaganda de medicamentos en ambientes de enseñanza médica. Se concluyó que no se justifica la auto-reglamentación de la propaganda de medicamentos y que existen evidencias suficientes de como el poder de la industria farmacéutica es capaz de influir en las decisiones en el ámbito de la relación médico-paciente, siendo la promoción y la propaganda uno de sus instrumentos. Se defiende su total prohibición en ambientes de enseñanza, así como la incorporación de la temática en la formación de los estudiantes. Como la legislación vigente permite la propaganda de medicamentos vendidos bajo prescripción solamente a médicos y a farmacéuticos, se resalta que tal propaganda es ilegal cuando alcanza a los estudiantes de medicina y farmacia.

Palabras clave: Ética. Propaganda. Mercadeo. Conflicto de intereses. Estudiantes de Medicina. Educación médica. Recebido em 22/10/07. Aprovado em 02/05/08.

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Educação médica: negócio da universidade, não da indústria farmacêutica Medical education: university business, no of the pharmaceutical industry Educación médica: negocio de la universidad, no de la industria farmacéutica

Elma Lourdes Campos Pavone Zoboli1

A vinculação das escolas médicas com a indústria farmacêutica é intricada e polêmica, como bem retrata o artigo “Promoção e propaganda de medicamentos em ambientes de ensino: elementos para o debate”. Inclui várias formas, como: financiamento para projetos de pesquisa; patrocínio de eventos científicos e de educação; distribuição de brindes, viagens e jantares - mas o propósito é um: promover seus produtos. Chegam mesmo a oferecer módulos optativos em cursos de medicina. Artigo de Stanley, Jackson, Barnett (2005) analisa disciplina oferecida para estudantes de graduação de uma escola médica na Inglaterra, em conjunto com uma companhia farmacêutica local, com o intuito de informar, aos futuros responsáveis pelas prescrições, sobre a complexidade e o custo para se desenvolverem novas drogas terapêuticas, propiciando a compreensão da importância de se avaliarem novas terapias e encorajando a futura colaboração com a indústria. Parece-nos que, sob a roupagem de disciplina, esconde-se uma agressiva estratégia de marketing junto aos estudantes de medicina que,além de perpetuar a relação com a indústria na pesquisa e incentivo do consumo, destina-se a justificar os altos preços dos medicamentos, como se estes, de fato, decorressem dos investimentos em pesquisa e desenvolvimento (P&D). As despesas com P&D deveriam ser comparadas com as de marketing e administração, que somam o dobro. Isso sem contar que, como não fica claro o que conforma ‘P&D’ nos balanços contábeis, podem estar aí embutidas atividades de marketing. Uma pista disso é o fato de uma proporção significativa dos ensaios clínicos ser composta por estudos de fase IV. Outra é que a parte mais criativa, menos segura e prolongada do processo de P&D, que é o aprendizado sobre a doença, é realizada com financiamento público. Somente um em cada cinco mil candidatos a medicamento chega ao mercado, entretanto, mesmo que os testes clínicos sejam a parte mais dispendiosa, a maioria desses candidatos é descartada logo no início do processo, antes que se invista muito dinheiro neles. Na fase clínica, financiada pelos laboratórios, a relação é de uma aprovação para cada cinco candidatos. Segundo depoimento de executivo de uma grande indústria farmacêutica, reproduzido por Angell (2008), o preço dos medicamentos não é determinado pelos custos de pesquisa, mas pela utilidade na prevenção e tratamento de doenças, ou seja, o médico, o paciente e quem paga pelos

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Enfermeira. Escola de Enfermagem, Universidade de São Paulo. Av. Dr. Cerqueira César, 419, São Paulo, SP. 05.403-000 elma@usp.br 1


ZOBOLI, E.L.C.P.

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debate

remédios determinarão seu valor de mercado. Assim, para Angell (2008), fica patente que o setor cobrará quanto o mercado suportar, o que tem pouco a ver com os custos de P&D. A inserção da indústria na educação médica, com um bombardeamento de propagandas desde os primeiros anos da graduação, levando os futuros médicos a crerem que a única terapia possível para doenças é a medicamentosa, pode contribuir para aumentar o valor de uso dos medicamentos, fazendo com que o mercado suporte preços cada vez maiores. Ainda cabe ressaltar que, talvez, a indústria farmacêutica não seja tão inovadora quanto se quer fazer crer. Dos 78 medicamentos aprovados pela U.S Food and Drug Administration (FDA) em 2002, somente 17 continham novos princípios ativos, e apenas sete foram classificados como aperfeiçoamentos de medicamentos mais antigos, perfazendo 71 que foram considerados variações não superiores aos medicamentos à venda (Angell, 2008). Estaria aqui uma estratégia de marketing? Fazer crer que é mais inovadora do que em realidade, para, assim, justificar de maneira mais nobre seus altos preços e lucros? Embora não tenha sido diretamente demonstrado, não parece descabido entender que os estudantes e residentes de medicina, devido sua relativa inexperiência, podem representar um grupo particularmente vulnerável a esta ação de marketing predatório da indústria farmacêutica (Montague, Fortin-VI, Rosenbaum, 2008). Assim, concordamos com a defesa da total proibição desta atividade em ambientes de ensino, como proposto por Marisa Palácios, Sergio Rego e Maria Helena Lino, no texto que abre o presente debate (Palácios, Rego, Lino, 2008). Em 2001, nos EUA, os laboratórios farmacêuticos pagaram mais de 60% dos custos da educação médica continuada, contratando empresas que anunciam seus serviços para os laboratórios, propagandeando: “A educação médica é uma ferramenta poderosa, que pode levar sua mensagem a públicos-chave e fazer com que estes públicos tomem iniciativas que beneficiam seu produto” (Angell p.155). Se a educação médica continuada constitui oportunidade ímpar para influenciar a rotina de prescrição, quanto mais a aplicação desta estratégia junto ao estudante de medicina. Como os médicos desenvolvem seus hábitos profissionais e de prescrição durante a graduação e residência, este período é particularmente fértil para as intervenções educacionais (Montague, Fortin-VI, Rosenbaum, 2008). É verdade que os estudantes ainda não respondem por suas prescrições de maneira autônoma, mas o importante é como o contato com a indústria farmacêutica e seus representantes acaba por moldar os valores e as atitudes do futuro médico, vulnerabilizado tanto por sua inexperiência quanto pela crença falaciosa de que são imunes à influência da indústria (Wofford, Ohl, 2005). A forma de envolver é bastante sedutora. Os representantes de laboratórios, jovens dinâmicos e simpáticos, convidam internos e residentes para almoçar e, enquanto isso, ficam por perto batendo papo sobre seus medicamentos. Essa estratégia de “comida, lisonja e amizade” cria nos jovens e futuros médicos, com uma longa vida de prescrições pela frente, um sentimento de reciprocidade, de gratidão a essas pessoas agradáveis que estão sempre lhes presenteando (Angell, 2008). A indústria farmacêutica existe para vender medicamentos, é difícil crer que sua entrada na educação médica não se cerque de tendenciosidades, hipérboles e desinformação (Angell, 2008). Felizmente, parece que, aos poucos, está se criando um consenso sobre a influência da indústria na prescrição médica e se começa a questionar a prática de os médicos, residentes e estudantes de medicina receberem presentes, patrocínios e brindes. A Comissão Jurídica e de Ética da Associação Médica Americana tem recomendado que tanto os médicos, individualmente, quanto os hospitais de ensino não aceitem financiamento dos laboratórios farmacêuticos para as atividades educativas dirigidas aos estudantes e médicos, limitando ao máximo, por meio de medidas internas, as atividades da indústria junto a este público (Relman, 2008). Isso parece pouco e insuficiente para conter uma ação tão predatória. Concordamos com Palácios, Rego e Lino que “é preciso estabelecer critérios rigorosos para a propaganda ética desses produtos” entre os profissionais, com a sociedade em geral cobrando transparência da relação dos médicos e das escolas médicas com a indústria farmacêutica. A universidade é a responsável pela educação médica, e não o laboratório. Há diferença entre educação profissional e informação sobre novos medicamentos, distribuída aos médicos e estudantes com propósito de propaganda e promoção. Promover seus novos produtos faz parte do trabalho da indústria. Ela pode até chamar essa promoção de educação, mas não é. Trata-se de marketing (Relman, 2008). 906


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Quando as universidades se deixam influenciar pelas benesses da indústria a ponto de comprometer seus interesses primários, de uma boa educação para os futuros profissionais, tem-se aí, claramente, um conflito de interesses. Este configura uma situação na qual os interesses secundários indevidamente influenciam o julgamento profissional de uma pessoa ou entidade no que diz respeito aos seus interesses primários, determinados pelos deveres profissionais. Na saúde, seriam: saúde e bem-estar do paciente; integridade da pesquisa e boa educação dos profissionais (Thompson, 1993). A educação é uma intervenção no mundo que, além do conhecimento dos conteúdos, implica o esforço dialético da reprodução da ideologia dominante e seu desmascaramento (Freire, 1996). Educar na responsabilidade, fazer com que as pessoas tenham uma visão responsável do mundo e da vida é grande pendência das nossas sociedades. É preciso formar pessoas adultas, maduras, razoáveis, prudentes e responsáveis. O que não é possível sem uma atenção especial ao âmbito dos valores (Gracia, 2006). Essa necessidade se torna mais urgente quando se trata da formação de profissionais que irão lidar com a vida das pessoas. Ao nos reconhecermos capazes de observar, comparar, avaliar, deliberar, escolher, decidir, intervir, romper, transformar, optar, enfim, de atribuir sentidos, nos fazemos seres éticos, cidadãos morais. É claro que isto abre caminho para a transgressão da ética, que deve ser vista como possibilidade, mas jamais como direito. Entretanto, não podemos ficar de braços cruzados diante dessa possibilidade. Não podemos absorver as transgressões, naturalizando-as num fatalismo imobilizador, numa atitude irresponsável reiterativa da perversidade que leva à superposição do mercado ao humano e gera injustiças inaceitáveis. Antes, temos de condená-las. Resta saber o que queremos: educar para a manutenção da situação presente das sociedades ou para sua transformação? E na saúde? Queremos manter o atual quadro da atenção e educação ou transformá-lo?

