editorial
O fascículo 28 abre o décimo segundo ano de publicação de nosso periódico, momento oportuno para um balanço do trabalho editorial com a comunidade de leitores, autores e avaliadores. Dentre as diferentes questões que compõem o processo de comunicação científica, gostaríamos de destacar as principais razões pelas quais os manuscritos são rejeitados em seu processo de avaliação de mérito científico. Como outros periódicos nacionais e internacionais, Interface adotou uma etapa inicial de pré-avaliação, na qual seu Corpo Editorial (editores, editores assistentes e editores associados) busca responder aos autores, com brevidade, se o manuscrito atende aos requisitos da revista e de um documento científico. Aprovado nesta etapa, o processo segue para a segunda e mais longa avaliação, realizada, nessa fase, pelos membros do Conselho Editorial Científico ou por avaliadores ad hoc. Em 2008, 46% das 429 submissões recebidas foram rejeitadas nessa etapa de pré-avaliação. Entre as razões mais constantes para a alta frequência de rejeição estão: o desacordo com as normas de submissão e a não adequação do manuscrito ao escopo da revista. É importante ressaltar que parte das recusas se deve ao caráter interdisciplinar de nosso periódico e à não aceitação de textos cuja temática ou abordagem seja muito específica de uma área de conhecimento. Neste caso, buscamos orientar os autores a encaminharem seus manuscritos a periódicos que melhor alcancem os leitores daquela área. Outros aspectos da qualidade do manuscrito que motivam sua rejeição na pré-avaliação compreendem a originalidade e relevância da temática tratada. A experiência tem indicado que a etapa de pré-avaliação é extremamente importante por reduzir o tempo de avaliação, nos casos de um julgamento negativo. Permite, ainda, interação entre autor e editor, já no início do processo, dando mais agilidade na tramitação dos manuscritos submetidos e, nos casos de aprovação em pré-avaliação, da análise de mérito por pares. Na segunda etapa de avaliação dos manuscritos, com a colaboração efetiva dos editores associados, membros do Conselho Editorial Científico e avaliadores ad hoc, as razões mais frequentes para a rejeição têm sido: o objeto do estudo está mal-estruturado ou pouco claro; o referencial apresentado não alcança a densidade teórico-metodológica requerida e/ou não traz elementos suficientes para expor as questões do manuscrito e o debate dentro do campo, contribuindo para o avanço do conhecimento ou trazendo novas questões ou propostas para o debate; o desenho estabelecido para o estudo não está adequado aos seus objetivos e/ou há uma desarticulação do mesmo com a descrição e análise dos resultados e conclusões do estudo; em muitos casos, falta clareza na descrição dos objetivos e/ou do problema da investigação; os resultados são apenas descritivos, sem uma análise e interpretação apoiadas pelo referencial escolhido; as conclusões apresentadas não são sustentadas pelos resultados obtidos e não respondem ao problema levantado e aos objetivos propostos; as características desejáveis de um texto científico - entre as quais: objetividade, clareza de idéias, sintaxe e gramática - são desconsideradas na apresentação do manuscrito; no caso de estudos teóricos, além dessas características, muitas vezes os textos são rejeitados pela falta de coerência interna e consistência teórica e argumentativa. É importante ressaltar que, em caso de rejeição de manuscrito, há uma preocupação especial dos editores responsáveis pelo processo, ao se comunicarem com o autor, de apresentarem os pareceres emitidos (ou a síntese deles), no sentido de colaborarem para a sua reelaboração e possível superação de suas deficiências. Por fim, cabe comentar que, como todo processo que avalia a produção, este não é simples ou fácil e está sempre em amadurecimento. Faz-se por meio das trocas entre os pares, entre os que são avaliados e os que avaliam, sendo estas as situações que todos nós alternamos. Ser criticado é tão difícil quanto criticar e temos buscado o bom trânsito por essas situações, estimulando a crítica construtiva e o diálogo franco e direto entre Interface e os autores, bem como entre aqueles que colaboram como revisores dos manuscritos submetidos à revista. Instamos, assim, os colaboradores interessados em publicar na Interface a se sentirem à vontade para o uso dessa comunicação. Os editores Antonio Pithon Cyrino Lilia Blima Schraiber Miriam Foresti
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
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editorial editorial
Issue 28 opens the twelfth publishing year of our journal and it is an excellent opportunity for a balance of our editorial work with the community of readers, authors and evaluators. Among the different issues which compose the process of scientific communication, we must emphasize the main reasons why manuscripts are rejected in the peer review process. As most of national and international journals, Interface has adopted an initial pre-evaluation stage, in which its Editorial Board (editors, assistant editors and associated editors) tries to shortly answer the authors, if the manuscript attends the requirements of the journal and of a scientific document. After its approval, it goes through the second and longest stage of the peer review process, held by members of the Scientific Editorial Board by ad hoc evaluators. In 2008, 46% out of the 429 received submissions were rejected at the pre-evaluation stage. The disagreement with the submission rules and the disconnection of the manuscript to the periodical scope are the most frequent reasons for this high index of rejection. It is important to emphasize that part of the refusals is due to the interdisciplinary character of Interface and to the inadequacy of papers whose themes or approaches are too specific of a scientific area. In this case, we suggest the authors to submit their manuscripts to journals which reach readers from those specific areas. Other aspects evolving the quality of the manuscript as originality and subject relevance also motivate its rejection. Experience has indicated that pre-evaluation stage is extremely significant for reducing in time the peer review process, in case of papers that do not attend the journal requirements. It also allows the interaction between author and editor in the beginning of the process, providing agility to the procedures for the submitted manuscripts and, in the case of a positive pre-evaluation, in the peer review process. At the second stage of peer review process, with the effective contribution of associated editors, members of Scientific Editorial Board and ad hoc evaluators, the most frequent reasons for rejection can be attributed to the fact that the object of study is poorly structured or is not clear; the presented referential do not reach the required theoretical and methodological density and/or do not bring enough elements to expose the manuscript issues to the appropriated discussion of the subject, contributing to advance of knowledge or bringing new approaches or proposals for debating; the design for studying is not suitable to reach the proposed objectives and/or it is not articulated with the description and analysis of the results and conclusions of the study; in many cases, the description of the objectives and/or the investigation issue is not clear; the results are not followed by a careful date analysis and interpretation supported by consistent theoretic referential; the presented conclusions are not sustained by the results and do not present an answer to the enounced issue and to the proposed objectives; the awaited formal characteristics of a scientific paper as objectivity, clearness of ideas, syntaxes and grammar are not taken into account when the manuscript is submitted. Besides these characteristics, theoretical studies are often rejected for not presenting an internal coherence, as well as argumentative consistence. It is important to point out that, in case of manuscript rejection, the editors are concerned about presenting their opinions by contacting the author, intending to contribute for the necessary corrections and manuscript improvement. Finally, as occurs in any process which evaluates production, this is not a simple or easy task and it is always under improvement. This process involves the exchanges among peers, among those who are being evaluated and those who evaluate. Being criticized is so difficult as criticizing and we try to succeed by stimulating constructive critical and honest dialogue between Interface and the authors, as well as with those who collaborate as reviewers of the submitted papers. We have insisted for those who are interested in publishing at Interface to use this proposed way of communication. The editors Antonio Pithon Cyrino Lilia Blima Schraiber Miriam Foresti
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Narrativas sobre o processo saúde-doença: experiências em grupos operativos de educação em saúde
Cesar Augusto Orazem Favoreto1 Cristiane Coelho Cabral2
FAVORETO, C.A.O.; CABRAL, C.C. Narratives on the health-disease process: experiences in health education operational groups. Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.13, n.28, p.7-18, jan./mar. 2009. This paper aims to analyze the enlargement of meanings in narratives on the health-disease process among people with chronic diseases who participated in a health education operative group. It points to the narratives based on a experience whose main objective is to foster the collective elaboration of meanings for illness, and to integrate personal experiences and knowledge with biomedical knowledge and clinical practice. Through semi-structured interviews, the work evaluated the construction of meanings on illness beyond the biomedical model, and the impacts of this new narrative on the way the patient lives, at present, his clinical and therapeutic process. We found that people, through interchange, valorization and legitimation of meanings and knowledge arising from individual and collective experiences within the group, change their concepts on the healthdisease process that transcend the medicalizing perspective of biomedicine.
Key words: Narrative medicine. Health education. Chronic diseases.
Pretendeu-se, neste trabalho: analisar a ampliação dos significados nas narrativas sobre o processo saúde-doença em portadores de doenças crônicas que participaram de um grupo operativo de educação em saúde; identificar as narrativas formadas a partir de uma experiência que visa promover a elaboração coletiva de novos significados para o adoecimento e integrar as vivências e saberes pessoais com o conhecimento biomédico e a prática clínica. Por meio de entrevistas semiestruturadas, avaliou-se a construção de significados sobre o adoecimento para além do modelo biomédico e os impactos desta nova narrativa sobre o modo como o paciente vivencia, no presente, seu processo clínico terapêutico. Identificouse que as pessoas, mediante troca, valorização e legitimação de significados e saberes desenvolvidos a partir das vivências individuais e coletivas no grupo, produzem mudanças nas suas concepções sobre o processo saúde-doença que transcendem a perspectiva medicalizante da biomedicina.
Palavras-chave: Medicina narrativa. Educação em Saúde. Doenças crônicas.
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Médico. Departamento de Medicina Integral, Familiar e Comunitária, Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). Rua São Francisco Xavier, 649, casa 7, Maracanã, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. 20.550-011 cesarfavoreto@globo.com 2 Médica Residente em Medicina de Família e Comunidade. Departamento de Medicina Integral, Familiar e Comunitária, Faculdade de Ciências Médicas, UERJ. 1
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A atenção realizada pelos médicos em uma prática clínica centrada apenas na racionalidade biomédica não tem demonstrado efetividade, sobretudo no que tange à atenção aos portadores de doenças crônicas (Bury, 2001). Neste sentido, as intervenções tradicionais na clínica, como o diagnóstico realizado com base em uma anamnese restrita à coleta de sinais e sintomas das doenças e sob uma perspectiva da terapêutica restrita à prescrição de fármacos, têm dificultado a compreensão dos problemas e significados envolvidos no processo de adoecimento, assim como a adesão dos pacientes aos programas terapêuticos oferecidos (Favoreto, 2004; Camargo Jr., 1997). Na atenção aos portadores de doenças crônicas, o modelo de prática clínica centrado na dimensão biomédica e com olhar dirigido apenas para a doença se torna ainda menos eficiente do que em situações nas quais ocorrem formas de adoecimento agudo (Bury, 2001). Para maior efetividade da atenção aos portadores de doenças crônicas, torna-se fundamental que a prática clínica assuma uma dimensão dialógica, interativa e cuidadora (Kleinman, 1988). A vivência das pessoas com formas crônicas de adoecer e de sofrer exige que o médico entenda o significado de todo o adoecimento e atue integrando o saber médico com o do paciente, produzindo uma síntese que o inclui como sujeito no processo clínico-terapêutico. Do contrário, como Júlio de Mello afirma, o paciente se torna dependente dos remédios ou do médico (Mello Filho, 2000). As noções de sujeito e de intersubjetividade passam a ser centrais quando se pensa uma clínica que avance em uma perspectiva mais dialógica e cuidadora para as pessoas (Ayres, 2001). Essa dialogicidade facilita o surgimento das dificuldades subjacentes à adesão ao tratamento e promove um novo entendimento do papel da terapêutica, que pode conduzir à ação e à transformação das pessoas envolvidas. Com essa perspectiva, fomentam-se novas iniciativas para a resolução das dificuldades e a produção de novas narrativas, capazes de transformar informação em atitude e que impliquem que os homens assumam seu papel de sujeitos que fazem e refazem o mundo (Silveira, Ribeiro, 2004). No sentido de revalorizar o papel dos portadores de doenças crônico-degenerativas como sujeitos, e compreender os significados por eles produzidos sobre o processo de saúde e adoecimento e as intervenções clínico-terapêuticas, utilizaram-se, como referencial conceitual e metodológico: a abordagem e análise da narrativa. Parte-se do reconhecimento da narrativa como um elemento para a compreensão: dos textos e dos contextos mais amplos, diferenciados e mais complexos; da experiência das pessoas e o modo específico como elas fazem a construção e constituição de suas vivências. Assim, a narrativa representa, ao mesmo tempo, modelos do mundo e modelos do self, pelos quais construímos a nós mesmos como parte de nosso mundo (Brockmeier, Harré, 2003). Para Bakhtin (2004), as palavras e as formas de comunicá-las permitem trazer à tona o mundo interior, isto é, expressar os significados produzidos pela consciência individual e construídos no contexto social no qual o indivíduo se realiza como pessoa. Deste modo, a palavra e a enunciação por ela expressa teriam o papel de materializar a vida semiótica interior. A narratividade, ao integrar o contexto de vida das pessoas e a construção de suas realidades e identidades, é compreendida por Hydén (1997) como fruto de uma síntese de discursos políticos e morais, criados pelas pessoas para entenderem e julgarem as circunstâncias e situações em que vivem. A importância da narrativa para o indivíduo estaria, assim, nas possibilidades que ela cria de percebermos, vivenciarmos e julgarmos nossas ações e o curso de nossas vidas (Donald, 2002). A narrativa e sua análise representam, portanto, uma ferramenta conceitual e operativa, que permite evidenciar as ligações entre a identidade da pessoa, sua experiência do adoecimento e a cultura a que ela pertence e em que está envolvida (Bury, 2001). Ao incorporar e ordenar os eventos, subjetiva e cronologicamente, a narrativa pessoal do adoecimento produz um enredo que integra causa e efeito com as variáveis do caráter humano e da motivação pessoal (Hunter, 1996). Neste sentido, a narrativa pode ser vista como um “conceito operativo central” para a abordagem e compreensão da identidade das pessoas adoecidas (Hydén, 1997). Kleinman (1988) esmiúça esta idéia, e considera a narrativa uma ferramenta de análise que se destina a identificar como os pacientes dão forma e voz a seus sofrimentos de modo diferente de como a biomedicina os representa. Por outro lado, a análise da narrativa do adoecimento incorpora, de modo significativo, o papel dos fatores situacionais na construção dos significados pessoais do processo saúde-doença. Investigam-se as 8
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imponderáveis possibilidades de construção de novas narrativas em cada novo contexto, particularmente a cada interação entre o narrador e o ouvinte, e vice-versa. Esta inflexão tem possibilitado estudar a experiência de adoecimento do paciente, e o mundo no qual ele está inserido, como uma realidade social e cultural (Greenhaulgh, 2002; Hydén, 1997; Good, Good, Delveccchio, 1981). A valorização e compreensão da narrativa, pelos profissionais de saúde, podem, assim, ampliar a capacidade de escutar e interpretar as falas e demandas dos pacientes para além dos sinais e sintomas expostos no encontro clínico, e, por conseguinte, facilitar o entendimento do significado das histórias dos pacientes (Greenhaulgh, 2002; Charon, 2001). A falta desta percepção pode interferir negativamente na efetividade das ações terapêuticas, e explicar, em muitos casos, a falta de adesão a elas. Nesta situação, a baixa adesão pode ser diretamente influenciada pela forma como as pessoas vivenciam e concebem seu adoecimento e pelas intervenções propostas pelos profissionais de saúde. Por outro lado, o desenvolvimento da narrativa no processo clínico-terapêutico, como na psicanálise, pode adquirir papel terapêutico central. Ao achar as palavras capazes de expressar as desordens e os medos delas decorrentes, a pessoa dá forma e exerce controle sobre o caos e as rupturas provocadas pela enfermidade (Charon, 2004; Frank, 1995). Ressaltar a importância terapêutica da narrativa representa entender o paciente como personagem de seu próprio adoecer e que, como sujeito, interage com outros saberes e poderes; defende seus argumentos, negocia responsabilidades, define identidades e pleiteia direito a um determinado saber. Neste caso, os novos repertórios e atitudes podem ter impacto sobre o projeto terapêutico em aspectos que transcendem a simples adesão aos fármacos (Frank, 1995). Podem influir na superação de rupturas produzidas pelo adoecimento, na formação de uma nova identidade cultural e social e, sobretudo, na produção da autonomia e melhoria da qualidade de vida. Partindo deste entendimento, tomaram-se, como objeto de estudo, as narrativas construídas sobre o processo saúde-doença e clínico-terapêutico desenvolvidas por portadores de doenças crônicas, após participarem de um grupo operativo de educação em saúde. Os objetivos da pesquisa foram: observar se as pessoas, com base em uma vivência dialógica e coletiva, ampliam os significados do processo saúde-doença para além de uma concepção biomédica; e como esses novos sentidos são incorporados em suas narrativas pessoais sobre o adoecimento.
As características do grupo ConViver Este grupo, que funciona há sete anos, é formado por portadores de doenças crônico-degenerativas, como: diabetes mellitus tipo II, hipertensão arterial sistêmica e/ou obesidade. Os pacientes são convidados, pelos médicos residentes e internos dos ambulatórios do Hospital Universitário Pedro Ernesto (HUPE – UERJ), a participarem desta atividade. O Grupo ConViver é organizado na forma de grupo fechado de participantes, com encontros semanais, de duas horas de duração, ao longo de três meses. Esses encontros são coordenados por residentes do segundo ano de Medicina de Família e Comunidade e psicólogos do Curso de Especialização em Psicologia Médica da FCM/UERJ, sob supervisão docente. Silveira (2004, p.95) descreve esse grupo de adesão como “operativo e terapêutico, tendo em vista que seu objetivo é identificar dificuldades, discutir possibilidades e encontrar soluções adequadas para problemáticas que estejam dificultando o tratamento”. Assim, o grupo operativo se propõe a ser informativo, reflexivo e de suporte, objetivando o desenvolvimento da autonomia dos pacientes. Com base na complexidade e na integralidade da saúde, o grupo desenvolve, coletivamente, temas trazidos pelos participantes, que envolvem aspectos da saúde, doença e da vida, como: religiosidade, sexualidade, morte, remédios, efeitos colaterais, automedicação, regimes terapêuticos, preconceitos, política, violência, tristezas, alegrias - uma multiplicidade de temas que ilustra a amplitude na qual está inserida a adesão ao tratamento (Silveira, 2004).
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Estratégia da pesquisa Para se aproximar dos significados do adoecimento construídos pelas pessoas com base em suas experiências no ConViver, foram aplicadas 15 entrevistas semiestruturadas, realizadas com um número proporcional e uma amostra aleatória entre os 62 participantes dos seis grupos realizados em 2006. A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa do HUPE-UERJ. As entrevistas foram aplicadas após o consentimento informado dos pacientes, gravadas em meio digital e, em seguida, transcritas e analisadas por dois pesquisadores. As questões norteadoras das entrevistas foram relativas à vivência, às percepções e ao significado pessoal do adoecimento, desenvolvido com base na participação no grupo. É importante observar que as pessoas entrevistadas não representam a clientela geral do ambulatório. A participação nesse grupo de convivência e educação em saúde, por si só, significa uma seleção desta clientela em relação à população geral do ambulatório. Essas pessoas chegaram ao grupo, em sua maioria, a partir da orientação de seus médicos acompanhantes. Neste caso, segundo as falas dos pacientes e a experiência acumulada com esta atividade nos últimos sete anos, o vínculo criado na relação médico-paciente nas consultas havia sido o principal fator motivador para a participação no grupo. O vínculo com os médicos assistentes se refletia nos relatos sobre a boa adesão aos tratamentos farmacológicos preconizados, assim como na maior informação dos pacientes quanto às condutas terapêuticas que envolvem o processo de adoecimento. As falas dos entrevistados não expunham ruídos relacionados ao vínculo entre médico e paciente ou a problemas com a adesão aos medicamentos. Não é possível descartar a possibilidade de que o fato de o entrevistador ser médico – e, assim, ser identificado com a instituição onde os pacientes são atendidos – possa ter influenciado o rumo das falas dos pacientes. Contudo, este enfoque dado pelos pacientes a suas narrativas facilitou dirigir o foco e a análise das entrevistas para a formação das concepções pessoais sobre o processo saúde-doença e cuidado. O contexto e a forma como a pesquisa se desenvolveu permitiram que a análise do material pudesse centrar-se na identificação da formação de narrativas sobre o adoecer e o viver com a doença crônica/ tratamento, buscando aspectos que transcendessem a concepção e definição do adoecimento e da adesão, como é formulada na racionalidade biomédica. Esta apreciação, portanto, afastou-se de uma idéia simplista e mecânica de avaliação e quantificação da adesão ao tratamento farmacológico, como também não pretendeu avaliar as estratégias metodológicas aplicadas no ConViver. Manteve-se o foco nos aspectos narrativos envolvidos na construção de uma forma mais integral de: perceber o adoecimento, desenvolver a autonomia e participar do processo saúde-doença e cuidado. Para viabilizar essa avaliação, os principais sentidos expressos sobre o processo saúde-adoecimento e clínico-terapêutico das narrativas das pessoas foram condensados em três categorias de análise: . a construção de significados sobre o adoecer que transcendem a visão biomédica de saúde e doença; . a narrativa sobre o modo como o paciente vivencia o processo clínico-terapêutico; . a integração dialógica entre os contextos culturais e o processo de saúde-doença e cuidado. Cabe destacar que estas categorias analíticas surgiram com base nos objetivos definidos pelos autores e nas próprias questões emergentes das falas dos entrevistados. Portanto, são categorias oriundas do próprio material empírico, e não uma forma de ajustamento da realidade. Foram um meio de organizar os diferentes aspectos das falas na forma de um texto que melhor traduzisse as experiências pessoais.
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Discussão dos resultados A construção de significados sobre o adoecimento que transcendem a visão biomédica da doença A construção de novos repertórios interpretativos e explicativos sobre o adoecer foi percebida nas falas dos pacientes entrevistados. Eles expuseram que, a partir da oportunidade dialógica vivenciada no grupo, começaram a fazer relações de seus sinais e sintomas (e as variações de parâmetros biomédicos, como a pressão arterial) com os aspectos da vida que os mobilizavam, causavam apreensão, angústia e/ ou tristeza. Agora meu filho (portador de Alzheimer) está mais calmo, apesar de ainda estar desmemoriado. Assim eu fui me acalmando e a pressão controlou. Eu entendi que é um problema que vai e vem, quando ele fica nervoso eu também fico, porque ele telefona muito para mim. Agora eu estou melhorando, estou mais calma. Com as reuniões que nós tivemos nessa sala eu me senti muito bem, o grupo era muito bom, eu comecei a falar mais do que falava antes. (Entrevistada 3)
A construção de novas narrativas sobre o adoecimento, capazes de integrar as sensações e os sentimentos percebidos com as explicações médicas do adoecer, parece que foi se tornando possível por meio do compartilhamento de saberes entre os pacientes do grupo e destes com os profissionais de saúde. Nesses encontros dialógicos, as pessoas reconheciam que trocar experiências boas e ruins relacionadas à vida e ao adoecer, com outros participantes com os quais se identificavam – pela idade, nível socioeconômico, cultura, doença, serviço de saúde que frequentavam ou pelo lugar da cadeira que ocupavam no grupo – os ajudava a entender suas próprias questões. Quando se percebem sendo capazes de explicar e interpretar os problemas trazidos por outros, as pessoas passam a valorizar sua própria experiência de vida e saberes práticos e dialógicos que desenvolveram, mas que são menosprezados pelo saber médico-científico sobre a doença. Por outro lado, esse espaço dialógico e de construção de novas narrativas sobre o adoecer foi possível pelo encontro entre o saber técnico (representado pelos profissionais) e o saber prático (dos pacientes e profissionais). Um encontro no qual, a partir da escuta ativa, os profissionais se dispunham a valorizar aspectos do adoecer, como: sofrimento, dúvidas em relação ao tratamento, falta de perspectivas e limitações trazidas pela doença. A união e o apoio que as meninas (no caso, a médica e a psicóloga) nos davam. Elas estavam dispostas a escutar. Quando houve o episódio do sequestro de mentira do meu filho, no encontro seguinte eu estava muito nervosa e elas praticamente interromperam o encontro e eu pude desabafar. Porque a gente falando parece que vai se libertando daquilo. (Entrevistada 7)
Quando esses aspectos são valorizados e discutidos, entra em cena a vida cotidiana, isto é, uma perspectiva que transcende limites instituídos pelo saber e pelo discurso médico baseado apenas na doença, possibilitando a construção de novos significados para os sujeitos que se encontram adoecidos. As informações sobre a doença passam a ocupar outro lugar no modo de pensar dos participantes. Conhecer e lidar com os dados biomédicos passa a representar um aspecto de construção de novos significados e de ampliação da autonomia. As informações médicas deixam de ser regras externas ao modo de levar a vida, deixam de significar uma limitação a mais àquelas provocadas pelo medo e o sofrimento que o adoecer trouxe para cada pessoa em particular. Muitas vezes, essas informações já haviam sido comentadas pelo médico na consulta, mas não traziam este sentido naquele momento. Talvez porque eram ditas por um profissional desconectado das situações cotidianas, cuja abordagem está distante da pessoa adoecida, e as formas de comunicação usam códigos de linguagem que são estranhos e os distanciam dos pacientes no encontro clínico. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
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Agora eu procuro ler e o grupo serviu para isso: para poder me orientar. Eu fui ver a pressão: máxima, mínima. Agora eu sei o que é sistólica e diastólica. Para mim foi ótimo passar pelo grupo. Sempre é bom aprender. (Entrevistado 1) Tem coisas na diabetes que eu não havia entendido. Agora entendo mais. Eu precisava disso para ter mais cuidado com a diabetes como agora eu tenho. Tenho mais atenção com a minha doença, tenho mais cuidado com ela do que eu tinha antes. (Entrevistada 4) Esse grupo era para eu ter mais conhecimento da diabetes e realmente, porque eu não sabia o que eu fazia e agora eu tenho conhecimento de tudo que eu faço. Eu mesmo comia muita gordura, orelha de porco [...]. Parei porque através do grupo a gente vai aprendendo a conviver. (Entrevistado 12) Mais conhecimento. Saber como resolver; mais confiante. Até para discutir com o médico. (Entrevistada 8)
Outro elemento que está envolvido na construção de novas narrativas seria a possibilidade de se valorizarem os aspectos que envolvem o sofrimento e a subjetividade, na mesma intensidade como são abordadas as questões ligadas à doença e às estratégias de tratamento. “Talvez, se eu não tivesse esse problema do meu filho dependente, talvez não me interessaria. Mas como eu tenho essa barra dentro de casa, acho que para mim é muito importante ter esse suporte” (Entrevistado 1); “Fui para o grupo porque eu ficava chorando. Antes sentia mais coisas, agora estou começando a me valorizar mais um pouco, com mais auto-estima” (Entrevistada 14). Este processo produz um sentimento de acolhimento e uma percepção concreta de integração entre o adoecer, a subjetividade e os aspectos da vida que contribuem para direcionar a narrativa a uma nova forma de compreender o corpo, suas manifestações e seu comportamento. O diálogo e o acolhimento da experiência de sofrimento permitem que a narrativa do adoecimento se amplie de um tempo presente, para se conectar e explicar o passado e projetar novas formas de lidar com o futuro. A formação de uma nova dimensão temporal na narrativa do adoecimento parece potencializar a projeção do futuro e induzir novas perspectivas para a superação de limitações do presente. No momento em que participam do grupo, as pessoas o percebem como um lugar de escuta de questões que, apesar de comporem suas histórias e seu sofrimento, não encontram espaço dentro do paradigma biomédico que dirige a consulta médica. O diálogo entre sujeitos possibilita a formação de uma rede de solidariedade que amplia e valoriza as dimensões da vida onde o adoecimento se institui. Uma rede de apoio que produz uma narrativa que torna o adoecer e o cuidado terapêutico partes da própria vida e cultura, e não apenas uma limitação. A convivência neste espaço que promove a formação e uma rede de solidariedade e apoio favorece a transformação de experiências pessoais em experiências coletivas. Contribui no sentido de coletivizar a experiência de adoecimento, ao construir uma identidade coletiva que localiza a situação pessoal como parte de uma narrativa e de um contexto político e social mais amplo. Antes do grupo eu vivia isolada. Eu moro sozinha, não tem ninguém na minha casa, sou eu sozinha. Então o grupo para mim foi muito bom. (Entrevistada 3) Pensei: se eu tenho problema eu tenho que cuidar dele e não piorar. Então, eu não podia me encher de doces, me encher de comida do jeito que eu estava. Eu tinha que melhorar. Comecei a escutar as pessoas do meu lado, comecei a falar também. Comecei a desabafar, falei muito dos meus problemas, porque eu tenho realmente muitos problemas. Quem não tem? (Entrevistada 4) Conhecer outras pessoas, fazer amizades. Formei um grupo de amigas. Amizade, porque eu não tinha mais amizade. (Entrevistada 2)
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Esta legitimação social da pessoa adoecida se forma com a oportunidade de compartilhar e se solidarizar com outros, e possibilita a formação de narrativas nas quais o significado do adoecer não se restrinja ao de um castigo, uma ameaça, um fardo a ser solitariamente suportado. “Tem que aprender a conviver. Eu vi que nem só eu tenho isso, outros tem outros problemas. Aí você vê a forma como as pessoas vão levando. Isso é uma experiência pra gente lidar no dia-a-dia” (Entrevistado 1); “Foi legal, fiz amizades. Eu acho que estou um pouco mais calmo também por entender mais sobre a doença. Conviver com os problemas dos outros também; ver que não só eu tenho problemas”(Entrevistado 1).
Narrativa sobre o modo como o paciente vivencia o processo clínico-terapêutico No processo dialógico do grupo, as informações sobre o adoecer são discutidas a partir das experiências, das formas de linguagem e significados trazidos pelos participantes. Os dados biomédicos são abordados em meio à discussão sobre as dúvidas, as crenças, os medos e as experiências assistenciais vividas pelas pessoas. A proximidade e a identidade criadas produzem transformações na fala, na atitude e no significado de vida do paciente, que deixa de ser um papel em branco, um ser à disposição das intervenções preconizadas pela medicina, para se tornar sujeito de seu processo saúde-doença-cuidado. Sujeito com uma maior autonomia, capaz de questionar seu médico, pela melhor compreensão sobre o que faz bem ou mal para sua saúde, e com possibilidade de formar um projeto de felicidade próprio, delineado por ele, e não pelo profissional de saúde. Como referido anteriormente, os pacientes entrevistados relataram uma boa adesão ao tratamento farmacológico. Contudo, em relação à incorporação de hábitos de vida que favorecem a prevenção de novos agravos e a promoção da saúde, eles demonstraram maior dificuldade de adesão. Não tenho dificuldades. Minha pressão está controlada. O problema é atividade física, a constância. Estou tentando agora fazer a caminhada. Quando eu volto da casa da minha mãe já volto caminhando. Dieta eu já tinha me conscientizado, mas exercício físico ficou mais consciente. Eu agora sei que tenho que fazer. (Entrevistada 8) A dieta, não conseguia fazer no inicio, mas os remédios eu tomava direito. Me sinto muito bem com os remédios. (Entrevistada 4)
Suas falas demonstram que reconhecem a importância de mudanças de estilos de vida, mas também percebem as barreiras sociais, culturais e subjetivas para incorporar novas ações em seu cotidiano. Além deste reconhecimento, as narrativas apontaram para uma concepção de saúde que integra os elementos da subjetividade e da organização social e cultural à adoção de comportamentos mais saudáveis. Os entrevistados, frequentemente, fazem uma integração entre saúde, qualidade de vida e autoestima. Pode-se identificar, nas falas, um significado amplo para a concepção de saúde, que incorpora perspectivas – como a de bem-estar, autoestima, lazer, atividade física e bom humor – ao processo saúde-doença-cuidado. “Sei que apesar da minha gordura, porque eu estou gorda ainda, saio na rua e tem gente que ainda olha pra mim. [...] Não estou mais arrasada e decepcionada não. Tomo meu banho, me arrumo e saio bonitinha e vou passear. Ainda não sou quem era antes, mas estou caminhando” (Entrevistada 4); “Tento fazer as coisas que vão ser boas pra mim, que me dão prazer. Eu sei que a diabetes, se eu fizer minha dieta legal, se eu me cuidar também da parte emocional eu vou ter uma vida com qualidade por mais tempo” (Entrevistada 15). As narrativas demonstraram que as pessoas incorporavam orientações – como a prática de exercícios e as mudanças de hábitos alimentares – a uma perspectiva mais ampla de vida e saúde. Estas questões passam a ser mais próximas da identidade e do cotidiano de cada um, e contribuem para uma maior autonomia para eles adequarem as orientações médicas às suas condições e limitações. A vivência no grupo também parece ter permitido que as pessoas reconhecessem as limitações vividas pelos outros do grupo, assim como as estratégias de adaptação por eles adotadas para aderir às
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necessárias mudanças de comportamento. Desta forma, as trocas de vivências ajudam as pessoas a se capacitarem para gerir suas ações e ampliarem a autonomia sobre o modo de cuidar de sua saúde. O mais importante foi sobre os alimentos. Isso é muito importante porque a gente tem que saber se policiar, o que a gente come, o que a gente bebe. Saúde é uma coisa muito boa. Então, através desse grupo eu me conscientizei de muita coisa e a gente faz o que aprende e com a tendência de ir melhorando. (Entrevistada 12) Então, eu chorava muito, não vou te dizer que estou tranquila, mas aceito mais. Porque eu era de pegar esses biscoitos recheados de morango e devorar vendo televisão. Bombom, goiabada no pão, tudo isso foi retirado. (Entrevistada 14)
As narrativas das pessoas trazem um enredo que não fica limitado a cumprir passivamente o papel atribuído ao paciente, de tomar remédios, comparecer a consultas e/ou fazer exames de rotina. A forma e o sentido de suas falas se aproximam de uma abordagem integral, e o paciente se vê como sujeito da promoção de sua saúde. As narrativas, portanto, sinalizam a possibilidade de transformar o significado de saúde e doença e de buscar novos hábitos de vida que promovam seu bem-estar. São narrativas que ressignificam o sofrimento e a forma de lidar com ele, e que podem representar um ganho em relação a questões objetivas, como a redução do peso, da pressão arterial, da glicemia e de tantas outras referências usadas pela medicina, sem que isso signifique maiores perdas e rupturas ao modo de levar a vida.
A integração dialógica entre os contextos culturais e o processo saúde-doença e cuidado Como apresentado no texto, a possibilidade de diálogo e reflexão no grupo criava e expunha novos significados na interface entre o saber médico e as crenças pessoais. A convergência de elementos – como as instituições sociais, crenças, cultura, padrões sociais e religiosos – forma narrativas que se caracterizam por sincretismos, isto é, pela integração dos contextos e vivências pessoais com as concepções sobre o processo de saúde-doença e cuidado. No modo de pensar das pessoas, esses elementos não se organizam na forma de algoritmos. O sincretismo presente nas narrativas forma-se não como a soma de vários fatores, tampouco expressa um processo linear de determinação ou de causalidade; contudo, o arranjo e a perspectiva para integrar esses elementos narrativos são singulares. A especificidade do arranjo desses elementos narrativos pode estar presente: na atribuição de causalidade, na forma de expressar ou justificar a dificuldade de controlar as doenças, na vontade de aderir às propostas terapêuticas e melhorar as condições de saúde, ou na intenção de dar sentido a uma nova identidade pessoal construída a partir do adoecimento. A família e a religião são exemplos de elementos da vida social e cultural que influenciam quase todas as narrativas. Eles são incorporados como fatores explicativos ou de codeterminação no discurso pessoal quanto ao adoecimento e o cuidado. O repertório interpretativo dos pacientes em relação ao adoecimento é influenciado pelas estórias e experiências vividas em família. A construção dos significados acompanhava, portanto, as tradições culturais presentes na história familiar que, por sua vez, influíam nas expectativas em relação ao cuidado. Como exemplo, percebe-se uma aceitação maior das situações de adoecimento e de tratamento entre as pessoas que tinham conhecimento e vivência de casos semelhantes na família. O diabetes eu fazia exames desde novo, eu já esperava um dia aparecer, porque minha mãe quando eu nasci ela já estava com diabetes. (Entrevistado 1) Minha avó morreu com diabetes naquela época que o tratamento era mais difícil, então eu sempre tive uma noção que o neto poderia ficar também [...]. Mas nunca fiquei assustada.
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Tratei como se já estivesse até esperando porque quase toda minha família é diabética. (Entrevistada 8) Para ser sincera à senhora eu acho que não senti nada. Não levei a sério. Não acreditei. Não entrou na minha cabeça que eu estivesse diabética. [...]. Porque minha família é uma família cancerosa. Eu tava esperando o médico dizer que estava com câncer. Se o médico tivesse dito que eu estava cancerosa, eu acho que eu tinha levado mais a sério. (Entrevistada 4)
A modificação inesperada da estrutura familiar, seja por perda, dependência ou chegada de um novo membro, muitas vezes é associada ao aparecimento do adoecimento ou à dificuldade de conseguir controlá-lo. Esses fatos também podem criar marcos subjetivos que se tornam referência na construção temporal das narrativas. “Quando meu marido ficou doente, comecei a emagrecer. Há oito anos ele está paralítico e foi um “baque” para mim. Minha vida mudou completamente, de situação boa (economicamente) passou para ruim. Aí comecei a ficar nervosa, com dor na coluna” (Entrevistada 11); “A minha mudança para a casa do meu filho mudou muito a minha vida. Morava no meu apartamento [...] Então, eu acho que a mudança fez diferença. Eu passei a dormir na sala, no sofá, não tinha meu quarto. Acho que tudo isso influenciou” (Entrevistada 13); “Eu entendi que teria que tomar remédio pela vida inteira. Fiquei muito chateada, porque eu não tomava remédio e não tinha nada até meu marido falecer” (Entrevistada 10). A narrativa sobre o controle da doença por vezes é construída a partir da presença de situações ou pessoas que trazem novos significados à vida ou a partir da necessidade objetiva de assumir novos papéis sociais e familiares. Aceito (o infarto do miocárdio) com tranquilidade. Não sei se porque meus filhos precisam ainda muito de mim, apesar do caçula ter 25 anos, ainda é solteiro. [...] Então, não sei se com isso eu aceito tudo e faço tudo certinho. (Entrevistada 7) Eu vou te dizer uma coisa, graças a Deus eu tenho uma família bem estruturada. Digo, marido. Eu tenho só um filho que vai fazer 40 anos, mas esse meu problema (depressão) pegou ele na adolescência. Mas o meu marido soube conduzir muito bem. Ele sempre me apoiou muito. Acho que foi por isso que estou de pé. (Entrevistada 14)
A participação no grupo e a rede social que ele promove pareciam influir, por si mesmas, na formação de novas sínteses entre o adoecimento, a afetividade e os valores sociais e morais compartilhados. As novas narrativas trazem a incorporação de novas identidades pessoais e sociais construídas no interior do grupo e, a partir dele, com o mundo exterior. Esses novos papéis e identidades se formavam por meio da relação de afeto e apoio que as pessoas vivenciavam, como também pelo encontro de novos sentidos para: a doença, o remédio ou, mesmo, o cuidado dos profissionais de saúde. Foi bom porque estava há pouco tempo aqui (morando em Vila Isabel) e fiz mais amizades. Até sem conhecer meu marido, as pessoas perguntam se ele está bem, se eu estou bem. Isso é importante. (Entrevistada 11) Antes do grupo eu vivia isolada. Então o grupo para mim foi muito bom. O mais importante foi a amizade. Nós não deixamos de nos falar [...]. Para mim foi bom porque eu botei para fora muita coisa que eu não falava para ninguém e no grupo todo mundo foi se abrindo, conversando e eu comecei a conversar também. (Entrevistada 3) Encontrei um apoio. Porque na família eu não tenho em quem recorrer. Meu irmão mais novo é rapaz, então tenho que arrumar uma pessoa para conversar. (Entrevistada 2)
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O modo como as pessoas vivenciam, no grupo, a construção dessa rede de apoio, a partir do diálogo e do seu uso como instrumento de reflexão e de cuidado, pode interagir nas percepções e ações das pessoas em suas próprias relações familiares. Contribui para formar outro modo de interagir consigo e com os outros, ao integrar novas perspectivas e sentidos para o cuidado de si e da família. Tenho um sobrinho de quinze anos que está viciado em drogas desde os 13. A gente tenta tirar ele dessa vida, mas não consegue. Nunca chego perto dele brigando, xingando. [...] Então, eu vi que não podia guardar todas aquelas coisas para mim. Eu precisava falar com alguém. Agora eu o encaro já de outro jeito. Mas antes eu tinha medo de chegar perto para falar com ele. Agora não. Nunca tratei ele mal, sempre tratei ele com carinho. Mas agora eu sei como conversar com ele. (Entrevistada 4) Tanto é que eu era um pouco agressivo, mas eu também fazia muita coisa que, com o grupo, com palestras, com os amigos do grupo, a gente começa a entender que os problemas não ocorrem apenas nas nossas vidas. (Entrevistada 12) Valeu muito a pena, porque eu me dou com a vizinhança toda, mas não sou pessoa de ficar conversando na porta. Eu fui criada nesse sistema, meu pai não aceitava nenhum de nós ficar na porta conversando. [...]. Mas agora eu já procuro as pessoas. Eu me sentia muito sozinha, porque meus filhos saem de manhã e voltam só à noite. Eu deixava a televisão ligada o dia inteiro para não me sentir sozinha em casa. Agora eu já não tenho esse problema. Já tem horas que eu desligo a televisão para ficar um pouco em silêncio. (Entrevistada 7)
A vivência no grupo parece ter sido capaz de abrir espaços dialógicos e de reflexão que contribuíram para as pessoas integrarem os aspectos sociais e culturais de suas vidas com questões morais (culpa, preconceito, autoestima, expectativa por ajuda etc.) advindas da situação do adoecimento. Na maioria das falas, essa integração parece ter sido capaz de formar gêneros narrativos que ampliam a autonomia e a possibilidade de as pessoas se moverem em direção a objetivos que são por elas valorizáveis e, ao mesmo tempo, socialmente includentes.
Conclusão O investimento no desenvolvimento de grupos dialógicos para portadores de doenças crônicas mostrou sua importância não apenas devido à necessidade de se ampliar a adesão aos tratamentos farmacológicos. O trabalho identificou que esses grupos, por meio da troca, valorização e legitimação de significados e saberes desenvolvidos a partir das vivências pessoais e coletivas, podem contribuir em mudanças nas concepções sobre o processo saúde-doença entre seus participantes. As possibilidades criadas pelo diálogo e compartilhamento de significados e saberes em relação à vida, aos sentimentos e aos valores atribuídos ao processo de adoecer possibilitam a formação de novas construções narrativas sobre o adoecimento e a vida com a doença ou a despeito dela. Permitem a inclusão desses saberes e significados num processo explicativo mais amplo que o oferecido pela prática biomédica desenvolvida nas relações entre médico e paciente na clínica. As novas explicações sobre o adoecer, que emergem desse processo dialógico, compreendem o desenvolvimento de narrativas e atitudes que aumentam a autonomia frente à doença e às estratégias terapêuticas. Produzem um sentimento de acolhimento e uma percepção concreta de integração entre o adoecer, a subjetividade e os aspectos da vida que contribuem para direcionar a narrativa para uma nova forma de compreender o corpo, suas manifestações e seu comportamento. Os elementos apropriados pelas pessoas e o modo de operá-los nas novas construções narrativas são heterogêneos. Os produtos dessas construções são singulares, mas guardam relação com os contextos e expectativas precedentes à participação nos grupos, como as experiências familiares e religiosas com situações de adoecimento. 16
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Um aspecto central e comum às falas dos participantes dos grupos está relacionado à própria forma como as narrativas são construídas, isto é, a compreensão de que é possível elaborar novas visões pessoais a partir da troca de experiências e saberes com os outros. Este aprendizado de construção de significados e saberes, com base no diálogo com o outro, se desdobra no fortalecimento da idéia de constituir uma identidade coletiva e uma legitimidade social. Essas perspectivas são percebidas nas narrativas sobre a vida e o adoecer, assim como nas novas atitudes tomadas pelas pessoas, de se solidarizarem com os sofrimentos alheios e formarem redes sociais de apoio a partir do grupo. As narrativas se formam de modo a integrar os conhecimentos trazidos pela medicina com aspectos da cultura popular, das instituições sociais (família e religião) e das estórias individuais. Percebe-se, deste modo, a formação de um sincretismo que amplia as percepções pessoais sobre a saúde, pois permite integrar novas questões (qualidade de vida, alimentação saudável, felicidade, a solidariedade, a amizade) que transcendem uma perspectiva meramente medicalizadora da vida.
Colaboradores Os autores Cesar Augusto Orazem Favoreto e Cristiane Coelho Cabral participaram, igualmente, de todas as etapas de elaboração do artigo. Referências AYRES, J.R.M. Sujeito, intersubjetividade e práticas de saúde. Cienc. Saude Colet., v.6, n.1, p.63-72, 2001. BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. 11.ed. São Paulo: Hucitec, 2004. BROCKMEIER, J; HARRÉ, R. Narrativa: problemas e promessas de um paradigma alternativo. Psicologia: Reflex. Critica, v.16, n.3, p.525-35, 2003. BURY, M. Illness narrative: fact or fiction? Sociol. Health Illn., v.23, n.3, p.263-85, 2001. CAMARGO Jr, K.R. A Biomedicina. Physis, v.7, n.1, p.45-68, 1997. CHARON, R. Narrative and medicine [perspective]. N. Engl. J. Med., v.350, n.9, p.862-4, 2004. ______. Narrative medicine: form, function and ethics. Ann. Intern. Med., v.134, n.1, p.83-7, 2001. DONALD, A. The words we live in. In: GREENHALGH, T.; HURWITZ, B. (Orgs.). Narrative based medicine. 3.ed. London: BMJ Books, 2002. p.17-28. FAVORETO, C.A.O. A velha e renovada clínica dirigida à produção de um cuidado integral em saúde. In: PINHEIRO, R.; MATTOS, R. (Orgs.). Cuidado: as fronteiras da integralidade. Rio de Janeiro: Hucitec/Abrasco, 2004. p.205-20. FRANK, A.W. The wounded storyteller. Chicago: University Chicago Press, 1995.
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FAVORETO, C.A.O.; CABRAL, C.C. Narraciones sobre el proceso salud-enfermedad: experiencias en grupos operativos de educación en salud. Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.13, n.28, p.7-18, jan./mar. 2009. La propuesta fue: analizar la ampliación de los significados en las narraciones sobre el proceso salud-enfermedad en los portadores de enfermedades crónicas que participaron de un grupo operativo de educación en salud; observar las narraciones formadas a partir de una experiencia que pretende promover la elaboración colectiva de nuevos significados para el adolecer e integrar las vivencias y saberes personales con el conocimiento biomédico y la práctica clínica. Por medio de entrevistas semi estructuradas fue avaluada la construcción de significados sobre el adolecer para más allá del modelo biomédico y los impactos sobre el modo como el paciente vivencía su proceso clínico terapéutico. Se identificó que las personas, por medio de los cambios, valorización y legitimización de significados y saberes desarrollados a partir de las vivencias individuales y colectivas en el grupo, producen cambios en sus conceptos sobre el proceso salud-enfermedad que trascienden la perspectiva medicalizadora de la biomedicina.
Palabras clave: Medicina narrativa. Educación en salud. Enfermedades crónicas. Recebido em 25/01/08. Aprovado em 04/09/08.
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Por que os alcoólicos são anônimos? Anonimato e identidade no tratamento do alcoolismo*
Edemilson Antunes de Campos1
CAMPOS, E.A. Why are alcoholics anonymous? Anonymity and identity in treating alcoholism. Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.13, n.28, p.19-30, jan./mar. 2009.
The aim here was to contribute towards understanding the role of anonymity in the therapeutic model developed by the Alcoholics Anonymous (AA) fellowship for caring for the “disease of alcoholism”. A bibliographic search was conducted in the literature produced by AA on alcohol and alcoholism. A qualitative investigation was also carried out among AA groups located on the outskirts of the city of São Paulo, Brazil. Interviews were held and several activities undertaken by its members were observed. AA’s therapeutic model is conceived as a system in which symbolic reality is fundamental for representing alcoholism as a “chronic and fatal disease” and consequently for constructing the identity of “individuals with alcohol sickness”. In fact, anonymity works as a fundamental symbolic mechanism in the healthdisease process experienced within AA. It links directly to constructing the identity of “individuals with alcohol sickness undergoing recovery” and consequently to subjectively reconstructing the fellowship’s members.
Key words: Alcoholics Anonymous. Alcoholism. Anonymity. Identity. Rite of Passage
Pretende-se contribuir para a compreensão do papel do anonimato no modelo terapêutico desenvolvido pela irmandade de Alcoólicos Anônimos (A.A.) para dar conta da “doença do alcoolismo”. Realizou-se uma pesquisa bibliográfica na literatura produzida pela irmandade sobre o álcool e o alcoolismo, bem como uma pesquisa qualitativa em grupos de A.A. localizados na periferia da cidade de São Paulo - Brasil -, com realização de entrevistas e a observação de diversas atividades promovidas pelos seus membros. O modelo terapêutico de A.A. é concebido como um sistema cuja realidade simbólica é fundamental na representação do alcoolismo como uma “doença crônica e fatal” e, consequentemente, na construção da identidade de “doente alcoólico”. Com efeito, o anonimato opera como um mecanismo simbólico fundamental no processo saúde-doença vivenciado dentro de A.A., ligando-se diretamente à fabricação da identidade do “doente alcoólico em recuperação” e, por essa via, à reconstrução subjetiva dos membros da irmandade.
Palavras-chave: Alcoólicos Anônimos. Alcoolismo. Anonimato. Identidade. Ritual de Passagem.
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Elaborado com base em Campos (2005), pesquisa financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq, 140194/2001-0), e pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES - BEX 0311/02-2). 1 Antropólogo. Escola de Artes, Ciências e Humanidades, Universidade de São Paulo (EACH/USP). Arlindo Bettio, 1000, Ermelino Matarazzo, São Paulo, SP, Brasil. 03.828-000 edicampos@usp.br *
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POR QUE OS ALCOÓLICOS SÃO ANÔNIMOS?
Introdução Nas últimas décadas, a irmandade de Alcoólicos Anônimos2 (A.A) vem despertando a atenção pelo ritmo com que se propaga em escala mundial e, particularmente, na sociedade brasileira3. Trata-se de agrupamentos que reúnem pessoas de diferentes idades e classes sociais em busca de apoio mútuo para superar a chamada doença do alcoolismo, que as levaram a uma vida destrutiva e, na maioria das vezes, a um contexto de exclusão e marginalidade social. Nesse quadro, o par alcoolismo/doença também está deixando de ser o objeto privilegiado da medicina epidemiológica e psiquiátrica, e começa a fazer parte do campo de reflexões das ciências sociais (Campos, 2004a; Garcia, 2004; Mota, 2004; Neves, 2004; Fainzang, 1996). É assim que, em uma perspectiva socioantropológica, a irmandade de A.A. tem se revelado um espaço privilegiado para o estudo das representações e dos significados produzidos sobre a alcoolização crônica, de maneira que seu modelo terapêutico tem sido entendido como um sistema cuja realidade simbólica é a chave para a compreensão da reconstrução subjetiva vivenciada pelos ex-bebedores. O modelo terapêutico de A.A. é voltado, fundamentalmente, para a recuperação individual e pessoal de seus membros, que “parecem ter perdido o poder para controlar o número de doses ingeridas” (Alcoólicos Anônimos, 2002). O alcoolismo é entendido como uma “doença incurável, progressiva e fatal”, de base “física e espiritual”, que se caracteriza pela “perda de controle sobre o álcool”, levando o alcoólico a beber de maneira compulsiva, o que pode vir a conduzi-lo à “loucura” ou à “morte prematura”. O modelo de A.A. baseia-se em um conjunto de procedimentos voltados ao aprimoramento “espiritual” do indivíduo considerado doente, expresso nos Doze Passos e nas Doze Tradições (Alcoólicos Anônimos, 2001). De um lado, esse modelo inclui: a admissão de que existe um problema em relação ao uso do álcool; a busca de ajuda; a autoavaliação; a partilha em nível confidencial, e a disposição tanto para reparar os danos causados a terceiros como para trabalhar com outros alcoólicos que desejem se recuperar. De outro lado, estão inclusas as relações que os membros de A.A. mantêm entre si e com a sociedade em geral, estas reguladas com base em um conjunto de preceitos que garantem a unidade da irmandade. A crescente expansão da irmandade tem despertado o interesse da mídia impressa4 e televisiva e, nos últimos anos, de algumas telenovelas brasileiras (Campos, 2004b), todas preocupadas em abordar a temática do alcoolismo e o papel do modelo terapêutico de A.A. Todavia, quando se observa particularmente a mídia televisiva, chama a atenção o fato de que os membros de A.A. mantêm-se sempre anônimos, ou seja, eles jamais se identificam plenamente, de maneira que podemos ver apenas suas silhuetas. Essa atitude tem sido motivo de controvérsias entre as associações de exbebedores. Exemplo disso é a crítica feita pela associação francesa Vie Libre, fundada em 1953, que atua na recuperação de alcoólicos, e que rejeita o anonimato, alegando que ele é “sinônimo de uma concepção do alcoolismo como vício” (Fainzang, 1996, p.103). Na literatura desse grupo de ex-bebedores encontramos: Não se pode se esconder de uma doença. Não se deve ter vergonha de ser doente. Os Alcoólicos Anônimos querem guardar o anonimato. Quando eles passam na televisão, é como uma sombra chinesa, para que ninguém lhes possa reconhecer. Por que? Porque eles têm
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2 Nas páginas seguintes, conforme a maneira pela qual os membros de Alcoólicos Anônimos se referem à irmandade, utilizarei as siglas A.A., para me referir à irmandade dos Alcoólicos Anônimos, e AAs, quando me referir a seus membros. 3 A irmandade de A.A. nasceu em 1935, em Akron, no Estado de Ohio, nos Estados Unidos, após uma conversa entre um corretor da Bolsa de Nova York e um médico, ambos conhecidos, respectivamente, como Bill Wilson e Bob Smith. Segundo Gabhainn (2003), o número dos membros da irmandade tem crescido em progressão geométrica, tendo passado de cem membros, em 1940, para 476.000, em 1980; para 653.000, em 1983; e para 979.000, em 1990. Em 2002, estimava-se que o número de grupos de A.A. em todo mundo fosse de pouco mais de cem mil, totalizando 2.215.293 membros, segundo dados do Escritório Mundial de Alcoólicos Anônimos. No Brasil, o primeiro grupo surgiu em 1947 e, atualmente, há cerca de 5.700 grupos, perfazendo, aproximadamente, 120 mil membros, segundo dados do Escritório de Serviços Gerais de A.A.. 4 Ver: A salvação pelo anonimato, Revista Carta Capital, São Paulo, n.255, p.8-15, 27 ago. 2003.
CAMPOS, E.A.
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vergonha. Mas, quando se tem vergonha, é quando se pensa que o alcoolismo é um vício. Ele não é um vício, é uma doença. (Fainzang, 1996, p.103 - trad. minha)
Essa crítica, contudo, não nos ajuda compreender o papel desempenhado pelo anonimato no interior do modelo terapêutico de A.A. Para tanto, cabe investigar o modo como a exigência do anonimato opera na edificação da identidade do “doente alcoólico em recuperação” e, por essa via, na reconstrução subjetiva dos membros da irmandade. Neste artigo, analisa-se o anonimato como um mecanismo simbólico fundamental no processo saúde-doença vivenciado pelos membros de A.A., que opera de acordo com a lógica própria aos rituais de passagem – segundo a qual o bebedor, num estado de liminaridade social, pode reconstruir sua identidade reconhecendo-se como “doente alcoólico em recuperação” no interior de um modelo terapêutico no qual ele insere e modula sua subjetividade.
A pesquisa de campo em Alcoólicos Anônimos
A irmandade de A.A. conta com 523 grupos em todo o Estado de São Paulo, organizados em 182 cidades, divididos em dez regiões. Na região da Capital existem 205 grupos, organizados em 25 cidades da região metropolitana do Município de São Paulo, e somente neste último existem 143 grupos, segundo dados do Escritório de Serviços Locais - ESL/SP. Disponível em: <http://www.aaareasp.org.br/portal/ index.php/grupos-dea.a.-no-estado-de-saopaulo.html>. Acesso em: 5 ago. 2008. 5
Este estudo resultou de uma pesquisa bibliográfica feita na literatura produzida pela irmandade de A.A., composta por: folders de divulgação, folhetos e livros sobre o álcool, o alcoolismo e o modelo terapêutico de controle da doença alcoólica; bem como de um trabalho de campo realizado entre setembro de 2001 e setembro de 2002, no grupo Sapopemba de A.A., que faz parte do 42º distrito de Alcoólicos Anônimos do Estado de São Paulo, do Setor A - Capital5. A escolha desse grupo deveu-se ao fato de se tratar de um já consolidado na promoção de reuniões de recuperação, que acontecem desde sua fundação, em 16 de março de 1981. A metodologia de pesquisa contou, fundamentalmente, com a realização de entrevistas e com a observação de diversas atividades promovidas pela irmandade, tais como: reuniões de recuperação (abertas), encontros, reuniões de serviços, reuniões de unidade, reuniões temáticas, festas comemorativas do aniversário do grupo etc. Já as entrevistas foram individuais e semiestruturadas, e aconteceram, em sua maior parte, em 2001 e 2002. Como forma de se obter um melhor controle sobre os dados coletados, realizamos outras, no final do ano de 2004 e início de 2005. Todos os depoimentos foram gravados com o consentimento dos membros do grupo e, posteriormente, transcritos. Durante a pesquisa, constatamos, nos “cadernos de ingresso” e de “presença” mantidos pelo grupo, e também em conversas com seus membros, que, nos últimos anos, ingressaram no grupo 86 pessoas. Destes, 81 são homens e cinco mulheres. A presença massiva de homens é uma característica marcante dos grupos de A.A., o que também é confirmado por Garcia (2004), em sua pesquisa no grupo Doze Tradições, localizado no município de São Gonçalo, no Estado do Rio de Janeiro. Segundo as informações colhidas, dos 86 ingressantes, 37 deles se afastaram do grupo: 36 homens e uma mulher. No caderno de ingresso, é possível constatar que daqueles membros que se afastaram, a maioria ficou no grupo entre um e seis meses, totalizando 15 pessoas. Dos 37 membros que se afastaram, 15 ficaram no grupo de um a seis meses, 13 ficaram de sete a 12 meses, sete ficaram de 13 a 18 meses, e dois ficaram de 19 a 24 meses. Em um prazo de um ano, constatamos que 28 pessoas se afastaram do grupo. Já em relação aos membros que mantêm um vínculo permanente com a irmandade, segundo os registros mantidos pelo grupo, observamos que: 11 COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
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membros têm até um ano de tratamento no grupo, 17 têm entre dois e cinco anos, dois têm entre seis e dez anos, e nove têm entre 11 e 15 anos. Por meio da observação das atividades do grupo e, também, dos registros feitos em seu livro de presença, vimos que, nas reuniões de recuperação, há uma frequência média de 15 membros. Também foi relevante, para a escolha desse grupo, o fato de ele estar situado em um bairro popular e habitado por um grande contingente de trabalhadores com pouca ou sem especialização, que percebem baixos salários para seu provento e de suas famílias. A associação do uso de álcool às massas trabalhadoras constitui uma referência consagrada no âmbito das pesquisas relativas aos sistemas de classificação e às relações de poder, que buscam estabelecer formas de controle social sobre essa camada da população6 (Neves, 2004). Entre os membros contatados, é significativo o número de aposentados (seis), mas que ainda continuam trabalhando em atividades informais, chamadas de “bicos”, como forma de obter alguma renda. Destacam-se também cinco membros que não têm vínculo empregatício formal: um marceneiro, dois pedreiros, um sapateiro e um taxista. Em menor número (dois), estão os que têm emprego formal. São eles: um assistente administrativo e um zelador. Entre as mulheres: duas são “donas de casa”, como elas próprias se reconhecem, uma é funcionária pública e outra é aposentada. Durante os depoimentos, os membros de A.A. destacam as perdas acumuladas, sobretudo, na família, durante o período ativo do alcoolismo. A esfera familiar revela-se, assim, uma referência fundamental para os membros do grupo, de maneira que a maioria deles se declarou casada. Entre os homens, nove se declararam casados, três solteiros, e um viúvo. Entre as mulheres, duas eram casadas e duas viúvas. À exceção dos solteiros, todos os demais têm filhos.
Anonimato e identidade no modelo terapêutico de A.A. O princípio do anonimato é um aspecto fundamental no modelo terapêutico de A.A. No programa de recuperação dos Doze Passos e das Doze Tradições, ele é definido, na décima segunda tradição, como o “alicerce espiritual das nossas tradições, lembrando-nos sempre da necessidade de colocar os princípios acima das personalidades” (Alcoólicos Anônimos, 2001, p.167-70). Nas reuniões de recuperação, frequentemente, os membros de A.A. reafirmam a importância do anonimato para o programa de recuperação da irmandade: Vou falar mais uma vez de nosso anonimato: Quem Você vê aqui, o que Você ouve aqui, deixe que fique aqui. Como posso saber se sou realmente um alcoólico? Somente Você poderá decidir. Muitos daqueles que agora estão em AA, tem sido considerados como não alcoólicos. Diziam que precisavam de mais força de vontade, mudança de ambiente, mais descanso ou alguns interesses novos a fim de corrigir o problema. Essas mesmas pessoas acabaram procurando o A.A., porque sentiram no íntimo que o álcool as havia vencido e estavam dispostos a tentar qualquer coisa que as libertassem da compulsão de beber. Alguns desses homens e mulheres passaram por experiências medonhas com o álcool, antes de admitirem que a bebida não lhes servia, tornaram-se marginais, roubaram, mentiram, enganaram e até mataram enquanto bebiam tiravam vantagem de seus empregadores e abusaram de seus familiares, mostraram-se totalmente irresponsáveis em todas as suas
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6 Para Neves (2004), um eixo de análise muito recorrente é aquele que associa o uso do álcool às massas trabalhadoras, enfatizando as situações de precariedade socioeconômica, aglutinando-se em torno da equação “pobreza, precariedade e alcoolismo”, acabando por legitimar intervenções sobre esse contingente da população. Com efeito, “de um modo positivo, a associação tende a valorizar a relação entre precárias e adversas condições de trabalho e o uso sistemático ou abusivo de álcool. De um modo negativo, a associação tende a consagrar a articulação entre o uso abusivo de bebida alcoólica e a imprevidência individual, incompatível com desempenhos de papéis de esposo, companheiro e pai” (Neves, 2004, p.11).
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relações sociais, dissiparam seus patrimônios materiais, mentais e espirituais. Muitos outros com histórias menos trágicas também procuraram o A.A.. Nunca foram presos ou hospitalizados. É possível que o seu excesso no beber não tenha sido notado nem mesmo pelos seus parentes e pelos seus amigos mais próximos. Mais conheceram o alcoolismo como doença progressiva, suficiente para aterrorizá-los. Eles passaram a fazer parte de A.A., antes de ter que pagar um preço muito alto. Costuma-se dizer em A.A. que ninguém é um pouco alcoólico: ou Você é ou não é. E somente um indivíduo envolvido poderá dizer se o álcool para ele se tornou um problema incontrolável.
Mas, por que os alcoólicos são anônimos? Fainzang (1994, p.344) ressalta que nas associações de exbebedores “a relação entre o grupo e o anonimato é correlata às representações do alcoolismo e às percepções que seus membros têm do álcool”. Ora, na passagem acima, é possível perceber o modo como o anonimato relaciona-se diretamente à representação do alcoolismo como uma “doença progressiva” e à percepção do álcool como um “problema” que independe da “força de vontade” do alcoólico para ser enfrentado. Como consequência, os membros de A.A. têm uma representação específica de si mesmo, de maneira que “ninguém é um pouco alcoólico: ou Você é ou não é. E somente um indivíduo envolvido poderá dizer se o álcool para ele se tornou um problema incontrolável”. Em artigo anterior (Campos, 2004a, p.1383-4), mostramos como, em A.A., o alcoolismo é representado como uma “doença inata inerente ao organismo do alcoólico, de modo que a doença independe tanto da vontade do indivíduo como da quantidade de álcool ingerida”. Ou seja, o alcoolismo é concebido como um mal que o indivíduo traz dentro de si mesmo, que faz parte dele, mas que pode ser controlado desde que ele aceite a existência da doença e a impossibilidade de enfrentá-la sozinho. Essa internalização da condição de doente é obtida pela objetivação produzida pelo modelo biomédico, no qual o alcoolismo é concebido como uma “doença crônica” – física e mental –, que é reiterada e reificada cotidianamente na troca de experiências com outros membros do grupo. Como sublinha Bateson (1977, p.279 - trad. minha): “o objetivo perseguido [no modelo de A.A.] é o de permitir que o alcoólico coloque seu alcoolismo no interior de si mesmo”, incorporando-o por meio da idéia de que é portador de uma “doença incurável”, com a qual deve aprender a conviver. É exatamente isso o que afirma um membro de A.A.: Eu sou João, um doente alcoólico em recuperação. Eu agradeço ao Poder Superior, companheiros e companheiras, que me ajudam nessa recuperação. Sou portador da doença do alcoolismo, uma doença que tava guardada dentro de mim e que se manifestaria em qualquer ocasião em que eu tivesse contato com a bebida alcoólica.
Como consequência, o álcool deixa de ser concebido como o mediador da sociabilidade criada pela reciprocidade vivida no ato de beber, para assumir o papel de “vetor” do alcoolismo. Em outras palavras, em vez de levar à troca e à sociabilidade, o uso do álcool torna-se um “problema incontrolável”, fechando o alcoólico no ciclo da dependência. O alcoolismo também é concebido como uma “doença” que se articula à dimensão propriamente moral do indivíduo, tornando-o “irresponsável em todas as suas relações sociais”. Não por acaso, a irmadade de A.A. também representa o alcoolismo como uma “doença espiritual” que altera o comportamento do alcoólico, tornando-o “egocêntrico” e, com isso, afetando todas as dimensões de sua vida social, notadamente na família e no trabalho. No modelo de A.A., a deterioração moral do alcoólico tem uma causa bem definida, a saber: o “egocentrismo” (Alcoólicos Anônimos, 1994, p.82). A doença alcoólica provoca um autocentramento do alcoólico, potencializando uma confiança ilimitada em suas capacidades. Isolado e fechado em si mesmo, o alcoólico acredita que é capaz de controlar o ato de beber a partir da própria vontade: “eu bebo quanto eu quero”, diz, quando questionado sobre sua capacidade de controlar as doses de bebida alcoólica ingeridas. O anonimato relaciona-se, portanto, diretamente à teoria da doença alcoólica de A.A., bem como à construção da identidade dos membros da irmandade. Ele opera como um mecanismo simbólico da construção identitária, sendo concebido como “o signo da abnegação da pessoa, elemento fundamental de COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
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um programa espiritual orientado na direção do reconhecimento de sua impotência e da necessidade de ser ajudado pelo Poder Superior” (Fainzang, 1996, p.104 - trad. minha). Dessa maneira, o anonimato é um signo da incapacidade de o alcoólico enfrentar o problema do alcoolismo, seguindo apenas a própria vontade, tal como traduzido no primeiro e segundo passos do programa de recuperação da irmandade: “1) Admitimos que éramos impotentes perante o álcool - que tínhamos perdido o domínio sobre nossas vidas; 2) Viemos a acreditar que um Poder Superior a nós mesmos poderia nos devolver à sanidade” (Alcoólicos Anônimos, 2001, p.17, 28). Ao invés de afirmar “eu posso”, “eu quero” e “eu consigo”, tal como prevê a crença arraigada na soberania do eu, assentada na ideologia moderna do individualismo, frente ao reconhecimento de seu fracasso na condução de sua própria vida pela vontade, o alcoólico reconhece sua “impotência” diante de uma doença que é fatal, e que necessita de ajuda. No modelo de A.A., “ser vencido pelo álcool e estar consciente disso constitui o primeiro passo de uma ‘experiência espiritual’. O mito do controle de si pelo próprio sujeito é, assim, demolido pela colocação em seu lugar de um poder superior” (Bateson, 1977, p.269 - trad. minha). Somente assim, pode-se obter a suavização do “egocentrismo”, que impede o alcoólico de reconhecer que é doente e que precisa de ajuda em sua recuperação. Desse modo, mais do que proteger o alcoólico da vergonha ou da denúncia, o anonimato é um mecanismo simbólico para lutar contra a “mise en vedette” (Bateson, 1977, p.293) pessoal, isto é, uma forma de combater o cultivo da personalidade que é “o maior perigo espiritual para o membro em questão, porque ele não pode se permitir um tal egoísmo, sem que coloque em risco sua recuperação” (Bateson, 1977, p.292-3 - trad. minha). Atuando como um “dispositivo anticarismático” (Soares, 1999, p.266), o anonimato também opera, simbolicamente, impedindo as diferenciações no interior da irmandade. Todo o esforço do modelo terapêutico de A.A. é no sentido de se evitarem as diferenças de status entre os membros no interior do grupo: tanto o membro novato, recém chegado ao grupo, como o mais antigo se identificam como “doentes alcoólicos em recuperação”, que se abstiveram “só por hoje” do primeiro gole. Lasselin e Fontain (1979, p.86 - trad. minha) destacam que, no interior do grupo, o alcoólico: “reencontra, ou melhor, encontra aquilo que estava desde sempre perdido, uma aproximação da identidade. Entre os alcoólicos, ele existe; ele é alcoólico e alcoólico sempre [será]”. Como consequência, o anonimato é um operador simbólico por meio do qual o alcoólico pode construir sua identidade, acrescentando à sua identidade pessoal uma coletiva, fornecida pela irmandade. O que pode ser notado na própria maneira como os membros de A.A. se identificam durante as reuniões de recuperação: “Meu nome é Jorge, um doente alcoólico que vem a essa reunião [de recuperação] para deixar aquele bêbado que eu era”. Enfim, o processo de nomeação identitária caracteriza-se por afirmar o pertencimento ao grupo e a condição de “doente alcoólico em recuperação”.
Anonimato e dependência em A.A. O princípio do anonimato, bem como a necessidade da ajuda de um poder superior para a recuperação do alcoólico, remetem-nos ao problema da dependência dentro das associações de exbebedores. A questão pode ser formulada da seguinte maneira: Não estaríamos aqui diante de uma troca da dependência do álcool pela dependência do grupo? Fainzang (1996) faz essa leitura, quando afirma que os membros de A.A., ao se submeterem ao Poder Superior, não fazem mais do que trocar uma dependência por outra, substituindo o álcool por um novo mestre: Deus. Como consequência, essa autora destaca que, enquanto o modelo terapêutico de A.A. “reforça” a dependência, aqui entendida como “submissão” a um novo mestre, o grupo Vie Libre almeja a “emancipação do sujeito”, recusando toda e qualquer forma de “escravidão”: A submissão à fatalidade da doença em A.A., manifesta na oração da serenidade, é totalmente recusada por Vie Libre. Vie Libre associa sua luta contra o alcoolismo à recusa da dependência e à escravidão. Enquanto A.A. busca encontrar um novo mestre, Vie Libre busca a emancipação. O álcool não é aqui substituído por Deus ou por uma outra força
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espiritual à qual o bebedor doravante se alienaria, mas por uma busca de liberdade. (Fainzang, 1996, p.115)
Ora, Fainzang não percebe que a diferença entre a dependência ao álcool e a “submissão” ao Poder Superior é, em primeiro lugar, ratificada pelas práticas mantidas no interior do grupo de A.A., notadamente durante as reuniões de recuperação. Com efeito, elas são de natureza completamente diferente das relações estabelecidas durante o tempo do alcoolismo ativo. A esse respeito são importantes as considerações de Drulhe (1988), nas quais recusa a tese da dependência do alcoólico em relação ao grupo. Para esse autor, é justamente a possibilidade de dividir uma experiência de vida comum que permite aos alcoólicos desenvolverem uma memória coletiva, que é a condição para uma socialização em torno do valor da abstinência: Reivindicar seu passado e sua identidade de alcoólico é o que lhes permite justificar sua recusa presente do álcool; se o grupo permite aos ex-bebedores estruturar suas lembranças e dar um sentido a sua vida passada e presente, a socialização que se elabora no grupo de mútua ajuda, não é a da dependência. Ao contrário, ela exprime a complementariedade que existe entre os homens. (Drulhe, 1988, p.323-4 - trad. minha)
O campo ideológico da modernidade é tomado, aqui, no sentido definido por Dumont (1983), o qual aponta que o “valor ‘indivíduo’” compõe o eixo semântico em torno do qual se estrutura toda cultura ocidental moderna. Nas palavras de Dumont (1983, p.21): “a ideologia moderna é individualista - sendo o individualismo definido sociologicamente do ponto de vista dos valores globais”. 6
Em vez de propor um simples substituto para o álcool, ao qual os membros de A.A. se alienariam, o grupo de A.A. possibilita a criação de um novo laço social, que permite ao alcoólico ressignificar sua experiência passada em torno dos valores da abstinência e da sobriedade, fazendo-o redescobrir os valores da amizade e da responsabilidade. Como explicam Jovelin e Oreskovic: “Durante as reuniões, são criados laços de sociabilidade entre os ex-bebedores. Camaradagem, amizades e afinidades novas se constroem dentro de uma rede que tem em comum apenas seu alcoolismo passado e sua abstinência presente” (2002, p.138 - trad. minha). Além disso, um outro aspecto deve ser destacado: enquanto no período do alcoolismo ativo o doente alcoólico vive um insulamento, isto é, uma espécie de dessocialização – que o isola e o mantém preso no círculo da dependência –, os valores da abstinência e da sobriedade, que norteiam as ações no interior do grupo, são um sinônimo de socialização, que permite ao alcoólico recuperar os laços sociais perdidos no passado. Nesse sentido, o princípio do anonimato não significa uma recusa pura e simples das individualidades e das histórias individuais. Nas reuniões de recuperação, os membros da irmandade enunciam uns aos outros suas histórias de vida do tempo do alcoolismo ativo e da sobriedade, tornando possível uma reconstrução identitária assentada em uma memória coletiva, que reforça sua condição de portador da doença incurável do alcoolismo. Trata-se de conter o “egocentrismo”, que torna o alcoólico irascível diante da evidência de sua doença. O anonimato patronímico é, então, um signo de pertencimento ao grupo e da “aceitação” de que se é um “doente alcoólico”. Não se trata, portanto, da troca da dependência do álcool pela dependência de um Ser Superior ou do grupo. Trata-se, sim, de um mecanismo simbólico que possibilita a fabricação da subjetividade pelo grupo, e que opera a ressemantização dos valores característicos do campo ideológico da modernidade, a saber: a “escolha”, a “liberdade”, a “responsabilidade” e a “vontade”6. Nesse sentido, o anonimato atua como um operador simbólico a partir do qual é edificado um modo diferencial de construção subjetiva, ligado às representações COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
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e às percepções sobre o álcool e o alcoolismo, bem como aos valores que orientam as práticas dos membros da irmandade em direção à sua recuperação. Como lembra Velho: “Cabe distinguir o lugar do indivíduo na construção social da identidade de qualquer grupo ou sociedade e o desenvolvimento de uma ideologia individualista que, em princípio, estaria vinculada a tipos particulares de experiência e história” (Velho, 1999, p.44-5 - grifos do original). Ora, o modelo de A.A. possibilita a edificação de um ethos individualista, segundo uma ordem simbólica no interior da qual o “doente alcoólico em recuperação” pode reconhecer-se como “indivíduo responsável” por sua recuperação. Como explica Soares, citando a primeira tradição do programa de recuperação da irmandade: Eu sou responsável pela busca da minha sobriedade através de um caminho de aprimoramento espiritual que me aproxima de Deus, tal como O concebo, consubstancializado no próprio grupo. Meu caminho supõe a ajuda de terceiros que, por outro lado, dependem da minha. Não apenas trocamos experiências, mas nos apoiamos mutuamente nos momentos de dificuldade. Minha sobriedade se sustenta tanto na ajuda que recebo quanto na que sou capaz de dar. (Soares, 1999, p.273)
Com efeito, para os membros de A.A., submeter-se ao Poder Superior é condição sine qua non para a recuperação da “liberdade”, da “responsabilidade” e da “capacidade de escolha”. Nas “reflexões diárias”, lidas em todas as reuniões de recuperação, encontramos o seguinte comentário sobre a “nova” liberdade conquistada após a entrada na irmandade: Minha primeira verdadeira liberdade é a liberdade de não precisar beber hoje. Se realmente desejá-la, praticarei os Doze Passos, e através deles me chegará a felicidade desta liberdade às vezes rapidamente, outras vezes lentamente. Seguir-se-ão outras liberdades, e fazer seu inventário será nova alegria. Tive uma nova liberdade hoje, a liberdade de ser eu mesmo. Tenho a liberdade de ser melhor do que jamais fui. (Alcoólicos Anônimos, 2000, p.147 grifos meus)
É nessa linha que podemos entender as palavras de um membro de A.A., durante a reunião de aniversário dos 66 anos de fundação do A.A. mundial: “Dizem que agora eu sou dependente do grupo de A.A. O problema é que antes eu não podia escolher se ia ou não beber e agora eu posso escolher ser membro de A.A.”. E, também, o que afirma outro membro da irmandade, quando fala da “escravidão” que vivia nos tempos de seu alcoolismo ativo: “eu não conseguia realizar nada; eu vivia no mundo da escravidão; eu cheguei à dependência; e o homem, quando ele depende, ele não tem mais domínio, ele é um escravo daquela dependência: eu cheguei à escravidão do álcool”. Nas reuniões, os AAs reiteram sua condição de doentes, reconhecendo-se “impotentes em relação ao álcool”, e que precisam de ajuda para sua recuperação. Nos relatos do chamado “tempo da ativa”, no qual faziam um uso “compulsivo do álcool”, eles narram a “perda de controle” sobre as doses ingeridas, deixando entrever o modo como o alcoolismo os conduziu à condição de heteronomia, na qual não podiam dirigir suas vidas seguindo a própria vontade, tornando-se incapazes de escolher entre beber ou não beber. No interior do grupo, os ex-bebedores se reconhecem como fazendo parte de uma ordem, no interior da qual eles podem estabelecer uma relação de cooperação com seus pares. É assim que eles deixam de ser dependentes do álcool, de maneira que a autonomia e a liberdade, perdidas nos tempos da ativa, podem agora ser recuperadas, redesenhando os contornos da sua identidade como “doente alcoólico”, isto é, um indivíduo responsável por sua própria recuperação.
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Do bêbado ao doente alcoólico: anonimato e ritual de passagem em A.A. A relação entre o anonimato e a construção identitária dos membros de A.A. também se relaciona à questão dos “ritos de passagem” vividos nas associações de ex-bebedores. É assim que, para Fainzang (1996, p.107), o modelo de A.A. não favorece uma mudança de status do bebedor, de modo que o anonimato somente reforçaria sua condição de “doente alcoólico em recuperação”. Enquanto na associação Vie Libre, o bebedor, após o tratamento, muda seu status, assumindo a condição de “bebedor curado”, em A.A., o ex-bebedor permanece sempre com o status de “doente alcoólico”, uma vez que o alcoolismo é entendido como uma doença incurável. Embora a afirmação da identidade de “doente alcoólico em recuperação” esteja no centro do modelo terapêutico da irmandade, não se descarta a questão dos ritos de passagem e a consequente mudança de status do bebedor. Com efeito, é possível analisar o momento da entrada do bebedor no grupo de A.A. como um “rito de passagem”, nos moldes definidos por Van Gennep e retomados por Turner (1974), ao se apresentarem as três fases que caracterizam esses ritos: A primeira fase (de separação) abrange o comportamento simbólico, que significa o afastamento do indivíduo ou de um grupo, quer do ponto fixo anterior na estrutura social, quer de um conjunto de condições culturais (um “estado”), ou, ainda, de ambos. Durante o período “liminar”, de intermédio, as características do sujeito ritual (o “transitante”) são ambíguas; ele passa através de um domínio cultural que tem poucos, ou quase nenhum, dos atributos do passado ou do estado futuro. Na terceira fase (reagregação ou reincorporação), consuma-se a passagem. O sujeito ritual, seja ele individual ou coletivo, permanece num estado relativamente estável mais uma vez, e em virtude disto, tem direitos e obrigações perante os outros, de tipo claramente definido e “estrutural”, esperando-se que se comporte de acordo com certas normas costumeiras e padrões éticos, que vinculam os incumbidos de uma posição social a um sistema de tais posições. (Turner, 1974, p.116-7)
Ora, a trajetória do bebedor até entrar na irmandade refere-se ao tempo do alcoolismo ativo, no qual ele vivia sob a pressão do estigma e em um estado de marginalidade e exclusão social. O bebedor vive um processo de contínuas perdas relacionais - perda da família, dos amigos e do trabalho -, até tocar o chamado “fundo do poço”. Essa metáfora denota a decadência física e moral do bebedor antes de chegar à irmandade de A.A. É exatamente isso o que afirma um membro de A.A.: “Aqui [no bairro de Sapopemba] muitos são desempregados, principalmente aqueles que chegam a Alcoólicos Anônimos. Através do alcoolismo, eles perderam seus empregos, perderam suas famílias, eles chegam aqui todos detonados”. Nessa primeira fase, o bebedor vive o momento de “separação”, isto é, ele rompe os laços familiares e profissionais, perdendo seu lugar social, de maneira que não mais se reconhece nas identidades sociais de “pai/mãe”, “esposo(a)” e “trabalhador(a)”. Aqui, o bebedor se destaca de sua matriz social, passando a ocupar um estado intermediário, caracterizado pela marginalidade e pela exclusão. Não por acaso, ele se encarna nas figuras do “bêbado”, do “cachaceiro” e do “pinguço”, todos personagens que vivem à margem das relações sociais valorizadas no universo ao qual os membros do grupo pertencem, e que denota a perda de status do bebedor. Vale aqui recorrermos a um paralelo com o célebre personagem Augusto Matraga, imortalizado na novela de Guimarães Rosa (2001) intitulada: “A hora e a vez de Augusto Matraga”. É bem conhecida a trajetória de construção do personagem central da obra, que, ao longo de sua vida, vê seu nome e seu status social se modificarem, passando de Nhô Augusto, um fazendeiro senhor da terra e dos destinos alheios, para o de Augusto Matraga, cujo nome, nas palavras de Guimarães Rosa, “não é nada”. Como indica Da Matta (1997), a novela oferece a possibilidade de interpretação da trajetória do personagem central - Augusto Matraga - com base no modelo indivíduo/pessoa e os rituais de passagem. Para esse autor: “enquanto o nome Nhô Augusto aponta para a ordem social e para uma posição superior na hierarquia, o nome Matraga revela a marginalidade de quem vagou como indivíduo no meio dos pobres, da natureza e dos bandidos” (Da Matta, 1997, p.318 - grifo do original). COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
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Ora, nos tempos do alcoolismo ativo, o bebedor encontra-se também completamente apartado de seu mundo social, atingindo o “fundo do poço”. Nesse momento, o bebedor vive contínuas perdas: “Eu achava que não aconteceria nada comigo se eu continuasse a beber, mas aí eu perdi a esposa, perdi a dignidade, perdi o caráter, perdi minha família; eu perdi tudo”. Da mesma maneira que Matraga, o bebedor, aqui, também “não é nada” e vive estigmatizado e marginalizado. Todavia, diferentemente do que sugere Da Matta, ao propor que Matraga encarna a figura do renunciante – recusando-se a retornar ao mundo do qual partiu, tornando-se cada vez mais individualizado –, a pesquisa etnográfica nos grupos de A.A. revela que o ex-bebedor só encontra a possibilidade de reconstrução subjetiva ao aceitar a condição de “doente alcoólico”: um “indivíduo doente” que, somente assim, pode recuperar as identidades sociais no universo relacional da família e do trabalho. No momento em que o bebedor toca o “fundo do poço”, ele sente que é “impotente diante do álcool” e decide procurar ajuda para sair dessa situação. Aqui, se confirma a máxima repetida por Matraga, segundo a qual “cada um tem a sua hora e a sua vez”, e sabe o momento de procurar ajuda. É nesse instante que o bebedor realiza a passagem de um estado de marginalidade para a fase de “liminaridade”, que se inicia com a reconstrução de sua identidade, agora de “doente alcoólico”, e permanece durante toda sua recuperação. A situação vivida pelo alcoólico recém-ingressante em um grupo exemplifica esse momento de liminaridade, a partir do instante em que ele recebe das mãos de seu “padrinho”7 a “ficha” que simboliza seu ingresso no grupo, mas não assume nenhuma função em sua organização interna8. Durante essa fase, o novato mantém uma relação mais direta com seu padrinho, que, por ser um membro veterano, com mais tempo de sobriedade, o orienta no aprendizado dos princípios do programa de recuperação dos Doze Passos e das Doze Tradições, e o ajuda a se familiarizar com o modelo terapêutico da irmandade. Nessa fase, o alcoólico se individualiza na companhia de outros que sofrem do mesmo problema. Ele se reconhece, portanto, como um “doente alcoólico em recuperação”, um indivíduo portador da doença incurável do alcoolismo, o que é confirmado a cada depoimento e a cada narrativa feita todos os dias nas reuniões de recuperação. Essa condição é reforçada pelo princípio do anonimato, que impede as diferenciações de status dentro do grupo, denotando que todos estão na mesma situação. O anonimato opera como um mecanismo simbólico que marca a passagem para uma noção de indivíduo doente compartilhada por todos os membros de A.A. É nesse momento também que se inicia a fase de “reincorporação”, na qual o alcoólico pode recuperar os vínculos perdidos no tempo da ativa, notadamente na família e no trabalho. É isso o que sugere um membro de A.A. ao narrar sua recuperação: “Quando cheguei em A.A. estava no fundo do poço e graças ao Poder Superior hoje eu tenho tudo. Minha preocupação hoje é com minha família, meu trabalho e com A.A.”. O anonimato, portanto, é um mecanismo que opera, simbolicamente, o ritual de passagem da figura do “bêbado” – isto é, daquele que perdeu sua posição social dentro da esfera familiar e do universo do trabalho – ao “doente alcoólico”, e, consequentemente, à recuperação dos laços sociais, perdidos no tempo do alcoolismo ativo, reconfigurando os contornos de sua construção subjetiva: um indivíduo doente que recupera o status vivido no universo social ao qual ele pertence, norteado pelos valores da família e do trabalho. 28
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7 O padrinho, em geral, é um membro do grupo com mais tempo de sobriedade, escolhido pelo alcoólico, e que será o responsável por aconselhá-lo durante sua trajetória rumo à sobriedade. Sua intervenção é importante nos momentos de “crise de abstinência”, durante os quais o alcoólico pode sofrer uma “recaída”.
8 O grupo Sapopemba de A.A. realiza, todo último domingo de cada mês, a reunião de “entrega de fichas”, na qual celebram, juntamente com seus amigos e seus familiares, o “tempo de sobriedade”, conquistado após a entrada na irmandade.
CAMPOS, E.A.
artigos
Ao entrar em A.A., o alcoólico pode, enfim, construir sua identidade, afirmando sua diferença em relação ao restante da sociedade, formada por não-alcoólicos. Certa vez, durante uma conversa com um membro de A.A., ele me perguntou: “Sabe qual a diferença que existe entre nós dois? E, em seguida, respondeu: “É que você é capaz de beber uma cerveja e esquecer que bebeu; eu não sou capaz de esquecer. Eu tenho que reconhecer que sou doente e que eu sou diferente de você”. O alcoólico sabe que não pode se esquecer de evitar o “primeiro gole”. Porque esquecer-se de que é doente significa correr o risco de uma “recaída”, o que pode ser fatal. E o único antídoto de que os membros de A.A. dispõem para se protegerem do esquecimento da “doença do alcoolismo” é a construção de uma memória coletiva, enunciando uns aos outros as “boas palavras” que podem ajudá-los na recuperação. “Nosso remédio é palavra”: é isso o que os membros da irmandade afirmam toda vez que sua condição de portadores da doença do alcoolismo é lembrada pelos companheiros do grupo nas reuniões de recuperação (Campos, 2007). É assim, também, que o modelo terapêutico de A.A. possibilita a produção de um “discurso legítimo” sobre a doença alcoólica, contrastando a identidade do alcoólico com aquela do não-alcoólico, o que torna possível a identificação de seus membros entre si, reconhecidos, agora, como “doentes alcoólicos em recuperação”, responsáveis tanto pelos cuidados de si como pelos de seus familiares.