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debate

Promoção e propaganda de medicamentos em ambientes de ensino Drug promotion and advertising in teaching environments Promoción y propaganda de medicamentos en ambientes de enseñanza

José Augusto Cabral de Barros1

Na sociedade moderna, o medicamento vem crescentemente assumindo funções que extrapolam muito o caráter farmacoterapêutico, em virtude de crenças e valores que influenciam as formas de pensar e agir quando se está doente. Sendo prescrito, vendido e usado de forma inadequada, sobretudo quando há alternativas não farmacológicas ou quando não se agiu de forma preventiva, promovendo a saúde também pela implementação de políticas sociais que ampliem a qualidade de vida da população, os medicamentos podem ter efeitos adversos e impor gastos desnecessários aos indivíduos ou aos governos (Barros, 2004, 2002). Ao tratar o medicamento como uma mercadoria indistinta das demais, as técnicas publicitárias vêm se sofisticando e utilizando instrumentos que reforçam o processo de medicalização. (Barros, 2008a, 2008b). Nesse contexto, vêm se multiplicando as denúncias de pressão dos fabricantes não só sobre os profissionais que prescrevem medicamentos ou estão em fase de formação para fazê-lo, mas também sobre legisladores, pesquisadores e autoridades reguladoras. Entre essas denúncias, destaquem-se o texto de Marcia Angell (2004), ex-editora-chefe do New England Journal of Medicine, e a louvável iniciativa do Comitê Internacional de Editores de Revistas Médicas, que estabelece princípios éticos - discutidos e aperfeiçoados desde o final dos anos 1970 - para normas de publicação; em 2001 (http://www.icmje.org/sponsor.htm) 13 editores de revistas de renome internacional firmaram um documento em que se manifestava a preocupação com a qualidade dos ensaios clínicos publicados e com a ingerência dos fabricantes na liberdade dos pesquisadores (International Committee of Medical Journal Editors, 2008). A Association of American Medical Colleges (AMC), entidade que congrega faculdades de medicina nos EUA, elaborou um relatório em que chama a atenção para os riscos e conflitos de interesses entre a indústria e a academia, sugerindo formalmente a proibição de brindes, a centralização do manejo de amostras grátis (se permitidas), a restrição das visitas de propagandistas a médicos a horários fora do turno assistencial e eventuais sessões de divulgação científica com a presença desses agentes, mas com a possibilidade de debate com pessoal qualificado da instituição acadêmica (Report of the AAMC Task Force on Industry Funding of Medical Education, 2008). Essas oportunas recomendações ultrapassam o sugerido

1 Graduado em História, Filosofia e Medicina. Departamento de Saúde Coletiva, Faculdade de Medicina, Universidade Federal de Juiz de Fora. Campus Universitário, Juiz de Fora, MG. 36.036-900 josebarros@uol.com.br

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em moção aprovada no Congresso de Educação Médica da ABEM de 2006, referida pelo texto de Palácios, Rego e Lino, que abre este debate e que ora comentamos. Centradas no papel do propagandista, as sugestões desse Congresso são absolutamente relevantes, e esperamos que sejam integralmente adotadas nos centros de formação médica (faculdades e hospitais de ensino) do país. O texto em questão desenvolve o tema proposto com argúcia e respaldo em referencial bibliográfico pertinente, representando uma importante contribuição ao debate em curso no Brasil. Neste momento, espera-se que, por intermédio de audiência pública, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) desencadeie o desfecho desse debate, que vem se arrastando nos últimos dois anos, sobre a revisão da RDC 1022. Quando da Consulta Pública n° 84, lançada em novembro de 2005, um número significativo de entidades públicas e privadas apresentaram uma série de sugestões para o aperfeiçoamento da legislação em vigor, fruto de fórum realizado em novembro de 2005 na Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz. Entre as 19 as propostas apresentadas no Fórum, as mais significativas se referiam ao controle mais estrito de brindes e amostras-grátis de medicamentos e à proibição total da propaganda dirigida ao público consumidor. Essa proibição também foi objeto de recomendação do Conselho Nacional de Saúde, em reunião de março de 2007, a partir de moção apresentada pelo Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) e pela Sociedade Brasileira de Vigilância de Medicamentos (Sobravime), assim como de Proposta aprovada na 1ª Conferência Nacional de Vigilância Sanitária, realizada em Brasília, de 26 a 30 de novembro de 2001. Aos argumentos do setor produtivo que evocam o preceito constitucional da liberdade de opinião, deve-se contrapor que cabe ao Estado garantir políticas públicas que visem à “redução do risco de doenças e de outros agravos” (Art. 196 da Constituição) e ainda que a mesma Constituição preconiza a necessidade de se assegurar o direito à vida e à integridade física e psíquica dos cidadãos. Além do mais, os códigos de auto-regulamentação, proclamados como suficientes para o controle de eventuais desvios da propaganda, têm se revelado totalmente ineficazes, como ressaltam Palácios, Rego e Lino em seu texto, cujos comentários podem ser reforçados a partir de revisão exaustiva da normativa institucionalizada pela associação internacional dos fabricantes (International Federation of Pharmaceutical Manufacturers Associations, Health Action International, 1994). Finalmente, cabe ressaltar que ratificamos as conclusões de Palácios, Rego e Lino (2008) e a proposta de se proibir a aplicação - de influência comprovadamente negativa sobre os futuros prescritores - das diferentes artimanhas de que lança mão o setor farmacêutico, em especial através dos propagandistas e do material por eles veiculado (amostras grátis, brindes, folhetos etc.). Exercida sobre bases racionais, a farmacoterapia implica, de fato, uma série de medidas, por um lado, restritivas à livre atuação dos produtores, na forma como ela vem ocorrendo e, por outro, estratégias didático-pedagógicas da parte do aparelho formador, sendo igualmente indispensável a criação de alternativas de atualização e educação continuada infensas ao viés mercadológico das fontes - no momento, predominantes - nessas atividades, qual seja, os departamentos de marketing da indústria farmacêutica.

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Como referem Palácios, Rego e Lino, no texto que provocou o presente debate (p.897), trata-se de resolução que “regulamenta as propagandas, mensagens publicitárias e promocionais de medicamentos com base nessas leis. Esta resolução, amparada nas leis e decretos pertinentes, regulamenta a propaganda, publicidade e promoção de medicamentos.”

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debate

BARROS, J.A.C.

Referências ANGELL, M. La verdad acerca de la industria farmacéutica: como nos engaña y qué hacer al respecto. Bogotá: Grupo Editorial Norma, 2006. BARROS, J.A.C. Nuevas tendencias de la medicalización. Ciênc. Saúde Colet., v.13, supl., p.579-87, 2008a. ________. Os fármacos na atualidade: antigos e novos desafios. Brasília: Anvisa, 2008b (no prelo). ______. Políticas farmacêuticas: a serviço dos interesses da saúde? Brasília: Unesco/ Anvisa, 2004. (disponível também em espanhol). ______, J.A.C. Pensando o processo saúde e doença: a quem serve o modelo biomédico? Saúde Soc., v.11, n.1, p.7-84, 2002. HEALTH ACTION INTERNATIONAL. Self-regulation or self-deception? Commentary on the 1994 revision of the IFPMA Code of Pharmaceutical Marketing Practices. Amsterdam: HAI Europe, 1994. INTERNATIONAL COMMITTEE OF MEDICAL JOURNAL EDITORS. Uniform requirements for manuscripts submitted to biomedical journals: writing and editing for biomedical publication, atualizado em outubro/2007. Disponível em: <www.icmje.org/>. Acesso em: 2 jun. 2008. PALÁCIOS, M.; REGO, S.; LINO, M.H. Promoção e propaganda de medicamentos em ambientes de ensino: elementos para o debate. Interface – Comunic., Saúde, Educ., v.12, n.27, p.895-908, 2008. Report of the AAMC. Task force on industry funding of medical education to the AAMC Executive Council, 2008. Disponível em: <www.aamc.org/>. Acesso em: 4 jun. 2008.

Recebido em 18/06/08. Aprovado em 18/10/2008.

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Propaganda de medicamentos no contexto do SUS e no ensino médico: por que discutir? Advertising of medications within the context of the Brazilian Health System (SUS) and medical education: why discuss it? Propaganda de fármacos en el contexto de lo Sistema Unico de Salud brasileño (SUS) y en la enseñanza de medicina Neilton Araujo de Oliveira1

O acesso a medicamentos é parte integrante do direito à saúde, consagrado no texto constitucional (CF, 1988), bem como em diversos outros instrumentos legais, e também um componente fundamental da atenção à saúde, representando hoje um dos maiores desafios da concretização desse direito, considerada a integralidade da saúde. Além de contribuir com impostos para financiar o sistema de saúde, as famílias gastam uma parcela considerável de sua renda com medicamentos e outros insumos e serviços de saúde, muitas vezes sacrificando o atendimento de outras necessidades elementares. O medicamento não é uma mercadoria comum e, sendo essencial à saúde e à vida das pessoas, deveria ser mais acessível para toda a população, em cumprimento ao direito universal do SUS. A produção, a distribuição, a propaganda, a venda e a dispensação dos medicamentos dependem de instrumentos e condições legais específicas. No presente debate - cuja questão central é a propaganda de medicamentos em ambientes de ensino e tem o artigo de Marisa Palácios, Sérgio Rego e Maria Helena Lino como proposta -, estão implícitos outros temas relevantes para o sistema de saúde e para a qualidade de vida da população. Esses temas dizem respeito tanto ao processo de construção do SUS e à educação médica, ou à educação em saúde, como também à dimensão ética e da regulação em saúde e, mais especificamente, a regulação da propaganda de medicamentos. A grande contribuição desse artigo, no que os autores foram muito competentes, refere-se aos elementos fundamentais, oportunos e atuais, relativos ao debate sobre propaganda de medicamentos no ambiente de ensino, contemplando, entre outros, os aspectos éticos. Esta discussão vem assumindo crescente relevância e deve ser foco de um debate cada dia mais intenso, no contexto da globalização e do processo de desenvolvimento do país. Quando se analisa o sistema de saúde, seu processo de construção e os enormes desafios que o SUS tem enfrentado em diferentes aspectos, sem dúvida nenhuma a questão do (sub)financiamento do setor aparece como fator determinante de outras dificuldades, em especial a dos medicamentos. Mas o que mais nos interessa aqui é a propaganda de medicamentos no ambiente de ensino (especialmente o da medicina). Essa propaganda - no sentido da publicidade e da promoção de vendas - é também, no presente momento, um

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Médico. Universidade Federal do Tocantins. 109 Norte, Av. NS 15, ALCNO 14, Bloco IV, sala 205. Palmas, TO. 77.001-090 neilton@uft.edu.br 1


OLIVEIRA, N.A.