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CAMPOS, E.A. ¿ Por qué los alcohólicos son anónimos? Anonimato e identidad en el tratamiento del alcoholismo. Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.13, n.28, p.19-30, jan./mar. 2009. Se pretende contribuir para la comprensión del papel del anonimato en el modelo terapéutico desarrollado por la hermandad de Alcohólicos Anónimos (A.A.) para dar cuenta de la “enfermedad del alcoholismo”. Se ha realizado una investigación bibliográfica en la literatura producida por la hermandad sobre el alcohol y el alcoholismo, así como una pesquisa cualitativa en grupos de A.A. localizados en la periferia de la ciudad de São Paulo – Brasil – con realización de entrevistas y observación de diversas actividades promovidas por sus miembros. Se concibe el modelo terapéutico de A.A. como un sistema cuya realidad simbólica es fundamental en la representación del alcoholismo como una “enfermedad crónica y fatal” y consecuentemente en la construcción de la identidad “enfermo alcohólico”. En efecto, el anonimato opera como un mecanismo simbólico fundamental en el proceso saludenfermedad vivenciado dentro de A.A. vinculándose directamente a la elaboración de la identidad del “enfermo alcohólico en recuperación” y, por esta vía, a la reconstrucción subjetiva de los miembros de la hermandad.
Palabras clave: Alcohólicos Anónimos. Alcoholismo. Anonimato. Ritual de paso. Recebido em 28/01/08. Aprovado em 30/07/08.
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Singularidades do envelhecimento: reflexões com base em conversas com um idoso institucionalizado
Lilian Juana Levenbach de Gamburgo1 Maria Inês Bacellar Monteiro2
GAMBURGO, L.J.L.; MONTEIRO, M.I.B. Singularities of aging: reflections from conversations with an institutionalized elderly person. Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.13, n.28, p.31-41, jan./mar. 2009. This paper deals with some peculiarities of the life of an elderly person living in a long-stay institution, interviewed within a study context in which investigating the language (considered as dialogic practice) of elderly people whose communication skills remained intact was the aim. The narrative allowed us to find out about living conditions and some specific features such as: (1) early institutionalization; (2) the interdependence between the reasons for voluntary institutionalization and the situation regarding abandonment; and (3) the apparent impropriety of using the term “elderly” to include individuals with very different ages. Five women and one man were interviewed. These interviews enabled examination of memories, feelings, values, interpersonal relations and the language itself. We hope to provide support for looking at elderly people’s communication such that it is considered to be a fundamental symbolic system for social inclusion, instead of centering on changes considered “typical” of old age.
Este artigo trata de algumas peculiaridades da vida de um idoso que mora numa Instituição de Longa Permanência, entrevistado no contexto de uma pesquisa cujo objetivo foi a linguagem como prática dialógica de idosos com as capacidades comunicativas preservadas. A narrativa nos permitiu conhecer as condições de vida e algumas especificidades tais como: (1) a institucionalização precoce; (2) a interdependência entre os motivos para o asilamento voluntário e a situação de abandono; (3) a aparente impropriedade de utilizar a categoria “idosos” para englobar sujeitos com idades muito diversas. Foram entrevistados cinco mulheres e um homem. As entrevistas propiciaram o exame de lembranças, sentimentos, valores, relações interpessoais e da própria linguagem. Esperamos oferecer subsídios para um olhar sobre a comunicação do idoso que a considera como sistema simbólico fundamental para a inserção social, olhar diverso daquele centrado nas alterações consideradas “típicas” da velhice.
Key words: Aging. Language. Institutionalization.
Palavras-chave: Envelhecimento. Linguagem. Institucionalização.
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
1 Fonoaudióloga. Universidade Metodista de Piracicaba. Rua 14 de dezembro, 504, apto. 81. Campinas, SP, Brasil. 13.015-130 gamburgo@mpc.com.br 2 Fonoaudióloga. Programa de PósGraduação em Educação, Universidade Metodista de Piracicaba.
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Introdução Este artigo tem por objetivo refletir a respeito de algumas singularidades relativas ao envelhecimento e à institucionalização de idosos no Brasil, identificadas com base na realização de um estudo intitulado Envelhecimento e linguagem: um estudo da linguagem como prática dialógica e social em idosos3. A pesquisa objetivou a linguagem de homens e mulheres que estão em processo de envelhecimento e que conservam as capacidades comunicativas preservadas. Ao mesmo tempo em que construímos novos conhecimentos, buscamos apreender o modo como cada indivíduo via a si mesmo e a sua própria linguagem. Com esse propósito, foram utilizados os relatos da memória afetiva e da história de vida de seis idosos. Por meio de entrevistas não estruturadas, os participantes recuperaram e reexaminaram suas lembranças, sentimentos, valores, opiniões, e as relações interpessoais estabelecidas ao longo da vida, considerando que: cada indivíduo é um ser da linguagem, sendo esta constitutiva e fundamental para o seu desenvolvimento como sujeito; a linguagem está vinculada de modo inseparável ao homem singular, que faz uso dela para interagir e comunicar-se; e cada indivíduo é produto do conjunto das relações sociais que o cercam. Ao mesmo tempo em que os sujeitos puderam falar de si, voltaram-se para a sua linguagem e as oportunidades de diálogo, num exercício de reflexividade, pois: “[...] o homem fala de si, (re)conhece-se, volta-se sobre si mesmo pela linguagem, a qual pode falar de seu próprio acontecimento” (Smolka, 1995, p.41). Os participantes tinham idades entre 61 e 81 anos. Quatro eram solteiros (um homem e três mulheres) e moravam numa Instituição de Longa Permanência para idosos (ILPI). Os outros (duas mulheres viúvas) moravam em suas próprias residências. Todos assinaram o correspondente Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. As entrevistas foram individuais, realizadas pela mesma investigadora, gravadas e transcritas. Começaram com perguntas semiestruturadas destinadas a traçar o perfil socioeducacional, e continuaram com a proposição de que cada um falasse sobre sua família, infância, escolaridade, relações sociais, de trabalho, opiniões etc. Os dados foram objeto de uma análise qualitativa, e organizados em torno dos seguintes eixos temáticos, formulados em função dos temas abordados ao longo dos diálogos: Família e vida afetiva; Esferas sociais, culturais e de trabalho; Sentimentos, crenças e valores pessoais; Opinião sobre a própria linguagem; Memórias; Vida na Instituição. Por não ser o objetivo desta pesquisa estabelecer um diálogo entre áreas distintas de conhecimento (Garnelo, 2006), não foi realizada triangulação com outras técnicas ou métodos qualitativos As informações originadas nas entrevistas permitiram-nos constatar um dos aspectos mais consensuais no que se refere aos idosos, a saber: que o envelhecimento é um fenômeno essencialmente heterogêneo. Bassit o expressa com as seguintes palavras: [...] envelhecer é uma experiência única para cada indivíduo, diversificada entre pessoas de um mesmo grupo social e heterogênea tanto entre indivíduos como em diferentes grupos sociais [...] o processo de envelhecimento, em função de sua múltipla determinação, implica diversidade, individualidade e variabilidade entre os indivíduos. (Bassit, 2004, p.143)
Neste texto destacamos a situação peculiar de Irineu (nome fictício). Desejamos, por meio dele, focalizar as múltiplas possibilidades oferecidas pela linguagem como sistema simbólico para que o sujeito estabeleça contato com os 32
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3 Dissertação de Mestrado, aprovada pelo Comitê de Ética, defendida em dezembro de 2006, pela primeira autora, dentro do Programa de PósGraduação em Educação da Universidade Metodista de Piracicaba, com orientação da segunda autora.
GAMBURGO, L.J.L.; MONTEIRO, M.I.B.
artigos
bens culturais; e dar subsídios para direcionar a maneira de olhar a linguagem do idoso, afastando-nos da visão centrada na detecção de alterações e patologias “típicas” da velhice. Partimos de uma concepção baseada em Mikhail Bakhtin (1895-1975), para quem a linguagem sempre é dialógica e discursiva e tem caráter interativo, histórico, cultural e social (Brait, Mello, 2005). Afirmamos que a linguagem é um componente essencial para a inserção social, para a saúde geral e uma vida com qualidade e autonomia na velhice. A despeito do declínio biológico característico, o homem e a mulher conservam possibilidades de transformação, desenvolvimento e mudança, devidas à plasticidade do funcionamento cognitivo e social. Bakhtin ressalta o papel central da dimensão semiótica no processo de constituição do sujeito, que ocorre ao longo de toda a vida, somente cessando com a chegada da morte. As funções superiores, tipicamente humanas (memória, linguagem, pensamento, formação de conceitos etc.), são relações sociais internalizadas, mediadas pelo signo - a linguagem - que estabelece a comunicação (Vigotski, 1995). Graças à plasticidade do cérebro, a linguagem organiza essas funções, e, para isso, é fundamental a interação socialdiscursiva. Por meio da linguagem somos capazes de expressar nossas idéias, pensamentos e sentimentos; e de transmitir as experiências e os conhecimentos adquiridos através dos tempos, nos diversos contextos sociais em que se desenvolvem as nossas atividades, notadamente as interações com familiares, amigos e colegas. Assim, a linguagem é essencial para a continuidade da inserção social do sujeito em processo de envelhecimento. Sendo atividade constitutiva e meio de comunicação e expressão, a linguagem também é instrumento de recuperação, reflexão e compreensão da memória construída socialmente, inscrita nas narrativas da história de vida de cada um. Isto significa dizer que a linguagem também é meio de constituição da memória, da subjetividade e da intersubjetividade nas experiências partilhadas, como é afirmado por Smolka (2000, p.187-8): “[...] a linguagem não é apenas instrumental na (re)construção das lembranças; ela é constitutiva da memória, em suas possibilidades e seus limites, em seus múltiplos sentidos, e é fundamental na construção da história”. Nessas experiências nos apropriamos dos valores e conceitos ideológicos que transitam nesse momento histórico e nesse lugar social, pois “[...] a constituição da subjetividade é marcada pelas condições de produção (materiais e ideológicas) nas quais cada pessoa se insere” (Kassar, 2000, p.45).
A entrevista com Irineu Para este texto, escolhemos recortes de entrevistas com Irineu, dentre as seis realizadas para a pesquisa. Esta escolha se justifica pela singularidade de sua situação, conforme veremos a seguir. Não é nossa intenção contrastar a fala de Irineu com as dos outros sujeitos, nem considerá-la paradigmática em nenhum sentido. Queremos chamar a atenção para o fato de Irineu poder ser visto como representativo de uma grande parcela de idosos institucionalizados e precocemente dependentes: sujeitos solteiros, viúvos e/ou alijados/abandonados pela família, que vão morar numa ILPI para obter a assistência necessária que lhes permita viver os últimos anos de suas vidas. Irineu tinha 61 anos, mas aparentava ser mais velho. Era solteiro e não tinha filhos. Relatou ter nascido e trabalhado, por muito tempo, num sítio que ficava próximo da ILPI, e ter completado o “primário” (atual Ensino Fundamental). Sua profissão era pintor residencial. A sua família de origem era composta pelos pais e quatro irmãos. Ao tempo da entrevista, não tinha contato com nenhum familiar e compartia um quarto coletivo em um dos pavilhões para pessoas carentes. Residia na instituição havia quatro anos (desde os 57 anos), por não poder mais trabalhar, já que apresentava sequelas de um acidente de trânsito que deixara seu braço direito inabilitado, e também por falta de outras opções onde morar. A ajuda da assistente social havia sido decisiva para a internação (isto fica evidenciado em um trecho que apresentamos da entrevista). Viver em uma Instituição de Longa Permanência é um direito estabelecido pela Política Nacional do Idoso (Decreto n.1.948, de 1996), que entende, por modalidade asilar, o atendimento – em regime de internato – ao idoso sem vínculo familiar ou sem condições de prover as suas necessidades de moradia, alimentação, saúde e convivência social (Brasil, 1996). Também a Lei n.10.741, de outubro de 2003, que dispõe sobre o Estatuto do Idoso, estabelece COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
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que “O idoso tem direito a moradia digna, no seio da família natural ou substituta, ou desacompanhado de seus familiares, quando assim o desejar, ou, ainda, em instituição pública ou privada” (Brasil, 2003). Será prestada a modalidade de entidade de longa permanência quando se verifique abandono, inexistência de grupo familiar, ou carência de recursos financeiros. E as instituições “[...] são obrigadas a manter padrões de habitação compatíveis com as necessidades deles, bem como provê-los com alimentação regular e higiene [...]”4. As instituições asilares devem proporcionar serviços nas áreas: social, médica, psicológica, odontológica, de enfermagem, fisioterapia, terapia ocupacional, entre outras, de acordo com as necessidades deste segmento etário (Born, 2005). No Brasil, assim como nos demais países em desenvolvimento, é considerado idoso todo indivíduo a partir da chegada aos sessenta anos de idade5. Nos países desenvolvidos, é estabelecida a chegada à velhice aos 65 anos. Esta variação é devida a fatores de ordem biológica, cultural, ambiental e econômica, entre outros. Born (2004a) afirma que é impossível pretender ignorar o fato de que o envelhecimento da população brasileira acontece num ritmo acelerado e num ambiente de grandes transformações sociais, entre as quais se sobressaem: a participação crescente da mulher no mercado de trabalho e os novos arranjos familiares – muitas vezes constituídos por mães solteiras, casais sem filhos, pessoas cujos filhos emigram etc. Assim, a perspectiva de envelhecer num ambiente familiar ou de a mulher vir a exercer o papel de cuidadora dos parentes idosos fica sensivelmente reduzida, embora o Estatuto do Idoso disponha que é obrigação da família, da comunidade e da sociedade - além do Poder Público - assegurar ao idoso que seja respeitado e efetivado “[...] o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária”. Ao priorizar o atendimento familiar em detrimento do asilar, as diretrizes do Estatuto do Idoso e da Política Nacional do Idoso não consideraram nem as mudanças na estrutura familiar mencionadas acima, nem o aumento do número de idosos dependentes e com necessidade de cuidados especiais, segundo atesta a Carta aberta de Santos (2007), elaborada no Fórum Estadual das ILPI, no marco do V Congresso Paulista de Geriatria e Gerontologia, GERP (2007), que descreve a ocorrência de uma [...] mudança no perfil de idosos institucionalizados ocorrida nos últimos anos, isto é, de pobreza e falta de rede familiar para a predominância de idosos com incapacidade e dependência física e/ou cognitiva, morbidades crônicas não transmissíveis e a falta de acesso a serviços de saúde através de convênios/planos de saúde.
Assim, a internação numa ILPI pode obedecer a causas de ordem individual, social, econômica, de saúde, ou a uma combinação das mesmas. Algumas das causas sociais são: solidão e abandono, carência ou desintegração da família, falta de uma rede social de suporte, impossibilidade de a família continuar proporcionando cuidados. E, dentre as dificuldades de ordem econômica, as mais frequentes são: necessidades decorrentes de problemas de saúde ou dependência, diminuição do poder aquisitivo, impossibilidade de pagar por serviços, de manter a moradia ou de aceder a uma alimentação minimamente adequada. Após responder algumas questões referentes a aspectos socioeducacionais, assim como os demais entrevistados, Irineu foi convidado a narrar livremente a respeito de: sua história de vida, da sua família, profissão, relacionamentos sociais 34
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4 Disponível em: <http:/ /www.direitodoidoso. com.br>. Acesso em: 7 jan. 2009. 5 A definição de idoso englobando as pessoas maiores de sessenta anos foi estabelecida pela Lei n.8842, de 4 de janeiro de 1994, e regulamentada pelo Decreto n. 1948, de 3 de julho de 1996, que dispõe sobre a política nacional do idoso. Disponível em: <http:// www.ripsa.org.br/ fichasIDB/record.php? node=A.14&lang=pt>. Acesso em: 7 jan. 2009.
GAMBURGO, L.J.L.; MONTEIRO, M.I.B.
artigos
etc. A história de Irineu nos permitiu tomar ciência de suas condições de vida, e, também, perceber algumas situações que ocorrem com certa frequência nas ILPI. Sua entrevista trouxe à tona características que valem a pena conhecer quando o tema dos idosos institucionalizados entra em cena, e sobre as quais tecemos algumas considerações. Estas temáticas se apresentam, a nosso ver, como constituintes de uma dada situação dentro do quadro da institucionalização: . A idade do velho: a institucionalização precoce e as diferenças de idade dentro da categoria dos idosos. . Asilamento e abandono.
A idade do velho: a institucionalização precoce e as diferenças de idade dentro da categoria dos idosos
A pesquisa, iniciada em 2006, intitulada Condições de funcionamento e de infraestrutura nas instituições de longa permanência para idosos no Brasil, foi realizada pelo Ipea, em parceria com a Secretaria Especial dos Direitos Humanos (SEDH) da Presidência da República e o Conselho Nacional dos Direitos do Idoso (CNDI). Disponível em: <http:// www.ipea.gov.br/ default.jsp>. Acesso em: 7 jan. 2009. 6
No seu caráter de coordenadora nacional do Fórum de ILPI e de participante da V Caravana Nacional de Direitos Humanos - realizada em 2002 -, Tomiko Born refere ter conhecido grande número de instituições em todo o país. Ela verificou que a população das instituições é muito heterogênea em idade e em condições de saúde, nelas podendo ser encontradas pessoas com diversas patologias e deficiências, tais como: deficiência visual, auditiva, mental, psicóticos com diagnósticos variados, e pessoas com diversos quadros demenciais (Born, 2004b). A autora registra também a ocorrência da institucionalização precoce, bastante frequente, em que pessoas com idade inferior aos sessenta anos encontram-se nas instituições asilares por carecerem de família ou por terem sequelas de Acidente Vascular Cerebral ou suspeita de algum processo demencial em fase inicial (Ortiz, Bertolucci, 2005), e que necessitam de cuidados ou simplesmente de um lugar para viver. Ainda há poucos dados que ilustrem esta situação. Com base na pesquisa que é realizada desde 2006 pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), em cinco regiões brasileiras, com a finalidade de elaborar um retrato do funcionamento das Instituições de Longa Permanência e das condições de vida dos idosos que nelas residem6, hoje se sabe que há, aproximadamente, cem mil idosos morando em seis mil ILPI espalhadas por todo o país. No entanto o número de moradores com menos de sessenta anos é desconhecido, podendo chegar a ser expressivo, segundo Born, atingindo, em alguns casos, cerca de 40% do total de internos. Eles são acolhidos por se encontrarem em situação de fragilidade social, às vezes vivendo sós na comunidade, ou sofrendo de doença física e/ou mental que os coloca em situação de dependência e consequente perda da autonomia. Uma tentativa de explicação deste fenômeno poderia ser que, até pouco tempo atrás, o Programa do Idoso da Secretaria de Assistência e Desenvolvimento Social do Estado permitia a internação de pessoas a partir dos cinquenta anos, que sofressem de alguma forma de exclusão social ou que fossem consideradas precocemente envelhecidas (Born, 2006). Irineu tinha 61 anos à época da nossa entrevista, havendo ingressado na ILPI com 57 anos. Assim, ele pode ser incluído no perfil descrito acima, ou seja, o de uma pessoa com mais de cinquenta anos, com características de exclusão social, e que foi precocemente institucionalizada. Entre os idosos entrevistados, Irineu era o mais jovem (tinha 61), existindo uma diferença de vinte anos entre ele e o entrevistado mais velho, de 81 anos. Isto representa quase uma geração. O exemplo de Irineu mostra uma realidade multifacetada, que é própria da história do envelhecimento populacional que ocorre no Brasil: (a) todo indivíduo é considerado idoso a partir dos sessenta anos; (b) o contingente de idosos, na sociedade, cresce a um ritmo muito acelerado; e (c) esta categoria, por sua vez, está envelhecendo devido ao aumento da longevidade, não COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
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somente no Brasil, mas no mundo todo. Hoje se sabe que, para um número crescente de pessoas, é possível superar os noventa, cem anos de vida, situação comum em países como Alemanha, Itália, França e Japão. Assim, uma consequência disto é a coexistência de pessoas de sessenta, setenta, oitenta, noventa anos ou mais nos contextos sociais, todas englobadas na grande categoria dos que chegaram à velhice. Então, o que é a velhice? O que é ser idoso? Citando um trecho do livro País jovem com cabelos brancos (Veras, 1995), Minayo e Coimbra afirmam que “Velhice é um termo impreciso [...] nada flutua mais do que os limites da velhice em termos de complexidade fisiológica, psicológica e social” (Minayo, Coimbra, 2002, p.14). O envelhecimento pressupõe a ocorrência de modificações em vários níveis. As mudanças ocorrem para todos, mas em momentos e intensidades diferentes, e dependem de características genéticas, ambientais e sociais. O envelhecimento é, portanto, um híbrido biológico-social. A velhice, assim como a infância, a adolescência ou a vida adulta, não é uma propriedade que os indivíduos adquirem. Pelo contrário: o processo biológico, que é real e pode ser reconhecido por sinais externos do corpo, é apropriado e elaborado simbolicamente por meio de rituais que definem, nas fronteiras etárias, um sentido político e organizador do sistema social [...] essas fronteiras e suas apropriações simbólicas não são iguais em todas as sociedades nem na mesma sociedade, em momentos históricos diferenciados – nem num mesmo tempo, para todas as classes, todos os segmentos e gêneros. (Minayo, Coimbra, 2002, p.15)
Assim, não existe uma resposta única à pergunta sobre “ser idoso”, já que a heterogeneidade é a característica mais marcante da velhice. Dois sujeitos com a mesma idade poderão apresentar características muito diferentes em um ou vários aspectos de seu modo de ser e estar no mundo: uma pessoa de sessenta anos pode identificar-se e ser identificada como idosa por reconhecer, em si, aspectos compatíveis com as de uma pessoa de mais idade. Este foi o caso de Irineu, que disse considerar-se e sentir-se velho aos 61 anos, como pode ser verificado em seu discurso: L. [...] na vida do senhor agora daqui pra frente o que que o senhor considera qualidade de vida? I. Viver os dia-a-dia o melhor possível, porque pelo contrario o que que a gente tem? Esperança o que que é? Eu acho que não há mais tempo pra nada. L. O senhor acha que não há mais tempo pra nada agora? I. Não, pra dizer uma esperança assim, ter um futuro melhor, eu acho que não há porque num... a gente próprio num tem consistência pra isso, então a gente sugere que... o término da vida já ta meio (escrita)7... por causa da idade, da velhice. L. O senhor se sente velho? I. Olha, eu sinto sim idoso. L. Se sente idoso? I. É velho, velho, velho por completo ainda não. L. Que diferença o senhor vê entre idoso e velho? I. Eu vejo com que a pessoa ta mais próximo ao fim da vida né, isso daí a gente vê, isso daí é hereditário à todos nós, é o caso de vida
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7 A palavra entre parênteses indica que houve dúvida na transcrição.
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artigos
nossa, e veja tem pessoas que vive um dia tem outras pessoas que vive cem anos ou então ou até mais de cem anos... as vezes é isso daí. L. E o que que o senhor espera pra sua vida daqui pra frente? I. O que que eu espero? Eu espero uma dádiva de Deus, uma benção que dê um futuro assim, bem melhor pra gente, meu procedimento de vida é esse.
Asilamento e abandono Com relação a este tema, observa-se, com frequência, que é possível encontrar uma correlação entre os motivos que levaram uma pessoa a morar numa ILPI e o abandono. Em uma pesquisa com trinta sujeitos (dez institucionalizados e vinte que moravam em seus domicílios), cujo objetivo foi conhecer o que os idosos entendiam por abandono na velhice e quais circunstâncias podem provocálo, Herédia, Cortelletti e Casara (2005), afirmaram que A partir das falas dos idosos entrevistados, entendeu-se que abandono na velhice é um sentimento de tristeza e de solidão, provocado por circunstâncias relativas a perdas, as quais se refletem basicamente em deficiências funcionais do organismo e na fragilidade das relações afetivas e sociais, que por sua vez conduzem a um distanciamento, podendo culminar no isolamento social.
Sofrer perdas constitui uma situação muito frequente na velhice: além da perda de familiares e amigos, a aposentadoria ou outras causas que levem à saída do mercado de trabalho, provocam a perda de status, da consideração dos outros e, muitas vezes, da possibilidade de se autossustentar financeiramente. Por meio da narrativa de Irineu, soubemos que, devido ao acidente de trânsito – uma perda importante na sua vida – ele precisou deixar de trabalhar, sendo esse um dos motivos que levaram ao seu asilamento. No recorte que se segue, Irineu relata a respeito do acidente: 8
[...] Trechos excluídos dos enunciados.
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(( )) Comentários da pesquisadora.
L. [...] 8 E como é que foi o acidente [...]? I. Esse acidente do braço aqui, este daqui foi a gente vindo do trabalho, foi num cruzamento de avenida com rua assim. L. O senhor tava aonde? I. Na garupa da moto. L. Ah, era a moto do senhor? I. Não, do amigo, amigo de serviço ((tosse))9, a gente tinha toda razão, isso ai a gente sabe disso, farol aberto pá nós e o carro entra na frente, o cruzamento é numa subida e a gente dá uma meia puxadinha na aceleração e bateu forte, a gente teve até a felicidade de num ser mais prejudicado. L. O senhor tinha me dito naquela ocasião que a cabeça não bateu não né, Graças a Deus. I. Não, a cabeça não, (só braço), foi só a matéria do braço a raspage, assim da carne isso aí é normal, eu tive essa felicidade. L. E fico no hospital muito tempo? I. A fiquei sim, fiquei nove dias. L. Nove dias, e fizeram gesso no senhor, como é que foi? Por que fico prejudicado o movimento? I. Porque isso aqui geralmente foi erro médico.
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L. Ah é? I. Só posso cita pa senhora isso ai [...] a gente passou pelo Pronto Socorro num médico que dava assistência em matéria de troca de gesso, matéria assim de tirar nova radiografia, uma coisa ou outra, [...] ele falou, até geralmente tem sigilo entre eles, a gente também não vai cita nome do médico, porque o médico que me fez este serviço, ele praticamente foi criado perto da minha casa, e a gente se conhece, ele é muito falado, ele é muito bom ortopedista, mas infelizmente acontece, que erro é humano, não vamo condenar ninguém, então eu deixei pra lá, vou faze o que eu não vou prejudica o médico, não vou prejudica a ((nome do hospital)), não vou prejudica nada. L. Que idade o senhor tinha quando foi esse acidente? I. A esse daqui também foi em noventa e três, esse acidente. L. [...] O senhor tava trabalhando na época? I. Sim, eu vinha vindo do serviço. L. E que aconteceu com o trabalho do senhor depois disso? I. Que aconteceu? Que a gente trabalhava ambulante por conta, foi obrigatório parar.
Nos enunciados que reproduzimos a seguir, fica ilustrada a situação e a percepção de solidão e abandono em que Irineu vivia após ter deixado de trabalhar, assim como sua decisão e as circunstâncias que rodearam a sua institucionalização. I. Tem uma senhora aqui [...] ela fez a proposta pra mim, ela tava por dentro da minha vida do jeito que eu vivia... né [...] Eu analisei bem por mim, falei: ué, não é bicho de sete cabeça né, vamos lá ver [...] Mas tinha o pobrema de idade naquela época.[...] Porque eu fui roubado, nesta época que eu fiquei sozinho na minha vida, documentação minha não tinha nada [...] então nós marcamos um encontro em frente aquele ((nome do lugar))... [...] Bom eu fui lá como eu conheço tudo [...] conversamos lá, [a assistente social] fez milhões de pergunta pra mim, falei tudo bem, aí eu citei tudo os pormenores né, eu não sou mentiroso, eu sou realista, isso eu só [...] Ce bebe muito? Falei não, bebo socialmente acho como quarquer pessoa bebe socialmente [...] ce não tem documentação? Falei não. Falou, que dia que cê nasceu? Falei dia vinte e nove do quatro de quarenta e três é a minha data de nascimento... Então ela analisou bem, falou, ma cê não tem sessenta ano, falei: é muito simples se é que senhora teja vontade de eu ta permanente lá, vamos fazer o seguinte, antecipar se da pra senhora antecipar. Mas como? Falei a data de nascimento em vez de ser quarenta e três quarenta né que daí daria os sessenta ...
Considerações finais No nosso estudo a respeito da linguagem no processo de envelhecimento, pudemos testemunhar como os idosos, enquanto fazem uso da sua linguagem, significam e avaliam sua vida, sua inserção na família, no trabalho, na cultura e nas atividades sociais; refletem sobre suas oportunidades (ou falta) de diálogo, e se desdobram tomando a si mesmos como objetos de atenção e análise. Irineu teve a oportunidade de recuperar e reexaminar suas lembranças, seus sentimentos, valores e as relações interpessoais estabelecidas ao longo da vida. A partir dos encontros foi possível observar, conhecer e interagir com um sujeito pensando e falando sobre suas experiências. Numa conversa preliminar verificamos que Irineu se comunicava verbalmente sem dificuldades aparentes. Ao longo da entrevista, de aproximadamente três horas de duração, constatamos tratar-se de uma pessoa ávida por contato, disponível e bem disposta para o diálogo, mostrando-se à vontade, como se estivesse desfrutando da oportunidade e da “platéia”. Foi minucioso na sua narrativa, não perdendo o intuito discursivo, mesmo durante os longos circunlóquios e numerosas informações e detalhes
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10 Informações disponíveis em: <http:// www.ecodebate.com.br/ 2008/09/25/ibgesintese-dos-indicadoressociais-2007-uma-analisedas-condicoes-de-vida-dapopulacao-brasileira/>. Acesso em: 7 jan. 2009.
artigos
referentes a lugares, pessoas, datas e circunstâncias. Tampouco se furtou a falar de suas impressões e opiniões relativas a pessoas de seu convívio e à instituição. Os diálogos nos levaram a tomar ciência dos desejos, opiniões e angústias de um indivíduo que, ao precisar se afastar do mercado de trabalho e ser institucionalizado, foi perdendo paulatinamente as oportunidades de convívio social e o direito de ter e usar sua própria voz. Como pudemos perceber, a história de Irineu permitiu que nos aproximássemos de alguns aspectos importantes, surgidos ao colocarmos o foco da nossa investigação em idosos morando em uma ILPI, a saber: (1) a institucionalização precoce, que acontece antes de o sujeito chegar aos sessenta anos, idade determinada como início da velhice no Brasil; (2) a interdependência entre os motivos para o asilamento voluntário e uma situação que pode ser caracterizada como abandono (isto é, a falta de amparo e assistência e um lugar para morar); (3) a aparente impropriedade de se utilizar a categoria “idoso” para englobar sujeitos com idades muito distantes, como aconteceu na nossa pesquisa. Antes de finalizar, é importante relembrar que nossa sociedade experimenta um acelerado processo de envelhecimento populacional. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostraram que, em 2007, os idosos representavam 10,5% da população total (quase vinte milhões)10. Este processo de transição demográfica, ao mesmo tempo coloca em evidência grandes conquistas na área médico-sanitária, e uma realidade permeada por desigualdades sociais crônicas existentes no Brasil. À luz desta situação, recorremos novamente à Carta Aberta de Santos (2007), para alertar que a maioria das Instituições de Longa Permanência enfrenta dificuldades para continuar prestando cuidados a pessoas que, em sua maioria, se encontram em situação de fragilidade física e social. Apesar das garantias previstas pelo Estatuto do Idoso, “[...] o Estado Brasileiro não oferece as devidas condições para a sua efetivação, as políticas públicas existentes não contemplam integralmente as necessidades das pessoas idosas”. É, portanto, urgente uma tomada de consciência sobre as necessidades que as ILPI enfrentam para suprir as exigências de moradia e cuidados com a saúde física e mental dos idosos que são por elas acolhidos.
Colaboradores As autoras Lilian Juana Levenbach de Gamburgo e Maria Inês Bacellar Monteiro participaram igualmente na elaboração e discussão do artigo. Lilian J. L. de Gamburgo realizou a revisão bibliográfica e a revisão final do texto. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
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artigos
VERAS, R.P. País jovem com cabelos brancos: a saúde do idoso no Brasil. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1995. VIGOTSKI, L. Problemas del desarrollo de la psique. Madrid: Visor, 1995. (Obras Escogidas, v.3).
GAMBURGO, L.J.L.; MONTEIRO, M.I.B. Singularidades del envejecimiento: reflexiones a partir de conversaciones con un anciano institucionalizado. Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.13, n.28, p.31-41, jan./mar. 2009. Este artículo trata de algunas peculiaridades de la vida de un anciano que vive en una Institución de Larga Permanencia, entrevistado en el contexto de una investigación cuyo objetivo fue el lenguaje como práctica dialógica de ancianos con las capacidades comunicativas preservadas. La narración nos permitió conocer las condiciones de vida y algunas especificidades tales como: (1) la institucionalización precoz, (2) la interdependencia entre los motivos para el aislamiento voluntario y la situación de abandono, (3) la aparente impropriedad de utilizar la categoría “ancianos” para englobar sujetos con edades muy diversas. Se entrevistaron cinco mujeres y un hombre. Las entrevistas proporcionaron el examen de recuerdos, sentimientos, valores, relaciones interpersonales y del propio lenguaje. Esperamos ofrecer subsidios para una mirada a la counicación del anciado que la considera como sistema simbólico fundamental para la inserción social; mirada diversa de la que se centra en las alteraciones consideradas “típícas” de la vejez.
Palabras clave: Envejecimiento. Lenguaje. Institucionalización. Recebido em 26/11/07. Aprovado em 20/12/08.
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Sexualidade feminina em revista(s)
Luciana Patrícia Zucco1 Maria Cecília de Souza Minayo2
ZUCCO, L.P.; MINAYO, M.C.S. Female sexuality in magazines. Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.13, n.28, p.43-54, jan./mar. 2009.
This paper results from an investigation on the discourse of female sexuality carried by women’s magazines in the years 2005 and 2006. ‘Claudia’ and ‘Mulher dia-a-dia’ were the documents analyzed through a qualitative investigative approach. The data construction was undertaken through critical discourse analysis, and female sexuality was approached from a constructivist perspective. The main results showed that the discursive conventions present in the reports gave shape to dual positions on contemporary Western sexual dynamics, such as: adoption of symmetrical sexual practices versus continuation of asymmetrical sexual practices; female sexual autonomy versus female sexual dependency; activeness versus passiveness; female pleasure versus male pleasure. Thus, we argue that sexuality remains doubly informed by hegemonic standards in force within society.
Key words: Female sexuality. Media. Discourse. Periodicals.
Este artigo é resultado da investigação dos discursos da sexualidade feminina veiculados por revistas para mulheres no período de 2005 e 2006. ‘Claudia’ e ‘Mulher dia-a-dia’, foram os documentos analisados em uma abordagem qualitativa de pesquisa. A construção dos dados ocorreu por meio da análise crítica de discurso, sendo a sexualidade feminina abordada com base em uma leitura construtivista. Os principais resultados evidenciaram que as convenções discursivas presentes nas reportagens materializaram posições duais sobre a dinâmica sexual contemporânea e ocidental, como: adoção de práticas sexuais simétricas versus vigência de práticas sexuais assimétricas; autonomia sexual feminina versus dependência sexual feminina; atividade versus passividade; prazer feminino versus prazer masculino. Afirmamos, com isso, que a sexualidade permanece duplamente informada por padrões hegemônicos vigentes na sociedade.
Palavras-chave: Sexualidade feminina. Mídia. Discursos. Publicações periódicas. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
1 Assistente social. Departamento de Política Social e Serviço Social Aplicado, Escola de Serviço Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rua Bartolomeu Portela, 36/202 – Botafogo. Rio de Janeiro, RJ, Brasil. 22.290-190 lpzucco@uol.com.br 2 Socióloga. Fundação Oswaldo Cruz.
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SEXUALIDADE FEMININA EM REVISTA(S)
Introdução e contextualização O objetivo deste artigo é evidenciar como as revistas destinadas a mulheres veiculam a sexualidade feminina. Nele apresentamos dados de uma pesquisa finalizada em 2007, em que os documentos analisados foram retirados das revistas ‘Claudia’ e ‘Mulher dia-a-dia’, dos anos de 2005 e 2006, ambas de ampla circulação no momento da investigação, e que veiculam conteúdos de interesse da mulher. O relatório da Empresa Unilever (Etcoff et al., 2004) considera, num entendimento global, como “interesse da mulher”, matérias sobre beleza, bem-estar e relação entre esses elementos, reforçando o discurso dos que creditam aos meios de comunicação o poder de atingir a individualidade das pessoas. Ao abordar as perspectivas femininas ressaltadas pela mídia, a pesquisa que deu origem a este artigo revelou serem beleza e aparência física os mais relevantes aspectos considerados como imperativos pelas mulheres e recompensados pela sanção da sociedade. Neste artigo, fazemos um exercício de análise de discurso com as duas citadas revistas, evidenciando que a comunicação atua de forma preponderante na sociedade contemporânea, com repercussões na vida social e, sobretudo, na subjetividade (Thompson, 1998). Esse poder indiscutível tem a ver, entre outros fatores, com os meios técnicos de comunicação, responsáveis pela configuração de valores e símbolos para o público usuário de seus serviços. Eles alimentam o mercado publicitário, definem imagens, ditam padrões e vendem produtos, compondo um mosaico que acaba por integrar a maneira de nos percebermos e de estarmos no mundo. Estudos (Fujisawa, 2006; Caldas Coulthard, 2005; Mira, 2003; Monteiro, 2000; Medrado, 1997) sobre meios técnicos de comunicação específicos, como televisão e revistas, demonstram, ainda, quanto são paradoxais as mensagens divulgadas à sociedade por esses veículos. Simultaneamente, difundem discursos emblemáticos de novos tempos e outros reificadores de concepções e crenças estabelecidas, assim como discursos educativos e erotizados, atendendo tanto às transformações socioculturais da sociedade como aprofundando estereótipos que garantem o conservadorismo. Se, por um lado, sua importância na vida cotidiana das pessoas é um fato, por outro, os meios de comunicação se valem desse cotidiano e retiram dele a matéria necessária para criar identificação com o público leitor – geram demanda e se mantêm num universo de concorrência. Logo, eles reconstroem a dinâmica cotidiana a seu modo, fazendo dela, quase sempre, um grande espetáculo. Segundo Melo (2000), nos anos 90, houve no Brasil uma mudança editorial promovida pela grande imprensa. Jornais e revistas de circulação nacional ampliaram os espaços destinados a temas como comportamento, sexualidade, saúde e saúde reprodutiva, bem como deram vez à participação de leitores e leitoras. Atualmente, estes são chamados a se posicionar sobre políticas públicas e serviços, até mesmo sobre a criação de seções voltadas para os direitos do consumidor. Tais mudanças decorrem de uma conjunção de fatores, apontadas pela autora, como: interesses do mercado, evolução editorial, comportamento mais crítico da sociedade, e abertura de temas da agenda social e política a segmentos organizados da sociedade. No caso das revistas femininas, o influxo da Conferência Mundial sobre a Mulher (CMM), realizada em Pequim, em 1995, manifestou-se como um acontecimento histórico que se soma às mudanças mencionadas e as corrobora. A Plataforma de Ação da CMM3, da qual o Brasil é signatário, traz, no capítulo J, elementos para o debate sobre a relação entre a mulher e os meios de 44
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3 Informações obtidas no site The United Nations Beijing Declaration and Platform for Action. FWCW. Platform for Action Women and Health. Disponível em: <http://www.un.org/ womenwatch/daw/ beijing/platform/ health.htm>. Acesso em: 12 set. 2004.
ZUCCO, L.P.; MINAYO, M.C.S.
O Código Brasileiro de Autorregulamentação Publicitária (22/5/1980), instrumento de autodisciplina para a atividade de propaganda comercial, na Seção 1 Preâmbulo, artigo 7º, reconhece que a publicidade exerce forte influência de ordem cultural sobre grandes massas da população, e prevê, com isso, o acompanhamento e a fiscalização da atividade publicitária. Informações obtidas no site do Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (CONAR), disponível em: <http:// www.conar.org.br>. 4
artigos
comunicação. Esse capítulo apresenta alguns objetivos: (a) ampliação do acesso da mulher a esses meios e sua participação na expressão de idéias e na tomada de decisões das mídias; (b) acesso às novas tecnologias de comunicação; (c) promoção de uma imagem feminina equilibrada e não estereotipada nesses meios. No âmbito da Plataforma de Ação da CMM, a área “mulher e meios de comunicação” é considerada estratégica para o fortalecimento das mulheres, embora tenha registrado o menor número de iniciativas e avanços políticos (Melo, 2000). O capítulo J reafirma a necessidade de se realizarem estudos a respeito da temática, e de que esta seja acompanhada de pesquisas e fiscalização4, para que, com um conjunto de informações e novos conhecimentos, órgãos públicos, privados e organizações não governamentais (ONG) possam ser subsidiados em suas intervenções relacionadas ao desenvolvimento da mulher. Este artigo apresenta a seguinte sequência de temas: aspectos conceituais sobre gênero e sexualidade feminina; questões metodológicas, que esclarecem o caminho percorrido; discussão dos resultados e conclusões.
Aspectos conceituais sobre gênero e sexualidade A sexualidade é aqui discutida a partir de seu processo de desnaturalização e de reconstrução, tal como é tratada por alguns autores, como Bozon (2004), Foucault (1999) e Giddens (1993), que não a limitam a comportamentos ou práticas sexuais. Esses estudiosos ampliam a análise dos aspectos culturais, das dimensões políticas e sociais que envolvem a sexualidade, desvinculando a da reprodução biológica da espécie. Por isso, se distanciam do paradigma das ciências biomédicas. Para Bozon (2004, p.15), a visão não naturalista “sublinha ao mesmo tempo a flexibilidade, a expressividade e a mobilidade da esfera sexual na época contemporânea e sua inevitável dependência dos processos sociais que a constroem”. Duas posições demarcam o debate sobre sexualidade: o essencialismo e o construtivismo social. A teoria essencialista credita à sexualidade aspectos inatos ou naturais e a considera imutável, engessando-a na ordem biológica. Persiste nessa leitura o primado de condutas, atos e relacionamentos sociais determinados pelo sexual, o que significa assinalar que homens e mulheres são providos de atributos diferentes em virtude de suas características anatomofisiológicas. Essa lógica vincula a sexualidade ao corpo e a reduz às funções biológicas, naturalizando-a e sugerindo que todos os sujeitos a compartilham como condição universal. Diferentemente do essencialismo, no qual predomina a racionalidade médico-científica e psicanalítica, o construtivismo social congrega abordagens que problematizam a universalidade dos instintos sexuais. Nesse caso, a orientação, os sentidos e a noção de experiência ou de comportamento sexuais não são passíveis de generalizações. Tais aspectos estariam sustentados por um conjunto de significados articulados a outras referências, como: o sistema de parentesco e de gênero, as classificações etárias, a origem social, as crenças religiosas, entre outras. A abordagem construtivista remete o entendimento da sexualidade à ordem da cultura. Isso sugere a produção de explicações específicas sobre o tema, associadas ou não à reprodução. Tal leitura possibilita, igualmente, tratar a sexualidade como uma construção subjetiva e coletiva, que acontece de acordo com as especificidades de um período histórico e de um ambiente determinado (Heilborn, 1996). Além das duas perspectivas identificadas acima, o debate atual sobre a sexualidade nas Ciências Humanas e Sociais permite quatro afirmações. Primeiro, a COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
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SEXUALIDADE FEMININA EM REVISTA(S)
sexualidade é pesquisada e analisada como um sistema articulado a outros subsistemas, constituindo-se num campo de conhecimento em construção e de investigação em si, dotado de certa legitimidade. Segundo, existe uma espécie de concorrência na definição do que seja sexualidade. Terceiro, posições teóricas relativas à temática possibilitam identificar que o vínculo entre sexualidade e reprodução é tão construído socialmente quanto a leitura na qual a sexualidade é totalmente distanciada do processo reprodutivo. E, quarto, a sexualidade feminina figura como desdobramento das diferentes abordagens, não se constituindo numa discussão solta e desvinculada. Neste artigo definimos sexualidade feminina considerando a relação entre subsistemas de gênero e identidade social, segundo uma leitura construtivista. A adoção desses parâmetros deve-se ao fato de remeterem à construção do sujeito, ordenando uma determinada maneira de olhar como as mulheres vivem e demonstram sua sexualidade. Segundo Butler (2003), a categoria gênero não é fixa e imutável, mas sim temporária e performativa, permitindo, com isso, a desnaturalização das práticas de significação envolvidas na apreensão do que é feminino e masculino. Isso situa a heterossexualidade e o falocentrismo no âmbito de regimes de poder e de campos discursivos. Dessa forma, gênero é demarcado como categoria de organização das relações sociais, que tem como elemento central a idéia da hierarquia. Paradoxalmente, a categoria gênero consagra a discussão crítica da idéia naturalizada das concepções de homem e de mulher. Estas não são fixas ou atreladas à noção de sexo. Em outras palavras, a categoria gênero aponta para a nãocontinuidade entre sexo físico e sexo social, e que tem sido utilizada por diversos campos do conhecimento (Heilborn, 1996). Ao diferenciar a dimensão biológica da social, a categoria de gênero explicita que os atributos constitutivos da sexualidade feminina foram historicamente construídos de forma assimétrica e em oposição aos masculinos. Contudo, as discussões de gênero permitem afirmar que não é a diferença sexual que institui relações hierárquicas de modo assimétrico entre homens e mulheres, mas a maneira como cada sociedade valoriza e significa tais diferenças biológicas. Disso decorrem representações sobre o que se espera do feminino e do masculino, de seus comportamentos e de suas atitudes, até mesmo sexuais.
Materiais e métodos: conhecendo o caminho Utilizamos a abordagem qualitativa na pesquisa que deu origem a este texto (Minayo, 2007). Construímos os dados por meio da análise crítica de discurso (ACD). Essa modalidade metodológica se volta para a apreensão da percepção sutil, da valorização do dito e do não-dito, da entrelinha e do detalhe presentes na prática discursiva. Sua atenção não se centra na comprovação de questões falsas ou verdadeiras, pois a análise não busca a explicação dos fatos. Sua lógica é expor as perspectivas e os processos pelos quais os fatos podem ser vistos, uma vez que os discursos desenham um campo de efeitos de sentidos, e não apenas um efeito específico. O conjunto do material de pesquisa envolve 12 exemplares da revista ‘Claudia’ (Editora Abril, R$ 8,60) e 12 exemplares da revista ‘Mulher dia-a-dia’ (Editora Alto Astral, R$ 4,90), ambas publicadas mensalmente e relativas aos anos de 2005 e 2006. A análise inclui chamadas das capas das revistas e matérias de ‘Claudia’ e ‘Mulher dia-a-dia’. Consideramos as capas indicadores para a seleção das matérias, porque elas atuam como grandes letreiros de divulgação do conteúdo e da forma que a leitora encontrará no corpo do texto. De acordo com Caldas Coulthard (2005), as manchetes são verdadeiras sínteses dos assuntos abordados, além de se caracterizarem como persuasivas e autopromocionais. O material selecionado é justificado pela argumentação de Orlandi (2001, 1999), que assegura não ser intenção da análise de discurso a exaustividade, ou seja, a análise horizontal, tampouco a completude ou exaustividade em relação ao objeto empírico, pois ele é inesgotável. A exaustividade esperada é a vertical, por possibilitar a análise em profundidade e por trazer consequências teóricas relevantes, uma vez que não trata os dados como meras ilustrações. A escolha de ‘Claudia’ ocorreu por sua longa permanência no mercado e por ter sido pioneira no âmbito da imprensa feminina, ao inaugurar, em 1961, data de sua criação, um novo estilo de editar 46
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Informações obtidas no site da Editora Abril: <http:// publicidade.abril.com.br/ homes.php?MARCA= 13>. Acesso em: 2 abr. 2003. 5
Informações obtidas no site da Editora Alto Astral: <http:// www.editoraaltoastral. com.br>. Acesso em: 3 jun. 2006. 6
artigos
moda, beleza, culinária e decoração (Buitoni, 1986). ‘Claudia’ trouxe um editorial especializado e propôs assuntos práticos e da vida cotidiana, carregados de representação sobre o feminino. Sua tiragem é de 471.700 exemplares e sua circulação líquida é de 374.210 exemplares. Seu público compreende mulheres (86%) de classe social B (44%), na faixa etária de 18 a 39 anos (52%)5. Ela tem, como foco, a mulher adulta, contemporânea, que gosta de se cuidar e de se sentir bonita e amada. Diferentemente de ‘Claudia’, a revista ‘Mulher dia-a-dia’, por ocasião da pesquisa, estava no seu primeiro ano de circulação, tendo sido lançada em março de 2005. Dela falaremos no tempo verbal pretérito, pois ao final de 2006 já havia sido retirada do mercado. A tiragem era de 44.340 exemplares e a circulação líquida de 13.326 exemplares. Seu público compreendia mulheres (79%) de classe social C (42%), na faixa etária de vinte a 29 anos (22%), e na de cinquenta anos em diante (19%)6. Sua atenção voltava-se para diversos temas de interesse da mulher, como moda, beleza, saúde, comportamento, família, bem-estar, profissão, entre outros, atuando como um guia para o universo feminino. Por ser uma publicação nova no mercado, ‘Mulher dia-a-dia’ fazia um contraponto com ‘Claudia’ em vários aspectos, como, por exemplo, não possuir assinaturas e ser encontrada, à época, apenas em bancas de jornal. Esses atributos valorizavam ainda mais a importância de sua capa. ‘Mulher dia-a-dia’ também tinha um preço inferior e mais accessível que ‘Claudia’. Em um primeiro momento, recorremos à análise textual das chamadas e matérias, descrevendo-as (microanálise). Para tanto, ativemo-nos ao vocabulário, pronomes, verbos e adjetivos empregados. Com base na análise desses elementos linguísticos, observados em seu conjunto, nos textos selecionados de cada exemplar, e em sua interação com os demais, podemos identificar a relação estabelecida entre magazine e leitora, bem como os lugares e assuntos destinados ao feminino e à sexualidade feminina. Para, então, apreendermos os sentidos da prática discursiva à luz da prática social (macroanálise).
Resultados Considerando o nível de detalhamento da análise textual, optamos por apresentar a análise de alguns textos e a formação discursiva dos magazines, sem, contudo, esgotar o processo de construção dos dados. ‘Claudia’ e ‘Mulher dia-a-dia’ instituem um padrão de discursividade que marca a forma como a sexualidade feminina é difundida, sendo pela sua identificação que iniciamos a discussão dos resultados.
Em cena: ‘Claudia’ e ‘Mulher dia-a-dia’ ‘Claudia’ e ‘Mulher dia-a-dia’ não possuem uma homogeneidade em suas práticas discursivas, na medida em que apresentam tendências diferentes. O tipo de discurso que mais se destaca em ambos os magazines indica o espaço social designado às revistas e às leitoras, bem como os valores sociais pertinentes, ou seja, o lugar social da produção do texto. Portanto, os magazines constroem relações diferenciadas com as leitoras, sendo por meio destas que os temas são veiculados. ‘Claudia’ estabelece modos horizontais de interagir com suas leitoras e utiliza um conjunto de recursos linguísticos. Um deles é a interlocução direta, implicando as leitoras nos textos que disponibiliza e as convidando a se inteirarem das informações. A presença do pronome de tratamento “você”, do pronome pessoal “nós” e dos pronomes possessivos (seu, sua, nossa, nosso), tanto nas chamadas como nas matérias, são um dado recorrente e prevalente: - “Que tal [você] começar uma coisa COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
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nova? Oportunidades se abrem quando [nós] conquistamos um território desconhecido” (maio, 2005); “Nossos filhos globalizados. As perspectivas que surgem aqui e lá fora. Os seus estão bem preparados?” (agosto, 2005). Cabe destacar que elementos de igualdade e de democracia são transmitidos pelo pronome inclusivo “nós”, que também simboliza uma fala destinada a pessoas comuns, como argumenta Fairclough (2001). O pronome “nós” sugere, assim, que a revista assume uma posição social similar à da leitora, partilhando situações e constituindo relações de identificação. Outra expressão desse vínculo de relações correspondentes são as frases estruturadas em forma de pergunta: “A aventura espiritual do sexo tântrico. Será que vai ser bom para vocês?” (maio de 2005). “Por que o cabelo mexe tanto com as nossas emoções” (setembro 2005). O uso dessa construção indica o fato de que ‘Claudia’ considera terem suas leitoras alguma informação e as reconhece em condições de comentar seus questionamentos. É importante sinalizar que a relação de proximidade instituída pelo magazine com a leitora é reafirmada pela associação dos diferentes recursos - questões e pronomes - nos enunciados, uma vez que demarca a tendência de cumplicidade presente em seus discursos. A revista utiliza, ainda, o interdiscurso para impregnar a comunicação de um sentido de troca e estabelecer uma relação de simetria – “Entrevista Eve Ensler, Dos monólogos da vagina ao desespero com a barriga, uma viagem pelo corpo da mulher (maio 2005)”. Para tratar de assuntos como corpo e estética femininos, ‘Claudia’ recorre à autora da peça de teatro “Monólogos da Vagina”, Eve Ensler. O magazine se utiliza desse conjunto de formulações, que requer conhecimento prévio da leitora de um evento teatral, para que ela compreenda a mensagem que está subliminarmente colocada. Da mesma forma, a edição de novembro de 2005 traz: “A mulher de 30 e o amor. O que está acontecendo com nossas Bridget Jones”. Nesse enunciado, o interdiscurso recupera um filme britânico, do gênero comédia romântica (2001), para questionar e sugerir que as mulheres brasileiras e leitoras de ‘Claudia’ - daí o pronome inclusivo “nossas” - permanecem sem relacionamento afetivo, diferentemente do que aconteceu com a protagonista do filme. Outrossim, o interdiscurso aponta que o público de ‘Claudia’ tem acesso a diferentes meios de comunicação e é inteirado dos acontecimentos sociais de sua realidade. Revela, igualmente, um vínculo de cumplicidade entre os sujeitos da comunicação e demonstra a distribuição social de poder pela linguagem, uma vez que informações e culturas podem ser reconhecidas e compartilhadas. Distintamente de ‘Claudia’, a prática discursiva identificada em ‘Mulher dia a dia’ indicava um traço hierárquico entre revista e leitora. Este era instituído, entre outros recursos, pelo modo verbal imperativo. Verbos que denotam ordens - ‘acabe’, ‘perca’, ‘conheça’, ‘entre’, ‘descubra’, ‘saiba’, ‘seduza’, ‘faça’, ‘fique’ – fizeram parte dos textos do magazine. A revista assumia a posição de protagonista, que preordenava o universo de discurso do seu público e o colocava como conduzido. Sua imagem era de porta-voz das informações não disponíveis às leitoras e que eram objetivamente imperiosas para elas. Nessa perspectiva, o verbo imperativo era associado ora a conselhos - “Lição de conquista! Aprenda com as estrelas da novela América” (setembro, 2005), ora a números – “9 hidratantes tudo de bom. Escolha o seu e faça um carinho em seu corpo” (junho, 2005). É importante destacar que aconselhamento e quantidade eram recorrentes nos enunciados de ‘Mulher dia a dia’: “12 dicas para dar um show de sedução!” (setembro, 2005); “10 lições para criar filhos felizes” (dezembro, 2005). Se “dicas”, “lições” ou “guias” garantiram ao magazine a imagem de conhecedor das demandas femininas, os números conferiram exatidão e confiabilidade. Ademais, essas expressões recuperaram, simbolicamente, a idéia de funcionalidade, ações autoaplicadas e caminho infalível, desde que as leitoras seguissem os passos apresentados pela revista. Nesse sentido, o enunciado “Pense como campeã e VENÇA na vida” prescrevia atitudes indefectíveis e fáceis; além disso, ordenava à leitora que assumisse uma postura mental propositiva para que pudesse conquistar sucesso, sugerindo que ela ainda não o detinha. Na mesma edição de julho (2005), o discurso direto da atriz Eliane Giardini - “Eu não sou uma pessoa de ficar de braços cruzados, esperando as coisas acontecerem” – trazia a metáfora de “braços cruzados”. Esta fazia referência à sua personalidade determinada e ativa. Somado a isso, sua imagem estampava a capa da revista e remetia à personagem Neuta, da novela ‘América’, de grande projeção à época, 48
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símbolo de força, coragem e empreendedorismo. Esses elementos em uma mesma superfície textual reforçaram o sentido de que cabia ao público de ‘Mulher dia-a-dia ’desenvolver seu protagonismo. Tais características estiveram presentes tanto no magazine como em suas modelos, e estimularam identificação com a leitora, pois o discurso direto reproduzia, na sua originalidade, as palavras das celebridades e demarcava vozes diferenciadas - as delas e a voz da revista. Em última instância, eram as próprias celebridades comentando aspectos de sua cotidianidade para a leitora. O discurso da figura pública trazia uma fala privada, o que favorecia a criação de vínculos de proximidade e destoava da tendência discursiva do magazine. Na sequência, “Novidade! Histórias de mulheres que alcançaram o sucesso!”. O substantivo “novidade” demonstrava, igualmente, que competência e sucesso eram predicados recentes do ‘universo feminino’, desse modo, motivo de desejo e de aprendizado, inclusive para a leitora. Simbolicamente, ela era associada à imagem das ‘mulheres’ de ‘Mulher dia-a-dia’, para ser estimulada e ensinada a ser capaz. A despeito dos dois últimos enunciados versarem sobre o mesmo campo semântico, havia neles um contraponto explícito: as ‘mulheres do magazine’ já ocupavam o lugar de vencedora, enquanto a leitora ainda não. Embora as práticas discursivas em ‘Claudia’ e em ‘Mulher dia a dia’ apresentem tendências específicas, as semelhanças residem nos assuntos veiculados. Isso implica observarmos que um mesmo domínio temático pode ser apresentado distintamente, dependendo da forma como é enquadrado no texto, da relação estabelecida com a leitora e da classe social a que se destina.
Sexualidade feminina em ‘Claudia’ e em ‘Mulher dia-a-dia’ As revistas delineiam um “universo” considerado por elas como feminino, já extensamente problematizado por várias estudiosas em diferentes décadas (Caldas-Coulthard, 2005; Widholzer, 2005; Swain, 2001; Bassanezi, 1996; Sarti, Moraes, 1980; Friedan, 1971). O questionamento diz respeito à leitura essencialista presente na noção de “universo feminino”, que naturaliza, reproduz e mantém a hierarquia social entre homens e mulheres. Em vários momentos na análise, explícita ou implicitamente, a construção do “mundo feminino” é realizada em oposição ao “mundo masculino”, e vice-versa. Essa oposição demarca signos distintos entre homens e mulheres e, até mesmo, antagônicos a ambos, reportando à construção binária de gênero (Heilborn, 1999). É segundo esse conjunto de elementos que demarcam o ‘universo feminino’ nas duas revistas que situamos os discursos sobre a sexualidade feminina. ‘Claudia’ apresenta uma estrutura de disposição dos assuntos que se repete nas edições, com pouca variação. Estes são divididos em grandes blocos, compreendendo cinco temas: sexualidade, subjetividade (realização pessoal e autoestima), âmbito privado (filhos e finanças), moda e beleza (autocuidado). O magazine enfatiza: beleza, imagem feminina, corpo, relacionamento amoroso entre homem e mulher, realização pessoal, condição feminina, filhos e, com mais ênfase, tabus sexuais e sexo. Na chamada “Mais amor. Histórias improváveis com final feliz mostram a força da paixão” (‘Claudia’, junho 2005), o advérbio de intensidade “mais” sinaliza tanto a constância do assunto na revista quanto o interesse da leitora pelo tema. Tal sentido é, transversalmente, reafirmado pelo enunciado da edição de dezembro de 2005: “Sim, existe amor após a separação. Nossa repórter pesquisa e comprova”. Por meio deste, a revista responde afirmativamente à indagação de seu público, sugerindo que relacionamento amoroso mobiliza a produção do magazine e demanda, igualmente, ações investigativas sobre o tema por parte da equipe. Outrossim, ‘Claudia’ utiliza-se da prática discursiva simétrica para colocar em pauta esse tema, que é um dos valores femininos tidos como o núcleo mais ativo da cultura de massa. Amor é destaque em todas as edições do magazine e está associado aos valores práticos fundamentais àquela cultura (Morin, 1997). Precisamente por isso, e porque recuperam dimensões do cotidiano, os valores femininos (afirmação da individualidade privada, bem-estar, amor e felicidade) geram identificações e instigam a imitação, o consumo e a conduta promovida pelo veículo de comunicação. A chamada “Operação resgate para recolocar VOCÊ em primeiro lugar”. “Não, não é egoísmo. É essencial!” volta-se diretamente para a leitora, por meio do pronome de tratamento “você”, e alude ao COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
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fato de ela ter uma série de atribuições. A metáfora “operação resgate” sinaliza a importância de a leitora de ‘Claudia’ ser recuperada e libertada da situação em que se encontra. Este sentido é acentuado pela seta vermelha que precede “Você” e que indica, figurativamente, para onde a atenção deve ser direcionada. Logo, reproduz uma interlocução ao responder que “não é egoísmo” a mulher restituir o cuidado para consigo, pois este está voltado para o outro, seja este família, filhos, casa ou trabalho, como sugere o adjetivo “primeiro”. Contraditoriamente, o discurso “O lanche saudável para a escola”. “Nesse menu visual, seus filhos escolhem o jeito mais saboroso de escapar da onda de obesidade que assola o Brasil” recoloca a atenção da mulher voltada para este outro, que, no caso, é motivo de preocupação e de seu trabalho. A revista a designa como mãe, por meio do pronome possessivo “seus”, e menciona como uma de suas atribuições: o cuidado com a alimentação dos filhos, a promoção de hábitos alimentares, e as suas escolhas alimentares. De forma simplista, reproduz o senso comum de que cabe à mulher o cuidado com a alimentação, seja da família ou dos filhos. Novamente, a mulher ocupa, no discurso da revista, a posição de sujeito, chegando a ser responsabilizada pela ausência de ações voltadas para consigo ou para com o outro. “+ bonita!” precede os enunciados listados e organizados por marcadores: [1] “Os segredos das experts: dermatologistas, professoras de ginástica e nutricionistas revelam como cuidam da pele, quais seus exercícios preferidos e o cardápio ideal”; [2] “Massagens que modelam o corpo, diminuem a barriga, afinam a cintura, reduzem os pneus”. O sinal gráfico “+” sugere que as matérias intensificarão a beleza de que as leitoras de ‘Claudia’ são possuidoras. No primeiro enunciado, o adjetivo “experts” atua como um selo de garantia às informações, pois são especialistas discorrendo sobre o assunto, consequentemente, profissionais apresentando a forma mais adequada de cuidado com a estética e a alimentação, o que atribui um status de veracidade à matéria. Corroborando tal afirmação, a preposição “das” remete aos depoimentos pessoais. Isso revela aspectos particulares e não divulgados da vida das “experts”, bem como traz o depoimento de mulheres destinado às leitoras, ou seja, são mulheres ‘falando’ para mulheres. Destacamos, igualmente, que, nesse enunciado, o cotidiano ganha relevância e o que, antes, era circunscrito ao domínio do privado se torna público, cabendo à revista essa exposição. No segundo, são oferecidos recursos para que a leitora possa desencadear uma ação, que, neste caso, consiste em esculpir o corpo, mediante um padrão subentendido, para torná-lo mais bonito. Todos os verbos - modelar, diminuir, afinar, reduzir - se referem ao ato de ajustar, e dão à leitora a noção de redução de medidas como uma possibilidade da massagem. Esses verbos, polissemicamente, associam resultados de massagem ao de intervenções cirúrgicas. De qualquer forma, ambas as técnicas tratam de um investimento realizado pela mulher para obter o corpo desejado. A metáfora “pneus”, pejorativamente, faz alusão à gordura e remete ao conjunto de cuidado com a estética necessário para tornar a mulher ainda mais bonita. Na edição de março de 2005, a revista indaga: “Ainda existem tabus sexuais em pleno século 21? 12 ótimas respostas”. Porém, o enunciado deixa pistas sobre a posição do magazine, ao utilizar o advérbio “ainda” na construção do texto. Ou seja, revela surpresa diante da existência de tabus sexuais na atualidade e oferece à leitora um conjunto de respostas que considera qualificado. Na sequência, o advérbio “MAIS:” liga o primeiro enunciado ao segundo: “Por que não podemos ver a sexualidade de ALEXANDRE, O GRANDE, com os olhos de hoje”. Reafirmando tal estruturação, o sinal gráfico - dois pontos – permite que este último desenvolva o que foi colocado anteriormente, dando continuidade ao assunto, como sendo um único texto. A intertextualidade - “Alexandre, o Grande” – faz referência ao título do filme em cartaz naquele momento e à história do rei da Macedônia, bem como explicita um dos tabus sexuais da contemporaneidade, o da homossexualidade masculina. Nesse sentido, a revista explicita que, ao abordar sexo ou relacionamento sexual nas demais edições, o faz segundo a orientação heterossexual. ‘Claudia’, de forma sutil, dá visibilidade em seu discurso ao tema da homossexualidade, o que geralmente fica oculto nas revistas para mulheres, ou seja, leva-o para o público feminino. Especificamente em relação ao sexo, este magazine difere de ‘Mulher dia-a-dia’, que o privilegiava e o mantinha, tal qual o ‘prazer’, recorrente, nas edições analisadas. 50
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Em “Acabe com suas dúvidas sobre sexo e seja mais feliz na cama” (março de 2005), ‘Mulher dia-adia’ estabelecia, com o uso do imperativo, a interlocução com a leitora e assumia a posição de protagonista. De forma categórica, afirmava que a leitora tinha dúvidas, era feliz em sua vida sexual; porém, por meio do advérbio de intensidade, indicava que ela poderia ser “mais”. Assim, tacitamente, o sentido expresso era de que a leitora não desfrutava de toda a intensidade possível que o sexo poderia lhe oferecer, em virtude de suas dúvidas, cabendo à revista elucidá-las’. Algumas dessas dúvidas eram: [1] “Os homens pensam mais em sexo do que as mulheres?”; [2] “Por que muitos homens só se preocupam com o próprio prazer, sem dar muita importância para o que a parceira está sentindo?”; [3] “Existe alguma forma de a mulher chegar ao orgasmo mais rápido?”; [4] “Com a chegada da menopausa, o prazer da mulher diminui?”. As indagações voltadas ao masculino [1 e 2] demonstraram intensidade (advérbio “mais”), individualidade (adjetivo “só”) e domínio (adjetivo “próprio”), em relação ao sexo e aos temas que compreenderam seu campo semântico, diferentemente daquelas direcionadas estritamente à mulher. Ao feminino, apesar de figurado na frase, o advérbio de intensidade “mais”, o adjetivo “rápido” deram ao prazer sexual uma conotação de dificuldade [3], reforçada pelo verbo “diminuir”. Enquanto, para os homens, o sexo foi associado a sentidos de presença, quantidade, intensidade e singularidade; para as mulheres, foi relacionado, semanticamente, à satisfação sexual. Entretanto, em grau e quantidade comparativamente menores do que para os homens. No enunciado “Orgasmo sem Segredos”. “Você merece este prazer” (abril de 2005), a preposição (“sem”) significava ausência e, por isso, reportava ao campo semântico do explícito. Denotava, portanto, que o prazer da excitação sexual era algo sigiloso, assim como o sexo. Logo, a matéria propunha romper com o interdito, ao publicizá-lo. O texto assinalava, ao mesmo tempo, a carência de informações e daquela sensação pelas leitoras do magazine (“você merece este prazer”). Se, em um primeiro momento, o sentido era de privação de conhecimento e de prazer, em outro, era de possibilidades de informação e de alteração da posição da mulher e de sua vivência na relação sexual. Ademais, o sexo era alçado à informação imprescindível e útil, por isso, o progresso do “nãosaber” à posição de mulher ativa trazia como recompensa o deleite. ‘Mulher dia-a-dia’ projetava também beleza e corpo como assuntos caros ao magazine e referidos à imagem do feminino. O título “Especial” “Plástica já” “Melhorar o corpo está ao alcance de todos. Saiba tudo sobre o assunto!!!” (maio de 2005) garantia um status à chamada, ao intitulá-la de “Especial”; além disso, apresentava-a como exclusiva para a leitora. A cirurgia plástica era promovida como procedimento imediato (advérbio “já”), acessível, que aprimoraria o corpo de toda e qualquer pessoa, deslocando o processo de significação da idéia de um procedimento restrito, devido ao seu alto custo, para produzir outro, o de que a cirurgia plástica estava “ao alcance de todos”. Na sequência dos discursos de cuidado com a estética, o texto “cabelos de estrela” evidenciava, pelo menos, dois tipos de cabelos: o de “estrela” e o de não estrela. A metáfora utilizada transferia atributos ao cabelo, qualificando-os positivamente, e denominava a mulher de bela ou atriz famosa, e a tornava uma referência a ser seguida por ter “cabelos de estrela”. A extensão do enunciado - “Com a escova progressiva” - garantia a fórmula para se obterem “cabelos de estrela” e os definia como lisos, pois essa técnica tinha por objetivo esticar e alisar os cabelos. A associação entre cabelo bonito, longo e liso esteve implícita em outras construções, assim como a homogeneização ditada pelo padrão estabelecido pelo magazine. ‘Mulher dia-a-dia’, por sua vez, no enunciado “Moda, horóscopo, saúde, filhos”. “Tudo que você procura está aqui!” (maio, 2005), define o periódico com todas as qualidades possíveis a serem oferecidas à leitora. Entretanto, resume as questões das mulheres aos temas tratados nele - “Moda, horóscopo, saúde, filhos” -, atribuindo à leitora a exigência de ser informada. Em ‘Mulher dia-a-dia’, a sexualidade estava mais estritamente relacionada à atividade sexual, ao erotismo e à sensualidade, isto é, ao sexo. Esta incorreu, em alguns momentos, na redução da realização pessoal à liberdade sexual e à possibilidade de ter prazer. ‘Claudia’, no entanto, sinaliza, de forma sutil, a associação entre sexualidade e condição feminina, bem como os sentimentos decorrentes do lugar ocupado pela mulher por suas atribuições tradicionais na sociedade, como o cuidado e o destaque à relação afetiva. 51
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Não obstante a semelhança temática, os discursos das revistas sinalizam estágios diferentes de relacionamento afetivo e sexual, e convergem para a apologia de um sentimento predominante na cultura de massa, que é o “amor sintético”. O termo foi cunhado por Morin (1997), para designar laços afetivos oriundos da atração sexual e da afinidade das almas na figura do casal. Nessa conformação, o encontro do homem e da mulher simboliza um sentimento total e nuclear. O “amor sintético”, decantado implicitamente nos magazines, representa uma espécie de natureza ao mesmo tempo mitológica e realista. Mitológica, porque é a idealização do relacionamento a dois, propondo que todos os conflitos podem ser superados. E realista, porque retrata a realidade do amor no estilo contemporâneo. Observamos, desse modo, que a promoção do “amor sintético” coincide com a idéia do relacionamento heterossexual, baseado na afeição e consagrado no casamento. Ambas as revistas pressupõem, com isso, um cenário de aceitação social no qual o sexo é liberado, mas, sobretudo, estimulado.
Principais considerações ‘Claudia’ e ‘Mulher dia-a-dia’ cobriram temas comuns, contudo, a primeira enfatiza um discurso de cumplicidade enquanto, a segunda, um discurso pedagógico. Essas características contribuem para compor o sentido do texto (Orlandi, 2001), evidenciando uma das estratificações própria aos produtos culturais, que é a classe social a que eles se destinam. O discurso de cumplicidade constitui uma enunciação atribuída tanto à revista como à leitora. A essa é concedida a possibilidade de se expressar e, à revista, a posição de informante e comentadora. É desse modo que ‘Claudia’ transmite valores e uma forma de ‘ser mulher’ e de ‘viver’, persuadindo a leitora subliminarmente. Sua posição é a de oferecer possibilidades, dispensando dicas, conselhos e receitas. Da mesma forma, cria uma representação de modernidade e de descolamento em seus discursos, para se fazer entender pela mulher moderna que é a leitora de ‘Claudia’. Por sua vez, o discurso pedagógico busca a utilização sistemática de fórmulas no imperativo, tendo como recurso comum o conselho e a quantificação. A assimetria na interlocução era uma característica da prática discursiva de ‘Mulher dia-a-dia’, evidenciando tanto uma leitora que se mantinha na condição de aprendiz quanto um dos objetivos da revista, ou seja, difundir valores e instigar desejos. Segundo Orlandi (2001), o uso do imperativo é peculiar a qualquer discurso em que haja ‘doutrinação’, muito presente nos textos religiosos e, também, no publicitário. Os discursos privilegiados por ‘Claudia’ e ‘Mulher dia-a-dia’, contraditoriamente para este último magazine, são aqueles que enaltecem a posição de sujeito da mulher na relação com o outro. Estes permitiriam à mulher vivenciar sua sexualidade de maneira livre, autônoma, satisfatória e prazerosa. Ambos os periódicos sustentam a importância do protagonismo feminino, notadamente o sexual. Claramente, fica manifesto que o direito de se governar passa, inclusive, pelo autoconhecimento, em nome dos ideais sexuais. Consideramos que os discursos de ‘Claudia’ e ‘Mulher dia-a-dia’ praticamente circunscrevem o debate sobre sexo à presença ou à ausência do prazer sexual ou afetivo. Se por um lado, esse enfoque limita a discussão, por outro, deixa explícito que o prazer é importante para a vida das mulheres e um dos elementos da sexualidade feminina. De todo modo, os magazines perpetuam o clássico enquadramento “Amor e Sexo”, identificado em revistas femininas e em estudos sobre esse meio de comunicação de massa (Bassanezi, 1996; Buitoni, 1986). Desse ponto de vista, o sexo se torna, nas reportagens, representativo das transformações femininas na sociedade e, sobretudo, responsável por produzir bem-estar e felicidade. No entanto, os discursos expostos nas revistas também assinalam aspectos de conservadorismo, veiculando noções e valores que recaem em um moralismo que suporíamos já superado. Ademais, as convenções discursivas dos magazines materializam posições duais sobre a dinâmica sexual contemporânea e ocidental, como: adoção de práticas sexuais simétricas versus vigência de práticas sexuais assimétricas; autonomia sexual feminina versus dependência sexual feminina; atividade versus passividade; prazer feminino versus prazer masculino; espontaneidade versus prescrição. 52
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artigos
Ressaltamos que ‘Claudia’ e ‘Mulher dia-a-dia’ manifestam um processo de mudança e de permanência mais amplo, que não deriva nem termina na difusão das formas simbólicas de informação e conhecimento, mas do qual ela se torna seu porta voz. Próprio da dinâmica histórica da sociedade, esse processo reedita novas normatizações dirigidas ao exercício da sexualidade, contribuindo, assim, para formas contemporâneas de subjetivação e de estética. Contudo, o novo traz, no seu interior, resquícios de uma realidade que lhe deu procedência e que se mantém na representação e nas práticas das mulheres, reafirmando seu lugar na sociedade e sua identidade sexual.
Colaboradores A autora Luciana Patrícia Zucco participou da elaboração do artigo, de sua discussão e redação e da revisão do texto. A autora Maria Cecília de Souza Minayo participou da revisão bibliográfica, de discussões e revisão do texto. Referências BASSANEZI, C. Virando as páginas, revendo as mulheres: revistas femininas e relações homem mulher 1945 1964. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1996. BOZON, M. Sociologia da sexualidade. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004. BUITONI, D. S. Imprensa feminina. São Paulo: Editora Ática, 1986. BUTLER, J. P. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. CALDAS COULTHARD, C.R. O picante sabor do proibido: narrativas pessoais e transgressão. In: FUNCK, S.B.; WIDHOLZER, N. (Orgs.). Gênero em discurso da mídia. Florianópolis: Ed. Mulheres/Santa Cruz do Sul/EDUNISC, 2005. p.121 46. ETCOFF, N. et al. A verdade sobre a beleza: um relatório global. 2004. Disponível em: <http://www.campanhapelarealbeleza.com.br/uploadedFiles/br/ dove_white_paper_final.pdf>. Acesso em: 10 abr. 2006. FAIRCLOUGH, N. Discurso e mudança social. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2001. FOUCAULT, M. História da sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1999. FRIEDAN, B. Mística feminina. Petrópolis: Vozes, 1971. FUJISAWA, M.S. Das Amélias às mulheres multifuncionais: a emancipação feminina e os comerciais de televisão. São Paulo: Summus, 2006. GIDDENS, A. A transformação da intimidade: sexualidade, amor e erotismo nas sociedades modernas. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1993. HEILBORN, M.L. Construção de si, gênero e sexualidade. In:______. (Org.). Sexualidade: o olhar das Ciências Sociais. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. p.40-58. ______. Gênero, sexualidade e saúde. In: SILVA, D.P.M. (Org.). Saúde, sexualidade e reprodução: compartilhando responsabilidades. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 1996. p.101-10. MEDRADO, B. Discursos sobre o masculino: um panorama da masculinidade nos comerciais de TV. Lugar Comum – Estud. midia, cult. democr., n.23, p.161-78, 1997.
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ZUCCO, L.P.; MINAYO, M.C.S. Sexualidad femenina en revista(s). Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.13, n.28, p.43-54, jan./mar. 2009. Este artículo es resultado de la investigación de los discursos de la sexualidad femenina difundidos por revistas para mujeres en el periodo de 2005 y 2006. “Claudia” y “Mujer día-a-día” han sido los documentos analizados en una aproximación cualitativa de pesquisa. La construcción de los datos se ha efectuado por medio del análisis crítico del discurso, encarándose la sexualidad femenina a partir de una lectura constructivista. Los principales resultados han puesto en evidencia que las convenciones discursivas presentes en los reportajes materializan posiciones duales sobre lá dinámica sexual contemporánea y occidental como: adopción de prácticas sexuales simétricas en comparación con vigencia de prácticas asimétricas; autonomía sexual femenina en comparación con dependencia sexual femenina; actividad en comparación con pasividad; placer femenino en comparación con placer masculino. Afirmamos, con esto, que la sexualidad permanece doblemente informada por padrones hegemónicos vigentes en la sociedad.
Palabras clave: Sexualidad femenina. Medios de comunicación. Discursos. Publicaciones periódicas. Recebido em 10/12/07. Aprovado em 28/07/08.
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Saberes e práticas curriculares: um estudo de um curso superior na área da saúde*
Cristiane Lopes Simão Lemos1 Selva Guimarães de Fonseca2
LEMOS, C.L.S.; FONSECA, S.G. Knowledge and curricular practices: an analysis on a university-level healthcare course. Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.13, n.28, p.57-69, jan./mar. 2009. Implementation of curricular guidelines for undergraduate dentistry courses has made it possible to restructure the curriculum in this field in Brazil. However, changing the legislation is not enough to modify the training. The aims of this paper were to analyze and rethink the role of the dentistry curriculum, through focusing on its dynamics, knowledge and practices. The study involved document analysis and interviews with the players concerned with the educational scenario of the dentistry school in question. Integrated clinical practice was chosen as the central object of this study, because this discipline is considered to be the backbone of the curriculum. Four guiding strands of logic were revealed within the curriculum dynamics: integration, fragmentation, professionalization and market logic. These were interlinked, thereby producing a hidden curriculum marked by various contradictions to the official one.
A implantação das diretrizes curriculares da graduação em odontologia significou uma possibilidade de reformular os currículos dessa área no Brasil. Mas mudanças na legislação não bastam para mudar uma formação; analisar e repensar o papel do currículo de odontologia, focalizando sua dinâmica, saberes e práticas foram os objetivos deste artigo. O estudo envolveu análise de documentos e entrevistas com atores envolvidos no cenário educacional da faculdade de odontologia investigada. A clínica integrada foi escolhida como objeto central do estudo porque se considera essa disciplina o eixo vertebral do currículo. Revelaram-se quatro lógicas norteadoras da dinâmica curricular: da integração, da fragmentação, da profissionalização e do mercado - não estanques, mas entrelaçadas, produzindo um currículo oculto marcado por diversas contradições com o oficial.
Key words: Curricular guidelines. Curriculum. Dentistry. Integrated clinical practice.
Palavras-chave: Diretrizes curriculares. Currículo. Odontologia. Clínica integrada.
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
* Elaborado com base em Lemos (2003). Apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). 1 Cirurgiã-dentista . Faculdade de Odontologia, UniEvangélica. R. J 17, Q.82, L.09, St Jaó. Goiânia, Go, Brasil. 74.673-320 cristianeprofessora@ yahoo.com.br 2 Graduada em Estudos Sociais. Faculdade de Educação, Universidade Federal de Uberlândia (UFU).
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Introdução Este artigo tem por objetivo apresentar resultados de uma investigação sobre a dinâmica, os saberes e as práticas curriculares do curso superior em odontologia da Faculdade de Odontologia da Universidade Federal de Uberlândia (FOUFU). A implantação, em 2002, das diretrizes curriculares nacionais dos cursos de graduação em odontologia (Brasil, 2002) ampliou o debate sobre a mudança curricular nas faculdades de odontologia no país. O documento tornou mais concreta a possibilidade de mudanças curriculares, inclusive pela flexibilidade imprimida ao processo de mudanças, levando-se em consideração as peculiaridades das faculdades de odontologia no país. O documento define o seguinte perfil do profissional: [...] cirurgião dentista, com formação generalista, humanista, crítica e reflexiva, para atuar em todos os níveis de atenção à saúde, com base no rigor técnico e científico. Capacitado ao exercício de atividades referentes à saúde bucal da população, pautado em princípios éticos, legais e na compreensão da realidade social, cultural e econômica do seu meio, dirigindo sua atuação para a transformação da realidade em benefício da sociedade [...]. (Brasil, 2002)
O mesmo documento apontou, ainda, que os conteúdos essenciais do curso de graduação em Odontologia devem estar relacionados ao processo saúde-doença do cidadão, da família e da comunidade, e integrados à realidade epidemiológica e profissional. Tomadas como patamar para inovação, as diretrizes representam, sem dúvida, tarefa de vulto para as instituições de Ensino Superior, em vista dos novos elementos por elas introduzidos, que apontam formas de organização e gestão dos processos de ensino até então inéditos na educação de nível superior no Brasil (Ciuffo, Ribeiro, 2008). Feuwerker e Almeida (2004) e Silveira (2004) ressaltam que, durante o processo de construção das mudanças, é necessário construir e preservar os espaços coletivos para debates e reflexões críticas, sobretudo porque os desafios são muitos e as zonas de desconhecimento também são frequentes, além de, muitas vezes, os interesses serem conflituosos. [...] A reflexão sobre as reformas curriculares do curso de graduação de Odontologia deve ser encarada com seriedade, para não haver o risco de as reformas se tornarem apenas letras mortas, que em nada mudam a realidade do ensino. A preocupação deve ir além da reorganização de conteúdos, disciplinas, cargas horárias e tempo de duração dos cursos. É necessário repensar o verdadeiro sentido dos cursos de Odontologia no interior do projeto universitário, buscando-se, para isso, conhecer esse projeto [...]. (Lemos, 2005, p.80)
A análise do currículo configura-se como possibilidade de se conhecer a realidade do ensino de Odontologia. Segundo Sacristán (1998, p.30), [...] o currículo é um dos conceitos mais potentes, estrategicamente falando, para analisar como a prática se sustenta e se expressa de uma forma peculiar dentro de um contexto escolar. O interesse pelo currículo segue paralelo com o interesse por conseguir um conhecimento mais penetrante sobre a realidade escolar.
Acreditamos que, para uma análise curricular, não basta apenas analisar conteúdos ou a metodologia das aulas, mas é necessário aprofundamento do estudo das condições reais que mediatizam o currículo, pesquisando seus condicionantes implícitos e explícitos, tarefa aparentemente simples mas, certamente, ardilosa. Giroux (1986) considera a existência de um currículo explícito e formal, e, outro, oculto e informal. Segundo ele, [...] a natureza da pedagogia escolar deveria ser encontrada não apenas nas finalidades expressas das justificativas escolares e objetivas preparadas pelos professores, mas na
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miríade de crenças e valores transmitidos tacitamente através das relações sociais e rotinas que caracterizam o dia a dia da experiência escolar [...]. (Giroux, 1986, p.69)
Metaforicamente, pode-se pensar a análise curricular como a tentativa de desembaraçar um novelo de lã que se encontra embaraçado. Para desembaraçá-lo, é necessário muito cuidado, astúcia e paciência. Isso porque esse novelo (o currículo) está entremeado por fatores históricos, políticos, econômicos, sociais e culturais. Não é possível compreendê-lo de uma única prospectiva, pelo que, merece ele ser estudado processualmente, uma vez que “se expressa numa prática e ganha significado dentro de outra prática de algum modo prévio e não tem função apenas do currículo, mas de outros determinantes. É o contexto da prática ao mesmo tempo em que é contextualizado por ela” (Sacristán, 1998, p.16). A Faculdade de Odontologia de Uberlândia foi fundada no ano de 1970, em contexto de expansão e interiorização do Ensino Superior no país, impulsionado pela Reforma Universitária de 1968 (Brasil, 1968). Em outubro de 1975, pelo Decreto-lei 76.380, o Curso de Odontologia da Universidade de Uberlândia foi reconhecido pelo Conselho Federal de Educação. Em 24 de maio de 1978, pelo Decreto-lei 6.532, aconteceu a federalização da Universidade de Uberlândia, passando o curso de odontologia a pertencer à Universidade Federal de Uberlândia. A federalização da UFU, em 1977, coincidiu com um movimento de intensa discussão sobre o ensino odontológico, liderado, sobretudo, pela ABENO, pela Faculdade de Odontologia da Universidade Federal de Pernambuco, e pela Universidade Estadual de Campinas - Unicamp. Os temas básicos da discussão foram: a integração do ensino odontológico, a prevenção e a visão do paciente como uma unidade biopsicossocial – e culminaram na criação de um novo currículo.
Metodologia
3 A pesquisa foi realizada no ano de 2003, a partir da análise do currículo vigente, implantado em 1986. Nesse ano, já se havia iniciado o processo de reformulação do currículo da Foufu, e, em 2007, foi aprovado novo projeto pedagógico.
Como objeto de estudo, foi eleita a disciplina de clínica integrada, denominada unidade de clínica odontoestomatológica integrada (Ucoei), por se entender que ela sintetiza várias disciplinas do currículo odontológico da Faculdade de Odontologia da Universidade Federal de Uberlândia (Foufu)3. A disciplina era ministrada do quinto ao oitavo período, com cerca de 1.020 horas de atividades, exclusivamente práticas, que totalizavam 24,78% da carga horária do Curso. Apresentava estrutura interdisciplinar, composta pelas áreas de: cirurgia, dentística, endodontia, periodontia, oclusão, prótese removível e prótese total – objetivando uma formação generalista. No currículo de graduação em odontologia, a disciplina de clínica integrada é um dos eixos principais da formação generalista e, por isso, tem sido um dos principais focos de discussão de: Poi et al. (2003); Petroucic, Albuquerque Júnior (2005); Cristino (2005); Tiedmann, Linhares e Silveira (2005); Lemos (2003); Reis (2002); Padilha (2002); Almeida e Padilha (2001); Poi et al. (1997); Padilha et al. (1995); Freitas et al. (1992); Marcos (1991), entre outros. Na perspectiva processual, este estudo é o aprofundamento de uma pesquisa anterior (Lemos, 2004), na qual foi investigado, por meio de aplicação de questionários, o grau de conhecimento técnico de 35 estudantes matriculados na disciplina de Ucoei, cursando o penúltimo semestre de formação. Os resultados COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
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levantados forneceram indícios da existência de um currículo oculto na disciplina, que interfere no aprendizado discente, deixando de conduzir o aluno a uma formação generalista, conforme preconiza o currículo oficial. Tais dados estimularam-nos a novas reflexões e indagações sobre esta realidade: que lógicas norteiam o ensino odontológico da Faculdade de Odontologia de Uberlândia? Como se configura a Ucoei no interior dessa proposta curricular? Como, na prática, configura-se a Ucoei e qual é o papel de alunos e professores nesta dinâmica curricular? Existe um currículo oculto na Ucoei que interfere no ensino-aprendizagem? Para responder a estes questionamentos, foi realizada uma análise mais aprofundada, com base em dois procedimentos de pesquisa: análise documental e análise político-social das relações instituiçãoprofessor-aluno, utilizando-se a entrevista oral semiestruturada como técnica de pesquisa. A opção metodológica foi a abordagem qualitativa, por se compreender que esta era a mais apropriada à questão, devido tanto à complexidade do campo da investigação curricular como ao fato de que ele requer ferramentas de pesquisa que captem mais profundamente a realidade que se propõe estudar. Os documentos analisados foram: grades curriculares, projetos pedagógicos e outros relacionados à temática do estudo. Os sujeitos entrevistados foram: três professores, dois alunos egressos - que já haviam respondido questionários da pesquisa anterior (Lemos, 2005) - e o professor idealizador da proposta curricular vigente nos anos 2001 e 2002. Os três professores pertenciam ao quadro de docentes efetivos da UFU. Dois são do sexo masculino e um do sexo feminino. Dois estavam na instituição há mais de vinte anos e um há menos de dez anos. Todos são doutores e ex-alunos da Foufu. Dois deles haviam sido coordenadores do Curso, tendo um deles exercido o cargo por seis vezes, sendo, à época, diretor da Foufu. Para identificá-los utilizamos as letras A, B e C. Quanto aos ex-alunos, ambos do sexo masculino, graduaram-se em 2001 e trabalham em consultório particular na cidade de Goiânia. Os alunos também foram identificados pelas letras A e B. O ex-aluno A não fez qualquer curso de pós-graduação. O ex-aluno B está cursando especialização em cirurgia. O professor idealizador graduou-se na UFMG e tornou-se docente em 1972. De 1978 a 1980, foi coordenador do curso, após o que continuou a exercer a docência, tendo se aposentado em 1992. As entrevistas foram gravadas individualmente e transcritas. Todo o material (documentos e entrevistas) foi organizado e classificado em categorias analíticas. Com base em uma análise qualitativa, buscamos interpretações e explicações do problema e das questões que motivaram a investigação. Foram cruzadas informações (documentos e entrevistas) aparentemente desconexas, com o objetivo de interpretar os diferentes materiais na busca de uma racionalidade.