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debate

assunto que está no centro de discussão de dois sujeitos institucionais e importantes agentes reguladores, o Conselho Federal de Medicina (CFM) e a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). No CFM, a questão envolve fundamentalmente a conduta médica e é ao médico que se dirigem suas decisões e recomendações éticas, calcadas numa “máxima” recente de que o médico não é garoto propaganda e não precisa nem deve receber brindes da indústria e de laboratórios farmacêuticos. Na Anvisa, os intensos esforços para o aprimoramento da regulamentação da propaganda de medicamentos envolvem diversos atores, mas são prioritariamente endereçados a empresas ligadas à produção e ao comércio de medicamentos, bem como à mídia em suas diferentes manifestações e, por extensão, à população em geral. Portanto, mais do que valioso e muito oportuno, o artigo de Marisa Palácios, Sérgio Rego e Maria Helena Lino, com riqueza de dados, análises e informações, traz novas proposições para o debate e importantes subsídios concretos para a regulação e o controle da propaganda de medicamentos. É importante ressaltar que, ao falar em “proibir a propaganda de medicamentos no ambiente de ensino”, Palácios, Rego e Lino não negam a legitimidade da propaganda, e penso que isso não deva ser objeto de uma lei específica: trata-se antes de enfrentar, aberta e corajosamente, esse debate no próprio ambiente acadêmico, e cada instituição de ensino, democraticamente, adotar, sim, regras éticas e claras de limites e restrição a patrocínio e propaganda de laboratórios farmacêuticos que, a meu juízo, dificultam e até mesmo impedem a formação do estudante de medicina calcada em conhecimentos científicos e éticos. Tal medida já vem sendo adotada com êxito há bastante tempo por diversas entidades médicas e de representação do setor saúde em seus eventos científicos, quando, para manter o rigor científico e ampla e livre a discussão técnica, rejeitam propaganda ou patrocínio da indústria farmacêutica. Quando se fala em regulação, é salutar defender a auto-regulação, mas esta é ainda muito tímida e ineficaz, demandando, portanto, monitoramento e vigilância cotidiana por parte dos órgãos públicos responsáveis por essa tarefa, sobretudo contra a propaganda abusiva ou enganosa. Outro aspecto que me chamou a atenção no texto de Palácios, Rego e Lino foi o destaque dado ao confronto entre, de um lado, o que as aulas de bioquímica e farmacologia tentam promover na formação dos alunos e, de outro, o que o “propagandista”, com informações objetivas e sintéticas, vêm prometendo em termos de cura ou de controle de doenças. Nesse sentido, ultimamente venho com freqüência debatendo a influência da indústria e da propaganda de medicamentos na formação médica e tenho escutado invariavelmente o relato dos professores de farmacologia sobre representantes dos diversos laboratórios farmacêuticos que dificilmente têm aceitado convites para participar de eventos programados por essa disciplina, num comportamento muito diferente de quando são chamados para eventos de diversas outras especialidades médicas. Estou convencido de que não se trata de sobrecarga de compromissos desses representantes de laboratórios nem de acaso, mas de evitar o possível confronto entre a postura crítica, baseada em raciocínio e conhecimento científico, da disciplina de farmacologia e a postura dos propagandistas, ancorada apenas em promessas “(nem sempre confiáveis) relacionando um produto a uma doença”. Esta questão merece ser considerada um tema prioritário a ser debatido e, assim, investigado e esclarecido. Enquanto tecemos estas reflexões aqui, está em discussão na Diretoria Colegiada da Anvisa, fruto de uma consulta pública, a revisão da RDC 102/2000 com o objetivo de atualizar e aprimorar a regulamentação de propaganda de medicamentos. De início, modificam-se e ampliam-se alguns conceitos que, consoantes ao novo Regulamento, serão aplicados pela Anvisa à “propaganda, publicidade, informação e outras práticas cujo objetivo seja a divulgação ou promoção para a comercialização de medicamentos de produção nacional ou estrangeira” (minuta da revisão 2008, da RDC 102/2000, em discussão). Assim “promoção” e “propaganda/publicidade” passarão a ser apenas “propaganda/publicidade”, o que se caracteriza como “o conjunto de técnicas e atividades de informação e persuasão com o objetivo de divulgar conhecimentos, tornar mais conhecido e/ou prestigiado determinada marca ou produto, colocados à disposição no mercado, visando a exercer influência sobre o público por meio de ações que objetivem promover e/ou induzir a prescrição, dispensação, aquisição e utilização de medicamento” (minuta da revisão 2008, da RDC 102/2000, em discussão). 913


PROMOÇÃO E PROPAGANDA DE MEDICAMENTOS

Diante da abordagem que acertadamente adotaram Palácios, Rego e Lino ao explorar os diversos tipos e os diferentes espaços de regulação e regulamentação da propaganda de medicamentos em que destacam aspectos jurídico-legais, éticos, didático-pedagógicos e de participação social, entre outros -, pressupõe-se que devem aumentar a disposição e o compromisso, por parte das diferentes instituições e de outros sujeitos coletivos, quanto à análise circunstanciada desse tema para, ao final, cada uma na sua especificidade e algumas em ações coletivas, assumirem aquilo que lhes compete como sujeitos participantes de um processo de desenvolvimento democrático e civilizatório, com ênfase na saúde e na qualidade de vida da população. Especialmente no campo da educação médica, esse debate precisa envolver o setor de serviços de saúde e do SUS e outros setores sociais e mobilizar movimentos popular-comunitários, condição importante para o avanço no processo de mudança na educação médica brasileira. Finalmente, penso que essa visão utilitarista que tem a indústria farmacêutica dos ambientes de ensino para propagandear medicamentos e influenciar a prescrição de atuais e futuros médicos contribui para dificultar uma necessária cooperação entre indústria e academia para o desenvolvimento de pesquisas e de novos conhecimentos. Essa possível relação de colaboração, creio, ainda é cercada de muito preconceito de ambas as partes e, nesse sentido, a conjugação de esforços desses dois importante sujeitos, articulados e com envolvimento e participação social, numa relação franca e ética de colaboração mútua, em última análise, representará uma possibilidade concreta de se alavancar e acelerar a busca de novos conhecimentos e benefícios para a saúde da população, para o processo de desenvolvimento do país e para a sociedade em geral.

Referências PALÁCIOS, M.; REGO, S.; LINO, M.H. Promoção e propaganda de medicamentos em ambientes de ensino: elementos para o debate. Interface – Comunic., Saúde, Educ., v.12, n.27, p.895-908, 2008.

Recebido em 02/11/08. Aprovado em 03/11/2008.

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debate

Réplica Reply Respuesta

Agradecemos o privilégio de receber comentários de pensadores tão importantes, como Barros, Zoboli e Oliveira, ao nosso artigo, representativos do movimento da reforma sanitária brasileira e da reflexão sobre as relações entre o Sistema Único de Saúde e a indústria farmacêutica. Suas considerações, que aqui comentaremos com a brevidade que o espaço permite, possibilitarão, aos leitores, uma visão complementar ao exposto e debatido em nosso artigo. Embora tenhamos procurado dar um foco, em nossa abordagem, para a questão específica da promoção e propaganda de medicamentos nos espaços de ensino-aprendizagem da Medicina, nossos comentadores incluíram a discussão mais geral sobre as relações entre a indústria farmacêutica e as Escolas Médicas e/ou sociedades científicas. Ofereceram também, aos leitores, acesso a importante material de referência que não havia sido incluído em nosso trabalho original. Sobre esta relação mais geral, faremos alguns comentários mais adiante, já que, inicialmente, focaremos no objeto específico deste artigo: a propaganda de medicamentos nos ambientes acadêmicos. A princípio, gostaríamos de destacar que não propomos uma nova legislação que proíba a propaganda para estudantes de medicina. Essa regulamentação já existe e está em vigor. Ela proíbe a propaganda a não prescritores, e os estudantes de medicina não são prescritores, a despeito dos desvios existentes no campo da sua formação prática na qual, muitas vezes, atuam efetivamente como médicos, embora contem apenas com uma supervisão meramente formal de seus professores. Assim, ou se muda a regulamentação já existente, para tornar essa prática autorizada, ou se cumpra o que já está previsto. Mas estão certos nossos comentadores quando, implicitamente, reconhecem que não nos anima o propósito da discórdia ou de algum ato discriminatório contra algum segmento da Economia brasileira. Entendemos, sim, que o setor como um todo precisa ser regulamentado, e defendemos que essa regulamentação se dê mediante um amplo debate que deixe claro os legítimos interesses em jogo. Mas, por outro lado, não se pode abrir mão de alguns princípios balizadores desse debate, negligenciando a proteção da população usuária dos serviços de saúde e clientes da indústria farmacêutica e da medicina, em prol de interesses de um segmento específico da população. Por outro lado, as consultas públicas que a Anvisa salutarmente realiza têm pouca transparência, deixando de apresentar, de forma clara e inequívoca, os critérios utilizadas para incorporar, ou não, as considerações apresentadas por entidades e/ou pessoas físicas em geral, como no caso da consulta pública sobre a RDC 102 (consulta Pública 84 em 2005), referidas tanto por Barros como por Oliveira. O poder econômico e político da indústria farmacêutica é quase incomensurável na área da saúde. Daí que a proteção de indivíduos e organizações deve ser maximizada, para que não sejam esses indivíduos - médicos, professores ou estudantes isoladamente - os responsáveis por lidarem com essa relação. Diz-se hoje, sem nenhum constrangimento, que não se faz um Congresso Médico sem o apoio da indústria farmacêutica. E não é, de fato, o problema esse apoio não ser desinteressado. É razoável que a indústria tenha o seus interesses, mas as programações dos congressos ou reuniões científicas, os temários, os expositores convidados e, até mesmo, as atividades que terão repercussão na mídia não podem ser, de forma alguma, impostas pela indústria, como habitualmente acontece, ainda que formalmente eles apenas apresentem “sugestões”. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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PROMOÇÃO E PROPAGANDA DE MEDICAMENTOS

Como se opor a uma influência indevida, da indústria, a esse poderio econômico? Poderio este que é visto, por grande parte das corporações da saúde, como algo benéfico, posto que atende a seus interesses imediatos; e elas não fazem uma avaliação das implicações dessa atuação em uma perspectiva mais duradoura. Hoje, boa parte dos eventos, científicos ou não, dos estudantes de medicina – a despeito das posições defendidas por sua organização maior, a DENEM (Direção Executiva Nacional dos Estudantes de Medicina) – é patrocinada pela indústria farmacêutica. Quando questionados sobre essa prática, minimizam sua relevância por não haver interferência direta nas programações dos eventos, que se limitam à distribuição de brindes e folhetos. Isso, de fato, é verdade, já que faz parte de um pacote maior de relacionamentos que inclui, como bem assinalou Zoboli, almoços e outros brindes. É o estabelecimento de uma relação que esperam seja capaz de interferir na efetiva prescrição dos futuros médicos, em detrimento da estrita racionalidade científica e da adequada avaliação ética que deveria orientar sua conduta. Todavia, discordamos da generalização implícita na afirmação de Oliveira, de que medida de controle “já vem sendo utilizada com sucesso há bastante tempo por diversas entidades médicas e de representação do setor saúde em seus eventos científicos”. De fato, ninguém desconhece que as ações que o Conselho Federal de Medicina tem implementado vão, de fato, na direção de se evitar qualquer relacionamento que sugira a possibilidade de conflito de interesses. O mesmo não se pode dizer das associações científicas médicas – algumas chegam a emprestar seu prestígio apoiando peças publicitárias destinadas ao público em geral, sabe-se lá o porquê. E para não parecer que apenas os médicos e a medicina estão expostas a esse tipo de influência ou conflito de influência, podemos assinalar que ele se verifica entre todo setor que se dedica a produzir recursos necessários para determinadas práticas profissionais e seus praticantes. Observa-se também, tal tipo de influência, por exemplo, na prática odontológica, na fisioterápica, na fonoaudiológica, mas, certamente, em nenhum desses campos profissionais a interferência da indústria é tão sistemática e disseminada como na prática médica. Assim como os comentadores, acreditamos que as relações das universidades com a indústria devem ser objeto de regulação cada vez mais estrita, para que se possa, efetivamente: proteger a liberdade de pesquisadores e professores, garantir o rigor científico com que lidam com as inovações tecnológicas, e - nosso foco central - permitir que se desenvolva, na comunidade de ensino, um espírito crítico em relação às informações provenientes dos representantes farmacêuticos. Evitar o contato destes últimos com os estudantes certamente promoverá distanciamento fundamental para que se possa avaliar criticamente a propaganda da indústria. Da mesma forma, as universidades devem deixar muito claros os valores que adotam. Se priorizam a assistência e bem-estar dos pacientes que procuram seus serviços, basearão a conduta terapêutica no conhecimento científico, e não na propaganda da indústria.

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entrevista

Política, direitos humanos e Aids: uma conversa com Paulo Roberto Teixeira

Martha San Juan França1

O início da década de 1980 no Brasil coincidiu com o movimento de transição democrática, com eleição direta para governadores e vitória esmagadora da oposição em dez dos 22 estados nas primeiras eleições democráticas desse período (1982). Com propostas de mudanças, sobretudo nas áreas sociais, os governos da oposição tinham, em seus quadros, ativos militantes do movimento da reforma sanitária. Em São Paulo, foi eleito Franco Montoro, um expoente do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (MDB), que escolheu, como secretário estadual da Saúde, o médico João Yunes, professor da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP), representante do movimento sanitarista, que já havia ocupado diversos cargos públicos no Ministério da Saúde e em órgãos do governo estadual. No ano seguinte, começaram a aparecer no Estado de São Paulo os primeiros casos de Aids.2 Notícias sobre a doença já vinham sendo acompanhadas pela imprensa brasileira desde as suas primeiras manifestações nos Estados Unidos, embora sem grande destaque. Mas, em 4 de junho de 1983, com a morte do costureiro Marcos Vinicius Gonçalves, o Markito, em Nova York, onde se submetia a tratamento, a Aids passou a ser amplamente divulgada. A partir daí, essa doença, considerada norte-americana e rica, invadiu de maneira sensacionalista o cotidiano dos brasileiros. Dois meses antes da morte de Markito, representantes da comunidade gay, acompanhados da dermatologista Valéria Petri, da então Escola Paulista de Medicina (atual Universidade Federal de São Paulo - UNIFESP), solicitaram ao secretário João Yunes, recém-empossado, que a Secretaria de Saúde estudasse o assunto Aids e se pronunciasse a respeito, no sentido de evitar o pânico. Yunes convocou um grupo de técnicos para discutir o assunto e indicar caminhos para enfrentar a doença. Na época, o sanitarista Paulo Roberto Teixeira era diretor da Divisão de Hansenologia e Dermatologia Sanitária da Secretaria de Saúde e estava se preparando para expandir o trabalho que realizava para abranger também as doenças sexualmente transmissíveis. A chegada da Aids precipitou e completou essa sua intenção. Foi assim que, em 1983, o sanitarista, então com 34 anos, foi chamado para coordenar o primeiro programa de combate à Aids no Brasil. Foi o início de uma carreira até hoje associada ao combate à epidemia, aos direitos dos

A Aids foi identificada pela primeira vez no Brasil em 1982, embora um caso tenha sido reconhecido retrospectivamente no Estado de São Paulo em 1980. Mas, considerando o período de incubação do vírus, pode-se deduzir que a doença tenha aparecido no país no final da década de 1970 e se difundido, em um primeiro momento, entre as principais áreas metropolitanas do centro-sul, seguindo-se de um processo de disseminação para as diversas regiões do país na primeira metade da década de 1980. Vide Euclides Ayres Castilho & Pedro Chequer, “Epidemiologia do HIV/ Aids no Brasil”, in PARKER, R. (Org), Políticas, instituições e Aids: enfrentando a epidemia no Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar/ ABIA, 1997, p.17.

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1 Jornalista. Centro de Estudos Simão Mathias de História da Ciência, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Rua Caio Prado, 102 Consolação, São Paulo, SP, Brasil. 01.303-000 marthasj@ndata.com.br 2

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ENTREVISTA

doentes e a políticas de saúde abrangentes em sintonia com o Sistema Único de Saúde (SUS). Durante esse tempo, Teixeira coordenou o programa paulista em vários momentos (1983 a 1987; 1990 a 1991; 1995 a 1996). Desenvolveu trabalhos de consultoria para a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) em 1994, e foi consultor técnico do Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/Aids (Unaids) para a América Central e Cone Sul (1996 a 1999). Na função de coordenador do Programa Nacional de DST/Aids do Ministério da Saúde (2000 a 2003), propôs a quebra de patentes dos remédios importados contra a Aids, caso os preços não baixassem, e iniciou a discussão, no cenário internacional, sobre a integralidade das ações (assistência e prevenção) contra a Aids, opondo-se aos consensos internacionais da época que pregavam apenas a prevenção (sem a distribuição de remédios) nos países pobres e em desenvolvimento. Sob sua coordenação, o programa brasileiro – considerado a mais relevante ação de saúde pública em 2002 – foi agraciado com o Prêmio Bill e Melinda Gates, no valor de US$ 1 milhão. Em 2003, Teixeira dirigiu o Programa de Aids da Organização Mundial da Saúde (OMS), período no qual se envolveu nas disputas pela ampliação do acesso aos medicamentos anti-retrovirais em países pobres, que culminaram com a Declaração de Doha, na qual a Organização Mundial do Comércio reconheceu que o acordo internacional de patentes não deve se sobrepor às questões de saúde pública. Atualmente, é coordenador sênior do Programa Estadual de DST/ Aids em São Paulo e assistente técnico da Coordenação de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo. É também consultor do Unaids, OMS e membro do Comitê Internacional para Aids e Governabilidade na África. A trajetória do sanitarista até a criação do Centro de Referência e Treinamento de Aids (CRT/Aids) de São Paulo, em 1988, foi reconstituída por meio de entrevistas informais, realizadas em três etapas e que levaram algumas horas.3 Contam desde a sua vida como estudante em plena ditadura militar, na Faculdade de Medicina da Universidade Estadual Paulista (UNESP), de Botucatu, até a criação do CRT/Aids, resultado de sua luta por um programa completo de pesquisa, assistência, educação e prevenção da Aids. Como pano de fundo, as entrevistas apresentam o clima da época e sua influência sobre a história da epidemia no Brasil.4 A reconstituição daquele período nas palavras de Teixeira busca refletir o que Ortega y Gasset chamou de circunstância e que levou a sua participação na história da Aids da maneira como ocorreu. Só para lembrar, segundo o autor espanhol, Circunstância e decisão são os dois elementos radicais de que se compõe a vida. A circunstância – as possibilidades – é o que da nossa vida nos é dado e imposto. Isso constitui o que chamamos mundo [...] Não somos arremessados para a existência como a bala de um fuzil, cuja trajetória está absolutamente pré-determinada. A fatalidade em que caímos ao cair neste mundo [...] consiste em todo o contrário. Em vez da imposição de uma trajetória, são impostas várias e, conseqüentemente, somos forçados a escolher [...]. É, pois, falso dizer que na vida ‘decidem as circunstâncias’. Pelo contrário: as circunstâncias são o dilema, sempre novo, ante o qual temos de nos decidir. Mas quem decide é o nosso caráter.5

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3 As entrevistas fazem parte de minha tese de doutorado Ciência em tempos de Aids: uma análise da resposta pioneira de São Paulo à epidemia, no Programa de Estudos PósGraduados em História da Ciência da PUC/SP, 2008.

4 A metodologia das entrevistas seguiu de perto a linha de pesquisa do NEHO-USP (Núcleo de Estudos em História Oral), em que fica a critério do entrevistado a seleção dos fatos mais relevantes de sua história. O objetivo é analisar as múltiplas dimensões dos acontecimentos, com todas as suas conotações ética, sociais, emocionais e intelectuais, além de incorporar a experiência pessoal à História. Vide: B. MEIHY. J.C.S.; HOLANDA, F. História oral: como fazer, como pensar. São Paulo: Contexto, 2007, p.34-6.

ORTEGA & GASSET. A rebelião das massas. São Paulo: Martins Fontes, 1987. p.47-8.