Resultados e discussão: compreendendo a trama curricular da Foufu Com base na análise dos dados, levantaram-se quatro lógicas principais que permeiam a construção curricular da Ucoei. São elas: a lógica da integração, a da fragmentação, a do mercado e a da produtividade.
A lógica da integração A integração curricular foi uma das principais mudanças do currículo implantado em 1986. Na Foufu, as disciplinas do curso profissionalizante foram reunidas em unidades de ensino: unidade de diagnóstico estomatológico (Ude), unidade estomatológica integrada (Uei I), unidade de odontologia infantil (Uoi), unidade de odontologia social e preventiva (Uosp), e unidade de clínica odontoestomatológica integrada (Ucoei). No seguinte trecho de entrevista, o idealizador explica como funcionavam as unidades de ensino. [...] Por exemplo, uma unidade que fora criada foi a Ude, unidade de diagnóstico estomatológico. No sistema antigo, havia um professor responsável pela disciplina de
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semiologia, outro pela histologia, outro pela patologia, outro pela radiologia, que trabalhavam com conteúdos fragmentados, que deveriam ser reunidos na cabeça do aluno. No novo conceito, todas essas disciplinas eram reunidas em uma única unidade, Ude, que visava prioritariamente entender o diagnóstico de doenças de forma global. A unidade possuía todas as funções, atividades, matérias, pré-requisitos, assuntos, itens do programa, que eram regulamentadas de forma que o aluno aprendesse a diagnosticar. Ao contrário do antigo sistema, que se trabalhava com assuntos isolados, os quais o aluno depois teria que reunir para elaborar um diagnóstico [...]. (Professor idealizador)
Em tese, a Ucoei deveria reunir todas as especialidades da odontologia. O objetivo geral da disciplina era o seguinte: [...] O aluno na Ucoei [...], aplicará conhecimentos adquiridos no pré-clínico, [...] desenvolverá domínio psico-motor através da execução, em pacientes, do plano de tratamento integrado proposto, visando a reabilitação morfológica, estética e funcional e manutenção da saúde bucal [...]. (Universidade Federal de Uberlândia, 1986)
As clínicas integradas são consideradas um meio de contribuir para a formação de um odontólogo integral – entendendo-se esse profissional como alguém que domine conhecimentos biológicos adequados, possua capacidade técnica desenvolvida e orientação social que o permita situar-se na realidade do país. A proposta oficial da Ucoei demonstra claramente os limites da integralidade, pois a disciplina focaliza, preferencialmente, o treinamento clínico e a reabilitação de manutenção da saúde bucal. Este fato está relacionado à idéia de que a odontologia brasileira é “tecnicamente elogiável, cientificamente discutível e socialmente caótica” (Garrafa, Moysés, 1996). Para os professores A e B, o objetivo da clínica está mais voltado para uma formação clínica generalista, com visão integral de todas as áreas da odontologia. Essa formação integral se destinaria, pois, à formação clínica generalista. O professor C confirma essa visão: “[...] a formação integral está na idéia do aluno conseguir associar o conteúdo teórico e básico que ele viu associado ao procedimento prático. [...] Agora falta esta formação mais ampla, da associação dos conteúdos com aspectos mais sociais, com aspectos psicológicos [...]”. Para o ex-aluno B, a Ucoei ensina mais a técnica. Encaminhado pela triagem, “não se sabe de onde o paciente veio, qual a sua necessidade financeira. Não se sabe muita coisa do paciente”. Nesse sentido, a Ucoei não contribui para uma reflexão mais ampla sobre a atenção à saúde, uma vez que está mais voltada para a lógica da competência técnica para o mercado privado e para a ação “curadora” relatada por Moysés (2004). Quando, no entanto, se compara a clínica integrada com a clínica nucleada, percebe-se que a primeira, pelo menos em relação ao tratamento clínico, avança em relação à segunda. Isso porque, na clínica integrada, o aluno tem a possibilidade de fazer um plano de tratamento que engloba todas as necessidades do paciente. Segundo o aluno B, isto acontecia na Ucoei: “Eu acho que ela tenta mostrar para a gente que o paciente é um todo. Ele tem uma gengiva, ele tem uma língua, uma boca, um corpo, um organismo”. Outra vantagem do sistema de clínica integrada da Ucoei, em relação aos objetivos do currículo oficial, era a possibilidade real de se concluir o tratamento clínico do paciente. [...] Por exemplo, estou tratando um paciente que necessita de cuidados na área de Dentística. E, por alguma razão, o dente do paciente foi bastante desgastado e houve necessidade de indicar o tratamento de canal. Se fosse numa outra clínica (não integrada), eu teria que tampar o dente e encaminhá-lo para a clínica específica de tratamento de canal (endodontia). Já na Ucoei, isto não acontece, porque na hora que há a necessidade de tratamento de canal, eu chamo o professor de endodontia, que já fornece sua avaliação sobre o caso clínico. [...] Aí que está a validade da clínica integrada. Entendeu? Eu não preciso ficar encaminhando paciente e dizendo a ele: hoje é quarta feira, é dia só de clínica de dentística. Amanha é quinta
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que é a clínica de prótese fixa. Então, hoje nós vamos tampar seu dente, amanhã você volta. Não necessita disto na Ucoei [...]. (Ex-aluno B)
Outro avanço na proposta da Ucoei é a reunião de professores de diferentes especialidades em um mesmo local. Marcos (1991, p.13) considera que “na verdade, a clínica integrada mostrou ser um reduto de várias especialidades, agregando especialistas que terminavam por fragmentar a formação do aluno clínico geral”. Padilha (1998, p.2) diz que “o perfil docente especializado em microdisciplina é considerado como a solução para os problemas de ensino, para outras (faculdades) este perfil pode ser considerado a origem dos problemas”. Embora exista a idéia de que professores especialistas, no limite de suas especialidades, teriam dificuldade em promover um ensino clínico integrado, consideramos aceitável a proposta de Follari (2000), que defende o trabalho conjunto de professores de ramos diferentes do saber na realização da interdisciplinaridade. Jantsch e Bianchetti (2002, p.7-25) acreditam que, no processo de veiculação do conhecimento, “deve haver uma tensão na relação entre as especializações e a generalidade em direção ao interdisciplinar”. Nessa perspectiva, a reunião dos professores especialistas na Ucoei é uma possibilidade real de interdisciplinaridade. Botero apud Padilha (1998) considera que o perfil docente especializado é ideal para a clínica integrada, pois, para que esta de fato aconteça, é indispensável o diálogo, a interlocução e o debate entre docentes e alunos. Entrecruzando as diferentes vozes e a análise de documentos, percebe-se a tentativa de integração do ensino e do tratamento clínico integral. A formação do cirurgião-dentista integral – com conhecimentos biológicos adequados, capacidade técnica desenvolvida e orientação social que o permita situar-se na realidade do país – não estaria sendo atingida na Ucoei, o que será melhor discutido na categoria lógica da fragmentação, a seguir.
A lógica da fragmentação A lógica da fragmentação manifesta-se sempre que há possibilidade de não haver integração entre o ensino da odontologia e a formação de um profissional generalista. Um dos problemas detectados no currículo era sua fragmentação em ciclo básico e ciclo profissionalizante. Segundo estudos de Reis (2002), 95% dos professores não consideram bem integrados o ciclo básico e o profissionalizante em relação aos objetivos finais do curso. Este relato do professor A demonstra esta preocupação: Acho que não há nenhuma integração. Os alunos têm o ciclo básico no 1º e 2º períodos, depois começa o ciclo profissionalizante e há um corte total. Não há integração nenhuma. Tanto é verdade que quando o aluno chega lá no 4º período e fala-se de dentística, preparo cavitário, esmalte, dentina e escultura dental, ele já não sabe se correlacionar com anatomia e nem histologia. Por quê? Há um hiato aí. Eu não vejo uma integração. (Professor A)
A divisão entre ciclo básico e ciclo profissionalizante é um resquício da reforma do Ensino Superior de 1968 (Brasil, 1968), que instituiu os departamentos e criou a divisão dos ciclos para uma maior racionalização de recursos. Não se deve esquecer da influência da reforma educacional que Gies (1926) propôs nos EUA, que menosprezava as disciplinas biomédicas e sociais, e pregava o afastamento da odontologia das práticas médicas. A questão de uma formação voltada mais para a atividade clínica, como já discutido na lógica da integração, é outra manifestação da lógica da fragmentação. Para Poi et al. (1997) é preciso que o acadêmico compreenda que a doença de cada paciente não se inicia nem termina no indivíduo e no consultório, mas numa inter-relação complexa na qual interferem fatores econômicos, culturais, sociais e políticos. Mas, segundo Follari (2000), um equívoco epistemológico é acreditar que a interdisciplinaridade possibilitaria o conhecimento da totalidade dialética, com enorme capacidade de transformação social. “Seria supor que os problemas da divisão social do trabalho poderiam ser superados a partir de uma modificação interna à prática científica” (Follari, 2000 p.133). 62
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Deste modo, é importante constatar epistemologicamente os limites da Clínica Integrada para se evitarem discursos vazios e sem possibilidades reais. Problemas estruturais, como o número de docentes e a qualidade da triagem de pacientes, foram apontados pelos entrevistados como fatores que prejudicam a integração da Ucoei. Para o professor A, [...] o objetivo da Ucoei é formar o cirurgião-dentista generalista. O objetivo é muito bom, mas talvez a Ucoei não esteja sendo bem aplicada. Pelo menos no momento, por causa do aumento do número de vagas sem aumentar o número de docentes, houve certa dificuldade em colocar na prática este objetivo. Mas a idéia é formar o generalista [...]. (Professor A)
Os professores A e C consideram que a triagem de pacientes para a clínica das faculdades contribui para a fragmentação, e deveria ser mais bem planejada a fim de possibilitar, ao acadêmico, o contato com casos clínicos diversos. A influência especializante dos professores, a visão especializante com a qual os alunos se inserem e o desconhecimento que possuem da filosofia da clínica integrada influenciam a lógica da fragmentação. Para o professor C, [...] é o docente que tenta incutir na cabeça do aluno que trabalha com ele (que é monitor ou que tem uma proximidade maior com sua área) de se especializar no momento inadequado, de buscar um aperfeiçoamento ou uma especialização em uma única área. [...] Ter uma discussão maior sobre a real filosofia da clínica integrada tem motivado uma minoria (a gente tem visto o que tem sido conseguido por meio de correções nos pontos de vista dos docentes), porque o aluno quando entra no quinto período para fazer Clínica Integrada (Ucoei), tem muito pouco dessa visão integrada. [...] Ele vê a Clínica Integrada como um momento de executar um procedimento que ele aprendeu na teoria. Talvez ele terá uma visão melhor sobre o que é ela só no sétimo ou oitavo período, quando ele já adquiriu este hábito de especializar no momento errado [...]. (Professor C)
Sobre esta questão, Cristino (2005) considera que a resistência de professores especialistas em transitar por diferentes áreas da clínica é um fato que contribui para a lógica da fragmentação. A avaliação da clínica integrada é outro aspecto a ser discutido. Mesmo que realizassem somente procedimentos de uma única especialidade, um aluno poderia ser bem avaliado, pois o critério da avaliação levaria em conta a produção do aluno, e não a variedade de casos executados em várias áreas. Outros problemas em relação à fragmentação se prendem à existência de algumas áreas que funcionam isoladamente. O caso da unidade de odontologia social preventiva (Uosp) foi lembrado pelos professores. Para o idealizador, a Uosp teria tido papel relevante no currículo implantado em 1977. Os depoimentos dos professores e alunos evidenciaram que a Uosp tem papel indefinido, e o objetivo de sensibilizar os alunos de odontologia para o seu papel social não tem sido alcançado. [...] Existe uma lacuna sim. A Uosp retraiu muito no que ela faz. Ela era uma disciplina que tratava do coletivo, hoje ela muito pouco fala de coletivo e a razão de sua existência é tratar do coletivo. Ou ela cuida do coletivo ou não tem razão de existir. O que ela está propondo cuidar, outros já cuidam. Realmente há uma deficiência nos seus objetivos. É preciso que fiquemos na área profissionalizante, despertando o aluno para a sensibilidade social [...]. (Professor B, grifos nossos).
É interessante a dicotomia que o professor B aponta, pois demonstra que o papel da Uosp de despertar a sensibilidade social não tem sido desempenhado, tornando necessário que os professores da clínica o façam. É como se a Uosp fosse a responsável pelo “despertar social”, deixando outros professores livres para continuarem suas aulas sem esta preocupação. Eis uma manifestação explícita da fragmentação, pois o paciente que vai para a clínica é um todo, não apenas um problema clínico. O despertar social não vai aparecer, automaticamente, passando da Uosp para a clínica, como se esse despertar fosse monopólio, esfera exclusiva das disciplinas da área social. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
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Coêlho (1998) relata: [...] há o mito de que a inclusão de determinadas disciplinas (Sociologia, Antropologia, Filosofia, por exemplo) faria com que o curso de tornasse crítico. A simples presença dessa e de outras disciplinas da mesma natureza garantiria a formação crítica, deixando outros professores livres para continuarem suas aulas sem terem de preocupar-se com o pensamento. Passando de uma área a outra a crítica apareceria automaticamente, num passe de mágica, como se fosse monopólio de algumas esferas do conhecimento [...]. (Coêlho, 1998, p.9)
Enfim, a lógica da fragmentação contraria a lógica da integração e, na Foufu, dificulta que o perfil preconizado no currículo pleno seja alcançado.
Lógica do mercado Dentre as lógicas que norteiam o ensino da FOUFU, caberia ressaltar a lógica do mercado, visível, especialmente, quando interesses mercadológicos prevalecem em relação aos interesses do processo de ensino-aprendizagem. Na pesquisa realizada por Lemos (2004), detectou-se que o programa prático da Ucoei, embora possibilitasse oficialmente um treinamento clínico variado, não estava sendo cumprido por causa de diversos problemas, dentre eles uma tendência de formação lacunar na especialização, mediante o interesse de encaminhar os alunos para a especialização. Sobre a impossibilidade de realizar um treinamento clínico variado, o ex-aluno A diz: “[...] Isso pode ter alguma coisa a ver com interesse. Não deixar o aluno fazer tanto na Ucoei para depois ele precisar de um curso de especialização para fazer um treinamento que poderia ser feito na UCOEI. Alguns terão que fazer especialização para enfrentar um consultório [...]” (Ex-aluno A). Essas falas confirmam Narvai (2003, p.482), que diz haver no ensino odontológico “uma prática, infelizmente bastante difundida, de ensinar mal na graduação, reduzindo conteúdos e deixando conhecimentos essenciais para o curso de especialização”. Costa (1988, p.9) também concorda com essa afirmação: “A procura por cursos de pós-graduação latu senso tem sido associada à precariedade da formação, muito mais que uma necessidade de atualização”. Discutidas na lógica da fragmentação, práticas voltadas para especialidades ainda na graduação podem contribuir para a lógica do mercado, pois o aluno julga que o mercado acolherá melhor o especialista, embora, na prática, ele possa não acertar na escolha da especialidade, como relata o professor C: “[...] Quando o aluno está na graduação, não vivencia todas as áreas e na hora que sai da faculdade e entra no mercado de trabalho, muitas vezes lhe são cobrados conhecimentos de uma área que ele não teve boa formação [...] Então procura cursos de especialização e de atualização [...]” (Professor C). O estudo de Reis (2002) sobre a Ucoei evidenciou que a formação lacunar (insuficiente) é vista como uma realidade “natural” na Foufu. A maioria dos professores e alunos considera “normal”, “natural” os alunos procurarem, após a graduação, cursos de especialização para “sanar” os problemas da graduação. Alguns autores apontam uma tendência de o especialista ser deixado de lado no mercado de trabalho e o profissional generalista ser o mais solicitado. A lógica da integração estaria, nesse sentido, atrelada à lógica do mercado. Para Jantsch e Bianchetti (2002, p.17), [...] à escola são feitas exigências no sentido de que os egressos tenham uma visão interdisciplinar e cooperativa e sejam capazes de cumprir individualmente (um trabalhador, diversas funções ou os “três-em-um”) tarefas que antes eram atribuídas a diversos especialistas, distribuindo-se entre as funções de planejar, executar e avaliar [...].
Este fato fica evidenciado neste estudo, no relato do professor A: 64
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[...] Eu dou aula em curso de especialização e em curso de atualização. Eu tenho visto esta preferência por dentistas do Brasil inteiro. Especialistas de ortodontia fazendo curso de especialização em dentística. E quando você pergunta: Por quê? O aluno responde: professor hoje não dá para mandar paciente para outro profissional. Ou você faz tudo ou está fora do mercado. [...] Do ponto de vista do profissional, ele tem que ser um clínico geral que saiba fazer tudo bem. Porque alguns anos atrás era diferente. O clínico geral era o que sabia fazer um pouquinho de tudo [...]. (Professor A)
A lógica da profissionalização A lógica profissionalizante acontece quando a universidade prioriza a formação profissional em detrimento de outras funções. Para Coêlho (1994, p.46), “um dos pressupostos fundamentais, inerentes a essa lógica, é que as faculdades e universidade devem sempre atender ao mercado de trabalho, o que de certo modo justificaria sua existência”. Uma das manifestações da lógica da profissionalização na Foufu é a desqualificação da teoria em detrimento das atividades práticas. As atividades práticas são mais valorizadas que as atividades teóricas. No período investigado, a carga horária total do curso era de 4.110 horas (Ufu, 2000). Ela está dividida em 2.745 horas de conteúdos práticos (66,78%) e 1.365 horas (33,21%) de conteúdos teóricos. Isso significa, aproximadamente, uma proporção de dois para um, ou seja, há quase duas vezes mais conteúdos práticos do que conteúdos teóricos. Nos dois ciclos, a carga horária teórica era menor do que a prática, mas no ciclo profissionalizante essa era quase três vezes maior do que a carga horária teórica. Somente duas matérias do ciclo profissionalizante concentravam uma carga horária de 1.470 horas (35,76% da carga horária total). São elas: a clínica odontológica (450 horas de carga horária prática), envolvida mais diretamente com o treinamento pré-clínico, e a clínica integrada (1.020 horas de carga horária exclusivamente prática), voltada diretamente para o treinamento clínico, sem qualquer carga horária teórica. Há uma evidente valorização da prática, em especial, das atividades ligadas à prática clínica e à profissionalização. Outro fato que afirma a lógica profissionalizante é a elevada carga horária semanal em disciplinas. No quarto e quinto períodos do curso, por exemplo, são ministrados quase todos os conteúdos teóricos que servirão de embasamento para a prática clínica na faculdade e na vida profissional. [...] Outro fator que acho que acontece na Foufu é a falta de tempo para estudar. O aluno assiste aula, aula, aula... E não tem espaço para estudar... (Daí a necessidade de uma reforma curricular.) Desse modo, o aluno não se envolve com outras atividades como ir a uma biblioteca, desenvolver outros trabalhos dentro da disciplina, fazer um levantamento bibliográfico, fazer um seminário ou mesmo estudar os assuntos relacionados com a disciplina no momento em que ela está sendo oferecida. Com isto, o aluno assiste aula, ouve o que o professor fala e não estuda mais. Pode ser que ele estude na véspera da prova para conseguir os sessenta por cento da aprovação e só. Então, eu acho que este é outro fator prejudicial no ensino-aprendizagem da faculdade [...]. (Professor A)
Houve unanimidade entre os depoimentos dos diferentes sujeitos da pesquisa sobre a necessidade de se reformular a carga horária. O professor B considera esse excesso de carga horária um verdadeiro “massacre pedagógico”. A predominância das atividades práticas, aliada à elevada carga horária semanal, dificulta uma formação cientificamente orientada e reafirma a formação técnica. [...] A ênfase nas atividades práticas aliadas à pesada carga horária semanal privilegia o tecnicismo do curso de graduação. Se não há tempo para o estudo, também não há para a dúvida, a crítica, a reflexão e a mudança. Há espaço apenas para a reprodução de idéias e de técnicas. As aulas se tornam lócus de disseminação de resultados obtidos, informações e verdades a serem repassadas, socializadas e consumidas. A dimensão do trabalho intelectual
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perde-se e torna-se difícil alcançar o perfil do egresso proposto pelas diretrizes curriculares do curso de graduação: profissional crítico, reflexivo e transformador [...]. (Lemos, 2005, p.82)
Se não há intervalos para estudo, resta, aos alunos, a condição de meros receptores dos conteúdos ministrados nas escassas aulas teóricas da Foufu. O professor A acredita que, embora o currículo oficial preveja uma formação mais ampla, o tecnicismo é valorizado porque não há tempo para o estudo. Nesse depoimento, evidenciam-se as contradições entre o currículo formal e o currículo vivido em ação: [...] Se nos ativermos à visão do nosso currículo prescrito e dos conteúdos descritos nele, consideraremos que a Foufu permite uma formação integral. No papel, a idéia é muito boa. Só que na verdade falta espaço para o aluno estudar por causa da carga horária muito pesada. [...] Acredito que a formação não esteja voltada somente para aprendizagem de técnicas, mas o fato de a carga horária ser muito pesada favorece demais a questão da técnica [...]. (Professor A, grifos nossos)
Desse modo, mais do que a preocupação com a organização de carga horária e conteúdos, é necessário fazer da Foufu um local de cultivo do saber e do exercício do pensamento, pois o ensino preponderantemente técnico, prático, é incerto em um mercado volátil, dinâmico, que a cada dia requer novos perfis de trabalho.
Considerações finais A metáfora do novelo de lã torna-se apropriada para se compreender a realidade curricular da Foufu. A lógica da fragmentação está entremeada à lógica do mercado, que, por conseguinte, está entremeada à lógica da integração e da profissionalização. Uma lógica não exclui nem supera a outra. Às vezes, uma delas converge e, outras vezes, diverge; assim, a realidade curricular da Foufu vai sendo construída e superada constantemente. Por isso, o currículo da Foufu merece ser repensado, não como realidade estática da qual bastará se levantarem os “pontos fortes e fracos”, pois o currículo, sendo práxis, mais do que de “meros reparos”, necessita ser repensado na sua construção histórica contraditória, construída e reconstruída cotidianamente. Foi para esse repensar que este estudo pretendeu contribuir. Acredita-se que uma efetiva mudança no ensino de graduação supõe ações amplas que envolvam as instituições de Ensino Superior, os professores, os estudantes, a sociedade e o Estado. A especificidade da universidade deve ser assumida de modo a evitar que o mercado e a profissionalização venham em primeiro plano, em prejuízo do pensamento, da crítica, da criatividade. Mais importante que discutir a reforma do ponto de vista burocrático e legal, é perguntar os sentidos da vida acadêmica que professores e alunos constroem: o currículo, o saber, a verdade, a história. Como o espaço curricular é contraditório, e não uma realidade fechada e estática, é possível reconstruí-lo com base em lógicas diversas. A dialeticidade do real abre-nos possibilidades para a busca do novo, do inesperado, do inexistente, de uma realidade e de um currículo diferente do que existe hoje. Para aqueles que veem a realidade como pronta e acabada, tal discurso pode ser apontado como utopia. Em relação a isso, concordamos com as palavras de Coêlho (1994, p.71): [...] Estamos diante de uma utopia sim, ou seja, algo que ainda não existe, mas se põe como possível e cuja realização (construção como real) se impõe como uma exigência ética a todos os cidadãos, particularmente a cada um e ao conjunto dos professores, alunos e servidores técnico-administrativos das universidades brasileiras. Ao contrário do que a filosofia e as ciências nos levaram a crer, em sua histórica desconfiança e desprezo para com a imaginação, o irreal também é uma dimensão do real. Produzindo o imaginário, o homem se afirma e se constrói como ser livre [...].
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Nesse sentido, compartilhamos a idéia de que, para um novo currículo, é necessária a utopia, vista como algo talvez difícil de visualizar hoje, mas que precisa ser sonhado, articulado e desenvolvido. É preciso acreditar, pensar e agir para um amanhã diferente.
Colaboradores Os autores Cristiane Lopes Simão Lemos e Selva Guimarães de Fonseca participaram, igualmente, de todas as etapas de elaboração do artigo. Referências ALMEIDA, R.V.D.; PADILHA, W.W.N. Clínica integrada: é possível promover saúde numa clínica de ensino odontológico? Pesq. Bras. Odontopediatr. Clin. Integr., v.11, n.3, p.23-30, 2001. BRASIL. Diretrizes curriculares nacionais dos cursos de graduação em farmácia e odontologia. Resolução CNE/CES 3, de 19 de fevereiro de 2002. Disponível em: <http://www.proacad.ufpe.br/dde/diretrizes_curriculares/0302odontologia.doc>. Acesso em: 20 maio 2006. _____. Lei n.5540. Normas de organização e funcionamento de ensino superior e sua articulação com a escola média, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 28 nov. 1968. CIUFFO, R.S.; RIBEIRO, V.M.B. Sistema único de saúde e a formação dos médicos: um diálogo possível? Interface – Comunic., Saude, Educ., v.12, n.24, p.125-40, 2008. COÊLHO, I.M. Diretrizes curriculares e ensino de graduação. Estudos, v.16, n.22, p.7-20, 1998. ______. Ensino de graduação: a lógica de organização do currículo. Educ. Bras., v.16, n.33, p.43-75, 1994. COSTA, B. Do ensino à prática odontológica: mito e realidade na grande São Paulo, 1998. Tese (Doutorado em Odontologia) – Universidade Federal de São Paulo, São Paulo. 1988. CRISTINO, P.S. Clínicas integradas antecipadas: limites e possibilidades. Rev. ABENO, v.5, n.1, p.12-8, 2005. FEUERWERKER, L.; ALMEIDA, M. Diretrizes curriculares e projetos pedagógicos: é tempo de ação! Rev. ABENO, v.4, n.1, p.14-6, 2004. FOLLARI, R.A. Algumas considerações práticas sobre a interdisciplinaridade. In: JANTSCH, A. P.; BIANCHETTI, L. (Orgs.). Interdisciplinaridade: para além da filosofia do sujeito. Petrópolis: Vozes, 2000. p.97-126. FREITAS, S.F.T.; PADILHA, W.W. N.; RIBEIRO, J.F. Educação e saúde: uma experiência clínica integrada. Rev. Odontologia Univ. São Paulo, v.6, n.3/4, p.147-50, 1992. GARRAFA, V.; MOYSÉS, S.J. Odontologia brasileira: tecnicamente elogiável, cientificamente discutível, socialmente caótica. Saude Debate, v.13, p.6-16, 1996. GIES, W.J. Dental education in the United States and Canada. New York: Carnegie Foundation for the advancement of teaching, 1926. (Bulletin 19).
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LEMOS, C.L.S.; FONSECA, S.G. Saberes y prácticas curriculares: estudio de un curso superior en el área de salud. Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.13, n.28, p.57-69, jan./mar. 2009. La implantación de las directrices curriculares de la graduación en odontología ha significado una posibilidad de reformular los currículos de este área en Brasil. Pero los cambios en la legislación no bastan para cambiar una formación; analizar y repensar el papel del currículo de odontología, enfocando su dinámica, saberes y prácticas han sido los objetivos de este artículo. El estudio abarca análisis de documentos y entrevistas con actores vinculados al ámbito educacional de la Facultad de Odontología investigada. La clínica integrada se ha escogido como objeto central del estudio porque se considera tal disciplina como eje central del currículo. Se revelan cuatro lógicas norteadoras de la dinámica curricular: la de la integración, de la profesionalización y del mercado, no estancadas sino que entrelazadas, produciendo un currículo oculto marcado por diversas contradicciones en relación con el oficial.
Palabras clave: Directrices curriculares. Currículo. Odontología. Clínica integrada.
Recebido em 30/01/08. Aprovado em 07/08/08.
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A formação médica ancorada na aprendizagem baseada em problema: uma avaliação qualitativa Romeu Gomes1 Anete Maria Francisco2 Silvia Franco da Rocha Tonhom3 Maria Cristina Guimarães da Costa4 Cássia Galli Hamamoto5 Osni Lázaro Pinheiro6 Haydée Maria Moreira7 Maria de Lourdes Marmorato Botta Hafner8 GOMES, R. et al. Medical training grounded in problem-based learning: a qualitative evaluation. Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.13, n.28, p.71-83, jan./mar. 2009.
The aim here was to evaluate the results from a medical course grounded in problem-based learning. The study methodology was based on an investigative evaluation design with a qualitative approach that involved interviews, drawing up a care plan and activities with simulated patients. The data obtained were analyzed from a hermeneutic-dialectic perspective. In spite of the limits of the course, it was assessed positively because, according to previous participants, it provided a humanistic training, promoted learning how to learn, gave value to coexistence with other professionals and integrated theory with practice. The previous participants linked the biological, psychological and social dimensions through both their discourse and their actions. The patients considered that the previous participants were careful, respected them and listened to them, while the health service managers recognized that previous participants’ performance went beyond focusing on the illness.
Pretendeu-se avaliar os resultados de um curso de medicina ancorado na aprendizagem baseada em problema. A metodologia do estudo baseou-se no desenho de pesquisa de avaliação com abordagem qualitativa, envolvendo entrevistas, elaboração de um plano de cuidados e atividade com paciente simulado. Os dados obtidos foram analisados a partir da perspectiva hermenêutica-dialética. Apesar de ter tido limites, o curso foi avaliado de forma positiva porque, segundo os egressos, proporcionou uma formação humanista, promoveu o aprender a aprender, valorizou a convivência com outros profissionais e integrou teoria com a prática. Os egressos articularam as dimensões biológica, psicológica e social tanto em suas falas quanto em suas ações. Os pacientes consideraram que os egressos eram cuidadosos, respeitando-os e escutando-os, enquanto os gestores dos serviços de saúde reconheceram que a atuação do egresso ia para além do foco da doença.
Key words: Medical education. Problem-based learning. Evaluation. Qualitative research.
Palavras-chave: Educação médica. Aprendizagem baseada em problema. Avaliação. Pesquisa qualitativa.
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1 Pedagogo. Faculdade de Medicina de Marília (Famema). Av. Monte Carmelo, 800, Marília, SP, Brasil. 17.519-030 romeu@iff.fiocruz.br 2, 7 Biólogas. Famema. 3,4,5 Enfermeiras. Famema. 6 Farmacêutico bioquímico. Famema. 8 Médica. Famema.
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A FORMAÇÃO MÉDICA ANCORADA NA APRENDIZAGEM ...
Introdução Fóruns nacionais e internacionais sobre cursos de medicina, dentre outros aspectos, têm apontado, como um dos problemas na formação médica, o distanciamento das escolas das necessidades da população, o que é refletido pela excessiva e precoce especialização médica e, também, pela tecnificação do cuidado. Esses pontos têm-se mostrado relevantes na determinação do perfil dos médicos formados pelas escolas na atualidade (Lima, Komatsu, Padilha, 2003). No Brasil, as discussões têm acompanhado o contexto mundial de transformação de referenciais da educação e das políticas de saúde, buscando nova orientação que possa contribuir para a formação do profissional exigido pela sociedade contemporânea. Um dos reflexos dessas discussões é a elaboração das Diretrizes Curriculares para o Curso de Medicina pelo Ministério da Educação MEC (Brasil, 2001), que orientam as exigências relativas ao profissional do século XXI. Dentro desse contexto de transformação do ensino nas escolas médicas, a Faculdade de Medicina de Marília (Famema) figura, no cenário nacional, como uma das primeiras faculdades a promover modificações substanciais em seu modelo de ensino-aprendizagem. As transformações ocorridas na Famema são, em parte, resultantes de um acúmulo de experiências decorrentes da parceria estabelecida com a Fundação Kellogg, no período de 1992 a 2003. Essa parceria, em 1997, permitiu a elaboração de um novo projeto educacional para o Curso de Medicina, denominado Projeto Famema 2000 (Famema, 1998). A experiência dessa faculdade tem sido objeto de várias publicações (Barros, Lourenço, 2006; Moraes, Manzini, 2006; Ttsuji, Aguilar-da-Silva, 2004; Lima, Komatsu, Padilha, 2003; Komatsu et al., 1999; Komatsu, Zanolli, Lima, 1998), o que evidencia o seu caráter inovador. A nova concepção pedagógica do Curso de Medicina da Famema passa a ser centrada no estudante, baseada em problemas, e orientada à comunidade (Famema, 1998). Essa nova proposta contempla referenciais filosóficos, psicológicos e socioculturais, norteando: a construção dos objetivos educacionais, a seleção dos conteúdos a serem estudados, e os desempenhos a serem desenvolvidos, a fim de se garantir a certificação de competência para o exercício profissional. Na concepção da Aprendizagem Baseada em Problemas (ABP), o processo ensino-aprendizagem é direcionado para o desenvolvimento da capacidade do estudante de: construir ativamente sua aprendizagem, articulando seus conhecimentos prévios com o estímulo proporcionado pelos problemas de saúde-doença selecionados para o estudo; desenvolver e utilizar o raciocínio crítico e habilidades de comunicação para a resolução de problemas clínicos, e entender a necessidade de aprender ao longo da vida (Barrows, 1994; Barrows, Tamblyn, 1980). Além da mudança no método de ensino, a reforma curricular da Famema de 1997 contempla nova organização curricular, com a instituição das unidades educacionais, as quais apresentam, como importante característica, a atuação de uma equipe de trabalho interdisciplinar. Os problemas de saúdedoença elaborados por esta equipe e utilizados em sessões de tutoria, além de proporcionarem a integração básico-clínica, abordam as dimensões biológicas, psicológicas e socioculturais. As habilidades profissionais para a formação médica, incluindo a semiologia e a comunicação, passaram a ser trabalhadas numa unidade referida como Habilidades Profissionais (HP), e a aproximação com as necessidades individuais e coletivas da população era a proposta da unidade educacional conhecida como Interação Comunitária (IC). Outro aspecto importante, ocorrido após a reforma curricular, foi a organização de recursos educacionais de modo a favorecer o processo de aprendizagem autodirigida, como é o caso da criação do laboratório morfofuncional, do laboratório de informática, e a reestruturação da biblioteca. Nesse contexto de mudança curricular, o presente estudo teve como objetivo avaliar os resultados do Curso de Medicina da Famema, tomando, como referência, a formação profissional ancorada na aprendizagem baseada em problema. Espera-se - por meio da identificação de limites e possibilidades dessa formação - contribuir para a melhoria do ensino médico na atualidade.
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Metodologia O presente estudo é parte de uma avaliação quantitativa e qualitativa dos resultados do Curso de Medicina da Famema, baseada na triangulação de métodos (Minayo, Assis, Souza, 2005; Denzin, 1973), aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Medicina de Marília. Neste artigo, são focalizados os resultados da referida pesquisa, gerados com base em uma abordagem qualitativa, aqui entendida como um conjunto de práticas interpretativas dos sentidos que os sujeitos atribuem aos fenômenos e ao conjunto de relações em que eles se inserem (Deslandes, Gomes, 2004; Denzin, Lincon, 2000). Em relação aos sujeitos da pesquisa, foram considerados, como informantes principais, os egressos do Curso de Medicina que concluíram o curso nos anos de 2003 e 2004. A escolha por esses períodos de conclusão ocorreu pelo fato de esses egressos, em 2007, já terem, pelo menos, dois anos de formados e por pertencerem à segunda e terceira turmas na nova concepção curricular. Outra justificativa para essa escolha se refere ao fato de tais sujeitos terem vivenciado, durante a sua graduação, um currículo que: (a) teve pelo menos um ano de implantação, (b) passou por processo de avaliação do programa implementado, e (c) teve correções de rumo, como: modificação de problemas de papel, aumento do acervo dos laboratórios e da biblioteca, adequações das unidades educacionais de habilidades profissionais e de interação comunitária, além de implementação do processo avaliativo. A esses egressos - que totalizavam 160, sendo oitenta concluintes no ano de 2003 e oitenta no ano de 2004 - foi enviado um questionário pelo correio com perguntas fechadas sobre: aspectos socioeconômicos, cursos realizados após a graduação, atuação profissional e avaliação do curso. Foi dada a opção de enviar o questionário preenchido por via postal ou eletrônica. As perguntas fechadas não constituíram a base de análise deste artigo. Além das perguntas fechadas, no questionário, havia a descrição de um caso clínico, solicitando ao egresso a elaboração de um plano de cuidados para o caso descrito. Esse plano de cuidado constituiu um dos focos de análise deste trabalho. Do total dos convidados, 41 responderam ao questionário, sendo 22 do ano de 2003 e 19 do ano de 2004. Aos egressos que responderam ao questionário, fez-se convite para compor uma amostra de conveniência de pesquisa qualitativa. Nessa pesquisa, consideram-se os sujeitos em número suficiente para que seja possível a reincidência das informações, e foi prevista a possibilidade de haver inclusões sucessivas de sujeitos até que fosse possível uma discussão densa das questões da pesquisa (Minayo, 2006). Além dos egressos, foram convidados a participar dessa parte da pesquisa: gestores que, de alguma forma, coordenavam o trabalho dos egressos; preceptores que estavam supervisionando sua residência, e usuários que estavam sendo atendidos por eles. Ainda, em termos de seleção dos egressos entrevistados, foram escolhidos os que estivessem atuando no Estado de São Paulo, na rede pública e no serviço privado, e que estivessem cursando, ou não, a residência médica. Foram entrevistados 17 egressos, sete do ano de 2003, sendo quatro do sexo masculino e três do sexo feminino, e dez egressos de 2004, distribuídos igualmente quanto ao sexo. Os egressos entrevistados foram convidados a participar de uma situação que simulava a prática médica, com a participação de paciente simulado, num cenário estruturado da Famema. Sete egressos desenvolveram essa atividade. Em relação aos demais sujeitos da pesquisa, com base nos princípios da amostra de conveniência de pesquisa qualitativa, foram selecionados os que tinham algum tipo de relacionamento com os egressos entrevistados: seis preceptores envolvidos em programas de residência médica; cinco gestores, e seis usuários atendidos por egressos da turma de 2003 e quatro da turma de 2004, totalizando dez usuários, sendo três do sexo masculino e sete do sexo feminino. Para garantir o sigilo, as entrevistas que apoiaram as análises realizadas foram identificadas por nomes fictícios dados a cada participante, sendo representados, com a inicial “A”, egressos do ano de 2003 (por exemplo, Alberto); “C”, egressos do ano de 2004 (por exemplo, Cristiano); “D”, gestores e preceptores (por exemplo, Deise), e “M”, usuários (por exemplo, Mônica).
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Neste artigo, estão sendo focalizados os seguintes processos: elaboração de um plano de cuidado com base em um caso clínico (segunda parte do questionário); entrevista semiestruturada, registrada por gravador de voz, e situação simulada, filmada e gravada. No caso clínico fictício, era caracterizada uma usuária de um serviço público de saúde que apresentava pressão arterial elevada e diabetes e, após a descrição do seu quadro clínico, era solicitado ao egresso que elaborasse um plano de cuidados para atender às necessidades de saúde da usuária. As entrevistas semiestruturadas seguiram roteiros específicos para cada categoria de informante. Assim, foram levados em conta os seguintes tópicos: (a) para os egressos, incidente significativo ocorrido durante a graduação, trajetória após a conclusão do curso, a experiência em articular as dimensões biológica, psicológica e social, opinião acerca da relação médico-paciente, e avaliação do curso da Famema; (b) para os gestores e preceptores, características de um médico para atender à realidade do serviço, avaliação do egresso em termos de sua atuação profissional, e diferenças entre a atuação do egresso e de médicos formados por outras instituições; (c) para os usuários, como deve ser um atendimento médico, e avaliação do atendimento que teve por parte do egresso. A situação simulada se referiu a um caso clínico fictício de uma usuária de um serviço público de atenção básica à saúde, com diagnóstico de tuberculose pulmonar bacilífera. Na situação proposta, o egresso, que estava substituindo o médico titular do serviço, deveria informar à paciente, que retornava à consulta, esse diagnóstico, e propor um plano de cuidados. O foco de observação foi a relação estabelecida pelo egresso com a paciente durante essa consulta. Em relação à interpretação dos dados, trabalhou-se com: (a) os textos que foram produzidos com base no caso clínico; (b) as transcrições das gravações das entrevistas, e (c) relatórios e filmagens das atuações dos egressos na situação simulada. Todo esse material foi trabalhado com base no método de interpretação de sentidos (Gomes, 2007; Gomes et al., 2005), fundamentado na abordagem hermenêutica-dialética (Minayo, 2002), buscando a compreensão dos sentidos presentes em mensagens e procurando interpretar o contexto, as razões e as lógicas de falas, ações e inter-relações entre grupos e instituições. Na trajetória analítico-interpretativa dos textos, foram percorridos os seguintes passos: (a) leitura compreensiva do material; (b) identificação e problematização das idéias explícitas e implícitas nos materiais; (c) busca de sentidos mais amplos (socioculturais), subjacentes às falas e às ações dos sujeitos da pesquisa, e (d) elaboração de síntese interpretativa, procurando articular objetivo do estudo, base teórica adotada e dados empíricos. Após a interpretação dos dados, os resultados do curso foram avaliados a partir de três indicadores de caráter qualitativo, elaborados com base em Assis e colaboradores (2005) e no planejamento curricular do curso. Assim, foi considerado que o curso teria alcançado os resultados pretendidos se: (1) os egressos conseguissem articular as dimensões biológica, psicológica e social em seus depoimentos e em suas ações simuladas; (2) os egressos apontassem, em seus depoimentos, o aprender a aprender como base para uma melhor atuação profissional, e (3) gestores e usuários de serviços de saúde reconhecessem que a atuação do egresso iria além do foco da doença.
Apresentação e discussão dos resultados Avaliação positiva do curso Em geral, os sujeitos envolvidos no estudo atribuíram sentidos positivos ao Curso de Medicina da Famema. A positividade desse curso foi observada tanto nas falas dos sujeitos, quanto nas ações simuladas e na elaboração de um plano de cuidados. O primeiro sentido atribuído ao curso, por parte dos egressos, foi a formação humanista. Em geral, eles se aproximaram de uma lógica de cuidados em que se articula o uso das tecnologias com uma perspectiva que parte da escuta, passando pela gerência dos afetos, em busca de um comprometimento com a felicidade humana (Deslandes, 2006).
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Caminhando nessa lógica, diz um egresso, “ser especialista do paciente e não da doença e tratar o paciente como se fosse alguém da própria família” (Alberto). Outro depoimento reforça esse resultado do curso, quando considera que, em primeiro lugar, é importante “se ater ao interesse do paciente [...] pois somente desse modo o médico vai conseguir identificar as necessidades dentro das dimensões biopsicossociais” (Antenor). Essa formação, segundo os egressos, contribuiu para que, em sua atuação, eles conseguissem ver seus pacientes de uma forma integral, a partir de uma perspectiva biopsicossocial, não reduzindo seu tratamento à doença, atendendo “a pessoa de forma integral, ouvindo qual que é a necessidade dela [...] ter uma relação de confiança” (Cristiano). Em síntese, por conta da formação que tiveram, conseguiram ampliar o seu foco para o sujeito da doença e estabelecer uma boa relação com os seus pacientes. Os dados quantitativos - que são objeto de outro estudo - reforçam esse resultado, uma vez que, na pergunta do questionário sobre o fato de o curso ter contribuído ou não para um atendimento baseado na articulação entre as dimensões biológica, psicológica e social, 97,6% das respostas se situaram no limite superior de respostas positivas. Os resultados da formação humanista promovida pelo curso também se evidenciam durante as situações simuladas. Observou-se que os egressos acolhiam e se preocupavam em estabelecer um contato com a paciente simulada, olhando-a, escutando-a e examinando-a de uma forma respeitosa. Isso se evidenciou não só a partir da escuta das falas, mas também com base no olhar, nos gestos e nos movimentos dos egressos estabelecidos durante a consulta simulada, possibilitando a interpretação das condutas e abordagens estabelecidas por eles. A título de ilustração, destacamos aspectos de uma das simulações: Antenor foi até a porta, cumprimentou a paciente, se apresentou e pediu que ela se sentasse. Ouviu atenciosamente a queixa da paciente, intercalando o olhar com o registro dos dados que ia coletando em sua escuta. Enquanto os fatos iam sendo relatados, Antenor mantinha o tronco inclinado à frente, olhando nos olhos da paciente, numa postura de escuta atenta. Ele validou os sentimentos expressados por ela diante de seus problemas. Quando a paciente diz que “eu estou acabada, estou sem chão”, ele a tranquiliza, respondendo “é natural que isso aconteça, quando se descobre que tem uma doença que causa medo... fique tranqüila [...] as coisas vão se resolver”. Durante o exame, manteve a atitude respeitosa, solicitando licença para tocar na paciente a fim de verificar a pressão arterial. Quanto à conduta e propostas terapêuticas, observou-se também uma abordagem da dimensão coletiva, e não apenas da individual: “a senhora trabalha com carteira registrada? Então a senhora tem direito de continuar no trabalho e se sua patroa estiver esclarecida [...] não vai ter motivo para ter esse tipo de preocupação. Eu estou te dizendo, eu me coloco à disposição para conversar”. Despediu-se da paciente, apertando sua mão e acompanhando-a até a porta.
A análise dos planos de cuidados elaborados pelos egressos com base em um caso clínico descrito no questionário também revelou a preocupação com o sujeito da doença, que pode indicar um resultado de uma formação humanista. Aproximadamente 74,3% dos egressos contemplaram, em seu plano de cuidados, uma terapêutica mais ampliada, não se restringindo à indicação de medicamentos para o tratamento de um caso clínico que constava do questionário. Nos planos de cuidado, isso também ficou patente, sobretudo pela utilização de linguagem acessível ao usuário e o investimento para estabelecer maior vínculo, buscando a melhoria na adesão ao tratamento. A formação humanista promovida pelo curso não só foi atestada nas falas e nas ações dos egressos, mas também pode ser inferida das falas dos usuários dos egressos entrevistados, que mencionam atitudes positivas de seus médicos (os egressos). São atitudes que revelam atenção, respeito e cuidado em relação aos usuários. Ilustrando esse tratamento humanizado, destacam-se os depoimentos dos seguintes usuários: “Não foi um atendimento igual [aos outros que ela teve]... foi totalmente diferente... ele foi... assim mais cuidadoso” (Mariana); “Ele [o egresso] é muito bom, é atencioso, conversa, explica o que está se passando” (Mônica); “[O egresso] atende humano” (Marcos).
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Nos depoimentos dos gestores, também foram identificados aspectos que apontam para a diferença na atuação do egresso da Famema quanto a: segurança no atendimento, acolhimento, escuta, atenção e bom relacionamento interpessoal. Como disse um gestor: “a gente vê [...] como é bem feita a anamnese desse profissional e [...] você vê que ele tem um olhar bem ampliado do paciente” (Deise). Outro sentido atribuído à positividade do curso é a promoção do aprender a aprender, um dos princípios da ABP, como exemplificado nas falas de egressos que gostaram muito da busca constante das informações e a possibilidade de autogerir seu tempo para o estudo e para a formação complementar: “[O curso deu] muita segurança [...] para resolver problemas, [para ir] atrás [...] não ficar dependendo de outras pessoas” (Aurora); “[A faculdade ajudou] principalmente a aprender a pesquisar mesmo, a aprender sozinha, a buscar informações” (Cristina). Com base nesses depoimentos, pode-se inferir que a metodologia utilizada no curso contribui para esses médicos serem mais ativos, críticos e reflexivos. A busca constante de novos conhecimentos, não somente em livros textos, mas em artigos científicos, é uma habilidade que se sobressai entre os egressos da Famema, contribuindo para um melhor raciocínio clínico. Os depoimentos dos gestores/ preceptores reforçam esse sentido atribuído pelos egressos, ilustrado na seguinte fala: “Que continue usando o que aprenderam lá [Famema], de correr atrás das coisas, de ler, de pesquisar e de discutir, questionar as coisas, não ficar aceitando... Tem que perguntar, tem que discutir...” (Denise). Um terceiro sentido positivo atribuído ao curso é a valorização da convivência com outros profissionais ligados à saúde - observada na abordagem multidisciplinar e na convivência com outra profissão - sobretudo com a enfermagem. Ilustrando essa idéia, destaca-se o seguinte depoimento: “[...] a Famema só deu experiência junto com enfermagem, mas eu acho que isso já ajudou muito nesse diálogo com outras profissões” (Carmem). Os egressos fizeram várias referências ao plano de cuidado elaborado com base no caso clínico em relação à importância do trabalho em equipe multiprofissional. Em 53,8% dos planos, houve referência ao trabalho multiprofissional, como em um plano de cuidado no qual o egresso “elabora um plano multidisciplinar [...] [destacando que] seriam úteis visitas domiciliares pela equipe de saúde (médico, enfermeira, agente de saúde, nutricionistas, entre outros), grupos de orientação ao hipertenso e ao diabético” [situação presente no caso clínico]. Entretanto, alguns egressos apenas citaram o encaminhamento que fariam, como, por exemplo: “encaminharia para psicólogo”, demonstrando a pertinência do trabalho multidisciplinar, e não, necessariamente, sua atuação em equipe. A importância do trabalho em equipe multiprofissional também foi constatada nos depoimentos, como exemplificado a seguir: Tinha um monte de questões biopsicossocial que a gente conseguiu dar conta. Isso que é o mais legal. Não precisei encaminhar para o [especialista] [...] a dentista participou, a agente comunitária participou, a auxiliar de enfermagem foi fazer a medicação [...] a equipe toda participou para que a gente cuidasse dele. E ele quer fazer o tratamento aqui com a gente. (Cristiano)
O preparo para trabalhar em equipe multiprofissional foi muito bem avaliado por meio dos dados quantitativos, na medida em que 97,6% das respostas dos questionários preenchidos avaliaram positivamente esse quesito. Essa avaliação positiva surge, também, nas entrevistas com os gestores/preceptores, onde o egresso, na sua atuação, tem a capacidade de trabalhar em equipe, de saber ouvir e discutir com outros profissionais, como se constata no relato: “[...] essa disponibilidade de sentar e de conseguir discutir um caso com outro profissional com paciência [...] e a gente sabe que não é pra qualquer pessoa, qualquer médico que a gente vai ter essa liberdade de falar [...] a gente sente que é bem recebido” (Débora). Por último, destaca-se o sentido de integração teoria e prática como mais uma fortaleza atribuída ao curso, refletida na ênfase com que apareceu a referência à importância de se “colocar a mão no doente desde cedo” (Amaro) e ao “contato espontâneo” (Aurora) com as pessoas e a comunidade, ao falar da unidade educacional de IC da quarta série. Nesse momento, o estudante passava a integrar o dia-a-dia de uma Unidade Básica de Saúde (UBS) e de uma Unidade de Saúde da Família (USF), 76
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aprendendo, a partir dessa prática, a estabelecer uma interação natural com a comunidade e com os outros profissionais de saúde, especialmente com os estudantes de enfermagem. No relato de um gestor/preceptor, há o reconhecimento de que o egresso, na sua atuação, tem a capacidade de integração/articulação de conteúdos, articulação entre teoria e prática e resolubilidade, vendo “o problema de forma ampla [...] [sendo] mais prático no que faz” (Dirce). Também foi apontado, por outro gestor/preceptor, que: “[...] estar no serviço desde o início é muito importante mesmo, porque é a possibilidade de o aluno ter uma orientação tanto do professor da faculdade quanto do supervisor no campo, e conseguir sanar várias dúvidas e vir mais preparado para atuação” (Débora). A inserção na prática profissional, desde o início do curso, segundo alguns egressos, fez com que a resolução de problemas propostos nas sessões de tutoria tivesse uma maior articulação com a realidade da qual eles se integrariam como profissional. Essa observação reflete não só a eficácia de uma proposta pedagógica ancorada na APB, mas também um princípio político-pedagógico adotado pelos planejadores e gestores do curso. Os resultados obtidos na presente avaliação se articulam a resultados obtidos em avaliações internacionais. Ainda que pesem as diferenças entre a realidade brasileira e a realidade de outros países que vêm adotando a ABP, é possível serem pensados pontos de intersecção entre as conclusões das diferentes avaliações, que, de certa forma, podem ser utilizadas para a construção de indicadores a fim de se avaliarem ou se validarem os resultados de cursos médicos que utilizam esse modelo de metodologia ativa. Dentre os resultados de avaliações internacionais que, de certa forma, reforçam os achados deste estudo, observa-se que os estudantes formados por esse modelo pedagógico: (a) revelaram ser capazes de ter uma aprendizagem autodirigida, facilitando, dessa forma, o seu constante autoaperfeiçoamento (Jones, MCardle, O’Neil, 2002; Steele, Medder, Turner, 2000; Birgegärd, Lindquist, 1998; Finucane, Johnson, Prideaux, 1998); (b) demonstraram qualidades humanísticas (Maheux et al., 2000); (c) expressaram habilidades interpessoais e psicossociais, integradas ao raciocínio baseado na anatomofisiopatologia (Prince et al., 2005), e (d) evidenciaram - após a graduação - competências médicas relacionadas ao trabalhar com os aspectos sociais e ao aprender a aprender (Koh et al., 2008). Os resultados obtidos na presente avaliação podem atestar que a Famema se encontra no caminho para lidar com o desafio apontado por Campos (1999), que é o de reformar saberes e práticas para reorientar tanto a clínica quanto a saúde pública. Segundo o mencionado autor, os cursos de medicina deveriam se voltar para a formação de médicos capazes de: resolver problemas de saúde; integrar-se em equipes multiprofissionais; reconhecer as determinações social, subjetiva e biológica, da saúde/ doença; elaborar planos terapêuticos articulados a essas determinações; construir vínculos, e assumir responsabilidade em lidar com a cura e a reabilitação dos seus pacientes.
Limites do curso Além dos sentidos positivos atribuídos ao Curso de Medicina da Famema pelos egressos, este estudo também identifica limites durante o processo de formação desse médico. Um sentido atribuído como limite pelos egressos foi o papel do tutor. Esse papel, na percepção de alguns egressos, deveria ser desenvolvido por especialista nos conteúdos específicos da medicina. A exemplo disso argumenta um egresso: “[Se o tutor] não tem esse conhecimento, como que ele vai poder falar que está errado? Com certeza eu saí com algum conceito diferente porque não foi me corrigido na hora, mas eu acho que no quinto e sexto ano foi corrigido” (Camilo). O tutor sempre foi entendido como aquele que deveria estar atento ao processo grupal e facilitar a discussão e o entendimento do problema. Assim, independente de ser médico ou não, o tutor mal preparado para a função de facilitador pode trazer prejuízos para o trabalho no grupo de tutoria quando o problema proposto não for devidamente explorado. Os egressos referiram a necessidade de o tutor ter de “vestir a camisa” (Celina), estar envolvido, ser interessado, alavancar a discussão e cobrar o estudo dos estudantes. A mesma idéia foi compartilhada por gestores/preceptores que consideram a necessidade de “um desempenho maior por parte do tutor e uma cobrança também maior sobre o aluno” (Denis). COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
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Os egressos também deram exemplos de situações consideradas prejudiciais ao processo tutorial, como é o caso de tutor que dormia durante a tutoria e de tutor muito exigente com um conteúdo específico. Outro sentido atribuído como limite pelos egressos é a dificuldade de integração entre as unidades educacionais, entre básico e clínico, entre teoria e prática. Nas duas primeiras séries, a unidade de IC foi apontada como desarticulada das outras unidades da série, sem propiciar “um cenário de aprendizado feliz” (Antenor). Foi lembrada, negativamente, como uma unidade que não serviu para nada, em que os estudantes não assimilaram nenhum conhecimento, nenhuma aprendizagem. Entretanto, a possibilidade de “pôr a mão no doente desde cedo” (Amaro) e a inserção na comunidade durante essa unidade, “principalmente no quarto ano” (Alberto), foram apontadas como experiências positivas, possibilitando uma aprendizagem significativa. A mesma idéia surge quando os egressos relatam que o curso de graduação se dividiu em dois, sendo que, do primeiro ao quarto ano, trouxe uma visão bastante abrangente, e, no internato, foi quando ocorreu a integração entre a teoria e a prática intra-hospitalar. Reforçaram que, apesar de terem tido, nos anos anteriores, várias atividades práticas, foi só no internato que conseguiram integrá-las. Além disso, consideraram que tanto a teoria como a prática foram bem exploradas, apesar de ter faltado maior integração entre elas. O mesmo sentido surgiu nos depoimentos de gestores/preceptores quanto a essa desarticulação. Ainda “está faltando coadunar os problemas com a realidade enfrentada no dia-a-dia e muitas vezes com realidades complexas, não no sentido da dificuldade por si só, mas dos inúmeros fatores envolvidos e na tomada de decisão” (Donizete). Outro sentido atribuído como limite, pelos egressos, é a dificuldade de trabalhar com os conteúdos das disciplinas básicas unicamente nas sessões de tutoria. Segundo eles, essas disciplinas não foram devidamente valorizadas, e tiveram dificuldade de integrá-las com a clínica, tendo de “aprender fisiologia na raça” (Cristiano). Embora a insegurança em relação aos conteúdos das disciplinas básicas seja lembrada, depois de formados, perceberam que o curso havia conseguido alcançar os objetivos propostos, visto que, quando estavam cursando a graduação, haviam achado que “não ia dar certo” (André). O acompanhamento de professores especialistas em aulas tradicionais e conferências é sinalizado como importante para orientar e facilitar o estudo. Foi apontada, também, a necessidade de se ampliar a quantidade de atividades práticas, e os gestores/preceptores apontaram que: [...] quando se desenvolve o problema [de papel] existe espaço para que a cadeira básica contribua, mas de forma pontual. E, na discussão do problema, [esse aspecto] está sendo insuficiente [...] havendo então a necessidade de promover uma discussão e [que] os estudantes tinham que ter noções sistemáticas de anatomia, fisiologia, patologia, farmacologia, ou seja, as disciplinas das cadeiras básicas, [questionando se] isso não seria um acréscimo ao processo e não entendendo o processo anterior [tradicional] como desprezível. (Donizete)
Esse depoimento mostra o despreparo de alguns tutores e construtores de unidades para alcançarem a integração, entre aspectos básicos e a clínica, de forma adequada na discussão dos problemas. Entretanto, ao longo desses dez anos de ABP na Famema, esse processo vem se aprimorando. Assim, a organização curricular implementada em 1997 – com unidades educacionais baseadas em sistemas isolados e com as unidades de HP e de IC desvinculadas – evoluiu para unidades anuais que contemplam não somente essa integração, mas também a interdisciplinaridade, a integração teoria e prática, compreendendo o processo saúde-doença na lógica da vigilância à saúde. Outra evolução positiva foi a troca de problemas inicialmente centrados num órgão ou sistema doente, para problemas mais contextualizados, em que o foco passa a ser o indivíduo, doente ou não, e sua família, e não mais seu organismo doente. Essa visão integral do indivíduo permite que o estudante tenha motivação interna para o estudo das disciplinas básicas, pois a aprendizagem torna-se significativa, já que ele busca compreender a pessoa no seu contexto e, desta forma, intervir nas suas necessidades. 78
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A partir de 2003, a nova proposta da Famema foi a de trabalhar um currículo por competência na abordagem dialógica, pautado no conceito de integralidade do cuidado, sob a ótica das necessidades de saúde e com uma educação transformadora, crítica e reflexiva, cuja aprendizagem significativa passa a sustentar essa proposta, estimulando a produção do conhecimento, promovendo a reflexão sobre a prática e, consequentemente, sua transformação. Outro sentido atribuído como limite pelos egressos é a avaliação, na qual, segundo eles, há necessidade de mais cobrança nas provas para melhor perceberem suas deficiências e se prepararem de forma mais adequada. Em função disso, vários estudantes foram fazer cursinho para prestarem residência. As avaliações das unidades foram consideradas como sendo um processo imaturo, sem avaliação sistematizada do conteúdo das unidades, com constantes mudanças de regras durante as séries. Por último, destaca-se, como limite do curso, na ótica dos egressos, a falta de atividades de iniciação científica. Referiram que os poucos trabalhos científicos desenvolvidos aconteceram devido ao esforço do estudante e por encontrarem uma “abertura” (Carla) maior com o pessoal das cadeiras básicas. Apesar dessas dificuldades, foi pontuado, pelos gestores/preceptores, que a capacidade de pesquisa no sistema tradicional era muito menor, comparada com a dos estudantes desse novo sistema de ensino. Paralelamente aos limites, na fala dos egressos, destacam-se algumas recomendações, tais como: a necessidade de conhecer e aprender sobre administração clínica hospitalar; a promoção de uma avaliação da prática profissional mais rigorosa; maior desenvolvimento do atendimento a emergências no currículo; fortalecimento do diretório acadêmico, promovendo maior participação do estudante no processo de ensino e construindo uma relação de responsabilidade e compromisso; maior incorporação da medicina preventiva e da medicina baseada em evidências. Segundo uma egressa, se no início do curso tivesse sido mais trabalhada a medicina baseada em evidências, os estudantes não seriam levados a gastar “dinheiro com xérox de artigo ruim” (Celina). Ainda em relação à medicina baseada em evidências, a sua utilização na atuação do egresso não é considerada diferenciada da atuação do profissional formado no ensino tradicional, segundo um dos gestores/preceptores entrevistados. Ele relatou que o egresso utiliza essa ferramenta, bem como os consensos, com propriedade, mas considera que nem sempre sua aplicação na prática é adequada. Os sentidos atribuídos aos limites do curso por parte dos egressos, de certa forma, revelam inseguranças frente ao fato de o curso ter sido inovador. Essas inseguranças, por sua vez, se relacionaram às dificuldades de: (a) ter um professor-tutor preparado para a promoção da ABP; (b) a gestão curricular integrar as diferentes unidades do curso; (c) o estudante lidar com o novo; e (d) o próprio mercado de trabalho aceitar um profissional formado por um curso não tradicional. Comparando os resultados positivos com os limites do curso apontados pelos egressos, observa-se que não se trata de dois blocos excludentes. O que é limite para alguns egressos pode ter sido percebido como aspecto positivo por outros. Isso faz lembrar as avaliações de cursos baseados na ABP, descritas na literatura. Uma desvantagem de um curso baseado nessa proposta pedagógica deve-se ao fato de uma avaliação nem sempre ser validada por outra. O mesmo ocorre com os resultados positivos. Caminhando nesse raciocínio, Finucane, Johnson e Prideaux (1998) concluem que os médicos egressos de cursos com APB revelam ter adquirido menos conhecimentos das áreas básicas. Já Antepohl e Heizig (1999) encontraram evidências de que egressos desse tipo de curso são mais bem preparados para pôr em prática conceitos das ciências básicas do que os oriundos de cursos tradicionais. A literatura vem apontando que um dos limites dos cursos ancorados na ABP se relaciona à qualidade da discussão dos problemas que define as questões de aprendizagem (Schmidt, 1993, 1983; Barrows, 1988) e ao papel do tutor como facilitador do trabalho em grupo tutorial (Barrows, 1985). Desvantagens têm sido apontadas quando esse papel é exercido de uma maneira mais diretiva, predominando a interação tutor-estudante em detrimento da interação estudante-estudante (Silver, Wilkerson, 1991); ou quando o tutor usa mais o conhecimento referente à sua área de especialidade durante as sessões de tutoria, enquanto o tutor, que não domina um conteúdo específico, usa mais a sua habilidade de facilitador (Schmidt et al., 1993). Entretanto, outros autores têm mostrado vantagens de o tutor ser um detentor do conhecimento específico, pois os estudantes direcionam o dobro de seu tempo com a elaboração de questões de aprendizagem e com o estudo autodirigido, e produzem mais 79
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questões de aprendizagem, sendo essas mais congruentes (Schmidt et al., 1993; Eagle, Harasym, Mandim, 1992). É importante que essa discussão seja levada em conta em futuros estudos sobre os limites dos cursos de medicina ancorados na ABP. Tal discussão precisa avançar com outras pesquisas de avaliação. Para que se caminhe na direção desse avanço, segundo Dolmans (2003), é preciso que as pesquisas de avaliação não focalizem apenas a efetividade das intervenções educacionais fundamentadas na APB, mas também determinem por que uma intervenção é ou não efetiva e sob que condições. Em outras palavras, não bastam as pesquisas de resultados, sendo também necessárias as que avaliem o processo. O mesmo autor ainda chama atenção de que não bastam as revisões estatísticas e quantitativas para se avaliarem os cursos em ABP, mas também é importante se promoverem estudos de narrativas sobre tais cursos.
Considerações finais Em geral, os egressos avaliaram o curso de forma positiva, visto de maneira significativa, tanto para a formação, como para a vida profissional. Embora os dados quantitativos não tenham sido focalizados neste trabalho, eles podem reforçar a positividade da avaliação qualitativa. Esses dados apontaram que numa escala de um a cinco, sendo, o um, resposta francamente negativa, e, o cinco, resposta francamente positiva - os escores médios se situaram entre quatro e cinco. Ao se interpretarem esses resultados, faz-se necessário observar que a positividade atribuída ao curso não serve efetivamente para atestar que a atuação dos egressos ocorre nos parâmetros desejados pela Instituição. Entretanto, com base nos achados, pode-se afirmar que tais parâmetros fazem parte do imaginário dos egressos, servindo de referência para a elaboração de seus depoimentos e para as suas atuações em situação simulada da prática profissional. Em termos qualitativos, tomando como base os indicadores de avaliação, conclui-se que o Curso de Medicina tem alcançado os resultados esperados. Isso se evidencia porque os egressos: demonstram ser capazes de articular as dimensões biológica, psicológica e social; destacam a importância de terem conseguido aprender a aprender para darem continuidade à sua formação; elaboram planos de cuidado que focalizam aspectos que vão para além do tratamento medicamentoso, prevendo ações integradas com outros profissionais de saúde. Os depoimentos apresentados na discussão, tanto nas falas dos pacientes - que consideram os egressos cuidadosos, respeitando-os e escutando-os com atenção quanto nas dos gestores dos serviços de saúde - que reconhecem que a atuação do egresso vai além do foco da doença - também reforçam o êxito do curso de Medicina. Por último, é importante destacar que, para que um curso ancorado na APB seja eficaz, não bastam apenas ações eficientes relacionadas ao planejamento e à gestão curriculares. É preciso que esse curso avance na integração entre currículo e realidade profissional, promovendo ações que objetivem mudanças tanto no espaço acadêmico como fora dele. Esse tipo de curso demanda tanto a reorientação dos saberes quanto a das práticas, aí incluídas as que ocorrem no âmbito do sistema de saúde.
Colaboradores Os autores Romeu Gomes, Anete Maria Francisco, Silvia Franco da Rocha Tonhom, Maria Cristina Guimarães da Costa, Cássia Galli Hamamoto, Osni Lázaro Pinheiro, Haydée Maria Moreira, Maria de Lourdes Hafner participaram igualmente de todas as etapas de elaboração do artigo. 80
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artigos
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GOMES, R. et al. La formación médica ancorada en el aprendizaje basado en problema: una valuación cualitativa. Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.13, n.28, p.71-83, jan./mar. 2009. Se trata de valuar los resultados de un curso de medicina ancorado en el aprendizaje basado en problema. La metodología del estudio considera el diseño de pesquisa de valuación con aproximación cualitativa comprendiendo entrevistas, elaboración de un plan de cuidados y actividades con paciente simulado. Los datos obtenidos se analizaron a partir de una perspectiva hermenéutica-dialéctica. Pese a sus límites el curso fue valuado positivamente porque, según los egresados, proporcionó una formación humanista, incentivó el aprender a aprender, dio valor al convivio con otros profesionales e integró la teoría con la práctica. Los egresados articularon las dimensiones biológica, psicológica y social tanto en sus intervenciones orales como en sus acciones. Los pacientes consideraron que los egresados fueron cuidadosos, respetándoles y escuchándoles; mientras los gestores de los servicios de salud reconocieron que la actuación del egresado iba más allá del foco de la enfermedad.
Palabras clave: Educación médica. Aprendizaje basado en problema. Valuación. Pesquisa cualitativa. Recebido em 20/01/08. Aprovado em 02/07/08.
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Os lugares da psicologia na educação médica
Sérgio Seiji Aragaki1 Mary Jane Paris Spink2
ARAGAKI, S.S.; SPINK, M.J.P. The place of psychology in medical education. Interface Comunic., Saúde, Educ., v.13, n.28, p.85-98, jan./mar. 2009.
This paper discusses the place that psychology occupies within three medical courses in the city of São Paulo, Brazil. The theoretical basis was the discursive practices approach within the constructionist framework of social psychology. To reach the objective, we conducted interviews with teachers responsible for the discipline of medical psychology within these three courses. Analysis of the material allowed us to observe that psychological theories are not seen as a priority within the training, but that they are learned through interpersonal relationships among the students and between students and teachers. We conclude that the discipline of medical psychology is the space for learning and reflecting on the relationship between (future) doctors and their patients as well as being a place for dealing with and caring for students’ various experiences during the undergraduate course.
Key words: Medical education. Medical psychology. Social psychology. Discursive practices. Social constructionism.
Este artigo problematiza os lugares que a psicologia ocupa em três cursos de medicina da cidade de São Paulo-SP. Tem como base teórica a abordagem das práticas discursivas no referencial construcionista da psicologia social. Para alcance do objetivo fizemos entrevistas com docentes responsáveis pela disciplina psicologia médica dos referidas cursos. A análise do material nos permitiu constatar que não se dá prioridade na formação às teorias psicológicas, mas que elas são aprendidas durante as relações interpessoais ocorridas entre os/as alunos/as e destes/as com os/as professores/as. Concluímos que a disciplina psicologia médica é o espaço de aprendizado e reflexão a respeito da relação entre o/a (futuro/a) médico/a e seus/as pacientes, além de ser um lugar para se lidar e cuidar das diversas experiências suscitadas nos/as alunos/as durante o curso de graduação.
Palavras-chave: Educação médica. Psicologia médica. Psicologia social. Práticas discursivas. Construcionismo social.
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1 Psicólogo. Curso de Medicina, Universidade Federal do Tocantins. 109 Norte Av., NS 15, ALCNO14, Palmas, TO, Brasil. 77.001-090 sergioaragaki@uft.edu.br 2 Psicóloga. Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Social, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
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OS LUGARES DA PSICOLOGIA NA EDUCAÇÃO MÉDICA
Introdução Partimos do entendimento de que, durante a graduação em medicina, os/as alunos/as ressignificam os conteúdos aprendidos em seus processos de socialização à luz do que é considerado assunto e campo de atuação legítimos de sua futura profissão. Assim, o conhecimento médico se caracteriza como uma área específica que inclui determinados conceitos e ações e exclui outros, considerados nãopertinentes à medicina. De acordo com Matta e Camargo Jr. (2007), Pessotti (1996) e Balint (1975), a biomedicina é o paradigma predominante da medicina ocidental moderna. Foucault (1979) afirma que ela surgiu no século XIX, da junção entre a semiologia clínica, a anatomia patológica e a microbiologia. A biomedicina busca a cura de doenças dos seres humanos, sendo estes entendidos como um conjunto de células, órgãos e funções fisiológicas. Nesta perspectiva, o médico é preparado “para tratar um paciente que não é um homem, é um corpo humano” (Pessotti, 1996, p.443). Entretanto, em sua prática, o/a profissional se defronta com uma pessoa que sofre não só por motivos orgânicos, mas também emocionais e sociais, o que impõe à medicina “uma volta ao estudo do homem [...] uma ação do médico sobre o homem integral e menos sobre a máquina orgânica” (Pessotti, 1996, p.443). De acordo com Caprara e Franco (1999), a preocupação em recuperar questões que envolviam o relacionamento entre médico/a e paciente se fazia presente desde a segunda metade do século XX, com os estudos de Schneider (1994), Jaspers (1991) e Boltanski (1979), dentre outros. Matta e Camargo Jr. (2007), por sua vez, afirmam que, com base no trabalho de Balint (1975), no Reino Unido, e de Perestrello (1974), no Brasil, nasceu “um campo ainda difuso, ora denominado medicina psicossomática, ora psicologia médica” (p.134). Assim, como decorrência das contribuições dos autores acima expostos, por meio da disciplina psicologia médica (e correlatas), espera-se que se tenha, ao final da formação médica, “um profissional com consciência política, cidadania e ética, que seja promotor da transformação da sociedade, que alie competência a uma visão humanitária, vendo o paciente através e além dos sintomas” (Cruz, 2004, p.53). Nessa(s) disciplina(s) ocorrem aproximações com aquilo que é comumente designado como “psicológico”, uma vez que há uma apropriação de conhecimentos e que se desenvolve um linguajar para designar e tratar as questões psicológicas do/a paciente. Percebemos que há diferentes maneiras de interpretar e explicar os aspectos psicológicos do adoecimento na prática médica. Isto é, os/as médicos/as identificam e nomeiam vários fenômenos como “psicológicos”, atribuindo-lhes sentidos e usos diversos. Diante disso, nossa proposta é entender os lugares que a psicologia ocupa na formação médica, em três cursos de medicina situados na cidade de São Paulo-SP. Este estudo foi feito no enquadre do construcionismo em psicologia social, tomando por base o estudo das práticas discursivas de docentes coordenadores da disciplina psicologia médica.
Abordagem teórica Este artigo tem como base teórica as práticas discursivas na perspectiva do construcionismo social. Nesta abordagem a linguagem adquire função central no conhecimento do mundo, pois as trocas linguísticas permitem que se operem os processos de objetivação necessários à construção da realidade. Essas trocas são consideradas produtos de um determinado contexto histórico-cultural e se dão por meio de um processo de negociação de sentidos entre as pessoas envolvidas (Gergen, 1985), havendo a escolha pelos/as participantes do(s) sentido(s) que mais se adaptam àquilo que está sendo argumentado, defendido ou refutado. Se todo conhecimento é construído na interação entre seres humanos, o embasamento da prática médica em uma visão humanista também deve ser assim considerado. Decorre disto a relevância de atentarmos para as práticas discursivas que atravessam a formação médica. Práticas discursivas são linguagem em ação, ou seja, “as maneiras a partir das quais as pessoas produzem sentidos e se posicionam em relações sociais cotidianas” (Spink, Medrado, 1999, p.45). Para 86
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artigos
compreendê-las é necessário levarmos em conta a dialogicidade dos enunciados (Bakhtin, 1929/1995) e os repertórios interpretativos (Potter et al., 1990; Wetherell, Potter, 1988). Enunciado é o conjunto de palavras e sentenças articuladas em ações situadas que expressam um determinado ponto de vista (voz), explicitando: a visão de mundo, a perspectiva, o horizonte conceitual e as intenções de quem fala. Uma voz não existe isoladamente, mas a sua compreensão se dá por meio do confronto de vozes. Dessa forma, os enunciados de uma pessoa estão sempre em contato ou são endereçados a uma outra pessoa, e estes se interanimam mutuamente (Bakhtin, 1929/1995). O entendimento de um enunciado implica reconhecer a processualidade das práticas discursivas, já que cada enunciado interage com enunciados anteriores, assim como com os que o seguirão (contraargumentação antecipada). Os diálogos podem se dar internamente, com pessoas presentes ou distanciadas no tempo ou no espaço. De acordo com Wertsch (1991), podem também ocorrer com um “outro” não concretizado, indefinido. Para Bakhtin (1929/1995), “o conceito de autoria única, isolada não existe. Um aspecto essencial de seu conceito de dialogicidade é que a autoria múltipla é um fato necessário em todos os textos, escritos ou orais” (Wertsch, 1991, p.49). Para entendermos um enunciado, temos de considerá-lo no contexto em que foi produzido. Em suma, a compreensão de todo e qualquer fenômeno é sempre dialógica. De acordo com Davies e Harré (1990), a dialogicidade caracteriza as práticas discursivas, e é por meio dela que as pessoas produzem realidades psicológicas e sociais de forma ativa. Porém, para o entendimento das relações entre pessoas, também é fundamental considerarmos os repertórios interpretativos (Potter et al., 1990; Wetherell, Potter, 1988), ou seja, os dispositivos linguísticos utilizados para construirmos as diferentes versões dos fenômenos que nos cercam. Os repertórios nos permitem o acesso à polissemia presente nos discursos, isto é, os diferentes sentidos de uma mesma palavra, numa época determinada. Para além de regularidades e consensos, eles tornam possível acompanharmos a linha de argumentação utilizada para apresentar ou defender uma idéia que, em vez de se mostrar coerente, comporta também contradições e um processo contínuo de negociação de sentidos. Com base nessas considerações teóricas, esclarecemos que, para o alcance de nosso objetivo, fizemos entrevistas que foram tratadas como processos dialógicos e cujos conteúdos foram tomados em contexto. Desse modo, reativaram-se repertórios e vozes que circulam no âmbito da prática médica, assim como no senso comum de nossas vidas.
Objetivo Explicitar e problematizar os lugares que a psicologia ocupa na formação médica, de acordo com profissionais que acumulam a dupla função de docentes e coordenadores da disciplina psicologia médica, em três cursos de medicina de São Paulo-SP.
Metodologia Para alcance do objetivo, foram entrevistados docentes coordenadores/as da disciplina psicologia médica de três cursos de medicina da cidade de São Paulo. Tais cursos foram escolhidos por causa de sua tradição na educação médica e na prestação de serviços de saúde à população de São Paulo e do país. Dessa forma, colaboraram, na pesquisa, três pessoas, que participaram de uma entrevista individual semiestruturada, informadas previamente que foram escolhidas em virtude da função que exercem na formação médica. Elucidamos que todos/as são médicos/as psiquiatras e dialogam com a psicanálise. Dentre eles/as, um/a se identifica, também, com a psicologia jungiana. As entrevistas ocorreram no início de 2000, em local, data e horário por eles/as sugeridos. Tiveram duração média de quarenta minutos, tendo sido solicitada autorização para gravação em áudio. Para assegurar os direitos dos/as entrevistados/as, foram respeitadas as diretrizes e normas da resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde (Brasil, 1996) e do código de ética profissional dos COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
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psicólogos (Conselho Federal de Psicologia, 1987)3. Além disso, tomamos cuidado para garantir o diálogo, assim como o direito de não-resposta, minimizando relações abusivas de poder entre entrevistador e entrevistados/as. No início de cada entrevista solicitamos a assinatura de consentimento informado. As entrevistas focalizaram a formação do/a médico/a, de forma ampla, centrando, mais especificamente, em como e em que momento aquilo que é considerado “psicológico” é tratado durante o curso. As perguntas norteadoras da entrevista foram: - Que aspectos considera importante na formação médica? - Quando se insere e como é referida a questão do “psicológico” na formação médica? - Qual a função da disciplina psicologia médica nessa formação? - Que conteúdos a disciplina ministrada aborda? - Que conteúdos deveria abordar? - Como considera a formação que o/a médico/a tem a respeito do “psicológico” na faculdade em que ministra aula de psicologia médica? - Como definiria o “psicológico” ou algo que é “psicológico”? - Cite um livro ou texto fundamental para a formação médica, a respeito do “psicológico”. Os discursos foram tomados como posicionamentos profissionais, uma vez que os/as coordenadores/as têm pouca flexibilidade para alterar o conteúdo da disciplina, pois devem observar as normas ditadas pelo Ministério da Educação (Brasil, 2001a, 2001b) e a ementa da disciplina, elaborada e aprovada previamente pela instituição. Para manter o anonimato, as pessoas serão referidas como: C1, C2 e C3; e suas respectivas instituições: F1, F2 e F3. As entrevistas foram transcritas e analisadas como práticas discursivas, conforme a proposta de Iñiguez e Antaki (1994). De acordo com eles, a análise de discurso não é uma técnica fixa e prescritiva, mas “um método flexível, interpretativo e, mais que nada, intelectualmente responsável” (p.58). Para nortearmos a análise, consideramos os enunciados com base em dois parâmetros: se os/as participantes representam o grupo em questão e se o discurso tem efeitos sobre a realidade, operando num nível supraindividual. A representatividade aqui não se remete ao conceito estatístico, mas à constatação de que o/a interlocutor/a está posicionado/a e se posiciona como coordenador/a e docente da disciplina psicologia médica. Assim, ele/a fala por um coletivo, não expressando opiniões exclusivamente pessoais. Ainda em relação à representatividade e coerentes com a postura construcionista, afirmamos que nos interessa saber como as práticas discursivas engendram conhecimentos situados (Haraway, 1991). Dito de maneira mais clara, não há a busca de universalização ou generalização a respeito dos lugares que a psicologia ocupa na formação médica em nosso país, mas como ela é produzida num contexto específico. Para uma visão mais ampla do que ocorre no Brasil, consideramos fundamental que estudos semelhantes sejam feitos em outros cursos de medicina e em outras regiões do país. Afirmamos que, neste artigo, o pesquisador está presente nos vários momentos da análise, seja pela seleção dos trechos utilizados de cada entrevista, seja pela organização desses trechos em uma narrativa. Essa postura ocorre por entendermos que a entrevista é uma prática discursiva e que cada fala está inserida no contexto de sua produção, o que implica considerar fundamental tanto a presença do/a entrevistado/a quanto a do entrevistador, das vozes que são presentificadas e dos posicionamentos que acontecem durante a entrevista. 88
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3 A pesquisa foi realizada durante a vigência do código de ética profissional do psicólogo de 1987. Com a aprovação do novo código, em 2005 (Conselho Federal de Psicologia, 2005), foi verificado que o estudo a ele também se adequava, assim como à Resolução 016/2000 do mesmo órgão (Conselho Federal de Psicologia, 2000).
ARAGAKI, S.S.; SPINK, M.J.P.
artigos
Em virtude dos limites impostos à escrita do artigo, excluímos as falas do pesquisador, dando destaque aos enunciados de seus/suas interlocutores/as. Ressaltamos, porém, que cada fala deve ser entendida como parte do processo de negociação de sentidos, o que pressupõe reconhecer que os argumentos foram produzidos nas relações interpessoais em que, a partir da fala de um (pesquisador/a ou coordenador/a) havia um direcionamento da fala do outro, construindo-se uma versão compartilhada a respeito de cada tema abordado durante as entrevistas. A análise realizada buscou garantir o rigor, entendendo-o como a “possibilidade de explicitar os passos da análise e da interpretação de modo a propiciar o diálogo” (Spink, Lima, 1999, p.102), socializando o processo que levou às interpretações feitas. Tal procedimento se baseia em uma postura ética, pois reconhece que fazer ciência é uma prática social e dialógica, e se faz necessário garantir a visibilidade das ações utilizadas nas entrevistas e na análise dos resultados. Dessa maneira, orientados por Iñiguez e Antaki (1994), analisamos as entrevistas, identificando e selecionando os trechos mais pertinentes para o alcance de nosso objetivo, com o cuidado de não alterar o sentido que expressavam no contexto em que foram pronunciados. Em seguida, organizamos o material em temas e os analisamos, de acordo com cada assunto abordado durante as entrevistas.
Análise dos resultados O material colhido com os/as coordenadores/as C1, C2 e C3 foi analisado com base em três temas: a formação geral em medicina, a inserção de questões consideradas “psicológicas”, e os sentidos que são atribuídos a algo “psicológico”, durante a formação médica.
Considerações gerais sobre a formação em medicina De acordo com C1 e C2, a formação em medicina engloba, essencialmente, uma formação “mais biológica” e um bom relacionamento entre médico/a e paciente. A formação “biológica” requer: “Conhecer fisiologia e patologia” (C1). Concordando com essa visão, C2 diz que o/a aluno/a deve “receber conhecimentos suficientes que... possibilitem detectar as principais patologias, iniciar os principais tratamentos [...] isso implica em noções de propedêutica, noções de exames laboratoriais, algumas noções de terapêutica” (C2). Já um bom relacionamento entre médico/a e paciente traz a presença do ser humano: “é lembrar que o pulmão doente pertence a uma pessoa, então essa pessoa tem que ser vista como uma pessoa que está padecendo” (C1). Temos, então, a inclusão de questões para além do aspecto biológico do/a paciente: [...] acho que a medicina é uma atividade que envolve o reconhecimento de determinados aspectos do que se passa com o paciente, de um ponto de vista mais biológico, mais objetivo, mais mensurável e até exato, em outros termos. Mas ela não é só isso. Ela... até pra que se atinja isso [...] é preciso haver uma interação pessoal. Não há como... ignorar ou deixar de lado isso. (C2)
C1 ressalta que não há prioridade entre os dois aspectos, enquanto que C2 lembra que a formação biológica é valorizada como um conhecimento mais científico, ou “uma ciência reconhecidamente mais clássica”. Na formação em medicina, C1 diz também considerar importante um bom relacionamento intraprofissional, “no sentido de fazer os médicos serem uma classe mais unida”. Recupera, assim, a autonomia da profissão de modo que o/a médico/a deixe de se submeter às regras do mercado e às regras da medicina de grupo. Sem isso, “o médico acaba sendo substituível; você atende muito mais gente, muito mal atendido, porque... ele ganha por produção e, se ele atende poucas pessoas, ele é mandado embora” (C1). Nos trechos acima, podemos observar alguns dos repertórios a respeito da graduação em medicina: COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
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formação biológica, relacionamento médico-paciente e relacionamento intraprofissional. Percebemos, assim, a tentativa de compreender cada ator social em sua multiplicidade e no contexto histórico-social em que vive. Ainda em relação à formação, C3 considera, como aspectos fundamentais, a observação e a formação: “[...] a observação é no sentido de você tomar cuidado assim de não se nortear por idéias, as idéias sem a observação. Você pode ir onde você quiser nas idéias... Na observação... você tenta derivar a tua teoria, o teu conhecimento a partir dos fatos que você observa [...]” (C3). Acrescenta ainda que [...] quando eu digo que o formativo nisso depende não só de você dizer para o aluno, do aluno ver isso, mas do aluno ver você fazendo isso com ele, aluno. Você trabalhar com o aluno, com o aluno não anônimo [...] Ele também tem uma história [...] O aspecto formativo depende também muito desse fazer, quer dizer, não depende daquilo que você diz, mas depende daquilo que você faz, quer dizer, um modelo mais identificatório [...]. (C3)
Assim também afirma C1: “[...] parto do princípio que a relação professor-aluno é a base da relação médico-paciente... quando dá aula, ele passa conhecimentos, mas passa também uma postura de como tratar, uma postura mais humanizada [...] que o aluno não veja o paciente como adversário [...]” (C1). Sobre esse assunto, C2 declara que “medicina não é uma disciplina exata; demanda um contato do médico com o paciente. Então é fundamental que, durante a graduação, ele tenha uma formação de... senão que ele [...] não sofra uma deformação que o permita poder manter um contato satisfatório com o paciente [...]” (C2). A respeito do que chamou de deformação, esclarece: [...] deformação não é algo patológico em si, mas no sentido de que o aluno do primeiro ano é diferente do aluno do sexto ano. O aluno do primeiro ano está muito interessado no bem-estar do paciente. E o aluno do sexto ano, talvez até mesmo pela formação que ele passou, ele está mais focado na patologia do paciente. Isso não necessariamente faz com que o aluno do sexto ano trate mal o paciente, mas ele... o enfoque é outro. (C2)
Essa mudança é explicada por C3 da seguinte forma: “Uma coisa muito comum no exercício de medicina, no estudante de medicina e no próprio médico [...] é uma tendência a evitar a observação e a vivência dos aspectos emocionais, por exemplo”. E elucida que isso ocorre, no seu entender, porque [...] para você entrar em contato com o aspecto emocional do paciente, implica em que você possa ter esse contato com os seus aspectos emocionais. E isso, vamos dizer, nem sempre é bem-vindo... Por causa da dor, né, evitar a dor, e a própria coisa do trabalho médico, quer dizer, facilita isso, né. Existe uma exposição muito grande ao fenômeno da dor, é... do sofrimento [...]. (C3)
Durante a formação, [...] o biológico às vezes fica muito priorizado, e os aspectos sociais e psicológicos do paciente ficam deixados de lado; têm menos importância ou então são destinados a outros profissionais. Por exemplo, hoje é comum ter psicologia hospitalar; hoje é comum ter serviço social, que supostamente ficaria encarregado de dar esse suporte pra esse tipo de visão do paciente. Novamente um fracionamento: o médico fica com o biológico, o psicólogo fica com o psicológico e o assistente social fica com o social, e sem uma integração. (C2)
A graduação médica consiste, assim, em processos de negociação entre teorias e práticas que enfatizam, em graus distintos: os aspectos biológicos, os psicológicos e os sociais. É por meio das práticas discursivas que vão se constituindo e sendo transmitidos ou refutados os enunciados e as 90
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diversas vozes que afirmam o que é científico (ou não). E isto pressupõe reconhecer que a ciência médica é uma coconstrução feita pelos diferentes atores sociais que dela participam. C3 afirma que “a nossa vida é fundamentalmente mental, não existe nada fora do mental”. Acrescenta que “tudo o que a gente vive, inclusive no plano físico, ele é vivido antes no plano mental”. Esclarece que há uma inversão, razão pela qual ocorre uma ênfase no aspecto corporal, um privilégio nos aspectos físicos. Tal inversão ocorreria por causa de “um temor, um ódio da mente devido a esta ser impalpável, de mais difícil controle, [...] essa impalpabilidade, imprevisibilidade, acho que é alguma coisa que... fere a onipotência, um golpe na onipotência” (C3). Ainda com relação ao “mental”, complementa: “[...] a impalpabilidade da psique frustra muito aqueles que querem a coisa mais exata; a tendência de você transformar tudo em inanimado. Porque o inanimado é mais fácil de você controlar do que o animado. O animado, quer dizer, aquilo que tem alma, é muito mais difícil de ser observado. [...]” (C3). As dificuldades em relação às questões psicológicas são nomeadas também por C2: [...] Uma discussão se isso é assim mesmo, se isso é defesa, se isso é o médico que está deixando de lado o psicológico porque pra ele é difícil lidar [...] Eu acho que, às vezes, há uma necessidade de contar com o auxílio de um especialista. Mas na maioria das vezes eu acho que é uma tentativa de cindir o paciente, separar o psicológico de um lado, o físico de outro. Deixa o físico comigo e o psicológico fica pra você. (C2)
Segundo os/as coordenadores/as, várias questões contribuem para esse distanciamento, das quais uma delas decorre da própria maneira como ocorre a formação médica: “[...] a formação médica, por exemplo, implica num reconhecimento, num conhecimento científico muito bem estruturado, organizado, enfim. O aluno é treinado, ele é direcionado para aprender a identificar patologias, a identificar doenças, e não doentes [...]” (C2). As diferenças entre as classes sociais que se fazem presentes durante a prática médica constituem uma questão que dificulta a aproximação entre profissional e paciente. No entender de C1: “existe uma tendência que diz que, se eu sou o médico, quanto mais o paciente é da minha classe social, mais eu converso e menos eu medico. Quanto mais o paciente está longe da minha classe social, menos eu converso e mais remédio eu dou”. A idade em que a maior parte dos/as alunos/as tem ao ingressar no curso de medicina também influi: [...] O curso de medicina é um curso que coloca alunos aqui no Brasil com uma média de 18, 19 anos num contato quase que imediato com pacientes ou pessoas com patologias graves, com determinados graus, na maioria das vezes, intensos graus de sofrimento. [...] E isso traz um benefício na formação, traz uma possibilidade de o aluno saber conversar com o paciente já desde o começo; mas ao mesmo tempo tem algumas dificuldades. Logo de cara ele vê pacientes com doenças muito graves, com um sofrimento muito grande, e isso vai fazendo com que o aluno aos poucos vá se tornando mais defendido, mais protegido, mais distante [...]. (C2)
Para C2, as especializações podem propiciar o distanciamento do/a médico/a em relação ao/à paciente, visto/a, então, não como ser humano, mas como um órgão: [...] Acho que a especialização médica também é um elemento que vem crescendo nos últimos quarenta anos, cinquenta anos... a necessidade de um médico se especializar, às vezes, já dentro do curso de graduação. Antes da residência médica ele já começa a se especializar. Isso faz com que o paciente, muitas vezes, seja visto de forma parcializada. A história clássica: não se vê o paciente, se vê o fígado do paciente porque é um especialista olhando de uma determinada ótica do que acontece com o paciente [...]. (C2) COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
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Para C3, em certos casos, há necessidade dessa postura de distanciamento emocional entre médico/ a e paciente: “a situação mais evidente é uma situação de emergência. Se você ficar pensando muito nos afetos, aquilo pode atrapalhar você fazer a intervenção necessária” (C3). Percebemos, nesse subtópico, por meio da análise das vozes de C1, C2 e C3, que diferentes repertórios foram utilizados como sinônimos para nomear o mesmo fenômeno: psicológico, emocional, mental. Embora esse aspecto não tenha sido objetivo da análise realizada, vale registrar que diferentes repertórios podem expressar distintas visões de mundo, e que, por sua vez, podem contribuir para a construção de variadas versões do que é a ciência ou do que é algo considerado científico. Entendemos que isso pode explicar as similaridades e contradições expressas nas vozes de C1, C2 e C3, a respeito da graduação em medicina, de um ponto de vista mais geral.
A inserção de questões “psicológicas” na formação médica Sabemos que consta, das diretrizes curriculares para os cursos de graduação em medicina (Brasil, 2001a, 2001b), a obrigatoriedade de disciplinas que abordem e desenvolvam conteúdos ligados às dimensões psicológicas, sociais e culturais do ser humano. Entretanto, cabe a cada faculdade determinar a grade de disciplinas, com os respectivos conteúdos, abordagem teórica, duração, metodologia e formas de avaliação. Todos/as os/as coordenadores/as foram unânimes em apontar a disciplina psicologia médica como central na discussão das questões ligadas ao “psicológico” durante a formação em medicina. A disciplina psicologia médica é ministrada durante o sexto semestre na F1; durante os três primeiros, na F2; e durante os dez primeiros, na F3. Segundo C1, a função da referida disciplina “é basicamente ver a relação médico-paciente, relação aluno/a-colegas de disciplina, relação professor/aaluno/a na faculdade”. Esclarece que esse fato se deve ao “princípio que a relação professor-aluno é a base da relação médico-paciente; de alguma forma, os alunos tratam os pacientes da mesma forma em que eles são tratados pelo professor” (C1). A disciplina é entendida também como “uma tentativa já tradicional [...] de procurar manter e introduzir dentro do currículo médico bases humanas de medicina, que permitam que o estudante se torne menos frio, menos duro, menos inacessível ao sofrimento do paciente” (C2). De acordo com C2, consegue-se a inclusão mediante o aprendizado de que as relações interpessoais fazem parte de uma melhor ação médica: “a gente tenta encaminhar num certo sentido esse aspecto formativo, né, que é o sentido de formar o médico dentro de uma postura do contato humano; de ele poder estar consigo e com o outro numa postura de contato humano” (C3). Busca-se minimamente que os/as alunos/as atentem às práticas sociais de que fazem parte: “[...] que eles saiam mais sensibilizados [...] com aspectos da relação médico-paciente e aspectos da relação médico-médico... E também, obviamente, com outros membros da equipe porque, de repente, o enfermeiro não é respeitado, a assistente social não é respeitada” (C1). Apesar disso, C2 questiona ainda a efetividade do ensino médico: [...] se ele sai de fato podendo ter uma compreensão mais global do que se passa com aquela pessoa, não só do ponto de vista biológico, [...] se ele vai compreender aquela pessoa de uma maneira um pouco mais... global. Tem um jargão até aí que virou até uma coisa um pouco chata de falar, mas a visão biopsicossocial do paciente é uma preocupação que se tem tido para que o aluno não perca essa visão [...]. (C2)
Esclarecendo sobre o “jargão chato de se falar”, comenta que “[...] se fala tanto em biopsicossocial que a pessoa começa a banalizar o biopsicossocial. Parece o mesmo lenga-lenga de sempre: é o biopsicossocial, já sei. Então tá legal. Então vou estudar o fígado, que é o que interessa” (C2). Segundo todos/as os/as coordenadores/as, as estratégias metodológicas utilizadas na disciplina podem variar, assim como os conteúdos abordados. Entretanto, são consideradas fundamentais as experiências coletivas e de cada um. Sobre isso, C3 afirma: “Isso é que eu queria deixar claro: não é
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um curso teórico. Isso não é dado como teoria, a gente até dá uns textos, às vezes discute, mas em forma de seminário até mais que em termos de aula, mas sempre voltado pra experiência” (C3). Todos/as os/as interlocutores/as afirmaram que a disciplina psicologia médica é fundamental na inserção e entendimento das questões psicológicas durante o curso de medicina. O momento em que ela se insere e a sua duração variam conforme a instituição e a grade curricular. Porém, em todas elas várias vozes se tornam presentes, por meio de diferentes recursos metodológicos, se interanimando e contribuindo na produção de sentidos a respeito do “psicológico”.
Os sentidos de “psicológico” na formação médica Vários são os sentidos de “psicológico” presentes durante a formação em medicina. Abordaremos essa questão sob três perspectivas: o “psicológico” no cuidado ao/à aluno/a, o “psicológico” na prática médica, e o alcance da formação a respeito do “psicológico” nos cursos de medicina. O “psicológico” no cuidado com o/a aluno/a: dessensibilizando o sofrimento Percebemos uma preocupação considerável, por parte de nossos/as interlocutores/as, com os/as seus/suas alunos/as, pois consideram a psicologia médica um lugar privilegiado para a atenção e o cuidado com o sofrimento decorrente ou maximizado pelas experiências vividas durante o curso de medicina. “[...] Como é que é a vivência de estar lá com um cadáver, que experiências que isso despertou. Como é que escolheu medicina, vocação, isso no primeiro ano já é colocado, já é discutido. O contato com o hospital, o contato com os pacientes [...]” (C3). Esse cuidado com o/a aluno/a também é relatado por C2: [...] Enfim, uma série de relatos de experiências dos alunos que mostram que esse aluno, se não tivesse talvez a oportunidade de falar um pouco durante o aprendizado, durante uma aula, [...] ele talvez fosse julgar que... não é muito correto... se sentir mal perante um cadáver. E que isso talvez seja um indício de que ele não tem vocação pra ser médico, de que ele não tem capacidade pra seguir adiante no curso. [...] Então, não é que a gente está deixando o paciente de lado, [...] se a gente não der suporte para o que se passa com o aluno durante esses anos, [...] isso... pode não ser bom, causar um malefício para o paciente e também para o próprio profissional [...]. (C2)
O/a coordenador/a afirma que, durante as aulas, são desenvolvidas atividades para lidar com essas questões: [...] é um espaço semanal [...] que eles têm pra poder discutir a prática que eles estão tendo, para poder discutir o envolvimento emocional que eles estão tendo com essa prática. A gente acha que se não refletir, se não discutir, se não pensar nisso, isso fica para o lado e isso esfria o aluno [...] cada vez mais deixando de considerar aspectos psicológicos, inclusive dele mesmo [...]. (C2)
C2 também considera que a atenção e o cuidado com o/a aluno/a ocupam lugar de destaque na disciplina psicologia médica: [...] Quer dizer, basicamente o curso do primeiro ano é esse; é um curso que não ensina psicologia médica no sentido tradicional de ensinar a psicologia para os alunos. Mas busca o tempo inteiro seguir, acompanhar e oferecer uma possibilidade de que o aluno possa discutir o que ele vem paulatinamente passando durante a sua formação médica [...]. (C2)
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O “psicológico” na prática: o foco na “relação” Neste tópico, lembramos, preliminarmente, que os problemas que ocorrem no relacionamento entre médico/a e pacientes têm sido campo fértil de estudos e publicações (Nunes, 1999; Cudizio Filho, 1996; Spink, 1994; entre outros autores). Os/as coordenadores/as asseguram que, durante a disciplina, há uma ênfase no aspecto relacional. Sobre isto, C2 explica: [...] a gente tenta dar no curso de medicina, não relação aluno-paciente, no primeiro ano, mas aluno-formação, o aluno na própria graduação. A relação dele, que ele vai estabelecendo com o passar do tempo que ele vai se formando, relação com a anatomia, relação com os animais de experimentação, relação dele com a entrada na faculdade, relação dele com os pacientes que ele já vai ter no segundo semestre, e assim por diante. A gente vai sempre procurando observar esse modelo mais relacional que ele vai estabelecendo. [...]. (C2)
C3 também afirma que, na F3, o curso se desenvolve por meio do estudo das relações sociais: [...] Então o curso está focado na relação. Nesse sentido, sim, tudo é relação na vida, tanto a relação com outras pessoas quanto intrapsiquicamente também. E, no caso, a gente, quando a gente tenta trazer isso mais pra perto da relação médico-paciente, mas partindo de todas as relações. Quando você vai falar da personalidade, você está falando da relação, a estruturação da personalidade é fundada na relação.[...]. (C3)
Assim, de acordo com C2, os conteúdos da disciplina vão sendo aprendidos também de forma relacional e contextualizados nas práticas ocorridas durante a formação: [...] Inclusive, no segundo semestre, é um módulo quase que inteiro muito voltado já para o contato dele como estudante de medicina com os pacientes. [...] E aí a gente já começa a treinar eles (sic), tanto do ponto de vista de como chegar, como se aproximar, o que é que é uma entrevista médica, o que... que é uma... dificuldades psicológicas que podem surgir de um ou de ambos os lados, não só do lado do paciente, mas do lado do estudante de medicina. E a gente segue o curso do segundo semestre inteiro fazendo isso até que, no fim do ano, eles fazem uma história, e a gente discute com cada aluno, com cada dupla que faz a história, a gente discute... aspectos psicológicos que poderiam ser reconhecidos ou que puderam ser reconhecidos durante essa atividade [...]. (C2)
O alcance da formação a respeito do “psicológico” nos cursos de Medicina Todos/as interlocutores/as, atendendo a nossa solicitação, se pronunciaram a respeito de como entendem a formação a respeito do psicológico na faculdade em que trabalham. Assim, segundo C2: Eu acho que ele sai sabendo que o paciente tem um psicológico. Eu acho que, às vezes, ele não sabe o que fazer... [...] Eles até reconhecem que o paciente está com um grau de sofrimento, [...] eles lidam com o sofrimento psicológico da mesma maneira como se ele tivesse tendo um sofrimento urinário, eventualmente, ou um sofrimento gástrico, ou um sofrimento neurológico qualquer. [...] Se eles reconhecem que o paciente está ansioso, eles vão chamar um psicólogo ou um psiquiatra pra manejar a ansiedade daquela pessoa, da mesma maneira que um especialista vai manejar a arritmia do paciente [...]. (C2)
De acordo com C1, a formação a respeito do psicológico é [...] extremamente precária. É o que eu falei. [...] Até tem professores que dizem “isso é psicológico”. Mas na prática param por aí, ponto. O aluno que entenda o que quiser com isso. Frequentemente o tal do psicológico é, entre aspas, aquilo que eu não consigo palpar,
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nem transmitir, nem ouvir, então é psicológico. O que fazer com isso? Ah, manda para o psiquiatra. [...]. (C1)
C3 nos apresenta outra versão sobre o provável alcance da educação que os/as professores/as propiciam: [...] tem fases em que a gente fica se perguntando “puxa, mas será que estamos conseguindo? Como isso está repercutindo?”. [...] Às vezes, a gente fica mais animado, quando a gente vê alunos que passaram pelo curso ou que estão no próprio curso; então você vê eles (sic) aproveitando; você vê transformação, você percebe isso. E outras vezes você olha e pensa “Puxa vida, será que...?” “Quanto esforço, o que será... qual o resultado de tanto esforço?”. [...] Na maioria das vezes a gente, felizmente, na maior parte do tempo a gente está assim com a... vivência de que é importante, que produz efeitos. [...] Uma coisa interessante é assim: os alunos mais para o fim do curso quererem ampliar a psicologia médica [...]. (C3)
Por outro lado, e adicionando outras questões que extrapolam o ensino médico, C3 relata a inclusão das trajetórias pessoais de cada aluno/a, as quais podem dificultar a apreensão dos conteúdos abordados na(s) disciplina(s) que coordenam: Agora, por exemplo, em cada turma, sempre tem gente que você vai encontrar que é totalmente refratário. Quer dizer, não adianta, não tem aproveitamento. [...] Mas que seriam pessoas, por exemplo, que têm condições muito pobres de entrar em contato com essas dimensões e poder usar isso na tarefa médica e no relacionamento médico-paciente [...]. (C3)
Refletindo sobre a disciplina psicologia médica, C1 observa sob outra perspectiva: “Você há de convir que é muita pretensão eu querer muita coisa, né? Só que não depende de mim a duração do curso; é coisa da grade da faculdade. Eu acho que um curso de três meses, uma manhã por semana, dado para um terceiro ano, tem um poder de fogo... não dos maiores [...]” (C1). Assim, as alterações necessárias são vistas sob a ótica do tempo de duração: “se a disciplina durasse mais tempo, mais anos” (C1). C2, por sua vez, afirma que “a gente muda sempre todo ano. Todo ano a gente muda alguma estratégia pra sensibilizar os alunos”. Há, ainda, que apontar a importância da aproximação e integração com outras disciplinas ou áreas de conhecimento, relatada por C1: “Eu acho que a disciplina deveria ter mais ligações com outras disciplinas: o curso de psicologia, antropologia, artes em geral” (C1). A proposta do diálogo interdisciplinar entre as Ciências Sociais e Ciências Humanas também é exposta por C2: “[...] deveria haver uma articulação um pouco maior entre as disciplinas que... que formam esse bloco, vamos chamar assim. Não só a psicologia médica, mas as Ciências Sociais junto com a Ética” (C2). Fica nítido que alguns aspectos da formação médica têm introduzido dificuldades e contribuído para um aumento do sofrimento inerente à prática médica (lidar com doentes, com a morte, com intervenções dolorosas e invasivas etc.). Não só os pacientes têm prejuízos decorrentes desse tipo de graduação, mas também médicos e alunos de medicina. Na tentativa de minimizar esses efeitos, são oferecidos, aos estudantes, lugares onde possam partilhar suas experiências, falar de suas angústias, medos e dúvidas desencadeados durante a graduação. Percebemos, assim, que as disciplinas ligadas à área das Ciências Humanas são consideradas relevantes durante a época em que o aluno de medicina está em formação, por serem locais considerados acolhedores e que preservam a possibilidade de expressão dos sentimentos, aspecto indissociável do ser humano.
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Conclusões A análise das entrevistas que fizemos com professores/as-coordenadores/as da disciplina psicologia médica, em cursos de medicina na cidade de São Paulo, torna explícita a necessidade de se situar a prática médica num contexto relacional. Tenta-se, por meio da referida disciplina, incorporar uma visão mais humanística na formação que propiciam nos cursos de medicina de que fazem parte. Percebemos que os relacionamentos entre professor/a-aluno/a, aluno/a-aluno/a, médico/a-médico/ a se tornam instrumentos de conscientização para as questões que perpassam a relação médico/apaciente. Por meio do estudo das práticas discursivas, podemos afirmar que, nas entrevistas, o “psicológico” tem prioritariamente três sentidos: em primeiro lugar, é a capacidade de comunicação entre as pessoas; a possibilidade de ambos – médicos/as e pacientes – poderem se expressar e se entender. Desse modo, a dialogia também se faz presente como algo fundamental de ser considerado na educação médica, levando-se em conta o contexto histórico e social no qual se desenrolam as práticas sociais. O “psicológico” é ainda a capacidade de reconhecer os aspectos psicológicos do/a paciente, daqueles/as que precisam de atenção especializada (como no caso dos quadros psicóticos, depressivos etc.) e que necessitam ser encaminhados a outro/a profissional. Incluem-se, aqui, os diferentes repertórios interpretativos utilizados para nomear algo considerado psicológico e que necessita de atenção por parte do/a médico/a. Por outro lado, as questões psicológicas englobam as formas de expressão do ser humano, muitas vezes consideradas como ameaçadoras pelos/as médicos/as, e que precisam ser identificadas e explicadas, numa tentativa de controlar e afastar os sentimentos que podem ser despertados. Apesar de se ter afirmado que as questões relacionadas a algo “psicológico” são tratadas, sobretudo, na disciplina psicologia médica, os/as próprios/as coordenadores/as reconhecem que a educação médica não prioriza as teorias psicológicas. Porém, fica claro que o ensino de questões psicológicas se dá durante as práticas interpessoais ocorridas em sala de aula, entre os/as alunos/as e destes/as com os/as professores/as. Para concluir, entendemos que se torna imperativo dar continência às emoções suscitadas durante a graduação em medicina, pois ela exige que se lide com o sofrimento, a dor e a morte. A disciplina psicologia médica é um lugar para o/a aluno/a expressar os sentimentos vividos, além de lhe serem propiciados acolhimento e cuidado psicológico por parte dos/as docentes.
Colaboradores Os autores Sérgio Seiji Aragaki e Mary Jane Paris Spink participaram, igualmente, de todas as etapas de elaboração do artigo.
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Palabras clave: Educación médica. Psicología médica. Psicología social. Prácticas discursivas. Construcción social. Recebido em 26/09/07. Aprovado em 09/10/08.
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Corpo e formação de professores de educação física*
Sílvia Maria Agatti Lüdorf1
LÜDORF, S.M.A. The body and training for physical education teachers. Interface Comunic., Saúde, Educ., v.13, n.28, p.99-110, jan./mar. 2009.
This paper results from a study in which the aim was to investigate whether and in which way issues relating to the body are dealt with nowadays by university-level physical education teachers within a teacher training course. Interviews and document analysis were used as the data gathering techniques. The results showed that matters relating to body esthetics were partially considered within the physical education teacher training. There were differences in the genesis of the approach and in the theoretical framework used. It is concluded that these approaches represent an advance in physical education teacher training, but that they could be used more systematically, since they are directly linked with teachers’ professional practice.
O texto resulta de uma pesquisa cujo objetivo foi investigar se e de que forma temáticas relacionadas ao corpo na contemporaneidade são abordadas por professores universitários de educação física de um curso de licenciatura. Foram utilizadas entrevistas e análise documental como técnicas de coleta de dados. Os resultados mostraram que assuntos relacionados à estética corporal são, em parte, contemplados na formação de professores de educação física, havendo diferenças na gênese da abordagem e no referencial teórico utilizado. Conclui-se que tais abordagens representam um avanço na formação de professores de educação física, mas que poderiam estar mais sistematicamente presentes, uma vez que estão diretamente ligadas à prática pedagógica do professor.
Key words: Body image. Physical education. Teacher training. Teaching practice
Palavras-chave: Imagem corporal. Educação física. Formação de Professores. Prática pedagógica.
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
Elaborado com base em Lüdorf (2004). 1 Licenciada em Educação Física. Departamento de Ginástica, Escola de Educação Física e Desportos, Universidade Federal do Rio de Janeiro (EEFD/UFRJ). Av. Carlos Chagas Filho, 540, sala 206. Cidade Universitária, Ilha do Fundão, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. 21.941-599. sagatti.rlk@terra.com.br 8
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Considerações introdutórias Uma das dimensões mais valorizadas no corpo, na contemporaneidade, é a aparência. Goldenberg e Ramos (2002) referem-se à civilização das formas, como a época hodierna onde o corpo belo, jovem e magro tornou-se objeto de consumo, exaltado, sobretudo, pelos meios de comunicação e pela publicidade. Importantes implicações para a saúde, em decorrência da massificação desse discurso de exaltação do corpo, são sentidas, especialmente, no público jovem, tais como: o recrudescimento de distúrbios alimentares2 ou da ingestão - na maioria das vezes sem orientação médica e/ou nutricional - de suplementos alimentares e de esteróides anabolizantes. A prevalência da dimensão estética3 do corpo, onde estilo, forma, aparência e juventude contam como seus mais importantes atributos, leva a considerar que, atualmente, o corpo pode ser modelado e transformado como se fosse um rascunho (Le Breton, 2003). Como rascunho, o corpo seria uma estrutura modular, cujas peças podem ser substituídas, redesenhadas, conforme os anseios do indivíduo, na tentativa de ser constantemente retificado e corrigido. Algumas consequências desse discurso voltado à imagem e à exibição do corpo têm sido frequentemente observadas, tais como: preocupação constante com a aparência corporal; realização de procedimentos estéticos e cirurgias plásticas; distúrbios alimentares e dietas inusitadas; interesse cada vez maior pela prática de atividades físicas; utilização de substâncias farmacológicas para emagrecimento ou fortalecimento etc. Um ponto em comum dessas consequências parece ser a insatisfação com o próprio corpo4 ou a necessidade, muitas vezes fabricada, de modificá-lo de alguma forma, talvez correspondendo ao que Le Breton (2001, 2000) chamou de “sensação de incompletude do corpo”. Para Le Breton (2003, p.22): “Não é mais o caso de contentar-se com o corpo que se tem, mas de modificar suas bases para completá-lo ou torná-lo conforme a idéia que dele se faz.” O professor de educação física vê-se, a todo tempo, envolvido com técnicas corporais e com a cultura do corpo nos mais variados ambientes, como: escola, academia de ginástica, clube, universidade e demais espaços sociais. Mais do que uma atuação de cunho essencialmente técnico, o professor de educação física é um educador, na medida em que desempenha um papel formativo e contribui, em sua prática pedagógica, para a formação de valores socioculturais, subjetivos e políticos. Devido à natureza pedagógica de sua intervenção, é fundamental investigar em que medida os professores de educação física lidam com as demandas corporais contemporâneas, dentre as quais, a valorização da dimensão estética, que vem ganhando contornos impressionantes atualmente. Interessa, nesta oportunidade, analisar e discutir o cotidiano de professores universitários que labutam para formar os professores de educação física. É na universidade, no lidar com alunos, futuros professores, que muitos dos interesses são despertados, teorias discutidas e perspectivas práticas delineadas ou vivenciadas. Cabe destacar que o processo de formação do professor de educação física é uma das instâncias mais propícias para a discussão e assimilação dos diferentes significados envolvidos na construção do corpo, especialmente por, a princípio, constituir um dos pilares para a formação de planos de pensamento, análise e tomada de posição profissional. É, portanto, de vital importância, discutir e questionar a prática dos professores que trabalham nesse estratégico ambiente. Particularmente, pretende-se discutir, neste artigo, alguns dos resultados obtidos em uma pesquisa realizada com professores de educação física de um curso de graduação em educação física de uma universidade pública. Buscou-se 100
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2 Distúrbios estes que podem levar à morte, como o caso de uma jovem modelo que veio a falecer de anorexia (Linhares, 2006).
3 O termo “estética”, na filosofia, conforme Abbagnano (2000, p.367), designa “a ciência (filosófica) da arte e do belo”, que recebeu diferentes interpretações em cada época. Este termo, entretanto, não será aqui utilizado na perspectiva filosófica, mas em seu sentido usual, mais comum, relacionado à beleza, à plástica e à aparência.
4 Sobre este assunto, ver reportagem de Cezimbra (2000).
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5 A autora se refere, sobretudo, ao corpo da mulher, cujo ideal é ser magro, jovem e trabalhado.
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investigar se, e de que maneira, temáticas relacionadas ao corpo, na contemporaneidade, são abordadas e/ou discutidas durante o processo de formação de professores de educação física. Para Goldenberg (2006), o corpo5 adquire tal centralidade na cultura brasileira que se torna um verdadeiro capital. Afora as implicações culturais, o fenômeno da excessiva preocupação com a aparência do corpo pode envolver aspectos éticos e de saúde importantes, com os quais, muitas vezes, o professor de educação física deverá lidar. Torna-se fundamental, portanto, discutir até que ponto tais questões estariam sendo trabalhadas na formação de professores de educação física.
Notas sobre corpo, educação física e formação de professores
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Ver reportagem de Moherdaui (2002).
No contexto contemporâneo, observa-se que o poder que investe e marca os corpos da atualidade é extremamente difuso e está longe de ser sutil. Parece haver um poderoso “macrodiscurso do poder da eterna juventude e beleza”, tecido nas entranhas da sociedade, e que se faz presente de forma arrebatadora, dadas as múltiplas formas de propagação e impregnação, geradas, sobretudo, por sua grande aliada, a mídia; e esse discurso é fortalecido pelas instituições contemporâneas (Lüdorf, 2004). Este corpo sujeito ao poder, que é também seu objeto, revela-se, especialmente, no aspecto estético, dimensão esta de análise do corpo, que ora vem ganhando vulto a ponto de ofuscar as demais. O corpo passa, assim, a seguir normas de disciplinamento, não apenas autoimpostas, mas também impostas pela sociedade e por diversas instituições contemporâneas, tais como: imprensa, televisão, academias de ginástica, escolas, clínicas estéticas, dentre outras. Na opinião de Lipovetsky (2002), a publicidade exerce múltiplas pressões sobre as massas, mas sempre no quadro de uma autonomia da escolha, de recusa ou de indiferença. Em relação ao corpo, contudo, o efeito das táticas de disciplinamento, que deveria ser superficial, parece cada vez mais amplo e profundo, apresentando repercussões em diversos níveis sociais e faixas etárias, da infância à terceira idade. Tal repercussão não passa despercebida nos diferentes ambientes em que a educação física vem sendo trabalhada, levando nossas crianças e jovens, sobretudo, a terem contato precocemente com distúrbios dietéticos e/ou uma preocupação exacerbada com (a forma do) o corpo6. Soares (1999, p.5) já alertava que: “O corpo como primeiro plano de visibilidade humana, como lugar privilegiado das marcas da cultura [...], tem sido pouco considerado no campo da educação e, mais especificamente, no campo da educação física. Nesta os estudos em torno do corpo são também incipientes.” Muitos estudos relacionados à educação física, educação e corpo foram desenvolvidos desde então, alguns tendo sido publicados em forma de coletâneas de artigos, tais como: “Corpo e Educação” (Soares, 1999), “O corpo e o lúdico” (Bruhns, Gutierrez, 2000), “A produção do corpo” (UFRGS, 2000), “Corpo e História” (Soares, 2001), além do Dossiê Visibilidade do Corpo (Unicamp, 2003). Outras produções teóricas na educação física tratam, sob enfoques diferenciados, da valorização da aparência e da imagem do corpo na atualidade. Como exemplos, poderiam ser citadas as contribuições de: Anzai (2000), Bruhns (2000), Vilanou (2000), Fraga (2001), Nóbrega (2001) e Silva (2001). Há ainda, porém, uma lacuna relativa às evidências empíricas sobre como os professores têm lidado com esta tendência corporal contemporânea frequentemente mencionada. Copollilo (2002), em uma dessas tentativas, aborda a leitura que professores de educação física, que cursam especialização em educação física escolar, fazem COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
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acerca das concepções de corpo na mídia televisiva. Embora tais iniciativas sejam importantes, há a necessidade de se analisar esta temática, também, no processo de formação de professores, base da incorporação das novas gerações profissionais. Esta insuficiência de fontes que mostrem como questões ligadas a valores estéticos hegemônicos têm sido discutidas na formação de professores de educação física é um elemento preocupante, especialmente em um cenário onde prevalece um poderoso discurso midiático, que, em última instância, influencia comportamentos e, obviamente, os corpos dos próprios professores de educação física e os daqueles com os quais interagem. O corpo talvez seja um dos mais fortes vetores de construção de identidade no mundo contemporâneo. Para Vaz (2002, p.92): Seria bom que se pensasse, então, o papel dos ambientes educacionais em meio à diversidade de técnicas necessárias para o assessoramento e criação/desenvolvimento de identidades corporais. Esse é, a meu ver, um ponto-chave para que se debata o papel da educação física nos ambientes educacionais, bem como algumas possíveis orientações para a formação de educadores.
Neste sentido, é fundamental que o professor esteja preparado para lidar criticamente com as novas demandas corporais, ou antes, que reflita sobre o impacto das mesmas no processo de sua formação, para que possa exercer plenamente sua função de educador. A educação geral, nas suas mais diferentes manifestações, em si já contribui para inscrever significados e valores no corpo. Ao lidar com o ser humano e o corpo em constante construção e interação com o contexto social, a educação física não pode deixar, portanto, de ser entendida como uma prática educativa, ou, ainda, como prática social, já que se ocupa do educar por meio do movimento. Nesta perspectiva, espera-se, da educação física, a tarefa de “esculpir” o corpo, para além do sentido puramente estético ou literal da palavra, mas, em um sentido amplo, de formação humana. Este tipo de estudo se coaduna com a principal tendência que vem sendo apontada nas propostas de reformulação da formação de professores, segundo a qual, dever-se-ia privilegiar o equilíbrio e a articulação entre o saber dos professores e as realidades específicas de seu trabalho cotidiano (Tardif, 2002). Conforme Tardif (2002), o saber docente é plural e profundamente social, uma vez que, além de estar ancorado na individualidade, é sempre ligado ao trabalho, ao ensino, à instituição e à sociedade. Sendo assim, a formação profissional constitui uma sólida instância de composição de saberes, onde as questões socioculturais devem ser amplamente debatidas. Pimenta e Anastasiou (2002) talvez resumam a essência da presente investigação: O desenvolvimento profissional dos professores é objetivo de propostas educacionais que valorizam a sua formação não mais baseada na racionalidade técnica, que os considera meros executores de decisões alheias, mas em uma perspectiva que reconhece sua capacidade de decidir. Ao confrontar suas ações cotidianas com as produções teóricas, é necessário rever as práticas e as teorias que as informam, pesquisar a prática e produzir novos conhecimentos para a teoria e para a prática de ensinar. Assim, as transformações das práticas docentes só se efetivarão se o professor ampliar sua consciência sobre a própria prática [...] o que pressupõe os conhecimentos teóricos e críticos da realidade. (Pimenta, Anastasiou, 2002, p.13)
Aspectos metodológicos Esta pesquisa pretendeu mostrar e aprofundar a análise de um determinado recorte da realidade, especificamente voltado a um curso de licenciatura em educação física de uma das mais importantes universidades públicas do Brasil. O curso de licenciatura foi selecionado, prioritariamente, por ter, como
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principal objetivo, a formação de professores para a educação básica7. Além desse aspecto, na referida instituição, é o curso mais tradicional ligado à educação física, responsável por formar o maior número de turmas sequencialmente. Com enfoque qualitativo, o corpus como recurso de investigação foi delineado com base em Bauer e Aarts (2003). De acordo com os autores, a constituição do corpus deve ser pautada pelos critérios de relevância, homogeneidade e sincronicidade. Nesse sentido, a investigação foi norteada para um tema específico, para se tentar compreender a “variedade de representações das pessoas no seu mundo vivencial” (Bauer, Aarts, 2003, p.57). Além disso, foram privilegiadas as entrevistas individuais, para melhor elucidar o objeto de estudo, de modo a garantir o critério da homogeneidade. A sincronicidade refere-se à atualidade do assunto abordado, mencionada desde o início deste texto. Além da entrevista, foram utilizadas técnicas complementares para a coleta de dados, destinadas a imprimir rigor, amplitude e profundidade à investigação (Denzin, Lincoln, 1994), tais como: análise documental da grade curricular, dos programas de cursos e de textos de apoio, além de anotações em um diário de campo (AlvesMazzotti, Gewandsznajder, 1999). A seleção dos sujeitos da pesquisa foi realizada conforme as orientações de Gaskell (2003), de “explorar o espectro de opiniões” nos grupos naturais. Dessa maneira, após a análise detida da grade curricular do curso referido, buscou-se a distribuição das disciplinas em quatro grandes grupos, a saber: Escola, Academia de ginástica, Esporte e Corpo, que abarcariam as diferentes representações a serem desvendadas. Posteriormente, foi realizado um levantamento dos professores vinculados àquelas disciplinas e, por fim, a seleção dos respondentes, com base nos seguintes critérios: regime e tempo de dedicação na universidade, sexo, titulação, tempo de trabalho junto à disciplina, e representatividade perante os grupos de disciplinas, a fim de que houvesse certo equilíbrio na proporção dos informantes. Após esses procedimentos, foram selecionados 15 sujeitos, de acordo com o limite proposto por Gaskell (2003), que foram submetidos a entrevistas individuais e qualitativas. Para Gaskell (2003), esse tipo de entrevista segue um tópico guia, permitindo flexibilidade na abordagem e maior aprofundamento do objeto de estudo. O instrumento somente foi utilizado após passar pelo procedimento formal de validação do roteiro e pela pesquisa-piloto. Os professores manifestaram-se favoravelmente à participação na presente pesquisa, conforme os preceitos éticos. As entrevistas foram gravadas e transcritas, constituindo o corpus a ser analisado. Procedeu-se, então, a uma análise de conteúdo pontuada por dois princípios básicos: o da repetição e o da relevância (Turato, 2003). As categorias emergiram a partir dos significados captados nos discursos dos entrevistados. A análise dos programas dos cursos e dos textos de apoio serviu para checar e complementar os dados coletados.
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Embora esse seja o principal objetivo de qualquer curso de licenciatura plena, observa-se uma particularidade em relação à educação física, que é o direcionamento de muitos egressos e, mesmo, estagiários, ao mercado de trabalho não formal, como academias de ginástica, clubes etc. 7
A abordagem de assuntos ligados ao corpo na contemporaneidade
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Para nos referirmos aos professores entrevistados, utilizaremos P1, P2, P3 etc.
Durante as entrevistas, observou-se que aspectos relacionados à aparência e forma do corpo emergiram naturalmente, ainda que o assunto não tivesse sido anteriormente mencionado. Foram utilizados termos, tais como: padrão corporal, modelo, corpo ideal, dentre outros. P28 ressalta que quem se enquadra no modelo preconizado tem mais oportunidades na sociedade: Existe um modelo que é valorizado e quem se enquadra [...] goza das benesses e quem se afasta [...], é a questão daquele corpo proporcional, o mesomorfo, com contorno de bíceps, de bumbum, de quadríceps, é a estética que valoriza, que é valorizado como aquilo que deve ter. (P2, p.5)
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As características principais atribuídas a esse corpo “modelo” foram: jovem, musculoso, magro, delineado, dentre outras, como aparecem nos trechos a seguir: Acho que existe um modelo no imaginário, foi implantado, foi, digamos assim, vendido, um modelo de corpo que é um corpo atlético, um corpo delineado ou fabricado nas academias, então este é o corpo que é o corpo ideal, o corpo que é muito valorizado, [...] é um corpo que só dá certo para o jovem, é um corpo jovem. (P12, p.4) É esse modelo que a gente vê aí, na mídia, nos anúncios, na revista, é aquele corpo bem delineado, bem marcado, é aquela pessoa muito musculosa que, assim, esteticamente a gente pode até questionar se realmente aquilo é bonito ou não. (P13, p.2) Todos têm que tomar isso ou aquilo para poder ficar mais com essa massa muscular, as meninas têm que ter o corpo [...] uma anorexia, para ter esse corpo magérrimo, e essas singularidades se perdem nos corpos. (P10, p.7)
Nota-se, por esses e outros exemplos, que o fato de se ter um corpo para ser trabalhado, moldado e fabricado, conforme as exigências contemporâneas, corrobora as idéias de Le Breton, essencialmente a de corpo rascunho (Le Breton, 2003). Como uma das facetas desse corpo, a dimensão estética surge como uma das preocupações centrais no discurso dos professores, indo ao encontro do que afirmam Goldenberg e Ramos (2002), quando dizem que vivemos em uma civilização das formas, onde o poder normalizador dos modelos e a conformidade aos padrões estéticos se chocam com o ideal individualista e com a exigência de singularização dos sujeitos. Mas, de que forma isso repercutiria nas práticas pedagógicas dos docentes universitários? Será que assuntos derivados dessa preocupação surgiriam em suas aulas? De que maneira? Avançando na análise do corpus das entrevistas, foram identificadas duas tendências em relação ao corpo na contemporaneidade no interior da formação de professores. A primeira tendência seria representada por professores que afirmaram discutir assuntos relacionados à aparência corporal em sua prática pedagógica. Já a segunda, configurou-se a partir dos docentes que, apesar de reconhecerem a importância do assunto, alegaram não ter tempo ou oportunidade de abordá-lo. Para entender melhor de que maneira essa abordagem ocorreria, além dos discursos, foi realizada a análise dos programas das disciplinas e, também, dos textos, porventura, indicados aos alunos para leitura. Foi possível verificar que, em alguns casos, os assuntos pertinentes à estética do corpo são incluídos no conteúdo programático de certas disciplinas. Percebe-se, nesses casos, que há uma preocupação explícita em discutir e fundamentar teoricamente discussões dessa natureza, por meio da indicação de textos de apoio aos alunos, conforme demonstrado no depoimento de P10 (p.11): O tempo inteiro a gente está vivendo esse apelo, essa coisa devoradora da imagem, esses ícones que têm, como a gente usa na imagem da Barbie, né? Essa coisa importada, que corpo é esse... hoje? Este body modification o tempo inteiro, esse corpo agora que todo mundo precisa se tatuar, se furar, precisa tomar um monte de drogas. Que relação é essa que o homem está tendo com o seu corpo? Com o mundo que ele vive? Relação de essência, de aparência? Isso ai vêm nos textos, eu procuro sempre trazer essa relação para poder trazer essa dicotomia.
Os textos recomendados para leitura são artigos ou capítulos de livros pautados, sobretudo, em referenciais teóricos clássicos da filosofia, como Foucault, Merleau-Ponty e Schiller, dentre outros. Um olhar mais minucioso, contudo, demonstrou haver diferenças na perspectiva de abordagem do assunto. Embora os referenciais sejam de cunho filosófico, as discussões de alguns professores privilegiam aspectos, tais como: corpo social, ética, subjetividade e corporeidade - conforme pode ser verificado:
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No caso do professor de educação física daqui, ele tem que passar um instrumental teóricofilosófico para poder estar trabalhando, preparando esse aluno para quando estiver diante de uma situação, qualquer que seja ela, que tenha elementos para poder se comportar da maneira mais adequada, ter um pouco de referência ética, usar o conhecimento científico, com uma postura ética, não ficar só valorizando quem é bonitinho. (P2, p.7) [...] sempre tem esse espaço de debate vendo esse aspecto, que até são logo as primeiras aulas da gente. É discussão de texto em cima do corpo, [...] ética e cidadania. (P6, p.11)
Outros professores direcionam as discussões promovidas para o binômio estética-saúde e suas repercussões no organismo e no comportamento dos alunos. Alguns trechos de depoimentos são exemplificativos dessa vertente: [...] pensei até em colocar, um tópico sobre estética, mas o que é a estética para você? [...] uma coisa pode significar muitas coisas, o físico, o psicológico, o social, [...] sempre que eu tenho um ganchinho eu puxo para isso ai, às vezes eu até brinco, a musculação tem muito essa coisa de bodybuilding, do fisiculturismo e do culturismo, que é aquele culto à estética entre aspas, [...] isso para vocês é estética? Para mim particularmente não é estética. Ao contrário, é antiestética, [...]. Eles têm muito essa noção de que a estética é uma parcela da qualidade de vida, entendeu? (P5, p.8) [...] a gente discute muito essa questão de relação da estética do corpo, estética de saúde, eles aceitam bem essa discussão e as argumentações e os pressupostos que nós temos colocado. (P8, p.9) [...] o que eu procuro discutir com eles é essa imagem corporal relacionada a auto-estima, mas uma imagem corporal não como uma estética externa pura e simples, de braço e pernas de músculos, musculatura bem definida não, uma imagem corporal como resultado de toda uma rotina, de toda uma cultura, uma rotina de vida, uma qualidade de vida [...]. (P1, p.16)
A utilização de fundamentação teórica advinda das ciências humanas e sociais e a preocupação em abordar aspectos diferentes dos técnico-desportivos em relação ao corpo são elementos importantes na formação de professores de educação física, para que possam ser criadas oportunidades de refletirem criticamente sobre o seu papel na sociedade. Daí a pertinência da afirmativa de Vaz (2002) de que “Não se pode pensar o ensino dos elementos da cultura corporal e a formação de professores e professoras com essa tarefa sem que se considere esse contexto mais amplo no qual se colocam o corpo e as práticas corporais no mundo contemporâneo.” (Vaz, 2002, p.86) Ainda tratando do grupo dos professores que afirmaram abordar questões pertinentes ao corpo na contemporaneidade em suas aulas, alguns disseram que a demanda era dos próprios alunos, quando, em determinado(s) momento(s) do curso, a abordagem de certos conteúdos provocava tais reflexões. Os professores que declararam proporcionar situações para a discussão de questões associadas ao corpo, dentre as quais, a valorização da estética, disseram que os alunos mostravam-se interessados e costumavam participar ativamente. Ressaltaram que, como se trata de assunto bastante atual e polêmico, dependendo do teor da discussão, há divergência de opiniões, o que gera calorosos debates, conforme ilustra a fala de P6 (p.11): É muito interessante eles mostrarem a dificuldade que eles têm em enfrentar uma situação dessa, de enfrentar a mídia, de enfrentar a própria procura do emprego, [...] a própria academia pede para eles venderem o anabolizante, então o que ele faz? Ele sai e deixa a família passando fome? Enquanto outros se colocam totalmente ao contrário, [...] aí fica muito interessante.
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A problemática mencionada assemelha-se a exemplos de dilemas de natureza moral, conforme método proposto por Lind9 (2004), que se destina a incentivar competências moral-democráticas, particularmente no que se refere à habilidade de alunos jovens para lidar com os próprios ideais e princípios morais em situações onde “estão sob pressão para concordar com fatores não-morais como opinião da maioria, preconceito, autoridade abusiva ou outros.” (Lind, 2004, p.2) Como pode ser observado, surgem, por vezes, situações de conflito envolvendo questões éticas e morais, diante das quais o professor de educação física teria de se posicionar, ou, antes, estar preparado para lidar. Já em relação à segunda tendência, dos professores que não discutem questões relacionadas ao corpo, alguns reconhecem que seria importante a inclusão de tais abordagens, mas não possuem tempo para fazê-lo. Contudo, outros declararam que assuntos sobre estética corporal não seriam pertinentes aos conteúdos desenvolvidos em suas aulas. Uma interpretação possível desses dados é que, talvez, esses professores possuam uma concepção de corpo mais voltada a aspectos técnicos e de performance, como pode ser observado: É nessa perspectiva que a gente vê o corpo, um corpo que realiza determinadas tarefas, gestos desportivos, que tem um determinado peso, está agrupado por uma faixa de peso, não na perspectiva da estética, você pode ser bonitinho e se não estiver atento, vai levar um golpe, não tem jeito, é um corpo que é funcional, que é atento, que é perspicaz, que engana o outro, engana no sentido da linguagem desportiva, leva o outro ao erro e se aproveita desse erro. (P3, p.11) Eu já tive alunos que tinham o corpo quase completamente tatuado, que foram excelentes alunos, têm outros que tinham piercing e tal, que eu alertava do risco de uma atividade física, [...] atividade física não foi feita para fazer com um brinco, ai esbarrar num handebol pode arrancar metade da orelha, quer dizer são os cuidados, a gente previne [...]. (P4, p.13)
Neste caso, a visão tecnicista ainda é bastante arraigada, pautada, sobretudo, nos princípios de rendimento e de competitividade, o que pode ser exemplificado pela seguinte fala: Você tenta às vezes passar determinadas visões de corpo mais subjetivas, com essa singularidade, os alunos mesmo acusam, denunciam isso que é muito estranho. Porque você fala isso aqui, ai ele sai, dá dez passos, faz uma aula aonde o professor exige dele o padrão estabelecido, a mesma marca, o mesmo tipo de resultado, a mesma performance, então eu acho que isso aí é reverter valores que estão muito enraizados, né? É uma visão da história da educação física, uma história de corpo muito ainda marcado, tecnicista, uma coisa muito... que o homem não sei se mora no seu corpo. (P10, p.8)
Para Bracht (1999), até o advento do esporte nos anos 1970, a educação integral sobre o corpo era sustentada, sobretudo, pela biologia, sendo entendida “na perspectiva de sua contribuição para o desenvolvimento da aptidão física e esportiva.” (p.77) Essa visão, no entanto, ainda perdura na educação física, como
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9 Lind (2004) criou o que chama de “The Konstanz Method of Dilemma Discussion” (KMDD).
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pode ser verificado na análise dos depoimentos, denotando resquícios de uma educação física de viés técnico-fisiológico. Cabe ressaltar, entretanto, que os professores que abordam criticamente aspectos ligados ao corpo na perspectiva de situá-lo e melhor compreendê-lo na contemporaneidade, podem estar operacionalizando, em suas práxis, visões alternativas que possibilitem a compreensão do corpo como um processo de construção sociocultural. Segundo Bracht (1999), a década de 1980 foi marcada pela entrada mais decisiva das Ciências Humanas e Sociais na educação física, fato este que possibilitou o surgimento do chamado movimento renovador da educação física brasileira, pautado, sobretudo, por uma análise crítica do paradigma da aptidão física. Diversas propostas seriam representantes desse movimento renovador, repousadas no estudo da cultura corporal do movimento. Para o autor: “[...] é fundamental entender o objeto da EF, o movimentar-se humano, não mais como algo biológico, mecânico ou mesmo apenas na sua dimensão psicológica, e sim como fenômeno histórico-cultural” (Bracht, 1999, p.81). O fato de, no espaço da formação de professores, estar ocorrendo a abordagem de assuntos atuais, com base em perspectivas históricas e socioculturais, talvez seja um indicativo de que a educação física esteja efetivamente apontando para novas direções, que não a preponderantemente técnico-biológica, conforme detectado, por exemplo, em Daolio (1999) ou Soares (1994). Segundo Goellner (2005, p.33): “[...] desnaturalizar o corpo de forma a evidenciar os diferentes discursos que foram e são cultivados, em diferentes espaços e tempos, é imperativo para que compreendamos o que hoje é designado como sendo um corpo desejável e aceitável”. Essa perspectiva contempla a natureza do trabalho do professor de educação física, que é a de educador. Giroux (1998) defende ações como as de discutir e questionar, de forma crítica, os diversos discursos e práticas culturais, bem como os meios populares de comunicação com os quais interagimos no cotidiano. Desta forma, criar oportunidades e propiciar condições para a discussão e crítica em torno dos padrões hegemônicos de corpo, com base na realidade dos próprios alunos, conforme proposto por alguns dos entrevistados, podem ser alternativas interessantes para se questionar e, quem sabe, desenvolver mentalidades críticas em torno do macrodiscurso do poder da beleza e da aparência.
Considerações finais No contexto analisado, discussões ligadas ao corpo na contemporaneidade são contempladas em algumas disciplinas presentes na formação de professores de educação física. Quanto aos referenciais teóricos que embasam tais discussões, observou-se que os mesmos possuem a filosofia como eixo comum, no entanto, desdobram-se em caminhos diferenciados, ora privilegiando o caráter sociológicofilosófico nas abordagens em sala de aula, ora o fisiológico-biomédico. A presença de abordagens críticas relativas à excessiva valorização de dimensões como aparência e forma do corpo, ou de modelos de corpo, e discussões sobre eventuais relações desse contexto com o trabalho do professor de educação física representam um aspecto positivo na formação de professores de educação física na realidade estudada. No entanto, poderia apresentar maior inserção, já que discursos ligados à fabricação e modelagem de corpos, amplamente divulgados por meio da mídia, vêm influenciando o comportamento de crianças, adolescentes e adultos, com os quais o professor de educação física interage em sua prática, nos diferentes ambientes. Um exemplo que merece destaque é a discussão sobre o uso e prescrição de esteróides anabolizantes, temática essa originária de dúvidas de acadêmicos, e que poderiam proporcionar substrato para o empreendimento de dinâmicas destinadas a exercitar a capacidade crítica e o enfrentamento de dilemas que envolvem questões morais e éticas. Nesse sentido, é fundamental que o professor de educação física esteja preparado para lidar criticamente com as novas demandas corporais, ou antes, que reflita sobre o impacto das mesmas no processo de sua formação. O papel do profissional/professor de educação física não se restringe a: organizar e fundamentar os conteúdos das práticas corporais; criar e desenvolver estratégias de ensino e
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ministrar aulas, muito menos, ensinar técnicas específicas ou de controle de peso10 - mas, acima de tudo, educar. Espera-se que os aspectos aqui discutidos possam fornecer alguns elementos para o constante repensar das práticas pedagógicas dos professores de educação física, uma vez que cabe ao professor, constantemente, refletir e discutir sobre suas estratégias de atuação no ou para a atuação do corpo.
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Conforme proposto por Jacobson, Aldana e Collier (1997) em artigo referente à imagem corporal e suicídio.
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LÜDORF, S.M.A. Cuerpo y formación de profesores de educación física. Interface Comunic., Saúde, Educ., v.13, n.28, p.99-110, jan./mar. 2009. El texto es resultado de una pesquisa cuyo objetivo ha sido investigar si los profesores universitarios de Educación Física de un curso de licenciatura contemplan temáticas relacionadas al cuerpo y de qué forma lo hacen. Se han utilizado entrevistas y análisis documental como técnicas de colectar datos. Los resultados muestran que asuntos relacionados a la estética corporal son parcialmente contemplados en la formación de profesores de Educación Física, con diferencias en el principio de aproximación y en el referencial teórico utilizado. Se concluye que tales aproximaciones representan un avance en la formación de profesores de Educación Física pero que podrían estar más sistemáticamente presentes, una vez que se ligan directamente a la práctica pedagógica del profesor.
Palabras clave: Imagen corporal. Educación Física. Formación de Profesores. Práctica pedagógica. Recebido em 12/02/08. Aprovado em 04/08/08.
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A construção da identidade profissional na graduação do nutricionista* Maria Luiza Sampaio Banduk1 Lidia Ruiz-Moreno2 Nildo Alves Batista3
BANDUK, M.L.S.; RUIZ-MORENO, L.; BATISTA, N.A. Construction of professional identity in undergraduate courses for nutritionists. Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.13, n.28, p.111-20, jan./mar. 2009. This study aimed to find how nutritionists’ professional identity is developed during undergraduate courses, based on statements from coordinators and students of nutrition courses in the municipality of São Paulo. Professional identity was seen to be a subject of concern, albeit non-systematically, developed through discussions on nutritionists’ specific attributes and ethical concepts. The coordinators believed that debate and research on the topic were important and should be conducted during the course in interdisciplinary form, within the classroom routine. They proposed going into this subject more deeply and warned about the need for teacher training. The students were concerned about immediate professional practice, which is clearly diversifying, and about social recognition. It was concluded that this subject is important because of the great expansion of the science of nutrition and the activities of nutritionists, within a context conditioned by current public polices. It was seen that nutritionists’ identity has been undergoing a formation process.
Propôs-se conhecer como a identidade profissional é trabalhada na graduação de nutricionistas, com base em depoimentos de coordenadores e alunos dos cursos de nutrição no município de São Paulo. Observou-se que, embora de forma assistemática, a identidade profissional é objeto de preocupação, trabalhada por meio de discussões sobre atribuições específicas do nutricionista e conceitos éticos. Coordenadores consideram importantes o debate e a pesquisa sobre o tema, recomendando sua ocorrência na graduação de modo transversal, no cotidiano das aulas. Propõem um maior aprofundamento da questão, advertindo sobre a necessidade de formação docente. Alunos preocupam-se com a prática profissional imediata, em franca diversificação, e com o reconhecimento social. Conclui-se que, em função da grande expansão da ciência da Nutrição e da atuação do nutricionista e tendo em conta o contexto condicionado pelas atuais políticas públicas, o assunto é relevante, verificando-se que a identidade do nutricionista revive um processo de construção.
Key words: Nutritionist. Professional identity. Undergraduate courses. Nutrition. Higher education.
Palavras-chave: Nutricionista. Identidade profissional. Graduação. Nutrição. Ensino superior.
Elaborado com base em Banduk (2005). 1 Nutricionista. Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Rua Dr. Sampaio Viana, 203, apto. 101, Paraíso, São Paulo, SP, Brasil. 04.004-000 malubanduk@uol.com.br. 2 Bióloga. Centro de Desenvolvimento do Ensino Superior em Saúde (Cedess). 3 Médico. Unifesp.
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Introdução A existência da profissão do nutricionista no Brasil há mais de sessenta anos ainda não lhe garante uma identidade profissional claramente percebida pela sociedade brasileira. A busca de aprimoramento da qualidade de vida coloca os hábitos alimentares saudáveis, dietas e propriedades de alimentos em evidência, mas a exata dimensão da contribuição do nutricionista na pesquisa, no planejamento e na aplicação dos mais modernos conceitos da Nutrição só é conhecida em grupos especialmente dedicados ao assunto. O próprio grupo profissional tem frequentemente relatado a dificuldade de se impor, de modo coletivo, perante seus pares na suposta equipe multiprofissional da saúde (Motta, Oliveira, Boog, 2003). O conceito de identidade é complexo, pois perpassa áreas de conhecimento como a Psicologia, a Sociologia, a Antropologia e a Filosofia. Laurenti e Barros (2000) afirmam que a identidade não é inata e pode ser entendida como uma forma socio-histórica de individualidade. O contexto social fornece as condições para os variados modos e alternativas de identidade, e a identidade individual expressa, de certa forma, uma singularidade construída nas inter-relações. Os autores explicam que o processo de construção da identidade tem um caráter dialético; nessa perspectiva, adotam as leis da dialética apresentadas por Gadotti (1983), para caracterizá-la como totalidade, movimento, contradição e evolução. Mais recentemente, Ronzani e Ribeiro (2003), discutindo a identidade e a formação profissional do médico, ponderam que a identidade social, embora socialmente construída, não é imutável, implicando uma relação entre indivíduo e grupo, onde importam não apenas as semelhanças, como também as diferenças entre os membros. Dessa maneira, a importância dada ao grupo é dependente do grau de envolvimento de cada indivíduo, motivo pelo qual é frequente a apresentação de dificuldades de adaptação a novas realidades, especialmente no caso da área da saúde, em que a mudança de contexto é uma realidade. Baptista (2002) acredita que o processo de construção da identidade coletiva acontece quando um conjunto de pessoas, em um determinado tempo histórico, apresenta características que o marcam como idêntico a si mesmo e diferente de outros. Segundo Habermas (apud Baptista, 2002), uma instância extremamente importante dessa identidade coletiva é a que dá sentido de continuidade para os indivíduos, por adotarem papéis, normas e valores válidos para todos os componentes do grupo, o que é reafirmado constantemente por suas realidades objetiva (estrutura social, grupos de referência, organizações, instituições) e subjetiva (representada, sobretudo, pela capacidade de reflexão de cada uma das pessoas). Ao estudar a sociologia das profissões, Pereira Neto (2000) explica o processo de profissionalização como uma conquista de um determinado grupo social. Para o autor: “[...] profissão é definida como ocupação com prestígio e poder especial. Diferencia-se da ocupação em razão de chegar a adquirir, por meios políticos, culturais e ideológicos, extraordinária autoridade cognitiva e normativa” (p.400). No caso da autoridade cognitiva, sua expressão estaria constituída de formação institucionalizada, conhecimento específico, linguagem própria e da resolução efetiva dos problemas que a sociedade demandasse; e, no caso da autoridade normativa, da capacidade de se autodisciplinar e cumprir espontaneamente a regulação de conduta. Essas características, uma vez adquiridas, garantiriam a autonomia e, consequentemente, o reconhecimento da identidade do profissional pela sociedade. De acordo com esse raciocínio, na Nutrição, a identidade profissional estabelecer-se-ia em um processo de construção contínuo, a partir do desempenho do papel para o qual o profissional está inicialmente preparado, e ao longo das transformações qualitativamente estimuladas pela sua capacidade de reflexão e pelo empenho das instituições que o referendam (ensino) ou representam (corporativas) na luta para conquista de sua autonomia. Um estudo recente, de caráter nacional, sobre a formação do nutricionista no Brasil (Zainko, 2000), faz referência à permanente busca de identidade pelo nutricionista, marcada pelo fato de que, apesar da conquista de avanços teóricos significativos, ainda há certa distância entre a teoria idealizada e a prática profissional.
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Estudos desenvolvidos na década de 1990 demonstram que a maior preocupação na formação do nutricionista tem sido a definição do perfil profissional e das habilidades específicas à área. Para Costa (1999), esses estudos estiveram concentrados no esforço de incorporar a Nutrição, enquanto ciência aplicada, aos serviços de saúde, especialmente diante da necessidade de delimitação do espaço a ser ocupado pelo nutricionista no país. Considerando a situação acima descrita, o objetivo deste artigo é analisar, com base em depoimentos de alunos e coordenadores de cursos de Nutrição do município de São Paulo, como a temática da identidade profissional tem sido trabalhada na formação de nutricionistas, investigando-se concepções, conteúdos e estratégias de ensino-aprendizagem em relação ao momento do curso em que são utilizados, bem como identificando expectativas quanto à necessidade e ao aperfeiçoamento do debate em torno dessa temática.
Metodologia Foi estudado o universo dos cursos de nutrição localizados no município de São Paulo que já haviam formado, ao menos, uma turma até o momento em que se realizou o estudo (2004) - universo este constituído por nove cursos de graduação (oito do setor privado e um do setor público), distribuídos em 15 campi. Foram entrevistados os nove coordenadores dos referidos cursos, por se considerar que eles possuíam clareza da globalidade do projeto pedagógico que coordenavam, e 17 estudantes de último ano desses cursos, por se compreender que estes já tinham uma visão geral do processo de formação e capacidade de análise do aprendizado recebido. Os alunos se apresentaram espontaneamente para responder às entrevistas, após uma apresentação do objeto da pesquisa às turmas por ocasião de reuniões de supervisão de estágio, de rotina nas suas universidades. O dimensionamento dessa população respeitou as recomendações de Minayo (1998), para quem, na pesquisa qualitativa, a amostra deve privilegiar os sujeitos sociais que detêm os atributos do estudo. No caso dos estudantes, a opção foi pelo número suficiente que permitisse certa reincidência de informações. Assim, a amostra de 17 alunos mostrou-se satisfatoriamente consistente para a identificação de padrões simbólicos e categorias de análise, de modo que se obteve o número suficiente ou de saturação. O instrumento de coleta de dados foi uma entrevista semiestruturada, não diretiva, na qual o pesquisador apenas guiou a entrevista, mantendo-se interessado no que o entrevistado falava. Aos coordenadores, perguntou-se diretamente em que momentos, disciplinas e conteúdos o tema da identidade profissional era abordado, e que dificuldades/desafios eles enumerariam para sua completa discussão. Aos estudantes, perguntou-se de que modo o curso havia contribuído para a sua visão atual sobre ser nutricionista e que sugestões apresentavam para o aprimoramento desse processo. As entrevistas foram gravadas e transcritas pelo pesquisador, obtendo-se autorização dos entrevistados para esse procedimento. A pesquisa obteve autorização do Comitê de Ética da Universidade Federal de São Paulo, sob o protocolo n. Cep 0283/04. Optou-se pela análise de conteúdo, compreendida, segundo Bardin (2006), como um conjunto de técnicas de análise das comunicações, capazes de construir indicadores que permitem inferir conhecimentos relativos às condições de produção das mensagens - técnicas estas de uso crescente na análise de dados em pesquisas qualitativas. Com base nos núcleos direcionadores da entrevista (Concepção de identidade profissional e Ensino e aprendizagem do tema), a análise de conteúdo compreendeu as seguintes etapas, como sugere Franco (2003): leitura seletiva do material coletado; organização das respostas dos diferentes entrevistados; seleção dos depoimentos e identificação de unidades de contexto e suas respectivas unidades de registro; apreensão das categorias de análise.
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Resultados e discussão Na opinião dos coordenadores, o conceito de identidade profissional não tem sido objeto de aprofundamento nos cursos de graduação. Os entrevistados reconhecem a necessidade de maior discussão, afirmando que a identidade profissional coletiva ainda não está consolidada, o que associam à falta de autonomia do nutricionista. Alguns coordenadores chegam a evidenciar a superposição de diferentes conceitos relacionados, questionando: Identidade, de repente, ela pode ser o perfil, né? E pode ser atribuição. Acho que passa muito por isso, não é? Toda vez que você pensa... bom, qual é a identidade do profissional nutricionista? Eu também faço a mesma pergunta: qual é o perfil do profissional nutricionista? O que ele teria como atribuição para compor a chamada “identidade profissional”? Eu acho que isso vem mudando ao longo dos anos [...]. (C9)
Mas a maioria dos coordenadores concebe o nutricionista como um profissional da área da saúde que vem conquistando uma atuação abrangente, preferencialmente educadora, e sua inclusão na equipe multidisciplinar. O nutricionista é um profissional da saúde... é um educador, em qualquer área de atuação. Eu gostaria muito de reforçar isto na formação dos alunos, essa visão de educador, ter uma ação transformadora no seu ambiente de trabalho. Obviamente baseado em toda a tecnologia, na técnica e na ciência da Nutrição. (C8)
A expectativa dos estudantes de vivenciar a prática, e a preocupação com as atuais condições de trabalho do nutricionista os levam a interessar-se preferencialmente pelas atribuições desse profissional, em detrimento da reflexão sobre a sua identidade. A visão do nutricionista como educador é também enfatizada pelo grupo. Eu acredito que a nutricionista é sempre uma educadora, independentemente da área que a gente vai ter de atuação, procurando sempre buscar uma qualidade de vida e uma reeducação alimentar. Porque a gente sabe que desde quando nasce até o idoso, a gente tem que estar reforçando como deve se alimentar e como deve estar mantendo a alimentação. (E5)
Importantes estudos sobre a história do nutricionista e sua formação no Brasil foram desenvolvidos desde meados dos anos 80 e, mais intensamente, na década de 1990, dedicando-se à análise da situação dos egressos dos cursos de Nutrição existentes à época (Boog, Rodrigues e Silva, 1988; Boog, Rodrigues e Silva, 1989; Prado, Abreu, 1991; Rottemberg, Prado, 1991; Costa, 1996); à história desse profissional, e à análise de sua prática (Costa, 1999; Santos, 1988; Ypiranga, Gil, 1989; Asbran, 1991; Bosi, 1996; Viana, 1995). A busca pela autonomia técnica do nutricionista foi apontada em vários deles, fazendo-se, inicialmente, referência à origem de subordinação técnica e científica ao papel hegemônico do médico (Santos, 1988; Viana, 1995). Nesta pesquisa, tanto os coordenadores de curso como os estudantes expressaram suas preocupações com essa situação. “A população, geralmente, não vai acreditar no nutricionista, vai acreditar mais no médico, né?” (E4). Essa representação tem influenciado a identidade do nutricionista, pois esta se apresenta, segundo Ronzani e Ribeiro (2003, p.229), “como uma relação de unicidade e, ao mesmo tempo, de pluricidade”, em que o sujeito compartilha valores e crenças com o grupo cultural a que pertence. Os depoimentos dos entrevistados mostram que a construção da identidade do nutricionista na equipe de saúde ainda precisa ser aprimorada. “Numa equipe multiprofissional, a gente vê que o 114
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nutricionista sempre fica um pouco de fora... do trabalho de todo mundo. A gente, nos estágios, nunca vê o nutricionista no auge” (E6). As atuais Diretrizes Curriculares (Brasil, 2001) enfatizam a necessidade de o nutricionista desenvolver competências para integrar as equipes multiprofissionais no contexto do atual sistema público de saúde do país. Na opinião de Motta et al. (2003), a efetiva integração desse profissional na equipe de saúde ainda apresenta grandes desafios relacionados à construção da identidade profissional. O correto exercício das competências comuns, enunciadas nas Diretrizes Curriculares, dos diferentes cursos da área da saúde, demanda não somente a discussão das alternativas de melhoria da formação técnica e científica na graduação, mas também a permanente reavaliação das interseções e limites profissionais entre as diversas áreas. Guimarães e Rego (2005), em um estudo sobre o debate provocado pela institucionalização do Ato Médico, consideram indispensáveis: uma avaliação criteriosa dos saberes e competências específicos à formação dos diferentes profissionais da equipe de saúde, e a consequente preservação dos limites de cada competência, respeitada a divisão do trabalho já efetivada. Os autores afirmam que são fundamentais a observação e a análise das possibilidades de autonomia de cada uma das categorias profissionais, bem como o enfrentamento das ameaças de perda de identidade resultantes das novas relações de trabalho. Baptista (2002) assume que a identidade profissional é construída na interação do eu com a sociedade. Sua ênfase recai naquilo que as pessoas têm em comum, enquanto grupo sociocultural, e as diferencia em relação àqueles que atuam em outros ramos de atividade. Recentes relatos de experiências positivas de inserção do nutricionista em equipes multidisciplinares, tais como equipes do Programa de Saúde da Família ou equipes ambulatoriais, trazem a riqueza da integração construída junto aos pares e validam a possibilidade de uma efetiva assistência nutricional à população brasileira. Esses relatos trazem à tona, entretanto, a ignorância sobre as funções desse profissional pelos gestores de diferentes programas de saúde, e a insuficiência das orientações nutricionais realizadas pelos profissionais não nutricionistas. Assim, confirmam a importância da orientação nutricional no quadro epidemiológico brasileiro e a demanda pela institucionalização dessa assistência como direito do cidadão (Santos, 2005; Pádua, Boog, 2006; Oliveira, Radicchi, 2005). Uma das coordenadoras entrevistadas enfatiza justamente a busca do nutricionista pela autonomia na equipe de saúde: “Eu acho que nós ainda não a sedimentamos, a gente busca mais autonomia dentro da equipe de saúde, portanto está revendo conceitos, está sempre se perguntando que papel a gente está ocupando [...]” (C4). Bosi (1996) trata essa questão como um dilema do profissional, concluindo que, aparentemente, o nutricionista ainda não tem clareza quanto ao objeto de sua prática. Nesse sentido, Ypiranga (1990) passou a defender a necessidade do estabelecimento de uma distinção clara entre o objeto de estudo do nutricionista (a ciência da Nutrição) e o objeto de seu trabalho (a alimentação do homem) para que a atuação profissional o identifique frente à sociedade. Os coordenadores entrevistados no presente estudo apontam algumas mudanças necessárias, na graduação, com vistas ao aprimoramento da construção da identidade profissional pelo futuro nutricionista, enfatizando a importância de uma formação ampla, comprometida com os processos de transformação social, que transcenda a formação técnico-profissional. [...] eu gostaria que o nutricionista que nós formamos aqui tivesse uma visão abrangente, e não apenas aplicar... o técnico que aplica a ciência específica, mas de um profissional dentro de um contexto de saúde, de um país em desenvolvimento, com muita diferença social. Estar trabalhando em equipe e nesses ambientes onde vários profissionais... eu acho que você tem que ter essa identidade de ser um elemento da área de saúde [...]. (C8)
Os estudantes investigados consideram sua formação geral consistente, fazendo uma avaliação positiva de seus cursos. Compreendem que devem a estes a maturidade que adquiriram, tanto no que diz respeito à aquisição de conhecimento como à sua concepção sobre o nutricionista brasileiro na atualidade. Segundo os estudantes, a construção da identidade profissional só ficaria parcialmente COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
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prejudicada pela carência de propostas de ensino das áreas emergentes na prática profissional do nutricionista: “Algumas matérias importantíssimas, como esporte e marketing, não foram passadas adequadamente; ou a gente não captou a mensagem direito, né?” (E6). Nesse sentido, Amâncio Filho (2004) e Silva (2000) defendem que a formação profissional seja competente para possibilitar, aos futuros trabalhadores, a participação na sociedade científica e tecnológica não apenas como objetos, mas como sujeitos, resgatando-se, assim, sua dimensão política: a construção da identidade social e a integração plena na cidadania. A graduação em Nutrição, como outros cursos de graduação, vive período de reformas no seu currículo, decorrentes, em parte, das mudanças requeridas pelas novas Diretrizes Curriculares para o Curso de Nutrição (Brasil, 2001). Apesar de a vantagem de fugir da padronização imposta pelos currículos mínimos, os cursos, agora, atravessam um período de adequação, não estando integralmente implantadas as novas propostas. Para Ronzani e Ribeiro (2003), torna-se relevante analisar a reforma curricular não como um processo estático, mas como uma forma de mudança cultural, iniciada por uma reavaliação de práticas e crenças dos formadores de opinião (professores), uma vez que a organização informal é uma importante fonte de influência na formação da identidade do aluno. A compreensão das recomendações implícitas na nova legislação e a habilidade das instituições de ensino em implantá-las resultaram em diferentes velocidades de engajamento, de modo que, neste estudo, encontraram-se cursos em fases diferentes de análise de seus currículos. Alguns dos coordenadores entrevistados relatam a tentativa de implementar currículos integrados e abordagens diferenciadas para aproximar o aluno da prática profissional e, consequentemente, dar início à construção de sua identidade profissional. No entanto, a maioria dos cursos mantém um ensino tradicional, fragmentado e com ênfase nos conteúdos. Nesses casos, a discussão sobre a identidade profissional está concentrada nas disciplinas Ética e/ou Deontologia e Legislação Profissional. “[...] nós temos, na disciplina de ética profissional, no último semestre. Ela tem toda aquela parte de legislação, o que regem os conselhos e as entidades de classe... e entram em contato com as portarias, com as resoluções e tal [...]” (C8). Apesar da defesa, pelos coordenadores, da relevância dessas disciplinas no processo de aprendizagem da temática da identidade profissional, seus conteúdos não foram especialmente valorizados pelos alunos, mais preocupados com a inserção imediata no mercado de trabalho. A aproximação com a identidade profissional tem se dado também por meio da leitura das atribuições, aparecendo implicitamente no conteúdo programático das disciplinas profissionalizantes. “[...] no 3º ano, com as disciplinas específicas, os profissionais já vão colocando a atuação em cada área, pois é mais próximo da atuação [...]” (C5). A concepção disciplinar de ensino tem sido amplamente debatida nas discussões sobre o Ensino Superior. Morin (1996) recomenda que a perda da visão de totalidade e do significado social e humano do conhecimento, gerada pela retaliação da ciência em disciplinas isoladas e autônomas, seja superada pela organização de currículos que avancem para processos interdisciplinares e para a integração com base na complexidade dos fenômenos que constituem os objetos de estudo. Soares e Boog (2003) propõem a interdisciplinaridade na formação das profissões da saúde, tanto na graduação como na pós-graduação. Eles ressaltam a importância das atividades interdisciplinares nos estágios, sob supervisão docente, como possibilidade de vivência de parcerias e do exercício profissional em equipe. Apesar de uma cultura predominantemente disciplinar nos cursos de Nutrição investigados, a maioria dos coordenadores entende que o ensino da identidade profissional deveria ocorrer de modo transversal, em diferentes momentos do curso. Nesse sentido, alguns cursos vêm realizando mudanças em suas grades curriculares, com a introdução de abordagens profissionalizantes desde o primeiro ano da graduação. “Nós colocamos disciplinas de Introdução à Ciência da Nutrição: levamos o aluno a entender, desde o primeiro semestre, a entender o que é o nutricionista, o que é que eles estão buscando se formar”(C3). A introdução de palestras sobre temas emergentes na evolução da ciência da Nutrição e sobre as novas áreas de atuação dos nutricionistas também foi citada pelos coordenadores como estratégia. Eles 116
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BANDUK, M.L.S.; RUIZ-MORENO, L.; BATISTA, N.A.
artigos
expressaram o necessário reconhecimento da importância da disciplina “Técnica e Dietética” na formação do nutricionista. “Nossos encontros de nutricionistas, isso sempre se faz, e procuro trazer para cá professores ou palestrantes que tenham... uma certa... tenham se destacado de uma certa forma dentro da sua área de atuação” (C6). Os estágios foram enfatizados como momentos fundamentais de desenvolvimento para a construção da identidade profissional em todos os cursos estudados. Citou-se a organização de clínicas de atendimento nutricional, voltadas para a comunidade, como exemplo de estratégia de aproximação com a prática. Os estudantes também valorizaram o papel do estágio na formação do “ser nutricionista”, solicitando sua antecipação para momentos iniciais do curso. “Eu acho que um ano de estágio é muito pouco... porque eu gostaria de entrar na faculdade com a mente que eu tenho hoje... eu acho que sou mais crítica agora... depois do estágio. Se começasse antes, abriria mais a mente” (E16). O estágio supervisionado no curso de nutrição obedece, geralmente, a um modelo padronizado, desenvolvido nas três áreas básicas de atuação do nutricionista (administração de serviços, clínica e saúde pública), com inserções diferenciadas nas chamadas áreas emergentes (marketing, controle da qualidade de alimentos, estudo experimental de alimentos, esporte, entre outras). A realização desses estágios, entretanto, vem merecendo discussão há algum tempo, questionando-se, entre outros pontos: organização, programas, atribuições de supervisores, locais, e real aprendizado dos estudantes. Pimenta (1995) comenta que o conceito de prática adotado por estágios curriculares vem se modificando na história da educação, superando a fase de observação e reprodução de modelos, em direção a uma prática mais teorizada e à formação de profissionais. Kuenzer (2003) reforça o papel do docente na supervisão do aluno no estágio, considerando-o como uma atividade pedagógica planejada e supervisionada que permite uma alternância entre a teoria e a prática. Ao discutir os conteúdos priorizados para a abordagem da identidade profissional, os coordenadores estudados não se referiram a conteúdos propriamente ditos, mas apontaram estratégias que, preferencialmente, deveriam ser adotadas. Tratar-se-ia de estratégias de ensino-aprendizagem diversificadas, que favorecessem a aprendizagem significativa. Batista (2004) defende que “A aprendizagem pode, superando as concepções tradicionais, ser entendida como processo de construção, em que o aluno edifica suas relações e intersecções na interação com outros alunos, professores, fóruns de discussão e pesquisadores”(p.63). O perfil do aluno é apontado por coordenadores e estudantes como fator importante no processo de formação do futuro nutricionista. O seu (des)preparo no Ensino Médio é considerado um desafio para a graduação, e a sua falta de amadurecimento seria responsável pelo aproveitamento parcial das mensagens que os cursos ofereceriam sobre o exercício profissional. Nesse sentido, os coordenadores citam sua intervenção pessoal junto aos alunos, ainda que de maneira assistemática. Tanto coordenadores como estudantes valorizaram a participação discente em todos os momentos do curso. “Acho importante que os próprios alunos participem desse processo e, para isso, tem que ter alguma estratégia, que tentem dinâmicas de integração, especialmente com as disciplinas ligadas às humanidades”(C2). Vasconcelos (2002) considera decisivo que os alunos assumam seus papéis de sujeitos e protagonistas de seus processos de formação, superando a tradição da estrutura escolar em reduzi-los a meros receptáculos. A formação dos professores é também mencionada, tanto pelos coordenadores como pelos estudantes, como aspecto fundamental para a melhoria dos cursos, em particular para a abordagem do tema pesquisado. Os entrevistados afirmam que, mais importante do que o conteúdo, é a postura do docente, especialmente o nutricionista, compreendido como um modelo para o aluno. [...] acho que a primeira coisa é a gente trabalhar o formador e o centro de formadores, porque é a partir da nossa visão que a gente vai conseguir ensinar... A gente não pode só achar que o aluno tem uma visão distorcida da nossa profissão, mas precisamos avaliar a visão que a gente tem passado para o aluno. (C4)
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A resistência dos docentes a mudanças, especialmente a um trabalho mais integrado, é apontada pelos coordenadores como uma das principais dificuldades no ensino da Nutrição. Os estudantes citam, também, a existência de docentes não inteirados da prática do nutricionista, pouco inovadores e mantenedores de estratégias de ensino desestimulantes.”A partir do momento que a gente tem professor qualificado para aquela disciplina... nossa!!! Desperta!” (E2). Uma maior aproximação docente-aluno no debate sobre a prática profissional mostra-se como um caminho profícuo para o aprimoramento do processo de construção da identidade profissional dos futuros nutricionistas.
Conclusão Ao reler a história desse profissional, o relato dos últimos estudos sobre a sua formação e os dados encontrados nesta investigação, verifica-se que o conceito de identidade profissional permanece difuso, frequentemente confundido com atribuições e, portanto, sujeito a uma definição tão múltipla quanto as áreas de atuação do nutricionista. A compreensão de que a construção da identidade pode e deve ser realizada a partir da graduação é um passo importante. Fica claro, porém, que a falta de debate e concordância sobre o conteúdo dessa proposta vem adiando sua implementação pelos docentes. Verificou-se que os coordenadores dos cursos consideram a disciplina “Deontologia e Legislação Profissional” um lócus privilegiado para o desenvolvimento da identidade profissional. Essa constatação não é, porém, explicitada pelos alunos, prioritariamente preocupados com a ampliação dos seus conhecimentos práticos e com a compreensão e legitimação social da sua prática, evidenciando um maior interesse na formação técnico-profissional. Um ponto muito enfatizado, tanto pelos coordenadores como pelos alunos, foi o papel da relação docente-aluno, especialmente no caso do professor nutricionista, no processo de ensino-aprendizagem. A incorporação, pelos docentes, de novas técnicas e estratégias que valorizem a interdisciplinaridade, a transversalidade, a dimensão da prática na construção do conhecimento e sua função mediadora na formação da identidade profissional dos futuros nutricionistas, poderá tornar-se eixo direcionador de uma proposta de graduação comprometida com a formação de profissionais mais conscientes e identificados com sua função na sociedade. Esta investigação aponta importantes desafios a serem enfrentados para o aprimoramento do processo de construção da identidade profissional do nutricionista na graduação, especialmente na atualidade, com a emergência de novas áreas para sua atuação. A identidade profissional coletiva só irá se configurar a partir do momento em que se concretize a participação de estudantes, profissionais e docentes no debate dessa questão, incluindo ação conjunta.
Colaboradores Os autores Maria Luiza Sampaio Banduk, Lidia Ruiz Moreno e Nildo Alves Batista participaram, igualmente, de todas as etapas de elaboração do artigo. Referências AMÂNCIO FILHO, A. Dilemas e desafios da formação profissional em saúde. Interface – Comunic., Saude, Educ., v.8, n.15, p.375-80, 2004. ASBRAN – Associação Brasileira de Nutrição. Histórico do nutricionista no Brasil, 1939-1989: coletânea de depoimentos e documentos. São Paulo: Atheneu, 1991.
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BANDUK, M.L.S.; RUIZ-MORENO, L.; BATISTA, N.A. La construcción de la identidad profesional en la graduación del nutricionista. Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.13, n.28, p.111-20, jan./mar. 2009. Este artículo se propone conocer como se trabaja la identidad profesional en la graduación de nutricionistas a partir de declaraciones de coordinadores y alumnos de los cursos de nutrición en el municipio de São Paulo, Brasil. Se ha observado que, aunque de forma asistemática, la identidad profesional es objeto de preocupación, trabajada por medio de discusiones sobre atribuciones específicas del nutricionista y conceptos éticos. Los coordinadores consideran importantes el debate y la investigación sobre el tema. Proponen una mayor profundización, advirtiendo sobre la necesidad de formación docente. Los alumnos se preocupan con la práctica profesional inmediata, en franca diversificación, y con el reconocimiento social. El asunto es relevante verificándose que la identidad del nutricionista revive un proceso de construcción.
Palabras clave: Nutricionista. Identidad profesional. Graduación. Nutrición. Enseñanza superior.
Recebido em 06/11/07. Aprovado em 21/08/08.
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Aspectos subjetivos do morar e trabalhar na mesma comunidade: a realidade vivenciada pelo agente comunitário de saúde Tatiana de Andrade Jardim1 Selma Lancman2
JARDIM, T.A.; LANCMAN, S. Subjective aspects of living and working within the same community: the realities experienced by community healthcare agents. Interface Comunic., Saúde, Educ., v.13, n.28, p.123-35, jan./mar. 2009. Community health agents (CHAs) provide links between communities and the health system within the Family Health Program (FHP) and are the only workers required to live in the community where they work. They maintain direct, continuous and uninterrupted community contact. This paper discusses the process of constructing and maintaining agents’ credibility in relationships with their community and the subjective factors resulting from living and working congruently. The methodology proposed for work psychodynamics was used among CHAs in Pirituba, State of São Paulo. It was concluded that agents experience embarrassing situations during their work, consequent to belonging to the same community within which they play their professional role. The way that the FHP functions and the precarious situation of other levels of the health system are sources of additional suffering. This porosity between living and working in the same community excessively exposes the workers, with high contamination of their non-working time.
O Agente Comunitário de Saúde (ACS) é o elo entre comunidade e sistema de saúde no Programa Saúde da Família (PSF), sendo o único trabalhador que obrigatoriamente reside na comunidade onde trabalha. Seu trabalho é pautado no contato direto, contínuo e ininterrupto com a comunidade. Este artigo discute o processo de construção e manutenção da credibilidade dos agentes nas relações com a comunidade e os fatores subjetivos resultantes da congruência entre morar e trabalhar. Utilizou-se a metodologia proposta em Psicodinâmica do Trabalho, com ACS de Pirituba/SP. Concluiu-se que os agentes vivenciam constrangimentos no trabalho decorrentes de pertencerem à mesma comunidade na qual desempenham seu papel profissional e que o funcionamento do PSF e a precariedade dos demais níveis do sistema de saúde são fonte de sofrimento adicional. Essa porosidade entre trabalhar e morar na mesma comunidade expõe excessivamente os trabalhadores e há elevada contaminação do tempo do não trabalho.
Key words: Community health agent. Workers’ health. Working conditions. Mental health and work. Qualitative research.
Palavras-chave: Agente Comunitário de Saúde. Saúde do trabalhador. Condições de trabalho. Saúde mental e trabalho. Pesquisa qualitativa.
Terapeuta ocupacional. Thymus Consultoria de Saúde. Rua Professora Gioconda Mussolini, 15, Butantã, São Paulo, SP, Brasil. 05.587-120 tati.ajardim@gmail.com 2 Terapeuta ocupacional. Departamento de Fisioterapia, Fonoaudiologia e Terapia Ocupacional, Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo. 1
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ASPECTOS SUBJETIVOS DO MORAR E TRABALHAR ...
Introdução O Agente Comunitário de Saúde e o Programa Saúde da Família O Programa Saúde da Família (PSF) objetiva promover a saúde e garantir melhorias na qualidade de vida dos sujeitos, direcionando-se não somente para a cura e prevenção de doenças, mas, sobretudo, para a valorização e ênfase do papel dos indivíduos no cuidado com sua saúde, de sua família e da comunidade, por meio do desenvolvimento de vínculos de corresponsabilidade (Brasil, 2006). O Agente Comunitário de Saúde (ACS) é o trabalhador de destaque nessa proposta de atenção, e integra a Equipe Saúde da Família trabalhando em área geograficamente delimitada, cujos contornos são determinados pela quantidade de pessoas (ou famílias) que deve atender (parâmetros: 2.500 a 4.500 pessoas por equipe de saúde, e 450 a 750 pessoas por ACS - microárea). O ACS se configura como elo entre comunidade e equipe de saúde, por ser o profissional que está primordialmente realizando as visitas domiciliares. Além disso, é o primeiro contato dos serviços de saúde pública com a comunidade local advindo da iniciativa dos programas de saúde. O ACS trabalha em uma microárea de sua comunidade. Enfatiza-se ‘sua comunidade’, pois além de trabalhar nela, o ACS é sujeito da mesma. Ou seja, deve morar na região e, para além do ato de residir, ele pertence a essa comunidade.