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A seguir, a reconstituição das entrevistas. “Eu nasci em Alvares Machado, no interior de São Paulo, e fiz Medicina na Unesp de Botucatu, na época, uma faculdade nova, que havia sido criada por várias razões políticas regionais, mas que tinha uma característica interessante: ela era composta por um grupo de docentes pertencentes ao movimento de reforma universitária que ocorria desde a década de 1960, coincidindo com a luta, a partir de 1984, pela redemocratização. Era um setor da universidade, que se manifestava também na medicina, inconformado com as diretrizes, com a estrutura, com a forma de organização, com os currículos que então existiam. Botucatu foi criada nesse cenário e nasceu como uma alternativa de ensino para muitos professores jovens, em especial da USP, que tinham como referência concreta os princípios de organização da Universidade de Brasília, por Darcy Ribeiro. Eram pessoas que desejavam uma revisão completa da estrutura universitária, da hierarquia do poder, pelo fim da cátedra e da chefia permanente, que defendiam uma aproximação da universidade com a população, com a saúde pública e a orientação dos currículos para questões de interesse maior da população. Esses professores organizaram uma faculdade que, por princípio, era diferente das outras. Eles eram mais jovens, os departamentos elegiam os docentes, havia rotatividade e, de um modo geral, tinha uma proposta muito forte em relação à medicina preventiva. Ao mesmo tempo, naquela época, década de 1960, esse mesmo movimento de reformas, mais especificamente na saúde, deu origem ao movimento sanitarista brasileiro em vários estados, mas principalmente São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. Esse movimento era composto de vários profissionais de saúde pública das universidades (não necessariamente da medicina), que procuravam rever as políticas nacionais de saúde e propor uma política baseada na democratização, na garantia do acesso, na priorização das questões da saúde pública, na responsabilização do Estado. O grande mentor e pensador desse movimento era o Sérgio Arouca. Botucatu tinha, além desse clima geral, um centro acadêmico muito ativo. Eu entrei na faculdade em 1968 e logo me engajei no movimento estudantil. Participei de todas as atividades do movimento, de 1968 a 1973. Fui processado e preso duas vezes. Na primeira vez, foi em 1968, no final do primeiro ano de faculdade. Eu fui preso com outras pessoas durante trinta dias no DOPS, na época em que o movimento estudantil era mais intenso. Nós, de Botucatu, estávamos vinculados ao grupo da Catarina Meloni. Fizemos greve, manifestação de rua, ocupação da praça. Na época em que fui preso, eu era secretário-geral do centro acadêmico. Depois disso, continuei no movimento estudantil durante os seis anos da faculdade e, muito cedo, me incorporei à Ação Popular (AP), partido clandestino de esquerda que teve suas origens na Juventude Operária Cristã - JOC, do qual participei até 1974. No período de desarticulação da AP pela repressão, eu fui preso, seqüestrado, fiquei oito dias no DOI-CODI. Depois disso, fiquei um pouco “de molho” e só voltei a participar do movimento geral em torno do MDB e da anistia, em 1976. Também passei a me envolver no apoio ao movimento sindicalista do ABC, fiz parte do grupo que criou o PT, já trabalhando na área da saúde. Esse grupo era fortemente influenciado pelo movimento sanitarista, que cresceu e assumiu o poder na saúde pública brasileira na década de 1980. E havia muita gente de Botucatu no movimento, talvez a faculdade que mais formava médicos sanitaristas. Em 1974, eu vim para São Paulo fazer residência em Dermatologia, interessado em Dermatogia Sanitária, especialmente em dermatoses profissionais, na Escola Paulista de Medicina, atual Unifesp. Havia um convênio entre a Unifesp e a Fundacentro, um órgão do Ministério do Trabalho que havia aberto um setor de dermatoses profissionais. Não era propriamente uma residência, mas um sistema especial de trabalho no qual eu dedicava metade do meu tempo ao setor de dermatoses profissionais e metade à formação em dermatologia geral. Por conta disso, fui fazer o curso de especialização em medicina do trabalho na Fundacentro. Mas como tudo na área do trabalho, a Fundacentro era controlada pelos militares e o diretor-geral na época era um general reformado. Depois que pegaram a minha ficha no DOI-CODI, a primeira coisa que fizeram foi me demitir, e a própria Escola Paulista de medicina também quis me mandar embora. Hoje, eu até penso em entrar com um processo na Comissão de Anistia por causa disso. Não pela perda COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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econômica, mas pelo registro histórico de como as pessoas foram prejudicadas. Mas fico meio constrangido pela maneira como essa questão está sendo conduzida. De qualquer jeito, essa questão política mudou o meu rumo. Eu tive de me concentrar em dermatologia geral e desistir da dermatologia ocupacional. Fiz residência entre 1974 e 1977 na Paulista e, em 1978, fiz concurso e entrei como funcionário na Secretaria de Saúde do Estado, que trabalhava no controle de lepra ou hanseníase, sendo designado para a Divisão de Hansenologia e Dermatologia Sanitária do Instituto de Saúde. A questão da hanseníase hoje saiu do cenário público, mas era e continua sendo um dos maiores problemas de saúde pública no Brasil. Naquele mesmo ano, fui fazer o curso de Saúde Pública na USP. O governador era o Paulo Maluf e o secretário da Saúde o Adib Jatene, uma pessoa muito sábia que, na minha opinião, nunca teve uma proposta pessoal de saúde pública, até hoje tem uma formação hospitalar, mas que se rodeou de sanitaristas e deu espaço para que eles se manifestassem. Era o auge do movimento sanitarista em São Paulo e, entrando na Secretaria, eu participei de todos os movimentos dos funcionários, das greves, das lutas por salário. Em 1982, houve a primeira eleição para governadores como parte do processo de redemocratização e o Franco Montoro foi eleito, escolhendo para secretário de Saúde o João Yunes, um dos companheiros do Arouca no movimento sanitarista. Eu digo sempre que os sanitaristas tomaram o poder em São Paulo. No finalzinho de 1982, começo de 1983, começaram a aparecer os primeiros casos de Aids no Brasil, embora não se soubesse na época o que era. Um grupo de militantes pelos direitos dos homossexuais procurou o Yunes para cobrar uma posição sobre o problema, que começava a ter repercussão no âmbito da imprensa. Eu era muito amigo do João Silvério Trevisan, um dos participantes desse grupo. Em 1976, ele tinha acabado de chegar de Berkeley, nos Estados Unidos, e nós organizamos na minha casa algumas reuniões informais para discutir questões relacionadas com a organização de um grupo pelos direitos dos homossexuais. Depois disso, eu fui para a França fazer um estágio, que acabei não fazendo por razões pessoais, e voltei no começo de 1977, quando comecei a me preparar para o exame de especialidade em Dermatologia. Nesse intervalo, o Trevisan e o Celso Cury, outro participante do movimento, tinham voltado a se reunir e eu me incorporei ao grupo. Fundamos o grupo Somos, do qual participei até 1979, quando saí por questões mais internas e também porque a militância na área de saúde me puxava muito. Mas quem ler o livro do Edward McRae sobre o movimento homossexual em São Paulo, que conta a história do grupo Somos, vai ver que um dos personagens era um médico da saúde pública.6 Mas, de 1979 a 1983 eu não voltei a ter contato com o grupo, embora continuasse sendo amigo de todos. Por isso, foi uma mera coincidência o fato de ter começado o programa. Na verdade, por analogia, considerando que o grupo chamado de risco era o mesmo das doenças sexualmente transmissíveis, e como eu já estava estruturando um serviço de doenças sexualmente transmissíveis na Divisão de Hansenologia, fui designado para organizar uma comissão para analisar o problema e fazer uma proposta de trabalho. Eu acho que, se o grupo de risco fosse de hanseníase, eu também teria me dedicado da mesma maneira, da mesma forma que 99,9% das pessoas que militavam naquela área, que trabalhavam comigo e não tendo nenhum tipo de convivência com o grupo de homossexuais. A comissão que foi organizada era composta de médicos sanitaristas, infectologistas, especialistas da área de laboratório e social. Ela concluiu que, embora fossem poucos casos confirmados no Brasil, era um agravo inusitado à saúde que estava provocando pânico na população e deveria ser investigado pelo Estado. Lendo a literatura internacional e conversando com as pessoas que tinham visto esses casos 922

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MACRAE, E. O militante homossexual no Brasil da “Abertura“. Tese (Doutorado em Antropologia) Departamento de Ciências Sociais, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 1985. p.220.