O trabalho do Agente Comunitário de Saúde Segundo o Ministério da Saúde, as atribuições do agente estão relacionadas a um aspecto estruturante: o papel de educador como um agente de mudança naquela comunidade (Brasil, 2006). Spiri (2006), Lunardelo (2004), Nunes et al. (2002), Silva e Dalmaso (2002) e Tomaz (2002) concordam na afirmação de que o ACS é um sujeito que emerge da comunidade e se integra às equipes de saúde, sem bagagem técnica específica, e trabalha por meio do diálogo com a comunidade buscando conscientizar e ser um agente educador. O papel de agente transformador é considerado como algo possível pelo agente, na medida em que realiza as visitas domiciliares, conhece as reais necessidades daquela comunidade e faz a mediação desta com a equipe e o sistema de saúde. Também tem papel de anteparo do sistema de saúde e, por vezes, devido a essa condição, enfrenta resistências da população e dificuldades de relacionamento. O domicílio não é um território público e o seu acesso nem sempre é evidente e fácil; portanto, para realizar seu trabalho, o agente deve estabelecer vínculo e relações de confiança com a comunidade. O agente somente adentra e conhece a intimidade dos usuários com permissão da família, devendo sempre preservar essa privacidade (Lunardelo, 2004). Lunardelo (2004) e Nunes et al. (2002) pontuam que o contato com a população gera intenso envolvimento pessoal e desgaste emocional para o agente. A onipotência e a frustração permeiam a subjetividade de um agente social, que mantém profunda relação de pertença com seu espaço: o espaço em que vive é o mesmo onde atua, as pessoas da sua realidade social são as mesmas para quem dirige as suas ações de cuidado. (Spiri, 2006, p.8)
Outros apontamentos desses autores referem que há ambiguidade de relações, sentimentos e emoções vivenciadas pelo agente, fruto dessa relação atípica de trabalho. Geram, no ACS, sentimentos ambíguos, de prazer e sofrimento: o constante contato com a população; entrada em seus domicílios e vida privada; envolvimento; conhecimento das demandas e impossibilidades de ação, quando constata os limites do setor de saúde. A relação de igual que o agente comunitário estabelece com a comunidade, com uma proximidade física, intelectual e social das famílias e dos indivíduos, repercute em seu trabalho, com a criação de vínculos, a compreensão do ser e o entendimento da 124
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Os termos usuário e cliente referem-se à população adscrita àquele determinado agente. 3
artigos
complexidade do meio onde vivem estas pessoas. Nessa aproximação e envolvimento do ACS com as famílias, há transposição dos problemas e das misérias humanas. Eles se envolvem, se vêem naquela ocorrência e acabam sofrendo com isso. (Lunardelo, 2004, p.107)
As consequências, na vida do agente, decorrentes do fato de morar no próprio bairro, na mesma microárea, frequentar as residências dos usuários3 e ser facilmente encontrado é um campo a ser questionado e mais explorado. A entrada no mundo familiar traz inevitavelmente consigo a intimidade das pessoas, o seu mundo privado, e, com ele, novas construções relacionais permeadas de significados e de sentimentos. [...] Pode-se pensar que esse modelo relacional condiciona, então, a excessiva valorização dos aspectos afetivos da relação desenvolvida pelos ACS com os moradores, bem como a ênfase que é colocada pelos usuários do PSF em conteúdos ligados à vida pessoal dos agentes, chegando por vezes ao extremo de exercerem um controle social sobre as suas vidas privadas. (Nunes et al., 2002, p.1644-5)
O trabalho do agente traz diversas novidades à atenção primária em saúde e aos próprios trabalhadores, destacando-se o fato da obrigatoriedade de morarem e trabalharem na mesma comunidade. Esta dupla inserção na comunidade os leva a terem duplo papel: o de ser simultaneamente agente e sujeito. Tal relação cria uma porosidade entre o trabalhar e o viver na comunidade, ou seja, o agente não possui o distanciamento entre o ato de trabalhar e de morar, visto que acontecem nos mesmos espaços físicos e na relação com a mesma comunidade. Assim, a forma como o trabalho está organizado pode ser uma fonte de sofrimento psíquico a esse trabalhador, podendo esse sofrimento se tornar patogênico.
A centralidade do trabalho à luz da Psicodinâmica do Trabalho Autores como Dejours (2004), Lancman e Jardim (2004) e Molinier (2004) estudam a centralidade do trabalho enquanto fator de construção psíquica, considerando sua importância nas relações indivíduo-sociedade e na constituição do próprio sujeito. O trabalho é mais do que o ato de trabalhar, vender força de trabalho em troca de remuneração. O trabalho assume papel central na constituição identitária e possui implicação direta nas diversas formas de inserção social dos indivíduos. O trabalho pode ser visto como fundamental na constituição de redes de relações sociais, pertinência a grupos, e trocas afetivas e econômicas, bases da vida cotidiana; e também possui função psíquica, por ser um dos alicerces da constituição do sujeito e sua rede de significados. A constituição da identidade é compreendida como um processo que se desenvolve ao longo da vida do indivíduo e que está vinculada à noção de alteridade. É a partir do ‘olhar do outro’ que nos constituímos como sujeitos; é na relação com o outro que nos reconhecemos, num processo de busca de semelhanças e diferenças. São as relações cotidianas que permitem a construção da identidade individual e social e é, a partir de trocas materiais e afetivas, que constitui sua singularidade, em meio a diferenças (Lancman, Jardim, 2004). A Psicodinâmica do Trabalho (PDT) entende que, na vida adulta, o espaço do trabalho será privilegiado para trocas, aparecendo como mediador central da construção, COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.13, n.28, p.123-35, jan./mar. 2009
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desenvolvimento e complementação dessa identidade individual. Assim, o trabalho tem fundamental importância para a constituição da vida psíquica (Dejours, 2004). O trabalho permite, também, o confronto entre mundo externo e interno do trabalhador. O mundo objetivo, com suas lógicas, desafios, regras e valores entrará em conflito com a singularidade do trabalhador, fazendo com que o confronto entre relações e organizações do trabalho versus mundo interno e subjetivo do trabalhador seja gerador de sofrimento psíquico. Nesse sentido, Dejours (2004) e Molinier (2004) definem que identidade é uma espécie de armadura psíquica que protege o indivíduo dos constrangimentos da organização, resultado de um trabalho de unificação psicológica que produz um sentimento de estabilidade, continuidade e integração do indivíduo. Mas essa armadura será sempre reconfirmada e reconfigurada pelo olhar do outro, na dialética eu e o outro. Assim, a produção da saúde é, nesse sentido, intersubjetiva. Para Dejours (2004), a construção identitária no trabalho está ainda relacionada a dois processos de reconhecimento: julgamento estético e de utilidade. Este último é realizado pelos níveis hierárquicos aos quais o trabalhador está submetido, incluindo clientes. É ligado a critérios de resolutividade e eficácia. Já o julgamento estético é aquele realizado pelos pares, que conhecem tanto as dificuldades quanto as soluções que os trabalhadores vivenciam para alcançar os resultados estipulados pela organização. Esse julgamento permite dar visibilidade à engenhosidade dos trabalhadores - fruto da inteligência desenvolvida no trabalho, seus esforços para fazer o trabalho acontecer, apesar dos constrangimentos, e, por vezes, dos fracassos vivenciados. Se o mundo do trabalho é gerador de sofrimento, na medida em que confronta as pessoas com desafios externos, também é a oportunidade central de crescimento e desenvolvimento psicossocial do adulto. O trabalho pode levar ao sofrimento e adoecimento ou se constituir numa fonte de prazer e desenvolvimento humano do indivíduo. Assim, fica evidente que o trabalho e as relações que nele se originam nunca são um espaço de neutralidade subjetiva ou social. Ao se configurar como elemento central na construção identitária, o trabalho permeia e influencia outras esferas da vida do sujeito, mesclando o tempo da jornada de trabalho propriamente dita com o tempo do não trabalho – o que Dejours (2004) denomina contaminação do tempo do não trabalho. Ao se considerar a obrigatoriedade da congruência entre local de trabalho e moradia do agente, atrelada às dificuldades que o trabalhador encontra para realizar seu trabalho a contento, devido a limitações do funcionamento do sistema de saúde, pode-se questionar tal obrigatoriedade como fonte adicional de sofrimento psíquico, decorrente da indiferenciação entre o ato de morar e o de trabalhar no cotidiano e nas relações sociais do ACS. Acrescenta-se ao questionamento acima, outro aspecto: o envolvimento afetivo e ininterrupto que esse vínculo com a comunidade traz para o agente em relação ao seu cliente, acrescido do testemunho das consequências que a falta de resolução das situações de saúde dos usuários provocam neles, agentes. Assim, objetivamos, com este artigo, dar visibilidade aos aspectos subjetivos do trabalho dos agentes, no que tange ao morar e trabalhar na mesma comunidade, contribuindo para o conhecimento dessa realidade profissional; e verificar como essa organização do trabalho impacta na saúde mental desses trabalhadores. É nosso objetivo, ainda, compreender a engenhosidade e inteligência desenvolvidas no trabalho para fazê-lo acontecer e, também, as estratégias adotadas por esses trabalhadores para, de um lado, viabilizar o trabalho, e, de outro, diminuir o sofrimento gerado pela peculiaridade da relação trabalhar e morar no mesmo território.
Material e método de pesquisa Este artigo é parte da pesquisa ‘Avaliação do Programa de Expansão e Consolidação da Saúde da Família - PROESF - para desenvolvimento de estudos avaliativos 3 - SUDESTE’, decorrente de solicitação do Ministério da Saúde (proposta e resultados acessíveis em Cedec, 2006). Objetivou-se compreender os fatores que compõem a complexidade da atenção básica no Programa Saúde da Família/Região Sudeste. 126
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JARDIM, T.A.; LANCMAN, S.
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Pesquisadores da Universidade de São Paulo investigaram a hipótese de que o processo de trabalho do PSF apresenta singularidades e inovações em relação ao trabalho usualmente desenvolvido na atenção básica, instaurando uma complexidade que interfere diretamente na qualidade da implantação do Programa. Para tanto, foram constituídas três equipes de pesquisa, cada qual utilizou uma abordagem: Ação em Psicodinâmica do Trabalho, Análise da Organização do Trabalho e Ação Ergonômica do Trabalho. Entre os achados oriundos da PDT, compõem este artigo: os resultados referentes aos aspectos morar e trabalhar na mesma comunidade, e impossibilidade de resolução dos problemas que os agentes vivenciam no seu trabalho. Dada a complexidade do objeto e dos objetivos da PDT, podemos dizer que esta se inscreve no campo da investigação qualitativa e, em especial, da pesquisa-ação. Essas buscam apreender a percepção, compreensão e participação dos sujeitos diante dos problemas investigados, e consideram, também, a importância dos aspectos relacionais presentes no fenômeno. A PDT preconiza a compreensão dos aspectos subjetivos do trabalho a partir de grupos de reflexão e da criação de um espaço público de discussão, entendidos como espaço privilegiado para a transformação de vivências individuais em reflexões coletivas. O método define-se com uma clínica do trabalho, onde, por meio da escuta coletiva dos trabalhadores, busca-se elucidar aspectos menos visíveis do trabalho e, ainda, favorecer a reapropriação, por parte dos trabalhadores, da engenhosidade e inteligências desenvolvidas para fazer o trabalho acontecer a despeito dos constrangimentos vivenciados. Entre os objetivos de uma ação em PDT também estão: compreensão das relações sofrimento-prazer no trabalho, e estratégias defensivas individuais e coletivas desenvolvidas frente ao sofrimento vivenciado no trabalho, de modo que seja um fator de desenvolvimento identitário, de realização de si e de promoção de saúde. A reapropriação é fundamental para desencadear, entre os trabalhadores, uma ação transformadora do seu fazer e das relações que estabelecem com aquilo que produzem. As etapas constitutivas do método da PDT são: pré-pesquisa; reconfiguração da demanda; apresentação do projeto aos trabalhadores e identificação de voluntários; grupos de reflexão; restituição e validação do relatório preliminar redigido pelos pesquisadores. Sequencialmente, o relatório final, segundo acordo prévio, torna-se material público. A pesquisa foi realizada na sub-região administrativa de Pirituba, município de São Paulo, e a escolha deu-se a partir de dados sociodemográficos e de alguns dos resultados do PSF, tais como: tempo de implantação; presença de equipes completas, e diversidade de perfil epidemiológico. Para a realização das etapas previstas no método, constituiu-se um grupo gestor, composto por pesquisadores, coordenadores e gerentes das unidades saúde da família Jardim Cidade Pirituba, Moinho Velho e Santo Elias. Em seguida, fez-se a apresentação da proposta para o coletivo de trabalhadores, sendo acordado o caráter voluntário da participação e o sigilo. Este consiste no acordo coletivo de que os assuntos tratados no grupo não seriam conversados em outros locais de trabalho, sequer com outros colegas, garantindo-lhes a segurança de que tais assuntos não seriam públicos antes da validação final do relatório, nem identificariam os participantes. Dada a impossibilidade de todos participarem, os trabalhadores definiram os participantes, resguardando o critério de voluntariado e de representatividade de todas as Unidades envolvidas. O grupo foi realizado entre maio e agosto de 2005, e composto de 16 agentes, de ambos os sexos, sem limite de idade ou tempo de trabalho no PSF, e três pesquisadores nas funções de coordenação e registro das sessões. Todos os participantes assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido, previsto pela comissão de ética da FMUSP. A heterogeneidade do grupo foi obtida com a participação de, pelo menos, um membro de cada equipe de saúde da família, representando o coletivo de trabalhadores dessa região. O processo grupal proposto pela PDT não segue um roteiro preestabelecido, e a condução dos pesquisadores destina-se a: organizar as discussões, promover a participação de todos, solicitar esclarecimentos, pontuar aspectos relevantes, e registrar o material clínico que será restituído aos trabalhadores posteriormente. O processo grupal é iniciado, metodologicamente, pela reconfiguração da demanda: apresentação dos objetivos iniciais que trazem os pesquisadores a campo e busca de 127
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compreender e rever esses objetivos a partir da demanda dos trabalhadores, e o que os mobilizava como assuntos a serem discutidos. Ao término dos encontros, os pesquisadores produziram o relatório e houve a sessão de validação pelo grupo, com duração de quatro horas. Os encontros aconteceram durante a jornada de trabalho e foram, inicialmente, acordados com os participantes e chefias, inclusive o período para elaboração do relatório e a sessão de validação. Cada participante recebeu um documento contendo o relatório final do grupo e uma breve introdução contextualizando a pesquisa e o método desenvolvido.
Resultados Processo de construção da credibilidade e as relações de trabalho: ACS e usuário A credibilidade no trabalho que desenvolve o ACS é um aspecto fundamental para a concretização do mesmo, sendo um processo dinâmico e cotidiano de construção e reconstrução. Sem essa credibilidade não há confiança por parte da comunidade, e o trabalho do agente fica impossibilitado de acontecer. Tal credibilidade tem o sentido de criar relações de confiança com os usuários para que recebam os agentes, abram suas casas, contem seus problemas pessoais, e que as demandas sejam solucionadas ou encaminhadas, assegurando a continuidade da relação saudável agente-comunidade. Os ACS referem que o primeiro contato com a comunidade não foi fácil. Vivenciaram, diversas vezes, grande resistência ao contato direto, ao entrarem nas casas.”Os ACS não sabem o que irão encontrar, pois cada casa é uma surpresa; precisam ser recebidos de fato, senão não há acesso à família, não há trabalho. [...] a população nem sempre abre a porta, é necessário criar uma estratégia mútua de confiança”4; “Foi assustador, o vizinho não abria o portão, fingia que não estava em casa. A maioria não abria a porta por falta de confiança. Foi de chorar! Com o desenvolvimento do trabalho ficou mais fácil!”. Referem que com a aproximação e constância nas visitas aprenderam a construir a credibilidade necessária para realizar o trabalho. Relatam, ainda, a surpresa que esse contato trouxe, pois, mesmo morando na comunidade, não conheciam a realidade de muitas famílias, apesar da relação de proximidade que tinham como vizinhos. Esses vizinhos, por vezes, apresentam maior resistência à entrada dos agentes, pois “nem sempre querem que você saiba o que se passa”, sobretudo quando estão em situações desfavoráveis financeiramente. “Estão confiando mais na gente. Bom dia, sou seu ACS! - falo sempre para lembrarem. A gente criou um jeitinho de cada um, pra sempre entrar na casa”; “Eu moro aqui o tempo todo e não tinha noção do que era minha comunidade”. Uma das formas de conquistarem a credibilidade é assegurar aos usuários que as informações obtidas não serão utilizadas para fins alheios ao do trabalho do PSF, sequer serão divulgadas para outros moradores: “Muitos respondem fumando maconha. A gente não dedura ninguém. Não chama a polícia”. Ao se relacionarem com a comunidade, referem entrar em contato com grande diversidade de situações. O contato com as famílias revela a eles situações precárias de ordem financeira e emocional, e uma questão evidencia-se aos agentes: Como negociar e criar estratégias para realizar o seu trabalho e, ao mesmo tempo, garantir a sobrevivência física e emocional necessária para encarar situações onde a pobreza e a violência são prevalentes? “Vai conversar com o 128
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4 As frases dos trabalhadores foram retiradas das sessões grupais e do relatório final validado.
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paciente e absorve tudo de ruim e tem que guardar tudo. Fica acumulado, não pode contar o caso para os outros, fica com a carga. Para separar o problema a gente deveria ter apoio psicológico”; “A gente vai definhando junto com eles (usuários)”; “Como a gente fica doente de trabalhar com o povo doente!”.
Credibilidade versus invasão da privacidade dos moradores da comunidade Ao morar na comunidade e adentrar a privacidade de seus vizinhos, os ACS acabam, mesmo contra sua vontade, gerando uma via de mão dupla aos olhos dos usuários. Ou seja, o fato de morarem no mesmo bairro, entrarem nas casas e conhecerem não só as demandas de saúde, mas também a realidade socioeconômica, as questões familiares, de relacionamento interpessoal (aspectos íntimos), promove o estabelecimento de relações peculiares com essas pessoas. Sua vida social acontece nos mesmos espaços que a dos seus clientes, e tudo o que fazem torna-se de conhecimento de todos. “Você não pode a ir a lugar algum, vem bater na porta da sua casa, na feira, perde a privacidade. É como artista” (ACS fala rindo da própria colocação. O grupo todo ri). Conquistar a credibilidade da comunidade acaba sendo entendido, por muitos usuários, como sinônimo de coleguismo, de amizade, o que faz com que se sintam no direito de compartilhar da privacidade do ACS, sem considerar tal fato uma invasão. O ACS é “par do povo”. “A gente faz parte do povo”. “[Tenho] medo do usuário descobrir onde moro porque no próximo problema batem na sua porta”. O não reconhecimento social do papel profissional que os agentes ocupam se reflete na privacidade dos usuários do serviço de saúde, pois muitos moradores os procuram para saber da vida alheia, como se fossem ‘fofoqueira de plantão’ em tempo integral. ”Um queria saber por que o outro tá passando no posto. Tem as fofoqueiras de plantão no portão perguntando ou querendo falar de outros moradores”; “Vizinho que quer saber o que tem na casa do outro. Como ela está com o marido? Eu saio da casa dela e minha memória apaga”. Outro aspecto relacionado com a exposição que vivenciam diz respeito à violência local. Referem sentir medo de alguns usuários saberem onde moram e, pensando em segurança, não solicitam, em alguns casos, a intervenção da Polícia ou do Conselho Tutelar. “A gente não devia morar na comunidade. Tranco meu filho, me tranco com medo”; “O povo da favela quer matar o ACS porque o paciente morreu esperando a consulta. Imaginou isso, tenho filho e estuda na mesma escola que os filhos deles!”; “Ligam na minha casa e falo que não estou. Já fiz curso de telefonista, hoje é útil”.
Privacidade do ACS e sua família Referem que o fato de residirem na microárea tem gerado constrangimentos a si e seus familiares, pois os usuários os assediam em locais públicos ou em suas residências em qualquer horário, e sequer respeitam o fato de estarem acompanhados de seus familiares: “Somos agentes 24 horas. Não tem folga, não tem final de semana, em todos os momentos na comunidade perguntam tudo, eles não separam”. Quantas horas se trabalha por dia? Onde inicia e termina a jornada? É possível fechar a porta de casa e não atender aos vizinhos? “Ligam-me nas férias pra saber de prontuário. Você não tem dinheiro pra viajar nas férias e as colegas trazem guias, paciente vem pedir vaga”; “Saio de casa cumprimentando todo mundo, nossos filhos ficam mal-humorados, não tenho privacidade; (os filhos reclamam:) minha mãe não é mais minha, é mãe de todo mundo”; “A mulher me tirou do sério. Veio no final de semana na minha casa e falou: Você não tem boa vontade! Vai deixar eu morrer que nem a Maria lá de cima! Não escapa disso, por mais que ponha limites”. Além disso, devido ao fato de seus familiares também pertencerem àquela comunidade, por vezes, passam constrangimentos quando são acusados de saber e divulgar informações que os usuários contaram ao ACS. Mesmo que a informação tenha ‘vazado’ de outra forma, o ACS e seus familiares são, em muitos casos, os primeiros a serem acusados. “Você mora aqui; o médico vem aqui de vez em quando e COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.13, n.28, p.123-35, jan./mar. 2009
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daí? Se vazar o problema, ninguém vai sofrer nada com isso, só você que mora aqui”; “O conselho tutelar vem e vai embora, eu estou lá - os vizinhos culparam a agente de ter denunciado a família”. Essa situação de exposição, sobre a qual não têm controle, lhes gera sentimentos de medo. Referem que buscam estratégias de proteção para minimizar a invasão à sua privacidade, mas essas nem sempre funcionam: “Muitas pessoas acham natural procurar a gente sempre que precisam de algo”; “Faço questão de trabalhar com uniforme, fora do horário eu mostro que estou sem o uniforme”; “Eu entro no portão de casa olhando pros lados pra ver se tem paciente pra ver onde eu moro”. Outra questão diz respeito à privacidade de sua família. Quando têm algum problema de saúde e necessitam de atendimento médico são controlados pela comunidade. Os agentes chateiam-se de não poderem usufruir do serviço de saúde para si e sua família sem ouvir reclamações de que estão sendo privilegiados. “Todo mundo fica doente, mas a família do agente não tem direito a atendimento. Vai colocar de novo alguém da sua casa! É minha sogra depois das cinco horas, antes ela é uma usuária como outro qualquer”; “O ACS continua sendo povo, pior que povo, pois o povo consegue atendimento e nós não”.
Relação com a comunidade e com o serviço de saúde como morador da região No cotidiano de trabalho, a relação do agente com a comunidade está permeada pelo processo de construção da credibilidade, portanto, tiveram de construir novas relações sociais: como sujeitos pertencentes a essa comunidade e como trabalhadores do serviço de saúde. Referem que passar de usuário a ACS foi um processo difícil, e que, agora, convivem com uma grande questão: como se relacionar como ACS? E como morador da comunidade, colega, amigo? “Você fica mal educado. Eu estava no supermercado e o paciente vem perguntar do exame, fiquei grosseira, não era grosseira”. Ao residir na mesma comunidade na qual trabalha, o agente estabelece relações diversas: relações profissionais e pessoais, relações de agente de saúde e de vizinho, relações de quem orienta quanto aos cuidados com a saúde, e de quem frequenta os mesmos espaços sociais que os usuários. “Fui numa festa e tinha uma paciente diabética se enchendo de bolo! Na segunda-feira ela foi no posto e perguntei se o bolo estava bom [...]”. Referem que as relações ficam confusas no contato cotidiano com a comunidade. “Não quero saber de sua vida particular, mas (pausa) eu quero e preciso saber de sua vida particular”. “Uma ACS era testemunha de Jeová e jogaram água quente nela, depois foi fazer visita como ACS na mesma família”; “Como encontrar com essas pessoas em outros momentos fora do trabalho e reagir normalmente sabendo que ela está doente e necessitando de exame ou tratamento?”. Um último aspecto a ser destacado é que o processo de construção da credibilidade é dinâmico e precisa ser constantemente reassegurado (Lancman et al., 2007). A manutenção desta credibilidade está diretamente associada à resolução das problemáticas demandadas pelos usuários, o que, no entanto, é dificultado por aspectos relacionados à estruturação do serviço e à inoperância do sistema de saúde em atender as necessidades da comunidade. A unidade de saúde não consegue atender toda a demanda existente, assim, faltam consultas médicas, exames, medicamentos. Além disso, existe a dificuldade em conseguir consultas com especialistas, exames de alta complexidade, entre outros. Ou seja, o sistema de referência e contrarreferência, que deveria dar suporte às ações do PSF, não desempenha tal papel de maneira satisfatória. “O que você tá fazendo aqui não serve pra nada. Conseguiu? Arrumou uma vaga? Isto é estressante e humilhante!”; “A gente marca consulta e tem que priorizar quem vai ser atendido. Como explicar isso pro paciente? Não tem como você ver o que é mais urgente”. Referem que a necessidade de, por vezes, precisarem mentir, ou darem um jeitinho para manterem a credibilidade da comunidade, gera sofrimento, por saberem antecipadamente que parte das demandas e daquilo que prometem não será atendido: “A gente não consegue cumprir o que promete, por isso mentimos”. “Fomos avisar a comunidade que o posto vai atender e não atende. Eu tenho que falar para as pessoas que tem isso ou aquilo e a gente tem que rir dessa palhaçada!”. Como estabelecer uma relação de confiança quando sabem que o serviço que estão oferecendo ao cidadão é precário ou não está disponível? Como prometer o mesmo serviço que já não conseguiram cumprir? 130
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A falta de resolutividade provoca um sofrimento adicional aos agentes devido ao contato próximo, ininterrupto, e ao vínculo que estabelecem com a comunidade, o que os faz sentirem-se responsáveis pelos seus clientes, além de testemunharem e partilharem as consequências dessa inoperância no agravo da saúde e sofrimento dos familiares. Frases como ‘eu matei meu paciente’ surgiram diversas vezes nas sessões grupais.
Discussão e conclusões Segundo documentos do Ministério da Saúde, no trabalho prescrito, a atribuição principal do ACS é ser um agente educador, com o objetivo de transmitir informações que melhorem a capacidade de enfrentamento dos problemas de saúde por parte da população. Contudo, no cotidiano, os agentes tornam-se depositários dos anseios da comunidade, por serem os representantes do sistema de saúde com mais frequente e íntimo contato com os usuários. O trabalho real efetiva seu papel de agente educador, ao considerá-lo importante para desenvolver a capacidade de a população cuidar de sua saúde, porém não o suficiente para que possa atender às demandas da comunidade. A defasagem e as contradições entre trabalho real e prescrito têm sido apontadas, em diversos estudos de PDT, como fator que contribui para a invisibilidade do trabalho realizado, e termina sendo um dificultador nos processos de reconhecimento e, consequentemente, de construção identitária (Dejours, 2004). Na medida em que levar informação, ampliar o conhecimento da população e sua capacidade de enfrentamento dos problemas de saúde não é suficiente, o agente se vê imbricado em um trabalho que vai além de suas competências e possibilidades de resolução. Como seu trabalho não atende às demandas da população, esta não reconhece a qualidade das ações do ACS, nem os esforços que faz para realizá-las, independentemente dos resultados alcançados, e exige dele uma atuação efetiva, resolutiva. Essa cobrança é fortalecida pelo constante contato que os moradores da comunidade mantêm com o agente, ao frequentarem os mesmos espaços sociais e terem acesso à sua casa, e ao considerarem ele vizinho, antes mesmo de ACS. Os resultados referentes à construção da credibilidade são corroborados com a literatura científica sobre ACS, no que se refere à importância do contato cotidiano, das visitas domiciliares e da conversa com a população, para desenvolver o trabalho e o vínculo com os usuários (Spiri, 2006; Lunardelo, 2004; Nunes et al., 2002). No entanto, ressaltam que o contato é construído no trabalho diário, na aproximação e na constante busca de estabelecer e manter a credibilidade perante a comunidade, em um processo que acontece gradualmente. Não é garantido a priori, mas, precisa ser conquistado, desenvolvido no cotidiano. Portanto, não é determinado pelo fato de morar ou não na própria região, e, segundo os dados obtidos, muitas vezes, pode até mesmo ser dificultado pela convivência. Tal argumentação torna-se importante quando se pensa a obrigatoriedade que é imposta a esse profissional. Esses dados contrapõem-se às idéias defendidas por Lunardelo (2004) quanto à proximidade física como geradora de vínculos com a comunidade e facilitadora no trabalho; e condizem quanto ao sofrimento do agente, decorrente da relação de igual que estabelece com a comunidade. Estratégias adotadas pelo ACS, na realização do seu trabalho, objetivam, muitas vezes, encobrir falhas do sistema de saúde, situação que provoca conflitos nas relações com a comunidade. Como o agente depende da dinâmica das relações estabelecidas, mentir e constantemente ter de reafirmar a mentira, para, assim, adentrar a casa e a vida das pessoas, gera sofrimento durante o trabalho. Por morar na região, a mentira atinge a si próprio, na medida em que depende dessa mesma rede de serviços que é insuficiente para atender às suas necessidades e às de sua família. A falta de cadência entre a demanda da população e a disponibilidade dos serviços, ou seja, o insuficiente suporte do sistema de saúde e a impossibilidade de que o usuário tenha acesso a outros níveis de atenção dificultam as relações de confiança, ocasionando: conflitos pessoais, instabilidade nas relações de trabalho, prejuízos à produção, à qualidade do trabalho e ao atendimento prestado. O sofrimento decorre, então, da constatação da impossibilidade de solucionar as questões apresentadas e do contato constante e prolongado com essa população. Reflete a frustração vivenciada
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pelo agente devido: à dedicação que dispensa ao trabalho, à disponibilização do tempo, da energia física e psíquica, e à impossibilidade de resolução dos problemas. A falta de resolutividade, aliada à exposição excessiva dos ACS, é expressa em desqualificação do trabalho, e provoca consequências na operacionalização desse trabalho – que depende de relações de confiança – e na saúde mental desses agentes. A inivisibilidade dos esforços realizados e a falta de reconhecimento dos usuários enfraquecem as defesas psíquicas dos agentes e a possibilidade de transformação das relações de sofrimento em prazer por meio do fortalecimento identitário e da realização de si, comprometendo, em última instância, o sentido do trabalho realizado. As consequências desse ciclo (falta de reconhecimento – enfraquecimento identitário – e perda do sentido do trabalho) têm sido apontadas em diversos estudos de PDT como fonte de sofrimento patogênico e desestruturação das relações de trabalho (Dejours, 2004). Destacamos que, por ser um trabalho novo, a identidade profissional dos ACS ainda está em construção, agudizando a influência do reconhecimento dos esforços realizados no processo de construção identitária. Destaca-se que o reconhecimento social no campo do trabalho ocorre de forma indireta em relação à atividade. Portanto, “o que o sujeito procura fazer reconhecido é o seu fazer e não o seu ser [...]. Somente depois de ter reconhecida a qualidade do meu trabalho é que posso, posteriormente, repatriar esse reconhecimento para o registro da identidade” (Dejours, 1999, p.21). É relevante o sofrimento gerado pelas falhas do sistema, porém não acreditamos ser essa a única matriz do sofrimento relatado pelo agente, e sim um agravante. O fato de morar na região, poder ser interpelado a qualquer hora do dia e da noite, na rua, no supermercado, na feira, enfim, nos espaços sociais que compartilha com a comunidade, expõe o agente, constantemente, ao assédio das pessoas. Portanto, o sofrimento que ACS relata é agravado: pelo fato de residir na comunidade, pelo aumento do contato, da exposição e da perenidade que isso gera, e pela impossibilidade de se distanciar. O espaço de trabalho que é público se confunde com o espaço do viver e conviver, que deveria ser privado, mas que, nesse caso, também se torna público. Essa hiperexposição e sobreposição da vida privada e da vida pública terminam criando situações de extrema porosidade, e sendo um fator de sofrimento psíquico adicional. Os relatos dos agentes evidenciam que o fato de morarem na comunidade não lhes garantiu acesso às casas. Ao adentrarem a intimidade dos usuários, que são também seus vizinhos, acabam expondo sua vida particular, na medida em que moram na região e, portanto, também têm o título de ‘vizinhos’. Da mesma forma que adentram a intimidade das pessoas, ficam expostos na sua própria vida privada. A exposição não somente é de sua vida particular, como também de sua família, residência, hábitos cotidianos e intimidade. Segundo Arendt (2005), o termo público denota dois fenômenos que estão intimamente correlacionados. O primeiro refere que tudo o que vem a público, ou torna-se público, pode ser visto e ouvido por todos, tem a maior divulgação possível e constitui-se na realidade. O segundo fenômeno é que o termo público significa o próprio mundo, na medida em que é comum a todos nós e diferente do lugar que nos cabe dentro dele. A esfera pública refere-se ao mundo comum, a algo ou aquilo que pode ser visto sob diversos aspectos e perspectivas, e onde nada pode ser ocultado. Assim, o aspecto negativo do que é público é a privação da liberdade. Portanto, podemos concluir que morar e trabalhar na mesma comunidade compromete as relações público-privadas e a liberdade desses trabalhadores. Nunes et al. (2002), ao estabelecerem a valorização dos aspectos afetivos, na relação do agente com a comunidade, como fator responsável pela exposição da intimidade de ambos, não consideram, em seu estudo, o fator ‘morar na comunidade’. Os resultados encontrados mostram que esse fator promove a valorização dos aspectos afetivos, na medida em que, para a população, o agente compartilha daquela mesma realidade e encontra-se em tempo integral acessível à comunidade, mesmo não sendo o termo acessível sinônimo de disponível. Essa exposição corrobora com a discussão acerca do sofrimento no trabalho. O trabalho atinge outros espaços da vida cotidiana do sujeito e, portanto, deve ser visto como um “continuum que se estende para além de seu espaço restrito e influencia outras esferas da vida” (Lancman, Uchida, 2003, p.85). A Psicodinâmica do Trabalho tem demonstrado que a exposição psíquica, quando excessiva, tal como vivenciada pelos ACS, provoca sofrimentos no trabalho, que 132
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passam a permear todas as demais esferas da sua vida, contaminando as relações pessoais, afetivas e familiares (Dejours, 2004). Os ACS aprenderam a desenvolver estratégias (para fazer o trabalho acontecer, se proteger da exposição excessiva e tornar o sofrimento vivenciado suportável) que refletem uma engenhosidade desse trabalhador, um jeito particular, individual e coletivamente construído, para permitir o cumprimento das atividades. Essa inteligência, denominada, pela PDT, de inteligência da prática, antecede a consciência que os trabalhadores têm dela e garante uma engenhosidade da ação e do trabalhar (Dejours, 2004). Resulta e é desenvolvida no fazer, nas ações cotidianas, dentre as quais destacamos: trabalhar de uniforme; tentar delimitar seu horário de atuação; entrar ou sair às escondidas de casa para não ser identificado; disfarçar a voz ao telefone; buscar distanciar a vida pessoal e familiar da vida no trabalho, tentando impedir que o trabalho concretamente invada o tempo do não trabalho. Procuram, ainda, criar artifícios para ajudarem a comunidade e suprirem as falhas do sistema de saúde: usam de relações pessoais para anteciparem ou viabilizarem atendimentos, organizam coletas de dinheiro, roupas e medicamentos, entre outras. Algumas dessas estratégias são exemplos das estratégias defensivas, definidas por Dejours (2004) como estratégias necessárias, desenvolvidas pelos trabalhadores para se protegerem do sofrimento excessivo vivenciado. O maior envolvimento emocional previsto para as equipes do PSF, pelos gestores que idealizaram esse Programa, objetiva humanizar o trabalho e diminuir a distância entre serviço de saúde e comunidade, sendo, portanto, um aspecto positivo e inovador. No entanto, para os ACS, ainda que desenvolvam estratégias para amenizar o sofrimento gerado pelo contato intenso e prolongado, o fato de morarem na comunidade agudiza essa imersão, evidenciando a contaminação do tempo do não trabalho, tal como descrita por Dejours (2004). É necessário salientar que o trabalho dos ACS não é composto somente por decepções e frustrações. Muitas vezes, conseguem resolver e ajudar as famílias com seu trabalho. Logo, a mesma fonte que gera o sofrimento também é a de prazer e reconhecimento da população. O ACS representa, também, a via de acesso ao médico que salva vidas e ajuda a minorar as doenças que as pessoas sofrem. Sua função de elo não tem só o sentido negativo. É, ao mesmo tempo, positivo, o que confere aos agentes status junto à comunidade em que vivem. A discussão e partilha das dúvidas e anseios com pares permite a construção de consensos, de soluções partilhadas e o estabelecimento de relações de cooperação. Partilhar o sofrimento é também uma possibilidade de fortalecer os mecanismos defensivos, pois permite aos trabalhadores minimizarem o sofrimento vivenciado, criarem redes de apoio e estabelecerem acordos éticos que, por vezes, os auxiliam a encontrar soluções e diminuir a solidão diante de problemas que não podem resolver. Atinge-se, assim, outra dimensão do trabalho, que parte do individual para o coletivo, e viabiliza-se a construção de novos acordos e regras que diminuem a solidão e contribuem positivamente na realização do trabalho real. Dessa forma, constituem-se aspectos do trabalhar do ACS e se obtem mais informações sobre esse trabalho, que podem se transformar em conhecimento e contribuição à saúde dos trabalhadores ao serem incorporadas no processo de reformulação do trabalho prescrito. Ao refletirmos sobre o material analisado, consideramos que, apesar de se referir a um estudo de caso, acreditamos que os resultados obtidos são generalizáveis a outros agentes comunitários de saúde, por ser o aspecto ‘morar na comunidade’ algo comum a todos os trabalhadores dessa profissão. O presente estudo contribui, ainda, com o avanço da pesquisa em Psicodinâmica do Trabalho, pela especificidade da situação estudada. A porosidade e a exposição excessiva entre trabalhadores e usuários, apesar de ocorrerem em outros tipos de trabalho, aqui são evidenciadas pelo morar e o trabalhar na mesma comunidade. Dessa forma, apesar da particularidade da situação de trabalho estudada, esta propicia a compreensão de aspectos existentes em outras atividades, mas que, por não ocorrerem em tal intensidade, não são tão visíveis. O trabalho é uma ação, mas dependendo de sua organização, impede o indivíduo de pensar a racionalidade dessa ação, gerando, concomitantemente, uma limitação na capacidade de se pensar. Dejours propõe, então, por meio da PDT, o exercício da reflexão coletiva, que supõe uma ação destinada à apropriação de uma inteligibilidade comum, regida pela intercompreensão de acordos e normas, produção de novas regras do trabalho e da própria profissão. A criação de um espaço público 133
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de deliberação, onde as pessoas possam falar e se escutar, permite que a transformação da organização do trabalho ocorra. A confrontação de opiniões sobre o trabalho promoverá o pensar individual e/ou coletivo. Se o trabalhador é capaz de pensar o trabalho, elaborar essa experiência ao falar, simbolizar o pensamento e gerar interpretação, tem a possibilidade de negociar, buscar novo sentido partilhado, transformar e fazer a organização do trabalho evoluir (Lancman, Uchida, 2003).
Colaboradores Os autores Tatiana de Andrade Jardim e Selma Lancman participaram, igualmente, de todas as etapas de elaboração do artigo. Referências ARENDT, H. A condição humana. 10.ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005. BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria n.648. Brasília, 2006. Disponível em: <http:// dtr2004.saude.gov.br/dab/legislacao.php>. Acesso em: 8 fev. 2008. CEDEC. Inquérito com usuários e profissionais, percepção dos gestores e estudos sobre o trabalho no PSF. São Paulo: Consórcio Medicina USP, 2006 (Cadernos de Atenção Básica, estudos avaliativos, 3). DEJOURS, C. Addendum – da psicopatologia à psicodinâmica do trabalho. In: LANCMAN, S.; SZNELWAR, L. (Orgs.). Christophe Dejours: da psicopatologia à psicodinâmica do trabalho. Brasília/Rio de Janeiro: Paralelo15/Fiocruz, 2004. p.47-104. ______. Conferências brasileiras. São Paulo: FUNDAP/FGV, 1999. HELOANI, R.; LANCMAN, S. Psicodinâmica do trabalho: o método clínico de intervenção e investigação. Rev. Prod., v.14, n.3, p.77-86, 2004. LANCMAN, S. et al. Un agent de santé communautaire: un travail où l´on s´expose. Rev. Int. Psychopathol. Psychodynamique Travail, v.17, p.97-124, 2007. LANCMAN, S.; JARDIM, T.A. O impacto da organização do trabalho na saúde mental: um estudo em psicodinâmica do trabalho. Rev. Ter. Ocup. Univ. São Paulo, v.15, n.2, p.84-96, 2004. LANCMAN, S., UCHIDA, S. Trabalho e subjetividade. Cad. Psicol. Soc. Trab., v.6, p.7788, 2003. LUNARDELO, S.R. O trabalho do agente comunitário de saúde nos núcleos de saúde da família em Ribeirão Preto. 2004. Dissertação (Mestrado) - Escola de Enfermagem, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto. 2004. MOLINIER, P. Psicodinâmica do trabalho e relações sociais de sexo: um itinerário interdisciplinar 1988-2002. Rev. Prod., v.14, n.3, p.14-26, 2004. NUNES, M.O. et al. O agente comunitário de saúde: construção da identidade desse personagem híbrido e polifônico. Cad. Saude Publica, v.18, n.6, p.1636-46, 2002. SILVA, J.A., DALMASO, A.S.W. Agente comunitário de saúde: o ser, o saber, o fazer. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2002.
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JARDIM, T.A.; LANCMAN, S.
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SPIRI, W.C. A identidade do agente comunitário de saúde - uma abordagem fenomenológica. Cienc. Saude Colet., 2006. Disponível em: <http:// www.abrasco.org.br/cienciaesaudecoletiva/artigos>. Acesso em: 2 dez. 2007. TOMAZ, J.B.S. O agente comunitário de saúde não deve ser “super-herói”. Interface – Comunic., Saude, Educ., v.6, n.10, p.84-90, 2002.
JARDIM, T.A.; LANCMAN, S. Aspectos subjetivos de vivir y trabajar en la misma comunidad: la realidad vivida por el agente comunitario de salud. Interface Comunic., Saúde, Educ., v.13, n.28, p.123-35, jan./mar. 2009. El Agente Comunitario de Salud (ACS) es el eslabón entre comunidad y sistema de salud en el Programa Salud de la Familia (PSF), el único trabajador que reside obligatoriamente en la comunidad donde trabaja. Su trabajo se pauta en el contacto directo, contínuo e ininterrupto con la comunidad. Este artículo discute el proceso de construcción y manutención de la credibilidad de los agentes en las relaciones con la comunidad y los factores subjetivos resultantes de la congruencia entre vivir y trabajar. Se ha utilizado la metodología propuesta en Psicodinámica del Trabajo con ACS de Pirituba, estado de São Paulo, Brasil. Se concluye que los agentes experimentan constreñimiento en el trabajo a causa de pertenecer a la misma comunidad en la que desempeñan su papel profesional y que el funcionamiento del PSF y la precariedad de los demás niveles del sistema de salud son fuente de sufrimiento adicional. Esta porosidad entre trabajar y vivir en la misma comunidad expone excesivamente a los trabajadores y hay elevada contaminación de tiempo de no trabajo.
Palabras clave: Agente Comunitario de Salud. Salud del trabajador. Condiciones de trabajo. Salud mental y trabajo. Investigación cualitativa. Recebido em 09/08/07. Aprovado em 27/09/08.
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A construção do discurso dos sujeitos envolvidos com o processo de reforma psiquiátrica: um estudo sobre o município de Joinville/SC* Maria Lúcia da Silva Bueno1 Sandra Caponi2
BUENO, M.L.S.; CAPONI, S. Discourse construction among subjects involved in the process of psychiatric reform – a study on the municipality of Joinville, Santa Catarina. Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.13, n.28, p.137-50, jan./mar. 2009. This paper aimed to put into place the discourse of the subjects involved in the psychiatric reform process in the municipality of Joinville, Santa Catarina. The discourse and practices needed to be elucidated and revealed because knowledge is constructed and realities are transformed in daily practice. Qualitative investigation of case study type was the methodological route, and it was carried out by means of open interviews with a semistructured script. The subjects involved contributed their experiences and reflections through expressing their opinions and convictions about the current process. The final considerations, based on discourse analysis, indicated some criticisms: the discourse was sometimes more controversial and political and sometimes more conservative and traditional, thus revealing a certain degree of bias and reductionism in the process. Nonetheless, new spaces are being occupied, and some professionals’ practices have been transformed.
Key words: Psychiatry. Mental Health. Discourse analysis.
Pretende-se situar o discurso dos sujeitos envolvidos no processo de Reforma Psiquiátrica no município de Joinville/SC. Os discursos e as práticas necessitam ser elucidados e desvelados, pois na práxis cotidiana se constrói o conhecimento e se transforma a realidade. Como caminho metodológico utilizamos a pesquisa qualitativa, tipo estudo de caso, realizada por meio de entrevista aberta com roteiro semiestruturado. Os sujeitos envolvidos contribuíram com suas experiências e reflexões expressando suas opiniões e convicções quanto ao processo em curso. As considerações finais, baseadas na análise de discurso, apontam críticas pontuais, ora são mais polêmicas e políticas, ora são mais conservadoras e tradicionais, revelando um certo enviesamento e reducionismo do processo, porém novos espaços vêm sendo ocupados e as práticas de alguns profissionais têm se alterado.
Palavras-chave: Psiquiatria. Saúde Mental. Análise de discurso.
* Artigo elaborado com base em Bueno (2006). 1 Assistente social. Secretaria Municipal de Joinville. Rua Águia, 168, Bairro Costa e Silva, Joinville, SC, Brasil. 89.220-140 malubueno2@gmail.com 2 Filósofa. Departamento de Saúde Pública, Universidade Federal de Santa Catarina.
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Introdução Este artigo tem por objetivo situar o discurso dos sujeitos envolvidos com o processo de Reforma Psiquiátrica no município de Joinville/SC, apresentando, assim, parte dos resultados da pesquisa realizada no período de 2005 a 20063. Como caminhos metodológicos, optamos pela pesquisa qualitativa, utilizando o estudo de caso, buscando compreender como e por que se constrói o discurso dos sujeitos. O instrumento utilizado para coleta de dados foi a entrevista aberta com roteiro semiestruturado4, possibilitando a participação comunicativa e permitindo ao entrevistado falar da percepção, da vivência e da práxis do seu cotidiano, procurando, assim, dar visibilidade ao discurso que permeava a práxis e o saber dos sujeitos (Gill, 2002; Minayo, 2000). Os sujeitos – usuários e profissionais entrevistados – totalizaram dez participantes5, os quais foram esclarecidos e orientados quanto ao propósito da pesquisa. As entrevistas foram gravadas, transcritas e revistas pelos participantes, os quais assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido, conforme aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da UFSC. As falas foram analisadas com base na análise de discurso, apreendendo, ou seja, extraindo o sentido e a ideologia que as falas trazem em si, pois as mais simples palavras utilizadas no cotidiano chegam até nós carregadas de sentidos, os quais não sabemos como se constituíram e o que representam em nós e para nós. Como propõe Orlandi (2000, p.38), “todo o dizer é ideologicamente marcado, é na língua que a ideologia se materializa num espaço regido pela simbolização das relações de poder como dissemos, o discurso é o lugar do trabalho da língua e da ideologia”. Logo, deve-se observar: de que lugar fala esse sujeito, qual papel ocupa, como se posiciona frente ao seu interlocutor, e quais imagens de poder ambos fazem um do outro, pois essas são socialmente construídas. Salienta a autora que “o imaginário faz necessariamente parte do funcionamento da linguagem. Ele é eficaz. Ele não brota do nada: assenta-se no modo como as relações sociais se inscrevem na história e são regidas, em uma sociedade como a nossa, por relações de poder” (Orlandi, 2000, p.42). A autora reforça que um dos pontos fortes da análise de discurso “é resignificar a noção de ideologia a partir da consideração de linguagem” (Orlandi, 2000, p.45), pois não existe sujeito sem história, nem discurso sem sujeito e nem sujeito sem ideologia. Assim, toda interpretação é regulada em suas possibilidades, em suas condições, não sendo mero gesto de decodificação, ou apreensão de sentidos. Deve-se considerar que “nem a linguagem, nem os sentidos, nem mesmos os sujeitos são transparentes: eles têm sua materialidade e se constituem em processo em que a língua, a história e a ideologia concorrem conjuntamente” (Orlandi, 2000, p.48); por isso, optamos por analisar os discursos utilizando esse referencial. Contextualizando o município de Joinville/SC, convém pontuar que possui uma rede de atenção em saúde mental descentralizada, implementada desde os idos de 1988 e, atualmente, com nove sedes regionais de saúde, as quais contam com os seguintes profissionais: enfermeiros, médicos generalistas e especialistas, técnicos administrativos e de enfermagem, agentes de saúde pública e comunitário de saúde; e uma equipe específica de saúde mental com: psiquiatra, psicólogos e terapeuta ocupacional, os quais interagem com os demais profissionais fazendo o matriciamento das equipes de saúde da família e postos de saúde de sua adscrição. 138
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3 A qual faz parte da dissertação do mestrado em Saúde Pública pela Universidade Federal de Santa Catarina/UFSC.
4 As perguntas foram elaboradas considerando as seguintes questões: o que se entende por loucura, doença mental, reforma psiquiátrica, desinstitucionalização. O que identificavam como ações que apontam para o reforma psiquiátrica; e como se dá a relação interdisciplinar na equipe de trabalho e se percebe questionamentos quanto à desconstrução do modelo asilar e os conceitos da psiquiatria tradicional.
5 Ressaltamos que os profissionais entrevistados, no total de sete, foram escolhidos de forma aleatória (sorteio); todos são servidores públicos, cinco deles com mais de dez anos de prestação de serviços em saúde mental, e dois com aproximadamente três anos. Todos conheciam o modelo asilar (profissional-estagiários) e estavam, no momento, prestando serviços na rede de atenção psicossocial do município (sede de Regional de Saúde, Centro de Atenção Psicossocial, Pronto Acolhimento Psicossocial, Serviços Organizados de Inclusão Social), representando, assim, as categorias profissionais (agentes de saúde, assistentes sociais, psicólogos, psiquiatras, e terapeutas ocupacionais) que atuam nas referidas equipes. Quanto aos usuários entrevistados, no total de três, foram escolhidos entre os que haviam passado por mais de 15 internações em hospitais psiquiátricos e estavam em atendimento em serviços substitutivos da rede de atenção em saúde mental (CAPS e SOIS).
BUENO, M.L.S.; CAPONI, S.
Em 2002 implanta-se o CAPS a d (álcool e drogas), que funciona diuturnamente, de segunda a sextas-feiras, das 7h00 às 20h00. E em 2005 constituiu-se o Serviços Organizados de Inclusão Social (SOIS) que prioriza a clientela dos CAPS e regionais de saúde, enfocando a inclusão pelos pilares da convivência, geração de renda, educação e moradia. Já em 2006, organiza-se o CAPS i (infantil) que funciona diuturnamente, de segunda a sextas-feiras, das 7h00 às 18h00. Conta, ainda, com um Pronto Acolhimento Psicossocial (PAPS), o qual acolhe a demanda em saúde mental e encaminha conforme cada situação (PAPS que este ano está fazendo dez anos); e a Associação de Recuperação para o Trabalho (REPART), que prioriza a geração de renda, sendo esta organizada para ser uma referência aos usuários e familiares, neste ano completa 15 anos. Convém ressaltar o recente processo de cadastramento e implantação do CAPS III Dê-Lírios, o qual tem hospitalidade 24 horas inclusive nos finais de semana (set/2008). 7
Um dos marcos para a saúde mental de Joinville foi a implantação, em 2001, do serviço substitutivo à internação psiquiátrica, conhecido como Centro de Atenção Diária “Nossa Casa” (CAD), o mesmo que um CAPS II6. Com a implantação de outros dispositivos, a rede vem se constituindo de forma sólida7, mostrando que é possível garantir: a atenção psicossocial, a inclusão, o acolhimento, o suporte na crise e os princípios que norteiam o SUS. Destacamos que, no município, não há hospital psiquiátrico. As emergências em saúde mental são atendidas no Pronto Socorro do Hospital Regional Hans Dieter Schmidt, o qual dispõe de uma unidade de psiquiatria com 32 leitos psiquiátricos, sendo esse um hospital geral sob gerência do Estado. O processo de construção da rede em atenção psicossocial em Joinville tem suas marcas, suas conquistas e, também, seus impasses/retrocessos. Citamos, por exemplo, a não existência de uma coordenação municipal em saúde mental, sendo que os CAPS estão subordinados à gerência de referências; e, também, que as ações de saúde mental na atenção básica estão sob gerência da mesma, o que fragmenta a interlocução e trocas, pulverizando o papel dos CAPS e deixando, nas sombras, o desenho político, o planejamento da saúde mental, enfim, a coordenação político-institucional. Outras dificuldades são: o atendimento em situações de crise e controle dos leitos sob gerência do Estado, e a falta de apoio no resgate das urgências/emergências, haja vista constantes conflitos com o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU), também sob gerência do Estado. Outro impasse que denota as deficiências da rede é a falta de residência terapêutica, por isso alguns usuários permanecem ocupando leitos de longa permanência, em hospitais psiquiátricos do Estado de Santa Catarina. Sendo assim, os resultados ora apresentados fazem parte da realidade do município de Joinville-SC, o que nos remete a contornos de discursos que poderão vir a ser encontrados em outros municípios que passam pelo mesmo processo.
artigos
Conforme portaria 336/ GM/2002 do Ministério da Saúde. O CAD/CAPS II atende a população do município, 500 mil habitantes, e têm como missão oferecer atenção psicossocial, evitar internações psiquiátricas, articular e dar suporte à rede de atenção em saúde. Realiza atendimento intensivo, semi-intensivo e não intensivo diuturnamente, de segunda a sextasfeiras, das 7:00 hs às 18:00 hs, atualmente com referência de miniequipe para cada território adscrito, os quais fazem matriciamento das equipes de saúde mental das regionais.
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Reforma Psiquiátrica: a busca por outro lugar social para a loucura A história do tratamento do louco, da pessoa acometida por sofrimento mental no Brasil, nos leva a recorrer a um passado inóspito, sombrio e segregador. A trajetória da psiquiatria brasileira, modelo asilar, demarcou o lugar do louco, o do doente mental tutelado, com seus direitos sequestrados e sua cidadania interditada. As experiências e tentativas de reformas psiquiátricas são variadas e diferenciam-se em conceitos, práticas e abordagens, trazendo em seu bojo a possibilidade de transformação, pois tudo o que é socialmente construído pode ser desconstruído e reconstruído novamente. No Brasil, este processo recebe a influência das experiências acumuladas, que ocorreram na Inglaterra, França, Estados Unidos e Itália, e tem um marco fortalecido pela luta social de democratização do país. Rotelli, Leonardis e Mauri (2001) ressaltam que as reformas psiquiátricas na Europa buscavam superar gradualmente a internação nos manicômios e criar novos serviços substitutivos na comunidade; porém, o processo enviesado de desinstitucionalizar acabou tendo a desospitalização como resultado, reduzindo sua abrangência. Eles pontuam: que as internações psiquiátricas, nessa proposta, continuam a existir como recurso terapêutico; que os serviços territoriais ou de comunidade convivem com a internação, não as substituem, mas confirmam sua necessidade, pulverizando o atendimento entre diversos serviços, que acabam fragmentados e especializados. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.13, n.28, p.137-50, jan./mar. 2009
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A intenção de liberar a Psiquiatria (e o seu objeto) da coação e da cronicidade que esta produzia para restituir-lhe o estatuto terapêutico resultou na construção de um sistema complexo de prestações que, reproduzindo e multiplicando a lógica somente negativa da desospitalização selecionam, decompõem, não se responsabilizam, abandonam. É razoável reter que este é um projeto impossível, mas que através dessas operações tenta-se fazê-lo parecer real. (Rotelli, Leonardis, Mauri, 2001, p.24)
Tendo como via a desospitalização, este modelo buscou desinstitucionalizar a necessidade de coação e dos lugares de internação, “eles permanecem e se confirmam como um elemento necessário ao funcionamento do sistema” (Rotelli, Leonardis, Mauri, 2001, p.24). A proposta de desconstrução da instituição manicomial e asilar perpassa as relações administrativas e interpessoais, exigindo a transformação cultural de todos os atores sociais envolvidos. Ele defende que a “desinstitucionalização é, sobretudo, um trabalho terapêutico, voltado para a reconstituição das pessoas, enquanto pessoas que sofrem, como sujeitos. Talvez não se resolva por hora, não se cure agora, mas no entanto seguramente se cuida” (Rotelli, 2000, p.33). As análises históricas desse processo em curso no Brasil podem ser encontradas em seus variados matizes e paradigmas, porém os autores são unânimes em afirmar sua complexidade, diversidade, confrontos e conflitos teóricos e políticos8. Para Tenório (2002), o reclame da cidadania do louco vem sendo a marca distintiva e fundamental da reforma, “a importância analítica de se localizar a cidadania como valor fundamental e organizador desse processo, está em que a reforma é, sobretudo, um campo heterogêneo, que abarca a clínica, a política, o social, o cultural e as relações com o jurídico, e é obra de atores muito diferentes entre si” (Tenório, 2002, p.28). Conforme Amarante (2003b), a Reforma Psiquiátrica se propõe a romper com o estigma de se compreender o louco como o ser tutelado, indesejável e dependente; que o louco não é uma pessoa sem razão e sem juízo, mas sim um sujeito, defendendo “que os princípios éticos desta Reforma perpassam a inclusão, a solidariedade e a cidadania” (p.58). Ressalta que a psiquiatria “é apenas uma disciplina, dentre tantas outras, que pode contribuir parcialmente para explicar e intervir sobre o fenômeno da loucura” (p.61). Corroboramos com Amarante (2003a) que a Reforma Psiquiátrica brasileira é um processo social complexo, em movimento, em construção, uma reforma da e para a saúde mental, o qual precisa ser elucidado e pesquisado, para que possamos conhecer e compreender os meandros e as bases científicas que o legitimam. Para o referido autor, no bojo mais profundo desse processo de reforma psiquiátrica, existem peculiaridades que exigem uma adjetivação precisa, por ser considerado um processo histórico de formulação crítica e prática, tendo como objetivos e estratégias: o questionamento e a elaboração de propostas de transformação do modelo clássico, do paradigma epistêmico da psiquiatria. A psiquiatria foi fundada num contexto epistemológico em que a realidade era considerada um dado natural, capaz de ser apreendido, revelado, descrito, mensurado e comparado, nasceu em um contexto em que a ciência significava a produção de um saber positivo, neutro, autônomo: era a expressão da verdade! (Amarante, 2003a, p.55)
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8 Ressaltamos que Amarante (2003c), em “O Homem e a Serpente”, aprofunda a compreensão sobre o processo de reforma psiquiátrica entendido como desinstitucionalização/ desospitalização/ desconstrução, mas optamos focar a análise partindo das dimensões existentes no processo social complexo de reforma psiquiátrica, conforme defende o mesmo autor em Amarante (2007, 2003a). Sugerimos consultar os seguintes autores que aprofundam tal análise: Paulim (2004); Desviat (2002); Portocarrero (2002); Tenório (2002); Amarante (2000, 1994).
BUENO, M.L.S.; CAPONI, S.
artigos
Destaca o autor que, nesse processo, existem interesses conflitantes e negociações acontecendo simultaneamente; que não dispomos de teoria que dê conta de descrever plenamente os fatos, e que: Se configura na e pela articulação de várias dimensões que são simultâneas e inter-relacionadas, que envolvem movimentos, atores, conflitos e uma tal transcendência de objeto de conhecimento que nenhum método cognitivo ou teoria podem captar e compreender em sua complexidade e totalidade. (Amarante, 2003a, p.49)
9 Sugerimos a leitura de Amarante (2007), onde o autor resgata e aprofunda as dimensões existentes no processo social complexo do campo da saúde mental para além da psiquiatria.
Os nomes utilizados são fictícios, para resguardar os participantes. Destaques em suas falas encontram-se em negrito e interferência da pesquisadora em sublinhado. Convém salientar que em média cada participante contribuiu aproximadamente com quarenta minutos de entrevista. Agradecemos a estes a contribuição e permissão para publicização de seus discursos. 10
Esse processo social complexo pode ser compreendido pelas seguintes dimensões, conforme Amarante (2003a): teórico-conceitual, sociocultural, técnicoassistencial e jurídico-política. Essas dimensões precisam ser aprofundadas e desmistificadas, visto que o conhecimento acumulado construído no contexto da psiquiatria traz um cientificismo naturalista, biologicista, revelando que esta concepção de ciência é arraigada na formação e visão dos profissionais da área. Para alguns autores e atores sociais, a reforma é entendida como sinônimo de reestruturação ou modernização de serviços, ou seja, simples reformulação técnicoassistencial, ‘capsização’ do modelo assistencial e ‘inampsização’ do modelo de financiamento, o que Amarante (2003a) denuncia como desvios graves de descaracterização do processo social complexo. Alguns autores entendem que esse processo social complexo passa, também, por outro objetivo, que é o da construção de um outro lugar social para a loucura, o que demanda a transformação das relações da sociedade com a loucura e da relação estabelecida pelo saber/poder da psiquiatria e das demais disciplinas (Amarante, 2003a; Birman, 1994). Como compreender tal processo em desconstrução, perpassado em suas variadas dimensões teórico-conceitual, sociocultural, técnico-assistencial e jurídico-política9? Como enfrentar o cotidiano da práxis sem compreender a subjetividade da loucura em sua complexidade teórica, sociológica, antropológica e política? (Alverga, Dimenstein, 2005); como os novos técnicos assumem sua práxis se parece haver um interdito, um negar a história de segregação e modelo asilar? (Lobosque, 2006; Saraceno, 2001). Então, cabe-nos perguntar: que discurso vem tendo a primazia entre os atores sociais envolvidos nesse processo social complexo de Reforma Psiquiátrica, no município de Joinville/SC?
A compreensão do processo de Reforma Psiquiátrica em Joinville/SC Enfocaremos algumas falas dos sujeitos envolvidos nesse processo, discursos carregados de significados e sentidos, pois se modificam e se movimentam com o sujeito, pois falamos com palavras que já foram ditas, mas o discurso não está pronto e acabado, como esclarece Orlandi (2000, p.37): “que a incompletude é a condição de linguagem: nem sujeitos nem os sentidos, logo, nem o discurso, já estão prontos e acabados. Eles estão sempre se fazendo, havendo um trabalho contínuo, um movimento do simbólico e da história”. Os discursos pontuados a seguir nos contam como alguns trabalhadores da rede de atenção em saúde mental de Joinville/SC, com base nas suas experiências pessoais e no envolvimento ou não com o processo de Reforma Psiquiátrica ou de Luta Antimanicomial, percebem esse processo. Vejamos a fala da psicóloga Acácia10, que diz ter sido influenciada na graduação, e que percebia certa discussão referente à Reforma Psiquiátrica: “Já no meu período de formação a gente tinha uma postura COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.13, n.28, p.137-50, jan./mar. 2009
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muito crítica dos nossos métodos e nossas técnicas, do que estava sendo feito, entende? Eu entrei na universidade, coincidentemente era uma época que as coisas já estavam com relação à reforma psiquiátrica borbulhando!!” (Psicóloga Acácia). A profissional Camila lembra dos primeiros passos do movimento de luta antimanicomial e demonstra sua satisfação por ter participado inicialmente, inclusive do momento que motivou a comemoração do dia nacional de luta antimanicomial. Ressalta que sua participação aconteceu sem que ela tivesse plena consciência e convicção do alcance do que estavam fazendo, era puro idealismo, acreditava nas mudanças, e não queria aquele modelo asilar. Então aquela coisa de estar em passeata, de ir atrás, e tinha aquilo de muito idealismo, e de conhecimento concreto talvez sobre tudo isto, tinha pouco, isto era uma coisa em movimento, era um cara pintada que fizeram, um negócio que eu só tinha uma noção assim, que eu não queria que o modelo fosse aquele do Juquery, isto eu tinha claro pra mim, que aquele modelo não era o modelo que deveria ser...porque era terrível, não dá nem pra sonhar com aquilo lá de tão horrível. (Terapeuta Ocupacional Camila)
Para as profissionais Acácia e Suzana, o foco era a implantação de um modelo de atenção descentralizado por regional, buscando viabilizar o tratamento fora do hospital psiquiátrico, pensando um modelo de atenção voltado para a comunidade, a liberdade, e não o confinamento das internações psiquiátricas vigentes na época. Estava tudo centralizado no INAMPS, que levava os pacientes para internação em Curitiba, não batia na prefeitura! Com a municipalização aí a prefeitura tinha que dar conta dessas questões todas, aí sim que água começou a bater! Os pacientes sem surtos começaram a vir, mas gente também já está com essa proposta de descentralizar nas regionais... (Psicóloga Acácia) Nós viemos da mesma universidade11, já com essa lógica de luta antimanicomial, ou de uma tentativa de tirar o foco do tratamento da doença mental de dentro do hospital e colocar assim esses tratamentos nos postos de saúde, tirando essa óptica hospitalar, já pensando nisso na questão descentralizada. (Psicóloga Suzana)
O município de Joinville teve o privilégio de contar com esses e outros profissionais de formação mais crítica, que resistiam à construção de hospital psiquiátrico, e direcionavam a organização da rede de assistência de forma descentralizada, buscando a integralidade das ações de saúde, a promoção e a prevenção da doença/saúde mental. Outros profissionais entrevistados, em seus discursos apontam para a organização do modelo e as falhas administrativas, referindo-se à reforma psiquiátrica como a programas, os quais atuam em diferentes frentes e necessidades, com certa humanização, sem, contudo, referenciar a abrangência do processo: Pelo o que eu consigo perceber Joinville está bem dentro desde contexto da reforma e luta antimanicomial, até porque a internação aqui é somente em casos de surtos, casos agudos, a
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11 Unesp, Universidade Estadual de São Paulo, em meados dos anos de 1985.
BUENO, M.L.S.; CAPONI, S.
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maneira normalmente encaminhada para tratamento são nos Postos de Saúde, ou no CAD, procurando não afastar a pessoa de dentro da sua família, de uma maneira mais humana de tratamento. É uma busca cada vez maior para humanização do tratamento das pessoas. (Agente de Saúde Amália) Eu acho que existem vários programas, eu acho que o CAD é um desses programas, que beneficia os pacientes, tentando evitar uma internação psiquiátrica, tentando a recolocação no mercado de trabalho, a REPART que é um outro programa, o SOIS (Serviços Organizados de Inclusão Social) que está sendo criado agora também... eu acho que todos esses programas novos são uma evolução pra Joinville dentro da saúde mental, no tratamento do doente mental. (Assistente Social Kely)
As falas acima são significativas e representativas de quanto o processo de Reforma Psiquiátrica vem sendo entendido como um processo restrito à reorganização de serviços, reestruturação do modelo assistencial psiquiátrico mais humanizado, à implementação de técnicas e programas. Isso remete a uma reforma de reparos, a uma reforma de aparências, negando-se assim, muitas vezes, sua complexidade, o que reduz o processo social complexo a simples e mera reestruturação dos serviços. Se tanto autores quanto técnicos consideram o que se denomina por reforma psiquiátrica como um processo restrito à reorganização de serviços, vinculando-a a pura reestruturação do modelo assistencial psiquiátrico, pode-se concluir, em outras palavras, que consideram reforma psiquiátrica sinônima de modernização das técnicas terapêuticas. É comum, ainda, ver-se considerá-la como humanização das características violentas e perversas da instituição asilar, o que constitui uma luta e uma transformação muito importantes, mas que certamente reduz a amplitude de processo de questão. (Amarante, 2003a, p.46)
Outros dois profissionais, partindo de suas experiências, apontam mais os resultados atuais desse movimento, o que conseguem ver e acompanhar no município e na participação em encontros, congressos e revistas, relatando que: A reforma é maravilhosa, então nesta experiência eu pude ver e dizer que bárbaro que é isso, que é a gente evoluir, que bárbaro para o profissional e para o paciente. (Psiquiatra Cléo) Cada um tem a sua opinião, em relação a esta reforma, na verdade nem todo mundo é antimanicômio. [...] mas, claro que se você quiser acabar com os manicômios, significa fazer o que com uma população que necessita, hoje, nós não sabemos o que fazer com ela... Crescendo o número de CAPS, de processos que permitem estes cuidados intermediários, que antes não tinha, ou ele estava internado ou ele estava no ambulatório, se meio descompensado, internou. (Psiquiatra Geraldo)
O profissional Geraldo demonstra ter certa reserva quanto ao processo de reforma, pois entende que não será possível ficar sem o recurso da internação, pois em sua prática cotidiana percebe ter uma parcela que necessita deste recurso sempre e que há uma lacuna na política organizada em Joinville. Ele reforça a importância dos CAPS, mas entendendo-os como serviços intermediários, e não substitutivos à internação. Isso revela certa resistência, por parte dos médicos psiquiatras, parcela essa muito temerária do possível fechamento dos hospitais, pois “o manicômio” permanece no mesmo papel de controle e ajustamento social, e a psiquiatria, a ciência que o legitima, endossada por outras tantas disciplinas. Buscando compreender esse processo, alguns profissionais mantêm a centralidade do discurso na internação, no hospital psiquiátrico, como se fosse de fato impossível substituí-los, vejamos:
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Eu vejo que estão melhorando, principalmente, para os pacientes em termo do tratamento, de atendimento, isso diminui a internação, tem pacientes que nunca internaram e hoje em dia continuam sem internação, agora situações graves, no sentido de terem loucuras... as esquizofrenias, estas coisas, são pacientes fregueses do manicômio, os que mais possivelmente vão acabar dentro de hospitais psiquiátricos, se você não tiver um atendimento adequado. (Psiquiatra Geraldo) A gente vai ter pacientes que vão ter necessidade de uma internação mesmo de curto prazo, que estão psicóticos. O que a gente tem de leito não dá conta, em termos de população, a gente sabe que precisaria de um pouco mais, e aí a gente acaba retroagindo tendo que mandar um paciente para o hospital num modelo antigo ainda, ter mais centro diário de atendimento, acho que falta coisas do modelo, pensão protegida para os pacientes. (Psiquiatra Cléo)
A questão da internação psiquiátrica e o número de leitos vêm à tona, o hospital termina sendo a referência inevitável. Faltam “as coisas do modelo”, faltam os dispositivos e equipamentos sociais que garantam a desinstitucionalização12 e que promovam essa proposta, que vai muito além de somente desospitalizar ou internar. Como bem salientam Rotelli, Leonardis e Mauri (2001), em algumas propostas, o processo de Reforma Psiquiátrica é entendido como desospitalização, tendo como marca os lugares de internação e a necessidade de coação e controle. Alguns profissionais continuam centrados no modelo asilar, onde a internação acaba sendo o lugar privilegiado de tratamento. Se há falhas na rede de atenção, essas são apontadas a partir da falta de leitos psiquiátricos; entretanto, o que há de fato é um viés de compreensão do processo em si, e uma posição ideológica marcada, a qual entende ser fundamental e necessário o hospital psiquiátrico em detrimento de outros dispositivos, como: CAPS III, residências terapêuticas, centros de convivência, cooperativas, oficinas de geração de trabalho e renda, entre outros. Coexiste, então, certa dualidade. Ao mesmo tempo em que não querem o hospital psiquiátrico e percebem que o modelo de atenção psicossocial evita internações, defendem a necessidade de mais leitos, sem focarem que, com a implementação de outros dispositivos, a internação psiquiátrica poderá ser o último recurso a ser utilizado. Entretanto, outros profissionais continuam se posicionando contrários ao modelo hospitalocêntrico, como o evidenciado na fala da psicóloga Suzana, pontuando que, em Joinville, também houve retrocessos, mas que continuam caminhando dentro da proposta de reforma. Acho que aqui em Joinville a gente teve alguns retrocessos, mas eu acho que continua avançando, a questão da gente não ter um hospital psiquiátrico contribui muito, pra acelerar a questão da Reforma Psiquiátrica. Você acha que contribuiu não ter hospital psiquiátrico? Eu acho que contribui, pra você implementar uma Reforma Psiquiátrica sim, porque você mostra outras alternativas, que são possíveis outras alternativas, eu acho que existe ainda uma óptica hospitalocêntrica aqui, apesar de tudo, principalmente com a área da psiquiatria, o que permeia a fala deles é a falta de leitos
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Desinstitucionalização: é entendida pelas múltiplas formas de tratar o sujeito em sua existência e em relação com as condições concretas de vida. Um processo de desconstrução, de desmontagem, que não se restringe à reestruturação de técnicas, de serviços, de novas terapias, mas sim um processo éticoestético, de reconhecimento do sujeito de direitos. Desinstitucionalização é um processo ético porque, em suma, inscreve-se em uma dimensão contrária ao estigma, à exclusão, à violência. É manifestação ética, sobretudo, se exercitada quanto ao reconhecimento de novos sujeitos de direito, de novos direitos para os sujeitos, de novas possibilidades de subjetivação daqueles que seriam objetivados pelos saberes e práticas cientificas; e inventa – prática e teoricamente – novas possibilidades de reprodução social desses mesmos sujeitos (Amarante, 2003c).
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psiquiátricos... Então o avanço que a gente teve com a construção, implantação do CAD, ela fica em segundo plano, porque primeiro vem a falta de leito.... é claro que nem todo profissional tem essa fala, mas dentro da ala psiquiátrica, da área da psiquiatria, a fala é esta, então, eu acho que a gente tem avanços e retrocessos... (Psicóloga Suzana)
Defende, enfaticamente, que não há necessidade de mais leitos psiquiátricos, que a utilização desse recurso de internação tem sido demasiada, e aponta que, com isso, os profissionais não pensam em outras alternativas. Salienta, também, que mesmo dentro do CAPS a visão hospitalocêntrica se faz presente, e muitas vezes é defendida como recurso principal, o que dificulta implementar a Reforma, pois não sabem lidar com a sintomatologia e a crise: Só que a gente ainda não tem aquela noção da ideologia de que realmente um CAD pode segurar a crise, que você pode trabalhar com o familiar, com o usuário... é muito medo da responsabilidade, então eu internar parece... esta coisa da proteção...Para os técnicos? É para os técnicos... bom eu percebo assim... (Psicóloga Suzana)
Então, focando a questão da internação hospitalar, sua centralidade no discurso é hegemônica e tida como recurso terapêutico principal; contudo é claro que existem resistências e abertura à implementação de outros dispositivos que viabilizem e garantam a atenção psicossocial. A profissional Acácia, referindo-se ao trabalho desenvolvido pelas equipes de saúde mental, aponta para certa acomodação por parte dos profissionais. Reconhece o processo de medicalização, a dificuldade de se manter a porta aberta e fazer a reabilitação psicossocial, mesmo dentro do CAPS, vista a práxis dos membros das equipes. Pensando assim da gente estar atendendo o paciente psiquiátrico, de estar evitando a internação, a institucionalização, eu não vejo isto, claro que eu não estou pensando no CAD, estou falando daquelas equipes que estão na rede, que elas tem mais de 18 anos de organizadas, eu acho que estas equipes ela não conseguiram trabalhar no sentido da Reforma, de evitar a internação, elas não estão atendendo a demanda, eu acho que estas equipes se protegeram... Eu acho que a gente agora, neste sentido não estamos conseguindo fazer a reforma, a gente está medicalizando muita gente. E no CAD o psiquiatra vem, atende e vai embora, não se envolve, quer dizer temos aqui um CAD e um ambulatório, os outros profissionais fazem a proposta da reabilitação social do CAD e o psiquiatra faz ambulatório... (Psicóloga Acácia)
Destaca Acácia, com muita propriedade, e nós corroboramos com ela, que os embasamentos teóricos correlacionados com a prática, diante da realidade caótica em que se vive, são relegados. Reforça que não há fóruns de discussão e que faltam compromisso e comprometimento, por parte dos profissionais, com este processo social complexo. “A gente não tem fórum de discussão de reforma psiquiátrica e luta antimanicomial!!! E no Dia Nacional de Luta Antimanicomial só o CAD defendeu a bandeira! Então eu acho esses profissionais muito descompromissados com a reforma, por isso a gente não avançou muito até agora...” (Psicóloga Acácia). As expectativas de Acácia e Suzana são fundamentadas em suas experiências e persistência no embate e no desejo de romper com o modelo asilar, de desconstruí-lo e de entender e ver a loucura com outro olhar. Fica evidente certa alienação, falta de compromisso profissional e diretriz política institucional. A reforma psiquiátrica acaba sendo reforma de modelo, focalizada na dimensão técnicoassistencial, tendo suas outras dimensões relegadas, negadas ou não compreendidas. Refletir a prática para nós é algo muito distante. As coisas ainda parecem vagas, talvez nem todos tenham esta necessidade. Refletindo a prática, nós percebemos aonde estamos, um passo a frente, um passo atrás... Quais os pontos que a gente não está olhando, se COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.13, n.28, p.137-50, jan./mar. 2009
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precisa mudar o foco, que caminho a gente pegou acreditando que era o melhor, mas enfim.... não era!!! Naquele momento em 1980 ou 1990, era o melhor, mas hoje olhando, não!!! A gente até defendeu uma coisa, mas aconteceu outra... Acho que não é culpa de alguém e sim de todos nós, dos profissionais, do posicionamento político, infelizmente a gente não troca, não se reflete, não se conhece... Se a gente nem sabe o que pensa, como vai querer saber do outro? (Psicóloga Acácia)
Desconstruir e reconstruir o quê? A dimensão teórico-conceitual é apontada, na fala de Camila, como sendo um nó nesse processo; ela expressa, de forma clara e profunda, o viés que vem perpassando as bases teóricas conceituais, apontando certa conotação de esvaziamento político-ideológico: Eu acho que Joinville começou já reformando, por que ele o hospital que tinha antigamente, quando a gente começou com o projeto, ele não existia mais, e nós não colocamos nunca o hospital no projeto... eu acho que Joinville já começou fazendo de uma forma diferente, já entrou no processo de reforma, esta reforma foi se construindo já reformada, se construiu diferente... (Terapeuta Ocupacional Camila)
E continua admitindo que, mesmo começando desse jeito, reformando, construindo diferente, falta um fato que realmente marque o processo no município; cita outras experiências, como o fechamento de hospitais psiquiátricos, e acrescenta: Eu acho que é isso mesmo, a gente não precisou desconstruir nada.... então, todo mundo que entrava, precisava ter uma caricatura assim do que era o hospital, construído daquele jeito, para poder desconstruir e fazer outra coisa, e aqui foi em cima de idéias, eu trazia pro pessoal as falas, coisas lá do Juquery... Então eu acho que Joinville não tem muito essa cultura da reforma, até por causa disto... ao mesmo tempo que é boa é uma coisa ruim.... pois como a gente não tinha hospital, não tinha profissionais e acabou demorando mais. (Terapeuta Ocupacional Camila)
Revela, em sua opinião, que não houve uma bandeira de luta, nem necessidade de maiores confrontos políticos e ideológicos como em outros municípios: “aqui foi em cima de idéias”, idéias de outro modelo de assistência. Entretanto, o discurso “a gente não precisou desconstruir nada” aponta para o cerne principal, que o saber/poder psiquiátrico não precisa ser desconstruído, está posto, dado como acabado, pronto, científico. O que revela e demonstra que a ciência psiquiátrica, sua epistemologia e ideologia, por não serem compreendidas em sua constituição, foram relegadas a outros planos, ficando o foco de atenção voltado ao modelo assistencial e administrativo. O não identificar, ter clareza e consciência sobre o que se luta, parece ser um grande nó no processo social complexo e, devido à falta de conhecimento mais aprofundado da história e das bases científicas que sustentavam e sustentam o tratamento dispensado aos loucos, luta-se às cegas por reformas administrativas, técnicas terapêuticas e legais. Precisamos desconstruir, sim, o tempo todo: as relações de poder, o mandato social dos técnicos (Basaglia, 2005; Basaglia et al., 1994), o jeito de compreender o manicômio que existe dentro de cada um, e resgatar a história da loucura e suas formas de tratamento, legitimada pela psiquiatria, pois há um interdito em sabê-la (Saraceno, 2001). Lobosque (2006) salienta sua preocupação com certo esvaziamento/esfriamento dos novos técnicos, que não mais militam no movimento de luta antimanicomial; que anteriormente nos serviços substitutivos havia certo entusiasmo e paixão, que não raramente deram lugar a um funcionamento rotineiro e a uma posição de certa passividade, conformidade e encolhimento no campo da interlocução. 146
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Amarante (2003a) alerta sobre a descaracterização, ‘capsização’ e ‘inampsização’ da reforma psiquiátrica, pois o que se espera é “que supere a noção de uma simples reforma administrativa ou técnica do modelo assistencial psiquiátrico”, que se entenda sua complexidade e abrangência (p.48). Assim, cabe ressaltar que o modelo asilar e suas técnicas seguem com certa hegemonia, e precisam ser desconstruídos sistematicamente; por isso exercitar a liberdade e a democracia são conquistas árduas e cotidianas. É necessário romper com o manicômio que existe dentro de cada um, independente do lugar de ação, seja ele um hospital, um CAPS, uma oficina de geração de renda, uma moradia, ou num posto de saúde, entre outros.
O discurso dos usuários centrado na terapêutica: chega de hospício!!! Os usuários entrevistados, quando abordados sobre esse processo, demonstram e focalizam a atenção na terapêutica, no atendimento em si, na convivência; reconhecem que os cuidados foram ampliados pela atuação das equipes e do CAPS (CAD), o qual é sentido como um espaço diferenciado de acolhimento, emancipação, “de salvação”. Vejamos o discurso de Augusto: O CAD é a minha, é a nossa salvação, dos pacientes.... Ah!! tem muita diferença, lá no hospital, eles faz experiência, como se a gente fosse cobaia, dão um remédio, dão outro, vai aumentando, aumentando, vai tirando....Aqui posso conversar.... Olha tem pacientes que necessitam de medicamentos especiais, mais caro, que foi falado naquela reunião, grupo de autoajuda. Olha na integração dos familiares, pra acompanhar de perto o paciente e saber qual a doença que a pessoa tem... Eu notei diferente foi um movimento na pracinha ali na rua central, mas eu não me senti bem ali... Por que? ah!! muita gente esquisita, risos... (Augusto, usuário)
Outros destaques de Augusto foram referentes: a uma comemoração na praça no Dia Nacional de Luta Antimanicomial, às reuniões do grupo de autoajuda, à participação dos familiares e, sobretudo, à defesa ao sujeito que padece de sofrimento mental, em sua condição de ser no mundo. Débora, outra usuária, faz críticas à unidade de psiquiatria mesmo dentro do hospital geral, pois o modelo é asilar, os horários são rígidos, há falta de respeito com os usuários e o abandono familiar é notório. Eu considero o Hospital Regional um hospício! A pessoa sai louca de verdade, minha família me abandonou!... Um olha de jeito estranho, outro empurra, o outro bate, outro diz: vai pro chuveiro... Então, a pessoa acaba saindo de lá louca, eu não sei como não saí louca de lá, é preciso acabar com tudo isto!!!! (Débora, usuária)
Assim como a fala de Augusto, Débora aponta que a forma de acolhimento e tratamento, mesmo dentro de uma unidade de psiquiatria, é manicomial, de controle, de violência e de segregação, “um hospício!” Ele sentia-se como uma “cobaia”; ela, que estava numa fábrica de enlouquecer, “é preciso acabar com tudo isto”, ou seja, romper, desconstruir o modelo asilar. Débora, em seu discurso, tem um tom polêmico e de indignação, pois sua vivência perpassa a dura realidade, ainda enfrentada pela pessoa que padece de sofrimento mental, ou seja, invasão, humilhação, controle e privação de liberdade. Em outra fala, fazendo uma comparação entre o hospital e o CAPS/CAD, reflete que a rede de atenção possibilita um espaço de liberdade: E parece que tem bastante recursos que antes Joinville não tinha, depois que fechou aquele que esqueço o nome (Hospital Schoereder)13, aí abriram um novo recurso, (CAD) vamos ver se vai dar certo. Aqui temos mais liberdade. Liberdade pra quê? Liberdade pra andar, pra escolher o que se quer fazer, se não quer fazer também não precisa... Começa a fazer uma coisa, aí faz outra coisa, não faz mal. Os profissionais incentivam e cada um vai fazendo o que dá conta de fazer. (Débora, usuária) COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.13, n.28, p.137-50, jan./mar. 2009
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Destacamos o toque sutil na fala de Débora, “vamos ver se vai dar certo”, pois pode ser diferente ou se tornar igual ao referido hospital, “... um hospício!”. Fazemos nossa essa expectativa!
Considerações finais A rede de atenção psicossocial em Joinville/SC vem se constituindo, lentamente, com avanços e conquistas que referendam seu modelo e sua práxis. Os relatos fazem parte da realidade do município, e revelam que o discurso está permeado de compreensões e tensões próprias do processo social complexo de Reforma Psiquiátrica num campo abrangente de saúde mental imbricado nas políticas públicas. Nessa trajetória da implementação da rede de atenção psicossocial, o município teve o privilégio de contar com a participação de profissionais envolvidos nos primeiros momentos da luta antimanicomial – profissionais com formação mais aberta, questionadora, o que, aliado à visão de mundo e postura ética, possibilitou dar certa direção política às propostas de saúde mental. A compreensão, o confronto e a defesa em prol de implementar ações que desconstruam o modelo asilar ficam evidenciados em alguns discursos, que tendem a ser mais polêmicos e políticos. Sendo esses os discursos que movimentam os bastidores, que buscam alternativas e articulam o embate necessário. Porém, fica evidente certo viés da (in)compreensão desse processo social complexo, confundido como reforma do modelo de assistência, como sinônimo de melhores condições de assistência e de novas técnicas desenvolvidas, denotando certa redução da dimensão teórico-conceitual, tão importante num processo de questionamentos e críticas às bases científicas da ciência médica psiquiátrica. A dimensão teórico-conceitual, que sustenta e oxigena esse processo, mostra-se relegada a um segundo plano, seja pela incipiente reflexão entre a teoria e a prática, ou por exigir dos técnicos envolvidos a recusa do mandato social. Entretanto, posicionar-se em defesa de uma “Sociedade sem Manicômios”, por uma rede de atenção psicossocial substitutiva, inclusiva e cidadã, é uma tarefa desafiadora que exige: romper com velhos paradigmas, olhar a loucura em sua singularidade, possibilitar ao sujeito que sofre, além dos cuidados, um novo estatuto, o de ser cidadão, o protagonista de sua história. Podemos, então, constatar a realidade acima referida no município de Joinville-SC, o que nos permite pensar que outros municípios enfrentam realidade semelhante na implementação desse processo social complexo de Reforma Psiquiátrica.
Colaboradores Os autores Maria Lúcia da Silva Bueno e Sandra Caponi participaram, igualmente, de todas as etapas de elaboração do artigo. 148
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BUENO, M.L.S.; CAPONI, S. La construcción del discurso de los sujetos vinculados al proceso de reforma psiquiátrica – un estudio referente al municipio de Joinville, estado de Santa Catarina, Brasil. Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.13, n.28, p.137-50, jan./mar. 2009. Se trata de situar el discurso de los sujetos vinculados al proceso de Reforma Psiquiátrica en el municipio de Joinville. Es preciso elucidar y desvelar discursos y prácticas pues en la práctica cotidiana se construye el conocimiento y se transforma la realidad. Como camino metodológico utilizamos la pesquisa cualitativa, tipo estudio de caso, realizada por medio de entrevista abierta con guión semi-estructurado. Los sujetos consultados han contribuido con sus experiencias y reflexiones, expresando sus opiniones y convicciones en cuanto al proceso en curso. Las consideraciones finales, basadas en el análisis del discurso, ofrecen críticas puntuales; a veces más polémicas y políticas y otras más conservadoras y tradicionales, revelando cierta distorción y reduccionismo del proceso aunque nuevos espacios van siendo ocupados y las prácticas de algunos profesionales se han alterado.
Palabras clave: Psiquiatría. Salud Mental. Análisis del discurso. Recebido em 12/06/07. Aprovado em 16/10/08.
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Desinstitucionalização dos cuidados a pessoas com transtornos mentais na atenção básica: aportes para a implementação de ações Marcelo Dalla Vecchia1 Sueli Terezinha Ferreira Martins2
VECCHIA, M.D.; MARTINS, S.T.F. De-institutionalization of care for people with mental disorders within primary healthcare settings: contributions towards implementation of actions. Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.13, n.28, p.151-64, jan./mar. 2009. This paper starts from current interest in linkages between mental healthcare and primary care. After a brief historical and conceptual synthesis of this field, operational issues relating to deinstitutionalization of care for people with mental disorders within primary healthcare settings are discussed. From analysis of some studies and experiences, the fundamental components for advancing in this direction are then highlighted: (1) development of communication processes that aim towards enhancing professional skills; (2) overcoming of the centralization around actions restricted to traditional settings; (3) maintenance of continual questioning regarding the risk of psychiatrization of mental healthcare; (4) overcoming of conceptions that place blame on family groups; and (5) investment in training for primary healthcare teams for the multiple dimensions of mental healthcare. Thus, some possible paths and directions for designing mental healthcare actions within primary care from a perspective away from the loony bin approach are pointed out.
Parte-se do interesse dispensado contemporaneamente às articulações entre saúde mental e atenção básica. Após uma breve síntese histórica e conceitual neste campo, discutem-se aspectos operativos da desinstitucionalização dos cuidados a pessoas com transtornos mentais na atenção básica. Com a análise de alguns estudos e experiências são destacados, a seguir, componentes fundamentais para avançar neste sentido: (1) desenvolver processos de comunicação que visem ampliar a legibilidade profissional, (2) superar a centralização em ações restritas aos enquadres tradicionais, (3) manter questionamento permanente com relação ao risco de psiquiatrização do cuidado em saúde mental, (4) superar concepções culpabilizantes do grupo familiar, e (5) investir na formação das equipes de atenção básica para as múltiplas dimensões do cuidado em saúde mental. Apontam-se, desta forma, alguns caminhos e direções possíveis para o desenho de ações de saúde mental na atenção básica que tenham, no horizonte, a perspectiva antimanicomial.
Key words: Primary care. Psychiatric reform. Anti-loony bin movement. Family health. Mental health.
Palavras-chave: Atenção básica. Reforma psiquiátrica. Luta antimanicomial. Saúde da familia. Saúde mental.
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Psicólogo. Universidade Federal de São João del-Rei, Campus Centro-Oeste Dona Lindu. Rua Sebastião Gonçalves Coelho, 400, Chanadour, Divinópolis, MG, Brasil. 35.501-296 mdvecchia@yahoo.com.br 2 Psicóloga. Departamento de Neurologia, Psicologia e Psiquiatria, FMB/Unesp. 1
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DESINSTITUCIONALIZAÇÃO DO CUIDADO A PESSOAS ...
Introdução Contemporaneamente, vem sendo concedida relevante atenção, no âmbito das políticas públicas de saúde brasileiras, no interior do Sistema Único de Saúde (SUS), para a articulação entre: (1) serviços que dispensam cuidados a pessoas com transtornos mentais substitutivos ao hospital psiquiátrico – no interior dos quais se busca espaço para implementar processos de transformação no sentido da superação da lógica manicomial (centros de atenção integral à saúde, centros regionais de saúde mental, centros de atenção psicossocial, centros de convivência, serviços residenciais terapêuticos etc.) – e (2) a ampla rede assistencial de atenção básica, cujas ações estruturam-se em unidades básicas de saúde (UBS), com ou sem equipes de saúde da família, e que também vêm enfrentando um processo de reorganização na direção da Estratégia de Saúde da Família (ESF). Entende-se que há uma dimensão fértil, produtiva na referida articulação, sendo demarcados, por um lado, os princípios da reforma psiquiátrica brasileira e, por outro, os princípios do movimento da reforma sanitária. Do ponto de vista conceitual, a ESF é atualmente adotada como estratégia privilegiada para a reorganização da atenção básica em saúde, reafirmando os princípios do SUS (Brasil, 2006). Imediatamente, ressoam os seguintes princípios nas propostas de desinstitucionalização dos cuidados a pessoas com transtornos mentais: atenção à saúde em equipe multiprofissional, integralidade (das profissionalidades, das disciplinaridades e do cuidado), responsabilidade da equipe vinculada a um território de base comunitária, intersetorialidade e integração em rede do nível primário ao especializado com enfoque interinstitucional (Nunes, Jucá, Valentim, 2007). Vale ressaltar, porém, que a “materialização” destes princípios se apresenta sob um aspecto objetivo, operacional, requerendo uma análise a respeito da medida em que esta articulação favorece, potencializa ou amplia a reorganização do processo de trabalho das equipes de atenção básica na produção de cuidado antimanicomial. Ainda que não seja este o objetivo deste trabalho, pesquisas e relatos de experiência vêm mostrando que, dentre outros efeitos, investir nesta reorganização amplia a resolubilidade da atenção (Franco, Bueno, Mehry, 1999), favorece a integralidade do cuidado (Albuquerque, Stotz, 1999) e autoriza o estabelecimento de relações entre acolhimento e processo de trabalho em saúde (Schimith, Lima, 2004). O dado de que o alcance da ESF tem se mostrado restrito em regiões metropolitanas (meta de cobertura de até 30% da população) sugere que processos de reorganização da atenção básica não devam ser atrelados isoladamente à implementação da ESF, especialmente nestas regiões (Vianna, Fausto, 2005, apud Pedrosa, Pereira, 2007). Em relatório de gestão do período de 2003 a 2006, da Coordenação Geral de Saúde Mental do Ministério da Saúde, fica evidente o esforço que vem sendo empreendido no sentido de não reduzir a reforma psiquiátrica à desospitalização, colocando em pauta ações na atenção básica como componente fundamental da desinstitucionalização do cuidado a pessoas com transtornos mentais, nos últimos anos. Neste período, a estratégia de implementação de equipes matriciais de referência em saúde mental tem sido articulada e ampliada junto aos gestores municipais (Brasil, 2007). Este processo culminou na edição da Portaria 154/2008, a partir da qual ficam criados os Núcleos de Apoio em Saúde da Família (NASF), incluindo a recomendação expressa de que os NASF contem com, pelo menos, um profissional de saúde mental encarregado de fazer apoio matricial (Brasil, 2008). É importante indicar que o destaque que vem sendo dado mais recentemente a esta articulação não implica que a questão seja propriamente inovadora (Dimenstein, 1998; Martins, 1993; Silva, 1988). Internacionalmente, relatório da Organização Mundial da Saúde (OMS) e da Organização PanAmericana da Saúde (OPAS) destaca que “muitas vezes os profissionais de atenção primária de saúde vêem (mas nem sempre reconhecem) angústia emocional”, e que o “reconhecimento e manejo precoce de transtornos mentais podem reduzir a institucionalização e melhorar a saúde mental dos usuários” (OMS/OPAS, 2001, p.90). O destaque dado, aqui, à questão da formação dos profissionais de saúde atuantes na atenção básica, bem como da promoção e prevenção da saúde mental indica, porém, que há muitos desafios neste campo, os quais exigem esforços de diversas ordens, dentre os quais: a reflexão a respeito das possibilidades e limites concretos da articulação em questão. Focalizando o processo da reforma psiquiátrica brasileira, o presente trabalho propõe estabelecer componentes fundamentais para a implementação de ações de cuidado a pessoas com transtornos 152
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mentais na atenção básica, por meio da análise de algumas experiências que expressam esta articulação, considerando a complexa e relativamente difusa fronteira entre as ações de cuidado em saúde mental desenvolvidas em serviços substitutivos e as ações de atenção básica. Indiretamente, por meio da discussão destes componentes, também são avaliados criticamente avanços e percalços históricos da reforma psiquiátrica brasileira. De modo a perseguir o objeto de preocupação deste artigo, é realizado o seguinte percurso: indicase, inicialmente, a importância do Movimento Nacional da Luta Antimanicomial (MNLA) na demarcação de uma perspectiva de desinstitucionalização dos cuidados a pessoas com transtornos mentais na atenção básica, acenando positivamente para as possibilidades da articulação, no aspecto conceitual, dos princípios do Sistema Único de Saúde (SUS) e a reforma psiquiátrica brasileira. Na sequência, são apresentados e debatidos componentes considerados fundamentais para operacionalizar esta articulação no próprio processo de trabalho em saúde, no cotidiano da organização dos serviços de atenção básica, por meio da análise dos principais aspectos de estudos e experiências que retratam propostas concretas de articulação entre ações de saúde mental e ações de atenção básica desenvolvidas no âmbito do SUS. Finalmente, à luz dos desafios históricos colocados para o avanço da reforma psiquiátrica brasileira, discute-se a propósito dos componentes elencados, buscando apontar caminhos e direções possíveis para o desenho de políticas de atenção à saúde mental que tenham, no horizonte, a perspectiva antimanicomial, e que considerem a atenção básica como uma de suas dimensões estruturantes. Desta forma, são levantadas questões, identificados problemas e feitos indicativos no sentido dos cuidados exigidos em termos da articulação saúde mental/atenção básica, apresentados aqui na forma de componentes. Foge do escopo deste trabalho analisar de que maneira as experiências analisadas impactaram (ou impactam, no que se refere àquelas em curso) no processo de reforma no país, o que se propõe seja objeto de pesquisas empíricas (avaliativas) futuras. Desta forma, sem a pretensão de esgotar todas as questões relacionadas ao tema, prioriza-se, no presente texto, o debate teórico e conceitual, com vistas a sinalizar, a pesquisadores e formuladores de políticas públicas, aspectos julgados relevantes para a implementação de ações de saúde mental na atenção básica.
Luta antimanicomial e atenção básica: tecendo um percurso A história da atenção à saúde mental no Brasil é marcada pela perspectiva asilar. No período da ditadura militar é notável a enorme expansão do número de leitos psiquiátricos contratados com hospitais privados, a ponto de cerca de 90% do orçamento do Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (INAMPS) ser destinado à contratação de tais leitos no ano de 1978 (Cesarino, 1989). A edição, pelo então Instituto Nacional da Previdência Social (INPS), do “Manual de Serviços de Assistência Psiquiátrica Ambulatorial” em 1973 indicava a percepção dos gestores a respeito da necessidade de ampliar a atenção ambulatorial à saúde mental. Porém isso não representou mudanças práticas, na medida em que o INAMPS mantinha a política de contratação de leitos psiquiátricos em hospitais privados para atender a população assegurada, e um parque manicomial público para atender os não-assegurados (Rosa, 2003). Nos primeiros anos da década de 1980, no período da co-gestão entre Ministério da Saúde e Ministério da Previdência e Assistência Social, o Conselho Consultivo da Administração de Saúde Previdenciária (Conasp) elaborou um plano que veio a ser conhecido como “Plano Conasp”, destinado a estimular a descentralização e ambulatorização da assistência à saúde, em geral, por meio das Ações Integradas de Saúde (Mendes, 1994). No campo da saúde mental, em particular, colocou-se a meta de se reduzirem em 30% as internações psiquiátricas, limitar-se o tempo médio de internação de noventa para trinta dias, e de se expandirem em 50% as consultas ambulatoriais - o que ocorreu de forma localizada e, ainda assim, com reação do setor privado (Amarante, 1995). No que se refere às políticas de governo, observa-se, desta forma, que mesmo as “tímidas” iniciativas no sentido da redução da hospitalização provocavam reação dos donos dos manicômios, mesmo sem haver, sequer de longe, qualquer indicação da necessidade de um amplo processo de desconstrução do parque manicomial no sentido da implementação de serviços substitutivos de atenção à saúde mental. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
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A institucionalização de um dispositivo legal que aponta claramente diretrizes para o desenvolvimento de ações de saúde mental na atenção básica se dá somente no contexto que sucede a Lei Orgânica da Saúde, por meio da Portaria 224/1992 (Brasil, 2004). Resgatando os princípios do SUS, a portaria define normas para a atenção em saúde mental tanto em nível ambulatorial (unidade básica de saúde, centro de saúde, ambulatório, núcleo e centro de atenção psicossocial) quanto em nível hospitalar. Trata-se de um marco legal em termos das ações de saúde mental na atenção básica: o atendimento ambulatorial de demandas em saúde mental também deveria ocorrer nas UBS, como responsabilidade de uma equipe multiprofissional, composta por profissionais especializados (médico psiquiatra, psicólogo, assistente social) ou não (médico generalista, enfermeira, auxiliares, outros agentes de saúde). É importante situar que, no período imediatamente anterior e posterior à “reabertura democrática” (início da década de 1980), é que se dão as mais importantes inflexões no curso da reforma psiquiátrica brasileira, consistindo em um momento de relevantes transformações na atenção à saúde mental nos planos teórico-assistencial, técnico-assistencial, jurídico-político e sociocultural. Parte destas transformações é incorporada às políticas de Estado, e este processo, conflitivo, entre as demandas do MNLA e as políticas de governo efetivamente adotadas, é que veio a ser historicizado como a reforma psiquiátrica brasileira (Luzio, L’Abbate, 2006; Paulin, Turato, 2004; Tenório, 2002; Yasui, 1999; Amarante, 1997, 1996, 1995; Resende, 1987). O MNLA, fundado no II Encontro Nacional de Trabalhadores de Saúde Mental, realizado no ano de 1987, em Bauru/SP, foi organizado a partir do Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental, agregando profissionais, estudantes, técnicos, pessoas com transtornos mentais e seus familiares em torno das lutas políticas por condições dignas de trabalho e pelo direito de atenção à saúde mental, sob a consigna “Por uma Sociedade sem Manicômios”. O movimento passa a reivindicar que a denúncia do manicômio consiste em ir além de tornar pública sua ineficácia em relação aos cuidados com o sujeito em sofrimento psíquico tão somente no plano técnico-assistencial. A superação da mentalidade manicomial implica a defesa tanto da desospitalização da população cronificada, mantida em longa permanência, quanto um processo de desinstitucionalização, ao se adotar A direção de uma intervenção prática que remonte a cadeia das determinações normativas, das definições científicas, das estruturas institucionais, através das quais a doença mental – isto é, o problema – assumiu aquelas formas de existência e de expressão. Por isso, a proposição da solução reorienta de maneira global, complexa e concreta a ação terapêutica como ação de transformação institucional. (Rotelli, Leonardis, Mauri, 2001, p.29 – grifo no original)
Neste sentido, remete-se ao conjunto da sociedade um questionamento sobre um modo de produção e reprodução social que institui uma sociabilidade que é fonte de sofrimento psíquico, assentando-se na desigualdade. A busca de novas soluções terapêuticas não pode perder de vista que este sofrimento é capturado para o interior da nosografia médico-psiquiátrica por meio da denominada “doença mental”. Assim, a reforma psiquiátrica brasileira transcende os limites de uma preocupação restrita às políticas públicas de saúde, no espírito da própria definição de saúde consignada na “Lei do SUS”, ao acenar que, no campo do cuidado às pessoas com transtornos mentais, são requeridas intervenções interinstitucionais e intersetoriais (habitação, trabalho, esporte, cultura, lazer etc.). Isto posto, dentre algumas das mais importantes contribuições do MNLA para a reforma psiquiátrica brasileira, destacam-se as seguintes: (1) a denúncia da invisibilidade da loucura excluída e da identidade “marginal” da doença mental, (2) a indicação da necessidade de invenção de meios técnicos que superem estratégias cerceadoras da liberdade, e (3) o questionamento da ordem social que produz a loucura. No que tange, porém, às convergências que podem ser observadas no curso da trajetória brasileira da desinstitucionalização do cuidado às pessoas com transtornos mentais e o campo da atenção básica, há, pelo menos, outras três questões que são relevantes: (a) a necessidade de reconhecimento institucionalmente legitimado (pelas políticas de saúde) da dimensão da subjetividade na abordagem do 154
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processo saúde-doença; (b) a necessidade de problematização da implicação/compromisso dos técnicos/ profissionais com a loucura (enquanto fenômeno) e com a exclusão desta (enquanto processo), e (c) a avaliação crítica do lugar ocupado pela (e/ou delegado à) família no processo de cuidado a seus familiares com transtornos mentais. Com relação à primeira questão, Amarante (1995) sublinha que, na trajetória sanitarista da reforma psiquiátrica brasileira, a pressuposição de níveis estanques de complexidade tecnológica da assistência buscando a racionalização do cuidado teve, como efeito, a captura da pessoa com transtornos mentais ao registro da doença, abstraindo a dimensão da subjetividade das necessidades de cuidado. A desconstrução/invenção de estratégias antimanicomiais passa, necessariamente, pelo reconhecimento de que, para além de um “doente”, de um “paciente”, um sujeito portador de uma singular existênciasofrimento habita um território determinado, ao qual devem ser direcionados os esforços de cuidado. Neste sentido, em que a pessoa a ser tratada assume estatuto de agente do cuidado, tem sido possível construir “uma rede de novos serviços: espaços de sociabilidade, de trocas, em que se enfatiza a produção de saúde como produção de subjetividades” (Costa-Rosa, Luzio, Yasui, 2003, p.32). É importante notar que esta rede se constitui tendo, como base, precisamente o mesmo território em que atuam as equipes da ESF, em que se realizam – ao menos é o que se preconiza: a adscrição da população nele residente, o diagnóstico situacional, o enfoque interinstitucional e intersetorial do cuidado etc. A segunda questão, de certo modo relacionada com a primeira, indica a necessidade de se pôr em pauta a tendência de os operadores do cuidado em saúde desautorizarem o sujeito com transtornos mentais. Desinstitucionalizar o cuidado consiste na suspensão da tendência a um enquadramento nosográfico imediato, para que a forma singular de desenvolvimento do processo saúde-doença seja evidenciada e, então, visualizada a possibilidade de se instituírem determinadas práticas de cuidado (eventualmente, projetos terapêuticos-pedagógicos). Simultaneamente e, na medida em que o território é o ponto de partida da gestão do cuidado, a comunidade (familiares, vizinhança, correligionários etc.) também se inclui nesse questionamento, e pode contribuir na desinstitucionalização (Nicácio, 2001). Neste sentido, vale registrar que a ESF se favorece da inclusão do profissional agente comunitário de saúde para ampliar sua escuta e acolhimento, bem como os vínculos produzidos, portanto, com a população atendida, o que não isenta os demais profissionais da equipe de construir coletivamente estratégias para esta ampliação. Finalmente, a terceira questão aponta que o surgimento dos familiares de pessoas com transtornos mentais, como sujeito coletivo no processo de reforma psiquiátrica, fundamentalmente a partir dos anos 90, permitiu a ressignificação do papel desempenhado pelos familiares no cuidado em saúde mental. Se, na perspectiva asilar, a família era afastada do tratamento por entender-se que as relações familiares poderiam ser patogênicas, Rosa (2003) aponta que o recrudescimento das políticas neoliberais vem impelindo à família encargos no cuidado. Conforme a autora, há cinco principais direções atribuídas à família neste período: como recurso no tratamento; como lugar de convivência; como sofredora e demandante de suporte no cuidado com o familiar com transtornos mentais; como sujeito coletivo atuante nos movimentos de reivindicação por direitos de atenção à saúde mental, e, por fim, como provedora, continuamente ou eventualmente, de cuidado para o familiar. Evidentemente, a ESF, ao considerar a família como uma unidade de cuidado, tem o desafio de manter no horizonte tais questões, no que se refere, inclusive, ao cuidado de pessoas com transtornos mentais. Além disso, a permeabilidade da atenção básica à participação popular tem a potencialidade de ampliar, na equipe, a capacidade de escuta e acolhimento – o que remete indiretamente à segunda questão elencada acima – bem como de viabilizar o investimento na organização de grupos de técnicos/profissionais da própria equipe, assim como de usuários e familiares interessados em debater os desafios colocados para a luta antimanicomial (Lüchmann, Rodrigues, 2007). Quais seriam, porém, os componentes fundamentais da articulação atenção básica/saúde mental, levando-se em conta estudos e experiências que apontam possibilidades na desinstitucionalização do cuidado a pessoas com transtornos mentais na atenção básica? Em outras palavras, tomando a desinstitucionalização como noção-guia, em que medida estudos e experiências municipais e locorregionais, que investem nesta articulação, fornecem indicativos para a implementação de ações de cuidado a estas pessoas na atenção básica? 155
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Componentes fundamentais da articulação atenção básica/saúde mental Em linhas bastante gerais, a ESF se estrutura tendo como base uma equipe multiprofissional que atua a partir da adscrição e territorialização da população atendida, possibilitando continuidade da atenção e a constituição de vínculos no processo de cuidado à saúde. Como indicado anteriormente, trata-se da principal estratégia adotada atualmente pelo Ministério da Saúde para investir na reorganização do processo de trabalho na atenção básica, bem como do modelo assistencial em seu conjunto, buscando superar, na linha dos princípios doutrinários e organizativos do SUS, problemas históricos da atenção à saúde no Brasil, tais quais o acesso e a integralidade. Apenas a título de ilustração, o Ministério da Saúde informa, em seu site, que a cobertura das equipes de saúde da família aumentou de 35,7% no ano de 2003 para 46,6% no ano de 2007. A reorganização da atenção básica é fortemente influenciada por “inovações e mudanças no desempenho da gestão local e da relativa autonomia dos municípios em termos de implementação de atividades e programas de saúde pública” (Bodstein, 2002, p.411). Com efeito, a diretriz da descentralização e hierarquização das ações e serviços de saúde consignada no SUS confere, à dimensão locorregional, um espaço privilegiado para a análise de experiências cuja implementação reflete a incorporação das estratégias substitutivas de cuidado às pessoas com transtornos mentais à rede de atenção básica (Brasil, 2007). Verifica-se a publicação de um número relevante de trabalhos que se preocupam com questões da atenção à saúde mental na atenção básica, abordando múltiplos aspectos desta inter-relação. Desde o aspecto operativo da articulação enfatizada no presente trabalho, destacam-se os seguintes enquanto componentes fundamentais apresentados nos estudos e relatos de experiência analisados: (1) desenvolver processos de comunicação que se destinem a ampliar a legibilidade profissional, ou seja, a capacidade de tornar acessível, aos outros profissionais, as especificidades de seu núcleo, socializando saberes e práticas (Iribarry, 2003) entre generalistas e especialistas em saúde mental; (2) superar a centralização em ações restritas aos enquadres tradicionais aos quais recorrem os profissionais do campo da saúde mental; (3) manter questionamento permanente em relação ao risco de psiquiatrização do cuidado em saúde mental; (4) superar concepções culpabilizantes do grupo familiar, tais como “família desestruturada”, e (5) investir na formação das equipes de atenção básica para as múltiplas dimensões do cuidado em saúde mental. O primeiro componente aponta para a necessidade de maior legibilidade entre generalistas da atenção básica e especialistas em saúde mental. Para além, propriamente, das disputas corporativas, há uma via de mão dupla requerida na articulação das ações entre estes operadores do cuidado: por parte dos primeiros, especialmente em equipes-agrupamento (Peduzzi, 2001), a ênfase biomédica no substrato anatomofisiopatológico do processo de adoecer produz uma abstração da dimensão da subjetividade no processo saúde-doença, cuja atenção requer estratégias para as quais muitos profissionais não estão e/ou não se sentem preparados para adotar. Por parte dos segundos, encontra-se uma tendência a se aferrar ao núcleo específico de sua competência profissional, reforçada por um pré-julgamento de que a complexidade dos cuidados à saúde mental não autoriza o generalista a desenvolver quaisquer ações eficazes neste campo. Experiências têm mostrado alternativas interessantes: agentes comunitários de saúde (ACS) sendo capacitados para o acolhimento de demandas em saúde mental, profissionais dos centros de atenção psicossocial (CAPS) desenvolvendo atividades de discussão de casos em UBS ou unidades de saúde da família (USF), e equipes (de atenção básica e de saúde mental) se corresponsabilizando pelo cuidado nas estratégias de matriciamento (Barban, Oliveira, 2007; Tófoli, Fortes, 2007; Silveira, 2003; Lancetti, 2000b; Pereira, Andrade, 2000; Sampaio, Barroso, 2000). Com relação ao segundo componente, nota-se ainda consistir em um desafio, para muitos profissionais especialistas em saúde mental, prescindirem do atendimento individual como estratégia privilegiada. Alguns profissionais mais “flexíveis” (com relação ao enquadre das ações de cuidado) veem com certa reserva visitas domiciliares ou outras atividades no espaço da comunidade, quanto às possibilidades de cuidado de pessoas com transtornos mentais. Situações como violência doméstica
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(contra crianças, adolescentes, idosos), assistência à população de rua e a complexa atuação diante de problemas relacionados ao uso de álcool e outras drogas, exigem, da atuação na atenção básica, uma disponibilidade para atuar em espaços “não protegidos”. Intervenções que priorizam a articulação com a rede social de apoio da pessoa e da família e ações destinadas à redução de danos são emblemáticas ao apresentar o potencial de ações “extramuros” (ou seja, centradas nas famílias e comunidade) na desinstitucionalização dos cuidados de pessoas com transtornos mentais na atenção básica (Alverga, Dimenstein, 2007; Nunes, Jucá, Valentim, 2007; Souza et al., 2007; Lancetti, 2000b). O terceiro componente atenta para a necessidade de se manter um questionamento permanente em relação ao risco de psiquiatrização do cuidado em saúde mental, de modo a enfrentar, paralelamente às diversas dimensões da luta contra a lógica manicomial, o problema de décadas de intenso recurso à medicação (psicofarmacoterapia), muitas vezes enquanto estratégia exclusiva e isolada. Pesquisa domiciliar envolvendo as 107 maiores cidades brasileiras indica que um percentual de 3,3% da população fez uso de benzodiazepínicos pelo menos uma vez na vida (Galduróz et al., 2005); e uma pesquisa, em que foram realizadas entrevistas com pessoas residentes em área de atuação de duas equipes de saúde da família do município de Natal, mostra que esta população faz uso elevado e constante deste tipo de psicofármaco (Dimenstein et al., 2005). Atividades permanentes de discussão de casos junto a profissionais de saúde mental, por exemplo, são importantes contextos que favorecem discussão, reflexão e encaminhamento de estratégias de cuidado que considerem as múltiplas determinações do processo saúde-doença e apoiem a superação de um enquadre medicalizante no cuidado à pessoa com transtornos mentais (Modesto, Santos, 2007; Coimbra et al., 2005; Vieira Filho, Nóbrega, 2004; Lancetti, 2000a). O quarto componente refere-se à necessidade de se superarem concepções culpabilizantes do grupo familiar, tais como a idéia de “família desestruturada”, consistindo mais em uma questão histórica das políticas sociais voltadas à família, no Brasil, do que referida propriamente aos vínculos diretos da família enquanto unidade de cuidado nas ações em saúde mental (Vasconcelos, 1999). Com efeito, tais concepções implicam indiretamente o trabalho dos profissionais de saúde mental. Defende-se a estratégia de que famílias com maiores dificuldades psicossociais devem ser atendidas mais prontamente (Lancetti, 2000b). Ao mesmo tempo, na abordagem do grupo familiar, quando há um bom vínculo constituído, é importante que se priorize o cuidado do(s) familiar(es) cujo enfrentamento tenha maior possibilidade de sucesso imediato, de modo que a família possa ganhar maior confiança na capacidade terapêutica de atividades engendradas em corresponsabilidade entre a equipe e a família. Além disso, vale atentar para que a abordagem de risco, bem como as abordagens sistêmicas da família, não criem estigmatizações não correspondentes com o dinamismo e complexidade da vida familiar (Dalla Vecchia, Martins, 2006; Ribeiro, 2004; Rosa, 2003; Melman, 2001). O quinto componente, finalmente, aponta para a importância de se investir na formação das equipes de atenção básica, considerando-se fundamentais políticas claras de formação em saúde mental para os profissionais da Estratégia de Saúde da Família. A Coordenação Geral de Saúde Mental do Ministério da Saúde vem indicando que a construção de processos de formação de equipes de saúde mental e da atenção básica deve ser prioridade na pauta de ações das políticas públicas nessa área (Brasil, 2007, 2003). Estudos tais quais o de Nunes, Jucá e Valentim (2007) têm indicado que processos de formação em saúde mental são ineficazes quando pontuais e pouco abrangentes. Não obstante a complexidade inerente à tarefa de se aliar formação básica e continuada em saúde mental, cabe às gestões municipais estruturarem tais programas, conformando um conjunto de atividades que recorram a: oficinas de sensibilização, atividades modulares ou temáticas de ensino, supervisão externa, apoio técnico via matriciamento etc., enquanto importantes ações para que se possa avançar na desinstitucionalização dos cuidados de pessoas com transtornos mentais na atenção básica (Martins, 2008; Bandeira, Freitas, Carvalho Filho, 2007; Marçal, 2007; Souza et al., 2007; Dalla Vecchia, 2006; Souza, 2004; Brêda, Augusto, 2001).
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Considerações finais A construção histórica de um movimento de reforma psiquiátrica que se destina à manutenção da pessoa com transtornos mentais no seu cotidiano, investindo-se em suas redes sociais e familiares, na medida em que se procura limitar tanto quanto possível seu ingresso no circuito do hospital psiquiátrico, vem trazendo transformações na relação dos profissionais da saúde mental com a demanda, e, concomitantemente, um questionamento a respeito da sua própria prática. Assim, a efetividade das ações estabelecidas para as equipes de Saúde da Família, inclusive para que a atenção à saúde mental se incorpore nas práticas cotidianas, requer que o cuidado em saúde se dê a partir de uma noção ampliada de saberes clínicos e epidemiológicos. Alves (2001, p.173) ressalta que, no campo da saúde mental, “alguns sanitaristas e especialistas ainda divergem quanto à pertinência e eficácia” da ESF, indicando que seu formato de organização tende a reproduzir o tradicional modelo médico biológico. Neste sentido, deve-se considerar que a composição fixa das equipes, em termos dos profissionais integrantes, pode ser um fator restritivo à possibilidade de os gestores municipais alocarem, às equipes, os profissionais que seriam os mais adequados para a gestão do cuidado, em conformidade com o planejamento e os indicadores epidemiológicos. Assim, em uma cadeia de cuidados progressivos de saúde é necessário levar em conta a alta complexidade social e epidemiológica do sofrimento vivenciado pela pessoa com transtornos mentais, tendo em vista uma abordagem integral do processo saúde-doença. Schraiber e Mendes-Gonçalves (2000), ratificando esta posição, afirmam que “muitas das situações cotidianas constituem casos instrumentalmente simples e que, por vezes, são patologicamente mais fáceis, mas que nem por isso deixam de envolver uma grande complexidade assistencial” (p.35). Dentre outras questões, tal complexidade refere-se à contradição entre a hipertrofia da pressão por produção de procedimentos, à qual grande parte das equipes está exposta, em oposição à necessidade de articulação da equipe para a produção de práticas que promovam a saúde das pessoas atendidas, inclusive no campo da saúde mental. A manutenção de espaços coletivos para o planejamento de ações e para a formação continuada – que não raramente são secundarizados pelos gestores e, eventualmente, pela própria equipe – é ocasião fundamental para a constituição de linhas de cuidado e pactuação de protocolos assistenciais. No cuidado às pessoas com transtornos mentais, esta atividade também se justifica, dado que os serviços substitutivos ao hospital psiquiátrico são dotados de grande (e intencional) diversidade, e a construção de tais linhas e protocolos a partir das equipes atuantes na atenção básica é um processo que exige investimento contínuo. É essencial, também, promover a valorização e qualificação da escuta do sofrimento psíquico pelo ACS no território, dentre outras ações que invistam na constituição de vínculos, na ampliação da corresponsabilização entre equipes de saúde e família, bem como na capacidade de acolhimento das equipes de atenção básica. No que se refere à ênfase na família e na comunidade e, portanto, no território como o lugar de intervenção das equipes de atenção básica, considera-se importante realizar um resgate das contribuições da Psicologia Social-Comunitária. Freitas (2002) aponta que a prática profissional nesta área requer a atuação “junto a relações que são travadas na esfera do cotidiano, eliminando-se estruturas reducionistas, psicologizantes e a-históricas sobre os processos psicossociais” (p.76). Esta área tem contribuições conceituais, e sobretudo metodológicas, a fornecer para o avanço da desinstitucionalização do cuidado às pessoas com transtornos mentais na atenção básica, por meio de estratégias tais quais: a pesquisa-ação, os estudos psicossociológicos e as intervenções institucionalistas enquanto recursos que podem potencializar práticas substitutivas de cuidado em saúde mental com foco no território. Com relação à medicalização da pessoa portadora de transtornos mentais, Alves e Guljor (2003) sublinham que As questões do sofrimento mental precisam ser detectadas por toda rede de serviços, mesmo na atenção primária, na rede básica, não sendo necessário o especialista para reconhecê-las. No entanto, não se pode ter para esse grupo de problemas uma perspectiva simplista, ou
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seja, resumir as dificuldades da vida cotidiana a um conflito psicológico. Essa simplificação grosseira, em determinadas circunstâncias, nas décadas de 60 e 70, foi denominada “psicologização” dos problemas sociais. É importante que a questão da subjetividade seja do conhecimento dos profissionais de saúde, mas que não se banalizem os instrumentos de intervenção do campo da saúde mental, transformando-os em pretensos “anestésicos sociais”. (p.225-6)
Em adição, é necessário ter claro que uma intervenção qualificada de cuidado em saúde mental, pelas equipes atuantes na atenção básica, e um processo racional de desospitalização da população submetida ao asilamento psiquiátrico não podem permitir que recaiam, sobre a família, encargos tais que produzam uma condição de desassistência, mantendo-se em foco a necessidade de refúgio da pessoa com transtornos mentais em momentos mais pontuais de crise. Até mesmo porque, neste caso, a condição de desassistência psiquiátrica passa a se constituir em uma fonte de pressão sobre as próprias equipes de saúde da família, ao passo que estas se encontram em relação direta e cotidiana com as famílias e seus familiares com transtornos mentais. São, porém, imensos os desafios vinculados ao estabelecimento de programas de atenção à saúde mental ligados à atenção básica: necessidade de priorização deste tipo de programa pela gestão em todos os níveis, e sua própria continuidade; disponibilidade de profissionais que aceitem atuar em áreas de favelização com uma perspectiva antimanicomial (Lancetti, 2000b), bem como o levantamento de prioridades a partir de demandas locais (não seguindo um modelo genérico); a disponibilidade de um arranjo de serviços, sua adequação cultural conforme a comunidade atendida, e o investimento dos recursos em sistemas de cuidado, e não nos indivíduos (Cohen, 2001). O trabalho de desconstrução do manicômio e da cultura manicomial envolve políticas sociais de conjunto, implicando o reconhecimento da necessidade de: moradias substitutivas e assistidas para exinternos psiquiátricos; espaços de trabalho protegido (mas não “tutelado”); inserção em atividades culturais e de lazer etc. Vale ressaltar, ainda, os limites estruturais de iniciativas “reformistas” que não ponham em pauta um projeto societário, e indiquem claramente o que se compreende com a expressão “inclusão social”. Neste sentido evoca-se, por oportuna, uma ponderação de Campos (2007, p.1873): “Se o SUS dependeu do movimento sanitário para constituir-se, pode-se constar hoje que, tanto a opinião pública, quanto os governantes e, até mesmo, mídia e a intelectualidade não se deram conta da filiação do SUS à tradição de políticas públicas de caráter socialista”. Busca-se, com o presente trabalho, oferecer algumas pistas e indicações para se subsidiar o tracejado de caminhos possíveis diante da necessidade de se avançar nos tortuosos (porém instigantes) percursos da reforma psiquiátrica brasileira, por meio da constituição de ações vinculadas ao campo da atenção básica, espaço demandante de transformações de saberes e práticas.
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VECCHIA, M.D.; MARTINS, S.T.F. Aportes para la implementación de acciones ajenas a la institución en los cuidados a personas con transtornos mentales en atención básica. Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.13, n.28, p.151-64, jan./mar. 2009. Se parte del interés dispensado contemporáneamente a las articulaciones entre salud mental y atención básica. Tras breve síntesis histórica y conceptual en este campo, se discuten aspectos operativos de los cuidados con los transtornos mentales en la atención básica fuera la institución. Con el análisis de algunos estudios y experiencias se destacan componentes fundamentales para avanzar en este sentido: (1) desarrollar procesos de comunicación para ampliar la legibilidad profesional, (2) superar la centralización en acciones restringidas a los encuadres tradicionales, (3) mantener cuestionamiento permanente con relación al riesgo del cuidado psiquiátrico en salud mental, (4) superar concepciones de culpabilidad del grupo familiar y (5) invertir el la formación de los equipos de atención básica para las múltiples dimensiones del cuidado en salud mental. De esta manera se apuntan algunos caminos y direcciones posibles para el diseño de acciones de salud mental en la atención básica que tengan en el horizonte la perspectiva anti-manicomio.
Palabras clave: Atención básica. Reforma psiquiátrica. Lucha anti-manicomio. Salud de la familia. Salud mental. Recebido em 09/02/08. Aprovado em 23/06/08.
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Ações para o enfrentamento da violência contra a mulher em duas unidades de atenção primária à saúde no município do Rio de Janeiro* Tatiana dos Santos Borsoi1 Elaine Reis Brandão2 Maria de Lourdes Tavares Cavalcanti3
BORSOI, T.S.; BRANDÃO, E.R.; CAVALCANTI, M.L.T. Actions addressing violence against women at two primary healthcare centers in the municipality of Rio de Janeiro. Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.13, n.28, p.165-74, jan./mar. 2009. The aim here was to investigate and discuss actions for addressing domestic violence within the scope of the Women’s Comprehensive Healthcare Program. For this, it was sought to survey and compare professional practices at two health centers in the municipality of Rio de Janeiro, of which one was a referral center caring for victims of violence. Eight semistructured in-depth interviews were conducted with professionals from the teams of the Women’s Comprehensive Healthcare Program. Although both centers often identified users who had been victims of domestic violence, the professionals at the referral center were shown to be better prepared for identifying this problem when it was not explicitly presented, and for developing welcoming practices within their own healthcare unit. What differentiated the two units was how the problem was addressed, which was related to the way in which each service understood violence as a demand inherent to the healthcare sphere.
Key words: Primary healthcare. Women’s health. Violence against women. Domestic violence. Gender violence.
Propôs-se conhecer e discutir ações voltadas para o enfrentamento da violência doméstica no âmbito do Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher. Para tanto, buscou-se levantar e comparar as práticas profissionais em duas unidades de saúde do município do Rio de Janeiro, sendo uma delas referência para o atendimento às vítimas de violência. Foram realizadas oito entrevistas em profundidade, semiestruturadas, com profissionais das equipes do Programa de Saúde da Mulher. Embora ambas as unidades identifiquem frequentemente usuárias vítimas de violência doméstica, na unidade de referência os profissionais se mostraram mais preparados para identificar o problema quando este não se apresenta de forma explícita e para desenvolver ações de acolhimento dentro da própria unidade de saúde. O que diferencia as duas unidades é o encaminhamento dado ao problema, relacionado com a forma como cada serviço entende a violência como demanda inerente também à esfera da saúde.
Palavras-chave: Atenção primária à saúde. Saúde da mulher. Violência contra a mulher. Violência doméstica. Violência de gênero.
Elaborado com base em Borsoi (2007). 1 Assistente social. Hospital Geral de Bonsucesso, Ministério da Saúde. Avenida Londres, 616, Bonsucesso, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. 21.041-030 tatianaborsoi@gmail.com 2 Assistente social. Departamento de Medicina Preventiva, Faculdade de Medicina e Instituto de Estudos em Saúde Coletiva, Universidade Federal do Rio de Janeiro. 3 Médica. Departamento de Medicina Preventiva, Faculdade de Medicina e Instituto de Estudos em Saúde Coletiva, Universidade Federal do Rio de Janeiro. *
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Introdução Nas últimas décadas, a violência contra a mulher tem sido reconhecida como um problema de Saúde Pública, por organismos internacionais como a Organização Mundial de Saúde (OMS) e a Organização Pan-Americana de Saúde (Opas). A OMS relaciona essa violência à maior ocorrência de diversos problemas de saúde física, reprodutiva e mental, assim como ao maior uso de serviços de saúde por parte das mulheres (Schraiber, 2001). A expressão “violência contra a mulher” inclui as mais diversas situações: violência física, sexual e psicológica, cometida por parceiro íntimo; estupro; abuso sexual de meninas; assédio sexual no local de trabalho; violência étnica e racial; violência cometida pelo Estado por ação ou omissão; mutilação genital; violência e assassinatos ligados ao dote; estupro em massa nas guerras e conflitos armados (OEA, 1996). Embora a violência possa ser cometida por diversos perpetradores, estudos populacionais e em serviços de saúde indicam que há um maior risco de agressão às mulheres por parte de parceiros íntimos do que por estranhos (Schraiber et al., 2002; Deslandes, Gomes, Silva, 2000; Heise, Pitanguy, Germain, 1994). Segundo estudo internacional realizado por Heise, Pitanguy e Germain (1994), a violência doméstica atinge cerca de 20% a 50% das mulheres ao redor do mundo ao menos uma vez em toda a vida. No Brasil, as pesquisas realizadas com dados populacionais (Fundação IBGE, 1990), em delegacias especiais de atendimento à mulher (Brandão, 2006, 1997; Soares, 1999), ou em serviços de saúde (Schraiber et al., 2002; Deslandes, Gomes, Silva, 2000), apontam também um padrão centrado na violência doméstica, com o parceiro ou ex-parceiro como agressor. Os episódios violentos são repetitivos e tendem a se tornar mais graves caso não haja uma ação que os interrompa. Nos últimos anos, foram criados, no Brasil, serviços voltados para mulheres em situação de violência, tais como: as delegacias de defesa da mulher, as casas-abrigo e os centros de referência multiprofissionais (Schraiber et al., 2002). No setor saúde, a questão passa a ter importância com a implantação do Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher (Paism) na década de 1980, com a proposta de explorar questões de gênero e abordar as necessidades integrais de saúde da mulher (Costa, 1999; Schraiber, D’Oliveira, 1999). Entretanto, esta iniciativa não significou, na época, mudanças expressivas na atenção à mulher em situação de violência, por parte dos serviços de saúde, uma vez que, na prática, as ações priorizadas se restringiram à saúde reprodutiva (Correa, Piola, 2003). No Brasil, a preocupação em capacitar os profissionais para identificarem a presença de mulheres em situação de violência nos serviços de saúde se inicia no final da década de 1990. Atualmente, o Ministério da Saúde e diversas organizações não-governamentais feministas têm produzido material didático, com orientações sobre o tema, e oferecido treinamentos aos profissionais de saúde de modo que eles possam identificar, apoiar e dar o devido encaminhamento às vítimas de violência. Um avanço já pode ser percebido no que tange ao enfrentamento da violência sexual pelos serviços de saúde. Tais medidas resultam tanto da compreensão de que a violência representa uma violação dos direitos humanos, como também do reconhecimento de que esta é uma importante causa do sofrimento e adoecimento, sendo fator de risco para diversos problemas de saúde (físicos e psicológicos). Apesar desses avanços, os serviços de saúde nem sempre oferecem uma resposta satisfatória para o problema, que acaba diluído entre outros agravos, sem que seja levada em consideração a recorrência do ato que ocasionou aquela morbidade. Segundo Silva (2003), esta “invisibilidade” da violência decorre do fato de alguns setores ainda se limitarem a cuidar dos sintomas das doenças e não contarem com instrumentos capazes de identificar o problema. Desta forma, as intervenções acabam por mostrar respostas insuficientes dos serviços para as necessidades das mulheres, pois, uma vez que a situação de violência não se extingue, as repercussões sobre o adoecimento físico ou mental ressurgem e voltam a pressionar os serviços (Schraiber et al., 2002). 166
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BORSOI, T.S.; BRANDÃO, E.R.; CAVALCANTI, M.L.T.
4 Técnica em que o profissional de saúde busca identificar sinais de doenças (no caso, de violência doméstica) em pacientes, independente de qualquer demanda explícita.
artigos
Cavalcanti (2002) e Tuesta (1997), no entanto, constataram que os profissionais de saúde não têm dificuldades em identificar a violência, uma vez que suspeitam frequentemente desta. A maior dificuldade dos profissionais, segundo estas autoras, está em não saber como encaminhar a questão. A proposta para os serviços de saúde tem sido, simplesmente, detectar a violência com a “busca ativa”4 de rotina. Porém, quando detectada a violência, a demanda é rejeitada como “não-doença”, porque social, ou ao contrário, é percebida como patologia, reduzindo ao corpo individual algo que é fruto das interações humanas. Schraiber (2001) chama atenção que, ao se aplicar a idéia de doença à violência, pode-se incorrer no aprofundamento da idéia de vitimização, colocando as mulheres nesta situação, assim como os doentes, como sujeitos incapazes que necessitam de tutela especializada. Por estarem próximos à maioria das mulheres, que, por um motivo ou outro, os utilizam em seu cotidiano, os serviços de saúde têm o dever de se constituírem como um local de acolhimento e elaboração de projetos de apoio, ao invés de serem mais um obstáculo na tentativa empreendida pelas mulheres de transformar sua situação de opressão. A alta prevalência do problema nos serviços de saúde foi constatada por estudos tanto nacionais (Silva, 2003; Schraiber et al., 2002; Deslandes, Gomes, Silva, 2000), como internacionais (Mccauley et al., 1995; American Medical Association, 1994). No entanto, depois de constatada a presença de mulheres em situação de violência como demanda recorrente no setor saúde, é preciso refletir sobre como o setor tem absorvido e encaminhado o problema. As unidades de saúde são importantes na detecção da violência doméstica, porém sua identificação deve se constituir no início de um processo que busque apoiar tais usuárias na superação do problema. Nesse sentido, realizou-se uma investigação em duas unidades de atenção primária à saúde do município do Rio de Janeiro, em 2006, com o objetivo de conhecer como tais serviços absorvem e encaminham as demandas relativas às situações de violência percebidas pelos profissionais de saúde no atendimento cotidiano às usuárias. O enfoque na atenção primária se justifica por ser este um local privilegiado para o desenvolvimento de ações de prevenção, reflexão e orientação sobre o tema, pois tem uma grande cobertura e possibilita um contato mais estreito com as mulheres, podendo reconhecer e acolher o caso antes de incidentes mais graves.
Metodologia Optou-se pela metodologia de natureza qualitativa, uma vez que a pesquisa tem caráter exploratório e destina-se a entender o fenômeno, segundo a perspectiva dos profissionais de saúde envolvidos. O material empírico é composto por observação de campo e entrevistas em profundidade com oito profissionais de saúde do Paism, de duas unidades de atenção primária do município do Rio de Janeiro, ambas localizadas na zona norte da cidade. As duas unidades são referências para as ações do Paism, sendo que uma é referência também para o atendimento às vitimas de violência em sua área programática. Em cada unidade estudada, foi entrevistado um representante das seguintes categorias profissionais, a saber: médico, enfermeiro, assistente social e psicólogo. A princípio, a pesquisa procurava entrevistar todos os profissionais do Paism de COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.13, n.28, p.165-74, jan./mar. 2009
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cada unidade. No entanto, na unidade que não é referência para o atendimento às vítimas de violência, três profissionais não foram incluídos (duas assistentes sociais e uma psicóloga), por se recusarem a participar. As entrevistas foram realizadas no próprio serviço de saúde, com duração média de sessenta minutos. A observação de campo foi realizada pelo período de um mês em cada unidade, nos grupos de planejamento familiar e pré-natal. O material empírico é parte de uma pesquisa para dissertação de mestrado sobre as ações para o enfrentamento da violência doméstica no âmbito do Paism. Para este artigo, foram selecionados alguns eixos do roteiro de entrevista para serem abordados: 1) apreender como os serviços se estruturam para absorver a questão da mulher em situação de violência; 2) como esta demanda emerge nos serviços estudados; 3) conhecer as ações realizadas dentro das unidades para o enfrentamento dos casos de violência contra a mulher em âmbito doméstico; 4) entender a percepção dos profissionais de saúde sobre suas práticas e os limites enfrentados; 5) comparar as ações das duas unidades. Para fins de análise, as unidades estudadas serão designadas como: unidade referência e unidade não-referência, distinguindo-se, assim, a unidade já treinada no tema da violência de gênero. É importante ressaltar que a ética da pesquisa considerou: 1) o consentimento informado dos profissionais entrevistados; 2) a explicitação, aos entrevistados, sobre seu direito de interromper a entrevista a qualquer momento; 3) a garantia do sigilo dos dados coletados; 4) a garantia de retorno dos resultados após a conclusão da pesquisa. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro.
Resultados e discussão Os profissionais entrevistados têm de 32 a cinquenta anos. Foram sete mulheres e apenas um homem, todos com nível superior e do quadro permanente de profissionais da unidade. Os entrevistados conformam um grupo com vasta experiência em atenção à saúde da mulher, o que foi constatado pelo longo tempo de serviço nas unidades estudadas (de três a vinte anos); experiências anteriores na assistência à saúde da mulher; e pela participação em cursos e capacitações sobre o assunto. No que diz respeito à violência contra a mulher, os profissionais da unidade referência passaram por uma capacitação para o atendimento às vitimas, e a unidade mantém a continuidade da discussão sobre o assunto em seu centro de estudos. Na unidade não-referência, apenas a assistente social passou por uma especialização em violência doméstica. As ações do Paism realizadas nas duas unidades estudadas se dividem em: atendimentos individuais e grupos educativos com gestantes e usuárias do planejamento familiar. O espaço de grupo é reconhecido, pelos profissionais das duas unidades estudadas, como lócus privilegiado para a prevenção e identificação de casos de violência doméstica ou de gênero. Entretanto, nas ações de assistência à saúde da mulher nas duas unidades5, a violência doméstica é trabalhada apenas no grupo de planejamento familiar. Os profissionais apontam este espaço como um lugar estratégico para se trabalhar a prevenção da violência de gênero, uma vez que o programa cria um vinculo entre a usuária e a instituição, pela possibilidade de um atendimento continuado. Os profissionais relatam identificar, com frequência, casos de mulheres que 168
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5 No grupo do planejamento familiar, os temas discutidos giram em torno de saúde da mulher, sexualidade, gênero, violência e aborto.
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6 Os assuntos abordados são: prénatal, cuidado com o recém-nascido, maternidade e amamentação.
artigos
sofrem violência, no decorrer da atividade de grupo, especialmente quando o tema é trazido para debate – momento em que algumas mulheres choram ou relatam as agressões sofridas na esfera conjugal. No que se refere ao grupo de gestantes, ele foi apontado apenas pelos profissionais da unidade referência, como um lugar onde a prevenção da violência doméstica é trabalhada. Nessa unidade, os temas violência e gênero são abordados durante os encontros de gestantes, e os profissionais relatam já terem identificado, nesses grupos, gestantes que viviam situações de violência. Na unidade nãoreferência, este tema não está presente nas discussões do grupo de gestantes6. Percebe-se que há uma “sacralização” do período gestacional, que pode ser notado, inclusive, no depoimento de uma profissional entrevistada, que justifica a não discussão do tema violência com gestantes por elas estarem vivendo “um outro momento em suas vidas”. É importante notar que a literatura da área aponta uma alta incidência de violência cometida contra gestantes. Destacamos o estudo realizado por Schraiber et al. (2002) em uma unidade primária de saúde em São Paulo, onde 21,3% das gestantes atendidas no período pesquisado relataram sofrer agressões por parte do companheiro. O discurso enaltecedor da maternidade não encontra respaldo na realidade. O suplemento especial sobre violência contra a mulher do Maternal and Child Health Journal (Spitz, Marks, 2000) constatou que a violência pode ser um problema mais comum entre mulheres grávidas do que a pré-eclampsia e a diabetes gestacional. Estes dados apontam a urgência de se organizar os serviços de saúde de forma a possibilitar a identificação do problema na assistência pré-natal.
O reconhecimento da violência como uma demanda para o serviço de saúde Em ambos os serviços estudados, pode-se constatar, por meio dos relatos dos profissionais de saúde e da observação realizada, que a demanda da mulher em situação de violência se apresenta sempre de forma implícita, ou seja, não é esta situação que diretamente as leva às unidades de saúde. A violência aparece como demanda “explícita” apenas nos casos de violência sexual praticada por estranhos. A violência praticada contra as mulheres pelos parceiros, no âmbito doméstico, seja ela física, sexual, ou psicológica, não se constitui uma demanda imediata para os serviços. Todos os casos trabalhados são detectados pelos profissionais, seja no atendimento individual ou nos grupos, ocorrendo com frequência. No entanto, é preciso fazer uma diferenciação entre as duas unidades estudadas: quando perguntados se a violência contra a mulher era uma demanda frequente ao serviço, os profissionais da unidade não-referência respondiam que a mesma não aparecia no serviço. Porém, no transcorrer da entrevista, percebia-se que, na realidade, a violência nunca se apresentava como uma demanda imediata ao serviço, sendo expressiva como demanda “implícita”, em especial na prática clínica dos médicos, onde boa parte das queixas das mulheres estava relacionada com a violência doméstica, como mostra o relato da médica entrevistada: [...] geralmente [a usuária] não vem com essa queixa [de violência] assim [...] geralmente elas chegam com queixa ginecológica, é quando então aparecem as violências, é algo que não é de pequena intensidade não, é de muita intensidade [...] mulheres que vêm aqui, muitas delas são maltratadas por seus parceiros [...] Mais ou menos 40% [...] essa COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.13, n.28, p.165-74, jan./mar. 2009
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estatística, é se o profissional de saúde ver e perguntar [...] porque as vezes elas se fecham mesmo [...].
Na unidade referência, ao contrário, a demanda implícita é prontamente identificada como algo que compete ao serviço de saúde. Quando perguntados sobre a frequência com que a violência se apresenta como demanda na unidade, eles se referem a essa violência que é percebida no atendimento cotidiano às usuárias. Esta constatação sugere que, apesar de conseguirem identificá-la, alguns profissionais ainda encontram dificuldade em perceber a violência como demanda de ação específica para o setor saúde, o que, certamente, tem repercussões no seu envolvimento e intervenção posterior.
Encaminhamentos A demanda identificada é prontamente acolhida, seja na clínica médica ou nos grupos educativos das duas unidades estudadas. Há, no entanto, uma diferenciação quanto ao seu encaminhamento. Na unidade não-referência, os profissionais, ao acolherem o problema, oferecem todas as informações sobre os direitos da mulher no que tange à denúncia policial e às redes de suporte que podem ser acionadas nesses casos. Indagam ainda sobre a possibilidade e a vontade de a mulher romper com a situação violenta. No entanto, a abordagem se extingue, tendo dois desdobramentos possíveis: primeiro, caso aceite a possibilidade de denunciar à polícia, a mulher é encaminhada “para fora” da unidade (delegacias, abrigos, etc...), e os profissionais desconhecem o que acontece deste momento em diante. Não há um acompanhamento por parte dos profissionais da equipe. Segundo, se a mulher não aceita as alternativas apresentadas, os profissionais se desincumbem de fazer algo - “largam de mão”, alegando não poder “obrigá-la a denunciar”. Na unidade referência, além de acolherem tal demanda e informarem sobre redes de apoio, os profissionais acompanham o caso por longo tempo. Eles se referem aos encaminhamentos internos à instituição e ao trabalho em equipe. Há uma tentativa de envolver os diversos profissionais no atendimento, para que essa mulher seja acompanhada na própria unidade, e não precise peregrinar por outros serviços. Ainda que a mulher não queira denunciar o companheiro à polícia, a equipe se envolve no caso e os profissionais marcam atendimentos continuados para garantir sua volta à unidade. A equipe tenta, ainda, incluir outros familiares no atendimento, como filhos adultos, ou parentes próximos que possam servir de rede social de apoio para essa mulher. Outra estratégia utilizada pela equipe é a inclusão do agressor na proposta de atendimento prestado. Tentam chamá-lo para conversar e inseri-lo no atendimento em curso. Porém, segundo os entrevistados, esta estratégia é a mais difícil de ser colocada em prática, não apenas pela resistência do homem em acatar o convite, mas também pelo risco que o próprio profissional de saúde corre. A equipe busca trabalhar a dimensão afetiva (com intervenção da psicóloga) e a inserção ocupacional (com a assistente social) junto à usuária vítima de violência, e tenta não “oferecer” alternativas, mas “elaborá-las” em conjunto com a mesma. Pode-se perceber então que, enquanto na unidade não-referência há o encaminhamento “para fora” da mesma e posterior “perda” do controle sobre os desdobramentos de sua ação, na unidade referência, a estratégia destina-se a envolver a equipe no acompanhamento das ações subsequentes. Acredita-se que as práticas profissionais estão relacionadas com o modo como a violência é entendida pelos entrevistados. Intervir sobre um fenômeno requer compreendê-lo como uma demanda para sua ação. Constatamos que, acostumados a trabalhar com a demanda espontânea, onde os indivíduos buscam os serviços a partir dos seus sintomas, os profissionais da unidade não-referência ainda apresentam dificuldades em conceber a violência doméstica como uma demanda inerente a sua prática profissional no setor saúde.
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artigos
Percepção sobre as práticas Os profissionais das duas unidades percebem que o trabalho com a violência não depende exclusivamente do setor saúde, sendo necessário o suporte de uma rede intersetorial (polícia, justiça, assistência social, educação etc.). No depoimento dos profissionais, fica clara a preocupação para que o trabalho realizado não cause mais danos à mulher, além dos que ela apresenta ao serviço. O enfrentamento da violência é algo que ultrapassa o serviço de saúde, envolvendo a opção e o protagonismo da mulher, assim como a ação dos mais diversos setores. Os profissionais das duas unidades percebem suas práticas como permeadas por “limites”, tais como: capacidade da própria mulher em conseguir sair ou não da situação violenta; e a “ineficácia” da rede de atendimento intersetorial. Embora estas limitações tenham sido apontadas pelos profissionais das duas unidades, o que os diferencia é a relação que estabelecem com estes limites. Enquanto na unidade não-referência os profissionais dizem preferir “não se envolver”, por anteverem os obstáculos e não poderem garantir, à mulher, a resolução do seu problema, na unidade referência, os profissionais acolhem tal demanda. Entretanto, constatam que, embora tentem realizar um bom atendimento, muitas vezes, não conseguem impedir que a mulher seja “revitimizada”, como mostra o relato da assistente social: [...] eu tive uma usuária [...] na época que eu identifiquei, ela foi pra delegacia de mulheres, fez a ocorrência e teve lá um acompanhamento psicológico, jurídico[...] eles a colocaram em um abrigo, mas depois ela veio embora, porque ela perdeu tudo, o pouquinho que ela levou pra lá [...] ela disse que tinha um fogão que tinha comprado com tanto sacrifício, um berço, uma cama, que roubaram tudo dela [...] aí ela voltou a morar com ele [...] e assim, até hoje ela continua nessa situação [...].
Como se pode observar no relato, há uma limitação que ultrapassa o setor saúde. Além de ser numericamente reduzida, a rede de apoio social às mulheres em situação de violência é precária e acaba por não garantir plenamente a proteção das usuárias. O setor saúde pode intervir na questão da violência contra a mulher, ao identificar o problema, acolher e apoiar as usuárias, acompanhando estes casos ao longo do tempo, no entanto, a resolução do problema não lhe compete exclusivamente. É fundamental que a rede intersetorial se organize de forma a garantir que as mulheres não tenham seus direitos de cidadania usurpados.
Conclusão Observa-se que a violência doméstica é uma realidade bastante comum entre as usuárias dos serviços de saúde estudados, apesar de não se apresentar como a queixa principal que as leva a procurar atendimento. Este estudo aponta, no entanto, que apesar da importância da identificação, hoje se coloca uma nova necessidade: refletir sobre o encaminhamento dado aos casos já detectados, e instrumentalizar os profissionais para o enfrentamento do problema. Como pode ser observado, as unidades estudadas apresentam-se como um “terreno fértil” para a ampliação das ações de prevenção à violência contra a mulher, uma vez que esta é uma realidade comum entre suas usuárias e frequentemente identificada pelos profissionais entrevistados. A maior dificuldade parece residir nas ações posteriores à identificação e ao primeiro acolhimento. A pesquisa mostrou que o treinamento realizado foi um importante diferencial no atendimento prestado às mulheres em situação de violência. Os profissionais da unidade referência estão mais dispostos a incorporar, em suas práticas, os casos de violência que não se mostram como demanda direta ao serviço, e a prestar um atendimento continuado na própria unidade.
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Na unidade não-referência, ao contrário, os profissionais valorizam mais a identificação dos casos de violência e o encaminhamento aos serviços especializados. A ênfase apenas na identificação dos casos de violência pode acabar por ter um efeito diverso do esperado, uma vez que, identificada a violência, a demanda pode ser desqualificada como algo que não requer uma intervenção também do setor saúde (Schraiber, 2001). Considerar as questões relativas à violência nas práticas de saúde é tomar os problemas relativos aos serviços como concernentes ao sujeito social (Schraiber, D’Oliveira , 1999). É necessário compreender que o atendimento na unidade de saúde não pode se resumir a uma prática medicalizadora. É imprescindível que haja o compromisso de se considerarem os problemas sociais que atravessam a vida dos usuários do serviço como relacionados ao processo de adoecer. Embora este estudo tenha mostrado a validade do treinamento realizado na unidade referência – o que desencadeou um melhor acolhimento dos casos –, ele também aponta a necessidade de se fortalecerem todas as instituições envolvidas no enfrentamento da violência, uma vez que, sem essa articulação intersetorial, a mulher acaba por ser novamente vitimizada, ao não ter seus direitos garantidos. O presente estudo foi desenhado para fornecer dados sobre as ações voltadas para o enfrentamento da violência doméstica na assistência primária à saúde, e se configura como pesquisa em serviço de saúde.
Colaboradores Os três autores trabalharam no projeto da pesquisa. Tatiana Borsoi realizou a revisão bibliográfica, o trabalho de campo, a análise dos dados e redigiu o artigo, sob orientação de Elaine Reis Brandão e Maria de Lourdes T. Cavalcanti. A revisão final do artigo foi feita por Elaine Brandão. Referências AMERICAN MEDICAL ASSOCIATION. Diagnostic and treatment guidelines on domestic violence. Chicago: AMA, 1994. BRANDÃO, E.R. Renunciantes de direitos? A problemática do enfrentamento público da violência contra a mulher: o caso da Delegacia da Mulher. Physis, v.16, n.2, p.207-31, 2006. ______. Nos corredores de uma Delegacia da Mulher: um estudo etnográfico sobre as mulheres e a violência conjugal. 1997. Dissertação (Mestrado) – Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. 1997. CAVALCANTI, M.L.T. A abordagem da violência intrafamiliar no Programa Médico de Família: dificuldades e potencialidades. 2002. Tese (Doutorado) - Instituto Fernandes Figueira, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro. 2002. CORREA, S.O.; PIOLA, S.F. Balanço 1998-2002: aspectos estratégicos, programáticos e financeiros. Brasília: Ministério da Saúde, 2003. COSTA, A.M. Desenvolvimento e implementação do PAISM no Brasil. In: GIFFIN, K.; COSTA, S.H. (Orgs.). Questões da saúde reprodutiva. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 1999. p.319-35.
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artigos
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BORSOI, T.S.; BRANDÃO, E.R.; CAVALCANTI, M.L.T. Acciones para afrontar la violencia contra la mujer en dos unidades de atención primaria a la salud en el municipio de Rio de Janeiro, Brasil. Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.13, n.28, p.165-74, jan./mar. 2009. La propuesta ha sido conocer y discutir acciones destinadas a afrontar la violencia doméstica en el àmbito del Programa de Asistencia Integral a la Salud de la Mujer. Para tanto se ha tratado de levantar y comparar las prácticas profesionales en dos unidades de salud del municipio de Rio de Janeiro, siendo una de ellas referencia para el atendimiento a las víctimas de violencia. Se han realizado ocho entrevistas en profundidad, semi-estructuradas, con profesionales de los equipos del Programa de Salud de la Mujer. Aunque ambas unidades identifiquen frecuentemente usuarias víctimas de violencia doméstica, en la unidad de referencia los profesionales se muestran más preparados para identificar el problema cuando no se presenta de forma explícita y para desarrollar las acciones de acogimiento dentro de la propia unidad de salud. Lo que diferencía las dos unidades es el encaminamiento dado al problema, relacionado a la forma en que cada servicio entiende la violencia como demanda inherente también a la esfera de salud.
Palabras clave: Atención primaria a la salud. Salud de la mujer. Violencia contra la mujer. Violencia doméstica. Violencia de género. Recebido em 19/04/07. Aprovado em 04/06/08.
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espaço aberto
Pessoas com deficiência na atenção primária: discurso e prática de profissionais em um centro de saúde-escola
Marilia Bense Othero1 Ana Sílvia Whitaker Dalmaso2
A atenção primária é um campo importante para o desenvolvimento de práticas de atenção à saúde da pessoa com deficiência, particularmente naquilo que tange à circulação e participação sociais, sob a ótica de inclusão e dos direitos de cidadania. Porém, este é um tema ainda pouco desenvolvido nas unidades básicas de saúde. A pesquisa3 aqui apresentada tem como objetivo conhecer as representações dos profissionais de um centro de saúde-escola da cidade de São Paulo sobre a deficiência e sobre o papel da atenção primária diante das necessidades desta população. Na sociedade e na cultura, os pertencimentos das pessoas são múltiplos: gênero, etnia, condição econômica, religião, identidade cultural, entre tantos outros, que influenciam nos modos de ser e estar no mundo. Entretanto, o encontro com a diversidade é permeado por estigmas, estereótipos e desigualdades, que são construídos subjetiva, histórica, social e culturalmente. De um lado, encontram-se as desigualdades sociais, cujas raízes estão no próprio processo de construção da sociedade. De outro, estão os aspectos individuais de percepção das diferenças, relacionados às experiências pessoais, aos valores éticos e morais, e à história de vida. Estes processos intrinsecamente relacionados são constantes, uma vez que se constroem mútua e continuadamente. Ao longo da história, as pessoas com deficiência foram consideradas ora amaldiçoadas, ora seres semidivinos, mas sempre excluídas do contexto social e objeto de caridade da comunidade (Pessoti apud Ghirardi, 1999). O imaginário e as representações sociais da deficiência contribuem para que a atenção à saúde desta população torne-se ainda mais complexa. Segundo Vaitsman (2002), há uma negação da dignidade das pessoas diferentes, erguendo-se estereótipos e se vinculando uma qualidade negativa à diferença; com isso, produz-se segregação social e simbólica, dificultando a formação de processos sociais mais inclusivos. Os profissionais de saúde são parte deste meio sociocultural, que ainda segrega as pessoas com deficiência e, portanto, as práticas em saúde são construídas a partir da relação socio-histórica-cultural com a questão. Para além da compreensão de suas necessidades – seja a partir de modelos médicos ou sociais, como aponta Ghirardi (1999) – perpassam os estigmas, a relação com a diversidade, as desigualdades sociais. Assim, é preciso conhecer a representação de profissionais
1 Terapeuta. Setor de Terapia Ocupacional do “Hospital Premier” e da “São Paulo Internações Domiciliares”. Rua Barão da Passagem, 1331, 32B. Lapa, São Paulo, SP, Brasil. 05.087-000 marilia_othero@ yahoo.com.br 2 Médica sanitarista. Centro de Saúde Escola Samuel B. Pessoa.
3 Esta pesquisa compõe a monografia da primeira autora deste texto, elaborada para a conclusão do curso de aprimoramento em Saúde Coletiva, pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
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PESSOAS COM DEFICIÊNCIA NA ATENÇÃO PRIMÁRIA
acerca deste fenômeno, como forma de tornar a prática em saúde aberta à crítica e atenta às reais necessidades das pessoas atendidas, construindo o que Schraiber e Mendes-Gonçalves (2000) nomeiam de contexto instaurador de necessidades. Segundo Magnani (1986), a representação é tomada usualmente como uma imagem mental da realidade, composta pelas experiências individuais decorrentes da vida cotidiana do ator, envolvendo: a família, a vizinhança, o bairro, a categoria profissional, a vinculação política e a classe social, entre outros aspectos. Esta concepção remete à ênfase no discurso, envolvendo complexos processos de análise, que deixam, em segundo plano, aspectos extradiscursivos. No trabalho de Malinowski com os baloma de Kiriwina, temos a descrição não só do que os indivíduos contam, mas do que fazem: “[...] as idéias e crenças não existem apenas nas opiniões conscientes e formuladas dos membros da comunidade; estão incorporadas em instituições sociais e estampadas nas condutas dos aborígenes e deverão ser extraídas, por assim dizer, de ambas as fontes” (Malinowski, 1974, p.315). Aqui foi adotada a noção de representação baseada na concepção de Malinowski, ou seja, como discurso e prática que, incorporados no serviço, são construídos mutuamente, de maneira dialética. Assim, discurso e prática são aspectos que não se sobrepõem necessariamente e nem sempre se opõem, mas sim são complementares para a compreensão da realidade (Magnani, 1986). Com sua prática e seu discurso, os profissionais de um serviço de saúde contribuem para a produção e reprodução do conhecimento e do significado da deficiência na sociedade e nos cuidados de saúde.
Direito à saúde e pessoas com deficiência De acordo com a apresentação do Programa de Atenção à Saúde da Pessoa com Deficiência no Sistema Único de Saúde (Brasil, 1993), antes da criação do Sistema Único de Saúde (SUS) em 1988, a assistência às pessoas com deficiência, na saúde pública, era limitada somente à área de prevenção de doenças infectocontagiosas. A reabilitação era entendida como nível terciário da atenção, sob a responsabilidade de instituições filantrópicas e de associações beneficentes; as políticas públicas funcionavam no modelo de repasse de recursos para a filantropia. Segundo este documento, o panorama era de uma assistência muito precária: recursos insuficientes, serviços concentrados em regiões de maior relevância econômica, modelo assistencial com baixa cobertura, pouca resolutividade e inadequação à realidade sociocultural da população. No contexto de reformas do final da década de 1970 e início da década de 1980, surgiram os movimentos sociais das pessoas com deficiência (que incluíam as pessoas, seus familiares e os profissionais da reabilitação), que tiveram importância fundamental na reivindicação de direitos sociais e igualdade de oportunidades (Rocha, 2006). Segundo a autora, estes movimentos associaram suas “bandeiras de luta” às demais existentes na sociedade brasileira, ou seja: lutas por direitos sociais, como serviços de saúde, por escolas, pelo fim da discriminação social e jurídica, pelo transporte, entre outras. Com a pressão dessas mobilizações, o Estado passou a incorporar a temática da saúde da pessoa com deficiência como uma preocupação, propondo programas e políticas nacionais voltados para esta população. Em meados da década de 1980, a Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo implantou o “Sistema de Atendimento em Saúde e Reabilitação para Pessoas Deficientes”. No âmbito federal, em 1986, a criação da Coordenadoria Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência (CORDE) foi uma referência na conquista dos direitos civis e sociais (Rocha, 2006). Na área da saúde, todo o processo de mudanças sociais culminou na criação do SUS, sendo a saúde um direito de todos e um dever do Estado. Já como parte do SUS, há marcos importantes, elencados no Manual de Legislação em Saúde da Pessoa com Deficiência, publicado pelo Ministério da Saúde (Brasil, 2006): “Programa de Atenção à Saúde da Pessoa Portadora de Deficiência”, de 1991; “Atenção à Pessoa Portadora de Deficiência no Sistema Único de Saúde – Planejamento e Organização de Serviços”, de 1993; “Política de Integração da Pessoa Portadora de Deficiência”, de 1999; “Política Nacional de Saúde da Pessoa com Deficiência”, de 2002; além de portarias que foram criadas para a regulamentação das diretrizes e práticas.
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OTHERO, M.B.; DALMASO, A.S.W.
1 RBC – Reabilitação Baseada na Comunidade: proposta assistencial para os serviços de atenção primária existentes no Sistema Único de Saúde. Foi criada pela OMS, no final da década de 1970, como uma contraposição à organização de serviços de reabilitação baseados no paradigma médico. Foi proposta como um modelo de ampliação da cobertura assistencial e para o combate à segregação e ao internamento das pessoas com deficiência (Oliver et al., 1999).
espaço aberto
Práticas em Atenção Primária Segundo Almeida, Tissi e Oliver (2000), a Organização Mundial de Saúde (OMS) prevê que 10% da população mundial apresentem algum tipo de deficiência. Neste grupo, cerca de 1,5% são pessoas que se beneficiariam dos serviços de reabilitação; entretanto, estima-se que se consiga prover algum tipo de atendimento a apenas 2% das pessoas com deficiência que necessitem destes cuidados. É importante ressaltar que, como indivíduos, as pessoas com deficiência têm outras necessidades em saúde além da reabilitação, e, mesmo sob este aspecto, não costumam ser atendidas pelo atual sistema de saúde. As autoras completam que, muitas vezes, a principal necessidade dessas pessoas não está na gravidade orgânica ou nos comprometimentos funcionais, mas sim em processos sociais extremamente complexos, que condicionam desigualdades sociais entre os cidadãos. Torna-se, portanto, imprescindível que os serviços se organizem para responder a estas demandas. A atenção primária representa o espaço institucional específico para ações que não estão relacionadas somente à esfera biológica das patologias, além de permitir uma ampliação da cobertura assistencial. Neste campo de atenção, abre-se a possibilidade de atuação no chamado paradigma social (Ghirardi, 1999), que compreende e age sobre o fenômeno da deficiência para além do aspecto orgânico individual, incluindo as trocas sociais e a autonomia, e compreendendo a relação da pessoa com deficiência com o contexto histórico-social e com as dimensões subjetivas. Adota-se o conceito de atenção primária como aquela que envolve baixa densidade tecnológica-material, mas que implica grande complexidade assistencial. Schraiber e Mendes-Gonçalves (2000) elencam três eixos principais: - É uma forma de organização do trabalho, com suas complexidades particulares, que não deve reduzir as necessidades aos processos fisiopatológicos; - Revaloriza a busca por uma assistência integral, isto é, não como uma somatória de atos especializados, sendo a unidade básica de saúde o local adequado para esta assistência global; - Incorpora a dimensão subjetiva das práticas, tanto do profissional quanto do usuário, não havendo uma cisão entre o humano e o técnico-científico. A partir de referências da Reabilitação Baseada na Comunidade (RBC)4, Oliver et al. (1999) propõem que um dos principais objetivos das ações em atenção primária, com relação à saúde de pessoas com deficiência, é dar-lhes visibilidade social, valorizando-se os processos e recursos locais para a construção da inclusão; parte-se do entendimento de que as pessoas são sujeitos com saberes, valores e história, pertencentes a um contexto sociocultural, e que podem agir sobre ele. Oliver et al. (2004) trazem outros eixos: a garantia de direitos, a construção de redes de apoio social e a criação de oportunidades de ampliação da sociabilidade. Almeida, Tissi e Oliver (2000) ressaltam, ainda, a importância de se atuar na construção de trocas sociais, tendo como horizonte ético a igualdade e o respeito à diferença.
A pesquisa e seu desenvolvimento O estudo foi feito no Centro de Saúde-Escola (CSE) “Samuel B. Pessoa”, unidade básica de saúde da zona oeste da cidade de São Paulo (bairro do Butantã), vinculado à Universidade de São Paulo como unidade docente-assistencial da Faculdade de Medicina.
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Para atender a uma população de cerca de 49 mil pessoas – segundo estimativa da Secretaria Municipal de Planejamento Urbano (Prefeitura de São Paulo, 2008) – o serviço conta com sete setores assistenciais principais: saúde da criança e do adulto, saúde mental, procedimentos de enfermagem (vacinação e curativos), farmácia, fonoaudiologia, saúde bucal, além dos setores de apoio (vigilância à saúde, estatística, gerência e administração). No funcionamento da unidade, existem programas voltados a grupos populacionais e problemáticas específicas: programa de saúde do adolescente, programa do envelhecimento, programa de saúde da mulher e do homem, programa de atenção primária domiciliar, programa de saúde mental, entre outros. Há também o Programa de Saúde da Família, para uma área específica (Jardim São Remo), na qual agentes comunitários de saúde desenvolvem ações de cadastramento das famílias residentes, visitas domiciliares e atividades comunitárias, integradas aos diversos setores do serviço. A pesquisa foi realizada em três etapas, no período de outubro de 2005 a janeiro de 2006. A primeira caracterizou-se por um levantamento bibliográfico na base de dados Literatura LatinoAmericana e do Caribe (LILACS), sendo importante ressaltar que existe pouca bibliografia disponível sobre o tema. Na segunda etapa, foram colhidos os dados primários do estudo: entrevistas com profissionais do centro de saúde e levantamento de registros em prontuários de pessoas com deficiência atendidas pelo serviço, de acordo com os preceitos de ética em pesquisa. Esta metodologia foi escolhida por permitir a produção de informações sobre o discurso dos profissionais (por meio das entrevistas) e sobre a prática dos mesmos (por intermédio da análise de prontuários), com base no conceito de representação adotado. As entrevistas realizadas foram do tipo semiestruturada (roteiro previamente estabelecido), com seis profissionais tomados como “representantes-chave” do serviço: dois agentes comunitários de saúde, dois profissionais da equipe de enfermagem e dois médicos. A escolha de diferentes categorias profissionais teve como objetivo possibilitar uma melhor apreensão da representação da deficiência, uma vez que esta se conforma de acordo com o trabalho de cada um, também definido como o lugar do qual o sujeito fala e no qual atua. Para análise dos prontuários, foram feitos estudos de caso de quatro prontuários de pessoas com deficiência que utilizaram o centro de saúde, escolhidos por meio de indicação de profissionais da unidade. Eram pacientes de idades variadas (três adultos e uma criança), sendo três do sexo feminino; todos receberam um primeiro atendimento na unidade, e posteriormente foram atendidos pelo programa de atenção domiciliar. Os usuários atendidos na unidade têm um prontuário individual, e, para os moradores do Jardim São Remo, há um prontuário da família, no qual estão contidas as informações sobre o domicílio, cadastro individual dos moradores e registros das visitas realizadas pelos agentes comunitários. Nos estudos de casos, foram analisados ambos os tipos de registro. Elaborou-se previamente um roteiro de leitura, a fim de se caracterizarem: o uso do serviço, as demandas e necessidades apontadas, as condutas e os encaminhamentos feitos pelos profissionais que os atenderam. O roteiro era composto por duas categorias principais: “focos da atenção”, relacionada à assistência oferecida pelo serviço de saúde; e “organização dos cuidados”, referindo-se à rede de cuidados da pessoa com deficiência e aos percursos realizados no sistema de saúde pelo paciente e sua família. Para ilustração, apresentamos, na Tabela 1, as informações colhidas dos registros em prontuário de um dos casos estudados.
Tabela 1. Informações sobre focos de atenção e organização do cuidado conforme registros em prontuário de usuário do CSE. Caso B. 69 anos, sexo feminino, casada, natural de São Paulo. Mora com o esposo; a filha e sua família moram no mesmo terreno. Sofreu Acidente Vascular Cerebral (AVC) em 1994, com sequelas, e, em 2004, sofreu amputação em membro inferior esquerdo; profissionais que a atendem levantam hipótese de quadro demencial. Seu primeiro atendimento no serviço foi em 1997, em grupo de orientação para hipertensos; fez uso do serviço em consultas de seguimento no “Programa de Envelhecimento” e em pronto-atendimentos, com demandas relacionadas a diabetes e hipertensão. Em 2003, iniciou seguimento no Programa de Atenção Primária Domiciliar (APD), solicitado por enfermeira da unidade, mantendo-se em acompanhamento domiciliar até o momento.
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Corpo
AVC. Baixa acuidade visual. DM, HAS, obesidade e úlceras crônicas (por diversas vezes).
Centro de Saúde
Orientações quanto a dieta e banho de sol; prescrição de medicação. Grandes restrições de movimento. Ferida e orientações de cuidado.
Cotidiano
Devido a problemas de saúde, faz apenas comida.
Contatos e participação social
Informação e direitos
Moradia e condições de acesso
Viaja para Piedade.
Cuidadores
espaço aberto
FOCOS DA ATENÇÃO Projetos
Profissional registra que o marido é “difícil”.
Filha acha que mãe tem problemas psicológicos medo de andar desde AVC. Ruim para andar.
Solicitada VD para avaliação de curativos e cuidados. Cinetose em viagem. Oferecidas medicações, medida PA, realizado curativo, orientações de alimentação, mobilização e elevação MMII. Atenção Domiciliar
Orientados cuidados com os pés (corte de unhas, sapatos) e com a pele. Bem cuidada, higienizada, pele hidratada. Distensão abdominal. Orientação de sonda retal para limpeza.
Falas do usuário
Preocupada com aumento de peso.
Não quer sair da cama, não quer comer comida saudável e não quer deixar membros elevados (relato da família). Dependência em todas AVDs, por dores, dificuldade de memória e locomoção.
Casa ampla, ventilada, divide com a filha; edícula alugada.
Apoio familiar pela equipe.
Orientado cuidado com obstáculos para evitar quedas e apoio no banheiro.
Família orientada para procurar não fazer tudo pela paciente, mas estimular trabalhos manuais e autocuidado. Orientada a manter o diálogo e estimular o autocuidado, ao menos no banho.
Dependência moderadagrave, mas com possibilidade de melhora (desestimulada). Relata pouquíssima atividade. Gosta de comer.
Reclama dos filhos que moram com ela.
Gosta de café com açúcar. continua
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Tabela 1. continuação
ORGANIZAÇÃO DO CUIDADO Família
Redes de suporte
Vem com acompanhantes, que contam as questões por ele.
Percurso no sistema de saúde
Centro de Saúde
DM e HAS em acompanhamento no Hospital Universitário.
Vem fazendo drenagem com sonda retal em casa, após orientações da equipe.
Encaminhamento para oftalmologista.
Familiares vêm ao CSE pela usuária.
Acompanhamento no Hospital das Clínicas.
Familiares preocupados. Filha e marido orientados quanto a cuidado com ferida.
Atenção Domiciliar
Filha presta a maioria dos cuidados, se relaciona bem com a mãe. O marido ajuda nas compras e mobilizações, mas reclama do comportamento da esposa.
Reforma da casa com ajuda da igreja.
Equipe conversa com familiares para melhorar e facilitar o cuidado.
Realizada coleta de exames laboratoriais pela APD. Encaminhamento ao HU para colonoscopia. Encaminhada ao HU para avaliação vascular e cirúrgica de ferida em membro inferior.
Boas condições de cuidado, filha parece estar nervosa e impaciente.
Falas do usuário
Conta que familiares irão se mudar e gostaria de atendimento em casa.
Por fim, em uma terceira etapa, foi feita a síntese dos resultados obtidos, com base na criação de categorias de análise dos dados, sendo produzida uma reflexão à luz dos aspectos teóricos do campo, na busca da compreensão a respeito da representação sobre a deficiência no serviço. As principais temáticas identificadas foram: concepção de deficiência; saúde da pessoa com deficiência; o papel da atenção primária perante esta população; práticas no cotidiano do serviço, e o trabalho da equipe de saúde.
A pessoa com deficiência no contexto de um serviço de atenção primária à saúde: discurso e prática de profissionais A vida de um indivíduo com deficiência é entendida como muito difícil, estando em vigor um modelo tradicional de concepção da deficiência, chamado aqui de modelo da superação: ou seja, ele precisa ter habilidades extras e uma “força interna” superior para superar suas dificuldades e realizar suas ações no mundo, localizada essencialmente no próprio sujeito. 182
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O isolamento, a segregação, a não adaptação do meio social para a circulação da pessoa com deficiência na cidade, e os olhares de estranhamento aos quais são submetidas foram indicados como aspectos que agregam dificuldades no seu viver e na convivência com as pessoas. A pessoa com deficiência é vista como um peso para a família e para a sociedade, fazendo-se uma associação direta entre deficiência e condições mais graves de dependência e de falta de autonomia. Marques (1998) aponta que as pessoas com deficiência, independentemente de suas potencialidades, estão amordaçadas em uma idéia totalizante de incapacidade, que diminui suas possibilidades de realização no mundo (sejam materiais, afetivas, educacionais, políticas etc.). Está presente o estigma (Goffman, 1988), ou seja, a pessoa é reduzida à condição dita negativa, na sua relação com os outros e com os diferentes contextos. No relato de um dos profissionais entrevistados, ao descrever uma criança com deficiência, fica clara a dificuldade de se considerarem as características positivas do sujeito: “mas ele fala...., mas ele é inteligente”. Para Pereira (2007), a frequente justificativa de uma ação com um “mas”, ou um “apesar de”, mostra a idéia da deficiência como um veredicto irretocável de incapacidade, ou seja, tomada como mais abrangente no corpo e na vida do que a relacionada com a real limitação existente. Verificam-se dificuldades em relação ao reconhecimento da deficiência, como no caso de idosos ou pessoas portadoras de doenças crônicas incapacitantes. As produções atuais no campo da antropologia e sociologia da deficiência incluem estas condições na categoria “deficiência”, reiterando que o conceito deve ser expandido, uma vez que experiências de incapacidade fazem parte do modo de viver dessa população (Diniz, 2007). Os “olhares diferentes” para a pessoa com deficiência evidenciam a negação da dignidade, como citado por Vaitsman (2002). É importante ressaltar que os preconceitos e os tabus sobre a deficiência também estão presentes no encontro profissional-usuário, pois tanto o técnico quanto o paciente têm suas concepções e valores, a partir de sua história individual e social. É possível perceber que o usuário, muitas vezes, não reconhece estes aspectos, e o profissional tem dificuldades em fazer uma mediação para que a temática possa ser abordada de maneira mais integrada à vida cotidiana. Com relação à saúde da pessoa com deficiência, a questão do acesso foi identificada como principal necessidade dessa população, entendida de maneira bastante ampliada, incluindo: acesso às oportunidades, à circulação na cidade, aos serviços e recursos disponíveis. Na unidade de saúde em que foi realizada a pesquisa, existem algumas dificuldades na acessibilidade urbana e arquitetônica. Os profissionais trazem esta preocupação, bem como a importância de mudanças na estrutura física do prédio e nos arredores do centro de saúde. Entretanto, é preciso ressaltar que, ao mesmo tempo em que existem as barreiras, há uma organização do serviço para possibilitar o atendimento a todos os usuários: sala específica para atendimento no andar térreo, criação do programa de atenção domiciliar e previsão de reforma do prédio. Em seus discursos, os profissionais entrevistados consideram que a atenção primária deve estar voltada a não reduzir as necessidades dos sujeitos a processos fisiopatológicos, provendo uma assistência integral e incorporando as dimensões subjetivas das práticas (tanto dos usuários dos serviços como dos profissionais). Porém, ainda que sejam feitas estas considerações, a assistência à pessoa com deficiência é frequentemente associada aos serviços especializados (como grandes hospitais e centros de reabilitação), especialmente aqueles de natureza filantrópica. Existem diferenças nos focos de atenção entre as categorias profissionais: os médicos voltam-se para o corpo e as doenças; os técnicos de enfermagem atentam-se para os cuidados com feridas, as orientações e o apoio aos familiares/cuidadores; e os agentes comunitários, para as questões sociais, informações, direitos e cidadania. Estas especificidades indicam complementaridade dos trabalhos e das ações no serviço, possibilitando um olhar e uma atuação mais integrada para as demandas e necessidades dos sujeitos atendidos. Na atenção à saúde da pessoa com deficiência, os limites entre a atenção primária e outros serviços de saúde ficam evidenciados - e como, na realidade dos serviços, estas atribuições não estão claras, emergem situações de tensão na integração entre a rede existente. Na literatura, há algumas produções que apresentam tecnologias específicas para ações voltadas à saúde da pessoa com deficiência no contexto da atenção primária; como mencionado anteriormente, é muito discutido o modelo da 183
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Reabilitação Baseada na Comunidade como proposta assistencial para o campo, por autores como Oliver et al. (2004, 1999) e Almeida, Tissi e Oliver (2000). Há aproximações possíveis destas produções com o campo da atenção primária em geral, como nas publicações de autores como Schraiber e Mendes-Gonçalves (2000): tem-se, como objeto, a concepção de saúde além da doença e do corpo biológico, com o horizonte da promoção da saúde, em abordagens baseadas na autonomia dos sujeitos. Na prática da assistência do serviço estudado, os principais focos de atenção estão relacionados ao corpo e às patologias, especialmente as doenças crônicas. Nos registros em prontuários, prevalecem informações como: diagnósticos clínicos, cuidados com higiene, orientações sobre curativos e prescrição de medicações. São recorrentes também descrições sobre as situações de dependência observadas, especialmente para execução de atividades de vida diária e dificuldades de locomoção. O cotidiano dos usuários aparece nos registros e relatos por meio das situações de incapacidade, ou seja, daquilo que a pessoa com deficiência não é capaz de fazer de maneira autônoma ou independente. Estes aspectos são de fundamental importância no cuidado da saúde, mas o usuário pouco aparece como sujeito capaz de agir no contexto em que vive. Vários exemplos surgiram na pesquisa: poucos registros de histórias da vida e do cotidiano dos usuários; a criança com deficiência não tem prontuário próprio; o agente comunitário de saúde nunca fez visita por demanda da pessoa com deficiência; os planos para construção de autonomia pouco aparecem, e não se explicitam os projetos de vida da pessoa. O cuidado aos familiares é um importante foco de atenção no serviço, e são vários os registros sobre orientações dadas aos cuidadores acerca de procedimentos a serem realizados. Distanciando-se dos aspectos médicos e corporais, nota-se uma prática frequente de promoção de apoio familiar (por meio de escuta e acolhimento), mas que, muitas vezes, pode contribuir para a manutenção de uma situação de dependência da pessoa com deficiência. Na análise dos prontuários, destacam-se as situações de deficiência com condições mais graves de incapacidade, e estes usuários acabam sendo atendidos na modalidade de atenção primária domiciliar; nos atendimentos realizados na unidade de saúde, registram-se os diagnósticos clínicos, no entanto, as condições mais leves de deficiências e incapacidades passam desapercebidas. As pessoas com deficiência mais independentes procuram o centro de saúde com demandas bastante específicas, como busca por relatórios para o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) ou para a isenção tarifária no transporte público; não emergem demandas gerais de saúde ou outras questões ligadas à deficiência na assistência prestada. Também não existem ações específicas voltadas a esta população, havendo pouca participação desta em grupos educativos, reflexivos e terapêuticos ou em outras atividades comunitárias desenvolvidas; os encaminhamentos realizados são para outras especialidades médicas e serviços de reabilitação, não havendo registros de orientação sobre equipamentos sociais ou outros espaços de inclusão, ainda que o serviço disponha de um guia que inclui vários locais de lazer, educação e esporte. O acesso aos serviços públicos especializados continua difícil: há registros, em todos os prontuários estudados, de longa espera para atendimento em algumas especialidades, além de impossibilidades de seguimento com as especialidades indicadas (falta de transporte adaptado, não compreensão dos resultados esperados por pacientes e familiares, falta de recursos financeiros). No caso apresentado na Tabela 1, é possível verificar todas as questões discutidas: há registro em prontuário de alguns comentários do usuário - como preocupações, gostos, relações familiares e projetos - mas estes não são transformados em objetos específicos de trabalho pela equipe de saúde. Além da atenção primária prestada na unidade básica de saúde e no domicílio, a paciente foi encaminhada para serviço especializado de nível secundário e para serviço de maior complexidade assistencial, mas, no seu caso, não há registro em prontuário de encaminhamento para equipamentos sociais; quanto à rede social, há menção a benefício recebido da igreja. Pode-se dizer que, nas práticas desenvolvidas no serviço estudado, há uma relação mais direta com o modelo médico, voltado ao corpo e ao restauro das condições orgânicas (Ghirardi, 1999). Este modelo concebe a deficiência como uma anormalidade e, mais do que isso, uma “tragédia pessoal” (Diniz, 2007), em que a experiência da deficiência não é resultado apenas das lesões corporais e orgânicas, 184
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mas do ambiente social hostil à diversidade. Predomina também a concepção de que as pessoas com deficiência devem ser acompanhadas somente por serviços de saúde especializados. Porém, como já mencionado por Almeida, Tissi e Oliver (2000), as principais demandas e necessidades das pessoas com deficiência estão nos complexos processos sociais que envolvem a questão, para as quais o modelo médico é bastante insuficiente. No serviço em questão, os aspectos relacionados ao paradigma social (Ghirardi, 1999) - como participação social, direitos, cidadania e construção de projetos de vida - estão presentes predominantemente no discurso. Fica evidente uma tensão entre prática e discurso: a fala dos profissionais sobre a abordagem das demandas e necessidades das pessoas com deficiência é ampla, englobando os aspectos relacionais e socioculturais da deficiência; entretanto, nas ações, o trabalho está voltado, sobretudo, para: o corpo, as incapacidades na vida cotidiana e os aspectos orgânicos da deficiência, ainda que seja um serviço-escola.