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aqui e com a comunidade dos homossexuais, eu não tinha dúvida de que esse agravo era ameaçador e que, mesmo que ele não viesse a ocorrer em larga escala e se constituir um grande problema de saúde pública, era extremamente grave e estava provocando pânico, principalmente nos chamados grupos de risco de homossexuais. Portanto, era uma responsabilidade do Estado intervir, fazendo vigilância epidemiológica, investigando para saber a dimensão do problema e difundindo informações que pudessem tornar a questão mais objetiva. Minha principal aliada nessa época era a Walkyria Pereira Pinto, amiga, médica infectologista, até hoje trabalhando no Hospital das Clínicas. A Walkyria havia estudado na USP, era contemporânea minha e viveu todo o movimento estudantil. Mas também ouvi outras pessoas, o Vicente Amato, todos aqueles que, de alguma forma, tinham alguma contribuição a dar sobre o tema. Eu convidei também duas pessoas do grupo de militantes homossexuais - o Trevisan e o Jean Claude Bernardet - para participar da Comissão que tocaria o programa, mas eles não aceitaram. Teria sido a experiência mais remota de participação oficial da comunidade numa ação do Estado, mas eles preferiram manter isenção. Apesar disso, eles participaram do processo de elaboração, iam às reuniões, sugeriam estratégias. Havia naquela época um grupo que se chamava Outra Coisa, que passou a ser a nossa extensão junto à comunidade homossexual, tudo o que nós fazíamos – boletins, textos – eram distribuídos por eles. Foram eles que deram a idéia de fazer reuniões públicas para dar informações e esclarecimentos à comunidade no anfiteatro da Secretaria de Saúde, todas as terças-feiras à noite. No final de semana, o grupo fazia a divulgação das reuniões com filipetas na noite gay. Essa participação foi muito importante para imprimir no programa a marca de luta contra o preconceito e a discriminação. Dessas reuniões, surgiu o Gapa, a primeira ONG de apoio aos doentes de Aids. De um modo geral, o programa foi bem aceito na Secretaria. Havia apenas duas correntes discordantes – uma dentro da medicina e da saúde pública que nos criticava por dedicar atenção e energia a “um problema restrito que era mínimo, que não era de saúde pública, representado por grupos que não mereciam atenção, que eram marginais e pecadores”. Foi representado por um artigo que saiu na Veja na ocasião, dizendo que o Disque Aids, o sistema de informações que criamos por telefone, era “uma questão tão importante como instalar um serviço de ponte de safena no agreste de Pernambuco”. Houve também um documento que desapareceu, acho que foi deliberadamente destruído, aprovado pela congregação da Faculdade de Saúde Pública da USP, de advertência ao João Yunes, que também era professor da faculdade, dizendo que ele estava investindo recursos da Secretaria em questões menores que não eram do interesse da população. Essa questão também era muito levantada pela própria classe de sanitaristas. Eu participei de muitas reuniões nas várias regiões de São Paulo e estive nas reuniões públicas do movimento para apresentar o programa da Aids e debater por que não era unânime a idéia de que a proposta do programa fosse adequada na época. Havia quem não percebesse a urgência ou a magnitude necessária à intervenção do Estado. Foi um debate muito intenso, mas ideológico e não preconceituoso como o outro. Era até coerente com o período em que a gente estava vivendo e não houve nenhum boicote ou enfrentamento por causa disso. Só que nós, do Programa, tivemos que trabalhar muito, indo a essas assembléias, fazendo documentos, apresentando e defendendo nossas posições. E outra corrente, dentro da comunidade gay, representada pelo Nestor Perlongher, um antropólogo e escritor da Unicamp que defendeu durante anos (ele tem artigos que escrevia contra mim) que nós estávamos chamando a atenção para um problema que não era dos homossexuais, como forma de reprimir a manifestação homossexual. Foi um movimento que serviu de contraponto ao debate, mas não chegou a ser forte do ponto de vista da opinião pública. O primeiro caso real que nós vimos era de uma pessoa que estava internada no Hospital das Clínicas, mas eu não soube muita coisa. Ao segundo caso, também do Hospital das Clínicas, tive mais acesso porque a família, sabendo que eu estava envolvido com o Programa, pediu que fosse vê-lo. Desde o começo, por tudo que eu havia lido, havia uma vinculação tão clara da síndrome com a transmissão sexual e sanguínea que eu nunca tive medo no âmbito pessoal. Sentia, sim, muita inquietação em termos de desdobramentos. E, claro, eu, como todo mundo que participava do programa, sofria muito com a impotência de não ter como tratar os doentes, saber que eles iam morrer. 923


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Principalmente quando começaram a aparecer casos e mais casos e as pessoas atacavam dizendo que estávamos fazendo um serviço inútil. Muitas pessoas amigas morreram, e eu estava envolvido como amigo e como médico, além do meu papel de destaque na luta contra a Aids. Eu me tornei amigo de muitos doentes que antes não conhecia, sofria uma demanda muito forte não só da parte deles como de seus familiares. Naquela época, tinha que defender o trabalho na área de saúde pública, tinha que defender no âmbito público, tendo que mobilizar o apoio da opinião pública e da imprensa, que era fundamental porque nós não tínhamos dinheiro para trabalhar. No começo havia poucos doentes, mas em 1985 a situação já era dramática. Não havia leitos, ambulatório, as pessoas morriam na maca. Na época em que tudo começou, eu tinha 34 anos, não tinha carreira acadêmica nenhuma, mas não tinha dúvidas de que estava fazendo certo. Tinha dúvida sobre os passos da estratégia, mas não sobre a questão geral de enfrentamento da Aids. Isso me dava energia para enfrentar o desgaste e me levava para a frente. Eu me lembro que, ainda na época do Yunes, em 1983, organizaram uma reunião com professores titulares da Medicina da USP para eu apresentar o que sabíamos sobre a Aids. Eu pensei, nós todos estamos partindo do zero, portanto, os títulos deles não contam. Claro que eles têm mais experiência na área clínica, mas do ponto de vista do fenômeno eu estou estudando muito mais e acho que sei do que estou falando. Então, eu não tinha dúvidas em relação ao problema, à política, às perspectivas. E buscava ajuda onde era necessário, eu não pretendia saber de tudo. Pedi para a Walkyria vir trabalhar comigo, para ser meu braço direito, e para a Mirthes Ueda cuidar da parte de laboratório.7 O tempo todo conversava com as Ongs e sabia que eu poderia conduzir o processo se conseguisse essa rede de apoio. Mas havia períodos de esgotamento, de exaustão. Já em 1984, 85, eu era referência, era acordado de madrugada para resolver problemas de internação. Eram ligações de pessoas que precisavam de leito, estavam com a ambulância na porta sem saber para onde ir, ou de familiares que ligavam desesperados porque o filho, o irmão estava morrendo. Foi um período bem duro. E a nossa estrutura não conseguia avançar no mesmo passo. Por que não conseguia avançar? É importante registrar que, até 1986, a Secretaria da Saúde era responsável só pela rede de saúde pública. Tudo aquilo que era assistência médica fazia parte do Inamps e todo o dinheiro da saúde era do Inamps, que se negava a tomar conhecimento da epidemia de Aids. Eles usavam um raciocínio maroto dizendo que o Inamps era responsável pela assistência e que problemas de saúde pública cabiam às secretarias de saúde. E, embora o Yunes tenha feito o que foi possível, não existiam recursos para contratar médicos, psicólogos, não havia dinheiro, pois a Secretaria da Saúde tinha que cuidar também de vacinas, leite em pó, e muitas outras coisas. Uma das pessoas importantes para mudar esse quadro foi a Lair Guerra de Macedo, quando assumiu a coordenação-geral do programa em 1986.8 São Paulo foi um dos primeiros estados a constituir o SUDs, em 1987 e 1988, e o primeiro em que a Secretaria da Saúde tomou posse dos hospitais do Inamps. O que me deixava indignado na época era lidar com hospitais enormes que me diziam que não tinha uma cama para internar um paciente, que mandavam paciente para casa. Ficava indignado por saber que era necessária uma intervenção nos bancos de sangue e não conseguíamos porque aquilo era uma máfia, um bando de bandidos, criminosos, que estavam há décadas se aproveitando do país. Para se ter uma idéia, em 1988, nós entrávamos nos bancos de sangue com polícia, de camburão, para abrir os registros e arquivos. E a epidemia só aumentava. Tinha pessoas que acabei hospedando em minha casa porque não tinham onde ficar. Um deles ficou três meses na minha casa, morando comigo. A minha empregada era 924

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Walkyria Pereira Pinto e Mirthes Ueda (bioquímica do Instituto Adolfo Lutz) foram convidadas para dar retaguarda ao programa, que deveria consistir em um trabalho integrado de epidemiologia, prevenção, vigilância, apoio psicológico, assistência médica e laboratorial.

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Lair Guerra de Macedo foi a primeira coordenadora do Programa Nacional de DST/Aids, criado em 1985, dois anos depois do programa paulista, até 1989. Ficou afastada do programa durante o governo Collor e voltou à coordenação de 1993 a 1996, quando sofreu um grave acidente de carro e licenciou-se da coordenação.

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9 Maria Eugênia Lemos Fernandes e Rosana Del Bianco eram médicas infectologistas contratadas pelo programa em 1984.

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uma santa, cuidava dele porque não tinha quem cuidasse. A coisa só acalmou em 1988, quando criamos o CRT, conseguimos controlar os bancos de sangue e eu fui organizando a minha vida de uma maneira mais pacífica. Os três anos entre 1985 e 1988 foram os piores por causa da explosão no número de casos, que deixou bem claro os limites de nossa estrutura. Em 1987, saiu o Montoro e entrou o Orestes Quércia, que chamou o José Aristodemo Pinotti para secretário da Saúde. A primeira medida que ele tomou, em abril, foi me demitir. Por quê? Porque eu não era uma pessoa compatível com o mundo em que ele vivia. Naqueles anos anteriores, a questão da Aids teve muita repercussão e houve reclamações, já no tempo do Montoro havia gente pedindo a minha cabeça. Mas como este era uma pessoa mais séria e democrática, se reuniu com o Yunes que apresentou todas as explicações sobre o trabalho que estávamos fazendo e defendeu a minha estratégia de diálogo franco com os homossexuais, da criação do Disque Aids. Mas eu sabia que existia um conceito, não sei se posso usar esse termo, entre muitas pessoas da saúde pública, entre políticos, de que eu era meio promíscuo, meio aberto demais para a marginalidade. Diziam que a Secretaria da Saúde tinha virado um antro de veados, de travestis, de usuários de drogas. As minhas convicções não eram compatíveis com as do Pinotti, que me mandou embora e passou a direção do programa para o Paulo Ayrosa Galvão, que era uma pessoa tradicional. O Ayrosa era diretor do Emílio Ribas há décadas, uma pessoa bastante conservadora que, sem entrar no mérito, mudou tudo, acabou o serviço, fechou o ambulatório do Instituto de Saúde. Não durou muito tempo e houve repercussões. As pessoas começaram a morrer de uma forma ainda mais desastrosa do que antes. Em agosto, setembro, começaram a aparecer na imprensa os relatos de casos de omissão de socorro e mortes em ambulância, um desastre total. Enquanto isso, eu estava encostado, não podiam me mandar embora porque era concursado, mas não sabia o que fazer daí em diante. E vendo as notícias na imprensa e as Ongs como o Gapa fazendo uma pressão enorme sobre o Estado. Passaram-se seis meses e eu fui convidado pelo Jonathan Mann para participar da equipe que estava organizando o Programa Mundial de Luta Contra a Aids em Genebra. Eu fui apresentado a ele em 1986, quando veio a São Paulo para conhecer o nosso programa. Tanto a notícia da minha demissão quanto o convite do Jonathan Man saíram na imprensa na mesma época em que se denunciavam as desgraças que estavam acontecendo. Eu lembro que o Valcir Carrasco tinha uma coluna na Folha de S. Paulo ou na Folha da Tarde que dizia algo como “em terra de cego, quem tem olho é posto na rua”. Isso criou um problema para o Pinotti. Tanto que, em outubro, novembro, ele mandou mensagens dizendo que queria conversar comigo. Ele queria que eu voltasse e, ao mesmo tempo, não autorizou a minha ida a Genebra – como eu era funcionário público, precisava de sua autorização. Isso mudou o cenário e, na primeira semana de dezembro, fui conversar com ele e foi uma conversa muito tranqüila. Ele disse: “olha, eu não posso te colocar na coordenação do programa porque isso seria politicamente muito desgastante para mim, mas também não posso abrir mão de você porque estou vendo que preciso do seu trabalho”. Ele não deve nem se lembrar dessa conversa porque é o tipo de pessoa que apaga da memória essas coisas. Ele acha, por exemplo, que é o grande inventor do centro de referência. Então, ele pediu a mim, à Maria Eugênia, à Walkyria e à Rosana um plano de emergência para resolver a situação crítica em que estava o programa de Aids e consertar o estrago. Nós aproveitamos a oportunidade e aí sim, com carta branca dele em todos os sentidos, inclusive financeiro, montamos o centro de referência e reorganizamos todo o programa do Estado com bases muito mais avançadas.9 Esse foi o segundo capítulo do combate à Aids no Estado de São Paulo. 925