Algumas considerações finais Percebe-se que o panorama de desassistência existente antes da criação do SUS se mantém. No âmbito das práticas e ações, prevalecem as instituições filantrópicas como principais referências de algum tipo de cuidado às pessoas com deficiência, assim como mencionado por Almeida, Tissi e Oliver (2000). O acesso aos serviços continua difícil, e os relatos de experiências negativas com os programas e recursos existentes no sistema público são constantes. A família e uma pequena rede de apoio agregada são as principais fontes de cuidados às pessoas com deficiência, sendo fundamental destacar que não existem políticas ou ações mais amplas voltadas para o apoio ao familiar e a esta rede. Os profissionais e o serviço de saúde atuam em um determinado contexto, com seus valores, finalidades e práticas; a condição de ter deficiência é permeada por estigmas, conflitos e desigualdades. Incorporados nos serviços, nas políticas e na sociedade, discursos e práticas complementam-se para o direcionamento do trabalho e dos cuidados em saúde. Pode-se concluir que a representação dos profissionais de saúde acerca do fenômeno deficiência/reabilitação está vinculada ao paradigma que operam, em um modelo mais médico ou social, conforme trazido por Ghirardi (1999). No serviço estudado, é possível relacionar a tensão discurso-prática com os diferentes modelos de compreensão e ação sobre a deficiência. Eles coexistem, assim como os diferentes valores sobre a deficiência; o modelo médico é dominante no plano das ações, porém, a partir dos discursos são abertas novas possibilidades de intervenção, com vistas à integralidade e à participação, pertinentes ao campo da atenção primária. As contradições são fundamentais, pois apenas desta maneira são produzidas as transformações. É no enfrentamento de diferenças entre discursos e práticas que se constrói um contexto instaurador de necessidades, tanto para os usuários (na relação com suas demandas e problemas), quanto para os profissionais (na relação com seu objeto de trabalho). Somente assim é que são criadas possibilidades de reinvenções e transformações dos sujeitos, dos serviços e das ações. O conceito de representação adotado – discurso e prática como realidades complementares, produzidos por uma construção dialética e articulados com o contexto social e cultural (Magnani, 1986) – possibilitou a apreensão da complexa configuração que existe entre o plano do falado e do feito. No campo da saúde da pessoa com deficiência, é na relação do sujeito com seu meio sociocultural que se constata a existência das grandes barreiras a serem enfrentadas. Reitera-se a importância do papel da atenção primária no cuidado integral à saúde destas pessoas; no entanto, este ainda constitui um desafio, exigindo reflexão sobre as práticas atuais e sobre as possibilidades de construções futuras. A partir deste estudo, fica premente o surgimento de outros trabalhos que tomem como objeto as demandas e necessidades de saúde das pessoas com deficiência e as tecnologias de ação em atenção primária para esta população, contribuindo para a implementação de práticas baseadas na integralidade do cuidado.
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Colaboradores A autora Marilia Bense Othero participou de todas as etapas de elaboração do artigo: revisão bibliográfica, elaboração, discussões e revisão do texto. A autora Ana Silvia Whitaker Dalmaso participou das discussões e da revisão do texto, uma vez que foi orientadora da primeira autora na elaboração da pesquisa e do artigo. Referências ALMEIDA, M.C.; TISSI, M.C.; OLIVER, F.C. Deficiências e atenção primária em saúde: do conhecimento à invenção. Rev. Ter. Ocup. Univ. São Paulo, v.11, n.1, p.33-42, 2000. BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Manual de legislação em saúde da pessoa com deficiência. 2.ed. Brasília: Editora do Ministério da Saúde, 2006. ______. Ministério da Saúde. Secretaria de Assistência à Saúde. Coordenação de Atenção a Grupos Especiais. Programa de Atenção à Saúde da Pessoa Portadora de Deficiência. Atenção à pessoa portadora de deficiência no Sistema Único de Saúde: planejamento e organização de serviços. Brasília, DF, 1993. DINIZ, D. O que é deficiência. São Paulo: Brasiliense, 2007. GHIRARDI, M.I.G. Representações da deficiência e práticas de reabilitação: uma análise do discurso técnico. 1999. Tese (Doutorado em Psicologia) – Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo. 1999. GOFFMAN, E. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Trad. Márcia Bandeira de Mello Leite Nunes. 4.ed. Rio de Janeiro: LTC, 1988. MAGNANI, J.G.C. Discurso e representação, ou de como os Baloma de Kiriwina podem reencarnar-se nas atuais pesquisas. In: DURHAM, E.R. et al. A aventura antropológica: teoria e pesquisa. Org. por Ruth C. L. Cardoso. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986. p.127-40. MALINOWSKI, B. Baloma: los espiritus de los muertos em las islãs Trobriand. In: ______. Magia, ciencia, religión. Barcelona: Ariel, 1974. MARQUES, C.A. Implicações políticas da institucionalização da deficiência. Educ. Soc., v.19, n.62, p.105-22, 1998. OLIVER, F.C. et al. Participação e exercício de direitos de pessoas com deficiência: análise de um grupo de convivência em uma experiência comunitária. Interface – Comunic., Saude, Educ., v.8, n.15, p.275-88, 2004. OLIVER, F.C. et al. Reabilitação baseada na comunidade: discutindo estratégias de ação no contexto sociocultural. Rev. Ter. Ocup. Univ. São Paulo, v.10, n.1, p.1-10, 1999. PEREIRA, R. Deficiência e autodeterminação humana: compaixão e insensibilidade no caso Vincent Humbert. Hist., Cienc., Saude – Manguinhos, v.14, n.1, p.119-34, 2007. PREFEITURA DE SÃO PAULO. Aspectos demográficos. Subprefeitura do Butantã. Disponível em: <http://portal.prefeitura.sp.gov.br/subprefeituras/spbt/dados/0001/ portal/subprefeituras/spbt/dados/aspectos_demograficos/0001>. Acesso em: 24 ago. 2008. ROCHA, E.F. Deficiência e reabilitação: questões histórias e epistemológicas. In: _______. (Org.). Reabilitação de pessoas com deficiência: a intervenção em discussão. São Paulo: Roca, 2006. p.9-60.
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Na atenção primária, as ações voltadas à saúde da pessoa com deficiência devem visar à promoção da interação social, à construção de direitos e à transformação do lugar da deficiência. O objetivo desta pesquisa foi compreender qual é a representação de profissionais de um centro de saúde do município de São Paulo sobre a deficiência e o papel da atenção primária no seu cuidado. Foi utilizada metodologia qualitativa baseada em entrevistas com profissionais e análise de prontuários. Identificou-se que os profissionais avaliam a vida da pessoa com deficiência como difícil, evidenciando-se situações de dependência. Os principais focos da atenção estão no corpo, nos cuidadores e nas condições de moradia; direitos e participação social têm menor destaque. A família e pequena rede social são referências para a organização do cuidado. Com este estudo, busca-se ampliar a reflexão sobre práticas em saúde, contribuindo para a implementação daquelas baseadas na integralidade do cuidado.
Palavras-chave: Pessoas com deficiência. Cuidados primários de saúde. Pesquisa sobre serviços de saúde. Prática profissional. Assistência integral à saúde. Disabled people in primary healthcare: professionals’ discourse and practice in a healthcare teaching center In primary healthcare, actions for disabled people’s healthcare should aim to promote social interaction, construct rights and transform the position of disablement. The objective of this study was to understand the representations of professionals at a healthcare center in the municipality of São Paulo regarding disablement and the role of the primary care for this. Qualitative methodology was used, based on interviews with professionals and analysis of patient records. It was found that the professionals’ assessment was that the disabled patients’ lives were difficult, thus showing situations of dependence. The main focus of care was on the body, on caregivers and on housing conditions; rights and social participation had less emphasis. The family and the small social network were the reference points for organizing care. Through this study, it is sought to expand the reflections on healthcare practices, thereby contributing towards implementing practices based on comprehensive care.
Key words: Disabled people. Primary healthcare. Health service research. Professional practice. Comprehensive healthcare. Personas con deficiencia en la atención primaria: discurso y práctica de profesionales en un centro de salud-escuela En la atención primaria las acciones dirigidas a la salud de la persona con deficiencia deben visar la promoción de la interacción social, la construcción de derechos y la transformación del lugar de la deficiencia. El objetivo de esta pesquisa ha sido comprender cual es la representación de profesionales de un centro de salud del municipio de São Paulo, Brasil, sobre la deficiencia y el papel de la atención primaria en su cuidado. Se utilizó metodología cualitativa basada en entrevistas con profesionales evaluan la vida de la persona con deficiencia como difícil, evidenciándose situaciones de dependencia. Los principales focos de la atención están en el cuerpo, en los cuidadores y en las condiciones de vivienda; derechos y participación social tienen menor destaque. La familia y la pequeña red social son referencias para la organización del cuidado. Con este estudio se trata de ampliar la reflexión sobre prácticas en salud, para la implementación de las que se basan en la integralidad del cuidado.
Palabras clave: Pesquisa sobre servicios de salud. Práctica profesional. Asistencia integral a la salud. Recebido em 26/01/07. Aprovado em 15/12/08.
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Juventude e consumo de drogas: oficinas de instrumentalização de trabalhadores de instituições sociais, na perspectiva da saúde coletiva Cássia Baldini Soares1 Célia Maria Sivalli Campos2 Adriana de Souza Leite3 Cristina Lourdes Leite de Souza4
Introdução O objeto deste estudo é a oficina de instrumentalização de trabalhadores de instituições sociais que têm os jovens como população-alvo, para a compreensão do consumo contemporâneo de drogas - na perspectiva da Saúde Coletiva - no território de abrangência de uma Unidade Básica de Saúde (UBS), no município de São Paulo. Resultado de pesquisa anterior na área de abrangência dessa UBS (Campos, 2004) mostrou a preocupação dos moradores do bairro a respeito do envolvimento dos jovens com drogas, lícitas e ilícitas, tanto no que se refere ao consumo quanto ao tráfico. Atribuído à falta de perspectiva de inserção no mercado de trabalho e à impossibilidade de acessar o consumo de produtos que os alça à condição de algum pertencimento, tal envolvimento é característico dos tecidos sociais das periferias das grandes cidades. Mediante tais resultados e na perspectiva de fortalecer a cooperação interinstitucional - entre o Departamento de Enfermagem em Saúde Coletiva da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo (EEUSP) e a UBS Vila Dalva foi feita a proposta de um ciclo de oficinas educativas. Historicamente, os jovens dificilmente procuram a UBS para vocalizar suas necessidades de saúde, e, quando o fazem, é para resolver problemas pontuais – vacinação, algumas doenças, ou para buscar recursos tradicionalmente oferecidos, como testes de gravidez e métodos contraceptivos (preservativos e pílulas anticoncepcionais). Embora, a partir de 1990, o Sistema Único de Saúde (SUS) e o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) coloquem o adolescente como sujeito do direito à saúde, as políticas de saúde que orientam as práticas em UBS ainda são escassas e restritivas, e deixam de lado um conjunto expressivo de jovens que já atingiram a maioridade (Amarante, 2007). Esse quadro não é diferente no município de São Paulo. Dentre as poucas diretrizes disponíveis na Secretaria Municipal de Saúde, observa-se, em documento norteador, uma focalização da atenção à saúde do jovem em vulnerabilidades dificuldades nas relações familiares, uso de drogas lícitas e/ou ilícitas, início da vida sexual, DST/AIDS, gravidez, aborto e suas consequências, exclusão social, risco de suicídio, acidentes de trânsito, violência doméstica e sexual (Amarante, 2007).
1 Enfermeira. Departamento de Enfermagem em Saúde Coletiva, Universidade de São Paulo. Av. Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 419, sala 233, 2º andar. Cerqueira César, São Paulo, SP, Brasil. 05.403-000 cassiaso@usp.br 2,3 Enfermeira. Escola de Enfermagem, Universidade de São Paulo. 4 Enfermeira. Centro de Capacitação Veleiros.
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Porém, pressupõe-se que a abordagem dessas vulnerabilidades seja complexa, o que requer do trabalhador uma formação mais ampla, que vá além do estabelecimento de fluxogramas de acolhimento e/ou de desenvolvimento de programas ou práticas centradas na atenção aos problemas pontuais, historicamente reconhecidos como necessidades nas UBS. No entanto, os trabalhadores da atenção básica à saúde que, na maioria das vezes, por iniciativa própria, desenvolvem atividades voltadas para os jovens, ressentem-se da falta de capacitação para o trabalho (Amarante, 2007), ainda mais quando o tema em questão é o consumo de drogas. Estudo desenvolvido por Canoletti e Soares (2005) atesta que os projetos de prevenção ao consumo prejudicial de drogas no Brasil - que, até a década de 1980, eram pautados em uma política ocasional e descontínua - a partir da década de 1990, começam a sofrer modificações, impulsionadas pelas políticas relacionadas à prevenção da Aids. Observa-se, então, uma crítica em relação às abordagens aterrorizantes que compunham o arsenal da abordagem da guerra às drogas, trazida dos Estados Unidos, e uma preocupação com a educação dos jovens. Embora não seja tão recente, trata-se de um movimento ainda incipiente e em transição, cujo foco se desloca da droga para o indivíduo que consome a droga e, em alguma medida, também para o contexto social; no entanto, sem discutir as raízes estruturais do envolvimento dos indivíduos com a droga. Assim, parte-se do pressuposto de que os trabalhadores de instituições sociais, participantes das oficinas – ao menos em sua maioria - sentem-se despreparados para abordar essa temática com os jovens, e quando o fazem, tendem a apoiar-se em uma perspectiva que coloca, sobre o jovem, a responsabilidade pelo envolvimento com as drogas e pelos prejuízos que podem daí advir, atribuindolhe, também, a responsabilidade pela mudança. Nessa direção, as oficinas propostas partiram do quadro teórico formado pelos conceitos de juventude e de consumo de drogas na perspectiva da Saúde Coletiva, e da educação como instrumentalizadora da práxis criativa. Juventude foi compreendida para além de uma classificação etária, e a adolescência como a primeira etapa dessa juventude, com o cuidado de não tomá-la como grupo identitário - “[...] os adolescentes se diferenciam pela sua história de vida de acordo com sua inserção sócio-econômica e seu desenvolvimento psicológico particular num contexto histórico e cultural dado” (Soares, 1997, p.37). Nessa direção, Abramo (2005) alerta para a ocorrência de juventudes, salientando as diferenças e desigualdades sociais que atravessam essa condição e estão na raiz das diferentes vivências dessa fase da vida nos diferentes grupos sociais. No que diz respeito às substâncias psicoativas (drogas lícitas e ilícitas), a abordagem feita pela área da saúde toma, como foco, o âmbito das características da substância (farmacologia) ou o sujeito dependente (psiquiatria). Raramente são discutidas e abordadas as causas que estão nas raízes do consumo, da produção e da distribuição das drogas (Soares, Campos, 2004). Sob a ótica da Saúde Coletiva, o consumo de drogas é definido histórica, social e culturalmente. A partir da instauração do modo de produção capitalista, a droga passou a ser uma mercadoria, portanto passou a ser produzida para responder a uma das finalidades primordiais desse modo de produção – a geração de lucro (Soares, 1997). Logo, para analisar o consumo contemporâneo de drogas - uma mercadoria - pela perspectiva da Saúde Coletiva, é imprescindível tomar, como ponto de partida, as consequências do modo de produção capitalista, tanto no consumo de drogas, como também na sua produção e distribuição. O modo de produção capitalista na contemporaneidade - reorganizado pela estratégia do neoliberalismo - promove valores ligados ao desenvolvimento de competências individuais, para o alcance de posições de sucesso e fama, que geram a competição e o desenvolvimento de projetos individuais. Aos indivíduos que não alcançam essa meta e que têm tido dificuldade de acesso aos bens socialmente produzidos - materiais e imateriais - é atribuído o peso da culpa individual, desarticulado de análise da conjuntura estrutural. Para o pensamento neoliberal, os indivíduos são portadores de competências para buscar o caminho do sucesso. Logo, cabe a esses a concretização das aspirações e dos projetos idealizados, bem como a culpa por não atingirem o sucesso requerido; cabe aos indivíduos a culpa pelo fracasso e, também, a busca de saídas individuais para os problemas. 190
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É inegável que existe uma complexa relação entre os indivíduos e as drogas no mundo contemporâneo, na qual a droga é compreendida como uma resposta adaptativa, tanto para os indivíduos que se envolvem no tráfico - que tem sido tomado como mercado de trabalho, num contexto em que a vida contemporânea é dirigida pela busca de inserção e acesso ao mercado de trabalho e consumo - quanto para o consumidor da droga, que busca, na mercadoria droga, uma resposta aos desgastes, à necessidade de prazer rápido e de alívio para suas angústias (Soares, 1997). Procurando compreender a ideologia dominante sobre o usuário de drogas e amparando-se em diversos autores da sociologia e antropologia, Soares (1997) conclui que o usuário de drogas ilícitas é julgado moralmente por infringir as regras sociais como um ser inferior, um criminoso, ou, no melhor dos casos, como um doente. Tal compreensão estigmatiza o usuário impondo-lhe, para além do preconceito, a marginalização e, muitas vezes, para os mais pobres, um último empurrão para a exclusão social. Assim, postula-se que os projetos de prevenção tomem essa compreensão do consumo de drogas fundamentada nos conceitos da Saúde Coletiva, que considera que o envolvimento com essas substâncias tem, nas suas raízes, determinantes que ultrapassam características atreladas à fase da vida ou às características individuais. No que diz respeito a projetos de prevenção tomando como tema as drogas, uma síntese de Soares (1997) mostra que vários especialistas na área discutem a importância de se fornecer informação correta sobre as substâncias psicoativas, uma vez que a informação subsidia a reflexão crítica acerca do tema, possibilitando um diálogo aberto e confiável entre os sujeitos da prevenção. A informação eficiente é aquela que possibilita uma análise em relação às opções possíveis, quais sejam: o uso racional e responsável de drogas ou os benefícios da abstinência. Carlini-Cotrim (1992) pondera que não se deveria interferir no direito que o cidadão tem sobre o seu corpo, e que o uso de drogas não necessariamente interfere negativamente sobre a sociedade. Sendo assim, a competência do Estado sobre o consumo de drogas deveria circunscrever-se às ações que interferem diretamente na sociedade, isto é, aquelas que incidem sobre os danos relacionados à saúde e, sobretudo, à violência. Portanto, seria sobre esses danos, e não sobre o arbítrio dos cidadãos sobre si mesmos, que deveriam recair as políticas de prevenção ao uso de drogas, o que configuraria programas realistas, eficientes, eticamente corretos e providos de credibilidade. Para Acserald (2005), a abordagem educativa dialógica é a que permite a construção educativa coletiva, na qual os sujeitos envolvidos no processo assumem compromissos políticos com a democracia e com a expansão da liberdade do sujeito. A educação, segundo Paro (2001), pode ser definida como apropriação do saber historicamente produzido, sendo o recurso que as sociedades têm para que a cultura seja passada de uma geração para outra. Nessa perspectiva, é possível a conformação de uma educação crítica, que, articulando-se com as forças emergentes da sociedade, busque converter-se em instrumento a serviço da instauração de uma sociedade igualitária. Ainda que determinado, não deixa de influenciar o elemento determinante. Ainda que secundário, nem por isso deixa de ser instrumento importante e, por vezes, decisivo no processo de transformação da sociedade (Saviani, 2003). O processo educativo é um processo de trabalho que somente se desencadeia em função da presença de sujeitos - educadores e educandos - que coproduzem o processo, de um objeto – estado de conhecimento - a ser transformado por meio de métodos e técnicas (Freire, 2002). Enfatiza-se ainda, segundo Freire (1997), a diretriz de que ensinar não é transferir conhecimento, mas criar a possibilidade para a sua própria produção, com base na experiência dos educandos. O objeto do processo educativo é a práxis, que se refere à ação do homem que transforma a natureza fundamentada em uma teoria que guia a ação. Uma atividade propriamente humana é composta de ações que se dirigem para um objeto com a finalidade de transformá-lo, buscando um resultado o mais próximo possível daquilo que foi idealizado (Pereira, 2005). A forma como a consciência está presente na atividade prática do sujeito configura diferentes níveis de práxis, que então pode ser criativa ou reiterativa (Vázquez, 1977). Tomando-se, então, essa compreensão teórica a respeito do envolvimento de jovens com as drogas 191
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na contemporaneidade, bem como a respeito do que sejam processos educativos na perspectiva emancipatória, oficina foi definida, neste trabalho, como: um instrumento que proporciona um espaço de reflexão sobre a práxis, em que os sujeitos - agentes e coprodutores do processo educativo participam com a finalidade de transformar a práxis reiterativa em práxis criativa. O objetivo deste trabalho foi relatar e analisar uma experiência educativa, tendo a oficina como instrumento do processo educativo.
Metodologia Partindo-se do quadro teórico exposto, este trabalho tomou a oficina como instrumento do processo de aprimoramento das práticas de trabalhadores de instituições sociais, focalizando aquelas voltadas aos jovens, na especificidade da compreensão do envolvimento desses jovens com as substâncias psicoativas (drogas lícitas e ilícitas) - seja no âmbito da distribuição (tráfico) ou do consumo -, por tratarse de instrumento potente para efetivar um processo de educação dialógica, muito apropriada na abordagem do tema em questão. A expressão oficina é muito pouco utilizada na produção científica da área da educação em saúde, destacando-se o trabalho pioneiro de Chiesa e Westphal (1995). Os objetivos das oficinas foram: sensibilizar os trabalhadores das instituições sociais para o tema das drogas, e aprimorar o conhecimento desses trabalhadores a respeito da distribuição e do consumo contemporâneo das drogas psicoativas, especialmente entre os jovens, na perspectiva da Saúde Coletiva. Este trabalho utilizou uma metodologia inspirada em Freire (2002, 1997), buscando, também, levar em conta a proposta metodológica de Saviani (2003), que se expressa nas seguintes etapas: 1. prática social: professor e aluno, agentes sociais, encontram-se em níveis diferentes de compreensão (conhecimento e experiência) da prática social - o professor tem uma compreensão denominada de síntese precária e a compreensão do aluno é de caráter sincrético; 2. problematização: identificação dos principais problemas colocados pela prática social; 3. instrumentalização: apropriação, pelas camadas populares, das ferramentas culturais necessárias à luta social que travam diariamente para se libertarem das condições de exploração em que vivem; 4. catarse: efetiva incorporação dos instrumentos culturais, transformados, agora, em elementos ativos de transformação social. O momento catártico é o ponto culminante do processo educativo - a passagem da síncrese (a visão caótica do todo) à síntese (uma rica totalidade de determinações e de relações numerosas), pela mediação da análise (as abstrações e determinações mais simples); 5. ponto de chegada: percepção da alteração qualitativa da prática social do início para o final do processo. A pedagogia histórico-crítica proposta por Saviani (2003) estimula a iniciativa e a criatividade dos participantes - sem perder de vista o conhecimento historicamente produzido. Da mesma forma, Freire propôs a educação dialógica como forma de resgatar o conhecimento e a experiência advindos na prática social. Essa perspectiva emancipatória de educação guarda coerência com a necessidade de se buscar um fundamento dialético - que articula teoria e prática - para analisar a realidade social e de saúde dos jovens com os quais trabalham; e, ao mesmo tempo, propor ações solidárias e coletivas, numa perspectiva de superação daquelas pautadas preponderantemente em conhecimentos de senso comum. Para a realização das oficinas, contatou-se cada uma das dez instituições sociais da Vila Dalva, bairro da região oeste do município de São Paulo, que trabalhavam com jovens, para saber quais já haviam abordado a temática das drogas em suas palestras, grupos ou reuniões; e constatou-se que não havia trabalho específico em nenhuma delas. Foi feito um convite para que dois trabalhadores de cada instituição participassem do processo. Foram conduzidas cinco oficinas na UBS V. Dalva, para 28 participantes, divididos em duas turmas, em dias e horários distintos, de acordo com a disponibilidade. Participaram das oficinas: professoras da escola de 1º e 2º graus, a coordenadora de uma das creches, trabalhadores das duas ONGs (Instituto Stefanini e Espaço dos Sonhos), agentes comunitários de saúde e enfermeiras da UBS, trabalhadora do 192
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Centro de Convivência e Cooperativa da região, e trabalhadora da Associação Criança Brasil Núcleo Socioeducacional. Os temas das oficinas foram definidos a cada encontro, com base no desenvolvimento da discussão, o que pode ser visualizado no Quadro 1. Todas as discussões foram gravadas com a autorização prévia do grupo. O conteúdo das fitas foi transcrito e os depoimentos foram analisados pelo método da análise temática (Bardin, 2000).
Resultados O processo educativo, tomado nessa perspectiva emancipatória, não permite uma visualização das etapas didaticamente descritas numa sequência gradual e linear de apropriação e complexificação do conhecimento. Assim, numa mesma oficina, foram observadas várias das etapas propostas por Saviani. Por isso, a análise apresentada tomará, como referência, o processo como um todo. As etapas do processo educativo permitiram que os participantes, ao trazerem suas experiências e conhecimentos provisórios para o espaço da oficina, contribuíssem para nortear as discussões posteriores, conforme o depoimento: “É isso porque partiu de nós aqui, vocês não trouxeram. Eu até falei com a professora, eu achei tão diferente do que tava pensando, pensei que fosse chegar aqui e tá tudo explicadinho aí” (P1). O quadro 1 apresenta as temáticas eleitas pelo grupo de participantes. Quadro 1. Distribuição dos temas, objetivos e estratégias das oficinas emancipatórias sobre juventude e consumo de drogas. São Paulo, UBS Vila Dalva, 2006. Temas
Objetivos
Estratégias
A droga como mercadoria
Discutir os mecanismos sociais envolvidos no narcotráfico
Exibição do filme: Notícias de uma guerra particular e discussão de artigos de revistas sobre narcotráfico
Os diferentes jovens e os diferentes consumos
Desconstruir mitos, preconceitos e estereótipos sobre o jovem e sobre o usuário de drogas
Criação, apresentação e discussão sobre um personagem adolescente, usuário de droga, e sua história
O contexto da globalização e do neoliberalismo
Reconhecer a complexidade do estágio atual do capitalismo e as repercussões sobre o consumo contemporâneo de drogas
Discussão sobre as formas de trabalhar e de viver no bairro e os valores veiculados em nossos dias
Juventude e processos de socialização na contemporaneidade
Identificar o impacto dos valores da contemporaneidade sobre as agências de socialização e sobre os jovens
Discussão em grupo
Avaliação e síntese do processo
Proporcionar um momento de síntese sobre o trajeto percorrido – conteúdos e métodos utilizados nas oficinas
Discussão em grupo
No primeiro encontro, foi solicitado que cada um dissesse por que veio participar da oficina, quais as expectativas, e que respondesse a pergunta: por que as pessoas usam drogas? Inicialmente, identificou-se que os participantes associaram os motivos pelos quais as pessoas usam drogas com saberes do senso comum: [...] São várias coisas, [...] depende da pessoa, cada uma vai ter um porquê [...] umas [pessoas] [...] é a própria necessidade do organismo, que já ta precisando da droga, outras é
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pela parte mental, que vai aliviar a dor que ela sente por algum problema, ou até pelo fato de ser aceito numa comunidade, [...] assim as pessoas se envolvem. E eu acho que a causa [...] tem vários fatores. [...] A criançada [...] alguns não têm a orientação dos pais, mas o envolvimento também é por falta de diálogo [...], e tem fator cultural também e sociais também, [...] alguns é [...] fraqueza, [...] se sentem fraco e se envolvem, [...] é uma válvula de escape no caso. Tem vários fatores e ainda não entendi muito, queria entender porque [...] eu morro de medo de passar por isso. (P2)
No encontro seguinte, os participantes criaram e descreveram, em grupos, estórias de jovens usuários de drogas, que contivessem: idade, sexo, se estuda e/ou trabalha; atividades que compõem o seu dia a dia; características de sua personalidade; droga(s) que está usando e com que frequência; como começou o uso e quais eram suas motivações iniciais; relação com: a família, a escola, o trabalho, o grupo de amigos e outras pessoas com quem se relaciona; com que(m) se identifica e do que gosta. Em todos os grupos, o consumidor de drogas foi descrito de forma caricata, e sua vida inexoravelmente associada à decadência física e moral, tendo um fim sempre trágico, como sugerido no excerto abaixo. Ela tem 14 anos, [...] estuda [...], não falta comida, não falta roupa, não falta o brinco [...], mas o que falta pra ela é o carinho [...] dos pais [...]. Eles moram na favela e pra ela ir pra escola ela passa no meio dos menino que ficam vendendo [drogas], [eles] mexem com ela, [...] ela até tem interesse por um que trabalha lá [...]. Ela começou a fumar pra ta na altura dele [e] [...] do grupo, ela vai mesmo pela cabeça dos outros. [...] Ela começou a passar lá, eles começam a conversar: você vende maconha? quanto custa? [...] Ele não vende pra ela no começo, ele dá [...] e ela [...] começou a se envolver. Acho que [...] ela tinha ele como um ídolo, tanto que ela mudou o jeito de ser dela para conquistar ele. [...] Ela [se envolveu] com bebidas e [...] em casa de prostituição [...], até mesmo os caras com quem ela sai, se prostitui, ela vai [...] com quem tem dinheiro [...], acho que adere a isso aí. (P3)
No terceiro encontro, após assistir ao filme que trata do tema do tráfico de drogas no Rio de Janeiro, na perspectiva da polícia, do traficante e do morador da favela que abriga o ponto do tráfico, os participantes fizeram comparações com os problemas do bairro, apontaram similaridades e diferenças de contexto de vida dos moradores e dos jovens do filme e os da Vila Dalva. No encontro seguinte, foi lido e discutido em grupos o texto “Tráfico nada tem de revolucionário”, de Marcelo Freixo, retirado da Folha de São Paulo de 26 de março de 2006, tendo como questão norteadora: qual a importância do modo de produção capitalista para o consumo de drogas (um produto de mercado)? Com a síntese feita pelas coordenadoras, o grupo estabeleceu relações entre o processo de produção, distribuição e consumo de drogas e as características de trabalho e vida dos moradores da Vila Dalva, especialmente as dos jovens. As oficinas permitiram que os participantes relacionassem os problemas cotidianos (microcontextos) das instituições sociais representadas, com os aspectos da estrutura e dinâmica social do capitalismo (macrocontextos), como mostram os excertos abaixo: A televisão passa tudo aquilo que você quer [ter] e às vezes você não tem, [mas] vai ser bombardeada. [...] Um jovem [...] da periferia mais ainda [...], todos usam tal tênis, todos usam tal camiseta, é a questão de inserção no grupo. Então aquele [grupo a] que eu quero pertencer, [se] as pessoas fumam, ai eu também quero pertencer. (P4) Se [o jovem] acorda, vem pra rua, o que que tem? Não tem nada pra fazer, não tem nada, não tem uma estimulação pra você praticar um esporte, não tem eventos pra você ir. Então [...] [o jovem] vai tá tipo no deserto, não tem nada pra fazer, vai procurar droga mesmo. Ah! vou experimentar, é bom. A sensação deve ser boa mesmo, porque senão eles não usavam,
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né? Acho que é isso mesmo, sai de casa e não tem nada pra fazer, não tem onde ir, não tem parque, [...], não tem amigos, não tem trabalho. Principalmente trabalho [...]. (P5)
As oficinas também permitiram uma análise da realidade que interpreta o envolvimento com as drogas de forma menos preconceituosa e menos identificada com o senso comum, o que permite uma aproximação com os jovens e com usuários. [...] Por que tem que acabar sempre assim tragicamente? [...] a pessoa pode parar de beber e continuar tomando um drink de vez em quando [...]. (P6) O que é acabar mal, é a pessoa continuar usando droga? E acabar bem, é ela parar de usar? [...] A pessoa não pode ter uma vida boa, uma vida normal, viver dentro dos conformes usando de vez em quando? Tem quem tenha uma vida normal, trabalhando. (P7) No começo a gente tava muito confuso, a gente não encontrava [...] quem é o culpado, é os pais que foram trabalhar e deixou lá na casa, é a escola que os professores não tão mais nem aí, [...] ou era ele mesmo. Mas agora [...] eu responderia [...] coitado do cara que caiu na droga [...] porque eu acho que ele não é culpado, a família também não é culpada e a escola também não tem culpa nenhuma, eu acho que eles tão caindo na droga hoje por conta dessa situação toda, [...] a falta de emprego, tudo isso [...]. A gente entendeu melhor [...] porque eles acabam sendo discriminados, por uma razão que não tem nem sentido de ser porque de um jeito ou de outro quem não usa drogas? [...] (P6) Eu tinha o costume já de julgar, né? Agora a gente procura saber primeiro o que que fez a pessoa chegar a esse ponto, [...] a gente procura saber a história da pessoa. Por mais errado que a gente ache que é aquela atitude, a gente até [...] compreende o porquê de tá acontecendo aquilo, né?. (P8)
Os participantes superaram concepções e práticas ingênuas, não apenas por meio de mudanças discursivas por referência aos conteúdos tratados, mas também por intermédio de atitudes e ações no cotidiano, como expressa o excerto abaixo. No encontro passado a gente aqui teve uma discussão aberta, de como dar uma resposta, dar uma saída [para o problema] [...]. Ontem eu entrei numa sala para dar aula [...] e aí conversava com os meninos sobre um projeto de vida. [...] deixei um espaço pra discussão, vocês vão me montar um projeto, escrever uma redação [sobre] o que vocês querem, [na vida] [...] como vocês vão conseguir e quais os valores [que] vocês precisam prá fazer essa atividade [...]. Aí todo mundo ficou parado [e] perguntou assim para mim: mas o que é valor? [...]. Aí [...] falei: tá perto da eleição, a gente tá falando [...] tanto dos políticos que são corruptos [...]. Ele é honesto? Não. A honestidade é um valor? [...] Aí [...] quando peguei o segundo colegial eu fiz diferente, [...] fui por um outro caminho. [...] Ao invés de pedir pra cada um, [pedi] prá que se juntassem em grupos pra refletir [...], aí saiu, aí saiu alguma coisa. [...] se ficar colocando que só o que eu ganhei, comprei, tem valor, é aonde eu até vou correr pras drogas, por que? Porque vai existir lá dentro um espaço que ninguém vai preencher, conhecimento nenhum vai preencher. (P9)
Ao final do processo, os trabalhadores das diferentes instituições sociais propuseram, como continuidade dessa etapa, a criação de espaços de discussão no trabalho e a elaboração de projetos intersetoriais de prevenção do consumo prejudicial de drogas, especialmente do setor saúde com o da educação.
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[A saída] é criar momentos assim, [...] agora eu aprendi a pensar, raciocinar [...]. A gente pode tá trazendo gente que tá perdido também ou que tão no escuro. Que a gente consiga abrir um pouco a cabeça, se esses quatro ou cinco abrir de mais dois já ta bom [...]. (P6) E porque não juntar essas famílias com nós profissionais do posto de saúde, com os profissionais da escola e fazer uma coisa junto, que eu acho que tem tudo a ver. Nós estamos ali, tendo contato com as famílias, os professores têm contato com os alunos, é importante a presença dos pais, né? Eu acho que seria super legal, [...] é difícil, mas a partir do momento que eles começarem a ver que tá tendo resultado [...]. (P8)
Verificou-se que a oficina constitui-se como instrumento potente de transformação do objeto do processo educativo. A potencialidade desse método para acessar conhecimentos foi também demonstrada por Andrade, Barbosa e Soares (2004), ao desenvolverem e analisarem um conjunto de oficinas em que participaram pais e educadores de uma escola de educação infantil. Assim, a oficina tomada como instrumento do processo de aprimoramento de conceitos e práticas - efetiva espaços: de expressão dos diferentes pontos de vista e percepção dos participantes; de discussão de crenças e de valores; estimula a utilização de noções já aprendidas em situações novas (Moreno et al., 2005), e favorece, pela sistematização de processos de racionalização, a construção coletiva de conhecimentos como resultado da reflexão problematizadora da realidade social concreta dos participantes (Andrade, Barbosa, Soares, 2004; Moreira, Barreto, 2004). Resultado semelhante foi descrito por Jeolás e Ferrari (2003), quando mostraram que os exercícios e os temas trabalhados estimularam questionamentos e permitiram que fossem evidenciados possíveis determinantes externos - classe social, gênero, idade - que impõem limites reais à autonomia pessoal; os autores afirmaram que esse processo de construção coletiva é condizente com uma espécie de ruptura da alienação do dia a dia. Na mesma direção, Patrício (1994) descreveu a efetividade das oficinas, concluindo que o processo permite que conceitos ingênuos ou preconceituosos sejam superados, o que possibilita uma leitura crítica da realidade. Moreira e Barreto (2004), analisando o processo de oficinas realizadas com moradores de zona rural, descreveram propostas, feitas pelos participantes, de intervenção para a melhoria das condições de vida dos moradores daquele território, além das possibilidades de superação e construção de conceitos. No que concerne especificamente ao tema do consumo de drogas por jovens, destaca-se a experiência de uso de um jogo educativo do Rio de Janeiro, que mostra a potência de um momento de reflexão lúdica para discutir a realidade, afastando-se de uma perspectiva de transmissão de informações, definidas a priori e distanciadas da realidade dos sujeitos. Os adolescentes avaliam positivamente o uso do Jogo da Onda, esclarecem que o jogo facilita a abordagem de temas pouco discutidos entre os próprios adolescentes, e que, se pudessem jogar com a família, seria mais fácil discutir esses assuntos em casa (Rebello, Monteiro, Vargas, 2001).
Conclusão Avalia-se que a oficina é um instrumento potente para que os sujeitos - agentes e coprodutores do processo educativo – participem com a finalidade de transformar a práxis reiterativa em práxis criativa. Foi possível aquilatar a efetividade do processo conduzido pelas oficinas, aferindo-o com as etapas da metodologia proposta por Saviani (2003). Pode-se afirmar que as oficinas se configuram como prática social; no processo descrito neste artigo os participantes, inicialmente, tinham diferentes compreensões a respeito do consumo e do consumidor de drogas, embora prevalecesse o senso comum identificado com idéias comumente difundidas pelas mídias, idéias essas diferentes dos saberes produzidos pelas experiências concretas do cotidiano desses trabalhadores.
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Embora essas oficinas não tenham sido decorrência de solicitação desses participantes, o tema foi caracterizado como preocupante por moradores do bairro, em pesquisa anterior (Campos, 2004). Dessa forma, a apresentação da proposta das oficinas motivou os trabalhadores das instituições sociais do bairro, que já, nesse momento, verbalizaram alguns problemas colocados pela prática social e o interesse em participar. Com o decorrer das oficinas, pôde-se constatar, por meio dos excertos transcritos das falas dos participantes, o processo de instrumentalização ocorrido, uma vez que os participantes foram se apropriando de conceitos e foram se ampliando as possibilidades de análise crítica da situação em que se encontram os jovens na contemporaneidade - em especial, na realidade do cotidiano desses trabalhadores, denotando um desenvolvimento de sua consciência em relação à situação enfrentada, ainda que não se possa assegurar a passagem, segundo Saviani (2003), da síncrese (a visão caótica do todo) à síntese (uma rica totalidade de determinações e de relações numerosas), pela mediação da análise (as abstrações e determinações mais simples). O conceito dos participantes a respeito do consumo de drogas evoluiu qualitativamente, mostrando que os saberes identificados com os do senso comum inicialmente trazidos pelos trabalhadores - a culpabilização individual e familiar - se complexificaram para uma compreensão das raízes do consumo prejudicial de drogas e para a proposição da superação de práticas reiterativas de reprodução da ideologia dominante. Desfizeram-se também mitos, preconceitos e estereótipos a respeito do usuário frágil, influenciável, desmotivado e excluído - bem como a respeito do poder e dos efeitos das drogas. Assim, a alteração qualitativa da prática social - ponto de chegada desse percurso - se efetivará quando os participantes implementarem projetos de prevenção do consumo prejudicial de drogas numa perspectiva emancipatória com os jovens, viabilizando trabalhos solidários em direção ao fortalecimento dos grupos sociais, para o enfrentamento das condições de exploração em que vivem.
Colaboradores Cássia Baldini Soares e Célia Maria Sivalli Campos redigiram a versão final do artigo, articulando os resultados das monografias de final de curso, por elas orientadas, das alunas de graduação de enfermagem Adriana de Souza Leite e Cristina Lourdes Leite de Sousa. Referências ABRAMO, H.W. Condição juvenil no Brasil contemporâneo. In: ABRAMO, H.W.; BRANCO, P.P.M. (Orgs.). Retratos da juventude brasileira: análises de uma pesquisa nacional. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2005. p. 37-72. ACSERALD, G. A educação para a autonomia: construindo um discurso democrático sobre as drogas. In: ______. (Org.). Avessos do prazer: drogas, Aids e direitos humanos. 2.ed. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2005. p.183-212. AMARANTE, A.G.M. Juventude no SUS: as práticas de atenção à saúde no Butantã. 2007. Dissertação (Mestrado) - Escola de Enfermagem, Universidade de São Paulo, São Paulo. Disponível em: <http://www.teses.usp.br>. Acesso em: 25 jun. 2007. ANDRADE, S.C.; BARBOSA, R.C.; SOARES, C.B. Oficinas de discussão: uma proposta educativa em saúde como instrumento para a intersetorialidade. In: Comissão de Graduação da Escola de Enfermagem da USP. (Org.). VII Mostra de Monografias de Conclusão de Curso da EEUSP/2003. São Paulo: EEUSP, 2004. p.75-7. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.13, n.28, p.189-99, jan./mar. 2009
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O objeto deste estudo é a oficina de instrumentalização de trabalhadores de instituições sociais que trabalham com jovens, para compreender o consumo contemporâneo de drogas. Partiu-se do pressuposto de que a abordagem da temática na perspectiva da Saúde Coletiva, ou seja, a partir da compreensão estrutural da produção, distribuição e consumo contemporâneo de drogas, poderia aperfeiçoar o trabalho nessas instituições. O objetivo foi verificar a efetividade da oficina como instrumento do processo educativo. A metodologia consistiu na realização sistemática de oficinas com base no arcabouço teórico-metodológico da teoria histórico-crítica. A participação evoluiu qualitativamente, mostrando que os saberes identificados com os do senso comum inicialmente trazidos pelos trabalhadores evoluíram para uma compreensão das raízes do consumo prejudicial de drogas e para a superação de práticas reiterativas que retroalimentam mitos, preconceitos e estereótipos a respeito do usuário, bem como a respeito do poder e dos efeitos das drogas.
Palavras-chave: Juventude. Consumo de drogas. Educação. Saúde coletiva. Young people and drug consumption: workshops to provide tools for workers in social institutions, from a collective health perspective The objective of this study was, through workshops, to provide tools for workers in social institutions who work with young people, so that they could understand present-day drug consumption. It started from the presupposition that approaching this topic from a collective health perspective, i.e. from understanding the structure of the production, distribution and consumption of drugs today, the work of these institutions might be improved. The aim was to investigate the effectiveness of workshops as tools in the educational process. The methodology consisted of systematically conducting workshops within a theoretical-methodological framework of historical-critical theory. The workers’ participation evolved qualitatively, thereby showing that the knowledge identified, along with the common sense initially brought in, evolved into comprehension of the roots of harmful drug consumption and into surmounting reiterative practices that fed back into myths, prejudice and stereotypes regarding users, as well as gaining respect for the power and effects of drugs.
Key words: Young people. Drug consumption. Education. Collective health. Juventud y consumo de drogas: talleres de instrumentalización de trabajadores de instituciones sociales en la perspectiva de la salud colectiva El objeto de este estudio es el taller de instrumentalización de trabajadores de instituciones sociales que trabajan con jóvenes, para comprender el consumo contemporáneo de drogas. Se parte del presupuesto de que la aproximación de la temática en la perspectiva de la Salud Colectiva, o sea, a partir de la comprensión estructural de la producción, distribución y consumo contemporáneo de drogas, podría perfeccionar el trabajo en tales instituciones. El propósito ha sido verificar la efectividad del taller como instrumento del proceso educativo. La metodología consiste en la realización sistemática de talleres a partir de la estructura teórico-metodológica de la teoría histórico-crítica. La participación evolucionó cualitativamente, mostrando que los saberes identificados con los del sentido común inicialmente traidos por los trabajadores evolucionaron para una comprensión de las raíces del consumo perjudicial de drogas y para la superación de prácticas reiterativas que retro-alimentan mitos, preconceptos y estereotipos respecto al usuario, así como respecto al poder y a los efectos de las drogas.
Palabras clave: Juventud. Consumo de drogas. Educación. Salud Colectiva. Recebido em 10/07/07. Aprovado em 18/06/08.
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As representações sociais de funcionários de uma Instituição de Longa Permanência sobre violência no interior de Minas Gerais Alcione Tavora Kullok1 Ivana de Cássia Baptista dos Santos2
Introdução Este artigo é o resultado do estudo que se propôs a identificar o conhecimento prévio dos funcionários de uma Instituição de Longa Permanência de Idosos (ILPIs) sobre tipos de maus-tratos, como um dos itens problematizadores para a preparação do curso de capacitação da equipe multidisciplinar: “Envelhecimento Institucionalizado e a Re-apropriação da Identidade”, solicitado pela instituição – em conformidade com o Art. 18 do Estatuto do Idoso, que prevê o treinamento e a capacitação dos profissionais, assim como orientações a cuidadores, familiares e grupos de autoajuda. O curso objetivou ainda, preparar todos os funcionários da Instituição para assistir a esses idosos com um novo olhar e uma nova ressignificação nas práticas do cuidar, considerando as ressonâncias do envelhecimento biológico, das patologias que podem acompanhá-lo e das respostas sociais que determinam atitudes de rejeição ou acolhimento. Estima-se que 1% dos idosos brasileiros esteja institucionalizado, com diversos níveis de dependência (Chaimowicz, Greco, 1999). Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 2001 (IBGE, 2005), existem um e meio milhão de idosos dependentes no Brasil. Neste cenário, no qual se acumula o envelhecimento com doenças cronicodegenerativas, e na dependência de uma ou mais pessoas que supram as suas incapacidades para a realização das atividades de vida diária, também se concentra o envelhecimento saudável. O Brasil está passando por um processo de envelhecimento populacional rápido e intenso, havendo a expectativa de alcançar 15% em 2020 (Camarano, 1997). Apesar dos avanços investigativos na área da geriatria e gerontologia da última década, no Brasil os estudos acerca das Instituições de Longa Permanência ainda são incipientes; e, ainda hoje, depara-se com sérios problemas relacionados à qualidade do cuidado, que só vêm à tona nos escândalos dos noticiários, como o caso de elevado número de mortes de idosos na Clinica Santa Genoveva, Rio de Janeiro, gerando preocupações, e alvo de investigação de pesquisadores da área de saúde (Guerra et al., 2000). Tal situação demonstra a necessidade urgente de investigações sobre as condições de vida dos idosos institucionalizados no nosso país. Recentes estudos (Born, Boechat, 2006; Kullok et al., 2006; Machado, Queiroz, 2006; Papaleo Netto, 2006) demonstram a existência de sérios
1 Fisioterapeuta. Doutoranda em Saúde da Criança e da Mulher, Instituto Fernandes Figueira, Fundação Oswaldo Cruz (bolsista Capes). Av. Rui Barbosa, 716, Flamengo, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. 22.250-020 alcionetk@gmail.com 2 Fisioterapeuta. Centro Universitário de Caratinga (UNEC).
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problemas em idosos com dependência, tais como: úlceras de pressão, desnutrição, incontinência urinária, dor, negligência e maus-tratos. Machado e Queiroz (2006) sugerem que mulheres idosas, em situação de comprometimento cognitivo, físico e mental são vítimas em potencial. Idosos com dependência, aos cuidados dos familiares, podem sofrer agressão verbal e até física, deixando-os muito culpados. As dívidas de reciprocidade despertam sentimentos ambíguos, que podem conduzir à agressão. Essa responsabilidade tem um embasamento nas normas de “obrigação filial” e “obrigação familiar”, resultantes de códigos morais e religiosos – tais como no Judaísmo, Cristianismo, Confucionismo, Budismo, dentre outros (Aboderin, 2004; Kemp, 2003). As trocas intergeracionais continuam a ser um aspecto primordial das relações familiares nas sociedades modernas e pósmodernas. O conteúdo e a intensidade, o sentido dos fluxos são alguns dos aspectos a se considerarem na reconstituição das relações entre as gerações. De modo geral, as trocas concretizam-se em torno do domínio afetivo, da ajuda doméstica e financeira, da guarda das crianças e dos cuidados gerais em caso de doença ou incapacidade. “Dá-se” e “recebe-se” (“Dom” e “contra Dom”) tempo de convívio e atenção, serviços de várias ordens e, talvez, o que mais facilmente se consegue contabilizar: ajudas financeiras e presentes (Brandão, 1999; Gil, 1999; Attias, Donfut, 1995). A Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS, 1996) declara que a violência, pelo número de vítimas e a magnitude de sequelas que produz, adquiriu um caráter endêmico e se converteu num problema de saúde pública. Outro marco legal da maior importância foi a inclusão dos maus-tratos a idosos no documento do Plano de Ação da 2ª Assembléia Mundial do Envelhecimento, realizada em Madrid em 2002 (art. 98 e 100). No Brasil, somente a partir da década de 1980 é que essa questão começou a despertar o interesse na comunidade científica. Esse crescimento ocorreu, sobretudo, devido a dois fatores: conscientização dos valores da vida e dos direitos de cidadania, e mudanças no perfil de morbimortalidade no mundo e no país. Dentro do estudo da violência, os maus-tratos contra os idosos foram os últimos a serem contemplados como fenômeno político e como questão de saúde pública, após os estudos sobre a violência contra a mulher e a violência infantil (Machado, Queiroz, 2006). Nesse sentido, optou-se por utilizar o consenso internacional de todos os países participantes da Rede Internacional de Prevenção contra Maus-Tratos em Idosos, e endossada pela Organização Mundial de Saúde (OMS, 2002) e pela portaria do Ministério da Saúde (MS) do Brasil de 2001. A prerrogativa dessa opção é preservar uma homogeneidade de conceitos. São definidos sete tipos de violências: abuso físico ou maus-tratos físicos concerne ao uso de força física, potencialmente produtor de uma injúria, ferida, dor ou incapacidade; abuso ou maus-tratos psicológicos envolve agressões verbais ou gestuais com o objetivo de aterrorizar, rejeitar, humilhar a vítima, restringindo sua liberdade ou, ainda, isolá-la do convívio social; a negligência é a recusa, omissão ou fracasso por parte do responsável no cuidado com a vítima, porquanto a autonegligência é conceituada como conduta de pessoa idosa que ameaça sua própria saúde ou segurança, com a recusa ou o fracasso de prover a si mesma um cuidado adequado; o abandono é descrito como ausência ou deserção, por parte do responsável, dos cuidados necessários às vítimas, às quais caberia prover custódia física e cuidado; abuso financeiro aos idosos ocorre quando há exploração imprópria ou ilegal e/ou uso não consentido de seus recursos financeiros; e o abuso sexual, que é o ato ou jogo sexual, em uma relação hétero ou homossexual, destinado a estimular a vítima ou utilizá-la para obter excitação sexual e práticas erótico-sexuais impostas por meio de aliciamento, violência física ou ameaças. Todas essas formas de violência interpessoal, comunitária e estrutural, são aqui entendidas como expressões de ausência dos direitos da pessoa idosa. Estimativas sobre abuso em idosos são difíceis de obter-se devido ao caráter frequentemente velado do problema. Essa subnotificação associa-se, muitas vezes, à solidão, ao isolamento e à tendência dos indivíduos idosos a não relatarem suas adversidades (Kosberg, 1988). Há poucas evidências sobre como, efetivamente, suspeitar ou reconhecer a presença de abuso, e são poucos os profissionais de saúde que ativamente rastreiam pacientes que não possuam alguma lesão aparente (Rathbone, Voyles, 1982). Muitas vezes, os atores envolvidos na trama da violência estão ligados por laços consanguíneos, que acabam mascarando ou impedindo a detecção de todos os elementos que a compõem. Minayo e Souza 202
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(2005) citam estudo da OMS/IPEA, Missing Voices, no qual se destaca o fato de os idosos dificilmente falarem da violência que sofrem. Mas e os idosos dependentes, acamados, afásicos, que vivem em ILPIs, cuidados por pessoas sem vínculos de afeto consanguíneo, os quais, muitas vezes, sofrem maustratos perpetrados por esses próprios cuidadores, a quem devem se dirigir? Denunciar? Não serão eles os missing voices? Um dado importante é o fato de não existir um maior conhecimento da realidade dos maus-tratos em idosos institucionalizados em nosso país (Machado, Queiroz, 2006). Neste texto o verbo institucionalizar é empregado no sentido de se colocar ou confiar alguém aos cuidados de uma instituição especializada (Ferreira, 1999; Michaelis, 1998). Este modelo apareceu na Europa no século XVI, destinado a albergar loucos, vagabundos, foras-da-lei e idosos. Considerando os estereótipos negativos associados à pobreza, abandono ou rejeição familiar, uma forma utilizada para suavizar esses termos, tanto em instituições públicas como privadas, é a de substituí-los por outros, como: Lar dos Idosos, Casa de Repouso, Clínica Geriátrica, Casa da Vovó, Pousada para idosos, entre outras. As taxas atuais de uso das instituições oscilam entre 4% e 7% em países como Canadá (6,8%), Estados Unidos (4%), Israel (4,4%), África do Sul (4,5%). Na China a expectativa de assistência institucional para o idoso está se convertendo em norma. Em Taiwan (China) a assistência institucional aos idosos superou rapidamente a atenção familiar (Lemos, Medeiros, 2006). Na América Latina as taxas variam entre 1% e 4%. No Brasil, estima-se em 1%, segundo o Ministério da Saúde. O cuidado das pessoas idosas em instituições especializadas, nos países da América Latina, tem sido considerado, pelas famílias, como uma opção possível. Os asilos patrocinados pelo Estado, enormes instituições semelhantes aos antigos asilos de pobres da Inglaterra, transformaram-se em estabelecimentos menores, com pessoal profissional multidisciplinar. No Brasil, as modalidades de proteção e atendimento aos idosos estão a cargo de instituições públicas e privadas. O atendimento prestado pelas instituições de longa permanência volta-se, prioritariamente, para a parcela mais carente da população idosa, e está presente na grande maioria de nossas comunidades, por meio dos tradicionais asilos e vilas vicentinas (Siqueira, 2007; Lemos, Medeiros, 2006). Embora seja indiscutível a necessidade de funcionários qualificados para assegurar o padrão de qualidade das ILPIs, muitas, sobretudo aquelas de natureza beneficente, lutam, permanentemente, com limitações de ordem financeira (Born, 2007). Um dos maiores problemas encontrados para a conciliação entre o ideal e o mínimo indispensável para se garantir atendimento satisfatório aos idosos, reside na grande dificuldade em se definir um padrão de funcionamento. Em 2005, foi decretado o Regulamento Técnico para o funcionamento das Instituições de Longa Permanência para Idosos, buscando definir os critérios mínimos para o funcionamento e avaliação, bem como mecanismos de monitoramento destas Instituições; a prevenção e redução dos riscos à saúde aos quais ficam expostos os idosos residentes em instituições de Longa Permanência, e garantir a essa população idosa os direitos assegurados na legislação em vigor. Nesse contexto de idosos carentes, residentes em uma Instituição de Longa Permanência para Idosos (ILPI), filantrópica, e que está a cargo de uma comunidade religiosa, é que se encontra o grupo pesquisado.
Material e método O presente estudo foi realizado numa ILPI, em um município de Minas Gerais, que apresenta as seguintes características: uma área externa, referente a uma vila destinada aos idosos independentes, e uma área interna subdividida em duas alas distintas (área feminina, com quarenta idosas, e área masculina, com trinta idosos). Destes, 27 idosos (dez homens e 17 mulheres) são cadeirantes, e os demais apresentam dependência parcial para a realização das atividades de vida diária (AVD’s). Foram obedecidas, nesta pesquisa, as orientações contidas na Resolução 196/96 do Ministério da Saúde, tanto nos aspectos éticos com a Instituição que autorizou a realização da pesquisa, quanto com os sujeitos que cederam as entrevistas após leitura e assinatura do Termo de Consentimento Livre e COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
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Esclarecido. Aos participantes do estudo foram informados os objetivos da pesquisa e as possíveis utilizações das informações obtidas para estudos posteriores, adotando-se o anonimato dos informantes. Os participantes foram: funcionários da lavanderia, cuidadores de idosos, técnicos de enfermagem, encarregados da limpeza, cozinheiras, e a secretária, o presidente e o vice-presidente da Instituição, somando-se, ao todo, 13 entrevistados. Todas as entrevistas foram agendadas, sendo necessários cerca de trinta dias para sua conclusão. Elas foram gravadas em fita cassete e, posteriormente, transcritas e revisadas. Foram realizadas por duas pesquisadoras com experiência no atendimento a idosos, e aplicadas na Instituição estudada. A idade média simples foi 41,6 anos, com nível de escolaridade entre cinco a oito anos de estudo – porém, uma das participantes era analfabeta, sabendo somente escrever seu nome porque seu filho a havia ensinado. A média do tempo de trabalho foi de dez anos e oito meses. Realizou-se estudo de abordagem qualitativa, de cunho exploratório-descritivo para investigar as representações sociais da violência entre os funcionários e diretoria na instituição de Longa Permanência desse Município. A análise dos dados, oriundos da transcrição das entrevistas e das comunicações das ILPIs, foi processada por meio da análise de conteúdo (Moraes, 1994). As unidades de significado, identificadas no processo de análise de conteúdo, foram codificadas pelos pesquisadores – utilizou-se a letra D para dirigentes e F para os funcionários –, porém optou-se por não se explicitar a natureza do cargo dos funcionários para manter o anonimato dos entrevistados. O referencial metodológico de natureza qualitativa utilizado foi o das representações sociais enquanto procedimento metodológico. As representações sociais: “[...] são conhecimentos sociais que situam o indivíduo no mundo e, situando-o, define sua identidade social - o seu modo de ser particular, produto de seu ser social [...]” (Spink, 1995, p.8). Com base no pressuposto segundo o qual o indivíduo é concebido como um todo - em que o singular e a totalidade social são indissociáveis - e o sujeito, ao elaborar e comunicar suas representações, recorre a significados socialmente constituídos e de sentidos pessoais decorrentes de suas experiências cognitivas e afetivas, Lane e Sawaia (1995) ressaltam a importância do conceito de representação social como dado empírico do qual se parte para uma análise dialética que permite conhecer concretamente a consciência, a atividade e a identidade de sujeitos situados social e historicamente. Portanto, o mundo da vida cotidiana é tecido por significados, construídos pelas ações humanas e passíveis de interpretações. Não existe uma realidade a priori, mas toda realidade é uma representação, reapropriada e reconstruída pelos indivíduos, integrando o seu sistema de valores e condicionada à história e às relações sociais (Sawaia, 1994). A fim de aprofundar a investigação sobre as percepções, crenças, motivações e atitudes dos funcionários e diretores dessas Instituições, foram realizadas entrevistas semiestruturadas individuais para se evitarem situações de constrangimento, vergonha ou, mesmo, influências entre as respostas. A técnica da entrevista é considerada, por Minayo, Assis e Souza (2005), como uma conversa com finalidade. Na modalidade que foi utilizada neste estudo, o entrevistado teve a possibilidade de discorrer sobre o tema sem se prender às perguntas que serviram como guia para o entrevistador. Foi utilizado, ainda, um diário de campo, no qual foram registradas as observações feitas em todos os contatos com os funcionários, pontuando-se eventuais contradições. Na análise, os dados foram ordenados em unidades básicas descritivas, que se relacionavam entre si de forma a ressaltar padrões, semelhanças e diferenças, repetições, temas e conceitos. Na interpretação, buscamos atribuir significados à análise, explicando os padrões encontrados e identificando relacionamentos entre as dimensões descritivas, sob a luz de um exame detalhado da literatura que traz reflexões acerca dos aspectos encontrados e suas consequências sobre os maus tratos em idosos.
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Resultados e discussão Quando questionados sobre “o que significa violência para você?” os pesquisadores puderam sentir que, no grupo pesquisado, entre homens e mulheres, a primeira pergunta era de tal forma impactante que momentos de silêncio se repetiam e as respostas eram praticamente as mesmas: “Falar assim é difícil”; “na hora assim... é difícil; falar assim é... muito difícil”; “Como que falo... some da minha mente agora...” A percepção dos pesquisadores quanto a esse grupo é a de que, para eles, conceituar violência foi difícil, mas ressignificá-la, no pólo representacional e vivencial, se tornou mais fácil ao utilizarem a seguinte indagação: quando se fala em violência, o que lhe vem à cabeça, na sua imaginação? Seguem respostas dos participantes: “Eu acho que tudo que agride o físico, o ser humano” “Agressão, violência física, bater”; “Pessoas ruins, pessoas boas não faz violência”; “Uma das piores coisas que existe no mundo. De todas as coisas ruins, a violência está entre as piores”; “Tem todo tipo de violência”; “Falta de amor”; “É gritar com o outro, é empurrar”; “As mulheres, os filhos serem espancados”; “Maltratar os outros”; “Pessoa agredir a gente, os meninos da gente, judiá, pegar menininha novinha”; “Bater nos outros, fazer maldade, judiar da pessoa” Em quase todas as entrevistas, ao associar a palavra violência, o imaginário pessoal estava povoado com a violência física ou abuso físico; e estes termos eram relacionados aos ciclos da vida e gênero: crianças, adolescentes, mulheres e homens, porém, em nenhum momento, foram citados os idosos. Fato este que nos chamou bastante atenção, visto que os entrevistados tinham, em média, 11 anos de trabalho na Instituição. Apenas um entrevistado mencionou a violência contra os idosos, porém já havia passado por um curso de qualificação para cuidadores, e se referia aos maus-tratos psicológicos: “Violência principalmente no setor para nós que trabalha no setor é a violência contra os idoso, a gente tem que tomar cuidado até no modo de dirigir um idoso porque pela ‘lei do idoso’ até um tom mais alto a gente ta cometendo uma violência contra o idoso”; “Violência verbal, ‘xingar’ uma pessoa, ou dar um tapa”. Outro tipo da violência muito citada foi o abuso ou maustratos psicológicos que envolvem agressões verbais ou gestuais com o objetivo de aterrorizar, rejeitar, humilhar a vítima, restringindo sua liberdade ou, ainda, isolá-la do convívio social. Mas aqui nesses depoimentos ainda percebe-se que as falas encontram-se relacionadas às marcas vividas e revividas de um passado violento pessoal: “Um tom mais alto é uma violência”; “Violência é gritar com a gente, não saber falar com a gente, chamar atenção na frente dos outros. Pra mim, se eu fizer alguma coisa errada, pode me chamar num canto e falar. Se gritar comigo, acabou. Tem que saber falar positivo, com educação, detesto grito, pra mim é o mesmo que me bater, ou até pior”; “Gritar”. O falar mais alto, os gritos, são aspectos comportamentais de violência interpessoal que acontecem nos espaços públicos, como escolas, empresas, entre outros; e, sobretudo no espaço privado da família, eles acontecem de forma generalizada e banalizada, porém causando consequências nefastas nas pessoas a longo e/ou curto prazo. Para Freire (1996) e Streck (1999), esses comportamentos acontecem devido ao individualismo e à falta do diálogo; e só a partir da construção de uma sociedade do eu com nós, com olhar para o futuro, e um processo de educação voltado para o sentido da cidadania, com uma inclusão participativa, e justiça para todos, poderá se falar em um mundo com paz. A fala de Paulo Freire na Unesco, em Paris, em 1986, quando recebeu o prêmio “Educador para a paz”, é extremamente ilustrativa: [...] A paz se cria, se constrói na e pela superação de realidades sociais perversas. A paz se cria, se constrói na construção incessante da justiça social. Por isso, não creio em nenhum esforço chamado de educação para a paz que, em lugar de desvelar o mundo das injustiças o torna opaco e tentam miopisar as suas vítimas. A paz só pode existir com justiça; a paz é fruto da justiça. Por isso falamos de justipaz.
Outra classificação identificada foi a da violência estrutural – e 90% dos participantes vivem no bairro onde se concentra a população de menor poder aquisitivo e que é considerado o bairro mais violento da cidade, por ser o lócus focal das drogas e prostituição. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
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Bairro violento, drogas, muitos adolescentes drogados, prostituição, se não tomar providência a violência só vai aumentando, daqui uns dias não vai poder nem sair na rua depois das 9 h. Você não pode sair com um dinheiro maior, que você sai naquele medo deles pegar, pra você vê, até cinco anos atrás, você ouvia falar de roubo no Rio de Janeiro, hoje, aqui uma cidade tão pequena, você tem que sair com medo, aqui ta se tornando igual ao RJ. E aqui no nosso bairro tem um negócio assim, quando você solta, soltou um foguete lá no alto, todo mundo, já sabe o que é - chegou droga nova, é modo deles falar, então ta igual ao RJ, que lá dizem que é a mesma coisa, eu nunca fui, mas dizem que é a mesma coisa, então aqui ta se tornando um segundo RJ.
Nessa fala percebe-se como o Rio de Janeiro está sendo colocado na mídia como modelo de violência, apesar de São Paulo (capital) ocupar o primeiro lugar no ranking da violência no país. Na medida em que a literatura aponta o sofrimento da violência como um fator predisponente à reprodução da mesma, objetivou-se questionar a violência vivenciada por esses atores no decorrer de suas vidas, com as seguintes perguntas: “Você já sofreu algum tipo de violência?” “Qual?”. Apesar de as pesquisadoras estarem cientes de que essas violências, muitas vezes veladas, poderiam ser ou não reveladas, a espontaneidade das respostas surpreendeu as pesquisadoras. Uma das entrevistadas respondeu, sem rodeios, sobre a violência sexual sofrida e relatou ter sido “estripada” (estupro) aos nove anos por dois garotos que residiam na mesma rua. Essa mesma funcionária, ao responder à primeira indagação: quando se fala em violência o que lhe vem à cabeça, na sua imaginação?, prontamente diz: “Igual essas pessoas pegar menina novinha, fico com pena delas, menina novinha com menino no braço, não sabe nem cuidar direito.” Nota-se a preocupação da entrevistada para que não se repita com as outras o que lhe ocorreu no passado. Uma delas reporta que “graças a Deus nunca sofri, mas vejo mais na televisão, no jornal”. A violência na mídia, como órgão denunciador, e pelos programas midiáticos violentos tem sido alvo de estudos para apontar seus impactos positivos e/ou negativos, sobretudo para as crianças e adolescentes (Minayo, Njaine, 2003); e a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS/OMS), ciente de que a violência é uma produção histórico-social, enfatiza a necessidade de se aplicarem modelos que contemplem os aspectos socioeconômicos e culturais de cada país. Outras relataram a violência doméstica praticada pelo cônjuge. Ao serem indagadas se fizeram algumas denúncias, ambas negaram; uma culpou o álcool como uma forma de desculpabilizar o agressor, e a outra se separou. Estudos realizados (Deslandes, Gomes, Silva, 2000; Simão et al., 1997; Soares, Soares e Carneiro, 1996) apontam que, em cerca de 50% das violências contra a mulher, o marido estava alcoolizado. Quanto ao tema denúncia, somente uma relata que, se houver violência contra sua família: “eu vou reagir como? A gente vai denunciar aquela pessoa que está fazendo aquilo, se acontecer uma violência com a minha família o que eu vou fazer? Não vou resolver com as minhas próprias mãos, eu vou denunciar para policia”; “Maltratar a mulher isso não pode acontecer, marido bater na mulher, espancar os filhos, pois sei de muitos casos em que a mulheres que foram espancadas pelo marido, denunciou e hoje estão presos.” A violência familiar (pai para filho) está tão naturalizada que duas entrevistadas, em um primeiro momento, negaram, e depois perguntaram se as “surras, coças” sofridas quando crianças também seriam consideradas violência. Uma delas afirmou que não conseguiu perdoar o pai e que, até o momento de seu falecimento, os dois permaneceram com as relações cortadas (sem se falar). Esta entrevistada relata ter sofrido maus-tratos não só por parte do pai como dos irmãos. A violência física perpetrada pelos familiares em um passado recente e não recente foi a que provocou lembranças vividas e revividas com emoção e, até mesmo, lágrimas. Quanto aos homens, 66% relatam não terem sofrido qualquer tipo de violência, e suas falas são as mesmas: “Graças a Deus, não e espero que nunca aconteça”. Em suas falas, pode-se aferir que sabem que não estão imunes a ela – um sentimento de insegurança que ressentem ao sair de casa. Um dos homens que relata ter sido vitima da violência chamou a atenção das pesquisadoras, pois o seu relato, por várias vezes, foi manchete dos meios de comunicação: 206
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A violência do quartel, do exército, a gente passa igual um... Violência assim, na exigência de exercícios, eles passam do limite, vocês tem que fazer tantos exercícios, eles dobram, aquilo não respeitar o seu direito. Manda você fazer trinta abdominais depois noventa, além do limite.
A fala desse homem acometido pela violência nos remete à conceituação da violência em sua origem, do vocábulo latino que vem da palavra “vis”, que quer dizer força e se refere às noções de constrangimento e de uso da superioridade física sobre o outro. No seu sentido material, o termo parece neutro, mas quem analisa os eventos violentos descobre que eles se referem a conflitos de autoridades, à luta pelo poder e à vontade de domínio, de posse e de aniquilamento do outro (Minayo, Souza, 2005). Existem manifestações de violência que são aprovadas ou desaprovadas, lícitas ou ilícitas, segundo normas sociais mantidas por usos e costumes naturalizados ou por aparatos legais da sociedade. E essas e tantas outras eram praticadas nos círculos militares contra os novos egressos, e vistas de forma naturalizada e com objetivos legais no exercício da carreira. A questão sobre a violência contra idosos foi entremeada como uma estratégia de aproximação e inserção das pesquisadoras, e foi verificado que todos os entrevistados, após relatarem suas opiniões sobre violência nos pólos representacional e vivencial, responderam com naturalidade o questionamento: “em sua opinião quais são os tipos de violência que são cometidas contra os idosos?” Foi ressaltado que o questionamento referia-se à violência contra o idoso não apenas institucionalizado, mas também aquele que reside na comunidade. Dentro da tipologia da violência, o abandono surgiu nos relatos de forma recorrente: “Maus tratos, deixar ele só tá maltratando ele”; “Abandono”; “O idoso é que nem criança, não sabe o que faz, tem muita gente que bate no idoso. A gente vê muitos aí. Tem pessoa que tem idoso em casa que a família não zela direito, larga pra lá, põe ele dentro de casa, vai e sai pra rua. A família tem que cuidar do idoso. A pessoa deu a vida, tudo por ele, tadinho”; “Muito triste porque é o mesmo que maltratar uma criança porque é indefeso”. As falas quanto ao abandono vêm carregadas de sentimentos de piedade e revolta. Uma das falas que chamou a atenção das pesquisadoras foi a contradição de uma das entrevistadas, que, num primeiro momento, disse saber sobre a violência por intermédio dos meios de comunicação, mas quando se referiu à violência contra os idosos, sua resposta foi: No momento não estou lembrando de nenhum tipo de violência contra idoso, não, nunca ouvi. Pode ser que minha mente esteja falhando, uma das colegas que estava próxima perguntou se ela não lembrava do casal de idosos que foi assassinado na roça. Se ela não lembrava? Ela respondeu, viu? Foge da mente da gente... E o casal era conhecido dela.
Este relato chamou a atenção, pois ela já trabalha há 11 anos na Instituição e sua idade é 39 anos; e ao ser relembrado o fato acontecido, sua reação foi de impassibilidade e indiferença. Outro tipo de violência citado foi a psicológica, que envolve agressões verbais ou gestuais com o objetivo de aterrorizar. “Gritar com eles”; “Bater, gritar com eles”; “Às vezes eles vêm com um sorriso falar com a gente e você vai gritar com ele? Coitado. Ele não tem culpa. Se a gente tem nossos problemas... às vezes a gente não está bem... e vai gritar com eles? Isso é uma violência”. Uma das cuidadoras inicia sua fala assim: Através desse curso que eu fiz de cuidadores de idosos eu descobri que há tanta maneira do idoso sofrer violência que a gente nem imaginava, através de um tom mais alto que gente conversa com ele, através das vezes do paciente pedir assim: o fulano me leva no banheiro e você responder assim, agora, não, eu não posso, eu não tenho tempo, sendo que a gente ta trabalhando na Instituição porque tem o Idoso, porque através, aqui principalmente é que pagam nós se não existisse os idoso aqui não teria emprego pra nós estamos recebendo porque eles são aposentados.
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Esse curso tem trazido, para eles, uma nova ressignificação do processo do envelhecer com dependência, e os conscientizado de que são empregados direto da Instituição, mas que também são empregados indiretos dos idosos, portanto, se não merecedores de respeito pela idade, pelo menos, o respeito ao grau de hierarquia da Instituição, já que eles são copatrões. O respeito ao idoso que, em muitas culturas, ainda permanece em relação ao acúmulo dos conhecimentos obtidos, mas que, entre outras, com o avanço tecnológico, esse conhecimento está disponível nos meios de comunicação, tornando o idoso obsoleto e, com isso, fazendo-o perder seu espaço de pessoa sábia e multiplicador do conhecimento; conflitos intergeracionais, levando os jovens a um comportamento desrespeitoso, aparecem também nas falas: “Falta de respeito, maltrato; tratar sem dignidade”; “Maltratar com palavras, falta de respeito”. Dentro dos itens dos maus-tratos, foi relembrada a violação aos direitos dos idosos, a violência estrutural que, a todo momento, aparece na mídia, como noticiário: “Idoso apanhando na rua, em filas”; “Até ele andar numa circular, você pode notar que o motorista costuma virar o rosto para o outro lado e finge que não está vendo o idoso, sendo que é direito do idoso, é um tipo de violência”. Ao mesmo tempo, a violência invisibilizada, durante o banho do idoso dependente, foi percebida nas entrevistas: “Pegar ele à força para dar um banho” ; “[...] na hora do banho, que você vê que acontecem muitas coisas mas a gente vai esquecendo[...]”. É apontada nestas falas e na literatura como um dos maiores fatores de risco predisponentes às quedas por negligência, maus-tratos ou, mesmo, omissão de assistência a esses idosos (Laks, Werner, Miranda-Sá, 2006; Santos et al., 2006). Nos relatos acima, o que se percebe é que, embora eles desconheçam as diferentes classificações da violência, eles apontaram quase todas: maus-tratos físicos, psicológicos, negligência, abandono. Os tipos não citados contra os idosos foram: autonegligência, abuso sexual e financeiro.
Conclusão Os idosos são alvos fáceis de todos os tipos de violência, por sua fragilidade e dependência, por não saberem a quem recorrer e por não terem um amparo legal ativo, embora exista o Estatuto do Idoso (Lei Federal 10.741/03). Como o idoso institucionalizado pode recorrer a esse instrumento ao seu favor? E aquele que tem um perfil de baixa escolaridade, demência, dependência, sem familiares ou isolado da família e sociedade, cercado por pessoas, muitas vezes, com condições iguais ou piores que a sua? Como procurar os seus direitos? A quem recorrer em sua defesa? Os idosos asilares, pobres, ainda constituem uma população excluída e com dupla invisibilidade para a sociedade. Os entrevistados, ao se referirem à violência, quase sempre relatavam suas experiências sinceras e profundas como vítimas; porém, quanto aos idosos, era como se a violência sempre acontecesse extramuro, nunca dentro da Instituição, ou, às vezes, percebia-se uma denúncia velada, na penumbra, mas não revelada. O objeto deste estudo foi analisar as representações sociais de uma equipe multidisciplinar sobre o item violência dentro do escopo do trabalho, aprendizagem e sensibilização nas práticas do cuidar, com o objetivo de minimizar os impactos da violência na saúde dos idosos dessa Instituição. O item violência foi uma das temáticas para o conhecimento das teias e seus imbricamentos no processo do envelhecimento biopsicossocial e legal. A proposta de ação reflexiva possibilitou aos entrevistados uma avaliação do seu trabalho, transformando-os em sujeitos ativos e participativos, discutindo e refletindo sobre suas próprias ações cotidianas frente aos maus-tratos. Esse é um pequeno passo para um processo de intervenção, que, ao utilizar uma metodologia coparticipativa, a partir do princípio “do e pelo sentido”, poderá alcançar resultados de construção mobilizadora e transformadora.
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Colaboradores As autoras Alcione Távora Kullok e Ivana de Cássia Baptista dos Santos participaram, igualmente, da elaboração do artigo, de sua discussão e redação e da revisão do texto.
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O Brasil está passando por um processo de envelhecimento populacional rápido e intenso, estimando-se que 1% dos idosos brasileiros esteja institucionalizado. Apesar dos avanços investigativos na área da geriatria e gerontologia da última década, os estudos acerca das Instituições de longa permanência no país ainda são incipientes, deparando-se com sérios problemas relacionados à qualidade do cuidado. Neste artigo, de abordagem qualitativa e cunho exploratório-descritivo, foram investigadas as representações sociais de funcionários sobre violência em uma instituição de longa permanência de um município de Minas Gerais. Os dados, oriundos da transcrição das entrevistas, foram processados por meio de análise de conteúdo. Os entrevistados referiram-se à violência e relataram suas experiências sinceras e profundas como vitimas, porém, quanto aos idosos, era como se a violência sempre acontecesse extramuro, nunca dentro da Instituição, percebendo-se, às vezes, uma denúncia velada, mas não revelada.
Palavras-chave: Envelhecimento. Instituição de longa permanência para idosos. Violência. Representação social. The social representations of employees of a long-stay institution in the interior of Minas Gerais regarding violence Brazil is going through a fast and intense process of population aging. It is estimated that 1% of elderly Brazilians are institutionalized. Despite investigative advances within the field of geriatrics and gerontology over the last decade, studies on long-stay institutions in this country are at an incipient stage and serious problems relating to quality of care are appearing. Through a qualitative, exploratory and descriptive approach, this paper investigates the social representations of employees of a longstay institution in a municipality in the State of Minas Gerais, regarding violence at that institution. The data, from the interview transcript, were processed using content analysis. The interviewees made mention of violence and told of their sincere and deep experiences as victims. However, with regard to the elderly people, it was as if the violence always happened outside the walls, i.e. never inside the institution. Sometimes a veiled but undisclosed complaint was perceived.
Key words: Aging. Homes for the aged. Violence. Social representation. Las representaciones sociales de funcionarios de una institución de larga permanencia sobre violencia en el interior del estado brasileño de Minas Gerais Brasil está pasando por un proceso de envejecimiento de la población rápido e intenso, estimándose que el 1% de los ancianos brasileños está institucionalizado. A pesar de los avances investigativos en el área de geriatría y gerontología de la última década, los estudios sobre las instituciones de larga permanencia en el país son aún incipientes, afrontando serios problemas relacionados con la calidad del cuidado. En este artículo, de aproximación cualitativa y cuño exploratorio-descriptivo, se investigan las representaciones sociales de funcionarios sobre violencia en una institución de larga permanencia de un municipio de Minas Gerais. Los datos, oriundos de la transcripción de las entrevistas, se han procesado por medio de análisis de contenido. Los entrevistados se refieren a la violencia y relatan sus experiencias sinceras y profundas como víctimas. Sin embargo, en relación a los ancianos es como si la violencia siempre sucediera extra-muro, nunca dentro de la institución, percibiéndose a veces una denuncia velada aunque no revelada.
Palabras clave: Envejecimiento. Hogares para ancianos. Violencia. Representación social.
Recebido em 09/08/07. Aprovado em 19/06/08.
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No olho do furacão, na ilha da fantasia: a invenção da residência multiprofissional em Saúde
Daniela Dallegrave1 Maria Henriqueta Luce Kruse2
“Eu vim aqui para lhe dizer”3 No olho do furacão, na ilha da fantasia4, ou talvez um turbilhão e no instante seguinte, uma calmaria... Um olho de furacão, que, por aonde passa, arranca o que está preso, remexe, movimenta, estremece. Uma ilha da fantasia, onde tudo é possível, onde não há limites para o sonho. O título deste artigo5, assim como o título das sessões são extraídos de músicas, na tentativa de que estes escritos, assim como as músicas escolhidas, façam arrepiar a pele, da mesma maneira como o assunto provoca reações diversas naqueles que interpela. Historicamente, no Brasil, a modalidade de ensino denominada Residência consolidou-se como especialização para médicos, veiculando o modo hegemônico de atuação por especialidade, por prática liberal individual, curativa e privada, características desta profissão da área da saúde (Brasil, 2004). A invenção da Residência Multiprofissional em Saúde (RMS) traz outros sentidos. Na cidade de Porto Alegre, desenvolvem-se seis programas de RMS: no Grupo Hospitalar Conceição; na Escola de Saúde Pública; na Fundação Universitária de Cardiologia, em Cardiologia; na Fundatec (Fundação Universidade-Empresa de Tecnologia e Ciências), em parceria com a Universidade Federal do Rio Grande do Sul; no Hospital de Pronto Socorro; e na Pontifícia Universidade Católica. Além desses, o Hospital de Clínicas de Porto Alegre desenvolveu projeto que está tramitando nas instâncias institucionais. Assim, este lugar geográfico de onde falo, é um dos pólos desse tipo de formação, o que justifica uma busca de constituição destes ditos novos fazeres profissionais. A partir disto, as questões que nortearam o estudo foram: que discursos circulam sobre a RMS? Quais as condições de possibilidade da existência destes discursos? Como e com quais discursos se articulam? Quem está autorizado a falar sobre este assunto? De onde os autores falam? Para quem? A favor de quê? Contra o quê?
1 Enfermeira. Grupo Hospitalar Conceição. Rua Biscaia, 39, Jardim Itu, Porto Alegre, RS, Brasil. 91.240-030 danidallegrave@gmail.com
Enfermeira. Escola de Enfermagem, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 2
Tim Maia. Guiné Bissau, Moçambique e Angola. Disponível em <http://timmaia.letras.terra.com.br/ letras/618641/>. Acesso em: 21 out. 2006. 4 Engenheiros do Hawaii. Quanto vale a vida. Disponível em: <http:// vagalume.uol.com.br/ engenheiros-do-hawaii/ quanto-vale-avida.html>. Acesso em: 26 mai. 2007. 3
5 Elaborado com base em Dallegrave (2008).
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NO OLHO DO FURACÃO, NA ILHA DA FANTASIA ...
“Caminhando contra o vento”...6 O interesse em pesquisar sobre a Residência (um tipo de escola), por meio das publicações escritas (tipos de mídia), utilizando a análise de discursos (método arqueológico), inscreve este texto na perspectiva pós-estruturalista (Peters, 2000), inspira-se em Michel Foucault, e aproxima–se dos Estudos Culturais. Assim, procuramos desnaturalizar aquilo que é tomado como verdade, segundo regras e ordens fixadas em uma grande narrativa explicativa. Tomando a asserção Residência como coisa de médico, o percurso de investigação coloca em xeque esta metanarrativa, questiona como se deram as associações entre as palavras que compõem este enunciado, e reflete sobre os processos históricos e culturais que permitiram a legitimação dessa verdade e a instauraram como um discurso imperativo. Entendendo que discursos constroem subjetividades e produzem realidades em determinadas circunstâncias históricas, a análise desta pesquisa considerou suas condições e os jogos e efeitos de verdade que produzem sobre a RMS, o que ela é, o que deveria ou poderia ser (Foucault, 2000). Investigamos os discursos que circulam nos meios de comunicação e na legislação, tomando-os como artefatos da cultura que são capazes de subjetivar aqueles que os leem. Nesses artefatos, encontram-se as vozes que se autorizam a falar sobre o assunto. Aí estão os discursos possíveis, isto é, aqueles que podem ser ditos. Aí aparecem determinados discursos e não aparecem outros, vistos como sem autoridade e que, portanto, devem ser marginalizados e excluídos (Cheek, 2000). Serviram, como fontes de análise: documentos de regulamentação das Residências, jornais, revistas, publicações na internet e boletins informativos de corporações da área da saúde, produções de residentes, de instituições formadoras ou da mídia, indexadas ou não. A construção deste corpus se deu, de acordo com Deleuze (2006), com a escolha das palavras, frases e proposições “em torno dos focos difusos de poder (e de resistência) acionados por esse problema [proposto]” (Deleuze, 2006, p.28). O que interessou foi discutir os enunciados que se materializam com base em tais discursos, evidenciando o que se repete, se transforma, se rompe nesses lugares. Entendemos as publicações como veículos de idéias e verdades daqueles que falam. Só entram em disputa aqueles que acreditam ser portadores da verdade, visto que “é impossível pensar, conhecer e falar independentemente de agenciamentos, interesses, valores e forças sociais” (Veiga-Neto, Lopes, 2007, p.179). A análise do material está caracterizada pela leitura interessada, a qual varia de acordo com aquele que lê, considera a provisoriedade dos discursos e que nada é natural, sendo construído histórica e socialmente. Foram utilizados os analisadores de Michel Foucault: poder, discurso e dispositivo. Poder visto como algo que circula, não se compra, não se detém, nem se oferta (Foucault, 1989). Como algo vivo, em movimento, o poder só existe em ato e produz efeitos importantes nas sociedades, de acordo com os seus regimes de verdade, isto é, aquilo que a sociedade acolhe e autoriza a circular como um saber. Para isto, as sociedades detêm poderosos mecanismos ou procedimentos técnicos para realizar o controle detalhado dos sujeitos e das coisas: moldando os gestos, controlando as atitudes, autorizando, ou não, o que pode ser dito (Machado, 1989). Um desses poderosos instrumentos é a mídia, e é por isso que, concordando com Fischer (1997, p.63), entendemos que ela “não apenas veicula, mas constrói discursos e produz significados e sujeitos”. Tomamos discursos como conjunto de enunciados, os quais são 214
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6 Caetano Veloso. Alegria, Alegria. Disponível em: <http:// vagalume.uol.com.br/ caetano-veloso/alegriaalegria.html>. Acesso em: 6 nov. 2006.
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7 Tradução minha. Pink Floyd. Another brick in the wall. Disponível em: <http://vagalume. uol.com.br/pink-floyd/ another-brick-in-the-wallpt-1.html>. Acesso em: 18 jan. 2008.