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Em 1989, apareceu o AZT e São Paulo foi o primeiro estado a oferecer o remédio na rede pública. Antes do AZT, a sobrevida não passava de seis meses e só se podia garantir o tratamento de doenças oportunistas, aquelas decorrentes da infecção pelo HIV. Não havia testes, o diagnóstico era clínico. Depois veio o DDI, o 3TC, mas a virada só se deu com a chegada do coquetel, em 1995-1996, e isso só ocorreu também no Brasil porque se construía uma infra-estrutura havia 13 anos. Daí a importância de termos confrontado questões difíceis como drogas, sexualidade, estigma. Por isso, colhemos os melhores resultados. Olhando para trás, tenho alívio, o que faz minimizar os dez primeiros anos que foram trágicos e as perdas imensas. Até hoje existem críticas em relação ao programa de Aids, a propósito de seu caráter vertical, principalmente nos últimos anos. Eu acho que essa é uma questão de diferença de análise. Na minha opinião, não só a Aids, mas várias questões de saúde pública, não podem esperar a construção do SUS, que é um processo de décadas, para atuar de maneira mais efetiva. O caráter de urgência de determinados problemas de saúde não pode ser desconsiderado e, nesse sentido, a ação vertical é absolutamente correta. Isso foi feito com o programa de Aids e, a partir daí, houve sim um processo de descentralização bastante intenso. Hoje, ele está implantado em todo o país, houve uma aproximação maior com outros programas de saúde, principalmente com saúde mental, sexual, reprodutiva, mas, sem dúvida, ele mantém sua identidade e autonomia, também por conta de uma produção maior. Eu acho também que não existe um momento em que se pode dizer com segurança que agora o problema emergencial está resolvido, vamos integrar e deixar que a rede pública cuide de tudo. Foi o erro que ocorreu com a Saúde da Mulher. No Estado de São Paulo, foi prematuramente decretada a integração na rede que não estava preparada para receber o programa sem uma referência mais centralizada. Não existe um diagnóstico definitivo que necessite colocar em contraposição o fortalecimento do SUS e sua verticalização. O que o Brasil fez, principalmente nos últimos seis anos, foi um processo de municipalização, de descentralização por estado, integração dos recursos nos orçamentos locais e, eu digo com segurança, a Aids caminhou na construção do SUS e avançou mais que muitas outras áreas básicas. Eu continuo defendendo que, não só a Aids, mas uma série de problemas de saúde, necessitam no Brasil de um tratamento menos esquemático. As ações, a intervenção e o acesso têm que se dar no nível da rede, mas também necessitam de instâncias secundárias e de instâncias formuladoras e de referência, que a gente determinou no programa de Aids do Estado e no programa nacional. O Brasil tem o privilégio de ter um sistema único de saúde aprovado na Constituição, o que tornou o rumo mais claro – não mais fácil – que deveria ser tomado em relação à Aids em todos os níveis, na medida em que a nossa referência é um sistema único. Outros países, que têm ainda aquele sistema de segurados, não segurados, saúde pública para pobres, continuam enfrentando problemas. Eu acredito que os princípios do SUS são válidos para o mundo inteiro, tanto que – progressivamente, gradativamente – mais países no mundo, na África e na Ásia, estão eliminando o pagamento das ações relacionadas à Aids. A OMS ainda não chegou a adotar essa posição como sendo oficial, porque tem que ser feita em cima de um consenso de todos os países. Mas tem coletado e divulgado estudos demonstrando que o pagamento pelo tratamento, por menor que seja, é uma barreira para a prevenção e os cuidados.”

Palavras-chave: AIDS. Reforma sanitária. História da Ciência. Key words: Aids. Sanitary reform; History of Science. Palabras clave: Aids. Reforma sanitaria. Historia de la Ciencia.

Recebido em 07/11/08. Aprovado em 07/11/08.

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livros

MONTEIRO, S.; VARGAS, E. (Orgs.). Educação, comunicação e tecnologia educacional: interfaces com o campo da saúde. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2006. 252p.

Willer Baumgarten Marcondes1

A área da educação em saúde, ao mesmo tempo em que articula historicamente diferentes disciplinas, evidencia os grandes desafios da criação de interfaces entre distintos saberes e poderes que se encontram e, por tantas vezes, tensionam o campo da saúde. Contudo, dependendo da perspectiva, tal construção de interfaces, mais do que uma dificuldade em si, pode se caracterizar como uma excepcional oportunidade para o aprofundamento dos diálogos disciplinares, a criação de alternativas metodológicas e, sobretudo, a renovação de conhecimentos e práticas na saúde. Focar nesta oportunidade e articular a capacidade crítica com a proposição de caminhos foi a grande realização de Simone Monteiro e Eliane Vargas, ao organizarem esta coletânea. Tendo em vista a já tão consolidada crítica no campo da saúde sobre a insuficiência do modelo biomédico para dar conta das ações de educação em saúde, as autoras, enfrentam, então, com clareza, ousadia e coerência, a grande questão que consiste em redefinir, nesse campo, a relação entre modelos paradigmáticos e suas fontes teórico-conceituais. Assim, se concordamos que o modelo biomédico é insuficiente, como então faremos

para recolocá-lo em relação a novas perspectivas e outras abordagens? Como deslocá-lo de sua questionada posição hegemônica para um campo dialógico com outras falas disciplinares no processo saúde e doença? Ao se voltarem para estas inquietações, que dizem respeito a todos os atores da saúde, as autoras reuniram, entre os capítulos desta publicação, contribuições de pensadoras engajadas com práticas, muitas vezes pioneiras, de pesquisa, atuação, desenvolvimento e avaliação de tecnologias educacionais no Brasil. O ponto de encontro, reiterado e enriquecido por diferentes perspectivas teórico-conceituais ao longo dos capítulos, converge na defesa da problematização e da contextualização como posturas a serem adotadas para a superação dos limites identificados na área da educação em saúde. O livro se situa na perspectiva das práticas educativas e comunicativas em saúde, bem como das tecnologias educacionais, e o faz de modo bem consciente do polêmico debate no qual está entrando. Para fazer frente aos desafios da redução simplista que aborda os recursos educativos de modo tecnicista e enfoca as práticas pela via da

1 Cientista social. Coordenação de Educação, Cultura e Saúde, Fiocruz Brasília. SEPN, 510, Unidade II, Ministério da Saúde - sala 402. Brasília, DF 70.750-520 willerbm@ensp.fiocruz.br

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transferência de informação para mudanças de hábitos e comportamentos (em geral de abordagem individual e culpabilizante), as autoras contrapõem um rico panorama de construção compartilhada de conhecimentos e de sentidos sociais. Destacam, igualmente, um projeto político-pedagógico comprometido com a autonomia dos sujeitos e a mudança de condições de vida que repercutem no processo saúde e doença. Portanto, tecnologias e práticas educativas e comunicativas são problematizadas e contextualizadas na dimensão social e humana em que são produzidas e postas em curso. As interfaces da educação, comunicação e tecnologia educacional com o campo da saúde possuem aqui uma pertinente e tão necessária fundamentação, por meio dos campos da antropologia cultural, educação, comunicação e saúde coletiva, para subsidiar processos em que se busca conhecer melhor para intervir com melhores práticas na educação em saúde. Dessa forma, o livro viabiliza o seu objetivo de estimular o conhecimento na área da educação em saúde, bem como divulgar a produção de tecnologias educacionais com ênfase no seu desenvolvimento e avaliação. Além do instigante prefácio de Maria Teresa Citeli e da apresentação, assinada pelas organizadoras, que mapeia a obra de forma exemplar, a publicação é composta de duas partes: a primeira reúne reflexões teóricometodológicas; a segunda realiza descrição e análise do Banco de Materiais do Laboratório de Educação em Ambiente e Saúde (Leas/IOC/ Fiocruz). Conta com um total de sete artigos e uma seção de “Banco de Materiais”, que oferece uma interessante lista de referências, com os dados catalográficos de folders e folhetos, manuais e jogos organizados por título, editor, local, data, público-alvo, temas e fontes. Logo no primeiro capítulo, intitulado “Desenvolvimento e Uso de Tecnologias Educacionais no Contexto da Aids e da Saúde Reprodutiva: Reflexões e Perspectivas”, assinado por Simone Monteiro, Eliane Vargas e Marly Cruz, as autoras problematizam os materiais educativos em termos conceituais. Para tanto, destacam a dimensão comunicativa das ações de educação em saúde, articulam, na teoria da comunicação, a questão da recepção como produção de sentido, e os limites de modelos educativos pautados pela abordagem comportamental. Alertam, sobretudo, 928

que, para além da visão de produtos meramente instrumentais, os materiais educativos possuem fundamentos educacionais e pressupostos teóricoconceituais que precisam ser explicitados e aprofundados. Afirmam isso porque identificaram lacunas na área com base em pesquisa original na qual empreenderam revisão bibliográfica e análise de trabalhos apresentados em anais de congressos - por sinal, uma promissora tendência metodológica para estudos sobre campos científicos. Além disso, ao constatarem a disparidade entre o volume de produções desses materiais educativos e a pouca discussão sobre o seu emprego e repercussões, ressaltam novas pautas para a agenda de pesquisa e avaliação. Estas preocupações permeiam toda a coletânea e são reafirmadas pela experiência pioneira de Inesita Araújo, autora do segundo capítulo, intitulado “Materiais Educativos e Produção de Sentidos na Intervenção Social”. Seu estudo sobre a recepção de materiais educativos no meio rural e as reflexões posteriores ilustram, por meio da sua busca de clarificação conceitual, a construção de um campo de estudos no final dos anos 80 no qual a autora articulou a abordagem teórica dos processos de recepção à da antropologia e da socioeconomia. A autora defende a importância da contextualização das ações mas, também, e o mais importante, propõe como realizá-la por intermédio do seu conceito de “lugar de interlocução”. Explicita interessantes questões que prejudicam ou favorecem a necessária concretude dos textos e critérios a serem considerados ao se lidar com a produção de materiais educativos. No terceiro capítulo, intitulado “Tecnologia Educacional na Área da Saúde: A Produção de Vídeos Educativos no NUTES/UFRJ”, Vera Helena Siqueira parte da memória do Núcleo de Tecnologia Educacional para a Saúde para uma reflexão sobre a experiência brasileira com tecnologias educacionais, seus alcances e autocríticas na inter-relação entre paradigmas adotados e seus momentos políticos. Ao contextualizar os materiais educativos, discute a construção da “intenção pedagógica”, com base na interação de profissionais de diferentes áreas, e partilha a estratégia do Núcleo, sistematizada por meio de pesquisa, sobre produção coletiva de vídeos. Outras experiências de dois importantes laboratórios de educação e saúde, o Leas e o Labes, ambos da Fiocruz, também são articuladas

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estratégias e perspectivas para trabalhos com as NTIC. A segunda parte da coletânea é aberta com o texto “Banco de Materiais: Desenvolvimento e Estímulo a Novas Pesquisas”, no qual Eliane Vargas e Simone Monteiro apresentam e discutem a perspectiva da lista de referências de materiais educativos que consta do apêndice da publicação e se configura em fonte não só de consulta, mas também de novas pesquisas. Compartilham a experiência de sistematização desse banco e a organização do acervo situado no Leas (IOC/ Fiocruz) com impressionante capacidade dirigida pela abordagem de pesquisa em educação em saúde e de saúde reprodutiva e sexual, que supera os tradicionais limites da biblioteconomia. Apontam, com grande originalidade, a construção de categorias classificatórias, e como tal conhecimento contribui para novas experiências com acervos, bem como a análise dos materiais educativos à luz de modelos e paradigmas educativos que os orientam. Ao longo da obra, encontramos argumentos, reflexões e exemplos de como - se devidamente problematizadas e contextualizadas -, as práticas educativas e comunicacionais em saúde se contrapõem a ações espontaneístas, e, da mesma forma, as tecnologias educacionais aos tecnicismos. Nesta coletânea as autoras colaboram para elevar as discussões da área a um novo patamar, ao aliar a pertinência da crítica a uma imprescindível postura propositiva, com exemplos concretos, compromissados com a fundamentação teórica, e capazes de fazer frente ao imobilismo e à repetição de equívocos que sempre rondam a área da educação em saúde. Este livro, portanto, é uma importante referência de leitura para quem atua na área, mas também é um interlocutor, organizado com base em muitas vozes, para se pensarem e construírem melhores itinerários de pesquisa e intervenção no campo da saúde.

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livros

no quarto capítulo: “Experiências de Desenvolvimento e Avaliação de Materiais Educativos sobre Saúde: Abordagens SócioHistóricas e Contribuições da Antropologia Visual”, assinado por Denise Pimenta, Anita Leandro e Virgínia Schall. Nesse texto, as autoras ilustram e apontam caminhos para o diálogo entre disciplinas para a superação dos limites de abordagens simplistas da saúde; e propõem a articulação da antropologia visual como um novo arcabouço teórico-metodológico para novos conhecimentos e práticas de produção e avaliação de materiais educativos. A antropologia visual também oferece critérios para análise de vídeos no quinto capítulo: “Videoteca da Mulher. Mas Afinal, Vídeos para Quem?”, de Clarice Peixoto. Ao discutir a construção das imagens videográficas, destaca a contextualização dos materiais educativos como um imperativo para trabalhos mais coerentes com os objetivos e os sujeitos da recepção. Questão fundamental, uma vez que a preocupação com a decodificação da informação, bem como se o vídeo é atraente e prazeroso a quem é dirigido, significa buscar a construção de olhares em relação de reciprocidade, e não que se esteja subestimando a capacidade do receptor. Ao discutirem as “Novas Tecnologias de Informação e Comunicação na Formação de Recursos Humanos em Saúde”, no sexto capítulo, Miriam Struchiner e Taís Giannella reafirmam a necessidade da problematização dos modelos que informam as ações, pois estas são imbuídas de projetos político-pedagógicos, e não apenas de tecnologias. Nesse sentido, as autoras abordam, como uma de suas principais questões, a mudança primordial de foco ocorrido nas novas tecnologias de informação e comunicação (NTIC), a saber: do “processo de instrução” ao “processo de aprendizagem”, este de perspectiva ampliada, no qual os sujeitos da aprendizagem estão no centro do processo educativo. Ademais, destacam

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Os egressos como atores do processo de avaliação curricular do curso de Enfermagem da Famema Undergraduates as players in the curriculum evaluation process of the nursing course at FAMEMA

Objetiva-se avaliar o processo de formação do Curso de Enfermagem da FAMEMA, com base na ótica dos egressos formados na primeira turma da mudança curricular. Para tal, decidiuse: conhecer como foi sua trajetória estudantil; identificar sua inserção no mundo do trabalho; conhecer seus conflitos e dilemas, e avaliar as eventuais marcas deixadas pelo processo de formação nas formas de inserção profissional. Analisou-se o caminho percorrido trazendo, como referencial, os pressupostos da avaliação emancipatória, no sentido de tornar visíveis os avanços e vulnerabilidades de um projeto de formação crítico-reflexivo em saúde. A pesquisa foi realizada com egressos, após três anos de formados, e utilizada a técnica de entrevista semi-estruturada para a coleta dos dados. Com os dados empíricos, desenvolveu-se a análise de conteúdo na modalidade temática, identificando, como tema central, as contradições do processo de construção do enfermeiro crítico e, como subtemáticas, os conflitos de ser estudante da FAMEMA e os dilemas da inserção no mundo do trabalho. Os olhares dos egressos evidenciaram que a formação possibilitou construir valores necessários à prática profissional diferenciada, tais como a disposição do aprender a aprender, considerando que a prática é dinâmica e passível de muitas contradições. Possibilitou, ainda, identificar que a proposta de mudança é um projeto contra-hegemônico, necessitando transformações não só no processo de formação,

mas na forma de enfrentar os conflitos do mundo do trabalho, que ainda se mantém refém de um modelo de saúde fragmentado. Silvia Franco da Rocha Tonhom Tese (Doutorado), 2006 Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas tonhom@terra.com.br

Palavras-chave: Avaliação. Formação crítico-reflexiva. Enfermagem. Egressos. Ensino superior. Key words: Evaluation. Critical-reflexive education. Nursing. Egressed students. Higher education. Palabras clave: Evaluación. Educación critico-reflejiva. Enfermería. Graduados. Enseñanza superior.

Texto integral disponível em: <http://libdigi.unicamp.br/document/?code=vtls 000404174>

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O processo de gerência nas Unidades de Saúde da Família: limites e possibilidades em sua construção The management process in Family Health Units: limits and possibilities for its construction Esta investigação tem por objeto de estudo o processo gerencial desenvolvido na atenção básica, em específico nas Unidades de Saúde da Família (USF), do município de Marília – SP, Brasil. A Saúde da Família tem se constituído em estratégia para a reorganização da atenção básica e da produção em saúde proposta, a partir de 1994, pelo governo brasileiro, e sustentada pelos princípios e diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS). Um dos desafios nesse processo é o de buscar o comprometimento dos trabalhadores de saúde, assim como o de estabelecer instrumentos, como, por exemplo: a gerência de serviços de saúde, para a reorganização do processo de trabalho em saúde, que possibilitem o atendimento das necessidades de saúde da população, e a ação de saúde voltada para a produção de cuidados. Assim, o presente estudo tem por objetivos: apreender as características tecnológicas do processo de trabalho em saúde – o objeto, a finalidade, o modo de agir e as tecnologias utilizadas - na perspectiva do trabalho gerencial nas USFs; identificar e analisar a compreensão acerca do processo gerencial pelos trabalhadores de saúde; analisar a potência da gerência como ferramenta para a consolidação dos princípios e diretrizes do SUS na Saúde da Família. Para tanto, aproximamo-nos do referencial da micropolítica do processo de trabalho em saúde. A captação do empírico consistiu em entrevistas semi-estruturadas junto aos trabalhadores de saúde de duas USFs. Os dados obtidos foram submetidos à análise de conteúdo, modalidade temática. O processo de trabalho desenvolvido nas USFs investigadas foi apreendido com base em quatro temas identificados no estudo: concepção do trabalho na Saúde da Família; organização do processo de trabalho; trabalho em equipe na produção do cuidado; relação equipe de saúde – usuário na produção do cuidado. A análise e apresentação dos temas pautaram-se pela articulação à configuração

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teórico-metodológica que sustenta a presente investigação. Assim, os temas apresentam-se articulados: ao objeto de trabalho na Saúde da Família e a projetos que sustentam essa prática em saúde; aos instrumentos e ao modo de agir no cotidiano do serviço, e à constituição do processo de gestão/gerência. A análise empreendida aponta que o processo de trabalho em saúde apresenta limites para tomar as necessidades de saúde dos usuários em sua complexidade, utilizando instrumentos estritos ao setor saúde e desarticulados do processo de produção e reprodução social; no entanto, os trabalhadores expressam relações de responsabilização e acolhimento junto aos usuários dos serviços de saúde. A condução da prática gerencial, também, apresenta limites, para ser tomada como um instrumento com potência para desencadear, no conjunto dos trabalhadores, um processo de reflexão e revisão sobre sua prática, e os encaminhar à adesão e comprometimento a um processo de produção de cuidados à saúde na direção apontada pelo SUS; porém há um movimento de tentativa, de ensaio, de procura ... Kátia Terezinha Alves Rezende Tese (Doutorado), 2007 Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo. katia@famema.br

Palavras-chave: Administração de serviços de saúde. Atenção primária à saúde. Saúde da família, Saúde pública. Key words: Health services administration. Primary health care. Family Health Program. Public health. Palabras clave: Administración de los servicios de salud. Atención primaria en salud. Salud de la família. Salud pública. Texto na íntegra disponível em: http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/22/22133/ tde-12032008-094048/

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