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acontecimentos, irrupções, quebras na continuidade. Apesar de ser singular na sua emergência, o enunciado presta-se à repetição, à transformação, à atualização (Albano, 2007). Analisamos os discursos como intrinsecamente ligados às relações de poder, não sendo aquilo que representa as lutas ou a dominação, “mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar” (Foucault, 2003, p.10). Da mesma forma, o poder é posto em jogo por meio desses discursos, os quais produzem efeitos de verdade e constituem as coisas de que falam. Na ordem discursiva, algumas coisas são permitidas, outras não. Entendemos que o material analisado funciona, de certa forma, coagindo os discursos, delimitando suas condições de aparecimento, os efeitos de poder e os sujeitos que falam (Foucault, 2003), e conferindo hegemonia a determinados discursos, e não a outros. Por sua vez, o Dispositivo Pedagógico da Mídia permite “mostrar de que modo opera a mídia no sentido de participar efetivamente da constituição de sujeitos e subjetividades, na medida em que produz imagens, significações, enfim, saberes que, de alguma forma, se dirigem à ‘educação’ das pessoas, ensinando-lhes modos de ser e estar na cultura em que vivem” (Fischer, 2002, p.153). De acordo com Deleuze (1990, p.155), “os dispositivos são como máquinas de fazer ver e de fazer falar”.
Colocando “outro tijolo sobre o muro”7 Apresentamos aqui um início de discussão sobre alguns dos discursos que constituem a RMS. Trata-se de apenas um dos muitos inícios possíveis, é uma pulverização, para pôr o assunto “na roda”, para falar, ver e ser visto. E como todo princípio, não acaba em si, não acaba neste ato.
“Brasil, mostra a tua cara”: o discurso oficial Iniciaremos falando sobre a representação cultural da pureza em nossa sociedade, pois o discurso oficial transita, muitas vezes, neste conceito. De acordo com Bauman (1998, p.13), “a pureza é um ideal, uma visão da condição que ainda precisa ser criada, ou da que precisa ser diligentemente protegida contra as disparidades genuínas ou disparadas”. A pureza também pode ser entendida como ordem, organização, “uma situação em que cada coisa se acha em seu justo lugar e em nenhum outro” (Bauman, 1998, p.14), e “um meio regular e estável para os nossos atos; um mundo em que as probabilidades dos acontecimentos não estejam distribuídas ao acaso, mas arrumadas numa hierarquia estrita” (Bauman, 1998, p.15). Partindo deste entendimento, acredito que tornar as Residências formais, legais, parte de uma vontade de ordem, de inclusão. Toda e qualquer invenção pressupõe que ainda não há um lugar definido para aquela coisa, é preciso desestabilizar uma ordem já reconhecida socialmente para que a invenção possa ter o seu espaço. Algumas coisas ficam por um tempo nos lugares possíveis, são acomodadas, algumas vezes consideradas inadequadas no seu local. Na tentativa de adequação, determinados grupos recorrem às mais variadas alternativas e, por vezes, essas coisas “ficam ‘fora do lugar’ em toda parte” (Bauman, 1998, p.14). Com mais frequência, essas coisas que estão sempre fora, são coisas móveis, não enraizadas. “É por isso que a chegada de um estranho tem o impacto de um terremoto [ou de um olho de furacão]... O estranho despedaça a rocha sobre a qual repousa a segurança da vida diária” (Bauman, 1998, p.19). COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.13, n.28, p.213-37, jan./mar. 2009
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Em documento publicado, em julho de 2004, o Ministério da Saúde apresenta o panorama da educação em serviço e assume seu papel como responsável por ordenar essa formação. Após, elenca os aspectos legais envolvidos na regulamentação educacional e aponta, entre outras coisas, como prerrogativa aberta pela legislação, “o desaparecimento da organização privativa da profissão médica para a especialização profissional realizada em serviço” (Brasil, 2004, p.5). Informa que o Parecer CES/ CNE nº 908/98, vinculando à prática na área da saúde, refere que “recém formados são incentivados a prosseguir o seu aperfeiçoamento em instituições cujo ambiente de trabalho mescla a capacitação em serviço com a participação em experimentos, estudos ou intervenções com impacto sobre o desenvolvimento da área específica” (Brasil, 2004, p.5). Além disso, o documento oficial declara haver consenso de que há excelência na formação denominada Residência Médica, como a “melhor alternativa para propiciar formação especializada de qualidade”, apesar de enfrentar inúmeras inadequações e limitações frente à legislação vigente e as condições de saúde da população brasileira (Brasil, 2004). Na sequência, o documento apresenta a situação dos Programas de Residência Médica, ressaltando suas qualidades e, portanto, exemplos a serem seguidos (motivação dos residentes para aprender, desenvolvimento de habilidades como eixo estruturante da aprendizagem, formação em situação/ exposição ao mundo do trabalho, qualificação dos serviços/valorização dos profissionais etc.), enfatizando também as precariedades (gestão dos programas apartada das políticas de saúde, programas desenvolvidos quase exclusivamente no ambiente hospitalar, privilégio da formação sobre a necessidade regional de profissionais, entre outras). Desta forma, o governo diz o que serve e o que não serve, o que pode e o que não pode ser feito; e como se coloca em situação de provedor financeiro dos programas de Residência, também prescreve um jeito de se fazerem os novos Programas, ou seja, constitui possibilidades para as Residências Multiprofissionais em Saúde. O documento propõe que, para “fortalecer e ampliar” a capacidade de qualificação de especialistas por meio dos Programas de Residência Médica, esses “devem estar orientados pela integralidade” (Brasil, 2004, p.10), bem como a avaliação desses programas deve ser feita com base em conceitos e políticas da Integralidade. Mais do que isso, o documento ensina como se faz esse tipo de avaliação: corrigindo as imperfeições dos Programas, apontadas anteriormente. Embora o documento faça um reconhecimento público da existência de programas de residências em área profissional, destaca que o Ministério pretende instituir esses programas “de acordo com as necessidades de saúde e as características de organização do sistema de saúde” (Brasil, 2004, p.11). Ainda em 2004, o Ministério da Saúde aponta como áreas com necessidade de formação multiprofissional e interdisciplinar: saúde mental, saúde do trabalhador, reabilitação, saúde do idoso, saúde da família e gestão de sistemas e serviços de saúde. Ressalta a importância dos Programas de Residência Médica “que incentivem práticas de ensinar, aprender e trabalhar em equipes multiprofissionais e interdisciplinares” (Brasil, 2004). Entretanto, percebemos uma inversão no discurso oficial quando analisamos o artigo intitulado Residência Multiprofissional em Saúde da Família: uma conquista do Movimento Sanitário, assinado por gestores do Ministério da Saúde, que assumiram em julho de 2005. O texto aponta o investimento na formação da especialidade Saúde da Família, destacando sua importância a partir da emergência da Residência Médica nessa especialidade. As outras especialidades sequer aparecem como áreas com necessidade de profissionais. Chama atenção a declaração de que houve tratativas, com a participação do Ministério da Saúde, para se assegurar “um desenho semelhante ao de residências ‘puras’ de Medicina Comunitária” (Da Ros et al., 2006, p.112). Para Bauman (1998, p.20), “cada ordem tem suas próprias desordens; cada modelo tem sua própria sujeira a ser varrida”, como se aquilo que não é a Residência em Medicina Comunitária caracterizasse esta desordem. Entendemos que a Medida Provisória n.238 e a Lei n.11.129, bem como a Portaria Interministerial n.2.117, que criaram essa modalidade de formação, foram influenciadas por essas tratativas de manutenção de pureza, quando ambas instituem a Residência em Área Profissional da Saúde “destinada às categorias profissionais que integram as áreas de saúde, excetuada a médica”. Ao mesmo tempo, o Ministério da Saúde diz que “as residências multiprofissionais seguem o preceito das residências médicas” (Brasil, 2004, p.15). Já a Portaria Interministerial n.45 (Brasil, 2007), ao invés de repetir a 216
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Bertolt Brecht. Esta frase aparece em dois boletins produzidos por residentes (Boletim Resistência, 2006b, 2005), na seção Sobre o Boletim. 8
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redação ‘excetuada a médica’, cita quais são as profissões de abrangência da RMS. Ao fazer isso, não só exclui a medicina (porque não a menciona), mas também exclui muitas outras profissões, por exemplo: agronomia, engenharia civil, direito, administração etc. Como eixos norteadores, a portaria subverte a ordem e sugere a “articulação da Residência Multiprofissional e em Área Profissional da Saúde com a Residência Médica” (Brasil, 2007). Em outro artigo veiculado em revista apoiada pelo Ministério da Saúde, um de seus consultores (médico que também assina a publicação acima referida que fala sobre Saúde da Família) explica a existência de duas Residências: a médica e a multiprofissional, sugerindo que elas funcionem integradamente, pois “na primeira proposta da residência o modelo era esse” (Residência, 2006, p.5). Será que reunir tais modalidades de formação seria o mais adequado? Ou iria borrar a ordem anteriormente estabelecida? A que interesses servem estes programas de formação quando (não) aparecem juntos? Aparece também, como será visto nas outras análises, a alusão a outras situações que estão na ordem do dia das discussões, que ultrapassam as fronteiras da assistência à saúde: “cidadania, eqüidade, justiça social, objetivo na vida, solidariedade, trabalhar junto, diversão, felicidade” (Residência, 2006, p.6). Parece não ser possível falar em inovação na área da saúde que não esteja atrelada às questões que sejam de interesse global. O novo é visto como o desejável na nossa cultura, como algo que não se rejeita, o inédito. Também não é possível falar em Residência sem articulá-la com a “busca dos pressupostos do Sistema Único de Saúde (SUS), que são integralidade, eqüidade e universalidade” (Residência, 2006, p.6). Ou sem relacioná-la com a Reforma da Universidade, pois “estamos trabalhando simultaneamente com mudança na graduação” (Residência, 2006, p.5), porque “a maioria dos profissionais que atuam no sistema ainda é formada para um modelo assistencial privatista” (Residência, 2006, p.5). É na tentativa de colocá-la para fazer parte de uma ordem, de incluí-la, que as coisas vão se ajeitando, que os enunciados vão se aglutinando e se enredando, para se enraizar.
“Ali onde todos calam, ele fala”8: bem-vindo, residente! “Tu estás começando os dois anos mais importantes da tua vida” (Boletim Resistência, 2006a, s.p.). Esta frase abre o segundo número do Boletim Resistência, produzido por residentes do Rio Grande do Sul. O boletim teve quatro números. Neles, os residentes se apresentam e se representam, pois trata-se de “um boletim de muitas vozes” (Boletim Resistência, 2005, s.p.). Os que escrevem identificam-se como “militantes do SUS, em defesa da vida” (Boletim Resistência, 2005, s.p.); como “homens e mulheres, militantes da vida, que acreditam que o SUS não se faz somente com fichas e medicamentos, mas, sobretudo, com promoção da saúde, trabalho, cultura, saneamento básico, educação, cuidado com o meio ambiente e muita luta” (Boletim Resistência, 2006a, s.p.). Percebo o acionamento de discursos (re)conhecidos na área da saúde pública, que se enredam com os ideários da Reforma Sanitária, do SUS, e que se encontram com as pautas definidas e defendidas pelas conferências de saúde. Em outro documento, também produzido por residentes gaúchos, em outro período, eles se declaram como “atores políticos implicados com seu processo de formação” (CGMRS, 2007, s.p.). Já no informativo produzido pelo Fórum Nacional de Residentes Multiprofissional em Saúde, ou seja, em âmbito nacional, os residentes se inscrevem como “profissionais de saúde e cidadãos brasileiros” COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.13, n.28, p.213-37, jan./mar. 2009
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(FNRMS, 2007, s.p.). Que personagem é este que se narra de muitos modos, que incita um posicionamento quase heróico de seus pares? Essa narrativa inflamada fala e faz falar sobre quem é o residente. Constitui esses sujeitos, produz efeitos de verdade, tem caráter pedagógico. Ao mesmo tempo, esses sujeitos que se identificam também estão em busca de identificação ou da certeza dela, pois manifestam sua vontade de realizar um “aprofundamento da identidade política para o grupo formado por residentes de várias partes do país” (LAPPIS, 2007a, s.p.). Ao mesmo tempo em que há o imperativo do tom heróico, inovador e da transformação, esse discurso divide o espaço com imagens de desqualificação dos programas, das ditas “realidades” dos serviços que abrigam as Residências, do (des)preparo dos profissionais, das práticas pedagógicas. Para falar dos tempos e espaços dos Programas, aparecem enunciados divergentes, por vezes, instigantes, de construção e de conquista; outros de repúdio, de desmontagem e de desqualificação. Para se referir à RMS, são comuns as palavras: “construção inovadora”, “criar novas práticas em saúde”, “transformação das condições de vida”, “modificar a estrutura social”, “novo projeto para a saúde e sociedade” (Boletim Resistência, 2006a, s.p.). Os residentes questionam também a formação universitária, que “forma profissionais que mantêm as estruturas sociais” (Boletim Resistência, 2006a, s.p.). Por outro lado, manifestam um discurso divergente quando referem que “a residência integrada desintegra; a produção de saúde adoece; a formação deseduca [...]” (Boletim Resistência, 2006a, s.p.). Aparentemente, tudo isso se coloca e se materializa nos mesmos tempos e espaços, inclusive nos mesmos boletins. É uma rede que lança para atrair e, no minuto seguinte, “manda embora” aquele que está atraindo. É um tipo de ironia para “ver quem quer mesmo”. Em um trabalho apresentado por um residente, no VI Seminário do Projeto Integralidade, promovido pelo LAPPIS, o Programa de Residência e o processo de trabalho organizado pela gestão municipal são apresentados juntos, como se fossem uma só coisa. O residente considera que “observando-se a conjuntura do cenário nacional, o município [de Aracaju] torna-se verdadeiramente um lócus singular para a formação de novos trabalhadores para o SUS” (Ramos, 2006, p.81). Percebemos que esta fala expressa a vontade de estar associado às experiências com potencialidade construtiva de práticas de integralidade, trazendo para si o louvor de transformação de um espaço/lugar, o lugar cidade, o lugar da saúde pública, o lugar da formação profissional, e aponta para aquilo que reconhece (e não precisa ser dito!) como novo. Para Foucault (2003, p.26), “o novo não está no que é dito, mas no acontecimento de sua volta”. Ou seja, o reconhecido novo modelo de saúde e de formação aclamado e idealizado pelos residentes reaparece na voz desses autores, mas é também retorno, é reverberação do que foi definido como pauta da Reforma Sanitária. Novamente, esses discursos se enredam para dar corpo e forma aos discursos da RMS. Aí se colocam também enunciados que dizem que a aprendizagem se faz nesse lugar de Residência para dar sequência “e dar continuidade ao seu processo de formação” (Ramos, 2006, p.83) que se iniciou em outro lugar, a Universidade. Desse modo, o lugar da Universidade é referido, ora como aquele que mantém as estruturas sociais, ora como algo que inicia o processo de transformação tão almejado. De forma genérica, a questão da escola aparece constantemente nos dias de hoje, a partir de dois olhares, ao primeiro contato divergentes entre si: o tom salvacionista, “a escola como a grande tábua de salvação para as nossas imensas mazelas sociais” (Veiga-Neto, 2003, p.104), pelo qual só a educação é capaz de oferecer um futuro melhor e digno; e, por outro lado, a crise da escola, uma maquinaria moderna, que “foi e continua sendo a principal instituição encarregada de construir um tipo de mundo, que chamamos de mundo moderno” (Veiga-Neto, 2003, p.104), onde é preciso reformar para se adequar às exigências desse mundo atual e pós-moderno. Na análise dos documentos produzidos por residentes, percebemos que esta voz iniciou, aos berros e pela surdina, o apelo a frases irônicas, enunciados chocantes, a divergência convivendo lado a lado, o anonimato, no espaço em que chamou de “dispositivo de contra-poder” (Boletim Resistência, 2006b, s.p.) – tudo isso foi usado como recurso de retórica para se fazer ouvir, para se fazer presente. Esse personagem, o/a residente, não existia... Teve de ser inventado.
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Residência role-models: o discurso dos profissionais de saúde e dos programas de residência A expressão role-models foi inspirada em um texto onde o autor disserta sobre a conjuntura das Residências em medicina preventiva e social e, ao falar das Residências Multiprofissionais, refere que elas terão “o papel de formar profissionais de ponta, que exerçam a função de role-models” (De Campos, 2000, s.p.). Na internet, a expressão mencionada se refere a uma marca de roupas, cuja propaganda é feita por seus criadores ao usarem os próprios produtos durante shows, entrevistas, clipes etc. Traduzindo, temos papel de modelo ou a função de ser padrão. Percebemos que a Residência, muitas vezes, constituiu-se nas propagandas produzidas sobre ela e para ela. Em documento produzido pela FUNDAP – Fundação do Desenvolvimento Administrativo (2004), para explicar o que, na época, era chamado de Programa de Aprimoramento Profissional, refere que o programa destina-se “aos profissionais não-médicos que atuam na área da saúde” (s.p.). Questionamos: profissionais de saúde ou os chamados não-médicos? De onde surgiu essa denominação? Médico é quem tem graduação em medicina, sendo, portanto, possuidor de um diploma de médico. E o não-médico? Quem é? A quem se endereça esse dito? As oposições binárias, quando impressas nas identidades dos trabalhadores da saúde, ou seja, aquilo que a mídia chama de médicos e não-médicos (incluindo nesta categoria todas aquelas profissões que não cabem na primeira), de acordo com Silva (1994), identifica um termo como positivo e o outro como negativo. No entanto, essa mesma identidade, muitas vezes, é conferida pela oposição, ou seja, não há um limite único e fronteiriço, ela é flutuante e cambiante. Entendemos este binarismo como exercício do poder, o lugar por onde ele se espalha, entranha-se, capilariza-se e vincula-se, de maneira inseparável, ao saber. Ao mesmo tempo, declara separação nítida de saberes, de projetos de cuidado, de objetos e de sujeitos articulados no trabalho. Para Ceccim (2006, p.3), “a residência multiprofissional, e não apenas médica, [...] não anula os saberes da profissão médica ou das demais profissões, antes os reconhece em unidade para a qualificação das práticas e expansão dos saberes”. Percebemos o discurso da RMS associado a outros poderosos discursos, como o do trabalho em equipe e o da Integralidade, conforme aparece em Lessa (2000, p.109), a qual diz: “destacamos a construção no cotidiano de uma postura profissional que favorece a assistência integral, a comunicação com a comunidade e estimula o controle e a participação social”. Alguns autores consideram também que o objetivo da RMS é “capacitar estes profissionais [...], adequando-os para o novo modelo de atenção proposto” (Oliveira et al., 2000, p.112), ou que ela está aí para “vencer a inadequação da formação e especialização dos profissionais de saúde” (Silva, 2006, p.18). A especialidade profissional aparece como um desafio a ser superado. No entanto, a lógica atual dos programas é a formação por especialidade. A Residência também aparece acompanhada dos enunciados que falam da necessidade da reforma universitária. Por vezes, ela vem para salvar o profissional, pois tem “investido em áreas ainda pouco exploradas nos cursos de graduação da área da saúde” (Lessa, 2000, p.108), porque ela é um dos “instrumentos para correção das impropriedades na formação e aprimoramento da ação de várias profissões da saúde” (Machado, 2006, p.10). Ainda é dito que, com essa formação, os profissionais “devem estar cientes de que são múltiplas as questões que condicionam o modo de viver, adoecer e morrer, envolvendo aspectos políticos, sociais, ambientais e culturais e de saúde” (PUCRS, 2006, p.15). Consoante com o discurso dos residentes e do Estado, esses enunciados tratam dos temas que estão na ordem do dia: proteção ambiental, consciência política, cultura (como modos de saber e poder), e até da saúde, ou seja, questões de “importante impacto social” (PUCRS, 2006, p.15). Por que falar desses temas? São extensivos? Servem para todos? São recursos do dispositivo pedagógico da mídia? Residência Role-Models, mas de que modelo estão falando? Qual a propaganda veiculada? Parece que enunciados que falam de coisas divergentes estão convivendo com a tentativa de vender a Residência como um produto a ser almejado, não só pelos profissionais diplomados nas universidades, mas também pelas instituições formadoras; pelos serviços, como uma oportunidade de qualificação; pelos gestores, para oferecer serviços necessários às suas comunidades. Fica a pergunta: será que a estratégia dos discursos divergentes inventa a Residência como algo a ser consumido? COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.13, n.28, p.213-37, jan./mar. 2009
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“Eu vivia isolado do mundo”9: o discurso dos médicos Uma mão grande, aparentemente de um homem, uma luva e um bisturi. Esta imagem desencadeia uma cascata no pensamento: uma série de saberes se ativa, aciona a imagem de um hospital, um lugar limpo e puro, com uma porção de equipamentos da mais avançada tecnologia, o lugar tido como privilegiado para a cura. Pode se ver, nesta imagem, uma mão, aquela que afaga, que acalenta, que exerce sua tarefa com precisão. A luva, aquela que protege tanto aquele que cura quanto o que está sendo curado: a superfície de contato entre o mundo do equipamento e o mundo da vida. O bisturi, aquele que invade o mundo da vida, se conecta com o sangue, com o pulsar, com a ardência e os desejos, com a dor... um movimento preciso. A perfeição da atuação profissional de um médico é o que parece constituir essa imagem que acabo de descrever. Até pode ser... No entanto, essa imagem está localizada na capa de uma revista publicada pelo Sindicato Médico do Rio Grande do Sul10 (VOX Médica, 2007) e acompanha outra imagem portando os dizeres: “Formação multiprofissional da área da saúde: Quem ganha com isso?”. E há mais: a mão, visivelmente, tem quatro dedos, e a luva é de lã. Porém, não há com o que se preocupar: o desenho da revista está preso, ou como diria Foucault (2001, p.248): “estável prisão”. A descrição que se faz e o pensamento ativado, pela imagem, nos leitores e nas leitoras da revista estão soltos. São do mundo! Com o que se ocupam as capas de revistas? Este é o lugar privilegiado de uma publicação, é a vitrine, a tentativa mais potente e sutil de captura do leitor. O desenho é tão simples: uma figura e o texto que a nomeia. O que cria a estranheza é a desqualificação dessa luva, que contradiz os mais dignos manuais de controle de infecção hospitalar. Quem não sabe que se deve utilizar uma luva esterilizada, vestida com técnica asséptica, para se preservar a pureza de um procedimento cirúrgico? E o texto que a nomeia, constituindo outra imagem, outro desenho, que leva a pensar que a formação a que se refere ensina coisas inadequadas ao padrão acionado pela imagem do desenho: hospitalar, estéril, privado e centrado no médico. Um caligrama, com sua “tríplice função: compensar o alfabeto; repetir sem a ajuda da retórica; prender as coisas na armadilha de uma dupla grafia” (Foucault, 2001, p.250). Ao cercar duplamente, com palavra e desenho, o caligrama, na capa da revista, prepara sua arapuca: representa e se materializa na própria formação multiprofissional; é ele próprio o que pode ser dito; é ele próprio o que pode ser pensado. O discurso impresso pelas palavras e pelo desenho é a própria coisa, e faz extravasar, dispara a sua rede de significações. Essas significações são atribuídas por aqueles que recebem o texto e a imagem, porque é possível múltiplas leituras. Voltando à luva que veste a mão com quatro dedos, percebemos que ela carrega outra representação, outro sentido para a imagem, outro enunciado emergente: luvas de lã são utilizadas na área de saúde quando da realização de procedimentos de avaliação da causa de morte, efetuados por profissionais com a titulação de técnico em anatomia e necropsia. Quando descritos esses procedimentos, com frequência, ouve-se a analogia comparando sua atividade à exercida por açougueiros ao lidarem com animais mortos. Outra característica da atividade do técnico em necropsia, que dá o que pensar, é que os órgãos retirados no procedimento não são devolvidos aos mesmos lugares, como exigiria um procedimento cirúrgico realizado em alguém que está vivo. O cérebro, por exemplo, é colocado no abdome, pois depois de retirado não poderá mais se adequar à caixa craniana. Quebra-cabeças com peças desordenadas: que tipo de saúde/cura é possível produzir? 220
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9 Zeca Pagodinho. Vivo isolado no mundo. Disponível em: <http:/ /vagalume.uol.com.br/ zeca-pagodinho/vivoisolado-no-mundo. html>. Acesso em: 18 jan. 2008.
As revistas do SIMERS dirigem-se aos médicos sindicalizados no Rio Grande do Sul, portanto, têm um grande espectro de circulação e constituem poderoso instrumento de veiculação do discurso médico.
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E o que mais há para pensar sobre essa imagem? Que tipo de subjetivação produz? Como interpela seus observadores? Que outras representações discursivas se constroem com base nos enunciados acerca da RMS produzidos por médicos? Por que os enunciados contrários a essa proposta de formação aparecem apenas nas publicações da categoria médica? Em evento ocorrido, em junho de 2006, no auditório do Hospital de Clínicas de Porto Alegre – promovido pelo Centro Acadêmico da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, intitulado “Residência Multiprofissional: Afinal, o que é isso?” – os convidados a falar são médicos: um deles ocupava o cargo de presidente da Associação de Médicos Residentes do Rio Grande do Sul (AMERERS), e o outro atuava como consultor dessa instituição. O método de formação denominado Residência Médica foi apontado pelos palestrantes como um modelo vitorioso, de ótima resolutividade. Ao tratar da RMS, referem que “uma idéia boa pode ter se perdido no meio do caminho” (CASL, 2006). Por vezes, parece divergente o discurso, pois ao mesmo tempo em que defendem as Residências em Enfermagem, em Fisioterapia, pronunciam, em tom uníssono, que o termo Residência Médica só pode ser usado por médicos, pois “está na lei!” (CASL, 2006). Esse discurso é reforçado pelo Sindicato Médico do Rio Grande do Sul, que endereçou uma carta a todos os seus associados, no mês de outubro de 2007, para relatar encontro que teve com a diretoria de uma instituição de saúde, que mantém há quatro anos um Programa de RMS em Porto Alegre. Nessa carta, entre outras afirmações, o SIMERS deixa claro que “a existência de Residência Integrada em Saúde é um manifesto desejo de confundir. Residência sempre foi – em todo mundo – forma específica de pós-graduação de médicos” (SIMERS, 2007, p.1). Deparamo-nos com múltiplos sentidos de uma palavra. Surpresas da retórica... Para qualquer pessoa abordada na rua, residência é o lugar onde se mora. Para o dicionário, modernamente o detentor da verdade sobre as palavras, residência é: casa; domicílio; trecho de uma rodovia, ou parte de uma rede rodoviária, em construção ou em tráfego, sob a jurisdição de um engenheiro-residente. Para os médicos, parece ser um laboratório, o lugar da experimentação e do aprendizado. E para os idealizadores do projeto da RMS, o que ela é ou representa? Por que há um investimento pesado nesta palavra? Entendemos que está em jogo a disputa por modalidades pedagógicas. Observamos que, nas publicações da corporação médica, há regularidade quando se trata do assunto: é conferida a autoridade da enunciação e da representação a homens que ocupam lugares de expressão para a categoria (geralmente presidentes, coordenadores, consultores, secretários executivos, diretores, etc.). Perguntome: por que as mulheres não estão autorizadas a falar? Ou por que as mulheres não ocupam as posições de sujeito que autorizam as falas? Por que os médicos que estão alocados na rede de serviços públicos de saúde e que experienciam o trabalho em equipe, muitas vezes, com colegas egressos de programas de RMS, não são convidados a falar sobre a sua vivência? O que está em disputa dentro da própria categoria? Os médicos pronunciam ainda: “Não há grupo sem liderança, a qual deveria, naturalmente, ser exercida pelo profissional com conhecimentos e habilidades suficientemente amplos para permitir a máxima integração entre os diferentes saberes: o médico!” (Formação, 2007, s.p.). Esse posicionamento se reproduz numa rede que cerca e sustenta o discurso hegemônico. Percebemos a construção desta rede em ações como, por exemplo: o projeto de lei do ato médico que, em sua primeira versão, propunha que os cargos de chefia dos serviços de saúde fossem ocupados apenas por médicos. Torna-se tão significativa a construção desse enredamento, a ponto de outros assuntos, como no caso da RMS, serem utilizados para carregar questões de fundo: os atos corporativos, a Residência Médica, a remuneração dos médicos. Para não dizer que a totalidade de artigos médicos analisados veiculava opiniões contrárias às RMS, encontramos um artigo produzido do mesmo lugar (as entidades de representação da categoria): ao ser questionado “como está a questão da residência médica versus a residência multiprofissional?” (Lopes, 2006, s.p), o secretário executivo da Comissão Nacional de Residência Médica (CNRM) responde: “não existe mais o versus. A residência multiprofissional é das profissões da área da saúde com exceção da médica. Isso é lei” (Lopes, 2006, s.p.). Complementa sua fala referindo que a Residência Médica e a Comissão Nacional de Residência Médica são modelos, pois “quem faz a residência médica tem um diferencial muito grande em relação a todos os outros profissionais” (Lopes, 2006, s.p.). 221
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Analisamos outros três artigos que deram voz ao ex-secretário executivo da CNRM, e seu discurso é ambíguo, já que se refere à Residência Médica, ora como trabalho (na remuneração, na qualificação de seus profissionais etc), ora como “treinamento após a graduação” (AMB, 2008; Lopes, 2007a, 2007b), relevante quando se trata de falar do modelo pedagógico preconizado pela CNRM. Ainda, observamos que há uma tentativa da categoria para se inserir na ordem discursiva predominante na área da saúde, ou seja, aquela que vai falar da Integralidade e do trabalho em equipe, pois os médicos afirmam que a Residência Médica “é, por excelência, multiprofissional”, “que só há uma residência verdadeiramente multiprofissional: é a residência médica” (Lopes, 2007b, s.p.). Por que se faz necessário “reverter” aquilo que se critica para considerá-lo como tradicional na categoria? Entretanto, há um descompasso quando esta categoria fala em multiprofissionalidade, se comparado ao discurso das demais categorias. É comum encontrarmos equivalência do termo multiprofissional com atuação por especialidade. Por exemplo, a equipe multiprofissional formada pelo traumatologista, o ortopedista e o fisiatra, ou seja, todos eles formados em medicina, mas oriundos de especialidades diferentes.
“Sem saber que o pra sempre, sempre acaba”11 Todos esses e, quem sabe, muitos outros constituíram, constituem e constituirão a RMS. São muitos discursos, enunciados que se tramam e se enlaçam na divergência, na complementação, na sustentação, na desconstrução. São muitas vozes, em muitas vezes. Vozes mansinhas, vozes clarinhas, vozes potentes, vozes imponentes. Às vezes breves, às vezes permanentes, algumas no olho do furacão, outras na ilha da fantasia. Percebemos que há discursos, quase exclusivos da categoria médica, contra a proposta de RMS. Esta univocidade intenta manter o poder da corporação. São tramas que utilizam as palavras daqueles que falam a favor, mas carregam outra representação cultural. Esta outra representação é encontrada no discurso da integralidade, da multiprofissionalidade (vista como sinônimo de massa amorfa), do trabalho em equipe (que insiste em afirmar a chefia de alguém que sempre deve ser o médico) e do SUS (como laboratório de experimentação, lugar para aprender e não se comprometer). Percebemos também a manutenção das vozes de homens, ocupantes de lugares considerados privilegiados pela categoria. Os grupos que falam a favor da proposta das Residências constroem certa regularidade naquilo que enunciam e parecem configurar uma estratégia politicamente importante para que estes sujeitos identifiquem-se enquanto grupo. Não há predileção por esta ou aquela pessoa. Aqui podem falar experts e, também, os infames; falam os homens e, também, as mulheres; aqueles que são diplomados ou não. É como se os grupos fossem um único conjunto de sujeitos, subjetivados da mesma maneira, de tal modo que qualquer sujeito que se apresente como pertencente àquele conjunto aciona, em sua apresentação, o tom da inovação da proposta, a articulação com poderosos discursos globalizados (meio ambiente, cidadania, solidariedade) ou que se coadunassem com o ideário da Reforma Sanitária (SUS, integralidade, trabalho em equipe). São discursos que, ao falarem das necessidades pedagógicas para formar o profissional idealizado pelo conjunto, acionam a questão da Reforma Universitária e dos serviços de saúde. Esses jogos de verdade e enredamentos que se constroem a partir dos discursos e que, em nossa sociedade, constituem a RMS como uma invenção cultural, 222
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11 Renato Russo. Por enquanto. Disponível em: <http:// vagalume.uol.com.br/ legiao-urbana/porenquanto.html>. Acesso em: 14 set. 2007.
DALLEGRAVE, D.; KRUSE, M.H.L.
debate
instituem-na de diferentes formas e a modificam de acordo com as políticas culturais e governamentais, dependendo da região ou instituição, onde a proposta se encontra inserida.
Colaboradores Daniela Dallegrave participou da elaboração do artigo, da revisão bibliográfica, de sua discussão e da revisão do texto. Maria Henriqueta Luce Kruse participou da orientação, revisão do texto e das discussões.
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Trata da Residência Multiprofissional em Saúde como uma invenção cultural constituída a partir do SUS e intenciona a inquietação e desestabilização de verdades sobre a residência multiprofissional. Utiliza o referencial teórico pós-estruturalista, com base nas ferramentas de Foucault: discurso, poder e dispositivo. Aponta que essa invenção cultural se deu com a edificação de discursos que falam sobre o que a residência é ou deveria ser. O texto procura mostrar como o tema se apresenta nos materiais produzidos e veiculados pelo Estado, pelos residentes, profissionais de saúde, programas de residência e médicos (residentes ou não). Os discursos dividem-se entre aqueles que falam a favor e contra a proposta. Neste último se incluem as produções dos homens da categoria médica, que ocupam espaços de poder. A favor, falam sujeitos sem distinção de gênero, articulam-na com outros poderosos discursos como o da integralidade e o do SUS.
Palavras-chave: Residência multiprofissional em saúde. Educação. Poder. In the eye of the hurricane, on fantasy island: the invention of multiprofessional residence within healthcare Multiprofessional residence within healthcare was taken as a cultural invention constituted from SUS. The aim here was to disturb and destabilize the truths about multiprofessional residence. A poststructuralist theoretical reference point was used, with tools proposed by Foucault: discourse, power and device. This cultural invention was shown to have taken place through elaboration of discourse on what residence is or should be. This paper seeks to show how this topic is presented in materials produced and disseminated by the State, residents, healthcare professionals, residence programs and physicians (whether residents or not). The discourse is split between people speaking in favor of and against the proposition. The latter consists of discourse produced by men in the medical profession who occupy positions of power. The people in favor of the proposition, regardless of gender, link up through another powerful form of discourse that, for example, advocates comprehensiveness and favors SUS.
Key words: Multiprofessional residence within healthcare. Education. Power. En el ojo del huracán, en la isla de la fantasía: la invención de la residencia multi-profesional en Salud Trata de la Residencia Multi-profesional en Salud como una invención cultural constituida a partir del Sistema Unificado de Salud e intenciona la inquietación y desestabilización de verdades sobre la residencia multi-profesional. Utiliza el referencial teórico pos-estructuralista a partir de los recursos de Foucault: discurso, poder y dispositivo. Apunta que esta invención cultural se dio con la edificación de discursos que hablan sobre lo que la residencia es o debería ser. El texto trata de mostrar como el tema se presenta en los materiales producidos y divulgados por el Estado, por los residentes, profesionales de salud, programas de residencia y médicos (residentes o no). Los discursos se dividen entre quienes hablan a favor y en contra de la propuesta. En este último están las producciones de los hombres de la categoría médica que ocupan espacios de poder. A favor hablan sujetos sin distinción de género y la articulan con otros poderosos discursos como el de la integridad y el del Servicio Unico de Salud.
Palabras clave: Residencia multi-profesional en salud. Educación. Poder. Recebido em 12/05/08. Aprovado em 29/06/08.
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debate
Sobre a residência multiprofissional em saúde About the multiprofessional residence in health A propósito de la residência multiprofesional en salud
Ana Estela Haddad1
O artigo “No olho do furacão, na ilha da fantasia: a invenção da Residência Multiprofissional em Saúde” (RMS) tem o mérito de discutir aspectos importantes de uma política pública de grande alcance como a Residência Multiprofissional em Saúde. Como resultado de uma dissertação acadêmica, tem de ser compreendido dentro dos limites das perspectivas de análise baseadas na escolha metodológica e no tempo empreendido e delimitado para estabelecer considerações. Como bem reconhecem as autoras, não há “a pretensão de acabar em si, mas sim de suscitar o debate”. Embora reflitam essa preocupação, algumas análises precisam ser revisitadas e relativizadas. Considerar, por exemplo, que houve mudança no rumo da política e do discurso, demanda uma reflexão mais aprofundada. Esses acontecimentos têm força suficiente para modificar o tabuleiro dos saberes? Para melhor inserir a análise em seu contexto é preciso considerar a dinâmica dos fatos que permearam a RMS de sua criação até hoje. Desde a promulgação da Lei n. 11.129/2005 até a instalação da Comissão Nacional de Residência Multiprofissional, dois anos depois, o Ministério da Saúde patrocinou um amplo processo de debate e articulação política, envolvendo os diversos atores, representados em dois seminários nacionais sobre o tema, o segundo precedido de cinco regionais. Após o II Seminário Nacional, um Grupo de Trabalho sistematizou os documentos produzidos. O resultado foi a publicação da Portaria Interministerial MEC/MS n. 45/2007, que dispõe sobre os princípios e diretrizes dessa modalidade de formação e institui, no âmbito do Ministério da Educação, a Comissão Nacional de Residência Multiprofissional em Saúde (CNRMS). Foi institucionalizada, assim, esta modalidade de formação. Ao longo de seus dois primeiros anos de funcionamento, a CNRMS estabeleceu seu Regimento Interno de funcionamento, abriu cadastramento para os programas existentes, selecionou e iniciou a capacitação de um banco de avaliadores de programas, estabeleceu critérios para dar início ao credenciamento provisório dos programas já existentes. Estabeleceu um importante canal de comunicação com os Conselhos Profissionais das 14 profissões da saúde, com os quais pactuou uma nova conformação de Câmaras Técnicas, não mais por profissão, mas por linha de cuidado, sinalizando mais um passo importante para a construção da integralidade do cuidado na formação em saúde. Vale ressaltar a vinculação da CNRMS ao Departamento de Hospitais e Residências (DHR) da Secretaria de Educação Superior (SESu), mesmo departamento ao qual
Graduada em Odontologia. Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde, Ministério da Saúde. Esplanada dos Ministérios, Bloco G, 7º andar, sala 717. Brasília, DF, Brasil. 70.058-900 ana.haddad@saude.gov.br 1
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RESIDÊNCIA MULTIPROFISSIONAL EM SAÚDE
se vincula a Comissão Nacional de Residência Médica (CNRM). O DHR, recentemente criado, decorre do aprofundamento do espaço interinstitucional criado na atual gestão, de interface entre os Ministérios da Educação e da Saúde, como base para a consolidação da política nacional de educação na saúde, conduzida pelo Ministério da Saúde. Tendo a educação permanente (Portaria n. 1996/2007) como eixo estruturante, há um consistente movimento no âmbito dos estados, tendo como referência as comissões de Integração Ensino Serviço (CIES), vinculadas aos Colegiados de Gestão Regional (CGR), pela integração das ações de educação na saúde, e isso envolve a RMS. Esta tem sido pautada em múltiplos espaços para sua consolidação. Ainda para contribuir para o debate, como incluir como elemento da análise, por exemplo, a franca opção expressa na ampliação dos recursos destinados ao financiamento dos programas? Se considerarmos o início do Programa, os dados falam a favor da afirmação. Do orçamento da Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde (SGTES)referente à unidade programática “Formação superior”, 11,84% foram destinados ao financiamento de Residências em 2005, passando para 30% em 2006 e 34% em 2007. A ampliação ocorre mesmo face ao necessário fracionamento interno nas diferentes frentes de ação do Ministério da Saúde na área: Pró-Saúde, PET Saúde, Telessaúde Brasil, UNA-SUS, Educação Permanente. No orçamento de 2008, os investimentos nas Residências equiparam-se aos do Pró-Saúde, programa estruturante prioritário, destinado a apoiar as mudanças nos cursos de graduação da área da saúde. Até 2006, a SGTES apoiava programas de Residência Multiprofissional em 11 estados. A ampliação do apoio em 2008 permitiu a expansão para 24 dos 27 estados brasileiros. Entre 2006 e 2008, o Ministério da Saúde financiou a formação de 1487 profissionais pela RMS. Como trazer à ponderação a riqueza das discussões sobre o trabalho em equipe, a importância da formação para o trabalho no SUS e entender que estas se multiplicam nos espaços onde os quase mil e quinhentos residentes atuam? É possível transcender a análise por entender que há, por excelência, a participação comunitária e o controle social, com imprescindível contribuição para o debate, nos municípios que abrigam as residências? Como trazer à tona a efervescência dos saberes que se produzem sem ter, como bem explicitam as autoras, a clareza de que não é possível ter uma análise que “acaba em si”, mas sim uma que pretende contribuir e dialoga? O tema RMS tem sido objeto de muitas avaliações, reflexões, dissertações, teses e reuniões de trabalho. Sem sombra de dúvida, um assunto que está longe de ser esgotado no ambiente acadêmico, nos serviços de saúde e na comunidade. Em síntese, há um ponto de convergência coletiva neste debate. Todos os envolvidos, dentro de suas competências e trazendo suas diferentes perspectivas de análise, contribuem para o aprimoramento do Sistema Único de Saúde do Brasil.
Recebido em 25/02/09. Aprovado em 02/03/09.
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debate
No olho do furacão: contribuição ao debate sobre a residência multiprofissional em saúde The eye of hurricane: contribution to the debate about the multiprofessional residence in health El ojo del huracán: aportación a lo debate sobre residência multiprofesional en salud
Laura Feuerwerker1
Interessante abordagem conceitual, mas com uma limitação. Por que não reconhecer que os diferentes lugares não são monolíticos, mas também constituídos por múltiplos atores em processo de mútua afetação? Por que tentar caracterizar o Estado como o normativo-prescritivo, o residente como o produtorinovador, as entidades médicas como o masculino dominador-conservador? Por que não reconhecer que o processo é dinâmico, configurado por múltiplas apostas, de modo que compreender a trama de disputas importa para significar os diferentes discursos em diferentes momentos? De todo modo, o tema – a Residência Multiprofissional em Saúde – é relevante e a abordagem instigante. Não falo de qualquer lugar. Sou “ator” implicado no processo. Anteriormente, como ocupante do lugar Ministério da Saúde, depois, do lugar movimento social, e, atualmente, em um dos “assentos” da Comissão Nacional de Residência Multiprofissional em Saúde. Por que disputar a Residência como modalidade de formação? Qual a importância disso para a construção do SUS? Por que essa “bandeira” não tinha entrado na agenda política dos formuladores de política, apesar de a possibilidade legal de instituir a aprendizagem pelo trabalho (a especialização em área profissional) estar assegurada no âmbito da educação? Por que somente a categoria médica tinha sua “especialização em serviço” regulamentada e financiada com recursos públicos? Por que a residência, essa modalidade de especialização pelo trabalho, é interessante? Considerando a importância que o trabalho vivo e as tecnologias leves têm dentro da organização do trabalho em saúde, a possibilidade de organizar a formação “em ato”, no momento da produção do “encontro” entre trabalhador e usuário, é extremamente interessante. Ela pode ser usada hegemonicamente, subordinando as relações aos procedimentos. Mas também pode ser usada inventivamente, possibilitando a abertura para o desafio para ampliar a escuta, produzir novas tecnologias de cuidado, ampliar a construção compartilhada de projetos terapêuticos com a participação do usuário. Se a especialização pelo trabalho é construída de modo articulado, envolvendo gestores, trabalhadores, residentes e usuários, ela pode se configurar como agenciamento em defesa da vida. Se envolve instituições formadoras e de serviço, pode contribuir para a inovação de práticas de saúde e de formação, num formato
1 Médica. Linha de Micropolítica do Trabalho e o Cuidado em Saúde, Pós-Graduação de Clínica Médica, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Alameda Fernão Cardim, 317, apto. 71, Jd. Paulista, São Paulo, SP, Brasil. 01.403-020 laura.macruz@gmail.com
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RESIDÊNCIA MULTIPROFISSIONAL EM SAÚDE
raro na graduação (baseado no encontro entre as profissões, coisa rara na graduação, pensada sempre por profissão). Por que importa abrir espaço para que exista legalmente e esteja articulada com outras iniciativas políticas em favor da inovação na formação e no trabalho em saúde? Porque para o SUS não é indiferente o perfil dos profissionais formados e é importante dispor de instrumentos legais para produzir políticas e mecanismos regulatórios que favoreçam a sintonia das iniciativas de formação com os princípios do SUS, e não sua captura pelos interesses privados (de um mercado ou de uma categoria profissional). Além disso, o impacto é rápido, pois os profissionais chegam logo ao mercado de trabalho, ajudando ativamente a fortalecer algumas possibilidades dentro de um modelo de atenção à saúde em disputa. Por que tanta resistência dos médicos (ou ao menos de suas entidades) à possibilidade da residência multiprofissional? Muitas respostas possíveis. Por um lado, ao ser única propriedade de uma categoria, a residência médica viveu longos anos à margem das políticas públicas, orientada pelos interesses corporativos. A existência de uma outra residência, instituída por iniciativa das políticas públicas, abre claramente a possibilidade de regulação e de disputa de orientação. Há também disputa por recursos, pois também esta nova modalidade deverá, em alguma medida, ser financiada por recursos públicos (antes exclusivamente destinados à residência médica). Há também a defesa de um espaço privilegiado de formação para uma profissão que historicamente se sobrepõe às demais e contava com um mecanismo singular de reprodução, quem sabe agora ameaçado. A instituição da Comissão Nacional de Residência Multiprofissional em Saúde aconteceu, assim como quando da criação da Comissão Nacional de Residência Médica, por obra da ação articulada de movimentos sociais. No caso da Residência Médica, foram os médicos-residentes, naquela época firmemente envolvidos nas lutas democráticas, os principais artífices do movimento que levou à regulamentação dessa modalidade de formação. No caso da Residência Multiprofissional, residentes, coordenadores de programa, preceptores, associações de ensino, representantes do controle social e gestores do SUS foram atores decisivos. Os movimentos iniciais de regulamentação apontam no sentido de um diálogo permanente com o movimento. Há iniciativas interessantes, experiências inovadoras, mas também captura, repetição. O Ministério da Saúde, antes propositor do movimento, agora declara que a especialização a distância é sua aposta preferencial, pois atinge mais gente, mais rapidamente e com menos recursos. Assim, minguam os recursos da saúde para apoiar programas multiprofissionais. Já o Ministério da Educação, antes praticamente um expectador, coloca-se mais ativamente no cenário, propondo a criação de programas multiprofissionais, articulados com o SUS, no âmbito dos hospitais universitários, dispondo-se a financiar bolsas para sua efetivação (que entende importantes para a inovação da atenção à saúde no âmbito dos hospitais de ensino). No olho do furacão. Há muitas apostas e muitas possibilidades. De invenção e de captura. E múltiplos agenciamentos em operação!!!!
Recebido em 12/02/09. Aprovado em 18/02/09.
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debate
Sobre “o olho do furacão” About the “eye of hurricane” A propósito “del ojo del huracán”
Marco Aurélio Da Ros1
O artigo das autoras surge num momento em que debater o rumo das residências multiprofissionais em saúde (RMS) é fundamental. Parto da concordância de que é um novo conceito em construção, com todas as dificuldades em que, parafraseando Marx, as condições materiais para sua existência ainda não estão assentadas. Portanto, é um momento de luta para criar um outro modelo de trabalhar saúde. O olho do furacão parece ser uma analogia apropriada e, sem dúvida, tem, entre outros, o mérito de estimular a discussão sobre o tema. Dentre o universo de questões que o artigo traz, e dado o limite de espaço, optei por alguns recursos, tais como, evitar citações de outros autores, e acrescentá-los ao final, e englobei alguns temas sob três pontos: 1) o modelo analítico-metodológico, que envolve o referencial teórico; 2) a questão histórica; 3) o jogo estratégico em pauta nas RMS. 1) Quanto ao modelo de análise: a metodologia qualitativa é, sem dúvida, bem indicada para abrir espaço de reflexão, mais do que dar respostas “matematicamente comprovadas”. Por outro lado, também é verdade que existem sérios riscos de que a subjetividade do(s) autor(es) permita um grau de inferências, no mínimo, duvidosas. Por exemplo, sem discordar que possa ser uma interpretação possível, a capa da revista médica, citada no artigo, poderia ter todo um outro apanhado de subjetividades, se fosse guardado outro referencial teórico. As coisas que me ocorrem naquela imagem, poderiam ser de um ato-falho dos editores (concepção freudiana), admitindo que o modelo médico hegemônico é de esterilização necessária (luva fria e de borracha), mas distante do paciente, sem afeto, em que o instrumento (no caso, o bisturi) é a tecnologia utilizada, inclusive para sublimar atos de agressão, e o trabalho, dentro de um hospital, lócus por excelência da doença, e não da saúde. Por outro lado, a lã agasalha, não tem mesmo que segurar um bisturi. A imagem poderia significar a admissão implícita de sua limitação e fragilidade, e, portanto, assumindo que a RMS cria um novo que eles não sabem bem o que é. Se meu referencial é de saúde, e penso em trabalhar fora do hospital - que o branco não é pureza mas assepsia - me relacionando com os pacientes, a imagem definitivamente não me incomoda. Ainda dentro do referencial analítico... Dado que o referencial é foucaultiano, não marxista, as análises tendem para o pós-moderno, com a questão de gênero colocada em relevo, ou a questão corporativa como essencial. Não são questões
1 Médico. Departamento de Saúde Pública, Universidade Federal de Santa Catarina. Rodovia Jornalista Manoel de Menezes, 1750, Praia Mole, Barra da Lagoa, Florianópolis, SC, Brasil. 88.061-700 ros@ccs.ufsc.br
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pouco importantes, mas, para além da aparência e em busca da essência, teríamos de analisar as relações sociais postas que determinam a serviço de quem está o atual modelo de saúde brasileiro; o tipo de profissionais que se forma, e, por outro lado, o que significa uma luta contra-hegemônica. Apesar dos esforços do movimento sanitário, a hegemonia, no modelo capitalista brasileiro, ainda copia o ‘mal–chamado’ modelo flexneriano, que na verdade é o modelo que permite a expansão do chamado complexo médico-industrial. Este modelo privilegia a tecnologia dura, o hospital, os seguros-saúde e a hipertrofia de medicamentos, eludindo a determinação social do processo saúde-doença. Isso leva a pensar que o bom modelo de formação seria, portanto (aparência), o conteúdo técnico, médico, biologicamente centrado (bisturi-hospital), em detrimento, por exemplo, dos eixos de promoção de saúde (discussão posta desde a Conferência de Ottawa em 1986), que envolveria luta por cidadania, espaços públicos de lazer, empoderamento. Não que sejam excludentes, mas a ruptura com a lógica biomecanicista não está colocada nas graduações em saúde.Médicos,fisioterapeutas, dentistas, enfermeiros, por exemplo, são dirigidos para o olhar que interessa ao capital. Como pensar, então, numa RMS que possibilite/ rompa com esse modelo? Penso que indo à essência, e buscando vislumbrar para onde pode caminhar o novo nesta nova crise capitalista internacional. Ora, isso faz com que as caminhadas não sejam homogêneas, logo, a diversidade de modelos é regra boa neste momento, essencial para a contra-hegemonia. 2) Alguns aspectos históricos:As condições para emergência das RMS, considerando o jogo de poder das corporações profissionais, o peso do complexo médico-industrial e a luta dentro de setores dos Ministérios da Saúde e da Educação, eram muito tênues. Dentre as condições de barganha, após diversas reuniões entre MS-Segetes-Mov. Sanitário e Mec-Sesu-corporação médica-interesses do capital, nos primeiros anos do governo Lula, permitiram que somente perdida no meio de uma lei, a de n. 11.129, que cria uma secretaria nacional da juventude, em seu artigo 12, apareça - e fica criada - a RMS, para todas as profissões da área da saúde, exceto a médica. Isso permitiu que ela existisse de fato, mas oficializando uma separação da profissão médica que lutávamos para que não acontecesse. Mas a acumulação de forças, naquele momento, não permitiu que a legislação pudesse ser diferente. Por outro lado, isso traz à pauta, também, o que são as profissões da área da saúde. Elas existem oficialmente desde que foram aprovadas as diretrizes curriculares em 2001, nominando 14 profissões. Para que existissem essas diretrizes, foi necessário o protagonismo de diversos elementos do movimento sanitário. E é escandaloso que não as tenhamos entre nós, profissionais da área de educação, de sociologia, de engenharia sanitária, ou meio ambiente. Mas se entendemos a dinâmica dos processos brasileiros veremos que é, na luta, que se constrói o possível. Não é a partir das idéias que nos parecem certas que a realidade estará posta. É processo, e luta. É bom lembrar, por exemplo, que desde 1988, quando foi aprovada a Constituição, e nela diz que cabe ao SUS ordenar a formação de RH em saúde, no Brasil, até hoje, só conseguimos aprovar duas leis orgânicas do SUS, e ambas em 1990. De lá para cá, se esperássemos as condições ideais, hoje não teríamos 30 mil equipes de PSF, nem núcleos de apoio, nem RMS. Portanto, contra-hegemonia se faz quando se podem ampliar espaços. Eles não são perfeitos, e são contraditórios. Mas, contradição é mola da história. 3) Por último, o jogo estratégico. Mario Testa coloca o pensar estrategicamente como fundamental para o planejamento. Arouca nos ensinava da importância de se ter um sonho, para depois construir sua viabilidade, como a alma do processo de planejamento. Afirmava que se não sabemos onde queremos chegar, não chegaremos nunca. Portanto, foi assim que nasceu o SUS, e para que começássemos a organizar um sistema como se faz no mundo inteiro, organizando primeiro a porta de entrada (ou o nome que se quiser dar). É do sonho que nasceu a possibilidade do MS e o MEC sentarem juntos para iniciar as reformas curriculares na graduação, e que se criassem as RMS. As residências são esse sonho, e por isso mesmo elas são o próprio olho do furacão (parabéns pela feliz imagem dos autores), porque é como consequência delas que poderá nascer o novo profissional, que saiba trabalhar em equipe, que trate humanamente os que necessitam, que colabore com o empoderamento da população, que promova saúde e que ensine nas universidades esse, que ainda está por nascer. Algumas leituras realizadas para este pequeno comentário passaram por Marx, Gramsci, Testa, Escorel, Arouca, Czeresnia e portarias e legislações do MS e MEC. Recebido em 12/02/09. Aprovado em 18/02/09.
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debate
“Ligar gente, lançar sentido: onda branda da guerra” – a propósito da invenção da residência multiprofissional em saúde “To connect people: sweet wave of the war”- about the invention of multiprofessional residence in health “Unir la gente, lanzar sentido: onda branda de la guerra” - a propósito de la invención de la residencia multiprofesional en salud Ricardo Burg Ceccim1
Encontro-me, mais uma vez, com o texto de Daniela Dallegrave, acompanhada pela professora Maria Henriqueta Luce Kruse, relativo à invenção da residência multiprofissional em saúde (RMS). Nos encontros anteriores, Daniela formulava um argumento à pesquisa ou interpretava a exploração de campo desse argumento: o que teria motivado as manifestações, provenientes da categoria médica, de vigoroso combate à RMS como modalidade de formação especializada na área? Não era o conjunto do debate sobre a residência (como modalidade de formação especializada e realizada em serviço, mesmo assim historicamente admitida como educação superior pós-graduada) o que se colocava em questão, mas o que teria movido a categoria médica a se manifestar tão veementemente contra a maneira multiprofissional da educação especializada em serviço. A maneira multiprofissional da educação especializada em serviço é uma das propostas defendidas – no interior das instâncias do Sistema Único de Saúde (SUS) – como resposta à construção da diretriz constitucional do Atendimento Integral na composição de ações e serviços de saúde e sua integração em rede. A defesa da multiprofissionalidade na composição do perfil profissional aparece junto à interdisciplinaridade, nos argumentos do trabalho em equipe, da abordagem biopsicossocial na assistência e à introdução dos conceitos de prevenção, promoção e proteção à saúde, assinalando que esta não é apenas a ausência de doença. Como podia uma prática discursiva de oposição à Integralidade ser enunciada como discursividade pública? O que legitimaria um saber-poder sobre a saúde em desacordo com a integralidade? Somos apresentados, então, à noção de “invenção cultural”, resultante da observação de um abalo ao saber-poder-desejo (cultura) instituído como modelo médico-hegemônico. Abalo provocado pela emergência discursiva da RMS. Não que múltiplas vozes não entoassem esse discurso há muitos anos, mas conservavam-se em uma espécie de marginalidade, clandestinidade, minoridade. Como política ou lei, entretanto, surgia uma nova possibilidade ou potência: tensão ou vetor de divergência ao instituído, oportunidade de território ao instituinte. A Constituição Federal e a Legislação em Saúde atribuíram ao SUS o papel de ordenador da formação do seu pessoal, estava posto um tensor/vetor em favor dos interesses da sociedade, não os privados ou corporativos de qualquer espécie. As
1 Enfermeiro, sanitarista. Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs). Rua Dr. Raul Moreira, 550, Cristal, Porto Alegre, RS, Brasil. 90.820-160 <burg.ceccim@ufrgs.br>
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Diretrizes Curriculares Nacionais, aprovadas entre 2001 e 2004, afirmaram que a formação básica nas profissões de saúde deveria contemplar – no desenvolvimento das habilidades específicas de cada profissão – a orientação pela integralidade, pelo trabalho em equipe e pela apropriação do SUS, tensor/ vetor de reorientação do ensino de graduação em saúde em favor das necessidades de saúde da população e do sistema público. A RMS punha superior visibilidade a esses objetos (evidência de imagem) e densidade a sua enunciação (evidência de sentido). O que parecia disperso, mostrava-se capaz de “ligar gente, lançar sentido”, como compôs Caetano Veloso em A Outra Banda da Terra. Quem sabe, como na música, uma “onda branda da guerra”? Daniela nos mostrou o que pedia visibilidade e qual era a enunciação do polo que “discursava” em favor da RMS: mudança na graduação (“reforma universitária”, na linguagem detectada), integralidade, trabalho em equipe, defesa do SUS e reconhecimento das necessidades sociais em saúde. O polo reativo à RMS não precisava inventar um discurso, trabalhava pelo discurso médico-hegemônico, por isso tão facilmente categorizável pela representação corporativa dos médicos. Atenho-me à delimitação selecionada por Daniela, a disputa entre um regime de verdade instituído (a voz de saber-poder-desejo do modelo médico-hegemônico) e um regime de verdade instituinte (outra voz, a do “Atendimento Integral”, presente como diretriz e como princípio do SUS). Daniela localiza, como marcador de tempo e divisor de discursos, o posicionamento do governo federal, no bojo da Política Nacional de Educação na Saúde: Formação Superior e Especializações, período 20032005, que culminou com a criação em lei da Residência em Área Profissional da Saúde (guardando, na medida do possível, correspondência à Residência Médica, de modo que pudessem funcionar como programas integrados). A terminologia da política não era a da Residência Multiprofissional, mas a da oferta de vagas multiprofissionais para o máximo de especialidades, como forma de enfatizar o trabalho em equipe e construir vigorosamente a integralidade. A intenção do governo (e sua linguagem) dava conta de cumprir e fazer cumprir a legislação federal (Art. 30, da Lei 8.080/90, Arts. 39 e 40 da Lei 9.394/96, respeitando a história da precursora residência médica na educação superior). A reatividade médica, contrária à criação em lei de residências na área da saúde, que não destinadas aos diplomados em medicina, fez emergir a “invenção cultural” da RMS: demandou essa enunciação e gerou essa visibilidade. As entidades médicas, reivindicando a exclusividade da terminologia “residência” à especialização médica, não se mobilizaram para interrogar a criação das Residências em Desenvolvimento de Software, Jurídica, em Agronomia ou a Artística. Foi a acirrada posição das entidades médicas que fez constar, na lei, que a criação da Residência em Área Profissional da Saúde se destinava às profissões da saúde, excetuada a categoria médica (ocorre uma inversão discursiva na linguagem hegemônica: de “médicos e não médicos” para “profissionais de saúde, exceto médicos”). Ao reivindicado prestígio de pertencer a uma instância do Ministério da Educação não correspondia, na gestão da Residência Médica, qualquer correlação com a educação médica de graduação ou com os inúmeros e consolidados programas de residência em outras profissões da área, oferecidos pelas Instituições Federais de Ensino Superior. No governo, como portador discursivo, Daniela distingue uma bifurcação a partir de julho de 2005: sai da cena da gestão um discurso das residências em área profissional da saúde, em comunicação com o controle social e a participação popular, entra em cena um discurso das residências multiprofissionais role-models. Sai o discurso da singularização (locorregional e por diversificação de cenários), entra o discurso da serialização: programas de formação em massa. Outro portador de discurso foi o segmento dos residentes. Sobre o personagem residente não existir e ter de ser criado, lembro que os residentes existiam, logo, o que se cria é o ator social Movimento de Residentes. Um outro ator, a Associação Nacional dos Médicos Residentes, sucedânea do movimento nacional dos médicos residentes, emergente na história da saúde brasileira como força aliada da reforma sanitária. O antigo ator (movimento de residentes) surpreende o novo ator (movimento emergente de residentes): aquele antigo ator agora distava da luta pelas diretrizes e pelos princípios defendidos como Reforma Sanitária e para incorporação ao SUS! Entre as condições de possibilidade do movimento nacional de residentes em área profissional da saúde está o inusitado desta reação e singularidades históricas, entre elas o estabelecimento da Política Nacional de Educação na Saúde, que se apresentou para o diálogo direto com os estudantes de graduação. Uma multidão de estudantes foi mobilizada no país e teve despertado 234
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CECCIM, R.B.
debate
o desejo de se tornar residente do SUS. O Movimento Estudantil foi chamado de maneira especial ao SUS e ao governo federal. Ex-militantes estudantis da área da saúde lideravam a condução política em alguns municípios, abrindo programas de RMS. Entre outros portadores de discurso, as imagens de revistas e boletins. No relato sobre a capa da revista do Sindicato Médico do Rio Grande do Sul, se imagens valem mais que palavras, o número citado é acachapante relativamente ao tema: uma mão com luva de ferragem empunha um bisturi, sob a frase “Formação multiprofissional da área de saúde: quem ganha com isso?”. Legenda, foto e componente central da matéria apontam o risco da inépcia em procedimentos que requerem alta habilidade e põem em risco a vida, mas é exagero especulativo sugerir que a mão tenha apenas 4 dedos. A recíproca do exagero está na anotação de uma entrevista com o então coordenador da Comissão Nacional de Residência Médica, como exemplo de que nem todos os médicos tiveram uma posição contrária à RMS. Em inúmeras manifestações, o mesmo portador discursivo atesta a sua opinião contrária às residências não destinadas a médicos, comemorando seu empenho pessoal para que o Ministério da Saúde não tivesse êxito na atribuição constitucional da ordenação da formação de profissionais e na implementação da obrigação legal de constituir o treinamento especializado em serviço sob supervisão como tarefa intersetorial. A matéria trazia entrevistas com médicos homens que fragilizavam a posição editorial. O ministro que bancou a lei de criação da residência em área profissional da saúde para todas as profissões da área era médico e homem. No polo discursivo do atendimento integral e do trabalho em equipe de saúde, estão inúmeros médicos e homens que fazem intenso uso da palavra escrita e falada a esse favor. Nesse polo também há falas sectárias e outras idealizadas. Daniela conclui o artigo deixando no ar a necessidade pedagógica da residência como modalidade de formação. Entendo que há, sim, uma necessidade pedagógica da residência para habilitar especialistas. Deveria, então, dialogar amplamente com o controle social e a participação popular, a integralidade, o trabalho em equipe e o desenvolvimento do SUS, portanto, com a multiprofissionalidade.
Recebido em 12/02/09. Aprovado em 18/02/09.
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Réplica Reply Respuesta
A oportunidade de publicar o nosso artigo em Debates, na Revista Interface, deixa-nos lisonjeadas e instigadas a pensar mais sobre o assunto, especialmente por recebermos quatro enriquecedores comentários sobre o texto. Assim, agradecemos à Laura, ao Marco, a Ana e ao Ricardo por sua atenta leitura e pela qualidade dos comentários feitos. Não podia ser diferente, como “atores” implicados radicalmente com a Residência Multiprofissional em Saúde (RMS). Dizemos radicalmente por conhecermos sua história pessoal e profissional e seus envolvimentos não só com a RMS, mas também com a pauta das residências, de modo geral. Como foi dito na dissertação que originou o artigo que abre o debate, nossos interlocutores são fundadores de discursividade sobre a RMS, ou seja, “o discurso produzido abriu espaço para outra coisa diferente dele e que, no entanto, pertence ao que aquele discurso fundou” (DALLEGRAVE, 2008, p. 20), que o referencial que utilizamos seria configurado como um regime de verdade sobre a RMS, isto é, os discursos que um grupo acolhe e faz funcionar como verdade. As tais verdades que, como diz Foucault, são deste mundo. O que há de comum entre os quatro textos é que nossos debatedores nos brindam com uma rica contextualização sobre as lutas dos movimentos sociais em prol das conquistas que temos hoje e falam dos mesmos lugares, produzindo discursos considerados verdadeiros, formadores do ambiente em que se inscrevem e atravessados pelo meio institucional, compondo aquilo que é considerado o discurso da RMS. Este também foi um jeito de inventar culturalmente a RMS. Em nosso texto tentamos mudar o foco: ao invés de produzir respostas, elaborar perguntas, ao invés de demonstrar certeza, instalar a dúvida, ao invés de prescrever, modo tão caro aos artigos de revistas científicas, problematizar. Deste modo, não pretendemos escrever uma história ou a história da RMS, o que ela seria ou poderia ser, mas sensibilizar os olhares para outros modos e possibilidades de ver, enfim, fazer outras e novas perguntas sobre a RMS. Tendo como base este modo de pesquisar pretendemos conhecer os discursos que circulam sobre a RMS, tomando para isto desde os documentos de regulamentação (leis e portarias) até textos de jornais e revistas, impressos ou postados na internet, boletins informativos de corporações e até mesmo panfletos que circulam entre os residentes. A proposta era conhecer as condições de possibilidade da existência desses discursos e como se articularam a partir de palavras, frases e proposições que se encontram nos focos difusos do poder. Assim, nossa análise pretendeu identificar quem está autorizado a falar sobre o assunto, de onde tais autores falam e para quem falam e como tais discursos constituem o que se chama Residência Multiprofissional em saúde. Muitos dos comentários que fazemos no texto resultam da abordagem teórica utilizada na dissertação. O modo pós-estruturalista de pesquisar, escrever, abordar um tema, não pressupõe contar a verdade total e definitiva sobre o mesmo, nossos achados são parciais e provisórios, sujeitos a mudanças quando submetidos a outros olhares. Fizemos é uma leitura interessada dos textos analisados que não é, e nem pretende ser, a única leitura possível. E esta, na nossa maneira de ver, constitui a riqueza da análise. Situando nossos leitores neste referencial, não nos preocupamos em conhecer o que seria mesmo a RMS, mas como ela se constituiu, os discursos que a produzem e sustentam, as condições de possibilidades do aparecimento desta modalidade de formação em saúde no Brasil. 236
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debate
Em relação à possibilidade de irmos para além das aparências, em busca de uma suposta essência, podemos, outra vez, citar Foucault quando nos diz que se há algum segredo a desvendar é que as coisas não têm essência, uma vez que esta foi também construída (ou inventada) na história e na cultura. Então, em nosso caso, a RMS não tem nada de natural ou essencial, tendo sido construída socialmente, por relações de poder. Do mesmo modo, embora concordemos que os diferentes lugares não são monolíticos, entendemos que há uma ordem de discurso possível conforme a posição de sujeito que se ocupa. Os diferentes atores implicados com a possibilidade de organizar esta formação em “ato”, construída nos atos mesmos dos encontros (aqui consideramos os encontros sugeridos pelo texto da Laura), dão a cara desta proposta dita inovadora, que carrega consigo muitas outras possibilidades de discurso edificadas pelas condições de possibilidade da invenção da RMS. A partir dos documentos analisados podemos dizer que Estado, residentes e entidades médicas ocupam posições de sujeito que foram apresentadas no artigo e, a partir do nosso olhar, apoiado no referencial pós-estruturalista, esta foi uma leitura possível. Muitas outras podem e devem ser feitas, pois muito ainda há para se construir.
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livros
PRIMO, A. Interação mediada por computador: comunicação, cibercultura, cognição. Porto Alegre: Sulina, 2007.
Angélica Lüersen1
Olhares sobre interação e cibercultura Peço a palavra. Ela me foi concedida. Eis que venho aqui lhe falar sobre interação segundo a ótica de Alex Primo. Trago aqui não meus apontamentos sobre o tema, mas meu olhar sobre as idéias de Primo em ‘Interação mediada por computador’. Este é o título da obra cuja proposta apresenta-se como uma nova abordagem, um outro olhar (diferenciado e curioso), frente ao campo ainda incipiente que se apresenta como cibercultura. O caminho traçado e percorrido entre as vielas comunicacionais, cognitivas e socioculturais é, com competência, transposto por Primo nas 240 páginas que compõem a obra. Uma discussão recente (pois a publicação data de 2007) e ousada (visto que, já de início, o autor mostra aproveitamentos e lacunas das teorias que se conhecem sobre interação) pretende, pois (é o que parece transparecer) um pensamento reflexivo e mais aprofundado sobre esse tema que está impregnado e indissociável individual e socialmente (ou você duvidaria disso? Venha! Vamos imaginar o caminho juntos!).
O livro surge de uma insatisfação com as teorias de que, tradicionalmente, se cerca o termo “interatividade”, visto que estas se apresentam como lacunares, desajeitadas, incompletas2. Daí, por meio de uma revisão crítica baseada numa abordagem sistêmicorelacional, Primo defende uma nova tipologia para os estudos sobre interação: interação mútua e interação reativa. Esta abordagem vai além do viés tecnicista trazido pelas teorias que disputavam lugar à mesa, visto que essas propunham, como foco de atenção, apenas a relação entre o meio e o homem, sendo a transmissão da mensagem o eixo principal. Logo, Primo propõe uma análise dos diferentes modos de interação mediada por computador, vista sob as ações e relações entre os envolvidos no processo. Cinco capítulos formam o corpo da obra e nos levam a aprofundar e refletir sobre o tema interatividade (cuja finalização ganha, nas linhas que seguem como considerações finais, os contornos próprios de um estudo profícuo). O primeiro deles aponta teorias e definições sobre interação, evidenciando o “lugar-comum”, já instituído, acerca do termo. Primo
2 Há que se dizer que, por ser um território ainda pouco explorado, a possibilidade de um teórico superar o outro assim que as idéias são lançadas é muito possível, visto que o entendimento, bem como o conhecimento, está sendo construído a muitas mãos, seja por meio de erros ou acertos acerca do tema.
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
v.13, n.28, p.241-3, jan./mar. 2009
1 Graduada em Jornalismo. Mestranda, Programa de PósGraduação em Comunicação Midiática da Universidade Federal de Santa Maria. Rua Vale Machado, 1726, apto 405, Santa Maria, RS, Brasil. 97.010-530. angelicaluersen@gmail.com
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propõe-se a questionar estes estudos apresentando cada uma das propostas e ‘visões’, bem como suas contribuições, falhas e avanços. Autores3 como Brecht, Enzensberger, McLuhan e Thompson são trazidos para discutir ‘a interação mediada pelos meios tradicionais’. Ao tratar da ‘busca pela TV interativa’ são considerados Matuck, Lemos, Brand, Machado, Thompson, Rose, Bucci e Willians. Na discussão acerca das visões tecnicistas e mercadológicas sobre interatividade, os autores Rafaeli e Machado são os norteadores desse pensamento. As críticas feitas quanto à ênfase na performance do computador estão baseadas nas teorias de Lippman, Vaughan, Steuer, Dertouzos, Lanier, Jensen e Loes de Vos. No subitem ‘Participação, diálogo e bidirecionalidade’, Primo sistematiza o conceito de interatividade resgatando Silva, Marchand, Matuck, Couchot, Rafaeli, Machado, Bairon e, também, Rafaeli e Sudweeks. ‘“Interatividade” como argumento de venda’ traz à tona a discussão fundamentada por Baudrillard, Sfez, Silva e Al e Laura Ries, e encerra o primeiro capítulo da obra. No segundo capítulo, sob abordagem sistêmico-relacional, como já foi dito, a proposta é afastar-se dos enfoques tradicionais (de produção, transmissão e recepção) e discutir interação como uma ‘ação entre’ os participantes. O foco não será dado por interagentes individuais, mas pelo relacionamento entre os interagentes, ou seja, aquilo que acontece entre os sujeitos e o computador. As formas dialógicas originadas nas interfaces da internet propiciam um olhar mais aguçado do que aquele com viés tecnicista e tradicional, provocando, não uma ruptura, mas um avanço no entendimento da comunicação aí presente. Nas interações mediadas por computadores, Primo propõe uma argumentação que perpassa os estudos sobre inteligência artificial e, também, as experiências próprias dos processos de comunicação 242
e relação estabelecidos via internet. Aqui, dois tipos de interação são propostos por Alex Primo: a interação mútua e a interação reativa. Este é o eixo dos capítulos três e quatro. Nas 98 páginas que discorrem sobre a tipologia e elucidam os conceitos de interação mútua e reativa, fica evidente o esforço de Primo no que diz respeito à observação dos novos meios (diga-se aqui, já não tão novos assim) e aos consideráveis estudos na área. Para ele, a maioria das interações no ciberespaço não é plena, isto é, é reativa. Por interação reativa ele entende aquela cujas ações se estabelecem acerca de determinadas condições iniciais; são, portanto, pouco livres e atendem a objetivos específicos. As trocas são condicionadas, predeterminadas, ou seja, a resposta sempre será prevista e virá por causa de um certo estímulo. Por isso mesmo, a denominação ‘reativa’, pois é sempre uma reação (esperada) frente ao estímulo. O interagente4 nem sempre tem a noção de estar sendo guiado, pois os processos podem se camuflar como livres5. De certo, o modo de interação mais veemente (mas nem por isso, alerta Primo, garante relações amistosas ou mais democráticas) é aquele que não demarca os caminhos, mas os deixa livres e incondicionais, onde interagentes se encontram constantemente para contínuas problematizações (e não deixam de ocorrer aí relações de poder e impactos contextuais). Aqui a construção se dá na relação entre os interagentes, pois a interação se dá naquele momento. É assim que Primo caracteriza interação mútua. Não há fronteiras preestabelecidas, uma vez que as respostas são livres e interferem, de fato, no processo e no resultado, que se constrói e se atualiza nas ações entre. Para além de uma classificação fechada ou extremamente delimitada, há casos em que as duas tipologias podem se juntar ao mesmo tempo e, assim, passam a ter um caráter híbrido, com características mútuas e reativas.
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.13, n.28, p.241-3, jan./mar. 2009
3 Listo aqui os autores que aparecem nessa parte primeira justamente por se tratar de um resgate teórico, realizado por Primo, que fundamenta toda sua discussão posterior.
4 Uso aqui a terminologia de Primo, que propõe uma substituição da palavra ‘usuário’ a fim de expandir e de evitar um olhar viciado sobre o termo.
5 Mesmo num site de notícias, por exemplo, podemos fazer um caminho exclusivo, mas sempre será uma escolha feita entre as possibilidades apresentadas de antemão.
livros
Como fruto de uma discussão bastante densa e peculiar, o quinto capítulo traz uma distinção (entenda-se, aqui, como puramente conceitual, de fato) entre processos de conflito e cooperação. A abordagem que se faz frente a tais processos, abarcados nas interfaces da cibercultura, é sob o enfoque dos aspectos social e digital. Desse modo, Primo pretende salientar que, no cenário do ciberespaço e nas relações sociais que se estabelecem por meio dele, o conflito e a cooperação aparecem como reações possíveis e não contraditórias (ou extremas), uma vez que ambas levam ao potencial debate das questões, isto é, levam à relação (seja ela conflituosa ou cooperativa), e que podem vir a ocorrer em diferentes graus, mas ao mesmo tempo. Seguindo o mesmo raciocínio, ambas são entendidas como resultado natural da existência social (uma que demonstra interesses em comum e, assim, uma força de unificação, outra que, pela disparidade, leva também à interação). Tanto a cooperação não precisa ser entendida como algo racionalmente bom ou altruísta (o desencantar da visão sobre cooperação, que o autor nos mostra), quanto o conflituoso ou contraditório não deve ser visto como um muro instransponível à cooperação, mas sim como possibilidade que estimula e move os processos de interação. Mas o que significa “interatividade”? A resposta dessa questão cabe a você, caro leitor, desvendar na obra. As teorias tradicionais que sempre serviram de base às discussões dos processos comunicacionais agora exigem um passo além, um novo olhar para poder explicar esse novo ‘universo’ que se apresenta. É o que Primo nos propõe. Ele exige um repensar acerca das nossas certezas. Ao se deleitar, relevantes apontamentos virão e, com eles, novas questões, outras dúvidas, um tema instigante e, por hora, ainda pouco edificado. As fronteiras ainda estão sendo demarcadas. Convido-lhe a percorrer esta trilha. Devolvo a palavra. Passo-a para você. Qual o seu olhar sobre a ‘interação mediada por computador’?
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
v.13, n.28, p.241-3, jan./mar. 2009
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teses
Sentido da vida, espiritualidade e sociopoética: convergências para a produção de novos conhecimentos e para o cuidado clínico Meaning of life, spirituality, sociopoetics: convergens for the production of new knowledge and the clinical care
O sentido da vida constitui fator importante e revelador da espiritualidade humana, que, muitas vezes, é afetada pelas situações de sofrimento e adoecimento. Pensando nisso, desenvolvemos um estudo, cujo objetivo é produzir conceitos de sentido da vida junto a pessoas com câncer. O caminho metodológico escolhido foi a sociopoética, método desconstrutivista que entende que os participantes da pesquisa são copesquisadores, que juntos formam o grupopesquisador e produzem conhecimento. Esse grupo foi formado por 07 pacientes com câncer em tratamento, que se encontravam na casa de apoio de um hospital de referência em Fortaleza. A produção aconteceu em quatro oficinas: uma de negociação, duas de produção propriamente dita, e uma oficina de análise. Os dados foram produzidos por meio de dispositivos que propiciaram o surgimento do novo, e foram analisados com base nas diversas análises propostas: plástica classificatória, transversal, surreal, do grupo-pesquisador, filosófica e maquínica. Os conceitos produzidos foram: sentido serra, sentido sertão, sentido lagoa, sentido ponte, sentido túnel/luz, sentido fogão, sentido mar de rosas, e sentido Deus. Esses confetos – junção de conceitos e afeto – mostram as possibilidades que o sentido da vida pode representar para as pessoas ao enfrentarem a dor, o sofrimento e a iminência de morte. Neles encontram: a força e a motivação para superar as adversidades e manterem-se vivos; percepção das realizações como importante para a construção de sentido; esperança de dias melhores; encontro de sentido no sofrimento e na fé, além de encontrarem sentido nas relações afetivas estabelecidas durante a vida. Os confetos produzem ressonâncias para a enfermagem, verdadeiro agenciamento daquilo que foi produzido com o que já existia na
academia; constatamos que há alguns paralelos entre os saberes, além de contribuírem com novas perspectivas para o cuidado clínico e descoberta de potencialidade do grupopesquisador. Esperamos que esse estudo provoque novos agenciamentos e motive novas pesquisas sobre o assunto. Michell Ângelo Marques Araújo Dissertação (Mestrado Acadêmico em Cuidados Clínicos em Saúde), 2008. Universidade Estadual do Ceará, Fortaleza. micenf@yahoo.com.br
Palavras-chave: Espiritualidade. Enfermagem. Saúde Mental. Key words: Spirituality. Nursing. Mental Health. Palabras clave: Espiritualidad. Enfermería. Salud Mental.
Texto na íntegra disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/ DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=101600
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.13, n.28, p.245-6, jan./mar. 2009
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TESES
Ciência em tempos de Aids: uma análise da resposta pioneira de São Paulo à epidemia An examination of São Paulo’s pioneer response to the Aids epidemic
A presente tese pretende mostrar como e por que o Brasil desenvolveu um modelo de combate à AIDS, elogiado internacionalmente, com base no programa pioneiro na América Latina, criado no Estado de São Paulo em 1983, dois anos depois do início oficial da epidemia nos Estados Unidos. Mediante o relato dos médicos e de outros profissionais de saúde que deram início ao programa em São Paulo, o estudo pretende apontar os referenciais éticos, políticos e científicos que deram origem ao modelo brasileiro de combate à Aids, e como esses referenciais influenciaram a maioria das posições públicas assumidas pelo país. Esses relatos e as pesquisas complementares apontam para a influência das idéias do movimento da reforma sanitária, em andamento na década de 1980, no programa de Aids desenvolvido em São Paulo. O movimento propunha a expansão e melhoria da cobertura de saúde no país, mas, sobretudo, uma ampliação do espaço de participação popular nas questões ligadas à saúde e doença. Dentre outros princípios, o movimento propunha uma ampla reformulação da atenção à saúde no país, mediante a integração de ações e a democratização das decisões neste âmbito. Em São Paulo, devido ao momento histórico em que a epidemia começou a se manifestar, a interrelação com o movimento permitiu que se realizasse um diálogo profícuo entre medicina e sociedade, entre produção de conhecimento e sua aplicação. Esse diálogo, se for levado adiante, pode servir para avaliar o papel da ciência na política de saúde e, vice-versa, para a incorporação de importantes aspectos sociais no processo de opções e decisões em ciência. Para essa tese, procuramos seguir a metodologia do Centro Simão Mathias/Programa de Estudos PósGraduados em História da Ciência (Cesima/
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PEPGHC) da PUCSP, segundo a qual a História da Ciência representa, hoje, um espaço de reflexão e contextualização de múltiplas áreas do conhecimento, entre elas tanto as Ciências Naturais como as Humanas. Como as preocupações desses dois campos se tornaram mais integradas, foi possível explorar aspectos antes negligenciados da História da Ciência, como as várias instituições que fazem a mediação entre conhecimento e sociedade, com o objetivo de mostrar como o conhecimento é produzido, organizado e dimensionado. Martha San Juan França Tese (Doutorado), 2008 Pontifícia Universidade Católica de São Paulo marthasj@ndata.com.br
Palavras-chave: Aids. Reforma sanitária. História da Ciência. Key words: Aids. Sanitary reform. History of Science. Palavras clave: Aids. Reforma de la salud. Historia de la Ciencia.
Texto na íntegra disponível em: http://www.sapientia. pucsp.br/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=7772
COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.13, n.28, p.245-6, jan./mar. 2009
“MERCOSUL: por onde passa a saúde” Fotografar os caminhos da saúde no MERCOSUL revela um novo olhar, não só para o que nos difere, mas também para o que nos aproxima da luta pela integração dos povos latinoamericanos e por um bem comum: a saúde pública. Radilson Carlos Gomes
Este fascículo da Interface - Comunicação, Saúde, Educação apresenta parte do trabalho realizado pelo fotógrafo Radilson Carlos Gomes para a Mostra “MERCOSUL: Por onde a saúde passa” e integra a publicação: Brasil. Ministério da Saúde. Assessoria de Assuntos Internacionais de Saúde. Coordenação Nacional de Saúde do MERCOSUL. MERCOSUL: por onde passa a saúde. Brasília: Ministério da Saúde, 2008 (ISBN 978-85-334-0299-7). Radilson foi convidado a realizar esta Mostra fotográfica como parte das iniciativas do Mercosul que buscam dar mais visibilidade a temas relevantes do trabalho no campo da Saúde, dentre os quais o processo de redução das assimetrias nessa área e o fortalecimento do processo de integração regional, abordando o complexo campo de atuação e de intervenção em saúde no âmbito de integração entre os países que compõem o MERCOSUL.
O autor Radilson Carlos Gomes é brasiliense, fotógrafo da saúde pública desde 1986. Conheceu a arte da fotografia pelas mãos - ou, pelo olhar - do fotógrafo Guilherme Stuckert, da segunda geração da família Stuckert, que há oitenta anos contribui para a história da fotografia no Brasil. Depois dos primeiros cliques no Centro Cirúrgico do Hospital de Base de Brasília, passou a abordar outros temas, como: a natureza, pessoas e eventos sociais. Hoje, seu olhar divide-se entre os projetos de exposição e mostras fotográficas que executa para a saúde pública e as aulas de fotografia para alunos que estão iniciando o ofício de fotojornalismo e fotopublicitária na cidade. Ao longo desses 23 anos, construiu um acervo de mais de trinta mil fotos da saúde pública do Brasil e da América do Sul, abordando temas como: os determinantes sociais, ensino e pesquisa em saúde e atenção à saúde, registrados em preto-e-branco. Fotografando para o Ministério da Saúde em várias cidades do país e da América Latina, Radilson construiu um acervo de cerca de sete mil retratos dos povos que formam a nação sul-americana. Um verdadeiro sincretismo de cores, raças e credos identificados nos rostos de anônimos, formando uma verdadeira teia. Graduado em Administração Hospitalar e licenciado em História, compõe o Núcleo Técnico da Política Nacional de Humanização do Ministério da Saúde desde 2003. É especialista em Comunicação e Saúde pela Fundação Oswaldo Cruz (CICT-FIOCRUZ) e Gestão Estratégica de Políticas Públicas de Saúde (ENSP-FIOCRUZ), e já realizou exposições com imagens da saúde pública em Nova Iorque (EUA), Vancouver (Canadá) e diversas galerias de arte e museus no Brasil. Contato: radilson@saude.gov.br COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO
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As fotos 1 Unidade Básica de Saúde que atende à população de baixa renda em uma favela vertical na Província de Buenos Aires. Avellaneda, Buenos Aires, Argentina. 2 Atendimento pediátrico na Unidade Básica de Saúde de Avellaneda. Província de Buenos Aires, Argentina. 3 Vacinação em Posto de Saúde. Puerto Iguaçu, Argentina, fronteira com o Brasil. 4 Atendimento SAMU. Hospital Municipal de Foz do Iguaçu, Paraná (PR), Brasil. 5 Atendimento SAMU. Hospital Municipal de Foz do Iguaçu, PR, Brasil. 6 Recém-nascido nos braços de pais adolescentes. Hospital Costa Cavalcante, Foz do Iguaçu, PR, Brasil. 7 Exame de audição em recém-nascido. Hospital Costa Cavalcante, Foz do Iguaçu, PR, Brasil. 8 Exame oftalmológico no Centro de Saúde Integral Salvador Allende. Município de Dos Caminos, Venezuela. 9 Paciente em observação (isolamento). Hospital Municipal de Foz do Iguaçu, PR, Brasil. 10 Trabalhador da manutenção do Hospital Saint Bois. Montevidéu, Uruguai. 11 Equipe da UTI de Cardiologia Infantil. Hospital Cardiológico Infantil, Caracas, Venezuela. 12 Equipe de plantão. Hospital Pediátrico Acosta Ñu, Assunção, Paraguai. 13 Manifestação popular em frente ao Parlamento uruguaio. Montevidéu, Uruguai. 14 Limpeza do Hospital Municipal de Foz do Iguaçu, PR, Brasil. 15 Visita domiciliar, Equipe de Atenção Básica. Bairro São Paulo, Foz do Iguaçu, PR, Brasil. 16 Visita domiciliar, Equipe de Atenção Básica. Bairro São Paulo, Foz do Iguaçu, PR, Brasil. 17 Visita domiciliar, Equipe de Atenção Básica. Foz do Iguaçu, PR, Brasil. 18 Visita domiciliar, Equipe de Atenção Básica. Foz do Iguaçu, PR, Brasil. 19 Visita domiciliar, Equipe de Atenção Básica. Foz do Iguaçu, PR, Brasil. 20 Visita domiciliar - Equipe de Atenção Básica. Bairro São Paulo, Foz do Iguaçu, PR, Brasil. 21 Rua do Bairro San Telmo. Buenos Aires, Argentina. 22 Grafite nas ruas de San Telmo. Buenos Aires, Argentina. 23 Unidade de Atenção Básica na Província de Buenos Aires. Avellaneda, Buenos Aires, Argentina. 24 Unidade de separação de lixo Villa Lujan. Província de Buenos Aires, Argentina. 25 Fronteira Uruguai/Brasil, ponte Jaraguá (Brasil)/Rio Branco (Uruguai). Centro Auxiliar de Rio Branco, Uruguai. 26 Mural do Centro de Saúde Integral Salvador Allende. Município de Dos Caminos, Venezuela. 27 Chão e praça em Montevidéu – exposição permanente composta por fotos de populares com manifestações ocorridas naquele local ao longo dos anos. Montevidéu, Uruguai. 28 Fisioterapia no Centro de Saúde Maria Genoveva Guerrero. Caracas, Venezuela. 29 Recém-nascido na sala de parto segurando o dedo do pai que acompanhou o parto. Hospital Young, Município de Soriano, Uruguai.
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